Você está na página 1de 271

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL |1

2| PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL |3
Dra. Adriana Goulart De Sena Orsini
Professora Associada IV e membro do corpo permanente do Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Direito da UFMG.

Dra. Amanda Flavio de Oliveira


Professora associada e membro do corpo permanente do PPGD da faculdade de Direito da
Universidade de Brasília.

Dr. Eduardo Goulart Pimenta


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e do Programa de Pós-graduação
em Direito da PUC/MG

Dr. Francisco Satiro


Professor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP – Largo
São Francisco

Dr. Henrique Viana Pereira


Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas.

Dr. João Bosco Leopoldino da Fonseca


Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG

​​​​​​​Dr. Leonardo Gomes de Aquino


Professor do UniCEUB e do UniEuro, Brasília, DF.

Dr. Luciano Timm


Professor da Fundação Getúlio Vargas - FGVSP e ex Presidente da ABDE (Associação Brasi-
leira de Direito e Economia)

Dr. Marcelo Andrade Féres


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG

Dra. Renata C. Vieira Maia


Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG

Dr. Rodolpho Barreto Sampaio Júnior


Professor Adjunto na PUC Minas e na Faculdade de Direito Milton Campos, vinculado ao
Programa de Mestrado.

Dr. Rodrigo Almeida Magalhães


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e do Programa de Pós-graduação
em Direito da PUC/MG

4| PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Direção editorial: Luciana de Castro Bastos
Diagramação e Capa: Daniel Carvalho e Igor Carvalho
Revisão: Do Autor
A regra ortográfica usada foi prerrogativa do autor.

Todos os livros publicados pela Expert Editora Digital


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 BY-
SA. https://br.creativecommons.org/
‘’A prerrogativa da licença creative commons
4.0, referencias, bem como a obra, são de
responsabilidade exclusiva do autor’’

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

PENIDO, Flávia Avila, SILVA, Jéssica Gonçalves da (Org.)


Titulo: Perspectivas - Estudo interdisciplinar sobre o sistema prisional
- Belo Horizonte - Editora Expert -
2022.
Organizadores: Flávia Avila Penido, Jéssica Gonçalves da Silva
ISBN: 978-65-89904-59-5
Modo de acesso: https://experteditora.com.br
1.Direito Penal 2.Sistema Prisional I. I. Título.
CDD: 345

Pedidos dessa obra:

experteditora.com.br
contato@editoraexpert.com.br

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL |5


PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR
SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
PREFÁCIO

Durante a leitura da presente obra somos imersos na temática


do cárcere no contexto brasileiro, com objetivo de se criar uma análise
crítica dos impactos do encarceramento. Tal análise é realizada através
de artigos escritos sob a ótica de profissionais de diferentes áreas do
saber.
A temática apresentada possui uma enorme relevância social e
se mantém em voga nos últimos anos, uma vez que a discussão acerca
da efetividade da pena privativa de liberdade sempre esteve em pauta
junto dos estudiosos de direitos humanos.
Insta salientar que na Lei de Execução Penal está previsto como
função da pena a ressocialização do sujeito privado de liberdade,
motivo pelo qual deveriam ser ofertados cursos profissionalizantes,
visando um maior leque de oportunidades para o indivíduo, o que
diminuiria o risco criminal, ocasionando em uma não reincidência
delituosa. Porém, o que se percebe é um sucateamento de recursos
básicos para os apenados, presídios com capacidade excedida,
inúmeras violações de direitos humanos que beiram a tortura, entre
tantos outros fatores que demonstram que, na prática, a teoria da
ressocialização apresentada não condiz com a realidade.
Ademais, importante que, ao realizar a leitura da presente
obra, o leitor tenha sempre um olhar humanizado para o tema,
refletindo sobre a vulnerabilidade social que uma grande maioria
dos encarcerados apresentam antes mesmo da experiência prisional,
como essa população é invisibilizada após o encarceramento, sendo
violados direitos humanos básicos, e como a sociedade se omite diante
de tais violações.
Pensando em todos os fatores que perpassam o cumprimento
da pena e os impactos da experiência prisional na vida do sujeito,
os autores abordaram temas de extrema relevância pela ótica de

6| PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


profissionais do serviço social, psicologia, direito, fisioterapia e
administração buscando demonstrar através de pesquisas acadêmicas
e observacionais os impactos do encarceramento nos indivíduos,
discutindo assuntos que vão da importância de atendimento
psicológico e escuta qualificada até a o gerenciamento da miséria
efetivado pelo Estado.
A discussão da presente temática por profissionais que possuem
formação acadêmica diversa, demonstra a necessidade de se
entrelaçar e complementar os diferentes campos do saber visando que
se tenha um olhar, atendimento e tratativas humanizadas para pessoas
que são vulnerabilizadas e invisibilizadas pela sociedade através do
encarceramento e que se evite adotar propostas reducionistas voltadas
tão somente ao aumento de vagas para contenção do infrator.

Raquel Mussolini Silvestre


Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL |7


APRESENTAÇÃO

O livro, organizado pela advogada, professora e pesquisadora


Flávia Ávila Penido e pela psicóloga e pesquisadora Jéssica Gonçalves
da Silva tem por objetivo abordar os temas afetos ao cárcere e à
Execução Penal sob a ótica dos diferentes saberes e atores que de
alguma forma vivenciaram ou vivenciam o cárcere.
Sabe-se que entre os fins legalmente previstos para a pena de
prisão e a pena que é efetivamente executada, há um constrangedor
hiato. Não obstante, a exposição dos reais fins da pena conforme
denunciado pela criminologia crítica e pós-crítica, distanciados
daqueles divulgados pelo discurso oficial, nos faz questionar se a
pena efetivamente não tem cumprido o papel que lhe fora designado
pela política criminal vigente: de neutralização e perpetuação da
marginalização.
Da denúncia da ilegitimidade da pena que se executa surge
para aqueles atores envolvidos com o cenário carcerário o dever de se
posicionarem como agentes de promoção da redução dos danos pelo
encarceramento com a salvaguarda dos direitos dos apenados.
Assim, a obra pretende apresentar o problema do cárcere e da
política criminal que o circunda sob a perspectiva de profissionais
oriundos de formações acadêmicas distintas. Pretende-se, com a
contribuição de diversos saberes, ampliar a ótica para o problema
do encarceramento, sendo visto e pensado e discutido a partir de
diferentes olhares.
O primeiro capítulo conta com a contribuição das assistentes
sociais Goretti Luiza Almeida e Nahjla Najjar Tauil Campos, sendo a
primeira especialista em saúde mental e trabalho social com famílias
e a segunda em saúde mental e dependência química. O texto aborda
o trabalho do serviço social e as possibilidades de se trabalhar a
autonomia do recluso. O tema se torna relevante, pois muito se fala
em ressocialização ou em reintegração social do recluso, mas são
poucas as discussões sobre o fato de como o encarceramento modifica
a modo de vida da pessoa, minimizando a possibilidade de tomar

8| PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


decisões como sujeitos plenos e conscientes das questões afetas a sua
própria realidade, o que interfere negativamente ao retorno à vida em
liberdade.
No segundo capítulo a psicóloga Jéssica Gonçalves da Silva,
especialista em psicologia clínica e direitos humanos, apresenta o perfil
das mulheres encarceradas e as especificidades do aprisionamento
feminino, além de apresentar os pressupostos do Estado Democrático
de Direito e a deficiência em sua aplicabilidade. A partir disso, são
identificados os desafios para efetivação dos direitos humanos nesse
contexto, através da apresentação de dados estatísticos.
O terceiro capítulo escrito por José Flávio Ferrari Roehrig,
especialista em Direito Penal e Criminologia e pós-graduando em
Execução penal e pelo professor mestre em Direito, Romulo de
Aguiar Araújo atenta para a invisibilidade da população LGBTQIA+ e a
violência infligida que, intramuros, agrava-se em razão das limitações
próprias da privação de liberdade em um contexto de um estado de
coisas inconstitucional. O texto analisa a ADPF 527 e as possíveis
medidas redutoras de danos a serem aplicadas.
No quarto capítulo, escrito pelos doutorandos em Direito, Rafael
Barros Bernardes da Silveira e Jamilla Monteiro Sarkis em coautoria
com a pós-graduanda em Ciências Penais Beatriz Vasconcelos
Coelho Melo, são analisadas as repercussões biopsicológicas do
encarceramento em regime de isolamento e a sua incompatibilidade
com a ordem jurídica brasileira, especialmente considerando suas
consequências - os danos à saúde física e mental - em face do pretenso
objetivo de reintegrar o sujeito ao convívio social.
O texto escrito por Patrícia Dayrell Neiva, doutora em Ciências
da Saúde e docente em curso de fisioterapia, em coautoria com as
graduandas em fisioterapia, Eduarda Silva Mendes e Gabriela Pâmela
Faust Vieira, atento à necessária articulação entre ensino, pesquisa
e extensão, expõe, no quinto capítulo desta obra, o resultado da
pesquisa observacional relacionada à qualidade do sono implantada
virtualmente na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados
(APAC) de Belo Horizonte, Minas Gerais, através do projeto de extensão

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL |9


ELAS. O projeto teve como objetivo conhecer o perfil das mulheres
encarceradas naquela unidade prisional e propor intervenções
direcionadas para promoção à saúde e retorno ao convívio social,
contribuindo para a efetivação dos direitos da mulher privada de
liberdade.
No sexto capítulo, Luiz Felipe Viana Cardoso, psicólogo
mestre em psicologia e professor do curso de psicologia do Centro
Universitário UNA, escreve em coautoria com Marcos Vieira Silva,
doutor em psicologia, e Maria Nivalda de Carvalho Freitas, doutora
em administração, ambos docentes em curso de pós-graduação em
psicologia da UFSJ. No texto apresentam pesquisa desenvolvida sobre
o Método APAC na perspectiva da Psicologia Social visando identificar
seu funcionamento e impacto para a sociedade, na perspectiva da
promoção da reintegração social, contrapostos aos discursos que
sustentam suas práticas.
No sétimo capítulo Hélio Cardoso de Miranda Jr., Doutor em
Psicologia Clínica e professor da Faculdade de Psicologia da PUC Minas
apresenta, junto das graduandas do curso de Psicologia, participantes
do projeto de extensão “Programa (A)penas Humanos” da mesma
universidade, Anne Campos Pereira e Gabriela Jardim Villefort,
reflexões sobre a escuta do sujeito no sistema prisional a partir das
atividades relacionadas ao projeto de extensão. São apresentadas as
possibilidades de trabalho do psicólogo no sistema prisional para além
de avaliações psicológicas, indicando maneiras de empreender um
trabalho por meio de atendimentos individuais, em rodas de conversa
ou em modalidade de plantão psicológico, de forma a possibilitar
espaço de escuta.
No oitavo capítulo, Vanessa Casanova de Azeredo especialista
em Ciências Penais, abordou a passagem do Estado Social ao Estado
Penal de Loïc Wacquant, evidenciando o uso do sistema penal como
engrenagem para o gerenciamento da miséria, com a neutralização dos
excedentes. Trasladando a discussão para os tempos atuais, pondera a
possibilidade de implementar de políticas públicas voltadas ao acesso

10 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


às condições mínimas de dignidade como alternativa à punição dos
excluídos sociais.
O nono capítulo escrito por Flávia Ávila Penido, professora
mestra em Direito, traz ao leitor a reflexão acerca da utilização da
reserva do possível como engodo a justificar a manutenção do cárcere
como espaço de violação permanente dos direitos fundamentais, com
a chancela das instâncias legislativas, administrativas e jurisdicionais.
Destaca a inércia do Estado, no exercício da jurisdição por sua mais
alta corte, que reconheceu a condição estrutural de violência no
cárcere e quedou-se inerte, com amparo na reserva do possível que,
neste caso, sequer assegura o mínimo existencial.
Por fim, o décimo e último capítulo conta com a contribuição
de Monique Pena Kelles, mestra em Direito, Samuel Rivetti Rocha
Balloute, graduando em direito, sob a orientação de Klelia Canabrava
Aleixo, Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana e
professora. O artigo traz à discussão os impactos da pandemia
da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, fazendo um paralelo
com a situação vivenciada pelos apenados da APAC de Santa Luzia,
evidenciando as recomendações editadas pelo CNJ para orientar o
combate à disseminação do vírus no sistema prisional brasileiro.
Assim, a proposta do livro, encampada pelos autores, é a
de apresentar várias contribuições de saberes distintos acerca do
problema do cárcere e da política criminal com o objetivo de ampliar
a discussão a partir do diálogo das variadas perspectivas.

Flávia Ávila Penido


Jéssica Gonçalves da Silva

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 11


12 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
SUMÁRIO

A PROMOÇÃO DA AUTONOMIA EM PESSOAS PRIVADAS


DE LIBERDADE: CAMINHOS POSSÍVEIS

Goretti Luiza Almeida


Nahjla Najjar Tauil Campos
Introdução ..................................................................................................... 21

1 A prisão como instituição total....................................................................... 22

2 Autonomia, liberdade e cidadania: direitos possíveis em uma prisão? .............. 25

3 O serviço social e o sistema prisional.............................................................. 30

4 A atuação do assistente social na construção da autonomia no cárcere e reingresso à

sociedade: relato de experiências da prática profissional................................... 32

Considerações finais ....................................................................................... 38

Referências..................................................................................................... 40

A PERCEPÇÃO DA REALIDADE DAS MULHERES NO


CÁRCERE: A NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO

Jéssica Gonçalves da Silva


Introdução...................................................................................................... 45

1 Situação do cárcere feminino brasileiro.......................................................... 46

2 As relações afetivas das mulheres encarceradas.............................................. 49

3 Pressupostos do estado democrático.............................................................. 51

4 A efetivação dos direitos humanos como solução............................................ 53

Considerações finais........................................................................................ 54

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 13


Referências..................................................................................................... 57

ADPF 527 COMO MEDIDA REDUTORA DE DANOS À


POPULAÇÃO LGBTQIA+ PRIVADA DE LIBERDADE

José Flávio Ferrari Roehrig


Romulo de Aguiar Araújo
Introdução...................................................................................................... 63

1 Criminalização, moral, religiosidade e estado................................................. 64

2 A criminalização específica da população lgbtqia+ no brasil............................ 67

3 ADPF 527 e a medida redutora de danos......................................................... 74

Considerações finais........................................................................................ 80

Referências..................................................................................................... 82

ENCARCERAMENTO SOLITÁRIO: EFEITOS


BIOPSICOLÓGICOS E JURÍDICOS

Rafael Barros Bernardes da Silveira


Jamilla Monteiro Sarkis
Beatriz Vasconcelos Coelho Melo
Introdução...................................................................................................... 91

1 Encarceramento solitário na lei brasileira...................................................... 92

2 Efeitos biopsicológicos do encarceramento solitário na pessoa privada de

liberdade........................................................................................................ 97

3 Inadmissibilidade do encarceramento solitário no estado de direito................. 102

3.1 Lei de execução penal............................................................................ 103

3.2 Constituição da República de 1988........................................................... 104

3.3 Instrumentos internacionais de direitos humanos.................................... 107

14 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Considerações finais........................................................................................ 109

Referências .................................................................................................... 112

LEVANTAMENTO DOS DISTÚRBIOS DO SONO EM RECUPERANDAS


DA APAC BH: INTEGRAÇÃO ENSINO PESQUISA E EXTENSÃO
NO PROJETO DE EXTENSÃO DA PUCMINAS – ELAS

Eduarda Silva Mendes


Gabriela Pâmela Faust Vieira
Patrícia Dayrell Neiva
Introdução...................................................................................................... 119

1 Instrumentos de avaliação dos distúrbios do sono........................................... 121

2 Cárcere versus distúrbios do sono: resultados.................................................. 123

3 Cárcere versus distúrbios do sono: argumentos plausíveis................................ 126

Considerações finais........................................................................................ 129

Referências..................................................................................................... 131

UM ESTUDO SOBRE O MÉTODO PENAL APAC NA


PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SOCIAL

Luiz Felipe Viana Cardoso


Marcos Vieira-Silva
Maria Nivalda de Carvalho-Freitas
Introdução...................................................................................................... 137

2 Indo aos atores(as) sociais............................................................................. 140

3 Análise crítica sobre o método apac a partir da psicologia social...................... 142

Considerações, talvez não tão finais assim........................................................ 155

Referências..................................................................................................... 157

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 15


A ESCUTA DO SUJEITO NO SISTEMA PRISIONAL:
UMA EXPERIÊNCIA DA ARTICULAÇÃO ENTRE A
PSICOLOGIA E A METODOLOGIA DA APAC

Hélio Cardoso de Miranda Jr.


Anne Campos Pereira
Gabriela Jardim Villefort
Introdução...................................................................................................... 165

2 APAC – uma proposta inovadora.................................................................... 169

3 Psicologia e sistema prisional........................................................................ 172

4 Psicologia na apac ........................................................................................ 174

5 A escuta da palavra do sujeito........................................................................ 175

Considerações finais........................................................................................ 183

Referências..................................................................................................... 184

DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO PENAL DE LOÏC


WACQUANT: O USO DO SISTEMA PENAL COMO
ENGRENAGEM PARA O GERENCIAMENTO DA MISÉRIA

Vanessa Casanova de Azeredo


Introdução...................................................................................................... 191

1 O neoliberalismo e o estado penal.................................................................. 193

2 A substituição do estado social para um estado penal...................................... 200

3 Prisões e o encarceramento em massa segundo Wacquant............................... 205

Considerações finais........................................................................................ 215

Referências..................................................................................................... 218

16 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A RESERVA DO POSSÍVEL COMO FUNDAMENTO PARA VIOLAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO ENCARCERADO

Flávia Ávila Penido


Introdução ..................................................................................................... 225

1 A inconstitucionalidade das prisões e a condição de não-sujeito....................... 226

2 O esvaziamento do argumento ...................................................................... 234

Considerações finais........................................................................................ 239

Referências..................................................................................................... 241

OS IMPACTOS DA RESOLUÇÃO Nº 78 DO CNJ NO SISTEMA


PRISIONAL BRASILEIRO E NA APAC DE SANTA LUZIA

Monique Pena Kelles


Samuel Rivetti Rocha Balloute
Klelia Canabrava Aleixo
Introdução ..................................................................................................... 245

1 A crise sanitária da Covid-19 nos presídios...................................................... 247

2 A APAC e o trabalho...................................................................................... 253

3 As recomendações do CNJ como medidas preventivas do alastramento da

contaminação nos presídios............................................................................. 257

4 Em defesa dos direitos dos apenados ............................................................. 262

Considerações finais........................................................................................ 267

Referências .................................................................................................... 269

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 17


18 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A PROMOÇÃO DA
AUTONOMIA EM PESSOAS
PRIVADAS DE LIBERDADE:
CAMINHOS POSSÍVEIS
Goretti Luiza Almeida
Nahjla Najjar Tauil Campos

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 19


20 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A PROMOÇÃO DA AUTONOMIA EM PESSOAS
PRIVADAS DE LIBERDADE: CAMINHOS POSSÍVEIS

Goretti Luiza Almeida1


Nahjla Najjar Tauil Campos2

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca refletir e problematizar, de forma crítica,


as possibilidades de se trabalhar a autonomia, um dos fundamentos
da profissão de serviço social, com pessoas em cumprimento de penas
privativas de liberdade.
Para tanto, apresenta as prisões como instituições totais e
busca caracterizá-las recorrendo ao conceito de mortificação do
eu apresentado por Goffman (1999). Discorre sobre os conceitos de
liberdade, autonomia e cidadania, a profissão de serviço social e
seu compromisso ético-político, bem como a atuação do assistente
social em uma prisão, fundamentando com a experiência de uma das
autoras.
O tema se torna relevante, pois muito se fala em ressocialização
ou em reintegração social do recluso, mas são poucas as discussões
sobre o fato de como o encarceramento modifica a modo de vida da

1 Especialista em Trabalho Social com Famílias pela Faculdade de Tecnologia Cachoeira


de Itapemirim - FACI. Especialista em Saúde Mental pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Bacharel em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Licenciatura em Pedagogia
pela Universidade Metropolitana de Santos - UNIMES. Conselheira representante
da sociedade civil no Conselho Municipal de Assistência Social - CMAS de Ribeirão
das Neves. Assistente Social no Hospital Risoleta Tolentino Neves e no Centro de
Referência Especializado de Assistência Social- CREAS de Ribeirão das Neves.
2 Especialista em Saúde Mental e Dependência Química pela Faculdade de Tecnologia
Cachoeira de Itapemirim - FACI. Bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário
de Belo Horizonte - Uni-BH. Assistente Social no Centro de Referência de Assistência
Social - Cras Eldorado de Contagem. . Integrante do Colegiado do Fórum Municipal
de Trabalhadoras/es do Sistema Único de Assistência Social - SUAS de Contagem.
Assistente Social na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados - APAC de
Santa Luzia. Consultora na área social.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 21


pessoa, minimizando a possibilidade de tomar decisões como sujeitos
plenos e conscientes das questões afetas a sua própria realidade, o que
interfere negativamente ao retorno à vida em liberdade.

1 A PRISÃO COMO INSTITUIÇÃO TOTAL

O sociólogo e educador francês René Lourau (1995) apresenta a


definição de instituição. Segundo o autor, a instituição é uma “norma
universal”, são “formas sociais visíveis, portanto dotadas de uma
organização jurídica e/ou material” (LOURAU, 1995, p. 9). Trata-se de
algo que é construído em sociedade e define determinado sistema,
organização e/ou associação, que lhe apresenta características,
normas, regras, condições materiais e ideológicas, permitindo
associar-se. A exemplo, a instituição família, definida como grupo de
pessoas que residem sob o mesmo teto e possuem laços entre si, têm o
mesmo significado e papel de proteção em várias sociedades, apenas
com alterações subjetivas.
Diante dessa compreensão, pode-se dizer que o objetivo de
funcionamento das instituições varia de acordo com a finalidade
que se quer alcançar. A instituição casamento, por exemplo, possui
como objetivo a construção da instituição família e com isso, máximas
sociais. Contudo, há regras que são próprias de determinadas
instituições, como ocorre nas instituições chamadas de completa, por
Foucaut (2014), e totais, por Goffman (1999).
São consideradas instituições totais, segundo Goffman (1999)
um local de permanência, onde um grande número de pessoas
com situações semelhantes é separado da sociedade, levam uma
vida fechada e formalmente administrada ao longo de um período.
A intenção é alcançar os objetivos oficiais da instituição, com isso
todas as ações que envolvem a vida humana são realizadas no mesmo
local, não há individualidade e/ou privacidade. Todos são tratados
igualmente, são uniformizados e realizam as mesmas atividades, que
possuem horários rígidos instituídos pelos dirigentes. Estes, “tendem

22 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


a sentir-se superiores e corretos”, a exemplo, as prisões (GOFFMAN,
1999, p.19).
A noção de prisão como punição existe antes mesmo da criação
de leis penais, do aparelho judiciário e do sistema prisional, ela teve
sua origem na idade média e na transição do século XVIII para o século
XIX e assumiu o modelo de prisão que conhecemos nos dias atuais.
Quando se inicia a construção de presídios destinados a pessoas
que cometeram crimes, tendo estes um duplo funcionamento como
apresentado por Foucault (2014).

(...) a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade


a que se teria dado em seguida uma função técnica
de correção; ela foi desde o início uma “detenção
legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou
ainda, uma empresa de modificação de indivíduos
que a privação de liberdade permite fazer funcionar
no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal,
desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo
tempo a privação de liberdade e a transformação
técnica dos indivíduos. (FOUCAULT, 2014, p.225).

É nessa perspectiva de corrigir e transformar o recluso que a


prisão se tornou uma instituição total na qual todos os aspectos da vida
de um ser humano se dão em um único local sob regras, hierarquias,
autoridades e sanções.

Na prisão o governo pode dispor da liberdade da


pessoa e do tempo do detento; a partir daí concebe-
se a potência da educação que, não em só um dia,
mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos, pode
regular para o homem o tempo do vigília e do sono,
da atividade do repouso, o número e a duração das
refeições, a qualidade e a ração dos alimentos, a
natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o
uso da palavra e, por assim dizer, até do pensamento,
aquela educação que, nos simples e curtos trajetos

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 23


do refeitório a oficina, da oficina a cela, regula
os movimentos do corpo e até nos momentos de
repouso determina o horário, aquela educação, em
uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de
todas as faculdades físicas e morais que estão nele
e do tempo em que ele mesmo está. (LUCAS, 1838
apud FOUCAULT, 2014, p. 228).

A sensação de vigilância, o poder disciplinar e o medo da reação


policial diante de qualquer ato intempestivo são fatores que oprimem o
indivíduo e acabam por modelar uma identidade, de forma a alimentar
a passividade. Ao recluso, resta apenas a possibilidade de ser servil e
de se submeter ao sistema prisional, tornando mais eficiente a relação
“docilidade-utilidade” (FOUCAUT, 1975, p.119).
Nesse sentido, Goffman (1999) apresenta o conceito de
mortificação do eu, utilizado como estratégia de controle que torna
o ser humano “incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida
diária” (GOFFMAN, 1999, p. 23). O recluso ao ser aprisionado possui
uma concepção de si e do mundo a partir de suas vivências. As
regras e a rotina na instituição possuem o papel de alterar essa visão.
As instituições totais geralmente são afastadas e estrategicamente
distantes, para marcar o distanciamento cultural e/ou social e apontar
que a reclusão não é apenas física, mas também aparta os indivíduos
da vida em sociedade.
Inicialmente, proíbem-se as visitas com a justificativa de período
de adaptação e/ou observação. Contudo o que ocorre é a separação
de papéis sociais, rompendo com os processos anteriores e iniciando
a rotina da instituição. Há os “processos de admissão” que conferem
ao recluso um registro, lhe afastam seus objetos pessoais, geralmente
marcados por histórias de vida, distribuem roupas da instituição a
fim de uniformizá-los e orientam sobre as regras. Várias instituições
conferem à pessoa um número ou apelido, excluindo a história de
vida construída com aquele nome, acarretando perda de identidade.

24 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Há também, os “testes de obediência” com a intenção de atribuir ao
recluso sua condição de inferioridade (GOFFMAN, 1999).
Os reclusos são vigiados constantemente e mesmo em regimes
que têm a intenção de ofertar a execução de pena de forma mais
humanizada há a vigília entre eles próprios, na expectativa de
manutenção da ordem e/ou regime. Há a obrigatoriedade de realização
de tarefas e criação de rotinas que permitem a construção de outra
forma de vida, do convívio, da relação interpessoal imposta. Mistura-
se grupos etários, políticos classes, raça/cor, religiões e regiões
territoriais.
“(...) os presos podem enfrentar, não apenas uma perda
temporária de direitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-
se a processos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem ter
alguns desses direitos permanentemente negados” (GOFFMAN, 1999,
p. 25). De fato, a mortificação do eu causada pelas instituições totais
são programadas para acarretar perdas irrecuperáveis e sentimentos
relacionados à impotência, exclusão e incapacidade, até mesmo após
a liberdade.
Após a definição do conceito de instituições totais e seus efeitos
na vida do cidadão, o que se propõe é o aprofundamento do conceito
de cidadania, liberdade e autonomia para após discorrer sobre o
trabalho do serviço social.

2 AUTONOMIA, LIBERDADE E CIDADANIA:


DIREITOS POSSÍVEIS EM UMA PRISÃO?

Sabe-se que o recluso do sistema penitenciário perdeu, mediante


a acusação de transgressão de normas e leis vigentes na sociedade,
a liberdade. Foi-lhe determinada pena de reclusão em local indicado
pelo Estado, mas tendo resguardados os demais direitos fundamentais.
Contudo, o que se percebe é que a reclusão possui um efeito devastador
na vida das pessoas, haja visto o processo de institucionalização.
Como apontado, as rotinas utilizadas nas instituições totais,
especialmente nas prisões, são moldadas de forma a anular e inibir as

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 25


vontades dos reclusos. Eles são ingressados em uma nova realidade,
nova forma de convívio em sociedade em que sua subjetividade não
é considerada como parte do processo. Portanto, a pergunta que se
faz é a seguinte: é possível dizer de liberdade e autonomia no sistema
prisional?
A palavra autonomia pode ser compreendida a partir de diversos
conceitos, pode ou não estar associada ao conceito de liberdade e
até mesmo ser confundida com cidadania. Nesse sentido, para esse
estudo, vamos utilizar o conceito de autonomia apresentado por Silva
(2016).

(...) autonomia diz respeito à capacidade da pessoa


realizar escolhas existenciais, decidindo desde as
questões que podem ser tomadas como as mais
simples (como o modo de se vestir por exemplo),
chegando também ao ponto de definir o seu próprio
projeto de vida (religião, relacionamentos, profissão,
ideologias, etc.). A autonomia está ligada à capacidade
de autodeterminação, ‘o direito de decidir os rumos
da própria vida e de desenvolver livremente a própria
personalidade’. Segundo Barroso, a autonomia
depende de algumas condições, como a razão (a
capacidade de tomar decisões), a independência (a
ausência de coerção, de manipulação e de privações
essenciais) e a escolha (existência de opções reais).
(SILVA, 2016, p. 32-33).

Tendo por base esta concepção de autonomia, relacionada


a escolhas básicas da vida humana, tomada de decisões, escolhas
individuais e coletivas, o que requer condições efetivas para realizá-la,
sem opressão, sem manipulação, com capacidade de raciocínio e com
alternativas para escolha. Exige-se que o conceito de liberdade humana
tenha um significado mais abrangente, está além da liberdade de ir e
vir e de se expressar, mas não deixa de estar atrelado à autonomia.
Considera-se que a pessoa é livre quando possui autonomia, mas em

26 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


determinadas circunstâncias se possui autonomia, não há liberdade. A
cidadania por sua vez só é construída a partir dessas duas dimensões.
O conceito de liberdade aqui considerado deve estar apartado
daquele fundado na propriedade privada e burguesa, bem como da
noção de propriedade e individualidade. Segundo Barroco e Terra
(2012) a ideia de que a liberdade é plena é falsa e que as escolhas de
cada sujeito se darão em relação aos demais, poderão trazer conflitos e
implicam responsabilidades. Chauí (1998) nos apresenta que “ser livre
é ter força interior para passar da passividade à atividade” (CHAUÍ,
1998, p. 322). Contudo essa ação está condicionada a questões objetivas
e materiais para a realização de escolhas, implica ter opções, além
da racionalidade para tomada de decisões. Demanda que as pessoas
estejam cientes das possibilidades e tenham as necessidades humanas
contempladas.
Abordando a temática cidadania para construir o significado de
cidadão, Covre (1995) afirma que, na década de 1960 e 1970, o tema
cidadania possuía conotação pejorativa. A autora afirma, ao fazer
uma primeira aproximação sobre o assunto, que cidadania não é só
o direito de votar, como é confundido por muitas pessoas. Segundo
ela, cidadania é possuir direitos e deveres, a proposta mais profunda
de cidadania é a igualdade de homens e mulheres, mesmo perante a
lei, sem nenhuma discriminação, o domínio sobre o corpo e a vida,
acesso a um salário digno, aos direitos fundamentais, direito de livre
expressão, enfim, de uma vida digna.
Esses são os direitos, mas na cidadania também há os deveres.
Dentre os deveres estão: estimular a existência dos direitos de todos,
ter responsabilidades com as ações coletivas, cumprir normas e
propostas coletivas, fazer parte e pressionar os governos, direta ou
indiretamente. A autora aponta que a cidadania só é possível a partir
da prática cotidiana de participação, reivindicação e debate, visando
à implementação dos direitos do cidadão. Assim, o exercício da
cidadania deve almejar a construção de uma sociedade melhor, mas,
diferentemente do que muitas pessoas pensam, ela está relacionada
com a construção destes direitos (COVRE, 1995).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 27


Segundo Covre (1995), cidadania

É o próprio direito à vida, no sentido pleno, trata-se de


um direito que precisa ser construído coletivamente,
não só em termos de atendimento às necessidades
básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência,
incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem
(s) no universo. (COVRE, 1995, p. 11).

A autora apresenta a cidadania para análise em termos de


direitos civis, políticos e sociais, mas salienta que estes direitos, para
serem plenamente atendidos, devem coexistir. Covre (1995) afirma que
direitos civis dizem respeito à disposição do próprio corpo, à escolha
sobre o que fazer com ele, o direito de ir e vir, de escolher onde se
quer estar e qual trabalho exercer. Os direitos sociais dizem respeito à
existência de mecanismos de atendimento às necessidades humanas
básicas. E o direito político se relaciona com a livre expressão, o direito
de decidir sobre sua vida, exercer práticas políticas e religiosas e de
conviver em sociedade em organismos de representações diretas ou
indiretas.
Para Herkenhoff (2001), cidadão é o indivíduo que possui e exerce
a cidadania e a cidadania significa gozar dos direitos civis e políticos
e cumprir os deveres para com o Estado e a comunidade. No entanto,
ao longo da história, o conteúdo de cidadania ampliou-se e hoje possui
mais quatro dimensões: social, econômica, educacional e existencial.
Além destas quatro dimensões, ele afirma que houve a ampliação das
dimensões civis e políticas.
A dimensão política se refere ao direito de votar e ser votado,
além do direito à participação da vida política, que engloba uma série
de modalidades, como propor projetos de lei, participar da vida e
organização das escolas, fiscalizar os poderes Legislativos, Executivos
e Judiciários, além do Ministério Público e Tribunais de Contas, a livre
expressão, entre outros. Juntamente com a dimensão política, houve
a ampliação dos direitos civis, assim não se admite discriminação

28 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


entre homens e mulheres, todos são iguais perante a lei, instituiu-se a
liberdade de pensamento e crença, proibiu-se a discriminação entre
os filhos e o racismo (HERKENHOFF, 2001).
As dimensões social e econômica relacionam-se ao
desenvolvimento econômico, mas concomitantemente ao
desenvolvimento social. O autor aborda que o mais importante em um
país é a existência e soberania da justiça social, e um de seus pilares
é o pleno emprego. A constituição prevê uma série de direitos dos
trabalhadores e o autor aponta que não se deve aceitar a redução dos
direitos trabalhistas, uma conquista da classe trabalhadora, por causa
das necessidades da economia mundial (HERKENHOFF, 2001).
A dimensão educacional se relaciona ao direito de todos à
educação e dever do Estado, bem como direito e dever da família,
levando-se em consideração a educação em seu sentido mais amplo.
Por fim, na dimensão existencial, o autor aborda o respeito à dignidade
humana, ser portador do espírito, da inteligência e da memória,
construtor de sua história (HERKENHOFF, 2001).
Os deveres, necessários para se exercer a cidadania em diversas
situações, estão relacionados aos direitos. Herkenhoff (2001) aponta
seis deveres como sendo extremamente importantes: participação
na vida coletiva, solidariedade, contribuir para o progresso ajudando
na superação dos problemas sociais, pagar impostos, prestar serviço
militar e lutar na construção de um mundo, fundado na cooperação.
Isto posto, cabe destacar que em prisões é retirado das pessoas
a sua liberdade, mas também a autonomia e cidadania. Nelas, tanto os
reclusos como os dirigentes, possuem uma rotina de atividades rígidas
e hierarquizadas, que inviabiliza a construção de dignidade humana,
a participação coletiva e escolha de representantes governamentais,
diminui as chances de se exercer uma atividade remunerada, inibem
possibilidade de tomada de decisões e realização de escolhas sobre si
e sobre o ambiente.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 29


3 O SERVIÇO SOCIAL E O SISTEMA PRISIONAL

O serviço social é uma profissão que, ao longo dos tempos, sempre


foi chamada à intervenção na realidade. Na atualidade, diversos são os
setores constituídos como campo de trabalho para o profissional de
serviço social, pois este realiza leituras sobre a realidade em que está
inserido, intervenções e ações transformadoras (FREITAS, 2011).
Souza (2005), ao se referir à abrangência do trabalho do assistente
social, registra que:

A profissão do Serviço Social contempla em sua


origem um campo vasto para o Assistente Social
realizar o seu trabalho, tendo como suporte teorias
e metodologias que lhes são específicas. Em qualquer
campo de trabalho que atue, o Assistente Social apoia-
se no compromisso em lutar pela garantia dos direitos
e contribuir para o crescimento social, político e
cultural dos sujeitos (SOUZA, 2005, p. 30).

Diante de tal afirmativa, o serviço social, como profissão que


assume o compromisso de lutar pelos direitos e contribuir para o
desenvolvimento social, não pode ser indiferente à situação de exclusão
e perda de direitos. O enfrentamento realizado pelo profissional de
serviço social é contra a desumanização, discriminações e coisificação
das relações humanas a partir do enfrentamento da questão social,
entende-se que sua atuação tem “resultado concreto e afeta a vida dos
usuários” (BARROCO; TERRA, 2012, p.32).
Segundo Iamamoto (2012), o profissional de serviço social, em
sua rotina de trabalho, lida diariamente com as diversas expressões
das desigualdades existentes na sociedade, desigualdades expressadas
de diferentes formas. Contudo, faz-se necessário que os profissionais
conheçam a realidade em que estão inseridos e o público que será
atendido, pois, eles lidam direta e cotidianamente com as questões
presentes na vida das pessoas.

30 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


O atual código de ética profissional do serviço social indica um
horizonte para o exercício profissional, através de princípios, direitos,
deveres e proibições. Sua base fundamental é a teoria crítica Marxista.
Ele possui, como valor central a emancipação humana e princípios
fundamentais a liberdade, a justiça social, a equidade e a democracia.
Portanto, o profissional de serviço social assume o compromisso da
luta pelos direitos da sociedade, “a defesa intransigente dos direitos
humanos e a recusa do arbítrio e autoritarismo”. (FREITAS, 2011, s/p.).
A/o assistente social deve colocar os direitos sociais em foco,
defendê-los e viabilizar a sua efetivação social. A/o profissional
necessita também ser um educador político, comprometido com
uma política democrática, que vise ao pleno desenvolvimento do
gênero humano e à emancipação humana de todos os indivíduos
sociais, o que se mostra como um desafio no cenário de globalização e
neoliberalismo (IAMAMOTO, 2012).
Constitui-se como desafio para a profissão, nos tempos atuais,
o fomento às políticas públicas, à proposição, o engajamento,
à criatividade e ruptura com processos burocráticos. Portanto,
a/o profissional do serviço social necessita romper com atitudes
que contrapõem o código de ética da profissão; adotar práticas
emancipatórias e buscar aliá-las a uma reflexão crítica; manter firme
o compromisso com a qualidade dos serviços prestados; o respeito ao
usuário; o investimento na melhoria dos programas institucionais; a
efetivação de uma conduta democrática que reforce a execução desta
na vida social.
A atuação do serviço social nas unidades prisionais surgiu em
1956, de acordo com Canêo e Torres (2018). Foi regulamentada no ano
de 1951, através da lei 1651/51, juntamente com o direito e a psicologia,
haja visto a compreensão da importância de acompanhamento da pena
até o reingresso na sociedade. Diante da característica profissional
as/os assistentes sociais eram considerados agentes humanizadores
agindo especialmente como mediadores entre a instituição, seus
agentes reguladores e os reclusos (MARQUES, 2009).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 31


Como apontado o profissional de serviço social trabalha em prol
da emancipação humana, no combate à questão social, tendo como
parâmetros a justiça social, a cidadania, democracia e equidade, em
prol do desenvolvimento social. Portanto, é uma profissão crítica que
ao longo dos anos passou por movimentos de constituição, rompendo
com o conservadorismo, culminando na regulamentação da profissão
e no código de ética profissional em 1993. Contudo, a legislação que
trata sobre a atuação do serviço social no sistema penitenciário, a Lei
de Execução Penal - LEP é datada de 1984, com atualizações. Importa
que ela é anterior à Constituição Federal de 1988, conhecida como
cidadã e anterior à estruturação do trabalho do serviço social, sendo
que suas atualizações não abrangem a real atribuição da profissão e
compromisso com o público atendido (CÂNEO; TORRES, 2018).
A LEP possui como “objetivo efetivar as disposições de sentença
ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica
integração social do recluso e do internado” (BRASIL, 1984). Trata-
se de uma lei estudada e construída com a intenção de possibilitar a
execução da pena e a ressocialização do recluso. Contudo, o sistema
penitenciário assume papel repressor que na prática dificulta a
atuação da/o assistente social que possui o papel de “amparar o preso
e prepará-lo para o retorno à liberdade” (BRASIL, 1984).
Tendo isto como parâmetro, o que se segue é a experiência
prática da atuação de uma assistente social no sistema penitenciário.
O enfoque são as dificuldades de construção de autonomia em
cidadãos que ao longo dos dias de cumprimento de pena passaram
pela “mortificação do eu” e desconstrução de saberes subjetivos,
sendo imersos em outra realidade social.

4 A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DA


AUTONOMIA NO CÁRCERE E REINGRESSO À SOCIEDADE:
RELATO DE EXPERIÊNCIAS DA PRÁTICA PROFISSIONAL

Em um presídio, via de regra, a relação profissional entre o


usuário e o assistente social se dá de forma burocratizada, a partir

32 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


de um requerimento feito pelo recluso em um formulário específico,
o qual passará por alguns setores, bem como a partir de demandas
institucionais que geralmente requerem um tempo de espera pelo
recluso. Percebe-se que ele é inibido a se expressar e manifestar seu
desejo, ficando restrito às regras institucionais. Na teoria, a sentença
penal condenatória autoriza a perda do direito de ir e vir, mas na
prática, ocorre a perda de diversos direitos constitucionais, a começar
pela liberdade de se expressar.
Há uma diferença significativa entre a vida na prisão e a vida
em sociedade. Na prisão a rotina, os valores, o afastamento da rede
de apoio como família e amigos, a obrigatoriedade de cumprir o que
está posto, limitam as escolhas do dia a dia, sobretudo pela falta de
opções. Se ao recluso não lhe é facultado a possibilidade de verbalizar
a solicitação de atendimento ou a possibilidade de escolher o que
comer, a quantidade da comida e os horários das refeições, quem dirá a
opção de minimamente ter um tempo de ligação telefônica adequada,
ou um encontro presencial com um familiar, para resolver questões
importantes que impactam sua vida.
No entanto, as situações correlatas à existência do recluso
continuam a existir, a se criar e se transformar numa velocidade
de tempo desproporcional a que lhe é permitido concebê-las,
acompanhá-las e principalmente intervir. Observa-se que se cria
um distanciamento entre a realidade social e familiar referente ao
modo de vida em sociedade anterior e depois da reclusão. A rotina
na instituição total torna o sujeito dependente, bem como submetido
a terceiros para mediar suas questões, principalmente suas relações
familiares e interpessoais, sendo moldado às vezes a deixar que outras
pessoas tomem decisões por ele.
É nesse processo de alienação da sua própria realidade, da
mortificação do eu e anulação da sua autonomia que o recluso recorre
ao profissional de serviço social na tentativa de resolver suas questões
de vida, como: conflitos familiares; ausência ou interrupção do
contato com a família, sobretudo com os filhos; vínculos rompidos
e/ou fragilizados; impossibilidade do exercício da paternidade/

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 33


maternidade; vulnerabilidade de renda pessoal e/ou familiar; apoio
nas necessidades dos filhos; acesso a benefícios previdenciários,
sociais e demais direitos constitucionais.
A privação de liberdade em uma unidade prisional pode causar
impactos irreversíveis na vida da pessoa, durante e após o cumprimento
da pena condenatória. Freire, Pondé e Mendonça (2012) apontam
possíveis impactos na saúde mental. Citam como o desenvolvimento de
psicopatologias em decorrência do aprisionamento como ansiedade,
distúrbios do sono, depressão, síndrome do pânico, distúrbio do
humor e esquizofrenia.
No tocante ao afastamento do convívio familiar e social, a prática
profissional indica um processo de fragilização e/ou rompimento dos
vínculos, sendo que quanto mais frágeis os vínculos afetivos/familiares,
maiores são os obstáculos para reintegração social do recluso. Ocorre
que o Estado que impede o recluso de ter contato com o mundo externo,
o impossibilita de acompanhar e decidir sobre o desenvolvimento dos
filhos, de oferecer suporte à família, de qualificar-se para a inclusão
ou reinclusão no mercado de trabalho. O paradoxo está no fato deste
mesmo Estado lhe exigir desde o momento que é adquirido o direito à
liberdade, a responsabilidade sobre essas questões.
O desafio que se coloca para o assistente social no sistema
prisional é de encontrar caminhos possíveis, para intervir nessa
realidade social, que várias vezes não é apresentada pelo recluso, mas
requer uma análise crítica. Exige envolvimento da pessoa privada de
liberdade na resolução de questões relativas à sua vida, de modo que
ela possa exercer sua autonomia e ser protagonista da sua própria
história. Considera, ainda, os limites institucionais, a correlação de
forças dentro de uma unidade prisional e a superação de preconceitos
da rede de atendimento no território.
Recorrente há a demanda de reclusos que precisam acessar
o benefício previdenciário de aposentadoria, ou reverter o seu
cancelamento, bem como ter as informações necessárias sobre o
auxílio reclusão. Mas, poucos são os que realmente têm conhecimento
sobre os critérios e como acessá-los. Para o atendimento integral ao

34 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


recluso faz-se necessário construir possibilidade para que ele por si
próprio, ou com o apoio da/o assistente social possa resolver suas
demandas, junto aos órgãos governamentais. Enquanto profissional
do serviço social em um presídio da região metropolitana de Belo
Horizonte/MG, várias foram as ocasiões que foi necessário pensar,
propor e defender ações que viessem garantir o direito à fala.
Nesse sentido, pensado na perspectiva de construir caminhos
possíveis do recluso exercer sua autonomia, a partir da atuação
profissional, foi necessário pensar um modelo de atendimento
diferenciado. Neste caso, após receber as devidas orientações sobre o
benefício previdenciário pela/o assistente social da unidade prisional,
é ofertada a opção do recluso ligar para o Instituto Nacional de Seguro
Social - INSS e assim obter maiores informações, tirar dúvidas e/ou
requerer o benefício. Na maioria das vezes, tornou-se necessário
estimular e fortalecer o recluso a fazer esse movimento, pois os anos
em situação de privação de liberdade roubaram-lhe a segurança
em suas habilidades de se expressar, tornando-o dependente,
impossibilitando sua exigência o direito ao esclarecimento, criando a
sensação de incapacidade.
Em outros momentos, tornou-se necessário lutar e construir
caminhos para que o recluso pudesse exercer o direito de ser pai.
Um caso emblemático sobre o assunto e que também aponta para
o preconceito que existe contra a pessoa privada de liberdade foi
do recluso que chamaremos de Filipe. Ele teve a filha encaminhada
para acolhimento institucional pelo Conselho Tutelar, como medida
protetiva, após a genitora ser conduzida pela polícia para o sistema
prisional e devido à ausência da família extensa materna e paterna
naquele momento.
Conforme relatos de Filipe, a genitora não havia cometido
contravenção penal, a condenação dela se deu devido ao crime que
ele cometeu. Sua companheira cumpriu a pena privativa de liberdade
no regime fechado, progrediu para o regime semiaberto e em seguida
para a liberdade condicional. Nesse estágio reorganizou a vida, havia
conseguido um emprego no mercado de trabalho formal e estava

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 35


morando com a filha numa residência alugada. No entanto, por um
erro no sistema do judiciário, foi conduzida novamente para o sistema
fechado.
Em diálogo com a unidade de acolhimento institucional tentou-
se viabilizar o contato telefônico do recluso com a filha, o que não
foi autorizado pelo serviço, sob a justificativa que seria necessário
solicitar autorização para o juizado da infância e juventude, tendo em
vista que o pai estava “preso”. Ora, o vínculo entre o genitor e a filha já
existiam antes do ocorrido, presencialmente e por ligações, não havia
indício de riscos para a adolescente, o crime cometido pelo genitor não
foi contra a filha. Ainda assim, os técnicos da unidade de acolhimento
não autorizaram o contato entre ambos, a violando o direito de
convivência familiar da adolescente preconizado pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA, artigo 19, parágrafo quarto: “Será
garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o
pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas
pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional,
pela entidade responsável, independentemente de autorização
judicial” (BRASIL, 1990, s/p) . Bem como, o princípio da preservação
e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários previsto
nas Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes que prioriza a manutenção dos vínculos existentes.

Preservação e Fortalecimento dos Vínculos Familiares


e Comunitários Todos os esforços devem ser
empreendidos para preservar e fortalecer vínculos
familiares e comunitários das crianças e dos
adolescentes atendidos em serviços de acolhimento.
Esses vínculos são fundamentais, nessa etapa
do desenvolvimento humano, para oferecer-lhes
condições para um desenvolvimento saudável,
que favoreça a formação de sua identidade e sua
constituição como sujeito e cidadão. Nesse sentido,
é importante que esse fortalecimento ocorra nas
ações cotidianas dos serviços de acolhimento -

36 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


visitas e encontros com as famílias e com as pessoas
de referências da comunidade da criança e do
adolescente, por exemplo. Crianças e adolescentes
com vínculos de parentesco, não devem ser separados
ao serem encaminhados para serviço de acolhimento,
salvo se isso for contrário ao seu desejo ou interesses
ou se houver claro risco de violência (MDS, 2009,
p.24.)

Nota-se que o preconceito da equipe contra a pessoa privada


de liberdade foi um fator determinante na condução do caso, o que
culminou na falta de contato da adolescente com os pais que só veio
a ocorrer quando a genitora retornou para a vida em liberdade. Cabe
destacar que segundo relato do profissional da unidade a adolescente
manifestava o desejo de conversar com o pai, mas não lhe foi
permitido. O preconceito contra “presos” e “ex-presidiários” é fator
cultural no Brasil. De acordo com Lebedeff (2005, p. 271) o preconceito
pode ser individual ou social, “O homem pode estar tão carregado de
preconceitos com relação a uma pessoa ou instituição concreta que
não lhe faz falta saber a fonte social do conteúdo dos preconceitos”.
O artigo 23, da Lei de Execução Penal - LEP, define as atribuições
da/o assistente social, o qual aponta que:

Incumbe ao serviço de assistência social; I -conhecer


os resultados dos diagnósticos e exames; II - relatar,
por escrito, ao diretor do estabelecimento, os
problemas e dificuldades enfrentados pelo assistido;
III -acompanhar o resultado das permissões de
saídas e das saídas temporárias; IV - promover,
no estabelecimento, pelos meios disponíveis, a
recreação; V- promover a orientação do assistido, na
fase final do cumprimento da pena, e do liberando,
de modo a facilitar o seu retorno à liberdade;
VI- providenciar a obtenção de documentos, dos
benefícios da previdência social e do seguro por
acidente no trabalho; VII- orientar e amparar, quando

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 37


necessário, a família do preso, do internado e da
vítima” (Brasil, 1984, s/p.).

No entanto, na prática, o assistente social é chamado a intervir na


realidade pessoal, social, econômica e, sobretudo, familiar do recluso,
realidade essa que, em sua maioria, foi e ainda é marcada por diversas
expressões da questão social e que exigem uma intervenção técnica
para além do que está definido na LEP. É necessário que o profissional
tenha uma escuta qualificada em seus atendimentos, realize uma
leitura da história e trajetória do sujeito, como se dão suas relações
familiares/comunitárias e como se estabelecem na divisão social
do trabalho, de modo a intervir na sua realidade atual promovendo
sua autonomia, o fortalecimento dos vínculos familiares e acesso a
direitos.
A atuação requer do profissional um posicionamento crítico,
criativo, ético e propositivo. Suas práxis devem e precisam estar
pautadas na superação da situação ou do sistema que impede a pessoa
privada de liberdade de ter as condições básicas para desenvolver e/ou
exercer sua autonomia. É necessário pensar em ações que favoreçam
que o recluso seja protagonista da sua própria história.
Fortalecer os indivíduos para que alcancem a possibilidade real
de sua autonomia, significa proteger a dignidade da pessoa humana,
realizar a inclusão social dos excluídos, tornando-os participantes
ativos da democracia e possibilitando a construção de cidadania.
Essa é, sem dúvida, uma forma de combater as desigualdades sociais
e realizar o objetivo de construir uma sociedade mais livre, justa e
equânime, como expressado no projeto ético político e referencial
teórico da profissão de serviço social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A privação de liberdade desde sua criação é utilizada como


instrumento de punição e coerção do sujeito. Como estratégia para se

38 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


alcançar os objetivos são utilizados vários instrumentos que acabam
por ocasionar a mortificação do indivíduo. As pessoas reclusas são
privadas de sua liberdade, porém o que se discute e é necessário
ampliar é que a perda da liberdade gera dependência, cerceamento
da autonomia e do exercício da cidadania, dimensões tomadas em seu
sentido amplo, que considera diferentes fatores da vida humana.
O serviço social por sua vez, profissão que possui como objeto
de estudo a questão social e atua a partir do conjunto de desigualdades
geradas pela organização da produção e divisão social de classes
econômicas. Está baseado na luta pelos direitos da sociedade e
fundamentado em princípios como a liberdade, a justiça social, a
equidade e a democracia. Portanto, a atuação no sistema penitenciário
com uma legislação anterior ao movimento de reconceituação da
profissão é um desafio.
O recluso é inibido a se expressar e manifestar o seu desejo, até
a solicitação de atendimento pela/o assistente social é mediada por
outros profissionais. O encarceramento o afasta dos acontecimentos
da vida em liberdade. Vida esta que é dinâmica e ele não consegue
acompanhar. Após o encarceramento, além de lidar com as mudanças
ocorridas em seu meio familiar e social, o cidadão ainda é surpreendido
com as limitações criadas a partir do cerceamento de habilidades
antes adquiridas, anuladas pela dependência.
Cabe a/o assistente social intervir na realidade marcada pelas
expressões da questão social, atuar com a construção de possibilidades
para o exercício e promoção da autonomia do recluso, romper com
práticas que legitimam a violação de direitos, bem como propiciam
a anulação enquanto pessoa humana e detentora de direitos. Cabe,
ainda, analisar criticamente a indisciplina institucional, muitas vezes
utilizada como opção onde o recluso procura ser o protagonista da sua
vida pelas vias que não são oferecidas pela instituição. Contudo, esta
não é uma tarefa fácil.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 39


REFERÊNCIAS

BARROCO, Maria Lucia Silva; TERRA, Sylvia Helena. Código de


ética do/a assistente social: comentado. Conselho Federal de Serviço
Social – CFESS (org.), São Paulo, Cortez, 2012.

BRASIL. Lei Federal n° 7.210, de 11 de jul. de 1984. Institui a Lei


de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de jul. 1984.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>.
Acesso em 26 set. 2021;

BRASIL. Lei Federal n° 8.069, de 13 de jul. de 1990. Dispõe sobre


o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diá-
rio Oficial da União, Brasília, 13 de jul. 1990. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em 08 dez.
2021;

Canêo, Giovanna; TORRES, Andrea Almeida. O trabalho do/a as-


sistente social e as violações de direito no sistema prisional. XVI En-
contro Nacional de pesquisadoras/re em serviço social – ENPESS/
UFES, Vitoria, 2018. Disponível em: <file:///C:/Users/Goretti/Downlo-
ads/ekeys,+O+TRABALHO+DO+A+ASSISTENTE+SOCIAL+E+AS+VIO-
LA%C3%87%C3%95ES+DE+DIREITOS+NO+SISTEMA+PRISIONAL.
pdf>. Acesso em 26 set. 2021;

CHAUI, Marilena de Souza. Convite à filosofia. 10 ed. São Paulo:


Ática. 1988, p. 305 - 331;

COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. 3. ed. São


Paulo: Brasiliense, 1995.

FOUCAULT, Michel – tradução de Raquel Ramalhete. Vigiar e


punir: nascimento da prisão. Petrópolis: vozes, 2014;

40 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


FREIRE, Antônio Carlos Cruz; PONDÉ, Milena Pereira; MEN-
DONÇA, Milena Siqueira Santos. Saúde mental entre presidiários na
cidade do Salvador, Bahia, Brasil. In: COELHO, M.T.Á.D.; CARVALHO
FILHO, M.J. (orgs.). Prisões numa abordagem interdisciplinar [onli-
ne]. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 121-130. Disponível em: <https://sta-
tic.scielo.org/scielobooks/7mkg8/pdf/coelhos-9788523217358.pdf>

FREITAS, Tais Pereira. Serviço Social e medidas socioeducativas:


o trabalho na perspectiva da garantia de direitos. Revista Serviço So-
cial e Sociedade, São Paulo, n. 105, p. 30-49, jan./mar. 2011. Disponível
em: <https://www.scielo.br/j/sssoc/a/V9LdGhtkW8nnbh7xCKHP3n-
z/?lang=pt>. Acesso em 25 set. 2021;

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 6° ed.


São Paulo: Perspectivas, , 1999;

HERKENHOFF, João Baptista. Cidadania. 2. ed. Manaus: Valer,


2001.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O serviço social na contempora-


neidade: trabalho e formação profissional. 22. ed. São Paulo: Cortez,
2012;

LEBEDEFF, Tatiana Bolivar e PEREIRA, Isabella Lima e Silva


(org.) Educação Especial olhares Interdisciplinares. Passo Fundo:
UPF, 2005;

LOURAU, René - tradução de Mariano Ferreira. A análise insti-


tucional. Petrópolis, RJ, 5° edição, Editora Vozes, 1995;

MARQUES, Simone Felix. O Desacreditável e o Desacreditado:


Considerações sobre o fazer técnico do Assistente Social no Siste-
ma Prisional. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/uplo-
ad/1326743484_Artigo.%20Simone%20vers%C3%A3o%20final.pdf>.
Acesso em 26 set. 2021;

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 41


MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À
FOME. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crian-
ças e Adolescentes, Brasília, jun. 2009. Disponível em: <https://www.
mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/
orientacoes-tecnicas-servicos-de-alcolhimento.pdf>. Acesso em 08
dez. 2021.

SILVA, Dailton Jesus da. A assistência social na promoção da au-


tonomia. Rio de Janeiro, 2016. Trabalho de Conclusão de Curso - Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direi-
to. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/27350/27350.
PDF>. Acesso em 29 set.. 2021.

SOUZA, Iris de Lima. Serviço social e educação: uma ques-


tão em debate. Interface, Natal, v.2, n. 1, jan/jun. 2005. Disponí-
vel em: <http://www.ccsa.ufrn.br/ojs/index.php/interface/article/
view/179/159>. Acesso em: 13 mai. 2013;.

42 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A PERCEPÇÃO DA REALIDADE
DAS MULHERES NO CÁRCERE:
A NECESSIDADE DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS NO ESTADO
DEMOCRÁTICO
Jéssica Gonçalves da Silva

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 43


44 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A PERCEPÇÃO DA REALIDADE DAS MULHERES NO
CÁRCERE: A NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO

Jéssica Gonçalves da Silva3

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a finalidade de apresentar a necessidade


de efetivação dos Direitos Humanos, no contexto da realidade das
mulheres no cárcere. Segundo os dados do INFOPEN Mulheres (2018),
em junho de 2016, a população carcerária feminina atingiu a marca
de 42 mil mulheres privadas de liberdade. Esse número representa o
aumento de 656% comparado ao início dos anos 2000. Por mais que o
número de mulheres encarceradas seja inferior à população carcerária
masculina, não podemos ignorar o crescimento exponencial ao longo
dos anos. Dados dessa pesquisa apontam que as mulheres prisioneiras,
em sua maioria, são jovens, pobres, negras e de baixa escolaridade.
As mulheres presidiárias são duplamente estigmatizadas
pela sociedade por representarem o papel de mulheres e presas
(CERNEKA, 2007; CHIES, 2011; SPINOZA, 2004). Elas carregam a
violência simbólica, punitiva socialmente e estatal, fruto de sua
trajetória de vida e o aprisionamento acarreta do distanciamento dos
filhos, de sua família e/ou companheiros (as) (SPINOZA, 2004; PRADO,
2003; SOARES e ILGENFRITZ, 2002). Portanto, a violência institucional
e patriarcal é reproduzida nos presídios através da aplicação das leis
estatais e do poder disciplinar.
Neste estudo será apresentada a situação do cárcere feminino
brasileiro através de dados estatísticos, como o perfil das mulheres
presas, a taxa de encarceramento feminino e as particularidades desse
público. As relações afetivas são descritas desde o abandono após o

3 Psicóloga. Pós-graduada em Psicologia Clínica: Gestalt-terapia e Análise Existencial


pela UFMG. Pós-graduada em Direitos Humanos e Cidadania pelo Instituto Santo
Tomás de Aquino em parceria com o Instituto de Direitos Humanos.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 45


aprisionamento até os novos vínculos afetivos criados intramuros
como possibilidade de reproduzir as relações sociais extramuros,
além do que prevê a Lei de Execução Penal (LEP) no que tange a visita
social como possibilidade de manutenção dos vínculos afetivos dessas
mulheres.
São apresentados os pressupostos do Estado Democrático de
Direito e suas divergências entre a teoria e a prática, além de indicar
que a efetivação dos Direitos Humanos como solução ainda é um
desafio a ser superado. Por fim, as considerações finais são tecidas
fazendo uma intersecção entre os tópicos que foram apresentados
anteriormente.

1 SITUAÇÃO DO CÁRCERE FEMININO BRASILEIRO

O perfil das mulheres presas é descrito pelos dados do IFOPEN


(2018) e são elas em sua maioria são jovens, pobres, negras, de baixa
renda e escolaridade. Com relação à natureza da prisão e tipo de
regime, o INFOPEN Mulheres (2018) aponta que 45% das mulheres
presas no Brasil em 2016 não haviam sido julgadas e condenadas, 32%
estão sentenciadas em regime fechado, 16% em regime semiaberto
e 7% em regime aberto. Nota-se um número crescente de mulheres
sendo encarceradas no Brasil.
Comparado ao encarceramento masculino, a população
carcerária feminina é inferior, porém entre o período de 2000 e 2006, a
taxa de mulheres encarceradas no Brasil aumentou em 656%, atingindo
a marca de 42 mil prisioneiras. Os principais delitos que levam as
mulheres à prisão são crimes relacionados ao tráfico de drogas (62%),
roubo (11%), furto (9%), homicídio (6%), formação de quadrilha (2%),
porte ou posse de arma (2%) e latrocínio (1%) (INFOPEN Mulheres,
2018).
O sistema prisional brasileiro está sobrecarregado. Em junho de
2016, segundo documento citado anteriormente, a taxa de ocupação
dos presídios femininos no Brasil correspondia a 156,7%, ou seja, um
espaço destinado a 10 mulheres encontravam-se 16, evidenciando a

46 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


superlotação carcerária feminina. O déficit total de vagas no país até
2016, data que compreendia o período da pesquisa, chegavam a 368
mil vagas sendo que 80% correspondiam às unidades masculinas e 2%
as unidades femininas.
A maioria das presas são mulheres jovens e que possuem filhos.
Ocorre que a maioria das penitenciárias femininas não é adequada
para atender as particularidades das presas, como o acesso à saúde de
modo geral e espaços destinados às mães e seus filhos. Teoricamente,
o art. 83, §2º, da LEP, dispõe que os estabelecimentos penais para
mulheres devem ter berçário, onde elas possam cuidar dos filhos
e amamentá-los, no mínimo, até os 6 meses de idade. O relatório
aponta uma realidade totalmente controversa, quiçá perversa, a partir
do momento que os direitos dessas mulheres estão sendo violados
diuturnamente.
Varella (2017) destaca que as mulheres que estão grávidas e
são presas ou as que engravidam nas visitas íntimas são liberadas da
unidade prisional apenas para dar à luz. Inclusive, de acordo com
estudo realizado pela fundação Fio Cruz (2017), uma em cada três
mulheres grávidas em presídios no Brasil são obrigadas a usarem
algemas na internação para o parto e mais da metade das presas
grávidas tiveram menos consultas de pré-natal do que é recomendado.
Após o parto, as detentas retornam para a penitenciária onde somente
permanecerão em uma ala especial com o bebê durante o período
de amamentação exclusiva do leite materno (seis meses), prazo esse
previsto nas diretrizes do Ministério da Saúde. Decorrido esse período,
a criança é entregue a um familiar que se responsabilize ou a uma
assistente social que deixará o bebê sob a guarda do Conselho Tutelar.
O art. 89 da Lei 7.210/84 (BRASIL, 1984) prevê que a penitenciária
de mulheres disponha para abrigar crianças maiores de seis meses
e menores de sete anos, visando assistir a criança desamparada cuja
responsável está presa. Não obstante, nesse caso, a pena ultrapassa a
pessoa do condenado havendo a extensão da sanção àquela criança.
Juridicamente, o princípio da pessoalidade da pena, previsto no art.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 47


5º, XVL, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998
(BRASIL, 1998), dispõe a intransmissibilidade da pena.
À luz do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças
e adolescentes são titulares de direitos que devem ser assegurados
pela família, pela sociedade e pelo Estado como prioridade absoluta
(BRASIL, 1990). Ainda que o ECA garanta esses direitos, observa-se
que:

Na mais cruel sucessão, permite-se a violação dos


direitos da criança infligindo a elas as penas impostas
à sua mãe, condicionando seu desenvolvimento
primário aos efeitos da prisionalização. Isso porque a
criança crescerá circunscrita ao ambiente carcerário
com todas as privações inerentes a esse, além de
estar sujeito à violência institucional que fere a
autodeterminação do sujeito a partir da imposição de
regras disciplinares, limites e toda sorte de violências.
(ALEIXO; PENIDO, 2020, p.94)

Como possível alternativa, pensando no direito à maternidade


e respeitando os direitos das crianças e adolescentes, visando
minimizar os impactos da prisão sobre mulheres presas com filhos
sob sua responsabilidade, a Argentina através da Lei 26.472, autoriza
que o juiz da execução a decidir sobre o cumprimento da pena imposta
em prisão domiciliar para mulher grávida ou mãe. (RIVERA BEIRAS,
2017, p.134).
A violação dos direitos dos filhos das mulheres presas e à
restrição ao direito à convivência familiar de ambos é um desafio a
ser superado no Brasil, no qual problemas como esses não devem
ser resolvidos na prisão, mas fora dela. Portanto, é necessário que o
art. 89 que prevê creches na penitenciária de mulheres precisa ser
modificado urgentemente, buscando minimizar os impactos da prisão
sobre as mulheres presas e seus filhos.
Talon (2017) propõe a criação de políticas prisionais destinadas
às mulheres, tanto as apenadas mães quanto aquelas que tenham

48 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


outras necessidades. Devendo preocupar-se com acompanhamento
ginecológico (assistência à saúde), fornecimento de absorventes
(assistência material), bem como o desenvolvimento de políticas que
contribuam para a entrada ou reinserção das presas no mercado de
trabalho – uma vez que muitas são abandonadas pela família durante
a execução da pena.
Quanto à saúde das mulheres gestantes aprisionadas, elas estão
resguardadas (ou deveriam estar) pelo art. 14, §3º, da Lei de Execução
Penal, que prevê que será assegurado acompanhamento médico à
mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao
recém-nascido. Levando em consideração a saúde da mulher em
geral, não apenas as gestantes, os dados são alarmantes.
A gestação no cárcere sem assistência médica necessária, em
conjunto com os agravos transmissíveis, potencializa ainda mais
uma gravidez de risco para a gestante e seu bebê. O direito à saúde
deveria ser assegurado tanto para as mulheres gestantes, como
para as outras mulheres encarceradas. A especificidade de algumas
doenças e condições da saúde da mulher requerem cuidados médicos
especializados e frequentes, para que não ocorra agravo da situação e
consequentemente o óbito.

2 AS RELAÇÕES AFETIVAS DAS MULHERES ENCARCERADAS

Uma das particularidades da mulher presa é a solidão. De todo


os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas.
As visitas são importantes para a manutenção dos vínculos afetivos e
as presas cumprem suas penas esquecidas pelos familiares, amigos,
maridos namorados e até pelos filhos (VARELLA, 2017). Realidade essa
que difere dos presídios masculinos que amanhecem com longas filas
com pessoas cheias de sacolas aguardando para visitar seu familiar
ou amigo. Esse fato reafirma a diferença de gênero entre mulheres e
homens presos, no qual os homens que estiverem presos irão receber
suporte familiar. A sociedade é capaz de encarar alguma complacência

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 49


a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família
inteira (VARELLA, 2017, p.38).
A Lei de Execução Penal (LEP) em seu artigo 41 prevê o direito
da pessoa presa em receber visita do cônjuge, da companheira, de
parentes e amigos determinados pela autoridade responsável. O juiz da
comarca competente pode estabelecer regras especiais para visitação,
levando em consideração as datas comemorativas nacionais, questões
de logística, infraestrutura e as necessidades da pessoa presa.
Para atender o que está previsto na LEP, as unidades prisionais
devem conter ambiente destinado à realização da visita. O levantamento
do INFOPEN Mulheres (2018) aponta que 1 em cada 2 unidades
femininas não contam com infraestrutura adequada ao exercício da
visita social da pessoa presa. O exercício da visita íntima está garantido
pela LEP aos presos de ambos os sexos recolhidos em estabelecimentos
prisionais e a Resolução nº 01, de 30 de março de 1999, do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) dispõe acerca da
“recepção pelo preso, nacional ou estrangeiro, homem ou mulher, de
cônjuge ou outro parceiro, no estabelecimento prisional em que estiver
recolhido, em ambiente reservado, cuja privacidade e inviolabilidade
sejam asseguradas”. Contudo, somente em 2002 as mulheres presas
conseguiram acessar o direito a visita íntima, enquanto nos presídios
masculinos já havia sido implementada há quase vintes anos antes,
demarcando assim a disparidade em termos de direitos entre gêneros.
Em consonância com o fundamento do princípio da igualdade
de direitos, em 2011 o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, reformulou a definição de visita íntima contemplando
a população carcerária LGBTQIA+. A Resolução CNPCP nº 4, art. 2º, de
20 de junho de 2011, assegura a visita íntima “às pessoas presas casadas
entre si, em união estável ou em relação homoafetiva”. Embora o direito
esteja formalmente garantido, a pesquisa citada anteriormente observa
que as unidades prisionais encontram limitações na infraestrutura
que respeite a dignidade e a privacidade da pessoa presa, sendo que
apenas 41% das unidades femininas apresentam local específico para
realização da visita íntima.

50 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Uma vez que as mulheres encarceradas são abandonadas, a
privação de liberdade pode produzir a ruptura na identidade das
presas. Com isso, elas passam a reproduzir vínculos familiares e
reeditar relações de pertença, restabelecendo sua identidade de
gênero, segundo Oliveira e Teixeira (2019). Para Cunha (1991), na
tentativa de reconstruir os papeis sociais (mãe, esposa, namorada)
que foram temporariamente rompidos com o aprisionamento e de
recuperar laços afetivos perdidos, algumas mulheres relacionam
entre si para reproduzir esses papeis no contexto do presídio.
Diante do contexto deplorável dos presídios, as mulheres
presas transformam o sexo em uma forma de evasão e criatividade
(BINTECOURT, 2011). A sexualidade está decalcada com tinta em seus
corpos e impressa na parede da prisão, entremeada pela negritude,
pela pobreza, pela regionalidade, pelo afastamento da família. Falar
dessa história é contar sobre um corpo que definha no/pelo cárcere
(SANTOS; RIOS, 2018, p. 65).
As mulheres jogam com os seus corpos e afetos, lançando mão
dos artifícios disponíveis para produzir vida nesses cenários que tentam
mortificar suas subjetividades (SANTOS; RIOS, 2018, p. 69). Prado
(2013) e Lemgruber (1983) destacam que a troca constante de parceiras
e a opção transitória pelas relações homoafetivas geralmente são
rompidas quando as detentas ganham ou estão próximas da liberdade.
Tal comportamento é apontado como reflexo do preconceito e o medo
da dupla estigmatização – ex-presidiária e lésbica.

3 PRESSUPOSTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO

O Brasil é um Estado Democrático de Direito, o que não significa


a existência de uma democracia. Para melhor esclarecimento, o
Estado Democrático de Direito pressupõe um sistema de governo que
efetive a igualdade entre os indivíduos, através da criação de normas
e leis que vissem o interesse da coletividade. Porém, ao contrário da
teoria, o Estado não tem promovido a igualdade, além de aumentar a
desigualdade, ele viola sistematicamente os direitos humanos.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 51


Através dos dados, podemos observar a realidade que as
mulheres encarceradas enfrentam. Os seus direitos fundamentais
e o que prevê os direitos humanos, estão sendo negligenciados,
omitidos por um Estado capitalista e perverso, que demonstra pouco
ou nenhum interesse em que essas mulheres tenham acesso e seus
direitos garantidos. O Estado não apenas se omite, mas é cúmplice e
fomenta a violação dos Direitos Humanos propositadamente, pois isso
interessa ao sistema do capital, que visa acumular lucros e para isso
pisoteia na dignidade humana. Segundo os pressupostos do Estado
Democrático, os as pessoas nascem livres e iguais em direitos, mas
algo acontece para que grande parcela da sociedade, dentre elas as
mulheres encarceradas, fujam à regra.
O conceito de Estado, Segundo Aguiar (2016), apresenta duas
características primordiais: a sujeição ao sistema jurídico (de direito),
fruto da tripartição do Estado (poderes legislativo, executivo e
judiciário) e a democracia. O poder político organizado é pressuposto
de um Estado de Direito e para Habermas (1997) o que o legitima é a
ligação com o direito estatuído. E só é considerado legítimo o direito
que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do
direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade.
Pensar a concepção moderna do Estado Constitucional
Democrático de Direito, faz-se necessário primeiramente discutir o
conceito de democracia. Ribeiro Júnior (1994) a palavra democracia
pode sugerir a ideia de governo pela maioria e o direito de votar, como
também pode ser identificada com a liberdade pessoal e a igualdade
de oportunidade. Porém, essa concepção aponta para a ideia de
verdades eternas em que o homem crê sem reservas. Esse conceito
se reduz a aparência de democracia, mas na realidade o capitalismo
sobressai acolitado pelo poder midiático, o poder judiciário e político
são vassalos do sistema capital.
Segundo Aguiar (2016), o Estado Constitucional Democrático
de Direito apresenta três elementos: o povo, como participante do
processo democrático; afirmação do povo e de garantia dos direitos
fundamentais, sendo que esses direitos devem ser respeitados pelos

52 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


governantes; e que a concepção de Estado Democrático de Direito
esteja atrelada à ideia de processo.
Não basta que um Estado seja considerado um Estado Democrático
de Direito, uma vez que para tal, precisa haver legitimidade. Ou seja,
deve-se buscar a criação de um sistema de governo que efetive a
igualdade entre as pessoas, por meio da criação de normas e leis que
vissem o interesse da coletividade e não satisfaça apenas o interesse de
pequenos grupos. A criação de normas e leis parece insuficiente para
transformar a realidade no rumo da efetivação dos direitos humanos,
pois elas são criadas pelas classes dominantes e por elas interpretadas.
E, com isso, temos a punição demasiada das classes menos favorecidas
e a impunidade para os membros da classe dominante.
Para que um Estado seja considerado um Estado Democrático de
Direito, não basta curvar-se à lei. É necessária a existência de outras
características, como a existência de órgãos jurisdicionais dotados
de independência e imparcialidade, com capacidade de fato e de
direito, para solucionar conflitos de interesses interindividuais, e,
especialmente, os que se manifestem entre a pessoa e o Estado (SILVA,
2013, p.84).
Teoricamente, no Estado Democrático de Direito, os homens
nascem livres e iguais em direitos. No entanto, é de suma importância
que, para além de reconhecer a igualdade, sejam proporcionadas
medidas que a efetivem. Logo, não é ético falar em Estado Democrático
de Direito se o Estado na prática não é democrático e é violador
contumaz dos direitos humanos.

4 A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO SOLUÇÃO

Levando em consideração a mulher encarcerada, enquanto


integrante da classe trabalhadora, injustiçada, excluída econômica,
política e socialmente, os Direitos Humanos aparecem como uma
alternativa que permite supor uma sociedade democrática e igualitária
economicamente.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 53


A efetivação dos Direitos Humanos como solução é um desafio a
ser superado. No Brasil, os Direitos Humanos são violados desde 22 de
abril de 1500, quando se iniciou a dizimação de milhões de indígenas
e, posteriormente, a escravização dos negros africanos. A violação dos
Direitos Humanos ainda hoje é explícita em diversos cenários, desde a
ação de policiais do Estado brasileiro ao reprimir e perseguir pobres,
negros e periféricos, ao pisoteamento dos direitos fundamentais de
outras “minorias”, como membros do povo LGBTQIA+.
Os direitos humanos são históricos, ou seja, foram construídos
pelas lutas sociais e pelo diálogo. Os textos e tratados firmados entre
a ONU e os Estados, em tese, tem o objetivo de proteger o ser humano
contra ameaça de agressão ou agressão a sua dignidade. Porém,
segundo Magalhães & Reis (2009), os Estados poderosos se apropriam
desses direitos como forma de legitimar o intervencionismo de alguns
Estados em outros, contrariando os princípios da não-intervenção e
da soberania, garantindo que seus interesses políticos e econômicos
prevaleçam.
Em caso de ameaça à paz ou ato de agressão, cabe ao Conselho de
Segurança da ONU decidir quais serão a medidas adotadas. O Conselho
é composto por 15 membros, cinco são membros permanentes e
possuem direito de veto, portanto, compete a esses cinco membros
decidirem quais casos de violações dos direitos humanos a ONU
deverá interferir. Sendo assim, os Estados mais fortes agem visando
interesses próprios, políticos e econômicos. Mesmo que, para isso,
seja necessário ir contra os direitos humanos. Magalhães & Reis
(2009) afirmam que embora os textos são, em tese, para proteger o
ser humano contra a ameaça de agressão ou agressão a sua dignidade,
hodiernamente esses direitos não produzem os efeitos esperados, não
protegem os seres humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar o conceito de Estado Democrático de Direito aparenta


ser uma tarefa fácil, no entanto, a prática democrática apresenta-se

54 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


complexa. Mais do que estar sujeitos à lei, elas tem que ser legítimas,
ou seja, devem ser criadas e efetivadas por representantes do povo e,
na atual conjuntura política do Brasil, percebemos que nem sempre é
o que ocorre.
Debruçar o olhar sobre as realidades das mulheres no cárcere
e o pisoteamento dos seus direitos, aponta uma democracia frágil no
Brasil. Se por um lado a democracia prevê uma efetiva igualdade real
entre as pessoas, através de representantes do povo, por outro lado,
vemos um Estado Democrático de Direito atendendo aos interesses
da classe dominante e contribuindo para a discrepante desigualdade
social.
Não há como menosprezar as dificuldades da efetivação dos
Direitos Humanos no Estado Democrático de Direito: a igualdade de
direitos tem que ser reconhecida e efetivada. A Lei de Execução Penal
ampara as mulheres encarceradas, para que durante sua reclusão da
sociedade, haja a garantia de direitos na sua plenitude, observando a
preservação da dignidade, saúde e bem estar. Porém, a efetivação e
garantia desses direitos não interessa a classe dominante detentora
do poder, exceto pelo fato de utilizar dessa realidade para lucrar
economicamente e pouco se ater à questão social.
As mulheres encarceradas, por não representarem o papel
sexual e de gênero esperado pelo patriarcado, são estigmatizadas.
Ao desconstruir o imaginário social da mulher dócil e passiva, ela é
colocada à margem da sociedade e punida pelo mesmo sistema que
a gerou. O clico de violência inicia-se perante a ausência dos direitos
sociais básicos, como saúde, educação, cultura, lazer e moradia, o que
as impedem de ter acesso ao direito à vida digna (DARÉ, 2018).
No que tange as presas mulheres com filhos, em atenção ao ECA,
o interesse da criança tem prioridade absoluta, portanto como sugestão
à problemática, o indulto e a comutação deveriam ser concedidos as
mulheres mães presas como é de práxis na Argentina. Ressaltando
que, segundo o art. XLV, da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) a pena não pode ultrapassar a pessoa do
condenado.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 55


Embora a LEP assegure inúmeros direitos à pessoa privada
de liberdade, na prática muitos deles são violados. As questões de
gênero perpassam por essas violações e as mulheres permanecem
sendo subjugadas pelo patriarcado, fazendo com que as condições no
cárcere sejam deploráveis e um desafio a ser superado para que elas
tenham condições dignas durante a privação de liberdade. A efetivação
dos Direitos Humanos como solução parece ser uma alternativa
utópica, uma vez que existe um projeto de sociedade que criminaliza
e marginaliza os jovens negros (homens e mulheres), de baixa renda
e escolaridade.

56 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


REFERÊNCIAS

ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Creche peni-


tenciária: que direito é esse?. In: Execução penal e resistências. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2020.

AGUIAR, Wander Wagner de. Pressuposto da Democracia. 2016.


Disponível em: <https://periodicosonline.uems.br/index.php/RJDSJ/
article/view/974/894>. Acesso em: 01 fev. 2022.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: cau-


sas e alternativas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Constituição (1998) Constituição da República Federa-


tiva do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de


Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de julho de 1984.

BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Es-


tatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 de julho de 1990.

BRASIL. Lei nº 11.942 de 28 de maio de 2009. Dá nova redação


aos arts. 14, 83 e 89 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de
Execução Penal, para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos
condições mínimas de assistência. Diário Oficial da União, Brasília, 25
de setembro de 2009.

CERNEKA, Heidi Ann. Homens que mentruam: considerações


acerca do sistema prisional às especificidades da mulher. Belo Hori-
zonte: Editora Veredas do Direito, 2009, V.6, n.11-Jan-Jun.

CHIES, Luiz Antônio Bogo. A prisão dentro da prisão: uma vi-


são do encarceramento feminino na 5ª Região Penitenciária do RS. XV
Congresso Brasileiro de Sociologia, Curitiba, Paraná, 2011.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 57


CUNHA, Manuela Ivone P. da. A prisão feminina como “ilha
de lesbos” e “escola do crime”: discursos, representações, práticas.
Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.1991. Disponível em: < http://
repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/5248/3/A%20pris%-
c3%a3o%20como%20ilha.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2022.

DARÉ, Tatiana. Prisioneiras: reflexões sobre mulheres jovens,


vítimas e perpetradoras da violência. Configurações, vol. 21, 2018, pp.
64-79.

Fio Cruz. Grávidas são privadas de direitos em presídios, diz


estudo da Fiocruz. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/
direitos-humanos/noticia/2017-06/gravidas-sao-privadas-de-direitos-
-em-presidios-segundo-estudo-da>. Acesso em: 01 fev. 2022.

HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre faticidade e valida-


de. Trad. Flávio Beno Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997, vol I.

INFOPEN Mulheres 2018. Levantamento Nacional de infor-


mações penitenciárias. 2ª edição. Disponível em: <http://depen.gov.
br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_
arte_07-03-18.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2022.

LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica


de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de; REIS, Carolina dos. A ide-


ologia dos direitos humanos. Disponível em: <http://www.conteudo-
juridico.com.br/artigo,a-ideologia-dos-direitos-humanos,23450.html>
Acesso em: 01 fev. 2022.

PRADO, Antônio Carlos. Cela forte mulher. São Paulo: Labor-


texto, 2003.

58 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


RIBEIRO JÚNIOR, João. Pessoa Estado & Direito. Campinas: Co-
pola, 1994.

RIVERAS BEIRAS, Iñaki. Descarcelación: princípios para uma


política pública de reducción de la cárcel (desde um garantismo radi-
cal). Valencia: Tirant lo blanch, 2017.

SANTOS, Larte de Paula Borge; RIOS, Luis Felipe. Sexualidades e


Resistências: uma Etnografia sobre Mulheres Encarceradas no Sertão
Pernambucano. Psicologia: Ciência e Profissão 2018 v. 38 (núm.esp.2.),
60-72. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1982-3703000212379>.
Acesso em: 07 fev. 2022.

SILVA, José Afonso da. Ação Popular constitucional. São Paulo:


RT, 2013.

SOARES, Bárbara Musumeci, ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras:


vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

SPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder puni-


tivo. São Paulo: IBCCRIM, 2004.

TALON, Evinis. A mulher no cárcere. Disponível em: <http://evi-


nistalon.com/mulher-no-carcere/>. Acesso em: 01 fev. 2022.

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Le-


tras, 2017.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 59


60 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
ADPF 527 COMO MEDIDA
REDUTORA DE DANOS À
POPULAÇÃO LGBTQIA+
PRIVADA DE LIBERDADE
José Flávio Ferrari Roehrig
Romulo de Aguiar Araújo

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 61


62 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
ADPF 527 COMO MEDIDA REDUTORA DE DANOS À
POPULAÇÃO LGBTQIA+ PRIVADA DE LIBERDADE

José Flávio Ferrari Roehrig4


Romulo de Aguiar Araújo5

INTRODUÇÃO

O sistema de (in)justiça criminal é o último dos sistemas a sentir


os efeitos de técnicas positivas de inclusão ou incorporação social da
pessoa eleita como inimiga ou simplesmente excluída pela cultura
dominante. Dentro desse sistema, por sua vez, ainda mais retardada
é a absorção de técnicas pela execução penal, momento em que as
pessoas presas ou condenadas sofrem todas as penas legítimas e
ilegítimas pela mão do Estado. E mais ainda, pela mão da sociedade
extramuros e com quem divide o espaço da prisão.
O Brasil operacionaliza um sistema prisional extremamente
seletivo e que se mantém muito longe de atingir os fins a que foi
proposto.
Por mais que em outras áreas e níveis a população LGBTQIA+
tenha obtido alguns avanços na atenção de direitos que lhes é devido,
que nada mais são do que o respeito à igualdade e isonomia, isto é,
o mínimo que se espera de um Estado Democrático de Direitos, o
Brasil é um dos países que permanecem no topo do ranking de mortes
violentas desse grupo vulnerável.

4 Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS; Pós-Graduando em


Execução penal pelo CEI;
Participante do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais e as Ciências Criminais
no Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). Assessor de Juiz do TJPR.
E-mail: joseflavioferrari@gmail.com.
5 Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal da Unicesumar Londrina (PR);
Presidente da Comissão de Eventos da Anacrim Paraná; Mestre em Direito pela
Unicesumar Maringá; Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Penal e
Processual Penal e do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais e as Ciências
Criminais no Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). E-mail:
romuloaraujoadv@gmail.com

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 63


E a situação se agrava quando analisada a população sob o ponto
de vista da pessoa privada de liberdade. Além das faces externas da
sociedade que a agride e do Estado leniente, têm que lidar com a
limitação de espaço e a forma um tanto quanto diferente de disposição
de força dentro do cárcere.
É nesse cenário que foi colocada nas mãos do Supremo Tribunal
Federal a decisão sobre os deveres do Estado e os direitos das pessoas
LGBTQIA+ privadas de liberdade. Busca-se o reconhecimento de
isonomia e sobretudo do uso de mecanismos que efetivamente
garantam os direitos do grupo vulnerável privado de liberdade. Isto
é, de nada adianta elencar níveis e limites de atuação do Estado em
relação ao grupo vulnerável, se suficientes mecanismos de defesa não
forem igualmente estipulados e fiscalizados.
Portanto, com base na análise crítica do estado de coisas
inconstitucional, cotejando-o com a exclusão promovida pelo
Brasil em relação à população LGBTQIA+, busca-se analisar alguns
parâmetros da criminalização, o problema do encarceramento e
a função judicial na solução do problema colocado em pauta, cuja
orientação convencional preexistente orienta a adoção de práticas
ativas, que até então foi deixada parcialmente de lado.

1 CRIMINALIZAÇÃO, MORAL, RELIGIOSIDADE E ESTADO

O complexo processo de criminalização é estudado desde o


nascimento da criminologia. Cada uma das teorias construídas para
justificar o processo e seus fundamentos possui seus elementos
basilares e seus pontos de observação, tal como métodos distintos.
Desde o Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas), de 1487 dos
inquisidores Jacob Sprenger e Heinrich Kramer (MACKAY, 2006) pôde-
se constatar a eleição de um determinado grupo de pessoas como alvo
do processo de criminalização, no caso, das mulheres taxadas como
bruxas e hereges, cujos detentores dos processos de criminalização
eram homens. Mas muito além disso, a forte participação da religião,

64 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


sobretudo da Igreja Católica como parâmetro de moral, cujo desrespeito
à orientação compulsória implicava na rotulação e punição.
Os anos se passaram, as formas de governo evoluíram, o Estado
e a Igreja se separaram, mas o Estado Democrático de Direitos não
afastou o caráter inquisidor do processo, tampouco a capacidade de
segmentação do alvo do sistema de justiça criminal e de controlar
corpos. Afinal, também nos modernos estados ocidentais os
ensinamentos da igreja não deixam de influenciar no Direito Penal
porque as igrejas são em maior e menor medida poderosas instituições
sociais que influem indiretamente sobre a moral social e diretamente
na legislação (ROXIN, 2006).
Cronologicamente, sob o ponto de vista da medicina social
(FOUCAULT, 2011a; FOUCAULT, 2011b) e da prática médica em torno
do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 2001) dos séculos XVIII e
XIX, respectivamente, contatou-se a insurgência do poder pastoral,
em que a produção de uma verdade sobre os prazeres deixava de ser
restrita ao exercício da igreja cristã. A sexualidade e o corpo, como um
novo diagrama de poder, foram implementados a partir da percepção
da saúde como problema da ordem pública e de utilidade econômica
para organização da força de trabalho.
“O poder moderno obteria que não se falasse dele [sexo],
exclusivamente por intermédio de proibições que se completam
mutuamente: mutismos que, de tanto calar-se, impõe o silêncio.
Censura” (FOUCAULT, 2001, p. 21). A citação pode-se transmutar ao
cenário ora estudado, uma vez que o controle moral que paira sobre a
discussão e voz à identidade de gênero facilmente pode ser traduzido
como censura.
O silêncio é estrutural, “entre pais e filhos, por exemplo, ou
educadores e alunos, patrões e serviçais” (FOUCAULT, 2001, p. 22)
e, portanto, se perpetua ao longo do tempo, exigindo um verdadeiro
movimento revolucionário para a superação dos estigmas. O silêncio
gera ignorância, a ignorância resulta em medo, e o medo em repressão.
Ainda neste sentido sabe-se que a ignorância neste ponto acaba
resultando na utilização de determinada parcela da população como

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 65


massa de manobra penas mídias e redes sociais por exemplo quando
da necessidade de debate de temas importantes a qualquer parcela
vulnerável da população que faça jus a proteção de direitos humanos.
A repressão é instrumentalizada por muitos métodos, dentre
eles e especialmente ele, pela criminalização e aplicação de uma
pena, um ato político (BARRETO, 1996). E “o Estado Democrático de
Direito apoia seu direito penal no consenso dos cidadãos [...] mediante
a afirmação de valores de toda a sociedade” (SCHECAIRA, 1993). Isto
é, ao passo que se impera o silêncio sobre a identidade de gênero, o
medo impera e a brutalidade reina.
Esse medo, há de se esclarecer, não se trata do simples medo do
desconhecido, mas de um medo de que o outro – anteriormente eleito
como inimigo – possa, ainda que a partir de um risco remoto, infligir
mal aos costumes e moral impostos pelo padrão comportamental
pastoral. Medo do que lhe é diferente.
Deleuze (2018, p. 349) já se perguntou “[e]nquanto a diferença
é submetida às exigências da representação, ela não é nem pode ser
pensada em si mesma. Deve ser examinada de perto a seguinte questão:
foi ela ‘sempre’ submetida a essas exigências e por quais razões6?”
Em sequência arrematou, “[mas] nada muda; a diferença continua
marcada pela maldição; foram apenas descobertos meios mais sutis e
mais sublimes de fazê-la expiar ou de submetê-la, de resgatá-la sob as
categorias da representação” (DELEUZE, 2018, p. 351).
O que antes era a mulher taxada de bruxa, cuja noção patriarcal
da política persiste em tentar controlar, tomou novas roupagens, com
a intenção de deixar o ímpeto de controle e disciplina às brumas, às
escuras e assim persistir com a vontade de poder.
E a superação das barreiras também sofre influência da religião,
um sistema de negatividade, que com seus mandamentos, proibições
e rituais se contrapões à proliferação do positivo – no caso, do diálogo

6 São as quatro raízes do princípio de razão: a identidade do conceito, que se reflete


numa ratio cognoscendi; a oposição do predicado, desenvolvida numa ratio fendi; a
analogia do juízo, distribuída numa ratio essendi; a semelhança da percepção, que
determina uma ratio agendi.

66 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


e aceitação. Essa negatividade “faz surgir sinais e espaços limitados,
carregados de tensão altamente semântica e atmosférica. Desse modo
mantém a entropia do sistema social em um nível bastante baixo”
(HAN, 2017, p. 80).
Ainda que partindo do princípio da multiplicidade, contrapondo
a unidade social, há àqueles pertencentes ao grupo dominante, os
quais geralmente são detentores de poder ainda que numericamente
inferiores, e detentores de uma dificuldade sem igual em lidar e
enxergar o outro enquanto outro. Parte disso decorrente da regra do
silêncio. “Ou, para dizer de outro modo, no âmbito de uma filosofia
da representação quanto mais falamos no outro ou na diferença mais
negamos o outro, mais negamos a diferença” (GALLO, 2018). Ocorreria,
de forma bastante simplória, a inclusão, ou melhor, a unificação.
A eleição de bens jurídicos a serem tutelados pela norma penal
se relacionam com a consciência moral coletiva, cabendo a ressalva
de que ela somente é significativa para o Direito Penal no âmbito da
proteção subsidiária dos bens jurídicos, mas não pode fundamentar
de forma independente nenhuma punição (ROXIN, 2006). Não menos
importante vale ressaltar que essa moral coletiva, subsidiária, também
pode ser deixada de lado para atender à moral dominante do legislador
(ROXIN, 2006).
Sem mais delongas, ainda que de uma forma extremamente
objetiva e simplória acreditamos termos chegado à construção da
base do raciocínio, que em suma pode ser traduzida pela orientação
religiosa do que deve ou não ser dito, da moral e dos bons costumes,
que por sua vez promove, de várias maneiras, a criminalização daquele
taxado como outro, cujos costumes desagradam o ideal moral.

2 A CRIMINALIZAÇÃO ESPECÍFICA DA
POPULAÇÃO LGBTQIA+ NO BRASIL

O processo de criminalização no Brasil passa pela seleção de


bens jurídicos indispensáveis a toda a coletividade onde algumas
condutas tidas como intoleráveis e que afetem um bem jurídico-penal

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 67


serão tidas como criminosas e passíveis de punição, conforme
princípios da exclusiva proteção de bens jurídicos, da ultima ratio e da
fragmetariedade.
Sérgio Salomão Shecaira (1993) apontou que “o direito penal
em um Estado Democrático de Direito se dá através de uma visão
uníssona de seus cidadãos, ‘que a prevenção geral não se pode almejar
através da mera intimidação, mas há que se ter em conta a consciência
jurídica geral, mediante a afirmação de valores de toda a sociedade’”.
A partir destes valores, aquelas condutas que se vem tipificadas
no ordenamento jurídico podem ser formalmente reputadas como
criminosas, no entanto, tal processo de verificação no plano material
é que afeta as questões atinentes a criminalização não apenas de
condutas, mas sim de pessoas, principalmente pretas, pobres, de
baixa escolaridade e no presente caso da população LGBTQIA+.
Conforme assinala Nilo Batista (2007, p. 25-26):

O sistema penal é apresentado como igualitário,


atingindo igualmente as pessoas em função de suas
condutas, quando na verdade seu funcionamento é
seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas,
integrantes de determinados grupos sociais, a
pretexto de suas condutas.

E é neste contexto que conseguimos imaginar a criminalização


da população LGBTQIA+ ao longo da história como já se viu em
momentos a seletividade do Direito penal contra pessoas pobres, sem
profissão, desempregados, com baixo grau de instrução, e de família
desestruturada, que infelizmente não têm condições de arcar com
uma boa defesa em um processo criminal.
Tal projeto de criminalização e segregação não é novidade, tanto
que na Alemanha através do Projeto de Marburgo, de 1882, de autoria
de Franz Von Liszt, o delito era tido como uma patologia social onde
deveriam se separar os indivíduos entre os corrigíveis, os intimidáveis
e os incorrigíveis (FALCÓN Y TELLA, 2008, p. 225-226).

68 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A crítica que aqui se vislumbra se situa na inexistência de critério
objetivo de diferenciação entre os corrigíveis, os intimidáveis e os
incorrigíveis, diante dessa ausência de justificativa os incorrigíveis
poderiam ser quem os detentores do poder de definição dissessem que
seriam, tais como membros do proletariado, mendigos, vagabundos,
prostitutas, desonestos, alcoólatras, marginais, e por que os negros,
pobres, e por fim o ponto que aqui nos é importante as transexuais e
as travestis (ARAÚJO, 2018, p. 41).
Sob o ponto de vista do conjunto das relações sociais, e não
meramente técnica do conceito de crime, afirma-se que os sistemas
sociais produzem o criminoso, por suas estruturas econômicas e
instituições jurídicas e políticas do Estado, uma vez que proporcional
campo fértil (condições necessárias e suficientes) para a existência
do comportamento desviante (SANTOS, 2008, p. 51). A seletividade, o
racismo, o preconceito, a homofobia, e a naturalização dessas práticas
são sistêmicas.
No Brasil, a eleição de tais comportamentos desviantes não foi
diferente, a existência de tipos penais abertos, com possibilidade de
interpretação extensiva quanto ao seu conteúdo, ou até mesmo, com
conteúdo de carga moral e religiosa a serviço dos bons costumes “a caça
às bruxas-bichas” (VIDAL, 2020, p. 46) se deu na legislação brasileira
entre 1890 e 1988 com a promulgação da nossa última Constituição
Federal.
A utilização de tipos penais como o previsto no artigo 379 do
Código Penal do Império que tratava da criminalização da conduta
de “disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios do seu, e trazê-los
publicação para enganar” era passível de prisão celular de quinze a
sessenta dias (BRASIL, 1980).
Além disso, como as travestis eram vistas como pessoas
entregues a vadiagem e a prostituição tanto o Código Penal de 1940
(BRASIL, 1940) como a Lei de Contravenções Penais de 1941 (BRASIL,
1941), abriam também as portas a possibilidade de criminalização
através da punição ou internação de pessoas entregues a “vadiagem ou
a prostituição” como previsto no artigo 93 do Código Penal de 1940 e

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 69


no artigo 59 da Lei de Contravenções que trazia uma punição de prisão
simples de quinze dias a três meses para a conduta de “[e]ntregar-se
alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem
ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover
à própria subsistência mediante ocupação ilícita”.
Tal postura não foi diferente no país durante a ditadura militar, a
classificação da homossexualidade como doença (outrora denominado
homossexualismo7), a condenação do ato homossexual como pecado, o
perigo social que a homossexualidade trazia aos “valores tradicionais”
e a estigmatização destas pessoas que era vistas como anormais foram
objeto da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014a) no texto sobre
a Ditadura e Homossexualidades que citou que a descriminação contra
a população LGBT não surgiu naquele período, como nós já vimos
anteriormente, “embora esses valores sociais e culturais contrários á
homossexualidade tenham se afirmado com nitidez e se condensado
em postos oficiais do Estado naquele momento” (BRASIL, 2014a, p.
300) a não ser que fossem realizados em espaços bem demarcados.

A associação entre homossexualidade e subversão


foi um dos conceitos básicos a sustentar a ideologia
do regime militar e servir como justificativa para os
vários tipos de repressão sobre a sociedade brasileira
e, especificamente, a gays, lésbicas e travestis nos
anos 1960 e 1970 (BRASIL, 2014, p. 301).

Tanto que neste período entre as décadas de 60 e 70 “ideólogos


ampliaram o raciocínio sobre os perigos da homossexualidade
e a associaram a um submundo de degenerados – “pederastas”,
alcoólatras, prostitutas e outros desviantes e não conformistas – que
representavam uma ameaça à segurança nacional” (BRASIL, 2014a, p.
302).

7A exclusão da homossexualidade como doença mental (Classificação Estatística In-


ternacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID) somente ocor-
reu em 17 de maio de 1990 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e ratificada pelo
em 1992.

70 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Além dessas violências já citadas, muitas outras ocorreram
contra as pessoas LGBT naquele período, como a perda de empregos
e cargos públicos em função da sua orientação sexual, a censura de
livros, jornais, peças de teatros, letras de músicas, filmes e outros
que tivessem conteúdo “imoral” ou que atentasse contra a “moral
e os bons costumes” sempre com base no Código Brasileiro de
Telecomunicações, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional
(BRASIL, 2014a, p. 303-307).
Por fim e não menos importante, ainda no período ditatorial,
a mudança do padrão de policiamento, que ocorreu principalmente
na cidade de São Paulo durante os anos de 1976 e 1982 que atuou
com grande repressão aos LGBTs, tanto que foi criada a Delegacia de
Vadiagem para aplicação severa do artigo 59 da Lei das Contravenções
Penais como forma de combate a homossexualidade em rondas
capitaneadas pelo delegado José Wilson Richetti, e uma portaria sob
n. 390/1976 que autorizava a prisão de travestis da região central da
cidade de São Paulo para averiguação e que os procedimentos deveriam
conter foto das custodiadas para “avaliar seu grau de periculosidade”
(BRASIL, 2014a, p. 307-309).
Não há que se negar que diante destas circunstâncias de extrema
vulnerabilidade, o isolamento, a segregação, a situação de pobreza e a
falta de e scolhas neste processo somados ao estigma que a chamada
“defesa da moral e dos bons costumes” acabava levando a população
LGBT à prisão. Bauman (1997, p. 50) constatou ser mais barato excluir
e encarcerar pessoas do que as incluir no processo produtivo, como
aduz Shecaira (2014, p. 29):

Se é mais barato excluir e encarcerar os consumidores


falhos para evitar-lhes o mal, isso é preferível ao
restabelecimento de seu status de consumidores
através de uma previdente política de emprego
conjugada com provisões ramificadas de previdência.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 71


Em comentário à escola de Chicago,

“na atual sociedade pós-fordista, não há mais que


se falar em disciplina a ser imposta pelo cárcere:
o ‘grande projeto disciplinar da modernidade
capitalista’ foi substituído pela necessidade ‘de
neutralizar a periculosidade das classes perigosas
através de técnicas de prevenção de risco, que se
articulam principalmente sob as formas de vigilância,
segregação urbana e contenção carcerária’”
(SHECAIRA, 2014, p. 149).

Diante deste cenário a sociedade não vendo mais meios para


regulamentação do comportamento, visto por eles como irregular,
contrários a chamada por eles “moral e bons costumes” passa a criar
obstáculos a estes personagens, gerando a exclusão deles, isso se faz
através da chamada “ecologia do medo que, na cidade se materializa na
figura do estrangeiro, do imigrante, do desempregado do dependente
de drogas” (SHECAIRA, 2014, p. 150) e na população LGBTQIA+.
Neste sentido não há dúvidas que dessa naturalização da moral
impregnada com a religião (NIETZSCHE, 2008, p. 170) se fundamenta
o ódio e o desprezo a pessoa que cometeu o “pecado” a punição
destas pessoas não se dá por suas ações, mas pelo que elas são, seu
comportamento enquanto ser de direitos que busca se portar de
acordo com o seu entendimento sem que haja interferência na forma
de regulação de comportamento de terceiros, principalmente pois,
alguns dos que julgam tais comportamentos se dão por conta de um
privilégio que estigmatiza aquele que é ali julgado (NIETZSCHE, 2008,
p. 167-168).
Diante deste julgamento uma outra forma de criminalização da
população LGBTQIA+ gera uma segunda necessidade de enfrentamento
quando da sua entrega ao cárcere que visa em alguns aspectos atender
as teorias preventivas ao crime ou a sua negação, pois “a pena é um
ato político e o direito, como limite da política, é o parâmetro negativo

72 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


da sancionabilidade, estruturando-a sob a negação das teorias da pena
e fundando-a em critérios de limitação da sanção” (BARRETO, 1996).
Augusto Jobim entende que “há como que uma linha de força,
quase um campo gravitacional que dispõe a reboque a crítica sobre
a penalidade sob o manto do ‘como deveriam ser as coisas’, num jogo
de dado, adornando-o, para que melhor funcione” (AMARAL, 2020, p.
16).
Neste sentido e pensando em como as coisas devem funcionar
e não como elas funcionam é que o cárcere deve ser adaptado à tais
realidades ressignificadas, principalmente a população LGBTQIA+ no
tocante às travestis e transexuais.
Diga-se isso, pois nos estabelecimentos prisionais brasileiros
as ilegalidades são severas contra às mulheres encarceradas e da
população LGBTQIA+ alguns dados de 2014 do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária CNPCP (BRASIL, 2015), e a Resolução
Conjunta n. 1 de 2014 (BRASIL, 2014b) já tratavam de medidas de
criação de alas especiais para presos da população LGBT de adesão
voluntária, onde exerceriam a liberdade de expressão e optar por “uso
de roupas ligadas à sua identidade, manutenção do cabelo comprido
para travestis e transexuais, visita íntima, acesso à tratamento
hormonal, de acordo com a evolução legal e judicial quanto à condição
de gênero ou orientação sexual” (ARAÚJO, 2018, p. 93).
Esses direitos aliás, conformam a liberdade de expressão da
pessoa privada de liberdade. A própria Corte Europeia de Direitos
Humanos (2003), no caso Yankov v. Bulgária (39084/97) reconheceu
a ilegalidade e o abuso do Estado em determinar o corte de cabelo
da pessoa trans privada de liberdade, confirmando que consiste em
direito à liberdade de expressão manter os cabelos longos durante o
período de aprisionamento.
Além disso o direito a não discriminação deve ser levado em
consideração pois a população LGBTQIA+ sofre com abusos sexuais
praticados por outros presos dentro das cadeias e penitenciárias,
é comum o leilão de travestis, sua utilização como moedas de troca
etc., além da não possibilidade de utilização do nome social nos

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 73


registros, não concessão de auxílio reclusão, proibição de entrada de
preservativos, dentre outros (ROIG, 2021, p. 56).
Diante disso a necessidade da apreciação da ADPF n. 527 que
será apreciada no tópico subsequente é de extrema importância
para que se continue regulamentando, protegendo e promovendo
os direitos fundamentais da população LGBTQIA+ respeitando sua
individualidade e principalmente e sua possibilidade de escolha do
ambiente que lhe for mais caro.

3 ADPF 527 E A MEDIDA REDUTORA DE DANOS

A Execução Penal, a fase de cumprimento da pena, é o último


dos momentos do sistema de justiça criminal, por sua resistência
característica, a sofrer mutação para novas estratégias que possibilitem
fazer ou reverterem-se os processos de criminalização do inimigo (SÁ,
2012). Isto é, enquanto em outros setores do direito, até mesmo do
sistema de justiça criminal, incorporam técnicas de inclusão do eleito
como inimigo, a execução penal ainda reluta, por lá já estar arraigada
toda a violência e a rotulação da pessoa.
Uma reviravolta ansiada, porém, inesperada em tempos como
os atuais. O Ministro Luiz Roberto Barroso, Relator da ADPF 527,
movida pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (ALGBT), em sede de Medida Cautelar, decidiu
que transexuais e travestis com identificação com gênero feminino
poderão optar por cumprir pena em presídio feminino ou masculino.
E quando optar por cumprir pena em presídio masculino, elas devem
ser mantidas em área reservada, como garantia de segurança (BRASIL,
2016).
A decisão foi tomada em ajuste à medida cautelar parcialmente
deferida em junho de 2019, ocasião em que o Ministro Relator
reconheceu somente o direito às transexuais femininas de cumprirem
pena em presídios femininos.
A decisão confere interpretação ampliativa à Resolução Conjunta
1 de 15 de abril de 2014: CNCD e CNPCP – LGBT, que normativamente

74 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


autorizava exclusivamente às pessoas transexuais o direito de cumprir
pena em unidades prisionais femininas, e mantinha as travestis nas
unidades masculinas, devendo, no entanto, ser mantidas em espaços
de vivência específicos (BRASIL, 2014c).8
Relatórios elaborados sobre o tema foram utilizados para
embasar a decisão, dentre eles o relatório: “LGBT nas prisões do
Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de
encarceramento”, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos (MDH), e a Nota Técnica 7/2020, do Ministério da Justiça e
Segurança Pública (MJSP).
Pauta a construção da ampliação da Medida Cautelar anterior no
direito à vida, à liberdade e à segurança (ONU, 1948)9 (BRASIL, 1992a)10;
na vedação à tortura e ao tratamento desumano e cruel (ONU, 1948)11
(BRASIL, 1992a)12; e na proibição de tratamento discriminatório (ONU,
1992)13 (BRASIL, 1992a)14 (BRASIL, 1992b)15. A crítica reside na pré-

8 “Art. 3º. Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais


masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão
ser oferecidos espaços de vivência específicos. [...] Art. 4º. As pessoas transexuais
masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais
femininas”.
9 “Art. 3º: Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”;
10 “Art. 6º: 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser
protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. [...].”
11 “Art.5º: Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante”.
12 “Art. 7º: “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento
cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa,
sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas”.
13 “Art. 2º: 1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição [...]”..
14 Art. 26: “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação
alguma, à igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma
de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer
discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou
qualquer outra situação”.
15 “Art. 2º: 1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais,

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 75


existência desses fatores e da norma internacional antes da prolação
da decisão nos anos de 2019. Desde o ano de 2007 vigoram as Regras de
Yogyakarta16, que apesar de serem consideradas soft law, estabelecem
diretrizes para os Estados no tratamento em relação à orientação
sexual e identidade de gênero, do qual o Brasil é signatário.
Em outro caso igualmente notório, e igualmente tardio, o
Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional parte da Portaria
15/2016 do Ministério da Saúde, que restringia a doação de sangue por
determinados grupos, em especial pela população LGBTQAI+ (BRASIL,
2020a). Na ocasião o Ministro Relator Edson Fachin fez questão de
reconhecer o caráter materialmente constitucional ao apontar:

Reconhecido o exercício livre e responsável da


sexualidade, é de se entender a partir dos postulados
nos Princípios de Yogyakarta que os direitos
humanos são interdependentes e indivisíveis e
devem ser integralmente gozados por todos os
cidadãos quaisquer sejam suas orientações sexuais
ou identidades de gênero. (BRASIL, 2020a)

Em sequência, como forma elucidativa esclareceu:

principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos


disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados,
o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em
particular, a adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados Partes do presente
Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e exercerão em
discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento
ou qualquer outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente
em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão
determinar em que garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente
Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”.
16 Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos,
com o objetivo de desenvolver um conjunto de princípios jurídicos internacionais
sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos com
base na orientação sexual e identidade de gênero, reuniram um grupo de especialistas
em direitos humanos de 25 países. Em novembro de 2006, em Yogyakarta, Indonésia,
os Princípios de Yogyakarta foram aprovados por unanimidade.

76 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Tem-se, assim, a vedação à discriminação
manifestada quer como um direito positivado
(hard law), juridicamente vinculante, – no bojo
da Convenção Americana de Direitos Humanos
(Decreto nº 592/1992), do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 678/1992) e da
Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância –, quer como guia (soft
law) – verificado nos Princípios de Yogyakarta, que
possuem caráter orientativo e contam com a boa-fé
e discricionariedade dos países para serem dotados
de eficácia.

Logo, muito embora os Princípios de Yogyakarta detenham


característica de soft law, isto é, não imperativo, cuidam-se de normas
materialmente constitucionais, que devem orientar a prática do Estado
no tratamento da população, em todas suas vertentes.
Atinente especificamente à população privada de liberdade,
os Princípios de Yogyakarta estabelecem que “[t]oda pessoa privada
da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela
dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade
de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa”, e
estabelecem, sinteticamente, oito (8) deveres aos Estados.

a. Garantir que a detenção evite maior marginalização, evitando


exposição a risco de violência, maus-tratos ou abusos físicos,
mentais ou sexuais;
b. Fornecer acesso adequado tratamento médico e
aconselhamento psicológico, inclusive no que se refere à
saúde reprodutiva, terapia de HIV/Aids e hormonal, tal como
tratamentos de reassignação de sexo/gênero;
c. Assegurar, na medida do possível, participação em decisões
relacionadas ao local de detenção adequado à orientação
sexual e identidade de gênero;

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 77


d. Implementar medidas de proteção aos internos que sofrem
violência ou abuso, e assegurar que essas medidas de
proteção não impliquem em maior restrição a seus direitos;
e. Assegurar as visitas conjugais, baseadas na igualdade a todas
as pessoas detidas;
f. Proporcionar o monitoramento independente das instalações
de detenção e de organizações não-governamentais;
g. Implementar programas de treinamento e conscientização
para agentes e demais envolvidos com instalações prisionais.

O Ministro Relator fez questão de destacar o item e da norma


internacional, indicando exatamente que a mudança de presídio
depende exclusivamente da vontade externada da pessoa privada de
liberdade.
Nota-se desde já que boa parte dessas orientações continuam
sem observância, ainda que a decisão tomada em sede de ADPF/527
seja, de um certo modo, vanguardista. Elas já estão dispostas, a ponto
de permitirem o próximo passo, não somente aos vulneráveis detidos,
mas à toda população LGBTQI+.
Não é novidade que o Brasil trata suas minorias com desprezo
e violência. Quando analisamos os vulneráveis representados pelas
siglas LGBTQI+ a brutalidade ganha espaço para crescimento e base
para desenvolvimento. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans
no mundo. Com dados do mundo inteiro extraídos entre 2008 e
setembro de 2020, foram reportados 3664 assassinatos, dos quais 1520
ocorreram no Brasil, o equivalente a 41,5% (TRANSGENDER EUROPE
AND CARSTEN BALZER, 2020).
Além do elevadíssimo índice de mortes, a discriminação, seleção,
exclusão e constante violência forçam transtornos psicológicos, como
ansiedade e depressão (Jornal da USP, 2021).
Esses efeitos nos corpos determinados decorrem certamente de
uma busca pelo controle desses corpos e pela seleção do “outro”. Aos
travestis são resguardados lugares relegados.

78 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Os lugares não-tão-humanos onde as travestis habitam,
simbólica e materialmente, são demarcados, como
também seus corpos. Nesses espaços se constroem
complexas redes de relação de poder, e os processos
de marginalização as inserem em mercados direta e
indiretamente criminalizados. (SERRA, 2019, p. 107)

A prostituição, o uso de drogas e a narcotraficância certamente


são vias de acesso a esse mercado. Notadamente o ingresso não é
adotado por todos os integrantes desse grupo vulnerável, porém,
para muitos, não foi dada escolha, afinal, além de todas as situações e
medos antes mencionados, convivem com a dificuldade de ingressar e
se manter no mercado de trabalho formal (SERRA, 2019, p. 113).
O final de tudo isso, infelizmente, desata em um local ainda
prior, a prisão, onde toda discriminação e tratamento é ampliada.
Relatos de estupros coletivos, violência, subjugação não são isolados.
“LGBTQI+ são 15 vezes mais propensas a sofrer abusos sexuais no
ambiente prisional” (SOTERO, 2021, p. 165).
Embora vigentes proteções normativas, agora sob aval do
STF, manifestado a partir de sua missão contramajoritária (BRASIL,
2020b)17, elas não bastam para minimizar os danos causados. Apesar
da força vertical da decisão, não se pode ignorar que apenas 106, das
508 unidades prisionais masculinas avaliadas em um determinado
estudo, possuem espaço de vivência diferenciado para a população
LGBTQI+ (BRASIL, 2020c, p. 17). Nem tampouco os vários anos de
repressão e discriminação, que limitam o poder da decisão. Não basta
que um Poder esteja proposto à medida, é necessária ação conjunta,
sobretudo da sociedade.
Nesse contexto, o Min. Relator Barroso ainda ressaltou “notável
evolução no tratamento a ser dado à matéria no âmbito do Poder
Executivo”, fato que se evidencia com o surgimento de boas práticas

17 “A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado democrático


de direito: a proteção das minorias analisada na perspectiva de uma concepção
material de democracia constitucional”.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 79


do administrativo Estadual, tal como no Espírito Santo, que inaugurou
a Penitenciária de Segurança Média 2 (PSME2), primeira penitenciária
exclusiva e de referência à população LGBTQI+ (GOVERNO DO
ESPÍRITO SANTO, 2020).
Convém ressaltar que não é uma unidade prisional nova.
Ela já existia e suportou adaptações. Isto é, respeitou-se, ainda que
involuntariamente, a máxima do numerus clausus, cuja construção
da teoria impede a construção de novas vagas no sistema carcerário
(ROIG, 2014, p. 108).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sistema prisional brasileiro tem se tornado mais e mais denso,


menos garantidor de direitos, e utilizado, nitidamente, pelo Estado
como forma ilegítima de controle de determinadas populações, eleitas
como inimigas, tidas como afrontosas aos costumes dos detentores
dos poderes de legislar, administrar e julgar.
As pessoas jogadas naquele espaço de não direito são vistas pela
sociedade e pelo estado como descartáveis, e colocadas nas prisões,
diferentemente do que prega a legislação e o princípio (re)ssocializador,
com a intenção de neutralizá-las e afastá-las da sociedade pelo maior
tempo possível. Na visão do Estado, se morrerem enquanto cumprem
as penas ilegítimas, melhor. Sob o enfoque específico da população
LGBTQIA+, afinal, o Brasil é uma das nações que mais as mata, e, se
dentro da prisão isso ocorrer, atinge-se o fim pretendido.
Se mal lhes é dada voz para defender seus direitos mais basilares
enquanto em liberdade, certamente a voz é calada quando estão
privadas de liberdade. Uma minoria impopular, incapaz de atender aos
interesses políticos e econômicos de uma maioria alinhada ao modelo
político de governo, que procura transparecer para a sociedade que
aquilo que deveria ser exceção (desrespeito episódico a direito do
encarcerado) passa a ser a regra (violação massiva), reclama por
resgate de sua dignidade (SANTOS; ÁVILA, 2017, p. 289).

80 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A conduta estatal até então é de descaso total, em todas as frentes
de poder que poderiam mitigar danos. No entanto, agora se confia no
papel contramajoritário da mais alta corte do país a apresentação de
soluções palpáveis para a contenção de danos e a garantia de alguns
direitos da população LGBTQIA+ privada de liberdade, por meio da
ADPF 527, que notadamente deverá chamar ao debate os demais
poderes, sobretudo porque deles que originam muitos dos desrespeitos
debatidos na ação constitucional.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 81


REFERÊNCIAS

AMARAL, Augusto Jobim do. Política da criminologia. São Paulo:


Tirant lo Blanch, 2020.

ARAÚJO, Romulo de Aguiar. Os excessos e desvios no curso da exe-


cução penal e o estado de coisas inconstitucional: regulamentação, proteção
e promoção de direitos fundamentais. Dissertação (Mestrado em Direito)
Maringá-PR: UNICESUMAR, 2018.

BARRETO, Tobias. Fundamentos do Direito de Punir. In Revista


dos Tribunais, nº 727. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de


Janeiro: Revan, 11ª. Edição. 2007.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Ja-


neiro: Jorge Zahar Ed, 1997. p. 50. apud. SHECAIRA, Sérgio Salomão.
Criminologia. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

BRASIL, Código Penal de 1890. Disponível em: <http://www.pla-


nalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em: 01 de
jul. de 2021.

BRASIL, Código Penal de 1940. Disponível em: <http://www.pla-


nalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em 09 de jul.
de 2021.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório II: textos te-


máticos / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014. Dispo-
nível em: < http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/
volume_2_digital.pdf>. Acesso em 9 de julho de 2021.

BRASIL. CNPCP, Plano Nacional de Política Criminal e Peni-


tenciária. 2015: Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/

82 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


composicao/cnpcp/plano_nacional/PNPCP-2015.pdf >. Acesso em: 09
de jul. de 2021.

BRASIL. Lei das Contravenções Penais de 1941. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm>.
Acesso em 09 de jul. de 2021.

BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Resolução Conjunta


Nº 1 CNPC e CNCD – LGBT, de 15 de abril de 2014c. Disponível em:
< http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5496473ht-
tps://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/re-
solucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view>. Acesso em:
09 de jul. de 2021.

BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Huma-


nos; Secretaria Nacional de Proteção Global; Departamento de Promo-
ção dos Direitos de LGBT. LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos
procedimentos institucionais e experiências de encarceramento. Bra-
sília, 2020c. Disponível em: < https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/
noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf> Aces-
so em 09 de ju. de 2021.

BRASIL, Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos –


Decreto 592, de 6 de julho de 1992a. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em 09 de
julho de 2021.

BRASIL, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e


Culturais – Decreto 591, de 6 de julho de 1992b. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso
em 09 de julho de 2021.

BRASIL. Resolução Conjunta 1 de 15 de abril de


2014: CNCD e CNPCP – LGBT. Disponível em: https://www.
g o v. b r/d e p e n / p t - b r/c o m p o s i c a o /c n p c p / r e s o l u c o e s / 2 0 1 4 /

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 83


resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view. Acesso em
21/03/2021.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconsti-


tucionalidade 5543, Rel. Min. Edson Fachin, 2020a. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4996495>.
Acesso em 09 de jul. 2021.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumpri-


mento de Preceito Fundamental 527. Rel. Min. Marco Aurélio Melo.
2020a. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.as-
p?incidente=5496473>. Acesso em 09 de jul. de 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 31 anos de jurisdição consti-


tucional: Ministro Celso de Mello [eBook]. Brasília: STF, Secretaria de
Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2020b. Disponível
em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInsti-
tucionalEdicaoHomenagem/anexo/31_anos_min_celsodemello.pdf>.
Acesso em 09 de jul. 2021.

COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS E O SERVIÇO IN-


TERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. Princípios de Yogyakarta
foram aprovados por unanimidade. Disponível em: <http://www.clam.
org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em
09 de jul. 2021.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição [livro eletrônico]. 1º Ed.


São Paulo: Paz e terra, 2018.

EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Yankov v. Bulgaria.


Judgment 11.12.2003. Disponível em: < https://hudoc.echr.coe.int/en-
g#{%22itemid%22:[%22002-4563%22]}> Acesso em 06/07/2021.

FALCÓN Y TELLA, Maria José. Fundamento e finalidade da sanção:


existe um direito de castigar? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

84 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


FOUCAULT, Michel. A política de saúde do século XVIII. In:
MOTTA, M. B. da. (Org.). Arte, Epistemologia, Filosofia, e História da Me-
dicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011a. Coleção Ditos &
Escritos, v. 7, p. 357-373.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 1ª


Ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Graal, 2001.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: MOT-


TA, M. B. da. (Org.). Arte, Epistemologia, Filosofia, e História da Medici-
na. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011b. Coleção Ditos & Es-
critos, v. 7, p. 402-424.

GALLO, Sílvio. Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade


e filosofia da diferença. In: Anais do II Congresso Internacional Cotidia-
no: Diálogos sobre Diálogos. Universidade Federal Fluminense, Rio de
Janeiro. 2008. p. 1-16.

GOVERNO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria da Justiça - SEJUS.


Sejus inaugura primeira unidade prisional exclusiva e de referência
à população LGBTI+. 26/05/2021. Disponível em: <https://www.es.gov.
br/Noticia/sejus-inaugura-primeira-unidade-prisional-exclusiva-e-de-
-referencia-a-populacao-lgbti>. Acesso em 09 de jul. 2021.

HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis, RJ: Vozes,


2017.

JORNAL DA USP. Além da discriminação e violência, população


trans sobrevive aos transtornos psicológicos. 02/03/2021. Disponí-
vel em: <https://jornal.usp.br/atualidades/alem-da-discriminacao-e-
-violencia-populacao-trans-sobrevive-aos-transtornos-psicologicos/>
Acesso em 09 de jul. 2021.

MACKAY, Christopher S. The Hammer of Witches. A complete trans-


lation on the Malleus Maleficarum. Cambridge/UK, Cambridge Univer-
sity Press, 2006.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 85


NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Con-
trapondo, 2008.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),


1948. Disponível em: < https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/
por.pdf>. Acesso em 09 de jul. 2021.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal [livro eletrônico]:


teoria e prática. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Um princípio para a execução pe-


nal: numerus clausus. Revista Liberdades, São Paulo, n. 15, p. 104-120,
jan./abr.. 2014.

ROXIN, Claus. Dependencia e independencia del derecho penal


con respecto a la política, la filosofía, la moral y la religión. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 59, p. 5-24, jan./dez.. 2006.

SÁ, Alvino Augusto de. Desafios da execução penal frente aos


processos de construção da imagem do inimigo. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, n. 99, p. 215-238, nov./dez. 2012.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Radical - 3ª Ed. Curiti-


ba: ICPC: Lumen Juris, 2008.

SANTOS, Marcel Ferreira dos; ÁVILA, Gustavo Noronha de. En-


carceramento em massa e estado de exceção: o julgamento da ação
de descumprimento de Preceito Fundamental 347. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. vol. 136. ano 25. p. 267-291. São Paulo: Ed. RT, out.
2017.

SERRA, Victor Siqueira. “Pessoa afeita ao crime”: criminalização


de travestis e o discurso do Tribunal de Justiça de São Paulo. São Paulo:
IBCCRIM. 2019. p. 107.

86 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


SHECAIRA, Sérgio Salomão. A construção do tipo penal. Fascícu-
los de ciências penais, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 115-128, jan./fev.. 1993.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Re-


vista dos Tribunais, 2014.

SOTERO, Ana Paula da Silva. et al. O encarceramento da popula-


ção LGBTQI+ e o contexto de pandemia do Covid-19. In: Execução penal
e direitos humanos em tempos de pandemia. Coord. Paulo Silas Filho e
Anne Cobbe. 1ª Ed. Florianópolis: Habitus. 2021.

TRANSGENDER EUROPE AND CARSTEN BALZER.Transgender


murder monitoring. 2021. Disponível em: <https://transrespect.org/
en/map/trans-murder-monitoring/>. Acesso em 09 de jul. 2021.

VIDAL, Júlia Silva. Criminalização operativa: travestis e normas de


gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Federal de Mi-
nas Gerais, 2020.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 87


88 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
ENCARCERAMENTO
SOLITÁRIO: EFEITOS
BIOPSICOLÓGICOS E
JURÍDICOS
Rafael Barros Bernardes da Silveira
Jamilla Monteiro Sarkis
Beatriz Vasconcelos Coelho Melo

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 89


90 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
ENCARCERAMENTO SOLITÁRIO: EFEITOS
BIOPSICOLÓGICOS E JURÍDICOS

Rafael Barros Bernardes da Silveira18


Jamilla Monteiro Sarkis19
Beatriz Vasconcelos Coelho Melo20

INTRODUÇÃO

Escuridão. Silêncio. Solidão.


Talvez sejam estas as primeiras palavras que vêm à mente quando
se pensa no encarceramento solitário, modalidade de sanção aplicável
às pessoas privadas de liberdade pela prática de faltas disciplinares
graves ou inclusas no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
Conforme regulamenta a Lei de Execução Penal (LEP), o indivíduo
pode ser isolado, por vinte e duas horas diárias, em cela individual.
Caso o isolamento seja decorrente da RDD, a situação é ainda
pior: a partir das mudanças inseridas pelo Pacote Anticrime (Lei n°
13.964/2019) na LEP, aumentou-se substancialmente o prazo máximo
de submissão ao Regime de um para dois anos. Além disso, consignou-
se a possibilidade de prorrogação sucessiva, por períodos de um ano,
mediante indícios de que o preso represente risco para a ordem ou
a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, ou de que
mantenha vínculos com organização criminosa.
Diante dessa realidade, o artigo se propõe a examinar, a
partir de pesquisa bibliográfica e legislativa, a inadmissibilidade

18 Doutorando e Mestre em Direito pela UFMG. Mestre em Direito pela Universidade


Federal de Minas Gerais. Analista Executivo de Defesa Social do Estado de Minas
Gerais.
19 Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (Bolsa PROEX/CAPES).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora Adjunta
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em Minas Gerais. Advogada Penalista.
20 Pós-Graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica. Graduada
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Diretora de Pesquisa da
Comissão Jovem do Instituto de Ciências Penais. Advogada Penalista.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 91


no ordenamento jurídico brasileiro do encarceramento solitário.
Para tanto, utiliza-se da pesquisa interdisciplinar para demonstrar,
empiricamente, a relação entre a adoção do encarceramento solitário
e o adoecimento da população prisional.
As diversas repercussões biopsicológicas do encarceramento
solitário serão analisadas, ainda, sob a ótica da legislação nacional
e dos documentos internacionais de direitos humanos ratificados
pelo Brasil. Para isso, será promovida uma reflexão sobre os
textos da Lei de Execução Penal, das Diretrizes Básicas de Política
Criminal e Penitenciária do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária, da Constituição da República de 1988, das Regras
Mínimas para o Tratamento de Pessoas Presas, dos Princípios Básicos
Relativos ao Tratamento de Pessoas Presas e da Convenção Contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis.
Ao final, espera-se concluir pela incompatibilidade do modelo
penitenciário centrado no isolamento do detento com a ordem jurídica
brasileira. Isto, em razão de seu caráter criminógeno, que inabilita o
indivíduo para o retorno ao convívio social e lhe impõe danos à saúde
física e mental.

1 ENCARCERAMENTO SOLITÁRIO NA LEI BRASILEIRA

O encarceramento solitário é prática punitiva adotada pelo


Estado brasileiro desde os seus primeiros instrumentos jurídicos
penitenciários (ROIG, 2018, e-book). Ainda no Código Penal de 1890,
estava prevista a modalidade de prisão celular, a ser cumprida com
isolamento e trabalho obrigatório e que não poderia exceder um ano.
Durante a Ditadura Militar, foi importante instrumento de punição
contra os indivíduos “perigosos” para a manutenção do regime (ROIG,
2018, e-book).
Mas, como escreve Luigi Ferrajoli, “a crueldade das penas não
pertence, infelizmente, de forma exclusiva, ao passado” (2014, p.
355). Atualmente, sua previsão legal está na seção da LEP que trata
“da disciplina” no ambiente carcerário, consistente “na colaboração

92 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus
agentes e no desempenho do trabalho” (artigo 44).
Em termos práticos, a Lei prescreve a submissão das pessoas
privadas de liberdade a um regulamento que cumpre três funções:
determinar as condutas proibidas, impor as sanções aplicáveis no caso
das transgressões e delimitar o procedimento de apuração e aplicação
das reprimendas21. As faltas, nos termos do artigo 49, classificam-se
em leves, médias e graves, cabendo aos Estados a previsão e sanção
das duas primeiras e, à LEP, a tutela da última.
Sobre as faltas graves, a norma federal prevê oito hipóteses nas
quais o condenado à pena privativa de liberdade ou o preso provisório
pratica falta grave (artigo 50): incitar ou participar de movimento
para subverter a ordem ou a disciplina; fugir; possuir, indevidamente,
instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; provocar
acidente de trabalho; descumprir, no regime aberto, as condições
impostas; inobservar os deveres de obediência aos servidores e
execução dos trabalhos e ordens recebidas; ter em sua posse, utilizar
ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a
comunicação com outros presos ou com o ambiente externo; e recusar
submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético. Já
para os condenados à pena restritiva de direitos, tipifica como graves
as seguintes faltas (artigo 51): descumprir, injustificadamente, a
restrição imposta; retardar, injustificadamente, o cumprimento
da obrigação imposta; e inobservar os deveres de obediência aos
servidores e execução dos trabalhos e ordens recebidas.
Como sanções, o artigo 53 elenca as possibilidades de: advertência
verbal; repreensão; suspensão ou restrição de direitos; isolamento na

21 Embora a LEP apresente diretrizes gerais sobre a formatação do sistema disciplinar


penitenciário - prevendo, inclusive, as faltas consideradas graves e as sanções cabíveis
na eventualidade da prática delas – é importante ressaltar que são os Estados da
Federação que estabelecem seus próprios regulamentos, vigentes em suas respectivas
Unidades Penitenciárias. No caso do Estado de Minas Gerais, o documento que trata
da matéria é o Regulamento e Normas de Procedimentos do Sistema Prisional de
Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2016).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 93


própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam
alojamento coletivo; e inclusão no Regime Disciplinar Diferenciado.
Por sua vez, o Regime Disciplinar Diferenciado está previsto no
artigo 52 e se aplica quando ocorre a prática de crime doloso – fato que
também constitui falta grave – que ocasiona subversão da ordem ou
disciplina internas. Suas características, muitas incluídas pelo Pacote
Anticrime, são: duração máxima de até dois anos, sem prejuízo de
repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie; recolhimento
em cela individual; visitas quinzenais, de duas pessoas por vez, a serem
realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e
a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro,
autorizado judicialmente, com duração de duas horas; direito do preso
à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol, em grupos de
até quatro presos, desde que não haja contato com presos do mesmo
grupo criminoso; entrevistas sempre monitoradas, exceto aquelas
com seu defensor, em instalações equipadas para impedir o contato
físico e a passagem de objetos, salvo expressa autorização judicial em
contrário; fiscalização do conteúdo da correspondência; e participação
em audiências judiciais preferencialmente por videoconferência,
garantindo-se a participação do defensor no mesmo ambiente do
preso.
O mesmo artigo 52 possibilita a aplicação do RDD também aos
presos provisórios ou condenados que: apresentem alto risco para
a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade;
e sob os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou
participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação
criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta
grave. Caso existam indícios de que o preso exerce liderança em
organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, ou
que tenha atuação criminosa em dois ou mais Estados da Federação,
o regime disciplinar diferenciado será obrigatoriamente cumprido
em estabelecimento prisional federal. Além disso, o RDD poderá
ser prorrogado sucessivamente, por períodos de um ano, existindo
indícios de que o preso: continua apresentando alto risco para a ordem

94 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


e a segurança do estabelecimento penal de origem ou da sociedade; ou
mantém os vínculos com organização criminosa, associação criminosa
ou milícia privada, considerados também o perfil criminal e a função
desempenhada por ele no grupo criminoso, a operação duradoura do
grupo, a superveniência de novos processos criminais e os resultados
do tratamento penitenciário.
Observa a literatura jurídica - a exemplo de Ifanger, Zucato Filho
e Massaro (2020, p. 24) - que a origem do RDD está ligada a uma série de
rebeliões ocorridas no sistema penitenciário dos Estados de São Paulo
e Rio de Janeiro, nos anos de 2001 e 2002, lideradas por organizações
criminosas e cujas repercussões geraram grande temor na sociedade.
A perspectiva de imposição de um modelo penitenciário mais rigoroso
surgiu, portanto, em resposta a esses movimentos, na tentativa de
desarticular as atividades organizadas dos detentos.
No Estado paulista, a primeira experiência do Regime
foi realizada a partir da edição de Resoluções da Secretaria de
Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, nos anos de 2001
e 2002. Essas normativas impunham aos presos integrantes de facções
criminosas ou que representassem risco para o estabelecimento penal
um regime de exceção, com isolamento carcerário e limitações quanto
à realização de visitas e de entrevistas com seu advogado, em termos
semelhantes aos que viriam previstos na Lei n° 10.792/03 (CARVALHO;
FREIRE, 2004, p.14).
A experiência fluminense foi semelhante. Naquele estado, o
regime excepcional de cumprimento de pena foi inaugurado em 2002,
após a ocorrência de rebelião no Presidio de Bangu I, liderada por
Fernandinho Beira Mar. Tão logo encerrado o movimento, os líderes
da rebelião foram isolados e os demais foram inseridos no Regime
Disciplinar Especial de Segurança (CARVALHO; FREIRE, 2004, p.16).
Em 2003, a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro
generalizou a medida para outras Unidades Penitenciárias.
A transformação do RDD, de instituto excepcional - adotado
por iniciativa do Poder Executivo em dois estados da Federação em
resposta a gravosas rebeliões - para modelo normativamente previsto

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 95


em Lei Federal, não tardou a ocorrer. Em 2003, atendendo aos anseios
populares, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou
projeto de Lei, que deu origem à Lei n° 10.792/03.
Há um ponto bastante interessante sobre este cenário da
gênese do instituto – verdadeiramente, uma trágica ironia. Trata-
se da motivação por trás das rebeliões ocorridas no Estado de São
Paulo à época, que serviram de pretexto para a adoção do regime
disciplinar excepcional aqui em exame: o movimento de revolta
dos presos, diferentemente do que vinha ocorrendo até então, não
tratou de reivindicar apenas mudanças nas condições carcerárias –
lotação, salubridade, habitabilidade, alimentação, visitas familiares
etc. Para além destas pautas, um dos principais pleitos do movimento
revoltoso foi o retorno, para o Complexo do Carandiru, de detentos
que integravam o Primeiro Comando da Capital (PCC) e haviam sido
transferidos para o Anexo da Casa de Custódia de Taubaté.
No referido Anexo, as regras disciplinares eram extremamente
severas, contemplando a permanência dos presos em isolamento na
cela por vinte e três horas diárias (CARVALHO; RUSSOMANO, p.14).
Ou seja: ao reivindicar o abandono de uma medida excepcional de
isolamento, tida como inaceitável, a população carcerária revoltosa
acabou tendo tal prática não só formalizada, como ampliada para todo
o território nacional.
Com efeito, para a doutrina, a essência do RDD é insustentável
no Estado Democrático de Direito22: afinal, trata-se da imposição de
castigo dentro do castigo (ALEIXO; PENIDO, 2020, p. 268). Conforme
assinala Rodrigo Duque Estrada Roig (2018, e-book), a “modernidade”
deste Regime oculta a assunção dos mesmos paradigmas imperantes

22 Exatamente por isso, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou, em 2008,
com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n° 4.162), considerando que o
RDD atenta contra a dignidade da pessoa humana, contra a vedação à tortura e ao
tratamento desumano ou degradante e contra a proibição de penas cruéis. Até então,
a ação aguarda julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, sendo certo que a Lei n°
13.964/19 acrescentou novas inconstitucionalidades ao já extenso rol. Nesse sentido:
PENIDO; ALEIXO, 2020, p. 288.

96 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


no sistema penal brasileiro do século XIX – discursos alarmistas,
periculosistas e típicos de regimes de exceção.
O retrocesso se mostra ainda mais patente quando analisado
pela ótica da Constituição da República de 1988, que consagra o
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III). O RDD,
em suas características elementares, impõe às pessoas privadas
de liberdade condições não apenas excessivamente rigorosas, mas
cruéis e desumanas. Não restam, portanto, dúvidas de que o objetivo
do instituto é “aniquilar, definitivamente, o apenado enquanto ser
humano” (ALEIXO; PENIDO, 2020, p. 288).
A seguir, buscar-se-á conhecer a forma como o recrudescimento
penal reflete sobre a pessoa privada de liberdade, em especial naquilo
que se refere a sua saúde. Pretende-se, com isso, questionar: apesar
de ser uma realidade no ordenamento jurídico brasileiro, quais as
repercussões biopsíquicas do encarceramento solitário?

2 EFEITOS BIOPSICOLÓGICOS DO ENCARCERAMENTO


SOLITÁRIO NA PESSOA PRIVADA DE LIBERDADE

O sistema de confinamento solitário, ainda com toda controvérsia


que o cerca, não é regime adotado exclusivamente no Brasil; em
verdade, é posto como meio de manter a ordem e a segurança dentro
da penitenciária e usado como punição para detentos que violam as
regras em diversas cadeias também nos Estados Unidos da América
(VENTERS et al, 2014, p. 442) e em países europeus. Apesar disto, em
outros países, sua utilização não acontece de forma acrítica, sendo
objeto de debate no meio jurídico e também interdisciplinar.
A adoção de um sistema punitivo administrativo em que o detento
se vê recolhido por vinte e duas horas diárias, com extensivo sistema
de controle e de vigilância, sem qualquer contato social (METZNER,
FELLNER, 2010, p. 104) é amplamente questionado ao redor do mundo,
em especial pela evidente reverberação deste na saúde física e mental
de quem está submetido a este regime. Não há como conceber que

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 97


tamanha restrição de deslocamento, de luminosidade e de interação
não vá influenciar nas respostas psicológicas e corporais do indivíduo.
Por óbvio, é impossível qualquer presunção de generalidade
absoluta, até mesmo porque pessoas podem reagir de formas muito
diversas ao confinamento solitário (SMITH, 2006, p. 474). Ainda assim,
o que se vê nos mais diversos estudos concretizados sobre a análise
biopsicológica dos detentos que passaram pelo confinamento solitário
é um padrão de respostas absolutamente negativas. A seguir, serão
analisados alguns deles.
Foi realizada pesquisa pelos agentes do Departamento de Saúde
e Higiene Mental da Cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, entre
1° de janeiro de 2010 e 31 de janeiro de 2013, por meio da análise dos
dados médicos de 244.699 pessoas recolhidas no sistema penitenciário
local. O objetivo da pesquisa era compreender as atitudes de
automutilação praticadas pelos que estavam recolhidos dentro destes
estabelecimentos.
Após a coleta de dados, concluiu-se que, a cada mil dias de
reclusão, os que estavam submetidos ao regime de confinamento
individual possuíam um risco 3,2 vezes maior de automutilação do
que os que não estavam submetidos a este regime. Destes em regime
solitário, as chances de cometimento de atos de auto violação foram 2,1
vezes maiores nos dias em que estavam em confinamento individual
e 6,6 vezes mais prováveis nos dias em que não estavam submetidos a
esta punição (VENTERS, 2014, p. 444). Não foram incomuns, ainda, os
casos em que as automutilações resultam em suicídios, que são mais
frequentes em estabelecimentos prisionais que adotam a solitária
do que nos que não determinam esta forma de punição (METZNER,
FELLNER, 2010, p. 105).
A maior probabilidade de automutilação após a saída do tempo
de reclusão pode se dar por diversas razões, desde o maior número
de possibilidades e de instrumentos para tal, como pela incapacidade
de se adaptar a um ambiente social após tanto tempo de solidão. O
que se vê, independente da razão, é que o tempo de isolamento afeta
de forma muito intensa não somente o comportamento com os

98 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


demais detentos, como também a percepção deles mesmos, tanto
que 91,7% dos suicidas estavam em celas solitárias (MENDLOWICZ;
FONTENELLE; MECLER, 2004, p. 253) antes de darem fim à própria
vida.
Os danos não se limitam à automutilação, sendo comum
também a ocorrência de outros efeitos psicológicos, como ansiedade,
pensamentos obsessivos e psicoses (METZNER, FELLNER, 2010, p.
104). Em múltiplas ocasiões, estes fatores psicológicos acabam por
refletir na saúde física dos que são punidos. Dores abdominais, dores
musculares e pressões, no pescoço e nas costas, além de diarreia
também foram citadas como sintomas vividos em razão do tempo de
isolamento (SMITH, 2006, p. 489).
Estudos clínicos apontam, igualmente, que de 15% a 20%
precisam de intervenção de medicamentos psiquiátricos durante o
encarceramento (METZNER, FELLNER, 2010, p. 105), de modo que,
ainda com as diferenças evidentes entre as populações prisionais
de países diferentes, mostra-se razoável a conclusão que questões
psiquiátricas são mais perceptíveis como a causa de morte de um
maior número de detentos recolhidos em unidades prisionais que
adotam a “solitária” em comparação ao total de pessoas encarceradas
(SMITH, 2006, p. 455).
Existem, por outro lado, análises mais psicológicas que
envolvem a possibilidade de que o indivíduo, ao ser submetido ao
isolamento e à privação de convívio social, pode ter sua percepção
de humanidade diminuída (GUENTHER, 2013, p. 34). Tendo por base
o fato de que as construções são determinadas pela sociedade, bem
como a consciência de ser e o pertencimento aos grupos sociais, o
confinamento não somente acaba por punir o indivíduo, mas também
por afetar seu poder cognitivo e sua consciência. Os resultados acima
mencionados refletem uma realidade social cruel e devastadora, em
que a imposição de uma sanção disciplinar pode causar danos à saúde
do detento de forma severa e, em alguns casos, irreversíveis.
Outro fato constatado pela pesquisa realizada pelos agentes do
Departamento de Nova Iorque está relacionado com características

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 99


pessoais dos presos que mais sofrem dos males causados pelo regime
de isolamento: os detentos hispânicos ou brancos eram revelaram
maior probabilidade de automutilação - leves ou que levariam à
morte - quando comparados aos detentos negros que possuíam
as mesmas condições de saúde mental e com o mesmo tempo de
reclusão (VENTERS et al, 2014, p. 444), o que mostra uma provável raiz
escravagista de aceitação da limitação da liberdade do sofrimento a
ser imposto pelo Estado.
A situação se mostra mais grave na análise dos detentos que
possuem alguma doença mental preexistente e que são inseridos
em regime de confinamento como punição. Ainda que os efeitos na
integridade física e psicológica independam da comprovação anterior
de qualquer enfermidade, as consequências do isolamento aos que
já tem predisposição para desenvolver transtornos psicológicos pode
causar sintomas severos, inclusive alucinações (SMITH, 2006, p. 482).
Os estudos evidenciam que, independente da condição do
recolhido antes da imposição da sanção disciplinar, o confinamento
individual acaba por estimular condutas violentas ou perturbadoras
da ordem dentro dos sistemas penitenciários ao causar ou estimular
danos psicológicos severos.
Aos que já possuem algum tipo de deficiência mental, a má
conduta que originou o castigo pode ter relação direta com a condição
e, nestes casos, a manutenção do isolamento pode acontecer sem que
exista definição ao seu fim (METZNER, FELLNER, 2010, p. 105). Ainda,
aos que não possuem sofrimento anterior, as condições psíquicas após
a experiência são diretamente afetadas, fazendo com que acabem
cometendo novas infrações e, assim, resultando em um tempo maior
de solidão (VENTERS et al, 2014, p. 446).
Cria-se, com a submissão do detento às condições de isolamento
tão severas, um ciclo de infrações e de afastamento, em que quanto
mais tempo passa na “solitária”, mais são estimulados os efeitos
negativos e mais complexo se torna o convívio coletivo. O que se
prestava, inicialmente, a ser uma correção pontual, acaba por causar
um efeito reverso muito pior, não somente por gerar lesões evidentes

100 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


na integridade do detento e por tumultuar a unidade prisional, mas
também pelos gastos do Estado com medidas não efetivas.
Os problemas são mais presentes nas prisões conhecidas
como supermax. Em um sistema aproximado ao Regime Disciplinar
Diferenciado, estes estabelecimentos do sistema prisional são os mais
seguros dos Estados Unidos, prevalecendo o isolamento dos presos e a
ausência de interação social em 23 das 24 horas do dia - até mesmo as
refeições são feitas de forma solitária. O sistema de disciplina interna
é tão rígido quanto a proteção contra fugas, com guardas armados
e as visitas realizadas pela separação com vidro entre o detento e o
visitante. Os presos passam a maior parte do tempo algemados quando
estão fora de suas celas e sem acesso a aulas ou a oportunidades de
emprego, privados do mínimo contato social.
Nestes modelos, o isolamento não assume uma posição de
sanção administrativa: são o cotidiano dos que estão recolhidos dentro
deste sistema por serem considerados muito “perigosos” à sociedade.
Exatamente pelo longo tempo período de segregação, discute-se não
somente a existência de danos físicos e psicológicos, mas a violação
estrita de direitos humanos. No sistema de segurança máxima, os
números de problemas psicológicos causados pelo extremo tempo
de solidão são alarmantes: 91% dos presos sofrem de transtorno de
ansiedade e nervosismo, 77% foram diagnosticados com depressão
crônica e70% se sentem no limite de um breakdown emocional (SMITH,
2006, p. 480).
Há quem aponte a falta de preparo dos profissionais de saúde
em reconhecer e tratar situações de violação de direitos básicos, em
especial para compreender a extensão dos problemas que podem
ser causados, necessitando de um sério esforço educacional para um
melhor entendimento (METZNER; FELLNER, 2010, p. 106). Existem,
ainda, pesquisas que apontam a falha do sistema supermax na
manutenção da segurança e da disciplina dentro do sistema prisional
(SMITH, 2006, p. 443), que seria o principal fundamento a suportar a
existência e a utilização deste regime mais gravoso de cumprimento
de pena.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 101


Não se olvida, oportunamente, dos recursos limitados ao sistema
penitenciário, em especial pela falta de apoio popular nos investimentos
no tratamento de prisioneiros (METZNER, FELLNER, 2010, p. 105),
que afetam também a comunidade médica que deveria acompanhar
os que estão reclusos no cárcere. É, inclusive, um fato - não somente
no Brasil - a relutância do reconhecimento da inconstitucionalidade
do sistema mais duro de encarceramento (SMITH, 2006, p. 444)23.
Estes, no entanto, não servem como fundamento para a adoção de um
sistema punitivo que viola a saúde biopsicológica dos indivíduos que
se encontram recolhidos.
Sendo assim, parece intransponível o limite biopsicologico
quando o assunto é encarceramento solitário. Não se pode ignorar os
efeitos gerados por tal sanção à saúde da pessoa privada de liberdade,
porquanto existentes, comprovados e conhecidos. Nos resta, agora,
somar aos argumentos das ciências da saúde aqueles extraídos da
ciência do direito.

3 INADMISSIBILIDADE DO ENCARCERAMENTO
SOLITÁRIO NO ESTADO DE DIREITO

Os danos causados à saúde física e mental da pessoa privada


de liberdade, derivados do encarceramento solitário, tornam essa
modalidade de sanção disciplinar incompatível com o Estado de Direito.
O cumprimento indigno e insalubre da pena é inadmitido na ordem
jurídica brasileira, por força dos instrumentos legais promulgados
internamente e da ratificação de documentos internacionais.
Aqui, serão analisados cada um destes textos. Com isso,
pretende-se encontrar o amparo jurídico à hipótese empiricamente
comprovada no tópico anterior.

23 A ausência de julgamento, por parte do Supremo Tribunal Federal, das


inconstitucionalidades na LEP, tem “consolidado um estado de autorizado menoscabo
dos direitos básicos das pessoas presas no país” (ALEIXO; PENIDO, 2020, p. 289).

102 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


3.1 LEI DE EXECUÇÃO PENAL

Incialmente, o exame da Lei de Execuções Penais permite


afirmar, com convicção, que o modelo penitenciário brasileiro não se
compatibiliza com a adoção da prática do encarceramento solitário.
Logo em seu artigo 1º, prescreve que é objetivo da LEP, além da
efetivação de decisões criminais, “proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado e do internado”.
É fato que existe grande controvérsia em torno da identificação
das finalidades previstas para a pena no modelo punitivo brasileiro
(NETTO, 2009). Há, todavia, relativo consenso na doutrina sobre o teor
da prescrição constante no referido artigo 1º: trata-se de promover
a ressocialização do apenado, oferecendo-lhe as condições para sua
reintegração à vida em liberdade. Seria este, portanto, o propósito
que orienta e justifica a intervenção estatal, impondo para o Estado
o dever de insistir, de dotar o preso de opções e alternativas – ou, nos
termos da legais “proporcionar condições” - para que se ele se envolva
no processo de reintegração social (SILVEIRA, 2019, p. 156).
Nesse sentido, parece claro que a adoção de medidas que
não contribuam para o alcance do referido objetivo ou dificultem
sua consecução torna-se inadmissível. Mais que isso, mostra-se
incompatível – em uma lógica sistêmica – com as demais disposições
da LEP cuja função é promover a reintegração social: a adoção de
um modelo progressivo de privação de liberdade que consagra a
excepcionalidade da prisão e vai, paulatinamente, restabelecendo o
contato do detento com o mundo exterior; os direitos ao trabalho e ao
estudo; a permanência em local próximo da família e o direito a visitas
periódicas; o apoio especializado em assistência social e o acesso à
informação; entre outros.
Igualmente, o encarceramento solitário mostra-se inadequado
a partir da perspectiva de responsabilidade estatal pela saúde das
pessoas privadas de liberdade. Afinal, se a LEP garante aos detentos o
direito à saúde (artigos 14 e 41, VII), não pode permitir a aplicação de

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 103


sanções que causem, direta ou indiretamente, seu adoecimento físico
e mental.

3.2 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

Por sua vez, o texto constitucional apresenta diversos princípios24


dedicados à definição de limites para a intervenção estatal junto à
liberdade do cidadão. Destes, vale ressaltar os que estabelecem a
vedação da tortura e do tratamento desumano ou degradante contra os
delinquentes (artigo 5, III), a impossibilidade de imposição de penais
cruéis (artigo 5º, XLVII) e a obrigatoriedade de assegurar o respeito à
integridade física e moral do público privado de liberdade (artigo 5º,
XLIX).
Em concreto, a previsão infraconstitucional do encarceramento
solitário coloca em risco tais postulados. Os efeitos nocivos dele
decorrentes, estudados interdisciplinarmente no tópico anterior,
permitem afirmar tratar-se de tratamento desumano e degradante, que
submete o detento a humilhação desmedida, ofende sua integridade
moral e se caracteriza como prática de tortura.
Decerto, não se esgotam aqui as contradições entre essa
forma de sanção disciplinar e os comandos constitucionais. É de se
notar, ademais, o flagrante desrespeito a outros princípios penais
constitucionais, postulados de limitação do exercício punitivo: a
legalidade e a proporcionalidade.
O princípio da legalidade está previsto no 5º, XXXIX da
Constituição da República de 1988 e determina que “não há crime
sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Efetivamente, seu conteúdo contempla várias dimensões: a exigência
da reserva legal (a necessidade de previa cominação do crime e da
pena), da taxatividade (a imposição de que a previsão legal se dê

24 Importante registrar que, na execução penal, “os princípios são também meios
de limitação racional do poder punitivo executório do Estado sobre as pessoas
condenadas” (ALEIXO; PENIDO, 2018, p. 165).

104 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


por expressões claras, certas e precisas) e da anterioridade (sendo
oponíveis ao cidadão somente as leis que antecedem suas condutas).
Especificamente naquilo que se refere à taxatividade, o
encarceramento solitário representa grave ofensa. Isto porque sua
imposição se realiza como como medida sancionatória, diante da
prática de falta disciplinar por parte do detento ou de sua inclusão em
Regime Disciplinas Diferenciado.
Ocorre que, nas condutas ensejadoras da aplicação das
reprimendas disciplinares, previstas como falta grave, notam-se
expressões imprecisas, polissêmicas e vagas como por exemplo
“incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a
disciplina” (artigo 50, I) e os deveres de “obediência ao servidor e
respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se” (artigo 50,
VI c/c artigo 39, II) e de “execução do trabalho, das tarefas e das ordens
recebidas” (artigo 50, VI c/c artigo 39, V)25.
Por outro lado, a LEP também permite a aplicação do Regime
Disciplinar Diferenciado diante de características da pessoa privada
de liberdade. Aquele que, por qualquer motivo, apresenta “risco para a
ordem e a segurança do estabelecimento penal ou para a sociedade” ou
“sob[re] o qual recai fundadas suspeitas de envolvimento e organização
criminosa” está, nos termos do artigo 52, § 1º, I e II, sujeito ao RDD.
O texto da LEP, como se nota, não é capaz de definir
satisfatoriamente o conteúdo da proibição que recai sobre o detento.
As expressões “movimento para subverter a ordem ou disciplina”,
“obediência ao servidor”, “respeito a qualquer pessoa”, “execução
das ordens recebidas”, “ordem pública” e “fundadas suspeitas” são
genéricas e podem dar ensejo a um sem número de indagações:

25 Klélia Aleixo e Flávia Penido indicam outra possibilidade de ofensa à legalidade


(especificamente, à taxatividade) que se relaciona com as faltas graves: “A fuga
constitui falta grave. Neste ponto, convém destacar considerado que é fuga quando
o apenado deixa regularmente o estabeleci mento prisional em saída temporária
ou para trabalho _ ou estudo e não retorna. E possível a defesa argumentar que tal
conduta não configura fuga, pois, o apenado deixou o estabelecimento prisional com
autorização para tanto, e o não retorno não está listado na LEP como falta grave.
Considerando o princípio da legalidade, a conduta seria atípica em relação a falta
grave” (2020, p. 272).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 105


caberia a invocação de tal proibição em face de qualquer conduta
praticada pelo detento que se opusesse à vontade de outrem?
Independentemente do conteúdo do comando, do motivo de sua
objeção ou mesmo da maneira de manifestá-lo? Ademais, que tipo de
conduta seria necessária para ser considerada um movimento para
subverter a ordem? O que seria ordem pública? Quais os elementos
a partir dos quais se poderia suspeitar do envolvimento do preso em
organização criminosa?
Diante destas e de outras possíveis dúvidas, é impossível exigir
da pessoa privada de liberdade que preveja ou compreenda conteúdo
da proibição – e, consequentemente, da sanção - a que se submete. Vez
que inequívoca a ausência de taxatividade, inadmissível a imposição
de restrições penitenciárias com base em proibições ilegítimas.
Ademais, a partir desses exemplos, nota-se a faceta de “direito
penal do inimigo” no instituto do Regime Disciplinar Diferenciado,
identificada por Busato (2004) e Carvalho e Russomano (2006). O
escopo do instituto, sob tal perspectiva, é impor restrições que estão
dirigidas a determinada classe de autores, e não a condutas proibidas.
A ideia é identificar e neutralizar o inimigo, aquele que merece punição
simplesmente por ser quem é - indivíduo perigoso, que oferece risco
ou que integra o crime organizado.
O segundo princípio ofendido pela imposição do encarceramento
solitário é o da proporcionalidade, a partir do qual – segundo Jésus-
Maria Silva Sánchez (1992, p. 260) – se conectam os fins do Direito
Penal com a conduta ilícita praticada, afastando a possibilidade de
cominações legais ou imposição de penas que careçam ou excedam a
reação valorativa do fato. Por isso, quanto mais grave a conduta, maior
deve ser a sanção; daí a previsão de modalidades distintas de delito –
crimes e contravenções penais – com penas diferentes, a depender da
gravidade da lesão ou ofensa a bem jurídico perpetrada.
Essa imposição, todavia, não parece ser levada em conta
no Regime Disciplinar Diferenciado. Em concreto, a prática das
genéricas e imprecisas condutas de subversão da ordem ou da disciplina;
inobservância de deveres de obediência e desrespeito a qualquer pessoa dão

106 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


ensejo à aplicação de uma reprimenda que consiste na sujeição ao
isolamento carcerário por até dois anos, para além de outras restrições
rigorosas.
Vale lembrar que tais disposições se aplicam até mesmo a
detentos que cumprem pena em regime semiaberto e a presos
preventivos: trata-se, enfim, de uma pena dentro da pena, em regime
permanentemente fechado, como consequência da prática de atos
cuja lesividade é questionável e a delimitação é imprecisa.
As objeções aqui levantadas representam um vigoroso rol de
contradições entre os institutos em exame e o ordenamento jurídico
pátrio. Contudo, a problemática não se encerra em tal esfera. Há de se
evidenciar, ainda, a incompatibilidade do encarceramento solitário e
do Regime Disciplinar Diferenciado com um arcabouço de diplomas
internacionais aos quais o Brasil se submeteu, o que se fará na
sequência.

3.3 INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

A situação do confinamento individual é tão relevante que já foi


assunto de discussões em diversos países, em decorrência dos diversos
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que
vedam, expressamente, essa forma de punição.
Ainda em 1955, as Regras Mínimas para o Tratamento de Pessoas
Presas adotadas pelo 1º Congresso da Organização das Nações Unidas
(ONU) sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes,
realizado em Genebra, em 1955, e revisadas em 2015. Definidas com
o objetivo de estimular o esforço constante dos Estados com vistas à
superação das dificuldades práticas que se opõem a sua aplicação, a
chamada “Regras de Mandela” proibiram, em absoluto, punições por
faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura e
todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes (regra 31).
Especificamente naquilo que se refere ao encarceramento
solitário, a regra 43 deste diploma veda a imposição de confinamento

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 107


solitário prolongado e por tempo indefinido – bem como veda a
utilização de tortura ou outra forma de tratamento cruel, desumano
ou desagradável. Na sequência, a regra 44 conceitua o encarceramento
solitário e determina um prazo limite para a imposição da reprimenda.
Válida, neste caso, a transcrição integral do dispositivo: “o confinamento
solitário refere-se ao confinamento do recluso por 22 horas ou mais,
por dia, sem contato humano significativo. O confinamento solitário
prolongado refere-se ao confinamento solitário por mais de 15 dias
consecutivos”.
Veja-se que, de acordo com o claro texto das “Regras de Mandela”,
o encarceramento solitário que ultrapassa 15 dias consecutivos é
inaceitável, ilegítimo e autoritário. Havendo, pois, excesso à esfera do
tolerável, com consequente sofrimento injustificável ao detento, pode
ser classificado como ato de tortura, ou tratamento cruel, desumano
ou degradante (OLIVEIRA, 2016, p.98).
Interessante notar que, ao apresentar o texto atualizado das
“Regras de Mandela” para a população, o então presidente do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e Ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Ricardo Lewandowski ressaltou que, mesmo com a participação
ativa do governo brasileiro nas negociações para a elaboração do
documento, seus termos não repercutiram sobre as políticas públicas
do país. Apontou, ainda, ser este um sinal de quanto o Brasil carece de
fomentar as normas de direito internacional de direitos humanos26.
No mesmo sentido das “Regras de Mandela”, os Princípios
Básicos Relativos ao Tratamento de Pessoas Presas, promulgados pela
Assembleia Geral da ONU em 1990, determinaram que os Estados
devem empreender esforços tendentes à abolição ou restrição do
regime de isolamento, como medida disciplinar ou de castigo. Para
isso, considera que todos os reclusos devem ser tratados com o respeito
devido à dignidade e ao valor inerentes ao ser humano.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU também já concluiu
que o confinamento solitário pode levar a um tratamento cruel,

26 Disponível em: https://bit.ly/3v8L1Hq. Acesso em 17 mai. 2021.

108 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


desumano ou degradante, em violação à Convenção Contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes
(METZNER, FELLNER, 2010, p. 105). Em parecer lavrado pelo Juan E.
Méndez - Relator Especial do Conselho da ONU de Direitos Humanos
em relação à tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos
ou degradantes – reconheceu, expressamente, que “[p]eríodos longos
de isolamento não contribuem para a reabilitação ou ressocialização
dos presos”. Consignou, ainda, que “[o]s efeitos psicológicos e
fisiológicos negativos, sejam eles agudos ou latentes, decorrentes do
isolamento prolongado representam uma grave dor ou sofrimento
mental” (BAQUEIRO, 2017, p. 203).
Assim também se manifesta a Anistia Internacional. Em alguns
de seus relatórios – focados exclusivamente em questões carcerárias – o
organismo já denunciou a desumanidade do encarceramento solitário
praticado em países como Vietnã27, Síria28 e Egito29. Neste último país,
o relatório descreveu a utilização do encarceramento solitário como
método de punição aplicado a presos com afiliação política, pelo prazo
máximo de seis meses, e considerou que esta prática configura tortura
e maus-tratos.
Resta imaginar o que diriam esses organismos sobre as legislações
internas que contrariam, expressamente, tratados e convenções
internacionais. Certamente, o encarceramento solitário previsto no
modelo legal brasileiro não passaria pelo filtro dos direitos humanos,
fundamento que consolida a sua absoluta inadmissibilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A exposição trazida demonstrou a total inadmissibilidade, na lei


brasileira, do encarceramento solitário. Evidenciou, ainda, a diretriz
a ser seguida para eventual e necessária reformulação da Lei de

27 Relatório disponível em: https://bit.ly/3bXBbAP. Acesso em 17 mai. 2021.


28 Relatório disponível em: https://bit.ly/3f2cB3B. Acesso em 17 mai. 2021.
29 Relatório disponível em: https://bit.ly/345Et09. Acesso em 17 mai. 2021. p. 115.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 109


Execução Penal: a vigorosa limitação do prazo máximo de isolamento
aos patamares indicados pelas normativas internacionais de direitos
humanos.
Os efeitos adversos do encarceramento solitário, sobretudo
na forma extrema como empregado no Brasil (especialmente no
Regime Disciplinar Diferenciado), representam medida inaceitável de
restrição da liberdade individual, que afeta, ademais, outros direitos
fundamentais do público apenado, atingindo severamente o bem estar
e a saúde daqueles que estão sob a custódia do Estado. O ordenamento
jurídico brasileiro, ao impor modalidade de “pena dentro da pena”,
revela sua desarmonia com o arcabouço de princípios que regem a
aplicação das reprimendas penais - diretrizes constitucionalmente
delimitadas e legalmente reforçadas na Lei de Execução Penal, em
favor de uma pena justa e humana.
Com tal postura, o modelo penal sacrifica sua estrutura
fundamental, a fim de oferecer uma pretensa resposta estatal à
criminalidade organizada. Abandona-se a já mitigada e pequena
chance de promoção da ressocialização - que, cumpre registrar, vem
explicitamente demarcada como objetivo a ser alcançado pelo modelo
penal -, em favor de uma política penitenciária autoritária, com efeitos
deletérios e que já se mostrou falha em diversos locais do mundo.
Este cenário impõe o levantamento de indagações que, diante
de todo o exposto, têm resposta evidentemente negativa: pode-se
renunciar à saúde mental do cidadão em nome de uma ilusão de maior
segurança social? É possível renunciar às garantias constitucionais
para impor ao apenado um sofrimento extenuante?
Se organismos internacionais já entendem que o encarceramento
solitário deve ser abolido como sistema de punição, sendo intolerável
mesmo por períodos relativamente curtos (acima de 15 dias), sua
existência como um sistema integral de cumprimento de pena,
acrescido de outras restrições (como imposto pelo RDD), se mostra
completamente inaceitável. O modelo pátrio, aqui entendido como um
sistema, não pode admitir tão aberrante contradição: contemplando
normas que indicam, de um lado, a impossibilidade de adoção de um

110 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


instituto, e, de outro, prevendo sua imposição e mesmo sua ampliação
a partir de recentes inovações legislativas.
Faz-se urgentemente necessária a revisão dos dispositivos
de imposição de encarceramento solitário no Brasil, por meio de
uma reforma que leve em conta aspectos técnicos, dogmático e
político-criminalmente, a fim de compatibilizar o modelo brasileiro
com os preceitos constitucionais e com os tratados e as diretrizes
internacionais de direitos humanos que tratam da matéria. Não se
pode admitir que clamores populares pelo embrutecimento punitivo,
diante de uma alegada “sensação de insegurança” (SILVA SÁNCHEZ,
2013, p. 40) possam influenciar os rumos da legislação penal.
Por tudo isso, resta evidente que um modelo punitivo
democrático, organizado no âmbito de um Estado Democrático de
Direito, não pode tolerar a imposição de um instituto penitenciário
que represente sofrimento físico e mental irreparável ao público
privado de liberdade. Antes de punir, parece necessário que o Brasil
aprenda como punir.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 111


REFERÊNCIAS

ALEIXO, Klélia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Execução Pe-


nal e Resistências. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

ALEIXO, Klélia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Introdu-


ção à Prática na Execução Penal: atualizado de acordo com a Lei
13.964/2019. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

AMNESTY INTERNATIONAL. Prisioners within Prisions: tortu-


re and ill-treatment of Prisioners of conscience in Vietnam. Londres,
2016. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/
ASA4141872016ENGLISH.PDF. Acesso em 17 maio 2021.

AMNESTY INTERNATIONAL. ‘It Breaks the Human’: torture,


disease and death in Syria’s prisons. Londres, 2015. Disponível em:
https://www.amnesty.org/download/Documents/MDE2445082016EN-
GLISH.PDF. Acesso em 17 maio 2021.

NISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional – Informe


2017/18: o estado dos Direitos Humanos no Mundo. Londres, 2018.
Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/in-
forme2017-18-online1.pdf. Acesso em 17 maio 2021.

BAQUEIRO, Fernanda Ravazzano Lopes. Execução Penal e o


Mito da Ressocialização: disfunções da pena privativa de liberdade.
Curitiba: Juruá, 2017.

BUSATO, Paulo Cesar. Regime disciplinar diferenciado como


produto de um direito penal de inimigo. Revista de Estudos Crimi-
nais, Porto Alegre, v. 4, n. 14, p. 137-145, 2004.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fede-


rativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 maio 2021.

112 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de
Execução Penal. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 14 maio 2021.

CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O regime


disciplinar diferenciado: notas críticas à reforma do sistema punitivo
brasileiro. In: NOTÁVEIS do direito penal: livro em homenagem ao
emérito Professor Doutor René Ariel Dotti. Brasília: Consulex, 2006.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal.


4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

FERREIRA, Fábio Felix; CUTIÑO RAYA, Salvador. Da inconstitu-


cionalidade do isolamento em cela e do regime disciplinar diferencia-
do. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n. 49, p.
251-290, jul./ago.. 2004.

GUENTHER, Lisa. Solitary confinement: social death and its af-


terlives / Lisa Guenther. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2013.

IFANGER, Fernanda Carolina Araújo; ZUCATO FILHO, Eduardo


Rezende; MASSARO, João Paulo Gomes. Reflexões sobre os malefícios
do isolamento do preso imposto pelo novo RDD. Boletim IBCCRIM,
São Paulo, v. 28, n. 330, p. 22-25, mai.. 2020.

METZNER, Jeffrey L.; FELLNER, Jamie. Solitary Confinement


and Mental Illness in U.S. Prisions: a Challenge for Medical Ethics. The
Journal Of American Academy Of Psychiatry And The Law, [S.L.], v.
38, n. 1, p. 104-108, 2010.

MENDLOWICZ, Mauro V.; FONTENELLE, Leonardo F.; MECLER,


Kátia. Transtornos de humor e violência. Psiquiatria Forense / orga-
nizado por José G. V. Taborda, Miguel Chalub e Elias Abdalla Filho –
Porto Alegre: Artmed, 2004, p. 243-256.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 113


OLIVEIRA, Antonio Carlos Moni de. Execução penal: a sanção
disciplinar de isolamento e paradigmas supralegais. Revista Magister
de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 12, n. 70, p. 94-99,
fev./mar. 2016.

Princípios Básicos Relativos ao Tratamento dos Reclusos da Or-


ganização das Nações Unidas = UN’s Basic Principles fot the Treatment
of Prisioners. 14 dez. 1990. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf.
Acesso em 16 maio 2021.

Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Re-


clusos (Regras de Nelson Mandela) = UM Standard Minimum Rules
for the Treatment of Prisioners (Nelson Mandela Rules). 17 dez. 2015.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/
a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica.


4.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. E-book.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: as-


pectos da política criminal nas sociedades pós industriais / Jesús-
-María Silva Sánchez; tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha – 3 ed.
rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013 – (Direito
e ciências afins; v. 6 / coordenação Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes,
William Terra de Oliveira).

SÁNCHEZ, Jésus-Maria Silva. Aproximación al Derecho Penal


Contemporáneo. Barcelona: Jose Maria Bosch, 1992.

SILVEIRA, Rafael Barros Bernardes da. Finalidades da pena no


ordenamento jurídico brasileiro: notas sobre a formatação de um mo-
delo justificacionista democrático. In: III Congresso de Pesquisa em
Ciências Criminais, 2019, São Paulo. Anais do Congresso de Pesquisa
em Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2019.

114 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


SMITH, Peter Scharff. The Effects of Solitary Confinement on
Prison Inmates: a brief history and review of the literature. Crime And
Justice, [S.L.], v. 34, n. 1, p. 441-528, jan. 2006. University of Chicago
Press.

VENTERS, Homer et al. Solitary Confinement and Risk of Sel-


f-Harm Among Jail Inmates. American Journal Of Public Health,
[S.L.], v. 104, n. 3, p. 442-447, mar. 2014.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 115


116 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
LEVANTAMENTO DOS
DISTÚRBIOS DO SONO EM
RECUPERANDAS DA APAC
BH: INTEGRAÇÃO ENSINO
PESQUISA E EXTENSÃO NO
PROJETO DE EXTENSÃO DA
PUCMINAS – ELAS
Eduarda Silva Mendes
Gabriela Pâmela Faust Vieira
Patrícia Dayrell Neiva

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 117


118 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
LEVANTAMENTO DOS DISTÚRBIOS DO SONO
EM RECUPERANDAS DA APAC BH: INTEGRAÇÃO
ENSINO PESQUISA E EXTENSÃO NO PROJETO
DE EXTENSÃO DA PUCMINAS – ELAS

Eduarda Silva Mendes30


Gabriela Pâmela Faust Vieira31
Patrícia Dayrell Neiva32

INTRODUÇÃO

Na prisão, as condições de confinamento são determinantes


para o processo saúde-doença. A relação entre problemas e
necessidades de saúde da pessoa que se encontra privada de liberdade
dada a precariedade do sistema prisional pode acarretar inúmeros
transtornos de saúde que se acrescentam aos pré-existentes,
agravando-os, causando prejuízos maiores aos modos de vida dessa
pessoa. Atualmente, no Brasil, o sistema carcerário convive com um
quadro preocupante em relação à saúde (SOUZA, 2013). O aumento
da população privada de liberdade, vivendo em precárias condições,
torna o ambiente insalubre, de alto risco e favorável à proliferação de
doenças. Segundo o SISDEPEN, que é a plataforma de estatísticas do
sistema penitenciário brasileiro que sintetiza as informações sobre a
população carcerária, o aprisionamento feminino no ano de 2000 a 2019
cresceu 37%, sendo que a abordagem para resolução dos problemas
em saúde dentro do sistema comum ainda é insuficiente (SIDESPEN,
2021). Portanto, pelo fato de encontrar-se institucionalizada, a

30 Discente extensionista do programa de extensão Apenas Humanos, do curso de


Fisioterapia no campus Coração Eucarístico; Pesquisadora Voluntária do Fundo de
Iniciação Científica PUCMINAS-PROPG.
31 Discente extensionista do programa de extensão Apenas Humanos, do curso de
Fisioterapia no campus Coração Eucarístico; Pesquisadora Voluntária do Fundo de
Iniciação Científica PUCMINAS-PROPG.
32 Docente do Curso de Fisioterapia PucMinas Coreu; Doutora em Ciências da Saúde
UFMG Coordenadora do Programa de Extensão PUCMINAS ELAS-PROEX.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 119


maioria da população carcerária torna-se física e mentalmente mais
suscetível ao adoecimento, sobretudo ao sofrimento crônico, que gera
desconforto físico e psíquico. A necessidade de observar o ser humano
do ponto de vista de uma totalidade torna difícil desvincular saúde
física de saúde psíquica. Com relação à população feminina, os fatores
que afetam a saúde ou os agravos de situações prévias encontram-
se sobrepostos, tanto pela precariedade das condições atuais dos
presídios brasileiros quanto pela presença de fatores relacionados
à ambiência das instituições e às questões relacionadas ao gênero.
O grupo de mulheres encarceradas encontra-se mais vulnerável ao
adoecimento, em comparação aos homens privados de liberdade. Além
dos aspectos biológicos, existem também características vinculadas
ao feminino, tais como sensibilidade, emoção, tristeza, angústia,
dentre outros sentimentos, agentes estressores que contribuem para o
comprometimento da saúde mental dessa população (CUNHA, 2010).
Ao longo dos anos, com a humanização, o sistema prisional passou a
assumir um papel mais educativo, visando punir pela prática de crime
e reeducar os indivíduos para que possam ser reinseridos novamente
na sociedade.
A partir dessa ideia, em 1972, foi criado o método APAC
(Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) pelo advogado
Mário Ottoboni, formada como uma entidade civil de direito privado,
sem fins lucrativos e com personalidade jurídica própria, oriunda
da mobilização da sociedade, que via de regra, faz um convênio com
o Estado para que a administração daquela unidade prisional seja
feita pela comunidade. Um dos objetivos primordiais da instituição
é promover a aplicação da pena, independente do regime, de forma
humana sem perder de vista os aspectos punitivos da pena, servindo
assim de ferramenta para os órgãos Executivo Judiciário. “É o Método
APAC que veio trazer condições ao condenado de se recuperar e
ressocializar-se, tornando aquilo que parecia ser impossível de ser
alcançado em realidade” (GUIMARÃES JÚNIOR, 2005). Tem seus
fundamentos baseados no respeito e no trabalho, reformulando o
apenado como um recuperando (OTTOBONI, 2001).

120 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


E nesse cenário da pandemia do Covid-19, em agosto de 2020,
foram realizadas virtualmente na APAC Feminina de Belo Horizonte,
as ações previstas no projeto de extensão ELAS da PUCMINAS, com
o objetivo de conhecer o perfil das mulheres encarceradas e propor
intervenções visando a promoção a saúde e o retorno ao convívio
social, contribuindo para a efetivação dos direitos da mulher privada
de liberdade, promovendo ações que levem em consideração os
processos de humanização e as especificidades do gênero. Todas as
atividades desenvolvidas são voltadas para o fortalecimento do vínculo
familiar, da qualificação profissional, para o incentivo da prática de
atividades físicas regulares e o condicionamento cardiorrespiratório.
Quando autorizado o retorno as atividades presenciais, as atividades
serão realizadas no Centro de Reintegração Social Desembargador
Joaquim Alves de Andrade. Na inviabilidade deste retorno, em
consonância com as diretrizes da Política de Extensão Universitária
(2006) e do Plano de Desenvolvimento Institucional (2017) da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, em estreita
articulação com os projetos pedagógicos dos cursos participantes
de Fisioterapia, Psicologia, Enfermagem, Filosofia, Letras e Direito,
as ações previstas no projeto foram realizadas virtualmente e no
formato síncrono inspiradas na missão institucional da PUC Minas,
fundamentada no humanismo e no compromisso com a construção do
Estado Democrático de Direito (PUC MINAS, 2011). Uma das demandas
levantadas ao realizar oficinas conjuntas entre as extensionistas do
curso de Fisioterapia e as recuperandas, foi a queixa de distúrbios
do sono. O objetivo deste estudo foi realizar um levantamento de
distúrbios relacionados ao sono nesta população de recuperandas da
APAC-BH.

1 INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO DOS DISTÚRBIOS DO SONO

Trata-se de um estudo observacional transversal, realizado no


período de março de 2021 a setembro de 2021, desenvolvido com um
grupo de recuperandas do sexo feminino, com idade variando entre

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 121


21 a 52 anos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da
PUC MINAS (CAAE 38632620.3.0000.5137) e a pesquisa realizada nas
dependências do Sistema Fechado da APAC de Belo Horizonte, onde as
extensionistas foram preparadas para a coleta de dados e aplicação das
escalas e questionários utilizados. Como critérios de inclusão, foram
recrutadas recuperandas que conseguiriam responder claramente
todos os questionários propostos. Foram excluídas as recuperandas
com a escolaridade baixa por não compreenderem as perguntas do
questionário.
Para realizar as mensurações necessárias, foram utilizados dois
aparelhos de pressão digital automáticos de braço (G-TECH). Assim
como para aferir a frequência cardíaca (FC) e saturação periférica
de oxigênio (SpO2), utilizou-se um oxímetro de pulso (Dellamed e
G-TECH). Fitas métricas tradicionais foram utilizadas para mensurar
a altura, circunferência de pescoço, abdômen e quadril assim como
uma balança mecânica (FINLANDEK) para verificação do peso.
As intervenções de educação em saúde virtuais abordando o tema
foram ministradas via Teams para que as recuperandas entendessem do
estudo. Em relação às escalas aplicadas, inicialmente foram enviadas
virtualmente para serem impressas na APAC-BH e disponibilizadas
para as recuperandas que desejassem participar. A Escala de
EPWORTH (ESE) foi proposta em observações relacionadas à natureza
e à ocorrência da sonolência diurna. Refere-se a um questionário auto
aplicável que avalia a probabilidade de adormecer em oito situações
envolvendo atividades diárias, algumas delas conhecidas como sendo
altamente soporíferas. O escore global varia de 0 a 24, sendo que os
escores acima de 10 sugerem o diagnóstico de apneia obstrutiva do
sono. A ESE tem sido traduzida e validada para uso em diversas outras
línguas, sendo amplamente usada por ser simples, fácil de entender e
de rápido preenchimento (JONHS, 1991).
Outro instrumento de avaliação utilizado foi a Escala de
Qualidade do Sono de PITTSBURGH (PSQI) para avaliar a qualidade
do sono em relação ao último mês. Trata-se de um questionário onde
deve-se observar como importante característica, a combinação de

122 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


informações qualitativas e quantitativas no que tange o sono. A escala
fornece medidas de qualidade que discriminam os indivíduos em
“bons dormidores” ou “maus dormidores”, é fácil de ser respondida
e interpretada, além de ser útil na identificação de vários transtornos
do sono. O questionário é constituído de 19 questões que englobam
sete componentes, sendo eles: qualidade subjetiva do sono, a latência
para o sono, a duração do sono, a eficiência habitual do sono, os
transtornos do sono, o uso de medicamentos para dormir e a disfunção
diurna. Cada componente é distribuído numa escala de 0 a 3. O escore
global varia de 0 a 21, sendo que quanto maior a pontuação, pior a
qualidade do sono e que quando > 5 indica que o indivíduo apresenta
grandes dificuldades em pelo menos 3 componentes, ou pelo menos
dificuldade moderada em mais de 3 componente( BERTOLAZZI, 2008).
O Questionário de Tolerância de Fagerström (QTF) foi também
utilizado como instrumento de medida da dependência nicotínica
(FAGERSTRÖM KO, 1978). Este fundamenta-se em seis perguntas de
escolhas simples que exprimem um reflexo fiel do comportamento
do fumante frente ao habito de fumar, e tem objetivo de estimar o
grau de dependência da nicotina, para cada alternativa das questões
existe uma pontuação. A soma dos pontos permitirá a avaliação do seu
grau de dependência de nicotina em cinco níveis: muito baixo (0 a 2
pontos); baixo (3 a 4 pontos); moderado (5 pontos); alto (6 a 7 pontos);
e muito alto (8 a 10 pontos) (CARMO,2002).
O estado nutricional das recuperandas foi avaliado através do
Índice de massa corporal (IMC). Esta variável foi calculada e analisada
levando em consideração o preconizado pela Organização Mundial da
Saúde, ou seja, considerados com baixo se IMC < 18,5Kg/m2; eutróficos,
se ≥18,5e <25,0; sobrepeso, se valores situados entre 25,0 e 29,9Kg/m2;
e com obesidade aqueles com IMC ≥ 30 Kg/m2 (WHO, 2000).

2 CÁRCERE VERSUS DISTÚRBIOS DO SONO: RESULTADOS

Sessenta questionários foram preenchidos previamente pelas


recuperandas e posteriormente os dados das mensurações foram

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 123


coletados pelas alunas extensionistas pesquisadoras voluntárias.
Cinco questionários foram excluídos por inconsistência de dados, e o
restante dos dados foram transportados, tabulados e analisados pelo
programa SPSS (IBM® SPSS® Statistics). As variáveis quantitativas foram
expressas como média ± desvio-padrão, e as variáveis qualitativas
foram expressas em porcentagens.
Referente a idade, a média foi de 37,31 ± 8,3 anos, sendo a mais
frequente mulheres com 42 anos (9.1% da amostra). Em relação aos
dados antropométricos, a média do peso foi de 73.76 ± 15,64 kg e
altura 1,61 ± 8,1 metros, representando um índice de massa corporal
elevada em 30% das recuperandas, caracterizando sobrepeso. Metade
do grupo avaliado não apresentou relato de comorbidades associadas,
entretanto 29.1% das mulheres relataram Hipertensão Arterial,
seguido de 3.6% com Diabetes Mellitus e Doença Vascular.
Em relação à escolaridade, 32.7% das recuperandas apresentaram
um período de 9 a 14 anos de instrução, seguido de 25.5% com
período superior a 15 anos de instrução, 23.6% com 5 a 8 anos de
instrução, 10.9% com 1 a 4 anos de instrução e 7.3% analfabetas,
portanto a maioria possui ensino fundamental e médio. Em relação
ao estado civil, a maioria é solteira (56.4%), seguido respectivamente
de 25.5% casadas, 9.1% viúvas e 7.3% divorciadas. Considerando o
arranjo familiar antes do sistema prisional, 40% das recuperandas
moravam com filhos e/ou parentes, 36.4% casadas com filhos e 10.9%
representam um arranjo familiar não específico, sendo que 7.3%
viviam sozinhas e 5.5% eram casadas sem filhos. Quanto às atividades
profissionais que essas mulheres realizavam antes do sistema prisional,
10,9% eram autônoma e/ou do lar. A diversidade de ocupações
foram relatadaa como administradora, auxiliar de carga, auxiliar de
cozinha, camareira, caseira, chefe de cozinha, coordenadora de loja,
cuidadora de idoso, diarista, empresária, gari, massoterapeuta, oficial
de serviços gerais, fisioterapeuta, professora, doméstica, estudante,
faxineira, cabelereira, vendedora, serviços gerais e costureira. Já na
atual função/trabalho na APAC, 20% das recuperandas trabalham no
refeitório, mas além desses ofícios foram registradas outras funções

124 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


executadas em locais específicos na APAC como portaria, recepção,
tesouraria, secretaria do Conselho de Sinceridade e Solidariedade
(CSS), setor de remissão, horta, pavilhão, faxina, oficinas de costura,
tricô, bordado, crochê, salão de beleza e laborterapia. Também como
auxiliar de manutenção, balconista, bibliotecária, direção artística,
presidente do CSS, técnica de informática, vendedora de picolé, vice
presidente, auxiliar de plantão, serviços gerais.
Sobre os rituais de sono, 32,7% das recuperandas tem o hábito
de leitura que precede o sono e 38,2% relatam dormir por um período
mais prolongado entre 5 a 7 horas e 10.9% dormem menos que 5h
por noite, sendo que a presença de ronco noturno foi registrado em
69,1%. Considerando as queixas sobre a presença do ronco, 83,6% das
recuperandas nunca receberam reclamação pelos ruídos produzidos,
ou seja, o “roncar” não incomoda as recuperandas. No que se refere
alguns sintomas relacionados, como a boca seca, 56.4% relatam
acordar com boca seca e 76.4% relatam noctúria frequente, sendo
que a maioria (47.3%) hidrata-se adequadamente, com a ingestão de
cinco ou mais copos de água durante o dia. Os resultados das escalas
utilizadas para avaliar o sono (ESE e IQSP ) foram normais em 58% da
amostra, entretanto 83.6% das recuperandas relataram não praticar
atividade física. De acordo, com a escala de Pittsburgh aplicada durante
a pesquisa foi possível obter algumas informações relacionadas a
qualidade de sono baseadas em acontecimentos do mês passado. Em
relação ao tempo que as recuperandas levam para dormir, 43.6% não
conseguem dormir em 30 minutos com uma frequência de três ou
mais vezes por semana, 21.8% conseguem dormir antes de 30 minutos,
18.2% apresentam dificuldade em dormir pelo menos uma ou duas
vezes na semana. Cinquenta e seis por cento das recuperandas acorda
no meio da noite, sendo que 25.5% desperta três ou mais vezes por
semana, 12.7% relata nunca ter problema de despertar. Em relação
ao desconforto respiratório, 61.8% não apresentam, assim como 69%
das recuperandas conseguem permanecer acordadas no período
diurno ao realizar as atividades e 52.7% relatam estar suficientemente
entusiasmadas durante a realização de atividades. Diante dessa

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 125


exposição a quartos compartilhados, foi possível rastrear se as colegas
de quartos reclamavam de ronco alto e 63.6% informaram ausência
de reclamações, 16.4% disseram que já ocorre três ou mais vezes por
semana, 14.5% já ouviram reclamar uma ou duas vezes por semana
e 5.5% relatam que já aconteceu menos de uma vez por semana. Foi
averiguado também se essas mesmas colegas de quarto já perceberam
longas pausas na respiração durante o sono colegas das e 61.8%
relataram que nunca, 18.2% relataram que já aconteceu uma ou
duas vezes por semana, 14.5% informaram que já aconteceu três ou
mais vezes por semana. Para identificar se há episódios de “pernas
irrequietas, 56.4% relataram que nunca ocorreu, 21.8% disseram que
já ocorreu umas três ou mais vezes por semana, 16.4% informaram
que ocorreu uma ou duas vezes por semana. Quanto a episódios de
desorientação ou confusão durante a noite, 67.3% das mulheres
informaram que nunca apresentaram.
Foram identificadas recuperandas com hábitos tabágicos (40%
são fumantes), 9.1% são ex-fumantes e 50.9% não fumam. Relacionado
ao tabagismo, 38.2% das recuperandas fumam três cigarros por dia
(número máximo de cigarros permitido na Instituição), 1.8% fumam
um cigarro por dia. Apesar de 40% do grupo ser fumante e 72.7% usar
medicação controlada, não houve correlação entre o fumo, obesidade
e distúrbio do sono (p=0,478).
O convívio nesse ambiente privado de liberdade pode ser um
diferencial para algumas recuperandas e 65.5% relatam uma boa
relação social.

3 CÁRCERE VERSUS DISTÚRBIOS DO


SONO: ARGUMENTOS PLAUSÍVEIS

O ciclo sono-vigília (SV) é um ritmo biológico do corpo, definido


como ritmo circadiano (RC), e se refere à alternância entre os períodos
de sono. Este ciclo renova-se a cada 24 horas e é regulado pela
quantidade de luz que o indivíduo é exposto ao longo do dia associado à
liberação do hormônio melatonina que, durante a noite estará em pico

126 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


de liberação, devido à pequena exposição à luz, e consequentemente
induzirá o sono. O desequilíbrio do RC implica em baixa qualidade de
sono e pode acarretar prejuízos nas atividades diárias de um indivíduo,
afetando o seu rendimento no trabalho. Os distúrbios do sono
provocam consequências adversas na vida das pessoas por diminuir
seu ritmo de atividades diárias além de aumentar a propensão a
distúrbios psiquiátricos, déficit cognitivo, surgimento e agravamento
de problemas de saúde, riscos de acidentes de tráfego, ausência no
trabalho, e por comprometer a qualidade de vida. Esses distúrbios
desencadeiam consequências adversas à saúde e ao bem-estar dos
indivíduos, afetando o trabalho, a cognição, os relacionamentos e
o funcionamento diário, com diferentes desdobramentos a curto,
médio e longo prazo (BROWN, 2005). Apesar dos resultados deste
levantamento não evidenciar uma porcentagem alta de distúrbios
do sono, parte das recuperandas (42%) apresentam estes distúrbios,
justificando algumas ações simples dentro da instituição com ações
de promoção de saúde visando a Higiene do Sono. Quando esse
desequilíbrio envolve outros fatores, como a privação de liberdade,
pode acarretar o desenvolvimento de transtorno do sono-vigília (TSV).
Esses transtornos podem estar acompanhados de depressão, ansiedade
e alterações cognitivas ou contribuir para o aparecimento destas
doenças ou transtornos causados pelo uso de substâncias psicoativas.
Ao ser inserido no sistema prisional, um ambiente desconhecido, o
indivíduo necessita adaptar-se a um “novo mundo” para conseguir
manter-se nele, independente de qual for à condição. Ao longo do
tempo, as experiências internas tornam-se “naturalizadas” e esse
processo pode acarretar as alterações psico-físico-sociais. Acrescido
a isto, a Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) é uma doença
crônica caracterizada por episódios parciais ou completos de colapso
da via aérea superior (VAS), resultando em dessaturação de oxigênio
e micro despertares, com sintomas que variam desde o ronco até a
sonolência excessiva diurna.
No início desta década, Young, Peppard e Gottlieb (2002)
associaram a apneia ao maior consumo de álcool, tabagismo,

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 127


congestão nasal, diminuição dos níveis de estrogênio e obesidade. Os
autores enfatizaram que a literatura subestimava a prevalência desse
transtorno e o número de casos não diagnosticados (YOUNG,2002).
Apesar das recuperandas não consumirem álcool, a incidência da
obesidade, a inatividade e o tabagismo são fatores predisponentes
para desenvolvimento dos distúrbios do sono. O tabagismo é o maior
fator que apresenta uma interface negativa em relação ao sono e
40% das recuperandas é fumante. A nicotina, o componente ativo da
fumaça de cigarro, estimula a liberação de neurotransmissores que
regulam o sono incluindo a dopamina e a serotonina, resultando
em sono perturbado, afeta a função pulmonar, promove inflamação
das vias aéreas, o que eleva a predisposição para roncos e apneia.
O tabagismo está ainda associado com distúrbios na arquitetura
do sono como aumento da latência, sonolência diurna excessiva e
diminuição da eficiência do sono (SABANAYAGAM, 2011). Acredita-se
que a dependência nicotínica é o motivo da persistência do tabagismo
e dificuldade de sua interrupção, pois todos os fumantes regulares
seriam dependentes da nicotina. Ainda que em graus variáveis, este
assunto tem sido bastante discutido, pois sabe-se que não é apenas o
enfoque educacional que gera o abandono do hábito, pois esta ação
por se tratar do vicio às substancias do cigarro, envolvem aspectos
mais complexos que somente a informação (DAVID,2006).
Estudando a qualidade do sono em todos os aspectos, se faz
necessário entendermos também que nessa população, as mulheres
dividem o quarto ou camas, identificado que 94.5% divide o mesmo
quarto e 1.8% divide a mesma cama e apesar do relato de pernas
irrequietas e o ronco não incomodar o período de sono, a porcentagem
de recuperandas que apresenta noctúria é grande e os relatos de
ingestão de água também, justificando assim uma ação futura com
educação em saúde neste sentido do controle vesical para minimizar
a noctúria.
É importante que estes sinais sejam rastreados para que medidas
simples possam ser implementadas visando um resultado a médio e
longo prazo e pensando realmente na melhora da qualidade de vida

128 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


desde então até a fase de reinserção social reforçando as diretrizes
da PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 1, DE 2 DE JANEIRO DE 2014
que institui Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito
do Sistema Único de Saúde (SUS) e é objetivo geral da PNAISP garantir
o acesso das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional ao
cuidado integral no SUS (BRASIL, 2005). O sistema prisional brasileiro
ao mesmo tempo que priva a liberdade do infrator como forma
punitiva, também deve assegurar a reinserção social, estabelecendo
ferramentas que proporcionem o acesso ao ensino, profissionalização
e aos serviços de saúde (QUEIROZ, 2020).
O cárcere é um espaço de justiça e controle social, e deve
priorizar a cidadania, uma vez que, penalizar além da reclusão de
liberdade com violações de diversos direitos é agir contra a dignidade
desses indivíduos (BARSAGLINI, et al, 2015). Portanto, a linha de
cuidado em saúde deve abarcar todos os níveis de atenção, garantindo
assim a integralidade da assistência e com certeza dentro das APACs
este cuidado é preconizado. A metodologia APAC é uma exceção frente
ao modelo convencional de aplicação de pena no Brasil e acredita-se
que realmente seja o momento de visá-la como uma alternativa Penal,
considerando seus resultados ressocializadores positivos aliados a um
baixo custo Estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da maioria das recuperandas não apresentar distúrbios


de sono que pudessem caracterizar uma alteração na condição de
saúde, conhecer outras características nos auxiliou a modificar o
curso das ações do Curso de Fisioterapia no projeto de extensão ELAS,
principalmente em relação a higiene do sono, o incentivo á prática
de atividades físicas e o risco elevado para desenvolver doenças
cardíacas, alto níveis de ansiedade, depressão e principalmente
comprometimento do sistema musculoesquelético.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 129


A articulação entre o ensino, pesquisa e a extensão indica
uma formação que se preocupa com os problemas da sociedade
contemporânea, mas carece da pesquisa, responsável pela produção
do conhecimento científico. Mediante as ações, as discentes
pesquisadoras reafirmaram a importância de se aliar ensino, pesquisa e
extensão universitária como parte da ação acadêmica, incrementando
a formação crítica e cidadã comprometida com a responsabilidade
social discernindo a necessidade de integração da linha de cuidado
e a apropriação de conhecimento e/ou técnicas, pelo aprendizado da
utilização de instrumentos de avaliação e o estímulo da reflexão entre
teoria e prática.

130 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


REFERÊNCIAS

ALESSANDRA BERTOLAZI. Tradução, adaptação cultural e vali-


dação de dois instrumentos de avaliação do sono: Escala de Sonolên-
cia de Epworth e Índice de Qualidade de Sono de Pittsburgh – Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

BARSAGLINI, R. A.; et al. Análise da percepção de gestores


sobre a gestão da política de saúde penitenciária em Mato Gros-
so, Brasil. Saúde Soc., v. 24, n. 4, p.1119-1136, 2015. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12902015000401119&Ing=en&nrm=iso. Acesso em: 12 jul 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria interministerial nº 1, de


2 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP)
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível https://bvsms.
saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/pri0001_02_01_2014.html. Aces-
so em: 23 jul 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. De-


partamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de saú-
de no sistema penitenciário. Plano Nacional de Saúde do Sistema Pe-
nitenciário. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. Disponível em: http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.pdf. Acesso em:
24 ago 2020.

BROWN, W. D. The psychosocial aspects of obstructive sleep ap-


nea. Seminars in Respiratory and Critical Care Medicine, 26 (1), 33-
43.2005.

CARMO JT, PUEYO AA. Adaptação ao português do Fagerström


test for nicotine dependence (FTND) para avaliar a dependência e to-
lerância à nicotina em fumantes brasileiros. Rev.bras.med;59(1)73-80.
2002.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 131


CUNHA EL. Ressocialização: o desafio da educação no siste-
ma prisional feminino. Cad CEDES [Internet]. 2010 [cited 2015 Jun
10]; 30(81):157-78. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/
v30n81/a03v3081.pdf

DAVID HMSL et al. Tabagismo e saúde da mulher: uma discus-


são sobre as campanhas de controle do tabaco. R Enferm UERJ; 14(3):
412-7.2006.

FAGERSTRÖM KO. Measuring degree of physical dependence to


tobacco smoking with reference to individualization of treatment. Ad-
dict Behav;3:235-41.1978.

GUIMARÃES JÚNIOR, Geraldo Francisco. Associação de prote-


ção e assistência aos condenados: solução e esperança para a execu-
ção da pena. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 882, 2 dez. 2005.

JOHNS MW. A new method for measuring daytime sleepiness:


the Epworth sleepiness scale. Sleep.;14:540-5. 1991.

MINISTÉRIO DA SAÚDE (BR) [Internet]. Plano Nacional de


Saúde do Sistema Penitenciário. Brasília (DF): MS; 2005. Acesso em
7/06/2021: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.
pdf.

OMS. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organiza-


ção Mundial da Saúde (OMS/WHO), 1946. Disponível em http://www.
direitoshumanos.usp.br/index.php/OMSOrganiza%C3%A7%C3%A3o-
-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacaomundial-da-
-saude-omswho.html. Acesso em: 12 ago 2021.

OTTOBONI, Mario. Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução


do sistema penitenciário. São Paulo: Cidade Nova, 2001.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS.


Pró-Reitoria de Extensão. Política de Extensão Universitária da PUC

132 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Minas. Belo Horizonte: PUC Minas, 2011. SISDEPEN.www.gov.br/de-
pen/pt-br/sisdepen, 2020. Acesso em 05/06/2021.

QUEIROZ, G. et al. O fisioterapeuta na equipe de atenção básica


prisional: Os desafios da saúde pública no cárcere. Braz. J. Hea. Rev.,
Curitiba, v. 3, n. 5, p. 14173-14182, set./out. 2020. ISSN 2595-6825. 2020.

SABANAYAGAM C, SHANKAR A. The association between active


smoking, smokeless tobacco, second-hand smoke exposure and insuf-
ficient sleep. Sleep Med.;12(1):7-11. 2011.

SILVA, K. B.; BEZERRA, A. F. B.; TANAKA, O. Y. Direito à saú-


de e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para
sua efetivação. Interface comunicação saúde educação, v.16, n.40,
p.249-260, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pi-
d=S141432832012000100019&script=sci_abstract&tlng=pt . Acesso em:
21 jul 2020.

SOUZA MCP, ALENCAR NETO FJ, SOUZA PCC, SILVA CLC. Aten-
ção à saúde no sistema penitenciário: revisão de literatura. Rev Interd
[Internet]. 2013.

YOUNG, T., PEPPARD, P. E., & GOTTLIEB, D. J. Epidemiology


of obstructive sleep apnea: a population health perspective. Ameri-
can Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 165 (9), 1217-
1239.2002.

WORLD HEALTH ORGANIZATION; WHO Consultation on Obesi-


ty.Obesity: preventing and managing the global epidemic. Reportof a
WHO consultation. Geneva: WHO; 2000.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 133


134 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
UM ESTUDO SOBRE O
MÉTODO PENAL APAC
NA PERSPECTIVA DA
PSICOLOGIA SOCIAL
Luiz Felipe Viana Cardoso
Marcos Vieira-Silva
Maria Nivalda de Carvalho-Freitas

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 135


136 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
UM ESTUDO SOBRE O MÉTODO PENAL APAC NA
PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SOCIAL

Luiz Felipe Viana Cardoso33


Marcos Vieira-Silva34
Maria Nivalda de Carvalho-Freitas35

INTRODUÇÃO

O Sistema Prisional brasileiro tem sido palco para diversas


discussões a respeito das políticas públicas de segurança pública,
sobretudo após uma série de acontecimentos que tem aberto a caixa-
preta dos problemas do sistema. Em 2018, fora criado o Sistema Único
de Segurança Pública (SUSP), por meio da Lei Nº 13.675 que além de
integrar os órgãos de segurança pública, criou a Política nacional de
Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), para fortalecer ações
de prevenção e redução dos conflitos violentos (BRASIL, 2018), como
tentativa de responder aos graves problemas de segurança pública no
país. Contudo, nota-se que ainda a maior política de segurança pública
no país tem sido o investimento maciço no encarceramento, que tem
levado a números assustadores, visto que o Brasil já possui a terceira
maior população carcerária do mundo, com mais de 720 mil pessoas
privadas de liberdade (BRASIL, 2017). Além disso, há uma expectativa
de que se mantida a taxa atual de encarceramento que é de 352,6, o

33 Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade


Federal de São João del-Rei (UFSJ). Psicólogo pela mesma universidade. Docente do
curso de Psicologia do Centro Universitário UNA. E-mail: luizfelipevcardoso@gmail.
com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8348646171677165
34 Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). E-mail: mvsilva@ufsj.edu.br. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/5107482697111516
35 Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). E-mail: nivalda@ufsj.edu.br. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/9726167396041575

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 137


país poderá ter cerca de 1.470.000 presos até 2025 (ESTADÃO, 2018).
Sem falar que o défice de vagas no sistema prisional é de 358.663 vagas
(BRASIL, 2017) e a taxa de reincidência é estimada em 70% (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, 2014).
Esses números denunciam o fracasso da política prisional, visto
que embora mais pessoas estejam sendo encarceradas, os índices de
violência no país continuam aumentando nos últimos anos (ESTADO
DE MINAS, 2018). A respeito disso, Rusche e Kirchheimer (2004)
refletem que o problema da criminalidade está mais relacionado aos
fatores socioeconômicos do que da questão penal, visto que é preciso
olhar para a estrutura social para se compreender o fenômeno da
criminalidade. Assim, a prisão se torna um aparelho de transformação
social no qual o indivíduo é levado a se adaptar as regras de conduta, de
um sistema capitalista, de forma que sua reintegração sirva para atender
a um projeto neoliberal (BERGALLI ET AL. 1983), pois como pontua
Foucault (1998), as prisões respondem a um projeto de transformação
dos indivíduos, na medida em que sempre buscaram o “ajustamento
social” de algumas pessoas, servindo como um mecanismo de poder,
a serviço de um determinado modelo econômico e político.
Assim, a prisão não tem sentido em si mesma, se não servir
como um sofrimento estéril, visto que nela os “homens são
despersonalizados e dessocializados” (HULSMAN E CELIS, 1993, p. 62-
63). Logo, é utópico, e até mesmo contraditório, conceber a “pena de
privação de liberdade” como instrumento capaz de trazer autonomia
as pessoas, pois mesmo que humanizada a pena é, em sua forma, algo
que traz sofrimento as pessoas (TAVARES E MENANDRO, 2004).
Um dos elementos mais negativos da prisão é o seu isolamento
do macrocosmo social, por meio dos muros (BARATTA, 1990). Nesse
sentido, como segregar um indivíduo e pretender a sua reintegração
social? A reintegração só é possível na medida em que a seja possibilitado
ao preso direitos à escolarização, à profissionalização, à assistência à
saúde etc. Desta forma, o cárcere é uma barreira para o processo de
reintegração social do preso (SÁ, 2003), já que é contraditório esperar
que a prisão reeduque para uma vida em liberdade (LINO, 2012). Há

138 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


uma idealização pela sociedade, fomentada pelos discursos midiáticos
e até mesmo acadêmicos, de que a prisão pode ressocializar (BRAGA,
2014).
Entendendo a reintegração social é um processo de ampla
participação da sociedade para com as questões do cárcere,
tomando esta como corresponsável nas causas do encarceramento
e, portanto, deve também ser um ator social no processo da busca
por uma reintegração (BARATTA, 1990; SÁ 2015), reintegrar não é
apenas recuperar o preso, mas conseguir ampla participação ativa
da sociedade no processo de reintegração, pois a mesma só poderá
ocorrer se há uma aproximação entre o preso e a sociedade (SÁ, 2000;
2003; 2015). Caso não sejam atendidos esses aspectos, é mais correto
falar em uma adequação social do que uma reintegração social plena,
visto que os sujeitos são incluídos de forma precária na sociedade
(BARBALHO E BARROS, 2014).
Visando ser uma alternativa efetiva de execução penal que
possibilite a reintegração social de forma integral, existe no Brasil,
desde 1974, a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados
(APAC), que para Ottoboni (2014) é um método de execução penal que
tem como princípio a valorização humana por meio de um projeto de
recuperação integral do preso. Assim, chamado de recuperando e não
mais de preso, no Método APAC são oferecidas assistências as pessoas
privadas de liberdade, que diferente do sistema comum buscam
garantir a dignidade humana. A APAC é uma instituição do terceiro
setor, que por meio de uma metodologia própria, resgata a identidade
e garante os direitos aos seus condenados.
Mameluque (2006) pontua que visto a importância que a
experiência do cárcere provoca na vida de uma pessoa, é necessário
que a Psicologia olhe para esse fenômeno e, em especial, para os
novos métodos de execução penal que vêm surgindo, como o Método
APAC. Assim, a Psicologia vem sendo chamada a lançar olhar sobre a
realidade do sistema prisional brasileiro. Conforme o levantamento
de Fidalgo, Rocha, & Alves (2017), entre os estudos produzidos sobre o
sistema prisional em todas as áreas do conhecimento, a ressocialização

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 139


de egressos aparece com 9,17% entre os trabalhos levantados, sendo
que no campo da psicologia essa taxa é de 9%. Entre as publicações
encontradas pelos autores apenas um trabalho envolveu uma APAC.
Depois do Direito, a Psicologia é a área de conhecimento que mais tem
produzido a respeito do sistema prisional, correspondendo a 10,5%
dos estudos na área.
Assim, neste artigo buscamos refletir sobre as contribuições e
desafios do Método APAC para a execução penal, a partir da percepção
dos próprios sujeitos que cumpriram pena de privação de liberdade
neste modelo. Nossas reflexões são recorte de uma pesquisa de
mestrado que buscou entender o processo de reintegração social dos
egressos do Método APAC, e visam contribuir para o diálogo sobre
as questões do Sistema Prisional na perspectiva das contribuições da
Psicologia Social.

2 INDO AOS ATORES(AS) SOCIAIS

Tratou-se de uma pesquisa exploratória e descritiva de abordagem


qualitativa, que permite explorar os processos sociais que são pouco
conhecidos, servindo como ferramenta para a crítica científica
social (SCHWANDT, 2006), na medida em que pesquisar é intervir e,
portanto, uma prática social na qual pesquisador e pesquisado são
subjetividades que se consolidam nas relações desenvolvidas (LANE,
1989).
Este estudo foi realizado com pessoas que cumpriram pena de
privação de liberdade no Método de Execução Penal APAC, em dois
municípios mineiros. Devido à natureza do estudo, uma dificuldade
encontrada no início foi de selecionar participantes para o estudo.
Visando contornar essa dificuldade, optou-se pelo uso da técnica Bola
de Neve, que consiste no uso de cadeias de referências, ao recrutar
os participantes a partir de indicações de pessoas relacionadas ao
fenômeno pesquisado (VINUTO, 2014).
Para determinar o número de participantes foi utilizada a
saturação, que consiste na interrupção da produção de dados quando

140 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


nenhum dado novo é apresentado (MATA-MACHADO, 2002; MINAYO,
2010; PIRES, 2014). Assim, participaram deste estudo 16 egressos,
sendo 13 homens e três mulheres, com uma média de idade de 43,06
anos. O tempo de liberdade dessas pessoas variou entre 1 mês e 20
anos e a média do tempo de condenação foi de 11 anos. Já o tempo de
cumprimento de pena na APAC variou entre 6 meses e 9 anos.
Sobre os aspectos socioeconômicos, a maioria dos participantes
se declararam pardas e negras (13) e três brancas. Em relação ao
estado civil, foram oito solteiros, 7 casados e um divorciado. No que
diz respeita ao nível de escolaridade, nove entrevistados declararam
ter até o ensino fundamental incompleto, três o ensino médio
incompleto, três o ensino médio concluído e um ensino superior
incompleto. A situação econômica dos participantes é diversificada,
sendo 2,3 salários mínimos a média da renda financeira. Entretanto,
seis entrevistados declararam não possuir nenhuma forma de renda
própria. Sobre a situação de trabalho, 12 participantes estão inseridos
no mercado de trabalho, sendo que dois no mercado formal, seis no
informal, quatro em uma iniciativa própria, três participantes não
possuem nenhuma atividade de trabalho e um é aposentado. Em
relação a situação de moradia, 13 declararam ter moradia própria e
três possuem moradia arrendada. Já sobre a composição familiar, 14
entrevistados declararam morar com familiares e dois vivem sozinhos.
Como instrumento de produção de dados foi utilizada a
entrevista semiestruturada, que permite a livre circulação da fala
dos participantes a partir de uma estrutura flexível para uma análise
profunda sobre o fenômeno pesquisado (DUARTE, 2004; MINAYO,
2010; PINHEIRO, 2013). A estrutura de uma entrevista semiestruturada
deve ser aberta, de modo que os temas possam surgir a partir de uma
pergunta norteadora e as intervenções do pesquisador devem seguir
o conteúdo trazido pelos entrevistados, na forma de uma conversa, de
forma que o roteiro não seja uma “camisa de força” (ARAGAKI, LIMA,
PEREIRA, E NASCIMENTO, 2014).
As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas, e
os dados foram tratados a partir da Análise de Conteúdo que utiliza-se

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 141


de técnicas para análise das comunicações e formação de categorias
temáticas construídas a partir de indicadores (quantitativos e
qualitativos) dos conteúdos expressos (BARDIN, 2011). Todo o processo
de organização e análise dos dados foi auxiliado pelo software MAXQDA
12 (Qualitative Data Analyses), que é uma ferramenta de análise de
dados qualitativos.
A pesquisa está em conformidade com as Resoluções do Conselho
Nacional de Saúde Nº 196/96, 466/2012 e 510/2016, sendo aprovada
pela Comissão de Ética da Universidade Federal de São João del-Rei,
sob o registro do CAAE: 73782517.7.0000.5151, e todos os participantes
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
no qual constavam os objetivos do estudo e a garantia de sigilo das
informações.

3 ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O MÉTODO APAC


A PARTIR DA PSICOLOGIA SOCIAL

Neste texto serão apresentados parte dos resultados encontrados


na pesquisa sobre o processo de reintegração social dos egressos do
Método APAC, buscando refletir sobre a percepção que essas pessoas
têm a respeito desse modelo de execução penal. Desta forma, serão
apresentados e discutidos os resultados de duas categorias levantadas
durante o estudo. A primeira diz respeito a visão que os egressos têm a
respeito da privação de liberdade e as implicações do encarceramento
para suas vidas. Já a segunda trata de suas percepções em relação ao
Método APAC como um modelo alternativo de sistema prisional no
Brasil.

A privação de liberdade

Para vários entrevistados a história de exclusão social precede a


prisão, visto as condições sociais as quais estavam submetidos antes
mesmo da prisão. Como identificaram Barros e Lhuilier (2013), em se
tratando da reintegração social dessas pessoas, percebe que ao sair

142 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


da prisão elas retornam para as mesmas condições anteriores ao
aprisionamento. Para alguns, a história de vida anterior a prisão fora
marcada por envolvimento com a criminalidade e/ou problemas com
a justiça desde a adolescência e juventude, alimentando o “círculo
vicioso” ao qual referem Tavares e Menandro (2008), como observado
nesta fala:
Minha vida sempre foi assim. Eu perdi minha mãe muito cedo... eu
tinha oito anos. E minha família era assim, cada um por si... Ficava um
tempo com um, um tempo com outro. Então eu via eles sempre discutindo
por minha causa. Aí eu fui e saí pra rua e comecei a roubar ... lembro que
me levaram... aí acordei na FEBEM lá em Belo Horizonte, no meio de 400
detentos [Participante 10].
Em outra passagem de sua entrevista o mesmo relata ter
vivido em favelas de Belo Horizonte: “Eu morei em Belo Horizonte, eu
morei naquelas favelas. Eu morei em várias favelas em Belo Horizonte.
Ali, a criminalidade foi induzida pela miséria. [Participante 10].”
Assim, sua história de vida tanto marcado pelas passagens nas
instituições socioeducativas na adolescência quanto no convívio com
a criminalidade e as más condições socioeconômicas, demonstram
que antes mesmo da entrada no sistema prisional, esses sujeitos já se
encontravam marcados pela exclusão social, reforçando o argumento
de Barbalho e Barros (2010, p. 203) de que: “a cidade é o próprio
retrato das contradições impostas pelo neoliberalismo, denunciando
um contingente de pessoas estigmatizadas e fora de seus direitos
enquanto cidadãos”.
Conforme Tavares e Menandro (2008, p. 136), sendo a privação
de liberdade um sistema de retribuição a sociedade pelos autores
de delitos, sua execução é baseada no sofrimento, decorrentes “da
sensação de perda de controle sobre sua própria vida, da inexistência
de autonomia e da impossibilidade de fazer escolhas”. Assim, durante
o cumprimento de pena o preso perde, temporariamente, os laços
com sua comunidade. Assim, trabalho, família, relações sociais são
afetadas. Esse aniquilamento do contato social contribui para o que
Goffman (1974) identificou como processo de mortificação do Eu,

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 143


visto que durante a passagem pela prisão o sujeito é levado a romper
as relações com o mundo externo.
Observa-se que o sofrimento gerado durante a pena também está
presente no retorno do egresso ao convívio social, quando o mesmo
não possui condições mínimas de estruturar sua vida. Assim, mesmo
reconhecendo as dificuldades que havia antes da prisão, a pena de
privação agrava as dificuldades sociais desses sujeitos, levando-os a
um quadro de adoecimento psíquico após a saída:
Entrevistador: Entendo. E você está tomando antidepressivo nesse
momento?
R: É, o médico passou, mas eu tomo só quando eu to mesmo preste
a revoltar comigo mesmo. Porque você não consegue nada. Então você faz
aquilo, sem pensar em ninguém.
E: Esses problemas já aconteciam antes da prisão também?
R: Não, não.
Entrevistador: Antes da prisão você era diferente?
R: Era, porque eu trabalhava tranquilo.
Entrevistador: Que que você fazia antes?
R: Servente de pedreiro.
Entrevistador: Você conseguia emprego. Você vivia...
R: Conseguia. E dava pra manter minha casa e ainda sobrava
dinheiro, hoje... mal consigo esse aqui [faz gestos simbolizando alimentar-
se].
Entrevistador: Pra alimentar né?
R: É, porque quem paga a conta de água, conta de luz, o gás agora
está caro. Pra me manter, é difícil. Não é fácil. [Participante 15].
Para alguns entrevistados, ter passado pelo sistema trouxe uma
perda de autonomia, atravessado pelas dificuldades frente a ausência
de possibilidades concretas de trabalho ou de apoio social. Dessa
forma, “o sentido do encarceramento está pautado na dor causada
pelas injustiças experimentadas pelos prisioneiros não só na prisão,
mas ao longo da vida” (Tavares & Menandro, 2008, p. 136). Assim, um
dos reflexos da prisão é o rompimento do vínculo social desses sujeitos,
que ao retornarem para a comunidade enfrentam, além do estigma, o

144 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


desafio de se reestabelecerem e participarem em seus grupos sociais.
Como visto no relato acima, a perda do trabalho ocasionado pela
prisão e a dificuldade de voltar ao mercado profissional após a pena,
contribuíram para o que Sawaia (2001) chama de sofrimento ético-
político, na medida em que a situação de inclusão perversa desse
egresso reflete nas más condições socioeconômicas de se manter,
sendo mais adequado falar então em um processo de sobrevivência
no seu contexto social.
O tempo de encarceramento representou, para os sujeitos
entrevistados, um tempo quase que perdido, no qual seus planos
futuros foram temporariamente interrompidos, ou até mesmo,
perdidos: “Porque, você acabou de fazer 18 anos e você tomar 22 de cadeia.
Aí você pensa assim “puta merda, eu só vou sair daqui só com trinta e
tantos anos”. Aí é o fim de uma vida né? É a melhor fase da vida de um
homem, você perde. [Participante 14]”. Assim, como pontuam Tavares e
Menandro (2008), o tempo de prisão é um bloqueador na construção
dos projetos de vida futuro.

A percepção sobre a APAC

É inevitável para os entrevistados fazer uma comparação entre


a forma de cumprimento no sistema prisional comum e nas APAC’s.
Um aspecto positivo da APAC em contraste com o convencional
trazido pelos participantes é quanto a produção de autonomia que
a metodologia permite ao “recuperando”. Enquanto que no sistema
comum o preso é levado a perda de sua identidade e autonomia, não
participando do sistema, mas sendo gerido pelo mesmo, na APAC,
conforme os entrevistados, há uma constante busca pela reconstrução
da identidade e capacidade de autonomia do sujeito, por meio da
participação ativa dele na gestão do seu cárcere, algo imaginável
dentro de uma prisão comum. Por isso o sentimento relatado como
espanto por um dos entrevistados ao relembrar quando chegou na
APAC e se deparou com uma forma diferente de tratamento:

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 145


Não, quando eu cheguei, eu também não acreditava. Não sabia como
que era. Mas logo assim, na primeira semana, a gente já foi conversando,
faz isso, faz aquilo outro. A gente já pegava funções pra fazer lá dentro... na
nossa época, no presídio normal, a gente chega preso, a pessoa toda presa.
Não fala, não mexe. É só “sim senhor e não senhor”. E lá dentro não, a gente
teve que se soltar, conversar, teve terapia com psicólogo pra gente se abrir.
Foi dado pra gente as funções pra fazer. Cada um tinha uma função. Então
era importante pra você. Quando te chamava pra fazer alguma. A gente
ficava até assim “eu?”. Ficava até surpreso. “É você mesmo que vai fazer”.
Olha, eu. Entendeu? Isso foi uma libertação pra pessoa, que a partir daí,
quando é, você no presídio normal, você é preso isolado de tudo. É só “não
senhor, sim senhor, não senhor”... Aí você começa a voltar a viver outra vez.
[Participante 11].
A diferença em relação ao tratamento dado as famílias pela
APAC é, talvez, a maior vantagem vista pelos que passaram pela
instituição, depois das condições dignas para o cumprimento da pena,
como a alimentação, a higiene e a valorização humana. O tratamento
dispensado a sua família é algo que sempre vai colocar a instituição
em um lugar diferente:
Na APAC o bom é que a família não tem que ficar... como... como
eu vou falar com você... como é que fala a palavra... é assim, humilhação.
Porque na cadeia, aquela humilhação, tirar a roupa, vestir roupa. Na APAC
não tem isso. Não é humilhante. Até bom você passar lá. [Participante 15].
Embora a APAC tenha diversas vantagens em relação ao sistema
prisional convencional, a mesma possui aspectos comuns com o
sistema comum, pois ela é também uma forma de prisão e, como tal, é
um instrumento de dominação e de controle social (Autor, 2017), o que
é legitimado pela seguintes falas de um dos entrevistados:
Você tem que se adaptar a tudo. Você chega na cadeia [presídio] é dum
jeito. Você chega na APAC melhora mil vezes mais, mas as regas que acaba,
tipo, que ás vezes até te tirando benefícios da APAC, que é uma melhora.
Muita gente que tá na APAC volta por causa de coisa boba. Junta umas
bolinhas amarelas com outras, com um montão de coisa mínima, não vai
mais, tchau né? Eu acho que daí também é uma forma de você começar

146 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


também ter um pouco de noção, mas lá dentro você fica com medo, quando
você fala que não vai fazer isso porque tem a bolinha. E na rua? Não tem a
bolinha, não tem alguém pra conversar. E aí... (faz gesto com as mãos de “se
ferrar”). [Participante 2].
Esse aspecto vai de encontro ao estudo de Almeida, Amaral, e
Barros (2017), que verificou que embora a estrutura física das APACs
seja um avanço por oferecer melhores condições para o cumprimento
de pena, há elementos na metodologia, como a hipervigilância
exercido pela disciplina, que não diferem em nada da violência
causada pelo cárcere comum.
São diversos os desafios apontados pelos entrevistados que
cumpriram pena de privação em liberdade no método. Mais do que
apenas expor tais desafios, esse levantamento pode possibilitar o
aperfeiçoamento da própria metodologia, visto que trata-se de uma
avaliação feita por aqueles que vivenciam na pele a metodologia
apaqueana. Um primeiro desafio identificado foi em relação a falta
de um programa objetivo de preparação para o desligamento do
recuperando da instituição. As falas a seguir demonstram essa
necessidade:
Não, é que nem eu falei, a APAC foi um lugar bom pra quem ta
cumprindo pena né? Mas eu acho que principalmente essa parte do diálogo
e do preparamento para a pessoa tá na rua [precisa melhorar na visão do
entrevistado]. [Participante 2].
Sendo o cárcere uma experiência que pode bloquear a construção
de projetos futuros (TAVARES e MENANDRO, 2008), a falta de um
projeto estruturado que oriente o ex-recuperando no início da sua vida
após a saída da APAC é percebido como um desafio para a instituição.
A ausência de um programa definido voltado para o egresso pode
representar uma dificuldade para o processo de reintegração social,
visto que nos primeiros meses fora da prisão pode ocorrer o que Sá
(1987) denominou como “crise”, quando o egresso passa a lidar com
vários desafios pós cárcere.
Outro desafio apontado pelos participantes é quanto a ausência
de uma assistência e/ou acompanhamento da APAC aos seus

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 147


ex-recuperandos. Embora Ottoboni (2014) pontua sobre a importância
da instituição realizar um acompanhamento com o egresso após a sua
saída, ainda existe essa carência, assim como de um apoio assistencial
ao egresso. É preciso considerar que uma das limitações que podem
ajudar a compreender essa deficiência da APAC é quanto ao número
reduzido de funcionários e voluntários, fazendo com que os que tem
fiquem restritos a acompanhar os recuperandos que estão sobre a
custódia da instituição. Assim, foi identificado um sentimento de
solidão vivenciado por alguns recuperandos ao sair da instituição,
como aparece no seguinte relato:
Acho que a APAC está faltando um projeto de ajudar a pessoa do
portão pra cá. Porque do portão pra lá já está muito bem estruturado, mas
do portão pra cá, a maioria das reclamações é essa. A APAC te monta, te dá
uma estrutura lá, mas aqui fora é você e você. [Participante 4].
A questão do trabalho também é um desafio colocado pelos ex-
recuperandos. A reflexão que se faz aqui é que a falta de um trabalho é
sentida como um problema tanto para os egressos do sistema comum
quanto das APACs. Um dos entrevistados aponta como desafio a
instituição realizar convênios com o poder público ou empresários, de
forma a ajudar o egresso no seu processo de saída da instituição:
É ótimo o trabalho. Só que tem que mais alguma coisa pra ficar
melhor ainda, né? Porque eu que o pessoal já tinha que sair como eu saí,
já com um planejamento já pronto, tipo um serviço, carteira assinada, um
bom emprego, né? [Participante 11].
O relato deste entrevistado contraria a afirmação de Marchi-
Júnior e Caldeira-Filho (2012, p. 186) de que a APAC “torna desnecessária
a busca de trabalho para os egressos, justamente porque, assegurando
efetividade às assistências legais, possibilita a reinserção de um
homem livre na sociedade, sem o estigma do crime, preparado para
iniciar com autonomia uma nova fase”.
A questão da liberdade da prática religiosa também foi algo foi
apontado como um desafio para a instituição. Sendo a espiritualidade
um dos elementos constitutivos do método, ainda são complexas
as maneiras de garanti-la ao recuperando. Na fala abaixo, uma

148 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


ex-recuperanda conta como foi difícil para ela viver sua forma de
espiritualidade/religião:
Quando eu tive lá eu fui muito perseguida por eu ser crente, cristã.
Perseguida por isso. Perseguida mesmo. Até de me falar que iria me mandar
pro presídio. Então eu falei “pode mandar. Eu respeito todo mundo e quero
ser respeitada” [Participante 7].
O elemento da valorização humana é algo que marcou, segundo
os entrevistados, a passagem pela APAC. Conforme Ferreira (2016),
este é o elemento base da metodologia, visto que contribuem para
o resgate da autonomia e da identidade da pessoa. Assim, todas as
atividades oferecidas aos recuperandos e o tratamento dispensados a
eles pela instituição, são relembrados com destaque, como observado
nas seguintes falas:
Na APAC eu já não era preso. Não fiquei preso mais. Só estava em
paredes, não estava preso. Já tinha o convívio social. Tinha tudo lá dentro.
De... como vou dizer, um ambiente normal da família. Com mãe, pai,
filhos. Todo mundo indo, vindo, participando livremente, sem pressão, sem
opressão, sem nada. A APAC foi muito boa pra mim. Me ensinou muito.
Muita coisa que eu aprendi dentro da APAC. Nem sonhava aprender vários
cursos. [Participante 11].
Outro aspecto da valorização humana que foi destacado por
um entrevistado é o fato de que na APAC não há presença de polícia
ou agente penitenciário armado, não se usa o uniforme vermelho da
SUAP e nem é obrigado a andar de cabeça baixa. Isso contribui para o
resgate da identidade e afetividade dos recuperandos, como visto no
seguinte depoimento:
Quando chega na APAC, que você começa ver tudo ali, você poder
andar livre. Sem estar de uniforme, sem tá de cabeça baixa, com cachorro
latindo, agente armado. É outra percepção, outra coisa. Totalmente
diferente. [Participante 4].
A presença de pessoas da comunidade no espaço da APAC
também foi algo apontado como positivo pelos participantes desse
estudo. Percebe-se um sentimento de valorização de si mesmos
quando pessoas, que não funcionários da instituição, passam a

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 149


frequentar e participar da APAC. A esse respeito, Souza (2012) pontua
que a participação da comunidade na APAC permite a aproximação
entre a prisão e a sociedade, co-responsabilizando essa última no
processo de reintegração social.
Sabe-se que a família é extremamente importante na vida das
pessoas e quando se está privado de seu convívio é algo que toma
bastante espaço nas preocupações do preso. A forma como as famílias
são (des)tratadas no sistema prisional convencional são uma das
maiores queixas dos presos. Tendo a APAC uma proposta diferente
em relação a visão da família, tomando-a como parceira na execução
penal, este também foi um aspecto positivamente lembrado pelos
entrevistados como observado no trecho abaixo:
Mas o melhor da APAC hoje está no tratamento humano, né? A sua
família chega lá, não é humilhada, você não é humilhado. [Participante
14].
O elemento “Recuperando ajudando recuperando” foi visto de
forma dividida pelos entrevistados. Para a maioria dos participantes
esse elemento foi percebido como fundamental na metodologia,
pois dava o sentimento de estarem em uma “família”, a qual todos
eram responsáveis uns pelos outros. Logo, no lugar da polícia ou
de agentes penitenciários, a responsabilidade de cuidar do outro é
do companheiro de sela (OTTOBONI, 2014). Mas, para outros, esse
elemento é um ponto crítico, na medida em que ele pode amplificar as
tensões nas relações entre as pessoas. As duas falas a seguir mostram
essa diferença:
Eu acho que ajudei a acompanhar algumas pessoas, pra estar andando
junto com a gente. Pra estar conversando, dando conselho. Porque essa era
minha função lá dentro. De aconselhar, de dar conselho. “Não é por aí, não
é por alguns querendo quebrar a cabeça, falei, não vai”. Nós tínhamos uma
música lá que nós cantávamos muito nas, quando tinha as preparações lá
de fim de ano, “Estamos juntos”. Eu lembro eu que nós sempre brincávamos
um com o outro “Olha o sempre juntos viu?” (risos). [Participante 11].
Ah, no entra e saí lá, porque a tal da disciplina, mas disciplina com
o próprio recuperando te olhando você não funciona não. Porque tem quem

150 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


gosta. O recuperando, recuperando, o preso, o penado, nenhum gosta um do
outro. Nenhum gosta um do outro. Mantém a, como que fala, a presença.
Sorriso falso pra ali, sorriso falso pra cá. Conversa, como que diz, falsa.
Porque todo mundo tem que dialogar, trocar ideia. Mas você tem que tomar
cuidado com o que você ouvir, guardar, e do contrário do que você ouvir não
responder [Participante 12].
Em relação ao trabalho, os entrevistados apontaram como sendo
algo muito importante na metodologia e que ao saírem da instituição
continua sendo uma experiência que os ajudam na vida fora da prisão.
Como já discutido, ao mesmo tempo que a experiência de trabalho
é um desafio ainda a ser vencido pela APAC na visão da maioria dos
participantes, para outros a metodologia consegue cumprir aquilo que
se propõe, como observado nos relatos a seguir:
Saí e já fui trabalhando. Tinha um carrinho velho, vendi. Peguei
o dinheirinho e já comprei os negócios. Recuperei [inaudível] paguei a
prestação, um “cadô” a vista e já fui trabalhando, porque lá dentro mesmo
eu já trabalhava. Fazia muito artesanato. Vendia na rua, artesanato. Faço
muito bem artesanato. Então eu já tinha acostumado a minha maneira de
viver lá dentro. Já trabalhando e vivendo do meu salário. Um pouquinho. E
aqui fora não foi difícil. [Participante 11].
Percebe-se, a partir do que é colocado pelos entrevistados, que a
valorização da atividade de trabalho é algo de muito positivo no Método
APAC. A possibilidade de aprender uma profissão e, até mesmo, de sair
com uma possibilidade real de emprego é algo que facilitou o processo
de reintegração social dessas pessoas. De acordo com Barbalho e
Barros (2010), o trabalho tem uma importância central na busca pela
reintegração social de egressos do sistema prisional, pois por meio
dele as pessoas podem estruturar as suas vidas, participar da vida em
comunidade, ao mesmo tempo em que são reconhecidas e valorizadas.
Por fim, dois outros importantes aspectos enunciados por um
dos entrevistados foram quanto ao fato da metodologia possibilitar
um tratamento diferente da pena, no sentido de que ela seja baseada
em aspectos do amor e na produção da autonomia do recuperando.
É utópico e contraditório conceber a “pena de privação de liberdade”

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 151


como instrumento capaz de trazer autonomia as pessoas, pois mesmo
que humanizada a pena é, em sua forma, algo que traz sofrimento
as pessoas (TAVARES E MENANDRO, 2004). Contudo, a forma como
a metodologia apequena se estrutura permite que o recuperando
tenha um grau maior de autonomia e de protagonismo durante seu
cumprimento de pena, se comparado com o sistema convencional.
Nesse sentido, Ferreira (2016) reflete que essa autonomia dada ao
recuperando permite a ele se tornar protagonista de sua própria
“recuperação”. Como relata um dos entrevistados, ser reconhecido
como alguém que pode contribuir com a instituição e ser respeitado
e amado pela equipe de voluntários é algo que dá felicidade ao
recuperando:
Foi dado pra gente as funções pra fazer. Cada um tinha uma função.
Então era importante pra você. Quando te chamava pra fazer alguma. A
gente ficava até assim “eu?”. Ficava até surpreso. “É você mesmo que vai
fazer”. Olha, eu. Entendeu? Isso foi uma libertação pra pessoa, que a partir
daí, quando é, você no presídio normal, você é preso isolado de tudo. É só
“não senhor, sim senhor, não senhor”. Aí que começa a te dar tudo de novo,
te pedir, [inaudível]. Aí você começa a voltar a viver outra vez. Como a gente
é importante, como a gente tem valor. É a valorização humana. Muito
importante. O método, assim, você quer saber a verdade? É a família, é
amor. Tudo lá. É isso. A APAC é isso, é uma família. Família que traz de
novo pro preso a felicidade, de um ambiente familiar, de ser humano dentro
da família. De ter amor, de ter a chance de novo de se habituar. Destrói
o monstro, destrói tudo aquilo que foi criado, fantasias né? Só fantasias
que foram criadas. [Inaudível] e traz a gente pra realidade. Põe os pés no
chão. E apresenta o amor como base em tudo. Isso é o rito mais importante
da APAC. O amor como base. É, não tinha ninguém com arma, não tinha
ninguém armado. [Participante 11].
Foi verificado que não há um projeto sistemático de
acompanhamento e assistência aos egressos da APAC. Essa
assistência, quando ocorre, é pontual e muitas vezes realizada de
forma mais individualizada, ou por inciativa privada de um voluntário/
funcionário da instituição ou para um determinado ex-recuperando

152 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


que necessitou de alguma ajuda. Em nenhuma das entrevistas foi
identificado um projeto ou programa amplo nesse sentido. Isso é um
ponto crítico na metodologia, visto que a ausência da assistência ou
de acompanhamento dos egressos pode ser um complicador para
o processo de reintegração social, como apontado por Melo e Leite
(2014).
Nas entrevistas foi identificado várias passagens nas quais os ex-
recuperandos se queixam da falta de assistência e/ou acompanhamento
da APAC após o cumprimento da pena. Essa falta de acompanhamento
e assistência trazem um sentimento de “abandono” aos sujeitos:
Acho que a APAC está faltando um projeto de ajudar a pessoa do
portão pra cá. Porque do portão pra lá já está muito bem estruturado, mas
do portão pra cá, a maioria das reclamações é essa. A APAC te monta, te dá
uma estrutura lá, mas aqui fora é você e você. [Participante 4].
Já na fala de outro participante fica evidenciado que alguns
funcionários ou voluntário da APAC se envolvem mais na ajuda a um
determinado ex-recuperando, seja até mesmo pelo vínculo afetivo
(MIRANDA, 2015) ou pela necessidade do mesmo. Assim, essa
assistência é mais individual por parte deste funcionário/voluntário
do que por um programa institucional:
Eu estava trabalhando por senhor X., eu não sei se ele falou pra você,
lá na chácara dele. Aí eu panhei dele lá [a televisão]. Aí ele me vem, esse aí
é um que me ajudou tanto lá dentro quanto aqui fora. Me ajudou muito.
Um grande, como que diz, não é só, um funcionário e um responsável,
administrador lá da APAC. Certo? Não sei nem como explicar a bondade
da pessoa dele. Ele, a família dele, tenho aqui comigo no coração, sabe?
[Participante 12].
Outros entrevistados relataram ter recebido algum tipo de
assistência ou ajuda diretamente da APAC, mas também de forma
pontual, como pode ser observado nos seguintes trechos:
Eu tive uma vez uma necessidade, eu passei uma dificuldade... Eu
também não esqueço disso não, a APAC me fez uma cesta básica e me deu
ela dois meses dentro de casa. [Participante 14].

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 153


Nesse sentido, o maior desafio da política prisional é conseguir
dar assistência ao egresso, seja na APAC ou no sistema comum,
como é determinado pelo Artigo 25º da Lei de Execução Penal (Lei
Nº 7210/1984) de que a assistência ao egresso consiste na orientação e
apoio em sua reintegração, bem como de concessão, caso necessário,
alojamento e alimentação por até 2 meses. Pela LEP é considerado
egresso em liberdade definitiva, por até um ano, a contar da sua saída
ou ser liberado condicional. Ainda, em seu Artigo 27º, determina que
caberá ao serviço de Assistência Social colaborar para o processo de
obtenção de emprego pelo egresso (BRASIL, 1984).
A visão que os ex-recuperandos que passaram pela APAC têm a
respeito da instituição é que foi um lugar mais digno para se cumprir
– ou pagar, na linguagem deles – a pena de privação de liberdade.
Logo, a APAC significou uma prisão humanizada, que busca respeitar
e garantir a individualidade de seus recuperandos, com um projeto
de reintegração social melhor definido e executado do que o sistema
penal comum. Ora também é simplificada como uma “família”, visto
as relações sociais mais saudáveis entre os recuperandos e a ação
menos autoritária dos gestores e do corpo técnico. Há um sentimento
de gratidão e, até mesmo, de defesa da instituição, no sentido de que
para alguns ex-recuperandos ela cumpre o objetivo que se propõe,
“recuperar” o homem do crime, e aqueles que “caíram” não é porque
a instituição falhou, mas por falta de vontade ou determinação dos
mesmos:
Ah, a APAC pra mim foi um lugar legal, porque eu já passei em lugar
pior, igual eu te falei. A APAC, gente, não passa ali, não sai dali com uma
nova expectativa de vida, com uma mente madura, só se a pessoa quer se
perder mesmo. [Participante 10].
Contudo, mesmo reconhecendo as vantagens da APAC frente ao
sistema prisional comum, os entrevistados refletem que ela continua
sendo uma prisão: Porque lá dentro não é bom, nem cadeia e nem APAC.
Você está preso. [Participante 2]. Assim, mesmo que diferenciada, no
que diz respeito a metodologia, a APAC ainda não supera o modelo
punitivista.

154 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


CONSIDERAÇÕES, TALVEZ NÃO TÃO FINAIS ASSIM

Sendo a pena de privação de liberdade um instrumento de


controle social, concorda-se com Mameluque (2006, p. 629), de que
“ninguém pode melhorar em situação de encarceramento”, por isso a
reintegração social deve ser buscada para além da pena de privação de
liberdade (BARATTA, 1990), visto que ela reforça as exclusões sociais.
Assim, embora a APAC seja uma alternativa as mazelas e a falta de
condições dignas para o cumprimento de pena se comparado ao
sistema comum, ela não é uma solução definitiva, pois ainda concebe
o trabalho de “recuperação” estruturado a partir da privação de
liberdade.
A APAC ainda tem o desafio de possibilitar um trabalho mais
individualizado com seus recuperandos, no sentido de permitir a
construção de projetos singulares de reintegração social, considerando
que um único modelo pode não ser suficiente para dar conta de todos
envolvidos, e que suas singularidades precisam ser pensadas visto que
a experiência de reintegração também não é a mesma para todos os
indivíduos. Só assim é possível contornar as dificuldades vividas pelo
egresso durante o seu processo de reintegração social, a criação de
programas de apoio para esses indivíduos podem ajudar a minimizar
os efeitos negativos do encarceramento (SOUZA E SILVEIRA, 2015).
No que se refere a assistência continuada, embora a metodologia
da APAC e a própria LEP estabeleçam que a assistência ao egresso deve
ser oferecida após o cumprimento de pena, não foi encontrada neste
estudo um modelo sistemático de acompanhamento/assistência aos
egressos. Esse acompanhamento ainda é feito de maneira pontual.
Assim, é necessário uma integração entre os diversos programas
sociais e a criação de programas de atenção ao preso, ao egresso e sua
família, de forma que o acesso aos bens culturais sejam parte central
nesse processo (BARROS E LHUILIER, 2013), pois caso isso não seja
feito, dificilmente o egresso conquistará uma inclusão social digna se
o cárcere não for descontruído de seu imaginário, bem como se não
for superadas as condições de fragilidade e vulnerabilidade (SÁ, 2015).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 155


Baratta (1990, p. 2) pontua que “nenhuma prisão é boa e útil o
suficiente para essa finalidade, mas existem algumas piores do que
outras”. Nesse sentido, a Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (APAC) vem se consolidando, nos últimos 45 anos, como
uma alternativa para se atingir a finalidade da pena (Lino, 2012). Não
se trata aqui de conceber o Método APAC como perfeito para promover
a execução penal do ponto de vista da reintegração social ou, como
sinaliza Ferreira (2016), a considerar como solução para os problemas
do sistema prisional, servindo como modelo pronto e acabado. Mas,
como lembra Baratta (1990), qualquer que seja a iniciativa baseada no
interesse pelos direitos e destino das pessoas e que faz com que a vida
na prisão seja menos dolorosa, deve ser apreciada com seriedade.
A importância de uma pesquisa no contexto prisional se dá
por mostrar como as instituições, de fato, funcionam e qual é o seu
impacto para a sociedade, assim como explicitar os discursos que
sustentam suas práticas, de forma a permitir o desenvolvimento
de novas formas de pensamento (HULSMAN E CELIS, 1993). Nesse
sentido, o pesquisador não deve se limitar apenas em compreender
uma realidade, mas precisa assumir um “engajamento ético/político
que vise à transformação social e à emancipação dos sujeitos, na
construção de uma sociedade que não necessite de prisões” (ALMEIDA
ET AL., 2017, p. 430).
A Psicologia, enquanto ciência e profissão, tem um importante
papel no debate crítico a respeito das políticas públicas de segurança
pública e da execução penal, no sentido da construção de “atuações
interdisciplinares, práticas que favoreçam uma nova significação em
termos de futuro para o condenado e que contribuam efetivamente
para sua reinserção na comunidade e na construção e resgate de
vínculos, assim como de cidadania” (MIRANDA, 2015, p. 665).

156 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, D. T. de, AMARAL, T. V. F., BARROS, V. A. de. Conside-


rações sobre trabalho e cárcere. In F. Fidalgo & N. Fidalgo (Eds.), Siste-
ma prisional: teoria e pesquisa (pp. 413–436). Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2017.

ARAGAKI, S. S., LIMA, M. L. C., PEREIRA, C. C. Q., NASCIMEN-


TO, V. L. V. do. Entrevistas: negociando sentidos e coproduzindo ver-
sões de realidade. In M. J. P. Spink, J. I. M. Brigagão, V. L. V. do; Nasci-
mento, M. P. Cordeiro (Eds.), A produção de informação na pesquisa
social: compartilhando ferramentas (pp. 57–72). Rio de Janeiro: Cen-
tro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2014.

BARATTA, A. Ressocialização ou controle social: uma aborda-


gem crítica da “reintegração social” do sentenciado, 1–9, 1990. Reti-
rado de http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/ressocialização-ou-
-controle-social-uma-abordagem-crítica-da-“reintegração-social”-do-
-senten

BARBALHO, L. de A., BARROS, V. A. de. O lugar do trabalho na


vida do egresso do sistema prisonal: um estudo de caso. Gerais: Revis-
ta Interistitucional de Psicologia, 3(2), 198–212, 2010.

BARBALHO, L. de A., BARROS, V. A. de. Entre a cruz e a espa-


da: a reintegração de egressos do sistema prisional a partir da políti-
ca pública do governo de Minas Gerais. Psicologia Em Revista, 20(3),
549–565, 2014.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BARROS, V. A. de, LHUILIER, D. Marginalidade e reintegração


social: o trabalho nas prisões. In L. de O. Borges; L. Mourão (Eds.), O
trabalho e as organizações: atuações a partir da psicologia (pp. 669–
694). Porto Alegre: Artmed, 2013.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 157


BERGALLI, R., RAMIREZ, J. B., ZORRILLA, C. G., MIRALLES, T.,
SOLA, Á. de S., VILADA, C. (1983). El pensamiento criminológico II:
estado y control (2 Volume). Bogóta: TEMIS Libreria.

BRAGA, A. G. M. Reintegração social e as funções da pena na


contemporaneidade. Revista Dos Tribunais Online, 107, 339–356,
2014.

BRASIL. Lei No 7210. Brasília, DF: Casa Civil, 1984.

BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciá-


rias INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.

BRASIL. Lei Nº 13.675. Brasília, DF: Casa Civil, 2018.

CARDOSO, Luiz Felipe Viana. Da reintegração social à inclusão


psicossocial: um estudo com pessoas que cumpriram pena de priva-
ção de liberdade no Método APAC. Dissertação de Mestrado. Progra-
ma de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de São João
del-Rei, 2018, 161p.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ recomenda expansão


das APACS para a redução da reincidência criminal do país, 2014. Re-
tirado de http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28296-cnj-recomenda-ex-
pansao-das-apacs-para-a-reducao-da-reincidencia-criminal-no-pais

DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar, (24),


213–225, 2004.

ESTADÃO. Brasil terá 1,47 milhão de presos até 2025, segundo


levantamento. [online], 2018. Disponível em: https://brasil.estadao.
com.br/noticias/geral,brasil-tera-1-47-milhao-de-presos-ate-2025-se-
gundo-levantamento,70002409415 [Acesso em 21 Jul. 2018].

ESTADO DE MINAS. Violência no Brasil consome o equiva-


lente ao PIB da Região Norte. [online], 2018. Disponível em: https://

158 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


www.em.com.br/app/noticia/economia/2018/03/23/internas_econo-
mia,946151/violencia-no-brasil-consome-o-equivalente-ao-pib-da-re-
giao-norte.shtml [Acesso em 18 de Jul. 2018].

FERREIRA, V. A. Juntando cacos, resgatando vidas: valorização


humana - base do Método APAC e a viagem ao mundo interior do pri-
sioneiro: psicologia do preso. Belo Horizonte: O Lutador, 2016.

FIDALGO, F., FILDALGO, N., ROCHA, S. W., ALVES, Y. E. O ONASP


e a produção acadêmica sobre o sistema prisional brasileiro: rumo a
um estado da arte. In F. Fidalgo; N. Fidalgo (Eds.), Sistema prisional:
teoria e pesquisa (pp. 17–40). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. (13a). Rio de Janeiro: Edi-


ções Graal, 1998.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo:


Perspectiva, 1974.

HULSMAN, L., Celis, J. B. de. Penas perdidas: o sistema penal


em questão. Rio de Janeiro: LUAM, 1993.

LINO, B. T. Assistência ao egresso sob a perspectiva do Método


APAC. In J. R. Silva (Ed.), A execução penal à luz do Método APAC (1a
atualiz, pp. 111–119). Belo Horizonte: TJMG, 2012.

MAMELUQUE, M. da G. C. A subjetividade do encarcerado, um


desafio para a psicologia. Psicologia Ciência e Profissão, 26(4), 620–
631, 2006.

MARCHI-JÚNIOR, A. de P., Caldeira-Filho, F. H. Ressocialização,


Fiscalização e Método: sobre a Atuação dos Órgãos da Execução Penal.
In J. R. Silva (Ed.), A execução penal à luz do Método APAC (1a atualiz,
pp. 171–188). Belo Horizonte: TJMG, 2012.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 159


MATA-MACHADO, M. Novais da. Entrevista de pesquisa: a inte-
ração pesquisador/entrevistado. Belo Horizonte: C/ Arte, 2002.

MELO, K. M. de A., LEITE, R. V. Sistema penitenciário: obstácu-


los à reintegração social do egresso. Revista Dat@venia, 8(11), 66–85,
2014. http://doi.org/ISSN 1519-9916

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualita-


tiva em saúde (12a ed). São Paulo: Hucitec, 2010.

MIRANDA, S. L. de. A construção de sentidos no método de exe-


cução penal APAC. Psicologia e Sociedade, 27(3), 660–667, 2015.

OTTOBONI, M. Vamos matar o criminoso? Método APAC (4a


ed.). São Paulo: Paulinas, 2014.

PINHEIRO, O. de G. Entrevista: uma prática discursiva. In M. J.


Spink (Ed.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano
(pp. 156–187). Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais,
2013.

RUSCHE, G., KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social (2a).


Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SÁ, A. A. de. Reincidência criminal: sob o enfoque da psicologia


clínica preventiva. São Paulo: EPU, 1987.

SÁ, A. A. de. Algumas ponderações acerca da reintegração social


dos condenados à pena privativa de liberdade. Revista Da ESMAPE,
5(11), 25–70, 2000.

SÁ, A. A. de. A “ressocialização” de presos e a terceirização de


presídios: impressões colhidas por um psicólogo em visita a dois pre-
sídios terceirizados. Revista Da Fundação Escola Superior Do Minis-
tério Público Do Distrito Federal E Territórios, 21(11), 13–23, 2003.
http://doi.org/ISSN 1517-5286

160 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


SÁ, A. A. de. Criminologia clínica e psicologia criminal (Revista
do). São Paulo, 2007.

SÁ, A. A. de. Criminologia Clínica e Execução Penal: proposta


de um modelo de terceira geração (2a ed.). São Paulo: Saraiva, 2015.

SAWAIA, B. B. O sofrimento ético-político como categoria de


análise da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Ed.), As artima-
nhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social
(2a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

SCHWANDT, T. A. Três posturas epistemológicas para a inves-


tigação qualitativa. In N. K. DENZIN & Y. S. LINCOLN (Eds.), O pla-
nejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens (2a ed., pp.
194–217). Porto Alegre: Artmed / Bookman, 2006.

SOUZA, R. L. Programas destinados a egressos do sistema pri-


sional: um olhar sobre do PrEsp. Universidade Federal de Minas Ge-
rais, 2012.

SOUZA, R. L., SILVEIRA, A. M. Mito da ressocialização: progra-


mas destinados a egressos do sistema prisional. Ser Social, 17(36),
163–188, 2015.

TAVARES, G. M., MENANDRO, P. R. M. Atestado de exclusão com


firma reconhecida: o sofrimento do presidiário brasileiro. Psicologia,
Ciência e Profissão, 24(2), 86–99, 2004. Retirado de http://www.scielo.
br/pdf/pcp/v24n2/v24n2a10

TAVARES, G., MENANDRO, P. R. M. Trajetórias de vida de pre-


sidiários e possíveis sentidos para a prisão. Psicologia Política, 8(15),
121–138, 2008.

VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualita-


tiva: um debate aberto. Temáticas, 22(44), 203–220, 2014.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 161


162 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A ESCUTA DO SUJEITO
NO SISTEMA PRISIONAL:
UMA EXPERIÊNCIA DA
ARTICULAÇÃO ENTRE
A PSICOLOGIA E A
METODOLOGIA DA APAC
Hélio Cardoso de Miranda Jr.
Anne Campos Pereira
Gabriela Jardim Villefort

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 163


164 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A ESCUTA DO SUJEITO NO SISTEMA PRISIONAL:
UMA EXPERIÊNCIA DA ARTICULAÇÃO ENTRE A
PSICOLOGIA E A METODOLOGIA DA APAC

Hélio Cardoso de Miranda Jr.36


Anne Campos Pereira37
Gabriela Jardim Villefort38

INTRODUÇÃO

A questão penitenciária é marcada, como bem pontuado por


Chies (2013), por articulações complexas entre as esferas sociais,
políticas e econômicas da sociedade moderna. É impraticável que,
em uma estrutura social disciplinar composta por relações de poder
hierárquicas definidoras de quem disciplina e quem é disciplinado,
não haja a intenção da máxima “docilidade e utilidade de cada parte
do sistema” (BENELLI, 2014, p. 65), principalmente se considerarmos
o contexto socioeconômico produzido pelo sistema capitalista. Como
apontado por Foucault (1999, p. 143),

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica de um


poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como
objetos e como instrumentos de seu exercício [...]. O
sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao
uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico,
a sanção normalizadora e sua combinação num
procedimento que lhe é específico, o exame.

36 Professor da Faculdade de Psicologia da PUC Minas


37 Graduanda do Curso de Psicologia da PUC Minas Coração Eucarístico e participante
do projeto de extensão “Programa (A)penas Humanos”.
38 Graduanda do Curso de Psicologia da PUC Minas Coração Eucarístico e participante
do projeto de extensão “Programa (A)penas Humanos”.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 165


Assim, não é surpreendente quando nos deparamos com
trabalhos focalizados no contexto penitenciário que apontam o
sistema prisional como uma “nova economia do poder de castigar”,
da forma indicada por Lemos e outros (1998, p. 3). Ora, se a intenção
de uma sociedade disciplinar é, como mencionado anteriormente,
garantir que a estrutura dessa sociedade esteja embalada pela
docilidade e utilidade, nada mais coerente do que desassociar o poder
de punir das mãos de apenas um símbolo de autoridade – o soberano –
e incorporá-lo como parte do corpo social, “tornando o poder de punir
mais regular, mais eficaz, mais constante” (LEMOS et al., 1998, p. 3). A
punição perante o crime torna-se, então, uma característica inerente a
toda sociedade que deva ser considerada funcional desde então.
O papel das prisões nessa lógica punitiva é muito bem traduzido
por Foucault (1975, p. 207):

A prisão foi uma peça essencial no conjunto das


punições, marcando um momento importante
na história da justiça penal. Fundamentadas nas
sociedades industriais, pelo seu caráter econômico,
as prisões aparecem como uma reparação. Retirando
tempo do condenado, a prisão parece traduzir
concretamente a ideia de que o criminoso lesou,
não somente a vítima, mas a sociedade inteira.
Esse caráter econômico-moral de uma penalidade
contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos,
e estabelece equivalências quantitativas entre delitos
e duração das penas.

A prisão passa a ser, portanto, uma manifestação física, social e


histórica do caráter punitivo da sociedade disciplinar (CHIES, 2013).
O sistema prisional desempenha, entre outros papéis, uma função
simbólica, na qual a retirada do criminoso da sociedade é a prova de
que o indivíduo não errou apenas frente àqueles de seu circuito social
direto e próximo, mas frente a todo o corpo social no qual ele está
inserido (BENELLI, 2014). O próprio sistema de funcionamento de uma

166 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


prisão é responsável por um “engessamento” do sujeito, o qual passa
a ser reduzido a uma identidade estereotipada pela criminalização,
pela patologização e pela gestão punitivista e penalizante da vida
(SCISLESKI et al., 2016 apud UZIEL, 2018).
Nesse sentido, podemos dizer que o sistema prisional é fruto
de um encadeamento de articulações políticas, históricas, sociais e
econômicas, bem como é um símbolo físico do que não é explícito na
questão penitenciária, pois é impossível que esse tipo de sistema não
seja perpassado por marcadores sociais coloniais e questões como o
gênero, a etnia ou a classe econômica (BORGES, 2018).
No contexto brasileiro, cabe ressaltar que a crítica em relação
à desvalorização dos direitos humanos dos presidiários dentro do
sistema prisional é recorrente, principalmente críticas provenientes
de campos de estudo como a Psicologia (UZIEL, 2018). O caráter
punitivista embutido nesse sistema, somado à precariedade do sistema
penitenciário do país, que convive com fatores como a superlotação das
celas ou a ocorrência excessiva de epidemias na população carcerária
(ASSIS, 2007), é especialmente destacado por sua incoerência com o
estatuto executivo-penal brasileiro, considerado, na teoria, um dos
dispositivos mais avançados e democráticos entre as nações (ASSIS,
2007). Entre os diversos fatores que originam essa discrepância entre
a teoria e a prática da legislação brasileira, é possível considerarmos
que talvez o abandono governamental em relação ao sistema prisional
(MACHADO; SOUZA; SOUZA, 2013) seja uma das consequências do
simbolismo que este sistema representa: torna-se socialmente mais
aceitável negligenciar uma parcela da população se esta é definida
como uma parcela que merece a punição que lhe foi entregue.
De acordo com o Sistema de Informação do Departamento
Penitenciário Nacional (SISDEPEN), de julho a dezembro de 2020, o
total de encarcerados no Brasil em unidades prisionais de celas físicas
era de 668.135 indivíduos e os encarcerados em prisão domiciliar
compunha um total de 139.010. Em relação às celas físicas no Brasil,
em 2020, 445.113 são as vagas para um total de 668.135 prisioneiros, o
que escancara a superlotação da população carcerária. Dessas 668.135

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 167


pessoas em unidades prisionais de celas físicas, 4,29% são do gênero
feminino e 95,71% do gênero masculino.
Esses dados coletados do SISDEPEN (2020) apresentam a
situação de superlotação carcerária e evidenciam outro problema: a
falta de informações mais recentes sobre a pandemia e o ano de 2021.
Campello e Chies-Santos (2021), do Núcleo de Estudos da Violência
da Universidade de São Paulo (NEV-USP), discorrem em uma matéria
do G1 sobre a ausência de dados importantes referentes à Covid-19 –
como número de infectados e mortos – e à omissão de medidas efetivas
relacionadas à saúde dos presos. Campello e Chies-Santos (2021, s/p)
alegam que “a administração da pandemia no sistema penitenciário
brasileiro se mantém centrada na omissão de dados, no silenciamento
de denúncias e na intensificação da violência carcerária”.
Ademais, em relação ao Sistema de Saúde Penitenciário,
importante ferramenta para o combate à disseminação de vírus e
doenças, é possível encontrar dados no SISDEPEN de julho a dezembro
de 2020 informando sobre a infraestrutura e a equipe da área da saúde.
Essas informações revelam que estão disponíveis 1.049 consultórios
médicos, 786 consultórios odontológicos, 861 salas de atendimentos
clínicos multiprofissionais, entre outros. As informações sobre os
profissionais são de que existem 766 dentistas, 1.641 enfermeiros, 902
clínicos gerais, 2.642 técnicos de enfermagem, 1.205 psicólogos, 279
psiquiatras, 102 terapeutas ocupacionais, entre outros.
Dados sobre as Ações de Ressocialização e Assistência Social
também podem ser encontrados no SISDEPEN (2020), indicando que
cerca de 98.940 presos (13,12%) praticam laborterapia e 56.145 deles
recebem remuneração. Além disso, 92.561 dos encarcerados estão
em atividades educacionais, sendo que 13.699 praticam atividades
laborais e educacionais.
Apesar desses dados sobre os recursos na área da saúde,
atividades laborais e educacionais, a precariedade do sistema
prisional brasileiro é conhecida e debatida intensamente. Propostas
de modificação do sistema e até mesmo de sua extinção circulam nos
meios políticos e acadêmicos. Entre as propostas de modificação do

168 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


sistema, encontramos a abordagem da APAC. A seguir, apresentaremos
essa proposta e sua relação com a prática da psicologia no sistema
prisional.

2 APAC – UMA PROPOSTA INOVADORA

A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC)


surgiu em 2001, em Minas Gerais, com o intuito de oferecer um novo
método para a reinserção social das pessoas em conflito com a lei, em
um contexto marcado pelo sistema penitenciário brasileiro repleto de
diversos problemas estruturais, como as citadas anteriormente sobre
a superlotação dos presídios e as condições físicas dos presidiários
(MOREIRA; SILVA, 2020). Diante disso, o Programa Novos Rumos,
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, passou a gerenciar um novo
método para lidar com a questão penitenciária, o qual é caracterizado
pelo estabelecimento de uma abordagem cujo objetivo primordial é
recuperar o indivíduo para a sociedade em contraposição à perspectiva
meramente punitivista. Por isso, os detentos que integram o projeto
são chamados “recuperandos”, denominação que utilizaremos a partir
deste momento ao longo do texto. No método proposto pela APAC,
que vige em suas unidades, há uma disciplina rígida, mas baseada
em valores como o respeito, a ordem, o trabalho e o envolvimento da
família do recuperando com o processo (RODRIGUES et al., 2019).
Além dos objetivos de recuperação e reinserção social do
detento, a promoção de uma justiça restaurativa e a vinculação de
práticas religiosas cristãs com o Método APAC são características
inerentes a esse sistema (FERREIRA; OTTOBONI, 2016). É obrigatório
que os recuperandos pratiquem a religião cristã dentro da instituição,
seja por meio de orações, cultos ou missas, uma vez que os valores
cristãos estão diretamente ligados ao ideal de adaptação social desse
método (RODRIGUES et al., 2019).
Outro ponto defendido pelo Método APAC é a necessidade do
envolvimento da sociedade com a questão penitenciária. Se o intuito
do sistema prisional é utilizar a prisão como forma de proteger

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 169


a sociedade e restaurar a segurança, cabe à APAC “possibilitar
à sociedade ter consciência sobre o problema da violência, da
criminalidade e da real situação das prisões e daqueles que nela
vivem” (MOREIRA; SILVA, 2020, p. 290). O objetivo desse sistema é
permitir que o recuperando tenha uma condição digna de vida envolta
por socialização, cooperação com os outros recuperandos, trabalho e
religião, sem que isso diminua a função punitiva do sistema prisional
– o detento continua em um sistema rígido de privação de liberdade,
com uma rotina sistematizada e ordenada pela instituição (MOREIRA;
SILVA, 2020).
O Método APAC apresenta diversos resultados positivos, de
acordo com Silva (2012), que afirma:

Basta ver que nos centros de recuperação


administrados pelas APAC’s, temos um índice de
reincidência próximo a 10%, disparado o menor
índice do mundo, e com um detalhe importantíssimo,
todos os reincidentes neste último caso cometem o
mesmo delito ou delito de menor potencial ofensivo
do que aquele que os levou ao cárcere (SILVA, 2012,
p. 194-195).

No que se refere à reflexão acerca de suas penas, seus crimes


e suas experiências, o Método APAC propõe atividades que possam
permitir aos recuperandos construir novos objetivos e significados
para suas vivências do passado e do presente, no intuito de projetar
um futuro (MIRANDA, 2015). Esse tipo de metodologia pode provocar
rupturas ou ampliações da relação dos recuperandos com os membros
envolvidos no Método APAC, uma vez que é possível que as inquietações
provocadas pelo próprio método gerem um mal-estar em relação a
expectativas, sentimentos e pensamentos dos participantes quanto
à própria percepção de suas vidas. Porém, podem significar também
mudanças, reconstruções e abertura ao processo de recuperação e
reinserção social.

170 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Por fim, a estrutura das APAC é também bastante diferente da
estrutura prisional tradicional. Dentro das instalações do Método APAC,
os recuperandos possuem uma cama própria, recebem alimentação
digna e não têm a obrigatoriedade do uso de uniformes. A organização
é definida conforme a distribuição de setores de atendimento e
alojamento para os recuperandos (FARIA, 2011 apud MOREIRA; SILVA,
2020), que não são fiscalizados por guardas ou seguranças armados
durante a rotina. Esse tipo de sistematização da instituição é muito
importante quando pensamos nas críticas aos direitos dos presidiários
no sistema prisional comum. Podemos verificar isso destacando como
exemplo o seguinte trecho de Assis (2007, p. 182):

A partir do momento em que o preso passa à tutela


do Estado, ele não perde apenas o seu direito de
liberdade, mas também todos dos outros direitos
fundamentais que não foram atingidos pela sentença,
passando a ter um tratamento execrável e a sofrer
os mais variados tipos de castigos que acarretam a
degradação de sua personalidade e a perda de sua
dignidade, num processo que não oferece quaisquer
condições de preparar o seu retorno útil à sociedade.

Nas APAC também não há revista íntima nos dias de visita. Os


próprios recuperandos exercem funções administrativas, fazem sua
comida e possuem vários tipos de atividade durante o dia, desde
trabalhos manuais a cursos. Tudo isso auxilia a compor um ambiente
diferenciado do ambiente tradicionalmente vivenciado nas prisões
comuns.
Pelo exposto até aqui, foi possível perceber a nítida diferenciação
entre o sistema prisional brasileiro e o Método APAC. A partir de agora,
para uma melhor compreensão da atuação da Psicologia na questão
penitenciária, discutiremos sua prática nos dois sistemas.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 171


3 PSICOLOGIA E SISTEMA PRISIONAL

A psicologia é chamada a atuar no sistema prisional por meio


de técnicas de observação e de avaliação psicológica. Desse modo,
ela contribui para os programas de individualização da pena que
incluem o exame criminológico, pelo qual é importante estabelecer
um “prognóstico psicológico” do(a) detento(a) (BARROS; AMARAL,
2016). A ênfase nas técnicas de avaliação psicológica desconectadas de
outras disciplinas e, algumas vezes, sem consideração do contexto do
indivíduo avaliado, ou seja, realizadas apenas para complementar um
conjunto de dados sobre cada indivíduo preso, distancia a psicologia
da atuação em um campo que é fundamental: o campo da saúde,
na prevenção no tratamento. Isso pode ser constatado facilmente,
pois na Lei de Execução Penal, por exemplo, não há previsão para a
assistência psicológica aos detentos.
A questão que se coloca para profissionais da psicologia que
atuam em unidades prisionais diz respeito à possibilidade de trabalhos
com os detentos que não se restrinjam à avaliação citada acima. É
possível verificar a existência de tentativas de criação de intervenções
com o público presidiário distintas da tradicional avaliação psicológica.
Rauter (2007, citada por BARROS; AMARAL, 2016) indica a possibilidade
do trabalho com grupos de detentos, os atendimentos individuais e o
trabalho com a arte. Essas frentes de trabalho, porém, não diminuem
a importância de o(a) psicólogo(a) denunciar as condições de vida nos
cárceres, além da necessidade de contar com a rede de apoio pública
em termos de saúde e de assistência social.
Essas possibilidades de trabalho requerem que o(a) psicólogo(a)

leve em conta, ao mesmo tempo, a experiência da


detenção, no que ela solicita e impede aos sujeitos, as
condições ambientais ligadas ao contexto carcerário,
a problemática da adaptação a este meio de vida e os
recursos das pessoas encarceradas face ao conjunto

172 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


de dimensões constitutivas do aprisionamento
(BARROS; AMARAL, 2016, p. 66).

Isso implica, segundo Rauter (2016), circular pela instituição,


falar com os agentes penitenciários, conhecer o cárcere, os espaços
de convivência e de cotidiano dos detentos, além de outras atividades.
A história do atendimento ao egresso do sistema prisional
na cidade de Maringá (PR), relatada por Gonzaga e outros (2002),
também demonstra a dificuldade de encontrar um modelo de
atuação da psicologia – relacionada ao sistema prisional – não
relacionada às avaliações psicológicas e que consiga obter a adesão
dos detentos e dos egressos. Na história relatada, percebem-se as
dificuldades nas propostas de atendimento individual, a direção
tomada preferencialmente para o trabalho com grupos e a ênfase
na necessidade de “conscientização” dos detentos e dos egressos por
meio de informações e de provocação de reflexões.
Santos (2011), ao abordar sua experiência em um Centro de
Triagem39 e tendo como referência o trabalho de escuta baseado na
psicanálise, que ela chama de escuta analítica, indica a importância
de considerar que o sujeito (no sentido que a psicanálise lacaniana
dá a este termo) sempre escapa ao enquadre institucional. Ele resiste,
recusa submeter-se à disciplina, faz exigências, entra em crise,
demanda tratamento, revolta-se e, muitas vezes, chega à passagem ao
ato.
Seguindo essa indicação, podemos asseverar que ter a escuta
analítica como guia de ação pode possibilitar um espaço entre o discurso
social/estatal, que está explicitado no sistema prisional, o discurso
institucional do lugar em que o indivíduo está cumprindo pena e o
próprio sujeito. Este mínimo espaço pode ser aquele em que a palavra
circule menos restritivamente para ter a chance de adquirir um valor

39 O centro de triagem é o Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (CERESP),


localizado no bairro São Cristóvão, que surgiu no contexto de delineamento de uma
nova política estadual de Segurança Pública a partir da criação da Secretaria de Estado
de Defesa Social (SEDS), em 2003.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 173


de sujeito. Psicanaliticamente, sujeito é o efeito de falar a um outro
que, na sua escuta, possa incluir o singular, a surpresa, a contingência
que se articulou ao desejo e que pode levar à responsabilização.

4 PSICOLOGIA NA APAC

De acordo com pesquisa realizada pelo Centro de Referência


Técnica em localizar

o trabalho das(os) psicólogas(os) na APAC funda-


se nos seguintes aspectos: vínculo psicóloga(o)-
preso, produção de documentos para subsidiar
decisão judicial, adesão dos apenados às atividades,
interdisciplinaridade, trabalho em rede e referenciais
teóricos (CRP-MG, 2019, p. 82).

Segundo a publicação do Conselho Regional de Psicologia (CRP-


MG, 2019), o vínculo psicóloga(o)-preso e a adesão dos apenados às
atividades propostas pela psicologia têm a potência de auxiliar o
sujeito a tomar consciência e se responsabilizar sobre seu processo,
ressignificando suas vivências e conteúdos inconscientes.
Essa potência da psicologia pode ser indicada na atuação
do projeto de extensão “Programa (A)penas Humanos: ações
interdisciplinares no âmbito da Apac” da Pró-Reitoria de Extensão
da PUC Minas na área de direitos humanos e justiça. O programa e
os diversos projetos de extensão têm atuação direta na APAC Santa
Luzia (MG) e possui como objetivo geral “contribuir para a efetivação e
aperfeiçoamento da política pública do método APAC, integrando-se à
rede intersetorial de atendimento ao sentenciado em cumprimento da
pena privativa de liberdade” (PROEX, 2021). Para isso, são realizados
trabalhos por vários cursos da PUC Minas como Direito, Enfermagem,
Filosofia, Fisioterapia, Letras e Psicologia. O programa e as equipes
envolvidas visam a contribuir para o bem-estar dos recuperandos,

174 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


respeitando todos os princípios sustentados pela instituição APAC, e
proporcionar aprendizagem aos alunos com a prática e a pesquisa.
As atividades promovidas pelo curso de Psicologia nas APAC,
por meio do Programa (A)penas Humanos, visam ao acolhimento
dos recuperandos por meio de atendimentos individuais, plantões
psicológicos e rodas de conversa. Esse trabalho tem o intuito de que
os recuperandos possam falar de seus problemas, tratar de demanda
subjetiva emergencial e promover reflexões em conjunto com os
colegas. Assim, um dos elementos fundadores da APAC, a “valorização
humana”, é contemplado na atuação da equipe de psicologia ligada ao
projeto.
Estas atividades ocorreram até o início da pandemia de
Covid-19, em março de 2020, quando a intervenção, que se tornara
possível pelo Programa (A)penas Humanos, passou a utilizar os meios
de comunicação virtuais (internet, produção de material audiovisual
etc.). No caso das ações da equipe de psicologia, o diálogo com os
recuperandos foi feito por meio da produção de material audiovisual
com temáticas derivadas de suas demandas e com material artístico
(música, poesia) para promover reflexões que os motivassem a nos
enviar respostas por cartas.
Vamos tratar mais detidamente da questão dos atendimentos
individuais e em grupo que ocorriam antes do período de oficialização
do início da pandemia por entendermos que é a abordagem que será
retomada assim que as medidas sanitárias forem modificadas. Além
disso, entendemos que a “humanização” do tratamento do preso passa
também pela possibilidade do trabalho com a palavra enunciada
livremente e acolhida clinicamente. A experiência com os materiais
audiovisuais ainda está em elaboração.

5 A ESCUTA DA PALAVRA DO SUJEITO

Não é simples o trabalho da psicologia nas instituições quando


quer ocupar e defender uma posição crítica e inventiva. O trabalho
realizado por psicólogas e psicólogos nas APAC tem sido importante

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 175


para contribuir com o objetivo institucional. A pesquisa já citada,
desenvolvida pelo CREPOP (CRP-MG, 2019), indicou a relevância da
presença dos profissionais de psicologia nessas instituições, mas
também apontou as questões e os impasses relacionados ao exercício
profissional.
Esta pesquisa constatou que duas frentes de trabalho são as
principais para os profissionais de psicologia que atuam nas APAC,
apesar de não haver, até aquele momento, definição criteriosa da
função do profissional de psicologia na instituição.
Comumente, o trabalho do(a) psicólogo(a) divide-se entre o
atendimento individual e o trabalho com grupos, sendo que outras
funções ou papéis são demandados desses profissionais dependendo
da direção de cada unidade da APAC.
De acordo com as informações encontradas, a inserção do
psicólogo(a) na instituição enfrenta três questões muito importantes.
A primeira se refere à qualidade do vínculo estabelecido entre o(a)
psicólogo(a) e o(a) recuperando(a). Por ser profissional ligado à
instituição, mesmo que algumas vezes de forma voluntária, o vínculo
de confiança que necessita ser estabelecido entre profissional e
recuperando(a) para que o(a) próprio(a) recuperando(a) não se sinta
inibido(a) em relação àquilo que deseja falar ou tratar, individualmente
ou em grupo, pode ficar prejudicado, pois o(a) psicólogo(a) pode ser
visto(a) pelo(a) recuperando(a) como alguém que informa a instituição
sobre o que acolhe ou recolhe em sua escuta.
Isso é amplificado nos casos em que é demandado pelo judiciário
ao(à) psicólogo(a) que trabalha na APAC a produção de documentos
que sirvam para compor os processos judiciais de progressão de
regime. Se o profissional em psicologia decide responder a esta
demanda judicial, algumas vezes sem a formação ou preparação que
seria necessária, o vínculo de confiança, relacionado à função de
escuta clínica, sofre interferência, pois a produção do documento
passa a compor o material que circula na fala e na transferência entre
quem atende e quem é atendido(a). Isso pode distorcer a fala do(a)
recuperando(a), de forma que ela se torne não mais uma fala livre,

176 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


fundamental para o trabalho de escuta clínica, mas uma fala que
projeta expectativas distintas daquelas que existiriam em uma relação
clínica (psicoterapêutica).
Isso não significa que muitos desses profissionais não consigam
exercer a escuta clínica. De fato, em muitos casos, é possível que
o(a) psicólogo(a) obtenha êxito em relação ao atendimento clínico
de muitos(as) recuperandos(as). As dificuldades mencionadas na
pesquisa, porém, devem ser consideradas.
A terceira dificuldade apontada na pesquisa é a realização do
trabalho com grupos quando estão presentes indivíduos que pertencem
ou pertenceram a facções criminosas rivais. Muitas questões sobre
esse tipo de problema poderiam ser indicadas aqui; porém, esse não é
o escopo deste texto.
Apesar das dificuldades, há na pesquisa citada relatos
da importância do atendimento e acompanhamento dos(as)
recuperandos(as). Há também, em algumas unidades da APAC, o
trabalho com familiares e amigos(as) dos(as) recuperandos(as) em
rodas de conversa.
Uma diferença importante entre a inserção dos(as) psicólogos(as)
citados(as) acima e o projeto de extensão da PUC Minas é que os
professores e os estudantes vinculados a ele não possuem vínculo
efetivo com a APAC, o que faz de cada um deles um agente que não
possui relação direta com a instituição, ou seja, alguém que não possui
compromisso com todas as regras institucionais cotidianas de rotina e
convivência e que não é demandado a produzir informações sobre os
recuperandos para a instituição. Isso indica que a questão do sigilo na
escuta psicológica pode ser percebida e absorvida pelos recuperando
de forma mais coerente com o trabalho proposto, o que possibilita que
sua fala seja mais livre.
Desde o princípio do projeto de extensão da PUC Minas, o trabalho
de atendimento psicológico aos recuperandos da APAC em Santa Luzia
(MG) aconteceu, como dito anteriormente, em três atividades básicas:
atendimentos individuais regulares, plantão psicológico e a “roda de

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 177


conversa”. É importante ressaltar que a unidade da APAC Santa Luzia
é masculina.
Em relação à primeira atividade, o procedimento foi
disponibilizar os estudantes de psicologia extensionistas para
atendimentos individuais semanais presenciais agendados. Seguindo
o modelo básico de atendimento e escuta psicológicos, cada estudante
extensionista recebia um recuperando para ser atendido durante o
semestre, podendo o acompanhamento continuar enquanto houvesse
a permanência do estudante ou do recuperando no projeto.
O plantão psicológico ocorria apenas uma vez por semana, o
que, provavelmente, dificultou que houvesse demanda que ocupasse
todo o tempo disponibilizado. Esta atividade começou a ser revista e
debatida nos encontros semanais da equipe de psicologia do projeto.
A roda de conversa ocorria também semanalmente. Nesse
dispositivo, era proposto um tema que pudesse interessar aos
recuperandos e possibilitar que eles falassem livremente, criando
espaço para novas demandas a serem tratadas.
A roda de conversa enfrentou dificuldades específicas, o que
resultou muitas vezes em poucas participações ou na presença
desmotivada dos recuperandos. Algumas vezes, os temas se
desenvolviam de forma produtiva, outras vezes não. Várias formas de
proposição de tema foram tentadas. Contudo, apesar dos esforços e da
circulação de ideias nas supervisões semanais da equipe de psicologia
do projeto de extensão, a roda de conversa não alcançou um formato
que pudesse se tornar objeto de elaboração teórica e prática. Uma das
hipóteses sobre isso é a de que não é possível conseguir uma circulação
da palavra de forma livre ou espontânea entre os recuperandos, mesmo
que os temas sejam definidos previamente e tenham capacidade de
despertar interesse, porque falta entre os próprios recuperandos o
vínculo de confiança necessário para que isso aconteça. Diversos
fatores podem ter influência sobre essa questão, entre eles o
histórico de trajetória criminosa dos participantes e algumas regras
institucionais que implicam a vigilância constante.

178 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Com os atendimentos individuais, a situação foi distinta. Mesmo
em uma instituição que está inserida no sistema prisional e que,
por essa mesma razão, não possui as condições mais adequadas aos
atendimentos individuais – o que, em certo sentido, é compreensível
–, os efeitos dos atendimentos foram importantes para muitos
recuperandos.
Houve recuperandos que desistiam dos atendimentos em
algum momento do acompanhamento e outros que deixavam de
ser atendidos em função de sair da instituição ou passar ao regime
semiaberto (permite o trabalho fora da instituição durante o dia, o que
impede o agendamento com os extensionistas). Porém, a maioria que
se inscreveu para os atendimentos permaneceu frequente às sessões
agendadas.
A equipe de psicologia discutiu os atendimentos em supervisões
semanais, nas quais, como é típico nos procedimentos de psicologia
clínica e de psicanálise, debatem-se os aspectos técnicos e clínicos de
cada caso, mantendo o sigilo imprescindível à manutenção da relação
de confiança entre o recuperando e o extensionista que o atende
clinicamente.
Várias temáticas e questões surgiram em comum na fala dos
recuperandos, mesmo em atendimentos individuais feitos por
extensionistas diferentes. Questões sobre paternidade, parcerias
amorosas, circuito e laços de amizade e de delito, abandono de amigos
e parentes depois da prisão, dificuldades de convivência no espaço
confinado, problemas e demandas familiares, limites impostos às
suas possibilidades de viver em família, de intervir na educação dos
filhos e de projetar um futuro.
Apesar dessas questões gerais, evidentemente havia as questões
singulares relacionadas à história de cada um, suas demandas
amorosas, os problemas com a pobreza e com a violência, as culpas e
os remorsos em relação a alguns fatos e decisões, os sintomas psíquicos
e afetivos – como, por exemplo, ansiedade, insônia, desconfiança,
ideias de autoextermínio etc.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 179


O que orientou esses atendimentos para que essa variedade de
questões e de problemas pudessem ser ditos e muitas vezes encontrar
possibilidades de mudança?
Optamos por realizar uma escuta psicológica diferente daquela
que podemos encontrar, por exemplo, no relato de Gonzaga e outros
(2002), citado anteriormente, no qual se enfatiza a “conscientização”
do indivíduo sobre suas condições de vida por meio do fornecimento
de informações, esclarecimento de direitos e deveres, provocação de
reflexão sobre os fatores relacionados ao delito e suas consequências.
A escuta realizada também é diferente de algumas propostas citadas
na pesquisa do CREPOP (CRP MG, 2019 p. 92), que enfatizam o trabalho
em grupo com “o conceito de valor, formação, revisão de vida, questão
de caráter” ou, conforme cartilha do TJMG citada na pesquisa, “fazer o
recuperando voltar suas vistas para essa valorização de si; convencê-lo
de que pode ser feliz, de que não é pior que ninguém”.
É importante frisar que essas propostas são importantes, porém
podem ser articuladas com outro tipo de atuação da psicologia que
se sustente em uma escuta diferenciada, uma escuta que não precise
estar orientada ou defender os ideais sociais e culturais que atravessam
qualquer instituição.
Assim, optamos por uma orientação psicanalítica que enfatiza
a escuta aberta a qualquer palavra que seja dita pelo sujeito que fala.
Como menciona Santos (2011), uma “escuta interessada”, termo que a
autora recupera de uma palestra de Elisa Alvarenga. Essa escuta pode
abrir espaço à fala do sujeito para além do “recuperando”, que é uma
nomeação (um significante) importante por possuir uma perspectiva
distinta daquela que nomeia o indivíduo no sistema prisional comum.
Porém, essa nomeação também não é capaz de dizer o que é o sujeito.
Há em cada um que fala uma demanda de reconhecimento e um desejo
de se colocar na relação com o Outro que não pode ser capturado por
qualquer nomeação.
Nesse sentido, essa escuta precisa estar aberta a acolher
qualquer fala, mas também manejar o atendimento, que tem como
propósito produzir o espaço da surpresa, do inesperado para o próprio

180 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


sujeito que fala. Nesse ponto está a dimensão inconsciente que nos
ultrapassa e, muitas vezes, nos determina, mas da qual não podemos
nos desresponsabilizar. Como afirma Lacan (1966/1998, p. 873), por
nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis.
Para se colocar em escuta dessa forma, é preciso suspender as
certezas, abrir espaço para o não-saber. Conscientizar é importante,
porém também é muito importante deixar que o sujeito enuncie
aquilo que nem ele mesmo sabe e que pode produzir o efeito da
responsabilização subjetiva, do assentimento com sua história, com
seu desejo e com as decisões tomadas.
Como afirmam Ansermet e Borie (2007 p. 154),

a posição psicanalítica não é a de compreender, mas


deixar um lugar para a surpresa, para o encontro, para
a contingência. Trata-se de nós mesmos aprendermos
a ser leves, a fim de descongelar o outro, para que se
abra novamente um espaço de potencialidade.

Sabemos que os ideais que nos guiam e que orientam a vida em


comum, mesmo com suas contradições, são essenciais para a vida em
sociedade, para o laço civilizatório. Contudo, é importante lembrar,
com a psicanálise, que na constituição desses ideais a pulsão está
presente e que a relação de cada um com esses ideais não é harmônica.
O trabalho da vida em comum exige renúncia pulsional, como afirmou
Freud (1930/1980), e muitas vezes recorremos a subterfúgios para
escapar ao peso dessa renúncia.
Além do mais, é importante também lembrar que esse ser que
fala (ou falasser, como escreveu Lacan), que vive na expectativa de
alcançar o reconhecimento do outro e é constituído psiquicamente
pela lei que o marca subjetivamente com a impossibilidade de alcançar
a satisfação plena de seu desejo – que desliza de um objeto ao outro
sem encontrar fim –, também é ultrapassado pelo que resta da pulsão
que não se articula com o campo simbólico e imaginário das relações
sociais. É isso que Lacan nomeou como gozo e que se imiscui em cada

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 181


história, em cada decisão, em cada paixão. Desejo e gozo se articulam
na surpresa e no inesperado que aparecem desde que haja espaço para
isso.
Dessa maneira, mesmo considerando a importância dos
ideais sociais e institucionais, manter a escuta interessada, a escuta
implicada com o inconsciente, é procurar deixar a via aberta à
manifestação daquilo que muitas vezes está longe do ideal, o que
inclui a possibilidade de o ser humano não só desejar o mal (ou o
imoral), mas desfrutar dele, mesmo inconscientemente. Em qualquer
situação, é preciso se responsabilizar por isso.
Para tratar um último tema sobre esse ponto, é preciso indicar
que na relação estabelecida entre quem atende e quem é atendido
também temos de considerar a transferência. Ao abrir a palavra ao
recuperando da forma como propomos, é importante ter em mente
que a relação ali estabelecida possui princípios claros e orientação
definida. Mesmo considerando que uma escuta na instituição possui
limites e atravessamentos próprios, conseguir distanciar-se dos
ideais permite acolher o endereçamento da fala dos sujeitos que,
inicialmente, tendem a identificar quem os escuta com a instituição.
Nesse acolhimento da fala, os recuperandos podem ter uma fala
endereçada de forma diferente. Se a fala pode tratar de qualquer
coisa, de qualquer tema, abre-se espaço para as articulações variadas
relacionadas à fantasia de cada um sobre seu lugar no desejo do Outro
e a demanda que o acompanha.
Isso apareceu, durante as supervisões semanais, nas solicitações
dos recuperandos, da sedução por meio do semblante de vítima ou de
palavras sedutoras, da tentativa de cada um se posicionar em relação
aos ideais sociais e institucionais. Faz parte da escuta manejar essa
transferência de forma a manter aberto o espaço da palavra no limite
do tratamento do sujeito.

182 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo “clínica ampliada”, muito discutido do campo da saúde


mental e de seus dispositivos de acolhimento e tratamento, como os
Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) por exemplo, pode nos ajudar
a entender a ideia de escutar o sujeito da forma como viemos indicando.
No campo da saúde mental, este termo se relaciona à articulação entre
as diversas funções, papéis e atividades que são desenvolvidos nos
centros especializados para o tratamento dos usuários (BUENO, 2016).
Contudo, em nossa elaboração, tomaremos a expressão de maneira
mais restrita nesse momento, com o intuito de defender que o termo
“clínica” não se aplica apenas ao setting individualizado e idealmente
privado do atendimento de uma pessoa, mas a possibilidade de que a
fala endereçada a alguém que a acolhe visando a produzir um sujeito
possa acontecer em distintos espaços, contextos e lugares. É preciso
inventar a cada novo desafio, e isso é possível.
A mudança da perspectiva do sistema prisional depende de
muitos e variados fatores. Sabemos que as diretrizes políticas e
a política econômica estão diretamente relacionadas com o que
surge como efeito na violência social e na realidade das prisões.
O engajamento político não deve ser colocado em segundo plano.
Porém, também não podemos deixar de considerar o valor das ações
em menor escala – como a importante proposta da APAC – e das ações
localizadas, pontuais, como as possibilidades de trabalho com os
presos e os recuperandos que ensejem espaço para falar e cuidar de si.
Por isso, o objetivo deste texto foi indicar uma das maneiras de
empreender um trabalho que possibilite espaço de sujeito: a escuta
implicada com a psicanálise, seja em um trabalho individual, seja em
um trabalho que envolva a circulação da palavra em grupos. Como
diz Célio Garcia (2004), apostar que mesmo em condições adversas ou
precárias, possamos, pontualmente, produzir o advento de um sujeito.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 183


REFERÊNCIAS

ANSERMET, François; BORIE, Jacques. Apostar na contingência.


In: MILLER, Judith; MATET, Jean-Daniel (orgs.). Pertinências da Psi-
canálise Aplicada: trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos
pela Associação do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2007. p. 152-158.

ASSIS, Rafael Damaceno de. A realidade atual do sistema peni-


tenciário brasileiro. Revista CEJ, Brasília, ano XI, n. 39, p. 74-78, out./
dez. 2007. Disponível em: <//revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/
article/view/949>. Acesso em: 02 ago 2021.

BARROS, Vanessa Andrade; AMARAL, Thaís Viela Fonseca. O


trabalho do(a) psicólogo(a) no sistema prisional. In: FRANÇA, Fátima;
PACHECO, Pedro; OLIVEIRA, Rodrigo Tôrres (orgs.). O trabalho da(o)
psicóloga(o) no sistema prisional: problematizações, ética e orienta-
ções. Brasília: CFP, 2016. p. 55-72.

BENELLI, Sílvio José. Foucault e a prisão como modelo institu-


cional da sociedade disciplinar. In: ___. A lógica da internação: insti-
tuições totais e disciplinares (des)educativas. [online] São Paulo: Edi-
tora UNESP, 2014. p. 63-84.

BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa. Belo Ho-


rizonte: Letramento, 2018.

BUENO, Paulo Alberto Teixeira. Clínica ampliada: interlocu-


ções entre a psicanálise e atenção psicossocial. 2016. 117 f. Disserta-
ção (Mestrado em Psicologia Social) - Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2016.

CAMPELLO, Ricardo; CHIES-SANTOS, Mariana. Superlota-


ção, Covid-19 e a ausência de dados: a situação das prisões brasi-
leiras. G1, São Paulo, 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/

184 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


monitor-da-violencia/noticia/2021/05/17/superlotacao-covid-19-e-au-
sencia-de-dados-a-situacao-das-prisoes-brasileiras.ghtml>. Acesso
em: 13 set. 2021.

CHIES, Luiz Antônio Bogo. A questão penitenciária. Tempo So-


cial [online], São Paulo, 2013, v. 25, n. 1, 2013, p. 15-36. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100002>. Acesso em: 13
set. 2021.

CRP-MG, Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. A


psicologia e o trabalho na APAC, Centro de Referência Técnica em
Psicologia e Políticas Públicas (Crepop). Belo Horizonte: CRP 04,
2019.

FERREIRA, Valdeci Antônio; OTTOBONI, Mário. Método APAC:


sistematização de processos. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, 2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas pri-


sões. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petró-


polis: Vozes, 1999.

FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Ima-


go, 1980. p. 81-177. (Edição Standard da Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, v. 21.) (Texto publicado originalmente em 1930.)

GARCIA, Célio. Psicologia Jurídica: operadores do Simbólico.


Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GONZAGA, Maria Teresa Claro et al. A área de Psicologia integra-


da no programa Pró-Egresso de Maringá. In: GONZAGA, Maria Teresa
Claro; RAMOS, Helena Maria; BACARIN, Juliane Nanuzzi Bedin (orgs.).
A cidadania por um fio: luta pela inclusão dos apenados na sociedade.
Maringá (PR): Dental Press Ed., 2002. p. 65-74.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 185


LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. In: ___. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 869-892. (Trabalho original publica-
do em 1966.)

LEMOS, Ana Margarete; MAZZILLI, Cláudio; KLERING, Luís


Roque. Análise do trabalho prisional: um estudo exploratório. Re-
vista de Administração Contemporânea [online], Maringá, v. 2, n.
3, 1998, p. 129-149. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1415-
65551998000300008>. Acesso em: 14 set. 2021.

MACHADO, Ana Elise Bernal; SOUZA, Ana Paula dos Reis; SOU-
ZA, Mariani Cristina. Sistema Penitenciário Brasileiro – origem, atua-
lidade e exemplos funcionais. Revista do Curso de Direito da Faculda-
de de Humanidades e Direito, São Paulo, v. 10, n. 10, p. 201-212, 2013.
Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodis-
ta/index.php/RFD/article/view/4789>. Acesso em: 06 set 2021.

MIRANDA, Sirlene Lopes de. A construção de sentidos no mé-


todo de execução penal APAC. Psicologia & Sociedade [online], Belo
Horizonte, v. 27, n. 3, p. 660-667, 2015. Disponível em: <https://doi.or-
g/10.1590/1807-03102015v27n3p660>. Acesso em: 21 set. 2021.

MOREIRA, Mônica Esteves Pereira; SILVA, Wellem Ribeiro. As-


sociação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) e o Princí-
pio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Psicolo-
gia & Saberes, Maceió, v. 9, n. 18, p. 284-299, 2020.

PROEX - Pró-Reitoria de Extensão da Pontifícia Universidade Ca-


tólica de Minas Gerais. Programa (A)penas Humanos: ações interdis-
ciplinares do âmbito da APAC. Belo Horizonte, 2021. Disponível em:
<https://portal.pucminas.br/proex/index-link.php?arquivo=projeto&-
nucleo=0&codigo=564&pagina=4896>. Acesso em: 21 set. 2021.

RAUTER, Cristina. O trabalho do psicólogo em prisões. In: FRAN-


ÇA, Fátima; PACHECO, Pedro; OLIVEIRA, Rodrigo Tôrres (orgs.). O

186 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


trabalho da(o) psicóloga(o) no sistema prisional: problematizações,
ética e orientações. Brasília: CFP, 2016. p. 43-53.

RODRIGUES, Bianca Ferreira; KYRILLOS NETO, Fuad; ROSARIO,


Angela Bucciano do. Método APAC: emergência do sujeito no discurso
sobre a mulher. Revista da SPAGESP, Ribeirão Preto, v. 20, n. 1, p. 126-
139, jan. 2019. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S1677-29702019000100010&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em: 21 set. 2021.

SANTOS, Mynéia Campos Oliveira. A escuta analítica numa ins-


tituição prisional. Almanaque on-line, Belo Horizonte, IPSM-MG, n.
9, p. 1-5, 28 ago. 2011.

SILVA, Jane Ribeiro (org.). A execução penal à luz do método


APAC. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2012.
Acesso em: 4 abr. 2020.

SISDEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenci-


árias. Brasília, jul./dez. 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/de-
pen/pt-br/sisdepen>. Acesso em: 13 set. 2021.

UZIEL, Anna Paula et al. Sistema Prisional e Segurança Públi-


ca: inquietações e contribuições da/à Psicologia. Psicologia: Ciência e
Profissão [online], Brasília, v. 38, n. esp. 2, p. 3-9, 2018. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/pcp/a/Yx3kRCQY4GXYF8GsnhT7nYn/?lan-
g=pt>. Acesso em: 14 set. 2021.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 187


188 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
DO ESTADO SOCIAL AO
ESTADO PENAL DE LOÏC
WACQUANT: O USO DO
SISTEMA PENAL COMO
ENGRENAGEM PARA O
GERENCIAMENTO DA
MISÉRIA
Vanessa Casanova de Azeredo

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 189


190 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
DO ESTADO SOCIAL AO ESTADO PENAL DE LOÏC
WACQUANT: O USO DO SISTEMA PENAL COMO
ENGRENAGEM PARA O GERENCIAMENTO DA MISÉRIA

Vanessa Casanova de Azeredo40

INTRODUÇÃO

Neste artigo será abordado os principais temas que se


manifestam nas discussões feitas por Loïc Wacquant, professor de
sociologia, criminólogo, pesquisador associado a diversos centros de
pesquisa internações de referência e escritor de obras como os livros
“As Prisões da Miséria”, “Punir os Pobres”.
Segundo palavras de Godoi:

Loïc Wacquant desenvolve sua pesquisa sobre o


fenômeno do hiperencarceramento nos EUA a partir
de uma abordagem crítica que, assim como outros
autores, se esforça em “qualificar esse novo momento
na história da punição, relacionando expansão
carcerária, neoliberalismo, encolhimento dos
gastos sociais do Estado, ampliação de investimentos
públicos e privados nos dispositivos de controle do
crime, entre diversos fatores. (GODOI, 2017, p. 24)

Nas obras de Loïc Wacquant encontraremos análises dos


processos de desenvolvimento do capitalismo, do neoliberalismo e

40 Bacharel em Direito da Faculdade de Direito Doctum, Juiz de Fora, Minas Gerais,


Brasil – Pós-graduada pela PUC Minas – Ciências Penais. e-mail: vanessa.cnova@
gmail.com. *Artigo escrito para conclusão de curso de direito tendo como orientador
Deo Campos Dutra: Professor e coordenador de pesquisa da Faculdade Doctum em
Juiz de Fora/MG.Doutor em Direito pela PUC/RJ e pela Universidade Paris X, mestre
em Direito Comparado pela Universidade de Paris 1 - Panthéon Sorbonne. Foi
pesquisador - visitante na EHESS/Paris e pesquisador visitante na QueensUnivesity/
Canadá. Realizou seu estágio pós-doutoral em Direito Comparado na École Normale
Supérieure de Paris.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 191


mudanças sociopolíticas que nos fará deparar com questionamentos
como por exemplo, qual é o modelo econômico que faz com que o
Estado Social seja substituído por um Estado Penal? Se existe algum
critério de seletividade para o cárcere, ele se dá de qual forma? Em seu
livro, Punir os Pobres, publicado em 2001, afirma o autor:

Depois dos confrontos raciais que abalaram os


grandes guetos de suas metrópoles, a América lançou-
se numa experiência social e política sem precedentes
nem paralelos entre as sociedades ocidentais do
pós-guerra: a substituição progressiva de um (semi)
Estado-providência para um Estado penal e policial.
(WACQUANT, 2001, p. 19)

Em sua tese, Wacquant relata a queda do Estado Caritativo que


acarreta na perda gradativa dos apoios sociais tornando os indivíduos
ainda mais marginalizados, sem acesso à educação de qualidade,
alienados, em que a qualificação e a paridade na disputa por trabalho
se tornou desleal e a violência de forma ascendente, ocasionada
pela desocupação e a busca urgente das necessidades básicas de
sobrevivência. No decorrer desde artigo há de se explanar como as
políticas públicas, a intervenção estatal na economia, os interesses
comerciais e empresarias faz com que haja uma diminuição nos
investimentos financeiros no social e ocorra a multiplicação da punição
e seus efetivos processos até ao encarceramento, onde a repressão e a
letalidade dos pobres e nos guetos, a intensiva propagação nos meios
de comunicação em naturalizar essa repressão e os assassinatos,
fazendo a população aceitar e acreditar que o poder da punição e do
encarceramento em massa seja a solução para as mazelas humanas.
Como relata Wacquant, a seletividade social é nitidamente
presente, pois existe uma efetiva burocratização no sistema de acesso
aos serviços sociais bem como as ajudas financeiras. O encarceramento
passou a ser uma gestão da pobreza, uma forma de conter, neutralizar

192 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


os excluídos que não se enquadram no modelo social proposto de
qualificação e submissão.
Neste contexto, será apresentado a pertinente e atual discussão
sobre a gestão da pobreza, a guerra contra os pobres, o porque o Estado
deixa de ser social e se torna penal, esta investigação se questiona:
qual a principal discussão apresentada nas contribuições originais do
autor sobre a gestão da pobreza nos Estados Liberais Democráticos
e como ela reverbera no processo de encarceramento da população
submetida a este tipo de gestão? Para respondermos a problematização
apresentada adotaremos como metodologia a abordagem qualitativa
por meios bibliográficos centrada na análise das obras de Loïc
Wacquant e seus comentadores. Trata-se, portanto, de um artigo na
modalidade de revisão.

1 O NEOLIBERALISMO E O ESTADO PENAL

Inicialmente, devemos salientar a importância de se fazer um


breve relato histórico sobre o Liberalismo41, uma corrente filosófica da
economia política que são baseadas as teorias dos filósofos John Locke
e Adam Smith, que defendiam as ideias contra o absolutismo dos reis
na Europa, a defesa do Estado Mínimo, que beneficiaria a burguesia
que estava em ascendência no século XVII, destacando a teoria de
Locke, nas quais a propriedade tanto de bens quanto dos meios de
produção deriva de trabalho e da produção de itens que atende as
necessidades da sociedade, dessa forma a burguesia é detentora de tal
produção bem como da sua liberdade comercial que antes era regida
pelos governos Absolutistas, que a partir de então não mais poderia
ter o controle mercantil.
Sobre o tema, Dardot e Laval afirmam:

41 Para detalhes, ver: https://www.youtube.com/watch?v=DVxELIxHN7Y - Como


funciona o liberalismo e o
neoliberalismo? - O Gabinete, com Rita Von Hunty – online 2020

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 193


(...) essas correntes filosóficas se estenderam para os
demais territórios além dos Europeus. O que se pode
perceber que daí se inicia a acumulação de capital
e legitima a ascensão da classe burguesa ao poder e
livres do julgo dos governos, e assim eles dominam
os meios de produção, do aparato do Estado e da mão
de obra. (...) O “primeiro Liberalismo”, aquele que
toma no século XVIII, caracteriza-se pela elaboração
da questão dos limites do governo. As técnicas
utilitaristas do governo liberal tentam orientar,
estimular e combinar os interesses individuais para
fazê-los servir ao bem geral. (2009. p.30)

O Liberalismo tem uma adesão mundial, com o discurso


ideológico, que relata limitação do Estado e ampla defesa da propriedade
privada, “laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-
même”42, que irá contra o reformismo social e resultará na projeção
de uma crise. Essa ideologia durara até a quebra da bolsa de valores
norte-americana no ano de 1929 e concomitante com a Europa que
estava assolada pela primeira guerra assim, devido a esse panorama o
Estado precisou intervir na economia.
Destacando as palavras de Dardot e Laval :

As repetidas crises econômicas, os fenômenos


especulativos e as desordens sociais e políticas
revelam a fragilidade das democracias liberais.
O período de crises múltiplas gerava uma ampla
desconfiança em relação a uma doutrina econômica
que pregava liberdade total aos atores no mercado. O
laissez-faire foi considerado ultrapassado, até mesmo

42 A expressão ““laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”


significa, literalmente, “deixai
fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo. Ela tem origem com François
Quesnay, da escola de pensamento fisiocrata, da França, médico da corte do Rei Luis
XV, mas foi incorporada por uma corrente econômica que defende a existência de
um mercado onde as trocas comerciais funcionem livremente, onde o Estado deve
garantir apenas as condições adequadas, como o direito à propriedade, e o resto deve
se desenvolver naturalmente

194 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


no campo dos que reivindicaram o liberalismo... O
Estado parecia o único em condições de recuperar
uma situação econômica e social dramático. (2009.
p. 53)

E, para reerguer a economia devastada após a quebra da bolsa,


devemos destacar os ideais filosóficas do keynesianismo43, que
propunha um Estado Máximo, nesse periodo, o dinheiro do Estado
foi investido na economia e no bem-estar social, no pleno emprego,
o New Deal (o Novo Acordo) era de fato um pacto econômico para
reativar a economia nos Estados Unidos da America, podendo dizer
até que era uma onda social.
Assegurar a prosperidade dos comerciantes e dos detentores dos
meios de produção além da manutenção das políticas econômicas,
se tornou ineficaz pois, somando com a manutenção de uma ordem
de bem-estar social, tornou-se onerosa para os cofres públicos, e a
partir de então começou a ocorrer a precarização nos serviços sociais,
na qualificação da mão de obra (falta de qualificação é resultado
baixos salários), inchaço populacional nas grandes cidades devido
ao processo migratório do campo, pois a busca era pelos centros
indústrias e comercios geradores de emprego.
Para uma nova retomada econômica surgiu o Consenso de
Washington, que de forma geral reorientava os gastos públicos,
propondo a desregulamentação do Estado na economia, efetuar
privatizações, e a proteção da propriedade privada dos meios de
produção, e assim surgiu o Neoliberalismo por volta dos anos 1970,
com a dissolução das políticas do Estado de bem-estar, o neoliberalismo
modifica as relações com o sistema penal que será definido na transição
do Welfare State para o Prisonfare.

43 O Keynesianismo é o conjunto das teorias e medidas propostas pelo economista


britânico John Maynard Keynes 1883-1946 e seus seguidores, que defendiam, dentro
dos parâmetros do mercado livre capitalista, a necessidade de uma forte intervenção
econômica do Estado (Estado Máximo) com o objetivo principal de garantir o pleno
emprego e manter o controle da inflação.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 195


O welfare State44 correspondia o Estado de bem estar social, que
adotava diversos “pacotes” de assistencialismo contemplando a maioria
os moradores dos guetos, pretos, imigrantes, entre outras minorias
desprovidas de recursos. Com a crise do Estado Social, o Estado tornou-
se “Semi Caritativo” implantando medidas de diminuição drástica dos
dependentes que não trabalhavam, pois segundo relata Wacquant
em suas obras, a sociedade julgava que essa destinação de recursos
incentivava a vadiagem, e como consequência dessas políticas de
cortes faz com que esses indivíduos que não mais são responsabilidade
do Estado e sim responsabilidade de si próprio, ficando sem recursos
para as necessidades básicas e a falta de qualificação para inserção no
mercado de trabalho, se marginalizam, cometem delitos, e a partir daí
terá um cenário de desordem gerada por outra desordem, que nascerá
o termo Prisonfar45, o Estado da Punição, do encarceramento.
Segundo entendimento de Wacquant, para se assemelhar as
políticas de bem estar social, foi implantado no período pôs guerra, as
políticas de punição que fazia com que a sociedade fosse mais pacifica,
menos onerosa e foi lançado “mão” de novas ações de controle social,
o controle disciplinar penal, diz o autor:

(...) por analogia com bem-estar social para designar


um fluxo das políticas públicas – que abrange
categorias, programas e discursos – que enfrenta
as doenças urbanas, lançando mão da polícia, dos
tribunais, das cadeias, das prisões e de suas extensões.
(WACQUANT, 2012 n.p).

44 Revista EPOS - vol.3 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012 – Artigo - A política punitiva
da marginalidade: revisitandoa fusão entre workfare e prisonfare* - Loïc WacquantI;
Traduzido por Julia Alexim -welfare State, manutenção do estado de bem estar social
– “políticas sociais são medidas de melhoria do bem-estar de determinados grupos de
uma sociedade executadas por decisão política, que podem existir em uma sociedade
de economia capitalista ou não.” Texto para discussão Nº695 a transposição de teorias
sobre a institucionalização do Welfare State para o caso dos países subdesenvolvidos,
Por: Marcelo Medeiros Coelho de Souza.
45 Prisonfare é basicamente ao contrário do workfare, Estado de bem estar social para
o Estado da Punição, encarceramento como sistema de controle social.

196 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Um dos elementos principais e pouco discutido em se tratando
de bem estar social é o pleno emprego, que se apresentará através
de um mercado mais favorável para quem procura emprego do que
para quem oferece uma vaga, será fator positivo econômico, com
um consumo acelerado pois o indivíduo tem consigo o poder de
compra com renda do seu trabalhado, assim aquecendo todos os
ramos comerciais, desde a incidência de impostos a investimentos
em educação, cursos de especialização e de maneira subjetiva os
indivíduos ficam felizes, realizados pois, alcançam seus objetivos de
consumo. E quando acontece ao contrário?
Quando da taxa de desemprego está em níveis altos, em
consequência temos um indivíduo que terá que fazer o uso das ajudas
sociais, a burocratização limita o acesso e as famílias sem renda,
faz com que as crianças do grupo familiar tem cada vez mais cedo
que começar a trabalhar, os jovens por consequência tem limitação
do comprometimento com a educação, devido a inúmeros outros
quesitos, como os psicológicos, falta de oportunidade eles recorrem
ao mundo do crime, e o Estado então usa a sua soberania de controle
sob a população miserável.
Em alguns casos, as políticas socioeconômicas dos Estados
Unidos, impõe condições para que os excluídos possam receber
alguma ajuda do governo, como relata Wacquant.

As mais difundidas estipulam que o beneficiário deve


aceitar qualquer emprego que lhe seja proposto,
não importam a remuneração e as condições de
trabalho oferecidas, sob pena de abdicar a seu direito
à assistência. (WACQUANT, 200, p.28)

Dardot e Laval, na obra anteriormente mencionado, no capítulo


“A grande virada”, nos exemplifica uma dessas políticas, que foi o corte
nos incentivos do pleno emprego.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 197


Os anos 1980 foram marcados, no Ocidente, pelo
triunfo de uma política qualificada, ao mesmo
tempo, de “conservadora” e “neoliberal” os
nomes de Ronald Reagan e Margareth Thatcher
simbolizam esse rompimento com o “welfarismo”
da socialdemocracia e a implementação de novas
políticas que supostamente poderia superar a inflação
galopante, a queda dos lucros e a desaceleração do
crescimento. (DARDOT; LAVAL, 2009, p.187)

Por análise deste contexto, o Estado anda de mãos dadas com as


indústrias, as empresas privadas, as privatizadas e públicas, e com o
mercado de forma geral, pois se elas não tem lucro, iram efetivamente
quebrar e assim o Estado deixaria de arrecadar impostos no mercado
interno, bem como com o mercado externo, e ele consequentemente
irá quebrar também. Conforme mencionado por Wendy Brown:

(...) e, na medida em que precisam ser lucrativas


para os investidores, sujeitam os cidadãos a mais
apertos. Além de contar com subsídios estatais
quando fraquejam, tornou-se lugar-comum para um
banco de investimentos apostar contra o sucesso de
iniciativas público-privadas financiadas por outro
banco, simultaneamente incentivando o fracasso e
aumentando o custo para o contribuinte. (2016, ps.
22/23)

A não intervenção do Estado na economia social, irá resultar


na precarização da educação, na falta de escolas, saúde pública e
políticas de apoio aos trabalhadores, abrangendo aos desempregados,
pela falta de qualificação e não reinserção no mercado de trabalho,
a inexistência de aposentadoria, além das privatizações de empresas
estatais. O mercado precisa do Estado para ser amparado com
políticas fiscais, ações de controle do mercado externo e interno,

198 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


podemos dizer que o regime de exploração e acumulação de bens tem
o “financiamento” do Estado.
Brown, citando o presidente francês eleito François Hollande:
“Meu inimigo real não tem um nome ou um rosto ou um partido. Ele nunca
vai concorrer à presidência, e, portanto, nunca será eleito, embora governe.
Meu inimigo é o mundo das finanças”. (BROWN, 2016, p. 23)
Neste sentido, podemos compreender que, para se governar
é preciso ter conhecimento da linha tênue entre a importância do
mercado, das finanças e do social, para não pecar na falta de recursos
que supri as questões sociais nem deixar que economia se desvaneça.
Podendo dizer também que a representatividade dessa frase mostra o
poder, a supremacia dos grupos que são detentores do mercado e do
dinheiro. E aí chega-se ao ponto a ser levantado neste artigo, o Estado
é mínimo para quem?
Para Wacquant “Desenha-se assim a figura de uma formação política
de um tipo novo, espécie de “Estado Centauro” cabeça de liberal e corpo
autoritário” (2001, p.55). Temos portanto, nitidamente um Estado que
é liberal com a elite burguesa, autoritária e punitiva para as classes
menos favorecidas como formas de controle e paralisação, de acordo
com Malaguti: “Ele (Waquant) demonstra como o neoliberalismo fez
com que governantes desconstruíssem o Estado de bem estar social para
“priorizar a administração penal dos rejeitos humanos”, conduzindo o
subproletariado urbano a uma sulfurosa marginalização” (Malaguti 2009,
p. 389).“A “guerra contra a pobreza” foi substituída pela guerra contra os
pobres, bode expiatório de todos os maiores males do país” (GANS,1995).
Assim pode-se dizer que o neoliberalismo está intensivamente ligado
a propagação de políticas punitivas tanto para um efetivo domínio da
assistência social quanto no domínio criminal e não estando ligado ao
“antigo” liberalismo que tinha por característica geral as questões dos
limites do governo e propagação econômica.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 199


2 A SUBSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL
PARA UM ESTADO PENAL

O Estado neoliberal conforme visto no capítulo anterior tem


a representação de um Estado mínimo, onde deve se fazer mínimo
tanto economicamente quanto socialmente. Wacquant relata em suas
obras outra realidade, a de que o Estado é seletivo no uso de sua força
de atuação, reduzindo sua ação para as regulamentações economias,
deixando que as elites comandem as políticas econômicas, mas na
contramão, para a grande massa pobre, redobra a força de seu braço
penal, como um Estado disciplinador e dominador.
Os Estados Unidos é hegemônico tanto economicamente
quanto com suas leis penais, segundo a característica do Estado, é na
criminalização da miséria, a normatização do trabalho assalariado
precário e intensa burocratização de um sistema de exigências para
ingressar e permanecer nos programas sociais, sendo esses os grandes
obstáculos criados com a função de diminuição ou até eliminação do
possível acesso dos usuários que necessitam.
Para o autor:

Sob o pretexto de identificar os abusos e dificultar


a vida do “fraudadores” as agências de ajuda social
multiplicam os formulários a preencher, o número de
documentos a fornecer, a frequência dos controles e
os critérios de reavaliação de dossiê.... Está prática da
canseira burocrática ganhou até mesmo um nome, o
churnig (passar na batedeira), conhecido por todos
os especialistas e deu lugar a estatística doutas que
listam os efetivos daqueles que têm direitos sociais,
cujas demandas são indevidamente rejeitadas por
cada categoria de intervenção. (2001, p. 25)

Com essas formas de dificultar o acesso às ajudas sociais,


somando a falta de empregos e marginalização racial e étnica, entra

200 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


em ação as políticas punitivas, o tão chamado braço forte estatal, e
nessa linha de raciocínio, Wacquant nos diz que:

Fazer da luta contra a delinquência de rua um


espetáculo moral permite aos atuais governantes
(como também aqueles que os antecederam)
reafirmar simbolicamente a autoridade do Estado
no exato momento em que eles declararam sua
impotência na frente econômica e social. (2007, p.
454).

Em Vigiar e Punir Foucault faz uma explanação da


corresponsabilidade da sociedade nas práticas criminosas, sobre
a relação entre o poder e o direito que é aproveitada por Wacquant,
em suas obras, relacionando-as com suas teorias de controle social.
Segundo Foucalt:

O homem que vos traz a morte não é livre de não trazê-


la. A sociedade é a culpada, ou, para dizer melhor,
a má organização social.” E isto, seja porque ela não
está apta a prover a suas necessidades fundamentais
seja porque ela destrói ou apaga nele possibilidades,
aspirações ou exigências que surgirão em seguida no
crime. (1975, p. 314)

Complementando a citação de Foucault, nas décadas de 60 e


70 com o fim do Keynesianismo, os confrontos urbanos as crises e
os crimes imputadas na grande maioria aos moradores dos guetos,
levada pela falta de trabalho e de apoio social que foi minada, a
pratica delituosa torna-se a alternativa mais rápida e fácil para supri
as necessidades básicas. A segregação racial que foi fundada por

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 201


práticas absurdas e inimagináveis, tendo um sistema denominado de
Jim Crow.46

A dominação racial que os negros vivenciaram sob o


regime Jim Crow foi pessoal e humilhante. O sistema
estabelecia uma rígida segregação racial entre
brancos e negros. Ao analisar tal forma dedominação,
concluiu: O sistema Jim Crow trabalhou para
estampar nos negros a ideia de que estes constituíam
uma população subordinada, ao forçá-los a viver em
uma sociedade separada e inferior [...] os negros
tinham de utilizar banheiros separados, frequentar
escolas separadas, sentar-se no fundo de ônibus e
trens, dirigir-se a brancos enquanto eram tratados de
forma desrespeitosa, jurar com bíblias diferentes em
um tribunal, comprar roupas sem experimentá-las
antes, passar por mesas ‘apenas para brancos’ após
adquirirem comida, e viajar sem dormir, pois hotéis
não os hospedavam. (MORRIS, 1999, p. 518)

A opressão racial juntamente com a “guerra às drogas”, um termo


que causa impacto e repercussão na grande massa, principalmente
com a propagação na mídia e apoiada e fomentada pela elite branca,
que se justifica pelo sentimento de insegurança, torna de uma certa
forma a melhor maneira de se combater o crime, mas ao se aprofundar
nas verdadeiras ações que são feitas para combater essa “má” conduta
de consumo e venda, notamos que é a legalização se torna um
obstáculo para prática de controle social, onde mata e encarcera em
números astronômicos a população pobre, principalmente os negros
e imigrantes dos guetos. Como mencionado por Andrade, em artigo
relativo ao assunto em questão:

46 As leis de Jim Crow vigoraram entre os anos de 1876 e 1965- dispositivos


Constitucionais que exigiam a separação entre a raça branca e negra. Jim Crow é uma
forma pejorativa para escravos/negros – preguiçosos.

202 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Está em jogo a conformação de um Estado penal,
de um mercado penal, de uma mídia penal, e, em
derradeiro, de uma sociedade punitiva. Eis aí o Estado,
mercado e comunidade mimetizados na figura de um
algoz máximo, onipresente e espetacular, mediados
pelo poder tecnológico da mídia, por uma cultura
do medo e da insegurança, numa sociedade tão
encarceradora quanto encarcerada. (ANDRADE,
2012, p.291).

Por que não se faz a verdadeira guerra no combate ao


narcotráfico? Pois é lá que habita os verdadeiros detentores
financeiros, políticos e pessoas de alta classe, mas pelo contrário,
a polícia endossada pelo Estado, faz a guerra contra os usuários,
e vendedores dos guetos, considerados criminosos inimigos da
sociedade, que usam da comercialização como uma fonte de renda,
que por falta de oportunidades, será seu único meio de subsistência
e fonte de ganhos para “alimentar” seus anseios materiais, isso acaba
gerando as políticas punitivas que levam o encarceramento em massa
(que não tem efetiva recuperação do vício, pelo contrário aguça), e um
velado genocídio dos pobres.
Sobre o tema, afirma Wacquant: “Foi esta política que entupiu as
celas e “escureceu” seus ocupantes” (Wacquant, 2001. P.29). E em reforço
a essas críticas, Wacquant menciona o sociólogo e criminólogo norte-
americano John Irwin, que era engajado nas teorias de reforma
prisional: “O encarceramento serve antes de tudo para “governar a ralé”
que incomoda.” (Wacquant apud Irwin, 2001, p 68).
O elo dessas questões sociais punitiva e segregativa dos Estados
Unidos, mostra a citada influência hegemônica que reflete, conforme
um artigo publicado por Streck47, quanto a realidade brasileira, se
enquadrando perfeitamente nas críticas aqui expostas:

47 Lenio Luiz Streck – Artigo mencionado – Constituição, bem jurídico e controle


social: A criminalização da pobreza- 2008 Revista de estudos criminais / Instituto
Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 203


Já é de certa forma um lugar-comum qualificar o
Direito Penal como conservador e ideológico, típico
de um modelo de Estado em que a produção das leis
segrega a pobreza, afastando-se da sociedade civil
(compostas por pessoas “de bem”?) a pretexto de
garantir a almejada “paz social’’. (STRECK, 2008. p. 71)

E neste contexto, as políticas de repressão geraram o preceito


da “tolerância zero”, que é o controle ocorrido após a delapidação dos
direitos, e que por conta de ações policiais neutralizam e silenciam os
excluídos através do encarceramento, por menor que seja a infração,
conforme no relata Wacquant:

Para os membros das classes populares reprimidas


à margem do mercado de trabalho e abandonadas
pelo Estado assistencial, que são o principal alvo da
“tolerância zero”, o desequilíbrio grosseiro entre o
ativismo policial e a produção de meios que lhe é
consagrada, por um lado, e a sobrecarga dos tribunais
e a progressiva escassez de recursos que os paralisa
por outro, tem as aparências de uma recusa de justiça
organizada. (1999. p. 26)

Neste ciclo de tolerância zero os recursos econômicos investidos


no aparato policial e no sistema carcerário só tende a aumentar, pois
o detento na grande maioria dos locais são tratados como “parasitas”,
pois em seu encarceramento não se produz nada, o tempo é ocioso e a
reparação intelectual, social e de mão de obra não é trabalhada como
um retorno a sociedade e para o próprio indivíduo.
Não se pode colocar uma venda e normatizar a precarização
do trabalho e a marginalização do indivíduo, não se pode eliminar a
pobreza usando como a principal arma o direito penal, portanto uma
tarefa, judiciaria, social e da criminologia é de ser capaz de identificar
as relações econômicas das desigualdade e as relações políticas de
poder e de controle do bem-estar social, a inserção dos excluídos na

204 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


sociedade, dando-lhes acesso à educação, os qualificando e dando-
lhes garantias de emprego, boas perspectivas minimizaria a violência
e os gastos com todo o aparato penal.

3 PRISÕES E O ENCARCERAMENTO EM
MASSA SEGUNDO WACQUANT

Para Michel Foucault, as práticas de punição entre os anos de


1670 a 1789 (início da Revolução Francesa)48, até então eram feitas
através execuções e suplícios, que se tratava de torturas corporais
barbaras, que o principal fundamento era punir pela forma de
sofrimento por escalas de acordo com o crime, e dessa forma a morte
era o grau máximo. Na metade do século XVIII, o suplício enfrenta
duras críticas pela população, marcada pela tirania dos reis soberanos,
tendo como principal fundamento as punições feitas publicamente,
as execrações que não respeitava a humanidade tanto do criminoso
quanto das famílias que sofriam junto e assistiam as execuções, com
o passar dos anos, como todo processo de evolução, os tipos penais
sofreram processo de mudança concomitante com as mudanças
sociais e econômicas. Conforme Foucault nos relata:

O protesto contra os suplícios é encontrado em toda


parte na segunda metade do século XVIII: entre
os filósofos e teóricos do direito; entre juristas,
magistrados, parlamentares; nos chaiers de doléances
e entre os legisladores das assembleias. É preciso
punir de outro modo: eliminar essa confrontação
física entre soberano e condenado; esse conflito
frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida
do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco.

48 Revolução contra os reis absolutistas - novos princípios de Liberté, Égalité,


Fraternité (em português: liberdade, igualdade e fraternidade) Artigo - O Historicismo:
a Redescoberta da História por: José Carlos Reis / Locus: Revista De História 8 (1).
(2002)

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 205


O suplício tornou-se rapidamente intolerável. (1975,
p. 94)

O alívio, a mitigação, das penas foi a reforma do sistema punitivo


onde o encarceramento é uma opção inevitável que tem o intuito de
desencorajar a prática de crimes e dar a possibilidade de recuperação
do indivíduo, que usará o isolamento para refletir e trabalhar como
forma de reparação e o direito ao arrependimento, nesse contexto
o crime não será apagado mas a oportunidade de não se repetir,
conforme palavras de Foucault “a duração da pena só tem sentido em
relação a uma possível correção, e a uma utilização econômica dos
criminosos corrigidos.” (1975, p. 142).
As conclusões de Foucault determinam que os efeitos do sistema
carcerário tem como um recrutamento dos pobres e delinquentes
para ser usadas como formas de controle, as reabilitação são fadadas
ao fracasso diante da falácia que o sistema propõe com a realidade
executada, mas ele acredita que esse é o caminho para a regeneração
dos crimes e que para que isso aconteça todo o sistema desde a
apuração do delito ao encarceramento punitivo seja tratado com
devida relevância e investimentos na humanização do processo para a
derradeira reabilitação. Assim Foucault explica:

Portanto, se há um desafio político global em torno


da prisão, este não é saber se ela será não corretiva;
se os juízes, os psiquiatras ou os sociólogos exercerão
nela mais poder que os administradores e guardas;
na verdade ele está na alternativa prisão ou algo
diferente de prisão. O problema atualmente está mais
no grande avanço desses dispositivos de normalização
e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles
trazem, através da colocação de novas objetividades.
(1975. p. 333)

206 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A explanação histórica através das concepções de Foucault
nos auxilia na compreensão das teses desenvolvidas por Wacquant,
mostrando assim o fator principal que acarreta as política da punição
e encarceramento, ou seja um controle social de imobilização. Será
que podemos dizer que é o Estado criminoso punindo criminoso?
Essas medidas punitivas infringem os princípios da razoabilidade e
eficiência pública, essas medidas desumanas devem ser combatidas,
e com isso devemos invocar o Estado de Direito.
O fato é que a pobreza e a violência tiram o foco estrutural da
economia e a hegemonia do Estado e por esse motivo, o Estado faz o
uso de medida extremas para o controle e assim manter integro diante
do mercado e de sua sociedade. “Os planos de austeridade que diminuem
a renda da grande massa da população são inseparáveis da vontade de gerir
as economias e as sociedades como empresas “lançadas na competitividade
mundial” (DARDOT; LAVAL, 2009 p.27).
A alegação de que remuneração assistencial ínsita a vadiagem
é uma falácia pois, o padrão de vida de como se alimentar, manter
despesas da casa, saúde e educação se exige trabalho ou seja, um
complemento significativo dessa remuneração, essa remuneração
assistencial na realidade é para tirar os indivíduos que sobrevivem
abaixo da linha da pobreza. Nas palavras de Wacquant: “A justificativa
para os cortes brutais é que assistência social é excessivamente generosa,
que ela solapa a vontade de trabalhar de seus benefícios e que alimenta uma
cultura de “dependência” deletéria tanto para os interessados quanto para
o país.” (2001, p. 43)
Desse modo, entramos no raciocínio da justificativa de que se
diminuir os investimentos financeiros no social e multiplicar com
punição e seus processos efetivos, a construção de cárceres, neste
contexto destaca-se a seguinte “O encarceramento serve bem antes à
regulamentação da miséria, quiça à sua perpetuação, e ao armazenamento
dos refugos do mercado.” (2001. p. 3). Além do controle da população
desempregada e marginalizada, o cárcere gera ganhos econômicos
em grandes proporções, conforme relatado por Wacquant:

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 207


O encarceramento tornou-se assim uma verdadeira
indústria – e uma indústria lucrativa. Pois a política
do “tudo penal” estimulou o crescimento exponencial
do setor das prisões privadas, para o qual as
administrações públicas perpetuamente carentes
de fundos se voltam para melhor rentabilizar os
orçamentos consagrados à gestão das populações
encarceradas. (2001. p. 31)

Os dados mais agravantes do encarceramento em massa, são os


casos que segundo estatísticas a grande maioria já cumpriu suas penas
ou são condenados à prisão com sursis, condicional, e pela falta de
defensores pagos ou públicos, esses detentos ficam à mercê do sistema.
Mencionando o seguinte trecho: “Não é raro que o public defender
encontre seu “cliente” pela primeira vez... quando de seu comparecimento
diante do juiz, pois dos defensores públicos têm, em geral, a responsabilidade
de várias centenas de dossiês simultaneamente” (Wacquant, 2001.p.37)
Para os candidatos a cargos públicos, prender os pobres é o
melhor caminho de escondê-los da sociedade hipócrita bem como
se promover pela “guerra” contra a criminalidade. A “indústria
do encarceramento, as privatizações, geram lucros de maneira
exorbitante, desde a construção, a implementação, contratação de
mão de obra de controle e execução de serviços internos à alimentação.
Os condados norte-americanos disputam uma “queda de braços” para
atrai-las para seus territórios, pois além de gerar empregos geram
impostos. “Inimaginável há apenas quinze anos, a prisão privada é hoje
uma realidade incontrolável da paisagem penal americana. Melhor, uma
“indústria” em pleno Boom, destinada a um futuro radioso, o que faz dela
a queridinha da Bolsa.” (Wacquant, 2001 p.90)
Conclui-se que o Estado, portanto, parece atuar de forma escusa,
fazendo o uso das mazelas humanas para uma projeção econômica,
quando faz a seleção de quem deve ou não participar desse setor. O
que veremos a seguir, será um breve relato da situação das prisões na
atualidade e uma explanação do autor em questão:

208 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Notemos em seguida as homologias estrutural e
funcional entre o gueto e a prisão concebida com o
um gueto judiciário: uma casa de detenção ou de pena
é certamente um espaço à parte que serve para conter
sob coação uma população legalmente estigmatizada,
no seio da qual está população desenvolve instituições,
uma cultura e uma identidade desonrada que lhe são
especificas. A prisão também é, portanto, composta
por esses quatro elementos fundamentais que
formam um gueto – estigma, coação, confinamento
territorial e paralelismo institucional – e, isso por
objetivos similares.” (WACQUANT, 2001 p.118)

Portanto o gueto e o cárcere são lugares onde os excluídos se


reconhecem e lá vivem sua cultura, local estes que são contidos,
silenciados e esquecidos. Neste contexto, Nilo Batista, menciona a
importância de um movimento de uma justiça restaurativa e não
punitiva.

Justiça restaurativa sim, se ela for uma alternativa ao


Sistema Penal; caso contrário, será como os Juizados
Especiais; só aumentará a rede. Sou amplamente
a favor da justiça restaurativa, se na prática
corresponder à descriminalização, desjudicialização
e despenalização. (BATISTA, 2019.p. 292)

A morosidade da justiça para julgar e condenar, faz com que o


processo de reabilitação se precarize ainda mais, e nesse processo o
sistema carcerário tem a função de proteger a população, punir pelo
crime e reabilitar o indivíduo e o que se vê é falta de unificação desses
conceitos.

Segundo o World Prison Brief, levantamento mundial


sobre dados prisionais realizado pela ICPR (Institute
for Crime & Justice Research) e pela Birkbeck

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 209


University of London os Estados Unidos possui a
maior população carcerária com 2,1 milhões que
o coloca como os países que mais prendem” (2020,
online).

Esse agigantamento carcerário nos Estados Unidos é reflexo


das políticas públicas dos últimos quarenta anos em que ocorreu
a substituição do Estado-providência para o Estado Penal, e os
investimentos financeiros também sofreram essa substituição.
Conforme artigo publicado no site Human Rights Watch por
Kenneth Roth, diretor executivo de uma das principais organizações
internacionais de direitos humanos, nos mostra a realidade da polícia
agindo seletivamente e com o respaldo do Estado e diante da “cegueira”
social.

A polícia continua a matar negros em números


desproporcionais em relação a sua representação
demográfica na população. Os negros são 2,5 vezes
mais sujeitos a serem mortos pela polícia do que os
brancos.Uma pessoa negra desarmada está cinco
vezes mais sujeita a ser morta pela polícia do que
uma pessoa branca desarmada.” (ROTH, 2017 n.p)

E Roth continua em sua explanação relevante para este artigo,


que nos dá embasamento teórico para as palavras de Wacquant.
“Trinta e um estados norte-americanos ainda permitem a pena de morte.
Até a elaboração deste relatório49, pessoas em oito estados tinham sido
executadas em 2017, todas por injeção letal. O debate sobre os protocolos de
injeção letal persistiu, com vários estados dos Estados Unidos ainda fazendo
uso de combinações de drogas experimentais e se recusando a divulgar sua
composição.” (ROTH, 2017 n.p) (GRIFO NOSSO)

49 Para detalhes, ver: https://www.hrw.org/pt/world-report/2018/country-


chapters/312941

210 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Além desses dados aterradores, há outra questão absurda e que
deve ser mencionado, quando o assunto são crianças encarceradas.

Aproximadamente 50.000 crianças e adolescentes


estão em centros de detenção juvenis ou outras
instalações de confinamento nos Estados Unidos,
aproximadamente 5.000 crianças e adolescentes
em conflito com a lei são mantidos em prisões para
adultos. Todos os anos, 200 mil adolescentes, com
menos de 18 anos, passam pelo sistema de justiça
criminal comum, com muitas crianças sendo
automaticamente julgadas como adultos. Os EUA
continuam a condenar crianças à prisão perpetua
sem a liberdade condicional, embora os estados
rejeitem cada vez mais o seu uso – em 2017, 25 estados
e Washington DC proibiram ou deixaram de aplicar
prisão perpétua a crianças. (ROTH, 2017 n.p)

Como o Estado fará a gestão educacional, emocional, financeira


e reinserção dessas crianças na sociedade? Realmente algo muito
grave e que merece uma discussão mais aprofundada.
No Brasil, o cenário atual não é muito diferente do que acontece
nos Estados Unidos, por aqui se tem a mesma cultura punitiva dos
moradores das favelas, jovens e pretos com pouco ou inexistente nível
de escolaridade, a exploração das empresas pela mão de obra se faz
presente, quando a reabilitação e reinserção no mercado de trabalho
não é oferecida de forma efetiva, pois no melhor cenario seria o que
possibilitaria que os tirassem da indignidade e da miséria extrema,
esses indivíduos pertencem a classe dos esquecidos e excluídos
social, esse panorama é apresentado pelo site do Ministério da Justiça
e Segurança Pública, conforme dados do INFOPEN, o sistema de
informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro.

Considerando presos em estabelecimentos penais e


presos detidos em outras carceragens, o Infopen 2019

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 211


aponta que o Brasil possui uma população prisional
de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os
regimes. Caso sejam analisados presos custodiados
apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias,
o país detém 758.676 presos. O percentual de presos
provisórios (sem uma condenação) manteve-se
estável em aproximadamente 33%. O crescimento
da população carcerária que, de acordo com projeção
feita em dezembro de 2018, seria de 8,3% por ano,
não se confirmou. De 2017 para 2018, o crescimento
chegou a 2,97%. E do último semestre de 2018 para o
primeiro de 2019 foi de 3,89%.” Ministério da Justiça
e Segurança Pública, 2020, online)

Continuando com os dados de superlotação:

O Infopen de junho de 2019, publicado nesta sexta,


também aponta que o número de pessoas presas
excede em 38,4% ao total de vagas disponíveis no
sistema penitenciário. São 461,026 vagas para 758.676
detentos – outras 14.475 estão detidas em delegacias
de polícia. (Unisinos. 2020, online)

Gabriel Sampaio comenta sobre a realidade do sistema carcerário


brasileiro mediante os dados publicados pela INFOPEN que nos ajuda
a integrar todas essas informações ao raciocínio de Loïc Wacquant.

Estes dados são reflexo de uma política criminal


populista e ineficaz. O Brasil encarcera muito e de
maneira desordenada, não oferece condições dignas
nas prisões, sendo precários os acessos à saúde ao
trabalho (18%) e à educação (14%). Os dados revelam
uma crise crônica e que exige medidas urgentes para
sua superação, por meio da revisão da legislação,
ampliando, por exemplo, as alternativas penais para
crimes sem violência, revisão da Lei de Drogas, e

212 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


redução das prisões provisórias. Vale lembrar que o
sistema prisional brasileiro é palco de graves violações
de direitos, atinge mais fortemente jovens negros e é
incapaz de promover a reintegração social da pessoa
presa, como prevê nossa legislação. (Unisinos. 2020,
online)

No mundo, segundo informações publicadas em Junho de


2020 , os paises com maior número de encarceirados são os Estados
50

Unidos da America com 2.121.600 (dois milhões cento e vinte e um


mil e seiscentos presos), China com 1.700.00 (um milhão e setescentos
mil), em terceiro desse ranking vem o Brasil com 773.151 (setescentos
e setenta e três mil cento e cinquenta e um) seguido da Russia 511.030
(quinhentos e onze mil e trinta) e India 466.084 (quatrocentos e
sessenta e seis mil e oitenta e quatro presos).
Esses números nos mostra os socialmente neutralizados pelo
mundo a fora, expondo a pobreza dilatada, a reintegração social é a
esperança para se ter a dignidade de volta, mas ela não existe pois,
ao saírem das prisões desorientados e desinformados acabam por
voltar a cometer crimes e aumentando cada vez mais as estatísticas
de reincidência. Mediante esse cenário e com números de grandes
proporções devemos levar em conta os reflexos que estão fora dos
limites dos muros do cárcere e nitidamente não relevantes para o
Estado e para sociedade, com as palavras de Foucault devemos acionar
um alerta a “onda” que a punição carrega consigo:

“Enfim a prisão fabrica indiretamente delinquentes,


ao fazer cair na miséria a família do detento: A mesma
ordem que manda para a prisão o chefe de família
reduz cada dia a mãe à penúria, os filhos ao abandono,
a família inteira à vagabundagem e à mendicância.
Sob esse ponto de vista o crime ameaça prolongar-
se.” (FOUCAULT, 1975. p. 295)

50 Para detalhes, ver: https://www.statista.com/statistics/262961/countries-with-the-


most-prisoners.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 213


Diante desses dados devemos questionar qual é a finalidade
do Estado Penal para Loïc Wacquant? Temos a punição, o sistema
carcerário é o simbolismo do poder do Estado, encontrando uma
separação do bem e do mal, uma serie de políticas que tem um
desapresso pela vida, nos quais os mais fragilizados, os pertencentes
das classes mais baixas pagam esse preço, o preço do esquecimento,
da inutilização, da contenção.
Loïc Wacquant, nos mostra o desenvolvimento da doutrina
neoliberal e intensificação do direito penal, que tem a função
majoritária de punição dos oprimidos socialmente, devido a
diminuição do Estado Social e a intensificação do Estado Penal, e diz:

A desregulamentação social, ascensão do salariado


precário(sobre um fundo de desemprego de massa
na Europa e de “miséria laboriosa” na América)
e retomada do Estado punitivo seguem juntos: a
“mão invisível “do mercado de trabalho precarizado
encontra seu complemento institucional no “punho
de ferro” do Estado que se reorganiza de maneira
a estrangular as desordens geradas pela difusão da
insegurança social. (WACQUANT, 2001 p. 147)

Malaguti, por sua vez, faz uma afirmação quanto a unanimidade


nos conceitos sociopolítica com relação ao cárcere e a punição, que
tem o respaldo de que a solução para o crime é a punição e cárcere.

O importante foi a construção de um senso comum


criminológico que, da direita fascista à esquerda
punitiva, se ajoelha no altar do dogma da pena.
Incorporam ambas o argumento mais definitivo
para o capital contemporâneo: é a punição que dará
conta da conflitividade social, é a pena que moraliza
o neoliberalismo (2009, p.390)

Completando a alegação de Malaguti, Wacquant diz:

214 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


a regulação das classes populares por aquilo que
Pierre Bourdieu chama de “a mão esquerda” do
Estado, simbolizando por educação, saúde, assistência
e habilitação social, substitu-se – nos Estados Unidos
– ou acrescenta-se na Europa – a regulamentação por
sua “mão direita”, policia, justiça e prisão, cada vez
mais ativa e intrusiva nas zonas inferiores do espaço
social. (2001, p. 147)

Na contramão da evolução industrial, econômica, tecnológica,


as políticas sociais colidem com o jogo de interesses de uma sociedade
que rejeita os excluídos e os pune pela pobreza, nesse contexto
Wacquant conclui que o Estado Penal tem a finalidade de repressão
aos pobres, preconizar a invisibilidade, e obter lucros com as mazelas
humanas. O Estado nada mais é que a economia política da punição.
Ele nos diz que:

Ex-detentos dificilmente podem exigir algo melhor


que um emprego degradante e degradado em razão
das trajetórias interrompidas, dos laços sociais
esgarçados, do status jurídico ignominioso e do
amplo leque de restrições legais e obrigações civis
implicadas. (WACQUANT, 2008. p. 13)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fazer a análise da tese de Loïc Wacquant, através de suas obras


e artigos, com referência ao papel do governo nos Estados Unidos,
chegasse a conclusão que o Estado Social deu lugar ao Estado Penal,
quando a marca de raça e etnia carrega um grande fardo, o fardo do
pré-julgamento, o fardo da indiferença, o fardo do estigma, o fardo
do preconceito, da pobreza e o descaso, que se tira de construção
de uma política criminal cidadã e se vê através das estatísticas uma

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 215


gestão dos excluídos, matança e ou anulação dos direitos humanos de
maneira endêmica, e um forte desapresso pela vida humana, quando
são neutralizados e destituídos de poder.
A hegemonia do país, contribuiu para um acirramento das
desigualdades principalmente com a precarização do trabalho, a
globalização neoliberal e o acirramento nas competições econômicas
os levando a aceitar as desigualdades, os investimentos nas políticas de
punição e os discursos políticos e a mídia propagando a importância
de se investir em segurança para frear a criminalidade é o que será
mais eficaz na eliminação da pobreza.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os ex-detentos ficam
vinculados a um sistema integrado nacional que, qualquer cidadão
pode acessar e checar o crime cometido por um outro indivíduo, que
pode até impossibilitá-lo de retornar a vida social e trabalho devido ao
preconceito, segundo Brown.

Esse cidadão também aceita a intensificação das


desigualdades no neoliberalismo como básicas
para a saúde do capitalismo – o que engloba os
salários abaixo da linha da pobreza de muitos e as
compensações inflamadas de banqueiros, CEOs e
mesmo administradores de instituições públicas,
e também o acesso reduzido dos pobres e da
classe média a bens anteriormente públicos, agora
privatizados, como educação superior e serviços
municipais. (BROWN, 2016, p. 48)

O Estado tem como “cúmplice” a burocratização do sistema de


acesso aos auxílios sociais, o vislumbre de arrecadação de impostos e o
crescimento no mercado de ações na bolsa dos presídios privatizados,
a polarização entre classes e a submissão dos pobres às políticas
do endividamento e além das condições precárias de subsistência,
tornando todo o sistema funcionando como uma engrenagem, e essa
falta de auxílio social/econômico, faz com que o indivíduo busque a
única opção de sobrevivência que ele vê e conhece, ou seja, a prática

216 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


de crime que se torna a fonte de sustento próprio e familiar. Conforme
palavras de Wacquant, “Os Estados Unidos claramente optaram pela
criminalização da miséria como complemento da generalização da
insegurança social.” (Wacquant, 1999, p. 100)
E se as empresas dentro dessa competição de mercado
distribuíssem seus lucros na forma de salários justos? Talvez assim
pessoas poderiam ter vida digna, acesso a condições básicas de saúde,
educação, alimentação e lazer. Será que o Estado precisaria ser o
“máximo” em punir, empregar altos recursos financeiros para excluir
pessoas da sociedade? Posso dizer que distribuição de renda e o
emprego dos impostos arrecadados em políticas publicas efetivas, é a
solução para a pobreza e a degradação. Uma alternativa possível talvez
fosse a substituição da pena alternativa, podendo dar ao praticante
do delito a consciência social e lhe atribuir responsabilidades e um
possível caminho a seguir no futuro.
Um país que prioriza a Educação, juntamente com as políticas
sociais, teria uma projeção econômica muito maior do que a prática
de isolamento usada atualmente, se houvesse investimentos efetivos
na educação da população carcerária concomitante com aporte
psicológico, uma capacitação de excelência, o indivíduo ao sair do
cárcere seria um grande aliado para o crescimento econômico de seu
país. Somente uma verdadeira implantação de políticas e práticas
públicas, que conscientize a integração de todos os setores econômicos
e pessoas da sociedade haverá a verdadeira prosperidade.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 217


REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Fernando Salla; GAUTO, Maite. A contribuição de Da-


vid Garland a sociologia da punição. 2006; p. 329-350. Tempo Social,
revista de sociologia da USP, v. 18, n.1

BATISTA,Vera Malaguti. Sulfurosas marginalizações em análise


do Livro de WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de
P. C. Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008. Disponível em: https://
www.redalyc.org/pdf/2850/285022054017.pdf. Acesso em: 01 de junho
de 2020.

BATISTA,Vera Malaguti. Sulfurosas marginalizações em aná-


lise do Livro de WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São
Paulo: Boitempo, 2008. Disponível em: https://www.redalyc.org/
pdf/2850/285022054017.pdf. Acesso em: 01 de junho de 2020.

BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial – Neoliberalismo, capi-


tal humano e politicas de austeridade. Traduzido por: Juliane Bianchi
Leão: Zazie Edições, vol. 23- 2016

CONSULTORIA , Análise Econômica. Laissez-faire, laissez-al-


ler, laissez-passer e as origens do pensamento econômico moder-
no. 2014. Disponível em: http://www.analiseeconomica.com.br/index/
laissez-faire-laissez-aller-laissez-passer-e-as- origens-do-pensamento-
-economico-moderno/ Acesso em: 14 de junho de 2020.

DARDOT, Pierre e Christian Laval. A nova razão do Mundo – en-


saios sobre a sociedade Neoliberal- Traduzido por: Mariana Echalar:
Ed BoiTempo

DORES, Antonio. O Estado penal, de Loïc Wacquant. 2016 Aces-


so em: 24 de maio de 2020. Disponível em: https://sociologia.hypothe-
ses.org/405

218 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. John Locke, liberalismo e pro-
priedade com o conceito Antropológico – “All the word was America.
Revista USP, 1993– pág, 30 a 53.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª


ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. VIEIRA,
P. P. Pensar diferentemente a história: o olhar genealógico de Michel
Foucault em “Vigiar e punir”. Campinas-SP: [s.n.], 2008.

GANEM, Angela. Adam Smith e a explicação do mercado como


ordem social: uma abordagem histórico-filosófica. R. Econ. con-
temp., Rio de Janeiro, 4(2): 9-36, jul./dez. 2000. Disponível em: https://
revistas.ufrj.br/index.php/rec/article/view/19623/11376. Acesso em: 01
de junho de 2020.

GREGORUT, Adriana Silva. A sociologia da punição de Loïc Wa-


cquant como abordagem crítica no campo do direito e desenvolvi-
mento. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil - Dilemas, Rev.
Estud. Conflito Controle Soc. – Rio de Janeiro – Vol. 13 – no 1 – JAN-
ABR 2020 – pp. 195-211. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596466-brasil-se-man-
tem-como-3-pais-com-maior- populacao-carceraria-do-mundo. Aces-
so em: 14 de junho de 2020.

KULAITIS, Letícia Figueira Moutinho. A globalização da penali-


dade neoliberal? Comentários sobre a conexão EUA, França e Brasil
proposta por Loïc Wacquant. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/
nep/article/view/63822/37133 Acesso em: 31 de maio de 2020

LUIZ. Streck, Lenio Luiz. Constituição, bem jurídico e controle


social: A criminalização da pobreza. Revista de estudos criminais /
Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) -Referência: v.
8, n. 31, p. 65–96, out./dez., 2008.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 219


MORRIS, Aldon; TREITLER Vilna Bashi . O ESTADO RACIAL DA
UNIÃO:

compreendendo raça e desigualdade racial nos Estados Uni-


dos da América ÉTAT RACIAL DE L’UNION: comprendre la race et les
inégalités raciales aux États-Unis d’Amérique. Cad. RH vol.32 no.85
Salvador Jan./Apr. 2019 Epub June 03, 2019.

PESSOA, Sara Araújo; LEAL, Jackson da Silva. Globalização He-


gemônica e Política Criminal Neoliberal. Rev. Direito Práx., Rio de
Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2620-2646.

PENSADOR. Bertolt_Brecht. Disponível em: https://www.pensa-


dor.com/autor/bertolt_brecht/2/. Acesso em: 26 de junho de 2020

PORFíRIO, Francisco. “Michel Foucault”; Brasil Escola. Dispo-


nível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/michel-foucault.
htm. Acesso em 01 de julho de 2020.

REIS, José Carlos. O Historicismo: a Redescoberta da História


por: José Carlos Reis / Locus: Revista De História. 2002. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20551/10966.
Acesso em: 24 de maio de 2020

ROTH, Kenneth. Estados Unidos. Eventos de 2017. Disponí-


vel em: https://www.hrw.org/pt/world-report/2018/country-chap-
ters/312941. Acesso em: 03 de junho de 2020.

SECRETARIA DA EDUCAÇÃO. Organização do Trabalho Peda-


gógico - Pensadores da Educação - Pierre Bourdie. Disponível em:
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/con-
teudo.php?conteudo=443

STATISTA. Países com mais prisioneiros em junho de 2020.


Disponível em: https://www.statista.com/statistics/262961/countries-
-with-the-most-prisoners. Acesso em: 14 de maio de 2020.

220 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


UNISINOS, Instituto Humanitas. Brasil se mantém como 3º país
com maior população carcerária do mundo. 2020. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596466-brasil-se-man-
tem-como-3-pais-com-maior- populacao-carceraria-do-mundo - Aces-
so 01 de junho de 2020.

UNISINOS, Instituto Humanitas. O sistema prisional e um me-


canismo de gestão damiseria o crescimento das facções e o movi-
mento de adesão e resistência ao CV e ao PCC entrevista especial
com ítalo Siqueira. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-
noticias/entrevistas/591879-o-sistema-prisional-e-um-mecanismo-de-
-gestao-da-miseria-o- crescimento-das-faccoes-e-o-movimento-de-a-
desao-e-resistencia-ao-cv-e-ao-pcc-entrevista- especial-com-italo-si-
queira Acesso em: 14 de junho de 2020.

VON HUNTY, Rita. Como funciona o liberalismo e o neolibera-


lismo? | O Gabinete – Carta Capital. Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=DVxELIx HN7Y- Acesso em: 21 de Maio de 2020.

WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria


nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2001, Revan, 2003.

. As prisões da miséria: Traduzido por: André Telles – 2004:


Sabotagem, 1999

. The Wedding of Workfare and Prisonfare Revisited”, em So-


cial Justice. 2011. p. 203-221. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178- 700X2012000100002 Acesso
em: 24 de maio de 2020

. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão en-


tre workfare e prisonfare. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2012000100002 Acesso
em: 24 de maio de 2020

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 221


ZAFFARONI ,Eugenio Raúl. El derecho latinoamericano en la
fase superior del colonialismo. .Passagens. Revista Internacional de
História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 7, no.2, maio-a-
gosto, 2015, p. 182-243.

222 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A RESERVA DO POSSÍVEL
COMO FUNDAMENTO PARA
VIOLAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO
ENCARCERADO
Flávia Ávila Penido

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 223


224 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
A RESERVA DO POSSÍVEL COMO
FUNDAMENTO PARA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO ENCARCERADO

Flávia Ávila Penido51

INTRODUÇÃO

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando o julgamento


da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 347 no ano de 2015, reconheceu o estado de coisas
inconstitucionais que se tornou o encarceramento no Brasil. Ocorre
que, em se tratando de um Estado de Direito, deste reconhecimento
deveria decorrer a imediata interrupção das violações, com a
soltura dos aprisionados. O que se questiona é, pois, o conformismo
do Plenário do Supremo Tribunal Federal diante do cenário de
inconstitucionalidades, quando deveria ser ele o guardião e defensor
da ordem constitucional.
A naturalização da violação permanente de direitos dos apenados
conduz à constatação de que é aceitável a desumanidade em relação
a determinadas categorias de pessoas, por não serem reconhecidos
como sujeito de direitos.
Faz-se uma correlação dos condenados com os apátridas,
que perdem a salvaguarda da ordem jurídica, inclusive as garantias
constitucionalmente asseguradas. Retira-se, em última medida,
a condição de cidadão, o que faz com que em relação a eles seja
estabelecida uma relação de sujeição frente ao Estado, passando a
transitar em um campo alheio ao direito.
Recorre-se à reserva do possível para justificar a inércia
frente a violação perene de direitos devido a desídia do Estado em

51 Mestra em Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Público. Professora.


Advogada.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 225


implementar e assegurar a todos, indistintamente, os direitos e
garantias constitucionalmente e legalmente previstos.
Olvida-se, no entanto, que em um Estado de Direito as garantias
constitucionais devem servir como limitadoras do poder punitivo e,
dada a condição de maior vulnerabilidade da pessoa encarcerada que
depende do Estado para satisfação de suas necessidades mínimas,
a ela deveria ser observada com mais rigor a ordem constitucional
com os atributos da liquidez, certeza e exequibilidade dos direitos
fundamentais.

1 A INCONSTITUCIONALIDADE DAS PRISÕES


E A CONDIÇÃO DE NÃO-SUJEITO

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de


Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 reconheceu o
estado de coisas inconstitucionais que se tornou o encarceramento no
Brasil.
Em seu voto, o ministro Marco Aurélio afirmou que

no sistema prisional brasileiro, ocorre violação


generalizada de direitos fundamentais dos presos
no tocante à dignidade, higidez física e integridade
psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade
das instalações das delegacias e presídios, mais do
que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica
correspondente, configuram tratamento degradante,
ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob
custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas
em nossos presídios convertem-se em penas cruéis
e desumanas. Os presos tornam-se “lixo digno do
pior tratamento possível”, sendo-lhes negado todo e
qualquer direito à existência minimamente segura
e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, na comparação com as “masmorras
medievais”. (BRASIL, 2015, p. 24-25)

226 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


O relator destacou “a ausência de medidas legislativas,
administrativas e orçamentárias, o que representa falha estrutural a
gerar tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação
e o agravamento da situação.” Celso de Mello em seu voto reconheceu
que

há, efetivamente, no Brasil, um claro e indisfarçável


“estado de coisas inconstitucional” resultante –
tal como denunciado pelo PSOL – da omissão do
Poder Público em implementar medidas eficazes
de ordem estrutural que neutralizem a situação
de absurda patologia constitucional gerada,
incompreensivelmente, pela inércia do Estado que
descumpre a Constituição Federal, que ofende a
Lei de Execução Penal e que fere o sentimento de
decência dos cidadãos desta República. O quadro
de distorções revelado pelo clamoroso estado de
anomalia de nosso sistema penitenciário desfigura,
compromete e subverte, de modo grave, a própria
função de que se acha impregnada a execução da
pena, que se destina – segundo determinação da Lei
de Execução Penal – “a proporcionar condições para
a harmônica integração social do condenado e do
internado” (art. 1º). (BRASIL, 2015, p.159)

Diante da incapacidade e “falta de vontade em buscar superar


ou reduzir o quadro objetivo de inconstitucionalidade” e, entendendo
que “a violação dos direitos fundamentais alcança a transgressão à
dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial”, estaria
justificada a “atuação mais assertiva do Tribunal” (BRASIL, 2015, p.31)
com possibilidade de tomar providências que demandariam atuação
do executivo e legislativo.
Dos votos que afirmam o “Estado de coisas inconstitucional”
do cumprimento de pena e da fundamentação voltada a garantir
a legitimidade da tomada de providências pelo STF criou-se a
expectativa de que a decisão levaria à imediata suspensão ou extinção

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 227


da pena a fazer cessar a condição de inconstitucionalidade a que estão
submetidos os encarcerados. Mas isso não ocorreu. A inércia do STF
em tomar a providência devida para cessar a submissão dos apenados
às condições atentatórias à dignidade humana denota uma particular
tolerância do Estado (em suas funções legislativas, administrativas e
jurisdicionais) com as ilegalidades dirigidas a determinado grupo de
pessoas: os presos.
Isso indica que há, no corpo social, uma cisão fundamental
que distingue no povo total, uma esfera de vida despida de existência
política, marginalizada.52 Remonta a Beccaria a constatação de que a
condenação, além de excluir o condenado da vida em sociedade, como
resultado imediato da privação da liberdade, o despia da condição de
sujeito de direitos. Segundo o autor, a condenação “declara rompidos
todos os laços que o ligavam à sociedade; porque desde então o cidadão
está morto, resta somente o homem; e, perante a sociedade, a morte
política de um cidadão deve ter as mesmas consequências que a morte
natural”. (BECCARIA, 2013, p. 62)
Personifica-se o bandido. Com origem etimológica do italiano
bandito, a expressão designa o banido e o malfeitor: aquele que é
expulso do Estado, perdendo sua condição de nacional, e aquele que
é segregado da sociedade, perdendo a sua dignidade: ambos afastados
do convívio dos outros. Em sua origem, designa formas de exclusão.
Formas de vida postas à margem, excepcionadas do povo total, a
denotar o apartamento por uma perversa biopolítica.
Dada a importância do reconhecimento dos direitos humanos,
Lafer, com esteio em Hannah Arendt, os relacionam ao “status
civitatis”. Ao tratar dos apátridas, demonstra a fragilidade dos direitos
humanos conquanto não aplicáveis àqueles que não integram a ordem
jurídica local por estarem privados de uma comunidade política que os
reconheça como sujeito de direitos. A condição de apátrida, segundo o

52 Agambem alerta que “o povo já traz em si a fratura biopolítica fundamental. Ele é


aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao
conjunto no qual já está desde sempre incluído.” O autor denomina povo, a vida nua, e
Povo, a categoria com existência política. (AGAMBEN, 2015, p. 37)

228 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


autor, não resultaria do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim
de sequer existirem leis para eles. (LAFER, 1988, p. 147)
Sobre o tema, Salo de Carvalho (2008) afirma que esta condição
de apátrida não se restringe apenas à distinção entre nacionais e
estrangeiros e relaciona a apatridia à condição do condenado. O
autor estende o conceito àquelas situações em o indivíduo perde os
“elementos mínimos de conexão com a ordem jurídica interna dos
Estados, destituindo-os da legalidade e da jurisdição. Tal condição
retiraria o status de cidadania do homem, estabelecendo-lhe uma
‘morte civil’. (CARVALHO, 2008, p.152)
Desta forma, o mesmo autor observa que o direito penal
deixa de atuar como instrumento de proteção da sociedade contra a
criminalidade e mantém a histórica53 função de gestão dos excedentes.
Inicialmente, os excedentes que o mercado de trabalho não podia
absorver, hoje, aqueles que se mostrem indesejáveis segundo a política
criminal vigente pautada em características como raça, nacionalidade
ou local de residência.

O efeito deste processo é a descartabilidade do valor


da pessoa humana. Compreende-se, neste quadro
político, a formação de condições de irrupção de
políticas criminais igualmente sustentadas na

53 Sinteticamente, entre os séculos XVI e XVIII, na transição entre o feudalismo para


o modelo capitalista insurgente, surgiram e foram expandidas as workhouses e as
casas de correção, que nascem e se desenvolvem simultaneamente ao capitalismo.
As instituições destinavam-se aos vagabundos e ociosos, ou seja, pobres (não-
proprietários), que seriam submetidos a trabalhos forçados. Aqueles considerados
“pobres bons”, em alguma medida vocacionados ao trabalho proletariado, seriam
destinados às casas de trabalho e aqueles vadios ou criminosos (“pobres maus”) seriam
destinados às casas de correção. As instituições, no entanto, “eram a mesma coisa,
uma vez que o real delito era, no fundo, a pobreza, e a finalidade da instituição era
o aprendizado de uma disciplina, [a disciplina do trabalho] visto como punição”. Os
autores citam opúsculo escrito em 1693 que afirmava a “oportunidade de internamento
para todos os pobres, fossem eles “bons” ou “maus”, segundo a teoria então vigente
em todas as casas de trabalho, protestantes ou católicas: os pobres bons agradecerão
ao internamento que os assiste e lhes oferece a possibilidade de trabalho; os pobres
maus serão justamente privados da liberdade e punidos com o trabalho (MELOSSI,
PAVARINI, 2010, p. 59-60)

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 229


exclusão, para determinadas pessoas, do status de
cidadão. (CARVALHO, 2013, p. 194;196)

A condenação com a consequente perda deste status de cidadão


faz com que surja um espaço de não-vida, onde há a suspensão da
ordem jurídica com a perenização das ilegalidades.

Depois de prolatada a sentença penal condenatória,


o apenado ingressa em ambiente desprovido de
garantias. Desta forma, a decisão judicial condenatória
exsurge como declaração de ‘não-cidadania’, como
formalização da condição de apátrida do autor do
fato-crime.” (CARVALHO, 2008, p.154)

Considerando a permanência desta suspensão da ordem jurídica


que desguarnecem os encarcerados dos direitos fundamentais
essenciais à existência digna, resta a vida biológica despida da condição
de sujeito político, reduzidos à vida nua (despolitizada). A estabilidade
e permanência desta condição leva à aparência de normalidade, como
se o observador externo não percebesse a condição já que “sempre foi
assim” o que faz com que não se questione e nem se perceba que ali não
tem mais um cidadão. Confunde-se o homo sacer (despolitizado) com o
cidadão. (AGAMBEN, 2015, p. 43-44) de forma a gerar - ao observador
externo - certo conformismo com a condição apresentada. Trata-se da
normalização da violência estrutural no cárcere.
Com a “inferiorização cívica” dos indivíduos que tem a liberdade
cerceada, tem-se a sua reificação, do que decorre a assunção pelo
Estado de uma posição de supremacia especial, à qual é correlata à
posição de sujeição especial de determinadas categorias de pessoas,
incluídas as presas. Segundo esta teoria, enquanto o Estado exerce em
relação aos cidadãos a supremacia geral, em relação a determinada
categoria de pessoas — dentre elas os apenados — poderia atuar de
forma mais severa, flexibilizando a legalidade e violando direitos
conexos à liberdade.

230 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Logo, ter-se-ia não uma relação do tipo direito/
obrigação, como aliás dá a entender a própria Lei de
Execução Penal ao falar e direitos e deveres do preso,
mas sim de poder/ônus: de um lado o poder de sujeitar;
de outro, a obrigação de obedecer. (PAVARINI;
GIAMBERARDINO, 2018, p. 212)

Esta ideologia, desenvolvida nos fins do século XIX e primeiras


décadas do século XX, justificava a “possibilidade de inobservância de
direitos fundamentais e da flexibilização do princípio da legalidade com
a permissão de trânsito em um campo inteiramente alheio ao direito,
não valorado juridicamente” em razão da exposição de determinadas
pessoas à supremacia especial do Estado, da qual decorre uma relação
especial de sujeição. (ROIG, 2021, p. 40)
Assim, esta relação de supremacia especial entre Estado e preso
tornaria admissível a flexibilização de direitos e até a sua eliminação
em nome dos interesses do Estado que orientam a política criminal.
Rosemiro Pereira Leal alerta que o espaço estatal imune à
fiscalidade processual se alarga e, através de seus agentes, fabricam
a corrupção e a morte em suas políticas de saúde, penais, fiscais e
econômicas, valendo-se da lei e da autoridade daquele que diz o que a
lei quer dizer, que aplica ou suspende a lei, relativizando-a, segundo os
interesses dominantes. “Avia-se, assim, de modo indolor e soberano, a
morte pelo Direito”. (LEAL, 2005, p.115)
Em outros termos, utiliza-se do Direito e das decisões jurídicas
para suspender e relativizar a exigibilidade de direitos fundamentais, o
que faz com que a ruptura com a ordem jurídica não seja percebida ou,
se identificada, leve ao conformismo ou a naturalização da violência.
Afinal, amparada na autoridade de uma decisão jurisdicional emanada
da Suprema Corte. Não foi esta a percepção quanto ao julgamento da
ADPF 374?
Reconheceu-se a violência estrutural do cárcere, conformou-
se com a dita impossibilidade de fazer cessar essa violência que
terminou por ser naturalizada, como se fosse consequência natural

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 231


da condenação e da consequente privação da liberdade. Este
conformismo, volta-se a dizer, é inerente a dessujeitização daquele
que sofre a violência. Assim, “cumpre-se um direito às avessas da
constitucionalidade democrática para anunciar a vida e morte, cuja
celebração é antes preparada (financiada) pela mídia como ocorrência
natural do SER humano que jamais pôde ser.”54 (LEAL, 2005, p.115)
Nota-se que “os direitos fundamentais, mesmo se retoricamente
reconhecidos, restam sempre diluídos na relação de sujeição,
fazendo do recluso um cidadão ‘de segunda categoria’”, (PAVARINI;
GIAMBERARDINO, 2018, p. 212) sujeito à reserva do possível. A
sistemática violação da regra prevista no art. 3º da LEP segundo a qual
“ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não
atingidos pela sentença ou pela lei” ilustra bem a condição de não-
sujeito.
Pavarini e Giamberardino compara o direito à vida e à
incolumidade física com a inegável nocividade do cárcere. “Mesmo
na melhor prisão do mundo (...) haverá uma redução significativa da
expectativa de vida do recluso.” Portanto, “o direito à vida e à saúde do
preso é, ainda que nas melhores condições possíveis, apenas “o que
é possível” tutelar da vida e da saúde em uma realidade que ameaça,
comprime e reduz tais bens”. Significa dizer que “os direitos à vida e a
saúde são residuais frente à prevalência do poder de punir do Estado,
de forma que não há como falar em direito neste contexto”. (PAVARINI;
GIAMBERARDINO, 2018, p.215)

54 Inclusive, no julgamento da ADPF 347 foi ponderado que a “impopularidade dos


presos faz com que os políticos, salvo raríssimas exceções, não reivindiquem recursos
públicos a serem aplicados em um sistema carcerário voltado ao oferecimento
de condições de existência digna. A opinião pública está no coração da estrutura
democrático-parlamentar.” Esta ponderação serviu para justificar as medidas
sugeridas pelo STF por ocasião do julgamento da referida ação. “(...) a solução das
graves violações de direitos fundamentais dos presos, decorrentes da falência
do sistema prisional, presentes políticas públicas ineficientes e de resultados
indesejados, não consegue avançar nas arenas políticas ante a condição dos presos,
de grupo social minoritário, impopular e marginalizado. Nesse cenário de bloqueios
políticos insuperáveis, fracasso de representação, pontos cegos legislativos e temores
de custos políticos, a intervenção do Supremo, na medida correta e suficiente, não
pode sofrer qualquer objeção de natureza democrática.” (BRASIL, 2015, p. 14)

232 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Em seu voto Celso de Mello levanta a discussão quanto a reserva
do possível ao afirmar que a escassez de recursos públicos faz instaurar
situações de conflito na execução de políticas públicas definidas no
texto constitucional, fazendo com que o Poder Público seja compelido
a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”. Afirma, no entanto,
que a decisão deve ter como parâmetro a intangibilidade do mínimo
existencial, cuja concretização revela-se capaz de garantir condições
adequadas de existência digna, em ordem a conferir real efetividade
às normas positivadas na própria Lei Fundamental. (BRASIL, 2015, p.
171-176)
Paradoxalmente ao aludido, destaca-se a incongruência do
órgão jurisdicional que, ciente do tratamento desumano e degradante
que não assegura sequer o mínimo existencial, não tenha havido
qualquer movimento que rompesse imediatamente com a condição
de ilegalidade e desumanidade.
Denota um certo conformismo com a realidade carcerária,
notadamente porque aqueles que ocupam as celas são os outros,
apátridas, despidos do status de cidadão. É como se o Estado dissesse:
“é o melhor que conseguimos fazer”.
Ocorre que, em um Estado Democrático de Direito, sobretudo
em razão da previsão constitucional de garantias limitadoras do poder
punitivo, apresenta-se outra perspectiva de análise da relação entre o
encarcerado e o Estado. A partir do cerceamento da liberdade com a
inserção do corpo na esfera de disponibilidade do Estado, cria-se uma
relação de dependência entre este e o custodiado haja vista que suas
necessidades mais elementares devem ser supridas por quem detém
a gestão da liberdade.
Ao contrário do discurso da supremacia estatal, a relação de
dependência inaugurada a partir do aprisionamento faz com que o
preso careça de maior tutela e segurança. A responsabilidade do Estado
sobre as pessoas presas decorre, portanto, de maior vulnerabilidade
perante atos tendencialmente atentatórios aos direitos humanos,
uma vez que se encontram em situação de enclausuramento e de

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 233


dificuldade de defesa ou de imediata evasão perante o abuso. (ROIG,
2017, p. 585)
Nunca é demais lembrar que “o preso conserva todos os
direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se à todas
as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” conforme
previsão do artigo 38 do Código Penal. Esta norma torna cristalina a
preservação da condição de sujeito de direitos a orientar a relação
entre o preso e o Estado, que não poderia ser, por conseguinte, de
mera sujeição e dessujeitização.
Disto resulta que o Estado deve cuidar de assegurar a fruição dos
direitos fundamentais, sem que se possa justificar a violação dos pela
falta de recursos. Os direitos fundamentais daqueles indivíduos que
se encontram sob a tutela do Estado são incambiáveis, de forma que a
alegação da “reserva do possível” como fundamento para permanência
da situação de violação não pode prosperar.
A constante referência à reserva do possível como justificativa
para manutenção do quadro de superlotação e violação das regras
penitenciárias vem consagrando a manutenção do cárcere como
espaço de violação de direitos sistêmica levando à redução do sistema
prisional, pelo Plenário do STF, na ADPF 347, a um “estado de coisas
inconstitucional”, sem que desta constatação decorra a imediata
soltura dos apenados, a fazer cessar a insconstitucionalidade.
Este estado parece, pois, irremediavelmente atrelado à coisa-
prisão, como se fosse inerente a ela. Naturaliza-se a violação sistêmica
e estrutural de direitos nas prisões, com a chancela do órgão que tem
a competência para salvaguardar a Constituição.

2 O ESVAZIAMENTO DO ARGUMENTO

A Teoria Neoinstitucionalista do Processo propõe uma


redefinição do sistema jurídico a partir do que chamou de níveis
instituinte e coinstituinte.
Segundo a Teoria Neoinstitucionalista do Processo, o processo é
uma instituição interpretante que nucleia e baliza o sistema jurídico.

234 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


É o processo que vai gerar a Constituição e as normas que compõem
o ordenamento jurídico. Considerando que o processo é a instituição
central, as demais normas e instituições que gravitam em torno do
processo são co-institucionais. Assim, todas as normas constitucionais
são coinstitucionais vez que decorrentes (criadas e correlacionadas)
da instituição central que é o processo.
A Teoria Neoinstitucionalista propõe a superação da concepção
da Constituição como um sistema jurídico “natural”, que precede a
qualquer outro para recepcionar direitos; como um arcabouço que
acolhe direitos a partir da elaboração por uma Assembleia Constituinte
fictamente representativa dos interesses da comunidade.
Trata-se, segundo Rosemiro Pereira Leal, de resquícios do mito
do “poder constituinte originário” que remete a direitos e interesses
tutelados pela norma Constitucional, surgidos por vontades coletivas
naturais e de sistemas normativos de fundo organicista (de origem não
revelada e não fiscalizável). Esse ente enigmático cria “uma pauta de
direitos a ser recebida, como adequada, por uma suposta sociedade
política ou transmitida em forma de leis parlamentarizadas para
o povo praticar e cumprir” ocultando, porém, “a explicação do que
é constituinte no exercício do que se pode exercer” ao adotar um
anonimato que ganha nome de constituinte originário. (LEAL, 2008, p.
295)
De outro modo, na Teoria Neoinstitucionalista o que constrói,
gera e gesta a Constituição é o processo nas bases instituinte e
coinstituinte (legislativo) do sistema. Assim apresenta o processo como
a fonte gestativa da norma constitucional e, uma vez constituído, esse
processo constitucional vai reger a condução dos procedimentos. Isso,
em detrimento de uma Constituição pré-existente que traz em si um
mandamento constitucional decorrente da vontade de um legislador
fictício do qual todas as normas - inclusive a norma processual - serão
geradas. Neste sentido:

O PROCESSO JURÍDICO, é que seria instituinte


(constituinte-originário) e constituinte-constitucional

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 235


de um direito a ser ativado (pós-ativo=positivo) e
não mais um direito ativo miticamente surgido da
natureza ou de um poder instituinte (constituinte)
originário (egresso) do leito das culturas ou da razão
pura ou apriorística. (LEAL, 2006, p. 2)

A Teoria Neoinstitucionalista propõe o que seria uma “teoria


processual da Constituição”, com a adequação de uma teoria do
processo a reger a operacionalização de direitos. Assim, a compreensão
adequada da Constituição “não pode perder seu eixo temático-
hermenêutico numa teoria do processo que ofereça compatibilidade
com a imediata efetivação (realização) dos direitos líquidos certos e
prontamente exigíveis”. (LEAL, 2017, p. 61)
Segundo bem explicou André Del Negri “a existência de um novo
âmbito de apreciação normativa (legitimidade), ocorrerá sempre pela
instituição jurídico-constitucional do Processo, pois é somente por meio
deste que é possível constatar se a produção da lei (Devido Processo
Legislativo), e, sua aplicação (Devido Processo Constitucional), ocorre
de forma jurídico-democrática ou não”55. (DEL NEGRI, 2008, p. 112)
Os direitos fundamentais, na perspectiva neoinstituionalista do
processo, podem ser lidos como direitos fundamentados pelo devido
processo coinstituinte. E em se tratando de direitos fundamentais
constitucionalizados é incoerente despi-los de liquidez e certeza e, por
conseguinte, exigibilidade. (LEAL, 2005, p. 24) Assim,

os direitos postos por uma vontade processualmente


demarcada, ao se enunciarem constitucionalmente
fundamentais, pertencem a um bloco de direitos
líquidos (autoexecutivos) e certos (infungíveis) de
cumprimento insuscetível de novas reconfigurações
provimentais. (LEAL, 2005, p. 26)

55 DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no Processo legislativo:


teoria da legitimidade democrática, p. 112.

236 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


A processualização dos níveis instituinte e coinstituinte faz com
que os direitos fundamentais já estejam integralmente acertados por
coisa julgada constituinte a assegurar a imediata exigibilidade em
hipótese de inadimplemento.

O anúncio de direitos fundamentais e intocáveis pela


decisão constituinte torna imperativa sua existência
institucional, uma vez que a liquidez e certeza
desses direitos reclamam execução ininterrupta
de mérito pressuposto já pré-julgado (decidido) no
horizonte instituinte do legislador originário da
constitucionalidade vigorante. (LEAL, 2005, p. 27)

A executividade imediata dos direitos insculpidos na


Constituição, como um título executivo extrajudicial fruto da coisa
julgada constitucional, não se apresenta de forma inexplicada. “Em
direito democrático, aquelas normas de aplicação imediata porque
produzidas no plano da processualidade coinstituinte e entregues
a uma fiscalidade processual ampla e asseguradora dos direitos
instituídos.” (LEAL, 2005, p. 25)
A concepção dos direitos humanos apartados dos direitos
fundamentais de “enunciatividade jurídico processual (...) cria lugares
imunes ao direito legislado onde se aloja uma vontade dita soberana
(poder excepcionalizante)” no exercício da atividade jurisdicional. Faz
com que

em nome dos direitos humanos, nega-se vigência


(por juízos de flexibilidade, proporcionalidade,
razoabilidade, ponderabilidade e adequabilidade)
a direitos fundamentais do processo ou, em nome
destes, põem-se em restrição os direitos humanos
pelos juízos de aplicabilidade da reserva do possível
com negativa de autoexecutividade dos direitos de
vida, liberdade, dignidade. (LEAL, 2017, p. 70)

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 237


Ao se pensar na configuração da coisa julgada constitucional
“quanto a direitos fundamentais, se atém à legitimidade provimental
da tutela já antecipada e irreversível em sede de coisa julgada” (LEAL,
2005, p. 30).
Isso faz com que os direitos assegurados na Constituição sejam
dotados de liquidez, certeza e exigibilidade, que se lançam à imediata
satisfação como devido a priori pela Administração Governativa.”
(LEAL, 2005, p. 26-27) Isso, a tornar falacioso qualquer discurso que
legitime a violação de direitos amparado na reserva do possível.
Há que se destacar que a execução penal foi contemplada na
ordem constitucional a partir da Constituição de 1988 o que possibilitou
uma releitura do processo penal executório:

Se historicamente as normas de direito penal e de


direito processual penal não estiveram em plena
harmonia com as Constituições democráticas,
pode-se afirmar que os direitos humanos jamais
figuraram instrumentos de referência à ciência
penal. Apesar deste fato lamentável, atualmente os
pensadores das ciências penais, principalmente das
políticas criminais, consolidaram o entendimento
dos direitos humanos como limite e objeto do direito
penal, propiciando ao jurídico uma fonte externa de
legitimação. (CARVALHO, 2008, p.156)

Assim, a concepção do Direito como limitador do poder punitivo,


observado em diversos direitos e garantias fundamentais inscritos na
Constituição, não pode ser cambiável em se tratando de um Estado
Democrático de Direito.
A maior vulnerabilidade da pessoa encarcerada, com a exposição
e disposição do corpo à tutela do Estado torna ainda mais significativa
a criteriosa observância da cártula constitucional com os atributos da
liquidez, certeza e exequibilidade a afastar o argumento da reserva
do possível para mascarar a inércia do Estado frente a necessidade
de se suspender ou extinguir a pena na hipótese de incapacidade

238 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


do cumprimento do regramento mínimo a salvaguardar os direitos
humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O inconformismo com o reconhecimento pelo STF do estado de


coisas inconstitucionais que vigora nas prisões seguido da inércia em
fazer cessar imediatamente as violações à dignidade humana motivou
a construção deste texto.
Passados quase sete anos do julgamento da medida cautelar a
violência estrutural do cárcere permanece incólume, quiçá ampliada,
tendo em vista o crescente aumento da população carcerária. Parece-
nos que faltam palavras para justificar o injustificável no julgamento
do mérito que já se faz tardio. A vida encarcerada precarizada urge.
A tolerância com a violação permanente e estrutural da dignidade
humana nos leva a concluir pela inferiorização cívica do encarcerado,
apátrida, à margem do ordenamento jurídico.
A suspensão das garantias constitucionais e legais a esta
categoria de pessoas não nos parece fortuita, tampouco ocasional. É
estável, permanente e propositalmente orientada à neutralização dos
indesejáveis, inservíveis aos interesses dominantes.
É impopular a provocação de políticas públicas (com destinação
orçamentária correlata) que vise a promoção do mínimo existencial
nas prisões. Impopulares também as medidas liberatórias reclamadas
diante deste cenário.
Aos presos, resta o fundamento na reserva do possível, que sequer
cogita assegurar o mínimo existencial mencionado retoricamente
por Celso de Mello e imediatamente olvidado, já que não se tomou
providências ao menos para garantir o mínimo. Aos presos nem o
mínimo.
Conclui-se que a entrega à jurisdição a salvaguarda dos direitos
fundamentais é inócua quando o próprio ordenamento não assegura
a liquidez, certeza e exequibilidade destes. Continuamos dependentes
da vontade legislativa, executiva ou jurisdicional mesmo quando se

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 239


reconhece que não há o mínimo. Que dirá a integral observância dos
direitos e garantias dos apenados.
Urgente, pois, a refundação do sistema jurídico a partir do que
propõe a Teoria Neoinstitucionalista do Processo de forma que a
garantir a certeza, liquidez e exequibilidade dos direitos fundamentais
a quem quer que seja.

240 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.


2. ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Trad.


Davi Pessoa Carneiro. 1. ed. 2. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oli-


veira. São Paulo, Edipro, 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na ADPF


347. ADPF nº 347. PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE. Relator:
Ministro Marco Aurélio. 09 de Setembro de 2015. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=10300665>. Acesso em: 18 de Setembro de 2021.

CARVALHO, Salo de. Penas e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2008.

CARVALHO, S. Antimanual de criminologia. 5ª ed. São Paulo:


Saraiva, 2013.

DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no Proces-


so legislativo: teoria da legitimidade democrática. 2. ed. ver. e ampl.
Belo Horizonte: Fórum, 2008.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálo-


go com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das
letras, 1988.

LEAL, Rosemiro Pereira. A principiologia do processo na Teoria


Neoinstitucionalista. In: Virtuajus - Revista Eletrônica, v.5, n.2, dez.
2006. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/2_2006/
Docentes/pdf/Rosemiro.pdf>. Acesso em 09 jan. 2018.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 241


LEAL, Rosemiro Pereira. O paradigma processual ante as seque-
las míticas do poder constituinte originário. In: Revista da Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Geriais. Belo Horizonte:
Nova Fase, 1962, n. 53 p. 295-316. jul./dez. 2008.

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrá-


tica. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coi-


sa julgada: temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte:
Del Rey, 2005.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as ori-


gens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Re-
van: ICC, 2006. (Pensamento Criminológico; v.11). 2.ed., 2010.

PAVARINI, M.; GIAMBERARDINO, A. Curso de penalogia e exe-


cução penal. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 5ª


ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 3ª


ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

242 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


OS IMPACTOS DA
RESOLUÇÃO Nº 78 DO CNJ
NO SISTEMA PRISIONAL
BRASILEIRO E NA APAC
DE SANTA LUZIA
Monique Pena Kelles
Samuel Rivetti Rocha Balloute
Klelia Canabrava Aleixo

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 243


244 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL
OS IMPACTOS DA RESOLUÇÃO Nº 78 DO CNJ NO SISTEMA
PRISIONAL BRASILEIRO E NA APAC DE SANTA LUZIA

Monique Pena Kelles56


Samuel Rivetti Rocha Balloute57
Klelia Canabrava Aleixo58

INTRODUÇÃO

Desde março de 2020, com o reconhecimento pela Organização


Mundial da Saúde (OMS) da situação de pandemia, ocasionada pelo
Sars-Cov-2, responsável pela Covid-19, o mundo tem vivido diversos
tipos de restrições, e uma verdadeira mudança de tratamento. No
mesmo mês, o Governo Federal reconheceu a situação de calamidade
pública, ocasionada pela pandemia. Tal reconhecimento impactou
em diferentes esferas governamentais, e, desde então, o comércio e os
serviços nos estados e nas cidades têm sofrido diversas restrições com
o fito de frear o avanço das contaminações.
Nesse contexto, como não poderia deixar de ser, diversas áreas de
atuação estatal tem sido impactadas, e talvez a que mais tenha sentido
seus efeitos seja o sistema carcerário. Os efeitos da crise sanitária
iniciada com a pandemia do Covid-19 atingem este sistema com maior
força, pois esta é uma área que histórica e estruturalmente possui
deficiências crônicas – tais como instalações precárias, carência de
serviços médico-hospitalares e superlotação – que são catalisadas pela
situação pandêmica.

56 Advogada. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas


Gerais (PUC Minas). monique.kelles@outlook.com.
57 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
samuelrrb@hotmail.com.
58 Professora Orientadora. Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ).
PUC-Minas - Unidade Pça. da Liberdade. kleliaaleixo@gmail.com.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 245


Ao mesmo tempo em que o sistema prisional comum padece de
todas essas debilidades, o sistema APAC parece um oásis: não possui
superlotação, as condições dos internos são muito superiores ao dos
demais encarcerados do sistema comum, e os apenados que nele
cumprem pena possuem atendimento médico regular. No entanto,
por ainda se tratar de uma prisão, os apenados que cumprem pena em
seu interior também se inserem em situação de vulnerabilidade.
Nesse contexto de pandemia, o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) editou a resolução nº 62, com vistas a mitigar seus efeitos e
tentar frear o avanço das contaminações no sistema prisional. Essa
recomendação, que vale para todo o sistema, inclui medidas como
a concessão de prisão domiciliar a apenados que cumprem pena
nos regimes aberto e semiaberto, bem como para aqueles que se
enquadram no grupo de risco.
No entanto, a partir da recomendação nº 78, essas concessões,
que atingiam considerável número de presos, foram drasticamente
reduzidas, pois condenados por crimes previstos em legislações
específicas (tais como as da Lei das Organizações Criminosas e dos
Crimes Hediondos) foram excluídos de seus efeitos.
Após essa recomendação, diversos apenados atendidos pelo
Programa (A)Penas Humanos foram impactados, e muitos foram
impedidos de receber a concessão de prisão domiciliar, ou tiveram
que retornar aos seus regimes de origem. Portanto, partindo dessa
situação, o presente artigo visa discutir como a pandemia do Covid-19
atinge o sistema prisional brasileiro, e de que forma ela também atinge
o sistema APAC – utilizando-se como exemplo a APAC de Santa Luzia,
atendida pelo Programa (A)Penas Humanos da PUC Minas.
Para tanto, a primeira parte desse trabalho se dedica a dar
um panorama sobre os efeitos da pandemia do Covid-19 no sistema
prisional brasileiro. Em seguida, expõe-se como funciona o sistema
APAC e o trabalho na Lei de Execução Penal (LEP), estabelecendo-se
distinções com o sistema comum. A terceira parte é voltada à análise
das recomendações editadas pelo CNJ voltadas à prevenção da Covid-19
no sistema carcerário nacional, e quais os impactos que ela ocasionou.

246 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Por fim, a última parte deste trabalho é dedicada a refletir
sobre a constante situação de restrição de direitos vivenciadas pelos
apenados brasileiros, de que não escapam aqueles que cumprem suas
penas no sistema APAC. A metodologia utilizada consistiu em pesquisa
bibliográfica, por meio da análise da legislação pertinente, e de livros
e artigos que tratam da temática em análise, e o referencial teórico
utilizado foi a política de redução de danos, de Rodrigo Duque Estrada
Roig (2021).

1 A CRISE SANITÁRIA DA COVID-19 NOS PRESÍDIOS

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde


(OMS), declarava publicamente o estado de pandemia em relação
ao vírus Sars-Cov-2, responsável pela doença que ficou conhecida
como Covid-19. Tal declaração se deveu aos altos e rápidos índices de
contaminação alcançados por esse vírus, motivo que levou inúmeros
países ao redor do mundo a fechar suas fronteiras e a instaurar
medidas de restrição de circulação de pessoas.
Trata-se de um vírus da gripe, pertencente à família “coronavírus”,
e cujo primeiro caso de contaminação se deu na cidade de Wuhan, na
China, posteriormente espalhando-se de forma rápida por diversos
países. A pessoa contaminada por esse vírus pode desenvolver diversos
sintomas, tais como febre, tosse seca, coriza, dores pelo corpo,
cefaleia, diarreia, náuseas e até perda olfativa. Em casos mais graves,
o doente pode precisar de um leito de enfermaria ou até mesmo ser
entubado em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Conforme dados do Ministério da Saúde59, a taxa de letalidade
desse vírus atualmente está em torno de 2,79% dos casos confirmados.
Tal taxa, que observada em relação à população absoluta de
contaminados poderia superlotar os sistemas de saúde e os serviços
funerários, levou o Senado Federal a aprovar e publicar, no dia 20

59 Cf. <http://plataforma.saude.gov.br/coronavirus/covid-19/>. Acesso em: 05 jun.


2021.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 247


de março de 2020, o reconhecimento da ocorrência de estado de
calamidade pública no país, em razão do vírus da Covid-19.
A transmissão desse novo patógeno se dá de forma muito fácil
entre a população, e a principal maneira que ele ocorre é pelo contato
interpessoal, pois os vírus são transmitidos por meio de algumas
secreções do corpo humano, como a saliva e o muco. Dessa forma,
a transmissão pode se dar por meio de tosses, espirros, contato das
mãos com superfícies contaminadas que posteriormente são levadas
até mucosas, e até mesmo pela fala.
Dessa forma, então, desde março de 2020, quando a OMS alertou
que o mundo estava sob a pandemia do novo coronavírus, o Brasil
passa por uma calamitosa situação sanitária. As diretrizes de combate
à pandemia já se alteraram inúmeras vezes, mas comandos básicos
como o uso de máscaras, lavar as mãos e o distanciamento social se
firmaram desde o início do alerta feito pela OMS.
Em se tratando de um vírus que possui alto poder infeccioso e
pode e causar graves doenças respiratórias, além de possível intubação
e necessidade de permanecer em UTI’s, os métodos de prevenção sem
dúvida são – não só fortemente recomendados pelos especialistas no
tema – como também, diante da gravidade do cenário, obrigação do
Estado promover. Este deve desenvolver políticas de saúde pública
voltadas à prevenção, pois, afinal, o tratamento é custoso, pode lotar
os postos e hospitais e demandar mais do sistema de saúde do que ele
é aparelhado para suportar.
Essa situação pandêmica é caótica por si só, apenas levando-se
em consideração a população geral. No entanto, o quadro se torna
ainda mais grave e complicado para aqueles cidadãos privados de
sua liberdade. É sabido que o sistema penitenciário brasileiro é
falho e com inúmeras e constantes violações aos direitos humanos.
Tais deficiências foram publicamente reconhecidas pelo Estado
Brasileiro com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 47,
que classificou o sistema prisional brasileiro como um “estado de
coisas inconstitucional”, pois nele ocorrem sistemáticas violações aos

248 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


direitos e garantias fundamentais dos presos, como falta de condições
mínimas de dignidade, superlotação, alimentação deficiente e falta de
acesso à saúde.
O sistema penal e prisional brasileiro vêm sendo criticado e
denunciado há anos pelos mais diversos setores. Conforme preceituam
ALEIXO e PENIDO (2018)

A execução penal tem configurado um campo de


exceção, no qual emergem regras e entendimentos
de violação e suspensão de direitos que reforçam a
condição de homo sacer do preso como sendo aquele
que pode ser morto sem que sua morte configure um
homicídio, pode ser ilegalmente privado de liberdade
sem que essa privação configure um crime e que está
fora do sistema legal de proteção (p. 34).

Por sua vez, a criminologia crítica, dedicada de forma especial


às contradições e problemáticas da pena, também construiu um
arcabouço teórico com fundamentos sólidos acerca da prisão. A
privação da liberdade, principalmente no Brasil, possui um longo
histórico de violência e degradação da condição humana, afinal

Todo método punitivo tem por função reproduzir a


estrutura social que lhe corresponde (...) a prisão está
a serviço da reprodução da desigualdade específica de
classe no capitalismo. (...) a prisão espelha e reproduz
a desigualdade social, então a sua função real não é
combater a criminalidade, é fabricar seletivamente
os criminosos (ANDRADE, 2012, p. 306).

Dessa forma, uma situação de restrição sistemática aos mais


básicos direitos dos apenados, que já ocorriam desde sempre, se
agudizam ainda mais com a pandemia. Esta apenas serviu como
catalisadora de uma situação insustentável que já era vivenciada
pelos presos. De acordo com ANDRADE (2012), essa situação está

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 249


intrinsecamente ligada à manutenção da desigualdade social e da
fabricação seletiva de criminosos.
Em relação especificamente à pandemia, lecionam ALEIXO e
PENIDO (2020) que

As condições carcerárias de superlotação, a disposição


das celas lado a lado nas galerias, sem ventilação e
saneamento adequados compõem o cenário perfeito
para a rápida disseminação do coronavírus entre os
corpos já debilitados pelo aprisionamento.

Com esse contexto, que se perfaz a cada ano sem mudar a


realidade a qual se insere, a pandemia, que se alastrou desde o início
de 2020, vem se mostrando voraz aos apenados do sistema carcerário
brasileiro. Estes, que são selecionados entre aqueles mais vulneráveis
ao poder punitivo, pela condição adicional de privados de liberdade,
possuem sua situação de vulnerabilidade ainda mais aguçada. Tal
condição os relega a uma espécie de limbo jurídico, onde seus direitos
como cidadãos e como pessoas muitas vezes lhes são negados.
No mesmo sentido, as agências do sistema penal brasileiro,
que possuem tradição classista e punitivista, contribuem para o
agravamento dessa situação de vulnerabilidade. Assim, não demorou
muito para que algumas agências do Estado propusessem medidas
de prevenção e contenção da pandemia por meios contrários à
Constituição (CRFB/1988) e aos Diretos Humanos. Como exemplo,
o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), por meio de um
funcionário, recomendou, em abril de 2020, que os apenados com
sintomas de Covid-19 (que, àquela época, ainda eram incertos), fossem
“separados”, ou melhor, alojados, em contêineres, até que os sintomas
cessassem.
A medida, depois de divulgada pela imprensa, sofreu críticas
vorazes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e de diversas
instituições, tais como a Defensoria Pública, o Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária, e o CNJ. Até que a medida fosse

250 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


devidamente impedida, houve relatos de presos que de fato ficaram
nos compartimentos de metal, sem a devida ventilação e sob espaço
inapropriado para qualquer pessoa, cuja situação foi agravada por
sintomas de uma doença que pode evoluir para um quadro grave.
Por meio do monitor da violência do portal G1, em maio de
2021, foram contabilizados 20.361 servidores do sistema prisional
infectados, e 437 presos e servidores morreram em decorrência da
doença, onde 200 eram presos efetivamente. O grau de exposição
dos agentes públicos e terceirizados aumenta drasticamente, afinal,
eles têm contato diário com os detentos, além de serem aqueles que
frequentam o transporte público e potencialmente levam o vírus para
dentro do sistema penitenciário.
O Estado, obrigado constitucionalmente a garantir os direitos
fundamentais a todo e qualquer cidadão, está também obrigado a
fazê-lo quanto ao indivíduo encarcerado, afinal, ele também é um
cidadão. Além da evidente problemática na permanente iminência
de se contrair o vírus causador da Covid-19, os encarcerados tiveram
outro direito básico violado durante o tempo de pandemia: o direito à
sua dignidade, e a um não tratamento desumano ou cruel.
Por outro lado, também na contramão dos direitos dos apenados,
o contato com os familiares foi drasticamente reduzido na pandemia.
Por meio de uma pesquisa em São Paulo, a instituição Fundação
Getúlio Vargas (FGV), apontou por meio de nota técnica, que, num
total de 1.283 famílias, 69% dos entrevistados não têm contato com
o familiar preso, e o acesso às informações sobre o familiar ou sobre
suas condições sanitárias foi muito precária.
No mesmo sentido, o Departamento Penitenciário Nacional60
também informa que quase 70% dos estabelecimentos prisionais
brasileiros suspenderam totalmente as visitas aos apenados, ao passo
que o restante as manteve, porém com restrições.
O relatório “A pandemia da tortura no cárcere” da Pastoral
Carcerária, elaborado em 2020, reuniu informações sobre o estado

60 Cf. <https://app.powerbi.com/zem: 06 jun. 2021.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 251


do sistema carcerário durante a pandemia, sobre o contato com os
familiares, e alertou:

Não ter acesso à unidade prisional representa


não somente não poder se comunicar, ver e estar
próximo de seu familiar, mas também não contar com
informações sobre suas condições de detenção, sobre
o seu estado de saúde – em um momento no qual o
adoecimento se alastra – e sobre quais medidas estão
sendo efetivamente implementadas pelos gestores
prisionais para preservar a saúde das pessoas presas
e prevenir a propagação do vírus. A proibição de
acesso se converte, na prática, numa situação de
total incomunicabilidade das pessoas presas e na
total ausência de informação - o que exacerba a
opacidade de um sistema que por si só é refratário
à transparência e à disseminação de informação.

Com isso, temos posto que o Brasil, por mais que possua longo
histórico de sucesso em campanhas de vacinação e programas de
imunologia – contando ainda com uma estrutura de promoção gratuita
de saúde pública, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – não conseguiu
e não tem conseguido até o momento prevenir que a pandemia se
alastre desgovernadamente pelo país, muito menos para os apenados
e funcionários do sistema prisional.
O sistema carcerário brasileiro, que é o terceiro mais populoso
do mundo, e que possui deficiências crônicas desde sempre, nesta
pandemia tem seus defeitos potencializados. Conforme ALEIXO
e PENIDO (2020), “em um contexto de pandemia, a invisibilidade
dos encarcerados os torna descartáveis”. Não que já não o fossem
considerados assim, mas que, com o contexto pandêmico que o país
vivencia, tal situação tende a se acentuar. Com isso, o que se pode
concluir, de início, é que a defesa da garantia dos direitos fundamentais,
agora mais do que nunca, é um tema relevante para quem se preocupa
com a degradação do Estado de Direito no país.

252 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


2 A APAC E O TRABALHO

Situação diversa da demonstrada no tópico anterior é observada


nas APAC’s. Estas são entidades de direito civil que funcionam como
unidades prisionais, auxiliando o poder executivo e judiciário na
Execução Penal. A primeira APAC foi criada em 1972, em São José dos
Campos (SP), por Mario Ottoboni, e atualmente possui unidades em
oito estados brasileiros.
Com o lema “ninguém é irrecuperável”, a APAC possui como
objetivo a “humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade
punitiva da pena” (FBAC, 2019). Para tanto, os apenados que cumprem
pena em suas instalações possuem acesso a diversas atividades para
ocupar seu tempo e auxiliar em sua reinserção social, tais como
oficinas de marcenaria, aulas de informática, academia e acesso a
cursos diversos.
A instituição é guiada por 12 elementos61, como a participação
da comunidade, o trabalho, a família e a reintegração social, atuando
em apenados que se dispõem a ir em alguma de suas unidades
para o cumprimento de suas penas, independentemente do crime
que cometeram. Seu objetivo, pois, é voltado “à recuperação e à
reintegração social dos condenados a penas privativas de liberdade”
(FBAC, 2019), por meio de seus elementos.
Os problemas observados nas unidades prisionais tradicionais,
tais como a superlotação, a precariedade das instalações, a
alimentação deficiente e a falta de condições mínimas de dignidade
para os apenados, felizmente não se observa nas APAC’s. Isso porque
elas abrigam no máximo 200 apenados, e contam com o auxílio
da comunidade onde se inserem. Além disso, os estabelecimentos
possuem boa estrutura interna, como academias, jardins, assistência
médica e jurídica.

61 “A APAC é composta de 12 elementos: 1. Participação da Comunidade; 2.


Recuperando ajudando recuperando; 3. Trabalho; 4. Espiritualidade; 5. Assistência
jurídica; 6. Assistência à saúde; 7. Valorização Humana; 8. Família; 9. O Voluntário e
o curso para sua formação; 10. Centro de Reintegração Social – CRS; 11. Mérito; 12.
Jornada de Libertação com Cristo” (FBAC, 2019).

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 253


Também, tanto a segurança da unidade quanto a organização
interna são realizadas majoritariamente pelos recuperandos62.
Ademais, a ociosidade é evitada a todo custo, uma vez que a rotina
interna da APAC começa das 6h e vai até as 22h. Neste interregno,
os recuperandos “trabalham, estudam e se profissionalizam” (FBAC,
2019). A participação das famílias dos internos possui papel crucial, na
medida em que elas são “copartícipes da recuperação” (FBAC, 2019).
Além disso, de acordo com o sítio eletrônico da Fraternidade
Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), a implantação das
APAC’s se revela pecuniariamente vantajoso para o Estado, uma vez
que “um preso na APAC custa um terço do que é gasto no sistema
comum”, não há violência nem rebeliões e o índice de reincidência é
inferior ao observado com os egressos do sistema comum.
Apesar de todas essas características, o principal diferencial entre
as APAC’s e o sistema prisional comum é que as primeiras seguem,
na prática, o que está previsto expressamente na Lei de Execução
Penal (LEP). Esta legislação prevê a participação da comunidade na
execução da pena, o trabalho, o estudo e as demais características
observadas nas APAC’s, tendo como principal critério diferenciador
que elas conseguem reproduzir na prática esses elementos.
O trabalho é um dos pilares do método APAC, e, nos 12 elementos
que guiam a atuação da instituição, ele aparece em destaque, ocupando
o terceiro lugar. A própria instituição oferece oportunidades de os
recuperandos se ocuparem e aprenderem um novo ofício, e as unidades
possuem oficinas de carpintaria, pintura, e trabalhos artesanais, além
de possibilitarem que os produtos confeccionados pelos recuperandos
sejam vendidos, auferindo-lhes um pouco de renda.
Este trabalho, que ocorre dentro da instituição prisional –
também chamado de trabalho interno –, está previsto expressamente
na LEP, no Título II, Capítulo III, seção II, e deveria ser seguido

62 Recuperando é o nome que recebem aqueles que cumprem pena em uma


APAC. O uso do termo se dá pois os apenados que lá estão não são vistos como
seres desumanizados, mas sim como homens que estão lá para se redimirem e se
“recuperarem”, voltando ao convívio social e retomando suas vidas.

254 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


por todos os estabelecimentos prisionais brasileiros. No entanto,
infelizmente é sabido que, em sua maioria, não há o oferecimento
desta espécie de trabalho em suas instalações. Conforme o último
levantamento de informações penitenciárias (INFOPEN/2020), apenas
13% dos apenados estão em algum programa laboral, e, desse total,
apenas 56,75% possuem remuneração informada63.
Outra possibilidade de trabalho, também prevista pela LEP,
é o trabalho externo, disciplinado no Título II, Capítulo III, seção
III. Este trabalho deve ser realizado fora da instituição prisional,
preferencialmente em serviços ou obras públicas realizados por
órgãos da administração pública direta ou indireta, podendo ser
empreendido por presos que cumprem pena em todos os regimes
(fechado, semiaberto e aberto). No entanto, para aqueles que cumprem
pena em regime fechado, o trabalho só poderá ser realizado se esse
preso já cumpriu pelo menos um sexto de sua pena.
De acordo com o Código Penal (CP), as penas privativas de
liberdade podem ser cumpridas em três diferentes tipos de regimes:
fechado, semiaberto e aberto. O primeiro deles deve ser cumprido
integralmente dentro de estabelecimento de segurança máxima ou
média, devendo o condenado ficar em isolamento durante a noite, com
a possibilidade de trabalhar durante o dia. Já o regime semiaberto deve
ser cumprido em colônia agrícola, industrial ou similar, e o apenado
possui a possibilidade de realizar trabalho externo e de frequentar
cursos fora do estabelecimento prisional, devendo se recolher ao
estabelecimento na parte noturna.
Por fim, o regime aberto deve ser cumprido em casa de
albergado ou estabelecimento adequado, e o apenado deve se recolher
nos dias de folga e no período noturno. No entanto, apesar de existir
a possibilidade de apenados que cumprem pena em regime fechado
poderem realizar trabalho externo, a maioria dos que realizam esta
modalidade laboral são aqueles que cumprem pena em regime aberto
ou semiaberto.

63 O que contraria o que é expressamente previsto no art. 29 da LEP.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 255


É o que ocorre na APAC de Santa Luzia, que possui dois
estabelecimentos: um destinado ao regime fechado, e outro destinado
ao regime semiaberto. Os recuperandos que cumprem suas penas no
regime semiaberto, como dito, possuem autorização para sair durante
o dia para realizar cursos profissionalizantes ou trabalhar. Muitos
deles trabalham durante o dia, e recolhem-se ao estabelecimento
durante a parte da noite. Já os recuperandos que cumprem pena
no regime fechado, por haver oportunidades de trabalho dentro da
própria instituição, não realizam o trabalho externo.
Até 2020, o juízo da Execução Penal de Santa Luzia, responsável
pelas demandas referentes a esta APAC, estava concedendo prisão
domiciliar por prazo indeterminado para os recuperandos do regime
semiaberto que realizavam trabalho externo, e prisão domiciliar com
prazo determinado para aqueles que não realizavam trabalho externo
– seguindo as orientações da Recomendação nº 62, editada pelo CNJ.
Essas concessões não se baseavam no crime que os apenados foram
condenados, e seu fundamento principal era as medidas de contenção
à disseminação do Covid-19. Como exemplo, pode-se observar abaixo
uma decisão da magistrada responsável pela Vara de Execução Penal
de Santa Luzia:

É sabido que a pandemia do coronavírus continua


a produzir efeitos devastadores no mundo e,
especialmente, no Brasil, que já soma mais de 14.000
mortos.
Neste cenário, não se vislumbra, a curto prazo, o
retorno à normalidade.
Devido a isso e às orientações/decisão acima citadas,
faz-se necessário que este juízo reanalise a questão
referente à prisão domiciliar dos recuperandos da
APAC que se encontram em regime semiaberto,
sem trabalho externo, já que ainda não se é possível
restituir-lhes o direito às saídas temporárias, suspenso
desde o início da pandemia.
(...)

256 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Ante o exposto e considerando a grave situação
de saúde pública, em âmbito mundial, CONCEDO
EXCEPCIONALMENTE A PRISÃO DOMICILIAR ao
sentenciado acima nominado, pelo prazo de 60
(sessenta) dias contados da efetiva liberação (MINAS
GERAIS, Autos nº 0117388-11.2012.8.13.0245).

No entanto, essa concessão foi drasticamente limitada após a


edição da Recomendação n. 78/2020, editada pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), a qual será abordada e discutida no próximo tópico.

3 AS RECOMENDAÇÕES DO CNJ COMO


MEDIDAS PREVENTIVAS DO ALASTRAMENTO
DA CONTAMINAÇÃO NOS PRESÍDIOS

No dia 17 de março de 2020, foi publicada a Recomendação nº 62,


pelo então presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli. Conforme disposto
na própria recomendação, os motivos que levaram à sua edição foram,
em primeiro lugar, a declaração pública de situação de pandemia
pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020,
seguido da necessidade de garantir a saúde da população prisional,
haja vista que a contaminação em grande escala dos estabelecimentos
prisionais os extrapola e atinge toda a sociedade.
Também, a necessidade de estabelecer e fixar procedimentos e
regras para evitar a contaminação e a propagação do vírus Covid-19
nos estabelecimentos prisionais, que são espaços de confinamento,
de forma a proteger a saúde dos presos, agentes públicos e visitantes.
Por último, a Recomendação levou em consideração também que a
condição dos presídios já foi prevista pelo STF como um estado de
coisas inconstitucional, onde há superpopulação, precariedade das
instalações, falta de higiene em muitas unidades e falta de pessoal
médico nos presídios, com a consequente obrigação do Estado em
fornecer acesso à saúde aos presos, nos termos da Constituição e do
art. 14 da LEP.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 257


O objetivo primordial dessa recomendação era a proteção
da vida e da saúde dos presos e servidores do sistema prisional, a
redução da propagação do novo coronavírus (Covid-19), e a garantia
de continuidade da prestação dos serviços de justiça e de execução
penal. Para tanto, a recomendação propôs aos magistrados e tribunais
de justiça algumas medidas com o fito de realizar os objetivos acima
mencionados, tais como: a adoção de medidas sanitárias pelos
estabelecimentos prisionais e tribunais, a redução de aglomerações, e
a redução das interações físicas (com a preferência por atividades por
vídeo, por exemplo). Todas essas medidas, no entanto, devem observar
os direitos e garantias fundamentais dos envolvidos, e observar o
devido processo legal.
Em relação ao objeto deste artigo, deve-se ressaltar o art. 5º
dessa recomendação, que, em seu inciso I, sugere que os magistrados
concedam saída antecipada do regime fechado e semiaberto,
preferencialmente, a apenados que sejam responsáveis por crianças
de até 12 anos ou por pessoas com deficiência, e para apenados que se
enquadrem nos grupos de risco. Além disso, no inciso III há a previsão
de concessão de prisão domiciliar a todos os presos em regime aberto
ou semiaberto. É o que se observa do texto da recomendação:

Art. 5º Recomendar aos magistrados com competência


sobre a execução penal que, com vistas à redução
dos riscos epidemiológicos e em observância ao
contexto local de disseminação do vírus, considerem
as seguintes medidas:
I – concessão de saída antecipada dos regimes fechado
e semiaberto, nos termos das diretrizes fixadas
pela Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal
Federal, sobretudo em relação às:
a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas
responsáveis por criança de até 12 anos ou por pessoa
com deficiência, assim como idosos, indígenas,
pessoas com deficiência e demais pessoas presas
que se enquadrem no grupo de risco;

258 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


b) pessoas presas em estabelecimentos penais com
ocupação superior à capacidade, que não disponham
de equipe de saúde lotada no estabelecimento,
sob ordem de interdição, com medidas cautelares
determinadas por órgão de sistema de jurisdição
internacional, ou que disponham de instalações que
favoreçam a propagação do novo coronavírus;
II – alinhamento do cronograma de saídas temporárias
ao plano de contingência previsto no artigo 9º
da presente Recomendação, avaliando eventual
necessidade de prorrogação do prazo de retorno ou
adiamento do benefício, assegurado, no último caso,
o reagendamento da saída temporária após o término
do período de restrição sanitária;
III – concessão de prisão domiciliar em relação a
todos as pessoas presas em cumprimento de pena
em regime aberto e semiaberto, mediante condições
a serem definidas pelo Juiz da execução;
IV – colocação em prisão domiciliar de pessoa presa
com diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19,
mediante relatório da equipe de saúde, na ausência de
espaço de isolamento adequado no estabelecimento
penal;
V – suspensão temporária do dever de apresentação
regular em juízo das pessoas em cumprimento de
pena no regime aberto, prisão domiciliar, penas
restritivas de direitos, suspensão da execução da
pena (sursis) e livramento condicional, pelo prazo
de noventa dias (grifos nossos).

Em relação ao terceiro inciso, observa-se que o juízo da execução


penal de Santa Luzia, responsável pelas demandas referentes à APAC
de Santa Luzia, estava observando esta medida, como na decisão
anteriormente reproduzida, e a prisão domiciliar era concedida
para todos aqueles que a requeressem e cumprissem os requisitos
necessários, tais como o de cumprir pena em regime aberto ou
semiaberto.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 259


Da mesma maneira, independentemente de qual regime
cumpriam pena, a concessão de saída antecipada deveria ser realizada
para aqueles apenados que se enquadrassem no inciso I do mesmo
artigo. Tal medida se revela de suma importância para evitar novas
contaminações tanto do pessoal que trabalha dentro das unidades
prisionais, quanto dos apenados que nela estão cumprindo suas
penas, uma vez que reduz o número de apenados dentro da instituição
prisional (evitando aglomerações), além de impedir a entrada de
recuperandos que tinham contato com o mundo externo e que
poderiam ser vetores do vírus.
Contudo, no dia 15 de setembro de 2020, foi publicada a
Recomendação do CNJ nº 78, que, dentre outras medidas, previu
a exclusão da aplicação das medidas previstas nos artigos 4º e 5º
da recomendação nº 62 para apenados que foram condenados
por crimes previstos na Lei de Organização Criminosa, na lei de
Lavagem ou ocultação de bens, direitos ou valores, nos crimes contra
a administração pública, nos crimes hediondos e nos crimes de
violência doméstica contra a mulher. Dessa forma, foi acrescentado o
art. 5-A, conforme transcrição abaixo:

Art. 5-A. As medidas previstas nos artigos 4º e 5º não se


aplicam às pessoas condenadas por crimes previstos
na Lei nº 12.850/2013 (organização criminosa), na Lei
nº 9.613/1998 (lavagem ou ocultação de bens, direitos
e valores), contra a administração pública (corrupção,
concussão, prevaricação etc.), por crimes hediondos
ou por crimes de violência doméstica contra a mulher.
(Incluído pela Recomendação nº 78, de 15.9.2020).

Tal fato teve profundo efeito no número de concessões, haja


vista que algumas das legislações previstas no artigo acima são
responsáveis pela maior parte do encarceramento brasileiro, que,
por sua vez, ocasiona a superpopulação do sistema prisional. É o
caso, por exemplo, da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), que abrange o

260 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


tráfico de entorpecentes, e está prevista na Lei dos Crimes Hediondos.
Essa legislação, conforme o INFOPEN/2020, é a responsável por
praticamente um terço dos que estão encarcerados no país (32,39%).
Com essa previsão, portanto, o número de apenados que
possuiriam direito de cumprir sua pena em prisão domiciliar, não o
possuem mais, devendo cumpri-las no estabelecimento prisional em
que estão inseridos. O Juízo da Execução Penal de Santa Luzia, por
exemplo, que anteriormente estava concedendo prisão domiciliar
a todos os apenados que realizassem o pedido e que cumprissem
os requisitos para tanto, encerrou as concessões, o que teve efeito
no número de apenados que devem permanecer nas instalações
prisionais.
Além disso, não só impediu que novas concessões fossem feitas
para apenados que fossem condenados por algum dos delitos acima
descritos, como exigiu que aqueles condenados que antes haviam
recebido esse benefício, retornassem para as instituições prisionais
em seu regime de origem, o que contribuiu para o aumento da
população nas unidades prisionais e o consequente aumento do risco
de contágio – afinal, eles já estavam em contato com o mundo externo
e poderiam estar carregando o vírus ao retornar às prisões.
Tal recomendação, portanto, tem o condão de impactar de forma
significativa o contágio pela Covid-19 na APAC de Santa Luzia, tendo
em vista que muitos apenados que cumprem suas penas no regime
semiaberto e que foram condenados pelos delitos acima descritos,
também realizam o trabalho externo, o que os coloca em contato
com outras pessoas (seja na própria realização do trabalho, seja no
transporte de ida e volta ao estabelecimento prisional), favorecendo,
portanto, a possibilidade de contaminação pelo vírus.
No mesmo sentido, os presos que cumprem pena no regime
fechado, que foram condenados por delitos que mais encarceram (tais
como tráfico de drogas, roubo qualificado, porte ilegal de arma de fogo
de uso proibido ou homicídio qualificado), e que antes possuiriam
direito de receber as saídas temporárias (por se enquadrar nos grupos
de risco, ou serem responsáveis por crianças de até 12 anos ou pessoas

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 261


com deficiência), agora não mais possuem esse direito, devendo
permanecer dentro das instituições prisionais, ou retornar para elas
– o que contribui com a disseminação do vírus, tendo em vista que
existirão mais pessoas dentro dos estabelecimentos.
Em relação aos apenados do semiaberto que foram condenados
por esses crimes, e que não conseguirão mais a concessão para o
cumprimento de suas penas em seu próprio domicílio, devendo
retornar para o estabelecimento prisional após o fim do dia, há
maior posibilidade ainda de contágio, tendo em vista que eles
podem se contaminar no ambiente externo e trazer o vírus para o
ambiente interno da APAC, causando a contaminação de agentes do
estabelecimento prisional, bem como de outros apenados.
Mesmo que o ambiente das APAC’s possua condições muito mais
favoráveis do que os ambientes do sistema comum, há confinamento
da mesma forma, e, também, contato com outros presos, o que não
afasta a necessidade de realização dessas medidas a todos os que dela
necessitarem. Tal decisão impacta também, de forma ainda mais
grave, os apenados que cumprem pena em prisões que não possuem
as condições das APAC’s. Ao restringir o âmbito de condenados
que possuiriam direito a cumprir sua pena em prisão domiciliar, a
Resolução nº 78 fere frontalmente dispositivos constitucionais e legais,
tais como o art. 5º da CRFB/88.

4 EM DEFESA DOS DIREITOS DOS APENADOS

Tendo como base a Lei de Execução Penal, que, com a


Constituição de 1988, se insere em um Estado Democrático de Direito,
a dignidade da pessoa humana não é um princípio esvaziado de
sentido, e deve alcançar todo ser humano, independentemente de sua
condição. Da dignidade da pessoa humana – princípio assegurado tanto
constitucionalmente quanto por tratados e convenções internacionais
– decorrem todos os outros. Ou seja, a dignidade humana é, em última
instância, a finalidade de todos os demais princípios que compõem o
ordenamento jurídico pátrio.

262 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


Aqueles que vivem dentro do sistema prisional brasileiro, sobre
a condição de condenados que cumprem sua pena, também são
destinatários desse princípio, que também pode ser entendido como o
Princípio da Humanidade. Sob o viés redutor de danos, esse princípio
revela-se também como mandamento primordial à vedação ao
retrocesso da humanização das penas. Dessa forma, isso demanda que
a legislação ampliativa ou concessiva de direitos e garantias individuais
em matéria de execução penal se torne imune a retrocessos tendentes
a prejudicar a humanidade das penas (ROIG, 2021, p. 36).
Tratando-se da pena privativa de liberdade de forma ampla,
abarcando também o regime de semiliberdade e aberto, o que nos
importa compreender é que a garantia de tratamento digno aos
apenados, mesmo que longe de se concretizar em nosso país, deve ser
objeto de reivindicação constante daqueles que se debruçam sobre
o tema e veem de perto o quão distantes estamos de pôr em prática
os direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Em um contexto de uma crise sanitária de proporções
avassaladoras, o que se constata, infelizmente, é uma degradação
constante e o atropelamento das normas e comandos constitucionais
de tratamento digno, principalmente no que tange à pessoa presa. Se a
pena em si é uma forma de violência contra o sujeito a ela submetido, ao
acrescentar o fator “crise sanitária”, o resultado, como é de se esperar,
é um cenário de maior degradação da condição dos encarcerados –
condição essa que, historicamente, já é degradada.
Para além do discurso da manutenção do mínimo da dignidade
humana, em termos jurídico-legais, também se observa que a crise
sanitária da Covid-19 sem a devida contenção nos ambientes de presídio
e suas adjacências, resulta em uma dupla punição. Isso porque, como
se sabe, o apenado está sob a guarda do Estado no momento em que
se pune o indivíduo. Assim sendo, o apenado, cumprindo a pena que
lhe foi designada, deve ter seus direitos básicos assegurados – por esse
mesmo Estado – durante toda a execução penal.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 263


É como dispõe o item 75 da Exposição de Motivos da LEP, que
assegura a todo apenado:

I – alimentação suficiente e vestuário;


II- atribuição de trabalho e sua remuneração;
III- Previdência Social;
IV- constituição do pecúlio;
V – proporcionalidade na distribuição do tempo para
o trabalho, o descanso e a recreação
VI- exercício das atividades profissionais, intelectuais,
artísticas e desportivas anteriores, desde que
compatíveis com a execução da pena;
VII- assistência material, à saúde, jurídica,
educacional, social e religiosa;
VIII- proteção contra qualquer forma de
sensacionalismo;
IX- entrevista pessoal com o advogado;
X- visita do cônjuge, companheira, parentes e amigos
em dias determinados;
XI- chamamento nominal
XII- igualdade de tratamento salvo quando às
exigências da individualização da pena
XIV- representação e petição a qualquer autoridade,
em defesa de direito;
XV- contato com o mundo exterior por meio de
correspondência escrita, da leitura e de outros meios
de informações que não comprometam a moral e
bons costumes;
XVI- atestado de pena a cumprir, emitido anualmente,
sob pena de responsabilidade da autoridade judiciária
competente.

Como se nota, as garantias do apenado durante sua execução


foram formuladas para garantir ao sujeito um mínimo existencial
compatível com a construção do que se convencionou chamar de
dignidade humana. Não é uma mera banalidade, trata-se aqui de
assegurar ao indivíduo condições básicas para que ele possa cumprir a

264 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


pena que lhe foi fixada pelo juízo competente, após o devido processo
legal.
Nessa esteira, enquanto o apenado está submetido ao cárcere,
recolhido em condição de cumprimento de pena, o que se espera
(conforme a LEP) é que o tempo que ele passa distante do convívio
social seja aproveitado para fins de ressocialização; jamais se espera
que seja um tempo destinado à degradação física e moral, ou de
punição pura e simples. Afinal, sendo proibida, pela Constituição
Brasileira, a pena perpétua de prisão (art. 5º, XLVII, b), sabe-se que,
em algum momento, o apenado retornará ao meio social. O retorno
ao trabalho e a convivência familiar e social voltarão a fazer parte do
dia a dia do apenado.
Compreender o tempo de cumprimento de pena como forma de
ressocialização pode ser um desafio para quem entende que a pena é
sempre uma violência ao sujeito privado de liberdade. Mas, enquanto
houver essa privação, ela deverá ser executada respeitando-se os
direitos e garantias fundamentais do apenado. É com esse raciocínio,
portanto, que se insere a garantia à saúde do apenado, e não só dele,
mas de todos aqueles que exercem atividades no sistema prisional, até
mesmo dos visitantes e familiares da pessoa privada de liberdade.
Como informa o inciso XLV, do artigo 5º da Constituição,
“nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Assim, os familiares,
conhecidos, amigos do apenado, ou quem quer que seja, não podem
sofrer quaisquer consequências da pena cumprida por ele. Corrobora
esse posicionamento, o artigo 3º da LEP, que assegura ao condenado e
ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou lei; junto
a esse dispositivo, os artigos 10 e 11, inciso II, dispõem que a assistência
ao apenado deve se dar por intermédio do Estado, que tem obrigação
de promover assistência material; à saúde; jurídica; educacional;
social e religiosa. Além disso, o Título II, Capítulo II, seção III da LEP
define de forma clara como se dá a assistência à saúde do apenado,
que conta com um caráter preventivo e curativo, nos termos da lei.
Outrossim, para além das disposições da legislação pátria, as
regras de “Nelson Mandela”, ou Regras Mínimas para o Tratamento de

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 265


Reclusos, elaboradas pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas
e Crime, também reforçam que o detento deve ter acesso ao mesmo
tratamento disponível para o não-preso, de forma gratuita, com
condições de usufruir de assistência médica sempre que dela precisar.
Dessa forma, como já abordado, ao tratar-se de uma doença que se
espalha rapidamente em partículas pelo ar, contaminando diversas
pessoas, o caráter preventivo que se refere a lei, nesse excepcional
contexto de pandemia, deve ser realçado com medidas sanitárias que
promovam a segurança do ambiente dos presídios.
Nesse sentido, a Recomendação nº 78 do CNJ, ao restringir
os “benefícios”64 que a Recomendação nº 62 auferiu aos apenados
como forma de tentar conter a progressão do contágio do vírus nos
presídios brasileiros, atua diretamente contra princípios básicos e
éticos de proteção à dignidade da pessoa humana, além do direito à
saúde assegurado a todos os cidadãos, previstos na Constituição da
República, na LEP, e em tratados e convenções internacionais.
Realizar uma diferenciação entre apenados que podem e
apenados que não podem acessar determinados “benefícios”, com base
no crime em que foram condenados, é uma clara afronta ao previsto
constitucionalmente no art. 5º, caput, da CRFB/1988, no art. 41, XII
da LEP e no art. 24 do Pacto de San José da Costa Rica. Ademais, em
um contexto em que o principal objetivo é conter o contágio do vírus,
retirar os direitos à saída temporária e à prisão domiciliar de todos os
apenados que cometeram um delito que é o responsável por mais de
um terço do encarceramento brasileiro é, no mínimo, contraditório.
Mais ainda. A Recomendação nº 78 “indica clara opção necropolítica
de se preterir determinados indivíduos reservando à eles um “mundo
de morte” e o correspondente status de “mortos-vivos” (ALEIXO;
PENIDO, 2020).
Por fim, ao contrário do que podem imaginar aqueles com
sentimentos punitivos aflorados, assegurar a saúde dos presos é medida
de prevenção também para a própria sociedade. O que se deseja é que

64 A palavra “benefícios” foi utilizada entre aspas nesta frase pois o presente trabalho
entende que não se tratam de benefícios, mas, sim, de direitos.

266 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


a pandemia seja contida rapidamente, e que, para isso, quanto menos
pessoas se infectarem, melhor. No mais, também é uma proteção para
aqueles que trabalham dentro do sistema prisional e para os visitantes
dos apenados, que, como já dito, não podem sofrer as consequências
da negligência do Estado no tratamento dos internos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, observa-se que as sérias e crônicas deficiências


estruturais que o sistema prisional brasileiro já apresentava desde
sempre foram catalisadas com a pandemia, atingindo grandes
proporções. Tal fato se fez sentir com muito mais intensidade sobre os
encarcerados, onde a doença se espalhou com muita facilidade.
Com a recorrente restrição de direitos sofridas pelos apenados,
não foi de se espantar que as soluções apresentadas para conter
o avanço da pandemia dentro do sistema carcerário envolvessem
mais restrição de direitos, como é o caso da sugestão – feita por um
funcionário do DEPEN – de utilização de contêineres para isolar os
apenados que tivessem se contaminado.
O sistema APAC – na contramão do sistema prisional comum –
felizmente tem se mostrado uma exceção à regra, pois, além de não
haver superlotação, os apenados que lá cumprem pena possuem
dignidade, e os serviços básicos funcionam relativamente bem.
No entanto, apesar de constituir uma exceção, observa-se que
os apenados da APAC não estão imunes à contaminação pelo vírus,
e também foram atingidos pelas recomendações editadas pelo CNJ.
Inicialmente voltada ao desencarceramento, apenas seis meses depois
uma nova recomendação atingiu grande parte dos apenados a quem
antes haviam sido concedidos prisão domiciliar.
Tal recomendação do CNJ fere frontalmente direitos e
garantias previstos tanto na legislação ordinária, quanto na legislação
constitucional, além de tratados e convenções internacionais. Assim,
a execução penal no Brasil, que sempre esteve em crise, ao somar-se

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 267


ao já caótico contexto de uma pandemia de proporções assustadoras,
escancarou ainda mais o descaso do Estado para com os apenados.
A assistência à saúde e os cuidados sanitários com a crise do
Covid-19 ainda são muito insuficientes. Embora o método APAC
conte com uma estrutura mais robusta para dar conta da prevenção
à contaminação dos apenados, ele não reflete a realidade daqueles
internos do sistema comum.
O apenado, sob a tutela do Estado, está em situação de
vulnerabilidade. Dessa forma, o Estado tem o dever de assegurar as
condições básicas para uma vida condizente com os direitos humanos.
Enquanto for negado o direito mais básico ao interno, como a garantia
à sua saúde e a condições mínimas de dignidade, o Estado de Direito
será apenas uma ficção.
Pensar o sistema penal, e em especial o prisional, sob os moldes
da garantia dos direitos humanos, é uma obrigação daqueles que
se comprometem com a construção de um Estado Democrático de
Direito. O presente estudo buscou contribuir com a compreensão dos
desafios que se fazem constantes no sistema prisional, focando, como
não poderia deixar de ser, nos direitos e garantias básicos destinados à
pessoa presa. Afinal, como diz o magistrado João Marcos Buch, “o ser
humano é sempre uma promessa, nunca uma ameaça”.

268 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


REFERÊNCIAS

ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Execução pe-


nal e resistências. Belo Horizonte, Editora D’Plácido, 2018.

______. Reflexões sobre o cárcere e as pessoas encarceradas em


tempos de pandemia. In: Álvaro Ricardo de Souza Cruz; Maria Fernan-
da Pires de Carvalho (org). A Pandemia e seus reflexos jurídicos. 1.
ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2020, p. 187-200.

ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia:


o controle penal para além da (des)ilusão. – Rio de Janeiro. Revan. Co-
leção pensamento criminológico, 2017.

DIAS, Sylvia. Órgãos de controle externo enfrentam a incomu-


nicabilidade imposta às pessoas presas e atuam para levar informa-
ção à sociedade. In: Relatório “A pandemia da tortura no cárcere”. Re-
alização Pastoral Carcerária, p. 61- 69, 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-


sília, 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em 19 fev. 2020.

______. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código


Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm.
Acesso em 20 fev. de 2020.

______. Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da Re-


pública. Diário Oficial da União. Brasília, 11 jul. 1984. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 19 de
fev. 2020.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 269


______. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Na-
cional. Levantamento nacional de informações penitenciárias. IN-
FOPEN. Janeiro-junho de 2020. Brasília, 2020. Disponível em: <https://
www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen>. Acesso em: 29 mar. 2021.

______. Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Brasília, DF. Senado


Federal. Diário Oficial da União. Brasília, 20 mar. 2020. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-249090982>.
Acesso em: 06 jun. 2021.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62. Mi-


nistro Dias Toffoli. Brasília, DF. Publicada em: 17 mar. 2020. Disponí-
vel em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Reco-
menda%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2021.

______. Recomendação nº 78. Ministro Luiz Fux. Brasília, DF. Pu-


blicada em: 15 set. 2020. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/files/
original170753202009255f6e23e9a58d4.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2021.

______. Recomendação nº 91. Ministro Luiz Fux. Brasília, DF.


Publicada em: 15 mar. 2021. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/
files/original15374320210405606b2ec701d4c.pdf>. Acesso em: 06 jun.
2021.

ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME.


Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos.
Disponível em: <www.unodc.org>. Acesso em: 05 jun. 2021.

FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENA-


DOS. Relatório sobre as APACs, Disponível em http://www.fbac.org.
br/infoapac/relatoriogeral.php. Acesso em 20 fev. 2020.

______. Elementos fundamentais do método APAC, Disponível


em http://www.fbac.org.br/index.php/pt/realidade-atual/metodo-a-
pac. Acesso em 20 fev. 2020.

270 | PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


______. A APAC, O que é?. Disponível em http://www.fbac.org.
br/index.php/pt/realidade-atual/o-que-e-apac . Acesso em 20 fev. 2020.

MINAS GERAIS. 1ª Vara Criminal e de Execuções Penais da


comarca de Santa Luzia. Alvará de soltura. Autos nº : 0117388-
11.2012.8.13.0245. Execução da pena. Decisão, 15 maio 2020.

NÚCLEO DE ESTUDOS DA BUROCRACIA (NEB); Fundação Getú-


lio Vargas. A pandemia de covid-19 e os familiares de presos no Estado
de São Paulo. Nota técnica. Junho de 2020.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Ensaio sobre uma execução pe-


nal mais racional e redutora de danos. Revista da Faculdade de Direi-
to da UERJ, 2009.

________ . Execução penal: teoria e prática. 5ª ed. São Paulo.


Thomas Reuters Brasil, 2021.

PERSPECTIVAS: ESTUDO INTERDISCIPLINAR SOBRE O SISTEMA PRISIONAL | 271

Você também pode gostar