Você está na página 1de 144

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

TITI JOÃO LUBENGO

COMPREENSÃO DA MAGIA (FEITIÇARIA) REFERENCIADA NA COSMOVISÃO


DO POVO BANTO, JUNTO A PESSOAS INTEGRANTES DE COMUNIDADE AFRO
BRASILEIRA QUE PROFESSAM CULTOS DE MATRIZ AFRICANA

CURITIBA
2021
TITI JOÃO LUBENGO

COMPREENSÃO DA MAGIA (FEITIÇARIA) REFERENCIADA NA COSMOVISÃO


DO POVO BANTO, JUNTO A PESSOAS INTEGRANTES DE COMUNIDADE AFRO
BRASILEIRA QUE PROFESSAM CULTOS DE MATRIZ AFRICANA

Dissertação apresentada ao curso de Pós-


Graduação em Antropologia e Arqueologia, Setor
de Ciências Humanas, Universidade Federal do
Paraná, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Antropologia e Arqueologia.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Silva da Silveira

CURITIBA
2021
AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me dado a força, saúde e disposição para superar todas as
dificuldades e empecilhos. A universidade federal do Paraná, departamento das
ciências humana, corpo docentes, direção e administração que oportunizarem a porta
que hoje posso ver um horizonte melhor e mar das oportunidades a alcançar. A meu
orientador Professor Doutor Marcos Silveira, pela paciência e compreensão, suporte,
tempos e todos os materiais que pode proporcionar para eu ter facilidade de fazer este
trabalho. Ao meu Pai que Deus me deu aqui no Brasil Professor Doutor Hernesto
Jacob Kleim por toda ajuda que me proporcionou conselhos, correção dos meus
textos, suporte, tempo e muitos mais, desde o primeiro dia até hoje. À professora
Liliana por ter me dar oportunidade de me escutar e ver o que eu tinha na mão para
enfim me orientar a assistir aulas isoladas como ouvinte. Ao a professora Andreias
para ter me incentivar a não abandonar e seguir em frente. A Mae Roseli por ter se
disponibilizar o centro Templo dos Orixás para eu fazer minha pesquisa. A Ana por ter
me levar em Paranaguá para conhecer a mãe Roseli e o Templo dos orixás. A todos
colegas de sala para o incentivo, especialmente Bruna. A minha querida esposa que
esteve lá sempre para me apoiar e incentivar e me aborrecer. Aos Professores
Andreata Ocir e Agemir para me ter de orientar a estudar a antropologia. Aos meus
Pais e irmãos pelo amor, incentivo e apoio incondicional. A igreja Ministério Fogo
Divino pelo todo apoio. E a todos direto ou indiretamente fizeram parte da minha
formação meu muito obrigado.
RESUMO

Essa pesquisa se caracteriza como estudo antropológico, com abordagem


metodológica caracterizada como pesquisação, com foco na magia (feitiçaria), que na
concepção originária Ba-Kongo, se mostra como forma de poder respeitado e
venerado, e no Brasil no contexto da religiosidade e da cultura popular de base afro-
brasileira, apresenta-se como algo temido e evitado. O povo Ba-Kongo, ocupa a
região centro africana, e a vida como força vital, é mediada a partir da interação que
se dá entre fecundidade materialidade e imaterialidade no contexto da relação
interpessoal, que é base da cosmovisão, compreendida como maneira de ser
conforme o pensamento original desse povo tradicional africano. a qual possibilita a
organização social amparada nessa tríade de relações dependentes e circunstanciais.
A matriz do ser Ba-Kongo é o que sustenta o propósito desta pesquisa e irradia a
minha formação como ser originário desse povo. Ao chegar ao Brasil me confrontei
com o desafio de compreender como a magia (feitiçaria) no Brasil, é considerada
como algo a ser temido, enquanto em sua forma original, junto a diversos povos
africanos e em especial junto ao povo Ba-Kongo, a feitiçaria tem conotação de
identidade étnica. Assim, a investigação pretende compreender o lugar subjetivo que
a feitiçaria ocupa na formação cultural e vivencial das pessoas brasileiras de matriz
africana, para promover a interação dos saberes originários africanos com a palavra
representativa do universo cristão de matriz eurocêntrica. A cosmovisão dos povos
que se identificam como “africano” se constitui como algo com identidade própria e
particular. Com base nessa posição essa pesquisa aponta que os representantes não
africanos, que se apresentam como missionários, devam respeitar e se submeter às
especificidades da organização social das comunidades originárias nas quais forem
atuar, tendo claro que a organização social se ampara em clãs, cujo chefe da família
é o feiticeiro a quem todos devem obediência. A base teórica da pesquisa se
referenciou principalmente em Tempels Placide, Mauss, Dumont, Fabian, Sidney,
Richard, Renato, Ziegler, Bastide e Marilyn Strathern e na história de vida do
pesquisador principal.

Palavras-chave: Feitiçaria (magia). Pessoa afro-brasileira. Religião de Matriz Africana.


ABSTRACT

This research is characterized as an anthropological study, with a


methodological approach characterized as research, focusing on magic (witchcraft),
which in the original Ba-Kongo conception, is shown as a form of respected and
revered power, and in Brazil in the context of religiosity and Afro-Brazilian popular
culture, presents itself as something feared and avoided. The Ba-Kongo people occupy
the Central African region, and life as a vital force is mediated from the interaction that
takes place between materiality and immateriality in the context of interpersonal
relationships, which are the basis of the cosmovision, understood as a way of being
according to the original thinking of these traditional African people. which enables
social organization supported by this triad of dependent and circumstantial
relationships. The matrix of being Ba-Kongo is what supports the purpose of this
research and radiates my formation as an original being of this people. Upon arriving
in Brazil, I was faced with the challenge of understanding how magic (witchcraft) in
Brazil is considered as something to be feared, while in its original form, among several
African peoples and especially among the Ba-Kongo people, the witchcraft connotes
ethnic identity. Thus, the investigation intends to understand the subjective place that
witchcraft occupies in the cultural and experiential formation of Brazilian people of
African matrix, to promote the interaction of original African knowledge with the
representative word of the Christian universe of Eurocentric matrix. The cosmovision
of peoples who identify themselves as “African” is constituted as something with its
own particular identity. Based on this position, this research indicates that non-African
representatives, who present themselves as missionaries, should respect and submit
to the specifics of the social organization of the original communities in which they will
work, bearing in mind that the social organization is supported by clans, whose head
of the family is the sorcerer to whom all owe obedience. The theoretical basis of the
research was mainly referenced in Tempels Placide, Mauss, Dumont, Fabian, Sidney,
Richard, Renato, Ziegler, Bastide and Marilyn Strathern and in the main researcher’s
life story.

Keywords: witchcraft (magic). Afro-Brazilian person. African-based religion.


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – MAPA DO CONGO ............................................................................... 19


FIGURA 2 – MAPA MUNDI COM A LOCALIZAÇÃO DA REPÚBLICA
DEMOCRÁTICA DO CONGO E ANGOLA ........................................ 27
FIGURA 3 – MAPA E LOCALIZAÇÃO DO CONGO E ANGOLA NO CONTINENTE
AFRICANO......................................................................................... 28
FIGURA 4 – MAPA DO CONTINENTE AFRICANO .................................................. 63
FIGURA 5 – MAPA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO ........................ 64
FIGURA 6 – MAPA DE ANGOLA .............................................................................. 64
FIGURA 7 – MAPA DA ÁFRICA DO SUL ................................................................. 65
FIGURA 8 – DIVISÃO GEOGRÁFICA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO
CONGO EM DOIS MOMENTOS DISTINTOS ................................... 66
FIGURA 9 – DIVISÃO GEOGRÁFICA DE ANGOLA ................................................. 66
LISTA DE FOTOGRAFIAS

FOTO 1 – REI LEOPOLDO II .................................................................................... 29


FOTO 2 – MUTILADOS FRUTOS DA COLONIZAÇÃO IMPOSTA POR LEOPOLDO
II ......................................................................................................... 29
FOTO 3 – IYA ROSELI ........................................................................................... 113
FOTO 4 – O AUTOR, ROSELI E LUDI ................................................................... 115
FOTO 5 – BÁBÁ KING ............................................................................................ 117
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 11
2 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14
2.1 PROBLEMA ........................................................................................................ 16
2.2 OBJETIVO GERAL ............................................................................................. 16
2.2.1 Objetivos Específicos ....................................................................................... 16
2.3 METODOLOGIA .................................................................................................. 17
3 MINHA TRAJETÓRIA COMO CIDADÃO AFRICANO .......................................... 18
3.1 SITUAÇÃO GEOPOLÍTICA DO ESTADO ........................................................... 18
3.2 CONTOS HISTÓRICOS SEGUNDO A TRADIÇÃO ORAL DOS BA-KONGO .... 19
3.2.1 Do Poder .......................................................................................................... 20
3.3 O ENCONTRO COM O OCIDENTE E A QUEDA DOS BA-KONGO .................. 23
3.3.1 Crença .............................................................................................................. 24
3.3.2 Calendário ........................................................................................................ 25
3.3.3 Economia ......................................................................................................... 25
3.3.4 Educação ......................................................................................................... 25
3.4 O NASCIMENTO DAS NAÇÕES: CONGO DEMOCRÁTICO E ANGOLA .......... 26
3.4.1 A República Democrática do Congo ................................................................ 26
3.4.2 Angola .............................................................................................................. 26
3.4.3 Congo e Angola: geopolítica e relações de poder ............................................ 28
3.4.4 Minha atuação política...................................................................................... 33
3.5 MINHA JORNADA COMO AFRICANO ............................................................... 34
3.5.1 A fuga para Angola ........................................................................................... 38
3.5.2 Refugiado no próprio país ................................................................................ 41
3.6 BA-KONGO – UMA COSMOVISÃO E UMA CONCEPÇÃO DE VIDA ................ 47
3.7 COMO CHEGUEI AO BRASIL ............................................................................ 52
3.8 MEU RETORNO PARA A ÁFRICA ..................................................................... 55
4 COMO SEGUIU A MOTIVAÇÃO E O TEMA DA PESQUISA ............................... 57
4.1 MINHA ORIGEM E A SINTONIA COM A PESQUISA ......................................... 62
4.1.1 Minha cosmovisão original como identidade étnica ......................................... 65
4.2 MINHA PROCURA PELA ANTROPOLOGIA ...................................................... 67
4.3 O BRASIL QUE EU NÃO CONHECIA................................................................. 69
4.4 A ÁFRICA NA COSMOVISÃO BRASILEIRA ...................................................... 73
4.5 AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL ........................................ 81
5 ÁFRICA NO CONTEXTO SOCIAL BRASILEIRO ................................................. 86
5.1 CARACTERIZANDO O QUE PODE SER AFRO-BRASILEIRO.......................... 86
5.2 ESPIRITUALIDADE BA-KONGO E O CONTEXTO BRASILEIRO ...................... 92
5.3 A FORMAÇÃO DO QUE CARACTERIZA O AFRO-BRASILEIRO ...................... 99
5.4 A PESQUISA DE CAMPO E O QUE VEM A SER AFRO-BRASILEIRO ........... 103
5.5 O TEMPLO DOS ORIXÁS COMO ORGANIZAÇÃO AFRO-BRASILEIRA ........ 112
5.5.1 O calendário e a dinâmica ritualística do Templo dos Orixás ......................... 118
5.6 VIAGEM PARA A ÁFRICA E A EXPERIÊNCIA ACUMULADA NESSA VIAGEM
PELA LÍDER............................................................................................................ 121
5.7 A PESSOA AFRICANA (BA-KONGO) E A PESSOA AFRO-BRASILEIRA ....... 134
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 139
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 142
11

1 APRESENTAÇÃO

Sou Titi Joao Lubengo, teólogo e pastor na Igreja Ministério Fogo Divino,
natural de Angola da província de Uige e nascido no município de Maquela do Zombo,
natural de uma família de 4 rapazes. Atualmente sou casado, pai de três filhos e moro
em São José dos Pinhais, estado do Paraná, no Brasil.
Sou graduado em licenciatura de matemática e física e atuei inicialmente
como professor dessas disciplinas e de língua francesa e inglesa para. Em 1998 deixei
de ser professor e assumi a função de pastor junto à Igreja Filadelphie. Fiz formação
para atuar como missionário e migrei para o Brasil em 2005.
Fundei e sigo como coordenador da ONG CIDEC (Coordenatión des initiatives
pour le devellopement comunautaire), atuante na República Democrática do Congo.
Essa organização tem como foco a alfabetização e formação básica em corte e
costura, estética e em línguas estrangeiras junto a crianças de rua e jovens mães
solteiras e abandonadas, para possibilitar a essas pessoas uma formação profissional
que lhes proporcione relativa autonomia financeira e social, para que suas vidas
possam ser inseridas na sociedade em que vivem.
Em 2013 iniciei a graduação em Teologia na Faculdade Evangélica, que foi
incorporada pela Faculdade Fidelis, terminando no ano de 2017. Em 2018 ingressei
no programa de mestrado em Antropologia para desenvolver a pesquisa referente a
este documento.
O título dessa pesquisa tem especial sentido com minha vida atual pelo fato
de tratar de minha origem, ontologia, cultura, formação como pessoa e sociedade. O
que eu chamei aqui da magia é chamado de feitiçaria no contexto africano, pois com
essa expressão se caracteriza como o elemento principal para construção da nossa
sociedade Ba-Kongo. Esse tema tem o significado de me desafiar para alcançar
respostas para questões que humanamente não conseguiremos a responder, isto pelo
fato de eu ser um integrante do povo Ba-Kongo e, como pessoa, sou identificado como
Muntu, e atualmente convertido ao cristianismo.
Diante dessa realidade quero entender como a concepção de magia é
compreendida no Brasil, tendo como referencial o significado de magia na cosmovisão
Ba-Kongo. Assim pretendo compreender como a magia opera na pessoa afro-
brasileira e que lugar ela ocupa na formação desta pessoa. Também quero
compreender como eu me diferencio das demais pessoas que se compreendem como
12

afro-brasileiras. Que diferença tem entre “eu” e “elas”? Como é que elas se constroem
como pessoa e sociedade?
Sei que muitos se perguntam por que sendo um pasto, tenho interesse e
empenho de pesquisa sobre este assunto. A resposta que tenho em primeira mão
aponta para o interesse de compreender como minha formação ontológica, de matriz
Ba-Kongo, se alinha com minha construção racional e mística tendo a Bíblia como
referencial, considerando que a Bíblia não recomenda que eu me separe de minha
ontologia. Sou cristão, mas tenho origem. Faço parte de uma sociedade onde o
elemento principal é a magia e sei que isso não soará bem nos ouvidos das pessoas
de outra cultura que desconhecem as particularidades de minha sociedade originária.
A magia é a expressão com que me refiro para nomear o que meu povo chama
de feitiçaria, a qual se caracteriza como força vital da nossa sociedade. Sei que essa
posição se mostra com duas facetas, uma que tem base no que eu aprendi e vi como
prática de meus antepassados, com que fui ensinado e com as quais vivi como
referenciais benéficos para nossa sociedade. Esta faceta coloca limite e freio nos
impulsos individuais, fazendo com que entendam que as pessoas da minha sociedade
não são únicas, mas sim uma comunidade que precisa viver em harmonia. Dessa
forma, a magia na minha sociedade faz com que as pessoas pensem antes de se
aventurar, tendo respeito a todo nível da sociedade. Isso faz com que a hierarquia
seja respeitada e o chefe seja venerado, pois é reconhecido como quem melhor dirige
a sociedade. Essa cosmovisão ensina aos filhos o respeito aos pais e aos mais velhos
e promove o bem como referencial de relação fraterna.
Numa palavra, a magia é o elemento que coloca o equilíbrio na minha
sociedade. Ela é temível sim, quando a pessoa se esquece dos princípios que regem
a vida. Em sentido contrário ela nunca será referencial de luta e conflito, como é
apresentada na sociedade brasileira. Em todos os clãs em minha sociedade há um
feiticeiro. Eles são os guardiões dos clãs, são sábios, e são a referência do lugar onde
todo mundo procura ajuda nas questões difíceis, complicadas e impossíveis de serem
resolvidas com os recursos humanos.
A outra faceta que pretendo entender com esta pesquisa refere-se ao
antagonismo que este assunto gera na sociedade brasileira, pois a magia (feitiçaria)
é temida por uns e é discriminada por outros., o que no meu ponto de vista é uma
ambiguidade a qual preciso estudar de perto. Acredito que conseguirei esclarecer um
pouco as nuvens que cobrem essa questão pelo fato de eu ser um pastor praticante
13

do cristianismo, que quer elucidar a feitiçaria e mostrar como é que as pessoas no


Brasil pensam em relação a este tema da África Subsaariana.
Esse conhecimento também ajudará na compreensão de como as pessoas
olham os africanos. Tenho impressão de que quando um africano está à frente de um
não africano, principalmente aquele que não conhece a África, tem três coisas que
vêm diretamente na mente destas pessoas: que na África tem fome ou miséria; que
as pessoas levam uma vida selvagem (como Tarzan); e quase todo mundo pratica a
feitiçaria, que é comumente chamada no Brasil de macumba.
Por fim, esta pesquisa tem vínculo direto com o fato de as religiões de matriz
africana decorrerem de minhas raízes e terem significado especial nas crenças que
permeiam minha identidade como pessoa. Essa questão é uma parte de mim que aqui
no Brasil se depara com uma transformação e organização própria de uma religião
ocidental, com significativa mutação dos valores e de pessoas.
Por exemplo, na minha sociedade a questão da feitiçaria é própria dos
homens. Uma mulher não pode ser guardiã do clã sozinha, sempre precisa de um
homem ao seu lado para que a sua autoridade seja legitimada e respeitada. É quase
impossível uma mulher ser chefe. Ela não será levada a sério e isso se tornaria uma
afronta. Na minha sociedade as mulheres ocupam um papel de coadjuvante nessa
questão, pois dizem que o temperamento próprio das mulheres interfere nas decisões
a serem tomadas.
14

2 INTRODUÇÃO

A vida se manifesta de forma complexa, circunstanciada por diferentes


características antropológicas, etnológicas, culturais, históricas e cosmológicas, as
quais conferem identidade a diferentes grupos, comunidades e sociedades humanas.
Com base nesta perspectiva, esta pesquisa tem como propósito maior investigar como
povos desterrados e escravizados, desenvolveram reações às agressões sofridas, ao
ponto de manterem vínculos que os identificam na contemporaneidade.
Assim, o foco da pesquisa pode se caracterizar como um estudo
antropológico, com foco na feitiçaria, a qual na concepção originária Ba-Kongo,
mostra-se como forma de poder respeitado e venerado e no Brasil, no contexto da
religiosidade e da cultura popular de base afro-brasileira, apresenta-se como algo
temido e evitado.
Um ponto importante dessa abordagem está na posição ainda vigente entre
as comunidades tradicionais do povo Ba-Kongo, na região centro africana, de que a
vida, a fecundidade e a relação interpessoal, apresentam-se como três aspectos
característicos da cosmovisão, compreendida como maneira de ser do pensamento
original desse povo. Nessa perspectiva a vida se manifesta como força vital em
complexa interação de materialidade e imaterialidade; a fecundidade se caracteriza
como a garantia da continuidade da existência futura dos genitores; e a relação
interpessoal possibilita a organização social que completa esta tríade de relações
dependentes e circunstanciais.
A matriz do ser Ba-Kongo é o que sustenta o propósito desta pesquisa e
irradia a minha formação enquanto ser originário desse povo. A intenção de
desenvolver a proposta de investigação a que se refere esse documento se apoia na
cultura e cosmovisão centro africana, na qual fui criado e formado academicamente
até minha chegada ao Brasil em 2013. Essa posição mostra em certa medida o
interesse em compreender como a feitiçaria no Brasil é considerada como algo a ser
temido, enquanto em sua forma original, junto a diversos povos africanos e em
especial junto ao povo Ba-Kongo, a feitiçaria tem conotação de identidade étnica e
organização social.
Essa posição se referenda, dentre outras fontes, no artigo “O Ensino da
história e cultura Afro-Brasileiras e a temática Religiosa: Dilemas Enfrentados na
15

Aplicação da Lei 10.639/03” (PORTO, 2003, p.1), o qual analisa a importância e


relevância desta lei, e aponta que

Devido à necessidade de enfrentar contextos de preconceito conjugados que


caracterizam o senso comum brasileiro: preconceito racial, religioso, e o
grande temor à feitiçaria que perpassa nossa sociedade, e que se relaciona
tanto ao preconceito racial quanto religioso.

Assim, a investigação pretende compreender o lugar subjetivo que a feitiçaria


ocupa na formação cultural e vivencial das pessoas brasileiras de matriz africana,
considerando que a feitiçaria no continente africano se caracteriza como algo
referencial de dignidade da vida e das relações de poder.
Minha experiência pessoal como Ba-Kongo, tendo pai chefe de clã, traz o
registro de que na organização social originária o chefe do clã tem que ser um homem
investido na feitiçaria, a que para os povos subsaarianos, em especial para o povo
Ba-Kongo, é o que dá resposta e compreensão aos fatos e ocorrências, que não têm
resposta e são inesperados, como as fatalidades. Essas respostas chegam com base
na sensibilidade e preparo de interpretação de rituais e liturgias conhecidas como
feitiçaria. Neste contexto, a feitiçaria se caracteriza como um largo espectro de
significados que vão desde atos de bondade e cura, até atos que geram dores e
mutilações. Dessa forma a feitiçaria para esses povos se caracteriza como elemento
de referência ligado ao poder vigente na comunidade.
Esta forma de pensar se referenda numa perspectiva linguística e cultural,
portanto, antropológica, para verificar o que é compreendido como feitiçaria no Congo
junto ao povo Ba-Kongo e feitiçaria junto aos integrantes dos cultos afro-brasileiros e
dos integrantes de igrejas evangélicas. É importante destacar que nas grandes
cidades do Congo, afastadas das comunidades originárias, talvez por influência
colonialista, é possível verificar que existe temor de grupos sociais, frente ao que vem
a ser feitiçaria, assim como no Brasil.
No Brasil, nos cultos afro-brasileiros, o feiticeiro está representado na pessoa
do Pai e Mãe de Santo, o que é diferente junto aos povos originários africanos, que
ainda têm sua organização pautada no contexto de clã familiar. Cabe destacar que
nos grandes centros urbanos de países africanos esse conhecimento sofreu
importante alteração, talvez por influência de realidades e culturas de povos mediados
por outras crenças e posturas.
16

O Brasil como um país multicultural e multirracial, não se prende a uma


religião própria, podendo-se dizer que a religiosidade brasileira se constituiu com o
que veio de fora, tanto da África como da Europa, pelo fato de a religiosidade
indígena/originária ter sido muito perseguida e difamada.
Assim, para classificar algum tema de pesquisa ou área de conhecimento ou
até um tema a ser investigado no cenário religioso e da fé, é necessário que se
entenda sua forma, o seu conteúdo, bem como suas características e como foram
organizadas. Esse procedimento se faz necessário também quando se trata de
estudar os cultos afro-brasileiros. Deve-se entender como o africano subsaariano
originário construiu suas crenças, seus pensamentos, suas espiritualidades e
místicas, pois essa compreensão ajudará a entender a noção de pessoa e o lugar da
feitiçaria entre essa religião e o povo no contexto da atualidade.

2.1 PROBLEMA

Nessa perspectiva, o problema desta pesquisa tem o seguinte enunciado:


Compreender o significado da magia (feitiçaria) nas atividades religiosas
desenvolvidas junto ao Templo dos Orixás1, localizado em Paranaguá, tendo como
referencial o significado da magia conforme a cosmovisão do povo Ba-Kongo.

2.2 OBJETIVO GERAL

Compreender o que significa a magia (feitiçaria) junto às pessoas que


integram os cultos afro-brasileiros vinculados à instituição “Templo dos Orixás”, em
Paranaguá-PR, considerando a cosmovisão Ba-Kongo.

2.2.1 Objetivos Específicos

a) Compreender por que a magia (feitiçaria) no Brasil se caracteriza como


algo a ser temido, quando devemos considerar que a feitiçaria junto a
povos africanos subsaarianos, como os Bantu, se caracteriza como

_______________
1 Templo do Orixás – Instituição religiosa, localizada em Paranaguá PR, cujos integrantes foram
entrevistados e cujo local foi visitado para o desenvolvimento da pesquisa de campo.
17

processo de proteção, esclarecimento e cuidado na resolução de


problemas.
b) Identificar como a literatura referente à antropologia no Brasil aborda
essa prática que estabelece temor para uns e significa proteção para
outros.
c) Identificar se a literatura referente à feitiçaria publicada na África
Subsaariana aponta as formas como as comunidades originárias a
desenvolviam, em torno do chefe do clã, considerando a perspectiva
antropológica inerente à organização social.

2.3 METODOLOGIA

Como metodologia para o desenvolvimento desta pesquisa temos como


referencial fundamental a busca das categorias e referenciais que contribuam para a
compreensão do que está manifesto como problema e como propósitos (objetivos) da
pesquisa. Essas categorias foram alcançadas por meio de pesquisa qualitativa e
bibliográfica, referenciada na especificidade do tema, ou seja, como se consolidou
postura preconceituosa referente à feitiçaria no Brasil; a pesquisa de campo junto ao
Templo dos Orixás em Paranaguá-PR, o que contribuiu para identificar como esses
referenciais estão presentes no imaginário e nas construções e convicções pessoais
e coletivas de pessoas vinculadas à instituição estudada.
Essa posição do imaginário e das convicções de pessoas investigadas foi
levantada por meio de entrevistas coletivas com integrantes, que se apresentam como
dirigentes e formadores de opinião desse grupo religioso. Essas entrevistas tiveram
como base questões semiestruturadas, as quais alimentaram o debate que deixa
transparecer categorias e posições de natureza antropológica que contribuem para
alcançar as compreensões a que se destina essa pesquisa.
Como resultado, reunimos material para publicar textos que contribuam para
o debate do tema pesquisado, tanto no contexto da academia quanto fora dela, além
de instrumentalizar conversas junto às comunidades originárias do povo Bantu no
continente africano, como possibilidade de compreensão da migração de sua
cosmovisão e cultura.
18

3 MINHA TRAJETÓRIA COMO CIDADÃO AFRICANO

Neste item dessa dissertação apresento-me como pessoa que nasceu e viveu
no continente africano e agora busca a compreensão de como a magia (feitiçaria) é
referenciada na cosmovisão de povos africanos, em especial junto ao povo Ba-Kongo,
e como esse processo está vinculado e interpretado no contexto da sociedade
brasileira e em particular junto às comunidades Afro-Brasileiras nos cultos de matriz
africana.
Para tal, desenvolvo esse processo investigativo, considerando nesse
capítulo minha história de vida e meu envolvimento com tema, tendo em vista a
contribuição que posso oferecer para os estudos antropológicos que tratam da
influência africana no contexto cultural e social do Brasil.

3.1 SITUAÇÃO GEOPOLÍTICA DO ESTADO

Eu sou Mukongo da tribo Ba-Kongo da província do Uige, que é parte de


Angola e da província do atual Congo-Central, antigo baixo Congo, que pertence à
República Democrática do Congo. A nossa história começa na fundação do Império e
reino Kongo no século III.
O Império Kongo se situava nos territórios do norte de Angola, incluindo
Cabinda, no sul da República do Congo Brazza-Ville, no extremo ocidental da
República Democrática do Congo e no sul do Gabão. No seu apogeu, este Império ou
reino, se estendia do oceano atlântico até o rio Kwango no Leste e começando do rio
Kongo até o rio Loje ao Sul (FIGURA 1).
19

FIGURA 1 – MAPA DO CONGO

FONTE: Google Imagens.

3.2 CONTOS HISTÓRICOS SEGUNDO A TRADIÇÃO ORAL DOS BA-KONGO

Quero frisar aqui que não é Ba-Kongo todo mundo que fazia parte do reino do
Kongo. Segundo a nossa tradição, citado por (Batsikama, 1999, p. 217) nós, Ba-
Kongo somos descendentes do Nzinga – Kuwu, o nosso Nkaka ya kisina. Ela era filha
de Nkuwu e Nimi que eram também fundadores do reino Kongo. Nzinga teve três
filhos, dois rapazes gêmeos e uma menina. O primeiro tinha o nome de N´vita-Nimi
ou Nsaku, o segundo Mpanzu a Nimi e o terceiro era Lukeni lwa Nimi ou Nzinga. Estes
três filhos detinham o poder, a ciência e a religião dentro do reino.
Os descendentes do Nsaku, tinham a função de mediadores, atuando como
aqueles que intercedem diante dos antepassados, além de acumular a função
espiritual e política. Os descendentes do Mpanzu têm a função de agir como mineiros
e agricultores, considerando que eles eram excelentes nestas funções, pois sabiam
manipular os minérios e cuidar da terra e das plantas. Eles herdaram essas
habilidades através dos tios irmãos da mãe fundadora da nossa nação. Por fim, os
descendentes da Lukeni tinham a função da educação, eles eram muito inteligentes e
tinham a capacidade de ensinar e formar os outros.
Os tios irmãos da rainha Nzinga e os seus três filhos são os quatro Mvilas da
nossa ascendência. Todos os Ba-Kongo conhecem as suas Mvilas (singularmente
luvila), ou seja, suas linhagens ancestrais. Eles se instalarem na bacia do rio Kongo,
que nós chamamos de Nzadi, (Nzadi quer dizer rio) e ali fundaram as aldeias de
20

Ngoyo, Mpemba, Mbamba, Nsundi, Mbinda, Mbembe, Nki-pangu, Luvu, Kimbata,


Zombo e outras mais. Nesse contexto haviam doze clãs que formavam membros que
elegiam os monarcas.

3.2.1 Do Poder

Segundo Ndaywel (2009, p. 744), o poder do Rei Kongo, o Mwene Kongo, é


principalmente de natureza espiritual. Essa autoridade vem de poderes sobrenaturais
e divinatórios que lhe dão acesso aos ancestrais. É de anotar que o nome Mwene tem
a função eletiva, mas não são todas as pessoas que podem se tornar Mwene, porque
a sucessão ao trono do Kongo é matrilinear, de forma que somente os descendentes
da Rainha Nzinga podem ser eleitos como Mwene. Isso explica o poder do tio nas
famílias Ba-Kongo.
O regime do Mwene é sacerdotal, também é um tipo de monarquia sagrada e
divina (Nganga). Por isso ninguém pode ser chefe sem ser feiticeiro. O poder político
de um Chefe Africano é antes de tudo espiritual, visto que vem de um poder
sobrenatural que acidentalmente os ocidentais chamaram de feitiçaria. Todos os
autores ocidentais se enganam sobre a natureza do poder dos nossos Chefes.
Atualmente esse poder é discriminado erradamente e é usado também de forma
abusiva, na medida em que o detentor o adapta como se fosse uma religião.
Quando você nasce com o poder sobrenatural, todos da família reconhecem
e respeitam, pois refere-se a uma escolha realizada pelos ancestrais, quando a
pessoa ainda se encontra no ventre de sua mãe.
Na questão da sucessão, primeiramente o direito do primogênito é respeitado,
mas pode acontecer de o primogênito nascer sem o poder sobrenatural e esse poder
se manifestar no segundo ou no terceiro filho. Aquele que nasce com esse poder vai
herdar o trono, mas vai respeitar o direito do primogênito. Quer dizer, ele será chefe,
mas o primogênito será o oráculo dele. Sempre que precisar decidir algo, o
primogênito deverá ser consultado, para que tomem a decisão em conjunto. Esse
poder sobrenatural não é somente político ou sacerdotal, pode ser também financeiro.
Essa dinâmica ocorre frequentemente em separado, de forma que aquele que
nasce com o poder sacerdotal e político, não costuma ser quem terá o poder
financeiro, pois essa função será dada a outra pessoa, para que haja equilíbrio. Esse
costume tem a função de evitar que as pessoas se percam com todo o poder, tanto
21

político quanto financeiro e se acharem dono de todos, o que poderia colocar a família
em perigo. Esses dois poderes vão convergir e trabalhar juntos para o bem-estar de
todos os membros da família.
Posso dar como exemplo a minha família (casa), começando por meu pai. Ele
é o caçula da família (casa). Nasceram três, dois homens e uma mulher, mas o meu
pai nasceu Mvuluzi, quer dizer Chefe. E o seu primo, o filho da irmã da sua mãe,
nasceu com o poder sacerdotal e financeiro, mas sem o poder político. Então, desde
criança, agentes os acompanhavam sempre que havia um problema. O primo do meu
pai, que era mais velho, vinha até a nossa casa se o problema estava em Kinshasa,
e o meu pai ia a casa dele se o problema estava no interior do país. Mais acima deles
tinha o tio, que era o irmão mais velho das mães dos meus pais, que morava na aldeia
e coordenava tudo de longe. Ele vigiava de dia e de noite e tinha sempre a última
palavra.
Agora na minha família (casa) nasceram cinco filhos, quatro rapazes e uma
menina que faleceu aos dois anos de idade. Assim, ficamos somente rapazes. Eu
herdei o poder político e sacerdotal e desde criança eu desenvolvi a habilidade
sobrenatural. Poderia achar a solução para qualquer problema. Agora o nosso irmão
mais velho é quem atua como supremo. Ele está acima de nós pelo seu direito de
primogênito. O irmão que nasceu antes de mim herdou o poder financeiro, ele tem
habilidade sobrenatural para multiplicar dinheiro e isso nos foi dito desde que éramos
crianças. O nosso irmão caçula também tem esse poder, mas como ainda tem o nosso
irmão mais velho todos devemos nos curvar diante dele.
Eu fui taxado de feiticeiro quando criança porque tinha uma sorte de
superpoder. Eu me lembro que conseguia distinguir a fisionomia dos animais, sentia
cheiro de metal e tinha muita sorte de encontrar coisas perdidas entre outros mais.
Um dia o nosso vizinho perdeu a cabra com seus filhotes e eu voltando da escola
distante mais ou menos dois quilômetros de casa, vi uma senhora colocando a cabra
no carro. Olhei e identifiquei a cara da cabra e chamei-a pelo nome dela. Peguei a
matrícula do carro e fui entregar no vizinho. Ele desesperado não tinha certeza, mas
eu insisti chamamos a polícia quando fomos ao lugar onde eles colocaram a cabra
tinha muita quase idêntica. Mas me chamarem e eu fomos olhei nas caras delas e
pude identificá-la e todo mundo ficou admirado, ninguém estava acreditando.
Então mesmo eu estando longe, quando tem um problema familiar que
precisa ser resolvido dessa forma minha família me consulta, pois meu poder ainda
22

está vivo, principalmente no que diz respeito a questões espirituais. Acredito que o
que nós temos vem de Deus, de forma que eu aqui, mesmo sendo pastor, tenho a
responsabilidade de cuidar do que é meu.
Converti-me e virei cristão evangélico e hoje sirvo a Deus como pastor e
missionário, mas também cuido da minha família. Mesmo sendo cristão tenho o
reconhecimento da minha família no que toca a legitimidade sacerdotal, pois esta
característica está acima de eu ser cristão.
Em tudo o grande Chefe dos Ba-kongo é o tio materno, o irmão da mãe. Nós
acreditamos que o nosso reino foi fundado por uma mulher, a rainha Mãe Nzinga –
Kuwu o nosso Nkaka ya kisina como já foi dito acima. Assim, ninguém pode reivindicar
o poder da chefia se não os descendentes dela. Na verdade, deveriam ser mulheres,
mas sendo Ba-Kongo os irmãos da mãe passam a ter esse direito, embora todos
sabem que são as mulheres que são as fundadoras do reino.
Com essas posições, a pessoa que tem poder sobre nós é o nosso tio, o irmão
da minha mãe. Isso fica muito mais complexo se o pai dos filhos se casou, mas não
pagou o dote, pois aí ele não vai ter direito em nada sobre os filhos. O matriarcalismo
não é somente de poder, mas também de direito. Quando o homem vai se casar é
obrigado a pagar dote, isso não quer dizer que está comprando a mulher, mas que
deve exercer o dever que ele tem, perante os tios e tias da mulher. Junto a isso recebe
permissão de exercer o poder sobre os seus filhos e garantir o seu direito vindouro.
O poder está em cuidar dos seus filhos, alimentar, educar, controlar, mandar
e fazer muito mais, principalmente ter voz quando acontece um infortúnio e até de
ameaçar os tios quando for necessário. O direito é comer o que os seus filhos vão
produzir e isso começa no dote, caso tenha filhas. Assim, quando elas se casam
também os tios e tias vão comer e receber o dote. Dos filhos cabe receber seus
cuidados quando precisar. Todo filho sabe que é obrigatório cuidar dos seus pais e
dos seus tios e tias e sobre esse tema não existem contestações, principalmente por
parte daqueles que receberam poder sobrenatural.
Como exemplo destaco meu cunhado, irmão da minha esposa. Ele se casou
com uma mulher, mas ainda não pagou dote e tiveram 7 filhos e dois faleceram. Na
morte do segundo filho, os irmãos da sua esposa simplesmente vieram buscar a irmã
deles, junto com os filhos. Dentre os filhos, a primeira filha esta preste a casar e o pai
não tem direito a nada, porque ele não exerceu o dever dos tios e tias na hora de
casar-se. Também não pode exercer o seu poder do pai para procurar saber de onde
23

está vindo a morte dos seus filhos. Isso porque pode ser um jogo da família da sua
esposa ou de uma pessoa da sua própria família. Como ele não tem direito, nem
poder, fica de mãos atadas.
Voltando para nossa origem, por volta do ano 230 Ne Mbemba Zulu foi
entronizado, como profeta e guia do povo Kongo - ele os tirou do Egito. Por volta de
320, mamãe Mbangala era sua guia. Quando morreu, Ne Nsansukulu-a-Kanda,
também chamado Nimi-a-Lukeni, trouxe o ne-kongo à beira do rio Kunene, onde
construíram a sua primeira casa: "Kongo dia mpangala nzudu tadi", Kimpemba irá ser
sua capital. Por volta do ano 424, Ne Kodi Puangu, Ne Lunda Makanda e Ne Madiangu
ma Zulu levaram o povo a construir uma segunda casa: "Kongo dia mulaza", Kahemba
e depois Feshi eram as chefias. Uma terceira casa foi construída por volta de 529:
"Kongo dia luangu", da qual Zimba era a chefia sob a autoridade de Ne Tuti dia Tiya.
Vários reis se seguiram até a chegada dos portugueses: Mnabi Mayidi, Zanga
Mowa, Mbala Lukeni. Este último liderou campanhas para ampliar o reino. Mbama
Bokota, Ngongo Masaki, Nzinga Sengele, Kalunga Punu, Nkanga Malanda, Nkulu
Kiangala, Ngunu Kisama, até Mandiangu, cujo comportamento desagradou a Deus. A
fome atingiu então o país. Mbuta Kimosi se levantou como um profeta para lutar contra
os maus hábitos e maldições. O rei Nanga Katanga trouxe o Ba-Kongo de volta ao
caminho da justiça e da riqueza. Depois, houve os reis Ntende Kabinda, Muabi
Kunene, Mbamba Muzombo e Woyo Mpangala.

3.3 O ENCONTRO COM O OCIDENTE E A QUEDA DOS BA-KONGO

Em 1457, um profeta levantou-se para profetizar a chegada do homem


branco. O encontro com o Ocidente (em 1480) foi fatal para os Ba-Kongo. Ao chegar
Diego Cão encontrou um reino próspero e bem-organizado e tinha como o rei Ntinu
Nzinga a kuwu e Mbanza Kongo era a capital. O primeiro encontro com os ocidentais
foi pacífico de amizade, muitos dos dirigentes dos Ba-Kongo aproveitarem para ir
visitar o Portugal. Sete anos depois chegaram os missionários católicos em 1490 e no
ano seguinte, em 03/05/1491, o rei foi batizado em com o nome de Ndo-Nzwawu (Dom
João).
Assim, Kongo se tornou o primeiro território cristão longe da Europa. Com o
batismo do rei, os portugueses esperavam dominar o reino. As relações esfriaram até
sua morte, feita por um português. Seu filho primogênito Mvemba a Nzinga, Alfonso
24

(Ndo-fusu) o sucedeu e incentivou seu povo a se batizar, favoreceu os estudos e, com


a ajuda dos jesuítas, começou a construir escolas. Achava que fazendo isso o seu
reino cresceria.
Mandou seu filho para estudar em Portugal, onde se tornou o primeiro bispo
africano na história da igreja. E Mbanza Kongo tornou-se San Salvador. Nas décadas
que se seguiram, o Império caiu na espiral do comércio de escravos. Sob essa
pressão colonial, o rei perdeu o controle. Cada província, sob supervisão portuguesa
ou inglesa, buscava a independência. Os europeus aproveitaram essa situação para
levar ainda mais pessoas como escravos.
A província de Ngola proclamou a sua independência, daí o nascimento de
Angola. Em seguida foram as províncias de Loango, Ngoyo e Kakongo. A profetisa
Kimpa Vita tentou reunificar o país, denunciando todas essas práticas. Como
consequência, foi queimada viva. A divisão completa do reino foi decidida entre
Portugal, França e Bélgica. Assim, o Ba-Kongo perdeu todas as suas conquistas. Hoje
os Ba-Kongo tanto na República Democrática do Congo, quanto em Angola estão
sofrendo uma verdadeira diluição com a negação de sua identidade.

3.3.1 Crença

O Ne-Kongo acreditava em um Deus Supremo Todo-Poderoso, que criou o


universo e todos os seres visíveis e invisíveis. Eles também acreditavam nos espíritos
dos mares, das florestas e dos mortos. Quando surge um infortúnio, consultamos o
Nganga Buka que dá amuletos e outros pós-naturais. Os mortos não eram
considerados mortos, mas sim vivendo do outro lado do mar Mpinda.
A tradição transmitiu a todas as gerações que Deus, após ter criado o
universo, o mundo visível e invisível, criou o homem completo a quem deu o nome de
Mahungu. Ele concluiu uma aliança com ele, simbolizada por uma espada (Nsengele
Mbele) que Ele lhe deu. No entanto, Ele a proíbe de contornar a árvore. Um dia,
Mahungu decidiu dar um passeio atrás da árvore, um violento ciclone (Nzondo) caiu
sobre ele e rasgou sua espada. Mahungu se partiu e se dividiu em dois seres: um
homem e uma mulher, esta com nove seios. Deus disse ao homem que esses seios
seriam os clãs Kongo. Este mito foi contado aos filhos do país até a chegada dos
europeus e a nós também.
25

3.3.2 Calendário

O Ne-Kongo (Ba-Kongo) adotavam uma semana de quatro dias: Nkenge,


Nsona, Nkandu, Konso. O mês tinha 7 semanas e o ano 13 meses e 1 dia e ano não
tinha 365 dias. Desastres naturais e outros eventos especiais marcaram aniversários
e descreviam situações comuns da vida, até a chegada do calendário cristão. O
calendário do Kongo incluía quatro temporadas principais:
1. Kintombo: época das primeiras chuvas e da semeadura (de outubro a
dezembro);
2. Kianzu: também uma estação chuvosa, mas menos intensa (de janeiro
a maio);
3. Kisivu: primeira estação seca, caracterizada por ventos frios (de maio ao
final de agosto);
4. Mbangala: também uma estação seca, mas caracterizada por altas
temperaturas (de agosto a outubro).
Alguns acrescentam a estação Ndolo entre março e meados de maio, uma
estação chuvosa.

3.3.3 Economia

O reino do Kongo era muito desenvolvido. As trocas eram feitas com a moeda
"Nzimbu" (representada por conchas). Além dos recursos naturais e do marfim, os
artesãos faziam roupas de ráfia e cerâmica. As finanças do reino vinham de receitas
fiscais e outras atividades organizadas pelo rei. No entanto, os principais recursos
eram a pesca, a agricultura, a caça e a criação dos animais.

3.3.4 Educação

Antes das escolas com base no mundo dos europeus, havia escolas de
iniciação que foram organizadas pela filha da fundadora do nosso reino. Essas
escolas eram organizadas para os jovens escolhidos e aí aprendiam os saberes
decorrentes de cada um dos filhos da divindade: agricultura e ferragens, tecelagem e
tudo que era necessário para o desenvolvimento do Reino. Esses jovens assumiam a
responsabilidades de propagar os conhecimentos originários para o bem da
26

coletividade. Ali aprendiam os ofícios pelos quais deviam manter os níveis de vida do
reino, propagando esses conhecimentos de acordo com as aptidões de cada um. As
escolas mais famosas eram: Leiaa, Kimpasi, Kinkimba e Buelo.

3.4 O NASCIMENTO DAS NAÇÕES: CONGO DEMOCRÁTICO E ANGOLA

1885 foi o ano em que aconteceu a conferência de Berlim, na qual os


europeus decidiram como deveria ser a partilha das nações africanas, tendo como
base o colonialismo que se instalava e se fortalecia, com base capitalista e puramente
econômica. Nessa partilha o Rei Leopold II recebeu um território 2.500.000 km² que
se configurou como o Estado Independente do Congo; os Franceses receberam
500.000km² que se configurou como o Congo Braza-Ville; e o sistema colonizador
português ficou com a parte que dominava desde o período em que estava regido pelo
sistema monárquico.

3.4.1 A República Democrática do Congo

O Congo é o segundo maior país de África, com território que mede


2.345.000km² e uma população que atinge quase 110.000.000 de habitantes, sendo
que a capital Kinshasa tem quase 16.000.000. É um país com subsolo muito rico e
fica no centro (coração) da África. Essas características se configuram como um
escândalo geográfico, frente à miséria e pobreza em que vive sua gente. Neste país
ocorre todo tipo de minério existente no planeta. Além dessa diversidade, o Congo
possui imensa diversidade de animais, como: os gorilas da montanha, os gorilas das
terras baixas, o bonobo ou chimpanzé anão, o okapi, o rinoceronte branco do Norte e
o pavão do Congo, animais que não se encontram em nenhum outro lugar do mundo.
No Congo também fica o vulcão de Niragongo e nove parques nacionais, onde se
encontram, entre outros, os animais que citei acima. Cabe destacar que o Congo é o
único país no mundo que tem nove vizinhos e dez fronteiras.

3.4.2 Angola

Angola tem a superfície de 1.246.700km², com dezoito províncias, quatro


vizinhos, cinco fronteiras e um litoral que mede quase 1.600km. Tem 25.789.024
27

habitantes e animais como palanca negra gigante. Seu subsolo também é muito rico
em diamante e petróleo, sendo o oitavo produtor de petróleo da OPEP e o segundo
produtor na África, depois da Nigeria. Infelizmente existe um problema econômico
muito grave, marcado pela taxa muito elevada que é praticada pelo mercado negro,
junto à economia do país, que se anuncia socialista - mas o país é dominado por
processo político personalizado e centralizado. Nesse sentido, se destacam situações
alarmantes como, por exemplo: a mulher mais rica da África se chama Isabela dos
Santos, filha do ex-presidente de Angola José Eduardo dos Santos, que dirigiu o país
desde a morte do Neto, em 1979, até 2017, quando renunciou e escolheu seu
sucessor na pessoa de João Lourenço.

FIGURA 2 – MAPA MUNDI COM A LOCALIZAÇÃO DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E


ANGOLA
28

FIGURA 3 – MAPA E LOCALIZAÇÃO DO CONGO E ANGOLA NO CONTINENTE AFRICANO

3.4.3 Congo e Angola: geopolítica e relações de poder

Com essa divisão, que desconsiderou as culturas locais e as cosmovisões


dos povos atingidos, o Rei Leopoldo II da Bélgica, como único dono de uma vasta
superfície desde 1887 até 1908, promoveu um regime de total barbárie e depois das
inúmeras denúncias dos ingleses sobre maltrato das pessoas com trabalho forçado e
mutilações estabelecidas sob o comando do rei, foi instituído um inquérito para apurar
os fatos.
Sob o reinado do Leopoldo II, o Estado Independente do Congo como
propriedade pessoal do Rei, cresceu na infraestrutura com a implantação da estrada
de ferro, desde a capital Leopoldo Ville (atual Kinshasa), porto, comércio e demais
elementos necessários para garantir o sistema de exploração vigente. Como resultado
do inquérito instaurado, o Rei perdeu o poder de posse do território e o país passou a
ser organizado sob custodia da Bélgica, passando a se chamar Congo Belga.
Sob a tutela do Rei Leopoldo II o Congo tinha um elevado número de pessoas
mutiladas e quase 6.000.000 vidas foram ceifadas, conforme Daniel Vangroenweghe
(1986) relata que “esse massacre é um holocausto esquecido”. Até hoje a população
congolesa sofre consequências destes acontecimentos, apesar de se passar mais de
um século.
29

FOTO 1 – REI LEOPOLDO II

FOTO 2 – MUTILADOS FRUTOS DA COLONIZAÇÃO IMPOSTA POR LEOPOLDO II

De 1908 até 1959 o Congo estava sobre a colonização da Bélgica. Em 1960


foi alcançada a independência e a primeira eleição democrática no país. Joseph
Kasavubu, do partido ABAKO (associação dos Ba-Kongo) foi eleito presidente e
Patrice Emeri Lumumba do partido MNC (movimento nacional congolês) foi o Primeiro
Ministro. Nessa época a Bélgica era dirigida pelo Rei Baudoino e a Rainha Fabiola.
Essa foi uma época muito tumultuada, porque a independência foi um episódio
somente de aparência, pelo fato de os colonizadores não desejarem perder os
privilégios que estavam habituados.
Com a independência, ocorreu um processo que pretendia desencadear a
divisão do país em pequenos estados como ocorreu nos Balcãs. Esse movimento teve
com Tshombe a organização para a separação do Katala. Sob a liderança de Kalondji
se deu o movimento para a separação do Kasai. Esse processo muito tumultuado de
separação do Congo em vários novos países resultou na morte do secretário geral da
ONU Dag Hammarskjold e na morte do primeiro-ministro Lumumba ainda em 1960.
Com isso o país entrou em uma grande convulsão, até a ocorrência do golpe
de estado em 1965, quando o General Mobutu Seseko Kukugbendu Wazabanga
instaurou o regime dos Comissariados Gerais, com duração de 6 meses, seguido por
30

uma ditadura militar, que durou até a sua fuga, em 1997, forçada pelas tropas da
Aliança das Forças para a Democracia e Libertação (AFDL).
O governo ditatorial de Mobuto seguia de forma a restaurar a identidade do
Congo e em 1971 Mobutu instaurou a sua famosa Zaiaranizaçao (retour a l’autenticité)
pelo lema “retrousson nos manches” (moto na moto a bongisa), representado pelas
siglas 3Z, que significa: Zaire a nossa moeda, Zaire o nosso país e Zaire o nosso rio.
Mobuto mudou o nome do país para Zaire e fundou o seu partido MPR (Mouvement
Populaire dela Revolution) em 1967.
Todo mundo fazia parte deste partido, como dizia seu regulamento, de tal
forma que mesmo a criança na barriga da mãe fazia parte do partido. Ele mesmo foi
chamado como guide dela revolution. A Zaiaranizaçao previa o retorno à
autenticidade, quer dizer: tirar todos os nomes que recordassem a colonização
europeia. Ele, que se chamava Joseph Desiré Mobutu, se tornou Mobutu Seseko
Kukugbendu Wazabanga e toda a população do Congo que se tornou Zaire trocou
seus nomes. Também foi proibido o uso de gravata e terno. As freiras não poderiam
mais vestir as saias, devendo utilizar os panos tradicionais, assim como as demais
mulheres não poderiam vestir calças.
Economicamente Mobuto fez proezas. A economia crescia rapidamente, ao
ponto de um Zaire valer um dólar até 1973. Mobuto também organizou a luta dos
séculos, entre Mohamed Ali e George Foreman, em 1974, em Kinshasa.
Para mostrar ao mundo o valor de seu governo, contratou engenheiros
alemães para construir o foguete Zairois, mas o projeto parou quando as tentativas de
lançar o foguete fracassaram. Também construiu o prédio da televisão nacional e o
palácio do povo, onde era prevista a sala dos espetáculos pelos artistas. Hoje o
edifício se transformou no palácio do congresso nacional e do senado.
Na dimensão cultural, colocou uma disciplina escolar e uma regra sem
precedente, ao determinar que Lingala, uma das quatro línguas nacionais, se
transformasse na língua das forças armadas e de todos os diálogos, inclusive
familiares. Isso fez com que esta língua fosse falada em todo território nacional e
manteve o país unido, rompendo com as lutas tribais. Esse idioma alcançou inclusive
alguns países vizinhos, como Angola.
Mobutu era o homem forte de África Central. Com a sua força armada invadiu
Angola em 1975, apoiando o movimento da UPA/FNLA para a Independência de
Angola, fazendo parte das lutas de libertação que duraram até 2002. Ele também
31

conseguiu derrotar as tropas libianas no Tchad quando o coronel Kadhafi invadiu este
país, em 1983. (se eu não me engano).
Durante quase duas décadas e meia, de 1965 até 1990, o Zaire atingiu o seu
apogeu. Depois o país entrou num processo conhecido como Espiral Tribalista, que
se caracterizou pelo fato de o poder girar apenas entre os integrantes do povo Ba-
Ngala, que determinou o processo de decadência até o adoecimento grave do
presidente em 1996. Nesse ano, ele foi deposto e fugiu para o Marrocos, onde faleceu.
Mobutu na hora de independência era secretário particular de Patrice Emeri
Lumumba e vale lembrar que Mobutu herdou com a independência, um país próspero
das mãos de Kasavubu, em 1965. Depois, em 1967 ele se tornou ditador ao criar seu
partido e eliminou a democracia. Essa ditadura permaneceu até 1990 quando
ocorreram importantes movimentos no cenário internacional, como a queda do muro
de Berlim e sob pressão de George W. Bush restaurou a democracia.
Com essa pressão, Mobuto se sentiu traído pelas forças internacionais e
passou a incitar o povo para realizar o que ficou conhecido como incitação de saques
às empresas internacionais como indústrias automobilísticas e demais empresas.
Esse processo foi iniciado em 1991 e durou até 1992, o que resultou num processo
de pilhagem que desorganizou o país, como uma vingança contra os antigos parceiros
internacionais - o que levou o país a uma situação social muito grave.
A restauração da democracia ocorreu com a organização em 1992 com a
Conferência Nacional Soberana, dirigida pelo Arcebispo Laurent Mosengwo como
decorrência da pressão Belga, Francesa, Inglesa e Norte Americana. Como
decorrência desse processo foi instalado um sistema democrático com a adoção de
um Primeiro Ministro que deveria organizar eleições livres e soberanas. Nesse
momento foi indicado para ocupar o posto Etiene Tshisekedi, mas na cerimônia de
posse, ele rasgou a constituição que era apoiada no partido único e em decorrência
desse fato, 10 dias depois ele foi deposto por Mobutu, que indicou um substituto, que
conduziu o governo até 1997, quando foi deposto por Laurent-Desire Kabila.
O período de continuidade no governo, de 1990 a 1997 ficou marcado pelo
retorno das lutas pela valorização da identidade das diferentes “tribos”, cada uma com
suas línguas e cosmovisão próprias e pelos esforços de Mobutu para continuar no
poder passando a lutar por sua permanência e não mais a favor do povo, o que levou
a um processo que fragilizou a educação, ocorreu grande desemprego e conflitos
sociais.
32

A vida social ficou muito difícil. A moeda se desvalorizou e quase 90% da


população ativa ficou desempregada, então todo mundo precisou buscar formas para
organizar sua vida e essa foi a origem da vida de informalidade no Congo, na qual os
pequenos comerciantes estavam em todas as esquinas das ruas e os jovens fossem
estudantes ou não, começaram a improvisar meios para a sobrevivência. Esse
processo tem final em 1997, quando Kabila o destituiu do poder e fugiu para o
Marrocos, como já foi citado.
No entanto, durante o período de dificuldades sociais, junto ao povo, surgiram
muitas igrejas, companhias de teatro, grupos musicais e os djalelolistas, que eram os
bajuladores que faziam artes que o favoreciam, formando classes de pessoas, que
vivam no entorno do presidente. Eram seus auxiliares mais diretos, os quais
desfrutavam de regalias diversas com bastante dinheiro e eram considerados os
intocáveis, junto com a divisão especial presidencial. Eram generais, os filhos do
presidente, os membros do bureau central do MPR, os ministros e suas famílias,
militares de baixa patente, os músicos famosos do país, os presidentes dos clubes de
futebol, os PDG (presidente directeur general), DG (directeur general) e os ministros,
que na época de Mobutu, se chamavam commisaire d’etat.
Depois vem o grupo dos djalelolistas, pessoas que faziam parte dos grupos
de animação como MOPAPE (mobilização, propaganda popular) e jovens do MPR.
Estas pessoas se achavam importantes, mas na verdade tanto o presidente quanto
os intocáveis precisavam deles somente porque cantavam para eles, adulavam o ego
deles, mas quando precisavam de ajuda, várias vezes foram deixados de lado. Depois
vinha a classe média, que era composta por grandes comerciantes nacionais e
estrangeiros, como Kansebo e Kanafer que era libanês. Depois vinham os pobres e
os ngembos.
Estes últimos são pessoas sem ocupação definida, que morram nas ruas.
Essas pessoas quando se aproximam de alguém, quando vê e sabe que têm alguma
coisa, vão massagear o ego, chamando-a de todos os tipos de nome, título e
qualificação até que consigam alguma coisa. Se não conseguem, partem para a
violência. Eles sabem de tudo. Se você quer alguma informação é só procurar um
deles e vai receber o que procura. Neste grupo estão também os faseur ou chegues
chance eloko pamba, que são crianças, jovens e adolescentes. Muitos são
abandonados na rua acusados de feitiçaria, outros são órfãos que a família
principalmente dos pais jogou fora e outros são pequenos ladrões.
33

3.4.4 Minha atuação política

Em 1997, eu entrei no AFDL, que era conduzido por Laurent Desiré Kabila
Mzee. Exerci um papel importante nessa organização, época em que nosso país
voltou a se chamar Congo Democrático. Esse fato ocorreu na noite do dia 17/05/1997
em Lubumbashi proclamado pela boca do Mzee Laurent Desire Kabila. Foi um dia
memorável para mim pessoalmente porque sempre vejo a imagem onde eu, à frente
de integrantes da comunidade, tomei um quartel da gendarmerie nacional na
commune de Makala.
O fato importante é que eu era o único integrante do AFDL e eu vi os soldados
se curvando diante de mim. Provei o gosto do poder. Fui carregado pela população,
me chamando de kadogo que significa criança. Foi um momento que queria reviver,
porque foi sem violência e os militares se renderam e me entregarem a bandeira, as
chaves das casernas, as suas armas e eu os entreguei para a população. Todos
estavam eufóricos e durante três meses naquela área eu era muito falado e
comentado. Então Mzee Kabila foi apoiado pelo exército Ruandês, bem como pelas
milícias militares zairois constituídas pelos soldados que desertaram e por crianças
que nos chamava de kadogo.
Kabila herdou um país quebrado, mas tinha a promessa de ajuda vinda da
Inglaterra, Bélgica, EUA e França. Seis meses depois de sua entrada no país, o
relacionamento com seus mandatários se deteriorou e aconteceu o que chamamos
de “boma Ruandais pe tika nioka”, que quer dizer: “mata ruandeses e deixa a cobra”,
impulsionado pelo lema de que a guerra será longa e popular. Mzee disse que fomos
infiltrados até na ponta da cabeça do país.
Ele envergonhou a secretária americana Madelene Albrhyte na frente de
todos numa conferência organizada pelo Clube dos amigos do Congo no Gabon,
quando disse que “o Presidente da República Democrática do Congo não é um
garçom de corrida do presidente americano, pois são colegas e o fundo de 10 milhões
de dólares não são suficientes para erguer a economia do Congo”. Isso foi a gota
d’água que desencadeou na morte dele. Como decorrência ocorreu a guerra de 1998,
onde os ruandeses foram expulsos do Congo. Muitos morreram e a miséria aumentou
muito.
34

Com essa queda de braço entre Mzee e os seus mandatários ocidentais o


país e a população foram esquecidos. Num lado o presidente procurava como se livrar
para sempre daqueles que antes foram seus aliados e do outro os antigos aliados
estavam procurando como poderiam eliminá-lo e retomar o controle do país. Isso
aconteceu no dia 16/01/2001, quando fomos surpreendidos com a morte do Mzee,
que foi morto a tiro por seu guarda costa, o qual, em seguida, foi morto pelo aide de
camp do presidente, o coronel Eddy Kampend, que foi preso no mesmo dia e libertado
somente no começo de 2021.
Foi o filho adotivo de Mzee Kabila, Joseph Kabila que herdou o país até a sua
saída em dezembro de 2018. Tanto Mobutu, quanto Mzee e Joseph Kabila só
afundarem o país na crise, que desencadeou no desemprego, na precariedade de
todo o sistema de saúde, de educação e fez com a maioria da população entrasse na
informalidade e no êxodo. Multiplicaram-se os prostíbulos de rua, o trabalho de
crianças nas minas, a invasão chinesa no pequeno comércio e o fenômeno coluna,
que se caracteriza por um grupo de jovens que organiza arrastões e provoca
enfrentamentos entre fracções.
Hoje em dia o regime de Tshisekedi prende estes jovens e leva-os a trabalhar
no que estão chamando de serviço nacional. Primeiro são presos na capital onde
estão concentrados esses grupos e depois são enviados para o interior do país,
principalmente Katanga e Kasai. Lá eles recebem formação militar para ser
disciplinados e depois são colocados nas lavouras do estado para trabalhar e serão
remunerados todo final do mês. Isso fez com que este fenômeno começasse a
desaparecer na capital.

3.5 MINHA JORNADA COMO AFRICANO

É nesse contexto que eu nasci como pessoa Ba-Kongo. A minha infância eu


não tenho muitas lembranças porque foi uma época muito tumultuosa em Angola.
Primeiramente era um tempo de grandes tensões no país, os nossos vizinhos já eram
independentes, mas nós continuávamos como colônia portuguesa e os líderes
políticos lutavam pela nossa independência. Tínhamos partido como UPA/FNLA
apoiado pelos USA e Zaire que era liderado por Roberto Olden, um líder carismático
com uma inteligência incomparável que era Mu-Kongo. Também tinha o partido que
está até hoje no poder, MPLA, apoiado pela União Soviética e Cuba, liderado por Neto
35

do Catete, que simpatizava com os colonos, e a UNITA, apoiada pelo USA e África do
Sul, liderada por Savimbi, que era Ovimbundu.
Havia um problema no FNLA, porque Savimbi antes de fundar o seu partido
era membro. Eu me lembro de que grupo e de que os primos do meu pai fizeram
escolhas contrárias, pois um escolheu seguir a Savimbi e outro a Neto, mas o meu pai
não me explicou claramente o que acontecia no partido. Lembro de que na véspera
da independência ou logo depois, um dos primos do meu pai, recém-formado médico
na Bulgária, estava afetado no congo Brazza-Ville, onde trabalhava na conta do
governo, e teve que fugir depressa para nos encontrar em Kinshasa. A partir de então,
tanto ele quanto o meu pai começaram a fazer parte da UNITA, até a morte do Primo
do meu pai. Eu via como as reuniões aconteciam e toda a esperança que os pais
tinham de que a UNITA conquistaria o poder, mas pouco a pouco essa esperança foi
morrendo e o desânimo ganhando terreno nas vidas deles.
O meu pai já trabalhava como administrador adjunto do bairro de Malala,
depois administrador titular no bairro Mabulu, na commune de Makala em Kinshasa,
onde ele era presidente do partido do presidente Mobutu, o MPR, e militou muito. O
meu pai amou a política por toda sua vida, então eu admirava muito como ele se
destacava. Tudo que lhe confiavam dava certo e eu nisto alimentava a minha ideia de
um dia dirigir o país.
O meu pai trabalhou em muitos partidos políticos no Congo Democrático,
quase com todos os presidentes, com Kasavubu ele estava no ABAKO, com Mobutu
era MPR, com Kabila Pai foi CPP, mas com Kabila filho o meu pai não queria trabalhar,
porque, segundo ele, o Kabila filho tinha alguma coisa na morte de Mzee Kabila. Esse
foi o começo dos nossos problemas, mas antes que eu toque nesse ponto quero falar
da minha vida em Angola e o retorno ao Congo.
Em 1993 fui recrutado para fazer parte de um serviço secreto contra o poder
do presidente ditador Mobutu. Assim, fiz uma viagem no Baixo Congo na cidade de
Boma. Fui junto com minha mãe. Eu tinha 22 anos, recém-formado. Quando
chegamos lá, na frente da casa da minha vó tinha uma família amiga da minha avó e
o homem me chamou para conversar. No primeiro dia foi uma conversa normal, mas
no final ele me prometeu que tinha um negócio bom para me propor se eu topasse.
Passou três dias, ele veio me buscar por volta das 15 horas para irmos
caminhar. No caminho começou a me propor o negócio que me falou três dias antes.
36

Era para eu receber e passar informações, com uma condição: ninguém poderia saber
disso, nem os meus pais.
Eu perguntei que tipo de informação, ele me disse que seria tipo espionagem.
Eles me mandariam um código que eu deveria decifrar e depois eu deveria cumprir a
tarefa respondendo a mensagem também de forma codificada. Os códigos eram
números, animais e elementos da natureza. Se eu aceitasse o meu código chefe seria
cinquieme elemento (quinto elemento). Eu aceitei porque era apaixonado por séries
de espionagens muito mais do inspetor Derick. Pensei que seria fácil e divertido, mas
ignorava a grandeza da missão. Para que eu fosse admitido deveria passar por um
teste. Ele me disse que depois de voltar em Kinshasa passaria pelo teste e se
aprovado eu começaria a trabalhar. Quando voltei, fiquei muito doente o que me levou
a fazer uma cirurgia na parte de cima entre a minha bacia e o meu pênis. Não sei
como contraí aquela doença, mas fiquei dez dias internado e mais quinze de repouso.
Depois voltei à minha atividade cotidiana, que era ensinar matemática e física
na escola onde trabalhava. Passei um ano e tinha já esquecido o que tínhamos
conversado com o homem em Boma. De repente recebi uma carta que só estava
escrito wapiza cinquieme-elements. Na hora não entendi nada, mas quando chegou
à noite comecei a repensar, daí que me lembrei da minha conversa com homem em
Boma. Com aquela carta não sabia o que fazer, por que não sabia onde eles estavam
e a comunicação naquela época era somente via carta ou phonie, esse último não
tinha segredo você deveria gritar para se comunicar, e na frente de muitas pessoas.
Então o jeito era esperar eles entrarem em contato. Três meses depois, já no final do
ano de 1994, eu estava quase terminando o primeiro trimestre na escola, quando
recebi a visita de uma mulher, que veio a mando do homem de Boma.
Eu não sabia que o homem do contato era infiltrado do AFDL, a força armada
ou movimento que tirou o ditador Mobutu do poder. Só vim saber isso em 1996, porque
desde então só era código que a gente usava. Eu era o quinto elemento e em 1996
fui trocado para o nome de baleia. Esse segundo código só os chefes da organização
conheciam e eu estou revelando isso aqui, na esperança de que não vá me causar
problemas. A mulher me colocou em uma página das operações que orientava como
eu ia proceder, onde eu ia atuar e o que eu ia ganhar.
Eu estava encarregado de espionar os militares e para isso eu deveria me
infiltrar na auditoria geral militar, o que foi facilitado porque eu tinha um amigo cujo tio
era auditor geral e ele tinha uma amizade grande com a secretária deste tio, que
37

gostava muito fazer negócios. Fui apresentado a ela como facilitador em seus
negócios. Ela tinha negócio com os indianos e eu deveria trabalhar com eles. Deixei
de dar aulas e fui trabalhar de fachada com indianos, para facilitar o serviço do capitão
e nisso eu aproveitava recolhendo informações.
Eu tinha livre acesso na sede da auditoria militar na Gombe, de forma que eu
entrava e saía quando queria. Mas eu tinha a interdição de que não poderia me exibir,
devendo ser simples, para não chamar atenção de ninguém. Trabalhava de dia e de
noite fazia o meu trabalho duplo. Fiz muita coisa na conta do capitão e recebi muitas
informações que passei ao outro lado. Facilitei a venda de ouro, cobre e níquel e nesse
trabalho eu vi uma oportunidade de subir no meio político, mas para isso eu esperava
a mudança do regime. Eu sabia os passos e os movimentos que se fazia lá fora. Em
2016 fui intimado a deixar de trabalhar com os indianos porque eu deveria me
encontrar com um grupo das pessoas no leste do país Goma, as quais me passariam
as diretrizes para as novas ações.
Usei a minha posição como missionário e falei que precisava fazer missão no
leste do país por um tempo curto. Fui chegando ao novo encontro, no parque virunga.
Deram-me novas recomendações e muitas promessas que não se concretizaram. Fui
prometido a ser ministro da educação, mas quando chegou a hora certa fui passado
para trás. Voltei de Goma com uma grande motivação, agora eu deveria estar perto
da oposição para acelerar o enfraquecimento do regime. Fui procurar o presidente
comunal de UDPS no bairro de Makala, pedi a minha adesão ao partido e comecei a
trabalhar. A organização me pedia sempre para provocar confusão, não sei por que,
mas eu me saía muito bem nisso. Quando começou a marcha da libertação do país,
mandaram-me trabalhar na província de Bandundu, na fronteira com a província de
Kasai, na cidade de Dibaya Lube. Lá fiquei três meses, porque a marcha da libertação
durou somente nove meses e o país já estava sob o controle de AFDL.
Quando eu voltei em Kinshasa a marcha da libertação já estava na província
oriental, Kisangani. A minha missão desta vez era mobilizar jovens em prol de Mzee
Laurent Desire Kabila, coisa que fiz com sucesso. Na hora de entrar na capital tudo já
estava preparado e eu não precisei mais me esconder. Liderei a derrubada de vários
commune. Infelizmente, quando Mzee tomou o poder estava cercado dos soldados
vindos de Ruanda, os quais lhe ajudaram e não tinha muito espaço para nós. Muitos
dos companheiros nossos morreram envenenados, o que se caracterizou como uma
forma de acerto de contas.
38

A missão dos militares ruandeses era de isolar totalmente Mzee Kabila para
que ele não tivesse margem de manobra e tudo que nos foi prometido não foi
realizado. A queda do poder de Mobutu foi dia 17/05/1997 e Mzee ficou isolado de
nós até março de 1998, quando conseguimos superar as dificuldades e mandamos os
ruandeses de volta ao país deles. Neste meio tempo eu tinha recebido uma
gratificação com a qual eu faria uma especialização no Canadá, mas não se
concretizou porque quando a confusão com os ruandeses aconteceu, apareceram
vagas para trabalharmos e a organização precisava dos meus serviços, e eu acabei
ficando no país até a morte de Mzee.

3.5.1 A fuga para Angola

Antes da morte do Mzee eu comecei a ter problemas com a organização por


causa das promessas não compridas. Fiquei muito chateado porque a organização
privilegiava muito as pessoas que vieram do leste do país e nós não fomos
comtemplados com cargos fixos e de grande expressão, então eu já tinha começado
a tomar distância, mas não tinha como me afastar. Quando matarem Mzee Kabila
houve um tumulto muito grande e a insegurança crescia. Todos que faziam parte da
organização não poderiam mais entrar em contato, pois eu sentia como se estivesse
sendo monitorado o tempo todo.
Nisto eu falei com meu pai que a situação estava ficando cada vez pior e que
seria melhor eu voltar para Angola, pois lá já não tinha mais guerra. Eu fui em 2002.
Angola agora era para mim como que um país estranho, não conhecia nada da cultura
vigente e das pessoas só sabia que tinha família ali, o que foi muito complicado e
difícil para mim. Primeiro tive que andar cerca de um mês e meio para chegar em
Kimpangu, aldeia que faz fronteira com Angola na província de Congo Central, na
parte de Angola é Kimbata. Lá na fronteira eu fui interceptado pelo serviço secreto do
Congo Democrático (ANR). Eu tinha alugado um quartinho para ficar, esperava o
tempo certo para atravessar a fronteira, mas infelizmente o serviço secreto ficou
sabendo de minha presença, então fui preso e me colocarem dentro de uma cabana
inacabada. Éramos quatro pessoas e ficamos das nove até as quinze horas.
De repente apareceu um rapaz do nome de Olivier e nos perguntou se alguém
entre nós tinha dinheiro, pois daria um jeito de ajudar a fugir e fazer a travessia da
fronteira. Eu e um outro rapaz tínhamos um pouco de dinheiro e pagamos. Olivier
39

pegou o dinheiro, desapareceu e só voltou quando já eram três horas de madrugada


para nos pegar e nos levar ao outro lado da fronteira. Foi um momento dramático, pois
o caminho que íamos tomar era minado, então a nossa vida dependia da sorte. Mas
Olivier nos garantiu que conhecia o caminho e que não tínhamos motivo de ter medo.
Partimos do lugar onde estávamos, entramos nos matos, andamos cerca de duas
horas e chegamos num lugar dentro do mato, onde tinha uma cabana camuflada.
Lá Olivier nos entregou nas mãos de dois homens que só falavam português
e eu e o outro rapaz não falávamos nem uma palavra em português. Foram os
momentos mais dramáticos, divertidos e estressantes que eu vivi nesta longa
caminhada até a minha chegada em Luanda. A primeira palavra que eu aprendi em
português nesta aventura foi “abaixa”, porque esses dois rapazes falavam muito isso.
Eles não queriam que nós andássemos de pé e nos mandavam abaixar e andamos
muitos agachados.
Depois de caminhar perto de uma hora, chegamos à aldeia que se chama
Bangu e nos levaram até a casa de uma senhora que tinha o nome de Maria. Na casa
desta senhora ficamos cinco dias. A senhora Maria só falava kizombo, língua que eu
e Ducure (o rapaz que estava comigo) nem uma palavra sabíamos. Ficamos mais
perdidos que diante do Silva e Lukinha, os dois rapazes a que Olivier nos confiou.
Depois dos cinco dias os dois rapazes apareceram pela manhã e nos botaram dentro
do um caminhão dos militares, que nos levou até Masseke. Chegamos às 19h por
causa do péssimo estado da estrada, pois era época chuvosa do mês de outubro.
Masseke é uma aldeia que fica a mais ou menos 250km de Maquela do Zombo, se eu
não me engano.
Quando foi 23h em Masseke, Lukinha veio nos buscar rápido na casa onde
ficamos hospedados, diz ele que não poderíamos ficar lá e deveríamos seguir a pés
o caminho que vai até Maquela. Eles nos falaram que não era longe e pegamos o
caminho que eles chamavam de corta. Era um caminho dentro da floresta e era de
alto risco. Andamos a noite toda, até as 5 horas do dia 22 de outubro de 2002.
Chegamos à beira de um rio onde pousamos, tomamos banho e estávamos
descansando, quando repentinamente ouvimos barulho de um carro de longe.
Silva nos disse para esperar, saiu da floresta para foi ver quem era e descobriu
que era um Land Hover dos militares da ONU. Fez sinal e o carro parou. Pediu ajuda
e os militares aceitaram nos levar se pagássemos 500 dólares. Não tínhamos escolha,
porque estávamos esgotados. Embarcamos e nos levarem até a entrada da cidade
40

de Maquela do Zombo, no campo da Cruz Vermelha. Lá Silva e Lukinha nos disseram


que ali acabou a nossa missão, porque o que pagamos era para que nos levassem
até Maquela. A partir daqui Deus para todos e cada um por si.
Naquela hora eu não tinha nem uma reação, até porque não entendia o que
eles falavam, só compreendi quando eles fizerem o sinal de despedida nas mãos. Eu
só precisava de descanso, não tinha vontade de nada e o arrependimento já tinha
ganhado o meu corpo inteiro. O pessoal da cruz vermelha nos recebeu e nos tratou
muito bem. Fiz amizade com um deles, porque falava francês e inglês. Com ele eu
conseguia conversar e me sentir vivo. O nome dele era Billy e nos lhe chamava de
Kota (calão angolano que significa mais velho).
Ficamos uma semana no campo da Cruz Vermelha e nesse tempo eu estava
procurando uma igreja. Eis que no dia 30 de outubro o kota chegou perto de mim e
me falou que tinha uma igreja pentecostal a 5 km do campo, se eu quisesse ele
poderia nos levar. Na hora aceitei e combinamos de ir ao dia seguinte ao culto matinal.
Fomos ao culto no final fomos recebidos pelo pastor Adeli. Conversamos e explicamos
a nossa situação e ele nos prometeu nos ajudar. Quando voltamos ao campo por volta
das 13 horas, o pastor Adeli foi nos visitar e me fez o convite para eu pregar no dia
seguinte no culto. Aceitei e preguei, confesso que não tinha condição de preparar um
bom sermão, porque ainda não tinha recuperado o meu estado normal. Também foi
de repente, mas quando fiquei no púlpito me transformei, preguei e aconteceu muita
coisa maravilhosa.
Depois do culto o pastor Adeli não queria mais nos deixar voltar para o campo
da Cruz Vermelha. Devo esclarecer que o pastor Adeli falava também Lingala e na
igreja tinha pessoas que falavam Lingala e francês. Isso foi a minha grande surpresa,
porque não esperava encontrar pessoas falando Lingala e francês naquele lugar. O
pastor Adeli queria que nós ficássemos na casa da igreja e trabalhássemos com eles.
Mas eu deveria chegar em Luanda onde tinha meu irmão mais velho e familiares que
me esperavam. Então ficamos mais uma semana em Maquela do Zombo e depois
seguimos para o Uige.
Na hora de partir para Uige o pastor Adeli fez uma carta que nos recomendava
para a igreja Cemic no Negage, dirigida pelo Reverendo Mavinga. Quando chegamos
lá em Negage o Reverendo Mavinga não se encontrava, estava viajando para Luanda,
onde tem mais uma igreja. Então decidimos não ficar em, mas tinha um problema, não
conhecíamos o caminho e a língua - se bem que tinha uma pessoa que falava Lingala.
41

Procuramos ajuda e nos apresentaram a um homem que fazia comércio de linhaça,


gergelim e semente de abóbora. Ele estava prestes a viajar para Luanda e falava
Lingala e francês. O nome dele era Faria e muitos o chamavam de kota faria.
Como era de costume, nós deveríamos pagar e não tínhamos mais dinheiro,
pois deveríamos economizar porque não sabíamos o que ia nos acontecer na frente,
então com ele o nosso pagamento era carregar aqueles sacos de produtos e cuidar
disso ao longo do caminho. Um caminho muito debilitado que não tinha asfalto em
muitos trechos e o pior era não Tira Bikini. Era um lugar onde tinha muita lama e os
caminhões só conseguiam passar se fossem puxados pelo trator e a coisa complicava
quando chovia, isso fazia com que todo mundo parasse ali por alguns dias
obrigatoriamente e as mulheres passavam mal, porque deveriam lidar sexualmente
para conseguir um lugar confortável, porque só os homens que tinham esse privilégio.
No tira bikini passamos quatro dias antes de sermos puxados para seguir até Luanda.

3.5.2 Refugiado no próprio país

Chegamos a Luanda e fomos recebidos por meu irmão mais velho,


carinhosamente o chamamos de ya Bienvenu (Benvindo). Ele era casado com a
minha cunhada Vitoria, filha do general Mussunda e tinha uma menina, Terezinha.
Eles moravam no bairro hoje Ya Henda em Cazenga, mas foi estranho porque todo
mundo falava português e eu só falava Lingala e francês, então para nos
comunicarmos foi muito difícil. Esse processo de não saber a língua atrasou a minha
integração na sociedade luandense. Precisava de ajuda para conseguir me integrar e
a ajuda foi o meu irmão menor Cassius Clay, que morava no bairro Cuca e vinha três
vezes por semana para me ajudar a compreender algumas palavras em português.
A Vitoria não falava nem uma palavra em Lingala ou francês, então na
ausência do meu irmão a gente ficava trancado em casa. Morávamos num quintal
onde tinha cinco casas. Um dia uma vizinha veio bater na porta de nossa casa e só
eu e Ducure estávamos em casa. Quando abri a porta a vizinha pediu a peneira,
porque estava cozinhando o fufu (funji). Começou então a guerra de nervos, pois eu
entendi penetrar e fiquei espantado porque uma mulher que não era a minha
namorada nem minha mulher não poderia me pedir isso. Fiquei pasmo. De boca
aberta. Anestesiado. Sem reação. A moça também me olhava e insistia falando
peneira e eu entendia penetrar. Eu entendia que a moça me pedia para transar com
42

ela, por que penetrar em francês quer dizer furar, entrar com força e no congo em
Kinshasa a gente usava isso como gíria para significar transar. Quando a moça
avançou em minha direção eu voltei para trás e cai e todo mundo começou a rir de
mim. Naquela hora entrou a Vitória e a sua filha. A moça conversou com ela e Vitória
entrou em casa, pegou a peneira e deu para a moça. Naquela hora a minha ficha caiu,
pois entendi que estava equivocado.
Também tinha o problema geopolítico. O separatismo e estigmatização dos
“Langa”. Esse problema se tornou um fenômeno, porque antes era os Ba-Kongo que
eram estigmatizados e sofriam do separatismo. Isso aconteceu porque MPLA, na sua
busca por vencer a guerra, fazia campanha de intoxicação contra o povo Ba-Kongo,
porque este era opositor e apoiava também UNITA. Então os Ba-Kongo consomem a
carne do makaku e uma pessoa ligada a MPLA pegava os crânios dos makaku, para
os colocar em caixas para fazer uma campanha, dizendo que os ba-kongo eram
canibais e não poderiam ascender ao poder, pois iriam comer os que não são ba-
kongo. Essa campanha fez com que haja até hoje separação entre os Ombundu,
Ovimbundo e Tsiokue e os Ba-Kongos.
O fenômeno Langa começou quando um grupo musical zairense, atual Congo
Democrático, chamado Zaiko Langa-Langa, foi tocar em Luanda. Fizeram muito
sucesso e os nativos de Luanda começarem a chamar os zairenses de Langa. Depois,
todo mundo que chegava do Zaire era apelidado de Langa e isso fez com que agora
os Ba-Kongo sejam separados com os Langas.
Hoje em dia tem o problema de separatismos contra os Ba-Kongo e a
estigmatização dos Langas, acrescentado ao preconceito dos “bayanzi”. Como se diz:
“a violência gera violência”. Bom, também o separatismo gera separatismo. Essa
forma pejorativa de se qualificar uns aos outros está na base de uma grande cisma
junto à população de Angola em geral e com luandenses em particular.
Esse processo já gerou tempos de muitas dificuldades entre os dois países.
A minha forma de ver as pessoas era diferente à dos luandenses, pois eles
conseguiam separar claramente as pessoas e faziam questão disso. Eu nunca
cheguei a perceber essa situação com clareza, até chegar a Luanda. Eles sabiam
diferenciar o branco com mulato, Ba-Kongo com os malanginos e langa como
regressados. Acho que isso não vem do Congo nem dos Ba-Kongo, pois no Congo a
única diferença que podemos enxergar é do branco e do preto, o resto não tem
diferença. No Congo, sejam mulatos, indianos, chineses ou japoneses, todos são
43

brancos, mas em Luanda isso é percebido diferentemente, como destacou Luena


Pereira (2015, p. 32) : “de forma geral, nos bairros periféricos que visitei, os Ba-Kongo
fazem pouca diferença entre brancos e mestiços, uma situação bem diferente da que
se vê nos bairros centrais de Luanda, nos quais a distinção que se faz entre mestiço
e branco é mais marcada”. Os luandenses sabem diferenciar o pula (branco) e o tona
(mestiço), mas eu não tinha até então essa percepção.
Muitos Ba-Kongo são nominados em Angola como Langa, o que gera uma
dupla consciência de negação frente ao reconhecimento de parentesco com os que
fugiram da guerra, como ocorreu nos demais países. Como diz Achille Mbembe (2013,
p. 47), “no caso dos negros americanos que chegavam até a negar a mínima filiação
com os africanos”.
É muito claro que muitos angolanos fugiram de guerra para países como
Congo Democrático, Zâmbia, África do Sul, Namíbia e até para a Europa, Cuba, Brasil
e América do Norte. Mas há um grande antagonismo entre os refugiados do Congo e
os que ficaram no país. A razão principal é a forma como o governo local do MPLA
tratou esses casos. Ainda hoje permanece um ódio muito grande contra os Ba-Kongo
porque são eles que começarem a oposição contra o governo colonial português e em
função dessa ação foi desencadeada uma campanha difamatória dizendo que os Ba-
Kongo eram canibais. A oposição se deu inicialmente com o UPA originário do Congo,
que depois se tornou o partido político FNLA. Essa é uma guerra étnica, de forma que
os catequistas e os malanginos que apoiaram o MPLA estavam num lado e os Ba-
Kongo no outro, mas deve-se considerar que os portugueses que tiravam vantagem
dessa situação, desviando o foco dos ataques ao colonialismo.
Vale lembrar que esse problema é de muito longe. Desde que os portugueses
chegarem ao Reino Kongo não engoliram bem a vergonha que sofreram com a rainha
Zinga e como eram tratados durante o reino, enquanto eles se consideravam amigos
do reino. Os portugueses não tinham a menor vontade de deixar Angola, até eles
começarem o processo de embranquecimento da população. Os nossos pais nos
contaram que os portugueses começaram a ter filhos com as mulheres angolanas. E
isso os maridos sabiam, porque eram aquelas mulheres que trabalhavam nas casas
dos portugueses e as mulheres dos militares, funcionários públicos, eram obrigadas a
ter filhos com os portugueses. Muitos fugiam do Congo e foi daí que nasceu a etnia
bandibo. Na verdade os portugueses falavam naquelas pessoas que ficavam em
Angola ao seguir os fugitivos e chamava-os dos bandidos, mas quando chegavam ao
44

Congo eles eram chamados como bandidos e passaram a ser chamados como
bandibos.
Essa questão deixou a herança do antagonismo entre dois povos. Muitos Ba-
Kongo vivem em Angola como estrangeiros e muitos também vivem a mesma
condição no Congo. Isso contribui muito para a negação das relações com os seus,
que ficaram entre esses dois países ou contribui para ter dupla consciência. Eu
mesmo vivi esta situação, quando cheguei em Luanda, pois me considerava como um
sub mukongo, perdido e me sentia martirizado pelos olhares estigmatizantes que
sofria.
Era como um encontro com outro. Como diz Achille Mbembe (2017, p. 47):

Ponto seco de uma realidade que se tornou irreconhecível - uma hifenização,


como suspensões e descontinuidade -, aqueles entre eles que se
aproximaram da África ou escolheram viver lá, nunca deixaram de ficar
desorientados e assaltados por sua estranheza, e por seu caráter devorador.
Na verdade, seu encontro com os negros da África sempre constituiu, à
primeira vista, um encontro com outra pessoa. MBEMBE, 2013, p. 47.

O grupo musical zaiko langa-langa executam o ritmo que é uma identidade da


cultura Congo Democrática, conhecida como “Rumba”. Esse ritmo é derivado de uma
das danças originárias da África Central, que é “kumba”. Essa dança se dança
movendo a bacia e a cintura tanto a mulher quanto o homem amarram um pano na
cintura e começam a dançar. Ela é o símbolo da fertilidade. Não se dança agarrado,
mas a pessoa vem na sua frente te provocando e depois volta. Quando aconteceu o
comércio das pessoas como escravos, levaram com eles essa alma cultural. Ao
chegar nas Américas essa dança sofreu mutação e deu nascimento a vários ritmos.
Um desses ritmos é o samba. Em 1930, quando os músicos congoleses viajaram para
cuba, entraram em contato com a sua própria dança e na volta deram nascimento à
rumba congolesa.
O nome rumba vem dos rituais vodus (yambu) o que quer dizer “terra dos
redemoinhos” ou “turbilhão”. Quando a pessoa entra em transe depois do sacrifício,
começa a executar os passos da dança e esses passos se chamam rumba, que
significa “festa”. Antes de tudo, na África em geral e no Congo e Angola em particular,
a dança é um ritual. Ela liga a pessoa aos espíritos, os vivos aos mortos, os ancestrais
aos seus descendentes.
45

Agora os bayanzi são a forma pejorativa que os langas encontraram para


chamar os angolanos do interior, que se instalaram em Luanda. Esse nome vem de
uma tribo dos bayanzi na República Democrática do Congo. A língua dessa tribo não
se escreve, quer dizer não tem como escrever e eles mesmos são muito complicados
de conviver, principalmente aqueles que vivem em Nkara, que é uma região no interior
de Bandundu.
Outra forma de se referir com quem está na condição de refugiado em países
vizinhos e que volta para Luanda é de regressado e todas essas pessoas são
classificadas como ba-kongo, mas na verdade não somente os ba-kongo fugiram da
guerra. Tinha também os Tsiokue, Ombundu e Ovimbundu e os que foram a Katanga,
Kasai e Zambia, além de outros que procriaram filhos e netos que nasceram nestes
lugares. Esse fenômeno se repete em outras metrópoles como Kinshasa, Lusaka,
Brazza com as pessoas que voltaram para Angola e a língua portuguesa era o medidor
para saber se a pessoa é verdadeiramente angolana.
Todas essas pessoas foram consideradas como estrangeiras pelo fato de não
saberem falar português, conforme Luena Nascimento Nunes Pereira (2015, p. 29):

em outras palavras, a posição deslocada e condensada que partiu do


estranhamento da minha própria família angolana para familiarizar-me com
os regressados, considerados estrangeiros, ou seja, os outros luandeses, me
fizeram refletir sobre a condição de estrangeridade, frente à nacionalidade e
à língua portuguesa como marcadores identitários, da chamada lusofonia,
para demarcação de nacionais, estrangeiros consentidos e nacionais
estrangeirizados (não consentidos).

Outra questão era do comércio, no qual os Ba-Kongo foram taxados como


comerciantes ambulantes e por isso muitas pessoas são consideradas dessa forma,
tanto no interior como no exterior.
Mas essa classificação não leva em conta o contexto dessa problemática para
saber quem são as pessoas que são comerciantes ambulantes. Em Luanda tinha o
grande mercado Rock Santeiro, que recebeu esse nome em homenagem à telenovela
do globo, que fez muito sucesso em Angola. Mas na verdade o mercado se chamava
“mercado do sambizanga”. É importante destacar que havia muita discriminação dos
regressados e muitos destes se identificavam como Ba-Kongo, sendo necessário
destacar que nem todos eram.
O preconceito impedia que eles tivessem acesso às empresas e o tempo da
guerra favorecia o comércio ambulante por causa de desemprego e falta de
46

investimentos. A maioria dessas pessoas não tinha nada a fazer, se não alcançar
algum ganho com o pequeno comércio. Nesse clima de dificuldades havia pessoas
que tinham rebanhos de animais como bois, carneiros e cabritos, mas com a guerra
não tinham como ficar expostos, então faziam trocas com os pequenos comerciantes.
Lembro que meu irmão mais velho, quando estava no Uambo, na guerra de oitenta
dias, fazia troca de bois por mandioca para fazer farinha, com a finalidade de cozinhar
funji (fufu), o principal condimento da culinária ba-kongo.
Aquelas pessoas que não têm grande capital para abrir empresas e não têm
como ascender ao crédito bancário, sendo que muitas dessas pessoas eram
estrangeiras, se não fizessem comércio, não teriam onde trabalhar. Em países que
têm uma taxa elevada de desemprego, o pequeno emprego é disputado com os
autóctones, então o destino destas pessoas seria o pequeno comércio. Muitas destas
pessoas são mulheres, chamadas de zungeiras. Mas os zungeiros não são somente
estrangeiros e sim uma mistura tanto dos luandenses, quanto das pessoas que vieram
do interior do país.
O fato é que atualmente o povo congolês vive em grande proporção na
informalidade e não somente os Ba-Kongos, mas a maioria dos habitantes da
República Democrática do Congo. Essa situação de miséria se ampliou com a
degradação da economia, que ocorreu quando o Congo era nominado como Zaire e,
como vimos, tudo começou em 1973, quando depois de um período de bem-estar e
segurança financeira o povo não tinha mais trabalhos fixos e a alternativa foi a
informalidade, como esforço individual para a sobrevivência. Assim, alguns
caminharam para o comércio ambulante, outros na bricolagem, outros artistas como
músicos, comediantes, parlementaire debout e outros na ociosidade; além dos que
migraram para os serviços religiosos e os vinculados a alguma manifestação de fé.
Esse fenômeno não deixou os luandenses indiferentes, porque eles se
depararam com pessoas que não recuam frente aos desafios, motivados pelo espírito
de Libanga. Assim se constituem em uma determinada casta que custa a conseguir
alguma coisa, mesmo colocando a sua vida em perigo. Os Langas encontraram na
guerra um campo fértil para conseguir mudar a vida. O país era dividido. Uma parte
estava nas mãos da UNITA e outra do MPLA. A UNITA como rebelde não tinha muito
apoio exterior e se apoiava nos comerciantes ambulantes. Além dos comerciantes,
precisava de mão de obra para trabalhar nos garimpos de diamantes que financiavam
a compra das armas e eram bem tratados pelos militares da UNITA em troca, os
47

Langas passarem a apoiar a UNITA, pois para eles a guerra não deveria acabar e
muitos enriqueceram neste período.

3.6 BA-KONGO – UMA COSMOVISÃO E UMA CONCEPÇÃO DE VIDA

Nós Ba-Kongos não somos politeístas, acreditamos em um único Deus que


chamamos Nzambi Mpungu. Os Ana Mongo o chamam pelo nome de Nzakomba Olei
Nkumu, os Balubas o chamam pelo nome de Vidimunkulu Mawezi e os ba swahili o
chamam pelo nome de Mungu Limemwa. Esse Deus para nós é inacessível é por isso
que precisamos dos mediadores, que são os nossos antepassados, que são
consultados pelos anciões, chefes de família, chefes tradicionais e os nossos profetas
(Ngunza ou mbikudi). Para nós a etnia é a grande família e no Congo ocorre uma
grande diversidade étnica, como o Brasil, de forma que ao falar do Congo estamos
nos referindo à existência 427 línguas, ou seja, 427 etnias.
Acreditamos na vida após a morte, o que quer dizer que os mortos podem
intervir na nossa vida. Acreditamos que eles são a chave nas nossas questões mais
complicadas. Temos chefes que são cordões que nos ligam aos mortos, que
chamamos ancestre. A vida para nós não se faz sozinha. Vivemos sempre em
comunidade. As conexões e relações nos ajudam na expressão a vida.
Quando eu li Marilyn Strathern, tive uma compreensão do que pretendo
pesquisar. Isso porque no capítulo cinco de “O efeito etnográfico” ela fala das ficções
persuasivas da antropologia (Strathern, 2014, p. 159-221) na visão de sua
antropologia sobre o mundo. Ela propõe falar do que está acontecendo no outro a
partir do seu ponto de vista. Quero dizer que ela explicou a Melanésia a partir do seu
ponto de vista e isso me levou a entender que o que ela está falando é segundo a sua
compreensão e quer dizer que não é verdadeiramente o que está acontecendo lá,
mas é como se fosse.
Strathern (2014) propõe que o antropólogo vá ver o que está acontecendo e
cria uma analogia para tentar explicar segundo o seu entendimento. Ela está propondo
um processo experimental, o que quer dizer que não se propõe pensar nada, mas
olhar o outro e fazer o experimento do problema e então ver o que de fato pode gerar
alguma informação e algum conhecimento.
Ao realizar o experimento, Strathern (2014) propõe que não se explique nada,
mas se use as diferenças para quebrar as certezas. É nesta parte que podemos nos
48

encontrar quando estamos em processo investigativo e no caso sobre a identidade da


pessoa afro-brasileira. Eu tinha uma certeza de conhecer quem é esta pessoa, mas
quando usei as diferenças descobri que achar a pessoa afro-brasileira é muito
complexo. Strathern (2014) me leva a entender as diferenças que existem entre a
pessoa Ba-Kongo, afro-brasileira e a pessoa latino-americana.
Assim, quero dizer ela me ajudou a compreender que tenho na minha
discussão três tipos de pessoas, isto é, a pessoa Ba-Kongo (africana), a pessoa afro-
brasileira e a pessoa latino-americana (ocidental). Strathern (2014) está propondo
uma ontologia diferente para operar de maneira social, de forma a usar a
intelectualidade.
Essa posição se fundamenta, quando estou falando de um ponto vista, como
de fazer de conta, de que estou falando disto sim, mas na verdade estou falando disto
do meu ponto de vista. Então nisso crio o efeito do conhecimento a partir da
justaposição como eu enxergo. Strathern (2014) está criando o conhecimento a partir
dos contrastes. Essa posição permite a percepção de um projeto de conhecimento de
caráter idealista, que pensa sobre o pensamento.
Para Strathern (2014), o pensamento é um veículo de significado que
representa o mundo perspectivo. Ela usou a filosofia idealista como um instrumento
para pensar. Isto é, quando vejo um mundo empírico eu construo um mundo de ideia,
que vai me permitir relacioná-lo com o mundo empírico que vi no campo, quer dizer,
falar como se fosse assim.
Strathern (2014) está falando que existe relação de troca de perspectiva do
que é um, como se sem isso, não se conseguiria falar. Ela está propondo uma
antropologia que é uma antropologia como ela enxerga os melanésios. É nesta linha
de pensamento que estou focando a minha discussão. Porque quando vejo a religião
de matriz africana, enquanto religião, isso não importa, mas sim, porque ela é um
agregado de relações. Isto é, quando a religião é o objeto de mediação, poderemos
enxergar na religião de matriz africana esta mediação. Quando quero conhecer a
natureza e essência da pessoa afro-brasileira, o objeto da mediação é a religião e a
sua crença.
Jean Ziegler (1975) mostra isso claramente em sua obra, quando fala sobre
como a crença (religião) permeia e faz mediação na construção da pessoa nagô
Nigeriana. Ziegler (1975) destaca a duplicidade desta pessoa e os elementos que a
49

compõem. Começando no mito da criação até a efetivação da criação da pessoa.


Quando ele diz:

Darei apenas alguns exemplos: durante um nascimento, evento que goza de


atenção particular e do controle dos sacerdotes, a placenta, ao destacar-se
do corpo da mãe, é imediatamente colhida o enterrada num local preparado
do quintal. Por ocasião das crises da infância, ou da adolescência, no
momento da iniciação, por exemplo, é objeto de homenagens precisas. A
placenta enterrada está, portanto, constantemente presente. Ao separar-se
do corpo da mãe recebe o nome de Ipori. (ZIEGLER, 1975).

Nós acreditamos que a placenta é a mãe verdadeira da pessoa quando na


gestação e nascimento. É ela que guarda, que alimenta, que liga a pessoa com os
vivos e os mortos, quando está na barriga, mediante o cordão umbilical.
Acreditamos que quando a criança nasce, na verdade não nasce, pois saímos
e isso acontece somente na permissão da placenta que deixa de viver em favor ao
seu filho. É por isso que ela deve ser enterrada no lugar em que só os mais velhos
conhecerão. E ela é venerada porque quando acontece alguma coisa, principalmente
quando ainda jovem ou adolescente, a mãe deve ser carinhosamente venerada para
que o filho volte ao normal. A placenta é enterrada no lugar apropriado porque
acreditamos que o filho não pode ver o caminho de onde ele veio. É por isso também
que é uma maldição um filho ver a nudez dos seus pais ou de mais velhos, isto é,
pelos caminhos dos deuses.
Na crença e na religião, o indivíduo se encontra e se identifica como ser e
pessoa pertencente a uma etnia. Em Strathern (2014) a pessoa da melanésia, é fractal
e é um objeto no mundo porque existe num conjunto de relações que se repetem.
Para ela, no pensamento melanésio, o que constitui a pessoa é o conjunto das
relações. Diferente do pensamento Ocidental onde a pessoa é o conjunto biológico.
A noção de pessoa para Strathern (2014) é lógica e diferente do que propõe
Mauss (2003), que é amparado na perspectiva sociológica. Para Strathern (2014) a
pessoa nasce com uma teia de relações que se faz e se desfaz ao longo do tempo,
diferente do ocidente que fala que a pessoa nasce isenta das relações e começa a
tecê-las ao longo da vida. Partindo do pressuposto de Strathern (2014) sobre a noção
de pessoa, afirmarei que a pessoa Ba-Kongo é lógica, porque antes de nascer já tem
relações - aliás antes mesmo de a mulher ficar grávida.
Quando acontece o casamento, a coisa mais destacada são os filhos. Estes
já têm projetos formados em cima deles - os casamentos, as profissões e outros. Por
50

exemplo, quando a mulher vai se casar, a família do homem espera que dentro de
três meses ela fique grávida, porque já tem pretendente na espera desta criatura,
antes de nascer, qualquer que seja o sexo.
No outro lado temos a pessoa de Ziegler (1975), que mostra uma pessoa que
eu chamarei religio-antropológica. Partindo das características desta pessoa, segundo
Ziegler, a religião se destaca mais que a cultura, mas ambos fazem parte da
composição desta pessoa. Ele mostra uma pessoa com duas facetas, móvel e imóvel.
A mobilidade enfraquece a pessoa porque os elementos que a compõe estão na base
deste enfraquecimento, daí a existência se torna precária, dolorida e destruidora.
Ziegler (1975, p. 110) diz que:

a existência precária do homem, suas loucuras e paixões, suas guerras, seus


ódios, seus assassinatos podem destruir até ao anonimato a sua
personalidade tal qual era originalmente desejada pelo Orixá criador. Mas no
próprio seio da casa de culto, no local mais secreto, a materialidade imóvel
existe, figura imutável e, no entanto, visível da pessoa ferida, às vezes
destruída pela vida. (ZIEGLER, 1975, p. 110).

Ele mostra que o que é imóvel e material é também imutável. Aquele que é
móvel é vivo e é também socializado, mas também bio-fisio-psicológico e a parte
imóvel o acompanha sempre.
O filho nasce sem nome prévio porque a família vai esperar ele vir ao mundo
para ver que tipos de relações ele trouxe. Zeigler (1975) cita Pierre Verger para
explicar esta questão, quando diz: “os vocábulos Iorubá são verdadeiras locuções
encantatórias, dotadas de poder, capazes de influenciar o futuro”. Porque pode ser
um chefe que está nascendo ou uma forma de encarnação dos antepassados ou a
fonte onde a família vai buscar sempre a força, então tem nome apropriado por tipo
destas pessoas. Por exemplo, no nosso clã a pessoa que recebe o nome de “Wumba”
é a fonte da energia ou força. Se este nome for dado de forma enganada, acontece
que ela nunca vai conseguir criar filhos, porque todos os filhos que ele vai ganhar
depois de alguns dias vão falecer.
A questão da nomenclatura não é simples, pois para nós é o que dá o
significado ao indivíduo e caracteriza a sua individualidade. Revela o seu valor e suas
capacidades futuras. O nome pode definir o futuro do indivíduo e pode significá-lo. E
Zeigler (1975) mostra isso quando diz:
51

A palavra é isso, um bilhete de entrada do edifício cosmogônico, com uma


restrição, porém: o homem não pode aceitar ou recusar a sua identidade, não
é livre para escolher um nome, uma vez que o nome que recebe determina
certas qualidades intrínsecas que lhe são conferidas no nascimento por
determinado Orixá ou por antepassado.

Ao contrário dos iorubas, a obrigatoriedade dos nomes conosco (Ba-Kongo)


se faz nos casos especiais, como o de nascimento dos gêmeos e os seus sucessores.
Os gêmeos nos Ba-Kongo se chamam “Nsimba”, “aquele que nasce primeiro”; “Nzuzi”,
“aquele que vem depois”; “Nlandu”, “aquele que nasce em seguida”; depois “Lukombo”
e por fim “Nsukula”. Estes nomes são obrigatórios, mas existem os nomes obrigatórios
que são circunstanciais. Por exemplo, a criança que nasce enrolada com seu cordão
umbilical se chama “Zinga” ou “Nzinga”.
Existem nomes circunstanciais, que são o contrário da circunstância. Por
exemplo: uma criança que nasce numa família onde as crianças que nasceram antes
dela morreram, também vai receber o nome de morte no lugar de vivo. É uma forma
de enganar os antepassados para que ela viva. Por exemplo, a minha mãe tem o
nome de “Nsona” ou “Nsoni”, que significa “vergonha”. Ela recebeu este nome por
causa da sua mãe. A minha avó tem o nome de “Wumba”, todos os filhos que
nasceram antes da minha mãe morreram então, quando ela ficou grávida da minha
mãe, todo mundo na família sabia que quando ela ia nascer, iria seguir o mesmo
destino como o dos seus irmãos que nasceram antes dela.
Mas aconteceu que quando ela nasceu o meu avô lhe deu o nome de “Nsoni”
ou “Nsona”, este nome veio diretamente nas primeiras horas do nascimento de minha
mãe. Era uma forma de enganar os antepassados. É como se falasse para eles que
é uma vergonha criar uma gravidez que não vai vingar e envergonhar todos aqueles
que estavam esperando a morte da criança. Sucedeu que a minha mãe vingou e todas
as crianças que nasceram depois dela também, mas antes dela a minha avó perdeu
muitos filhos.
Acima de tudo, para o povo Ba-Kongo, a pessoa antes de nascer já tem
relação com os antepassados mortos e tem relação com todo clã que nós chamamos
de família. A gente fala que quando a criança está na barriga ela é da mãe, mas
quando nasce ela é de todo mundo. Isso se fala na parte das obrigações que esta
criança tem em relação de toda família (clã). Como eu tenho obrigações e deveres
diante da minha família (clã). Por exemplo, tenho deveres de contribuir
52

financeiramente a qualquer pessoa de minha família (clã) quando precisar e isso é


obrigatório.
Se por acaso eu tenho possibilidade financeira melhor que os demais, toda a
família vai olhar para mim. É por isso que tem pessoa nas nossas famílias que nasce
com essa capacidade de ter muito dinheiro, para cuidar de toda família. Isto lhe foi
determinado ainda quando ele estava na barriga da sua mãe, pelos anciãos e os
antepassados. Mas no tempo da morte precisa se desfazer destas relações mediante
rituais e procedimentos. Então Strathern (2014) vai me ajudar a contrastar a pessoa
africana (Ba-Kongo), a pessoa afro-brasileira e a pessoa latino-americana (ocidental).

3.7 COMO CHEGUEI AO BRASIL

A minha vinda ao Brasil aconteceu como uma brincadeira. Em Luanda, em


abril de 2004, eu morava junto com os meus sobrinhos, Kikas e Sergio e o meu irmão
mais velho, Benvindo, tinha um salão de beleza e tinha comprado um laptop pelas
mãos do um de seus amigos, Blaise, que o trouxe da África do Sul. Esse laptop ficava
na casa dele sem uso e eu às vezes mexia nele e debochava de meu irmão, dizendo
que tinha comprado só para fazer pose, mas na verdade não sabia nada no que diz
respeito a computador. Meu irmão tinha um amigo da infância, o Reverendo Diambi,
que naquela época trabalhava em Luanda como missionário da Jami e tinha uma
estação telefônica que precisava melhorar a qualidade da comunicação. Para isso
precisava comprar um laptop e ficou sabendo que o meu irmão tinha um e estava
vendendo. Então eles combinaram para que o pastor Diambi viesse ver e testar o
aparelho.
Era uma segunda feira quando o pastor Diambi chegou ao salão de meu
irmão. Estava chuviscando e eu estava em casa. De repente o meu telefone tocou e
era o meu irmão chamando para eu levar o laptop para que o pastor Diambi o visse e
o testasse. Quando cheguei, ao ligar o laptop acabou energia e a bateria estava sem
carga. Nisso o Pastor Diambi propôs para que eu fosse junto com ele até sua moradia
no bairro Casequele porque lá era difícil faltar energia, já que fica perto do aeroporto.
No caminho para Casequele nós estávamos conversando quando um jovem
nos viu e cumprimentou o pastor. Nós dois respondemos, mas na verdade o rapaz
estava me cumprimentando e o pastor Diambi, achou que era ele que estava sendo
cumprimentado, porque até então ele não sabia que eu também era pastor. Então foi
53

uma descoberta da parte dele que estava junto com um jovem pastor. Depois desse
incidente ele começou a me fazer perguntas sobre o meu trabalho. Mesmo sendo
pastor, eu precisava me virar até porque em Luanda eu não tinha igreja que poderia
me remunerar para que eu conseguisse arcar com as minhas despesas.
Eu fazia comércio na compra de produtos de beleza na Namíbia e na África
do Sul e os vendia em Luanda. Daí expliquei tudo o que eu fazia além de pastorear.
Também lhe falei da missão que fiz no Congo Democrático. No final da conversa ele
me fez a proposta de eu o acompanhar em uma viagem ao Brasil. Naquela hora eu
não achei que ele estava falando sério, recusei diretamente até por que no dia
seguinte eu ia viajar para Namíbia comprar mercadorias, mas ele reforçou a demanda
e me disse que em 1997 ele esteve em Kinshasa para implantar a Igreja Batista
Nacional. De fato, ele trabalhou durante um ano junto com alguns pastores, mas
perdeu essa oportunidade por que teve que sair depressa, pois em 1998 a guerra
tinha chegado até a capital. Na verdade, eu tinha ouvido falar dessa igreja no Congo
e conhecia o pastor que tinha ficado como responsável.
Então o pastor Diambi me disse que eu podia viajar, mas reforçou que o
convite estava de pé. Fomos até a casa de seu amigo, onde testamos o laptop e
depois voltamos e nos despedimos. No dia seguinte eu viajei para Namíbia. Passaram
seis meses e eu havia esquecido do pastor Diambi e estava me preparando para viajar
ao Canadá, pois tinha ressuscitado esse sonho. Nesse cenário, recebo a visita do
pastor Diambi junto com seu amigo Zico, que vieram para falar sobre a proposta que
tinha me feito seis meses atrás. Claro que eu recusei porque já estava planejando
minha viajem para o Canadá e não passava por minha cabeça o Brasil.
Mas aconteceu que seu amigo Zico me persuadiu, dizendo que estava no
Brasil há onze anos, e que os brasileiros eram super acolhedores, que ajudavam a
qualquer um que quisesse emergir na vida. Ele disse que recebeu muita ajuda e
conseguiu se organizar na vida, de forma que os filhos e a esposa têm lugar porque
comprou uma casa e eles estão trabalhando e tem uma forte comunidade de
angolanos que falam Lingala, francês e português e além do mais sempre você
contará com a ajuda do pastor Diambi. Mas o golpe fatal que me fez pensar foi a
pergunta que me fez, ao perguntar se no Canadá eu teria uma família para me acolher.
“Você conhece alguém?” essas duas perguntas me fizeram pensar muito e pedi para
que me desse um tempo para refletir. Ele me disse para pensar rápido, porque eu não
tinha muito tempo.
54

No começo de 2005 o pastor Diambi voltou a me procurar e me informou que


se eu aceitasse o seu pedido iríamos juntos primeiramente à África do Sul para
implantar uma Igreja Batista Nacional, para depois seguirmos juntos ao Brasil. Nesse
intervalo de tempo eu já havia conversado com os meus familiares e tinha recebido o
apoio deles e, assim, tive que aceitar a proposta do pastor Diambi. Com essa
proposta, eu vislumbrei meu crescimento no ministério, bem como percebi a
possibilidade de crescimento como pessoa e crescimento financeiro, além de uma
oportunidade de dar uma vida melhor para os meus dependentes, além de realizar o
sonho de continuar meus estudos.
Esse era o desafio que eu carregava quando planejava a minha viagem para
o Canadá, porque eu olhava para o passado e via tudo que perdi ao me engajar na
história de ser agente duplo e de vislumbrar um crescimento na política. Eu estava
determinado a mudar radicalmente a minha vida, esquecendo o passado e estava
disposto a encarar o futuro que se anunciava promissor, mas longe da minha terra.
No fundo do meu coração jurava que um dia vou voltar triunfante como presidente da
república, porque esse sonho nunca morreu de dentro de mim.
Nisto eu tinha que providenciar os documentos para a viagem, tirei o
passaporte e fui pedir visto para entrar no Brasil e na África do Sul. Depois de
conseguir o visto fomos para a África do Sul e lá fomos recebidos por uma irmã de
nome Carolina, mas o destino era a casa do pastor Mayotila e Mongali, porque eram
os encarregados de nos receber e nos apresentar ao grupo que já nos esperava para
começar o trabalho. Assim, fomos apresentados ao pastor Mavungu que morava no
centro do Capetown na rua Long Street e ele nos apresentou à sua esposa e aos seus
filhos. Trabalhamos na África do sul do mês do julho até setembro, quando a junta de
missão decidiu nos chamar para o Brasil.
Cheguei ao Brasil no dia 27 de setembro 2005, pelo voo da VARIG às 19h.
Primeiro em São Paulo, depois seguimos para Belo horizonte, onde fica a sede da
Jami (junta administrativa de missão) da Igreja Batista Nacional. Lá fiquei por seis
meses fazendo formação e estágio junto com o povo Marubu no Amazonas. Neste
espaço de tempo o meu visto estava prestes a vencer e precisava voltar para Angola.
Mas na sede da missão me recomendarem voltar ao Congo, porque eles não sabiam
de nada da minha vida e eu também borbulhava de vontade de voltar porque já tinha
passado quase quatro anos desde que eu tinha saído do país. De tudo que eu aprendi
55

na minha primeira viagem ao Brasil, organizei muitas ideias e eu decidi que voltaria,
mas para trabalhar de outra forma, para conseguir o que eu almejava.

3.8 MEU RETORNO PARA A ÁFRICA

Fui encarregado pela missão de implantar a Igreja Batista Nacional no Congo


Democrático, mas no Brasil ninguém sabia de tudo que eu tinha vivido lá na África.
Como eu já tinha uma nova identidade e era grande o desejo de falar com os meus
sobre a experiência que vivi no Brasil, fortalecia a ideia de fundar uma ONG e, assim,
aceitei a missão mesmo sabendo que seria praticamente impossível e correria
grandes riscos pessoais.
Na minha volta para Angola recebi algumas novidades do Congo Democrático
e como tinha uma nova identidade, ninguém poderia me reconhecer. Com essas
certezas decidi voltar para o Congo Democrático e começar minha ONG. Voltei e
montei a minha ONG que se chama CIDEC “Coordination des Initiatives pour le
Devellopement Communautaire” e fica em Kinshasa. Ela tem como objetivo recuperar
crianças de rua acusadas de feitiçaria e alfabetizá-las. Essa ONG tem também o
propósito de acolher as jovens que tiveram uma gravidez precoce e, nesse sentido,
temos o propósito de lhes dar formação em corte e costura e estética (na parte de
trançar, pentear, maquiar e cortar cabelo) e as alfabetizar. Aos jovens meninos dar
informática básica, curso de línguas e treino para jogar futebol. Trabalhei ali até 2009,
quando recomeçaram os problemas e não esperei o clima fechar para o meu lado. Fiz
diligência de sair rápido e retornei para Angola, mas não fiquei muito tempo por causa
do medo e voltei para o Brasil no mês de junho e fiquei até julho de 2010.
Quando cheguei não queria mais voltar, mas tudo que eu abandonei falou
muito mais alto e depois de um ano, decidi voltar para Angola para ficar mais perto e
conseguir controlar, nem que fosse de longe o trabalho, mas não consegui aguentar
e decidi voltar ao Congo. Fui e cheguei no mês de setembro de 2010. Fiquei um tempo
no anonimato, mas na velocidade que iam as coisas fui obrigado de sair do meu
esconderijo.
Precisava ir ao interior do país para me encontrar com uma autoridade na
cidade de Matadi, na província do Baixo Congo. A partir desta viagem tudo se tornou
mais difícil para mim, pois fiquei preso no interior do país porque sabiam que eu estava
56

de volta. Fiquei escondido e estava procurando o caminho para sair e consegui sair
no dia 23/12/2010. Novamente voltei para Angola, Luanda.
Nove meses depois, ou seja, em setembro de 2011, tentei voltar porque quase
todos os meus documentos ficaram, mas não consegui, porque era o ano eleitoral e
esperei até o fim das eleições. Como tinha confusão porque os opositores não
reconheceram o resultado, aproveitei e entrei e no começo era para buscar os meus
documentos, mas fiquei mais tempo do que o previsto, pois ocorreram muitas coisas,
dentre elas que fiquei gravemente doente e depois tive que fugir embaixo de uma
grande chuva para atravessar o rio Congo, para então me refugiar no outro Congo em
Brazza-Ville, que é a capital da República Popular do Congo. Até que me recuperei e
enfim voltei para o Brasil, em agosto 2012.
57

4 COMO SEGUIU A MOTIVAÇÃO E O TEMA DA PESQUISA

A relevância e importância dessa pesquisa se ampara no debate referente a


como se constituiu no Brasil a concepção do feiticeiro, enquanto personagem de
cunho religioso caracterizado como “ser a ser temido”. Essa questão implica na
compreensão de como se constitui um povo e como podemos pela via acadêmica
penetrar na forma de pensar sua crença numa perspectiva metafísica, a fim de
conceber o que o caracteriza como ser ontológico, cultural e social, o que é
fundamental para que se tenha uma compreensão antropológica de sua função social
e política.
No Brasil existe a crença amparada em uma representação social do que vem
a ser um afrodescendente, o que não corresponde a um saber sistematizado
decorrente de conhecimento elaborado, mas fundamentalmente de uma construção
social amparada em um contexto colonialista e escravocrata. Para alcançar um
significado elaborado de ser afrodescendente é necessário um mergulho em sua
forma metafisica de pensamento, por meio de um estudo referente às suas formas de
pensamento e hábitos. Esse mergulho pode ser uma forma a ser adotada nesta
pesquisa para contrapor o que se caracteriza preconceituosamente, com relação à
feitiçaria e aos cultos afro-brasileiros, como sendo coisa “do diabo ou que faz mal”.
Abordar o lugar da feitiçaria e a noção da pessoa dentro dos cultos afro-
brasileiros é um assunto muito pertinente, devido à complexidade deste. Como diz
Porto (2015) a feitiçaria faz parte de um “universo complexo que não se restringe como
em geral se supõe, a perspectivas unificadas do candomblé e da umbanda.” Esta
complexidade nos leva a contar a partir da nossa perspectiva, como sendo africano
do povo Bantu.
Como africano, pertencendo ao povo bantu, a minha perspectiva sobre o
assunto é que pelos bantus a feitiçaria é uma coisa multifacetária, porque ao mesmo
tempo pode servir como meio para proteção, resolução de problemas e cuidado, mas
pode se tornar uma arma poderosa de destruição, de frenagem e alienação da
população. Nesse sentido cabe destacar que também a feitiçaria leva muitas pessoas
a temê-la, pelo fato de se ter visto muitas famílias destruídas por causa da feitiçaria.
No Congo Democrático muitas crianças são abandonadas nas ruas sob o
pretexto de que são feiticeiros, principalmente nas grandes cidades. Nas vilas e
aldeias a feitiçaria é vista como um algo benéfico, na medida em que é um importante
58

agente solucionador de problemas, para os quais os povos não têm solução e isso
inibe a sua força destruidora, colocando limites entre as atitudes dos integrantes de
cada povo. Vendo toda essa situação referente à feitiçaria, mesmo junto aos povos
Bantu, percebe-se a existência de preconceito e medo, principalmente na sua face de
destruição.
Neste contexto, como pesquisador originário e criado até a idade adulta
segundo preceitos mediados por cultura originária africana e atualmente caracterizado
como cristão evangélico, tenho claro que minha experiência com a feitiçaria se
manifeste como algo conturbado. Essa sensação decorre do fato de que na África eu
convivi em meio social, cultural e até familiar com pessoas que convivem e admitem
as práticas mediadas pela pessoa do feiticeiro. Decorrente destas práticas,
convivemos com relatos referentes ao que ocorre com pessoas que são alvo,
principalmente no lado destruidor da feitiçaria. Essas evidências geram em mim um
sentimento de repúdio, preconceito e de certa forma medo de me misturar e me
aproximar de suas práticas.
Vale ressaltar que este dilema alcança a dimensão familiar de forma direta,
pois meu Pai é chefe do clã e, portanto, é o feiticeiro junto a quem vivencio durante
todos os dias. O fluxo de pessoas integrantes do clã, que se caracteriza como uma
família ampliada, as quais recorrem à sua sabedoria e forças, para resolver problemas
frente aos quais se sentem enfraquecidos ou com dificuldade de superação.
Esta situação remete a Peter Fry (1998, p. 445) ao dizer que “o autor continua
afirmando que o feitiço é empregado para resolver questões de amor, de política, de
negócios e, sobretudo, de doença”. Nesta declaração Fry ressalta a face benéfica da
feitiçaria para os integrantes do povo Bantu, mas ocorrem muitas situações em que
as pessoas e o próprio feiticeiro vivenciam sentimento de decepção e frustração
quando não conseguem solucionar os problemas.
Essas posições geram em mim certo preconceito e até repúdio frente a estas
práticas, o que atribuo como decorrência dos ensinamentos recebidos pela e na Igreja,
a qual atribui que todas essas práticas são vinculadas e pertencente a satanás. Assim,
a diabolização da feitiçaria leva muitos cristãos a terem medo, desconfiança e
preconceito com relação ao que é referenciado como africano.
Ao chegar ao Brasil, percebi que aqui também se consubstanciava a
diabolização da feitiçaria, por meio do preconceito e do medo no meio evangélico e
na população comum. Como diz Nina Rodrigues (2006) no animismo fetichista negros
59

Baianos (2006, p. 10) pelo qual se evidenciou e se constituiu como processo


decorrente da ação dos senhores mantenedores do processo de escravidão, que
impediam qualquer valorização do ser e do saber das pessoas escravizadas.

As notícias e os relatos nos processos criminais assim como os romances


desse período se fixavam naquilo que a lei proibia, ou seja, a feitiçaria e o
uso de poderes sobrenaturais para praticar o mal. A magia e a feitiçaria
pareciam tanto na crônica jornalística quanto nos romances,
envergonhadamente, e como práticas que deviam ser extirpadas da
sociedade. (RODRIGUES, 2006, p. 10).

Esta declaração demostra claramente o medo e o preconceito sobre este


tema, junto à cosmovisão do povo brasileiro em geral e nas igrejas evangélicas em
particular. E isso não é diferente junto aos grupos sociais mais urbanizados com os
quais convivi enquanto estava no continente africano.
Quando eu saí da África, vindo ao Brasil, pensava encontrar abordagens
diferentes, principalmente no que diz respeito à feitiçaria, mas logo constatei meu
engano, o qual se transformou num desejo e num propósito de investigar a perspectiva
antropológica para estudar e compreender a fundo esse assunto e contribuir para o
entendimento que possa amenizar o preconceito e o medo.
Este é um dos motivos que, de certa forma, justificam o interesse pela
antropologia, para que suas regras metodológicas e sua forma de fazer ciência me
instrumentalize para contribuir com o debate com a ciência da religião ou a filosofia.
Com essa posição, pretendo atender também ao interesse de ampliar os argumentos
antropológicos para debater com os muito e conhecidos argumentos religiosos e
filosóficos, junto aos conhecimentos vigentes na academia africana.
Uma decorrência prática desse estudo junto aos povos originários africanos é
o de lidar com o que promove lutas e costumes que dizimam famílias e promovem o
abandono de crianças decorrentes de receios e medos advindos da compreensão e
da responsabilidade assumida frente aos preceitos da feitiçaria.
Com essa mobilização acadêmica e frente à leitura de textos que tratam a
feitiçaria nos cultos afro-brasileiros e considerando minha experiência no meio dos
cristãos evangélicos, no confronto com os cultos afro-brasileiros, tenho ampliada a
motivação para estudar o porquê de a feitiçaria poder ser ao mesmo tempo boa e
temida. Assim busco, entre outros aspectos, a compreensão linguística da feitiçaria
junto aos integrantes das igrejas evangélicas e para tal me proponho a estudar e
60

debate-se em duas formas: primeiramente por ser uma pessoa vindo de pais lusófono,
mas que viveu a maior parte da vida num pais francófono, considerando a
especificidade deste tema nos idiomas português e francês, como possibilidade de
compreender o significado da feitiçaria junto às pessoas que integram os cultos afro-
brasileiros e as igrejas evangélicas. Como segunda proposta de estudo e debate,
busco a compreensão de como a feitiçaria ganhou a conotação de ser desejada e
temida, tanto no Brasil como em centros urbanizados do continente africano
subsaariano.
Assim, esta pesquisa pretende investigar e compreender a origem dessa
posição, para possibilitar o entendimento que desmistifique os pré-conceitos que
envolvem e desvalorizam os cultos afrodescendentes ou afro-brasileiros.
É importante esclarecer que não existe uma religião organizada na África,
como aqui no Brasil, que trate da feitiçaria e dos poderes metafísicos de um líder, pelo
menos até a chegada dos colonizadores. Tanto no continente americano como no
continente africano subsaariano, junto aos povos originários existia uma crença, uma
fé e uma sabedoria relacionada ao subjetivo e ao transcendente, de forma bem distinta
de como ficaram esses saberes e essas práticas depois da interferência dos
colonizadores europeus e do processo de desaterramento e escravidão de pessoas
originárias que foram trazidas do continente africano.
No livro “Dinâmica da fé” Tillich (1957, p. 12) diz “que não existe fé sem
conteúdo que a preencha, pois, a fé sempre se dirige a algo determinado”. Partindo
dessa premissa teórica, entende-se que o que havia na África pré-colonial não era um
processo religioso, mas uma forma de viver e de pensar. Essa posição se referenda
na posição de que o que preenche a fé africana é a cultura, os costumes, a sabedoria,
os mitos, os contos, a dança, a música, a linguagem e a crença.
Ao olhar esse cenário contextual conforme a lógica das religiões, nos
defrontamos com a lei escrita, o ritual estabelecido, o templo construído e o sacerdócio
organizado como meios e lugares próprios para reger os seus ritos e as crenças, o
que se confronta com o que ocorre junto aos povos originários na África subsaariana
e em especial junto ao povo Bantu. No povo Bantu a posição frente ao sagrado e ao
religioso é inversa, pois não existe lei escrita, nem sacerdócio organizado, nem templo
erguido, nem ritual estabelecido, sendo que tudo se faz com base num contexto
cultural e de cosmovisão em torno do qual se fundamenta a base da fé e da crença.
61

Dessa forma a religião africana não é uma coisa singular, mas uma coisa
comum que se faz dentro do clã, nas comunidades da mesma família. Desta forma
uma pessoa sozinha não tem como construir ou constituir sua própria religião ou sua
crença, pois ela é coletiva e participativa, além de ancestral e histórica. Se uma pessoa
é arrancada da sua comunidade, ela fica desprovida de todos os elementos que
podem preencher a sua fé e a sua forma de pensar e viver.
As pessoas escravizadas que constituíam os povos afrodescendentes no
Brasil foram arrancadas de seus ambientes, sendo trazidas à força como mercadorias,
com crueldade e com cuidados para que não conseguissem repetir aqui a organização
social a que estavam habituados. Assim, aqui eram separados e lançados nas áreas
de trabalho de forma bruta e calculada, para que sua cultura, crença, pensamento e
hábito, tivessem um fim e não existisse a possibilidade de continuidade.
Chegando numa terra estranha onde não tinham nenhum elemento primário
para que desenvolvessem o seu pensamento, tiveram parte significativa de sua
identidade aviltada. A vida passava então a ser decorrente da vivência caracterizada
por um trabalho inumano. Depararam-se com uma terra sem sua cultura, nem a sua
forma de pensar e distante da sabedoria com a qual se sentiam inseridos nos
ambientes. Restou-lhes apenas o que estava com eles, ou seja, seus valores místicos
compreendidos por sua fé e crença, como diz Agemir Carvalho (2012, p. 158), “o negro
não podia se defender materialmente contra um branco que detinha todos os direitos;
assim, ele se refugiava nos valores místicos, os únicos que o homem branco não lhe
podia arrebatar”.
Nas senzalas. junto a outros africanos, mas de diferentes etnias, seus saberes
se organizaram num sincretismo que viabilizasse o desenvolvimento de sua crença e
sua fé. Cabe destacar que a forma africana de crença está ligada na sua forma de
construção sociológica, assim, é responsabilidade de cada família desenvolver a sua
crença. Deve-se entender que quando se fala da família, na África e em especial junto
ao povo Bantu, se fala do clã. Misturados na senzala não tinham como desenvolver
sua religiosidade originária.
Atualmente o que existe no Brasil são as consequências desta brutalidade
causada pelos senhores dos escravos e colonizadores. Estes possivelmente se
preocuparam em conhecer a forma sociológica e antropológica de construção familiar
do povo trazido para ser escravizado, para impedir a formação de núcleos de
resistência. Esse pode ter sido um dos motivos para a compreensão da atual forma
62

metafísica do pensamento afrodescendente, o que leva muitas pessoas a caracterizar


preconceituosamente os cultos afro-brasileiros.

4.1 MINHA ORIGEM E A SINTONIA COM A PESQUISA

Meu nome é Titi Joao Lubengo, natural de Uige na região do Maquela do


Zombo, Angola, nascido em 26 de julho de 1971. Com dois anos de idade migrei para
a República Democrática do Congo, em Kinshasa capital. Sou de família católica e
aos sete anos comecei a frequentar a igreja católica onde minha mãe era mama
legionária. Aos 11 anos fugi da igreja para não ser batizado e comecei a frequentar a
igreja batista do Rio Congo até aos 14 anos, quando me converti na Igreja Evangélica
Pentecostal Assembleia de Deus, situada em Kinshasa capital da República
Democrática do Congo. Depois de frequentar três anos de escola bíblica fui batizado
e terminei o ensino médio, onde estudei a seção científica com opção em matemática
e física no instituto Bumba Moasso em Kinshasa, bairro Lemba.
Depois do meu batismo e minha formatura em matemática e física, atuei como
professor de matemática durante quatro anos no mesmo instituto onde me formei. Em
seguida fui trabalhar como administrador gerente do grupo alimentar Cap Doudou.
Essa empresa ficava em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, no
bairro Bumbu. Então fui contratado como vendedor na empresa Sameer Electronique,
situada em Kinshasa. Essa foi uma passagem muito rápida, pois fiquei apenas três
meses e sai para fazer mais duas formações: em farmacologia tropical e em
eletricidade básica, também no instituto Bumba Moasso.
Depois ingressei na Igreja Evangélica Philadelphie em Kinshasa, bairro
Selembao, onde fui consagrado como pastor em 1998 e depois enviado como
missionário ao interior do país, em 1999, para a província de Bandundu, onde fiquei
durante três anos. Durante este tempo pude ver com meus próprios olhos a miséria
do povo no interior do país e decidi ingressar na política onde o meu pai já atuava por
toda sua vida. Com essa base tive o pensamento de começar a minha carreira não
diretamente como político, mas como filantropo e queria fundar uma ONG.
Os meios não me permitiram, mas decidi seguir na política onde fui preso três
vezes por causa das minhas ideias. Tudo piorou quando o meu irmão caçula entrou
numa confusão dos estudantes de ISTA (Institut Superieur de Technique Aplique,
Kinshasa Gombe) e como meu pai e eu já tínhamos problemas com as autoridades
63

do país, fomos cassados, principalmente em função de minhas aspirações de me


tornar presidente da República. Nisto decidi voltar para Angola, onde cheguei à minha
província natal Uige, na cidade de Maquela do Zombo em setembro 2002, depois de
alguns meses segui para Luanda capital de Angola onde continuei a trabalhar na Igreja
Batista Nacional.
Apresento a seguir alguns mapas que possam orientar a compreensão desse
processo de deslocamento entre diferentes regiões africanas subsaarianas,
evidenciando assim meu processo de busca que se mantém vivo e ativo até a
atualidade e, nesse sentido, cabe destacar que participar desse programa de
mestrado implica em importante etapa formativa a que me submeto. A Figura 4 mostra
o mapa do continente africano para orientação geral.

FIGURA 4 – MAPA DO CONTINENTE AFRICANO


64

FIGURA 5 – MAPA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO

Na Figura 5 temos a organização geográfica da República Democrática do


Congo em províncias e podemos verificar que a cidade Kinshasa se localiza na região
que liga meu país ao atlântico. Na Figura 6 apresento a organização geográfica de
Angola, que é o país vizinho ao Congo, no qual desenvolvi ações que caracterizam
meu fazer político e profissional.

FIGURA 6 – MAPA DE ANGOLA

No ano de 2004 fui enviado para a África do Sul para fazer missão, mas como
estava na escola para refazer o ensino médio para estar nos padrões do ensino
angolano, fui depois de terminar o meu curso. Ao me deslocar para a África do Sul,
para guardar o anonimato com medo de retaliação, já que o Congo faz fronteira com
Angola, tive que mudar a minha identidade: o nome do pai, da mãe e o meu nome. Lá
fiquei seis meses na cidade do Cabo, no bairro do Metland, depois segui para o Brasil
em Belo Horizonte, Minas Gerais para atuar junto à junta administrativa de missão da
convenção batista nacional. No final de 2005 e em 2006, antes de voltar para Angola
65

para encerar o meu curso, acompanhei missionários nas ações junto ao povo Marubu,
AM e nessa atividade, tive desperto em mim o desejo e a necessidade de estudar
antropologia.

FIGURA 7 – MAPA DA ÁFRICA DO SUL

4.1.1 Minha cosmovisão original como identidade étnica

Eu sou da tribo Kongo, que vem do antigo reino do Kongo, sou do Clã Nanga
na Kongo, da etnia Ba-kongo, que predomina na parte norte de Angola e na parte sul
da República Democrática do Congo, na África e sou da raça Ba-Kongo. Nós Ba-
Kongos acreditamos que a Força é a alma e a vida da Pessoa e a Resistência é o
espírito como movimento.
66

FIGURA 8 – DIVISÃO GEOGRÁFICA DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO EM DOIS


MOMENTOS DISTINTOS

A FIGURA 8 mostra em azul a organização da República Democrática do


Congo em onze províncias e em bege a organização atual, com vinte e seis províncias.
A seguir apresento mapa de Angola com suas províncias numeradas, para apontar
que tenho como local originário a região do Congo representada pelo número 1 e
concomitantemente tenho a região de número 17 de Angola, isto pelo fato de a
organização tribal não obedecer à organização imposta pela colonização eurocêntrica.

FIGURA 9 – DIVISÃO GEOGRÁFICA DE ANGOLA

A FIGURA 9 mostra o mapa de Angola. A província dezessete é a do Uige, a


minha província.
67

Na perspectiva da Cosmovisão na qual formei minha identidade como pessoa


africana, temos a crença na tríade de que a Vida, a Fecundidade e a Relação
Interpessoal apresentam-se como três aspectos característicos da nossa cosmovisão,
compreendida como maneira de ser do pensamento original do nosso povo tradicional
Ba-Kongo Africano.
Nessa perspectiva, a vida se manifesta como força vital em complexa
interação de materialidade e imaterialidade. A fecundidade se caracteriza como a
garantia da continuidade da existência futura dos genitores e a relação interpessoal
possibilita a organização social que completa esta tríade de relações dependentes e
circunstanciais.
Temos como base de nossa cosmovisão a feitiçaria (bonkoko), de maneira
que ela é o que dá resposta e compreensão aos fatos e ocorrências que não têm
resposta e são inesperados, como as fatalidades. Essas respostas chegam com base
na sensibilidade e no preparo e interpretação de rituais e liturgias conhecidas como
religião.
Neste contexto, a feitiçaria (bonkoko) se caracteriza como um largo espectro
de significados, que vão desde atos de bondade e cura até atos que geram dores e
mutilações. Dessa forma, a feitiçaria para nós, integrantes dos povos Ba-Kongos, se
caracteriza como elemento principal e de referência, ligado ao poder vigente na
comunidade. A feitiçaria dá o significado e a interpretação na vida entre Ba-Kongos.
Ela é o núcleo que dá o poder na organização da sociedade.

4.2 MINHA PROCURA PELA ANTROPOLOGIA

Em 2012 começou a minha procura pelo curso de graduação em antropologia,


mas não encontrei e fui aconselhado a fazer a teologia. Em novembro do mesmo ano
fiz vestibular na faculdade evangélica do Paraná (FEPAR), entrei e comecei a estudar
no mês de fevereiro de 2013. Lá tivemos as aulas das disciplinas de sociologia e
antropologia da religião e de psicologia e espiritualidade, junto com o professor Agemir
Machado e o professor Ocir Andreata. Esses dois professores me incentivaram a
buscar a antropologia na Universidade Federal do Paraná. Mas como já tinha
começado o curso de teologia, não tinha como voltar atrás. Entretanto, o professor
Ocir me informou que poderia tentar o mestrado depois de terminar a graduação.
68

Quando cheguei ao oitavo período comecei a pesquisar na internet e entrei


no site da PPGA para ver como isso funcionava e como poderia entrar em contato
com os professores. Escrevi para alguns professores listados no site e a professora
Liliana Porto me respondeu e me convidou para uma entrevista no início do ano de
2017. Mostrei para ela o que eu tinha como preocupação, com destaque para minhas
questões e dúvidas e ela me aconselhou a fazer matéria isolada como ouvinte e me
recomendou a professora Andrea, na disciplina de Antropologia e Dinâmicas da
cultura. Tenho a lembrança de ter sido muito bem recebido e nessa ocasião ela me
recomendou também para a professora Laura, que ministrava a disciplina de
Antropologia Francesa, na qual também fui bem acolhido e em decorrência participei
dessas duas disciplinas como ouvinte. A professora Liliana me recomendou para eu
ter ideia do que tratava a antropologia. Confesso que a professora Andrea me fez
amar mais a antropologia, a partir de sua forma de ensinar e de conduzir os debates.
Passei um semestre daquele ano, justamente o tempo para eu concluir o
último semestre na teologia, para depois ingressar no mestrado. No entanto não deixei
de procurar a professora Liliana, pois eu via nela a posição acadêmica e intelectual
que eu necessitava para retomar minhas investidas no campo da antropologia e assim
aproveitar ao máximo os seus conselhos. Mas chegou um momento que eu levei um
baque muito grande, quando apresentei meu pré-projeto para ingressar no mestrado
e ela me falou que “seria melhor que eu procurasse uma universidade onde há ciência
cristã ou filosofia por que não tinha como eu entrar na antropologia”. Aquela
observação foi uma motivação a mais, saí daquela conversa determinado a entrar no
mestrado em antropologia.
Dizia a mim mesmo que não conheço nada de antropologia, mas vou estudar
e procurar ajuda para conseguir. Tenho um amigo que é professor na Universidade
Federal do Paraná em Matinhos, que se chama Ernesto Jacob Keim. Eu o procurei
para pedir conselho e ajuda e ele me incentivou e me disse que se eu achasse melhor
poderia fazer filosofia. Até fui tentado, mas na minha cabeça martelava as palavras
da professora Liliana e me via como um inútil se desististe de meu sonho de estudar
antropologia. Pedi ajuda ao professor Jacob porque me sentia na obrigação de entrar
neste curso. Ele se disponibilizou e me ajudou ao corrigir as minhas escritas. Aliás,
ele é como um pai para mim aqui no Brasil, porque ele acredita e me apoia e sempre
está disponível quando eu preciso e creio que a posição dele é fundamental para eu
estar na fase de concluir esta etapa.
69

Recebi também incentivo da professora Andrea ao me dizer que “o seu tema


rende mais, só você focar nisso e vai dar tudo certo” e me orientou a procurar os cultos
de matriz africana para entender como isso funciona aqui no Brasil. Lembro-me da
última conversa com a professora Liliana, pois ela tinha escrito alguns tópicos que eu
deveria escrever. Ela escreveu e disse-me que deveria procurar entender como a
feitiçaria é conceituada aqui no Brasil e comparar com como é conceituada na África,
principalmente entre o povo Ba-Kongo. Falou também de como este conceito é
controverso aqui no Brasil e disse para eu falar de mim como Ba-Kongo e da minha
visão e concepção como evangélico sobre a feitiçaria.
Isso foi o marco para mim, porque não sei se ela sabia, mas naquela hora
estava a me dar a chave do sucesso, porque foi sobre aquele rascunho que ela fez
que eu desenvolvi o atual pré-projeto.

4.3 O BRASIL QUE EU NÃO CONHECIA

Quando cheguei pela primeira vez ao Brasil, fiquei impressionado com o fato
de as pessoas falarem muito de Deus. Isso me fez perguntar “que país é esse?”. Que
seja criança ou adulto, independentemente da sua profissão, se falava de Deus. Eu
falei “cheguei ao paraíso” e isto me chamou atenção para saber: quem é esse povo?
Qual é a sua religião? É uma questão de hábito ou costume? É a sua cultura ou um
jargão? Estas perguntas me levaram a ter a curiosidade de compreender melhor o
país ao qual tinha acabado de chegar.
Ao buscar o significado, entendi que o povo brasileiro é muito religioso, então
de fato falar de Deus não é um chavão, mas vem da sua cultura e na sua história. Na
sociedade do povo autóctone do Brasil existe uma assimetria entre o poder político e
o religioso, que é também científico (medicina tradicional). Na outra parte tem povo
que veio da África, que é extremamente religioso, onde o poder político se confundia
com o poder religioso místico e a medicina ancestral. E tem o povo que veio da
Europa, encabeçado pelos religiosos católicos, como os jesuítas. Então essa mistura
pode ter dado origem ao conceito religioso que envolve muitos brasileiros.
Mas essa religiosidade a meu ver não é científica, quer dizer, não é racional,
mas é uma religiosidade sentimental, que depende do humor e sentimento de cada
um. É uma linguagem religiosa decorrente de um processo colonialista que também
tem base numa lógica de matriz doutrinária católica, amparada no pecado e na virtude.
70

Por isso se vê o antropomorfismo de Deus no meio do povo. O brasileiro está sempre


em busca de um herói, um ídolo, uma sorte de guru, como se vê na África. Deus é
personificado numa pessoa e essa pessoa vira um herói, um mito, um super-homem,
mesmo que este tenha feito somente o que deveria fazer, ou seja, apenas suas
obrigações. Isso vem de dentro da concepção do povo, por causa de suas raízes.
A mistura das religiões e crenças no Brasil resultou nesta questão. Hoje em
dia estamos vivendo uma forma de divisão na sociedade brasileira. De todos os lados
temos o fato de seus líderes serem deificados e estarem acima de qualquer suspeita.
Isso tudo pode ser o resultado dessa questão da religiosidade não racional. É uma
coisa muito perigosa, porque o sentimento ou humor muda repentinamente,
dependendo dos acontecimentos. Isso também pode ser a razão de muitos conflitos
sociais, uma vez que a mesma pessoa que fala muito de Deus é capaz de atingir os
outros, ferindo-os ou até matando-os.
Roger Bastide (1960), mostra a importância da religião afro-brasileira e as
suas características. Segundo ele a religião ocupava o lugar de destaque nas
insurreições, mas era uma religião sincrética, uma mistura entre o catolicismo e a
crença ancestral africana. Assim, as crenças africanas são representativas, quer dizer,
têm muitas imagens, de forma que ao entrar em contato com o catolicismo que
também é uma religião representativa, eles não tiveram dificuldade para incorporar
sua crença. Tiveram somente o trabalho de trocar os nomes dos seus deuses com os
santos católicos e assim enganar os tiranos que os escravizavam.
Renato Ortiz (1991, p. 29) vai no mesmo sentido quando fala que “no Rio de
janeiro, este culto chega a se organizar em seita, muito embora o processo de
sincretismo já se encontrasse em fase avançada”. Esta mistura está na base da
formação não somente de uma nova religião, mas da pessoa afro-brasileira como uma
pessoa que tem como elemento central a sua crença, mesmo sendo sincrética.
Bastide (1960, p. 130) busca entender como os escravos fugitivos, nos
quilombos, conseguiram reinterpretar seus valores e suas crenças no contexto do
sincretismo que aconteceu, entre as suas crenças, do catolicismo e do islã, quando
falou: “os Ba-Kongos, que tinham uma mitologia relativamente pobre, identificaram
seus espíritos com os santos católicos, e as imagens descobertas pelos
conquistadores eram, portanto, representações desses espíritos adorados por eles
[...]”. Rocha Pitta está, pois, mais próximo da verdade quando diz que “quilombolas
conservaram do catolicismo o sinal da cruz e certas orações mal repetidas, que
71

misturavam as palavras e a cerimônias das suas religiões nativas, ou inventadas por


eles”.
Nessa busca por entender como as pessoas escravizadas conseguiram
reinterpretar suas crenças, Bastide (1960) destaca o clima de resistência cultural
como o elemento que ajuda na reinterpretação dos fenômenos religiosos africanos da
época colonial. Mas fala também da anormalidade deste elemento. Bastide (1960, p.
140) diz que “todos os fenômenos religiosos da época colonial, ou quase todos, devem
ser interpretados através desse clima de resistência cultural; mas a resistência não é
um fenômeno normal; produz distorções, cria estados patológicos, endurecem tanto
os espíritos quantos as instituições.”
Hoje direi que a pessoa afro-brasileira não precisa adotar a mesma postura
de resistência como enfrentamento, pois estão falando de uma militância violenta, mas
a meu ver é fundamental estabelecer uma nova forma de resistir, pois os tempos não
são mais os mesmos. Hoje temos uma realidade permeada pela democracia e as
instituições estão bem estabelecidas, então cabe descobrir como organizar resistência
às formas sutis com que a violência e a discriminação se manifestam e se fazem
presentes no dia a dia.
A religião permanece sempre como elemento principal da mediação entre o
que se sente oprimido e os opressores. A religião ajuda a pessoa afro-brasileira, não
somente a reinterpretar o seu mundo, mas na sua concepção como pessoa
discriminada na sociedade. Bastide (1960) diz que:

tudo o que a religião faz é colorir de um certo matiz a reinvindicação social de


uma classe oprimida; é também agregar práticas colaterais, sem nenhuma
influência sobre o movimento de revolta em si, como o uso de amuletos;
dessa maneira, ainda hoje os resistentes do Nordeste, como os cangaceiros,
usam fechar o corpo, para estar ao abrigo das balas da polícia.

O oposto disto se vê em Ortiz (1991, p. 32-33). Quando ele estudou a


Umbanda e procurou a todo o tempo entender como a reinterpretação dos elementos
da cultura afro-brasileira, dentro de uma religião que ele caracterizou de nacional, se
opõem às religiões vindas de fora. Ele considera a umbanda como síntese brasileira,
ao invés de sincretismo. Quando Ortiz (1991, p. 32-33) diz: “a umbanda corresponde
à integração das práticas afro-brasileiras na moderna sociedade brasileira; o
candomblé significa justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva
72

africana no solo brasileiro”, ele quer entender como o pensamento umbandista


reinterpretou, codificou e normalizou os elementos das crenças afros no Brasil.

Também para os umbandistas, os anos 30 significam uma ruptura com o


passado simbólico, bem entendido, o que permite a reinterpretação das
antigas tradições [...] A síntese umbandista pode assim conservar parte das
tradições afro-brasileiras; mas, para estas perdurem, foi necessário
reinterpretá-las, normalizá-las, codificá-las. Foi este o trabalho dos
intelectuais umbandistas: canalizar uma situação de fato para constituir uma
nova religião. (ORTIZ, 1991).

Nesse processo, as pessoas também buscam a compreensão de como a


mente umbandista absorve e consegue transformar os elementos das crenças afro-
brasileiras num contexto de mudança social.
É isso que essa pesquisa está buscando, ou seja, a compreensão de como a
mente dos cultos de matriz africana interpretam a magia (bonkoko, feitiçaria) e que
lugar isso ocupa na pessoa construção da pessoa afro-brasileira. Nesse processo se
busca entender também as transformações que esses conhecimentos e atitudes
sofreram (magia, bonkoko, feitiçaria) no processo de sobrevivência e resistência.
Ortiz (1991) destaca também a marginalização do negro nesse processo de
transformação da religião: “Dentro desse processo de transformação social, a
macumba corresponde à marginalização do negro numa sociedade de classe em
formação, este sincretismo negro-católico-espírita é ao mesmo tempo sinal e resposta
à desagregação social”. Na verdade, essa desagregação social hoje está na base da
marginalização da pessoa afro-brasileiro.
O sincretismo, a meu ver, dá a conotação de religião. Sua mistura entre
católico, espírita e as tradições africanas faz com que haja a religião de matriz
africana. Já a nomenclatura mostra isso. De África tem a matriz, que é a crença, do
Brasil e América tem a representação católica, liturgia e a organização. Então se optar
para romper com o sincretismo, não seria mais uma religião, porque faltaria
organização, representação e liturgia. O sincretismo é a força desta religião e isso faz
a sua particularidade como religião e com que isso seja popular. Como diz Josildeth
Gomes Consorte (2010, p. 198) “a questão do sincretismo, imposta deste modo à
consideração geral, sobre qualquer outra ordem de preocupações, era um bom
indicador de sua importância e capacidade de mobilização”.
O sincretismo é o caráter principal da pessoa afro-brasileira, sendo ela uma
pessoa socioantropológica, sendo o resultado de uma mistura de fator social e
73

antropológico. Socialmente ela vive e crê nas divindades ressignificadas ou


reinterpretadas através de uma cosmologia católica e ancestral. Antropologicamente
ela vive numa cultura euro-americana-indo-africana. Consorte (2010, p. 202) mostra
como a cosmologia cristã católica permite à pessoa afro-brasileira passar de sua
ancestralidade através do batismo e da morte quando ele diz: “o sepultamento cristão,
por sua vez, lhe proporcionaria a possibilidade de pôr em prática seus próprios rituais,
garantindo-lhes o acesso à ancestralidade”.

4.4 A ÁFRICA NA COSMOVISÃO BRASILEIRA

A África permanece como algo incógnito na vida de muitas pessoas, isso


porque muitos são os desconhecimentos sobre o que é a África na realidade. Percebi
que são muitas as formas fantasiadas e imaginadas que frequentam as mentes e
convicções que as pessoas no Brasil têm do que vem a ser a África. Cada uma cria a
fantasia de uma África segundo o seu entendimento. Têm aquelas pessoas que
fizeram uma viagem a um país africano e a apenas uma região e pensam que
conhecem a África, generalizando sua experiência para a África como um todo. Tem
também a maioria que nunca foi até a África e somente escutaram o relato dos
missionários, pesquisadores, viajantes e informações na televisão ou no radio, além
de terem assistido filmes, séries ou documentários e acham que conhecem a África.
Igualzinho a mim, que quando estava na África e se falava do Brasil, o que
vinha na minha cabeça era futebol, telenovela, Rio de Janeiro (favelas), carnaval, São
Paulo (favelas) e Salvador. Ignorava o restante do Brasil, apesar de ter estudado o
país na escola, desde a terceira série até no último ano do segundo grau. Mas o que
é popular ganhava mais espaço, a tal ponto que eu esqueci tudo que aprendi sobre o
Brasil e valia o que eu fantasiava como um Brasil imaginário.
Quando eu cheguei ao Brasil, pelo menos eu tinha um pouquinho de noção
do que poderia ser o Brasil. Ao contrário de como muitos brasileiros pensam que lá
fora, muitos conhecem o Brasil somente pelo futebol e carnaval, eu tinha a noção da
força do Brasil. Estudei a hidrografia do Brasil, a fauna e a flora. Sabia também dos
minérios, mas acima de tudo, a maior atenção estava no que chamamos no Congo e
em Angola de “milagre brasileiro”, decorrente do governo realizado pelo ex-presidente
Lula. Mas não tinha noção da imensa potência que é o Brasil.
74

Por outro lado, me deparei com uma situação oposta, pois muitos brasileiros
não conhecem a África. Pensam que África é um país, quando te perguntam de onde
viemos e ao respondemos que chegamos da África, para muitos ali termina o diálogo.
Percebo que muitas pessoas no Brasil têm uma percepção errada sobre como
vivemos na África. Tenho impressão de que muitos pensam que vivemos como nos
filmes do Tarzan. Quero dizer, que imaginam que vivemos junto com os animais, em
locais sem saneamento básico e que lá não tem estradas asfaltadas e nem casa de
alvenaria ou prédios com muitos andares, constituindo grandes metrópoles. Como diz
Mbembe Achill (2013, p. 35):

É aquela em que o negro é representado como o protótipo de uma figura pré-


humana, incapaz de se libertar de sua animalidade, de se autoproduzir e de
se elevar à altura de seu deus. Preso em suas sensações, ele luta para
quebrar as cadeias da necessidade biológica, razão pela qual dificilmente
consegue se dar uma forma verdadeiramente humana e para moldar seu
mundo. (ARCHILL, 2013, p. 35).

Muitos nos vêm como se fôssemos ainda da condição pré-humana. Foi nesse
ambiente e realidade que me deparei quando cheguei ao Brasil, mas hoje já faz parte
de meu dia a dia. Vejo pessoas lutando contra o racismo, mas às vezes eu penso
“será que vale a pena isso? Ou devemos mudar a forma dessa luta?”. Durante a minha
pesquisa tive essa percepção junto aos meus interlocutores. Agora a pergunta é,
quem é o culpado? Elas são erradas? Mas na verdade eu acho que a falta de
informações sobre a África no Novo Mundo e a negação de muitos afrodescendentes
de suas origens bem como sua cor, favorecem a questão do racismo, que tem como
um dos agentes a falta de conhecimento sobre a África.
Estou falando isso por conta do que eu entendi sobre o racismo no Brasil,
apesar dessa condição social se mostrar forte, como se fosse institucionalizada e
estruturada, com base em muitos fatores que são independentes das instituições. Por
exemplo, destaco o fato de muitos afro-brasileiros negarem veementemente as suas
origens por causa da vergonha e quando estão na presença das pessoas como eu,
eles te olham de uma forma estranha e te consideram diferente deles. Esses fatores
favorecem e mostram a existência enraizada do racismo, o que faz com que esse
processo de discriminação cresça muito mais. Também cabe destacar que muitos dos
afro-brasileiros homens procuram se casar com uma mulher branca e se é mulher vai
75

fazer de tudo para se casar com um homem branco. Esse fenômeno não é restrito ao
Brasil, pois se repete em muitos países.
Agora se olhar no outro lado no Brasil, tudo é rotulado e isso é promovido por
todos, seja afro-brasileiro ou não. Eu sei que enquanto mais falamos de uma coisa,
mas ela se destaca. Por exemplo, vendo a ginasta Rebeca Andrade ganhando uma
medalha a sua própria conterrânea ex-ginasta Daiana faz questão de enfatizar que “a
primeira medalha nesta modalidade veio através de uma menina negra”. A meu ver
não tinha importância afirmar isso, porque ela é brasileira como todos e eu posso frisar
aqui que também a menina que ganhou a medalha no skate é preta, mas não teve
essa atitude. Então esse tipo de comportamento, entendido também como forma de
resistência, de certa forma evidencia a discriminação, mas obrigatoriamente não
contribui para reduzi-la. Eu entendo a reação dela porque competiu muito tempo nesta
modalidade e ouvia muitas falas de que pessoas como ela não poderiam competir.
Quando a gente rotula, destaca e quando destaca discrimina e isso se caracteriza
como uma ofensa, qualquer que seja a forma pela qual venha a ser veiculada.
Fazendo isso ela não sabe do impacto que pode gerar nos corações das
pessoas que aproveitam essas posições para destilar seus ódios e rancores, de
muitas pessoas que são racistas conscientes ou até inconscientes. Eu vivenciei essa
questão de rotular a discriminação quando estive em Angola, pois essas ações
evidenciavam o preconceito e deixavam a pessoa como que vulnerável, pois a pessoa
se sente como que descoberta e sem meios de se defender. Desde que eu nasci, só
sabia da existência de preto, branco e mestiço, mas isso não fazia o caso de merecer
destaque. Quando cheguei ao Brasil, vim a conhecer morenos, pardo, índios,
indígenas e outros. Para falar a verdade, nunca me acostumei com isso e eu entendo
que isso faz parte da cultura brasileira
Agora a luta contra tudo isso ainda está muito fraca. Eu pude ver grupos de
pessoas organizadas pela luta, mas entendi que quando este grupo tem um
crescimento, rapidamente se envolve com uma vertente político-partidária e isso
enfraquece a ideia original e faz com que muitos deixem de lutar, pois tem início um
processo de caráter competitivo e individualista. O Estado brasileiro deveria promover
a luta contra o racismo e a discriminação, colocando em prática leis rígidas contra
todos e tudo que evidenciasse e promovesse atitudes discriminatórias e deveria
também fomentar meios para informar cada vez mais sobre a história verdadeira do
Brasil, falando das origens de todos os povos que compõem a nação brasileira, porque
76

não são somente os pretos que sofrem com a discriminação e o racismo, mas uma
gama das minorias.
Falando das leis, eu vi uma mulher cometendo um crime de racismo em
flagrante. Pagou a fiança de mil reais e foi solta. Isso é uma forma de promover a
discriminação e o racismo. Atos assim deveriam ser inafiançáveis e uma pena que
começa pelo menos com 10 anos de reclusão no regime fechado.
As pessoas precisam sair de suas zonas de conforto e devem mobilizar-se de
forma a constituir um bloco sólido e não lutar de forma dispersa, como é o caso de
muitos grupos de militância que não estão coesos e sempre ocorrem cisões. A luta
precisa se despolitizar, não pode ser a base dos partidos políticos ou de ambição
política. Diante disto, a pessoa afro-brasileira precisa conhecer a África, procurar
entender as suas origens e estudar mais sobre a história, a geografia e a cultura raiz
da África. Não a história do Egito, mas da África como continente. Falo isso por que
muitos dentre os que dizem ser combatentes do racismo, quando você se encontra
com eles, a primeira pergunta que me fazem é se sou haitiano. Como se todo mundo
que tem a pele escura fosse haitiano. Esquecem que tanto eu, quanto os haitianos e
eles próprios somos todos igualmente seres humanos.
Em 2013 ajudei uma amiga missionária brasileira a fazer missão no Congo
Democrático. Quando ela chegou, ficou admirada de ver estradas, prédios,
eletricidade, água encanada, carros e tudo mais. Um dos pastores com quem
conversávamos ao telefone me fez uma pergunta dizendo: “Sua amiga está
admirando tudo por aqui, que tipo de África que tu falaste para ela?” Eu respondi “eu
disse nada, mas é a visão que muitos têm pela África, aqui muitos pensam que ainda
vivemos na pré-história”. É como diz Achille (2017, p. 35): “preso em suas sensações,
ele luta para quebrar as cadeias da necessidade biológica, razão pela qual dificilmente
consegue dar a si mesmo uma forma verdadeiramente humana e para moldar seu
mundo”. Essa é a visão da África em outras regiões do mundo, não apenas no Brasil.
O africano é visto sempre como pobre e selvagem. Sempre necessitado
biologicamente e incapaz de moldar um mundo melhor para si mesmo.
Uma vez uma mulher queria fazer cabelo junto com a minha esposa e o filho
dela não queria de forma alguma. Ela perguntou para filho “por que você não quer que
eu faça cabelo com ela?” O filho respondeu “eles são haitianos!” e a mãe exclamou “e
daí?”. Isso não é uma conversa de homens brancos, mas dos descendentes africanos,
tratando os seus conterrâneos de uma maneira pejorativa.
77

É a mesma coisa que eu vivi em Angola, minha própria nação, quando fui
tratado de uma forma pejorativa como se fosse diferente dos outros, mas a nossa
única diferença era a língua. Como Achille (2017, p. 35) disse: “se o fóssil, escreve
Foucault, é ‘o que permite que as semelhanças subsistam através de todos os desvios
que a natureza atravessou, e se funciona antes de tudo como uma forma de identidade
distante e aproximada...’, o monstro, por outro lado, conta sobretudo e, ‘como na
caricatura, a gênese das diferenças’”. O monstro aqui é a língua que contra tudo
produz sotaque que nos diferencia. Como o negro é produzido, como diz Achille, o
africano também é produzido aqui no Brasil, como o Langa em Luanda, em cada
instante em que ele abre a sua boca e fala.
No Brasil, o africano é produzido num imaginário. Quer dizer, cada pessoa
tem a sua África na cabeça. A África é produzida por um lado como relação das
imagens vistas na televisão, no outro lado do mundo imaginário gerado pelas lendas,
mas longe no modo visto nas religiões de matriz africana. É a mesma coisa como são
vistos os haitianos - todos eles são ligados à tragédia de 2010, que devastou o seu
país. Já os africanos estão ligados a todas as tragédias do mundo e toda a malvadez
do diabo. Quando nos deparamos com essas condições, todo africano se questiona
se verdadeiramente somos o que os outros pensam de nós. Às vezes chegamos a
confundir nossa cabeça, nos achando perdidos. Por que diante de brasileiros somos
objetos ou pessoas que levantam perguntas “como você é” e “de onde veio”? “Quem
é você?”; “Faz quanto tempo que você está aqui no Brasil?”; “Estás gostando?”;
“Muitas misérias de onde você veio né?”; “Vai voltar um dia?”; “Aqui é melhor né?”; “O
que está fazendo aqui no Brasil?”; “Você é haitiano?”.
Qualquer que seja o lugar em que nos encontramos, somos bombardeados
com essas perguntas. As pessoas não fazem distinção entre brasileiro nato e o
estrangeiro ou haitiano. No prédio da igreja na qual trabalho, mora uma mulher que
veio da Bahia. Ela é da mesma cor que eu e logo a associam comigo. Várias pessoas
se aproximam de mim perguntando se minha mulher vende acarajé e pamonha, daí
eu pergunto... será que o brasileiro conhece o Brasil? Será que sabe que esse é um
país multirracial? São situações constrangedoras que vivemos todos os dias. E tem
pessoas que colocam o Haiti na África e mesmo que você lhes diga o contrário, brigam
afirmando a sua verdade. A nossa presença nos lugares atiça a curiosidade das
pessoas e vira atração, porque a pessoa mesmo se não te conhece, naquele instante,
78

fará todo o possível para se aproximar de você e te bombardear com as perguntas e


afirmações incabíveis e às vezes incompreensíveis.
É a mesma coisa que Achille (2013, p. 51) fala sobre a razão do negro, “mas
a função é primeira de codificar as condições do aparecimento e de manifestação de
um sujeito negro que veio ser chamado negro ou mais tarde e nas condições coloniais,
o indigno”. O africano diante de um brasileiro também suscita essa função, daí vem
as perguntas sobre: quem é ele? Como lhe reconhecer? O que o diferencia de nós?
Pode ele se tornar um nosso semblante? Como lhe governar e para que fins?
Vendo o estranhamento que nós suscitamos nas pessoas às vezes me
pergunto retoricamente “será que somos tão diferentes assim?”; “por que as pessoas
estão querendo saber quem sou eu?”; “Quer dizer já causei um estado de choque nela
por causa da minha diferença com ela ou hoje posso chamar isso à consciência
brasileira do africano?”. Quando a pessoa se esforça a responder à pergunta, como
diz Achille (2017, p. 51) “ele se esforça a nomear uma realidade que lhe é exterior e
que lhe leva a situar em relação a um eu considerado como centro de toda
significação.” A partir disto nasce a discriminação, a homofobia, o racismo, o
separatismo e outros como diz Achille: “a partir desta posição, tudo que não idêntico
a si é anormal”.
Quero frisar aqui que a África primeiramente é uma aldeia altamente espiritual,
pode dizer o que quiser, mas eu estou falando o que África é de partida. Não é à toa
que Levy-Bruhl (2008) destacou a indiferença dos primitivos nas questões primárias.
Qualquer que seja o seu nível, o africano antes de tudo é espiritual. O restante vem
depois. O espiritual que estou falando aqui não é a religião, mas uma espiritualidade
ancestral. Isso é, a forma como somos construídos enquanto pessoa. É essa forma
nossa de ser, que está na causa de muita coisa. Também cada africano tem a sua
peculiaridade, mesmo sendo do mesmo país. Para entender a África deve-se levar
em conta essa questão. Não é tudo o que se fala de nós que é verdade. A
espiritualidade nos leva, por um lado a ser muito hospitaleiro e, por outro, cruel e
vulnerável.
Citei Levy-Bruhl (2008) porque a análise que ele fez a meu ver está correta,
pois ele parte da noção de individualização a individualidade. Ou seja, na redução dos
vínculos que conectam a pessoa à sociedade. Assim, apontou para os vínculos que
poderiam ajudar o candidato para ter sucesso no seu encontro, que se resumem e
reduzem à opção de se inserir no mundo místico para realização do seu encontro.
79

Tudo isso explica a questão ontológica do candidato, quer dizer neste caso o
candidato exprimiu o seu fator pré-lógica. Levy-Bruhl (2008) fala de entender a pessoa
numa percepção ontológica, que significa que a pessoa está inserida no mundo por
aquilo que a constrói, mas participa dessa construção de forma mística.
Na maioria dos africanos existe ainda a mentalidade pré-lógica, quer dizer,
nós aceitamos dois princípios contraditórios. Isso não é de procurar, é só observar
melhor e vamos encontrar porque é mais fácil um africano acreditar num conto de
fadas, do que numa realidade cientifica, por exemplo. Um africano que está doente,
se falar pra ele que esta doença é provocada por uma bactéria ou micróbio ou que
tem uma causa mística para a qual precisa de um trabalho místico para se curar, e se
falar para ele, é uma doença natural, e precisa se cuidar bem para se curar. Ele vai
acreditar nos dois e muito mais no que é místico, mesmo que seja formado e seja
cristão, de forma que pode acreditar que ele vai procurar a cura mística ao ponto de
negligenciar o tratamento científico. É a essa espiritualidade a que estou me referindo.
O afro-brasileiro, por outro lado, é um religioso que acredita na ciência e na
mística, mas muito mais na ciência e se é estudado e cristão, a mística fica um pouco
menos privilegiada, diferente do africano. Ontologicamente, o afro-brasileiro é
diferente do africano, porque se para o africano é o mundo místico que o constrói, o
afro-brasileiro é construído no mundo socioantropológico e ele só participa no mundo
místico pela via religiosa.
Lendo o que estou escrevendo talvez não se consiga acreditar sobre a
crueldade a que estou me referindo aqui, pois ela é em relação a nós mesmos. Posso
pegar um exemplo do que aconteceu em 1994 em Ruanda, quando os Tutsis lutaram
contra os Hutus, mantando-se mesmo sendo do mesmo país. Também está na parte
em que nós africanos nunca chegamos a um consenso para resolver um problema
africano, que sempre mantém cada um em seu canto sem fazer uma grande
confederação. Seja na vida de dia a dia, seja na política ou na vizinhança. Nós
africanos não conseguimos nos ajudar, por medo de sermos enfraquecidos
espiritualmente. Isso faz com que todo aquele que aspira ser líder ou chefe, presidente
da república ou qualquer lugar de liderança, deve ser muito forte espiritualmente.
Apesar de não ter capacidade ou habilidade de dirigir, mas se é forte espiritualmente
conseguirá se manter no poder. Sem isso não vingaria nem um dia no poder, porque
estará no meio de um povo fortemente espiritual. Somos vulneráveis porque essa
questão nos leva sempre a ter um guru ou chefe espiritual ou um semideus, o faz com
80

que nos tornemos fanáticos e prontos para matar com a finalidade de defender nosso
líder. É isso que ocasiona o nascimento dos ditadores e tiranos que permanecem
eternamente no poder. Isso permite também que sejamos sempre subjugados pelos
outros, o que causa a miséria que assola as outras pessoas.
Tem caso que se eu falar não vai acreditar... na campanha eleitoral de 2006,
no Congo Democrático, meu pai trabalhava com um candidato à presidência e eu,
recém-chegado do Brasil, e estando em Angola, aproveitei que o meu pai já trabalhava
com a pessoa, que era um professor de universidade e um ilustre político, além de ser
pessoa com muitas qualidades e grande inteligência. Então estávamos na
organização de um encontro no estádio do mártir em Kinshasa, o comitê estava se
organizando e meu pai era líder do comitê. Ocorreu o consenso de que precisávamos
organizar um encontro para planejar o evento para que ele fosse um sucesso. Nesse
sentido foi apresentado ao candidato a proposta de ele desbloquear o dinheiro
necessário para pagar as despesas que deveriam ser realizadas para garantir o
sucesso do evento. Quando o meu pai terminou de conversar com o candidato, ele
disse ao meu pai que daria a resposta depois de conversar com uma pessoa em quem
tinha grande confiança. E aconteceu que essa pessoa sugeriu ao candidato de no
lugar de fazer toda aquela despesa com os panfletos, carro de som e outras coisas,
seria melhor pagar um milhão de dólares a um marabou, que faria fetiche invocando
os espíritos, para que o estádio ficasse cheio de pessoas e o candidato aceitou a
proposta e deixou toda a preparação de lado. Chegando no dia tivemos menos de 100
pessoas dentro de um estádio que cabe 90.000 pessoas. Então veja como a
candidatura da pessoa ficou vulnerável por causa da espiritualidade.
Também somos capazes de ajudar algum estrangeiro abrindo
escancaradamente as portas do país, dando-lhe liberdade de fazer tudo que quiser e
recebendo ainda o apoio das autoridades do país, para subjugar os seus próprios
irmãos, favorecendo a corrupção em grande escala de tal forma que o país fica cada
vezes mais vulnerável. A pessoa pode começar o seu negócio com o seu próprio
esforço, mas vai terminar misturando isso com as muletas vindas dos Nganga Nkisi,
Grio, Tradipraticien e outros. Ninguém tem capacidade de viver sem pensar no que
diz respeito à espiritualidade. Essa é a realidade pura e cruel africana.
A maioria dos africanos acredita que ninguém pode fazer uma coisa e isso dar
certo, sem a intervenção do mundo espiritual. No caso aqui, me refiro aos
antepassados ou à feitiçaria. Por exemplo, Neymar não pode jogar como joga sem ter
81

algumas grises, gris (feitiço) que lhe ajudem a fazer isso. E você vai ver isso em todo
lugar. A pessoa vai lavrar a terra e vai plantar, mas depois disso vai buscar alguma
coisa espiritual para lhe ajudar no crescimento dos seus plantios. A lógica seria que
ela adubasse o seu terreno antes de plantar e lutar contra as pragas durante o
crescimento se fosse o caso, mas não, ela vai buscar a força sobrenatural que vai
fazer o trabalho restante para ela e, se não der certo, a culpa sempre é de algum ou
a razão será que os antepassados não receberam do bom grado as suas oferendas.

4.5 AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL

Existe no Brasil uma forma discriminatória e de diabolização das religiões de


matriz africana. Esses fatos são motivados pela forma estrutural do racismo e da
discriminação racial e isso não é de hoje, pois vem desde a época colonial. Nesta
declaração me remeto a Maycon Torres e Natasha Martins (2021, p. 302) falam que
“este tensionamento se reproduz em diferentes esferas sociais e estatais, incluindo a
Justiça, ao exemplo da tentativa de proibição por lei do uso de animais em rituais de
religiões de matrizes africanas”. Essa declaração ilustra muito bem o estado
discriminante da religião de matriz africana sob pretexto da preservação dos animais.
Esta questão atravessou os tempos e parte dessa responsabilidade, como já disse, é
de nós mesmos. Quando falei nós, estou me incluindo porque não vejo a diferença
entre mim e a pessoa afro-brasileira, no que diz respeito à discriminação e ao racismo
que todos nós sofremos.
De um lado o Estado promove, mas no outro lado são o povo e as instituições
sociais. É interessante como em algumas comunidades evangélicas se tem de um
lado posicionamentos de forma crítica e até ofensiva com as tradições africanas, o
que desenvolve preconceitos. Tenho dois testemunhos interessantes a dar nesse
sentido. Fui convidado a interpretar um pastor argentino numa igreja no município de
Fazenda Rio Grande e no final do culto se apresentou uma mulher que estava
passando mal. Daí o pastor colocou a mão na cabeça dela e começou a expulsar o
exu caveira e outros e essa cena se repete muito mais nos lugares onde vou quando
sou convidado. Como declaram Torres e Martins (2021) “Ao observar a utilização de
termos como “Pandemônio” e “Exu Corona” por parte de membros chefes de igrejas
neopentecostais em meio à crise sanitária da Covid-19 causada pelo Corona vírus
82

(SARS-CoV-2) entre 2020 e 2021, fez-se uma correlação entre a ideia sobre a figura
do demônio, Exu, ignorância religiosa e o papel da educação religiosa”.
O segundo exemplo, ocorreu na comunidade onde atuo e se deu quando
anunciei na igreja que vou fazer minha pesquisa num terreiro da religião de matriz
africana. Quase perdemos metade da igreja, pois eles interpretaram muito mal essa
possibilidade e começarem a falar que eu, como sou africano, estou fazendo
macumba e isso é coisa do diabo. Então o meu lugar não era mais na igreja, caso
contrário eles iriam embora.
Falando do diabo, tocarei diretamente na forma como as religiões de matriz
africana são vistas no Brasil, considerado a forma como são discriminadas
popularmente. Isso me chamou muita atenção quando cheguei ao Brasil. Aliás, a
primeira vez que eu ouvi falar de macumba foi na boca de um treinador de futebol em
Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, quando atuava como treinador
do Vita club. Sempre que o time que era atacado, ele gritava um nome de macumba,
nós não entendíamos o que ele pretendia dizer.
Quando cheguei ao Brasil, ouvi falar de macumba e todo mundo tem medo,
sejam crentes ou não crentes. Ao mesmo tempo, muitos querem saber e participar
disso, de tal forma que negam quando estão em público, mas no âmbito privado o
abraça e o pratica. Isso me chamou muito a atenção e me despertou o desejo de saber
mais sobre isso.
Quando comecei a pesquisar sobre isso, me deparei com uma outra
realidade. Vi uma coisa totalmente diferente do que podemos chamar de feitiçaria na
África. A feitiçaria (sorcelerie) na África e nos Ba-Kongo em particular é outra coisa,
outra prática. Também o que chamamos de ancestralidade (bonkoko) é outra coisa
do que se encontra aqui no Brasil. Equiparar as religiões de matriz africana com a
ancestralidade africana e a feitiçaria (sorcelerie) é errado, apesar de existirem
africanos ensinando isso. O que se vê no Brasil é uma religião organizada, também
um meio de encontro, de resistência e de identificação.
Na África em geral e nos ba-kongo em particular, a feitiçaria é uma arma de
destruição e é praticada muitas vezes de forma solitária. A sua forma de operar é
muito diferente com o que ocorre no que chamamos religião africana. Ela não precisa
de espaço próprio, nem discípulos. A pessoa não precisa ser iniciada, mas precisa ser
contaminada e acabou. As pessoas que têm isso são malvistas e muitos são banidos
e temidos na sociedade. Isso está na base do fato de muitas crianças serem
83

abandonadas na rua à sua própria sorte porque foram acusadas de serem potenciais
feiticeiros (sorcier). A feitiçaria (sorcelerie) é diferente do bonkoko, da religião, do
griotismo, de tradipraticien do nganga nkisi. Tudo que citei precisa do espaço próprio,
de amuletos, de instrumentos, discípulos e disciplina, mas a feitiçaria não precisa de
tudo isso.
O feiticeiro (Ndoki em Lingala e kikongo, buloji em Tshiluba e cheitani em
Suahili) pode usar qualquer coisa e a contaminação nisso vai de um simples toque até
qualquer coisa, principalmente alimentos. O propósito é de fazer mal, causar dor e até
matar - e nesse sentido não existe meio termo. Na maioria dos casos, o feiticeiro atua
solitariamente e em poucos casos tem cúmplice, que na maioria das vezes é com
crianças e se uma pessoa mais velha for contaminada, vai enlouquecer.
O feiticeiro faz viagem astral, não tem limite nem fronteira. Pode chegar aqui
no Brasil num piscar de olho. Transforma casca de amendoim em avião à noite, pode
ser criança de dia, mas a noite é um rei, rainha, príncipe ou princesa. Eles estão em
constante conflito com o restante das pessoas. No caso de uma pessoa assim entrar
na sua família, muitas coisas serão destruídas e muitos morrerão, porque isso acaba
com o trabalho, a união, a saúde e, em grosso modo, acaba com os alicerces da
sociedade.
A ancestralidade atua como nossa ontologia e nossa identidade, onde todo
mundo se encontra e se identifica com o meio pelo qual nós nos construímos enquanto
sociedade, povo e família. Um poder respeitado, atua em toda esfera da sociedade.
Sem isso não existiria a nossa sociedade. A ancestralidade é a expressão com que
me refiro para nomear como bonkoko, a qual se caracteriza como força vital da nossa
sociedade. Sei que essa posição se mostra com duas facetas: uma que tem base no
que eu aprendi e vi como prática de meus antepassados, com que me foi ensinado e
com as quais vivi como referenciais benéficos para nossa sociedade. Outra é o que
chamamos de uma arma de destruição e isso é proibido e não está ao alcance de
todo mundo.
Ninguém pode ser chefe ou dirigente na África sem ter o poder de
ancestralidade, se não ele não permanece nem um dia no poder. O bonkoko capacita
a pessoa para bem exercer o seu papel na sociedade. Os nossos dirigentes sabem
disso e não podem ser presidente da república ou primeiro-ministro ou no lugar que
seja, sem ser capacitado no bonkoko. Nós falamos que “il faut ba fongola yo miso po
okoma motu makasi pe okoma na miso minei”. Esse poder vale inclusive para quem
84

estiver liderando uma igreja cristã. Se ele foi iniciado, se manterá dirigente, porque é
praticamente impossível você dirigir sem ter força vital suficiente para exercer o seu
papel. Quando eu estava na minha caminhada política, vivenciei muitos fenômenos
atípicos da feitiçaria e do bonkoko. Porque todos os dias você será sondado, sempre
terá alguém tentado se aproximar de você para te testar e saber se você tem força
suficiente e é capaz de exercer a função que pretende. É uma das razões que faz com
que eu não seja bem-visto, porque comigo tinha outro poder, outra força. E hoje muito
dirigente africano mistura isso com as sociedades secretas, como maçonaria e outros.
A ancestralidade coloca limite e freio aos impulsos das pessoas, fazendo com
que entendam que as pessoas da minha sociedade não são únicas, mas sim uma
comunidade que precisa viver em harmonia. Dessa forma, a ancestralidade na minha
sociedade faz com que as pessoas pensem muito bem antes de se aventurar, tendo
respeito em todo nível da sociedade. Essa posição faz com que a hierarquia seja
respeitada e o chefe seja venerado, pois é reconhecido como quem melhor dirige a
sociedade. Essa cosmovisão ensina aos filhos o respeito aos pais e aos mais velhos
e promove o bem como referencial de relação fraterna.
Numa palavra, a ancestralidade (Bonkoko) é o elemento que coloca o
equilíbrio na minha sociedade, ela é temível sim, quando a pessoa se esquece dos
princípios que regem a vida. Em sentido contrário, ela nunca será referencial de luta
e conflito, como é apresentada na sociedade brasileira. Em todos os clãs, em minha
sociedade, tem um chef dotado de poder sobrenatural. Eles são os guardiões dos
clãs, são sábios, e são referência do lugar onde todo mundo se refere e procura ajuda
nas questões difíceis, complicadas e impossíveis de serem resolvidas com os
recursos meramente humanos.
O grande erro que muitas pessoas cometem é fazer oposição entre Bantos e
Nagôs. A meu ver muitos pesquisadores procuram na crença Banto, uma forma de
hierarquização clerical, mas não acharão. Mas o encontram no candomblé nagô e
classificaram isso como uma religião pura e vinda da África. A questão é que, quando
se fala das religiões de matriz africana, precisamos identificar o que se desenvolveu
e se estabeleceu aqui no Brasil e procurar se esses rituais e formas de ação existem
na África. É importante não esquecer que a África é um vasto continente que tem
diferentes maneiras no que diz respeito à espiritualidade.
Por exemplo, junto aos Ba-Kongos, existe uma hierarquia que organiza os
discípulos nas casas dos chefes de terra ou território. A capital do Congo Democrático
85

é propriedade dos batekes e dos bahumbus e esse povo tem os chefes deles e onde
eles morram é uma espece de terreiro, no qual atuam o chefe espiritual e seus
discípulos, dentre os quais virá quem o substituirá quando ele falecer. E se vai mais
profundamente ao interior do Congo-Central, minha província, vai encontrar esse tipo
de organização no mbetenge. Aliás, em todo território congolês existem essas
organizações que representam uma forma de organização encontrada no território
africano.
Na África do Sul vai encontrar os sangomas, em Angola sobas, só para citar.
A questão é saber se essas organizações representam a África. Representam a
cultura ou religião africana? Representam a pureza da religião africana? Não sei como
responder a essas perguntas, porque na África existe uma gama no que diz respeito
à organização espiritual. Confesso que o que encontrei aqui no Brasil está muito longe
de algo parecido do que é na África, mas isso não tem nada a ver com o que possa
dizer respeito à pureza da religião africana.
Fazer uma declaração assim é um suicídio, mesmo que exista um elemento
africano no que se faz aqui no Brasil, é muito diferente com o que existe e ocorre na
África, apesar do tempo passado. Isso é como ignorar a forma de como os povos
africanos se constroem enquanto sociedade. Procurar a África dentro dos cultos afro-
brasileiro é um exercício perdido. A África deve ser tomada em conta como ela é e o
que se faz fora da África também deve ser tomado à parte.
É a mesma coisa do cristianismo, o que começou em Jerusalém com os
discípulos de Jesus é totalmente diferente no que se vê no mundo inteiro. Pode haver
semelhança, mas nunca acharão Jerusalém dentro do cristianismo praticado em
Roma, Brasil, EUA, Europa ou África. A falta de conhecer melhor a África deu lugar a
muita especulação. Podem achar que estou delirando ao falar assim, porque sou
apenas um novato que inicia mergulhos nas águas profundas da antropologia, mas
tenho a certeza de que vivo nos dois mundos e conheço o que estou falando, vivo,
sinto e isso faz parte do meu ser.
86

5 ÁFRICA NO CONTEXTO SOCIAL BRASILEIRO

No Brasil quando se fala do afro-brasileiro, se faz alusão à raça ou etnia e diz


respeito à cor negra. Muitas pessoas fogem dessa questão mesmo sendo da cor
negra, porque socialmente o afro-brasileiro se refere a pessoas pobres, especialmente
por sua historicidade, que é caracterizado ao passado escravizado, vergonhoso e de
miséria. Assumir ser afro-brasileiro é muito difícil, mas hoje, com a consciência de que
a questão racial e da etnicidade não tem fundamento biológico, porque não tem como
classificar uma pessoa biologicamente em raça, em um país plural como o Brasil, é
praticamente impossível determinar a raça das pessoas ao menos se ela mesma o
declara.
Nesse sentido se percebe uma mudança pela qual os afro-brasileiros
conseguiram um espaço na sociedade brasileira e essa questão está mudando a
forma das pessoas se comportarem socialmente diante desse tema. Percebe-se que
na atualidade há um caminho inverso no qual se tem pessoas puramente claras, sem
nem uma gota de sangue africano, considerando-se afro-brasileiras.

5.1 CARACTERIZANDO O QUE PODE SER AFRO-BRASILEIRO

Nessa pesquisa o foco do estudo está voltado para a história e concepção da


pessoa e não de um grupo, por isso procurarei entender a trajetória de pessoas desde
o início até ela se considerar pessoa afro-brasileira, partindo do Sidney Mintz e
Richard Price (2003), que fizeram o retrato das primícias do que viria a ser
ancestralidade da pessoa, instituição e cultura afro-brasileira.
Essa pessoa independentemente da sua posição social, é uma pessoa
folclórica, por causa da domesticação da sua religião, como diz Sergio Figueiredo
Ferreti (1995, p. 103): “um dos fatos que no Brasil de hoje diferencia os judeus dos
negros é a folclorização ou a domesticação da cultura negra e das religiões afro-
brasileira...”. Nas entrevistas que realizei durante a pesquisa de campo, uma pessoa
se apresentou como marginalizada e discriminada, talvez com base em sua história
de vida, mas tenho certeza de que era um conhecimento superficial e supérfluo.
Biologicamente esta pessoa é o encontro de muitos povos, que pode ser de matriz
afro, euroasiático e ameríndio.
87

Assim compreendi que o que dá o caráter socioantropológico à pessoa afro-


brasileira, é a sua crença e a sua fé, expressada na sua religião. A religião é a única
coisa que conferiu a identidade cultural que faz dela uma pessoa diferente dos outros.
Como diz Sergio Figueiredo Ferretti (1995, p. 104), “constatamos que a definição da
identidade, tanto para o judeu quanto para o negro, está igualmente relacionada com
a religião e com a diáspora”.
Ferreti (1995) também fez a comparação entre o Judeu e o Negro e esta
comparação foi pautada na religião, destacando as particularidades e semelhanças
das religiões destes dois povos e como estes povos foram marginalizados na
diáspora: “entre as semelhanças constatamos que tanto o judeu quanto negro foram
profundamente marcados pela condição marginal da diáspora, e que ambos
enfrentam consequências de preconceitos etnocêntricos daí decorrentes.” (Ferreti,
1995 p. 102).
Ferreti (1995, p. 102) continua a mostrar como a religião é o elemento cultural
de identificação: “para ambos a religião constitui o elemento cultural de identificação
que o distingue de outros grupos, embora o fato de ser judeu ou de ser negro não
implique a adoção de uma religião determinada, havendo casos inclusive de judeu
negros, ou devotos da umbanda e candomblé”.
A religião de matriz africana conheceu uma grande transformação com a
migração: “Antes era a religião de africanos e no tempo de Carneiro e Ramos, se
tornou a religião dos Negros e hoje é certamente uma religião popular, sem limites
étnicos e sociais bem precisos”. (Ferreti, 1995, p. 104 apud Costa Lima, 1977, p. 61).
Essa transformação está na base da formação da pessoa afro-brasileira. Hoje
as religiões de matriz africana não pertencem a uma etnia, mesmo que nela ainda
existam resquícios da cultura africana. O elemento principal que caracteriza a pessoa
afro-brasileira é a religião, mas uma religião sem identidade étnica, uma religião
popular e folclórica. Ferreti afirma que “o candomblé vira a se instalar em são Paolo,
não como religião de preservação de um patrimônio do negro, religião étnica, mas sim
como religião universal, isto é, aberta a todos, independente de cor, origem e extrato
social.” (Ferreti, 1995, p. 105 apud Prandi, 1989, p. 19). Partindo dessa característica,
é impossível ver a pessoa afro-brasileira como uma identidade étnica relacionada à
sua core ou raça.
Assim, a pessoa afro-brasileira está acima de raça e cor, ela não tem cor nem
raça, é simplesmente socioantropológica. O que a caracteriza, além da sua religião, é
88

o sentimento de pertencer a um movimento que a aceita como ela é,


independentemente da sua cor, posição social ou raça. O nome da religião e a
conservação dos resquícios da marca cultural africana na religião, não interferem na
formação da pessoa afro-brasileira. Posso falar das religiões às quais eu pertenço que
são reconhecidas como cristã evangélica, mas em prática já sofreu muitas mudanças,
embora ela conservasse as marcas da cultura cristo-judaicas. O exemplo mais claro
é da religião católica romana. Apesar de ser universal, ela é romana, mas em prática
ela é africana, europeia, asiática, americana... Então ela é sem conotação étnica
racial. Como diz Sergio Ferreti (1995): “se o candomblé em São Paulo, como em
outros lugares, surge hoje como religião universal, não deixa de conservar marcas
culturais negras, como a igreja Católica que sendo universal, é antes de tudo
Romana”.
O fato de ela ser uma pessoa socioantropológica, significa que pertence
também a uma identidade étnica, mesmo que a maioria ignore isso, como diz Ferreti
(1995, p. 107): “deve se ressaltar que os membros das comunidades de terreiros
antigos na sua maioria não tinham consciência explicita de possuírem uma identidade
étnica”. Ao conversar com as pessoas fora de terreiro, pude ver que muitos não têm
conhecimento explícito da sua identidade cultural. Alguns se identificam através de
orixá, de quem ela pensa ser filha, mas quando converso com a pessoa dentro do
terreiro, ela tem conhecimento claro da sua identidade cultural e social, porque dentro
da sua religião, ela tem capacidade de fundar as suas comunidades e isso lhe confere
uma identidade bem definida. Como Ferreti (1995) já escreveu: “se negros de uma
grande cidade não possuem uma identidade cultural, membros de um terreiro podem
construir uma comunidade de cultura, em função de seu grau de integração”.
Em geral, a afro-brasilidade pode ser vista em qualquer cidadão brasileiro,
mas em particular a pessoa afro-brasileira precisa pertencer a uma religião onde há
uma mistura ou sincretismo da multiplicidade cultural brasileira. Já que ela é
construída nos elementos culturais múltiplos do ser brasileiro, que se destaca na
religião. Por causa da grande perseguição, essa pessoa se vê diluída
heterogeneamente no catolicismo, mas devido a abertura que está acontecendo na
atualidade, esta pessoa consegue se separar do catolicismo, sem abandonar as
práticas católicas de vez.
Ao longo das suas escritas Ferreti (1995), indaga a respeito da preservação
dos elementos culturais afro nas religiões de matriz africana. É essa preservação que
89

faz com que essa pessoa seja chamada de afro-brasileira, porque é nos elementos
culturais afro que se destaca a sua africanidade e nos elementos do catolicismo,
espírita e ameríndio que se destaca a sua brasilidade.
A pessoa brasileira carrega com ela múltiplas atitudes, segundo a sua
identidade étnica. No tempo das crises existenciais é que se evidencia o fato de ela
ser carregada com resquícios ameríndios e nela se manifestarão atitudes afro-
brasileiras e atitude índio-ancestral. Estamos falando de resquícios porque a pessoa
afro-brasileira não é uma questão étnica, mas socioantropológica. É uma pessoa
múltipla devido à sua história e sua construção como pessoa no Brasil. No momento
das crises existenciais a pessoa tende a demostrar as atitudes inatas e as diferenças
diante das situações, principalmente no tempo de perda, morte, separação ou
desaparecimento. Placide Tempels (2009) nos explica isso no comportamento Ba-
Kongo que ele estudou:

Sofrimento e morte são sempre os dois grandes apóstolos, que na Europa


trazem de volta, no último momento, muitos perdidos aos princípios da vida
de nossa tradição cristã. Da mesma forma, vemos muitos de nossos Bantus,
evoluídos, "civilizados", até cristãos, que retornam às suas antigas atitudes
sempre que estão sob o domínio de problemas, perigo ou sofrimento”.
(TEMPELS, 2009, p. 12).

Ao chegar ao Brasil tinha uma vaga ideia do que encontraria, mas apesar do
tempo e da diversas idas e vindas, ainda não tenho uma concepção segura do que
seja o Brasil e os brasileiros. Visitando cidades como Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia,
São Paulo, e os estados do Espírito Santo e Paraná, ampliei minha visão do Brasil,
um lugar onde as minorias são estigmatizadas, e comecei a me interessar a conhecer
mais destas minorias, principalmente os da minha cor de pele.
Queria saber, olhando para eles: como eles vivem como pessoa? O que eles
têm? De que eles precisam? Que homens são eles ou que tipo de pessoas são eles?
Como eles pensam? O que eles precisam acima de tudo? Por que seus cultos são
discriminados? Será que há magia nestes cultos? O que isso significa? Como isso
opera? Qual é a essência disto? Como isso se organiza? Que lugar isso ocupa na
vida de cada uma dessas pessoas? São muitas as questões que passam pela minha
cabeça e que me deixam confuso. Estas situações me incentivaram a começar a
pesquisar sobre a história afro-brasileira para ter mais conhecimento.
90

A aula de sociologia e antropologia religiosa que o professor Agemir Carvalho


nos dava na Faculdade Evangélica me abriu perspectivas e quando o professor nos
recomendou a leitura de um livro que ele escreveu, lá falava dos cultos de matriz
africana, destacava Bastide, e quando li isso, tive uma sensação de conhecer muito
mais. É nesta perspectiva que comecei a construir a questão da pessoa afro-brasileira
na religião de matriz africana no Brasil. O pouco que eu li de Bastide me provocou e
me deixou com vontade de pesquisar mais. Fui procurar Tempels, autor da “filosofia
banto” para ler e ver se como eu me sentia presente nessa obra que falaria de meu
modo de ser e se a posição que esse autor apresenta diante da questão afro-brasileira
seria legitima.
Nesta leitura me identifiquei e vi como eu mesmo estava falando neste livro.
Tempels (1945, p. 6) fala da trilogia do sistema sociológico do povo Ba-Kongo, mesmo
que ele não tenha se expressado realmente como é, mas nada muda. Essa trilogia
comporta: 1- Vida, vida intensa, vida plena, vida forte, vida total, intensidade não ser;
2- Fertilidade, paternidade e maternidade, uma fertilidade grande, intensa e total, não
apenas física; 3- União vital com outros seres; o isolamento nos mata. Segundo ele,
essa trilogia é aspiração de vida pelo povo Ba-Kongo. Eu direi que é uma das
aspirações pela qual o povo Ba-Kongo se organiza, tanto como sociedade quanto
como povo.
Tempels (1945) critica a filosofia de Hegel de que a África não tem cultura e
diz que "a civilização Ba-Kongo será cristã ou não será". Também ataca Lévy-Bruhl e
ao apontar as funções mentais como sendo de uma sociedade inferior, ao apoiar a
tese de uma diferença radical entre a mentalidade dos povos civilizados e a dos
primitivos, isto é, os povos indígenas. Segundo Lévy-Bruhl, estes últimos têm um
"pensamento pré-lógico".
Para Tempels (1945), a filosofia Ba-Kongo define "ser" como "força". Ou seja,
um ser não tem à disposição uma força distinta de ser. Um ser, no nosso significado
do termo, é apreendido no “A filosofia Banto é uma força”. Nisso, ele opõe a visão
ocidental do ser caracterizada por um conjunto de atributos estáticos, à visão dinâmica
baseada em forças. De fato, um ser pode ser reforçado ou diminuído por outras forças
(outros seres) que o influenciam.
Tempels (1945) explica que a força de uma criança mantém um vínculo com
o de seus pais e de todos os seus ascendentes como um relacionamento ontológico
íntimo, comparável ao elo causal que liga a criatura ao Criador. Mesmo quando uma
91

pessoa morre, sua força continua. Existe uma forte hierarquia entre as forças. Uma
força que pode ser exercida em cima de todas as forças inferiores, descendentes,
animal ou mineral. A sabedoria Banto corresponde ao conhecimento dessas forças,
mas apenas a sabedoria divina conhece todas elas. Para Tempels (1945), o que os
colonizadores viam como crenças sobrenaturais e mágicas são reveladas de acordo
com a filosofia Banto como uma expressão perfeitamente natural e lógica de uma
visão de vida baseada em forças. Ele critica a teoria de que não há filosofia africana.
Na concepção do mundo segundo o povo Ba-Kongo do qual eu faço parte há
uma coisa muito importante que é a base de todo o nosso pensamento: a crença.
Tempels (1945) não falou sobre isso de uma maneira detalhada. Eu entendo que não
se pode falar de uma filosofia sem falar no que ela acredita. O nosso mundo é
construído pela crença que, por engano, foi caracterizada como religião. Para mim
tudo começa pela crença. A organização de uma sociedade é ligada a uma crença. A
construção de uma pessoa é ligada a uma crença. Vivo o que eu acredito, mas não o
que eu professo. Antes de eu professar uma coisa, devo acreditar nela, se não seria
somente um jargão, que não tem utilidade. A vida, a fecundidade e a união como
relação interpessoal têm como base a crença.
Essa é a razão dessa pesquisa, que faz a abordagem de um estudo
antropológico com o foco na feitiçaria, aqui chamada de magia ou bonkoko, mas que
para mim é o núcleo da crença do povo Ba-Kongo, que na concepção originária banto
se mostra como forma de poder respeitado e venerado, como a base de todas as
respostas. No contexto da religiosidade e da cultura popular de base afro-brasileira,
apresenta-se como algo temido e evitado. A crença nessa abordagem é o elemento
principal pelo qual eu acredito na organização social e na construção da pessoa. Tudo
passa pela crença. No Brasil pude observar a presença desse vínculo entre a crença
e a pessoa afro-brasileira.
Muitas pessoas se consideram Afro-brasileiras somente por causa do seu
pertencimento na religião de matriz africana. Este pertencimento ultrapassa a barreira
étnica, racial e tribal. Tem pessoas que não são descendentes de africanos, não
pertencem a nenhuma tribo ou etnia, nem da raça negra, mas se consideram afro-
brasileiras. Porque eles têm crença, e essa crença os inclui na sociedade afro-
brasileira e lhe tira dos laços de sangue familiar originais. A religião faz com que estas
pessoas se reorganizem numa nova sociedade, a qual a raça, a etnia e a tribo não
falam nada, mas sim a crença.
92

Luis Nicolau Parés (2007) mostra esta mutação ou transformação na sua obra
quando se refere à formação do candomblé. Parés (2007) afirma que Vivaldo da Costa
Lima, “foi o primeiro autor a chamar atenção sobre como, aos poucos, o termo “nação”
foi perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase
exclusivamente teológico”. Ele mostra a passagem de um conceito político ao
teológico. Parés (2007) mostra ainda como o conceito foi além do que é étnico e
biológico para um parentesco religioso: “como bem notou Lima, o parentesco biológico
foi substituído pelo parentesco do santo, decorrente de processo iniciático”. Aqui a
questão do sangue não fala mais nada, a pessoa embarca num processo de mutação,
de transformação clãnica e étnica ao incorporar um conceito de nação religiosa.
Os pais biológicos se tornam pais santos, o laço de sangue se torna de amor,
da crença. A casa familiar se torna terreiro e o seu mundo agora é o dos rituais,
iniciações e tem uma herança de linhagens da família de santo. “Consequentemente,
o conceito de nação religiosa ficou estreitamente relacionado com as diversas
linhagens ou genealogias da família-de-santo, através dos quais a norma dos ritos e
o corpo doutrinário são de uma forma ou de outra, transmitidos” (PARÉS, 2007 p.
102).
Se, para Weber (2004), uma das funcionalidades da religião é providenciar
um sentido à existência do sofrimento e algum meio para superá-lo ou transcendê-lo
e para Malinowski é ajudar a suportar situações de pressão emocional, para os
pesquisadores da África central, é não somente a prevenção do infortúnio, mas a
maximização da boa sorte. Parés (2007) afirma “eu na minha pesquisa apontei que a
função principal na religião ou culto de matriz africana e de outorgar a identidade aos
seus praticantes, através dos rituais e iniciações e concertar os problemas existenciais
dando-lhes sentido”.

5.2 ESPIRITUALIDADE BA-KONGO E O CONTEXTO BRASILEIRO

Atualmente as coisas se transformaram muito. Os tempos são outros, mas


certas tradições permanecem. Fabian (2013, p. 61-70 e p. 100-114) fala sobre o
discurso antropológico, a negação da coetaneidade e o tempo e a escrita sobre o
outro. Ele fala que o relativismo cultural é uma maneira de colocar o outro fora de
nosso mundo. Como hoje o tempo é outro, não quero colocar a pessoa afro-brasileira
fora do meu mundo que é a África, quero entender como esta pessoa vive a
93

africanidade dentro da religião de matriz africana. Quero entender como elas


constroem o seu mundo. Como elas concebem a cultura africana dentro da religião
de matriz africana.
Como Ba-Kongo, procurarei entender como essa pessoa pode interagir com
a cosmovisão Banto, já que a África é um continente multicultural e cada povo tem à
sua maneira de viver, assim como o seu cosmos, mesmo tendo algumas
semelhanças. Quando se fala da cultura africana ou de africanidade no Brasil muitas
abordagens focam na escravidão e na religião de matriz africana, mas eu quero
entender a africanidade a partir do sujeito. Quero reconstruir essa história a partir da
pessoa afro-brasileira, dentro da religião de matriz africana.
O cosmos africano é pouco conhecido, por isso quero trazer a memória e a
história na vivência deles. Quero entender como elas vão se identificar, como elas são
e como vão contar a história da sua vivência na africanidade junto de suas próprias
histórias. Fazendo assim, creio que trabalharei com uma concepção de
relacionamento entre o meu mundo e o mundo da pessoa afro-brasileira, mas não a
relação em si. Isso vai me ajudar a pensar a africanidade no Brasil a partir da religião
afro no Brasil. Isto é, não negar a coetaneidade, mas buscar elementos que unem os
nossos mundos na religião.
Fabian (2013) se refere ao presente etnográfico, isto é pegar a primeira
pessoa do singular e colocar na terceira pessoa. Essa posição, para ele, é como se
distanciar com seu objeto de estudo e quer dizer que está temporalizando o que está
em debate. Fabian (2013) usa três tempos: físico, tipológico e intersubjetivo e mostra
como o tempo é uma categoria ocidental, que opera para afastar os outros. Eu estou
usando o tempo intersubjetivo porque é relacional e isto ajuda para conjecturar os
acontecimentos. É hoje que estou fazendo esta discussão e não tem como eu me
distanciar do meu objeto de estudo. Não vou falar acerca da nossa relação em si, mas
sob a minha perspectiva perante o meu objeto.
Eu tinha inicialmente a perspectiva de encontrar no afro-brasileiro uma pessoa
idêntica à pessoa africana. Quando comecei a minha pesquisa isso caiu por terra,
porque encontrei uma multiplicidade. Pensava que ser “afro-brasileira” seria uma
questão de etnia ou da cor da pele, mas na verdade vai além da etnia e da cor da
pele, sendo uma questão socioantropológica – o que torna esta questão muito mais
interessante para mim. Porque, a partir disso, pode-se ver não apenas uma dupla
pessoa, mas uma pessoa múltipla.
94

A religião de matriz africana favoreceu a emergência dessa pessoa múltipla.


Monique Augras (1983) mostra a dualidade da pessoa ou o Xamã e o Deus baixado
nela. Para Augras (1983), essa dualidade é inseparável, porque na hora de possessão
a pessoa e Deus se tornam um ente indivisível, de forma que “o xamã não somente
se abstrai a divindade, mas também a torna concreta, palpável, como diz Lewis”:
“ambos se tornam inseparavelmente ligados: cada um possui o outro” (Augras, 1983,
p. 23 apud Lewis).
Enquanto Augras (1983) mostra uma pessoa duplicada com a possessão na
religião, eu encontrei uma pessoa múltipla. A religião de matriz africana é o elemento
que ajuda nesta mediação entre a pessoa e o Deus. Não é um fenômeno patológico,
como muitos o afirmaram. Como diz Augras (1983, p. 22), “Ioan M. Lewis fez um
levantamento dos cultos de possessão e dos diversos tipos de enfoque que
mereceram. Nele pode-se verificar que muitos autores contemporâneos ainda
persistem em tratar os fenômenos religiosos sob o enfoque patológico”. Ou seja,
Augras (1983) mostra que a questão de possessão é cultural e não patológica.
A religião dá à pessoa uma identidade outrora perdida. A pessoa se identifica
quando pertence a essa religião e elas têm muito mais estima de pertencer a uma
família que às suas famílias. Se muitos autores contemporâneos afirmarem que as
religiões de possessão são como uma doença mental, posso dizer que a religião afro-
brasileira é o caminho para que uma pessoa possa se identificar e como meio para
excelência de personificar um indivíduo.
Mauss pesquisa uma pessoa social. Começa falando na questão do nome e
como este insere o indivíduo num sistema social, pois uma vez que a pessoa recebe
o nome, está inserida em uma estrutura (sistema) social, visto que o nome implica
uma identificação e a coloca dentro de um sistema hierárquico. Mauss (2003) cita os
kwakuite e mostra que para eles o nome está ligado à origem, ou seja, vem de uma
pessoa mítica. Quando Mauss (2003) fala dos winnebago, mostra que para eles o
nome implica a noção da reencarnação, que implica a transmissão dos atributos. Esse
nome também está relacionado aos animais totêmicos. Nos australianos, o nome está
ligado às máscaras (personagens). Mauss (2003) está nos falando de uma pessoa na
qual os elementos externos é que vão determinar as características da sua
individualidade, ou seja, a pessoa é uma posição social. A máscara produz o sujeito.
Mauss (2003) chama a máscara de “nome privilegiado” pela posição que
ocupa na sociedade etc. Mostra que o sujeito é uma representação dos antepassados.
95

Assim, fez uma história da noção de pessoa que com tempo vai evoluir. Se, conforme
Mauss (2003), o nome insere a pessoa na estrutura social, com a pessoa afro-
brasileira é diferente. Não é o nome, mas a magia que faz com que a pessoa seja
inserida na estrutura e esfera social.
A pessoa afro-brasileira não é o fruto dos antepassados, nem de suas
encarnações, mas uma construção social, que vai desde a descoberta do Brasil até
os dias do hoje. Ela é o resultado de fatos socioantropológicos. Por isso o nome não
influencia sua vida. A magia é o elemento central para a formação da pessoa afro-
brasileira. Não são os elementos externos que determinam as características da
individualidade da pessoa afro-brasileira, porque ela não tem um genótipo
determinado, mas são elementos internos que determinam sua individualidade.
Exemplo: rito, magia, crença etc. Mauss (2003) mostra como na China o nome acaba
remetendo na individualidade, ou seja, dá a individualidade ao sujeito. Na Índia o nome
faz com que a noção de consciência individual seja anulada ou absolvida na
sociedade.
Segundo Mauss (2003) a noção de pessoa foi desenvolvida em Roma e na
Grécia. Em Roma foi instituída a pessoa jurídica, ou seja, aquela que tem direitos
sociais, que se separam da aquisição da personalidade. De acordo com Mauss,(2003)
isso aconteceu nas revoltas dos povos para ter reconhecido o direito como cidadão e
aquisição do filho a ter direito à vida ou anulação de direito do pai a determinar qual
filho vai morrer. Na Roma Antiga ocorreu uma distinção entre substância interna e a
máscara (o elemento externo). A pessoa afro-brasileira é pode ser comparada à
substância interna, porque a máscara - que posso chamar aqui como cor da pele,
raça, etnia ou tribo - não tem interferência na formação desta pessoa.
É possível afirmar que os aparatos externos nada têm a ver com a construção
da pessoa afro-brasileira, porque me deparei com pessoas totalmente brancas, mas
que se consideram afro-brasileiras e com pessoas totalmente negras que não se
consideram. O que chamo de externo é a cor da pele, irmão ou irmã, pai ou mãe
(família biológica) forma de se vestir etc. e o que chamo de interno é principalmente a
sua crença.
Na Grécia foi instituído o conceito de pessoa moral, uma dimensão moral da
pessoa, o que quer dizer que a pessoa é um ser autônomo e independente. Não existe
a autonomia nem a independência na formação da pessoa afro-brasileira, porque ela
depende da sua crença na magia (feitiçaria), que lhe dá o caráter subjetivo. A pessoa
96

afro-brasileira nos cultos de matriz africana recebe a sua autonomia através dos
Orixás, sem os quais o sujeito não teria como atuar na sociedade.
Mauss (2003) fala que o conceito de pessoa no cristianismo quer dizer a
noção de alma individual, que remete à consciência, que define a noção de
indivisibilidade da racionalidade. A vida interior é, pois, o que define propriamente o
indivíduo. Nisto temos uma dicotomia entre o exterior e o interior, o que quer dizer
“personagem” contra o “Eu”. Na parte da personagem temos uma confusão entre
pessoa e coletividade, uma decisão de máxima sociológica e mínima psicológica. No
Eu uma decisão máxima psicológica e mínima sociológica.
Roger Bastide (1960, p. 118) explica esta decisão máxima sociológica e
mínima psicológica, quando falou da fuga dos escravos dizendo:

nessas repúblicas negras, sobretudo quando o fugitivo era um recém-


chegado da África, os antigos costumes tribais ressuscitavam, e, por
conseguinte, aqui ainda, como para o caso da agressão, a passagem do
individual ao coletivo se faz ao menos em parte, sob a égide da religião.
(BASTIDE, 1960, p. 118)

A religião como elemento principal de uma integração total do indivíduo dentro


da sociedade. Quer dizer, nesta decisão o indivíduo se funde dentro do sistema social.
E a sociedade como meio da definição da personalidade do indivíduo. A
individualidade é anulada em favor da sociedade porque agora aquele que era de fora
vai se fundir na sociedade pela sua participação. Vai ter crenças, líder, amigos e
irmandade.
Mauss (2003) fala da noção de pessoa não como uma coisa inata, mas
construída socialmente, culturalmente e historicamente. Nesta obra há uma tendência
evolutiva que parte de um conceito primitivo de personagem (individual e externa), ao
conceito evoluído da noção de mim como um indivíduo interior. Já Levy-Bruhl (2008)
analisa os dados sensíveis e incessíveis. Fala que o sujeito está inserido numa rede
de participação na sociedade mística (primitivo). Aqui a questão não é somente
participar do mundo, mas senti-lo, o que é diferente da pessoa afro-brasileira, porque
ela não é inserida na sociedade, mas é a sociedade. Ou seja, ela cria a sociedade
com a ajuda dos Orixás. Ela não sente, mas vive isso. Levy-Bruhl (2008) define essa
mentalidade como pré-lógica, ou seja, aquela que aceita dois princípios contraditórios.
Para Levy-Bruhl (2008) lógica e pré-lógica estão conectadas, sendo a primeira
prevista anteriormente como uma dimensão de sentir o mundo.
97

Levy Bruhl (2008) pensa a pessoa a partir de uma percepção ontológica, isto
quer dizer que a pessoa está inserida no mundo (sociedade) pelo que a constrói, ao
mesmo tempo em que participa dessa construção. Mauss (2003) pensa em um sujeito
que faz parte de tudo que é construído. Levy-Bruhl (2008) parte de um sujeito que
participa de forma mística na sociedade. Eu parto de uma historicidade mista dos
elementos sociológicos e místicos, que vão até um sujeito místico que é
socioantropológico. Assim, a pessoa afro-brasileira é o inverso de um sujeito
construído pelos elementos sociológicos e místicos, para se tornar ela mesma um
sujeito místico socioantropológico. Esse sujeito não se considera independente
porque ela é ligada aos Orixás e são eles que lhe dão a identidade própria.
Outro ponto importante com relação ao nome, está na posição de o nome
carregar a alma, o que tem uma dimensão sociológica, porque insere a pessoa na
sociedade e na dimensão ontológica que é caracterizada por sua essência. Em termos
metodológicos, Mauss (2003) mostra como a pessoa passa da personagem à
individualização e que isso acontece no desenvolvimento de uma subjetividade
interna. Por outro lado, Levy-Bruhl (2008) parte da redução dos vínculos que
conectam a pessoa na sociedade, para a noção da individualização. Já a pessoa afro-
brasileira parte de uma composição histórica múltipla para configurar uma composição
mística que desenvolve uma subjetividade tanto interna quanto externa, o que
possibilita a noção de pessoa exprimir uma dupla metamorfose.
Nessa perspectiva, Dumont (2000) desenvolve uma teoria sobre o
individualismo que se baseia na sua própria experiência na Índia, que é uma
sociedade holista. Ele fala nos kanaka, para quem o indivíduo não é a pessoa. Dumont
(2000) faz, pois, distinção entre sociedades individualistas e holistas, mostrando que
na sociedade individualista a parte é superior ao todo. Isto quer dizer que há
subordinação da sociedade para com o indivíduo, de forma que a sociedade atua
como meio para o indivíduo conseguir seus fins. Na sociedade holista é ao contrário:
o indivíduo é subordinado à sociedade. Dumont (2000) aponta uma contraposição de
interesses na sociedade individualista, enquanto na sociedade holista o que é
interesse direto da sociedade é para o indivíduo, o que representa coincidência de
interesses.
No individualismo temos as posturas amparadas em posição referenciada no
liberalismo; no holismo prevalece a sistemática da dádiva. No individualismo a coisa
é superior às pessoas. Dumont (2000) destaca outro aspecto do individualismo ao
98

apontar que todos os indivíduos são iguais (igualitarismo), enquanto no holismo há


um sistema hierárquico. Na sociedade individualista o indivíduo é único, livre, igual,
racional, autossuficiente, sujeito pensante e, no aspecto psicológico, é indivisível.
Dumont (2000) fala que é na concepção cristã que o indivíduo surge como
valor, uma vez que se torna renunciante (a procura da espiritualidade faz com que o
indivíduo saia da sociedade, renúncia as riquezas para atingir a felicidade). Dumont
(2000) argumenta que isso já estava preparado na sociedade helenista e que foi
absolvido pelo cristianismo. Essa renúncia que faz com que o indivíduo se destaque
é um fator de individualização diferente do que temos hoje, que é individuo dentro da
sociedade. Ele destaca o problema da passagem do indivíduo fora do mundo para o
indivíduo dentro do mundo, que ocorre quando o cristianismo tinha a intenção de
converter o mundo (implicação substancial no mundo), havendo uma relação tensa
entre Estado e Igreja, corpo e alma, o que vai tornando estas partes cada vez mais
misturadas.
Dumont (2000) mostra como a Igreja vai se implicando no mundo e mostra
como a noção de pessoa se entrelaça com a de política. A pessoa que era fora do
mundo (igreja) se implica cada vez mais nas coisas do mundo. Ele mostra o fato de o
aspecto ideológico se misturar no mundo e aponta o protestantismo e o calvinismo
como o fim desse processo. Se no catolicismo a Igreja faz a mediação entre a pessoa
e Deus, no protestantismo há supressão da Igreja. O indivíduo não precisa renunciar
ao mundo para se salvar. Não existe mais o indivíduo fora do mundo. Para Dumont
(2000) estar no mundo é querer ter posições, participar do sistema político, ter
riquezas, ter família, prazer etc. Estar fora do mundo é renunciar a tudo isso para
atingir certo grau da espiritualidade.
A noção de pessoa Ocidental surgiu da conjunção de certos elementos, como
política, economia, religião, cultura etc. Assim, toda a questão que Dumont (2000)
coloca aponta para um controle na forma de olhar o outro, para ter um conhecimento
aprofundado e colocar as condições para entender o indivíduo como elemento de
ideologia. Assim, é necessário que nos conheçamos para saber entender o que
procuramos como entendimento do que é a vida e o viver. Com essa argumentação,
entendo que Dumont (2000) está partindo de Mauss (2003), mas está fazendo uma
teologia e, de certa forma, desenvolve um processo de desnaturalização.
Dumont (2000) mostrou também como no mundo católico a Igreja faz
mediação entre a pessoa e Deus. No mundo das igrejas de matriz africana é a pessoa
99

que está no centro, que incorpora os deuses e faz mediação entre os deuses e a
sociedade. Monique Augras (2008, p. 21) explica melhor a essência desta pessoa:

Iniciático quer dizer do início, iniciar-se é passar por um conjunto de ritos que
levam o fiel de volta aos começos do mundo, as origens do ser. O saber
iniciático é o saber das origens, que não se assimila apenas, se vive.
Tamanha é a transformação do iniciado, que recebe outro nome: tornou-se
outro. A iniciação, o recomeço é, portanto, metamorfose: o outro que substitui
o neófito, quem é, de onde vem, o que quer dizer? (AUGRAS, 1983, p. 21).

Augras (1983) começa do histórico biológico para possibilitar que o neófito


passe para a dimensão da iniciação, para que se torne uma pessoa
socioantropológica. Baseia-se nos ritos de possessão, quando a pessoa se transforma
na presença dos deuses. Mas a possessão é um fenômeno temporário e quando
acaba a pessoa volta a ser única. Quando perguntei para algumas das minhas
entrevistadas “quem é você?”, elas responderam “sou filha de Iansã” e foram
enfáticas, com toda a convicção e eu pode ver nos seus olhos essa característica
sendo expressa.
Quando a pessoa se identifica como filha ou filho de alguém, quer dizer que
ela é a parte inteira deste alguém.

5.3 A FORMAÇÃO DO QUE CARACTERIZA O AFRO-BRASILEIRO

Sidney W. Mintz e Richard Price (2003, p. 66), permitiram que eu viesse a


entender a historicidade de um nascimento decorrente dos laços sociais entre
pessoas escravizadas. Eles partem do pressuposto de que para começar a criar
instituições viáveis, primeiramente deve-se tratar a questão do trauma da captura, da
escravização e do transporte, para então promover os referenciais do que viria a
formar a cultura afro-americana, sendo que essa cultura teria como premissa a
irmandade. Alguns dos primeiros laços sociais a se desenvolverem, principalmente no
tempo do transporte destas pessoas, foram de natureza dialógica.
Este pressuposto me ajudou na abordagem da questão da pessoa afro-
brasileira, porque mostra como o laço de amizade e cumplicidade desenvolvido
durante a travessia da rota negreira se constituiu como base de fundamentação e
organização social. Relação de irmandade que também está na base da cultura das
religiões de matriz africana. Mintz e Price (2003) afirmam que
100

o vínculo criado entre companheiros de viagem àqueles que partilhavam a


travessia no mesmo navio negreiro é o exemplo mais marcante. Em áreas
amplamente dispersas do afro-américa, a relação do parceiro de bordo
tornou-se um princípio fundamental da organização social e, durante décadas
ou até séculos, continua a moldar as relações sociais correntes. (MINTZ;
PRICE, 2003, p. 66).

O vínculo da irmandade ajudou na formação das religiões de matriz africana


por facilitar a integração dos recém-chegados a se fundamentar. Mintz e Price (2003),
estão falando de fundamentação de uma cultura religiosa que parte de vínculos de
amizade e por necessidade diante dos acontecimentos para a consolidação de uma
cultura religiosa ritualística. Em se tratando do nascimento de gêmeos, dizem:

...todos perceberiam com clareza a necessidade de fazer alguma coisa, mas


nossa hipotética mãe de gêmeos não teria nenhum conhecimento
especializado, como tampouco o teria nenhuma pessoa com antecedentes
étnicos iguais aos seus nessa fazenda. Entretanto, uma outra mulher, parenta
de uma que teria sido sacerdotisa de um culto de gêmeos em outro grupo, se
encarregaria da situação, praticando os ritos da melhor maneira que
conseguisse deles se recordar. Por força dessa experiência tal mulher se
tornaria a especialista local em parto de gêmeos. (MINTZ e PRICE, 2003).

Nesse ponto é importante retomar a questão do nascimento de gêmeos, pois


para o povo Ba-Kongo se trata de um evento muito especial e ao mesmo tempo
complicado. Pode se tratar da vinda ou da visitação de pessoas muitos ilustres da
família (clã) e tudo depende de como eles serão tratados. O nascimento dos gêmeos,
trigêmeos, ou quadrigêmeos é muito complexo segundo a nossa crença. São pessoas
que vêm do mundo imaterial por um motivo e duração determinados. Por esse motivo
se organiza um ritual, que não é um culto nem uma religião, mas um saber baseado
na nossa crença, que tem um significado importante na vida dos gêmeos e da
sociedade. Nós acreditamos que quando nascem gêmeos, chegam com potencial de
chefe, para abençoar, castigar ou ainda para conviver com a família, mantendo o
equilíbrio quando isso é necessário.
Nesse caso logo são seguidos por dois emissários que estarão lá para
controlar os seus desempenhos no mundo material. Como eu sou originário da tribo
Kongo, chamamos os gêmeos Nsimba o que nasce primeiro e Nzuzi o que nasce em
seguida e seus emissários são Nlandu o que nasce depois dos gêmeos e Lukombo o
que vem depois ele. Os gêmeos são crianças muito complicadas. Sendo chefes, se
não foram bem recebidos vão ficar com muita raiva e será prejudicial para a família e,
101

principalmente, para os pais. Essa necessidade é que fundamenta a organização do


ritual no nascimento e ao longo de sua infância, até crescer.
Assim, além do ritual do nascimento que é caracterizado por uma festa, com
música e dança apropriada para a ocasião, pintura, roupas para a mulher que vai
encabeçar o ritual, roupas para as crianças com a mesma cor (geralmente vermelha),
comida e tudo mais, dependendo do número de indivíduos que vão nascer - sendo
gêmeos tudo deve ser feito duplamente, se são trigêmeos vai três e assim por diante.
Quero frisar aqui que isso tudo não depende da religião, mas de uma crença
determinada no que eu vou chamar de bonkoko (magia).
Bonkoko (magia) é o elemento principal da nossa sociedade. É diferente da
religião. Se uma pessoa estrangeira vem até nossa sociedade vai ver isso
rapidamente. Se falar da religião, acreditamos no Nzambi Mpungu, Vidimukulu
Mawezi. Os Balubas falam de Mulopwe. Os ba swahili de Mungu Limemwa. Os
Bangalas de Nzakomba Olenkumu. Todos são diferentes do que chamamos de
bonkoko, porque a religião para nós é uma coisa abstrata, que não precisa de muitos
elementos e mediadores, estando acima do bonkoko.
A religião é praticada antes de as pessoas entrarem no bonkoko.
Primeiramente ela é consultada se acredita que Deus delegou o poder e o saber aos
antepassados, então se há uma coisa ou um acontecimento para qual devemos
consultar os antepassados usando o bonkoko. Por isso é manipulável, mas Deus não.
É por isso que temos búzios, oráculos, missanga e outros.
Voltando aos gêmeos, todo esse ritual se faz por causa destes indivíduos que
vão nascer. Eles não são como deus, mas são importantes, porque vêm com uma
gama de relações com os antepassados, que pode não ser benéfica para os pais e a
família. Tudo vai depender de como eles foram recebidos para cumprir sua missão.
Por exemplo, se vieram para castigar, mas foram bem recebidos, na maioria dos casos
eles não demoram muito no mundo material. Voltam rapidamente. Vão ter morte
precoce e vai ser morte que gera muito sofrimento aos pais, porque eles vão ficar
muito doentes. Os pais vão gastar muito dinheiro e por fim eles vão embora. Na
maioria dos casos nem os emissários vão chegar.
Caso não sejam bem recebidos, um deles vai voltar logo, em questão de
meses depois de nascido e o que ficar vai sofrer muito. Vai ser um castigo para a
família e os pais. Se vierem para abençoar e não forem bem recebidos, um deles vai
voltar e o outro vai ficar, mas no começo vai causar problemas pelo fato de que não
102

foram bem recebidos. Depois tudo vai se normalizar. Se foram bem recebidos e bem
tratados, vai ter fartura na casa e na família. Os pais dos gêmeos devem ser bem
cuidadosos e atentos, pois não podem tratar os gêmeos diferentemente. Se
comprarem uma roupa nova para um, devem comprar para o outro e devem ser
idênticas.
Voltando às relações que se estabeleceram entre as pessoas escravizadas,
além das particularidades já apresentadas em relação aos gêmeos, cabe apontar para
a cultura religiosa heterogênea. Nos primórdios, como mostra Mintz e Price (2003), ao
destacarem que os vínculos das relações pessoais experimentadas no convívio
imediato entre essas pessoas atravessaram o tempo e se mantêm até hoje, mostram
que é aí que reside a força das religiões de matriz africana e o elemento principal na
formação da pessoa afro-brasileira. Sem isso não existiria a religião de matriz africana,
nem a pessoa afro-brasileira.
Esta minha afirmação não quer dizer que estou enfatizando uma continuação
direita das culturas africanas no meio das pessoas que foram escravizadas no Novo
Mundo. Estou me referindo aos resquícios de alguns aspectos, os quais mesmo
separados apontam ser praticamente impossível de serem cortados. A nova cultura
religiosa dos afro-americanos, como dizem Mintz e Price (2003), é fruto da capacidade
de inovação e criatividade deste povo. Por exemplo, a língua crioula falada no Haiti, é
uma inovação, como uma demonstração de capacidade de resistir e inovar. Isto eu
pude ver no Templo dos Orixás. Ali os cultos de matriz africana têm essa capacidade
de inovação, pois havia muitos elementos presentes, que se apresentam como nítida
adaptação e inovação devido às necessidades e aos acontecimentos que se fazem
presentes naquele contexto.
Seria leviano dizer que os cultos de matriz africana são uma continuação
direita das práticas africanas. Estes cultos sofreram mutações, transformações que
resultaram no sincretismo que hoje são sua força. Por esta razão, não vou fazer
comparações das práticas ou dos elementos. Vou fazer como Strathern (2014)
propõe: ver o que está acontecendo e criar uma analogia para tentar explicar segundo
o meu entendimento. Não vou me propor a pensar nada, mas a olhar o outro,
experimentar o problema e ver quais argumentos elaborarei. Uma coisa é certa: o
espírito da coisa não muda. A cosmovisão e o contexto cultural e social podem mudar
o significado, mas o elemento central, o espírito da coisa, permanece intacto.
103

Posso pegar o exemplo das nomeações dos aspectos constituintes do


processo a ser observado. Quando falamos de macumba, o próprio termo nos leva a
pensar na magia como feitiçaria. Na minha língua, essa mesma palavra tem outra
significação, pois macumba é o plural de cadeado e de umbigo, mas o espírito deste
nome é o mesmo: no Brasil, macumba serve para ligar ou fechar e com os povos Ba-
Kongos, os cadeados e os umbigos servem para ligar ou fechar.

5.4 A PESQUISA DE CAMPO E O QUE VEM A SER AFRO-BRASILEIRO

Estabeleci contato com uma instituição que se assume como tendo vínculos
com a cosmovisão Banto como parte do processo investigativo da pesquisa. Essa
instituição é “O Templo dos Orixás”, criada e mantida a partir das ações de um
nigeriano que, em São Paulo, criou a organização como forma de manter vivas as
tradições e preceitos de suas origens. Essa instituição se ampliou e tem uma casa
ativa na cidade paranaense de Paranaguá, que será descrita e apresentada.
No desenvolvimento desse texto, fiz referência à instituição por ter realizado
entrevistas com diversas pessoas para compreender as questões centrais dessa
pesquisa. Assim, ao entrevistar uma integrante desse grupo e perguntar sobre o fato
de ela ser branca e porque, mesmo assim, se considera como afro-brasileira, a
interlocutora me informou ser discípula da Mãe de Santo do Templo dos Orixás de
Paranaguá, onde foi realizada a pesquisa de campo. Aqui a nomearei como Luz, para
não expor a sua identidade, conforme foi combinado como condição da entrevista. Ela
é filha de descendentes poloneses, trabalha no porto de Paranaguá e faz parte do
Templo dos Orixás. Ela é um dos braços direito da Mãe de Santo em Paranaguá.
Conheci Luz no primeiro dia em que entrevistei a mãe de santo. Foi em
novembro de 2018 e, naquele dia encontrei a mãe de santo sentada na sua cadeira,
tendo ao seu redor 24 discípulos, sendo 7 homens e 17 mulheres. Todos estavam
sentados no chão, descalços, na forma de meditação. Todos que fossem entrar
deveriam deixar seus sapatos para fora e se curvar até ao chão, beijando os pés da
mãe, pedindo a bênção e ela os abençoava.
Quando cheguei na porta de entrada, ela se levantou para vir me receber.
Entrei com os meus sapatos e não beijei os pés dela. Ela me deu uma cadeira e então
a minha colega, que me apresentou a esse terreiro, tomou a palavra e falou “Iya esse
104

é o Titi colega que eu tinha falado que vinha para conversar sobre o Templo dos
Orixás”.
A mãe deu um sorriso e me perguntou “de onde você é” e eu respondi. Ela
falou “eu também, a minha origem é do Congo, porque os meus avós me falavam isso
e gostaria de ir um dia no Congo atrás da minha origem” e eu respondi “estou à
disposição, se quiser ir é só me chamar e te levarei” e ela deu um sorriso. Nisto eu
estava olhando os discípulos e vi que tinha pessoas brancas, mas Luz me chamou a
atenção, porque era loira, branca mesmo. Eu olhava para ela e me perguntava “o que
ela está fazendo aqui? Aliás o que eles estão fazendo aqui? Porque não é o lugar
deles”. Tudo isso acontecia porque na minha concepção o afro-brasileiro seria uma
pessoa da pele escura. No mínimo um mestiço que tem predominância escura. Nunca
passou pela minha cabeça que uma loira se considerasse afro-brasileira e se
considerasse como tendo ascendência negra.
Enquanto estava conversando com a mãe, a minha atenção estava sempre
nela, porque ela se destaca. Aquele dia não falei com ela porque era o primeiro dia e
eu queria conhecer o terreiro e conversar, explicar a minha motivação, para depois
começar o meu trabalho. Passou um tempo que eu ia lá, mas não via ela e na minha
quarta ida perguntei dela para a mãe e ela me disse Luz estava trabalhando, mas
sempre estava por lá. Então a mãe me disse “você quer conversar com ela?” eu disse
“sim”, ao que ela replicou “na próxima vez que você vier aqui ela estará para conversar
com você”.
Então, na minha quinta visita, Luz estava presente. Quando eu cheguei
naquele dia estava a mãe, a filha dela que aqui eu identifico como Ludi, Luz, Ana, o
advogado, a professora, a enfermeira e o motorista. Como de hábito, quando cheguei
a mãe veio me receber na porta da entrada do quintal e entramos. Naquele dia fiz
questão de tirar o meu sapato. Queria sentar-me no chão como os outros, mas a mãe
falou “você é meu convidado, não pode se sentar no chão”. Com essa atitude,
diretamente reconheci nela o elemento cultural dos Ba-Kongo. Se você é o convidado
de um mukongo, ele vai te tratar como príncipe, vai fazer de tudo para que você se
sinta exaltado e feliz e a mãe de santo tem esses elementos, de exaltar os seus
convidados e olhar primeiramente na barriga, não na face, mas nunca falei para ela
sobre disso.
Os Ba-Kongo não olham diretamente para o rosto dos convidados, quando te
recebem, te olham na barriga e tem um ditado tradicional que diz: “mopaya ba talaka
105

ye na elongi te kasi na libumu”, o que quer dizer “não se olha o convidado na cara,
mas na barriga”. Me sentei na cadeira que ela me mostrou e Luz estava sentada no
chão. A mãe me perguntou se poderia começar a conversar com Luz e eu falei que
gostaria de começar com ela e terminar com a mãe. Então comecei a conversar com
ela.
“Qual é o seu nome?”, “Luz...”, “o nome do seu pai e mãe?”, ela me respondeu
e com essa resposta vi que os pais dela tinham nome polonês. Perguntei o sobrenome
dela, porque não é um nome de descendente polonês e ela me respondeu “desde a
barriga da minha mãe os orixás tinham escolhido esse nome para mim”. “Como você
sabe disso?”, “a minha mãe me falou”, “faz quanto tempo que você está no templo
dos orixás?”, “5 anos”, “mas como você falou que desde a barriga da sua mãe os
orixás tinham escolhido o nome por você?”, “a minha mãe era do candomblé”, “por
que você não a seguiu no candomblé?”, “antes eu não acreditava nisso, eu era
católica”. “Por que deixou de ser católica?”, “antes de conhecer o culto de matriz
africana eu não vivia, eu era separada da realidade, a minha existência era separada
por um vazio muito grande e um sentimento desconhecido, não via sentido na minha
vida”. “E agora como você se sente?”, “agora me sento viva”.
“Quem é você?”, “Eu sou um descendente afro na pele branca”. “Como
assim?”, “Porque hoje eu entendo que a minha ancestralidade veio da África, não da
Polônia”. “Explica-me melhor!”, “como tinha te falado antes, eu não vivia até renascer
quando comecei a professar a religião de matriz africana, nisto eu me vi muito mais
afro-brasileira que uma polaca como me qualificava antes, hoje me sinto 100%
brasileira e 100% africana, não tenho nada a ver com a Polônia. O culto aos orixás
me fez viver, deu sentido para a minha vida. Eu vivia depressiva, nada era bom para
mim, mas hoje vejo o sentido da vida. O culto dos orixás ressignificou a minha vida”.
Ela me disse que há muito tempo sua existência era separada do mundo real
por um vazio e um sentimento desconhecido, disse que “a minha vida não tinha
sentido, não me sentia viva em nenhum lugar, mas quando comecei a acreditar e
professar a religião de matriz africana, vi que este vazio e o desconhecido
desapareceram e agora me sinto viva, útil e me sinto como se tivesse nascido na
África em outra encarnação”. Essa declaração mostra claramente como uma pessoa
ultrapassa todas as barreiras e fronteiras existenciais para se achar numa nova
configuração da sociedade pela qual se torna integrante.
106

Cada um dos entrevistados recorria às suas origens para tentar solucionar


algum problema que tenha surgido durante a entrevista como Luz. A enfermeira que
desde que tinha chegado estava nervosa e chorava porque foi discriminada pelo fato
de fazer parte do culto de matriz africana e em especial na instituição/terreiro no qual
estou fazendo pesquisa. Ela chegou e estava se queixando com sua líder, relatando
o fato e a líder disse que iria colocar diante dos orixás e ver o que vai acontecer, mas
ela recusou e disse “eu tenho o meu tio que é desembargador e não vou deixar isso
barato, vou colocar essas pessoas na justiça” e disse “imagina eu que sou branca
estou sendo hostilizada e vocês que são negros, como é que eles vão se comportar
diante de vocês?”. A mulher que citei aqui é discípula e filha espiritual da Mãe de Santo
no Templo dos Orixás, ela é enfermeira, branca, descendente de italianos e trabalha
junto com a mãe no hospital de Paranaguá. Aqui ela será nomeada Ludi.

No dia a dia é muito complicado por que as pessoa passa te questionar desde
o começo a nossa vida a questão afro ela é viva por causa da nossa
religiosidade, ela não é uma coisa só de lembrança ele é muito viva então se
pela amanhã nós temos que levantar fazer um ritual por estar acuado fora de
casa usar um ornamento daqui da religiosidade uma peça no aquele dia por
traz uma auto identificação uma força daquele dia, eh as pessoa questiona
na rua, questionar você pode ignorar, mas ai você começa a ser separado na
convivência social, as pessoas te quer bem, mas você se sente excluído.

Aqui a entrevistada coloca em pauta o dilema que vive em dia a dia, como
estão sendo hostilizadas e estigmatizadas. Ela evoca a questão afro-brasileira, o que
para ela é ligada com a sua vida. Mostra claramente como pertencer na religião de
matriz africana ressignifica a sua vida e como ultrapassa a questão da luta cultural e
se torna uma classe na camada social brasileira.
Bastide (1960) diz: “a conclusão que se depreende do capítulo anterior é que
a civilização africana (e a religião é dela parte integrante) tornou uma subcultura de
grupo” sendo ela uma subcultura, está na base de organizações de militância para
uma luta equitativa dos direitos. Pude identificar este sentimento nas pessoas que são
objeto da minha pesquisa. Pude ver na fala da Ludi, considerando que ela é a filha
biológica da Mãe de Santo do Templo dos Orixás em Paranaguá e discípula número
um do terreiro. Ela disse que devemos nos organizar na militância violenta, partir para
a guerra para que as nossas vozes sejam ouvidas, porque acha que é a última coisa
que falta para nós sermos ouvidos.
107

Então eu perguntei “se você não acha que ter uma militância e partir para a
guerra é uma coisa de mais? Por que já tem vários movimentos que lutam pelo direito
dos negros?” Ela respondeu:

É complexo e é uma falta de aceitação, é uma questão de sobrevivência, nem


será eu que terei o privilégio de não trazer muito a revolta por que eu não vim
com a pele negra para ser distratada na sociedade, mas eu trago a revolta
interna por justamente ser branca, quando estou no meio dos brancos, e
negras quando estou no meio dos negros, eu escuto o que eles falam do meio
negro e ai vira um embate muito pesado né é complexo, mas basicamente
quando você aceita aquilo que te define te dá uma força social que ninguém
derruba ninguém mexe com a sua convicção, com seus objetivos só que
quando a gente tenta se aceitar no meio que a gente não se identifica com
característica, conversa, tudo é muito difícil e você se sente enfraquecida, se
sente completamente enfraquecida.

É por isso que precisamos de uma militância que vai abranger todo mundo
que faz parte das religiões de matriz africana sem distinção da cor da pele, coisa que
já se faz nos movimentos que existem. Assim, na medida em que “O protesto do
escravo e a religião” de Bastide (1960) mostra exatamente o que está sendo tramado
no coração da pessoa afro-brasileira, começando no elemento místico nas
resistências como fuga e violência, hoje é o elemento místico da religião que está no
centro para motivação de uma resistência. Hoje não falaremos mais de fuga individual
ou grupal como um protesto, mas a resistência para achar um lugar nas diferentes
esferas da sociedade. E o elemento principal que ajuda a propulsar isso é a religião.
Não foi somente a religião como elemento catalisador que ajudou a frisar a
passagem do ódio individual à resistência coletiva, como diz Bastide (1960), hoje ela
é também um escape para lhes ajudar na reivindicação contra a injustiça social e uma
forma para que se sintam vivos. Como meio para se constituir enquanto sociedade, a
religião é a alma de tudo que eles podem fazer.
Dessa forma, a religião não somente lhes ajuda como meio de se identificar
enquanto pessoa integrante a uma sociedade, mas como um meio que lhes ajuda na
resistência e no posicionamento na sociedade. Também se apresenta como um meio
para valorização e afirmação social. Se no tempo da escravidão os quilombos foram
o lugar de refúgio e proteção para as pessoas escravizadas, hoje este lugar é a religião
nos terreiros.
Para chegar neste ponto, Bastide (1960) mostrou como o branco fez para
escapar do ódio do negro. O branco precisou criar uma paranoia no negro, uma
dualidade de personagem. Num lado o feitor como um personagem brutal, em quem
108

o negro poderia descarregar o seu ódio e o senhor que lhe dava a benção no
crepúsculo e que lhe permitia a dançar à noite, mostrando que os respeitava. No
Império, o Brasil teve a instituição dos apadrinhamentos, como pessoas que lhes
defendia contra a brutalidade de seu senhor. Esta dualidade funcionava entre o
padrinho amado e o senhor detestado. Nos conventos essa dualidade funcionava
entre o abade e o santo. Para terminar este assunto, Bastide (1960) finalizou falando
de um velho costume português, que é do testamento de Judas.
Outro meio de fuga das pessoas escravizadas foi o suicídio. Para eles foi o
meio mais fácil e curto para facilitar a sua volta rápida para casa. Neste caso não é
questão da covardia como, mas é que nós acreditamos na vida após a morte, porque
é lá que vivem os antepassados. Então o suicídio de certa forma é o caminho que
pode levar a alma de volta para casa. Como Bastide (1960) diz: “o africano não separa
o mundo material, como nós o fazemos do conjunto dos valores que ocupam cada
posição ecológica nesse mundo; ele não vê a colina como uma colina, mas como a
morada deste ou daquele espírito ou como o centro tradicional deste ou daquela
cerimônia”.
Ainda com relação às entrevistas, destaco o depoimento de RS que aponta
que todo o grupo acaba por aceitar as pessoas segregadas, até porque existe um
processo interno de identificar a que etnia a pessoa pertence, observando a forma de
ela viver e como ela se sente, até que eles também acabam sendo segregados por se
manterem perto dela, mas aí eles não mais conseguem se identificar com os outros
grupos. Então acaba se formando um núcleo para poder organizar um meio em que
possam conviver com este ser que a sociedade não aceita.
Em continuidade pergunto: “A senhora Roseli é da descendência das pessoas
afro-brasileiras?” Como resposta ela aponta que

não tem como você determinar ascendência dela né porque ela é uma
mistura de muitas etnias. Então brasileiro ela é um pouco de cada etnia que
compõe a cultura brasileira desde a época da colonização mesmo que agora
tudo se transformou. Agora você está perguntando de formação ou de
descendência?

“Bem, talvez eu possa reformular a minha pergunta, a senhora pode me


explicar por que se considera afro-brasileira?”
109

(Roseli) primeiro por causa da minha descendência que é africana, isso eu


tenho certeza dela, depois disto também dos próprios povos daqui, no pais
que fui misturando, então eu tenho certeza da minha descendência africana
por que já foi comprovado, e eu tive como comprovar através dos meus
parentes, mas também eu tenho ascendência do resultado de descendente
aqui no brasil, então isso misturou então não tem como você buscar uma
pureza africana, eu tenho ela, sinto ela mais forte por causa da pele então
sinto ela mais forte em mim, e eu tive que buscar ela justamente por que eu
não me encaixo em lugar nenhum.

A resposta da senhora Roseli mostra a pluralidade que compõe a pessoa afro-


brasileira. Desde a sua composição biológica até a sua formação socioantropológica.
Tanto a sua religião quanto a sua formação como pessoa, tudo é produto de
miscigenação, de forma que é impossível ter como pessoa afro-brasileira somente os
descendentes dos africanos que foram trazidos ao Brasil para serem escravizados.
Hoje todo mundo que abraça e aceita a religião de matriz africana e se torna membro
mediante iniciação se torna afro-brasileiro, independentemente da sua raça, cor ou
etnia.
“E o que é que a senhora chama da pureza africana?”

(Roseli) você ter só uma descendência e não ter uma ou muita mistura, então
eu sei que tenho a mistura europeia, por que isso daí tem que buscar e sei
que tenho parentes que são holandeses, os meus bisavós por parte do pai e
ai fui saber por que meu pai é paraibano, só que justamente por causa do
sobrenome é que ele sabe que parte de quem eras família por causa de
sobrenome eles adotava do oficio que eles praticava, os holandês quando
acostaram lá na paraíba, eles adotava os nomes do oficio deles. Eles
plantavam pera então o meu é pereira aí através do sobre sobrenome sabe
que parte da Paraíba que eles estavam então pelo sobrenome eles
identificavam onde que eles colonizaram quando eles chegaram da Holanda
e aí você busca até na minha própria personalidade, você começa a ver,
quando você conhece um paraibano a forma deles de ser eu me acho neles.

Nessa resposta a senhora Roseli destaca uma personalidade influenciada por


caráter de uma herança genética que ocasionou a formação dela como pessoa física.
Rita Laura Segato (2005) destaca como as divindades definem a personalidade e o
caráter dos seus filhos:

mas, como generalização, é possível dizer que a personalidade de um


membro do culto é definida basicamente como o resultado da combinação de
duas divindades na sua cabeça, constelação que como explicarei ainda neste
capítulo, tende a ampliar-se, nos casos bem-sucedidos, em razão da
antiguidade do adepto na vida do culto e como consequência do
aprofundamento dentro dos preceitos da religião.” (SEGATO, 2005, p. 233).
110

“E qual é a forma de ser de um paraibano?”

(Roseli) eles são contestadores, tudo tem que ser como deve ser, são muito
firmes, muito família, muito de respeitar autoridades dos pais, tem essa coisa
família para eles é tudo. Então eles mantêm os padrões. Para a nossa cultura
aqui do sul e sudeste é muito diferente, mas é assim que eles são. Então
mesmo eu não tenho tido contato maior com a minha família paraibana, mas
eu me reconheço quando eu vejo um paraibano, aí também eu reconheço
quando vejo um africano. Eu me reconheço então você vai se achar em
determinada situação e tem aquele que você puxa mais, tem aquele que você
traz mais forte né.

A senhora Roseli está descrevendo os caracteres até na fala de um paraibano


que faz parte da sua personalidade. Isso se vê também nas pessoas membro dos
cultos de matriz africana. Suas personalidades e caráter são moldados e
redesenhados a partir dos santos que elas. Segato (2005) cita o que o seu informante
lhe falou: “além disso, os santos oferecem também uma linguagem para se falar a
respeito dos diferentes estados mentais que tomam conta das pessoas.
Consequentemente, as próprias mudanças de humor são descritas e interpretada
como mudança na dominância dos santos que a pessoa em questão tem.” (Segato,
2005, p. 235).
Sendo esta questão numa dimensão mística, não tem como a cor ou a raça
da pessoa interferir na sua formação enquanto pessoa afro-brasileira. Até porque
muitos paraibanos são descendentes dos holandeses, mas isso não interferiu em
nada para que eles fossem brasileiros.
“É por meio da espiritualidade por onde se entra na formação da pessoa
paraibana?”

(Roseli) bastante principalmente na hora do culto, dentro da umbanda é um


culto muito bonito, por que eles conseguem trazer toda essa descendência,
todos esses ancestrais e ai eles vem de uma forma, por exemplo, se um
holandês que viveu na Paraíba ele vai misturar toda descendência dele como
a cultura da terra e ai você vai ver holandeses mas vai ver ele paraibano e
dentro da espiritualidade, isso consegue separar na hora do cultuar por que
eles vêm com nomes, mas a forma deles de atuar você reconhece você pode
não reconhecer no primeiro momento depois você conhece.
111

Por exemplo, a etnia na qual você volta aqui, vai falar com o jeito daquela
entidade de trabalhar agora eu entendi que ele faz isso, faz aquilo, ele
reconheceu isso aí você vai achando os vínculos. Dentro da umbanda você
consegue achar isso então, por exemplo, os caboclos que na verdade são
indígenas, mas não são todos indígenas aqueles que tinham uma forma de
ser e de trabalhar com a terra, na mata tudo, mas eles quando possa para vir
trabalhar. Eles entram numa linhagem e aquela linhagem dos caboclos, mas
ele trabalha com a terra, ele se assemelha à forma deles, então, na hora que
você vai ver que ele vem para fazer o ritual, fazer alguma coisa ele vai usar
beberagem, ervas, porque eles viviam na mata também eles eram caçadores,
eles eram pessoas também como indígena, pois aquele conhecimento é
também do indígena.

A resposta acima mostra os elementos que contribuem na formação da


pessoa afro-brasileira. A senhora Roseli está fazendo uma comparação entre os
elementos místicos que compõem uma pessoa socioantropológica, com os elementos
que formam uma pessoa social, neste caso o paraibano. Se a pessoa
socioantropológica é composta dos elementos ou caráteres dos seus santos, a pessoa
social é composta pelos elementos psico biológicos dos seus antepassados.
“Então veja se eu entendi, o caboclo que a senhora está falando é na forma
espiritual?” “(Roseli) isso”. “Então qual é o lugar que essa espiritualidade ocupa dentro
da pessoa afro-brasileira?”

(Roseli) ela ocupa como companheiro espiritual e um descendente,


antepassado, ancestral por que um dia ele veio ori aquele que permanece, a
energia que permanece e que toma outro corpo para poder atuar na nossa
espiritualidade, ele traz toda a uma informação de cada vivência dele então
todos aqueles que fizeram parte da vida dele no uma determinada época 100
anos ou 50 anos atrás se torna por ente e pessoa que fazem parte da vivência
dele naquela época. Então até vizinho, tudo isso também faz parte e os
parentes quem foi pai, quem foi mãe, que o Ori renasce no outro corpo, ele
traz toda essas informações e essa ancestralidade.

A meu ver as divindades redesenham ou recodificam a personalidade e o


caráter da pessoa, quando elas baixam na vida de um iniciado ou iniciada, tomando
conta de tudo, como fala, gesto, reações, atitude e outros. Então a pessoa afro-
brasileira pode ser considerada como o fruto das manifestações das divindades.
Segato (2005) mostra isso quando disse:

um filho de xangô é muito agitado. Eu mesma sou desse jeito: eu brinco muito.
Todas as pessoas sabem que ele é um santo que é muito engraçado, muito
divertido, alegre como todos. Ao mesmo tempo, em algumas ocasiões, eu
não estou para brincadeiras, eu mudo minha aparência, eu fecho a cara. Acho
que isso acontece quando estou sob o odum [a influência] de Iansã, então
meu rosto fica carrancudo, eu fico aborrecida com qualquer coisa, eu reclamo
e fico chateada facilmente. (SEGATO, 2005, p. 235).
112

Segato (2005) mostra como os orixás influenciam a vida da pessoa, então


essa pessoa vai desenvolver várias características e personalidades que lhe serão
comunicadas por seu orixá.

5.5 O TEMPLO DOS ORIXÁS COMO ORGANIZAÇÃO AFRO-BRASILEIRA

Situada em Paranaguá como Centro Cultural, o Templo de Culto aos Orixás


Ìorubas Òdàrà Àjé, teve início em Jardim Palmital, onde foi a primeiro assentamento
do Iangi em Paranaguá, que foi o Àse (axé) da casa. A partir disto que começaram os
primeiros rituais, depois da consulta oracular que determinava os rituais que deveriam
ser feitos e isso foi em 2001.
Anteriormente os rituais eram restritos à sede no Guarujá, litoral de São Paulo,
depois aconteceram duas mudanças até se fixar no lugar atual, que fica na Rua
Oswaldo Rodrigues Branco, 10, bairro João Gualberto, onde a casa está aberta há 14
anos. A casa vem mudando a sua cor por causa da orientação oracular, porque têm
muita influência na energia da casa. Quando a construção terminar, a casa terá uma
cor específica. O Templo dos Orixás se caracteriza como uma família de sacerdotes
dirigidos por Bàbá King que é o Bàbá Òrisà (orixá) e um corpo sacerdotal.
Mas por enquanto, de acordo com a energia, existem momentos em que a cor
tem que mudar. E já ocorreu por três vezes que a cor desta casa foi alterada. A
primeira vez foi branco e cinza, a segunda foi amarelo e agora está azul, branco e
laranja. Mas já vai ser mudado por causa da orientação oracular. Isso acontece porque
a casa ainda tem muitos axés a ser plantados. Ela vive ainda sob a influência externa.
Esse é um fato que faz que com que o oraculo da casa determine a mudança
para que a cor possa vibrar entre os discípulos, no momento dos rituais, porque as
cores auxiliam na vibração energética. E agora a casa vai voltar para a core amarelo
porque é a energia da casa que é a Òsun (Oxum).
A casa em Paranaguá é um braço ligado na sede internacional, que fica em
Mongaguá, litoral Paulista em Santos, que é da família odùdùwà. Existe a família
africana que fica em abéòkutà, na Nigéria, África. A casa de Mongaguá é um templo
grande que tem quase uma quadra em frente à praia de Mongaguá. É um espaço
construído com várias esculturas africanas. Muros e todas as dependências internas
foram projetadas de acordo com as especificações energéticas, inclusive as
esculturas foram feitas por um sacerdote de Òsogbo. Quem também construiu as
113

esculturas de Òsogbo foi um artesão do mesmo grupo do sacerdote que veio da África
especificamente para isso. Esse espaço tem vários alojamentos. As salas e os
espaços dos orixás de alguns axés que foram determinadas para ter um espaço
específico para todos dentro de um espaço maior.
Esta casa tem amarelo terra e essa cor é desde o início e é bem parecida
com as construções africanas. Também na África, em abéòkutà, a casa é da mesma
cor. Esta casa é o templo da família de odùdùwà no Brasil. Existe também outro templo
em Tocantins, cujo terreno foi comprado há mais de 25 anos e está sendo construído
há cinco anos e o líder é o Bàbá King. O Templo dos Orixás pertence à nação Nagô
(ixéxé) da tradição Iorubá.
Eu conheci esta casa (terreiro) através de uma colega e amiga, Ana. Estudei
junto com ela em algumas disciplinas do Mestrado na UFPR. Ana é professora de
sociologia em Paranaguá, onde também é a sua residência.

FOTO 3 – IYA ROSELI

Ela frequentava a Mãe de Santo do Templo dos Orixás, me indicou e fui bem
recebido pela Mãe de Santo. Quando começamos o ano acadêmico a minha grande
114

preocupação foi “onde farei a minha pesquisa?”. Queria logo começar a entrevistar as
pessoas e estabelecer o meu campo. Tive muitos contatos com muitas pessoas, mas
nada deu certo. Até que, no segundo semestre, quando conheci a Ana, minha colega
da sala, que mora em Paranaguá, no dia 8 de outubro de 2018, estávamos a conversar
acerca dos nossos projetos e como seria o local de nossas ações de pesquisa de
campo, o que motivou essa colega a me perguntar “onde é o seu campo?”, eu
respondi que estou à procura, ainda não achei, e ela retrucou “você não quer ir
conhecer o terreiro que eu conheço e frequento?” e perguntei aonde?
Ela me disse “minha amiga a mãe dela é Iya no templo dos orixás se quer
posso conversar com ela para que você vá lá e estabelecer o seu campo lá” e eu
aceitei na hora. Terminou o intervalo, voltamos nas aulas e passou quase uma
semana, quer dizer dia 15 de outubro 2018, Ana me mandou uma mensagem dizendo:
“conversei com a Iya e ela me disse depois de dia 25 de outubro ela está livre, você
pode ir o dia que quiser”. Fiquei muito feliz com a essa notícia e perguntei o que ela
poderia querer para eu fazer antes de ir ao seu encontro.
Ela me disse que o primeiro dia seria somente uma conversa para nos
conhecermos e explicar para ela o que pretendo fazer e como vai ser feito e ela me
falar o que posso e o que eu não posso. Eu aceitei e logo marquei o dia: 8 de novembro
de 2018 foi uma quinta feira às 14 horas. Naquele dia eu saí de Curitiba as 10h30 e
cheguei em Paranaguá às 11h45. Ana foi me buscar na rodoviária e me levou para
casa, onde almoçamos. Ao chegarmos ela estava acompanhada de sua amiga adepta
do templo dos orixás. Depois de almoçar saímos da casa da Ana e seguimos para o
terreiro. Quando chegamos ao terreiro, encontramos a Iya sentada na sua cadeira e
os seus discípulos sentados no chão e os outros que chegavam pediam benção e
beijavam os seus pés, e tiravam os sapatos antes de entrar na peça onde estávamos.
A nossa conversa naquele dia se pautou no que eu poderia fazer e o que eu
não poderia. A Iya me disse você pode participar em algumas cerimônias que
fazemos, tipo o ebó, mas o ifá você não pode participar. Só no final, quando os
iniciados vão sair que você pode participar. Tem lugar aqui na casa que você não
pode chegar e você pode utilizar o termo feitiço e falar da feitiçaria. Você pode me
chamar como quiser e se quiser me reverenciar como os meus discípulos estão
fazendo pode. Se não quiser não tem problema. Pode participar nas refeições, mas
se não quiser também não tem problema.
115

Pode ficar aqui quanto tempo você precisar e deve participar em Santos, São
Paulo, no festival do ifã pelo menos uma vez antes de terminar a sua pesquisa. Eu
expliquei o que faria. Disse a ela que ficaria no terreiro dela observando e fazendo
entrevistas e conversaria, com as pessoas que puder, mas o meu foco é ela. Faria
perguntas esquematizadas e espontâneas. Participaria no que ela permitir e seguiria
as diretrizes dela. Isso foi mais ou menos a nossa conversa no primeiro dia. Não fiz
nem uma pergunta relacionada ao meu trabalho. Esta casa (terreiro) tem 30
discípulos, fora os clientes que são mais ou menos 20 por mês. Tenho mais com a
Mãe de Santo, e com sua primeira discípula que é a sua filha biológica e duas das
suas discípulas que aqui estou chamando-as de Luz e Luz2.

FOTO 4 – O AUTOR, ROSELI E LUDI

O líder máximo desta casa é Síkírù Sàlámì King, Iorubá da Nigeria, babalorixá,
doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e fundador de um dos maiores
templos de orixás no Brasil, o Odudua Templo dos Orixás, com 6.300 metros de
terreno, de frente para o mar e mais de 2.500 metros de área construída, na cidade
de Mongaguá, litoral paulista, o qual se caracteriza como espaço de ensinamentos e
práticas da cultura e da religião tradicional Iorubá.
Ele é filho da linhagem real, nasceu na cidade de Abéòkúta e é Sacerdote
Iorubá há décadas. Mora no Brasil desde 1983. Começou sua caminhada espiritual
116

ainda na infância, na sua cidade natal, onde foi iniciado em Ifá-Orúnmìlà, Ìyámi
Òsòròngà, Egungum e diversos outros orixás. Sabe manipular as plantas porque tem
um grande conhecimento sobre isso. Na Nigeria ele tem vários cargos hierárquicas
de grande importância e tem o título de Bàbá Egbé da Sociedade dos Babalaôs de
Abéòkúta. É também fundador do templo de orixás em Abéòkúta, Nigéria. Casado
com Ronilda Iyakemi Ribeiro, brasileira; ialorixá, doutora em antropologia da África
negra e em psicologia pela Universidade de São Paulo, docente e pesquisadora da
USP e da UNIP e líder do grupo de pesquisas (CNPq) de estudos transdisciplinares
da herança africana. Os dois escreveram o livro “Exu e a ordem do universo”,
ministram cursos e palestras e promovem publicações, além de realizar consultas
oraculares utilizando o èrìndílógún (o jogo dos dezesseis búzios de Ifá). São pioneiros
no ensinamento da prática do jogo dos dezesseis búzios e de outros conhecimentos
relativos aos orixás. Tudo isso acontece no Oduduwa Templo dos Orixás, que tem
desde 2003 a sede própria, e é onde atuam em atividades religiosas, como iniciações
em orixás e rituais de ebó e bori.
Como todo africano genuíno, ele tinha preocupação no que diz respeito a
questões da África subsaariana e isso o levou a se dedicar na pesquisa e fazer recurso
nas fontes da oralidade e dos mestres tradicionalistas na África. O resultado desses
estudos e pesquisas foram publicados em livros e estão presentes nos textos de
palestras, seminários e cursos, conforme escrito em sua biografia:

Suas pesquisas deram origem a livros, vídeos e registros em áudio, além de


palestras, entrevistas e cursos em diversos países. As peculiaridades de sua
trajetória permitem que, como pesquisador, tenha acesso privilegiado à
Religião Tradicional Iorubá, uma vez que é um sacerdote nativo desta etnia.
Permitem, inversamente, que sistematize conhecimentos orais e os
apresente a seus discípulos com uma sólida metodologia acadêmica.
(BIOGRAFIA, 2017)

A figura de Baba king é muito importante no cenário da religião dos Orixás no


Brasil. Ele influenciou muitos pais e mãe de santo a sair de suas zonas de conforto e
buscar suas origens de ancestralidade na África, além de contribuir para o aumento
da importância dos babalaôs na religião dos Orixás. Está sempre promovendo a
cultura e a religião dos orixás, sendo elo entre o Brasil e a África, trazendo sacerdotes
africanos todo ano para a capacitação dos iniciados e discípulos. O Baba King
retomou o culto oromuluifa, que ajudou na reconfiguração da maneira de cultuar os
Orixás. Também ajudou a melhorar muitas casas de candomblé que não tinham
117

fundamento, o que incentivou muitos sacerdotes a buscar o conhecimento de


ancestralidades. Contribuiu também na reeducação social das pessoas que fazem
parte dos cultos dos Orixás. Essa reconfiguração não aconteceu somente na parte
estrutural, mas também na parte espiritual (energia). Isso fez com que as pessoas se
abrissem na sociedade e tivessem um novo conceito da magia.

FOTO 5 – BÁBÁ KING

O ser humano está sempre à procura de significado do mundo em que ele


vive e a religião é um dos meios que o ajudam a receber o significado da vida. Mas
sabemos que enquanto a sociedade cresce e permanece muito tempo a religião
conhece modificações por causa do tempo e das novas configurações da atualidade.
Muitas vezes os pesquisadores deram respostas genéricas no que diz respeito ao
significado religioso, como diz Bastide: “Obviamente, não devemos nos contentar com
declarações gerais demais, mas buscar em cada ritual as funções próprias e
específicas - que infelizmente nem sempre fazemos”. (BASTIDE, sem ano)
Com essas posições é fundamental compreender que ao procurar funções e
especificações dos rituais se constitui uma ação revestida de muita importância,
porque ajuda a entender a carga emocional e cultural da pessoa engajada na religião.
Cada pessoa dentro da religião está sempre se reconfigurando, procurando o
posicionamento na sociedade e o ritual lhe ajuda nesta busca.
Durante minha pesquisa no campo pude enxergar essa busca na vida dos
meus entrevistados. Uma pessoa quando se declara afro-brasileira não o faz por
118

prazer ou rebeldia, mas em relação às funções próprias e específicas que o ritual tem
ou produz. Perguntei a duas mulheres que são professoras e adeptas na casa, que
estavam prestes a participar de um concurso público e, apesar das preparações nas
leituras das apostilas do concurso, precisavam fazer o ritual de ebó para que isso lhes
ajudasse a conseguir a aprovação.
Quando voltaram da prova estavam muito felizes porque o resultado foi
positivo, mas a terceira mulher que estava lá e participou do concurso não foi aprovada
e estava triste. Quando fui perguntar por que ela não havia passado, ela me disse “eu
não fiz o ebó é por isso que não passei”. Então está muito claro que as funções e as
especificações que os rituais produzem e têm fazem com que os adeptos se
reconfigurem sempre para alcançar os resultados esperados em suas vidas.

5.5.1 O calendário e a dinâmica ritualística do Templo dos Orixás

O calendário dos rituais no Templo dos Orixás começa no festival do Ìyámi (o


festival das mães) e termina também no festival de Ìyámi. Este festival começa no
início de dezembro, a partir do dia 10 geralmente, até o início do ano. É a forma como
eles comemoram o ano novo, quando vêm os sacerdotes de África. Termina no festival
do Ifá 27/01, geralmente esta data também marca o fim do tempo dos sacerdotes
africanos.
O Ifá é a iniciação que corrige o destino e determina quais são as iniciações
que a pessoa deve fazer. Depois, em cada mês existem os Òsè, rituais para alimentar
os orixás. São festivais dos orixás femininos ou masculinos, em que as pessoas
trazem os seus assentamentos, montados na iniciação para serem alimentados numa
forma coletiva, conforme foi determinado no oráculo. Há também as palestras em todo
festival do Òsè, aberta para todos. Há os rituais de tratamento que são Ebó. Em cada
sexto mês no ano se organiza o buri, que é o ritual de alimentar a cabeça, quando a
pessoa não é iniciada, e uma vez por ano pelos iniciados, ou quando é determinado
no oráculo.
Em Paranaguá o ano inicia-se no festival dos orixás masculinos, dependendo
dos orixás como Obalúwayé, o Egúngún ou Èsù (exu), para alimentar os
assentamentos e sacralização dos axés, derruba-se o cabrito. Depois vêm os rituais
de Ebó, que não têm data fixa e acontecem conforme é determinado pelo oráculo. O
ritual de buri acontece duas vezes por ano, quando a pessoa não é iniciada. Quando
119

a pessoa é iniciada é determinado quantas vezes precisa passar pelo buri. Eu


participei nos rituais de Ebó. É um ritual que eles chamam de limpeza energética
através dos elementos pré-determinados pelo oráculo, que é justamente para que o
Èsù (exu) faça a ligação e a ponte necessária para a permissão do Ori.
É determinado pelo Ori, que é o deus individual, e somente para a sua
permissão que todos os rituais podem ser feitos. Se o Ori não permitir, nada pode ser
feito. Exu é o primeiro a ser reverenciado porque é ele que vai ligar todos os rituais
determinados pelo o Ori. Quer dizer um ritual onde é feito oferenda que vai ser
depositada na encruzilhada em nome do orixá. Encruzilhada ou assentamento é o
ponto de força do orixá. Os elementos do Ebó são: gim, dendê e mel. São para o
fortalecimento do Èjè que vai abrindo os portais. Depois do derramamento do Èjè no
assentamento, são colocados outros elementos, os pós. Vai o Ajé, o sal porque é
conservante, ossum, Ìyèròsùn que são pós-mágicos que vêm dos elementos da
natureza que acompanham a oferenda. Ajé é um pó azul índigo que representa a força
de ogum. Ìyèròsùn é um pó que vem do bambu ou árvore africana. O Òssum também
é um pó de uma árvore e o Efun também que é um pó de giz ou de um calcário. São
esses elementos que acompanham o sangue do animal.
Depois o animal vai ser limpo e consumido ou oferecido nas instituições de
caridade ou asilos. Somente o sangue, a cabeça e as patas do animal que são
oferecidos na oferenda. Isso acontece quando o sacerdote passa esse elemento no
corpo do paciente (a pessoa) e depois faz o ritual de corte, que é o abate do animal,
também pré-determinado pelo oráculo. Esse abate é para retirar o sangue da vítima
para a energia de oxum que vai ser levado para o espaço também pré-determinado
pelo oráculo pela mesma energia que é exu. O sangue é então transportado para um
lugar ou um ecurita (encruzilhada), onde vai ser entregue para aquele que compõe a
ecurita (encruzilhada), porque ali é um portal, onde é depositado, através de exu,
energias que são desprendidas da pessoa que foi submetida ao Ebó. Lá vai haver a
transformação.
Os elementos que vão ao Ebo são um bicho, que pode ser de pena ou de
quatro patas, e desse bicho vai ser tirado o sangue que eles chamam de Èjé. Fazendo
isso acontece a troca de Èjé do paciente e do bicho. Vai haver a junção dessas forças
energéticas para fortalecer e preparar o discípulo ou o cliente. Através da energia do
Èjé ele vai receber essa carga energética necessária, porque os animais foram
colocados na terra para proteger e servir ao ser humano.
120

No momento do ritual, quando foi feito os Orìkis e azadura dos Orins, que são
justamente para agradecer a mãe terra e o Ori do animal que está sendo abatido para
essa troca energética, para fortalecer aquilo que está em deficiência na energia do
paciente. Orìkis são evocações feitas para o orixá. É ele que traz as mensagens do
exu. O Ori da pessoa é que determina o ritual que vai ser feito, porque ele é o deus
individual e sabe a necessidade da pessoa. Exu vai trazer essa mensagem, onde todo
Ebó vai ser montado sobre.
Bori é um ritual que vem depois de Ebó, para alimentar o Ori. É específico e
pré-determinado para a tradição milenar ioruba. Isso se faz como acontece na África.
A pessoa vai ser deitada numa esteira, que eles chamam de trono da mãe terra, e vai
ser feito o ritual de abate de alguns animais que foram determinados como alimento
do Ori. Também existem algumas especificações através do oráculo. Por exemplo,
algo como uma energia que adentrou no paciente. Às vezes há outro elemento
colocado, mas isso é o oraculo quem determina. Também vai o Ìgbín, que é o caracol,
vai pombo, angola, pato, galinha... quando é específico vai cabrito, carneiro, mas
somente aquilo que o oráculo determina e em alguma ocasião específica. O sangue
dos animais vai ser despejado no dedo esquerdo (hálux) do paciente, que significa o
caminho ancestral da pessoa. Também significa aquele que religa tudo ao Ori e pinga-
se uma gota do sangue no centro da cabeça do paciente. No Borí o sangue não vai
ao assentamento (encruzilhada).
O Ifá é diferente, porque é um ritual feito pelos Babalaô em Mongaguá. Faz-
se através de uma leitura oracular que vai determinar os rituais que serão feitos por
Ifá. Os elementos são guardados em segredo do sacerdote e quem faz parte do ritual.
É o ritual de iniciação feito pela família dos sacerdotes em favor do discípulo que
iniciado. Nesta casa eles cultuam Omolu, que é sacerdote de todas as faixas etárias.
Para as pessoas envolvidas nesses rituais existe muita seriedade em assumir essas
posições que não existe diferença de vida. Quer dizer, no templo estou da mesma
forma que estou em casa.
A senhora Roseli dos Santos Freitas, líder desse templo, tem 60 anos. Aos 12
anos ela teve as primeiras manifestações e a partir dali ela ingressou na umbanda até
a idade de 25 anos, quando saiu para entrar no candomblé da nação keto de casa
branca na Bahia nos anos 1990. Ficou até 2001, quando entrou no Templo dos Orixás.
O que me chamou muita atenção nesta casa, foi a multiplicidade da pessoa afro-
brasileiras. Encontrei-me com pessoas praticamente brancas sem ter uma linhagem
121

de pessoa africana na família, mas se considerando afro-brasileira. Também existem


pardos e brancos com ancestralidade africana preta. E tem aquelas que são mistura
e os que são pretas.
Essa questão me deixou muito confuso, porque para mim, ou no meu
entendimento, só pessoa preta e misturada (morena) que poderia se considerar afro-
brasileira. Minha grande surpresa foi quando me defrontei com essa diversidade das
pessoas. O mais interessante ocorreu quando visitei algumas casas de umbanda, nas
quais encontrei quase 90% de pessoas brancas e muitos se consideravam afro-
brasileiras. Isso me leva a frisar a discussão de que a pessoa afro-brasileira de quem
estou falando está além da etnicidade, é uma pessoa socioantropológica.

5.6 VIAGEM PARA A ÁFRICA E A EXPERIÊNCIA ACUMULADA NESSA VIAGEM


PELA LÍDER

Há 30 anos que o Bàbá King monta viagens para a África (Nigeria). A partir
da iniciação de Ifá é determinado quando a pessoa tem que fazer iniciações na África.
De 2 em 2 anos vai um grupo e isso já faz parte de uma logística que o Bàbá king leva
as pessoas na África (Nigéria na cidade de Abéòkuta e Òsogbo) para o templo de
Òdùdùwá. Nessa viagem já foram 101 pessoas, 60 brasileiros e 51 estrangeiros
(eslovenos, italianos e franceses). Os brasileiros saíram do aeroporto de Guarulhos e
se encontram em Johanesburgo com as demais 51 pessoas. Dentre os 60 brasileiros
havia somente duas pessoas consideradas negras, o restante era todo de brancos.
Esta viagem dura 15 dias e eles vão para participar do festival do Òsogbo e fazer
iniciações.
Nesta parte usarei as iniciais do nome da Senhora Roseli, que é a mãe de
santo no terreiro de Paranaguá.
122

(Roseli) para mim foi como se eu estivesse voltando para casa, literalmente
uma casa que eu tinha dentro de mim, mas eu ainda não tinha ido, mas sabia
que ela existe e quando eu cheguei lá eu tinha aquela sensação de que é
minhas gentes, meu povo eu achei meu povo porque eu nunca me identifiquei
nesta diversidade. Até entre os meus pares, assim pessoa pretas eu não
consigo me identificar como eu e identifiquei lá, aquilo de toda hora de querer
estar junto, toda hora se abraçando, ficar olhando o jeito dela de ser o jeito
deles de ser e de ficar observando como que eles fala brincando, lá tive isso
e orgulho de pertencer a essa etnia, pra mim foi uma das coisas que me
marcou, além de tudo eu em encontrar e agora eu ter tanta força pra eu saber
o que eu vou fazer. Agora eu sei o que eu quero independente das pessoas,
então assim como quem disse ou me segue ou vai ficar para traz.

Esse relato da viagem da senhora Roseli possibilitou que ela vivesse sua
africanidade na África e fora do Brasil pela primeira vez na vida. Tudo que ela viveu e
conheceu, além de tudo que ela compartilhou foi aprendido e incorporado dentro do
Brasil como decorrência de suas aprendizagens e iniciações. Agora ela estava pela
primeira vez diante de uma realidade não vivida, da qual somente ouvira falar e por
isso brotou nela o sentimento de estar em casa.
Quando ela fala de nunca ter se identificado na diversidade, mostra como a
parte africana nela se sobressaiu num continente onde ela nunca pisou antes e lhe
deu uma sensação de liberdade e um importante significado de vida. Ocorreu o
mesmo que ocorria com as pessoas que foram escravizadas no Brasil e quando
fugiam das senzalas se identificavam ao chegar aos quilombos. É similar quando uma
pessoa abraça a religião de matriz africana: essa realidade vem à tona e a pessoa
desperta a sua africanidade adormecida. Isso se mostrou na continuação da fala dela,
pois ela não queria mais perder tempo.

(Roseli) Porque eu não vou mais esperar o tempo. Se for olhar o meu tempo
de vida eu fiz 60 anos, então o que eu tenho mais como vida ativa com saúde
20 ou 30 anos então eu tenho que agora acelerar pra plantar coisa que possa
deixar pra dá continuidade principalmente isso a verdadeira África
desmistificar uma série de coisas assim que as pessoas não consegue
intender visualizando África é muito rica gentes pelo amor de Deus eles não
querem deixar aquele povo ser aqueles são que tem medo deles por que o
africano quando ele chega perto de agentes, nos sentimos a grandeza dele
de um jeito como que diz nossa eu vejo como uma parte ascendência
ocidental me enfraqueceu me deixou medrosa, preconceituosa.

A fala da Senhora Roseli mostra como ela foi impactada pela viagem que deu
para ela o motivo mesmo de reconsiderar os seus conceitos de vida. Ela se sentia ao
mesmo tempo engrandecida e diminuída. Também como ela era presa dentro dela
mesma, como negava a sua própria identidade e origem. Quando ela falou: “eu vejo
123

como uma parte ascendência ocidental me enfraqueceu me deixou medrosa e


preconceituosa”. Esta viagem lhe fez desvendar os dramas de vida que ela vivia. Até
então ela não se achava medrosa, fraca e preconceituosa, mas quando chegou à
África essa realidade lhe deixou, como uma pessoa que estava vendada e agora
pudesse enxergar melhor.
Em que sentido a viagem te deixou preconceituosa, medrosa e tudo isso?

(Roseli) preconceituosa de que eu quando era jovem não gostava andar com
os meus amigos pretos, eu não queria isso, não queria grupo preto. Porque
pelos maus tratos, por tudo que nós passávamos, eu achava que eu não me
misturando com eles eu não seria atacada. E aí eu iria ser reconhecida, as
pessoas iria me tratar melhor e não iria me passar aquele olhar, rir de mim
como se eu fosse uma coisa, até dentro da minha família porque eu sou a
mais escura. Então dentro da minha própria família eu era discriminada, cheia
de apelido, tudo que eu fazia eram coisa de macaco, só poderia ser preta
mesmo, dentro da família, por que eu tenho irmão de 2 pais diferentes, então
os mais clara me discriminava e eu tive que ter muita força.

Nesta resposta ela está colocando claramente os dramas vividos, mostrando


como ela negava sua própria identidade, mas tudo foi impulsionado pelo medo gerado
pelo drama de discriminação vivido na sociedade e em sua família. Esse drama faz
com que não somente ela, mas muitas pessoas como ela, não se identifiquem com a
diversidade que é o Brasil.

(Roseli) E essa força nasceu em mim porque ninguém me ensinou a ser forte
e eu me identificava muito com a minha mãe. Só que ela já era muito sofrida.
Então ela não tinha essa força que eu vi nas mulheres lá na África. Realmente
eu nasci com essa força. Porque como quem disse se você não tivesse, você
não vai continuar sobre viver. Então eu me misturava com os brancos
justamente para eu poder ser aceita de entrar aos lugares tudo mais e não
ficarem me olhando e aí quando chego o momento que eu não me reconhecia
mais porque no meio dos brancos eu era aceita.

Aqui se vê uma força de nascença, enfraquecida pelo drama da vida social


que se tornou medo de rejeição, dando nascimento ao sentimento de autoexclusão e
auto discriminação, que foi despertado e reconfigurado nessa viagem para a África. A
pessoa afro-brasileira precisa da força para conseguir se firmar na sociedade, porque
sempre será hostilizada, discriminada e estigmatizada.
124

(Roseli) Mas na hora de passar pelo funil eu ficava não tudo bem, você é legal
é nossa amiga, mas agora só é gentes branco, ai eu ficava para traz até em
relacionamento eram péssimo, relacionamento por que eles queria namorar
acha eu bonita mas na hora de casar não, por que ai vai gerar filhos pretos,
para ser namorada até apresentar com os pais que morava longe mas
quando os pais conheciam me tratavam bem as vezes por educação até por
eu ser uma pessoa educada mas na hora de casar não, sempre foi assim.

Esta viagem fez com que ela se encontrasse e visse como estava perdida e
que vivia um drama que fazia com que se submetesse a práticas que não eram dela
só para ser aceita. Procurava requalificar a sua existência na aceitação das pessoas
que a discriminava. Constantemente estava na busca de aceitação. Queria ser
considerada Brasileira, não como afro-brasileira.
Esse drama causou problemas na cabeça das pessoas como Roseli e está
na base das diferentes militâncias que cada dia brotam como reação e resistência,
porque as pessoas estão buscando afirmação e aceitação na sociedade. A diferença
é que nas militâncias eles têm consciência de quem são. Sabem que são afro-
brasileiros, não partindo da etnia, mas da questão socioantropológica, que são
aspectos diferentes de antes, onde eles negavam a sua origem e aceitava humilhação
só para ser aceito no meio dos brancos.

(Roseli) Na hora eu sempre ficava aquela que no funil não entrava, então
assim lá eu me via no meio de todo mundo não tem isso de ser a pele mais
clara, de ter isso não todo mundo é todo mundo ali é só africano eu intendi
agora o dia que você falou, eu sou africano então por ser africano não importa
a cor que tenho e lá eu senti isso, eu vi eles socialmente bem colocado,
aqueles que tinham diferenças sociais assim um que tem mais ou um que
tem menos. Mas eles não têm essa coisa de unificar olhando o que outro tem
até haver um episódio lá que houve sumiu um celular lá, num espaço enorme
daquele e com tantas agentes e aí meio que ficar perguntar onde eles vão
achar aquele celular.

Neste caso Roseli se viu igual aos africanos, porque na cosmovisão africana
as diferenças sociais se manifestam mais na questão da hierarquia que da etnia e a
hierarquia ocorre de várias formas. Tem hierarquia por causa de nascença, mas
também familiar, como uma forma de casta, como ocorre na Índia. Isso acontece
quando a família é composta de pessoas compradas, quer dizer, quando numa família
a maioria são mulheres e têm poucos homens, a família vai comprar os homens para
compensar a falta deles. Então esses homens serão considerados como inferiores
aos que são genuinamente da família. É a mesma coisa com as mulheres, se elas
estão em falta na família. Também tem a posição social e econômica.
125

Essas duas posições não têm muito sentido no caso da discriminação, mas
tem a questão do respeito. Todas essas classes sociais não favorecem a
discriminação racial ou étnica. Não quero falar da inexistência de discriminação racial
ou étnica na África. Sim, existe. Por exemplo, no Congo Democrático os Tshuas
(pygmeu) são descriminados e estigmatizados e no Mali os albinos também, só para
citar esses. As mulheres também são discriminadas em muitas sociedades africanas,
onde são tratadas como parte da segunda posição. Onde existe poligamia a mulher
não tem palavra, o marido sempre tem a última palavra. Roseli relatou um episódio
onde um celular se perdeu. Isso aconteceu onde as mulheres estavam e ela disse que
as mulheres ficaram apavoradas e começaram a procurar até que acharam:

(Roseli) Mas quando elas acharam, isso eu nunca vi aquilo na minha vida,
todas elas todo se jogarem no chão e chorava agradeciam a exu porque a
perda do celular, não só um que iam sofrer, foi uma perda sim perdeu, mas
gerou aquela coisa que eles tinham por obrigação achar para evitar que
achasse que tinham roubado e se alguém dali estivesse roubado, todo seriam
ladroes não um só, eu nunca vi aquilo na minha vida.

A questão aqui não era da união, mas do medo. Primeiramente por causa da
situação das mulheres nas aldeias onde se abrigam as famílias reais. As mulheres
são obrigadas a serem submissas e a respeitarem totalmente, enquanto são
descriminadas. Isso gera medo porque, além do castigo, há maldição e expulsão. Sem
falar da vergonha que toda aldeia vai passar na frente dos convidados. É por isso que,
ao acharem o celular, todas as mulheres choravam e agradeciam aos orixás.

(Roseli) Não havia quem não chorasse de ver aquilo aí elas cantavam
agradecendo e se abraçavam, como que disse agradecia. E eu falei gentes a
onda é isso nunca vi isso na minha vida eu fiquei impressionada a hora aquela
coisa de não eu sou feliz e elas disseram isso naquela cantiga que Bàbá king
começou a nos traduzir que elas cantavam exatamente dizendo feliz com o
que tenho, o que é seu como que ele disse é seu, o que é meu sou feliz com
o que tenho não preciso roubar de você, eu falei nossa à onda que eu vai ver
isso dentro do Brasil nunca e ai essa coisa de estar sempre junto sem o
coletivo, esse pão tem que dividir para todo mundo não pode só eu que vai
comer essa fatia, e também ninguém fica sem todo mundo come, nós
levamos cada um uma coisa na mala de alimento que nós estamos
acostumada aqui, que poderia não houver lá.

A música é uma forma de kilombo (queixa). É a maneira de se defender,


mostrar a sua inocência e jogar longe a vergonha de ser considerado ladrão. Quero
frisar aqui a diferença entre kilombo e samba. Kilombo é a forma de se defender,
mostrar a sua inocência. Samba é a forma de queixa ou denuncia frente ao
126

comparecimento diante do juiz. O que as mulheres cantavam era uma forma de se


proteger e ter um abrigo diante do fato vergonhoso que aconteceu. A vida em
comunidade é a marca registrada dos africanos. A vida na África se faz em
comunidade. Um africano sozinho não tem como viver. Sempre se sentirá como peixe
fora de água.

(Roseli) Doou essas coisaradas e depois nos colocamos tudo na cozinha para
ser usado por todos e como fui a primeira vez não tinham vivenciado isso
ainda então eu achei que tivesse falta de alguma coisa. Tipo por causa das
informações que nós temos aqui. Mas na verdade lá tem muita fatura só que
dentro daquilo que as pessoas são acostumadas a consumir. Mas o que tem
é muito nos quando fomo para lagos, não nos fomos para Òsogbo, ficamos
no hotel dois dias para depois irmos para o festival. Um hotel bem luxuoso
assim foi e eu ainda falei meu deus nunca vi tanto preto na minha vida, sabe
de chegar e falar com eles e eles falar comigo assim como quem sabe não
tem essa coisa de te olhar como você está entrando, não tinha isso o próprio
preto aqui quando você chega ao local aqui que é dele meio que te olha, e
recebe bem o branco que próprio negro. Nossa lá é uma coisa assim aberto
tudo que eles fazem eles celebram. Tudo eles brincam e um tira saro do outro.

O africano celebra tudo porque entende que tudo na vida tem significado e
sentido, mesmo as pequenas coisas. Entende que o sentido da vida começa nas
coisas pequenas e insignificantes. É por isso que o africano procura explicação em
tudo. Isso faz parte da sua cosmovisão e da sua construção enquanto pessoa. Um
pequeno acontecimento para um africano pode ser um aviso, um recado dos
antepassados, um mapa, então deve ser celebrado. Se fosse o aviso, recado, mapa
ou uma coisa assim, quando é celebrado em parte será enfraquecido ou fortalecido
até ter conhecimento profundo disto.
O africano é alegre e brincalhão mesmo faltando, porque sabe que ele não
está sozinho e se precisar terá sempre respaldo dos entes queridos ou dos
antepassados. Armazenar as coisas não passa na cabeça do africano, porque ele
entende que a natureza tem tudo que ele precisa e nunca vai lhe negar, por causa da
intercessão dos antepassados e entende que se armazenar e não conseguir consumir
e estragar é uma grande ofensa à natureza e aos antepassados.
E na parte da religiosidade? Conte-nos o que a senhora viu ali de mais
importante.
127

(Roseli) eu vi coisa assim teve uma das coisas que nós fomos fazer primeiro
foi uma coisa que achei lindo, foi no culto ao Omolu que vieram as
sacerdotisas e elas tem várias faixas etárias e elas respeitam aquilo de uma
forma tão séria que eram acho que uns trintas. Estavam ali entre garotas
moça e mulher e senhora. já é aí elas estavam todas aparamentada com a
roupa de Orixá. E elas ficavam no canto sem falar sem sorrir porque era o
momento sagrado. Então eles adotaram o comportamento e aí depois ouve
ritual. Depois uma demonstração como acontece à possessão quando elas
estão em grupo. E nossa é incrível e aí que eu vi como é que ela leva isso
tão a sério. Que como lhe dizer é o modo de viver mesmo não tem essa de
visão agora estou assim porque estou no templo ou agora estou assim porque
estou lá fora.

Existe uma diferença entre um iniciado e um costumeiro. A questão de levar


a sério aos olhos da senhora Roseli é porque ela é iniciada, mas as mulheres na África
foram construídas assim. Nasceram com as suas ancestralidades. Para ela não é uma
religião, é o seu mundo. É a maneira de sua vivência de dia a dia, por isso a disciplina
e o respeito. Elas sabem das consequências se não levarem a sério. Todos os
ornamentos com que elas foram vestidas têm significado e vida. Se não usarem
devidamente, com certeza terão consequências graves. Conheço um jovem no Congo
Democrático que ficou estéril por causa de mau uso dos ornamentos do festival. É
proibido a todos os jovens rapazes escolhidos para vestir o ornamento que faça sexo
no tempo das festividades. Ele não obedeceu e teve relações sexuais na véspera do
festival. Quando vestiu os ornamentos, os antepassados o castigarem e ficou estéril
a vida inteira.

(Roseli) Eles vivem aquilo teve um momento assim foi incrível que eu fui fazer
um ritual para sacralizar as mãos. E veio o sacerdote de Òsá, um senhor que
estava ali conosco o tempo todo, ali não existe essa coisa de sacerdote há e
paramentada que nem os daqui parecem uma alegoria de carnaval. E aí ele
ali trabalhando mesmo. E de repente ele veio com a roupa ritualística dele e
ele se aparamentou e tinha um cajado na mão. E aí levou o grupo que ia fazer
iniciação.

Então ele adentrou na floresta que é o espaço onde está preparada para que
outra coisa que eu vi lá os assentamentos dos orixás é simples, e assim
impura. O mato abre uma clareira e coloca, lá não tem essa coisa de tem as
casas lá ele fez o espaço que é alojamento, por exemplo, casa das mães,
edificou um assentamento, mas tudo é muito prático. Muita natureza, muito
chão, pedra, não tem e aí neste momento eles nos sentou, todo num banco.
E começou a fazer os Òriki e tudo mais.
128

Mas só que teve assim, tipo um bambuzal grande e o assentamento embaixo


e ele chego e falou algumas palavras com cajado, assim de repente nós
ouvimos assim piou tudo mundo parou aí continuo falando ele respondia o
pássaro chamasse vários os outros pássaros e aí se reuniram naquele
bambuzal, e ia ali ficava pareciam que estava conversando entre eles e aí ele
começou o ritual conosco. Quando ele terminou, ele fez o mesmo gesto o
pássaro respondeu depois ele novamente aí todos foram embora. E aí ele
terminou o ritual eu olhei aquilo ali e falei gente o que é isso ficou todo mundo
de boca aberto e com uma simplicidade um negócio bem simples.

A questão da simplicidade é por causa dessa organização. Aqui no Brasil o


que é para um africano uma crença ou tradição, virou uma religião organizada. Por
isso tem terreiro, roupas e assentamento bonito numa parte. O único espaço que as
pessoas que foram escravizadas tinham era o kilombo e lá foi onde se reorganizaram
enquanto povo, sociedade. Quando chegava o tempo de professar as suas crenças,
o único exemplo que elas carregavam eram da igreja católica ,da qual elas faziam
parte enquanto escravos. Isso influenciou bastante na construção dos terreiros e na
transformação das suas crenças até constituir uma religião. Na África é diferente,
primeiro porque há uma separação entre religião e crença.
Antes da chegada dos ocidentais, não se falava de religião, mas de costume
e tradição, porque era a nossa vivência. Quando chegou a religião, os nossos
antepassados a abraçaram, mas sem abandonar seus costumes e tradições. O que é
Iya ou Babá aqui no Brasil, na África pode ser tio, tia, avo, vó, irmão mais velho ou
irmã mais velha, são chefes de família (clã). O espaço onde acontece o encontro entre
os antepassados (morto) e os guardiões (vivos) não deve ser cercado, porque aquele
que já foi, agora está livre e já tomou outra forma, então não pode mais ficar num
espaço cercado. Como o que Roseli viu, os pássaros vieram e conversavam com o
sacerdote. Na verdade, eram os antepassados que vieram dar as suas instruções e
assistir como este seu povo e nesta cerimônia tiveram a forma para que eles
dissessem que aceitam o que estão fazendo. Qual é o nome do ritual que vocês
fizeram?

(Roseli) ele é o sacerdote do Òsá e é o ritual para sacralizar as mãos. É para


deixar suas mãos mais favoráveis a tudo aquilo que você vai fazer. Que faça
com que tenham uma força maior um axé maior no momento que você vai
usar suas mãos. Para tudo para você e para as pessoas principalmente.

Em comparação ao que a senhora vive no templo dos orixás e no que viveu,


na parte da religião, qual é a semelhança e a diferença?
129

(Roseli) a semelhança é porque aqui é feito da mesma forma que se faz lá. E
a diferença é o ambiente, a forma de é como se chegasse a uma profundidade
lá não parece que, lá adentra tudo, até na hora da possessão de um orixá
que nem eu fiz uma iniciação que é do leopardo e no leão, que é descomunal
a energia que a gente sente na hora da possessão.

E aí você se identifica com o animal. Depois quando você o vê lá no momento


que é muita coisa você não, depois quando você está fora dela, e olha o
animal é você o reconhece como irmão. Como é que pode você é um ser
irmão e sentir como se fosse irmão dele mesmo e você olhar com um olhar
de carinho e de irmandade. Para ele também a forma deles fazer o ritual, aqui
tem muito, eles diversificam muito, cada um faz do seu jeito.

Mas no nosso culto tradicional não, no candomblé pega, por exemplo, uma
base e cada um aplicam sua. Ai já coloca a sua vivência, experiência, coisa
que eles vêm trazendo vão colocando coisa de outros cultos, lá não. La as
sacerdotisas quando estávamos fazendo buri, então todo estávamos fazendo
juntos e todas elas tinham o mesmo jeito de fazer sem que ninguém tivesse
dito, oh é assim que faz, não toda faziam da mesma forma então para agilizar
às vezes estavam ali 5 ou 4 fazendo uma parte e outra fazendo outra parte e
outras dando sequência, mas todas fazias do mesmo jeito.

Então podemos afirmar não tem diferença no que se faz aqui e o que se faz
lá? “(Roseli) na tradição não, na festa tradicional de orixás que é esse culto do
Odùdùwà da família do ioruba, mas dentro do candomblé não tem nada que se
assemelha”.
O que é pré-africano no templo de Orixás? “(Roseli) os rituais, eles devem ser
iguais a como a gente faz. A gente aprende e depois sabe por que tem que ser assim.
Antigamente eram meio mecânicas.” Como assim meio mecânica?

(Roseli) assim eu vim fazer vou fazer igual porque assim então você vai
fazendo então depois você vai fazendo iguais e entende por que tem que
fazer igual porque senão você perde a essência.

Então você tem que fazer estritamente igual porque qualquer coisa sua que
você pode misturar vai quebrar aquela linha que vai chegar naquele objetivo
já não vai chegar pura. Então é obrigatório de você fazer igual até porque
também é mais fácil e prático melhor para fazer e você consegue trazer isso
para dentro também quando você está mexendo e comportamento assim que
agentes tenta trazer para dentro do templo para os filhos, discípulos da casa.

O comportamento africano e aí as pessoas fala mais o que é que você vai


buscar na África? Agora eu vi o que fui buscar na África, eu fui buscar tudo
isso que eles são isso no mundo ocidental é uma potência, você plantar isso
em você depois trazer e vim trabalhar isso no ocidente não perder sua
essência, mas você ganha uma força uma acordar inacreditável que você não
acha mais obstáculo.
130

Então, se eu entendi, o que a senhora foi buscar na África, aqui estava


perdido. É isso? “(Roseli) sim tinham totalmente, ah se eu não tinha a me adentrar na
cultura ioruba acho tudo. Porque antes de eu conhecer o culto eu não tinha esse
comportamento essa força e atitude, eu não tinha”. Faz quanto tempo que a senhora
conhece o culto dos orixás? “(Roseli) desde 2002”. Quer dizer, 16 anos, o que a
senhora acha de ou vê da ilegitimidade dentro do culto, o que não é legitimo da religião
africana, já que foi ver lá?

(Roseli) primeiro, a forma dele de se referenciar aos orixás, as energias. Eles


colocam o comportamento humano neles e não energético. Não uma força
que ela vai se entregar em você, mas é o teu comportamento e que vai se
integrar em você o teu comportamento e que vai trazer ela. Então eles
colocam como se o comportamento deles fosse a orixá que determinasse e
no culto não.

No culto nós temos Ori que é o nosso deus individual, ele vai gerenciar as
energias dos orixás na nossa vida, no nosso destino e vamos viver as
qualidades dos orixás. As qualidades da energia que agentes se referencias
muito na natureza. Então agentes coloca o nome, mas não o visualizamos
como humano, mas sim como energia, então se você entender o elemento o
qual você está se referindo, você não coloca mais comportamento humano
na energia, mas nos africanos eles colocam.

Quer dizer aqui não se personifica mais a energia e tira ela no que é humano?

(Roseli) sim tira o no que é humano. No afro-brasileiro coloca característica


na pessoa, ah você é assim porque você é da Oyá e aí começa uma coisa
que esses dias eu me irritei porque começou uma discussão entre as pessoas
que se diziam conhecedores de África e do culto e outro de afro-brasileiro,
dizendo sobre o sexo entre os orixás, ah porque ogum é homossexual e oya
transou com oxum, nossa!

Ai eu falei está de mais né, quer dizer já é um culto que agentes luta para
manter a essência dele e o respeito com a nossa cultura e ai os filho da mãe
dos brancos safado que se acha conhecedor da cultura e da religião e vem
falar besteira para daí vir às outras crianças, outra as pessoas ouvir isso e
personificar como se fosse ser humano, jogar na lata do lixo ai não coloca é
tão divino não dá para o ser humano achar que entende que conhece que
pode falar daquilo a energia da natureza ela é divina como é que você vai
determinar comportamento por vento.

Roseli está denunciando o que as pessoas fazem ou falam quando


assemelham os seus comportamentos aos dos orixás, o que Rita Segato (2005)
chamou de “irradiação”: “a semelhança entre filho e santo é também explicada como
uma irradiação do primeiro pelo último. Ocorre frequentemente que, nas situações em
131

que o comportamento de uma pessoa se aproxima notavelmente daquele próprio


dono da sua cabeça ou ajuntou, as pessoas dizem: hoje, ela está realmente irradiada.”
Roseli estava impressionada com o que viu na África e fez uma comparação
com o que vive no Brasil. Entendo que pensava encontrar uma coisa idêntica quando
foi na África, no que diz respeito aos rituais, comportamentos das pessoas diante dos
orixás e a mesma manifestação quando baixa os espíritos. Só que ela se deparou
com uma realidade muito diferente do que esperava. Isso se traduziu numa frustração,
algo que acontece com muitas pessoas aqui no Brasil que não têm ideia do que é
África.

Não é vento é assim porque ele vê enfeite, como então aí você ver a burrice
a ignorância tudo aí você começa a querer se afastar nosso cada dia mais eu
quero me afastar do que eles fizeram com o nosso culto do que eles fizeram
com a nossa cultura. Sabe são como eles são nojentos eles fizeram isso de
proposito não é uma coisa que é falta de conhecimento. Não que eu vou falar,
atestar uma coisa que eu não conheço, vou ficar na minha, eu vou ter meu
conhecimento, vou escutar de um agora atestar é falta de respeito. Mesmo
com tudo que vem do africano não é nem do preto é do africano é um
desrespeito tão grande que é por isso que a natureza e o ser humano estão
assim quando ele se afastou da natureza ele foi perdendo tudo.

Por isso que hoje em dia a gente vê esse tipo de comportamento entre seres.
Mas é porque eles não se identificam mais com a energia tão perfeita, a
natureza é perfeita como se fosse tiver falar no colega ali no lado botar e dizer
conhece Oyá, ah não porque oya fazia isso com exu. (Ludi) a natureza não
tem sexualidade. (Roseli) aí pensando no momento que eu fui lá ao rio e
tinham uma sacerdotisa lá que ela viu que todo mundo precisava lavar
cabeça, ela se aproximou e começo a lavar cabeça de todo mundo depois,
ela veio na van com a gente e ficou conosco lá o resto do dia. (Ludi) ninguém
a conhecia depois ela citou nela, e está aqui numa foto conosco assim e ela
deliberadamente ela viu que precisavam lavar e aquela dificuldade muitas
agentes tudo, mas ela mesmo se colocou para lavar cabeça de todo mundo
ali na beira do rio depois nós tivemos acesso.

As falas acima mostram a frustração de Roseli de um lado, mas vejo que ela
está preocupada com a desvalorização da reputação da sua religião. Frustrada porque
queria e esperava que tudo fosse igual, mas esqueceu que se trata de dois povos com
construções diferentes como pessoa e cosmovisão diferente. Preocupada por causa
da discriminação que sofre a sua religião, pensando que se é igualzinho pode ter um
reconhecimento, no lugar as pessoas banalizando isso.
132

No outro dia abriram para nos entrar e aí irmos até o assentamento do oxum,
mas aí estava fechado porque tinham que ficar cinco dias fechado por causa
do ritual. Mas nós tivemos acesso no dia e eles nos levaram lá para a
sacerdotisa Òbíorubo para nós. Então assim só fomos entramos e chegamos
até o assentamento das mães pudemos transitar por tudo por um tempo eles
nos deram esse presente e ai na hora que o pessoal voltou lá para lavar a
cabeça que não tinha conseguido por que eram muitas agentes e ai as
pessoas queria conversar, pegar ai eu saí da fila falei não eu cansei já estava
limpo eu achou que todo mundo fez a mesma coisa, ai achei a ponta de uma
pedra fui sacudindo até tirar e falei meu deus isso vai pesar na minha mala,
mas eu falei não quero saber ai peguei agua na garrafa depois o baba king
disponibilizou para nos mais aguas para agentes trazer.

Esta até ali num galão que eu vou usar para sacralizar meus objetos. E sabe
a hora que eu abracei aquele assentamento que tem dentro do rio dela do
oxum que é um dos mais famosos no mundo. Então eu pedi para tirar uma
foto, veio um já pegou já tirou quando vê está todo mundo tirando fotos para
você e te dá e aí eu falei não acredito que estou aqui e abraçando essa aqui
uma coisa que eu só ouvia e aí você está ali e tão chão, tão tudo né aí agentes
pensas não é tão natureza aí quando o tempo do festival o rio volta a encher
e a estátua fica lá dentro do rio.

Fica mergulhada lá depois a gente olha para lá e fala nossa nem parece que
tinham esse espaço todo para nós aí quando eu tirei a foto fiquei ali eu só
agradecia só sabiam agradecer a oportunidade e aí você vê assim oque
agente gasta para poder fazer isso é só mesmo para ousar você não vê mais
o valor material só sabe que isso dá para você ir até lá. Então toma não sei
nem quanto que é então eu vou ficar aí com eles, que eu vou é só isso que a
gente deve fazer. Por isso que as pessoas não entendem como é que você
gasta um dinheiro desses para ir lá à África.

Como todo devoto, a terra onde começou a sua religião e tudo que nela
contêm são sagrados. Isso não foi diferente para Roseli, que estava onde veio a sua
religião, na terra onde seus deuses habitam. É natural levar a terra e algumas coisas
dela para aumentar a sua crença e impressionar seus discípulos. Quais são as coisas
que mais chamaram a atenção da senhora nesta viagem na África? “(Roseli) em
primeiro lugar lá o culto é mais do que a sensação que dá é tão forte que a própria
vida”. Como assim?

(Roseli) O amor, o respeito e a força porque eles vivem isso diariamente, não
é como nos aqui no Brasil que somos convertidas a esse culto não lá isso
para eles é vida é o cotidiano deles. Então tudo que eles fazem é voltado para
o orixá, tudo mesmo, começando à primeira benção do dia são do orixá sobre
as pessoas e das pessoas para orixá, eles evocam o orixá em todos os
momentos de vida. Quer dizer a vida deste povo e centrado na sua crença.
Diferente no que é fora desta terra. Porque fora de Abéòkúta (África) acontece
que como há mistura de povos também há mistura de crença, religião e
cultura. (RS) isso me fez mudar muito a ponto de não achar mais as outras
coisas que faz parte de orixá importante a não ser minha vida e a de orixá.
As outras coisas assim são importantes, mas se for importante mesmo, mas
não a importância que eu dava.
133

De quais coisas a senhora está falando?

(Roseli) como acumular coisas, querer se apresentar ao outro ser humano


para ele julgar se estou bem ou não estou à satisfação ou não isso não me
importa mais porque o que me importa agora é o orixá então se eu estiver
bem com o orixá, tudo o resto vai ser acessado. Porque se ele é natureza
então se eu estiver à harmonia com a natureza e com seus representantes
eu estarei com harmonia com o mundo com as pessoas. E antes era ao
contrário eu achava que tinha que estar bem com as pessoas. Quer dizer se
estou bem com meu orixá é porque estou em harmonia com a natureza e se
eu estiver em harmonia com a natureza estarei bem com as pessoas, aquele
que não estiver harmonizado comigo é porque a desarmonia está nele não
em mim.

O que é o Brasil para a senhora?

(Roseli) eu amo minha terra, ela me deu apesar de todos os problemas que
ainda aconteço eu sou livre, não é o mesmo que os meus ancestrais
enfrentarem, mas eu neste momento tenho liberdade de ir e vir e fazer o que
eu quiser trabalhar, me divertir e viver. Existem as relações com racismo com
uma Seri de coisas, mas eu consigo conviver bem por causa da minha cultura
e do culto. Então o culto me fez renascer dentro da minha própria terra porque
antes eu era contida limitada.

A partir do culto não, porque isso me fez ver o quanto eu estou livre que
possa ser livre então me dá muita proteção, me sento muito protegida muito
forte, eu levantei minha cabeça, porque eu vivia de cabeça baixa com medo
de entrar e sair dos lugares, medos dos olhares das pessoas, se eu estava
sendo aceito ou não, se eu estava fazendo certo ou não. Eu vivia presa a
muitas condições, hoje em dia não eu sou livre me sinto muito mais livre entro
e saiu onde eu quiser e mesmo que eu seja abordada não me apavoro não
me questiono se fiz certo ou não. Porque daí eu sei que o problema não está
em mim e sei que os orixás vão me proteger de qualquer situação em que
não seja aquela que seja favorável em mim, eu tenho plena certeza disto.

Escutando essa mulher falando, pude enxergar uma relação entre a sua
cultura, religião e a liberdade que ela tem no Brasil. Grosso modo, para ela o Brasil é
a terra onde ela encontrou a liberdade de viver a sua cultura e religião, um espaço que
lhe promove a liberdade de viver isso, sem a religião ela não poderia se divertir e viver
a sua liberdade que outrora seus ancestrais não tiveram. Essa liberdade se traduz na
harmonia com a natureza, orixás e por últimos com os outros.
E o que é África para a senhora?
134

(Roseli) a África é o lugar que eu ainda quero voltar muitas às vezes enquanto
eu for viva. Ela significa para mim volta para casa. Eu senti uma força que
significa volta a uma casa que eu não conhecia então eu vivo no Brasil, mas
existe uma casa minha lá porque foi a primeira casa ante do brasil. Então
quando cheguei na África eu sentiu isso que eu voltei para casa minha família
está lá. Eu vivo no Brasil, mas minha família vive lá, minhas raízes estão lá,
foi lá que eu nasci à primeira vez e renasci em outros locais. Mas o meu
primeiro nascimento foi na África então isso eu senti muito forte lá. E eu tenho
saudade do continente e de África como se realmente eu vivesse lá e estou
aqui e vivo aqui atualmente.

O que é Brasil hoje para a senhora?

(Roseli) eu acho que o ser humano está se desconhecendo e perante política


atual que está manipulando muitas as pessoas e fazendo que as pessoas
não olhem mais uns aos outros. Cada só buscando o que é dele não importa
se os vizinhos está bem estão conseguindo destruir a amizade entre ser
humano entre as famílias, o momento este bem estranho nessa minha
vivência de 60 anos eu nunca vi isso acontecer.

Qual seria a reação da senhora diante de uma pessoa branca que se converte
no culto e se intitula afro-brasileiro?

(Roseli) afro-brasileiro é porque nasceu no Brasil e isso faz com que ela tenha
algumas raízes ela já tem. Se for uma pessoa que não tem raiz africana, mas
a partir do momento que foi plantada nela uma energia africana mediante a
conversão, realmente pode ter despertado nela o africano e como eu sou uma
sacerdotisa afro-brasileira e o meu axé foi plantado nela e de uma forma
espiritual, ela se torno uma filha ou filho meu, ela também pode ser um afro-
brasileiro, mas não no sentido de nação, mas em sentido de conversão por
que agora ela está ligada a mim energeticamente ligado aos africanos a partir
de despertar nela uma energia africana então ela pode se sentir uma afro-
brasileira se morar no país.

Qual seria a reação da senhora se uma pessoa afro-brasileira se desligasse


do culto e negasse a sua afro-brasilidade? “(Roseli) primeiramente não se desliga
mais do culto, e se for acontecer eu vou sentir muito por ela porque é uma questão do
pertencimento. Mas ela tem direito de não se achar mais afro-brasileira não podemos
forçar a pessoa a ser uma pessoa que ela não quer.”

5.7 A PESSOA AFRICANA (BA-KONGO) E A PESSOA AFRO-BRASILEIRA

Estou começando este ponto com uma das respostas que a mãe de santo me
deu, para a seguinte pergunta: Então a afro-brasileiridade se sente ou se vive?
135

(Roseli) eu acho que se sente que se vive, porque para poder viver isso deve
se sentir primeiro. Agora para o africano se vive porque não há conversão e
o afro vai se achar aqui no Brasil porque existe um pedaço de África aqui no
Brasil embora misturado, mas, existe muito comportamento africano aqui até
no que tem pele branca são afro-brasileiro. Por que foi uma cultura que foi
absolvida pelos descendentes brasileiros então, muita coisa ela vai encontrar
aqui.

A resposta da mãe de santo mostra a diferença que existe entre a pessoa


afro-brasileira e a pessoa africana (Ba-Kongo). A pessoa afro-brasileira é sincrética e
vai além da etnia. Num lado ela é social, porque vem de uma família socialmente
construída e tem a linhagem de seus antepassados. Por outro lado, ela é
antropológica, porque não é o resultado de um fato social, mas uma resposta a uma
situação que se apresentou e que tinha a necessidade de ser resolvida: a condição
que deu nascimento tanto na pessoa afro-brasileira quanto a religião de matriz
africana.
Por sua vez, a pessoa Ba-Kongo é produto dos fatos sociais, pertence a uma
etnia bem definida, sua construção é o resultado da sua cosmovisão. A pessoa Ba-
Kongo nasce e encontra um sistema bem estabelecido. Ela só é inserida nele,
diferente da pessoa afro-brasileira, que é construída a partir de sua escolha numa
religião e crença. Eu me acho nesta condição porque quando eu tive a oportunidade
de escolher, escolhi ser uma pessoa cristã em detrimento da minha identidade afro-
Ba-Kongo. A minha escolha não interfere em nada na minha identidade biológica, mas
interfere na minha ontologia. É a mesma coisa com a pessoa afro-brasileira. A sua
identidade biológica não interfere em nada na sua construção enquanto pessoa afro-
brasileira, mas a sua ontologia muda.
Eu não escolhi de ser uma pessoa Ba-Kongo, mas as características socio
biológicas me definiram como uma pessoa Ba-Kongo. A pessoa afro-brasileira está
fora deste contexto, porque ela tem a capacidade de renunciar sua identidade
primária, se for o caso, para integrar a sua nova identidade. Por exemplo eu, enquanto
Ba-Kongo, escolhi me tornar uma pessoa afro-cristã Ba-Kongo, mesmo que a minha
família socio biológica estivesse contra e se essa oposição se radicalizasse, teria o
poder de renunciar minha família para integrar totalmente a família socioantropológica,
para depois começar a construir a minha personalidade nas iniciações e sessões
místicas definidas mediante o nosso livro sagrado (Bíblia).
A mesma coisa com a pessoa afro-brasileira. Ela constrói sua identidade
pessoal mediante iniciações e sessões mística definidas magicamente pelo oráculo.
136

Essa pessoa não é animada somente por um sentimento de pertencimento. Eu podia


ver nela essa afirmação de se identificar como afro-brasileira. Quando ela afirma que
é do Brasil, mas afro-brasileiro. A mesma coisa que eu posso dizer eu sou do Congo
Democrático ou de Angola, mas sou Ba-Kongo-cristão. Essa afirmação não é somente
um sentimento de pertencimento, mas a minha convicção de pertencimento e
identificação.
Jaques d’Adesky (2001) mostra isso quando está conceituando a identidade
e cita R. Ledrut,

R. Ledrut observa que a identificação social do indivíduo está ligada ao


sentimento de pertencimento, que é um fator de identidade coletiva. Segundo
ele, a identificação social é um conjunto de processos pelos quais um
indivíduo se define socialmente, isto é, se reconhece como membro de um
grupo e se reconhece nesse grupo. Pertencimento e sentimento de
pertencimento são, portanto, ligados a identificação, sem com ela confundir-
se. Pode-se parafrasear Ledrut observando-se, por exemplo, a diferença
entre dizer “eu sou do Rio” (pertencimento) e “eu sou carioca” (identificação).
(D’ADESKY, 2001, p. 41).

É isso que a mãe de santo me respondeu quando fiz a pergunta se a afro-


brasileiridade se vive ou se sente. Ela me respondeu que se sente. Na sua convicção
íntima ela se sente pertencente ao Brasil, mas se identifica como afro-brasileira. Essa
afirmação de se identificar e se sentir me remete a fazer uma dissociação para apoiar
o meu argumento de que a identificação afro-brasileira é socioantropológica, porque
a pessoa se sente socialmente brasileiro e se identifica antropologicamente africana.
Subjetivamente, a mãe de santo se identifica como afro-brasileira pertencente à nação
brasileira no meio das religiões de matriz africana.
Quando ela está afirmando sua identidade, se apoia na estrutura que lhe
conferiu este sentimento de pertencimento e identificação e esta estrutura é a sua
religião. Como D’Adesky (2001) disse, quando citou Malek Chebel:

ao longo da existência, acrescenta ele, a identificação do indivíduo aos ideais


que lhe são propostos constitui o elemento dominante de uma marca que é,
ao mesmo tempo, subjetiva e objetiva, dessa forma, a identidade remete a
um estado, uma estrutura ou uma disposição caracterizada e definível
extremamente a referência temporal. (D’ADESKY, 2001 p. 40).

E esta estrutura está além das características racial e étnica. Há muito tempo
o conceito afro-brasileiro foi pejorativo e folclorizado por causa da discriminação
étnica. Para muitas pessoas, quando se fala do afro-brasileiro, nos remetemos ao
137

negro. Quando isso acontece, tudo que vem desta etnia ou raça é reduzida a folclore.
Isso desencadeia o processo de marginalização e discriminação. D’Adesky (2001) vai
no mesmo sentido quando fala das vertentes do liberalismo preconizado pelo poder:

segundo Selim Abou, o liberalismo preconizado pelo poder em relação aos


grupos étnicos tem geralmente duas vertentes. Uma que tenta folclorizar
sutilmente as heranças culturais dos grupos étnicos dominados,
enfraquecendo seu sentimento de identidade e seu poder de contestação.
Outra que parte da ideia de que a cultura dominante é suficientemente
poderosa para se enriquecer das contribuições culturais étnicos sem perder
suas características principais dando primazia, por isso mesmo a uma
identidade nacional mais forte que a das etnias particulares. (d’ADESKY,
2001, p. 42).

A marginalização, a folclorização e a discriminação fizeram com que a


identidade afro-brasileira fosse rejeitada para muitos. Hoje esse quadro está
mudando, porque o que era um conceito étnico hoje ultrapassou essa barreira.
Vemos, pois, uma multiplicidade dos indivíduos de todas as raças se identificando
como afro-brasileiros, dizendo “tenho descendência polonesa, holandesa, alemã,
portuguesa, espanhola, japonesa etc. sim, mas me identifico afro-brasileiro e o meu
país é o Brasil. São os meus antepassados que vieram da Europa, mas eu nasci no
Brasil e o meu espaço cultural são as religiões de matriz africana que me outorgam a
identidade afro-brasileira”. Quando se fala dos afro-americanos, isso implica
diretamente nas pessoas descendentes dos africanos que foram escravizadas nas
Américas. Eu mesmo fazia parte disto. Mas hoje tenho outra percepção e muitas
pessoas também terão a percepção de que se for falar dos afro-americanos ou afro-
brasileiros não é mais questão do negro, mas de uma estrutura pluralista e multiétnica.
O africano pejorativamente é uma etnia, uma nação. Diferente de um afro-
brasileiro, que é um indivíduo na busca da construção da sua identidade. Ela não tem
cor, raça ou etnia, somente os vestígios das heranças culturais vindos de todos os
cantos do mundo, que lhe ajudam a se estruturar como um grupo idêntico. Jaques
mostra esse silogismo que não é o um nasce que nasce do múltiplo, mas o múltiplo
que nasce do um:

o que é o mesmo pode ser um ou múltiplo. Mas a identidade, ressalta ele é


em essência relacional, uma vez que implica a relação do mesmo e do outro,
bem como daqueles que são os mesmo em suas diferenças, sujeitos que são
semelhantes e constituem um mesmo conjunto, um mesmo todo. A ausência
completa de unidade exclui toda identidade. Assim a identidade introduz as
relações entre diferença e a universalidade, supondo a presença de um ou
diversos fatores de unificação. (d’ADESKY, 2001, p. 40).
138

D’Adesky (2001) cita Selim Abou, que abordou a identidade étnica:

a abordagem da identidade étnica desenvolvida por Selim Abou ilustra bem


a recorrência dessa relação quando define o grupo cujos membros possuem
a seus próprios olhos e diante dos outros, uma identidade distinta, enraizada
na consciência de uma história ou de uma origem comum. (d’ADESKY, 2001)

Nessa declaração se vê a diferença entre a identidade étnica e a


socioantropológica. Quando converso com as pessoas elas tendem a esquecer a sua
história passada, quando falam “eu nasci num lugar errado” ou “tenho a cor errada”,
aos seus próprios olhos elas se veem com uma identidade. D’Adesky (2001) cita os
dados objetivos de três fatores que fazem parte do que compõe a identidade étnica,
mas na pessoa afro-brasileira somente o fator da religião age como elo da relação que
compõe o grupo. Posso dizer que o grupo que forma a pessoa afro-brasileira tem
como fato da consciência a religião, o que é diferente da pessoa Ba-Kongo (africano)
que tem a língua, raça, crença, fé e religião comum.
139

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa buscou o entendimento do significado de magia (feitiçaria) na


vida das pessoas que fazem parte do Templo dos Orixás em Paranaguá. Com ela foi
possível compreender que a magia tem papel importante na vida destas pessoas,
constituindo-se em um elemento significativo para a formação, tanto da comunidade,
como da pessoa. A magia fornece respaldo ao que constitui cada pessoa, no sentido
de se configurar como elemento de equilíbrio, força, esperança e fé na comunidade.
Junto a esse grupo de pessoas, a magia (feitiçaria) se caracteriza como
elemento principal da religião que consideram ser de matriz africana. Essa posição se
traduz em motivo de sobrevivência, o que contribui para que vivam um contexto que
aponta ser característico para viver sua africanidade. Nesse sentido ficou perceptível
que uma mínima semelhança com traços culturais africanos tem significado para a
sobrevivência do que anima sua vida.
Ao analisar as declarações de Roseli referentes à sua viagem ao continente
Africano, destaquei um argumento que explica com clareza essa posição. Quando ela
afirmou que: “eu me senti viva quando fiz a viagem para a África e muito mais viva
quando avisto traços e semelhanças do que faço, no que se fazia ali”. Beatriz Dantas
(1988, p. 19) disse:

isto tem remetido constantemente à África, e essa busca incessante de


africanismos, iniciada no século passado com Nina Rodrigues, tem tomado
feições diversas, desde o cotejo mecânico e simples de traços culturais cuja
semelhança com congêneres africanos é apresentada como prova de
sobrevivências (DANTAS, 1988 apud RODRIGUES, 1935, 1977; RAMOS
1951, 1961).

Também a magia oferece ao afro-brasileiro um significativo motivo para


continuar a resistir e a lutar por seu reconhecimento, como parte da sociedade
brasileira e como iguais aos demais. Com a magia, no contexto das religiões de matriz
africana, a pessoa afro-brasileira encontra a sua autonomia ideológica. Argumento no
sentido de dizer que isso lhe ajuda em sua organização social e vital, como uma força
resistente contra a discriminação e o racismo. Esta não é a resistência do negro, como
diz Dantas (1988), mas é a sobrevivência numa sociedade multicultural que ignora as
minorias e as estigmatiza.
140

A magia se constitui em um elemento que aproxima genuinamente a pessoa


afrodescendente com a África, apesar de que a forma de ela operar na sociedade
brasileira ser muito diferente da que é operada na África. Sua dimensão
organizacional no contexto sociocultural e político na sociedade mais ampla é
diferente para a forma como se dá na África, pois ali se configura como elemento
principal na construção de cada comunidade, porque dela emana o poder e a
autoridade.
Essa sensação de proximidade e identidade pode ser decorrente da forma
como a “construção da casa de Exu é considerada como um dos elementos de
produção de aldeia africana no Brasil” (DANTAS, 1988, p. 146), também pode apontar
na magia (feitiçaria) a dimensão de poder e autoridade como capacidade de
organização e construção do terreiro (comunidade).
A pesquisa constatou que a magia é temida na sociedade popular brasileira e
ficou evidente que essa concepção não é de hoje, mas uma herança da escravidão
orquestrada pelo Estado, como movimento de subjugação e opressão. A magia foi
discriminada pelas autoridades, que a classificaram como coisa do diabo e de matriz
e natureza violenta, de tal forma que criou certa letargia na sociedade, a qual possui
movimentos que contradizem essa posição e são ineficazes nas tentativas de
desfazer essa posição incrustrada na forma de as pessoas lidarem com essa
concepção.
Esse processo de discriminação foi amplificado com posições propagadas por
diferentes denominações de igrejas evangélicas de matriz neopentecostal, de forma
a se configurar como algo incontestável no cotidiano do povo brasileiro. Em
contrapartida ela é o elemento central na construção da dinâmica social das
comunidades Ba Kongo (banto), na qual se apresenta como a resposta para as
questões sem resposta objetiva no cotidiano da sociedade banto, o que coloca em
equilíbrio e outorga autoridade às pessoas escolhidas para dirigir.
A pesquisa também refletiu sobre como a feitiçaria (magia) se apresenta
enquanto manifestação de africanidade no Brasil, de forma diferente de como ela se
apresenta junto à organização da sociedade nas comunidades, onde está presente
em todas as camadas da sociedade Ba Kongo. A sensação dessa percepção foi de
como essas diferenças nos deixam vulneráveis e como essa percepção aponta para
diferentes níveis de crueldade manifestada pelo não reconhecimento e pela alienação
da identidade com base na ancestralidade, a qual, de certa forma, é evidenciada tanto
141

pela literatura, como pela tradição oral africana, que demostra que o bonkoko
(feitiçaria) não é simplesmente um peso que a sociedade carrega, mas elemento
central que afirma a identidade e garante o interesse pelo significado desse elemento
social de natureza ancestral, que a cada momento é usado e reconhecido como
elemento essencial de aconselhamento e orientação da vida pessoal e coletiva.
A pesquisa apontou que existe rivalidade entre os cultos de matriz africana,
no que diz respeito à magia (feitiçaria), com relação à autenticidade e à pureza, tida
como rigor com que se aplica com base no imaginário de africanidade com que a
magia é alimentada. Mas, apesar das diferenças, cabe destacar que a magia
(feitiçaria), quando se apresenta como agente e argumento de luta e organização de
resistência contra o opressor, ajuda o afro-brasileiro a militar e continuar a crer num
cenário de libertação e emancipação.
Assim, essa investigação em certa medida reconstrói a história de um povo,
que foi vítima de um comércio de pessoas, que as anulava como seres humanos e
sociais, apagando marcas e posições que caracterizavam suas etnias, mas eles
resistiram, e essa humanidade e eticidade, apesar do que ocorreu, sobreviverá...
142

REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique Rose Aimee. O duplo e a metamorfose - a identidade mítica


em comunidades nagô. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

BASTIDE, Roger. “As Religiões Africanas no Brasil” contribuição a uma


sociologia das Interpretações de Civilizações. São Paulo, Livraria Pioneira Editora,
1960.

BASTIDE, Roger. Ethnologie religieuse. In: Encyclopædia Universalis [online].


Disponível em: <http://www.universalis.fr/encyclopedie/ethnologie-ethnologie-
religieuse/>. Acesso em 24/03/2020.

BIOGRAFIA. Oduduwa. Disponível em:


<https://www.oduduwa.com.br/?cont=professor-biografia>. Acesso em 20/01/2022.

CARVALHO, Agemir Dias de. Sociologia da Religião: Introdução as Teorias


Sociológicas Sobre o Fenômeno Religioso. São Paulo, Edições Paulinas, 2012.

CONSORTE, Josildeth Gomes. Sincretismo ou antissincretismo?. In: Paulo Barretti


Filho. (Org.). Dos Yorùba ao Candomblé Kétu: Origens, Tradições e
Continuidades. São Paulo: Edusp, 2010.

d'ADESKY, Jaques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. In: Racismos e anti-


racismos no Brasil. Editora Pallas, 2001.

DANTAS, Beatriz Gois. “Vovó Nagô e Papai Branco” Usos e abusos da África no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DUMONT, Louis. “O valor nos modernos e nos outros”. In: O individualismo, uma
perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
2000 [1983].

FABIAN, Johannes. “Fazendo um balanço: o discurso antropológico e a negação da


coetaneidade” e “O tempo e a escrita sobre o Outro”. In: O Tempo e o Outro: como
a antropologia estabelece o seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013 [1983].

FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Religiosidade Popular no Tambor de Crioula. Boletim


da Comissão Maranhense de Folclore, São Luís, v. 3, p. 3, 1995.

FRY, Peter. “Povos e Culturas”. In: Lisboa: Contemporaneidade e futuro 2:


Religião na África, 1998.

LEVY-BRUHL, Lucien. “Introdução” e “Capítulo 1 - Indiferença da mentalidade


primitiva pelas causas segundas”. In: A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus,
2008 [1922].

MAUSS, Marcel. “Uma categoria do Espírito Humano: A noção de Pessoa, a de Eu”.


In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1938].
143

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2017.

MINTZ, Sidney W. e PRICE, Richard. O nascimento Da Cultura Afro-Americana.


Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2003.

ORTIZ, Renato. “A Morte Branca do feiticeiro Negro” Umbanda e Sociedade


Brasileira. São Paulo: Editora Brasilense, 1991 [1978].

PARES, Nicolau Luis. “A Formação do Candomblé” História e Ritual da Nação


Jeje na Bahia. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. Os Bakongo de Angola: etnicidade, religião e


parentesco num bairro de Luanda. Rio de Janeiro: Faperj, 2015.

PORTO, Liliana. O Ensino da História e Cultura Afro-Brasileiras e a Temática


Religiosa: Dilemas enfrentados na Aplicação da Lei 10.639/03. Curitiba, 18 de nov.
de 2015. Palestra proferida na Semana da Consciência Negra da Universidade
Federal do Paraná.

RODRIGUES, Nina. O Animismo fetichista Dos Negros Baianos. Rio de Janeiro:


UFRJ/Biblioteca Nacional, 2006.

SEGATO, Rita Laura. Religião, vida carcerária e direitos humanos. Comunicações


do ISER. Rio de Janeiro, v. 61, p. 40-47, 2005.

STRATHERN, Marilyn. “Fora de Contexto: As Ficções Persuasivas da Antropologia”.


In: O Efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac & Naify, 2014[1987].

TEMPELS, Placide. La Philosophie Bantoue. Paris: Edition de L’evidence, 2009


[1944-45].

TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1957.

TORRES, Maycon Rodrigo da Silveira; MARTINS, Natasha. Intolerância Religiosa e


a Demonização de Religiões de Matriz Africana na “Pandemônia”. Revista
Relegens Thréskeia, [S.l.], v. 10, n. 1, p. 301-319, jun. 2021. ISSN 2317-3688.
Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/relegens/article/view/79296/44136>. Acesso
em: 21 jan. 2022. doi:http://dx.doi.org/10.5380/rt.v10i1.79296.

VANGROENWEGHE, Daniel. Du sang sur les laines. França: Didier Hatier, 1986.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004 [1904].

ZIEGLER, Jean. Os vivos e A morte: Uma sociologia da morte no ocidente e na


diáspora africana no brasil e seus mecanismos culturais. Rio de Janeiro: Zahar
Editores,1975.

Você também pode gostar