Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CURITIBA
2021
TITI JOÃO LUBENGO
CURITIBA
2021
AGRADECIMENTOS
A Deus por ter me dado a força, saúde e disposição para superar todas as
dificuldades e empecilhos. A universidade federal do Paraná, departamento das
ciências humana, corpo docentes, direção e administração que oportunizarem a porta
que hoje posso ver um horizonte melhor e mar das oportunidades a alcançar. A meu
orientador Professor Doutor Marcos Silveira, pela paciência e compreensão, suporte,
tempos e todos os materiais que pode proporcionar para eu ter facilidade de fazer este
trabalho. Ao meu Pai que Deus me deu aqui no Brasil Professor Doutor Hernesto
Jacob Kleim por toda ajuda que me proporcionou conselhos, correção dos meus
textos, suporte, tempo e muitos mais, desde o primeiro dia até hoje. À professora
Liliana por ter me dar oportunidade de me escutar e ver o que eu tinha na mão para
enfim me orientar a assistir aulas isoladas como ouvinte. Ao a professora Andreias
para ter me incentivar a não abandonar e seguir em frente. A Mae Roseli por ter se
disponibilizar o centro Templo dos Orixás para eu fazer minha pesquisa. A Ana por ter
me levar em Paranaguá para conhecer a mãe Roseli e o Templo dos orixás. A todos
colegas de sala para o incentivo, especialmente Bruna. A minha querida esposa que
esteve lá sempre para me apoiar e incentivar e me aborrecer. Aos Professores
Andreata Ocir e Agemir para me ter de orientar a estudar a antropologia. Aos meus
Pais e irmãos pelo amor, incentivo e apoio incondicional. A igreja Ministério Fogo
Divino pelo todo apoio. E a todos direto ou indiretamente fizeram parte da minha
formação meu muito obrigado.
RESUMO
1 APRESENTAÇÃO
Sou Titi Joao Lubengo, teólogo e pastor na Igreja Ministério Fogo Divino,
natural de Angola da província de Uige e nascido no município de Maquela do Zombo,
natural de uma família de 4 rapazes. Atualmente sou casado, pai de três filhos e moro
em São José dos Pinhais, estado do Paraná, no Brasil.
Sou graduado em licenciatura de matemática e física e atuei inicialmente
como professor dessas disciplinas e de língua francesa e inglesa para. Em 1998 deixei
de ser professor e assumi a função de pastor junto à Igreja Filadelphie. Fiz formação
para atuar como missionário e migrei para o Brasil em 2005.
Fundei e sigo como coordenador da ONG CIDEC (Coordenatión des initiatives
pour le devellopement comunautaire), atuante na República Democrática do Congo.
Essa organização tem como foco a alfabetização e formação básica em corte e
costura, estética e em línguas estrangeiras junto a crianças de rua e jovens mães
solteiras e abandonadas, para possibilitar a essas pessoas uma formação profissional
que lhes proporcione relativa autonomia financeira e social, para que suas vidas
possam ser inseridas na sociedade em que vivem.
Em 2013 iniciei a graduação em Teologia na Faculdade Evangélica, que foi
incorporada pela Faculdade Fidelis, terminando no ano de 2017. Em 2018 ingressei
no programa de mestrado em Antropologia para desenvolver a pesquisa referente a
este documento.
O título dessa pesquisa tem especial sentido com minha vida atual pelo fato
de tratar de minha origem, ontologia, cultura, formação como pessoa e sociedade. O
que eu chamei aqui da magia é chamado de feitiçaria no contexto africano, pois com
essa expressão se caracteriza como o elemento principal para construção da nossa
sociedade Ba-Kongo. Esse tema tem o significado de me desafiar para alcançar
respostas para questões que humanamente não conseguiremos a responder, isto pelo
fato de eu ser um integrante do povo Ba-Kongo e, como pessoa, sou identificado como
Muntu, e atualmente convertido ao cristianismo.
Diante dessa realidade quero entender como a concepção de magia é
compreendida no Brasil, tendo como referencial o significado de magia na cosmovisão
Ba-Kongo. Assim pretendo compreender como a magia opera na pessoa afro-
brasileira e que lugar ela ocupa na formação desta pessoa. Também quero
compreender como eu me diferencio das demais pessoas que se compreendem como
12
afro-brasileiras. Que diferença tem entre “eu” e “elas”? Como é que elas se constroem
como pessoa e sociedade?
Sei que muitos se perguntam por que sendo um pasto, tenho interesse e
empenho de pesquisa sobre este assunto. A resposta que tenho em primeira mão
aponta para o interesse de compreender como minha formação ontológica, de matriz
Ba-Kongo, se alinha com minha construção racional e mística tendo a Bíblia como
referencial, considerando que a Bíblia não recomenda que eu me separe de minha
ontologia. Sou cristão, mas tenho origem. Faço parte de uma sociedade onde o
elemento principal é a magia e sei que isso não soará bem nos ouvidos das pessoas
de outra cultura que desconhecem as particularidades de minha sociedade originária.
A magia é a expressão com que me refiro para nomear o que meu povo chama
de feitiçaria, a qual se caracteriza como força vital da nossa sociedade. Sei que essa
posição se mostra com duas facetas, uma que tem base no que eu aprendi e vi como
prática de meus antepassados, com que fui ensinado e com as quais vivi como
referenciais benéficos para nossa sociedade. Esta faceta coloca limite e freio nos
impulsos individuais, fazendo com que entendam que as pessoas da minha sociedade
não são únicas, mas sim uma comunidade que precisa viver em harmonia. Dessa
forma, a magia na minha sociedade faz com que as pessoas pensem antes de se
aventurar, tendo respeito a todo nível da sociedade. Isso faz com que a hierarquia
seja respeitada e o chefe seja venerado, pois é reconhecido como quem melhor dirige
a sociedade. Essa cosmovisão ensina aos filhos o respeito aos pais e aos mais velhos
e promove o bem como referencial de relação fraterna.
Numa palavra, a magia é o elemento que coloca o equilíbrio na minha
sociedade. Ela é temível sim, quando a pessoa se esquece dos princípios que regem
a vida. Em sentido contrário ela nunca será referencial de luta e conflito, como é
apresentada na sociedade brasileira. Em todos os clãs em minha sociedade há um
feiticeiro. Eles são os guardiões dos clãs, são sábios, e são a referência do lugar onde
todo mundo procura ajuda nas questões difíceis, complicadas e impossíveis de serem
resolvidas com os recursos humanos.
A outra faceta que pretendo entender com esta pesquisa refere-se ao
antagonismo que este assunto gera na sociedade brasileira, pois a magia (feitiçaria)
é temida por uns e é discriminada por outros., o que no meu ponto de vista é uma
ambiguidade a qual preciso estudar de perto. Acredito que conseguirei esclarecer um
pouco as nuvens que cobrem essa questão pelo fato de eu ser um pastor praticante
13
2 INTRODUÇÃO
2.1 PROBLEMA
_______________
1 Templo do Orixás – Instituição religiosa, localizada em Paranaguá PR, cujos integrantes foram
entrevistados e cujo local foi visitado para o desenvolvimento da pesquisa de campo.
17
2.3 METODOLOGIA
Neste item dessa dissertação apresento-me como pessoa que nasceu e viveu
no continente africano e agora busca a compreensão de como a magia (feitiçaria) é
referenciada na cosmovisão de povos africanos, em especial junto ao povo Ba-Kongo,
e como esse processo está vinculado e interpretado no contexto da sociedade
brasileira e em particular junto às comunidades Afro-Brasileiras nos cultos de matriz
africana.
Para tal, desenvolvo esse processo investigativo, considerando nesse
capítulo minha história de vida e meu envolvimento com tema, tendo em vista a
contribuição que posso oferecer para os estudos antropológicos que tratam da
influência africana no contexto cultural e social do Brasil.
Quero frisar aqui que não é Ba-Kongo todo mundo que fazia parte do reino do
Kongo. Segundo a nossa tradição, citado por (Batsikama, 1999, p. 217) nós, Ba-
Kongo somos descendentes do Nzinga – Kuwu, o nosso Nkaka ya kisina. Ela era filha
de Nkuwu e Nimi que eram também fundadores do reino Kongo. Nzinga teve três
filhos, dois rapazes gêmeos e uma menina. O primeiro tinha o nome de N´vita-Nimi
ou Nsaku, o segundo Mpanzu a Nimi e o terceiro era Lukeni lwa Nimi ou Nzinga. Estes
três filhos detinham o poder, a ciência e a religião dentro do reino.
Os descendentes do Nsaku, tinham a função de mediadores, atuando como
aqueles que intercedem diante dos antepassados, além de acumular a função
espiritual e política. Os descendentes do Mpanzu têm a função de agir como mineiros
e agricultores, considerando que eles eram excelentes nestas funções, pois sabiam
manipular os minérios e cuidar da terra e das plantas. Eles herdaram essas
habilidades através dos tios irmãos da mãe fundadora da nossa nação. Por fim, os
descendentes da Lukeni tinham a função da educação, eles eram muito inteligentes e
tinham a capacidade de ensinar e formar os outros.
Os tios irmãos da rainha Nzinga e os seus três filhos são os quatro Mvilas da
nossa ascendência. Todos os Ba-Kongo conhecem as suas Mvilas (singularmente
luvila), ou seja, suas linhagens ancestrais. Eles se instalarem na bacia do rio Kongo,
que nós chamamos de Nzadi, (Nzadi quer dizer rio) e ali fundaram as aldeias de
20
3.2.1 Do Poder
político quanto financeiro e se acharem dono de todos, o que poderia colocar a família
em perigo. Esses dois poderes vão convergir e trabalhar juntos para o bem-estar de
todos os membros da família.
Posso dar como exemplo a minha família (casa), começando por meu pai. Ele
é o caçula da família (casa). Nasceram três, dois homens e uma mulher, mas o meu
pai nasceu Mvuluzi, quer dizer Chefe. E o seu primo, o filho da irmã da sua mãe,
nasceu com o poder sacerdotal e financeiro, mas sem o poder político. Então, desde
criança, agentes os acompanhavam sempre que havia um problema. O primo do meu
pai, que era mais velho, vinha até a nossa casa se o problema estava em Kinshasa,
e o meu pai ia a casa dele se o problema estava no interior do país. Mais acima deles
tinha o tio, que era o irmão mais velho das mães dos meus pais, que morava na aldeia
e coordenava tudo de longe. Ele vigiava de dia e de noite e tinha sempre a última
palavra.
Agora na minha família (casa) nasceram cinco filhos, quatro rapazes e uma
menina que faleceu aos dois anos de idade. Assim, ficamos somente rapazes. Eu
herdei o poder político e sacerdotal e desde criança eu desenvolvi a habilidade
sobrenatural. Poderia achar a solução para qualquer problema. Agora o nosso irmão
mais velho é quem atua como supremo. Ele está acima de nós pelo seu direito de
primogênito. O irmão que nasceu antes de mim herdou o poder financeiro, ele tem
habilidade sobrenatural para multiplicar dinheiro e isso nos foi dito desde que éramos
crianças. O nosso irmão caçula também tem esse poder, mas como ainda tem o nosso
irmão mais velho todos devemos nos curvar diante dele.
Eu fui taxado de feiticeiro quando criança porque tinha uma sorte de
superpoder. Eu me lembro que conseguia distinguir a fisionomia dos animais, sentia
cheiro de metal e tinha muita sorte de encontrar coisas perdidas entre outros mais.
Um dia o nosso vizinho perdeu a cabra com seus filhotes e eu voltando da escola
distante mais ou menos dois quilômetros de casa, vi uma senhora colocando a cabra
no carro. Olhei e identifiquei a cara da cabra e chamei-a pelo nome dela. Peguei a
matrícula do carro e fui entregar no vizinho. Ele desesperado não tinha certeza, mas
eu insisti chamamos a polícia quando fomos ao lugar onde eles colocaram a cabra
tinha muita quase idêntica. Mas me chamarem e eu fomos olhei nas caras delas e
pude identificá-la e todo mundo ficou admirado, ninguém estava acreditando.
Então mesmo eu estando longe, quando tem um problema familiar que
precisa ser resolvido dessa forma minha família me consulta, pois meu poder ainda
22
está vivo, principalmente no que diz respeito a questões espirituais. Acredito que o
que nós temos vem de Deus, de forma que eu aqui, mesmo sendo pastor, tenho a
responsabilidade de cuidar do que é meu.
Converti-me e virei cristão evangélico e hoje sirvo a Deus como pastor e
missionário, mas também cuido da minha família. Mesmo sendo cristão tenho o
reconhecimento da minha família no que toca a legitimidade sacerdotal, pois esta
característica está acima de eu ser cristão.
Em tudo o grande Chefe dos Ba-kongo é o tio materno, o irmão da mãe. Nós
acreditamos que o nosso reino foi fundado por uma mulher, a rainha Mãe Nzinga –
Kuwu o nosso Nkaka ya kisina como já foi dito acima. Assim, ninguém pode reivindicar
o poder da chefia se não os descendentes dela. Na verdade, deveriam ser mulheres,
mas sendo Ba-Kongo os irmãos da mãe passam a ter esse direito, embora todos
sabem que são as mulheres que são as fundadoras do reino.
Com essas posições, a pessoa que tem poder sobre nós é o nosso tio, o irmão
da minha mãe. Isso fica muito mais complexo se o pai dos filhos se casou, mas não
pagou o dote, pois aí ele não vai ter direito em nada sobre os filhos. O matriarcalismo
não é somente de poder, mas também de direito. Quando o homem vai se casar é
obrigado a pagar dote, isso não quer dizer que está comprando a mulher, mas que
deve exercer o dever que ele tem, perante os tios e tias da mulher. Junto a isso recebe
permissão de exercer o poder sobre os seus filhos e garantir o seu direito vindouro.
O poder está em cuidar dos seus filhos, alimentar, educar, controlar, mandar
e fazer muito mais, principalmente ter voz quando acontece um infortúnio e até de
ameaçar os tios quando for necessário. O direito é comer o que os seus filhos vão
produzir e isso começa no dote, caso tenha filhas. Assim, quando elas se casam
também os tios e tias vão comer e receber o dote. Dos filhos cabe receber seus
cuidados quando precisar. Todo filho sabe que é obrigatório cuidar dos seus pais e
dos seus tios e tias e sobre esse tema não existem contestações, principalmente por
parte daqueles que receberam poder sobrenatural.
Como exemplo destaco meu cunhado, irmão da minha esposa. Ele se casou
com uma mulher, mas ainda não pagou dote e tiveram 7 filhos e dois faleceram. Na
morte do segundo filho, os irmãos da sua esposa simplesmente vieram buscar a irmã
deles, junto com os filhos. Dentre os filhos, a primeira filha esta preste a casar e o pai
não tem direito a nada, porque ele não exerceu o dever dos tios e tias na hora de
casar-se. Também não pode exercer o seu poder do pai para procurar saber de onde
23
está vindo a morte dos seus filhos. Isso porque pode ser um jogo da família da sua
esposa ou de uma pessoa da sua própria família. Como ele não tem direito, nem
poder, fica de mãos atadas.
Voltando para nossa origem, por volta do ano 230 Ne Mbemba Zulu foi
entronizado, como profeta e guia do povo Kongo - ele os tirou do Egito. Por volta de
320, mamãe Mbangala era sua guia. Quando morreu, Ne Nsansukulu-a-Kanda,
também chamado Nimi-a-Lukeni, trouxe o ne-kongo à beira do rio Kunene, onde
construíram a sua primeira casa: "Kongo dia mpangala nzudu tadi", Kimpemba irá ser
sua capital. Por volta do ano 424, Ne Kodi Puangu, Ne Lunda Makanda e Ne Madiangu
ma Zulu levaram o povo a construir uma segunda casa: "Kongo dia mulaza", Kahemba
e depois Feshi eram as chefias. Uma terceira casa foi construída por volta de 529:
"Kongo dia luangu", da qual Zimba era a chefia sob a autoridade de Ne Tuti dia Tiya.
Vários reis se seguiram até a chegada dos portugueses: Mnabi Mayidi, Zanga
Mowa, Mbala Lukeni. Este último liderou campanhas para ampliar o reino. Mbama
Bokota, Ngongo Masaki, Nzinga Sengele, Kalunga Punu, Nkanga Malanda, Nkulu
Kiangala, Ngunu Kisama, até Mandiangu, cujo comportamento desagradou a Deus. A
fome atingiu então o país. Mbuta Kimosi se levantou como um profeta para lutar contra
os maus hábitos e maldições. O rei Nanga Katanga trouxe o Ba-Kongo de volta ao
caminho da justiça e da riqueza. Depois, houve os reis Ntende Kabinda, Muabi
Kunene, Mbamba Muzombo e Woyo Mpangala.
3.3.1 Crença
3.3.2 Calendário
3.3.3 Economia
O reino do Kongo era muito desenvolvido. As trocas eram feitas com a moeda
"Nzimbu" (representada por conchas). Além dos recursos naturais e do marfim, os
artesãos faziam roupas de ráfia e cerâmica. As finanças do reino vinham de receitas
fiscais e outras atividades organizadas pelo rei. No entanto, os principais recursos
eram a pesca, a agricultura, a caça e a criação dos animais.
3.3.4 Educação
Antes das escolas com base no mundo dos europeus, havia escolas de
iniciação que foram organizadas pela filha da fundadora do nosso reino. Essas
escolas eram organizadas para os jovens escolhidos e aí aprendiam os saberes
decorrentes de cada um dos filhos da divindade: agricultura e ferragens, tecelagem e
tudo que era necessário para o desenvolvimento do Reino. Esses jovens assumiam a
responsabilidades de propagar os conhecimentos originários para o bem da
26
coletividade. Ali aprendiam os ofícios pelos quais deviam manter os níveis de vida do
reino, propagando esses conhecimentos de acordo com as aptidões de cada um. As
escolas mais famosas eram: Leiaa, Kimpasi, Kinkimba e Buelo.
3.4.2 Angola
habitantes e animais como palanca negra gigante. Seu subsolo também é muito rico
em diamante e petróleo, sendo o oitavo produtor de petróleo da OPEP e o segundo
produtor na África, depois da Nigeria. Infelizmente existe um problema econômico
muito grave, marcado pela taxa muito elevada que é praticada pelo mercado negro,
junto à economia do país, que se anuncia socialista - mas o país é dominado por
processo político personalizado e centralizado. Nesse sentido, se destacam situações
alarmantes como, por exemplo: a mulher mais rica da África se chama Isabela dos
Santos, filha do ex-presidente de Angola José Eduardo dos Santos, que dirigiu o país
desde a morte do Neto, em 1979, até 2017, quando renunciou e escolheu seu
sucessor na pessoa de João Lourenço.
uma ditadura militar, que durou até a sua fuga, em 1997, forçada pelas tropas da
Aliança das Forças para a Democracia e Libertação (AFDL).
O governo ditatorial de Mobuto seguia de forma a restaurar a identidade do
Congo e em 1971 Mobutu instaurou a sua famosa Zaiaranizaçao (retour a l’autenticité)
pelo lema “retrousson nos manches” (moto na moto a bongisa), representado pelas
siglas 3Z, que significa: Zaire a nossa moeda, Zaire o nosso país e Zaire o nosso rio.
Mobuto mudou o nome do país para Zaire e fundou o seu partido MPR (Mouvement
Populaire dela Revolution) em 1967.
Todo mundo fazia parte deste partido, como dizia seu regulamento, de tal
forma que mesmo a criança na barriga da mãe fazia parte do partido. Ele mesmo foi
chamado como guide dela revolution. A Zaiaranizaçao previa o retorno à
autenticidade, quer dizer: tirar todos os nomes que recordassem a colonização
europeia. Ele, que se chamava Joseph Desiré Mobutu, se tornou Mobutu Seseko
Kukugbendu Wazabanga e toda a população do Congo que se tornou Zaire trocou
seus nomes. Também foi proibido o uso de gravata e terno. As freiras não poderiam
mais vestir as saias, devendo utilizar os panos tradicionais, assim como as demais
mulheres não poderiam vestir calças.
Economicamente Mobuto fez proezas. A economia crescia rapidamente, ao
ponto de um Zaire valer um dólar até 1973. Mobuto também organizou a luta dos
séculos, entre Mohamed Ali e George Foreman, em 1974, em Kinshasa.
Para mostrar ao mundo o valor de seu governo, contratou engenheiros
alemães para construir o foguete Zairois, mas o projeto parou quando as tentativas de
lançar o foguete fracassaram. Também construiu o prédio da televisão nacional e o
palácio do povo, onde era prevista a sala dos espetáculos pelos artistas. Hoje o
edifício se transformou no palácio do congresso nacional e do senado.
Na dimensão cultural, colocou uma disciplina escolar e uma regra sem
precedente, ao determinar que Lingala, uma das quatro línguas nacionais, se
transformasse na língua das forças armadas e de todos os diálogos, inclusive
familiares. Isso fez com que esta língua fosse falada em todo território nacional e
manteve o país unido, rompendo com as lutas tribais. Esse idioma alcançou inclusive
alguns países vizinhos, como Angola.
Mobutu era o homem forte de África Central. Com a sua força armada invadiu
Angola em 1975, apoiando o movimento da UPA/FNLA para a Independência de
Angola, fazendo parte das lutas de libertação que duraram até 2002. Ele também
31
conseguiu derrotar as tropas libianas no Tchad quando o coronel Kadhafi invadiu este
país, em 1983. (se eu não me engano).
Durante quase duas décadas e meia, de 1965 até 1990, o Zaire atingiu o seu
apogeu. Depois o país entrou num processo conhecido como Espiral Tribalista, que
se caracterizou pelo fato de o poder girar apenas entre os integrantes do povo Ba-
Ngala, que determinou o processo de decadência até o adoecimento grave do
presidente em 1996. Nesse ano, ele foi deposto e fugiu para o Marrocos, onde faleceu.
Mobutu na hora de independência era secretário particular de Patrice Emeri
Lumumba e vale lembrar que Mobutu herdou com a independência, um país próspero
das mãos de Kasavubu, em 1965. Depois, em 1967 ele se tornou ditador ao criar seu
partido e eliminou a democracia. Essa ditadura permaneceu até 1990 quando
ocorreram importantes movimentos no cenário internacional, como a queda do muro
de Berlim e sob pressão de George W. Bush restaurou a democracia.
Com essa pressão, Mobuto se sentiu traído pelas forças internacionais e
passou a incitar o povo para realizar o que ficou conhecido como incitação de saques
às empresas internacionais como indústrias automobilísticas e demais empresas.
Esse processo foi iniciado em 1991 e durou até 1992, o que resultou num processo
de pilhagem que desorganizou o país, como uma vingança contra os antigos parceiros
internacionais - o que levou o país a uma situação social muito grave.
A restauração da democracia ocorreu com a organização em 1992 com a
Conferência Nacional Soberana, dirigida pelo Arcebispo Laurent Mosengwo como
decorrência da pressão Belga, Francesa, Inglesa e Norte Americana. Como
decorrência desse processo foi instalado um sistema democrático com a adoção de
um Primeiro Ministro que deveria organizar eleições livres e soberanas. Nesse
momento foi indicado para ocupar o posto Etiene Tshisekedi, mas na cerimônia de
posse, ele rasgou a constituição que era apoiada no partido único e em decorrência
desse fato, 10 dias depois ele foi deposto por Mobutu, que indicou um substituto, que
conduziu o governo até 1997, quando foi deposto por Laurent-Desire Kabila.
O período de continuidade no governo, de 1990 a 1997 ficou marcado pelo
retorno das lutas pela valorização da identidade das diferentes “tribos”, cada uma com
suas línguas e cosmovisão próprias e pelos esforços de Mobutu para continuar no
poder passando a lutar por sua permanência e não mais a favor do povo, o que levou
a um processo que fragilizou a educação, ocorreu grande desemprego e conflitos
sociais.
32
Em 1997, eu entrei no AFDL, que era conduzido por Laurent Desiré Kabila
Mzee. Exerci um papel importante nessa organização, época em que nosso país
voltou a se chamar Congo Democrático. Esse fato ocorreu na noite do dia 17/05/1997
em Lubumbashi proclamado pela boca do Mzee Laurent Desire Kabila. Foi um dia
memorável para mim pessoalmente porque sempre vejo a imagem onde eu, à frente
de integrantes da comunidade, tomei um quartel da gendarmerie nacional na
commune de Makala.
O fato importante é que eu era o único integrante do AFDL e eu vi os soldados
se curvando diante de mim. Provei o gosto do poder. Fui carregado pela população,
me chamando de kadogo que significa criança. Foi um momento que queria reviver,
porque foi sem violência e os militares se renderam e me entregarem a bandeira, as
chaves das casernas, as suas armas e eu os entreguei para a população. Todos
estavam eufóricos e durante três meses naquela área eu era muito falado e
comentado. Então Mzee Kabila foi apoiado pelo exército Ruandês, bem como pelas
milícias militares zairois constituídas pelos soldados que desertaram e por crianças
que nos chamava de kadogo.
Kabila herdou um país quebrado, mas tinha a promessa de ajuda vinda da
Inglaterra, Bélgica, EUA e França. Seis meses depois de sua entrada no país, o
relacionamento com seus mandatários se deteriorou e aconteceu o que chamamos
de “boma Ruandais pe tika nioka”, que quer dizer: “mata ruandeses e deixa a cobra”,
impulsionado pelo lema de que a guerra será longa e popular. Mzee disse que fomos
infiltrados até na ponta da cabeça do país.
Ele envergonhou a secretária americana Madelene Albrhyte na frente de
todos numa conferência organizada pelo Clube dos amigos do Congo no Gabon,
quando disse que “o Presidente da República Democrática do Congo não é um
garçom de corrida do presidente americano, pois são colegas e o fundo de 10 milhões
de dólares não são suficientes para erguer a economia do Congo”. Isso foi a gota
d’água que desencadeou na morte dele. Como decorrência ocorreu a guerra de 1998,
onde os ruandeses foram expulsos do Congo. Muitos morreram e a miséria aumentou
muito.
34
do Catete, que simpatizava com os colonos, e a UNITA, apoiada pelo USA e África do
Sul, liderada por Savimbi, que era Ovimbundu.
Havia um problema no FNLA, porque Savimbi antes de fundar o seu partido
era membro. Eu me lembro de que grupo e de que os primos do meu pai fizeram
escolhas contrárias, pois um escolheu seguir a Savimbi e outro a Neto, mas o meu pai
não me explicou claramente o que acontecia no partido. Lembro de que na véspera
da independência ou logo depois, um dos primos do meu pai, recém-formado médico
na Bulgária, estava afetado no congo Brazza-Ville, onde trabalhava na conta do
governo, e teve que fugir depressa para nos encontrar em Kinshasa. A partir de então,
tanto ele quanto o meu pai começaram a fazer parte da UNITA, até a morte do Primo
do meu pai. Eu via como as reuniões aconteciam e toda a esperança que os pais
tinham de que a UNITA conquistaria o poder, mas pouco a pouco essa esperança foi
morrendo e o desânimo ganhando terreno nas vidas deles.
O meu pai já trabalhava como administrador adjunto do bairro de Malala,
depois administrador titular no bairro Mabulu, na commune de Makala em Kinshasa,
onde ele era presidente do partido do presidente Mobutu, o MPR, e militou muito. O
meu pai amou a política por toda sua vida, então eu admirava muito como ele se
destacava. Tudo que lhe confiavam dava certo e eu nisto alimentava a minha ideia de
um dia dirigir o país.
O meu pai trabalhou em muitos partidos políticos no Congo Democrático,
quase com todos os presidentes, com Kasavubu ele estava no ABAKO, com Mobutu
era MPR, com Kabila Pai foi CPP, mas com Kabila filho o meu pai não queria trabalhar,
porque, segundo ele, o Kabila filho tinha alguma coisa na morte de Mzee Kabila. Esse
foi o começo dos nossos problemas, mas antes que eu toque nesse ponto quero falar
da minha vida em Angola e o retorno ao Congo.
Em 1993 fui recrutado para fazer parte de um serviço secreto contra o poder
do presidente ditador Mobutu. Assim, fiz uma viagem no Baixo Congo na cidade de
Boma. Fui junto com minha mãe. Eu tinha 22 anos, recém-formado. Quando
chegamos lá, na frente da casa da minha vó tinha uma família amiga da minha avó e
o homem me chamou para conversar. No primeiro dia foi uma conversa normal, mas
no final ele me prometeu que tinha um negócio bom para me propor se eu topasse.
Passou três dias, ele veio me buscar por volta das 15 horas para irmos
caminhar. No caminho começou a me propor o negócio que me falou três dias antes.
36
Era para eu receber e passar informações, com uma condição: ninguém poderia saber
disso, nem os meus pais.
Eu perguntei que tipo de informação, ele me disse que seria tipo espionagem.
Eles me mandariam um código que eu deveria decifrar e depois eu deveria cumprir a
tarefa respondendo a mensagem também de forma codificada. Os códigos eram
números, animais e elementos da natureza. Se eu aceitasse o meu código chefe seria
cinquieme elemento (quinto elemento). Eu aceitei porque era apaixonado por séries
de espionagens muito mais do inspetor Derick. Pensei que seria fácil e divertido, mas
ignorava a grandeza da missão. Para que eu fosse admitido deveria passar por um
teste. Ele me disse que depois de voltar em Kinshasa passaria pelo teste e se
aprovado eu começaria a trabalhar. Quando voltei, fiquei muito doente o que me levou
a fazer uma cirurgia na parte de cima entre a minha bacia e o meu pênis. Não sei
como contraí aquela doença, mas fiquei dez dias internado e mais quinze de repouso.
Depois voltei à minha atividade cotidiana, que era ensinar matemática e física
na escola onde trabalhava. Passei um ano e tinha já esquecido o que tínhamos
conversado com o homem em Boma. De repente recebi uma carta que só estava
escrito wapiza cinquieme-elements. Na hora não entendi nada, mas quando chegou
à noite comecei a repensar, daí que me lembrei da minha conversa com homem em
Boma. Com aquela carta não sabia o que fazer, por que não sabia onde eles estavam
e a comunicação naquela época era somente via carta ou phonie, esse último não
tinha segredo você deveria gritar para se comunicar, e na frente de muitas pessoas.
Então o jeito era esperar eles entrarem em contato. Três meses depois, já no final do
ano de 1994, eu estava quase terminando o primeiro trimestre na escola, quando
recebi a visita de uma mulher, que veio a mando do homem de Boma.
Eu não sabia que o homem do contato era infiltrado do AFDL, a força armada
ou movimento que tirou o ditador Mobutu do poder. Só vim saber isso em 1996, porque
desde então só era código que a gente usava. Eu era o quinto elemento e em 1996
fui trocado para o nome de baleia. Esse segundo código só os chefes da organização
conheciam e eu estou revelando isso aqui, na esperança de que não vá me causar
problemas. A mulher me colocou em uma página das operações que orientava como
eu ia proceder, onde eu ia atuar e o que eu ia ganhar.
Eu estava encarregado de espionar os militares e para isso eu deveria me
infiltrar na auditoria geral militar, o que foi facilitado porque eu tinha um amigo cujo tio
era auditor geral e ele tinha uma amizade grande com a secretária deste tio, que
37
gostava muito fazer negócios. Fui apresentado a ela como facilitador em seus
negócios. Ela tinha negócio com os indianos e eu deveria trabalhar com eles. Deixei
de dar aulas e fui trabalhar de fachada com indianos, para facilitar o serviço do capitão
e nisso eu aproveitava recolhendo informações.
Eu tinha livre acesso na sede da auditoria militar na Gombe, de forma que eu
entrava e saía quando queria. Mas eu tinha a interdição de que não poderia me exibir,
devendo ser simples, para não chamar atenção de ninguém. Trabalhava de dia e de
noite fazia o meu trabalho duplo. Fiz muita coisa na conta do capitão e recebi muitas
informações que passei ao outro lado. Facilitei a venda de ouro, cobre e níquel e nesse
trabalho eu vi uma oportunidade de subir no meio político, mas para isso eu esperava
a mudança do regime. Eu sabia os passos e os movimentos que se fazia lá fora. Em
2016 fui intimado a deixar de trabalhar com os indianos porque eu deveria me
encontrar com um grupo das pessoas no leste do país Goma, as quais me passariam
as diretrizes para as novas ações.
Usei a minha posição como missionário e falei que precisava fazer missão no
leste do país por um tempo curto. Fui chegando ao novo encontro, no parque virunga.
Deram-me novas recomendações e muitas promessas que não se concretizaram. Fui
prometido a ser ministro da educação, mas quando chegou a hora certa fui passado
para trás. Voltei de Goma com uma grande motivação, agora eu deveria estar perto
da oposição para acelerar o enfraquecimento do regime. Fui procurar o presidente
comunal de UDPS no bairro de Makala, pedi a minha adesão ao partido e comecei a
trabalhar. A organização me pedia sempre para provocar confusão, não sei por que,
mas eu me saía muito bem nisso. Quando começou a marcha da libertação do país,
mandaram-me trabalhar na província de Bandundu, na fronteira com a província de
Kasai, na cidade de Dibaya Lube. Lá fiquei três meses, porque a marcha da libertação
durou somente nove meses e o país já estava sob o controle de AFDL.
Quando eu voltei em Kinshasa a marcha da libertação já estava na província
oriental, Kisangani. A minha missão desta vez era mobilizar jovens em prol de Mzee
Laurent Desire Kabila, coisa que fiz com sucesso. Na hora de entrar na capital tudo já
estava preparado e eu não precisei mais me esconder. Liderei a derrubada de vários
commune. Infelizmente, quando Mzee tomou o poder estava cercado dos soldados
vindos de Ruanda, os quais lhe ajudaram e não tinha muito espaço para nós. Muitos
dos companheiros nossos morreram envenenados, o que se caracterizou como uma
forma de acerto de contas.
38
A missão dos militares ruandeses era de isolar totalmente Mzee Kabila para
que ele não tivesse margem de manobra e tudo que nos foi prometido não foi
realizado. A queda do poder de Mobutu foi dia 17/05/1997 e Mzee ficou isolado de
nós até março de 1998, quando conseguimos superar as dificuldades e mandamos os
ruandeses de volta ao país deles. Neste meio tempo eu tinha recebido uma
gratificação com a qual eu faria uma especialização no Canadá, mas não se
concretizou porque quando a confusão com os ruandeses aconteceu, apareceram
vagas para trabalharmos e a organização precisava dos meus serviços, e eu acabei
ficando no país até a morte de Mzee.
ela, por que penetrar em francês quer dizer furar, entrar com força e no congo em
Kinshasa a gente usava isso como gíria para significar transar. Quando a moça
avançou em minha direção eu voltei para trás e cai e todo mundo começou a rir de
mim. Naquela hora entrou a Vitória e a sua filha. A moça conversou com ela e Vitória
entrou em casa, pegou a peneira e deu para a moça. Naquela hora a minha ficha caiu,
pois entendi que estava equivocado.
Também tinha o problema geopolítico. O separatismo e estigmatização dos
“Langa”. Esse problema se tornou um fenômeno, porque antes era os Ba-Kongo que
eram estigmatizados e sofriam do separatismo. Isso aconteceu porque MPLA, na sua
busca por vencer a guerra, fazia campanha de intoxicação contra o povo Ba-Kongo,
porque este era opositor e apoiava também UNITA. Então os Ba-Kongo consomem a
carne do makaku e uma pessoa ligada a MPLA pegava os crânios dos makaku, para
os colocar em caixas para fazer uma campanha, dizendo que os ba-kongo eram
canibais e não poderiam ascender ao poder, pois iriam comer os que não são ba-
kongo. Essa campanha fez com que haja até hoje separação entre os Ombundu,
Ovimbundo e Tsiokue e os Ba-Kongos.
O fenômeno Langa começou quando um grupo musical zairense, atual Congo
Democrático, chamado Zaiko Langa-Langa, foi tocar em Luanda. Fizeram muito
sucesso e os nativos de Luanda começarem a chamar os zairenses de Langa. Depois,
todo mundo que chegava do Zaire era apelidado de Langa e isso fez com que agora
os Ba-Kongo sejam separados com os Langas.
Hoje em dia tem o problema de separatismos contra os Ba-Kongo e a
estigmatização dos Langas, acrescentado ao preconceito dos “bayanzi”. Como se diz:
“a violência gera violência”. Bom, também o separatismo gera separatismo. Essa
forma pejorativa de se qualificar uns aos outros está na base de uma grande cisma
junto à população de Angola em geral e com luandenses em particular.
Esse processo já gerou tempos de muitas dificuldades entre os dois países.
A minha forma de ver as pessoas era diferente à dos luandenses, pois eles
conseguiam separar claramente as pessoas e faziam questão disso. Eu nunca
cheguei a perceber essa situação com clareza, até chegar a Luanda. Eles sabiam
diferenciar o branco com mulato, Ba-Kongo com os malanginos e langa como
regressados. Acho que isso não vem do Congo nem dos Ba-Kongo, pois no Congo a
única diferença que podemos enxergar é do branco e do preto, o resto não tem
diferença. No Congo, sejam mulatos, indianos, chineses ou japoneses, todos são
43
Congo eles eram chamados como bandidos e passaram a ser chamados como
bandibos.
Essa questão deixou a herança do antagonismo entre dois povos. Muitos Ba-
Kongo vivem em Angola como estrangeiros e muitos também vivem a mesma
condição no Congo. Isso contribui muito para a negação das relações com os seus,
que ficaram entre esses dois países ou contribui para ter dupla consciência. Eu
mesmo vivi esta situação, quando cheguei em Luanda, pois me considerava como um
sub mukongo, perdido e me sentia martirizado pelos olhares estigmatizantes que
sofria.
Era como um encontro com outro. Como diz Achille Mbembe (2017, p. 47):
investimentos. A maioria dessas pessoas não tinha nada a fazer, se não alcançar
algum ganho com o pequeno comércio. Nesse clima de dificuldades havia pessoas
que tinham rebanhos de animais como bois, carneiros e cabritos, mas com a guerra
não tinham como ficar expostos, então faziam trocas com os pequenos comerciantes.
Lembro que meu irmão mais velho, quando estava no Uambo, na guerra de oitenta
dias, fazia troca de bois por mandioca para fazer farinha, com a finalidade de cozinhar
funji (fufu), o principal condimento da culinária ba-kongo.
Aquelas pessoas que não têm grande capital para abrir empresas e não têm
como ascender ao crédito bancário, sendo que muitas dessas pessoas eram
estrangeiras, se não fizessem comércio, não teriam onde trabalhar. Em países que
têm uma taxa elevada de desemprego, o pequeno emprego é disputado com os
autóctones, então o destino destas pessoas seria o pequeno comércio. Muitas destas
pessoas são mulheres, chamadas de zungeiras. Mas os zungeiros não são somente
estrangeiros e sim uma mistura tanto dos luandenses, quanto das pessoas que vieram
do interior do país.
O fato é que atualmente o povo congolês vive em grande proporção na
informalidade e não somente os Ba-Kongos, mas a maioria dos habitantes da
República Democrática do Congo. Essa situação de miséria se ampliou com a
degradação da economia, que ocorreu quando o Congo era nominado como Zaire e,
como vimos, tudo começou em 1973, quando depois de um período de bem-estar e
segurança financeira o povo não tinha mais trabalhos fixos e a alternativa foi a
informalidade, como esforço individual para a sobrevivência. Assim, alguns
caminharam para o comércio ambulante, outros na bricolagem, outros artistas como
músicos, comediantes, parlementaire debout e outros na ociosidade; além dos que
migraram para os serviços religiosos e os vinculados a alguma manifestação de fé.
Esse fenômeno não deixou os luandenses indiferentes, porque eles se
depararam com pessoas que não recuam frente aos desafios, motivados pelo espírito
de Libanga. Assim se constituem em uma determinada casta que custa a conseguir
alguma coisa, mesmo colocando a sua vida em perigo. Os Langas encontraram na
guerra um campo fértil para conseguir mudar a vida. O país era dividido. Uma parte
estava nas mãos da UNITA e outra do MPLA. A UNITA como rebelde não tinha muito
apoio exterior e se apoiava nos comerciantes ambulantes. Além dos comerciantes,
precisava de mão de obra para trabalhar nos garimpos de diamantes que financiavam
a compra das armas e eram bem tratados pelos militares da UNITA em troca, os
47
Langas passarem a apoiar a UNITA, pois para eles a guerra não deveria acabar e
muitos enriqueceram neste período.
exemplo, quando a mulher vai se casar, a família do homem espera que dentro de
três meses ela fique grávida, porque já tem pretendente na espera desta criatura,
antes de nascer, qualquer que seja o sexo.
No outro lado temos a pessoa de Ziegler (1975), que mostra uma pessoa que
eu chamarei religio-antropológica. Partindo das características desta pessoa, segundo
Ziegler, a religião se destaca mais que a cultura, mas ambos fazem parte da
composição desta pessoa. Ele mostra uma pessoa com duas facetas, móvel e imóvel.
A mobilidade enfraquece a pessoa porque os elementos que a compõe estão na base
deste enfraquecimento, daí a existência se torna precária, dolorida e destruidora.
Ziegler (1975, p. 110) diz que:
Ele mostra que o que é imóvel e material é também imutável. Aquele que é
móvel é vivo e é também socializado, mas também bio-fisio-psicológico e a parte
imóvel o acompanha sempre.
O filho nasce sem nome prévio porque a família vai esperar ele vir ao mundo
para ver que tipos de relações ele trouxe. Zeigler (1975) cita Pierre Verger para
explicar esta questão, quando diz: “os vocábulos Iorubá são verdadeiras locuções
encantatórias, dotadas de poder, capazes de influenciar o futuro”. Porque pode ser
um chefe que está nascendo ou uma forma de encarnação dos antepassados ou a
fonte onde a família vai buscar sempre a força, então tem nome apropriado por tipo
destas pessoas. Por exemplo, no nosso clã a pessoa que recebe o nome de “Wumba”
é a fonte da energia ou força. Se este nome for dado de forma enganada, acontece
que ela nunca vai conseguir criar filhos, porque todos os filhos que ele vai ganhar
depois de alguns dias vão falecer.
A questão da nomenclatura não é simples, pois para nós é o que dá o
significado ao indivíduo e caracteriza a sua individualidade. Revela o seu valor e suas
capacidades futuras. O nome pode definir o futuro do indivíduo e pode significá-lo. E
Zeigler (1975) mostra isso quando diz:
51
uma descoberta da parte dele que estava junto com um jovem pastor. Depois desse
incidente ele começou a me fazer perguntas sobre o meu trabalho. Mesmo sendo
pastor, eu precisava me virar até porque em Luanda eu não tinha igreja que poderia
me remunerar para que eu conseguisse arcar com as minhas despesas.
Eu fazia comércio na compra de produtos de beleza na Namíbia e na África
do Sul e os vendia em Luanda. Daí expliquei tudo o que eu fazia além de pastorear.
Também lhe falei da missão que fiz no Congo Democrático. No final da conversa ele
me fez a proposta de eu o acompanhar em uma viagem ao Brasil. Naquela hora eu
não achei que ele estava falando sério, recusei diretamente até por que no dia
seguinte eu ia viajar para Namíbia comprar mercadorias, mas ele reforçou a demanda
e me disse que em 1997 ele esteve em Kinshasa para implantar a Igreja Batista
Nacional. De fato, ele trabalhou durante um ano junto com alguns pastores, mas
perdeu essa oportunidade por que teve que sair depressa, pois em 1998 a guerra
tinha chegado até a capital. Na verdade, eu tinha ouvido falar dessa igreja no Congo
e conhecia o pastor que tinha ficado como responsável.
Então o pastor Diambi me disse que eu podia viajar, mas reforçou que o
convite estava de pé. Fomos até a casa de seu amigo, onde testamos o laptop e
depois voltamos e nos despedimos. No dia seguinte eu viajei para Namíbia. Passaram
seis meses e eu havia esquecido do pastor Diambi e estava me preparando para viajar
ao Canadá, pois tinha ressuscitado esse sonho. Nesse cenário, recebo a visita do
pastor Diambi junto com seu amigo Zico, que vieram para falar sobre a proposta que
tinha me feito seis meses atrás. Claro que eu recusei porque já estava planejando
minha viajem para o Canadá e não passava por minha cabeça o Brasil.
Mas aconteceu que seu amigo Zico me persuadiu, dizendo que estava no
Brasil há onze anos, e que os brasileiros eram super acolhedores, que ajudavam a
qualquer um que quisesse emergir na vida. Ele disse que recebeu muita ajuda e
conseguiu se organizar na vida, de forma que os filhos e a esposa têm lugar porque
comprou uma casa e eles estão trabalhando e tem uma forte comunidade de
angolanos que falam Lingala, francês e português e além do mais sempre você
contará com a ajuda do pastor Diambi. Mas o golpe fatal que me fez pensar foi a
pergunta que me fez, ao perguntar se no Canadá eu teria uma família para me acolher.
“Você conhece alguém?” essas duas perguntas me fizeram pensar muito e pedi para
que me desse um tempo para refletir. Ele me disse para pensar rápido, porque eu não
tinha muito tempo.
54
na minha primeira viagem ao Brasil, organizei muitas ideias e eu decidi que voltaria,
mas para trabalhar de outra forma, para conseguir o que eu almejava.
de volta. Fiquei escondido e estava procurando o caminho para sair e consegui sair
no dia 23/12/2010. Novamente voltei para Angola, Luanda.
Nove meses depois, ou seja, em setembro de 2011, tentei voltar porque quase
todos os meus documentos ficaram, mas não consegui, porque era o ano eleitoral e
esperei até o fim das eleições. Como tinha confusão porque os opositores não
reconheceram o resultado, aproveitei e entrei e no começo era para buscar os meus
documentos, mas fiquei mais tempo do que o previsto, pois ocorreram muitas coisas,
dentre elas que fiquei gravemente doente e depois tive que fugir embaixo de uma
grande chuva para atravessar o rio Congo, para então me refugiar no outro Congo em
Brazza-Ville, que é a capital da República Popular do Congo. Até que me recuperei e
enfim voltei para o Brasil, em agosto 2012.
57
agente solucionador de problemas, para os quais os povos não têm solução e isso
inibe a sua força destruidora, colocando limites entre as atitudes dos integrantes de
cada povo. Vendo toda essa situação referente à feitiçaria, mesmo junto aos povos
Bantu, percebe-se a existência de preconceito e medo, principalmente na sua face de
destruição.
Neste contexto, como pesquisador originário e criado até a idade adulta
segundo preceitos mediados por cultura originária africana e atualmente caracterizado
como cristão evangélico, tenho claro que minha experiência com a feitiçaria se
manifeste como algo conturbado. Essa sensação decorre do fato de que na África eu
convivi em meio social, cultural e até familiar com pessoas que convivem e admitem
as práticas mediadas pela pessoa do feiticeiro. Decorrente destas práticas,
convivemos com relatos referentes ao que ocorre com pessoas que são alvo,
principalmente no lado destruidor da feitiçaria. Essas evidências geram em mim um
sentimento de repúdio, preconceito e de certa forma medo de me misturar e me
aproximar de suas práticas.
Vale ressaltar que este dilema alcança a dimensão familiar de forma direta,
pois meu Pai é chefe do clã e, portanto, é o feiticeiro junto a quem vivencio durante
todos os dias. O fluxo de pessoas integrantes do clã, que se caracteriza como uma
família ampliada, as quais recorrem à sua sabedoria e forças, para resolver problemas
frente aos quais se sentem enfraquecidos ou com dificuldade de superação.
Esta situação remete a Peter Fry (1998, p. 445) ao dizer que “o autor continua
afirmando que o feitiço é empregado para resolver questões de amor, de política, de
negócios e, sobretudo, de doença”. Nesta declaração Fry ressalta a face benéfica da
feitiçaria para os integrantes do povo Bantu, mas ocorrem muitas situações em que
as pessoas e o próprio feiticeiro vivenciam sentimento de decepção e frustração
quando não conseguem solucionar os problemas.
Essas posições geram em mim certo preconceito e até repúdio frente a estas
práticas, o que atribuo como decorrência dos ensinamentos recebidos pela e na Igreja,
a qual atribui que todas essas práticas são vinculadas e pertencente a satanás. Assim,
a diabolização da feitiçaria leva muitos cristãos a terem medo, desconfiança e
preconceito com relação ao que é referenciado como africano.
Ao chegar ao Brasil, percebi que aqui também se consubstanciava a
diabolização da feitiçaria, por meio do preconceito e do medo no meio evangélico e
na população comum. Como diz Nina Rodrigues (2006) no animismo fetichista negros
59
debate-se em duas formas: primeiramente por ser uma pessoa vindo de pais lusófono,
mas que viveu a maior parte da vida num pais francófono, considerando a
especificidade deste tema nos idiomas português e francês, como possibilidade de
compreender o significado da feitiçaria junto às pessoas que integram os cultos afro-
brasileiros e as igrejas evangélicas. Como segunda proposta de estudo e debate,
busco a compreensão de como a feitiçaria ganhou a conotação de ser desejada e
temida, tanto no Brasil como em centros urbanizados do continente africano
subsaariano.
Assim, esta pesquisa pretende investigar e compreender a origem dessa
posição, para possibilitar o entendimento que desmistifique os pré-conceitos que
envolvem e desvalorizam os cultos afrodescendentes ou afro-brasileiros.
É importante esclarecer que não existe uma religião organizada na África,
como aqui no Brasil, que trate da feitiçaria e dos poderes metafísicos de um líder, pelo
menos até a chegada dos colonizadores. Tanto no continente americano como no
continente africano subsaariano, junto aos povos originários existia uma crença, uma
fé e uma sabedoria relacionada ao subjetivo e ao transcendente, de forma bem distinta
de como ficaram esses saberes e essas práticas depois da interferência dos
colonizadores europeus e do processo de desaterramento e escravidão de pessoas
originárias que foram trazidas do continente africano.
No livro “Dinâmica da fé” Tillich (1957, p. 12) diz “que não existe fé sem
conteúdo que a preencha, pois, a fé sempre se dirige a algo determinado”. Partindo
dessa premissa teórica, entende-se que o que havia na África pré-colonial não era um
processo religioso, mas uma forma de viver e de pensar. Essa posição se referenda
na posição de que o que preenche a fé africana é a cultura, os costumes, a sabedoria,
os mitos, os contos, a dança, a música, a linguagem e a crença.
Ao olhar esse cenário contextual conforme a lógica das religiões, nos
defrontamos com a lei escrita, o ritual estabelecido, o templo construído e o sacerdócio
organizado como meios e lugares próprios para reger os seus ritos e as crenças, o
que se confronta com o que ocorre junto aos povos originários na África subsaariana
e em especial junto ao povo Bantu. No povo Bantu a posição frente ao sagrado e ao
religioso é inversa, pois não existe lei escrita, nem sacerdócio organizado, nem templo
erguido, nem ritual estabelecido, sendo que tudo se faz com base num contexto
cultural e de cosmovisão em torno do qual se fundamenta a base da fé e da crença.
61
Dessa forma a religião africana não é uma coisa singular, mas uma coisa
comum que se faz dentro do clã, nas comunidades da mesma família. Desta forma
uma pessoa sozinha não tem como construir ou constituir sua própria religião ou sua
crença, pois ela é coletiva e participativa, além de ancestral e histórica. Se uma pessoa
é arrancada da sua comunidade, ela fica desprovida de todos os elementos que
podem preencher a sua fé e a sua forma de pensar e viver.
As pessoas escravizadas que constituíam os povos afrodescendentes no
Brasil foram arrancadas de seus ambientes, sendo trazidas à força como mercadorias,
com crueldade e com cuidados para que não conseguissem repetir aqui a organização
social a que estavam habituados. Assim, aqui eram separados e lançados nas áreas
de trabalho de forma bruta e calculada, para que sua cultura, crença, pensamento e
hábito, tivessem um fim e não existisse a possibilidade de continuidade.
Chegando numa terra estranha onde não tinham nenhum elemento primário
para que desenvolvessem o seu pensamento, tiveram parte significativa de sua
identidade aviltada. A vida passava então a ser decorrente da vivência caracterizada
por um trabalho inumano. Depararam-se com uma terra sem sua cultura, nem a sua
forma de pensar e distante da sabedoria com a qual se sentiam inseridos nos
ambientes. Restou-lhes apenas o que estava com eles, ou seja, seus valores místicos
compreendidos por sua fé e crença, como diz Agemir Carvalho (2012, p. 158), “o negro
não podia se defender materialmente contra um branco que detinha todos os direitos;
assim, ele se refugiava nos valores místicos, os únicos que o homem branco não lhe
podia arrebatar”.
Nas senzalas. junto a outros africanos, mas de diferentes etnias, seus saberes
se organizaram num sincretismo que viabilizasse o desenvolvimento de sua crença e
sua fé. Cabe destacar que a forma africana de crença está ligada na sua forma de
construção sociológica, assim, é responsabilidade de cada família desenvolver a sua
crença. Deve-se entender que quando se fala da família, na África e em especial junto
ao povo Bantu, se fala do clã. Misturados na senzala não tinham como desenvolver
sua religiosidade originária.
Atualmente o que existe no Brasil são as consequências desta brutalidade
causada pelos senhores dos escravos e colonizadores. Estes possivelmente se
preocuparam em conhecer a forma sociológica e antropológica de construção familiar
do povo trazido para ser escravizado, para impedir a formação de núcleos de
resistência. Esse pode ter sido um dos motivos para a compreensão da atual forma
62
No ano de 2004 fui enviado para a África do Sul para fazer missão, mas como
estava na escola para refazer o ensino médio para estar nos padrões do ensino
angolano, fui depois de terminar o meu curso. Ao me deslocar para a África do Sul,
para guardar o anonimato com medo de retaliação, já que o Congo faz fronteira com
Angola, tive que mudar a minha identidade: o nome do pai, da mãe e o meu nome. Lá
fiquei seis meses na cidade do Cabo, no bairro do Metland, depois segui para o Brasil
em Belo Horizonte, Minas Gerais para atuar junto à junta administrativa de missão da
convenção batista nacional. No final de 2005 e em 2006, antes de voltar para Angola
65
para encerar o meu curso, acompanhei missionários nas ações junto ao povo Marubu,
AM e nessa atividade, tive desperto em mim o desejo e a necessidade de estudar
antropologia.
Eu sou da tribo Kongo, que vem do antigo reino do Kongo, sou do Clã Nanga
na Kongo, da etnia Ba-kongo, que predomina na parte norte de Angola e na parte sul
da República Democrática do Congo, na África e sou da raça Ba-Kongo. Nós Ba-
Kongos acreditamos que a Força é a alma e a vida da Pessoa e a Resistência é o
espírito como movimento.
66
Quando cheguei pela primeira vez ao Brasil, fiquei impressionado com o fato
de as pessoas falarem muito de Deus. Isso me fez perguntar “que país é esse?”. Que
seja criança ou adulto, independentemente da sua profissão, se falava de Deus. Eu
falei “cheguei ao paraíso” e isto me chamou atenção para saber: quem é esse povo?
Qual é a sua religião? É uma questão de hábito ou costume? É a sua cultura ou um
jargão? Estas perguntas me levaram a ter a curiosidade de compreender melhor o
país ao qual tinha acabado de chegar.
Ao buscar o significado, entendi que o povo brasileiro é muito religioso, então
de fato falar de Deus não é um chavão, mas vem da sua cultura e na sua história. Na
sociedade do povo autóctone do Brasil existe uma assimetria entre o poder político e
o religioso, que é também científico (medicina tradicional). Na outra parte tem povo
que veio da África, que é extremamente religioso, onde o poder político se confundia
com o poder religioso místico e a medicina ancestral. E tem o povo que veio da
Europa, encabeçado pelos religiosos católicos, como os jesuítas. Então essa mistura
pode ter dado origem ao conceito religioso que envolve muitos brasileiros.
Mas essa religiosidade a meu ver não é científica, quer dizer, não é racional,
mas é uma religiosidade sentimental, que depende do humor e sentimento de cada
um. É uma linguagem religiosa decorrente de um processo colonialista que também
tem base numa lógica de matriz doutrinária católica, amparada no pecado e na virtude.
70
Por outro lado, me deparei com uma situação oposta, pois muitos brasileiros
não conhecem a África. Pensam que África é um país, quando te perguntam de onde
viemos e ao respondemos que chegamos da África, para muitos ali termina o diálogo.
Percebo que muitas pessoas no Brasil têm uma percepção errada sobre como
vivemos na África. Tenho impressão de que muitos pensam que vivemos como nos
filmes do Tarzan. Quero dizer, que imaginam que vivemos junto com os animais, em
locais sem saneamento básico e que lá não tem estradas asfaltadas e nem casa de
alvenaria ou prédios com muitos andares, constituindo grandes metrópoles. Como diz
Mbembe Achill (2013, p. 35):
Muitos nos vêm como se fôssemos ainda da condição pré-humana. Foi nesse
ambiente e realidade que me deparei quando cheguei ao Brasil, mas hoje já faz parte
de meu dia a dia. Vejo pessoas lutando contra o racismo, mas às vezes eu penso
“será que vale a pena isso? Ou devemos mudar a forma dessa luta?”. Durante a minha
pesquisa tive essa percepção junto aos meus interlocutores. Agora a pergunta é,
quem é o culpado? Elas são erradas? Mas na verdade eu acho que a falta de
informações sobre a África no Novo Mundo e a negação de muitos afrodescendentes
de suas origens bem como sua cor, favorecem a questão do racismo, que tem como
um dos agentes a falta de conhecimento sobre a África.
Estou falando isso por conta do que eu entendi sobre o racismo no Brasil,
apesar dessa condição social se mostrar forte, como se fosse institucionalizada e
estruturada, com base em muitos fatores que são independentes das instituições. Por
exemplo, destaco o fato de muitos afro-brasileiros negarem veementemente as suas
origens por causa da vergonha e quando estão na presença das pessoas como eu,
eles te olham de uma forma estranha e te consideram diferente deles. Esses fatores
favorecem e mostram a existência enraizada do racismo, o que faz com que esse
processo de discriminação cresça muito mais. Também cabe destacar que muitos dos
afro-brasileiros homens procuram se casar com uma mulher branca e se é mulher vai
75
fazer de tudo para se casar com um homem branco. Esse fenômeno não é restrito ao
Brasil, pois se repete em muitos países.
Agora se olhar no outro lado no Brasil, tudo é rotulado e isso é promovido por
todos, seja afro-brasileiro ou não. Eu sei que enquanto mais falamos de uma coisa,
mas ela se destaca. Por exemplo, vendo a ginasta Rebeca Andrade ganhando uma
medalha a sua própria conterrânea ex-ginasta Daiana faz questão de enfatizar que “a
primeira medalha nesta modalidade veio através de uma menina negra”. A meu ver
não tinha importância afirmar isso, porque ela é brasileira como todos e eu posso frisar
aqui que também a menina que ganhou a medalha no skate é preta, mas não teve
essa atitude. Então esse tipo de comportamento, entendido também como forma de
resistência, de certa forma evidencia a discriminação, mas obrigatoriamente não
contribui para reduzi-la. Eu entendo a reação dela porque competiu muito tempo nesta
modalidade e ouvia muitas falas de que pessoas como ela não poderiam competir.
Quando a gente rotula, destaca e quando destaca discrimina e isso se caracteriza
como uma ofensa, qualquer que seja a forma pela qual venha a ser veiculada.
Fazendo isso ela não sabe do impacto que pode gerar nos corações das
pessoas que aproveitam essas posições para destilar seus ódios e rancores, de
muitas pessoas que são racistas conscientes ou até inconscientes. Eu vivenciei essa
questão de rotular a discriminação quando estive em Angola, pois essas ações
evidenciavam o preconceito e deixavam a pessoa como que vulnerável, pois a pessoa
se sente como que descoberta e sem meios de se defender. Desde que eu nasci, só
sabia da existência de preto, branco e mestiço, mas isso não fazia o caso de merecer
destaque. Quando cheguei ao Brasil, vim a conhecer morenos, pardo, índios,
indígenas e outros. Para falar a verdade, nunca me acostumei com isso e eu entendo
que isso faz parte da cultura brasileira
Agora a luta contra tudo isso ainda está muito fraca. Eu pude ver grupos de
pessoas organizadas pela luta, mas entendi que quando este grupo tem um
crescimento, rapidamente se envolve com uma vertente político-partidária e isso
enfraquece a ideia original e faz com que muitos deixem de lutar, pois tem início um
processo de caráter competitivo e individualista. O Estado brasileiro deveria promover
a luta contra o racismo e a discriminação, colocando em prática leis rígidas contra
todos e tudo que evidenciasse e promovesse atitudes discriminatórias e deveria
também fomentar meios para informar cada vez mais sobre a história verdadeira do
Brasil, falando das origens de todos os povos que compõem a nação brasileira, porque
76
não são somente os pretos que sofrem com a discriminação e o racismo, mas uma
gama das minorias.
Falando das leis, eu vi uma mulher cometendo um crime de racismo em
flagrante. Pagou a fiança de mil reais e foi solta. Isso é uma forma de promover a
discriminação e o racismo. Atos assim deveriam ser inafiançáveis e uma pena que
começa pelo menos com 10 anos de reclusão no regime fechado.
As pessoas precisam sair de suas zonas de conforto e devem mobilizar-se de
forma a constituir um bloco sólido e não lutar de forma dispersa, como é o caso de
muitos grupos de militância que não estão coesos e sempre ocorrem cisões. A luta
precisa se despolitizar, não pode ser a base dos partidos políticos ou de ambição
política. Diante disto, a pessoa afro-brasileira precisa conhecer a África, procurar
entender as suas origens e estudar mais sobre a história, a geografia e a cultura raiz
da África. Não a história do Egito, mas da África como continente. Falo isso por que
muitos dentre os que dizem ser combatentes do racismo, quando você se encontra
com eles, a primeira pergunta que me fazem é se sou haitiano. Como se todo mundo
que tem a pele escura fosse haitiano. Esquecem que tanto eu, quanto os haitianos e
eles próprios somos todos igualmente seres humanos.
Em 2013 ajudei uma amiga missionária brasileira a fazer missão no Congo
Democrático. Quando ela chegou, ficou admirada de ver estradas, prédios,
eletricidade, água encanada, carros e tudo mais. Um dos pastores com quem
conversávamos ao telefone me fez uma pergunta dizendo: “Sua amiga está
admirando tudo por aqui, que tipo de África que tu falaste para ela?” Eu respondi “eu
disse nada, mas é a visão que muitos têm pela África, aqui muitos pensam que ainda
vivemos na pré-história”. É como diz Achille (2017, p. 35): “preso em suas sensações,
ele luta para quebrar as cadeias da necessidade biológica, razão pela qual dificilmente
consegue dar a si mesmo uma forma verdadeiramente humana e para moldar seu
mundo”. Essa é a visão da África em outras regiões do mundo, não apenas no Brasil.
O africano é visto sempre como pobre e selvagem. Sempre necessitado
biologicamente e incapaz de moldar um mundo melhor para si mesmo.
Uma vez uma mulher queria fazer cabelo junto com a minha esposa e o filho
dela não queria de forma alguma. Ela perguntou para filho “por que você não quer que
eu faça cabelo com ela?” O filho respondeu “eles são haitianos!” e a mãe exclamou “e
daí?”. Isso não é uma conversa de homens brancos, mas dos descendentes africanos,
tratando os seus conterrâneos de uma maneira pejorativa.
77
É a mesma coisa que eu vivi em Angola, minha própria nação, quando fui
tratado de uma forma pejorativa como se fosse diferente dos outros, mas a nossa
única diferença era a língua. Como Achille (2017, p. 35) disse: “se o fóssil, escreve
Foucault, é ‘o que permite que as semelhanças subsistam através de todos os desvios
que a natureza atravessou, e se funciona antes de tudo como uma forma de identidade
distante e aproximada...’, o monstro, por outro lado, conta sobretudo e, ‘como na
caricatura, a gênese das diferenças’”. O monstro aqui é a língua que contra tudo
produz sotaque que nos diferencia. Como o negro é produzido, como diz Achille, o
africano também é produzido aqui no Brasil, como o Langa em Luanda, em cada
instante em que ele abre a sua boca e fala.
No Brasil, o africano é produzido num imaginário. Quer dizer, cada pessoa
tem a sua África na cabeça. A África é produzida por um lado como relação das
imagens vistas na televisão, no outro lado do mundo imaginário gerado pelas lendas,
mas longe no modo visto nas religiões de matriz africana. É a mesma coisa como são
vistos os haitianos - todos eles são ligados à tragédia de 2010, que devastou o seu
país. Já os africanos estão ligados a todas as tragédias do mundo e toda a malvadez
do diabo. Quando nos deparamos com essas condições, todo africano se questiona
se verdadeiramente somos o que os outros pensam de nós. Às vezes chegamos a
confundir nossa cabeça, nos achando perdidos. Por que diante de brasileiros somos
objetos ou pessoas que levantam perguntas “como você é” e “de onde veio”? “Quem
é você?”; “Faz quanto tempo que você está aqui no Brasil?”; “Estás gostando?”;
“Muitas misérias de onde você veio né?”; “Vai voltar um dia?”; “Aqui é melhor né?”; “O
que está fazendo aqui no Brasil?”; “Você é haitiano?”.
Qualquer que seja o lugar em que nos encontramos, somos bombardeados
com essas perguntas. As pessoas não fazem distinção entre brasileiro nato e o
estrangeiro ou haitiano. No prédio da igreja na qual trabalho, mora uma mulher que
veio da Bahia. Ela é da mesma cor que eu e logo a associam comigo. Várias pessoas
se aproximam de mim perguntando se minha mulher vende acarajé e pamonha, daí
eu pergunto... será que o brasileiro conhece o Brasil? Será que sabe que esse é um
país multirracial? São situações constrangedoras que vivemos todos os dias. E tem
pessoas que colocam o Haiti na África e mesmo que você lhes diga o contrário, brigam
afirmando a sua verdade. A nossa presença nos lugares atiça a curiosidade das
pessoas e vira atração, porque a pessoa mesmo se não te conhece, naquele instante,
78
Tudo isso explica a questão ontológica do candidato, quer dizer neste caso o
candidato exprimiu o seu fator pré-lógica. Levy-Bruhl (2008) fala de entender a pessoa
numa percepção ontológica, que significa que a pessoa está inserida no mundo por
aquilo que a constrói, mas participa dessa construção de forma mística.
Na maioria dos africanos existe ainda a mentalidade pré-lógica, quer dizer,
nós aceitamos dois princípios contraditórios. Isso não é de procurar, é só observar
melhor e vamos encontrar porque é mais fácil um africano acreditar num conto de
fadas, do que numa realidade cientifica, por exemplo. Um africano que está doente,
se falar pra ele que esta doença é provocada por uma bactéria ou micróbio ou que
tem uma causa mística para a qual precisa de um trabalho místico para se curar, e se
falar para ele, é uma doença natural, e precisa se cuidar bem para se curar. Ele vai
acreditar nos dois e muito mais no que é místico, mesmo que seja formado e seja
cristão, de forma que pode acreditar que ele vai procurar a cura mística ao ponto de
negligenciar o tratamento científico. É a essa espiritualidade a que estou me referindo.
O afro-brasileiro, por outro lado, é um religioso que acredita na ciência e na
mística, mas muito mais na ciência e se é estudado e cristão, a mística fica um pouco
menos privilegiada, diferente do africano. Ontologicamente, o afro-brasileiro é
diferente do africano, porque se para o africano é o mundo místico que o constrói, o
afro-brasileiro é construído no mundo socioantropológico e ele só participa no mundo
místico pela via religiosa.
Lendo o que estou escrevendo talvez não se consiga acreditar sobre a
crueldade a que estou me referindo aqui, pois ela é em relação a nós mesmos. Posso
pegar um exemplo do que aconteceu em 1994 em Ruanda, quando os Tutsis lutaram
contra os Hutus, mantando-se mesmo sendo do mesmo país. Também está na parte
em que nós africanos nunca chegamos a um consenso para resolver um problema
africano, que sempre mantém cada um em seu canto sem fazer uma grande
confederação. Seja na vida de dia a dia, seja na política ou na vizinhança. Nós
africanos não conseguimos nos ajudar, por medo de sermos enfraquecidos
espiritualmente. Isso faz com que todo aquele que aspira ser líder ou chefe, presidente
da república ou qualquer lugar de liderança, deve ser muito forte espiritualmente.
Apesar de não ter capacidade ou habilidade de dirigir, mas se é forte espiritualmente
conseguirá se manter no poder. Sem isso não vingaria nem um dia no poder, porque
estará no meio de um povo fortemente espiritual. Somos vulneráveis porque essa
questão nos leva sempre a ter um guru ou chefe espiritual ou um semideus, o faz com
80
que nos tornemos fanáticos e prontos para matar com a finalidade de defender nosso
líder. É isso que ocasiona o nascimento dos ditadores e tiranos que permanecem
eternamente no poder. Isso permite também que sejamos sempre subjugados pelos
outros, o que causa a miséria que assola as outras pessoas.
Tem caso que se eu falar não vai acreditar... na campanha eleitoral de 2006,
no Congo Democrático, meu pai trabalhava com um candidato à presidência e eu,
recém-chegado do Brasil, e estando em Angola, aproveitei que o meu pai já trabalhava
com a pessoa, que era um professor de universidade e um ilustre político, além de ser
pessoa com muitas qualidades e grande inteligência. Então estávamos na
organização de um encontro no estádio do mártir em Kinshasa, o comitê estava se
organizando e meu pai era líder do comitê. Ocorreu o consenso de que precisávamos
organizar um encontro para planejar o evento para que ele fosse um sucesso. Nesse
sentido foi apresentado ao candidato a proposta de ele desbloquear o dinheiro
necessário para pagar as despesas que deveriam ser realizadas para garantir o
sucesso do evento. Quando o meu pai terminou de conversar com o candidato, ele
disse ao meu pai que daria a resposta depois de conversar com uma pessoa em quem
tinha grande confiança. E aconteceu que essa pessoa sugeriu ao candidato de no
lugar de fazer toda aquela despesa com os panfletos, carro de som e outras coisas,
seria melhor pagar um milhão de dólares a um marabou, que faria fetiche invocando
os espíritos, para que o estádio ficasse cheio de pessoas e o candidato aceitou a
proposta e deixou toda a preparação de lado. Chegando no dia tivemos menos de 100
pessoas dentro de um estádio que cabe 90.000 pessoas. Então veja como a
candidatura da pessoa ficou vulnerável por causa da espiritualidade.
Também somos capazes de ajudar algum estrangeiro abrindo
escancaradamente as portas do país, dando-lhe liberdade de fazer tudo que quiser e
recebendo ainda o apoio das autoridades do país, para subjugar os seus próprios
irmãos, favorecendo a corrupção em grande escala de tal forma que o país fica cada
vezes mais vulnerável. A pessoa pode começar o seu negócio com o seu próprio
esforço, mas vai terminar misturando isso com as muletas vindas dos Nganga Nkisi,
Grio, Tradipraticien e outros. Ninguém tem capacidade de viver sem pensar no que
diz respeito à espiritualidade. Essa é a realidade pura e cruel africana.
A maioria dos africanos acredita que ninguém pode fazer uma coisa e isso dar
certo, sem a intervenção do mundo espiritual. No caso aqui, me refiro aos
antepassados ou à feitiçaria. Por exemplo, Neymar não pode jogar como joga sem ter
81
algumas grises, gris (feitiço) que lhe ajudem a fazer isso. E você vai ver isso em todo
lugar. A pessoa vai lavrar a terra e vai plantar, mas depois disso vai buscar alguma
coisa espiritual para lhe ajudar no crescimento dos seus plantios. A lógica seria que
ela adubasse o seu terreno antes de plantar e lutar contra as pragas durante o
crescimento se fosse o caso, mas não, ela vai buscar a força sobrenatural que vai
fazer o trabalho restante para ela e, se não der certo, a culpa sempre é de algum ou
a razão será que os antepassados não receberam do bom grado as suas oferendas.
(SARS-CoV-2) entre 2020 e 2021, fez-se uma correlação entre a ideia sobre a figura
do demônio, Exu, ignorância religiosa e o papel da educação religiosa”.
O segundo exemplo, ocorreu na comunidade onde atuo e se deu quando
anunciei na igreja que vou fazer minha pesquisa num terreiro da religião de matriz
africana. Quase perdemos metade da igreja, pois eles interpretaram muito mal essa
possibilidade e começarem a falar que eu, como sou africano, estou fazendo
macumba e isso é coisa do diabo. Então o meu lugar não era mais na igreja, caso
contrário eles iriam embora.
Falando do diabo, tocarei diretamente na forma como as religiões de matriz
africana são vistas no Brasil, considerado a forma como são discriminadas
popularmente. Isso me chamou muita atenção quando cheguei ao Brasil. Aliás, a
primeira vez que eu ouvi falar de macumba foi na boca de um treinador de futebol em
Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, quando atuava como treinador
do Vita club. Sempre que o time que era atacado, ele gritava um nome de macumba,
nós não entendíamos o que ele pretendia dizer.
Quando cheguei ao Brasil, ouvi falar de macumba e todo mundo tem medo,
sejam crentes ou não crentes. Ao mesmo tempo, muitos querem saber e participar
disso, de tal forma que negam quando estão em público, mas no âmbito privado o
abraça e o pratica. Isso me chamou muito a atenção e me despertou o desejo de saber
mais sobre isso.
Quando comecei a pesquisar sobre isso, me deparei com uma outra
realidade. Vi uma coisa totalmente diferente do que podemos chamar de feitiçaria na
África. A feitiçaria (sorcelerie) na África e nos Ba-Kongo em particular é outra coisa,
outra prática. Também o que chamamos de ancestralidade (bonkoko) é outra coisa
do que se encontra aqui no Brasil. Equiparar as religiões de matriz africana com a
ancestralidade africana e a feitiçaria (sorcelerie) é errado, apesar de existirem
africanos ensinando isso. O que se vê no Brasil é uma religião organizada, também
um meio de encontro, de resistência e de identificação.
Na África em geral e nos ba-kongo em particular, a feitiçaria é uma arma de
destruição e é praticada muitas vezes de forma solitária. A sua forma de operar é
muito diferente com o que ocorre no que chamamos religião africana. Ela não precisa
de espaço próprio, nem discípulos. A pessoa não precisa ser iniciada, mas precisa ser
contaminada e acabou. As pessoas que têm isso são malvistas e muitos são banidos
e temidos na sociedade. Isso está na base do fato de muitas crianças serem
83
abandonadas na rua à sua própria sorte porque foram acusadas de serem potenciais
feiticeiros (sorcier). A feitiçaria (sorcelerie) é diferente do bonkoko, da religião, do
griotismo, de tradipraticien do nganga nkisi. Tudo que citei precisa do espaço próprio,
de amuletos, de instrumentos, discípulos e disciplina, mas a feitiçaria não precisa de
tudo isso.
O feiticeiro (Ndoki em Lingala e kikongo, buloji em Tshiluba e cheitani em
Suahili) pode usar qualquer coisa e a contaminação nisso vai de um simples toque até
qualquer coisa, principalmente alimentos. O propósito é de fazer mal, causar dor e até
matar - e nesse sentido não existe meio termo. Na maioria dos casos, o feiticeiro atua
solitariamente e em poucos casos tem cúmplice, que na maioria das vezes é com
crianças e se uma pessoa mais velha for contaminada, vai enlouquecer.
O feiticeiro faz viagem astral, não tem limite nem fronteira. Pode chegar aqui
no Brasil num piscar de olho. Transforma casca de amendoim em avião à noite, pode
ser criança de dia, mas a noite é um rei, rainha, príncipe ou princesa. Eles estão em
constante conflito com o restante das pessoas. No caso de uma pessoa assim entrar
na sua família, muitas coisas serão destruídas e muitos morrerão, porque isso acaba
com o trabalho, a união, a saúde e, em grosso modo, acaba com os alicerces da
sociedade.
A ancestralidade atua como nossa ontologia e nossa identidade, onde todo
mundo se encontra e se identifica com o meio pelo qual nós nos construímos enquanto
sociedade, povo e família. Um poder respeitado, atua em toda esfera da sociedade.
Sem isso não existiria a nossa sociedade. A ancestralidade é a expressão com que
me refiro para nomear como bonkoko, a qual se caracteriza como força vital da nossa
sociedade. Sei que essa posição se mostra com duas facetas: uma que tem base no
que eu aprendi e vi como prática de meus antepassados, com que me foi ensinado e
com as quais vivi como referenciais benéficos para nossa sociedade. Outra é o que
chamamos de uma arma de destruição e isso é proibido e não está ao alcance de
todo mundo.
Ninguém pode ser chefe ou dirigente na África sem ter o poder de
ancestralidade, se não ele não permanece nem um dia no poder. O bonkoko capacita
a pessoa para bem exercer o seu papel na sociedade. Os nossos dirigentes sabem
disso e não podem ser presidente da república ou primeiro-ministro ou no lugar que
seja, sem ser capacitado no bonkoko. Nós falamos que “il faut ba fongola yo miso po
okoma motu makasi pe okoma na miso minei”. Esse poder vale inclusive para quem
84
estiver liderando uma igreja cristã. Se ele foi iniciado, se manterá dirigente, porque é
praticamente impossível você dirigir sem ter força vital suficiente para exercer o seu
papel. Quando eu estava na minha caminhada política, vivenciei muitos fenômenos
atípicos da feitiçaria e do bonkoko. Porque todos os dias você será sondado, sempre
terá alguém tentado se aproximar de você para te testar e saber se você tem força
suficiente e é capaz de exercer a função que pretende. É uma das razões que faz com
que eu não seja bem-visto, porque comigo tinha outro poder, outra força. E hoje muito
dirigente africano mistura isso com as sociedades secretas, como maçonaria e outros.
A ancestralidade coloca limite e freio aos impulsos das pessoas, fazendo com
que entendam que as pessoas da minha sociedade não são únicas, mas sim uma
comunidade que precisa viver em harmonia. Dessa forma, a ancestralidade na minha
sociedade faz com que as pessoas pensem muito bem antes de se aventurar, tendo
respeito em todo nível da sociedade. Essa posição faz com que a hierarquia seja
respeitada e o chefe seja venerado, pois é reconhecido como quem melhor dirige a
sociedade. Essa cosmovisão ensina aos filhos o respeito aos pais e aos mais velhos
e promove o bem como referencial de relação fraterna.
Numa palavra, a ancestralidade (Bonkoko) é o elemento que coloca o
equilíbrio na minha sociedade, ela é temível sim, quando a pessoa se esquece dos
princípios que regem a vida. Em sentido contrário, ela nunca será referencial de luta
e conflito, como é apresentada na sociedade brasileira. Em todos os clãs, em minha
sociedade, tem um chef dotado de poder sobrenatural. Eles são os guardiões dos
clãs, são sábios, e são referência do lugar onde todo mundo se refere e procura ajuda
nas questões difíceis, complicadas e impossíveis de serem resolvidas com os
recursos meramente humanos.
O grande erro que muitas pessoas cometem é fazer oposição entre Bantos e
Nagôs. A meu ver muitos pesquisadores procuram na crença Banto, uma forma de
hierarquização clerical, mas não acharão. Mas o encontram no candomblé nagô e
classificaram isso como uma religião pura e vinda da África. A questão é que, quando
se fala das religiões de matriz africana, precisamos identificar o que se desenvolveu
e se estabeleceu aqui no Brasil e procurar se esses rituais e formas de ação existem
na África. É importante não esquecer que a África é um vasto continente que tem
diferentes maneiras no que diz respeito à espiritualidade.
Por exemplo, junto aos Ba-Kongos, existe uma hierarquia que organiza os
discípulos nas casas dos chefes de terra ou território. A capital do Congo Democrático
85
é propriedade dos batekes e dos bahumbus e esse povo tem os chefes deles e onde
eles morram é uma espece de terreiro, no qual atuam o chefe espiritual e seus
discípulos, dentre os quais virá quem o substituirá quando ele falecer. E se vai mais
profundamente ao interior do Congo-Central, minha província, vai encontrar esse tipo
de organização no mbetenge. Aliás, em todo território congolês existem essas
organizações que representam uma forma de organização encontrada no território
africano.
Na África do Sul vai encontrar os sangomas, em Angola sobas, só para citar.
A questão é saber se essas organizações representam a África. Representam a
cultura ou religião africana? Representam a pureza da religião africana? Não sei como
responder a essas perguntas, porque na África existe uma gama no que diz respeito
à organização espiritual. Confesso que o que encontrei aqui no Brasil está muito longe
de algo parecido do que é na África, mas isso não tem nada a ver com o que possa
dizer respeito à pureza da religião africana.
Fazer uma declaração assim é um suicídio, mesmo que exista um elemento
africano no que se faz aqui no Brasil, é muito diferente com o que existe e ocorre na
África, apesar do tempo passado. Isso é como ignorar a forma de como os povos
africanos se constroem enquanto sociedade. Procurar a África dentro dos cultos afro-
brasileiro é um exercício perdido. A África deve ser tomada em conta como ela é e o
que se faz fora da África também deve ser tomado à parte.
É a mesma coisa do cristianismo, o que começou em Jerusalém com os
discípulos de Jesus é totalmente diferente no que se vê no mundo inteiro. Pode haver
semelhança, mas nunca acharão Jerusalém dentro do cristianismo praticado em
Roma, Brasil, EUA, Europa ou África. A falta de conhecer melhor a África deu lugar a
muita especulação. Podem achar que estou delirando ao falar assim, porque sou
apenas um novato que inicia mergulhos nas águas profundas da antropologia, mas
tenho a certeza de que vivo nos dois mundos e conheço o que estou falando, vivo,
sinto e isso faz parte do meu ser.
86
faz com que essa pessoa seja chamada de afro-brasileira, porque é nos elementos
culturais afro que se destaca a sua africanidade e nos elementos do catolicismo,
espírita e ameríndio que se destaca a sua brasilidade.
A pessoa brasileira carrega com ela múltiplas atitudes, segundo a sua
identidade étnica. No tempo das crises existenciais é que se evidencia o fato de ela
ser carregada com resquícios ameríndios e nela se manifestarão atitudes afro-
brasileiras e atitude índio-ancestral. Estamos falando de resquícios porque a pessoa
afro-brasileira não é uma questão étnica, mas socioantropológica. É uma pessoa
múltipla devido à sua história e sua construção como pessoa no Brasil. No momento
das crises existenciais a pessoa tende a demostrar as atitudes inatas e as diferenças
diante das situações, principalmente no tempo de perda, morte, separação ou
desaparecimento. Placide Tempels (2009) nos explica isso no comportamento Ba-
Kongo que ele estudou:
Ao chegar ao Brasil tinha uma vaga ideia do que encontraria, mas apesar do
tempo e da diversas idas e vindas, ainda não tenho uma concepção segura do que
seja o Brasil e os brasileiros. Visitando cidades como Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia,
São Paulo, e os estados do Espírito Santo e Paraná, ampliei minha visão do Brasil,
um lugar onde as minorias são estigmatizadas, e comecei a me interessar a conhecer
mais destas minorias, principalmente os da minha cor de pele.
Queria saber, olhando para eles: como eles vivem como pessoa? O que eles
têm? De que eles precisam? Que homens são eles ou que tipo de pessoas são eles?
Como eles pensam? O que eles precisam acima de tudo? Por que seus cultos são
discriminados? Será que há magia nestes cultos? O que isso significa? Como isso
opera? Qual é a essência disto? Como isso se organiza? Que lugar isso ocupa na
vida de cada uma dessas pessoas? São muitas as questões que passam pela minha
cabeça e que me deixam confuso. Estas situações me incentivaram a começar a
pesquisar sobre a história afro-brasileira para ter mais conhecimento.
90
pessoa morre, sua força continua. Existe uma forte hierarquia entre as forças. Uma
força que pode ser exercida em cima de todas as forças inferiores, descendentes,
animal ou mineral. A sabedoria Banto corresponde ao conhecimento dessas forças,
mas apenas a sabedoria divina conhece todas elas. Para Tempels (1945), o que os
colonizadores viam como crenças sobrenaturais e mágicas são reveladas de acordo
com a filosofia Banto como uma expressão perfeitamente natural e lógica de uma
visão de vida baseada em forças. Ele critica a teoria de que não há filosofia africana.
Na concepção do mundo segundo o povo Ba-Kongo do qual eu faço parte há
uma coisa muito importante que é a base de todo o nosso pensamento: a crença.
Tempels (1945) não falou sobre isso de uma maneira detalhada. Eu entendo que não
se pode falar de uma filosofia sem falar no que ela acredita. O nosso mundo é
construído pela crença que, por engano, foi caracterizada como religião. Para mim
tudo começa pela crença. A organização de uma sociedade é ligada a uma crença. A
construção de uma pessoa é ligada a uma crença. Vivo o que eu acredito, mas não o
que eu professo. Antes de eu professar uma coisa, devo acreditar nela, se não seria
somente um jargão, que não tem utilidade. A vida, a fecundidade e a união como
relação interpessoal têm como base a crença.
Essa é a razão dessa pesquisa, que faz a abordagem de um estudo
antropológico com o foco na feitiçaria, aqui chamada de magia ou bonkoko, mas que
para mim é o núcleo da crença do povo Ba-Kongo, que na concepção originária banto
se mostra como forma de poder respeitado e venerado, como a base de todas as
respostas. No contexto da religiosidade e da cultura popular de base afro-brasileira,
apresenta-se como algo temido e evitado. A crença nessa abordagem é o elemento
principal pelo qual eu acredito na organização social e na construção da pessoa. Tudo
passa pela crença. No Brasil pude observar a presença desse vínculo entre a crença
e a pessoa afro-brasileira.
Muitas pessoas se consideram Afro-brasileiras somente por causa do seu
pertencimento na religião de matriz africana. Este pertencimento ultrapassa a barreira
étnica, racial e tribal. Tem pessoas que não são descendentes de africanos, não
pertencem a nenhuma tribo ou etnia, nem da raça negra, mas se consideram afro-
brasileiras. Porque eles têm crença, e essa crença os inclui na sociedade afro-
brasileira e lhe tira dos laços de sangue familiar originais. A religião faz com que estas
pessoas se reorganizem numa nova sociedade, a qual a raça, a etnia e a tribo não
falam nada, mas sim a crença.
92
Luis Nicolau Parés (2007) mostra esta mutação ou transformação na sua obra
quando se refere à formação do candomblé. Parés (2007) afirma que Vivaldo da Costa
Lima, “foi o primeiro autor a chamar atenção sobre como, aos poucos, o termo “nação”
foi perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase
exclusivamente teológico”. Ele mostra a passagem de um conceito político ao
teológico. Parés (2007) mostra ainda como o conceito foi além do que é étnico e
biológico para um parentesco religioso: “como bem notou Lima, o parentesco biológico
foi substituído pelo parentesco do santo, decorrente de processo iniciático”. Aqui a
questão do sangue não fala mais nada, a pessoa embarca num processo de mutação,
de transformação clãnica e étnica ao incorporar um conceito de nação religiosa.
Os pais biológicos se tornam pais santos, o laço de sangue se torna de amor,
da crença. A casa familiar se torna terreiro e o seu mundo agora é o dos rituais,
iniciações e tem uma herança de linhagens da família de santo. “Consequentemente,
o conceito de nação religiosa ficou estreitamente relacionado com as diversas
linhagens ou genealogias da família-de-santo, através dos quais a norma dos ritos e
o corpo doutrinário são de uma forma ou de outra, transmitidos” (PARÉS, 2007 p.
102).
Se, para Weber (2004), uma das funcionalidades da religião é providenciar
um sentido à existência do sofrimento e algum meio para superá-lo ou transcendê-lo
e para Malinowski é ajudar a suportar situações de pressão emocional, para os
pesquisadores da África central, é não somente a prevenção do infortúnio, mas a
maximização da boa sorte. Parés (2007) afirma “eu na minha pesquisa apontei que a
função principal na religião ou culto de matriz africana e de outorgar a identidade aos
seus praticantes, através dos rituais e iniciações e concertar os problemas existenciais
dando-lhes sentido”.
Assim, fez uma história da noção de pessoa que com tempo vai evoluir. Se, conforme
Mauss (2003), o nome insere a pessoa na estrutura social, com a pessoa afro-
brasileira é diferente. Não é o nome, mas a magia que faz com que a pessoa seja
inserida na estrutura e esfera social.
A pessoa afro-brasileira não é o fruto dos antepassados, nem de suas
encarnações, mas uma construção social, que vai desde a descoberta do Brasil até
os dias do hoje. Ela é o resultado de fatos socioantropológicos. Por isso o nome não
influencia sua vida. A magia é o elemento central para a formação da pessoa afro-
brasileira. Não são os elementos externos que determinam as características da
individualidade da pessoa afro-brasileira, porque ela não tem um genótipo
determinado, mas são elementos internos que determinam sua individualidade.
Exemplo: rito, magia, crença etc. Mauss (2003) mostra como na China o nome acaba
remetendo na individualidade, ou seja, dá a individualidade ao sujeito. Na Índia o nome
faz com que a noção de consciência individual seja anulada ou absolvida na
sociedade.
Segundo Mauss (2003) a noção de pessoa foi desenvolvida em Roma e na
Grécia. Em Roma foi instituída a pessoa jurídica, ou seja, aquela que tem direitos
sociais, que se separam da aquisição da personalidade. De acordo com Mauss,(2003)
isso aconteceu nas revoltas dos povos para ter reconhecido o direito como cidadão e
aquisição do filho a ter direito à vida ou anulação de direito do pai a determinar qual
filho vai morrer. Na Roma Antiga ocorreu uma distinção entre substância interna e a
máscara (o elemento externo). A pessoa afro-brasileira é pode ser comparada à
substância interna, porque a máscara - que posso chamar aqui como cor da pele,
raça, etnia ou tribo - não tem interferência na formação desta pessoa.
É possível afirmar que os aparatos externos nada têm a ver com a construção
da pessoa afro-brasileira, porque me deparei com pessoas totalmente brancas, mas
que se consideram afro-brasileiras e com pessoas totalmente negras que não se
consideram. O que chamo de externo é a cor da pele, irmão ou irmã, pai ou mãe
(família biológica) forma de se vestir etc. e o que chamo de interno é principalmente a
sua crença.
Na Grécia foi instituído o conceito de pessoa moral, uma dimensão moral da
pessoa, o que quer dizer que a pessoa é um ser autônomo e independente. Não existe
a autonomia nem a independência na formação da pessoa afro-brasileira, porque ela
depende da sua crença na magia (feitiçaria), que lhe dá o caráter subjetivo. A pessoa
96
afro-brasileira nos cultos de matriz africana recebe a sua autonomia através dos
Orixás, sem os quais o sujeito não teria como atuar na sociedade.
Mauss (2003) fala que o conceito de pessoa no cristianismo quer dizer a
noção de alma individual, que remete à consciência, que define a noção de
indivisibilidade da racionalidade. A vida interior é, pois, o que define propriamente o
indivíduo. Nisto temos uma dicotomia entre o exterior e o interior, o que quer dizer
“personagem” contra o “Eu”. Na parte da personagem temos uma confusão entre
pessoa e coletividade, uma decisão de máxima sociológica e mínima psicológica. No
Eu uma decisão máxima psicológica e mínima sociológica.
Roger Bastide (1960, p. 118) explica esta decisão máxima sociológica e
mínima psicológica, quando falou da fuga dos escravos dizendo:
Levy Bruhl (2008) pensa a pessoa a partir de uma percepção ontológica, isto
quer dizer que a pessoa está inserida no mundo (sociedade) pelo que a constrói, ao
mesmo tempo em que participa dessa construção. Mauss (2003) pensa em um sujeito
que faz parte de tudo que é construído. Levy-Bruhl (2008) parte de um sujeito que
participa de forma mística na sociedade. Eu parto de uma historicidade mista dos
elementos sociológicos e místicos, que vão até um sujeito místico que é
socioantropológico. Assim, a pessoa afro-brasileira é o inverso de um sujeito
construído pelos elementos sociológicos e místicos, para se tornar ela mesma um
sujeito místico socioantropológico. Esse sujeito não se considera independente
porque ela é ligada aos Orixás e são eles que lhe dão a identidade própria.
Outro ponto importante com relação ao nome, está na posição de o nome
carregar a alma, o que tem uma dimensão sociológica, porque insere a pessoa na
sociedade e na dimensão ontológica que é caracterizada por sua essência. Em termos
metodológicos, Mauss (2003) mostra como a pessoa passa da personagem à
individualização e que isso acontece no desenvolvimento de uma subjetividade
interna. Por outro lado, Levy-Bruhl (2008) parte da redução dos vínculos que
conectam a pessoa na sociedade, para a noção da individualização. Já a pessoa afro-
brasileira parte de uma composição histórica múltipla para configurar uma composição
mística que desenvolve uma subjetividade tanto interna quanto externa, o que
possibilita a noção de pessoa exprimir uma dupla metamorfose.
Nessa perspectiva, Dumont (2000) desenvolve uma teoria sobre o
individualismo que se baseia na sua própria experiência na Índia, que é uma
sociedade holista. Ele fala nos kanaka, para quem o indivíduo não é a pessoa. Dumont
(2000) faz, pois, distinção entre sociedades individualistas e holistas, mostrando que
na sociedade individualista a parte é superior ao todo. Isto quer dizer que há
subordinação da sociedade para com o indivíduo, de forma que a sociedade atua
como meio para o indivíduo conseguir seus fins. Na sociedade holista é ao contrário:
o indivíduo é subordinado à sociedade. Dumont (2000) aponta uma contraposição de
interesses na sociedade individualista, enquanto na sociedade holista o que é
interesse direto da sociedade é para o indivíduo, o que representa coincidência de
interesses.
No individualismo temos as posturas amparadas em posição referenciada no
liberalismo; no holismo prevalece a sistemática da dádiva. No individualismo a coisa
é superior às pessoas. Dumont (2000) destaca outro aspecto do individualismo ao
98
que está no centro, que incorpora os deuses e faz mediação entre os deuses e a
sociedade. Monique Augras (2008, p. 21) explica melhor a essência desta pessoa:
Iniciático quer dizer do início, iniciar-se é passar por um conjunto de ritos que
levam o fiel de volta aos começos do mundo, as origens do ser. O saber
iniciático é o saber das origens, que não se assimila apenas, se vive.
Tamanha é a transformação do iniciado, que recebe outro nome: tornou-se
outro. A iniciação, o recomeço é, portanto, metamorfose: o outro que substitui
o neófito, quem é, de onde vem, o que quer dizer? (AUGRAS, 1983, p. 21).
foram bem recebidos. Depois tudo vai se normalizar. Se foram bem recebidos e bem
tratados, vai ter fartura na casa e na família. Os pais dos gêmeos devem ser bem
cuidadosos e atentos, pois não podem tratar os gêmeos diferentemente. Se
comprarem uma roupa nova para um, devem comprar para o outro e devem ser
idênticas.
Voltando às relações que se estabeleceram entre as pessoas escravizadas,
além das particularidades já apresentadas em relação aos gêmeos, cabe apontar para
a cultura religiosa heterogênea. Nos primórdios, como mostra Mintz e Price (2003), ao
destacarem que os vínculos das relações pessoais experimentadas no convívio
imediato entre essas pessoas atravessaram o tempo e se mantêm até hoje, mostram
que é aí que reside a força das religiões de matriz africana e o elemento principal na
formação da pessoa afro-brasileira. Sem isso não existiria a religião de matriz africana,
nem a pessoa afro-brasileira.
Esta minha afirmação não quer dizer que estou enfatizando uma continuação
direita das culturas africanas no meio das pessoas que foram escravizadas no Novo
Mundo. Estou me referindo aos resquícios de alguns aspectos, os quais mesmo
separados apontam ser praticamente impossível de serem cortados. A nova cultura
religiosa dos afro-americanos, como dizem Mintz e Price (2003), é fruto da capacidade
de inovação e criatividade deste povo. Por exemplo, a língua crioula falada no Haiti, é
uma inovação, como uma demonstração de capacidade de resistir e inovar. Isto eu
pude ver no Templo dos Orixás. Ali os cultos de matriz africana têm essa capacidade
de inovação, pois havia muitos elementos presentes, que se apresentam como nítida
adaptação e inovação devido às necessidades e aos acontecimentos que se fazem
presentes naquele contexto.
Seria leviano dizer que os cultos de matriz africana são uma continuação
direita das práticas africanas. Estes cultos sofreram mutações, transformações que
resultaram no sincretismo que hoje são sua força. Por esta razão, não vou fazer
comparações das práticas ou dos elementos. Vou fazer como Strathern (2014)
propõe: ver o que está acontecendo e criar uma analogia para tentar explicar segundo
o meu entendimento. Não vou me propor a pensar nada, mas a olhar o outro,
experimentar o problema e ver quais argumentos elaborarei. Uma coisa é certa: o
espírito da coisa não muda. A cosmovisão e o contexto cultural e social podem mudar
o significado, mas o elemento central, o espírito da coisa, permanece intacto.
103
Estabeleci contato com uma instituição que se assume como tendo vínculos
com a cosmovisão Banto como parte do processo investigativo da pesquisa. Essa
instituição é “O Templo dos Orixás”, criada e mantida a partir das ações de um
nigeriano que, em São Paulo, criou a organização como forma de manter vivas as
tradições e preceitos de suas origens. Essa instituição se ampliou e tem uma casa
ativa na cidade paranaense de Paranaguá, que será descrita e apresentada.
No desenvolvimento desse texto, fiz referência à instituição por ter realizado
entrevistas com diversas pessoas para compreender as questões centrais dessa
pesquisa. Assim, ao entrevistar uma integrante desse grupo e perguntar sobre o fato
de ela ser branca e porque, mesmo assim, se considera como afro-brasileira, a
interlocutora me informou ser discípula da Mãe de Santo do Templo dos Orixás de
Paranaguá, onde foi realizada a pesquisa de campo. Aqui a nomearei como Luz, para
não expor a sua identidade, conforme foi combinado como condição da entrevista. Ela
é filha de descendentes poloneses, trabalha no porto de Paranaguá e faz parte do
Templo dos Orixás. Ela é um dos braços direito da Mãe de Santo em Paranaguá.
Conheci Luz no primeiro dia em que entrevistei a mãe de santo. Foi em
novembro de 2018 e, naquele dia encontrei a mãe de santo sentada na sua cadeira,
tendo ao seu redor 24 discípulos, sendo 7 homens e 17 mulheres. Todos estavam
sentados no chão, descalços, na forma de meditação. Todos que fossem entrar
deveriam deixar seus sapatos para fora e se curvar até ao chão, beijando os pés da
mãe, pedindo a bênção e ela os abençoava.
Quando cheguei na porta de entrada, ela se levantou para vir me receber.
Entrei com os meus sapatos e não beijei os pés dela. Ela me deu uma cadeira e então
a minha colega, que me apresentou a esse terreiro, tomou a palavra e falou “Iya esse
104
é o Titi colega que eu tinha falado que vinha para conversar sobre o Templo dos
Orixás”.
A mãe deu um sorriso e me perguntou “de onde você é” e eu respondi. Ela
falou “eu também, a minha origem é do Congo, porque os meus avós me falavam isso
e gostaria de ir um dia no Congo atrás da minha origem” e eu respondi “estou à
disposição, se quiser ir é só me chamar e te levarei” e ela deu um sorriso. Nisto eu
estava olhando os discípulos e vi que tinha pessoas brancas, mas Luz me chamou a
atenção, porque era loira, branca mesmo. Eu olhava para ela e me perguntava “o que
ela está fazendo aqui? Aliás o que eles estão fazendo aqui? Porque não é o lugar
deles”. Tudo isso acontecia porque na minha concepção o afro-brasileiro seria uma
pessoa da pele escura. No mínimo um mestiço que tem predominância escura. Nunca
passou pela minha cabeça que uma loira se considerasse afro-brasileira e se
considerasse como tendo ascendência negra.
Enquanto estava conversando com a mãe, a minha atenção estava sempre
nela, porque ela se destaca. Aquele dia não falei com ela porque era o primeiro dia e
eu queria conhecer o terreiro e conversar, explicar a minha motivação, para depois
começar o meu trabalho. Passou um tempo que eu ia lá, mas não via ela e na minha
quarta ida perguntei dela para a mãe e ela me disse Luz estava trabalhando, mas
sempre estava por lá. Então a mãe me disse “você quer conversar com ela?” eu disse
“sim”, ao que ela replicou “na próxima vez que você vier aqui ela estará para conversar
com você”.
Então, na minha quinta visita, Luz estava presente. Quando eu cheguei
naquele dia estava a mãe, a filha dela que aqui eu identifico como Ludi, Luz, Ana, o
advogado, a professora, a enfermeira e o motorista. Como de hábito, quando cheguei
a mãe veio me receber na porta da entrada do quintal e entramos. Naquele dia fiz
questão de tirar o meu sapato. Queria sentar-me no chão como os outros, mas a mãe
falou “você é meu convidado, não pode se sentar no chão”. Com essa atitude,
diretamente reconheci nela o elemento cultural dos Ba-Kongo. Se você é o convidado
de um mukongo, ele vai te tratar como príncipe, vai fazer de tudo para que você se
sinta exaltado e feliz e a mãe de santo tem esses elementos, de exaltar os seus
convidados e olhar primeiramente na barriga, não na face, mas nunca falei para ela
sobre disso.
Os Ba-Kongo não olham diretamente para o rosto dos convidados, quando te
recebem, te olham na barriga e tem um ditado tradicional que diz: “mopaya ba talaka
105
ye na elongi te kasi na libumu”, o que quer dizer “não se olha o convidado na cara,
mas na barriga”. Me sentei na cadeira que ela me mostrou e Luz estava sentada no
chão. A mãe me perguntou se poderia começar a conversar com Luz e eu falei que
gostaria de começar com ela e terminar com a mãe. Então comecei a conversar com
ela.
“Qual é o seu nome?”, “Luz...”, “o nome do seu pai e mãe?”, ela me respondeu
e com essa resposta vi que os pais dela tinham nome polonês. Perguntei o sobrenome
dela, porque não é um nome de descendente polonês e ela me respondeu “desde a
barriga da minha mãe os orixás tinham escolhido esse nome para mim”. “Como você
sabe disso?”, “a minha mãe me falou”, “faz quanto tempo que você está no templo
dos orixás?”, “5 anos”, “mas como você falou que desde a barriga da sua mãe os
orixás tinham escolhido o nome por você?”, “a minha mãe era do candomblé”, “por
que você não a seguiu no candomblé?”, “antes eu não acreditava nisso, eu era
católica”. “Por que deixou de ser católica?”, “antes de conhecer o culto de matriz
africana eu não vivia, eu era separada da realidade, a minha existência era separada
por um vazio muito grande e um sentimento desconhecido, não via sentido na minha
vida”. “E agora como você se sente?”, “agora me sento viva”.
“Quem é você?”, “Eu sou um descendente afro na pele branca”. “Como
assim?”, “Porque hoje eu entendo que a minha ancestralidade veio da África, não da
Polônia”. “Explica-me melhor!”, “como tinha te falado antes, eu não vivia até renascer
quando comecei a professar a religião de matriz africana, nisto eu me vi muito mais
afro-brasileira que uma polaca como me qualificava antes, hoje me sinto 100%
brasileira e 100% africana, não tenho nada a ver com a Polônia. O culto aos orixás
me fez viver, deu sentido para a minha vida. Eu vivia depressiva, nada era bom para
mim, mas hoje vejo o sentido da vida. O culto dos orixás ressignificou a minha vida”.
Ela me disse que há muito tempo sua existência era separada do mundo real
por um vazio e um sentimento desconhecido, disse que “a minha vida não tinha
sentido, não me sentia viva em nenhum lugar, mas quando comecei a acreditar e
professar a religião de matriz africana, vi que este vazio e o desconhecido
desapareceram e agora me sinto viva, útil e me sinto como se tivesse nascido na
África em outra encarnação”. Essa declaração mostra claramente como uma pessoa
ultrapassa todas as barreiras e fronteiras existenciais para se achar numa nova
configuração da sociedade pela qual se torna integrante.
106
No dia a dia é muito complicado por que as pessoa passa te questionar desde
o começo a nossa vida a questão afro ela é viva por causa da nossa
religiosidade, ela não é uma coisa só de lembrança ele é muito viva então se
pela amanhã nós temos que levantar fazer um ritual por estar acuado fora de
casa usar um ornamento daqui da religiosidade uma peça no aquele dia por
traz uma auto identificação uma força daquele dia, eh as pessoa questiona
na rua, questionar você pode ignorar, mas ai você começa a ser separado na
convivência social, as pessoas te quer bem, mas você se sente excluído.
Aqui a entrevistada coloca em pauta o dilema que vive em dia a dia, como
estão sendo hostilizadas e estigmatizadas. Ela evoca a questão afro-brasileira, o que
para ela é ligada com a sua vida. Mostra claramente como pertencer na religião de
matriz africana ressignifica a sua vida e como ultrapassa a questão da luta cultural e
se torna uma classe na camada social brasileira.
Bastide (1960) diz: “a conclusão que se depreende do capítulo anterior é que
a civilização africana (e a religião é dela parte integrante) tornou uma subcultura de
grupo” sendo ela uma subcultura, está na base de organizações de militância para
uma luta equitativa dos direitos. Pude identificar este sentimento nas pessoas que são
objeto da minha pesquisa. Pude ver na fala da Ludi, considerando que ela é a filha
biológica da Mãe de Santo do Templo dos Orixás em Paranaguá e discípula número
um do terreiro. Ela disse que devemos nos organizar na militância violenta, partir para
a guerra para que as nossas vozes sejam ouvidas, porque acha que é a última coisa
que falta para nós sermos ouvidos.
107
Então eu perguntei “se você não acha que ter uma militância e partir para a
guerra é uma coisa de mais? Por que já tem vários movimentos que lutam pelo direito
dos negros?” Ela respondeu:
É por isso que precisamos de uma militância que vai abranger todo mundo
que faz parte das religiões de matriz africana sem distinção da cor da pele, coisa que
já se faz nos movimentos que existem. Assim, na medida em que “O protesto do
escravo e a religião” de Bastide (1960) mostra exatamente o que está sendo tramado
no coração da pessoa afro-brasileira, começando no elemento místico nas
resistências como fuga e violência, hoje é o elemento místico da religião que está no
centro para motivação de uma resistência. Hoje não falaremos mais de fuga individual
ou grupal como um protesto, mas a resistência para achar um lugar nas diferentes
esferas da sociedade. E o elemento principal que ajuda a propulsar isso é a religião.
Não foi somente a religião como elemento catalisador que ajudou a frisar a
passagem do ódio individual à resistência coletiva, como diz Bastide (1960), hoje ela
é também um escape para lhes ajudar na reivindicação contra a injustiça social e uma
forma para que se sintam vivos. Como meio para se constituir enquanto sociedade, a
religião é a alma de tudo que eles podem fazer.
Dessa forma, a religião não somente lhes ajuda como meio de se identificar
enquanto pessoa integrante a uma sociedade, mas como um meio que lhes ajuda na
resistência e no posicionamento na sociedade. Também se apresenta como um meio
para valorização e afirmação social. Se no tempo da escravidão os quilombos foram
o lugar de refúgio e proteção para as pessoas escravizadas, hoje este lugar é a religião
nos terreiros.
Para chegar neste ponto, Bastide (1960) mostrou como o branco fez para
escapar do ódio do negro. O branco precisou criar uma paranoia no negro, uma
dualidade de personagem. Num lado o feitor como um personagem brutal, em quem
108
o negro poderia descarregar o seu ódio e o senhor que lhe dava a benção no
crepúsculo e que lhe permitia a dançar à noite, mostrando que os respeitava. No
Império, o Brasil teve a instituição dos apadrinhamentos, como pessoas que lhes
defendia contra a brutalidade de seu senhor. Esta dualidade funcionava entre o
padrinho amado e o senhor detestado. Nos conventos essa dualidade funcionava
entre o abade e o santo. Para terminar este assunto, Bastide (1960) finalizou falando
de um velho costume português, que é do testamento de Judas.
Outro meio de fuga das pessoas escravizadas foi o suicídio. Para eles foi o
meio mais fácil e curto para facilitar a sua volta rápida para casa. Neste caso não é
questão da covardia como, mas é que nós acreditamos na vida após a morte, porque
é lá que vivem os antepassados. Então o suicídio de certa forma é o caminho que
pode levar a alma de volta para casa. Como Bastide (1960) diz: “o africano não separa
o mundo material, como nós o fazemos do conjunto dos valores que ocupam cada
posição ecológica nesse mundo; ele não vê a colina como uma colina, mas como a
morada deste ou daquele espírito ou como o centro tradicional deste ou daquela
cerimônia”.
Ainda com relação às entrevistas, destaco o depoimento de RS que aponta
que todo o grupo acaba por aceitar as pessoas segregadas, até porque existe um
processo interno de identificar a que etnia a pessoa pertence, observando a forma de
ela viver e como ela se sente, até que eles também acabam sendo segregados por se
manterem perto dela, mas aí eles não mais conseguem se identificar com os outros
grupos. Então acaba se formando um núcleo para poder organizar um meio em que
possam conviver com este ser que a sociedade não aceita.
Em continuidade pergunto: “A senhora Roseli é da descendência das pessoas
afro-brasileiras?” Como resposta ela aponta que
não tem como você determinar ascendência dela né porque ela é uma
mistura de muitas etnias. Então brasileiro ela é um pouco de cada etnia que
compõe a cultura brasileira desde a época da colonização mesmo que agora
tudo se transformou. Agora você está perguntando de formação ou de
descendência?
(Roseli) você ter só uma descendência e não ter uma ou muita mistura, então
eu sei que tenho a mistura europeia, por que isso daí tem que buscar e sei
que tenho parentes que são holandeses, os meus bisavós por parte do pai e
ai fui saber por que meu pai é paraibano, só que justamente por causa do
sobrenome é que ele sabe que parte de quem eras família por causa de
sobrenome eles adotava do oficio que eles praticava, os holandês quando
acostaram lá na paraíba, eles adotava os nomes do oficio deles. Eles
plantavam pera então o meu é pereira aí através do sobre sobrenome sabe
que parte da Paraíba que eles estavam então pelo sobrenome eles
identificavam onde que eles colonizaram quando eles chegaram da Holanda
e aí você busca até na minha própria personalidade, você começa a ver,
quando você conhece um paraibano a forma deles de ser eu me acho neles.
(Roseli) eles são contestadores, tudo tem que ser como deve ser, são muito
firmes, muito família, muito de respeitar autoridades dos pais, tem essa coisa
família para eles é tudo. Então eles mantêm os padrões. Para a nossa cultura
aqui do sul e sudeste é muito diferente, mas é assim que eles são. Então
mesmo eu não tenho tido contato maior com a minha família paraibana, mas
eu me reconheço quando eu vejo um paraibano, aí também eu reconheço
quando vejo um africano. Eu me reconheço então você vai se achar em
determinada situação e tem aquele que você puxa mais, tem aquele que você
traz mais forte né.
Por exemplo, a etnia na qual você volta aqui, vai falar com o jeito daquela
entidade de trabalhar agora eu entendi que ele faz isso, faz aquilo, ele
reconheceu isso aí você vai achando os vínculos. Dentro da umbanda você
consegue achar isso então, por exemplo, os caboclos que na verdade são
indígenas, mas não são todos indígenas aqueles que tinham uma forma de
ser e de trabalhar com a terra, na mata tudo, mas eles quando possa para vir
trabalhar. Eles entram numa linhagem e aquela linhagem dos caboclos, mas
ele trabalha com a terra, ele se assemelha à forma deles, então, na hora que
você vai ver que ele vem para fazer o ritual, fazer alguma coisa ele vai usar
beberagem, ervas, porque eles viviam na mata também eles eram caçadores,
eles eram pessoas também como indígena, pois aquele conhecimento é
também do indígena.
um filho de xangô é muito agitado. Eu mesma sou desse jeito: eu brinco muito.
Todas as pessoas sabem que ele é um santo que é muito engraçado, muito
divertido, alegre como todos. Ao mesmo tempo, em algumas ocasiões, eu
não estou para brincadeiras, eu mudo minha aparência, eu fecho a cara. Acho
que isso acontece quando estou sob o odum [a influência] de Iansã, então
meu rosto fica carrancudo, eu fico aborrecida com qualquer coisa, eu reclamo
e fico chateada facilmente. (SEGATO, 2005, p. 235).
112
esculturas de Òsogbo foi um artesão do mesmo grupo do sacerdote que veio da África
especificamente para isso. Esse espaço tem vários alojamentos. As salas e os
espaços dos orixás de alguns axés que foram determinadas para ter um espaço
específico para todos dentro de um espaço maior.
Esta casa tem amarelo terra e essa cor é desde o início e é bem parecida
com as construções africanas. Também na África, em abéòkutà, a casa é da mesma
cor. Esta casa é o templo da família de odùdùwà no Brasil. Existe também outro templo
em Tocantins, cujo terreno foi comprado há mais de 25 anos e está sendo construído
há cinco anos e o líder é o Bàbá King. O Templo dos Orixás pertence à nação Nagô
(ixéxé) da tradição Iorubá.
Eu conheci esta casa (terreiro) através de uma colega e amiga, Ana. Estudei
junto com ela em algumas disciplinas do Mestrado na UFPR. Ana é professora de
sociologia em Paranaguá, onde também é a sua residência.
Ela frequentava a Mãe de Santo do Templo dos Orixás, me indicou e fui bem
recebido pela Mãe de Santo. Quando começamos o ano acadêmico a minha grande
114
preocupação foi “onde farei a minha pesquisa?”. Queria logo começar a entrevistar as
pessoas e estabelecer o meu campo. Tive muitos contatos com muitas pessoas, mas
nada deu certo. Até que, no segundo semestre, quando conheci a Ana, minha colega
da sala, que mora em Paranaguá, no dia 8 de outubro de 2018, estávamos a conversar
acerca dos nossos projetos e como seria o local de nossas ações de pesquisa de
campo, o que motivou essa colega a me perguntar “onde é o seu campo?”, eu
respondi que estou à procura, ainda não achei, e ela retrucou “você não quer ir
conhecer o terreiro que eu conheço e frequento?” e perguntei aonde?
Ela me disse “minha amiga a mãe dela é Iya no templo dos orixás se quer
posso conversar com ela para que você vá lá e estabelecer o seu campo lá” e eu
aceitei na hora. Terminou o intervalo, voltamos nas aulas e passou quase uma
semana, quer dizer dia 15 de outubro 2018, Ana me mandou uma mensagem dizendo:
“conversei com a Iya e ela me disse depois de dia 25 de outubro ela está livre, você
pode ir o dia que quiser”. Fiquei muito feliz com a essa notícia e perguntei o que ela
poderia querer para eu fazer antes de ir ao seu encontro.
Ela me disse que o primeiro dia seria somente uma conversa para nos
conhecermos e explicar para ela o que pretendo fazer e como vai ser feito e ela me
falar o que posso e o que eu não posso. Eu aceitei e logo marquei o dia: 8 de novembro
de 2018 foi uma quinta feira às 14 horas. Naquele dia eu saí de Curitiba as 10h30 e
cheguei em Paranaguá às 11h45. Ana foi me buscar na rodoviária e me levou para
casa, onde almoçamos. Ao chegarmos ela estava acompanhada de sua amiga adepta
do templo dos orixás. Depois de almoçar saímos da casa da Ana e seguimos para o
terreiro. Quando chegamos ao terreiro, encontramos a Iya sentada na sua cadeira e
os seus discípulos sentados no chão e os outros que chegavam pediam benção e
beijavam os seus pés, e tiravam os sapatos antes de entrar na peça onde estávamos.
A nossa conversa naquele dia se pautou no que eu poderia fazer e o que eu
não poderia. A Iya me disse você pode participar em algumas cerimônias que
fazemos, tipo o ebó, mas o ifá você não pode participar. Só no final, quando os
iniciados vão sair que você pode participar. Tem lugar aqui na casa que você não
pode chegar e você pode utilizar o termo feitiço e falar da feitiçaria. Você pode me
chamar como quiser e se quiser me reverenciar como os meus discípulos estão
fazendo pode. Se não quiser não tem problema. Pode participar nas refeições, mas
se não quiser também não tem problema.
115
Pode ficar aqui quanto tempo você precisar e deve participar em Santos, São
Paulo, no festival do ifã pelo menos uma vez antes de terminar a sua pesquisa. Eu
expliquei o que faria. Disse a ela que ficaria no terreiro dela observando e fazendo
entrevistas e conversaria, com as pessoas que puder, mas o meu foco é ela. Faria
perguntas esquematizadas e espontâneas. Participaria no que ela permitir e seguiria
as diretrizes dela. Isso foi mais ou menos a nossa conversa no primeiro dia. Não fiz
nem uma pergunta relacionada ao meu trabalho. Esta casa (terreiro) tem 30
discípulos, fora os clientes que são mais ou menos 20 por mês. Tenho mais com a
Mãe de Santo, e com sua primeira discípula que é a sua filha biológica e duas das
suas discípulas que aqui estou chamando-as de Luz e Luz2.
O líder máximo desta casa é Síkírù Sàlámì King, Iorubá da Nigeria, babalorixá,
doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e fundador de um dos maiores
templos de orixás no Brasil, o Odudua Templo dos Orixás, com 6.300 metros de
terreno, de frente para o mar e mais de 2.500 metros de área construída, na cidade
de Mongaguá, litoral paulista, o qual se caracteriza como espaço de ensinamentos e
práticas da cultura e da religião tradicional Iorubá.
Ele é filho da linhagem real, nasceu na cidade de Abéòkúta e é Sacerdote
Iorubá há décadas. Mora no Brasil desde 1983. Começou sua caminhada espiritual
116
ainda na infância, na sua cidade natal, onde foi iniciado em Ifá-Orúnmìlà, Ìyámi
Òsòròngà, Egungum e diversos outros orixás. Sabe manipular as plantas porque tem
um grande conhecimento sobre isso. Na Nigeria ele tem vários cargos hierárquicas
de grande importância e tem o título de Bàbá Egbé da Sociedade dos Babalaôs de
Abéòkúta. É também fundador do templo de orixás em Abéòkúta, Nigéria. Casado
com Ronilda Iyakemi Ribeiro, brasileira; ialorixá, doutora em antropologia da África
negra e em psicologia pela Universidade de São Paulo, docente e pesquisadora da
USP e da UNIP e líder do grupo de pesquisas (CNPq) de estudos transdisciplinares
da herança africana. Os dois escreveram o livro “Exu e a ordem do universo”,
ministram cursos e palestras e promovem publicações, além de realizar consultas
oraculares utilizando o èrìndílógún (o jogo dos dezesseis búzios de Ifá). São pioneiros
no ensinamento da prática do jogo dos dezesseis búzios e de outros conhecimentos
relativos aos orixás. Tudo isso acontece no Oduduwa Templo dos Orixás, que tem
desde 2003 a sede própria, e é onde atuam em atividades religiosas, como iniciações
em orixás e rituais de ebó e bori.
Como todo africano genuíno, ele tinha preocupação no que diz respeito a
questões da África subsaariana e isso o levou a se dedicar na pesquisa e fazer recurso
nas fontes da oralidade e dos mestres tradicionalistas na África. O resultado desses
estudos e pesquisas foram publicados em livros e estão presentes nos textos de
palestras, seminários e cursos, conforme escrito em sua biografia:
prazer ou rebeldia, mas em relação às funções próprias e específicas que o ritual tem
ou produz. Perguntei a duas mulheres que são professoras e adeptas na casa, que
estavam prestes a participar de um concurso público e, apesar das preparações nas
leituras das apostilas do concurso, precisavam fazer o ritual de ebó para que isso lhes
ajudasse a conseguir a aprovação.
Quando voltaram da prova estavam muito felizes porque o resultado foi
positivo, mas a terceira mulher que estava lá e participou do concurso não foi aprovada
e estava triste. Quando fui perguntar por que ela não havia passado, ela me disse “eu
não fiz o ebó é por isso que não passei”. Então está muito claro que as funções e as
especificações que os rituais produzem e têm fazem com que os adeptos se
reconfigurem sempre para alcançar os resultados esperados em suas vidas.
No momento do ritual, quando foi feito os Orìkis e azadura dos Orins, que são
justamente para agradecer a mãe terra e o Ori do animal que está sendo abatido para
essa troca energética, para fortalecer aquilo que está em deficiência na energia do
paciente. Orìkis são evocações feitas para o orixá. É ele que traz as mensagens do
exu. O Ori da pessoa é que determina o ritual que vai ser feito, porque ele é o deus
individual e sabe a necessidade da pessoa. Exu vai trazer essa mensagem, onde todo
Ebó vai ser montado sobre.
Bori é um ritual que vem depois de Ebó, para alimentar o Ori. É específico e
pré-determinado para a tradição milenar ioruba. Isso se faz como acontece na África.
A pessoa vai ser deitada numa esteira, que eles chamam de trono da mãe terra, e vai
ser feito o ritual de abate de alguns animais que foram determinados como alimento
do Ori. Também existem algumas especificações através do oráculo. Por exemplo,
algo como uma energia que adentrou no paciente. Às vezes há outro elemento
colocado, mas isso é o oraculo quem determina. Também vai o Ìgbín, que é o caracol,
vai pombo, angola, pato, galinha... quando é específico vai cabrito, carneiro, mas
somente aquilo que o oráculo determina e em alguma ocasião específica. O sangue
dos animais vai ser despejado no dedo esquerdo (hálux) do paciente, que significa o
caminho ancestral da pessoa. Também significa aquele que religa tudo ao Ori e pinga-
se uma gota do sangue no centro da cabeça do paciente. No Borí o sangue não vai
ao assentamento (encruzilhada).
O Ifá é diferente, porque é um ritual feito pelos Babalaô em Mongaguá. Faz-
se através de uma leitura oracular que vai determinar os rituais que serão feitos por
Ifá. Os elementos são guardados em segredo do sacerdote e quem faz parte do ritual.
É o ritual de iniciação feito pela família dos sacerdotes em favor do discípulo que
iniciado. Nesta casa eles cultuam Omolu, que é sacerdote de todas as faixas etárias.
Para as pessoas envolvidas nesses rituais existe muita seriedade em assumir essas
posições que não existe diferença de vida. Quer dizer, no templo estou da mesma
forma que estou em casa.
A senhora Roseli dos Santos Freitas, líder desse templo, tem 60 anos. Aos 12
anos ela teve as primeiras manifestações e a partir dali ela ingressou na umbanda até
a idade de 25 anos, quando saiu para entrar no candomblé da nação keto de casa
branca na Bahia nos anos 1990. Ficou até 2001, quando entrou no Templo dos Orixás.
O que me chamou muita atenção nesta casa, foi a multiplicidade da pessoa afro-
brasileiras. Encontrei-me com pessoas praticamente brancas sem ter uma linhagem
121
Há 30 anos que o Bàbá King monta viagens para a África (Nigeria). A partir
da iniciação de Ifá é determinado quando a pessoa tem que fazer iniciações na África.
De 2 em 2 anos vai um grupo e isso já faz parte de uma logística que o Bàbá king leva
as pessoas na África (Nigéria na cidade de Abéòkuta e Òsogbo) para o templo de
Òdùdùwá. Nessa viagem já foram 101 pessoas, 60 brasileiros e 51 estrangeiros
(eslovenos, italianos e franceses). Os brasileiros saíram do aeroporto de Guarulhos e
se encontram em Johanesburgo com as demais 51 pessoas. Dentre os 60 brasileiros
havia somente duas pessoas consideradas negras, o restante era todo de brancos.
Esta viagem dura 15 dias e eles vão para participar do festival do Òsogbo e fazer
iniciações.
Nesta parte usarei as iniciais do nome da Senhora Roseli, que é a mãe de
santo no terreiro de Paranaguá.
122
(Roseli) para mim foi como se eu estivesse voltando para casa, literalmente
uma casa que eu tinha dentro de mim, mas eu ainda não tinha ido, mas sabia
que ela existe e quando eu cheguei lá eu tinha aquela sensação de que é
minhas gentes, meu povo eu achei meu povo porque eu nunca me identifiquei
nesta diversidade. Até entre os meus pares, assim pessoa pretas eu não
consigo me identificar como eu e identifiquei lá, aquilo de toda hora de querer
estar junto, toda hora se abraçando, ficar olhando o jeito dela de ser o jeito
deles de ser e de ficar observando como que eles fala brincando, lá tive isso
e orgulho de pertencer a essa etnia, pra mim foi uma das coisas que me
marcou, além de tudo eu em encontrar e agora eu ter tanta força pra eu saber
o que eu vou fazer. Agora eu sei o que eu quero independente das pessoas,
então assim como quem disse ou me segue ou vai ficar para traz.
Esse relato da viagem da senhora Roseli possibilitou que ela vivesse sua
africanidade na África e fora do Brasil pela primeira vez na vida. Tudo que ela viveu e
conheceu, além de tudo que ela compartilhou foi aprendido e incorporado dentro do
Brasil como decorrência de suas aprendizagens e iniciações. Agora ela estava pela
primeira vez diante de uma realidade não vivida, da qual somente ouvira falar e por
isso brotou nela o sentimento de estar em casa.
Quando ela fala de nunca ter se identificado na diversidade, mostra como a
parte africana nela se sobressaiu num continente onde ela nunca pisou antes e lhe
deu uma sensação de liberdade e um importante significado de vida. Ocorreu o
mesmo que ocorria com as pessoas que foram escravizadas no Brasil e quando
fugiam das senzalas se identificavam ao chegar aos quilombos. É similar quando uma
pessoa abraça a religião de matriz africana: essa realidade vem à tona e a pessoa
desperta a sua africanidade adormecida. Isso se mostrou na continuação da fala dela,
pois ela não queria mais perder tempo.
(Roseli) Porque eu não vou mais esperar o tempo. Se for olhar o meu tempo
de vida eu fiz 60 anos, então o que eu tenho mais como vida ativa com saúde
20 ou 30 anos então eu tenho que agora acelerar pra plantar coisa que possa
deixar pra dá continuidade principalmente isso a verdadeira África
desmistificar uma série de coisas assim que as pessoas não consegue
intender visualizando África é muito rica gentes pelo amor de Deus eles não
querem deixar aquele povo ser aqueles são que tem medo deles por que o
africano quando ele chega perto de agentes, nos sentimos a grandeza dele
de um jeito como que diz nossa eu vejo como uma parte ascendência
ocidental me enfraqueceu me deixou medrosa, preconceituosa.
A fala da Senhora Roseli mostra como ela foi impactada pela viagem que deu
para ela o motivo mesmo de reconsiderar os seus conceitos de vida. Ela se sentia ao
mesmo tempo engrandecida e diminuída. Também como ela era presa dentro dela
mesma, como negava a sua própria identidade e origem. Quando ela falou: “eu vejo
123
(Roseli) preconceituosa de que eu quando era jovem não gostava andar com
os meus amigos pretos, eu não queria isso, não queria grupo preto. Porque
pelos maus tratos, por tudo que nós passávamos, eu achava que eu não me
misturando com eles eu não seria atacada. E aí eu iria ser reconhecida, as
pessoas iria me tratar melhor e não iria me passar aquele olhar, rir de mim
como se eu fosse uma coisa, até dentro da minha família porque eu sou a
mais escura. Então dentro da minha própria família eu era discriminada, cheia
de apelido, tudo que eu fazia eram coisa de macaco, só poderia ser preta
mesmo, dentro da família, por que eu tenho irmão de 2 pais diferentes, então
os mais clara me discriminava e eu tive que ter muita força.
(Roseli) E essa força nasceu em mim porque ninguém me ensinou a ser forte
e eu me identificava muito com a minha mãe. Só que ela já era muito sofrida.
Então ela não tinha essa força que eu vi nas mulheres lá na África. Realmente
eu nasci com essa força. Porque como quem disse se você não tivesse, você
não vai continuar sobre viver. Então eu me misturava com os brancos
justamente para eu poder ser aceita de entrar aos lugares tudo mais e não
ficarem me olhando e aí quando chego o momento que eu não me reconhecia
mais porque no meio dos brancos eu era aceita.
(Roseli) Mas na hora de passar pelo funil eu ficava não tudo bem, você é legal
é nossa amiga, mas agora só é gentes branco, ai eu ficava para traz até em
relacionamento eram péssimo, relacionamento por que eles queria namorar
acha eu bonita mas na hora de casar não, por que ai vai gerar filhos pretos,
para ser namorada até apresentar com os pais que morava longe mas
quando os pais conheciam me tratavam bem as vezes por educação até por
eu ser uma pessoa educada mas na hora de casar não, sempre foi assim.
Esta viagem fez com que ela se encontrasse e visse como estava perdida e
que vivia um drama que fazia com que se submetesse a práticas que não eram dela
só para ser aceita. Procurava requalificar a sua existência na aceitação das pessoas
que a discriminava. Constantemente estava na busca de aceitação. Queria ser
considerada Brasileira, não como afro-brasileira.
Esse drama causou problemas na cabeça das pessoas como Roseli e está
na base das diferentes militâncias que cada dia brotam como reação e resistência,
porque as pessoas estão buscando afirmação e aceitação na sociedade. A diferença
é que nas militâncias eles têm consciência de quem são. Sabem que são afro-
brasileiros, não partindo da etnia, mas da questão socioantropológica, que são
aspectos diferentes de antes, onde eles negavam a sua origem e aceitava humilhação
só para ser aceito no meio dos brancos.
(Roseli) Na hora eu sempre ficava aquela que no funil não entrava, então
assim lá eu me via no meio de todo mundo não tem isso de ser a pele mais
clara, de ter isso não todo mundo é todo mundo ali é só africano eu intendi
agora o dia que você falou, eu sou africano então por ser africano não importa
a cor que tenho e lá eu senti isso, eu vi eles socialmente bem colocado,
aqueles que tinham diferenças sociais assim um que tem mais ou um que
tem menos. Mas eles não têm essa coisa de unificar olhando o que outro tem
até haver um episódio lá que houve sumiu um celular lá, num espaço enorme
daquele e com tantas agentes e aí meio que ficar perguntar onde eles vão
achar aquele celular.
Neste caso Roseli se viu igual aos africanos, porque na cosmovisão africana
as diferenças sociais se manifestam mais na questão da hierarquia que da etnia e a
hierarquia ocorre de várias formas. Tem hierarquia por causa de nascença, mas
também familiar, como uma forma de casta, como ocorre na Índia. Isso acontece
quando a família é composta de pessoas compradas, quer dizer, quando numa família
a maioria são mulheres e têm poucos homens, a família vai comprar os homens para
compensar a falta deles. Então esses homens serão considerados como inferiores
aos que são genuinamente da família. É a mesma coisa com as mulheres, se elas
estão em falta na família. Também tem a posição social e econômica.
125
Essas duas posições não têm muito sentido no caso da discriminação, mas
tem a questão do respeito. Todas essas classes sociais não favorecem a
discriminação racial ou étnica. Não quero falar da inexistência de discriminação racial
ou étnica na África. Sim, existe. Por exemplo, no Congo Democrático os Tshuas
(pygmeu) são descriminados e estigmatizados e no Mali os albinos também, só para
citar esses. As mulheres também são discriminadas em muitas sociedades africanas,
onde são tratadas como parte da segunda posição. Onde existe poligamia a mulher
não tem palavra, o marido sempre tem a última palavra. Roseli relatou um episódio
onde um celular se perdeu. Isso aconteceu onde as mulheres estavam e ela disse que
as mulheres ficaram apavoradas e começaram a procurar até que acharam:
(Roseli) Mas quando elas acharam, isso eu nunca vi aquilo na minha vida,
todas elas todo se jogarem no chão e chorava agradeciam a exu porque a
perda do celular, não só um que iam sofrer, foi uma perda sim perdeu, mas
gerou aquela coisa que eles tinham por obrigação achar para evitar que
achasse que tinham roubado e se alguém dali estivesse roubado, todo seriam
ladroes não um só, eu nunca vi aquilo na minha vida.
A questão aqui não era da união, mas do medo. Primeiramente por causa da
situação das mulheres nas aldeias onde se abrigam as famílias reais. As mulheres
são obrigadas a serem submissas e a respeitarem totalmente, enquanto são
descriminadas. Isso gera medo porque, além do castigo, há maldição e expulsão. Sem
falar da vergonha que toda aldeia vai passar na frente dos convidados. É por isso que,
ao acharem o celular, todas as mulheres choravam e agradeciam aos orixás.
(Roseli) Não havia quem não chorasse de ver aquilo aí elas cantavam
agradecendo e se abraçavam, como que disse agradecia. E eu falei gentes a
onda é isso nunca vi isso na minha vida eu fiquei impressionada a hora aquela
coisa de não eu sou feliz e elas disseram isso naquela cantiga que Bàbá king
começou a nos traduzir que elas cantavam exatamente dizendo feliz com o
que tenho, o que é seu como que ele disse é seu, o que é meu sou feliz com
o que tenho não preciso roubar de você, eu falei nossa à onda que eu vai ver
isso dentro do Brasil nunca e ai essa coisa de estar sempre junto sem o
coletivo, esse pão tem que dividir para todo mundo não pode só eu que vai
comer essa fatia, e também ninguém fica sem todo mundo come, nós
levamos cada um uma coisa na mala de alimento que nós estamos
acostumada aqui, que poderia não houver lá.
(Roseli) Doou essas coisaradas e depois nos colocamos tudo na cozinha para
ser usado por todos e como fui a primeira vez não tinham vivenciado isso
ainda então eu achei que tivesse falta de alguma coisa. Tipo por causa das
informações que nós temos aqui. Mas na verdade lá tem muita fatura só que
dentro daquilo que as pessoas são acostumadas a consumir. Mas o que tem
é muito nos quando fomo para lagos, não nos fomos para Òsogbo, ficamos
no hotel dois dias para depois irmos para o festival. Um hotel bem luxuoso
assim foi e eu ainda falei meu deus nunca vi tanto preto na minha vida, sabe
de chegar e falar com eles e eles falar comigo assim como quem sabe não
tem essa coisa de te olhar como você está entrando, não tinha isso o próprio
preto aqui quando você chega ao local aqui que é dele meio que te olha, e
recebe bem o branco que próprio negro. Nossa lá é uma coisa assim aberto
tudo que eles fazem eles celebram. Tudo eles brincam e um tira saro do outro.
O africano celebra tudo porque entende que tudo na vida tem significado e
sentido, mesmo as pequenas coisas. Entende que o sentido da vida começa nas
coisas pequenas e insignificantes. É por isso que o africano procura explicação em
tudo. Isso faz parte da sua cosmovisão e da sua construção enquanto pessoa. Um
pequeno acontecimento para um africano pode ser um aviso, um recado dos
antepassados, um mapa, então deve ser celebrado. Se fosse o aviso, recado, mapa
ou uma coisa assim, quando é celebrado em parte será enfraquecido ou fortalecido
até ter conhecimento profundo disto.
O africano é alegre e brincalhão mesmo faltando, porque sabe que ele não
está sozinho e se precisar terá sempre respaldo dos entes queridos ou dos
antepassados. Armazenar as coisas não passa na cabeça do africano, porque ele
entende que a natureza tem tudo que ele precisa e nunca vai lhe negar, por causa da
intercessão dos antepassados e entende que se armazenar e não conseguir consumir
e estragar é uma grande ofensa à natureza e aos antepassados.
E na parte da religiosidade? Conte-nos o que a senhora viu ali de mais
importante.
127
(Roseli) eu vi coisa assim teve uma das coisas que nós fomos fazer primeiro
foi uma coisa que achei lindo, foi no culto ao Omolu que vieram as
sacerdotisas e elas tem várias faixas etárias e elas respeitam aquilo de uma
forma tão séria que eram acho que uns trintas. Estavam ali entre garotas
moça e mulher e senhora. já é aí elas estavam todas aparamentada com a
roupa de Orixá. E elas ficavam no canto sem falar sem sorrir porque era o
momento sagrado. Então eles adotaram o comportamento e aí depois ouve
ritual. Depois uma demonstração como acontece à possessão quando elas
estão em grupo. E nossa é incrível e aí que eu vi como é que ela leva isso
tão a sério. Que como lhe dizer é o modo de viver mesmo não tem essa de
visão agora estou assim porque estou no templo ou agora estou assim porque
estou lá fora.
(Roseli) Eles vivem aquilo teve um momento assim foi incrível que eu fui fazer
um ritual para sacralizar as mãos. E veio o sacerdote de Òsá, um senhor que
estava ali conosco o tempo todo, ali não existe essa coisa de sacerdote há e
paramentada que nem os daqui parecem uma alegoria de carnaval. E aí ele
ali trabalhando mesmo. E de repente ele veio com a roupa ritualística dele e
ele se aparamentou e tinha um cajado na mão. E aí levou o grupo que ia fazer
iniciação.
Então ele adentrou na floresta que é o espaço onde está preparada para que
outra coisa que eu vi lá os assentamentos dos orixás é simples, e assim
impura. O mato abre uma clareira e coloca, lá não tem essa coisa de tem as
casas lá ele fez o espaço que é alojamento, por exemplo, casa das mães,
edificou um assentamento, mas tudo é muito prático. Muita natureza, muito
chão, pedra, não tem e aí neste momento eles nos sentou, todo num banco.
E começou a fazer os Òriki e tudo mais.
128
(Roseli) a semelhança é porque aqui é feito da mesma forma que se faz lá. E
a diferença é o ambiente, a forma de é como se chegasse a uma profundidade
lá não parece que, lá adentra tudo, até na hora da possessão de um orixá
que nem eu fiz uma iniciação que é do leopardo e no leão, que é descomunal
a energia que a gente sente na hora da possessão.
Mas no nosso culto tradicional não, no candomblé pega, por exemplo, uma
base e cada um aplicam sua. Ai já coloca a sua vivência, experiência, coisa
que eles vêm trazendo vão colocando coisa de outros cultos, lá não. La as
sacerdotisas quando estávamos fazendo buri, então todo estávamos fazendo
juntos e todas elas tinham o mesmo jeito de fazer sem que ninguém tivesse
dito, oh é assim que faz, não toda faziam da mesma forma então para agilizar
às vezes estavam ali 5 ou 4 fazendo uma parte e outra fazendo outra parte e
outras dando sequência, mas todas fazias do mesmo jeito.
Então podemos afirmar não tem diferença no que se faz aqui e o que se faz
lá? “(Roseli) na tradição não, na festa tradicional de orixás que é esse culto do
Odùdùwà da família do ioruba, mas dentro do candomblé não tem nada que se
assemelha”.
O que é pré-africano no templo de Orixás? “(Roseli) os rituais, eles devem ser
iguais a como a gente faz. A gente aprende e depois sabe por que tem que ser assim.
Antigamente eram meio mecânicas.” Como assim meio mecânica?
(Roseli) assim eu vim fazer vou fazer igual porque assim então você vai
fazendo então depois você vai fazendo iguais e entende por que tem que
fazer igual porque senão você perde a essência.
Então você tem que fazer estritamente igual porque qualquer coisa sua que
você pode misturar vai quebrar aquela linha que vai chegar naquele objetivo
já não vai chegar pura. Então é obrigatório de você fazer igual até porque
também é mais fácil e prático melhor para fazer e você consegue trazer isso
para dentro também quando você está mexendo e comportamento assim que
agentes tenta trazer para dentro do templo para os filhos, discípulos da casa.
No culto nós temos Ori que é o nosso deus individual, ele vai gerenciar as
energias dos orixás na nossa vida, no nosso destino e vamos viver as
qualidades dos orixás. As qualidades da energia que agentes se referencias
muito na natureza. Então agentes coloca o nome, mas não o visualizamos
como humano, mas sim como energia, então se você entender o elemento o
qual você está se referindo, você não coloca mais comportamento humano
na energia, mas nos africanos eles colocam.
Quer dizer aqui não se personifica mais a energia e tira ela no que é humano?
Ai eu falei está de mais né, quer dizer já é um culto que agentes luta para
manter a essência dele e o respeito com a nossa cultura e ai os filho da mãe
dos brancos safado que se acha conhecedor da cultura e da religião e vem
falar besteira para daí vir às outras crianças, outra as pessoas ouvir isso e
personificar como se fosse ser humano, jogar na lata do lixo ai não coloca é
tão divino não dá para o ser humano achar que entende que conhece que
pode falar daquilo a energia da natureza ela é divina como é que você vai
determinar comportamento por vento.
Não é vento é assim porque ele vê enfeite, como então aí você ver a burrice
a ignorância tudo aí você começa a querer se afastar nosso cada dia mais eu
quero me afastar do que eles fizeram com o nosso culto do que eles fizeram
com a nossa cultura. Sabe são como eles são nojentos eles fizeram isso de
proposito não é uma coisa que é falta de conhecimento. Não que eu vou falar,
atestar uma coisa que eu não conheço, vou ficar na minha, eu vou ter meu
conhecimento, vou escutar de um agora atestar é falta de respeito. Mesmo
com tudo que vem do africano não é nem do preto é do africano é um
desrespeito tão grande que é por isso que a natureza e o ser humano estão
assim quando ele se afastou da natureza ele foi perdendo tudo.
Por isso que hoje em dia a gente vê esse tipo de comportamento entre seres.
Mas é porque eles não se identificam mais com a energia tão perfeita, a
natureza é perfeita como se fosse tiver falar no colega ali no lado botar e dizer
conhece Oyá, ah não porque oya fazia isso com exu. (Ludi) a natureza não
tem sexualidade. (Roseli) aí pensando no momento que eu fui lá ao rio e
tinham uma sacerdotisa lá que ela viu que todo mundo precisava lavar
cabeça, ela se aproximou e começo a lavar cabeça de todo mundo depois,
ela veio na van com a gente e ficou conosco lá o resto do dia. (Ludi) ninguém
a conhecia depois ela citou nela, e está aqui numa foto conosco assim e ela
deliberadamente ela viu que precisavam lavar e aquela dificuldade muitas
agentes tudo, mas ela mesmo se colocou para lavar cabeça de todo mundo
ali na beira do rio depois nós tivemos acesso.
As falas acima mostram a frustração de Roseli de um lado, mas vejo que ela
está preocupada com a desvalorização da reputação da sua religião. Frustrada porque
queria e esperava que tudo fosse igual, mas esqueceu que se trata de dois povos com
construções diferentes como pessoa e cosmovisão diferente. Preocupada por causa
da discriminação que sofre a sua religião, pensando que se é igualzinho pode ter um
reconhecimento, no lugar as pessoas banalizando isso.
132
No outro dia abriram para nos entrar e aí irmos até o assentamento do oxum,
mas aí estava fechado porque tinham que ficar cinco dias fechado por causa
do ritual. Mas nós tivemos acesso no dia e eles nos levaram lá para a
sacerdotisa Òbíorubo para nós. Então assim só fomos entramos e chegamos
até o assentamento das mães pudemos transitar por tudo por um tempo eles
nos deram esse presente e ai na hora que o pessoal voltou lá para lavar a
cabeça que não tinha conseguido por que eram muitas agentes e ai as
pessoas queria conversar, pegar ai eu saí da fila falei não eu cansei já estava
limpo eu achou que todo mundo fez a mesma coisa, ai achei a ponta de uma
pedra fui sacudindo até tirar e falei meu deus isso vai pesar na minha mala,
mas eu falei não quero saber ai peguei agua na garrafa depois o baba king
disponibilizou para nos mais aguas para agentes trazer.
Esta até ali num galão que eu vou usar para sacralizar meus objetos. E sabe
a hora que eu abracei aquele assentamento que tem dentro do rio dela do
oxum que é um dos mais famosos no mundo. Então eu pedi para tirar uma
foto, veio um já pegou já tirou quando vê está todo mundo tirando fotos para
você e te dá e aí eu falei não acredito que estou aqui e abraçando essa aqui
uma coisa que eu só ouvia e aí você está ali e tão chão, tão tudo né aí agentes
pensas não é tão natureza aí quando o tempo do festival o rio volta a encher
e a estátua fica lá dentro do rio.
Fica mergulhada lá depois a gente olha para lá e fala nossa nem parece que
tinham esse espaço todo para nós aí quando eu tirei a foto fiquei ali eu só
agradecia só sabiam agradecer a oportunidade e aí você vê assim oque
agente gasta para poder fazer isso é só mesmo para ousar você não vê mais
o valor material só sabe que isso dá para você ir até lá. Então toma não sei
nem quanto que é então eu vou ficar aí com eles, que eu vou é só isso que a
gente deve fazer. Por isso que as pessoas não entendem como é que você
gasta um dinheiro desses para ir lá à África.
Como todo devoto, a terra onde começou a sua religião e tudo que nela
contêm são sagrados. Isso não foi diferente para Roseli, que estava onde veio a sua
religião, na terra onde seus deuses habitam. É natural levar a terra e algumas coisas
dela para aumentar a sua crença e impressionar seus discípulos. Quais são as coisas
que mais chamaram a atenção da senhora nesta viagem na África? “(Roseli) em
primeiro lugar lá o culto é mais do que a sensação que dá é tão forte que a própria
vida”. Como assim?
(Roseli) O amor, o respeito e a força porque eles vivem isso diariamente, não
é como nos aqui no Brasil que somos convertidas a esse culto não lá isso
para eles é vida é o cotidiano deles. Então tudo que eles fazem é voltado para
o orixá, tudo mesmo, começando à primeira benção do dia são do orixá sobre
as pessoas e das pessoas para orixá, eles evocam o orixá em todos os
momentos de vida. Quer dizer a vida deste povo e centrado na sua crença.
Diferente no que é fora desta terra. Porque fora de Abéòkúta (África) acontece
que como há mistura de povos também há mistura de crença, religião e
cultura. (RS) isso me fez mudar muito a ponto de não achar mais as outras
coisas que faz parte de orixá importante a não ser minha vida e a de orixá.
As outras coisas assim são importantes, mas se for importante mesmo, mas
não a importância que eu dava.
133
(Roseli) eu amo minha terra, ela me deu apesar de todos os problemas que
ainda aconteço eu sou livre, não é o mesmo que os meus ancestrais
enfrentarem, mas eu neste momento tenho liberdade de ir e vir e fazer o que
eu quiser trabalhar, me divertir e viver. Existem as relações com racismo com
uma Seri de coisas, mas eu consigo conviver bem por causa da minha cultura
e do culto. Então o culto me fez renascer dentro da minha própria terra porque
antes eu era contida limitada.
A partir do culto não, porque isso me fez ver o quanto eu estou livre que
possa ser livre então me dá muita proteção, me sento muito protegida muito
forte, eu levantei minha cabeça, porque eu vivia de cabeça baixa com medo
de entrar e sair dos lugares, medos dos olhares das pessoas, se eu estava
sendo aceito ou não, se eu estava fazendo certo ou não. Eu vivia presa a
muitas condições, hoje em dia não eu sou livre me sinto muito mais livre entro
e saiu onde eu quiser e mesmo que eu seja abordada não me apavoro não
me questiono se fiz certo ou não. Porque daí eu sei que o problema não está
em mim e sei que os orixás vão me proteger de qualquer situação em que
não seja aquela que seja favorável em mim, eu tenho plena certeza disto.
Escutando essa mulher falando, pude enxergar uma relação entre a sua
cultura, religião e a liberdade que ela tem no Brasil. Grosso modo, para ela o Brasil é
a terra onde ela encontrou a liberdade de viver a sua cultura e religião, um espaço que
lhe promove a liberdade de viver isso, sem a religião ela não poderia se divertir e viver
a sua liberdade que outrora seus ancestrais não tiveram. Essa liberdade se traduz na
harmonia com a natureza, orixás e por últimos com os outros.
E o que é África para a senhora?
134
(Roseli) a África é o lugar que eu ainda quero voltar muitas às vezes enquanto
eu for viva. Ela significa para mim volta para casa. Eu senti uma força que
significa volta a uma casa que eu não conhecia então eu vivo no Brasil, mas
existe uma casa minha lá porque foi a primeira casa ante do brasil. Então
quando cheguei na África eu sentiu isso que eu voltei para casa minha família
está lá. Eu vivo no Brasil, mas minha família vive lá, minhas raízes estão lá,
foi lá que eu nasci à primeira vez e renasci em outros locais. Mas o meu
primeiro nascimento foi na África então isso eu senti muito forte lá. E eu tenho
saudade do continente e de África como se realmente eu vivesse lá e estou
aqui e vivo aqui atualmente.
Qual seria a reação da senhora diante de uma pessoa branca que se converte
no culto e se intitula afro-brasileiro?
(Roseli) afro-brasileiro é porque nasceu no Brasil e isso faz com que ela tenha
algumas raízes ela já tem. Se for uma pessoa que não tem raiz africana, mas
a partir do momento que foi plantada nela uma energia africana mediante a
conversão, realmente pode ter despertado nela o africano e como eu sou uma
sacerdotisa afro-brasileira e o meu axé foi plantado nela e de uma forma
espiritual, ela se torno uma filha ou filho meu, ela também pode ser um afro-
brasileiro, mas não no sentido de nação, mas em sentido de conversão por
que agora ela está ligada a mim energeticamente ligado aos africanos a partir
de despertar nela uma energia africana então ela pode se sentir uma afro-
brasileira se morar no país.
Estou começando este ponto com uma das respostas que a mãe de santo me
deu, para a seguinte pergunta: Então a afro-brasileiridade se sente ou se vive?
135
(Roseli) eu acho que se sente que se vive, porque para poder viver isso deve
se sentir primeiro. Agora para o africano se vive porque não há conversão e
o afro vai se achar aqui no Brasil porque existe um pedaço de África aqui no
Brasil embora misturado, mas, existe muito comportamento africano aqui até
no que tem pele branca são afro-brasileiro. Por que foi uma cultura que foi
absolvida pelos descendentes brasileiros então, muita coisa ela vai encontrar
aqui.
E esta estrutura está além das características racial e étnica. Há muito tempo
o conceito afro-brasileiro foi pejorativo e folclorizado por causa da discriminação
étnica. Para muitas pessoas, quando se fala do afro-brasileiro, nos remetemos ao
137
negro. Quando isso acontece, tudo que vem desta etnia ou raça é reduzida a folclore.
Isso desencadeia o processo de marginalização e discriminação. D’Adesky (2001) vai
no mesmo sentido quando fala das vertentes do liberalismo preconizado pelo poder:
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
pela literatura, como pela tradição oral africana, que demostra que o bonkoko
(feitiçaria) não é simplesmente um peso que a sociedade carrega, mas elemento
central que afirma a identidade e garante o interesse pelo significado desse elemento
social de natureza ancestral, que a cada momento é usado e reconhecido como
elemento essencial de aconselhamento e orientação da vida pessoal e coletiva.
A pesquisa apontou que existe rivalidade entre os cultos de matriz africana,
no que diz respeito à magia (feitiçaria), com relação à autenticidade e à pureza, tida
como rigor com que se aplica com base no imaginário de africanidade com que a
magia é alimentada. Mas, apesar das diferenças, cabe destacar que a magia
(feitiçaria), quando se apresenta como agente e argumento de luta e organização de
resistência contra o opressor, ajuda o afro-brasileiro a militar e continuar a crer num
cenário de libertação e emancipação.
Assim, essa investigação em certa medida reconstrói a história de um povo,
que foi vítima de um comércio de pessoas, que as anulava como seres humanos e
sociais, apagando marcas e posições que caracterizavam suas etnias, mas eles
resistiram, e essa humanidade e eticidade, apesar do que ocorreu, sobreviverá...
142
REFERÊNCIAS
DANTAS, Beatriz Gois. “Vovó Nagô e Papai Branco” Usos e abusos da África no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DUMONT, Louis. “O valor nos modernos e nos outros”. In: O individualismo, uma
perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
2000 [1983].
VANGROENWEGHE, Daniel. Du sang sur les laines. França: Didier Hatier, 1986.