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SEROPÉDICA – RJ
2020.1
PEDRO XAVIER DO LAGO
SEROPÉDICA – RJ
MAIO DE 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________
Pedro Hussak van der Velthen Ramos (Orientador)
______________________________________
Renato Nogueira dos Santos Júnior (Examinador)
______________________________________
Arthur Gomes Valle (Examinador)
Dedico a lei 10.639 e a toda pesquisa teórica
que vise investigar, incentivar e propagar as
raízes de uma cultura ancestral. Àse.
AGRADECIMENTOS
ABSTRACT:
The history of Brazilian arts, whether from music, from scenic to visual arts, brings a strong
presence of the influence of the peoples coming from the diaspora of the ancient African
continent and also of their descendants, standing out the peoples of the ancient Yorubaland. In
this research, we will analyze works by contemporary black artists whose art incorporates and
extends aspects of the African aesthetic dimension to the current spaces they occupy. Starting
from this analysis, we will make a breakdown by the philosophical fragments of the Yorubás
itans, passing by the Brazilian cultural spaces where the Afro-Brazilian and Black-African
culture is preserved and by the life experiences of the selected artists. They are the artists:
Rosana Paulino, Luisa Magaly and Mestre Didi. In support of this philosophical and cultural
analysis, we will base ourselves on the research of Dr. Naiara Paula Eugenio, Dr. Wanderson
Flor, Babatunde Lawal, Dr. Kabengele Munanga, and the research carried out in conjunction
with the search group Pensamento estético contemporâneo thought by Dr. Pedro Hussak
along with meetings coordinated by researcher. Naiara Paula Eugenio.
0. INTRODUÇÃO..........…………………………………………………………...................8
3.3. A construção de uma comunidade ancestral pela propagação da cultura de seu povo
nas obras e feitios de Mestre Didi………………………………………………………..…35
4. CONCLUSÃO………………………………………………………………………….....39
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………..41
0. INTRODUÇÃO
O solo das terras que hoje se denominam brasileiras recebeu muitos povos vindos de
outros continentes do globo, como por exemplo da região central e ocidental do continente
africano. Destacam-se a vinda de pessoas das etnias: “(…) Minas, Congos, Ombundos,
Bacongos, Ovibundos, Monjolos, Balundos, Jejes, Angolas, Anjicos, Lundas, Quetos, Hauças,
Fulas, Ijexás, Jalofos, Mandingas, Anagôs, Fons, Ardas, dentre muitos outros (…)”. (ANJOS,
2011, p. 267) Dentre a população brasileira de matriz africana, destaca-se a herança das
populações da matriz Bantu, que popularam a África central, e os povos de matriz Yorubá,
também chamados de nagôs, vindos da África Ocidental e que tiveram forte presença no
período da realeza brasileira. (ANJOS, 2011, p. 267)
Tendo a descoberta da América pelos europeus lhes despertado o interesse de
colonizar o novo mundo, o sistema colonial das cortes portuguesas vem desde o século XVI
até 1850 contando com a comercialização de pessoas do continente africano para serem
escravizadas por tal sistema. A dispersão do conglomerado de diferentes povos africanos entre
si e por todo o território das novas terras brasileiras, com a finalidade de mantê-los como mão
de obra escravizada, era esquematizada teleologicamente pelo sistema colonial escravista
português. (ANJOS, 2011, p. 268)1
Em sua diáspora ao solo brasileiro, esses povos buscaram adaptar-se de forma a não
perder sua cultura banhada pela dimensão estética original subjacente, a qual viria a enfrentar
dificuldades dado o cenário de escravização, catequização de seus povos e a necessidade de
adaptar-se em um lugar diferente. A dimensão artística, nesse cenário, enfrentou diversos
obstáculos, como por exemplo, o desmantelamento político desses povos, o que, por
consequência, acarretou na descaracterização das obras de arte utilitárias produzidas em solo
originário por esses povos, como as usadas para reverenciar líderes, reis, refletir significações
quanto a divisões sociais e afins. (MUNANGA, 2019, p. 8-9) A nova geografia também é um
fator importante, pois os povos de matriz Yorubá, entre outros, usam referências geográficas
1 Esse é mais um fator geográfico que colabora para a falta de uma referência ancestral de origem da população
brasileira de referência africana, com interferências profundas na sua cidadania e no sentimento de
pertencimento territorial. Afirmar para esse contingente que os seus antepassados foram “trazidos” do continente
africano é vago, sem consistência, desrespeitoso, quando se trata de uma extensão com mais de 30.000.000 Km2,
com contextos territoriais de centenas de antigos reinos, impérios e grupos étnicos desconhecidos da
historiografia oficial do país. Essa demanda secular, que possibilitaria uma ligação espacial mais referenciada e
mais precisa na África, continua sem resposta satisfatória e nem perspectiva de solução institucional.
8
em seus itans2, como rios batizados de nomes de orixás cujo significado deriva de algum
conto. Esses itans também são fator categórico nas experiências artísticas destes povos, cujos
orixás cultuados em seus contos vem a ser representados de forma sacra por obras funcionais3.
Passado todo trajeto de seus ancestrais pela história de nosso país, a cultura afro-
brasileira procura resistir hoje não só no âmbito normativamente reconhecido como religioso,
como também ali onde sua influência veio a prevalecer. A esse respeito, Munanga (2019)
ressalta alguns pontos centrais sobre o âmbito religioso e a diáspora: um dos objetivos
sumários da colonização seria a catequização, o que afetaria fatalmente os cultos aos orixás
considerando a rígida separação cristã entre o sagrado e o profano, junto a suas delimitações
dogmáticas quanto aos conceitos religiosos, levando o poder clerical da colônia a repudiar os
cultos originais africanos. Todavia, Munanga aponta que o campo religioso foi um campo
cultural de resistência desses povos:
“Mas eles (o povo descendente do antigo continente africano) não aceitaram essa
estratificação, que significava sua morte total. Numa relação de autoridade
caracterizada pela assimetria, sua recusa não podia ser aberta. Por isso tiveram de
inventar estratégias de resistência e de sobrevivência. Estas não foram imediatas,
pois eles ignoraram as características da religião do colonizador e mestre.”
(MUNANGA, 2019, p. 9)
2 Sumariamente, contos e histórias que são usadas como suporte metafórico de reflexão filosófica, doutrinária.
Tais histórias envolvem os orixás cultuados pelos respectivos povos de cada matriz. Quanto aos Itans, um
desenvolvimento maior será feito nas próximas páginas
3 Ver a produção teórica de Babatunde Lawal, junto ao catálogo exposto em “Embodying the sacred in Yoruba
art: Selections from the Newark Museum”. (2012)
4 “Para além destes aspectos públicos, os candomblés sustentam uma cosmologia integrada da realidade, que
poderíamos chamar de holística, na medida em que pensa uma interconexão radical entre todos os elementos da
natureza humana e não humana (todo vivo – cabaça). Esta interconexão se dá através da atuação de uma força
vital fundamental presente em toda a realidade, de modo fundamentalmente dinâmico. Tal força é conhecida,
dependendo da origem ou ‘nação’ do candomblé como ‘Axé’ (para os candomblés de origem iorubá), ‘Nguzu’
(para os candomblés de origem banta) ou simplesmente ‘força’ (SERRA, 1995). A movimentação do Axé ou
Nguzu faz com que a própria natureza, a própria realidade seja inteiramente dinâmica e esse fato tem forte
impacto na maneira como essa cosmologia entenda todos os eixos da experiência, passando pelo modo como
conhecemos, como agimos, como somos, sempre em constante transformação.” (NASCIMENTO, p. 157, 2016)
9
iniciados levando em conta seu modo de fazer e suas significações que não são satisfeitos
pelas máximas normativas que conceituam a religião no Brasil. Sendo espaços populares de
cultura, esses modos de vida vêm atravessando vivências de pessoas, inclusive artistas, com
aspectos culturais importantes do antigo continente africano, estendendo-se para a realidade
atual após anos de resistência.
Esta pesquisa de monografia em filosofia visa analisar, em linhas gerais, aspectos da
dimensão estética advinda do antigo continente africana por entre obras de arte feitas por
artistas negras e negros contemporâneos daqui do Brasil, partindo da produção de três artistas:
Rosana Paulino, Luisa Magaly e Mestre Didi. Transpassaremos as vivências destas(es) artistas
e o universo cultural afro-brasileiro presenciado por tais, junto a uma investigação sobre os
suportes filosóficos dos povos de matriz Yorubá, os itans.
Como suporte matriz desta pesquisa em filosofia, utilizaremos o artigo Estética e
filosofia da arte africana: Uma breve abordagem sobre os padrões estéticos que conectam
África e sua diáspora da pesquisadora e doutoranda em filosofia pela UERJ Naiara Paula
Eugenio como base para o entendimento do sistema dos itans Yorubás como suporte
filosófico pra entender a estética Yorubá, junto aos artigos Divinity, Creativity and Humanity
in Yoruba Aesthetics e Embodying the sacred in Yoruba art: Selections from the Newark
Museum do pesquisador Babatunde Lawal e do livro Mitos Yorubás: o outro lado do
conhecimento de José Beniste. Para entender o estudo e o entendimento dos recursos
filosóficos africanos, os livros O ensino de filosofia e a lei 10.639 de Renato Noguera e o
texto African Philosophy: Yesterday and Today de Joseph Omoregbe também serão
fundamentais. Nos desdobramentos destes aspectos estéticos nas artes analisadas e nos
espaços afro-brasileiros atualmente, incluiremos a produção teórica artística de Luisa Magaly,
o artigo Sobre os candomblés como modo de vida do pesquisador Wanderson Flor, o artigo
Arte afro-brasileira: o que é afinal? de Kabengele Munanga, a dissertação A construção de
uma categoria arte afrobrasileira: Um estudo da trajetória artística de Mestre Didi de
Gabriela Dezidério, entre outros que somarão na pesquisa.
E por fim, será feita a análise de obras de artistas cujas vivências são atravessadas pelo
universo da resistência cultural da dimensão estética africana. Em tais obras identificaremos
os aspectos estéticos embasados no suporte filosófico dos itans Yorubás que transcorrem por
suas vivências em espaços afro-brasileiros banhados pela cultura advinda da matriz Yorubá.
São as(os) artistas: Luisa Magaly, com a obra Luzes para Xangô, advinda da pesquisa
10
Cerâmica Encantada: Uma poética sobre a utilização dos objetos cerâmicos nos rituais de
Umbanda; Rosana Paulino, com a obra Parede da memória e alguns tópicos sobre a série
Assentamento; e Mestre Didi, com a obra Iyá Agbá.
Serão extraídos das obras em tela, implicações estéticas da dimensão filosófica de
matriz Yorubá, completando a travessia que parte do suporte filosófico original dos itans,
passando por seus desdobramentos na cultura afro-brasileira e na vivência das(os) artistas, a
chegar na análise artística e nas reflexões consequentes.
Esta pesquisa foi incentivada pelas referências estudadas nas atividades do grupo de
pesquisa Pensamento estético contemporâneo liderado pelo Prof. Dr. Pedro Hussak, em
reuniões de pesquisa durante o ano de 2020 em torno da estética Yorubá coordenadas pela
pesquisadora Naiara Paula Eugenio, do Núcleo de Filosofia Africana do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
11
1. ESTÉTICA YORUBÁ: ENTENDENDO AS CHAVES FILOSÓFICAS PROVIDAS
PELOS ITANS E REFLETIDAS NA ESTÉTICA E ARTE DE UM POVO ANCESTRAL
E SEUS DESCENDENTES
12
buscarmos entender alguns padrões estéticos que são refletidos em cada matriz étnica
africana.
Para um entendimento do processo de imersão filosófica nos recursos mitológicos
Yorubá, ressalto a fala de Joseph I. Omoregbe (p. 5, 1985), referência na pesquisa de Renato
Noguera em sua obra O ensino de filosofia e a lei 10.639:
(…) nós temos fragmentos de suas reflexões filosóficas e suas perspectivas foram
preservadas e transmitidas por meio de outros registros escritos como mitos,
aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, especialmente,
através da religião. Isto quer dizer que apresentado na forma escrita, o pensamento
pode ser entendido como um sistema, não somente como um conhecimento
transmitido de uma geração para outra. Além das mitologias, máximas de sabedoria
e visões de mundo, o conhecimento pode ser preservado e reconhecido na
organização político-social elaborada por um povo. (…) Onde há fumaça, deve
existir fogo (…)6
6 “(…) for we have fragments of their philosophical reflections and their views preserved and transmitted to us
through channels other than writing such as mythologies, formulas of wise-sayings, traditional proverbs, stories,
and especially religion. This is to say that writing, though the most effective, is not the only means of
transmitting knowledge across generations. Apart from mythologies, wise sayings, world-views, knowledge can
be preserved in the socio-political set-up of the people. (…) For where there is smoke there must be some fire
(…)” (OMOREGBE, p. 5, 1985)
7 O ser supremo responsável pelos orixás e que gera o àse.
8 “Espaço abstrato destinado à morada das divindades e outras formas de espíritos (…)” (BENISTE, 2020, p. 50)
9 Também conhecido como Òsàlá, o orixá criador/artista. Ver “A criação da terra” em Mitos Yorubás: o outro
lado do conhecimento de José Beniste (p. 45).
10 Também chamado de aiyê, é a terra sob a perspectiva do àse. Há dois planos de existência sob a perspectiva
Yorubá: ayê, a terra, e orún, o plano sobrenatural onde habitam todas as formas de espiritos. (BENISTE, 2020, p.
89)
11 “Arte”, na lingua yorubá. Pode significar ornamentação, design ou representação.
13
relata quando Olodumaré pediu ao orixá artista Obatalá para que moldasse a primeira
imagem humana (ere eniyán12) de argila. Feita a imagem, a tarefa foi continuada à Ogum13
para que finalizasse a obra dando-a suas feições, atentando-se ao rosto. Essa imagem
transforma-se em eniyán quando Olodumaré a infundiu o emí14, uma forma de àse15. Após
inserir a força vital, cada uma desta produção é deixada dentro do útero de uma mulher para
desenvolver-se e tornar-se um bebê16.
De acordo com Lawal (2012, p. 12), é a partir deste rito criativo entre Olodumaré e os
orixás que, para os Yorubá, a arte começou. O itan da criação não só relaciona criatividade e
arte com vida, mas também aponta a capacidade da criação e apreciação de arte como parte
integral da humanidade. Em Divinity, Creativity and Humanity in Yoruba Aesthetics, Lawal
destaca um itan correlacionando o mito de criação e a arte:
Obatalá
Ele criou a criança e sua mãe
Depois de fazer o bem ao pai,
Ele mandou a criança vir e coletar seu próprio bem …
Ele moldou a superfície interna da mão chamada de palma
Ele moldou a parte inferior do pé, chamada de sola
Ele moldou a grande parte do corpo chamada de peito
Ele criou a bola de água refrativa chamada olhos
Ele moldou o pequeno pote chamado crânio …
O-orisá-fez-uma-obra-de-arte, dono-da-argila-de-escolha… (LAWAL, 2005, p 163,
tradução minha)17
12 Eniyán: Um ser humano vivo; Ere: Escultura, forma moldada (LAWAL, 2005, p. 168)
13 Orixá das armas e ferramentas.
14 O “sopro vital”, ou espirito. Emí é uma forma de àse inserida por Olodumaré no ato da criação do ser
humano.
15 Na linguagem popular brasileira escreve-se “Axé”. “O conceito de àse; pode ser definido de três formas:
como palavra, ele representa o ‘Que assim seja’; como matéria, representa as forças e o poder; e como fluido
mágico, que não tem forma, mas é sentido, ele dá vida e forma a tudo que existe.” (BENISTE, 2020, p. 249) O
poder ativador que sustenta e transforma o universo. (LAWAL, 2012, p. 12)
16 “The Yoruba word for art is ona, meaning “design,” “representation” or “ornamentation.” It began when
OLODUMARE commissioned the artist deity Obatala to mold the first human image (ere eniyan) from clay.
After completing the image, Obatala gave it to Ogun, the orisa of tools and weapons, who put the finishing
touches to the form, clarifying and delineating the principal features, especially the face. The image turned into a
living human (eniyan) when the OLODUMARE infused it with a soul (emi)—a form of ase. Since then, every
image thus produced has been placed inside the womb of a woman and left to develop from an embryonic form
into a normal baby.” (LAWAL, 2005, p. 163)
17 “Obatala
He created the child and its mother
After doing good to the father,
He sent for the child to come and collect its own good…
He molded the inner surface of the hand called the palm
He molded the underside of the foot called the sole
He molded the massive part of the body called the chest
He created the refractive water ball called the eyes
He molded the small pot called the skull…
14
Centro agora as atenções para os problemas estéticos que os mitos da criação trazem
ao sugerir um problema ontológico interligado à vida. Quando concebemos algo como vivo
relacionado à infusão de uma forma de àse, o “sopro vital” do emí, estendemos esta noção
consequentemente estética a todos os limiares do ayê, e isso se inclui à obra de arte tal como
algo vivo considerando o fundamento dos itans, refletidos no fazer artístico africano e de
matriz africana.
Preservados os fundamentos filosóficos africanos nas comunidades religiosas afro-
brasileiras, na sequência deste trabalho entenderemos um pouco sobre esses espaços que
entrecruzaram a vida dos artistas em questão, fundamentando aspectos africanos originais
presentes em sua arte. Entendendo a matriz do àse e suas formas – uma delas sendo o emí, a
alma soprada pelo ser supremo ativador do àse, Olodumaré, à obra de arte – vemos um
fundamento estético refletido na funcionalidade das obras sacras ou de inspiração da arte
sacra, na dança ininterrupta das tradições Egúngún africanas, nos atabaques dos terreiros
convocando seu tocar, nos ritos afro-brasileiros cheios de energia para a entrada do orixá no
orí18 do iniciado, nos barracões, nos maracatus19, entre outros exemplos. A vida é ativada pelo
sopro vital da forma de àse e ganha sentido na terra, e esse processo é o que explica a obra de
arte como algo vivo. (BENISTE, 2020, p. 249)
Por isso, quando vemos obras de matriz estética africana expostas em museus e
galerias, como no caso das obras afro-brasileiras levadas para o Museu da Polícia no Rio de
Janeiro20, há um contraste entre a estética proposta pelo espaço e a original. Essa arte visual,
portadora de uma forma de àse, se perde de sua matriz estética africana ao passo que não há
comunicação21 com sua comunidade e é descaracterizada de sua participação ininterrupta no
The-Orisa-has-made-a-work-of-art, Owner-of-choice-clay…” (LAWAL, 2005, p. 163)
18 A cabeça do ser humano, onde o orixá entra no rito de incorporação. De acordo com Lawal (2012, p. 13-14) a
cabeça (orí), além de alguns fatores que se somam à razão da importância da cabeça para os Yorubá, o mais
importante é o fato do orí ser a porta de entrada do emí (a forma de àse).
19 “Maracatu é um ritmo musical, dança e ritual de sincretismo religioso com origem no estado brasileiro de
Pernambuco. Existem dois tipos, conforme o ‘baque’ ou batida: Maracatu Nação (Baque Virado) e Maracatu
Rural (Baque Solto). O primeiro, bastante comum na área metropolitana do Recife, é o mais antigo ritmo afro-
brasileiro; e o segundo é característico da cidade de Nazaré da Mata (Zona da Mata Norte de Pernambuco)”
(Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/Maracatu)
20 No próximo capítulo, entenderemos o contexto do caso que ocorreu entre o fim do século XIX e o começo do
século XX e levou para o Museu da Polícia obras usadas nos terreiros brasileiros da época apreendidas na
repressão aos cultos afro-brasileiros, além do movimento Liberte nosso sagrado que lutou pela reintegração das
obras sacras para os religiosos.
21 Rowland Abiodun, em Understanding Yoruba Art and Aesthetics: The Concept of Ase (1994, p. 68-76)
relaciona o àse com a comunicação latente tanto na oralidade quanto na funcionalidade das artes visuais, que
inspira o artista Yoruba a trabalhar o impacto visual da imagem e das formas.
15
ayê ao cessar sua vida no pódio de uma galeria de arte ocidental. Uma obra de arte viva deve
exercer sua força vital, como ao comunicar algo a sua comunidade (EUGENIO, 2020, p. 121),
ao performar de uma máscara africana cujo ato do seu movimento propõe impressões
semióticas de cunho social e político, ou de conexão aos orixás e egúns22. (LAWAL, 2012, p.
20) No caso das obras que antes estavam no Museu da Polícia, sobre o momento em que
foram reintegrados às comunidades afro-brasileiras graças ao movimento Liberte nosso
sagrado, ressalto a fala de Tata Luazemi no documentário Respeita nosso sagrado (2020), que
registrou esta vitória e a reativação do àse das obras antes apreendidas e descaracterizadas:
“Aquelas peças estão mais vivas do que muitos vivos. Quando toquei e cheguei próximo ao
Exu tiriri, eu senti a presença do Exu tiriri. Os atabaques pareciam que estavam tocando.
Parecia que eles estavam fazendo uma festa de libertação. (...)”
A partir do itan da criação, Eugenio (2020, p. 116-117) aponta algumas chaves
filosóficas para entender a dimensão estética Yorubá:
a) Há um orixá artista que representa o processo criativo para uma obra de arte;
b) Há uma matéria – no caso do itan, a argila – a ser moldada e manipulada pelas mãos
de um artista;
c) A arte torna-se um trabalho, ou processo, que envolve técnica e conhecimento, tal
como o trabalho cauteloso do orixá Ogum que usa suas ferramentas para esculpir a obra;
d) Transformação da natureza (argila) em obra de arte, o trabalho do artista precisa ser
algo “específico e elaborado”, “Uma obra de arte não um elemento solto da cultura, embora
seja necessariamente elemento dela”;
e) Há um aspecto imaterial que dá vida à obra, que é o movimento, fator que leva ao
entendimento da obra de arte africana como viva. Depreende-se isto do momento, no itan de
criação, quando a obra só é finalizada quando Olodumaré insere uma forma de àse nela, o
emí. A partir deste fato, delineia-se um aspecto estético africano central: a vida intrínseca à
completude da obra de arte23.
22 “The tendency in many African cosmologies to identify the body as a vehicle incarnating the soul on earth has
encouraged the metaphoric use of the masquerade for a similar purpose. The carved headpiece of a given
masquerade is often stylized, therefore, to reflect its otherworldly significance. It should be emphasized,
however, that not all African masquerades represent supernatural forces. Some embody concepts, and as a result,
many of the carved headpieces have semiotic implications, conveying messages with social or political import;
others are meant to entertain and educate. The same is true of Yoruba masquerades, which perform various
functions ranging from the religious, judicial, and military to the satirical.” (LAWAL, 2012, p. 20)
23 “Quando em Filosofia dizemos que a estética Africana é ‘um modo de energia que só funciona quando usada’
(KARIAMU, 1994, p. 2), estamos dizendo que, efetivamente, a experiência estética só se dá em movimento. Isso
pode ser um ritual de vida, de retorno ao orun e etc., como também pode ser, unificado a isso, o movimento
literal, ver a obra em apresentação dançando, vestida, pintada ou o que seja (em alguns casos, para prestígio
16
f) O processo artístico é participativo na medida em que um artista, mesmo que trabalhe
sozinho em seu ateliê, tem em seu processo a funcionalidade quanto ao bem viver de sua
comunidade e o envolvimento de seus ancestrais.
(…) Nenhuma pessoa humana é um ser individual, todo ser Yorubá foi feito para
viver em comunidade. Isso é um aspecto filosófico contido no itan da origem da
pessoa humana: a vida está interligada a tudo. A divisão do trabalho e a obtenção do
material natural para moldar a obra e o movimento doado por Olodumare, que é a
vida no ayê em sintonia com as vidas no orun, nos dá o teor ontológico da filosofia
Yorubá. (EUGENIO, 2020, p. 117)
g) O processo artístico é ininterrupto dado que a obra, com sua forma de àse inerente – o
emí –, ainda se desenrola ao longo de sua participação no ayê.
Dentre as chaves dispostas pela pesquisa de Eugenio, destaco a funcionalidade
comunitária e com os ancestrais, para embasarmos algumas análises mais à frente. Lawal
(2012), além de uma análise de obras africanas expostas no museu de Newark, teoriza sobre o
aspecto funcional e sua relação com a obra. Em primeira instância, Lawal reforça o
argumento da relação do itan de criação com a dimensão estética e filosofia da arte Yorubá,
em que são tecidos os entendimentos culturais de criatividade artística (2012, p. 12), entre
outras chaves abstraídas por Eugenio (2020) em sua pesquisa, como apontado acima. O artista
– onísé onà –, segundo Lawal, é encarregado de traduzir valores consagrados historicamente
em seu povo em metáforas visuais, “destinadas a sustentar a humanidade em corpo e espírito”
(LAWAL, 2012, p. 13, tradução minha)24.
Além do desenvolvimento do artista em seu aprendizado com um mestre para que se
forme na técnica do uso das formas e incorporações culturais, Lawal comenta sobre dois
idiomas discerníveis nas obras de origem Yorubá: o naturalista e o abstrato (ou, estilizado). O
idioma artístico naturalista procura capturar uma imagem idealizada do sujeito para realizar a
obra de arte, sendo um exemplo as efígies que representam em imagem uma pessoa
recentemente morta. O idioma abstrato, caracterizado por representações de cunho conceitual,
está tanto mais descomprometido com as semelhanças físicas entre o sujeito e a obra quanto
com realidades além do visível. Este idioma contorna-se em figuras de altar, entre outras
17
figuras que servem para significar seres sobrenaturais e almas desencarnadas. (LAWAL, 2012,
p. 13)
Ainda a estender o desenvolvimento desse aspecto funcional presente nas artes do
antigo continente africano, Munanga (2006) ressalta que a arte negro-africana é comunicativa.
Embora alguns raros casos de artes de representação 25, a essência destas artes funcionais é a
de significar, não imitar, levando a forma que aparece na sua matéria a apresentar uma
mensagem. “(…) Sendo uma arte de presentificação ou de significação, ela é de fato uma
linguagem e uma combinação de signos que recriam uma realidade.” (MUNANGA, 2006)
É fundamental entender estes elementos filosóficos do povo do antigo continente
africano para ter uma leitura investigativa sobre a estética subjacente nas obras africanas,
especialmente oriundos da Yorubalândia, e da diáspora destes povos para o Brasil,
considerando que as religiões afro-brasileiras de matriz africana são historicamente vitais na
preservação dos elementos africanos diaspóricos. Tanto a partir das implicações de Eugenio,
Omeregbe e Lawal, quanto das análises dos pesquisadores em arte negro-africana,
conseguimos ver como os mitos estão para a arte dos antigos africanos e seus descendentes
como uma matriz da categoria filosófica estética. Com isto, enxergamos princípios estéticos
subjacentes à construção das poéticas visuais de artistas cuja ancestralidade provém destes
povos, enriquecendo as obras poeticamente e trazendo aspectos estéticos originais do antigo
continente africano26.
Sem julgar o nível de aderência à estética e temática afro-brasileira ou de quaisquer
dos aspectos originais do antigo continente africano, as obras selecionadas categorizam uma
expansão de aspectos filosóficos, sobretudo de caráter estético, em suas obras. Seja no
processo criativo, na construção de sua poética visual ou, no uso e escolha de cada material,
traçaremos mais a frente uma linearidade analítica e argumentativa identificando esta estética
africana subjacente às obras destes artistas que, em suas vivências, tiveram contato com
conteúdos conectados à matriz filosófica africana, principalmente a Yorubá.
25 “É uma arte de presentificação, embora tenhamos poucos casos de representação, p.e. as cabeças
comemorativas na arte de Ifé, Benim e arte real Kuba da República Democrática do Congo).” (MUNANGA,
2006)
26 Lembrando a pesquisa de Eugenio, a principal que norteou esta pesquisa monográfica em filosofia. Em
Estética e filosofia da arte africana: Uma breve abordagem sobre os padrões estéticos que conectam África e
sua diáspora, a pesquisadora aborda estes aspectos analisando as obras da série Assentamento, de Rosana
Paulino, e obras de Maria Auxiliadora retratando as vivências no candomblé. Ambas artistas negras que
vivenciaram as comunidades afro-brasileiras onde a população descendente do antigo continente procurou
preservar sua cultura ancestral.
18
Quando estudamos a estética Yorubá a partir da pesquisa de Eugenio (2020), vemos
como central o aspecto imaterial, podendo ele ser refletido nas formas de àse inferídas na obra
(EUGENIO, 2020, p. 117) ou na relação entre a beleza (ewá27) percebida na ação e o caráter.
Sem o aspecto imaterial, argumenta Eugênio a partir da análise de uma poesia Yorubá 28, uma
obra de arte não é completa. É preciso do aspecto imaterial além da sua elaboração material
primordial para dar completude à obra de arte. (EUGENIO, 2020, p. 118) É a partir destes
aspectos que vão além da materialidade da obra que faremos os próximos atravessamentos e
as análises das obras.
Por entre a dimensão artística dos artistas que estendem estes aspectos a sua teoria e
prática, enxergam-se pontos modais da conexão entre suas perspectivas e a matriz filosófica
dos itans. A artista e doutoranda em artes visuais Luisa Magaly desenvolve a teoria das
contenções em sua pesquisa relacionando as artes visuais e rituais umbandistas. (REIS, 2019)
Nesta teoria-poética que delineia sua pesquisa artística poética visual em seu artigo, que
também embasa a exposição Cerâmica encantada: objetos de contenções, sua matriz é a
relação entre o material e o imaterial, o corpóreo e o incorpóreo. A compreensão e assimilação
das poéticas visuais da dimensão estética da religião de matriz africana, junto aos ibá29 e o
processo de criação em artes visuais resultaram nos questionamentos da artista e pesquisadora
sobre “possíveis contenções (aquilo que pode ser contido) e transbordamento (aquilo que não
pode ser contido)”.
Já antes citado, vale lembrar o Manifesto ainda que tardio em que Rubem Valentim,
artista que em seu próprio texto declara sua arte no âmbito cultural “afro-brasileiro”, reitera o
atavismo que engloba a partir de sua pele negra sua ancestralidade emergida no antigo
continente africano, transpassada pela cultura baiana, de elementos culturais europeus e
ameríndios:
“(…) passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos
abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de ‘fala’, uma poética visual brasileira capaz
de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como
artista. (…)“30.
19
A partir dos valores míticos profundos de sua cultura, um artista negro expande a
dimensão estética e artística enraizados em sua ancestralidade para um presente em que a
repressão dos moldes e padrões artísticos de fora estão presentes. “Minha arte tem um sentido
monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no
espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. (…)”
Independente da categorização artística, a partir da conexão do artista com as
vivências afro-brasileiras e a cosmologia inerente às comunidades e compromissos que
pertenciam e tinham, os artistas tiveram contato com bases estéticas advindas e originais do
antigo continente africano. Cabe agora, após termos desenvolvido sobre a matriz filosófica
que embasa a dimensão estética (os itans), fazermos uma análise sobre as comunidades afro-
brasileiras dada sua importância na preservação da sua dimensão artística, da transmissão da
matriz estética africana e na cultura de seu antigo continente, conectadas às vivências dos
artistas em tela para analisar o reflexo dessa dimensão estética na arte de seus descendentes.
20
2. VIVÊNCIAS NO UNIVERSO AFRO-BRASILEIRO: RELIGIOSIDADES AFRO-
BRASILEIRAS, A PRESERVAÇÃO DA CULTURA E DE CARACTERÍSTICAS
ESTÉTICAS ORIGINAIS AFRICANAS, E A “ARTE DE TERREIRO”
21
a) O primeiro é que, como argumentado na introdução, o campo cultural afro-brasileiro
mais resistente “(…) no qual se pode nitidamente observar o fenômeno de continuidade dos
elementos culturais africanos no Brasil (…)” foi o religioso. (MUNANGA, 2019, p. 9)
b) O segundo motivo é a relação entre os itans ensinados nos espaços religiosos afro-
brasileiros e as obras aqui analisadas. Um dos motivos mais importantes, aliás, considerando
que estes espaços também servem como intermédio até o processo criativo das artistas Rosana
e Luisa e de Mestre Didi ao criarem suas obras.
c) O terceiro motivo é como a vida na perspectiva do àse influencia o campo estético dos
terreiros, da sua dimensão artística fundamentada pelos itan de criação e seu “sopro vital” (a
inserção do emí) e das artes que se inspiram nela (vimos o exemplo do maracatu, que nasceu a
partir da cultura afro-brasileira).
d) O último motivo, evocado pelo segundo: A conexão destes artistas com esses espaços.
O primeiro terreiro ketu do candomblé foi o Terreiro da Barroquinha, surgido entre os
séculos XVIII e XIX. (SILVEIRA, p. 92, 2006) Quanto à formação dos candomblés, Beniste
alega:
33 O próprio Terreiro da Barroquinha tem como origem de seu nome a influência da Igreja da Nossa Senhora
da Barroquinha. (SILVEIRA, 2006)
34 “O parâmetro valorativo para a ação é a manutenção da comunidade e da natureza como um todo” (FLOR
DO NASCIMENTO, 2006, p. 162)
22
argumentativos, sendo um deles a reconexão das pessoas apartadas de seu contexto original
com ele para uma “reconstrução da África”, mesmo que dentro de um “novo mundo”:
Alguns dos entendimentos filosóficos que Wanderson Flor do Nascimento usa em sua
bateria de argumentos foram desenvolvidos quando estudamos o suporte filosófico dos itans e
a relação deles com a ética e a estética.
Mesmo que com algumas diferenças comprometedoras, também buscaremos entender
alguns pontos chave da Umbanda, reconhecida aqui no Brasil como religião de matriz
africana considerando a manutenção por algumas comunidades umbandistas de muitos
aspectos culturais africanos35 e a conexão das vivências umbandistas com as artistas e
pesquisadoras Rosana Paulino e Luisa Magaly.
Não cabe para esta pesquisa fazer uma dissertação muito desenvolvida para entender
as religiosidades umbandistas em todas as suas partes, mas sim nas africanidades presentes
em algumas de suas ramificações. Em sua pesquisa, Silva (2005) aponta o surgimento da
Umbanda com a vinda do kardecismo por parte de praticantes da classe média que desejaram
mesclar seus cultos aos saberes advindos da cosmologia africana presente no Brasil, nas
décadas de 1920 e 1930. Por outro lado, a própria artista Luisa Magaly ressalta em seu artigo
como a marginalização de certos grupos sociais afetados após os momentos do tráfico
humano racista, coloniais e genocidas da história da formação do país influenciaram a
Umbanda como uma síntese religiosa marginal. (REIS, 2019, p. 167)
Ainda que haja várias umbandas que consideram as ramificações consequentes dos
vários rumos que o sincretismo adotado por seus participantes, há dois tipos de umbanda em
35 “A Umbanda cultua alguns orixás do Candomblé. {Na Umbanda popular são nove: Oxalá (o grande orixá),
Yemanjá, Xangô, Nanã, Iansã, Oxum, Ogun, Oxóssi e Ibêji. Na Umbanda Esotética, sete: Oxalá, Yemanjá, Yori
(não do C. - corrente astral dos espíritos infantis), Xango, Ogun, Oxóssi (corrente astral dos Caboclos) e Yorimá
(não do C. - corrente astral dos Pretos Velhos), mas cultua também eguns, i.e., espíritos de antepassados
(entidades) – Caboclos (espíritos de indígenas) e Pretos Velhos (antigos escravos), além das Crianças (espíritos
infantis evoluídos). Ainda cultua os Exus (espíritos sem luz, alguns em início de evolução). Em alguns terreiros,
os orixás não ‘descem’ pessoalmente; são representados, no terreiro, por Caboclos de sua Linha. Os orixás são
chefes de sete Linhas de vibração que se subdividem em Falanges (duas das quais têm por chefe orixás – Nanã e
Oxum) (V. Falanges e Linhas), com chefes subordinados aos primeiros. (...)” (CACCIATORE, p. 257, 1977)
23
que há o culto aos orixás é bastante presente. Também vai de cada terreiro a exploração do
universo cosmogônico e suas práticas perante tal. (CACCIATORE, p. 256-257, 1977)
Ainda seguindo as dissertações de Cacciatore (1977), nota-se que ela relaciona a estes
ritos umbandistas o uso de oferendas, pontos, velas e afins. Mesmo em vertentes umbandistas
mais sincretizadas, instrumentos musicais trazidos dos candomblés e assentamentos estão
presentes ou nos terreiros ou nas casas dos praticantes. Com isto, consiste a expansão da
dimensão artística de matriz africana mesmo em ambientes ou comunidades onde sua
cosmologia foi suprimida, ainda se fazendo expandir em conjunto a dimensão estética original
africana dada a funcionalidade das obras presentes.
A própria pesquisa de Luisa Magaly (REIS, 2019) parte da religiosidade umbandista
como:
36 “De fato a palavra ènìyàn não se refere apenas ao corpo humano (ará) como instrumento divino inspirado e
forma inteligente, mas também implica, como parte integrante da humanidade, a capacidade de criar e apreciar a
arte e leva em conta o impulso estético que existe na poesia, na música, na roupa, escultura, na arte, na
arquitetura e outras formas de cultura material” (LAWAL, 2012. p, 14 apud EUGENIO, 2020, p. 119)
24
No centro do sistema situamos as origens africanas desta arte, ilustradas por algumas
obras cuja origem étnica é conhecida, pois trata-se de uma arte não anônima, como
pensaram alguns especialistas ocidentais, mas sim étnica. Encontraríamos aqui as
obras e os artistas ditos religiosos ou rituais. Na zona intermediária do sistema, para
a qual essa arte imigrou por motivos históricos entre nós conhecidos, situamos o
nascimento da arte afro-brasileira, uma arte que, além das características africanas,
sempre em processo de criação, recriação e reinterpretação, integrou novos
elementos e características devido aos contatos estabelecidos no Novo Mundo com
outras culturas, num universo que às vezes ultrapassa as fronteiras nacionais. Aqui,
salvo algumas exceções, nem sempre a matriz africana da obra e a origem étnica do
artista se confundem. (MUNANGA, 2019, p. 20)
Munanga (2019, p. 20) também disserta sobre esta zona periférica da arte afro-
brasileira, zona na qual se situam artistas e obras que por mais que não reúnam todos os
atributos essenciais da arte original africana, ainda utilizam aspectos em sua arte que
ressaltem a matriz visual e estética do mundo africano, “(…) seja do ponto de vista formal, seja
do ponto de vista temático, iconográfico e simbólico (…)”. Somam-se a estas obras desta zona
mais fluida e confusa, também aspectos indígenas e ocidentais.
Nelma Barbosa (2014), assim como Munanga, parte da dimensão artística religiosa
como matriz histórica da dimensão artística afro-brasileira, considerando que os espaços de
culto procuraram preservar muitos aspectos da vida do antigo continente africano, a incluir o
aspecto artístico. Antes da década de 1930 e 1940, quando essa categoria artística começou a
tomar espaços além das casas de culto, as artes feitas nos espaços dos terreiros eram
apreendidas pelas forças da ordem em uma época que as religiões afro-brasileiras eram alvo
da repressão policial. A polícia levava as obras como “provas materiais da cena do crime”, o
que levou a vestimentas, alimentos, obras sacras, entre outros trabalhos artísticos a serem
apreendidos37. (BARBOSA, 2014, p. 120)
Considerando esse período de clandestinidade em que muitas das artes da dimensão
artística religiosa afro-brasileira foram apreendidas pela polícia, Munanga (2019) aponta os
rumos do fenômeno artístico afro-brasileiros nas pesquisas desta época:
Durante quase três séculos, essa arte, seguindo o passo da sua matriz africana, ficou
totalmente ignorada, não apenas do grande público, mas também do mundo erudito
historiador, crítico de arte, sociólogo ou antropólogo. Foi graças ao trabalho pioneiro
37 No Rio de Janeiro, o movimento Liberte nosso sagrado empenhou-se em resgatar as obras sacras que desde
1891 até 2020 estavam presas no Museu da Polícia, e com sucesso e muita comemoração, conseguiram a
transferência dos atabaques, máscaras, entre outros artefatos religiosos para o Museu da República. Ressalto a
fala de Mãe Meninazinha de Oxum no documentário Respeita nosso sagrado (2020): “(…) Tava tudo preso na
polícia como se a gente tivesse feito algum crime. É crime a gente ser de candomblé? É crime nós cultuarmos ao
orixá? Graças a Olorun, graças ao orixá bogbo, graças aos nossos ancestrais, nós tivemos nossa vitória.”
25
de Nina Rodrigues que os primeiros exemplares da arte afro-brasileira foram
publicados em 1904, na revista Kosmos. Em 1949, Arthur Ramos analisa alguns
exemplares por ele coletados em 1927 nos candomblés da Bahia. Em 1968, Clarival
do Prado Valladares publica dados sobre as peças mais antigas encontradas em
Alagoas e que foram apreendidas pela polícia em 1910, peças essas utilizadas nos
cultos afro-brasileiros nas últimas décadas do século XIX. Outros estudos foram
realizados na segunda metade do século XX, nos chamados museus da polícia, onde
foram encontradas peças apreendidas em alguns candomblés do país (Bahia,
Alagoas, Rio de Janeiro etc.). (MUNANGA, 2019, p. 14)
Antes uma arte estritamente ritual e religiosa, que preservava também seus aspectos
comunitário e utilitário comuns das vivências do antigo continente africano, a arte afro-
brasileira em meio ao século XX sai da clandestinidade e ganha popularidade. Embora alguns
movimentos artísticos brasileiros sejam inspirados nas artes de terreiro com o objetivo de
apenas ampliar a linguagem plástica artística, neste momento o foco no qual os artistas da
categoria afro-brasileira visam a ampliação da estética e sua temática será fora do âmbito dos
terreiros e da sacralidade.
Dezidério (2015) aborda esta transição das obras de temática e estética sacra afro-
brasileira para fora dos terreiros em sua pesquisa sobre a trajetória artística de Mestre Didi
que, embora conhecendo e experienciando a produção de obras rituais no culto Egúngún, não
realiza obra dentro do plano sagrado. Independente da exploração que o artista faz da
significação ritual da temática de suas esculturas, a sacralização de uma obra envolve
procedimentos de imantação e sacralização com dendê, mel, folhas, além de outras sustâncias
transmissoras do àse. (DEZIDÉRIO, 2015, p. 68) Além disso, a não imantação é o que
permitiu as obras de Mestre Didi serem expostas fora dos ambientes rituais. (DEZIDÉRIO,
2015, p. 68 apud SODRÉ, 2006, p. 223)
Embora tenhamos visto a concepção de Kabengele Munanga sobre a categoria artística
afro-brasileira pela ótica da hierarquização por três zonas, vale ressaltar a visão de Roberto
Conduru (2007) que vê a categoria pela ótica do cruzamento entre arte e as afro-brasilidades,
um campo plural vinculado de diversas maneiras à cultura afro-brasileira. Nessa ótica mais
aberta, o fator consiste na assimilação de caracteres de dentro da obra para as particularidades
da dimensão artística afro-brasileira e do antigo continente africano. (DEZIDÉRIO, 2015, p.
17 apud CONDURU, 2007)
Coube a essa seção da pesquisa entender todos os rumos e metamorfoses que as
dimensões artísticas e estéticas do antigo continente africano tiveram no solo do novo mundo
que veio a ser o Brasil. Do sistema cultural dos antigos povos de matriz Yorubá e Bantu,
26
passando pelos terreiros brasileiros até as múltiplas ramificações e adaptações que os aspectos
estéticos e visuais africanos tiveram no fazer artístico brasileiro, adentraremos agora às
vivências das(os) artistas que, interligadas ao universo afro-brasileiro, conectam-se com
África, junto à análise de suas obras que estendem essa conexão.
27
3. O REFLEXO DA ESTÉTICA AFRICANA NA ARTE DOS DESCENDENTES DA
DIÁSPORA: CONECTANDO VIDA, VIVÊNCIAS CULTURAIS E OBRAS
ARTÍSTICAS À ANCESTRALIDADE
Neste capítulo, será feita a relação entre o quadro teórico filosófico africano, as
vivências das(os) artistas em tela, e suas respectivas obras.
28
artes e seu afeto mnemônico, e a críticas sociais subjacentes na sua poesia imagética, há outro
limiar da questão da memória na obra de Rosana Paulino: ela também insere em sua poesia
visual recursos extraídos das suas vivências umbandistas, pois sua família era praticante desta
religião, e de sua casa para o terreiro, havia inúmeras referências que postumamente serão
inseridas nas suas obras.
Na própria pesquisa referência desta monografia, Eugenio (2020), no artigo Estética e
filosofia da arte africana: Uma breve abordagem sobre os padrões estéticos que conectam
África e sua diáspora destaca a instalação Assentamento para destrinchar aspectos originários
do antigo continente africano. Titulação inspirada no nome que se dá às obras, emblemas e
objetos presentes nos cultos de matriz africana (SILVA, 2005, p. 135), a instalação
Assentamento vem de uma série homônima de obras nas quais são trabalhadas diferentes
técnicas artísticas para reconstruir o sentido da vida de uma mulher negra anônima. A mulher,
sem nome, descaracterizada de sua matriz cultural, está nas fotos que são base da obra como
“objeto” de pesquisa para que uma comunidade científica racista tentasse provar suas teorias.
A artista, com a intenção de reconstruir a fruição sobre a imagem da mulher destacada
na instalação da série, insere alguns elementos visuais com as técnicas artísticas: o remendo
da sua imagem com as partes, que antes estavam separadas, são juntadas pela costura; as
raízes que saem e estendem-se para fora de seu corpo, usando a técnica do bordado; a inserção
de um coração, misturando bordado com a impressão; e usando destas mesmas técnicas para
inserir a extensão de seu ser no mundo: uma vida em seu útero a ser gerada38.
Eugenio, a fruir e destrinchar aspectos estéticos que a conectam a sua ancestralidade
afrodescendente, afirma:
Aqui escolho três imagens da série Assentamento, da artista visual Rosana Paulino,
para discorrer rapidamente sobre a ressignificação do corpo diaspórico. (...) Uma
mulher preta escolhe dar vida ao corpo de outra mulher preta com instrumentos
artísticos. Nessas três obras da série Assentamento, Paulino retira a imagem de uma
mulher preta retratada como coisa para análises históricas, e dá a essa mulher raízes,
liga-a aos seus ancestrais, reconecta seu corpo físico com o orun. Paulino devolve a
esse corpo africano características específicas como coração, raízes e linhagem. Já
que esse corpo foi transformado em simples material (de análise), Rosana esculpe
nele sua obra de arte, devolvendo-o o movimento, a vida que lhe foi tirada. Na
sequência ela dá à mulher um coração, um filho em seu ventre e raízes em seus pés.
Além de recortar e costurar a imagem em tecido e linha que se saem como quem
remenda uma história ou uma vida. Ela reconstrói esse corpo e assopra o emí. Para
os Yorubás é a arte que traz à vida, para Paulino nessa obra, também. Ela assenta
esse corpo, ou seja, dá a ele um lugar, uma conexão que o movimenta, um filho é
29
gerado, a vida se desenrola e o processo de criação contínua. O corpo se sabe agora
ènìyàn (humano), pelo movimento da arte. (EUGENIO, 2020, p. 121)
Em outras obras da série, a arte e seu objetivo de “soprar o emí” manifestam-se por
meio das técnicas de litografia e grafite sobre a imagem em papel, dando cor e expansão de
aspectos estéticos essenciais à arte de uma descendente da África: a expansão das raízes
culturais de uma comunidade, e o fazer artístico como um “dar vida”. Unem-se também seus
interesses nos campos das ciências biológicas e técnicas que em sua memória foram
perpetuadas entre as mulheres da sua família, e agora são acopladas em suas poéticas
visuais39.
Parede da memória, nas palavras da artista, tem a proposta de “(…) ligar, não apenas
simbólica, mas também fisicamente, os componentes da família e das origens socioculturais
das quais derivo.” (PAULINO, 2011, p. 25) Essa obra a qual centro minha análise, traz uma
viagem não só pela poética resultante da memória afetiva da artista, como também pelas
vivências que subjazem tudo o que compõe a materialidade e imaterialidade da obra.
Parede da memória foi exposta pela primeira vez no começo dos anos 90 por
incentivo dos professores de graduação de Rosana, época na qual o curador Emanuel Araújo a
conheceu e a levou para a Pinacoteca do Estado de São Paulo em 199440, lugar onde décadas
mais tarde a obra entraria como parte de seu acervo. (PAULINO, 2019, 26-27) A obra, assim
como mais de cem outros trabalhos e séries da artista (Assentamento, Atlântico vermelho,
Bastidores, etc) foram expostas na mostra Rosana Paulino: Costura da memória, com
curadoria de Valéria Piccoly e Pedro Nery. A exposição, cuja temática é marcada tanto pelas
memórias e vivências da artista, quanto pelas críticas históricas sobre os temas de racismo e
gênero, ocorreu na Pinacoteca entre dezembro de 2018 e março de 201941 e também no
Museu de Arte do Rio, entre abril e setembro de 201942.
Partimos primeiro para o suporte artístico: o patuá, amuletos feitos de couro ou pano,
com boca amarrada com cordão metálico e terminando em franja. Nele, há uma conta de vidro
da cor da divindade protetora, além de pedacinhos de raízes ou ervas sagradas, as vezes sendo
30
orações escritas e outros objetos secretos e mágicos no interior. No patuá há, algumas vezes, o
nome do orixá ou tal divindade. (CACCIATORE, 1977, p. 208)
Parede da memória (detalhe), obra de Rosana Paulino. Tecido, microfibra, xerox, linha de algodão e aquarela.
Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br/
31
invisibilidade dos negros e negras que são vistos como um grupo, e não como indivíduos.
(Disponível em: https://pinacoteca.org.br/programacao/rosana-paulino/)
A artista carrega em sua trajetória a união entre a memória, sua origem sociocultural
tocada pela matriz africana43, as técnicas artísticas contemporâneas junto com críticas sociais,
atravessando questões raciais e de gênero que modelam os espaços da sociedade enquanto
“imagens de sombras” de um passado infeliz que teve consequências estruturais na história de
um país. Apesar dessas consequências, há de se admirar a obra uma doutora artista que
refletiu e pôs a refletir sobre o papel da mulher negra na sociedade brasileira.
3.2. Os contornos poéticos entre arte, natureza e Umbanda na pesquisa de Luisa Magaly
32
OBJETO: procedimentos cerâmicos e incorporações anímicas nas artes visuais, e agora no
seu doutorado que está em andamento.
Em seu artigo Artes visuais e rituais umbandistas: uma experiência poética com os
objetos cerâmicos utilizados no pejí de Mãe Isabel, a artista, professora e pesquisadora expõe
resultados da sua pesquisa em artes visuais feita em 2014. Nesta pesquisa, ela faz uma relação
entre arte, natureza e Umbanda a partir dos dados coletados em visitas e entrevistas à Mãe
Isabel, zeladora de inquice45 em seu pejí46 em Juazeiro, Bahia. Entrevistando a Mãe Isabel,
Luisa Magaly usou os pontos absorvidos a partir das falas da entrevistada para delinear seu
processo de criação unindo as artes visuais e os rituais umbandistas, contornando a
materialidade dos objetos cerâmicos e a modelagem de sua causa material (a argila, matéria
vinda da natureza) e seu correspondente imaterial no escopo simbólico da cosmologia dos
orixás. As significações estéticas pretendidas na pesquisa de Luisa, refletidas nos conceitos de
“contenções” e “transbordamentos” que norteiam seu processo criativo, estão diretamente
ligadas a essa cosmologia propagada no sistema dos itans.
Os itans que Mãe Isabel transpassa na entrevista à artista, junto às relações da
cosmologia contida com a natureza47, vão direcionando sua criação. Mãe da Lama, Pai da
Terra (REIS, L. M. S. O., 2019, p. 178), primeira obra mostrada de sua pesquisa, deu vida ao
itan em que a Zeladora de Inquice oraliza o porquê de a orixá Iemanjá ser a mãe de todos os
orixás na Umbanda e a relação entre a lama resultante do contato entre o líquido jorrado e a
argila (objetos e fenômenos naturais) e as contenções imateriais inerentes explicadas pelo
itan. Luisa Magaly produz uma série de obras envolvendo os fatores artes visuais, natureza e
ritos umbandistas, partindo dos igbá da Zeladora de Inquice e seus itans. São as obras: Mãe
da Lama, Pai da Terra, Ventanias de Iansã, Luzes para Xangô, Cerâmica Rendada,
Contentoras, Entre Mares e Cachoeiras, e Doces contenções, todas concebidas na pesquisa
que começou em 2013 para serem desenvolvidas e expostas em 2014. (REIS, L. M. S. O.,
2019)
Entre toda a série, a obra que destaco para análise é Luzes para Xangô, em que são
notáveis as velas, o fogo das velas acesas, a cerâmica do igbá encontrado no peji da Zeladora
45 “O mesmo que mãe de santo. Quem cuida do terreiro, das entidades regentes e dos agregados. Nkisi é a
palavra em Bantu que denomina essas entidades. ‘Inquice’ é a grafia em português da palavra africana.” (REIS,
p., 2019, p.165)
46 Kpeji em Fɔ̀ngbè língua fon. São locais sagrados da cultura afro-brasileira, usualmente quartos de santo ou ilê
orixá (casa do orixá), onde são assentados os orixá. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Peji
47 “A terra sempre presente na cosmogonia africana junto à água torna-se massa modelada e viva” (REIS, L. M.
S. O., 2019, p. 181)
33
de Inquice, e a cera que em forma de líquido desce das velas no processo de derretimento e se
acumula ao fundo da cerâmica. “(…) cada uma das velas foi acesa de modo intencional,
circundadas por preces nos dias de quarta, dia destinado ao culto do orixá. Sua constituição
gradativa indica a convivência do real com o sag rado” (REIS, L. M. S. O., 2019, p. 181)
Luzes para Xangô, obra de Luisa Magaly, 2014. Cerâmica, vela e fogo48. (REIS, L. M. S. O., 2019, p. 177)
Com as velas sendo acendidas uma por uma e as chamas ganhando verticalidade junto
com o culto ao orixá Xangô, o objetivo estético da artista foi ganhando forma à medida que
mais uma vela é acesa. No decorrer da chama acesa e o derretimento da cera, há um
transbordamento assimétrico e luminoso de seus fragmentos sob a cerâmica, que é toda
tomada pela vela derretida. Nessa poética, que guia as instalações de Luisa usando o igbá
sagrado da Zeladora de Inquice, a obra Luzes para Xangô mostra sua total potência em
48 “Em Luzes para Xangô (2014), há uma exposição da relação direta entre a cerâmica e a chama da vela,
mediada pelos pedidos e oferendas de luz ao orixá Xangô. Orixá do panteão do fogo, leva consigo, como
elementos simbólicos, os raios, trovões e a cor vermelha. A liquidez da cera derretida pela chama da vela escorre
sobre o prato, representando as intenções colocadas em cada pavio aceso. O sentido da vela acesa, na Umbanda,
atribui ao ‘sonhador inflamado’ (BACHELARD, 1989) um sentimento orgânico, criador, que mantém
iluminadas a vida e as crenças. (…)” (REIS, L. M. S. O., 2019, p. 181)
34
detrimento de seu movimento no tempo, na medida em que vemos todo o processo de
transbordamento das velas que foram acesas cada com uma intenção ao orixá.
Não só na obra exposta nesta pesquisa, como também na completude de obras que
compõem a pesquisa da doutoranda e artista Luisa Magaly vemos o movimento como peça
chave. Atrelado à cosmogonia de matriz africana, a obra e sua poética regente une à sua
materialidade fatores fundamentais do aspecto estético imaterial: a cosmogonia de matriz
africana ligada às religiosidades afro-brasileiras com seus cultos e a forma de àse, emí, o
“sopro vital” que acendeu as velas e vão modelando a obra conforme a “vida” se manifesta.
Ao mesmo tempo em que ganha movimento com a presença imaterial dos ancestrais orixás, a
obra também ganha vida e tem sua continuidade no ayê.
3.3. A construção de uma comunidade ancestral pela propagação da cultura de seu povo
nas obras e feitios de Mestre Didi
A genealogia de Mestre Didi é relevante para um estudo a seu respeito porque ajuda
a compor o quebra-cabeça que vai determinar sua poética pessoal, deixando claro de
35
onde vem o universo mítico que habita suas obras, e também nos permite pensar no
contexto social que permitiu que Mestre Didi tivesse acesso ao universo da arte e a
indivíduos que influenciaram em sua inserção no campo artístico. (DEZIDÉRIO,
2014)
Além das artes visuais, inclui-se na carreira artística de Mestre Didi suas obras
literárias, cinco entre elas também contaram com a colaboração da antropóloga Juana Elbein
dos Santos, sua esposa. Destacam-se nestas obras literárias algumas que o artista recria na
escrita a comunicação dos itans, procurando estender a sabedoria da tradição Nagô-Yorubá,
buscando manter a riqueza das elaborações simbólicas da essência destes contos da tradição.
Desde sua infância, da qual herdou seu nome artístico, Deoscoredes Maximiliano dos
Santos foi instigado a construir obras artísticas funcionais de sua comunidade. (ARAÚJO,
2009) Ao assumir o cargo de sacerdote do culto de Obaluaiyê, Mestre Didi herda a
responsabilidade de confeccionar as obras ritualísticas dos orixás do panteão da terra. Mãe
Aninha Dona Eugênia Ana dos Santos, desde então, ensina as técnicas de feitura das obras,
engatilhando Mestre Didi na incorporação da estética africana em seus feitios e da identidade
visual característica das obras de arte de sua carreira. (DEZIDÉRIO, 2015, p. 59)
Após assumir o cargo de sacerdote, Didi é contratado pela UNESCO, o que lhe
proporciona fazer uma viagem para o continente africano com o intuito de pesquisar o
universo imagético e estético de base Nagô. Durante essa viagem, dadas as pesquisas
comparativas a partir da arte sacra tradicional africana, Didi depara-se com bases conceituais
e estéticas que seriam propagadas em sua obra. (DEZIDÉRIO, 2015 apud SODRÉ, 2006, p.
179)
No entanto, tais obras destinadas ao uso nos cultos de sua comunidade dada
incorporação de aspectos e entes imateriais na materialidade de seus feitios passam por uma
imantação no intuito de incorporar o àse, o que não permite que tais obras sacras sejam
expostas fora do terreiro. (DEZIDÉRIO, 2015, p. 68) Porém, comenta a pesquisadora
Gabriela Dezidério (2015, p. 71) que embora não sendo estritos pros rituais nos terreiros, as
obras da carreira artística de Didi possuem uma aura mística oriunda de sua relação com o
universo mítico presenciado no candomblé.
36
IYÁ Agbá - Mãe Ancestral, obra de Mestre Didi. Nervura de palmeira, tecido, couro e búzios. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra44273/iya-agba-mae-ancestral
Mesmo que a obra Iyá Agbá não seja um objeto sacro, há algumas características
interessantes para enxergar um campo estético tipicamente africano:
a) A representação da orixá Nanã, uma ancestral do panteão da terra conhecida do mundo
mítico vivenciado dentro dos candomblés, especialmente do culto vivenciado pelo artista;
b) Referências visuais das comunidades religiosas africanas com o uso de materiais
naturais presentes nestas e na mitologia Yorubá.
A presença mística inerente ao simbolismo da obra Iyá Agbá por sua referência à
Nanã, orixá presente na mitologia Yorubá, é vitalizada ao passo que um pertencente das
comunidades de matriz africana reconhece a referência, trazendo à tona a propagação da
ancestralidade e sua perpetuação no ayé. A obra, mesmo não imantada para ser um objeto
sacro, recebe o “sopro vital” ao passo que perpetua uma comunidade ancestral.
Ligando essa perpetuação da cosmovisão Yorubá com a representação da ancestral, e
considerando a materialidade da obra constituída de objetos naturais importantes nas
narrativas mitológicas nagô, vê-se de forma pulsante o aspecto comunitário herdado da
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filosofia africana. A continuidade e o reforçamento da cultura de sua comunidade embasaram
não só o campo estético das obras visuais de Mestre Didi, como também está bastante
presente no feitio das obras antológicas, não-literárias, literárias em que o artista perpetua os
itans Nagô Yorubá e contos da Bahia, publicando-os e estendendo o àse pela comunicação
visual, oral e transcrita.
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4. CONCLUSÃO
Esta pesquisa buscou investigar cada elemento da travessia entre a matriz filosófica e
artística até as artistas Rosana e Luisa e o artista Mestre Didi e suas obras ressaltando aspectos
filosóficos de cada ponto nodal do caminho histórico do antigo continente africano até chegar
aos respectivos resultados artísticos.
Entendemos a matriz filosófica dos aspectos estéticos da obra e subjacente também ao
modo de vida do afrodescendente a partir do suporte dos itans: mitos expostos oralmente que
comunicam e suplicam para o seu povo reflexões e padrões éticos, problemas ontológicos,
implicações estéticas, leituras de fenômenos da natureza e das pessoas de forma alegórica ou
metafórica.
Como o fator estético, serviu como base o mito de criação do ser humano, em que uma
obra trabalhada em conjunto pelos orixás envolve um trabalho colaborativo, a inserção do
emí, uma forma de àse, na obra ao ser soprado pelo orixá e com a inserção e participação
desta no ayê. Nisto, a criatividade, a arte e a vida ativada a partir da inserção do emí,
relacionam-se para entender o conceito de obra de arte a partir da filosofia da arte africana.
Imaterialidade e materialidade, logo, juntam-se ao lermos uma obra de arte banhada nessa
filosofia.
O fator comunitário presente na filosofia da arte estende-se a partir das comunicações
e problematizações éticas implícitas e explícitas nos itans a chegarem na vida do africano
esteticamente e ancestralmente. Este fator também é fortalecido atualmente devido ao
contexto de forte opressão às pessoas pretas, no qual o aspecto comunicativo e funcional
procura integrá-las à sua comunidade afrodescendente.
No Brasil, as comunidades religiosas foram fundamentais para a preservação da
cultura geral do povo descendente da diáspora. Por si só, a existência e o modus operandi das
comunidades religiosas refletiram o aspecto comunitário ao proteger seu povo e perpetuar o
conhecimento dos ancestrais. Nelas há também a preservação do sistema dos itans em toda
sua funcionalidade, refletidas inclusive nas obras de arte que foram e são até hoje produzidas
nos terreiros.
Dos terreiros pra fora, o impacto da estética africana foi estendido nos diversos modos
de releituras e linguagens visuais que os artistas afrodescendentes puderam explorar. Por entre
a poética dirigente das artes de Luisa Magaly, vimos uma série de obras dirigidas pela relação
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entre imaterialidade e materialidade utilizando o ibá de Mãe Isabel. Nas obras de Rosana, a
funcionalidade e algumas referências e materiais relacionam-se a linguagens plásticas de seu
espaço-tempo contemporâneo, assim como à linguagem criativa inerente à Filosofia Yorubá.
Analogamente à pesquisa artística de Magaly, vemos natureza, materialidade e imaterialidade
juntas na obra de Mestre Didi. Sacerdote Egúngún filho de uma descendente direta do culto
africano, o artista amplia a matriz filosófica provida pelos itans “assoprando o emí” em sua
obra visual e suas obras literárias.
Por resultado desta pesquisa, julgo como uma investigação de aspectos filosóficos
africanos no caminho entre sua matriz, passando pela chegada no solo do novo mundo, a
busca pela sua preservação em solo brasileiro, e a reflexão destes aspectos nas comunidades
afro-brasileiras, na criatividade e obra dos artistas em epígrafe. Além disse, soma-se também
o entendimento da estrutura da matriz filosófica dos itans.
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