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Fichamento do texto Arte Afro-brasileira de Kabengele Munanga

Pedro Xavier do Lago, 24/06/2020

UFRRJ

"Definir as artes plásticas afro-brasileiras não é uma questão meramente semântica, pois envolve

uma complexidade de outras questões remetendo ora à história do escravizado africano no Brasil,

ora à sua condição social, política e econômica, ora à sua cosmovisão e religião na nova terra". (p.1)

Munanga procura discorrer sobre as definições da arte, indo da definição aristotélica "Na metafísica

de Aristóteles, o termo "arte" designa uma atividade humana submissa a regras e tendo por objetivo

um resultado determinado. O que permite distinguir a arte da natureza, da ciência e do jogo. Desse

sentido geral decorre o termo artesão.". Então o autor passa depois pela concepção medieval: "Na

Idade Média, as sete artes liberais ensinadas nas faculdades eram a gramática, a dialética, a retórica,

a aritmética, a música, a geometria e a astronomia (MOURRAL, 1966, p.31).".  Munanga chega a

denominação atual que toma a arte, em suas múltiplas formas, como uma atividade cultural livre,

criativa e desinteressada. 

O belo (p.1-2) também é um ponto importante, pois constitui um universal em todas as sociedades.

Munanga relaciona a concepção grega com os conceitos do verdadeiro e do bem, e atrela o belo ao

bom, ao verdadeiro e ao útil na maioria das sociedades africanas. Dentre a pesquisa sobre o belo em

si, o autor traz Kant "(...) entre todos os homens as condições subjetivas da faculdade de julgar são

as mesmas, e que é belo o que agrada universalmente, sem conceito; o que sem conceito é

reconhecido como objeto de uma satisfação necessária"

Sobre a arte contemporânea "(...) parece evoluir numa direção muito diferente daquela do

racionalismo kantiano. Seu objetivo não é mais apenas o belo, pois pode visar também à simples

criatividade, à fantasia, ao jogo, à expressão pessoal, à busca do pitoresco, da originalidade, etc.


O autor esclarece o objetivo de buscar melhor definir a arte Afro-brasileira procurando distinguir da

arte brasileira de modo generalizado. "Descobrir a africanidade presente ou escondida nessa arte

constitui uma das condições primordiais de sua definição."

"Mas que africanidade é essa, quando sabemos que os criadores dessa arte são descendentes de

africanos escravizados (...)" Munanga aponta a ruptura social na diáspora como fator que

consequentemente operou muita despersonalização dos elementos culturais africanos, e como gnose

de novas recriações da arte pelos africanos trazidos. Assim, Munanga ressalta a importância da

consciência histórica de formação das condições que levaram a formação da arte Afro-brasileira,

inclusive da forma que procuraram de resistir à colonização cultural, ora selecionando artigos com

valores mais profundos, ora agregando novos valores ou adaptando outros ao contexto geral do

Novo Mundo.

Outro ponto importante que o autor ressalta é a relação espiritual e artística reservada a algumas

famílias que agregavam tais qualidades "Ora, no contexto tradicional africano, as artes eram

praticadas funcionalmente por membros especiais da comunidade, que, acreditava-se, teriam

aprendido o ofício dos espíritos, e não dos mortais. Por essa razão a prática da arte era reservada à

linhagem de certas famílias em particular. Em certos grupos étnicos, os escultores usavam um

distintivo de classe e tinham uma posição de destaque na corte real."

Neste contexto de vinda dos objetos de arte africanos, Mukana ressalta a importância da  presença

destes objetos para preservação da memória no núcleo da existência no Novo Mundo, garantindo a

aplicação temporal na memória dos indivíduos das próximas gerações.

Partindo do fato de que suas estruturas sociais não foram transportadas para o Novo Mundo, tão

pouco os elementos geográficos que se relacionavam, Munanga afirma que a arte africana não teve

suporte para uma continuidade integral. Assim, a arte foi recriada e fragmentada historicamente à

medida que certas peças perderam sua função espiritual.

"(...) as cortes reais africanas das regiões de onde foram trazidos homens e mulheres que foram

escravizados no Brasil (reinos do Congo, Cuba, Luba, Lunda, Cokwe etc., na África Central, e os
reinos Yoruba, Fon, Ashanti etc., na África Ocidental), assim como todas as instituições a elas

ligadas, foram motivo de grandes obras de arte.  Insígnias do poder, esses objetos tinham funções e

significados simbólicos enquanto suportes materiais e espirituais do poder e da autoridade. Entre o

Congo, Luba, Songye e outros povos da Savana ao sul da floresta equatorial, há de admirar bastões,

machadinhas, enxós etc., refinados e ricamente esculpidos. São objetos de aparato, destinados a

prestigiar o poder numa sociedade onde a potência do chefe é magnificada, pois mostra de maneira

incontestável que seu possuidor é superior aos outros homens de seu povo (MAQUET, 1981, p.

117).".

Apontando a qualidade funcional da arte africana, Munanga afirma: "Sendo objetos de arte

utilitários, eles perderam seu significado dentro do sistema colonial e do regime servil. "

Munanga reúne um ocorrido onde foi institucionalizado pelo clero as cerimônias coroação pelos

escravizados aos reis do Congo, singularidade ocorrida somente nas confrarias religiosas que

pertenciam, porém sem possibilidade de reinventar objetos referidos no contexto vigente.

A religiosidade (p.5) foi uma área bastante resistente no contexto, afirma Munanga, mesmo que a

conversão tenha sido uma justificativa da colonização, a qual fez instalações religiosas também nos

navios negreiros. Neste contexto, considerava-se a religião católica como verdadeira e relegavam as

religiosidades africanas na posição de cultos. Sua motivação de resistência estava ligada ao medo da

morte total de suas raízes, levando a uma série de manifestações que eram entendidas de várias

formas pelo clero.

Munanga aponta a descoberta, com o tempo, da religião católica pelos escravizados junto as

similitudes cultuais, estruturais e sociológicas entre ela e a religião yorubá. Tais similitudes serão

usadas para um disfarce cultual que reduza as infrações violentas dos mestres.

"Com efeito, a relação de intercessão dos santos junto à Santa Virgem e desta junto a Jesus na

teologia católica era semelhante à da cosmologia africana yorubá, na qual os orixás são

considerados como os intercessores dos homens junto a Olorum. Na religião católica, os santos
presidem cada um uma atividade humana ou são encarregados, por exemplo, de curar certas

doenças. Do mesmo modo, nas religiões negro- africanas os voduns e os orixás dirigem setores da

natureza e do cosmos e são protetores de algumas profissões -como, por exemplo, as de caçadores,

guerreiros, ferreiros, etc. (BASTIDE, 1971, p.361). " Munanga aponta as similitudes funcionais

entre Santos e suas histórias, mas discorre também sobre o modo como Exu foi se confundindo com

a imagem católica do Diabo, supondo a aversão dos moralistas religiosos no catolicismo e seu

caráter fálico. Porém, Exu entende-se pela ortodoxia do candomblé como uma divindade bem

temida pelo seu poder transformador.

Dadas estas situações, Munanga sintetiza as linguagens plásticas Afro-brasileiras como religiosa

numa situação de repressão política e social.

O autor também ressalta as semelhanças ecológicas entre sua terra atual e suas antigas terras como

fatores que levaram a continuidade de sua religião, e nisto uma utilidade aos objetos trazidos para o

Novo Mundo. Dada a fecundidade que estes elementos culturais encontraram para sua continuidade

e inovação artística religiosa, Munanga sintetiza: "É assim que nasce a primeira manifestação das

artes plásticas afro-brasileiras. Uma arte sem dúvida religiosa, funcional e utilitária.". (p.7)

A partir da pesquisa de Marianno Carneiro da Cunha sobre algumas obras Afro-brasileiras levando

em conta a forma e o conteúdo, partindo da análise de alguns Oxê Xangô e estatuetas de Ibeji, Exu

e Yemanjá, Munanga aponta que por um lado mostrando a continuidade de elementos nas peças

Oxê Xangô, as estatuetas mostraram mudanças, como adição de traços brancos as estatuetas, e a

troca da cabeleira simbólica para aos africanos por coroas. Munanga aponta a condensação dessa

arte ao contexto novo e algumas mudanças motivadas para camuflagem do catolicismo. 

Munanga aponta Ibeji como relacionado as noções africanas de gemealidade transferidas a imagem

de Cosme e Damião. O Exu, subversor da ordem de todos os âmbitos sociais e infrator dos tabus.

"(...) acumula as funções de Hermes e de Prometeu, como demonstrado por Frobenius, que o

qualificou de portador de elementos indispensáveis à realidade (SANTOS, 1975, p.240). "


Além destes atributos, Munanga aponta a importância de Exu como símbolo da resistência e

encorajamento dos negros escravizados em suas diversas situações no contexto. 

"(...) Exu reúne em si todos os elementos de uma metáfora expressiva que simboliza a

cultura negra em situação hostil. Para sobreviver e afirmar-se, ele se serve de símbolos

antagônicos por excelência da religião dominante e veicula uma visão de mundo própria, na

qual a ênfase é colocada sobre a contestação."

Ademais, sua assimilação ao demônio se configura no plano da magia, segundo a referência de

Trindade. Um "Deus fanfarrão" que se tornou cruel para a proteção dos negros contra os brancos.

Assim, conclui Munanga: "Aos novos significados e às novas funções de Exu corresponde uma

nova iconografia afro-brasileira reunindo os símbolos das religiões negro- africanas e da religião

católica" sintetizando a significação Afro-brasileira correspondente as concepções de resistência

adicionadas ao Exu Afro-brasileiro. 

Assim, mesmo insistido esta manifestação primeira da arte Afro-brasileira, Munanga ressalta a

dificuldade em referenciar os artistas dado caráter clandestino e coletivo da criação dessa arte em

seu contexto colonial. Além disso, o autor ressalta a falta de atenção pelo público e pelos

pesquisadores em arte que essa arte teve nesses três séculos desta sua fase em seu contexto. "Foi

graças ao trabalho pioneiro de Nina Rodrigues que os primeiros exemplares da arte afro- brasileira

foram publicados em 1904, na revista Kosmos."

Além da pesquisa de Nina Rodrigues, houveram outros pesquisadores e também a exposição de

obras Afro-brasileiras no museu da polícia, cujo parte dessas obras encontradas viriam a ser

conservados nos Institutos Geográficos e Históricos.

A partir das décadas de 30 e 40, a arte Afro-brasileira sai da clandestinidade e ganha espaço

popularmente, encorajados pelo modernismo e cientificamente pelos congressos Afro-brasileiros.. 

"A partir dessa época, a arte Afro-brasileira, então conhecida apenas como arte religiosa,

ritual, comunitária e utilitária, começa a ampliar seu campo de atuação. Seus artistas, saindo

do anonimato, começam a produzir uma arte não-étnica, com projeção na linguagem plástica

universal, embora conservando vínculos identitários com suas raízes"


Munanga destaca os que se inspiraram incidentemente "(...) da mesma maneira que o fazem com a

indígena, a europeia ou outras que possam polarizar sua criatividade pessoal e alimentar seu

universo mitopoético." e usam seus elementos plásticos em seus processos e os que tem um berço

cultural Afro-brasileiro onde se inspiraram. e, o autor ressalta: "Tanto os artistas do primeiro grupo

como os do segundo nominalmente referidos são por coincidência de origem étnica europeia."

Munanga ressalta também um terceiro grupo de artistas na qualidade de usar inconscientemente

inspirações Afro-brasileiras, como Guma, um branco gaúcho, e Louco, um negro de Cachoeira. O

autor questiona como onde remanejar os artistas Afro-brasileiros negros e mestiços dada a falta de

atenção pelos críticos artísticos e avaliadores.

Dado esse questionamento, Munanga reúne os poucos  documentos ligados a esses artistas: 

Escultor Agnaldo Manoel dos Santos e suas inspirações em elementos banto, e do universo nagô-

yorubá; O pintor Rubem Valentim dentro do universo mágico da religiosidade nagô-yorubá; O

escultor Emanuel Araújo em sua "(...) arquitetura de planos desenvolvidos com ritmos, tensões e

cores." dadas suas raízes Afro-brasileiras; Clarival do Prado Valladares "(...) um artista do universo

contemporâneo no amplo sentido do humanismo."; Ronaldo Rego e sua arte sincrética inspirada nas

suas vivências nos terreiros localizados na zona oeste do Rio de Janeiro, que influenciaram

plasticamente suas obras. A pesquisadora Maria Cecília Felix ressalta a falta da qualidade utilitarista

da arte de Ronaldo Rego intencionalmente, mas aponta que algumas obras podem sim ter uma

utilidade religiosa; Por último, Munanga traz Mestre Didi, parafraseando um dos pesquisadores de

sua obra "o ícone africano tem resistido a todas as transformações aculturativas no Brasil, e pode

comunicar- se ainda com a força do idioma original (...) que extrapola o indivíduo e fala dos valores

constantes de uma cultura, falando, nesta medida, também por todos (CUNHA, 1983, p.1026).".

Munanga volta a questão da pesquisa sobre a obra de artistas negros Afro-brasileiros e aponta a

pesquisa "A Mão Afro-brasileira" como algo que só está começando. A busca pela definição para a

qualificação reúne postulados necessário para adentrar ao conjunto 

"(...) a forma ou o estilo; as cores e seu simbolismo; a temática; a iconografia e as fontes de

inspiração, todos harmoniosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de

dar corpo e existência a uma obra de arte autêntica. Outros elementos, como a
monumentalidade, a repetição, a desproporção entre partes do corpo e a conceituação das

ideias (...)"

Assim, Munanga ressalta que qualificar uma arte como Afro-brasileira não necessita a reunião de

todos os postulados, mas sim o que está ali e sobressalta sobre a obra com regularidade trazendo

autenticidade. 

Munanga também problematiza o vínculo máximo da arte Afro-brasileira como "arte negra"

temendo um certo biologismo, ressaltando os trânsitos étnicos no interesse pelos elementos

artísticos Afro-brasileiros, relevando o caráter não biologizado, não etnicizado e não politizada na

fluência africana na arte. 

"Sabemos que qualquer artista, pouco importa a sua cultura, domina uma certa técnica e um

certo estilo, usa com familiaridade alguns materiais e não outros, projeta na sua obra uma

linguagem simbólica que reflete a identidade de sua sociedade e /ou reflete e critica a

estrutura social desta. Essa linguagem simbólica e a emoção estética provocada por sua obra

podem, às vezes, franquear as fronteiras nacionais e projetá-lo no universal. "

Munanga ressalta também a raridade de se encontrar um artista que utilize formalmente em sua arte

os elementos africanos tão somente, sem fugir do sincretismo cultural no âmbito artístico brasileiro. 

O autor conclui que a arte Afro-brasileira é um sistema fluido e aberto, com um centro, uma zona

mediana e uma periferia. O centro sendo as origens africanas dessa arte, a zona mediana se

encontrando com a primeira concepção de arte Afro-brasileira, que é religiosa e utilitária, e a

periferia englobando a arte recém discorrida onde Munanga ressaltou artistas que se inspiraram nas

suas raízes Afro-brasileiras, sendo a parte mais fluida e confusa deste sistema. 

Munanga conclui:

"Nesta concepção bastante dinâmica, não biologizada, não etnicizada e não politizada da arte afro-

brasileira, não há como deixar de cometer algumas arbitrariedades no momento da escolha e da

classificação sistemática das obras. Não há também como escapar das críticas construtivas ou

vazias, e sobretudo das críticas de caráter político - ideológico. É o preço que devemos pagar ao

aceitar a responsabilidade da curadoria de um módulo que representa a produção artística de um dos

segmentos étnicos mais excluídos da vida nacional brasileira"


"Faço essas reflexões não para esconder nossas limitações, que são verdadeiras, mas sim para

suscitar críticas construtivas capazes de enriquecer o debate das idéias sobre o conteúdo e a

substância da arte afro-brasileira e a importância de sua contribuição na construção da identidade

nacional brasileira.  A rememoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil oferece um momento

histórico propício não apenas para as manifestações de natureza simbólica, mas também para

reflexões críticas sobre o devir da sociedade brasileira. Se individualmente os politicamente

"negros" e historicamente "afro- brasileiros" produziram e produzem obras que engrandecem o

Brasil, se coletivamente eles contribuíram na modelação da identidade brasileira, a sua posição

coletiva na escala social, na distribuição do produto social, na participação do comando do país, no

sistema educativo e nos demais setores da vida nacional deixam a desejar e deveriam entrar também

na pauta desta rememoração."

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