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Atividade 1 - Definição e análise de uma situação empírica de conflito, relacionada à pesquisa

Pesquisa Social (2022/2) - PPGS UFSCar

Cairo Henrique dos Santos Lima

Para pensar o afrofuturismo no Brasil a partir da chave do conflito é preciso situar nosso
objeto de estudo, sobretudo as obras de arte, em termos dos sujeitos ou grupos sociais envolvidos em
sua realização material e simbólica, buscando qualificar os grupos e as relações estabelecidas entre os
mesmos. Estes grupos consistem, por um lado, em artistas afrofuturistas vinculados ou associados à
Diáspora Africana, e, por outro, em agentes do Estado, em termos da administração de recursos de
produção cultural (gravadoras, editoras e produtoras), e do exercício de poder voltado ao exercício da
violência (interface policial). Em geral, os artistas atrelados à música, literatura e cinema, abarcados
pelo recorte desta pesquisa, são sujeitos de origem periférica, envolvidos com a produção cultural em
sentido altamente crítico. Adirley Queirós, Marquim do Tropa, Chokito, entre outros sujeitos
envolvidos na produção do filme “Branco sai, preto fica” (2015), são moradores da cidade de
Ceilândia, Fábio Kabral, autor de “O caçador cibernético da rua 13” (2017), é morador da cidade do
Rio de Janeiro, e o grupo Senzala Hi-Tech, responsável pelo álbum “Represença” (2019), é formado
pelos artistas de São Paulo, Minari Groove Box, Junião, Diogo Silva e MC Sombra.

Consideramos que as obras de arte apresentam níveis variados de ficcionalidade, isto é, de


codificação estética sobre a realidade social em suas narrativas, assim como variam em termos do
direcionamento interno ou externo das relações de conflito envolvendo determinado grupo (a narrativa
do livro, por exemplo, ao contrário do álbum e do filme, se volta mais a dilemas internos a um grupo).
O conflito nas obras afrofuturistas surge a partir da má distribuição de poder entre os sujeitos artistas e
os agentes do Estado, no tocante à realização política e cultural de certos interesses, tendo em vista,
por um lado, a democratização do acesso a meios de produzir, circular e consumir arte, flexibilizando
as relações com as instituições e o próprio conceito de arte, e, por outro, a reprodução de um discurso
de Estado que mina as possibilidades de redistribuição e reconhecimento 1, perpetuando desigualdades
que configuram as instituições e que povoam o imaginário social.

Os conflitos podem ser identificados a partir dos fragmentos de texto extraídos das três obras
de arte (trechos das letras das canções do álbum, dos diálogos do filme e das páginas do livro), que,
em geral, apontam para as versões particulares da relação conflituosa estabelecida entre os sujeitos de
cada narrativa estética, mas também, pelos próprios artistas em relação a seus vínculos profissionais
com órgãos de mediação, de financiamento, de produção, etc. A arte pode ser vista então, tanto como
uma esfera de trabalho, quanto como um regime de representação, potente para expressar processos
subjetivos repletos de historicidade, tais como aqueles vinculados às culturas da Diáspora Africana. A
seguir, passaremos por três exemplos, aprofundando a discussão sobre os fragmentos das obras de arte
afrofuturistas, pensando também por alguns dos valores acionados pelos sujeitos ou grupos envolvidos
nas obras de arte, desde as representações até seu substrato empírico relacional.

Começando pela obra “Branco sai, preto fica” (2015), temos um conflito estabelecido tanto na
realidade social quanto na narrativa ficcional. Trata-se de um “documentário fabular”, baseado
em registros da identidade territorial e das experiências socioculturais de Ceilândia. O filme
recorre a elementos afrofuturistas para ressignificar a narrativa oficial sobre uma ação policial
específica resultante em massacre, ocorrida no bairro Quarentão, em Ceilândia, no dia 5 de
março de 1986. A expressão “Branco sai, preto fica” remete a um dos gritos de ordem
enunciados “naquela noite”. O trecho a seguir do monólogo de Sartana (Chokito), a respeito
da experiência social posterior ao incidente envolvendo a intervenção policial do Estado em
um baile de periferia envolve estruturas de sentimento profundas, vinculadas a memórias e a

1 [1] De acordo com o antropólogo Pierre Verger (1997), uma outra grafia comum para o nome do orixá Oxóssi
é “Oxowusi” (VERGER, 1997, p. 20). Entretanto, Fábio Kabral (2017) opta pela grafia “Osóòsì” (KABRAL,
2017, p. 14).
uma nova corporalidade que trazem o conflito dos sujeitos com o Estado do passado para o
presente:
O fim do Quarentão foi, assim, meio que o fim de uma fase da minha vida, o fim de
uma das minhas vidas, eu comecei uma outra vida; Então foi um outro choque,
quando eu saí do hospital, eu tive um choque com a realidade, com as ruas. Onde a
gente dançava, tudo em que eu passava lembrava uma coisa [...] Parece que a cidade
toda era parte da minha vida, parece que cortou aquilo ali tudo de mim, era uma parte
que estava perdendo, eu não tinha mais o direito de estar naquela esquina, então eu
chegava em casa e não queria mais sair [...] (Trecho de um dos monólogos de Sartana
em "Branco sai, preto fica")

Considerando que o baile do Quarentão apresenta vínculos específicos com


características culturais do território de Ceilândia, e que as vítimas da intervenção policial
apresentam sequelas no tocante à capacidade de mobilidade física em face da violência
apresentada pelo Estado, o corpo se relaciona mais de perto com o território, bem como, com
o próprio Estado, enquanto elementos de uma relação de conflito fundamental para
compreendermos as estratégias de representação crítica articuladas por artistas afrofuturistas
no Brasil. O cinema, como uma modalidade artística rebuscada do ponto de vista econômico,
se constitui em uma série de limitações, sobretudo quanto às fontes de financiamento, para
compra de equipamentos, exposição e circulação, etc. Nesse sentido, o filme “Branco sai,
preto fica” (2015) apresenta uma estratégia criativa de captação de recursos através de editais
públicos, que levou o grupo a acessar condições de articular o cinema como uma linguagem
estética e política, preocupada em expressar a voz cultural da periferia.
Avançando, temos um trecho extraído do livro “O caçador cibernético da rua 13”
(2017), que acionamos para retratar uma relação de conflito em termos das diferenças internas
a um grupo social fictício, retratado no interior da narrativa do livro. Fábio Kabral mistura a
fantasia e a ficção científica para favorecer uma imaginação de inspiração afrodiaspórica. O
livro narra a trajetória de João Arolê, um jovem ciborgue possuidor de poderes especiais
(condição denominada emí ẹjẹ), que é convocado a tornar-se um guerreiro das Corporações
Ibualama (uma entidade socialmente equivalente ao Estado na narrativa do livro). João Arolê
é levado a enfrentar inúmeras contradições entre memória, espiritualidade e controle social:
Do alto dos maiores prédios e pirâmides de Ketu Três, sentados em seus tronos
invisíveis no Òrun, aos pés do Grande Olódùmarè, estavam os Odé, os grandes
caçadores espirituais, a realeza ancestral da primeira cidade de Ketu; eram esses os
poderes cujo asé movimentava os sistemas operacionais mais importantes: geradores
de energia, processadores de água e comida, fábricas de equipamentos [...] Se do
Òrun o governo de Ketu era dos Odé, aqui no Àiyé o governo de Ketu Três pertencia
às Corporações Ibualama - que eram chefiadas pelo conselho das treze matriarcas, as
grandes CEO’s sacerdotisas [...] (p. 21-22 de "O caçador cibernético da rua 13")

O autor faz uma releitura afrofuturista da mitologia iorubá, e produz um universo


simbólico inspirado em atributos do orixá Oxóssi 2, que se refletem no território de Ketu 3,
cidade fictícia inspirada pela tradição religiosa do Candomblé Ketu, oriundo da região de
Benin, na África. O autor demonstra uma preocupação especial com a manipulação ritual
correta das línguas africanas. Enfatizando aspectos mágicos da narrativa, percebemos uma
articulação complexa entre elementos governamentais, rituais e tecnológicos, cuja relação
reflete um processo de hibridação cultural das referências à tradição do Candomblé Ketu, ou
da mitologia Iorubá, mescladas com uma roupagem estética de ficção científica. Ao mesmo

2 Em seu texto “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça em uma era pós-socialista” (2006),
Nancy Fraser aponta formas multivalentes de compreender os discursos sobre desigualdade e as estratégias
políticas para viabilizar a solução de injustiças (FRASER, 2006, p. 233).
tempo, a população de Ketu 3 é estratificada e segregada em termos raciais e espaciais, isto é,
apesar de ser uma cidade afrocentrada, o colorismo é utilizado como instrumento de
segmentação da população, existem zonas sociais hierarquizadas, e as pessoas de pele mais
escura ocupam os locais mais privilegiados. Tal movimento pode ser visto como uma crítica
ácida e cínica das formas de essencialismo absorvidas pelos movimentos negros no Brasil, ou
dos conflitos internalizados por grupos da Diáspora Africana face aos efeitos subjetivos do
racismo.
Por fim, temos alguns fragmentos de uma das canções do álbum “Represença” (2019),
do grupo Senzala Hi-Tech. O álbum possui 9 faixas, que apresentam sonoridades híbridas,
resultantes do encontro entre elementos tecnológicos da Diáspora Africana, como os próprios
gêneros musicais (rap, axé, samba, reggae, afrobeat, etc.), mas também, uma ampla gama de
técnicas de gravação. MC Sombra e Diogo Silva versam sobre a “vida cotidiana” no Brasil,
através de questionamentos sobre a relação entre sujeitos e o Estado, sobretudo invocando a
interface institucional da violência:
O chefe do estado, tinhoso, deu o sinal, lá vem os botas
Orcs urbanos botando o terror no leke’ da escola
É carta marcada, cadeia privada, lucro gera lucro
Pro Estado não ter problemas, pega só os meninos escuros
[...]
Sensacionalismo até que provem o contrário
Os caras são violentos no argumento e no diálogo
Maquinados até os dentes, carregando o que destrói
O aço que atravessa o peito não tem pra super-herói
[...]
Eles provocam violência pra vender segurança
Por suas ambições, sacrificam infâncias
Por causa de um beck, os leke’ entra em cana
Morte sem perícia, ninguém pega os bacanas
(“Chefe de Estado”, faixa 3 do álbum “Represença”, de Senzala Hi-Tech)

Além da questão dos patuás incorporados nas canções junto a dialetos típicos da
cultura hip-hop, a linguagem é central na obra musical devido à estruturação de um
posicionamento frente à constatação de um conflito estabelecido entre os sujeitos
afrodiaspóricos e o Estado em sua face policial. O genocídio, a humilhação, a pena, a
reclusão, a manipulação discursiva da mídia e a convivência delimitada por normas de
sobrevivência são alguns dos elementos constantes no imaginário articulado pelos MC’s para
retratar sua visão sobre o conflito travado no campo artístico e/ou cultural. A criminalização
da maconha, assim como a desracialização dos sistemas jurídicos são pautas políticas que
acompanham a proposta estética afrofuturista, sendo estes temas que servem de base para o
relato poético sobre as experiências cotidianas de conflito. Junto a outras faixas do álbum
como “Bozolândia” e “Mandaram apagar”, o grupo busca realizar uma crítica da posição
subalterna dos sujeitos periféricos e/ou afrodiaspóricos em relação às autoridades do Estado,
tendo em vista a polícia como instituição de vigilância, mas também, os políticos de alta
cúpula, protegidos por uma legitimidade que se transforma em impunidade, e, por
conseguinte, perpetua os termos do conflito social estabelecido, seja no nível das experiências
ou das representações.

Bibliografia
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça em uma era
pós-socialista. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.

KABRAL, Fábio. O caçador cibernético da rua 13. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos Orixás. 4ª edição. Salvador: Corrupio, 1997.

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