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Atividade 2 - Análise de uma situação empírica de solidariedade relacionada à pesquisa

Pesquisa Social (2022/2) - PPGS UFSCar

Cairo Henrique dos Santos Lima

Pretendemos realizar uma discussão breve focalizando apenas uma das obras de arte
com que trabalhamos na pesquisa, o filme “Branco sai, preto fica” (2015), dirigido por
Adirley Queirós, que envolve, sobretudo, a solidariedade social formada por experiências
comuns das vítimas de violência policial na periferia, relacionada às memórias anteriores e
posteriores à intervenção policial realizada no baile do bairro Quarentão, em Ceilândia, em
1986, que resulta em um massacre e em consequências políticas e culturais significativas
(HIRANO, 2015). Este conjunto de acontecimentos levou à transformação da corporalidade e
da territorialidade que atravessa e constitui os agentes envolvidos, tendo em vista a elaboração
de estratégias culturais de resistência, que envolvem a dimensão da narrativa, como no caso
das transmissões de rádio pirata que o personagem Marquim utiliza para reafirmar a força do
baile do Quarentão e do próprio hip-hop em um futuro distópico, mas também, a dimensão da
produção cultural do filme, entrelaçada pela autoria coletiva e pela participação de moradores
de Ceilândia, que incluem algumas das vítimas do episódio de 1986.
A narrativa do filme tensiona a fronteira entre o documentário e a ficção, pois tece
uma trama de teor futurista sobre acontecimentos derivados das consequências da invasão do
baile do Quarentão. A história ficcional do filme envolve uma situação de segregação
territorial racializada, estabelecida entre populações da periferia do Distrito Federal e agentes
da administração estatal. Tal situação envolve condições como: os moradores não podem
cruzar determinados territórios, têm acesso limitado a recursos de subsistência e existe uma
cisão cultural, que leva à particularização da arte periférica, como no caso do hip-hop e da
música brega, enfatizadas como forma de expressão dotada de autenticidade. Na narrativa
fílmica, o personagem Dimas Cravalanças (Gilmar Durães) é um agente da resistência que
viaja do futuro para o presente, a fim de obter informações capazes de solucionar conflitos
desencadeados no futuro. Para tanto, Dimas deve criar laços com Marquim e Sartana
(Marquim do Tropa e Chokito), que são tanto as vítimas da violência estatal no episódio do
baile do Quarentão, quanto os atores que interpretam personagens encarnando tais
subjetividades:

Ano de 2073, 1º de Julho, terceira tentativa de contato com Dimas Cravalanças,


agente terceirizado do Estado brasileiro. Dimas, nós estamos muito preocupados com
a sua situação, já faz três anos que você partiu e até agora nós não tivemos nenhuma
notícia desde a sua chegada ao território do passado, as coisas aqui mudaram muito, a
vanguarda cristã assumiu o poder [...] Você precisa encontrá-lo para que a gente possa
mover uma ação contra o Estado por crimes cometidos contra as populações negras
marginalizadas. Produza provas Cravalanças [...] (Trecho de uma transmissão enviada
do futuro e recebida por Dimas, cena de "Branco sai, preto fica")

Nesse sentido, e trazendo enfim a questão dos laços sociais, podemos dizer que a
trama do filme se desenvolve em termos de, no mínimo, quatro níveis diversos de
solidariedade social: 1) a solidariedade inspirada pela experiência comum dos moradores de
Ceilândia quanto à violência policial sofrida durante o incidente do baile do Quarentão em
1986; 2) a solidariedade no presente narrativo, dos personagens periféricos que se reúnem em
torno de estratégias de resistência cultural voltadas à responsabilização do Estado pela
violência praticada; 3) a solidariedade correspondente no futuro narrativo, dos agentes que
buscam resgatar provas da violência estatal contra populações negras periféricas no passado,
por as mesmas terem sido apagadas no futuro; 4) a solidariedade do grupo opositor, isto é, dos
agentes de Estado que, em geral, foram identificados como policiais ou autoridades políticas,
mobilizadas pelo interesse comum de manutenção da ordem, que, na prática, é realizado
através do exercício arbitrário da capacidade de violência legítima do Estado.
A partir dessa caracterização geral, tanto da estrutura de experiências por trás da
narrativa artística do filme na dimensão representacional, quanto dos tipos de solidariedade
social presentes na dimensão da estética e da produção do filme, buscaremos discutir aspectos
do estabelecimento, do desenvolvimento e da eventual modificação dos laços sociais
referidos. Antes de mais nada, seria razoável afirmar que a função social da solidariedade
estabelecida entre os protagonistas do filme, seja enquanto vítimas ou atores, envolve o
fortalecimento de um discurso político-cultural construído em torno das experiências
socioculturais na cidade de Ceilândia. Tal discurso seria dedicado a disputas por
reconhecimento na dimensão representacional, mas também, ao desenvolvimento de meios de
sobrevivência às formas de desintegração sofridas pelos sujeitos segregados, pelo Estado, na
periferia - o que inclui, nesse caso, aspectos de racialização da experiência periférica.
No nível da produção cultural do filme especificamente, Adirley Queirós sinaliza a
utilização de uma estratégia imersiva, além da busca de uma produção coletiva e situacional,
envolvida, de modo participativo, pela vivência a ser cinematograficamente representada
(como no caso de seus filmes “Rap, O Canto da Ceilândia (2005)” e “A Cidade é Uma Só?”
(2011)1. São estabelecidas relações diretas com os sujeitos, no caso, os moradores de
Ceilândia, em termos de uma vinculação entre a trajetória coletiva dos agentes e as
subjetividades e corporalidades representadas. Assim, podemos considerar que a solidariedade
é expressa no nível técnico e estético, tendo em vista que as relações coletivas do filme,
enquanto um documentário, fundamentam a proposta estética do filme enquanto uma ficção,
isto é, a proximidade entre os agentes que produziram o filme com o contexto retratado, levou
à elaboração de um retrato fidedigno e atento às particularidades. Podemos afirmar que a
solidariedade é expressa no filme também pela importância concedida às práticas culturais:
Eu era louco, eu [...] passava a semana ensaiando um passinho mais a minha
galerinha, pra no final de semana eu me destacar, e as minas vir pro lado, ficar
dançando perto do meu lado, e na hora da música lenta eu (“crr”), grudava. E esse
tempo todo, passou anos e anos, e eu sinto saudade de alguns velhos amigos, gostaria
de saber onde está ele, sinto saudade desse parceiro, onde está você, meu amigo
Sartana? Vou tocar um som pra você cara, esse era o som que tremia o baile [...]
(Trecho de uma transmissão feita por Marquim para encontrar Sartana, cena de
“Branco sai, preto fica”).

Por outro lado, a solidariedade social é traduzida, no filme, em configurações


específicas do espaço, como no caso de rampas, elevadores e escadas, elementos vinculados à
corporalidade dos agentes, que levam à modelação dos usos e dos significados do espaço.
Podemos considerar que o direcionamento das estratégias de resistência cultural retratadas no
filme seja a integração social, e não necessariamente uma ruptura, no sentido da formulação
de uma alternativa à lógica do sistema. Avançando, no nível profissional, do cinema como
segmento artístico, a própria produção cultural do filme pode ser vista como meio de
integração social. A construção de elevadores como uma das partes previstas na distribuição
orçamentária do financiamento do filme - que deriva da captação de recursos em edital

1 O filme “Rap, O Canto da Ceilândia” (2005) gira em torno de um diálogo com representantes do rap nacional
que são moradores de Ceilândia, enquanto o filme “A Cidade é Uma Só?” (2011) trata de diferentes narrativas
sobre o desenvolvimento da cidade de Ceilândia. Levando em conta também “Branco sai, preto fica” (2015),
podemos dizer que o imaginário ligado à territorialidade é um dos traços característicos do cinema de Adirley
Queirós.
público do Fundo de Apoio de Cultura - leva à possibilidade de representar a periferia como
um espaço social futurista e à realização prática da solidariedade social proposta na produção
do filme, em termos da elaboração de um retrato histórico crítico, mas também, de uma
interferência prática na realidade social: a arte viabilizou a construção de aparatos de
mobilidade que o Estado jamais ofereceria para integrar as corporalidades e territorialidades
periféricas.
Trazendo à tona o afrofuturismo, consideramos a necessidade de direcionar um devir
para o futuro, no sentido da elaboração de “projetos” para modificar as possibilidades do que
os sujeitos negros e periféricos (ou afrodiaspóricos) podem ser no futuro (IMARISHA, 2020).
Relacionando a questão dos laços sociais ao afrofuturismo, enfatizamos a existência de uma
ênfase sobre o Estado como traço comum das narrativas afrofuturistas, tendo em vista,
sobretudo, a oposição entre dois grupos, cujos laços possuem solidariedade interna: os artistas
da periferia (como sujeitos históricos e como personagens) e os agentes do Estado (como
policiais e autoridades políticas). A relação entre estes dois grupos coesos, em geral,
interrompe suas formas específicas de solidariedade social, prejudicando a realização de suas
respectivas funções sociais, destacando o espaço das periferias como campo de disputa e
tensionamento de diversas formas articuladas de solidariedade.
Para concluir, a solidariedade social é abundante na narrativa do filme “Branco sai,
preto fica” (2015), seja em termos de representações ou de experiências. Entretanto, existem
aspectos macrossociais e históricos que não poderemos abordar nesta breve exposição,
referentes aos laços estabelecidos na periferia, como uma comunidade territorial, e, na
Diáspora Africana2, enquanto uma comunidade de memória. Tais laços apresentam teor
político entrelaçado a eventos históricos e agrupamentos sociais correlacionados, como no
caso dos movimentos sociais estadunidenses pelos direitos civis durante a década de 1960, ou
as comunidades transnacionais surgidas a partir das lutas decoloniais por libertação na África
a partir da década de 1950. Em decorrência destes laços é que surgem movimentos
contemporâneos como o afrofuturismo, voltados à solidariedade transnacional.

Bibliografia

HIRANO, Luis Felipe Kojima. “Branco sai, preto fica”: a crise da figura do mediador
humano. Novos Estudos CEBRAP, 103, p. 219-226, nov., 2015.

IMARISHA, Walidah. Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça.
In: AMORIM, Tomaz (Org.). Ponto Virgulina #1: Afrofuturismo, 2020.

2 Ressaltamos que a Diáspora Africana também deve ser considerada como um processo histórico, uma
condição social, um espaço geopolítico e um discurso político-cultural (ZELEZA, 2005, p. 579), bem como, uma
metodologia e uma epistemologia, vinculadas a um movimento de descentramento em relação à narrativa
moderno-colonial.

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