Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Discente: Jerry Wiliam de Melo Freitas

A mídia contemporânea ao qual deter-me-ei como primeira avaliação da disciplina é o


documentário produzido pela historiadora Beatriz Nascimento, que roteirizou o material,
juntamente com a cineasta Raquel Gerber, que dirigiu o documentário. Ôrí é um filme que,
narrado na voz da própria Beatriz, conta a história do movimento negro no Brasil, sua
ascensão, seu processo de libertação, subjetivação e a organização de seus territórios, desde o
corpo próprio a ocupação desse corpo no espaço. O plano de fundo que permeia o filme está
ligado à importância dos quilombos na formação nacional. Esse caminho é traçado no filme
por uma mulher negra de posicionamento afrocentrado. Tomei a liberdade de neste trabalho
tratar de um filme nada centrado na Europa. Isso pra mim já seria um ato crítico ao
eurocentrismo.
Elaborado durante 11 anos, entre 1977 e 1988, Ôrí alcançou o momento em que a
politização dos debates chegava amplamente à sociedade brasileira, promovendo a
convergência entre a insurgência dos movimentos sociais pelas políticas afirmativas da
população negra e embates pós coloniais que na época tocavam o cinema. Ôrí consolidou-se
como uma peça contundente dentro dessa cena. Dentre outros fatos históricos ao qual o filme
contemplou três deles são bastante simbólicos dentro da narrativa do filme; o surgimento do
Movimento Negro Unificado em 1978, ano que também definiu-se o Dia Nacional da
Consciência Negra e o centenário da Abolição em 1988. Tais fatos serviram para ligar o filme
aos processos de reorganização e fortalecimento do movimento negro.
Fui assistir ao filme em busca de elementos eurocêntricos ao qual eu pudesse apontar
e realizar minhas críticas e considerações. Mas me deparei com uma obra-prima rara. Não
encontrei sinais, ou elementos dentro do filme que tende a impor categorias e normas
europeias, achei perfeito. Radical e inédito, o filme faz um processo de revisão na
historiografia da formação nacional, reivindicando e atualizando um posicionamento
afrocentrado, em direção de uma outra narrativa da nação. O texto e narração da Beatriz
Nascimento atesta uma postura singular, já que a sua voz quem domina no filme e conduz
uma saga de deslocamento radical em relação a uma visão discursiva opressiva que
estabelece a senzala como único elemento de importancia e participação dos negros na
historiografia brasileira. A narração tensiona o individual e o coletivo, destilando parâmetros
identitários da nação. Tudo isso na medida em que raça e classe se articulam como potências
entre passado e memória num processo de reflexão. Isso vai ficando evidente quando o
conceito de quilombo surge para ressignificar a sua importância e reiterar a sua continuidade
para compreensão e manutenção das dinâmicas sociais, culturais e políticas afro-centradas.
Na ocasião do lançamento do filme em 1989 Beatriz nascimento escreveu o seguinte texto:

“ÔRÍ é um filme que participou da vida e da organização do


movimento negro da década de 70. É fruto de encontro de duas
pesquisas: cinematográfica (Raquel Gerber) e histórica (Beatriz
Nascimento). Iniciando em 1977, centralizado em São Paulo,
documenta outros estados e alguns países africanos, fixando nas
variadas manifestações da afro-americanidade que brotaram naquele
período. Mas ÔRÍ também é um épico, que ao revelar o herói
civilizador Zumbi, organizador do Quilombo dos Palmares e sua
democracia, reentroniza-o no presente como organizador da
consciência negra e por isso vale-se do texto poético. Como tal passeia
por múltiplas formas de rituais iniciáticos: os encontros universitários,
congressos nacionais e internacionais, as Escolas de Samba, as
religiões afro-brasileiras, as sessões de “soul music”, trazendo os
anseios e os ritmos negros como continuadores da História dos povos
africanos da Diáspora. Não é por menos que ÔRÍ, que em Iorubá
significa “cabeça”, ao realçar o papel dos bantos na sociedade
brasileira ao mesmo tempo projeta a contribuição cosmogônica nagô
dos orixás. Por fragmentos que correspondem a processos iniciáticos,
se quer um filme reflexivo sobre as atuais condições do planeta: as
relações do homem com o outro e consigo mesmo, com a nação e a
natureza.” (Beatriz Nascimento, 10/11/89).
Na transcrição abaixo, no início do filme, a narradora faz uma colocação que imprime bem a
experiência que foi a diáspora. Focado em expor como a transmigração de África para as
Américas, configura uma perda de imagem e representação do povo negro em ocasião da
colonização.

“Na medida em que havia um intercâmbio entre mercadores…


e africanos chefes, mercadores também… Havia na relação entre
escravos um intercâmbio também. E essa troca está no nível do “soul”,
da alma do homem escravo. Ele troca com o outro a experiência do
sofrer… A experiência da perda da imagem… a experiência do exílio.”
(Transcrição do filme)
Esse trecho reflete a preocupação de Beatriz de como o negro no Brasil foi visto
apenas como mão de obra. Reflete a o projeto de coisificação do homem negro que é visto
como homem-mercadoria no período do capital mercantil do Brasil. Com base no texto de
Stuart Hall, O ocidente e o resto, o resto é estereotipado unilateralmente de maneira que as
diferenças complexas são reduzidas a recortes essencializantes. Ou seja, para o projeto de
colonização foi central a ideia de que os negros são essencialmente besta-feras. A eles está
resumido o papel de ser apenas amigáveis ou hostis.
Na minha perspectiva, Ôrí realiza um tremendo contraponto a essa estereotipação em
sua Mise en Scène. O processo criativo do filme vai ao encontro de uma elaboração
intelectual negra a partir dos próprios sujeitos que compõem a cena. Isso gera uma imensa
simbiose entre imagens e conceitos. Na voz de Beatriz emerge com ela suas vivências e
subjetivação, formando um modo radical e diferente de pensar questões de identidade. A
pedagoga e filósofa Bell Hooks, sobre isso, escreve em seu texto Olhares negros: raça e
representação que “aqueles entre nós comprometidos com a luta da libertação dos negros[...]
precisam encarar todos os dias a realidade trágica de que, coletivamente, realizamos poucas
revoluções em termos de representação racial - se é que fizemos alguma.”(HOOKS, 2019).
Acredito que a Bell Hooks não tenha conhecido o trabalho de Beatriz Nascimento e Raquel
Gerber. Em termos de representação, Ôrí realizou um trabalho revolucionário de
representação impecável. Do roteiro às imagens e até as músicas foram produzidas por
pessoas negras e quando não foi produzido por pessoas negras ficou resumido a artistas
brasileiros e americanos. A ficha técnica cultural do filme consiste nos trabalhos de trilha
sonora original de Naná Vasconcelos além dos entrevistados Gilberto Gil, Jimmy Bo Horne,
Mãe de Santo Didi, a própria Beatriz Nascimento e Thereza Santos. As cenas do filme são
compostas por recortes de rituais, festas, jogos de capoeira, escolas de samba, congressos
negros e entre outros. Dessa maneira, para a cena, pelo menos do cinema nacional, é um
filme onde não falta representação física/corporal, cultural, espiritual e intelectual das figuras
negras que compõem a sociedade brasileira. Tudo isso constitui um trabalho de
transformação da imagem do negro que foi perdida e perpetuada pelo evento da escravidão.
O lugar de representação é um lugar de luta para a população negra não só no Brasil mas no
mundo. Por isso a centralidade do quilombo no filme. Abaixo transcrevo as palavras de um
dos entrevistados e parte de um narração sobre o conceito de quilombo que a Beatriz sustenta.

“A consciência do quilombo que a Beatriz levanta não está


levantada em termos de classe social, ainda que os assuntos sejam
paralelos. Não é o mesmo que a gente está tratando de entender através
de levantar o quilombo não como um quisto, como um reservatório do
passado, mas como um continuum cultural de aglutinação dentro de
um país que é fundamentalmente hetero cultural e que não quer
reconhecer-se como tal em bases igualitárias. [...] O grande drama é
justamente o reconhecimento da pessoa, do homem negro, que nunca
foi reconhecido no brasil.” (Transcrição do filme.)

O filme tenta passar, no geral, uma ideia de que a aglutinação da população negra no
país, seja na roda de samba, no baile funk, roda de capoeira, seja nos movimentos sociais,
seja nos rituais religiosos e etc, colabora com um processo de reconhecimento e retomada de
imagem. O próprio filme também colabora com isso utilizando-se como que numa
metalinguagem cinematográfica da imagem audiovisual para a retomada da imagem da
população negra. Para Beatriz o corpo negro parece se constituir e redefinir na experiência da
diáspora, da transmigração, da senzala para o quilombo, do campo para a cidade. Ela aponta,
no filme, para uma preocupação com uma redefinição corpórea. Fica evidente a busca pela
imagem perdida na diáspora. Encerro meu texto com mais uma transcrição da narração de
Beatriz no final do filme onde ela sintetiza o que pra mim foi essencial e emocionante no
filme.

“É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que


tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de
um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A
invisibilidade está na raiz da perda da identidade; então, eu conto a
minha experiência, e não ver Zumbi, que para mim era o herói.”
(Transcrição do filme).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HALL, Stuart. O Ocidente e o resto: discurso e poder. Projeto História, n. 56.
HOOK, Bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo:
Elefante, 2019.

Você também pode gostar