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JUNHO DE 2012
BELÉM
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GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ
Governador Simão Robison Oliveira Jatene
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GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ
SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE
INSTITUTO DE TERRAS DO PARÁ
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, SOCIAL E AMBIENTAL DO PARÁ
Coordenação Interinstitucional
Paulo Sérgio Altieri dos Santos - SEMA
Roza Modolo - Coordenadoria de Projetos Especiais do ITERPA
Gustavo Américo Pinto da Silva - Assessoria Técnica do IDESP
Colaboradores
Divino Herculys Lima, economista
Emmanuel de Almeida Farias Júnior, antropólogo
Everaldo Nascimento de Almeida, engenheiro agrônomo
José Ferreira da Rocha, geógrafo
Manuella Mattos Porto, socióloga
Rita de Cassia Gugliotti Braglia, jornalista
Belém
2012
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APRESENTAÇÃO 45
1 INTRODUÇAO 7
PARTE I IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE
CACHOEIRA PORTEIRA
2 METODOLOGIA 9
2.1 PROCESSO DE MATERIALIZAÇÃO DO RELATÓRIO 9
2.2 METODOLOGIAS ESPECÍFICAS 12
2.2.1 Diagnóstico socioeconômico, ambiental e cultural 13
2.2.2 Uso da terra - mapeamento agroextrativista 13
2.2.3 Estudo antropológico 14
2.2.4Representação cartográfica
3. RELAÇÕES INTERNAS, INFLUÊNCIAS EXTERNAS E SITUAÇÃO PRESENTE 16
3.1“OS DE DENTRO” 18
3.2“OS DE FORA” 21
3.3 “OS DO ENTORNO” 28
3.4 AMOCREQ: UM DIREITO FUNDAMENTAL OFUSCADO PELA 33
BUROCRACIA
4. DIAGNÓSTICO SOCIOECONÔMICO, AMBIENTAL E CULTURAL 38
4.1 INFRAESTRUTURAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVA 40
4.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS E AMBIENTAIS 40
4.2.1 Hidrografia 40
4.2.2 Clima 40
4.2.3 Tipos de solo 41
4.2.4 Vegetação 41
4.2.5 Fauna 43
4.2.6 Sítios arqueológicos do período paleozoico 43
4.3 ASPECTOS SOCIOCULTURAIS 44
4.3.1 A Educação 44
4.3.2 A Saúde 52
4.4 ASPECTOS DEMOGRÁFICOS 56
4.5 ASPECTOS ECONÔMICOS 57
4.5.1 Extrativismo Animal e Vegetal (Produtos florestais não madeireiros)
4.5.2 A atividade extrativista da castanha 62
4.6 MAPEAMENTO AGROEXTRATIVISTA 70
4.6.1 Utilização do solo 71
4.6.2 Uso dos recursos da floresta 80
4.7 ANÁLISE DO AMBIENTE INTERNO 85
4.8 MEIO AMBIENTE E ETNOCONSERVAÇÃO 86
4.8.1 Imagens da floresta 88
5 REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA 91
5.1 MAPEAMENTO DA ÁREA DE PRETENSÃO 91
5.2 CONSTRUÇÃO DA CARTA-IMAGEM 93
5.2.1 A malha de drenagem 93
5.2.2 Acidentes geográficos 94
REFERÊNCIAS 97
PARTE llESTUDO ANTROPOLÓGICO
6 COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DE CACHOEIRA PORTEIRA 100
6.1 O ESTADO E A UNIDADE SOCIAL: CONFLITOS E REIVINDICAÇÃO 100
TERRITORIAL
6.1.1 Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de 102
7
Quilombo de Cachoeira Porteira-AMOCREQ-CPT
6.1.2 Produto de relações entre indígenas e quilombolas 105
6.1.3 O Estado e a natureza: políticas ambientais no rio Trombetas 111
6.1.3.1 Políticas ambientais no âmbito estadual 115
6.1.4 A judicialização da relação entre indígenas e quilombolas 116
6.2 QUILOMBOLAS DO ALTO TROMBETAS: CACHOEIRA PORTEIRA 119
6.2.1 Quilombolas de Cachoeira Porteira 120
6.2.2 Uma leitura do conceito de quilombo 127
6.2.3 A Porteira 131
6.2.4 Viajantes e naturalistas 134
6.2.5 O extrativismo na virada do Século XX 135
6.2.6 Projetos de infraestrutura, mineradores e hidrelétricos: expropriação 143
territorial
6.3 FUGA E PERSEGUIÇÃO AOS MOCAMBEIROS DO TROMBETAS 157
6.3.1 Os processos diferenciados de territorialização 167
6.3.2 Extrativismo: um modo de viver 171
6.3.3 Calendários extrativistas e agrícolas 179
6.4 SANTOS E VISAGENS 187
6.4.1“Evangélicos” e “católicos” 187
6.4.2 Os festejos de Nossa Senhora de Fátima 188
6.4.3 Benzimentos 191
6.4.4 As visagens 192
6.5 CONSIDERAÇÕES: “TERRITORIALIDADES ESPECÍFICAS” E OS 196
QUILOMBOLAS DE CACHOEIRA PORTEIRA
REFERÊNCIAS 206
ANEXOS 213
216
PARTE III - CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DA COMUNIDADE DE
CACHOEIRA PORTEIRA
216
7 PREFÁCIO
218
8 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO FÍSICO-NATURAL
222
9 SITUAÇÃO FUNDIÁRIA
222
9.1 OCUPAÇÃO FÍSICO-ESPACIAL
224
9.2 INDICAÇÕES HISTÓRICAS
232
9.3 POPULAÇÃO
233
9.4 ASPECTOS ECONÔMICOS E RENDA DOS MORADORES
233
9.4.1 Sobre a Economia
240
9.5 ASPECTOS DAS CONDIÇÕES DE VIDA DA POPULAÇÃO
10 CONSIDERAÇOES FINAIS 258
8
APRESENTAÇÃO
“.... eu faço assim, eu tenho esperança de um dia nós dizer, isto aqui é
nosso, nem que seja trezentos mil hectares, como quer que seja, mais se for nosso, o
problema é nossos filhos, por exemplo, eu to com 65 anos completo, daqui com mais
trinta e cinco anos provavelmente eu não vou mais tá vivo, mais tem... só neto eu
tenho trinta, três bisneta, sete filhos e três genros e duas noras, então é um sonho de
ver o futuro da minha geração, poxa uma beleza, eu vou morrer mais sei que meus
filhos, meus netos, ficaram libertos...” (Entrevista com Raimundo Adão de Souza, 65
anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira )
5
de criação de terra indígena no entorno - insinuando-se conflitos inexistentes, fato que
chamou a atenção do Ministério Público Federal, representação de Santarém, gerando um
Inquérito Civil Público de maio de 2011 .
6
1. INTRODUÇÃO
Desde maio de 2011, órgãos públicos de âmbito federal e estadual vêm realizando
reuniões em Santarém, Brasília e Belém - em três ocasiões com a participação da
Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira
Porteira (Amocreq-CPT) -, tendo como pauta a sobreposição dos territórios indígena e
quilombola.
7
A primeira, “IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE
CACHOEIRA PORTEIRA”, foi orientada pela análise de fatos contemporâneos (relações
internas, influências externas e situação presente), pela produção do diagnóstico
socioeconômico, ambiental e cultural (perfil da comunidade em seu território) e a
representação cartográfica da área pretendida para titulação, com a projeção territorial das
áreas de uso coletivo.
8
2. METODOLOGIA
9
no dia 13 de março de 2012, pelo Núcleo de Cartografia e Georreferenciamento do
Idesp e por três representantes da Associação dos Moradores da Comunidade
Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (Amocreq-CPT)1. Para a
elaboração desse primeiro produto foi utilizado o Catálogo de Imagens do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), adquiridas através de download, recobrindo
as áreas de uso e de pretensão. O Idesp colocou à disposição dos interessados
várias cópias da carta-imagem plotada, para subsidiar as etapas de campo relativas
à demarcação de limites, tanto da área pretendida como das áreas de uso dos
castanhais.
1 Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, Artigo 2º, § 3o - Para a medição e demarcação das
terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas
para a instrução procedimental.
10
Atualização da relação de famílias integrantes da comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira (Ficha Cadastral Familiar Quilombola).
IDESP : Mobilização comunitária e coordenação dos trabalhos em campo;
Identificação da malha de drenagem inserida na poligonal, atribuindo nomes
segundo o conhecimento empírico e histórico da região; Treinamento dos
membros da comunidade para operação de GPS de navegação e formação de
equipes para o trabalho de campo;
Acompanhamento da identificação dos pontos das coordenadas da poligonal
pretendida;
Identificação de pontos de coordenadas que compreendem a área de interesse;
Mapeamento antropológico da área pleiteada, a partir da visão dos quilombolas e do
conhecimento local associado à tecnologia aprendida;
Apresentação de todas as etapas realizadas à comunidade.
11
2.2 METODOLOGIAS ESPECÍFICAS
12
Mapeamento agroextrativista
Para descrever as formas de utilização do solo, das áreas de floresta e o modo de
produção extrativista foram realizadas pesquisas prévias em estudos pertinentes à região de
Cachoeira Porteira, citados nas referências bibliográficas.
Para descrever as formas de utilização do solo e das áreas de floresta foi realizada
uma pesquisa prévia sobre os estudos pertinentes à região de Cachoeira Porteira,
constantes no capítulo das referências bibliográficas.
13
organizações locais; c) Entrevista estruturada para um grupo representativo das famílias
quilombolas (15%), para a obtenção de informações quantitativas e qualitativas sobre os
usos dos recursos agrícolas e florestais da área em questão; d) Visitas às áreas de
produção agrícola e de uso florestal das famílias para comprovação técnica sobre a
veracidade das informações obtidas nas entrevistas.
2
Satélite Resource Sat-1, com instrumento LISS3, órbita ponto P6-316/075 e P6-316/076 de
cobertura em 09/2009 e 09/2011
14
Seis equipes foram a campo: quatro saíram para identificar os pontos das
coordenadas plotadas na carta-imagem da poligonal da área de pretensão (laterais e porção
norte); uma seguiu para fazer o reconhecimento e a demarcação das áreas de uso dos
castanhais; e outra equipe seguiu para identificar os pontos de coordenadas da área de
pretensão na porção sul, compreendendo o Rio Mapuera e os igarapés Mungubal e Água
Fria, com o limite da comunidade quilombola titulada de Mãe Domingas.
No retorno das equipes de campo iniciou-se a coleta dos trabalhos com a entrega
dos aparelhos de GPS e seus apontamentos do levantamento realizado na faixa da
poligonal pretendida. Para melhor registro, as equipes também relataram os principais
acidentes geográficos no decorrer de seus trajetos na busca dos pontos sugeridos. A
entrega de seus apanhados ficou para complementar os dados do levantamento e plotagem
na carta-imagem.
15
3. IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE CACHOEIRA PORTEIRA
1899 – Henri Coudreau faz expedição ao rio Cachorro tendo como guias os
mocambeiros de Cachoeira Porteira.
16
17
Os quilombolas que hoje permanecem em Cachoeira Porteira convivem,
concomitantemente, com três influências em seu modo de vida: a relação com povos
indígenas dentro do território; resquícios da intrusão de empresas mineradoras, hidrelétricas
e de terraplenagem, vindas de fora do território; e de três unidades de conservação no
entorno da área de pretensão para titulação, que se sobrepuseram ao território da
comunidade quilombola.
3
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth; CASTRO, Edna Ramos. Diagnóstico da situação das comunidades
localizadas na Rebio do Rio Trombetas (Volume I, p.111). Belém: MMA/IBAMA, 2001.
18
artefatos por eles utilizados - potes, tampas de barro e antigos cemitérios são memórias de
um tempo difícil.
Atravessam grandes distâncias para chegar aos centros comerciais, com viagens em
barcos particulares, cujos fretes são combinados e que levam mais 12 horas para
chegar até Oriximiná (ou mais de 15 horas para Óbidos) - no caso de ser preciso ir
até a capital do Estado, são mais três dias de viagem;
A saúde, tanto preventiva quanto curativa é precária, não havendo assistência
médica constante, medicamentos ou tratamentos emergenciais;
Há deficiência na Educação tanto pela falta de professores especializados quanto
pela própria extensão de ensino;
As fontes de renda são escassas, obtidas através do extrativismo (coleta de frutos da
floresta e pesca), de pequenos roçados ou de benefícios de programas de governo;
Os meios de comunicação estão em más condições e não cumprem a contento seus
propósitos.
Internamente, o exercício cotidiano de viver é que aponta o grau de reciprocidade
entre as comunidades indígenas circunvizinhas e os quilombolas de Cachoeira Porteira. Isso
se aplica nas relações de trabalho, expressas em dois acordos que foram estabelecidos em
2002 e 2005, definindo as áreas comuns de uso dos castanhais e traçando limites,
respectivamente. Ainda, nas relações de parentesco existem os casamentos entre famílias
4
Estudo que integra o Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, conduzido pela Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná e pela Comissão PróÍndio de São Paulo, 2000.
19
indígenas e quilombolas que não causam estranheza. Eles permitem, entre outros
compromissos, relações de coesão social, como a solidariedade nos momentos de
dificuldade e formas simples de cooperação.
Fonte: IDESP
Uma casa de apoio aos indígenas foi construída com o material doado pela
Comunidade, com painéis pré-moldados deixadas pela empreiteira Andrade Gutierrez, em
decorrência da necessidade de abrigá-los quando em trânsito. É o local em que os índios
aguardam a chegada de ajuda em caso de doenças e outras situações. Há relatos de casos
de acidentes em que índios receberam os primeiros socorros por integrantes quilombolas.
Entretanto indígenas devido às relações de afinidades e parentesco ficam hospedados em
unidades residenciais quilombolas.
20
Foto 6 - Casa de apoio aos indígenas na comunidade quilombola
Fonte: IDESP
O que existe é uma solidariedade cotidiana entre povos. Alijados dos direitos
fundamentais à cidadania, ambos estão ilhados socialmente. Não há políticas públicas
eficientes para a saúde, para a educação, para os meios de comunicação e transporte, além
do cerceamento do direito de ir e vir, ferido pela presença da Mineração Rio do Norte (40%
da Vale), pela Reserva Biológica do Rio Trombetas e pela sombra das hidrelétricas da
Eletronorte.
21
Os castanhais passaram a ter outros “donos”, por intermédio de concessões
outorgadas pelo Estado para aqueles que reivindicavam e pagavam pela possibilidade
exploração, ou seja, através da privatização de terras públicas. Foi contundente o
desrespeito ao direito de usufruto dos recursos naturais às populações locais, uma vez que
o poder público foi omisso diante das pressões e infortúnios sofridos pelas comunidades
quilombolas. No início do século XX, os quilombolas passaram a servir de mão de obra
barata à coleta da castanha no mesmo território que por gerações lhes pertenceu.
Identificados como simples extratores ou como pessoas sem vínculos com a terra ou com a
agricultura, viram-se pressionados por uma política econômica de exploração capitalista dos
recursos naturais, que implicava na compra e venda das “terras dos pretos”.
Fonte: IDESP
Informações locais indicam que até 1971 a margem do rio Trombetas era só um
areal com vegetação típica de beira-rio, um baixio, havendo somente o barracão de
castanha do seu “Ió” e um porto para embarque da produção. Também chegava o Grupo
Andrade Gutierrez, uma empreiteira contratada pelo Departamento Nacional de Estradas e
22
Rodagens – DNER, que entra definitivamente em cena em 1973, para abertura de um
trecho de 220 km de estrada, uma continuidade da BR 163 (rodovia Cuiabá/Santarém),
saindo do porto de Cachoeira Porteira até a conexão com o que deveria tornar-se a
Perimetral Norte.
Fonte: IDESP
Ressalta-se que a madeira retirada estaria na área a ser alagada pela barragem da
hidrelétrica Cachoeira Porteira, outro megaprojeto de alçada da Eletronorte, ficando claro
que a Andrade Gutierrez, a MRN e essa empresa tinham acordos para o usufruto do
território quilombola.
5
Um megaprojeto de mineração, composto, hoje, pelas empresas: VALE (40%), bhpbilliton (14,8%), Rio
Tinto Alcan (12%), CBR (10%), ALCOA Alumínio S.A (8,58%), ALCOA World Alumina (5%), HYDRO (5%) e
ALCOA AWA Brasil Participações (4,62%), instalado desde 1975 em Porto Trombetas, estimulado pelo II Plano
Nacional de Desenvolvimento do governo Geisel.
23
Foi essa a primeira agressão nesse setor do rio Trombetas sobre o meio
ambiente, pelo corte desordenado e numeroso de espécies. Sobre os
moradores, provocou tensões e conflitos, especialmente ao retirá-los das
terras quando acenou com indenizações irrisórias. (ACEVEDO e
CASTRO, 1998, p.230)
O caso das intrusões de grandes empresas não acabou com a saída da Andrade
Gutierrez. Ainda havia a penetração da Eletronorte no território quilombola, por conta do
plano de construção de barragens hidrelétricas no rio Trombetas. No final da década de 70
até o término da década de 80, Engenharia e consultoria S/A, contratada pela Eletronorte,
montou acampamento para pesquisar o potencial hídrico, voltado à construção de uma
barragem, prevista inicialmente na primeira cachoeira, a do Porão (rio Trombetas). Nesse
mesmo período, a Eletronorte montou o acampamento Pioneiro, próximo à pista de pouso
construída pela Andrade Gutierrez, já prevendo a mudança de eixo da barragem para outra
cachoeira: a do Viramundo (rio Trombetas) e Cachorro (rio Mapuera). .
24
Foto 9 – Prospecções e sondagens – buracos a céu aberto – abril/2012
Fonte: IDESP
Fonte: IDESP
25
Ao término dos estudos, a empresa, cobriu esses buracos com madeira “branca” e,
passados 20 anos, aproximadamente 200 deles estão totalmente abertos no meio da
floresta, constituindo verdadeiras armadilhas para aqueles que dependem dela para
assegurar a própria sobrevivência. Relatos de moradores dão conta de que em diversas
ocasiões foram encontradas antas agonizando, varas de porcos queixada morto, além de
vários esqueletos de animais que ali caíram e não conseguiram sair.
26
Foto 11 - Modelos das casas pré-moldadas (Andrade Gutierrez)- maio/2012
Fonte: IDESP
Fonte: IDESP
27
Foto 13 - Moradias com aproveitamento de material maio/2012.
Fonte: IDESP
28
Mapa 1 - Unidades de conservação
29
sendo esta a única forma de visibilidade para os remanescentes de
quilombos”. (WANDERLEY, 2006, “Território invadido”, p.49)
30
No “Cadastro de comunidades quilombolas e ribeirinhas localizadas no interior e
entorno da Reserva Biológica do Rio Trombetas” 6, constante no documento Projeto Povos
do Rio (2006), há certa dificuldade em caracterizar a comunidade de Cachoeira Porteira
como quilombola, referindo-se a seus moradores como ribeirinhos. Mas há três referências
no documento indicando a comunidade enquanto quilombola. A primeira remete ao item 3.3
- Análise das comunidades remanescentes de quilombo localizadas no interior e no limite da
Rebio:
A décima sexta foto é constante no mesmo documento, página 331, que apresenta a
seguinte legenda: Figura 76 - Cadastro de moradia quilombola na comunidade de Cachoeira
Porteira.
6
Projeto Povos do Rio - Cadastro de Comunidades Quilombolas e Ribeirinhas Localizadas no Interior e Entorno
da Reserva Biológica do Rio Trombetas - Pará - Brasil.- Relatório Final apresentado ao Fundo Nacional
para a Biodiversidade como Produto 05 do Contrato de Prestação de Serviços – Núcleo Macacoprego
de Vivências Ambientais e Culturais e FUNBIO - MMA, 2006.
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FOTO 16 – Imagem extraída do documento Projeto Povos do Rio.
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As três unidades de conservação restringem o modo de vida dos quilombolas e
indígenas ao serem criadas. As pessoas não compreendem o fato de ter perdido o direito do
usufruto pleno e secular dos recursos naturais de seus referidos territórios. Entendem que
as proibições interferem de forma punitiva no modo de vida pouco compreendido e herdado
de seus antepassados.
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para localizar e identificar a área;
- 18/10/2004 – Nota a DTA para
inclusão na programação de 2005;
31/07/2005 Assinatura do termo de Reconhecimento de limites entre as
De: Secretaria acordo entre indígenas e duas áreas. Termo de acordo vai
Especial de Estado de quilombolas assinado pela Amocreq, Associação
Defesa Social – dos povos Indígenas do Mapuera,
Defensoria Pública Chefe da Aldeia Mapuera, Cacique
Kaxuyana, Funai, Defensoria Pública de
Oriximiná;
26/10/2006 Alteração de pessoa física Ficha Cadastral da Pessoa Jurídica
De: Ministério da responsável pelo CNPJ
Fazenda
04/12/2006 - CRIAÇÃO DAS FLORESTAS ESTADUAIS DO TROMBETAS E DE FARO, através
dos decretos estaduais nº 2607 e 2605, respectivamente.
19/04/2007 Certidão de auto- Procedimento para identificação,
De: Fundação Cultural reconhecimento - Livro de reconhecimento, delimitação,
Palmares cadastro nº 10, Registro 972, demarcação e titulação das terras
Para: comunidade Fl. 37, em 10/04/2007, ocupadas por remanescentes das
quilombola de publicado no D.O.U. em comunidades quilombolas;
Cachoeira Porteira 16/05/2007
17/12/2007 Espelho do Processo - Troca De 17/12/2007 a 17/10/2008 em trâmite
De: Iterpa de Memorandos no Iterpa; 10/04/2008 -
Encaminhamento a DJ para análise;
lançamento de dúvidas sobre a
condição quilombola;
08/05/2008 Of. Nº 392/2008-GP Solicitação de retificação do estatuto,
De: Iterpa esclarecimento de divergência quanto
Para: Amocreq ao número de assinaturas e quantidade
de votos na Ata de eleição da Diretoria,
entre outros;
08/05/2008 Of. 040/2008- Solicitação de técnico para acompanhar
De: COPPIR COPPIR/SEJUDH a caravana de Ação Social do Projeto
Para: Iterpa de Cidadania e verificar pendências;
17/06/2008 Folha de Despacho Notificação de não haver necessidade
De: Iterpa Processo nº 2008/265755 da presença de técnico do Iterpa, pois
Para: Diretor do DEAF um técnico havia seguido em 16/06
para Oriximiná para verificar se a
comunidade ainda tinha interesse em
regularizar as terras ou se preferia
requerer um assentamento;
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06/10/2009 Of. 1504/2009-GP Informação de que a área de pretensão
De: Iterpa incide sobre a Rebio Trombetas, a Flota
Para: Amocreq Faro e a Flota Trombetas.
Fonte: documentos pesquisados na sede da AMOCREQ e nas cópias juntadas ao processo nº
125212, do Iterpa.
Elaboração IDESP
Passados seis anos, desde o pedido de titulação, inicia-se outra etapa, sem que a
anterior estivesse concluída. No entanto, a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira
passa a ser ameaçada pela demarcação da Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana, que,
segundo estudo antropológico realizado pela Funai, avança pela Floresta Estadual do
Trombetas e segue até a divisa da Reserva Biológica do Trombetas (a Rebio),
desconsiderando a existência secular quilombola na região. Diante do exposto a ventilação
de um suposto conflito entre indígenas e quilombolas em decorrência da demarcação da TI
em questão gera a denúncia ao Ministério Público Federal, representação de Santarém.
35
Floresta Estadual de Trombetas, no
município de Oriximiná/PA”; Ver
Of.PRM/STM/GAB3/0983/2011, de
09/11/2011 que remete a esta reunião,
com o seguinte texto: “...e estabelecer
diretrizes de atuação conjunta entre
órgãos, com vista a agilizar o processo
de regularização fundiária dos territórios
indígenas e quilombola...”
08/08/2011 Of. 426/2011-GP Iterpa encaminha documentos
De: Iterpa solicitados, cita estudos realizados por
Para: MPF-Santarém pesquisadores sobre Cachoeira Porteira;
informa que os “processos requisitados
situam-se em parte da área de
975.061,1107 ha, denominada Gleba
‘Cachoeira Porteira’, já arrecadada e
matriculada por esta autarquia...” –
Registro de imóveis – matrícula nº 1541
de10/10/2003.
10/08/2011 Nota Técnica referente ao Informa providências registradas no
De: Iterpa processo 2004/125212 processo; cita próximos passos com
relação à comunidade e faz
programação de campo
26/08/2011 Solicitação Associação solicita desafetação da área
De: Amocreq-CPT pretendida das Flotas Trombetas e Faro.
Para: Iterpa
13/09/2011 Memória de reunião Reunião no Iterpa com Ideflor, Iterpa e
Idesp para acordar estudo de
identificação do território quilombola de
Cachoeira Porteira - Nova reunião no
Idesp, envolvendo a Sema, teve como
objetivo elaborar a minuta do Termo de
Cooperação Técnica para discutir o
Plano de trabalho para realização do
estudo.
20/10/2011 Repasse da minuta do TCT e Plano de
Trabalho a Sema
08/11/2011 Relatório Iterpa Reunião em Porto Trombetas, na sede
do ICMBio, com a presença de
indígenas e de quilombolas, Funai-
Brasília, Funai-Manaus, Imazon, Sema,
PGE-PA e Iterpa
09/11/2011 Of.PRM/STM/GAB3/0983/20 Assunto: requerer a assinatura de termo
De: MPF/ Santarém 11 de cooperação técnica (com urgência),
Para: Sema/Iterpa para acelerar o processo de “realização
dos estudos antropológicos e outros
necessários para a identificação e
delimitação do território quilombola de
Cachoeira Porteira”.
08/02/2012 Termo de Cooperação Instituições do Governo do Pará
De: Sema, Iterpa e Técnica e Financeira celebram o Termo, tendo Sema como
Idesp proponente, Iterpa como parceiro e
Idesp como órgão executor;
13/02/2012 Memória da Reunião da 6ª Presença do MPF/antropóloga,
Câmara de Coordenação e Sema/Diap/jurídico/antropóloga, Imazon,
Revisão – Brasília/DF PGE-PA, Amocreq, Funai-Brasília e
Manaus e Fundação Cultural
Palmares/antropóloga.
15/02/2012 Of.PRM/STM/GAB3/0106/20 Ministério Público Federal envia ofício
36
De: MPF 12 do MPF-Santarém) ao Governador do Estado informando
Para: Governador do sobre a importância e urgência em se
Estado do Pará fazer o estudo para a regularização
fundiária do território quilombola. O
citado ofício ainda sugere que haja a
celebração de um acordo entre
quilombolas e indígenas, envolvendo
instituições estaduais e federais, para a
construção de um documento “sui
generis”, que abarque os interesses e
direitos das duas comunidades
envolvidas.
13/03/2012 Ata reunião no IDESP Identificação do Território Quilombola de
Cachoeira Porteira – envio de equipe
para executar os serviços contratados.
14/03/2012 Ata de reunião no IDESP Reunião entre órgãos públicos
estaduais, Coordenação das
Associações das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Pará
(Malungu) e Amocreq-CPT para
deliberações pertinentes aos estudos
contratados.
23/04/2012 Memória da Reunião da 6ª “Avaliar providências cabíveis no que
Câmara de Coordenação e tange a situação de sobreposição entre
Revisão – Brasília/DF Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana, a
comunidade Quilombola de Cachoeira
Porteira e as Florestas Estaduais de
Trombetas e Faro, no município de
Oriximiná/PA”
Elaboração: IDESP
Aspectos socioculturais
37
Cachoeira Porteira é uma das comunidades quilombolas pertencentes ao município
de Oriximiná, microrregião de Óbidos e mesorregião do Baixo Amazonas. A localização
geográfica aproximada do povoado é 1°05’20”S e 57°02’51”O. Mas a maior referência é a
bacia hidrográfica do rio Amazonas, alto rio Trombetas, a qual a comunidade está inserida.
Transporte fluvial gratuito uma vez por mês para conduzir professores e um outro
para a comunidade;
Escola com ensino fundamental;
Um posto de saúde, que não está em funcionamento; há somente um agente de
saúde e outro de endemias sem condições de trabalho;
Uma casa de força com motor de 114 hp e gerador de 80 kw/h, que fornece energia
termoelétrica durante 4 horas no período noturno. Os 1.800 litros de combustível
mensais são doados pela prefeitura;
Água encanada através de um sistema por declive, que abastece precariamente as
residências. Em períodos de seca, uma bomba entra em funcionamento, extraindo
água diretamente do rio Trombetas;
Barracão comunitário em precárias condições de uso
Em termos de meios de comunicação, a comunidade conta com serviços telefônicos
precários. Há telefones residenciais, porém os de uso público não têm a manutenção
devida: dos quatro instalados apenas um recebe chamadas.
Fonte: IDESP
38
Foto 18 - Barracão comunitário - maio/2012
Fonte: IDESP
Fonte: IDESP
39
4.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS E AMBIENTAIS
4.2.1 Hidrografia
4.2.2 Clima
A área pleiteada pela comunidade quilombola é constituída por uma fisiografia que
recorta terrenos onde preponderam estratificações geológicas características da formação
do planalto das Guianas, contendo inúmeras nascentes descendo em direção a tributários,
que deságuam nos rios Trombetas, Cachorro e Mapuera.
40
4.2.4 Vegetação
O solo é encoberto por uma diversidade de espécies vegetais que são características
das Florestas de Terra Firme e de Várzea. São matas primárias densas, compostas em seu
interior por: A formação vegetal local tem seu solo encoberto por uma diversidade de
espécies vegetais que são características de matas primárias densas de terra firme,
compostas em seu interior por Castanheiras (Bertholetia excelsa Kunth.), Cedros (Cedrela
odorata L.), Piquiazeiros (Caryocar villosum), Jutaízeiros (Dialium guianense (AUBL.) Sadw.,
Louros (Licaria rigida), Ipês (Tabebuia serratifolia), Itaúbas (Mezilaurus itaúba), Itangueiras
(Ximenia americana), Maçarandubas (Manilkara huberi), Cumaru (Dipteryx odorata (Aubl.)
Wild., Sucupira (Diplotropis purpúrea), Aroeira (Astronium fraxinifolium Schott & Spreng.),
Acariquara (Minquartia guianensis), Breus (Protium hepytaphyllum), Uxiraneira (Sacoglottis
amazônica), Manaiara (Campsiandra Laurifolia) e Tauarí (Couratari cf. oblongifolia Ducke).
Compondo as matas ciliares dos igarapés, furos e lagos locais encontram-se outras
espécies vegetais características dessas bordaduras, como, Breu, Andiroba e inúmeras
palmeiras, entre as quais preponderam aquelas do gênero Geonoma (ubim) e bactris
(marajá grande e marajá pequeno). Concentrações de palmeiras Mumbaca foram
observadas em decorrência da abertura de clareiras provocadas por quedas de árvores
decorrentes de fatores ambientais.
41
esquerda do rio Trombetas). Nele se faz a caracterização da vegetação local onde as
famílias predominantes na área estudada foram a Sapotaceae, Burseraceae,
Caesalpiniaceae e Lecythidaceae.Todavia outras famílias ainda foram observadas no
estudo como Rutaceae, Dilleniaceae, Cochlospermaceae, Ebenaceae, Lacistermaceaea,
Convovulaceae e Connaraceae.
4.2.5 Fauna
42
4.2.6 Sítios arqueológicos do período paleozoico
43
Concordo com Isolda em não retirar o sítio Mapuera (= Cachoeira
Porteira?) de nossa lista, até surgir alguém que se candidate para
descrevê-lo. É uma área paleontológica importante da seção paleozóica
do flanco norte da Bacia do Amazonas, incluindo restos de peixes e
quitinozoários, etc. (ver informações da base Paleo da CPRM abaixo).
A represa da Cachoeira Porteira prevista para construção no passado
pela Eletronorte não foi executada (as imagens de satélite não indicam
nada nesse sentido) e não sei se ainda está nos planos do governo.
Cachoeira Porteira é também um conhecido sítio fossilífero (sítio Nº 004,
já excluído) e penso ser possível ser o mesmo que o Mapuera (sítio Nº
040?). Cachoeira Porteira localiza-se na confuência do Mapuera com o
Trombetas, por isso é possivel que ambos os sítios refiram-se à mesma
localidade. Diogenes que já esteve lá com José Henrique G. Melo (veja
publicações deste último no Documento Nº DNPM000769 abaixo), ou
Norma Cruz, que fez tese de doutorado na região, talvez possam
esclarecer a questão (ver documentos Nº CPRM003915 e CPRM003916
abaixo).” (CPRM, disponível em
http://sigep.cprm.gov.br/propostas/Mapuera_AM.htm, acessado em
21/05/2012)
4.3.1 A Educação
44
Foto 20 - Escola Municipal - abril/2012
Fonte: IDESP
A escola conta com um quadro de nove professores, dos quais sete têm nível
superior completo (Pedagogia, Letras, Biologia, entre outros cursos) e dois estão em fase de
conclusão. Os cursos são oferecidos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Núcleo de
Extensão de Oriximiná, sendo que as viagens dos professores, uma vez por mês, são
custeadas pela prefeitura.
Elaboração: IDESP
45
Há poucos não alfabetizados, cerca de 20 pessoas, mas na faixa etária que
compreende dos 20 aos 54 anos há 40 pessoas que pouco sabem ler e escrever. Essa é a
clientela da EJA.
Gráfico 2 – Educação de Adultos – Pouco domínio da leitura e escrita – Cachoeira Porteira - maio – 2012.
Elaboração: IDESP
É uma escola para quilombolas, adaptada à realidade local, embora possua pouco
material didático específico. No caso do EJA, como muitos alunos são coletores de
castanha, ficando de março a junho praticamente fora da comunidade, há um documento
específico onde é registrado o período de afastamento e, no retorno do castanhal, é
reiniciada a atividade escolar, com o acompanhamento especial do professor. Também há
aqueles, principalmente mulheres, que pelo tipo de trabalho exaustivo executado não
conseguem freqüentar aulas em determinados dias, para isso a escola tem atividades
especiais, delegando tarefas na própria residência, para que não haja desistências.
Lembranças e vestígios
46
funcionários de fora, ocasião em que foi construída a infraestrutura da “vila da Andrade”
(com hospital, casas de moradia, igrejas, clube, supermercado e escola), separada da
comunidade por uma guarita, chamada pelos quilombolas de “pau do guarda”, onde os
membros da comunidade não passavam sem dizer a que iam.
Cachoeira Porteira chegou a comportar mais de 3 mil pessoas em 1989, tendo até
representante na Câmara Municipal de Oriximiná. À época a comunidade quilombola fervia
com a presença de funcionários das empresas EngeRio, Eletronorte (acampamento
Pioneiro) e remanescentes da Andrade Gutierrez, que já iniciava sua saída da região. Pode-
se registrar, ainda, a presença de pessoas autônomas, que vinham das redondezas para
prestar serviços especializados.
7
A metodologia de ensino aplicada na escola “Vera Andrade” era a mesma da hoje utilizada pela escola
da Mineração Rio do Norte, em Porto Trombetas, ou seja, um convênio feito com o Colégio Pitágoras de Minas
Gerais.
47
Em 1994 iniciou-se êxodo populacional com a saída definitiva de algumas
empresas e de muitas pessoas e famílias que seguiram atrás de novas oportunidades de
emprego.
Avaliado pela comunidade, o ensino tem boa aceitação por 84% das famílias
entrevistadas. Aqueles que o incluem como regular representam 15%, condicionados não
aos métodos educacionais aplicados, mas à falta de continuidade dos estudos.
Elaboração: IDESP
Essa história se repete a cada nova turma que completa o 9º ano, exigindo que os
pais providenciem outro local para que haja continuidade nos estudos. Nesse sentido a falta
do Ensino Médio é um dos fatores de desagregação familiar. No universo pesquisado de 93
famílias, 63 indicaram a necessidade da elevação do ensino e 38 delas já têm seus filhos
estudando fora da comunidade.
A maior parte desses jovens segue para o município de Oriximiná e essa demanda
exige que um membro do casal se mude com os filhos. Como essa parte é delegada à
mulher, é comum encontrar casas com a presença somente do homem ou dos avós
assumindo a guarda dos netos que ainda estão no Ensino Fundamental, ou avós que se
mudaram para ficar com os netos, com o intuito de amenizar a situação de desagregação.
48
Gráfico 4 – Proporção de famílias que tem filhos estudando fora de Cachoeira Porteira – maio 2012.
Elaboração: IDESP
4.3.2 A Saúde
Recentemente, a menos de dois anos, o prédio do Posto de Saúde foi reformado. Sua
estrutura é a mesma deixada pelo acampamento Pioneiro e remontada pela prefeitura
na comunidade. Para uma localidade pequena seria o suficiente, se não fosse um local
abandonado, “só de enfeite”, como diz uma comunitária. Nele não há atendimento nem
medicamento. Esse é o motivo do quesito Saúde constar nas entrevistas com 93% de
desaprovação (ruim).
49
Gráfico 5 – Avaliação da Saúde em Cachoeira Porteira – maio 2012.
Elaboração: IDESP
A Cultura
O estudo antropológico constante na Parte II, traz informações mais elaboradas
sobre os aspectos sócio-culturais da Comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira. No
entanto, nas entrevistas realizadas de casa em casa o que se pode perceber é que no
cotidiano deste povo extrativista a coercitividade social se apresenta seja pelas razões
impostas em um passado de lutas por liberdade ou pelo anseio à demarcação da área
pretendida colocado no presente.
50
castanhal e depois para a roça, exceto nos casos em que as famílias têm crianças em idade
escolar.
Embora tenham sofrido influências em seu modo de vida nos últimos 30 anos com
a vinda de empresas e de pessoas de fora para executar megaprojetos, os quilombolas
mantêm laços familiares em outras comunidades ao longo do Alto Rio Trombetas.
51
No campo da arte, da transformação de fibras naturais, do uso de produtos não
madeireiros e industrializados foram encontradas 37 pessoas que trabalham com cipós
titica e ambé na construção de balaios, jamanxi e paneiros; 25 aprenderam a trabalhar com
material reciclável e fibras industrializadas; cinco fazem doces de frutos nativos; quatro
fazem redes e malhadeiras de pesca; e duas que sabem fazer canoas, muito procuradas
pelos índios.
Elaboração: IDESP
52
Gráfico 7 – Chefes de família – maio 2012
Elaboração: IDESP
Nº de Famílias
Membros Chefiada por Chefiada por
na família Mulheres Homens
1 3 10
2 2 13
3 5 13
4 2 13
5 1 7
6 11
7 1 4
mais de 8 1 7
Total 15 78
Total
Geral 93 famílias
Elaboração: IDESP.
53
Gráfico 9 – Distribuição populacional por gênero – Cachoeira Porteira – maio 2012.
Elaboração: IDESP
Gráfico 10 – Distribuição populacional por gênero e faixa etária – Cachoeira Porteira - maio 2012.
Elaboração: IDESP
54
Gráfico 11 - Pontos de Concentração populacional – Cachoeira Porteira – maio 2012.
Elaboração: IDESP
Como já havia sido mencionado no item 4.2.1, que trata da Educação, esse
decréssimo é motivado pela saída de jovens para outras localidades em busca de formação
em nível de Ensino Médio. Outro fator de decréscimo populacional nas faixas etárias que
compreendem a população adulta é a insegurança com relação a regularização fundiária da
terra.
Essa situação para as famílias quilombolas é aflitiva, uma vez que a população
jovem é a maior. São 185 pessoas na faixa que compreende dos 0 aos 19 anos, uma nova
geração que espera um futuro mais promissor (Gráfico 12).
55
Gráfico 12 - População Jovem – Faixa etária de 0 a 19 anos – Cachoeira Porteira – maio
2012
Elaboração: IDESP
A pesca é para a subsitência, uma vez que são proibidos pelo ICMBio a sua
comercialização. A venda de peixes é interna e muita vezes executada na base da troca por
outros suprimentos.
56
Gráfico 13 – Fontes de Reanda da população – Cachoeira Porteira – maio 2012.
Elaboração: IDESP
Além das dificuldades logísticas, existe o estorvo comercial praticado pela Rebio,
que coloca os quilombolas sob sujeições e restrições presentes em um termo de
compromisso celebrado em 2011, entre Associação dos Remanescentes de Quilombos do
Município de Oriximiná (ARQMO) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio). As cláusulas que o definem determinam as regras de uso para a
coleta e comercialização da castanha-do-brasil no interior da UC de Proteção Integral, e no
entorno, ou seja, inclui a Floresta Nacional de Saracá-Taquera e as Florestas Estaduais
(Flotas) do Trombetas e de Faro. Descreve ainda, de forma contundente, a proibição da
extração e/ou coleta com fins comerciais de outros produtos oriundo da floresta, seja este de
57
cunho madeireiro ou não madeireiro8 (açaí, óleo de copaíba, mel, etc.). As cláusulas ainda
se estendem a outras atividades econômicas, como a proibição da caça e restrições à
atividade pesqueira, autorizada somente para subsistência e respeitando os períodos de
defeso e/ou em extinção.
Fonte: IDESP
8 Produtos Florestais Não Madeireiros (PFNM) são aqueles derivados da floresta, exceto a madeira,
cuja definição engloba fibras, frutos, raízes, cascas, folhas, taninos, cogumelos, mel, plantas
medicinais, lenha e carvão, entre outros (Moçambique, 2008 apud IDESP, 2011).
58
A confecção de artesanato, mais que uma produção da cultura material local
assume um aspecto funcional. No período de coleta da castanha o paneiro, uma espécie de
cesto onde são acondicionados os ouriços, é um dos principais instrumentos de trabalho. A
matéria prima utilizada é o cipó-titica ou o cipó-ambé (oriundo da raiz de cor avermelhada de
uma espécie de tajá). Na verdade, há toda uma “ciência” em sua confecção para que o
paneiro não venha ferir a costas do quilombola. Isso implica na escolha do material, na
resistência da fibra e na habilidade do trançador. Os cipós são abundantes nas margens dos
rios e no interior das florestas.
Fonte: IDESP
59
FOTO 23 - Identificação dos artesanatos confeccionados da comunidade
quilombola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará,
2012.
Fonte: IDESP
60
QUADRO 15 - Espécies, usos e partes utilizadas dos produtos florestais não madeireiros (PFNM)
identificados na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do
Pará, em 2012.
Espécies Nome popular Uso Parte utilizada
Euterpe oleracea Mart. Açaí
Rollinia sp. Biribá
Mauritia flexuosa L. f. Buriti
Theobroma cacao (Mill.) Bernoulli Cacau
Anacardium giganteum W. Hancock ex Engl. Cajuaçu
(Myrciaria dubia H. B. K. (McVough) Camu-camu
Bertholletia excelsa Bonpl. Castanha-do-brasil
Poraqueiba paraensis Ducke Mari
Byrsonima crassifolia (L.) Kunth Muruci
Alimentício Fruto
Caryocar villosum (Aubl.) Pers. Piquiá
Bactris gasipaes Kunth Pupunha
Astrocaryum vulgare Mart. Tucumã
Astrocaryum tucuma G. Mey. Tucumã-do-amazonas
Endopleura uchi (Huber) Cuatrec. Uxi
Oenocarpus bataua Patáua
Oenocarpus bacaba Mart. Bacaba
Theobroma grandiflorum (Willd. Ex Spreng.)K.Schum. Cupuaçu
Spondias mombin L. Taperebá
Heteropsis flexuosa (Kunth) G.S. Bunting Cipó-titica Caule
Ischnosiphon obliquus (Rudge) Körn. Guarumã Fibra
Artesanato
Mauritia flexuosa L. f. Buriti Folha
Philodendron sp. Cipó-ambé Caule
Parahancornia amapa (Huber) Ducke Amapá Leite
Carapa guianensis Aubl. Andiroba Óleo
Medicinal
Copaifera sp . Copaíba Óleo
Coumarouna odorata Aubl. Cumarú Amêndoa
Sapindaceae¹ Timbó Caule
Utensílio
Protium heptaphyllum (Aubl.) Marchand Breu-branco Resina
1 - Família (nº da espécie)
Elaboração: IDESP
61
4.5.2 A atividade extrativista da castanha
62
mercadorias, já que a concorrência pelo preço obedece externamente o mercado de Bolsas
de valores.
63
QUADRO 2- Identificação dos castanhais utilizados pelos quilombolas da comunidade
quilimbola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará, em 2012.
DESCRIÇÃO DOS CASTANHAIS: "AS PONTAS"
NOME DOS CASTANHAIS ACESSO
Traval
Enseada
Taja
Cutraval
Pirarará
Calção
Fumaça
Gavião RIO TROMBETAS
Trezequeda
Cajuau
166 ("da 26")
Laje preta
Rio do Velho
Uanã
Munguba
Km 20
Km 23 Velho Carlos; Da beira da estrada; Suçuarana
Km 52
Lata; Taperebá; Limão; Água azul e Coltinho
(Igarapé do 52)
BR-163 (estrada) e
Km 60 Peréua: Água preta; Maranhão; Castanhalzinho; Apaga luz; RIO TROMBETAS
(Igarapé do 60 e Vai quem quer; Rui; Sorriso; Lago; São Domingos ; Acapú. 60:
Peréua) Viramundinho e Paraná Florenço
KM 72 Caxipacoré; Jatuarana e Caspacoro
Tauari
Serra do cachorro
Nicolau
Chapéu
Igarapé grande
Capoeira
Ambrósio
Felizberto RIO CACHORRO
Curupira
Bucu
Saúba
Jeju
Três buracos
Tamaquaré
Mungubal
Cachimbo RIO MAPUERA
Castanhalzinho
Elaboração: IDESP
64
Dos castanhais relacionados no quadro anterior, onze (em itálico) se encontram
dentro da área de pretensão, que juntas corresponderam a menos de 18% da produção de
castanha comercializada no período de safra determinado. Portanto, grande parte da
produção de castanha foi coletada em castanhais que ficam fora da área pretendida,
inclusive os castanhais mais produtivos: castanhais do Km 60, Ambrósio, Pirarara e
Fumaça. Vale ressaltar, que o castanhal do km 60 possui um aglomerado de 11 pontas
(castanhais) de coleta, sendo em sua maioria no interior da Rebio. A título de exemplo, em
safras anteriores este castanhal teve uma produtividade de 4.000 caixas, mais precisamente
1.600 hectolitros.
A organização do trabalho para a coleta é realizada por grupos de até quatro
pessoas, familiares ou não. Essa estratégia envolve a garantia de segurança diante do
tempo de permanência no interior da floresta e de diversos percalços para enfrentar as
dificuldades impostas na travessia das águas agitadas das cachoeiras e igarapés e de
outras barreiras naturais, a exemplo de terrenos acidentados ou animais silvestres.
As atividades se iniciam ainda no povoado com a aquisição de suprimentos e
combustível para as rabetas ou voadeiras e com o preparo dos meios de produção (facão,
paneiro, terçado, rede, entre outros). Cada grupo tem um piloto de canoas, o prancheiro, e
um proeiro que auxilia na retirada dos obstáculos (galhos presos, correnteza) no trajeto por
água.
Para a realização da coleta é necessária a construção ou reaproveitamento do
acampamento de coletas anteriores, erguido estrategicamente nas margens dos igarapés e
dos rios para centralizar produção, facilitar o escoamento e servir de moradia. Assim,
também há divisão dos trabalhos de caça, pesca e preparo da refeição.
A coleta dos ouriços caídos no chão se dá com auxílio do terçado ou bastão de
madeira com bifurcações na ponta. O transporte até o acampamento se faz em paneiros,
com capacidade de 40 a 120 ouriços (correspondendo de uma a três caixas-padrão,
respectivamente) carregados às costas, cujo tamanho varia de acordo com a força e a
possibilidade de cada quilombola. Saindo da mata, de volta ao acampamento, os ouriços
são abertos e as castanhas (sementes) selecionadas de acordo com a qualidade antes de
serem ensacadas.
65
Na comunidade há um total de três barracões de armazenamento de castanha,
cujos aspectos são bem parecidos: estruturas de madeira (tanto nas paredes quanto os
assoalhos), telhas de brasilit, com pequenas janelas que juntamente com as frestas
(espaço) entre as tábuas garantem a ventilação do produto, conforme a foto 24 a seguir.
Fonte: IDESP
66
FOTO 25 - Seleção da castanha em barracão de armazenamento - Cachoeira
Porteira - maio/2012
Fonte: IDESP
A comercialização e o preço
A última etapa é o escoamento aos centros de comercialização. As sacas de
castanha são transportadas por barcos com 114 HP e 113 HP de potência, com capacidade
de até 300 sacas. De modo geral, as sacas são acondicionadas no porão do barco, porém,
no período de safra da castanha é comum acondicionarem as sacas no local destinado aos
também passageiros.
67
Fonte: IDESP
Durante o trânsito pelo rio Trombetas, se a carga for apreendida pela falta dos
documentos exigíveis nos pontos de fiscalização do ICMBio, além de perder credibilidade
junto ao comprador final, o tempo de apreensão influenciará na qualidade final do produto,
por já ter sido coletado e armazenado há algum tempo.
Fonte: IDESP
68
De acordo com quilombolas extrativistas, quando os agentes mercantis que
aviavam eram pessoas de fora da comunidade, o preço pago por caixa era muito baixo. O
aumento do preço pago ao extrativista se deve principalmente ao fortalecimento
organizacional da comunidade, isto é, em função da criação da sua associação (2002) e,
também, a inserção de alguns quilombolas ao processo de comercialização do produto.
Na presente safra (2012), o preço pago por caixa ao extrativista, apesar das
variações positivas, decresceu e estagnou-se em R$ 28,00, equivalente a R$ 70,00 o
hectolitro ou ainda a R$ 1,27/Kg pelo produto. Considerando as informações de que
aproximadamente 100 castanheiros estão atuantes na safra/2012, a produtividade média
por coletor se encontrava em 100 caixas até o dia 31 de maio. Conforme o monitoramento
do preço pago por caixa, realizado por um dos agentes quilombolas desde 2010, a renda
média do coletor oscilou da seguinte forma:
Elaboração: IDESP
É importante frisar que a produção de 2012 tende a ser maior que a do ano
anterior, em que a produtividade dos castanhais foi baixa. Sendo assim, a renda média do
coletor, tende a ser maior do que o exposto, levando-se em consideração que a coleta 2012
só encerra ao final de junho e a comercialização em meados de agosto, como prevê o
presidente da Amocreq. No entanto, pouco mudará a renda média bruta orçada em 2012,
em função do preço médio pago ao coletor neste ano estar 26% menor do que o preço em
2011,conforme a tabela 16.
69
4.6 MAPEAMENTO AGROEXTRATIVISTA
70
secundária acompanha a estrada aberta e possui aproximadamente 30 km de comprimento.
Os quilombolas abrem suas roças à margem desta estrada.
A queima do material seco é feita pelos próprios “donos” das roças. O intervalo
preferido para o inicio da queima é das 12h às 14h, período que, segundo eles, “o sol está
mais quente e favorece uma boa queimada”. Apesar disso, é comum a realização de
coivaras nessas áreas antes do plantio. Sobre as demais práticas de controle de queimadas,
foi observado que 90% das famílias realizam aceiros e contra fogo.
Após o uso das roças anuais, as famílias deixam as áreas em descanso por um
período relativamente curto, de 01 a 02 anos, para posteriormente fazer uso novamente.
Esse fato pode explicar em parte, a presença de doenças em cultivos como a mandioca,
assim como a baixa produtividade das espécies cultivadas nas áreas constantemente
reutilizadas.
Embora exista uma área de floresta secundária destinada para o cultivo de espécies
alimentícias, as famílias preferem utilizar áreas próximas às residências. Segundo os
entrevistados, a falta de transporte para a retirada da produção, assim como o
deslocamento às áreas de uso comum, onde os solos ainda são pouco utilizados, são as
principais limitantes para a utilização dessas áreas. Além do mais, outro fator que
impossibilita maiores cuidados nas áreas de roças é que nos períodos de março a junho, as
71
roças praticamente ficam abandonadas, uma vez que toda a mão de obra quilombola foca
seus esforços para a coleta da castanha.
Principais cultivos
A mandioca (Manihot esculenta) é a principal espécie de subsistência cultivada pelas
famílias locais. As demais espécies anuais como milho, arroz e feijão, raramente são
plantadas. O motivo apresentado pelos comunitários é que eles não possuem conhecimento
sobre essas espécies, além do mais, o período de capina e, principalmente, da colheita
coincidem com a coleta da castanha, que é a principal atividade agroextrativista das famílias
quilombolas. Alguns depoimentos relatam que em vários casos essas culturas se perderam
devido à falta de mão de obra para a realização dos tratos culturais e colheita, em
decorrência da coleta de castanha.
Fonte: IDESP
72
mandioca, realizam-se duas limpezas, mas, ainda assim encontram-se roçados tomados por
ervas daninhas.
Fonte: IDESP
73
Tratos culturais e produtividade - A limpeza é uma tarefa indispensável nos plantios,
uma vez que reduz a competição entre o cultivo desejado e as ervas daninhas. No caso da
mandioca, realizam-se duas limpezas, mas, ainda assim encontram-se roçados tomados por
ervas daninhas.
Macaxeira
Também conhecida como mandioca mansa ou aipim, a macaxeira (Manihot
utilíssima Pohl) é bastante utilizada como alimento para a população local. Plantada
consorciada ou não com a mandioca, a macaxeira é a segunda planta mais cultivada nas
áreas de roça e recebe os mesmo tratos culturais destinados a mandioca. A macaxeira é
colhida de forma seletiva, ou seja, somente alguns “pés” são retirados por vez.
Frutíferas
As espécies perenes e semiperenes mais cultivadas nas áreas de roça são o
cupuaçu (Theobroma bicolor), banana (Musa spp), abacaxi (Ananas comosus L), cacau
(Theobroma grandiflorum) e cana de açúcar (Saccharum sp), com 82%, 64%, 45%, 18% e
74
18% de ocorrência, respectivamente. Dessas espécies, somente a banana é comercializada
na localidade, poucas vezes essa fruta é comercializada na feira de Porto Trombetas,
distante 8 horas de barco da comunidade. No período de produção, há produtores que
comercializam até 30 cachos por mês, sendo que cada cacho é vendido internamente no
valor de R$ 10,00.
Fonte: IDESP
Não são utilizados fertilizantes químicos nos plantios. Sobre a adubação orgânica,
várias famílias tiveram cursos que ensinaram como realizar o processo de elaboração desse
adubo, mas essa prática não foi adotada.
Pecuária
As poucas famílias que criam animais (9%) utilizam em média pouquíssimas cabeças
em função do tamanho da área (em média 3,75 cab/ha). O gado é utilizado nessas áreas é
mestiço e sua criação é feita de forma extensiva. Há casos em que as famílias não se
beneficiam em nada desses animais, tendo-os apenas como animais de estimação. O pasto
utilizado é o capim marandu (Brachiaria brizantha), que por ser pouco manejado e com o
número de cabeças inferior ao recomendado, é tomado por plantas competidoras.
Sistemas agroflorestais
Algumas poucas famílias participaram de um projeto para a implementação de
sistemas agroflorestais em roças recém-abertas. Nesses sistemas, juntamente com a
mandioca foram efetuados consórcios de abacaxi, cupuaçu, banana e outras espécies
frutíferas.
75
Quintais
Os quintais possuem aproximadamente ¼ de hectare e é onde ocorre a maior
diversidade de plantas medicinais, ornamentais, frutíferas e pequenos animais na
propriedade. Há residências em que as roças familiares são complementos desses quintais.
Fonte: IDESP
Plantas medicinais
Fonte: IDESP
76
Quadro 20. Frequência e uso de plantas medicinais encontradas nos quintais familiares de Cachoeira Porteira.
77
Indicado para tratamento de bronquite, afecções das vias biliares, febres, dores reumática e
Sangue de cristo (Fumaria sp) 11
prevenção da aterosclerose, afecções do fígado, hemorróidas
Saracura Mirá (ampelozizyphus amazonicus
Usado no tratamento de cansaço físico, sexual, insônia, nervosismo, falta de memória 44
ducke)
Combate a diarréia, hemorróida, dor no estômago, cólicas, garganta inflamada, tosse, fígado,
Saratudo (Byrsonima intermedia A. Juss.) corrimento, tumores no útero, pulmões, úlceras, gastrite, catapora, infecção intestinal, 11
diabetes, pedra nos rins, cólera, inflamações no útero e câncer
Sucuuba (Himatanthus sucuuba) Cicatrizante, câncer, fratura, gastrite, herpes, impigem, úlcera gástrica, verruga 11
Unha de gato (Uncaria tomentosa) Doenças reumáticas e musculares 22
A raiz é febrífuga, e combate a diarréia. Por ser energicamente abortiva. Externamente
Urubucaá (Aristolochia trilobata) 22
emprega-se a raiz, em pó, nas úlceras crônicas e nos lupos.
Usada contra ameba, asma, dermatoses, diabete, erisipela, febre, hemorróida, varizes e
Vassourinha (Borreria vertieillata) 11
vômito.
É diurética, carminativa, estomáquica, anti-emética, espasmolítica, antiiflamatória, antiofídica,
Vindicá (Alpinia zerumbet) 22
anti-histérica, vermífuga, no combate ao reumatismo e como tônico geral.
Chicória (Chicorium intybus) Atua na circulação 33
Elaboração: IDESP
78
Os demais componentes vegetais e animais encontrados nos quintais familiares dos
quintais são os seguintes:
Fonte: IDESP
Madeira - Cachoeira Porteira possui grande parte de seu território ainda com floresta
primária, apesar de ter sofrido muitas intervenções durante as últimas décadas. As madeiras
foram apontadas pelas famílias e em contato com quilombolas mais antigos, apenas as que
são de uso interno e medicinal, o que ainda é um pequeno número considerando a imensa
área de floresta que ainda possui pouca intervenção.
79
(Machaerium floridum), ipê (Tabebuia sp), louro (Ocotea sp), copaíba (Copaifera
langsdorffii), breu sucuuba (Trattinnickia cf. burseraefolia), maçaranduba (Manilkara
amazonica) , louro cheiroso (Aniba paraense), acapu (Vouacapoua americana), itauba
(Mezilaurus Itauba), morototó (Schefflera morototoni), sapucaia (Lecythis pisonis), angelim
(Hymenolobium petraeum), quariquara (Minquartia guianensis), aroeira (Myracrodruon
urundeuva), Cedro (Cedrela odorata), saracura (Amasonia campestris), carapanaúba
(Aspidosperma Nitidum), pau d´arco (Tabebuia serratifolia), tatapirica (Tapirira guianensis)
Sobre a pesca, os principais peixes utilizados para a alimentação das famílias locais
são: trairão, pescada, cujuba, tucunaré, pacu, acari, camunani, pirarucu, filhote, piranha,
aracu, peixe cachorro, curimatã, jaú. Há pescados que encontram-se durante todo o ano,
como o jaú, trairão e o camunani. Outros, entretanto, são encontrados em épocas
específicas (inverno e verão).
80
O pensar coletivo é preponderante nas discussões e na análise do ambiente
interno, não havendo uma prioridade específica no elenco de informações e solicitações -
tudo se faz urgente. Salvo a questão da titulação da terra, uma preocupação latente que
perpassa a todas as ponderações realizadas, os grupos assim descrevem a comunidade:
81
O QUE QUEREMOS?
Assistência médica Energia elétrica na comunidade: 24
Policiamento horas
82
O QUE TEMOS?
Transporte fluvial gratuito uma vez por Produção agrícola
mês Pequena padaria
Terra para trabalhar Presença de indígenas
Muitos peixes Cerâmicas quilombolas
Família unida; Valores Artesãos
Agente de endemias e um posto de Inúmeras minas de água potável
saúde que não funciona
Escola com ensino fundamental
Delegacia desativada
Energia termoelétrica durante 4
Pequenos comércios e alguns bares horas/dia
Uma rua que poucas comunidades têm Água gratuita encanada precariamente
- BR 163 com 58 km trafegáveis
Três igrejas (Católica, Evangélica e
Pontos turísticos com praias, Batista)
cachoeiras, igarapés, cavernas,
lajeiros Barracão comunitário em precárias
condições de uso
Campo de futebol
Pista de pouso de 870 metros
Floresta preservada em relação a
muitas outras Casa de força com motor de 114 hp,
com gerador de 80 kw/h
Riqueza biológica (flora e fauna)
Uma caminhonete l-200 (em
Associação – AMOCREQ manutenção)
Telefone público e residencial Um trator de pneu para escoamento da
precários produção agrícola e extrativista
Recursos do governo - bolsa família Coleta de lixo
QUAL A GESTÃO?
Órgãos federais (MMA, e outros; Fundação Palmares)
Apoio da comunidade
Democrática, com direitos constituídos por lei, direitos iguais
Prefeitura
AMOCREQ
Secretaria de saúde
Secretaria de educação – escola
Cooperativa (líderes comunitários)
83
Grupo de lideranças vinculado às áreas de desenvolvimento: saúde, educação, transporte,
agricultura, segurança, habitação, extrativismo, pecuária, comércio, indústria, artesanato, turismo,
etc.
84
Foto 36 e 37 - Análise do ambiente interno – Apresentação
Fonte: IDESP
85
As populações tradicionais em especial amazônicas como têm no meio ambiente a
fonte para manutenção da sua sobrevivência, da reprodução física e cultural, não procede
assim.
86
Trombetas, onde há castanhais com melhor acesso, cujo escoamento se dá até a
comunidade de Cachoeira Porteira.
Fonte: IDESP
Fonte: IDESP
87
Foto 40 - Acampamento de coleta de castanha - Jascuri abril 2012
Fonte: IDESP
Fonte: IDESP
88
Foto 42 - Caminho no Jascuri utilizado há séculos pelos coletores de castanha
quilombolas
Fonte: IDESP
89
5 REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA
Elaboração: IDESP
90
Os trabalhos de mapeamento da área de pretensão iniciaram a partir da visita dos
representantes de Cachoeira Porteira ao Núcleo de Cartografia do IDESP, para o estudo da
carta-imagem e da plotagem dos pontos de controle, voltados à elaboração do Memorial
Descritivo.
91
5.2 CONSTRUÇÃO DA CARTA-IMAGEM
Elaboração: IDESP
92
paredão com altura elevada. Outra formação é observada no sentido Norte/Sul que desenha
o rio do Velho até sua foz na margem direita do rio Trombetas, certamente outra falha
estrutural visível.
93
indicações em uma carta imagem por parte dos representantes da comunidade quando da
visita ao Idesp e ao Núcleo de Cartografia e Georreferenciamento.
94
Partindo desta “nascente” até encontrar outra “nascente” correlacionando com os
varadouros (trilhas de acessos pela cota topográfica mais alta);
E entre os cruzamentos das ruas com a variante demarcamos pontos aleatórios
como postes, caixa d’água, telefone público entre outros correlacionando com os
pontos de controle, que poderia ser uma outra foz, uma ilha, uma corredeira (comuns
no ambiente de campo) como balizador de que estavam navegando na drenagem
correta ou próximo da nascente sugerida.
Para tanto, foi confeccionado um mapa com um grid de coordenadas dividido em 05
segundos para latitude e longitude, alcançando desde o porto de Cachoeira Porteira até
1200m (aproximadamente), próximo a estrada para o aeroporto, identificando na base as
coordenadas geográficas destes pontos e acessos, complementando o mapa e o
treinamento das equipes.
95
REFERENCIAS
96
EMMI, Marília Ferreira. A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. Belém:
Centro de Filosofia e Ciências Humanas/Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos/UFPA, 1988. 196p. (Coleção Igarapé).
LIMA FILHO, d.a.; et al. Aspectos floristicos de 13 ha de Cachoeira Porteira – PA. Acta
Amazônica, Belém: [s.n.], Vol 34(3) 2004: 415 – 423.
REVILLA, J.; Lima Filho, D.A.; Amaral, I. L.; Matos, F.D.A. 1986. Estudos e levantamentos
do impacto ambiental da futura UHE de Cachoeira Porteira - PA. Relatório, [S.l.]:
ENGE-RIO/INPA. 73p.
97
SHERZER, Andréa Bernardelli Iamaguchi. Produção de castanha-do-brasil no território
sul do Amapá: comparação entre o retorno econômico e o salário mínimo.
2010, 45 f. Monografia (Especialização em Agronegócio) - Setor de Ciências
Agrárias, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.
98
6 ESTUDO ANTROPOLÓGICO: COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DE
CACHOEIRA PORTEIRA
Emmanuel de Almeida Farias Júnior9
Este estudo antropológico consiste num produto de trabalho de pesquisa que vem
sendo realizado na região do rio Trombetas, Baixo Amazonas, município de Oriximiná,
desde 2005, focalizando principalmente comunidades remanescentes de quilombo e suas
relações com os recursos naturais. Para a elaboração do texto a seguir apresentado foram
coligidos dados e informações coletadas durante trabalhos de campo realizados entre os
dias 29 de março a 13 de abril de 2012 e de 10 a 31 de maio de 2012.
9
Doutorando em Antropologia Social-PPGAS;UFAM. Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia; do Projeto Novas Cartografias Antropológicas da Amazônia-PNCAA/Centro de Estudos
do Trópico Úmido-CESTU/ Universidade do Estado do Amazonas-UEA.
10
Livre tradução do autor:
- Vocês já estiveram lá no Alto (referindo-se ao Alto Trombetas)!
- Sim, eu sou mucambeiro!
11
O termo comunidade será utilizado em seu sentido empírico, como os próprios quilombolas
se referem ao conjunto de seu território.
12
Entrevista: Ivanildo Carmo de Souza, 04 de abril de 2012, Cachoeira Porteira.
99
Para as lideranças quilombolas, que integravam o quadro de dirigentes da
AMOCREQ, este reconhecimento territorial era urgente. Suas terras estavam na eminência
de serem intrusadas por madeireiras. O medo dos quilombolas se concretiza com as
tentativas da empresa Cikel (Cikel Brasil Verde) de se apropriar de suas terras. Segundo o
Sr. Ivanildo Carmo de Sousa, pessoas a serviço de empresários do setor madeireiro eram
frequentemente enviadas para lhes oferecer compensações financeiras pelo uso dos
recursos naturais de seus territórios.
Quanto aos interesses dos quilombolas, à área pretendida pela empresa madeireira
incidia sobre terras tradicionalmente ocupadas pelas seguintes comunidades quilombolas:
Mae Cué, Sagrado. Tapagem, Abuí, Paraná do Abuí, organizadas na Associação
Quilombola Mãe Domingas, e Cachoeira Porteira, organizada na AMOCREQ.
100
Para o Sr. Ivanildo Carmo de Souza, era necessário naquele momento que as
famílias quilombolas (organizadas na AMOCREQ) se mobilizassem em torno de iniciativas
junto aos órgãos públicos para garantir suas terras tradicionalmente ocupadas.
Estes fatos, de acordo com o Sr. Ivanildo, se somaram às pressões sobre essas
terras exercidas por sojicultores. De acordo com Solange Gayoso, consultando-se as
transações de compra e venda de imóveis rurais em cartório de Santarém, constata-se que
a sojicultura entre 2002 e 2003 já estaria consolidada no Baixo Amazonas, mantendo
aquecido o mercado de terras (GAYOSO, 2012, p.25).
Então em dois mil e três veio um grupo de sojeiros trazer proposta: […]
“vocês tem a floresta nós temos dinheiro” […]. Queriam um continente de
área pra trabalhar com madeira e plantio de soja, […] ai reunimos: olha
se nós não formos a Belém antes, vai ser muito difícil depois porque a
terra é do Estado, eles vão entrar com processo no Estado, eles tem
advogados, eles tem facilidades de conseguir a terra e nós vamos ficar
numa situação muito difícil, nós temos que ir em Belém antes que seja
tarde (Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira) (g.m.).
101
Sr. Ivanildo, a primeira forma de organização formal, foi a criação de uma comissão para
tratar das questões mais prementes, composta por três representantes, no mesmo ano de
2002. Com a fundação da AMOCREQ, pretendeu-se buscar o reconhecimento jurídico de
questões étnicas e dos direitos territoriais.
13
Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 04 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira.
102
ser mais autônoma” (Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira) (g.m.).
14
Cf. o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, instituído pela Lei nº 9.985, de 18 de
julho de 2000. Art. 7 - inciso 1º: “O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a
natureza […]”.
103
intermediação” (idem). Universalizam demandas localizadas ao incorporarem direitos
constitucionais como o Art. 68 do ADCT. A ocorrência de conflitos localizados e a demanda
pelo reconhecimento formal do território e sua relação com outros grupos sociais,
comunidades e povos indígenas, expressam o campo de atuação da AMOCREQ.
15
Cf. Memoria de Reunião com lideranças indígenas e quilombolas sobre situação de
Cachoeira Porteira. Porto Trombetas-Mineração Rio do Norte/Oriximiná. 08 de novembro de 2011.
16
Frikel (1970), os Kaxuyana foram transferidos para Parque Tumucumaque em fevereiro de
1968. Todavia, os laços de parentesco permaneceram, podendo serem reatados com o retorno dos
Kaxuyanas.
104
Em 31 de julho de 2005, foi celebrado um Termo de Acordo entre lideranças
indígenas, quilombolas e a Defensoria Pública em Oriximiná. Este Termo de Acordo trata
especificamente dos limites territoriais entre indígenas e quilombolas.
Nós nunca perdemos o sonho de voltar para a terra onde éramos muitos
no tempo dos nossos ancestrais. E estávamos planejando nosso retorno
desde o ano de 2000. Foi um dia triste quando fomos transferidos. Era
20 de fevereiro de 1968. Neste dia a emoção era grande de abandonar
nossa terra natal. Então por isso nunca esquecemos e nunca
abandonamos o plano de um dia retornar.
105
No começo de 1998 uma família partiu da Missão já com plano de vir até
o rio Cachorro. Esta família se instalou na boca do rio Cachorro, na
margem esquerda do Trombetas, numa área de Quilombolas. Depois
outra família veio e se instalou no rio Cachorro, numa distância de 3km a
partir da boca deste rio (João do Valle, entrevista cedida a antropóloga
Denise Fajardo Grupioni, disponível em
<http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaxuyana>>, acessado dia 05
de abril de 2012) (g.m.).
Então, eu quero deixar bem claro que a FUNAI através dos estudos […],
uma pretensão muito rápida da FUNAI, foi tudo o culpado de chegar a
esse choque, devido ela se mostrar muito autoritária, não foi aquela
questão que o quilombola ele os indígenas quisessem criar um conflito,
mais a FUNAI, ela provocou essa situação, por que assim, nós
estávamos em harmonia, a gente pescava junto caçava junto […] de
repente a FUNAI chegou lá, assim, colocou tipo um muro, porque a
reunião dela foi pra separar os dois povos, nos vamos pretender isso
aqui, nós vamos fazer o estudo e vamos, uma vez que a gente comprove
território indígena, nós vamos reconhecer isso tudo pra índio e acabou,
então foi uma coisa muito seca, as colocações. Isso revoltou porque ela,
digamos, não sentou com índio pra chamar o índio e o quilombola pra ter
uma conversa, pra ver se tinha algum espaço, alguma negociação ela
não quis saber disso, ela apenas disse: “nós vamos fazer levantamento
histórico, vamos fazer tantas páginas desse levantamento de campo e
uma vez a gente vai determinar que é território indígena (Entrevista com
Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira).
106
Os quilombolas de Cachoeira Porteira consoante regras matrimoniais vigentes se
consideram “parentes” dos indígenas Kaxuyana. Mantém também relações matrimoniais
com indígenas da etnia Wai Wai. Segundo eles o contato com os Wai Wai é muito mais
recente, em contraposição ao contato com os Kaxuyana. Constata-se um mesmo tratamento
de ambas as partes, sob a designação “parente”. De acordo com o Sr. Valdemar, o contato
mais estreito ao longo dos anos com os Kaxuyana, antes deles serem transferidos,
Dona Ursulina fala da relação de parentesco e afinidade com que com seus
parentes Kaxuyanas,
Segundo Dona Esther Imeriki Kaxuyana [filha de Dona Ayananaru, ou Dona Maria]
(Entrevista com Esther Imeriki Kaxuya, dia 12 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira),
seus familiares moravam na cabeceira, onde sofreram bastante com uma doença
desconhecida, de acordo com sua narrativa. Ela arremata que ficaram poucos Kaxuyana.
Eles negociavam o produto do extrativismo em Óbidos. Dois Kaxuyana falavam português.
Foi então que os indígenas tiveram contato com o Sr. Sebastião Vieira, que andava com sua
mulher e seus filhos. Os “negros” falaram para os Kaxuyana que eles estavam fugindo dos
“brancos” (Dona Esther, 2012).
107
No começo, os Kaxuyana mantiveram relações de cooperação simples em
trabalhos na floresta e comerciais, trocavam cachorros com os quilombolas, os kaxuyana
sempre foram hábeis adestradores destes animais para a caça. Referindo-se ao contato
entre índios e quilombolas, a “troca de cachorros” foi registrada por Derby,
Werewere era casada, mas se envolveu com o negro Thiago Vieira e teve dois
filhos: o menino denominado Wotoimoyupüru (“cabeça de macaco” ou Milton) e a menina
Ayananaru (ou Maria). Quando seus parentes descobriram, a relação ficou tensa. Os
Kaxuyana foram para um lado e os negros ficaram no local. Werewere morreu por
consequência de doença e o Thiago Vieira ficou doido, os Kaxuyana acreditam que ele
tenha sido enfeitiçado.
Segundo Dona Esther, quem criou as crianças foi a avó por parte de pai. Mãe do
Cecilio Txur’wata Kaxuyana. Dona Esther explicou que os órfãos casavam com os filhos da
família que os criou. Dessa forma, Ayananaru (ou Maria), casou com o Sr. Cecilio e tiveram
Dona Esther Imeriki Kaxuyana e João Batista Tiriware Kaxuyana. O Wotoimoyupüru
(“cabeça de macaco” ou Milton), quando ficou rapaz, veio18 atrás dos parentes quilombolas
na Cachoeira Porteira, se mudando depois para a Tapagem, onde faleceu. O Sr. Milton era
um conhecido pajé no rio Trombetas.
18
cf. Frikel (1970), os Kaxuyana foram transferidos para Parque Tumucumaque em fevereiro de 1968
108
na foz do rio Cachorro, afluente da direita do primeiro, um núcleo composto de 20 indivíduos
habitando quatro casas e dez taperas” (idem, p. 117).
Subindo o rio Cachorro, afluente da margem direita do rio Trombetas, ele chega a
aldeia Kaxuyana, onde descreve a relação mantida com os quilombolas,
19
A Primeira edição foi publicada em 1930.
20
A primeira edição deste texto foi publicada em 1969.
109
fronteiras”, ressaltam justamente as características dinâmicas das fronteiras sociais, o que
faz com que os grupos étnicos reforcem suas posições identitárias.
Podemos sublinhar que tais cercas ou limites são linhas imaginárias traçadas
arbitrariamente, asseguradas por meios de portarias e decretos dos poderes executivos. No
entanto, é preciso disciplinar os corpos para que as cercas e limites sejam “preservados”. As
normas que disciplinam o espaço social passaram a disciplinar as famílias dentro do espaço
físico, como, por exemplo, a disposição das casas, da escola, do posto de saúde e a própria
relação entre as pessoas.
21
Cf. o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, instituído pela Lei nº 9.985,
de 18 de julho de 2000. Art. 7 - inciso 1º: “O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é
preservar a natureza […]”.
22
Cf. Foucault (1987) aponta que a disciplina possui diversas técnicas: 1) a cerca; 2) a
clausura (esta não é constante); 3) a regra das localizações funcionais; 4) os elementos são
intercambiáveis.
110
quilombolas da margem esquerda do rio Trombetas. Muitas famílias foram deslocadas
compulsoriamente, com requintes de violência, marcas do regime militar, como relata o Sr.
Francisco Adão dos Santos Neto, 75 anos,
23
O Instituto de Desenvolvimento Florestal Brasileiro-IBDF (vinculado ao Ministério da
Agricultura) foi criado pelo decreto lei nº 289, de 28 de fevereiro de 1967 e extinto pela Lei Nº 7.732,
de 14 de fevereiro de 1989. O IBDF foi substituído pela Secretaria Especial do Meio Ambiente-SEMA,
que existiu de 1973 a 1989. Em 1989 foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis-IBAMA, como prevê a Lei Nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989.
111
mataram uma sobrinha minha” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 12 de maio
de 2012, em Cachoeira Porteira).
112
“Saíram os “patrões”, entrou o IBDF”, como se diz, coagindo e intimidando os moradores, na
tentativa de persuadi-los a deixar a área.
Dez anos após a criação da REBIO, o governo federal cria outra unidade de
conservação, no rio Trombetas, e, como esta iria estar dentro da área de interesse para a
exploração de Bauxita pela MRN, não podia ser uma unidade de conservação de Proteção
Integral, criou-se assim a Floresta Nacional de Saracá-Taquera. Com a criação dessas
unidades de conservação, criou-se um grande problema para os quilombolas que ocupavam
essas áreas, muito antes das suas criações.
113
Desde a criação da REBIO do Trombetas, vários foram os conflitos. Em momentos
críticos de conflito percebemos com mais intensidade a busca da unidade do grupo em torno
da identidade étnica. Assim, “os negros do Trombetas, forjam a memória social e formulam
o jogo de associações entre hoje e ontem, encontram a força de liberdade e de sua etnia”
(ACEVEDO & CASTRO: 1998, pp. 28). Acionando, assim, os seus elementos constitutivos
como a reivindicação do quilombo como “mito de origem”, a posse histórica da terra e seu
modo de produção próprio.
foi chocante que foi criada a FLOTA e não teve um primeiro pensamento
da SEMA, que é o órgão representante, dizer não vamos tirar aqui
delimitar uma área de uso, de perambulação deles fora na FLOTA, não
teve isso, teve reuniões mais nós fomos de alguma forma inseridos
dentro da FLOTA e depois agora nós vamos dar pra vocês uma área que
se chama concessão do direito real de uso […] nós temos direito legal na
constituição de um território como propriedade definitiva e é isso que nós
queremos (Entrevista com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira ) (g.m.).
114
Passaram a ser afetados pelo dirigismo dos gestores ambientais, que tentaram regular as
atividades extrativistas e agrícolas.
115
pelos estudos realizados pela Funai para o reconhecimento da Terra Indígena Kaxuyana e
Tunayana e pela ausência de estudos semelhantes por parte do ITERPA.
116
acontece também de várias formas, ele passa a explicar essas formas simples de
cooperação por fatores primordiais, como o parentesco,
eu vejo que essa relação foi construída começando eu creio por laços de
sangue, um parentesco, por que assim que a família Vieira e os
indígenas kaxuyana tiveram essa aproximação ai aquilo foi afunilando a
ponto de uma indígena casar com quilombola, e ai foi tendo aquele
aumento desses dois povos, com quilombolas e um indígena kaxuyana
[…] alguns indígenas fizeram mudanças levando os quilombolas teve
quilombolas que ficaram aqui casados com indígenas, então isso ai
digamos assim ao longo o tempo ficou marcado como se fosse um
marco histórico pra hoje voltar a ser, quarenta anos depois […] então
aquilo ficou no laço de sangue e a consideração aumentou pelo nossos
antepassados tarem falando essa língua pra gente (Entrevista com
Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira ).
o uso múltiplo dos castanhais, eu acredito que foi por uma situação
mesmo de a gente já ter aquela experiência de trabalho ao longo dos
anos, […], os indígenas chegando dentro do rio cachorro de novo, e eles
pediram pra conhecer o espaço, por que até então eles estavam
perdidos nos castanhais, como conhecer os caminhos, dentro dessas
cachoeiras, então chegou aqui o próprio Mauro, o João do Vale e
pediram pra mim que disponibilizasse uns dois, três quilombolas pra dar
um apoio, pra tarem levando, foram tentar sair de motor, então quebrou
hélice do motor deles, por que não tinha o conhecimento do caminho e a
gente não queria ser desumano, a gente tentou atender o pedido deles,
e ai eu pedi pro Laú, eu pessoalmente levei algumas vezes, lá no
Santidade, por ter conhecimento do caminho (Entrevista com Ivanildo
Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de 2012,
em Cachoeira Porteira ).
117
Segundo o Sr. Ivanildo, o começo para os Kaxuyana foi muito difícil, “eles estavam
voltando sem nada, tinham pouca estrutura”. Na medida em que os Kaxuyana iam se
restabelecendo na Aldeia Santidade, os quilombolas de Cachoeira Porteira iam lhes
auxiliando e prestando solidariedade, além de bens materiais, como motor de popa, veículos
e hospedagens nas casas na comunidade, além de gêneros alimentícios. Para o Sr. Ivanildo
o apoio mais significativo foi lhes ensinar o potencial dos castanhais, pois assim, eles
poderiam obter recursos financeiros
118
de captura e destruição. Esses elementos transbordam na memória social. O passado faz
parte de uma reivindicação do presente.
Para efeito deste relatório utilizarei a autodefinição como elemento do presente dos
agentes sociais. A autodefinição tem sido o critério antropológico e jurídico utilizado para a
relação com povos e comunidades tradicionais. Fredrik Barth escreve que, o principal ponto
de partida teórico no estudo de grupos étnicos seria “o fato que grupos étnicos são
categorias atributivas e identificadora empregada pelos próprios atores” (BARTH, 2000, p.
27).
Barth (1961) analisa, por exemplo, a identidade Basseri no sul da Pérsia (conhecido
também como Irã). De acordo com o autor, a identidade Basseri está posta diante de uma
vasta rede de inter-relações de vários status. Essas relações com agentes externos aos
Basseri pode ser empresarial ou individual. A identidade se define em razão do outro, é na
interação que ela é socialmente construída.
119
As “politicas de identidade” são próprias de mobilizações étnicas. Hobsbawm as
define como grupos sociais que buscam uma etnicidade comum. Tais “politicas de
identidade” não são sinônimo de “autodeterminação nacional” escreve o autor. Segundo o
autor, esses movimentos étnicos alegam que “a identidade de grupo da pessoa consistia
numa característica existencial, supostamente primordial, imutável e portanto permanente,
partilhada com outros membros do grupo” (HOBSBAWM, 1995, p. 417). A leitura de
Hobsbawm é, sobretudo, uma leitura crítica desses movimentos. Os agentes sociais
individualmente explicitarão elementos primordiais, o antropólogo é que tem que ler de
forma não primordial.
Quanto aos espaços sociais designados como mocambos, eles se referem ainda
aos fornos de barro. Essas “ruínas” compõem uma série de elementos para o pertencimento
étnico. A partir das narrativas dos quilombolas durante os trabalhos de campo, o mocambo
ganha força enquanto mito de origem do grupo. Os mitos no sentido antropológico não são
meras historietas. São elaborações de situações míticas ou de acontecimentos às vezes
nem tão recuadas no passado do narrador.
O mito de origem compõe uma fala localizada que marca uma posição social dentro
da sociedade estudada. De acordo com Edmund Leach (1996), pode haver um ou mais
mitos de origem ou várias versões do mesmo mito. Segundo o autor, o mito de um povo não
120
é um todo coerente, depende da posição social que o narrador ocupa na sociedade. É
dessa forma que compreendo a dinâmica social de reivindicação de uma identidade étnica
enquanto quilombolas, narrada por aqueles que detêm a memória social das comunidades.
O quilombo nunca foi um lugar isolado, essa identidade tem sido forjada em relação
à sociedade envolvente e essas relações variam no tempo e no espaço. Podemos registar
relações de matrimônio e conflitos, como foi o caso da relação com os indígenas. Ou ainda,
relações militares e de trabalho, como força de trabalho e relações comerciais, como
registrou o Cónego Francisco Bernardino de Souza, “o tabaco é cultivado ainda em escala
menor que o café. A maior quantidade e a melhor qualidade que ali aparece no mercado, é
proveniente dos mocambos do rio Trombetas” (SOUZA, 1873, p.244) [sic].
121
A identidade enquanto remanescentes de quilombo é uma construção social
elaborada a partir dos vários contatos entre os negros e a sociedade envolvente: Agentes
coloniais, indígenas, regatões, patrões, empresas de mineração e agências governamentais.
A designação formal do agente colonial era mocambo. Esta designação tentava qualificar os
agentes sociais residentes nos mocambos enquanto “criminosos”. O contrário era a
designação quilombo.
Segundo Acevedo Marin e Castro, o termo mocambo, era utilizado no século XIX
por governadores e pelo policiamento, onde esta “denominação ficou impregnada de
qualificações negativas, lugar onde reuniam-se criminosos, desertores e preguiçosos, pela
sociedade escravista” (ACEVEDO MARIN E CASTRO, 1998, p. 28). O termo quilombo
enquanto “categoria histórica detém um significado de resistência e de auto-definição do
grupo diante da ordem escravista” (Idem).
122
Em 1976 foi anunciada a criação da Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO
Rio Trombetas. Em 1979 teve a sua efetiva implantação, ocasionando o deslocamento
compulsório de diversas comunidades quilombolas em toda a extensão da REBIO. Nesta
ocasião ignorou-se a particularidade das comunidades deslocadas e afetadas. Tal ação
governamental foi executada com requintes de violência, como lembra o Sr. Raimundo
Adão, 65 anos24.
Em 1988, com a Constituição Federal, ocorre no Brasil uma ruptura nos padrões
usuais de classificação. Os classificadores oficiais, ou aqueles com poder econômico para
classificar perderam suas forças. Embora não assumido, o termo preto passou a ser
positivado, assim como o termo negro e concomitantemente o termo quilombola.
24
Trabalho de campo realizado durante os dias 10 a 31 de maio de 2012. Entrevista cedida
no dia 12 de abril de 2012, Cachoeira Porteira. Entrevista cedida dia 31 de março de 2012.
123
na comunidade de Jauari, durante a realização do 2º Encontro de Raízes Negras é fundada
a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná-
ARQMO.
De acordo com Almeida (1994), se configurou uma nova estratégia dos movimentos
sociais com a designação dos agentes sociais a partir de critérios étnicos, não atrelada
necessariamente ao termo camponês. Tal fato traduz, segundo o autor, transformações
políticas destes agentes sociais face ao Estado. Neste contexto, estavam se organizando os
quilombolas do Baixo Amazonas, através dos chamados “encontros”, que para Almeida,
traduz “uma forma de luta superior ou um evento maior de universalização dos localismos”
(ALMEIDA, 1994, p. 26).
25
Comunidade quilombola da Tapagem, rio Trombetas, município de Oriximiná, 1991.
124
consenso circunstancial das demandas locais e evidenciam proposições comuns. Assim, “os
movimentos, através dos ‘encontros’, sugerem desaguar, todos eles, numa única e ideal
mesa de negociações” (ALMEIDA, 1994, p. 28).
Diante disso os quilombolas passaram a fazer uso do Art. 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988, que
garante “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
125
Os instrumentos jurídicos têm garantido o exercício de manifestações étnicas.
Diante das intrusões sofridas ao longo dos anos de suas “terras tradicionalmente ocupadas”,
os “negros do trombetas” passaram a politizar o termo quilombo. Este passou a fazer parte
das designações do dia-a-dia em reuniões, assembleias e encontros, como também
entidades jurídicas representativas.
26
Para a realização deste relatório foram realizados dois trabalhos de campo na comunidade
quilombola de Cachoeira Porteira: o primeiro foi de 30 de março a 13 de abril, o segundo foi entre os
dias 10 e 31 de maio, ambos no corrente ano. No entanto, realizei já havia realizado trabalho de
campo na comunidade quilombola de Moura no ano de 2004.
126
As análises apresentadas neste texto rompem com o formalismo jurídico colonial.
Observam-se na Amazônia, casos onde a identidade enquanto “remanescentes de
quilombo”, tem sido reforçada diante de situações de conflitos. Tais conflitos envolvem,
muitas vezes, os chamados “grandes projetos de desenvolvimento”, políticas ambientais
com a implantação de unidades de conservação, grandes fazendas de gado e monocultura.
Tavares Bastos (1866) viajou pela Amazônia na segunda metade do século XIX,
1863-64, (a fim de realizar um estudo sobre o comércio e navegação na “região”), nesta
viagem observa que os “mocambeiros” do rio Trombetas e afluentes vendiam seus produtos
agrícolas e extrativos para “regatões”, como também as escondidas no porto da cidade de
Óbidos.
27
Tais noções convergiam para a tentativa de aplicabilidade do referido Art. 68.
127
O debate em torno do reconhecimento territorial dos denominados “remanescentes
de quilombo” movimentou militantes, políticos e pesquisadores durante o debate da nova
constituição no ano de 1987.
128
Almeida (2002) propõe a ruptura com a noção arqueológica do conceito “quilombo”,
trata-se do rompimento com noções jurídico-formais elaboradas a partir da visão de
administradores coloniais e naturalizadas pelo discurso oficial, referente à mobilização da
força de trabalho escrava.
Além dos embates entre acadêmicos e juristas, tem-se outra posição de fala, que é
a noção estabelecida pelos movimentos sociais autodefinidos como quilombolas e negros
ou afrodescendentes. Podemos observar que estas designações não são de forma
nenhuma homogêneas e constituem-se em “unidades de mobilização” autônomas. Para
Leite, “os militantes procuram ver o conceito de quilombo como um elemento aglutinador,
capaz de expressar, de nortear aquelas pautas consideradas cruciais à mudança” (LEITE,
2000, p. 340).
129
mobilizam, recuperando e atualizando nomeações de épocas pretéritas, como quilombola,
calhambola e mocambeiro” (ibid.).
6.2.3 A Porteira
A que eles contavam pra gente, às vezes a gente tava sentado e eles
diziam, a meu filho nós já sofremos muito correndo ai, teve mãe que
28
Membro da família Vieira, neto da Dona Gertrudes Vieira dos Santos.
29
A alvará de 3 de março de 1741, determinando que todos os negros que forem achados
residindo voluntariamente em quilombo, sejam marcados num ombro com a letra F, e, se na ocasião
de os marcarem, se verificar que já estavam marcados, então se lhes corte uma orelha.
130
deixou até filho jogado pela beira com medo de morrer, é filhinho
pequeno, ia correndo e deixava acriança, aqui essa localidade era um
ponto com o apoio dos grandes pra matar os negros, aqui porteira é por
isso que tem esse apelido, que aqui era a porta que eles paravam aqui
só pra matar os negros (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos,
31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Tinha a nossa casa, tinha a do meu tio, do outro meu tio, mas outra da
minha prima… tinha muita casa, nós adomava tudo, muita criança, foi
um lugar bom para nós, tinha cada trairão, peixe-cana, camunani. […]
Viemos embora ai para essa Porteira... arriemos na Porteira. Meu pai
com minha mãe vieram me criar em outro lugar, na Nova Amizade. Eu
achei bom, porque ficava sacrificoso para o meu pai baixar com nós em
um casquinho nessa grande cachoeira, se alagasse morria tudo
(Entrevista com Ursulina Vieira do Carmo, 84 anos, 18 de maio de 2012,
em Oriximiná ) (g.m.).
Dona Ursulina lembra ainda o local em que seus familiares trabalhavam na coleta
da castanha, segundo ela, “era na Serra (se refere a Serra dos Vieiras no rio Cachorro).
Meus tios… quase toda a minha gente trabalhava lá na Serra, depois mudaram, cada um
trabalhou para outros lugares… pro Pirarara” (Entrevista com Ursulina Vieira do Carmo, 84
anos, 18 de maio de 2012, em Oriximiná ).
131
Para os quilombolas, como narra o Sr. Valdemar dos Santos, 77anos, este acidente
geográfico, a cachoeira limitava o acesso, “eles paravam aqui”, diz ele referindo-se as
expedições de captura e destruição dos mocambos.
30
Trabalho de campo realizado durante os dias 29 de março a 13 de abril de 2012. Entrevista cedida
no dia 31 de março de 2012, Cachoeira Porteira.
132
Se no passado este acidente geográfico era encarado como um recurso para a
proteção dos mocambos do alto Trombetas, atualmente é convertido em um fato histórico-
político pelos quilombolas. Tanto este, quanto os outros acidentes geográficos do alto rio,
das águas bravas, passaram a ser politizados e a integrar a fala do pertencimento étnico,
enquanto quilombolas.
133
e aspectos do comportamento dos quilombolas, definindo, por exemplo, a dança lundum
como imoral.
Para além dos relatos de viajantes naturalistas, seria possível elencar ainda as
crônicas de funcionários coloniais, missionários e aventureiros que passaram pelo rio
trombetas, estabelecendo contato com pessoas locais. Estes relatos assumem
características distintas dos relatos de naturalistas, que obedeciam a normas acadêmicas
sobre como proceder a descrição.
134
Podemos nos referir aqui, brevemente, às observações do Frei Carmelo Mazzarino,
sobre um “regatão” que alertou os quilombolas sobre sua chegada à Porteira, um
especulador de Óbidos e acostumado a negociar, ou antes furtar aqueles pobres pretos
fugidos do Trombetas” (APEP. Ofício do frei Carmello Mazzarino 15-01-1868 apud FUNES,
2000, p. 9). Tavares Bastos, também observa que os quilombolas do Trombetas negociam
“com os regatões que sobem o Trombetas, elles o fazem habitualmente” (BASTOS, 1866, p.
152) [sic] (g.m.).
Dessa forma, Ferreira Penna, se mostrava animado com a produção de cacau que
estava sempre crescendo. Segundo ele, “a producção tem sido sempre animadora e é raro
haver um anno, como o presente, em que a sua colheta tenha sido mesquinha” (PENNA,
1869, p. 19) [sic]. Ele observa ainda que o café e o tabaco são produzidos em escala
menores que o cacau. “A maior quantidade e a melhor qualidade que apparece no mercado
de óbidos, é proveniente dos mocambos do rio trombetas” (Idem) [sic].
135
O levantamento dos Registros de Terras nos municípios do interior do Estado do
Pará realizado pelo Engenheiro Civil João de Palma Muniz (1909), explicita os registros de
posse e seus declarantes. O Tomo Quinto refere-se aos municípios de Monte Alegre e
Óbidos (incluindo Oriximiná e Juruti). Os registros no rio Trombetas e Erepecuru referem-se
justamente as áreas tradicionais de exploração da castanha.
136
Segundo Acevedo Marin e Castro, “os mecanismos de integração forçada do
trabalhador do quilombo à sociedade foram de natureza econômica” (ACEVEDO MARIN &
CASTRO, 1998, p. 7). Segundo as autoras, a relação de patronagem não se estabeleceu de
forma homogênea entre os quilombolas. Sendo, Cachoeira porteira, como uma das
situações que intensificaram a relação com os comerciantes. A partir das entrevistas e
relatos dos quilombolas, podemos observar que a família Guerreiro possui certa relação
privilegiada no contato com os quilombolas, a partir do paternalismo, característico do tipo
de “dominação tradicional”.
A coleta da castanha era combinada com outas atividades extrativas, segundo o Sr.
Valdemar, eles trabalhavam também “com roça, com tiração de breu, madeira lavrado de
machado, cortava cada pauzão pra derrubar no machado, era aquele sofrimento doa pretos
velhos” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).
Segundo o Sr. Valdemar, o Sr. Cazuza Guerreiro, não foi o primeiro da família
Guerreiro a trabalhar no Rio Trombetas, ele se lembra do “Zé Gabriel Guerreiro, muitos não
pegaram essa época e contam diferente, nessa época era o Zé Gabriel pai do Cazuza
Guerreiro, ainda conheci esse homem, o trabalho dele, então todos os morenos trabalhavam
com ele” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ). A família Guerreiro registra diversas posses no rio Trombetas e
Cuminã.
137
dos contratos de concessão dos castanhais. Exercendo um rígido controle sobre a produção
dos castanhais arrendados e proibindo os “fregueses” ou “castanheiros” a negociarem com
outros comerciantes locais e os chamados “regatões”.
Até o final do Século XIX a produção nos castanhais do Trombetas era livre e
organizada pelos próprios quilombolas diante da demanda de compradores, os chamados
“regatões” e comerciantes de Óbidos e da pequena freguesia de Uruá-Tapera,
posteriormente, Oriximiná. Segundo conta os quilombolas, os “castanhais eram libertos”.
138
para a indústria extrativa. Ainda segundo Emmi, foi a partir de 1954, com a Lei nº 913, que
se generaliza no Pará o aforamento dos castanhais, como sua principal forma de aquisição.
Segundo Emmi, foi a partir de 1925 que se introduziu uma nova forma de controle
dos castanhais, “tratava-se do arrendamento, uma espécie de aluguel da terra por safra”
(EMMI, 2002, p. 4). Para a autora, essa forma de controle se generalizou em 1930,
constituindo uma forma de controle dos “castanheiros”, minando assim a extração de forma
livre, tornando-se assim áreas de disputa. Assim, os castanhais do Trombetas, também
passaram a se configurar como áreas concessórias de agentes externos, obrigando os
quilombolas a fidelidade quanto a venda da castanha.
31
A reportagem foi feita por Douglas Lima, texto de M. Dutra, sob o título “Uma triste história
de escravidão”, Folha do Norte, 03 de janeiro de 1981.
139
ai existia o patrão de caderno, ai comprava um açúcar, um café, ai tomava nota” (Entrevista
com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Tal divisão não era rígida, mas têm-se dois tipos distintos de dominação que se
materializam no dia-a-dia dos quilombolas, pelo menos durante a safra da castanha. A
Firma Machado, arrendava grandes áreas de castanhais, impedindo a realização do
trabalho livre de coleta da castanha pelos quilombolas. As áreas de castanhais abaixo da
Porteira, segundo o Sr. Raimundo, eram reivindicadas pela Firma Machado,
O livre acesso aos castanhais passou a ser regulado pelas relações “patrão-
cliente”. Somente os fregueses autorizados poderiam coletar castanha, o contrato era verbal
e “quando pegava o pessoal ai pelo castanhal tirando castanha, mandava levar pra prender
[…]. Eles consideravam o castanhal como deles, topava o caboco dizia que tava roubando e
mandava prender”(Entrevista com Raimundo Adão de Sousa, 65 anos, 31 de março de
2012, em Cachoeira Porteira ).
140
negociar as escondidas com regatões e atravessadores, a noite, longe dos olhos e ouvidos
da empresa extrativista.
É nesse contexto que pode ser definida a relação entre a Casa Porteira e os
quilombolas de Cachoeira Porteira. Se a Firma Machado mandava prender, os proprietários
da Casa Porteira mandava soltar. Bem como nos coloca o Sr. Raimundo, “Cazuza cansou
de mandar soltar peão”. Dessa forma foi se consolidando a relação “patrão-cliente”.
141
A dinâmica comercial de regatões e empresas extrativistas mostra-se enfraquecida
no final década de 70, mais especificamentre em 1979. Com a criação da Reserva Biológica
do Rio Trombetas.
Esse tempo foi encerrado pela forma mais brutal de exclusão social, que foi o
deslocamento compulsório (expulsão violenta) de dezenas de famílias quilombolas de suas
terras tradicionalmente ocupadas. Essas famílias deslocadas compulsoriamente passaram a
se estabelecer em outras comunidades quilombolas, como por exemplo, em Cachoeira
Porteira, que fica no limite da REBIO Rio Trombetas.
Essa estrada afetou diretamente os cursos d’água até próximo à cabeceira do rio
Trombetas, como também territórios históricos pertencentes aos quilombolas, como o
Igarapé do Campiche e a enseada do mocambo, a foz do rio Turunã, Igarapé Caxipacorpé,
entre outras referências históricas. Isto além de modificar completamente a área da Porteira.
142
Na Porteira, localizava-se, como vimos, a “vila” dos Vieiras. A designação vila é de certa
forma recente. Mas a ocupação é do século XIX. Era, contudo, conhecido como o lugar dos
Vieiras, a Porteira.
a Gutierrez chegou e primeira pessoa que eles procuraram fui eu, aqui,
porque eu tava aqui na presença deles, começamos a trabalhar nessa
praiona que tem ai, agente não sabia o que eles queriam daqui eles
entram com uma coisa que ninguém sabia que eles vieram fazer
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012,
em Cachoeira Porteira.).
Segundo as autoras, as sucessoras são Dona Cotoró, Dona Luiza Vieira. Dona
Cotoró, segundo Acevedo Marin e Castro, também teria nascido no Turuna e morado no
Campiche e era venerada pelos quilombolas, dançava o ganzá, o lundu e valsa. Faleceu em
1938, sendo enterrada no Campiche, onde estão enterrados os antigos quilombolas.
32
Tradução livre do autor: “Eu assisti as duas primeiras danças, um "lundum" e um "gamba", são
danças lascivas e provocantes, as poses plásticas dessas pobres mulheres negras, poses que vão até à
imoralidade” (COUDREAU, 1901 , p. 10).
143
objetivava com a construção da BR 163, o escoamento de grãos do Brasil Central no
sentido Hemisfério Norte. Sendo assim, o que explicaria uma ligação Cachoeira Porteira –
Perimetral Norte?
144
acreditava-se ser a região da Calha Norte um grande vazio populacional (RIBEIRO, 2005, p.
240). Os quilombolas de Cachoeira porteira, convertidos em trabalhadores braçais da
Andrade Gutierrez, executaram serviços variados, como: mateiros, cozinheiros, caçadores e
pescadores.
Segundo ele, na primeira vez vieram cerca de dez pessoas, incluindo o topografo.
Que fez os primeiros levantamentos para o arruamento e infraestrutura da company town.
“passou uns dias ai ele disse: 'nós vamos baixar agora […] num saia dai durante dez dias, a
gente lhe paga’. Com uns oito dias, lá vem um rebocador, com um balsa, com o maquinário
e a maioria do povo, ficamos admirados que nós ainda não tinha visto aquela arrumação”
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira
Porteira)
145
trabalho de campo realizado entre os dias 31 de março e 13 de abril, podemos verificar
mangueiras centenárias, segundo o Engenheiro Florestal que nos acompanhava.
A company town ficava paralela a BR 163, com certa distancia da estrada. Com o
passar dos anos, os quilombolas, foram das margens dos rios, da proteção da “cortina de
floresta” e se instalando às margens da rodovia, próximos das novas opções de trabalho
renumerado e da escola, enquanto os quilombolas podiam frequentá-la,
eles chegam aqui parece um coitadinho, mas são um leão, ninguém vai
saber quem é ele, é o que acontece, as empresas chegam aqui, olha
agora como está na mineração, quando eles chegaram era uma beleza,
hoje o povo se salta lá, tem que passar lá na triagem, vê quantas horas
você vai passar lá dentro, quantos dias, se tem um parente lá, tem que
pegar autorização, é dois, três, quatro dias, no dia certo se você passar
quatro dias, no quarto dia a segurança tá procurando lá na porta, se
fulano de tal já foi, se já saiu, se vai sair, é assim lá na mineração, o
negocio lá é assim (Entrevista com Raimundo Adão dos Santos, 65
anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
146
A vila da Andrade Gutierrez não se confunde com as unidades residenciais dos
quilombolas de Cachoeira Porteira, podemos citar o núcleo habitacional dos Vieiras,
organizado ainda no século XIX e as famílias que moravam nas proximidades.
Essa forma de cooperação simples foi largamente estudada por Cloves Caldeira
(1956), que compilou dados referentes a todas as regiões do Brasil, além de destacar as
influências africanas, indígenas e portuguesas. O autor analisa as relações que envolvem as
práticas de cooperação simples. Segundo o autor, tais práticas podem possuir as seguintes
características: pessoal ou coletivo.
Para a primeira situação, podem ser realizadas ajudas em situações como: casos
de morte, doença, partos, casamentos, batizados, acidentes de trabalho, sendo esses os
mais comuns.
147
obras de interesse geral, como construção ou conserto de estradas, limpeza de córregos de
serventia pública, ou em atos religiosos ou recreativos.
Nem há tão pouco uma ruptura com os padrões históricos de utilização dos
recursos naturais. Pensamos que, como afirmou Almeida (2006, p. 17), o tradicional
enquanto atrelado a fatos do presente redefinindo a própria história do grupo. No âmbito das
mobilizações, este saber tradicional pode, inclusive, ser convertido em reivindicação, como
tem se concretizado nas reivindicações da AMOCREQ.
148
Diante da realidade imposta pela Andrade Gutierrez e pela ENGE-RIO, ou seja, a
disponibilidade de recursos pela execução de trabalhos informais, como lavadeiras,
cozinheiras, mateiros e serviços gerais, os órgão do poder público não assimilaram essa
nova configuração. Na prática, os quilombolas passaram a executar uma pluralidade de
atividades, o extrativismo e as atividades agrícolas passaram a ser realizadas em conjunto
com os serviços disponíveis na Andrade Gutierrez.
33
Cf. Quem Somos-Histórico: Disponível em <http://www.mrn.com.br/>. Acessado dia 03 de maio de
2012.
149
setenta e seis, ficou desativada uma época, um ano e pouco, ficou só uma equipe de
conservação. Ai veio o projeto de tiração de cavaco, que era pau pra mineração” (Entrevista
com Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
150
Atraídos pela promessa de emprego também vieram trabalhadores de Oriximiná e
Óbidos, o que ocasionou grande impacto sobre o território quilombola. Segundo os dados
apresentados pela ENGE-RIO, 1985 a área tinha 1.740 pessoas. O que demonstra um
inchaço populacional. No entanto, após a paralisação total dos empreendimentos, os
trabalhadores que chegaram com as empresas se retiraram da região, ficando cerca de uma
dezena, pois já haviam constituído relações matrimoniais com mulheres das famílias
quilombolas. Segundo o Sr. Francisco Adão, o processo aconteceu da seguinte forma,
eles chegam, eles dizem assim: olhe a prioridade é pra empregar o povo
da região, ai é pra roçar, pra desmatar, depois de tudo estruturado, olha
vai ter uma redução, mandando o povo da região embora ai vão
contratando técnicos de mão de obra, aqui na região não tem, então ai o
povo já foi lesado pelo primeiro momento (Entrevista com Francisco
Adão Viana, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Segundo Ferreira (1993), a UHE Cachoeira Porteira foi inicialmente pensada para
atender a demanda por energia da Mineração Rio do Norte, para a produção de bauxita.
Segundo a ENGE-RIO, a UHE de Cachoeira Porteira teriam três etapas: a primeira etapa
seria na Cachoeira Viramundo (um pouco acima da Cachoeira Porteira), a segunda etapa
seria a implantação de uma casa de força no rio Mapuera e a terceira seria o potencial
decorrente da regularização a montante de Cachoeira Porteira pela implantação de novos
reservatórios nos rios Mapuera e Trombetas (ENGE-RIO, 1988 apud FERREIRA, 1993,
p.12).
Em oitenta e nove parou tudo, até que por fim eles desmontaram o
acampamento, o que eles puderam levar eles levaram, o que não
puderam deram pra prefeitura e ela deu um pouco pra gente, e assim foi
a Enge-Rio, e a Eletronorte também, teve um acampamento dela lá em
cima com o decorrer do tempo viram que não ia ter mais nada, ai
jogaram pra prefeitura, ai a prefeitura deu um bocado que muito material,
esses painel que o alojamento era feito de painel, deram pra muitas
comunidades ai pra baixo que tem esse material (Entrevista com
Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em
Cachoeira Porteira ).
151
A possibilidade de construção da UHE Cachoeira Porteira chamou a atenção da
sociedade civil e diversos movimentos sociais, que passaram a se manifestar contrários ao
projeto. Tais mobilizações exerceram fortes pressões populares, como a exercida pela
Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná-ARQMO, pelas
paróquias de Óbidos e Oriximiná.
152
Dona Ursulina. Existe a passagem de uma ponte, onde teríamos a casa da Dona Ursulina,
sogra do Sr. Raimundo Adão, mas adiante tem a casa de outra filha do Sr. Adão, enfim tem-
se a casa do Sr. Raimundo Adão.
As unidades residenciais seguem esse padrão parental, com raras exceções. Como
a casa da Sra. Adriane, filha do Sr. Dilton, que está construindo uma casa relativamente
distante do seu núcleo familiar. Dessa forma, o atual modelo de ocupação impõe certos
limites para a reprodução do padrão de residência. Pois limita o espaço para a construção
de casas às margens da estrada.
153
Mapa 4 – Aprovetamentos Hidrelétricos – Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental.
Elaboração: Emmanuel Jr
154
De acordo com o mapa da Empresa de Pesquisa Energética-EPE, 2007, os
estudos da bacia do rio Trombetas, indicam potenciais para a construção de quinze
empreendimentos hidrelétricos. Estes empreendimentos estão assim distribuídos: oito no rio
Trombetas, quatro no rio Cuminã/Erepecuru, um no rio Cachorro e dois no rio Mapuera.
Estes empreendimentos afetam diretamente territórios indígenas e quilombolas.
155
6.3 FUGA E PERSEGUIÇÃO AOS MOCAMBEIROS DO TROMBETAS
Essa presença colonial segundo Oliveira, “instaura uma nova relação da sociedade
com o território. Deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência
sociocultural” (OLIVEIRA, 1999, p. 20). Esses agentes sociais atualmente autodefinidos
quilombolas, foram objetos de políticas administrativas, o primeiro é a captura e conversão
em escravos, o segundo é a distribuição por propriedades privadas e obras públicas. A fuga
156
é a antítese dessas políticas, no entanto, parte delas. A síntese é o mocambo e as
expedições punitivas.
Vicente Vieira dos Santos, 75 anos: filho de Jesuíno Severo e Maria Vieira dos
Santos. Dona Maria Vieira dos Santos era filha de Sebastião Vieira dos Santos e Jovina
Vieira dos Santos (filha de um primo do Sr. Sebastião com uma indígena).
Valdemar dos Santos, 77 anos. Filho de Erpidio Cordeiro dos Santos e Joana Vieira
dos Santos. Dona Joana Vieira dos Santos era filha de Elzébio Viana e Gertrudes Vieira dos
Santos.
157
Este núcleo habitacional localizava-se próximo a ilha do cemitério, acima da
Porteira. Segundo seu Manoel Marco dos Santos, 50 anos (filho da Dona Giró), esta ilha era
o lugar de morada, as atividades agrícolas e extrativistas eram realizadas em lugares
distintos, a roça era na terra firme próxima a ilha e a coleta de castanha, esta é realizada no
mesmo ponto até hoje: Chapéu, no rio Cachorro e Fumaça no rio Trombetas.
O depoimento do Sr. Vicente, vai de encontro aos relatos de Tavares Bastos sobre
os mocambos do Trombetas e as negociações de tabaco no porto de Óbidos. Mesmo
correndo o risco de serem recapturados e inseridos novamente nas plantações ou fazendas
como força de trabalho escravo, “os negros cultivam a mandioca e o tabaco (o que eles
vendem passa pelo melhor); colhem a castanha, a salsaparrilha, etc. A’s vezes descem em
canoas e vêm ao proprio porto de Obidos, á noite, comerciar ás escondidas” (BASTOS,
1866, p. 152) [sic] (g.m.).
158
praga dos mocambos, que são com uma viva e permanente ameaça” (SOUZA, 1873, p.96).
Tavares Bastos, na sua viagem pelo vale do Amazonas, faz a seguinte observação em
Óbidos,
Inglês de Sousa (1968, primeira edição 1877) escrevia sob o pseudônimo de Luís
Dolzani, é considerado um dos pioneiros do naturalismo, escola literária baseada em
34
A primeira edição foi publicada em 1876.
35
Passo a transcrever a música:
“Esta vila já foi vila/Tamburú-pará/Tamburú-pará/Agora já é cidade/Tamburú-pará/Como não queres
que eu chore/Se de ti tenho saudade?/Tamburú-pará./Vamos dar a despedida/Cururú.........../Cu-rú-rú.../Como
deu o pass’ro carão/Cu-rú-rú/Bateu asas, foi se embora, Ai que dor de coração!/Cu-rúrú”.
159
descrições fiéis da realidade e experiência. Dessa forma, as relações sociais na cidade de
Óbidos passam a ser assim descrita. As pessoas eram descritas por suas propriedades,
tantos mil pés de cacau, gado, casa, escravos. Tenentes, políticos, fazendeiros e
cacaulistas, possuíam escravos.
Orville Derby (1989), ao narrar sua experiência de viagem, tenta também uma
mínima caracterização social do rio Trombetas, dos habitantes: indígenas e quilombolas. A
espacialização quilombola vai sendo desvelada por esses viajantes. Derby chega mesmo a
declarar certa simpatia pelos quilombolas, fazendo a seguinte observação: “commummente
representamse os quilombólas como uma classe perigosa de ladrões, violentos e
preguiçosos, e nós achamos o contrario quiétos, de bom coração e industriosos como o
resto da gente do Amazonas” (DERBY, 1989, p. 370) [sic].
160
dos mocambos. O Sr. Francisco relata dois momentos das perseguições aos mocambos do
alto trombetas, falando das expedições punitivas ele fala o seguinte:
foi o tempo que o pessoal vinham fazer candeia nos escravos, foi muito
antes da comissão de limites, ai foram subindo, até que quando chegou
o corre-corre (algumas pessoas se referem como pega-pega) que os
brancos queriam bota a candeia nas mãos dos pretos, ai eles correram
aqui o rio (Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 05
de abril de 2012, na Alzibeira ).
Na seguinte fala, ele trilha os espaços percorridos por sua família, a descida do alto
das cachoeiras até a Tapagem, e a subida novamente com a perseguição e combate aos
cabanos.
161
este último de autoria da O. Coudreau. Henri Coudreau morreu antes de concluir a
expedição ao rio Trombetas, suas memórias foram sistematizadas e publicadas por sua
esposa. De acordo com as anotações de Henri Coudreau, ele encontra no Trombetas o
velho Adão e seus filhos.
Segundo o seu Francisco Adão dos Santos Neto, o Adão que descreve o Coudreau
era seu parente e sua avó ainda lhe contou sobre a passagem dos viajantes pelo
Trombetas,
A madame é por que ela subiu esse rio pra fazer uma pesquisa, ela o
marido e mais duas pessoas, subiram e foram embora até que chegaram
lá justamente nesse ponto, a cachoeira é difícil lá ela joga água pra um
lado e pra outro, quando chegou lá em cabo rancho ela baixou, veio
baixando, no rio igarité, quando chegou aqui daqui pra baixo o marido
dela desceu, doeu a cabeça e quando chegou bem na boca do jacaré ele
morreu, ai avistaram aquela luz, justamente era a lamparina que nosso
avô fazia com oito morrão, ai colocavam aquela banha, de pirarucu,
alguma coisa pra acender e manter aquele fogo aceso, e ela avisou
chorando foram pra lá chegaram lá prestaram atenção era eles, tava
morto já na canoa, lá pediram apoio e foram enterrar, já quase no nosso
terreiro, ai com sete anos ela veio buscar os ossos dele, por que ela teve
lá nesse lugar, mais quem morreu foi o marido dela é onde ela parou
passou uma noite e o pessoal viram e colocaram Paraná da Madame
(Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 01 de abril de 2012,
Cachoeira Porteira).
162
lugar designados como um dos primeiros mocambos do Trombetas. Segundo ela, “c’est à la
cachoeira do Mina que les Mucambeiros avaient fait leur première installation aussitòt après
leur fuite. Le Mucambo était situé rive gauche près d’un igarapé et s’appelait Maravilha”
(COUDREAU, 1900, p. 67)36.
36
Tradução livre do autor: “Foi na cachoeira do Mina que os mocambeiros fizeram sua
primeira instalação imediatamente após a fuga. O mocambo estava localizado na margem esquerda
do igarapé chamado maravilha“ (COUDREAU, 1900, p. 67).
37
Tradução livre do autor: Os mocambeiros fizeram sua primeira instalação na cachoeira do
Viramundo, na margem direita do Trombetas. Não considerando-a segura, foram para a cahoeira do
Mina à Maravilha, onde os velhos mestres vieram reviver. Com a notícia da aproximação dos
brancos, eles queimaram seu mocambo do Maravilha e fugiram até o Turuna (COUDREAU, 1900, p.
130).
163
as moléstias dizimaram horrivelmente os mucambeiros, que de mais de
mil estão reduzidos a poucas dúzias de indivíduos; da actual geração,
muitos exercem o officio de “cachoeiristas”, sendo elles quasi
indispensáveis para uma viagem em qualquer um dos affluentes
encachoeirados do Trombetas. Ha entre elles homens fortes e sadios
que gozam d'essa perfeita immunidade contra o paludismo, que ás
vezes se observa na raça africana (DUCKE, 1910, p. 159-160) [sic]
(g.m.).
O Sr. Valdemar dos Santos, narra sua história e a história de sua família a partir do
alto rio Trombetas. A construção das narrativas tenta seguir uma lógica de ocupação
territorial, do alto para o baixo rio, para as “águas mansas”. As narrativas coligidas tentam
focar a histórias de seus núcleos familiares. Dos espaços sociais de morada e trabalho.
Para o seu Valdemar o outro motiva a desconfiança, a proteção era ficar na “moita”,
observar o outro desconfiado no “seu canto”,
Manter-se escondidos nas matas, rios, igarapés e lagos era para os quilombolas
uma estratégia de sobrevivência, já que sua cor os denunciava a primeira vista. O cronista
Gastão Cruls, relata que
num desses lances, acontece vir de descida uma canoinha. Mal seus
tripulantes nos vêem, recolhem-se rápido a uma das margens, cuja
ramaria os acoita […]. São, sem dúvida, pretos dos que habitam por
aqui, remanescentes dos antigos mocambos e, até hoje, ainda
desconfiados e temerosos (CRULS, 1973, p. 7).
Se morava uns dois, três, aqui na beira do rio... a gente morava por aqui
pelo igarapé, tinham vergonha, dessas coisas assim, então viviam a
maior parte amoitado, então é isso que convém pra informação de varias
164
pessoas, que não existia gente aqui, mais não, aqui era assim, morava
aqui vamos dizer, no Curuá era o foco dos negros, aqui logo em cima,
então depois eles baixaram e chegaram e ai ficaram, um mora ali, outro
mora pra aculá cercando a área, e é isso, então é mais assim como eu
lhe digo, amoitado (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de
março de 2012, em Cachoeira Porteira).
Continua o entrevistado,
Turuna, Campiche, Rio da Festa, Curuá, entre outros compõem o território histórico
referido aos quilombolas de Cachoeira Porteira. Este território está diretamente vinculado a
busca pela liberdade e autonomia dos quilombolas. Autonomia essa reconhecida por
autoridades coloniais, missionários e viajantes naturalistas. A guerra contra os mocambos
do Trombetas, era o combate pelas forças coloniais contra o conquista de autonomia, seja
territorial, seja econômica.
38
Sua pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 1966-1988. Este texto foi preparado
para a Huxley Memorial Medal and Lecture, 2008.
165
passaram necessariamente por este processo de sociabilização, que envolveu seja os
outros negros e negras fugidos, como também os povos indígenas da região.
A “situação colonial” para Oliveira (1999, p. 21-22), ocasionou o que ele designou
de “processos de territorialização”. Em outros termos, esses “processos de territorialização”
correspondem a coletividades organizadas, que passam a formular identidades próprias
com mecanismos de decisão e representação, passando também a reestruturar as formas
culturais. Sendo, portanto um processo reorganização social.
166
capoeira, fornos e cerâmicas usadas pelos quilombolas, referem-se, também, a locais de
nascimento.
Como observou Alonso (2004), as tropas militares não foram às únicas estratégias
utilizadas pelo governo colonial para a reintrodução dos quilombolas no sistema colonial. O
governador Joaquim Raimundo de Lamare estabelece acordos com os missionários
franciscanos para que estes lhes oferecessem informações sobre os quilombos do
Trombetas. Assim, foi enviado o frei Carmelo Mazzarino, em 1868, na sua viagem aos
quilombos do Trombetas, especificamente no Campiche,
Segundo Funes, esses nomes são marcas. “No caminho para as “águas bravas” as
marcas dos mocambeiros foram ficando ao longo das margens do rio Trombetas, nos
nomes dados às cachoeiras, às ilhas, aos lagos e igarapés” (FUNES, 2004, p. 6). Assim, os
quilombolas batizaram a primeira cachoeira de Porteira, a “marca do início de um espaço
onde apenas seus donos podiam entrar, mocambeiros e nativos da região” (idem, p. 7).
167
Contudo, com territórios consolidados, os quilombolas estavam dispostos a
defendê-lo. Como descreveu Barbosa Rodrigues, ao chegar na Porteira, “por ella descia
uma canoa tripolada por mocambistas, que ouvindo alguns tiros, que davam meus
companheiros na cachoeira, vinham saber o que significava, como senhores do rio vinham
ver quem ousava transpor os seus domínios" (RODRIGUES, 1875, p. 23-24 apud FUNES,
2004, p. 7).
Segundo José Luis Ruiz-Peinado Alonso, no texto com o subtítulo “Cimarrones del
Trombetas”, entre 1800 e 1877, houveram vários ataques do governo colonial aos
quilombos do Trombetas. Eram “expediciones ele castigo, organizadas por plantadores y
tropas coloniales” (ALONSO, 1996, p. 61). A partir da cronologia abaixo, compilada por
Alonzo, podemos perceber como se movimentou o Estado Colonial, a fim de perseguir e
capturar os quilombos. Tais atos administrativos ocasionaram o espraiamento territorial,
ocasionando processos diferenciados de territorialização (Cf. anexo 5).
168
segredo ante os estranhos” (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 2001, p. 49). Objetivavam viver
no “rio manso”.
Como observou Acevedo Marin e Castro, a qual constatou varias direções e fluxos
na descida do alto das cachoeiras, “o primeiro deslocamento seguiu a foz do rio Cachorro e
Mapuera; o segundo, orientou-se para uma área que tem como referência Cachoeira
Porteira e o terceiro, para as terras no médio Trombetas” (ACEVEDO MARIN & CASTRO,
2002, p. 50).
Assim, somos levados ao tempo que os mais velhos faziam utensílios domésticos
de barro, como a bilha, o alguidar, a igaçaba, o pote, o prato. Como falou o Sr. Francisco,
tudo era de barro. Como analisa Pereira Jr. (2009), alguns objetos têm funções rituais, além
das suas funções domésticas. O alguidar pode ser usado para a preparação de banhos de
santos. Na cozinha ele é utilizado para temperar e guardar a comida. Segundo Pereira Jr., o
alguidar “é usado nos ritos das casas de religião de matriz africana” (PEREIRA JR., 2009,
28).
As ruídas dos chamados mocambos têm estado no imaginário local, como um lugar
de liberdade e autonomia. Como colocou o Sr, Francisco, ela está lá! “Tem muralha de forno
169
que foi muito queimado” (Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 01 de
abril de 2012, em Cachoeira Porteira ). Os quilombolas como elemento identitário e
territorial, procedem a verbalização dos artefatos arqueológicos, classificando-os
empiricamente.
A partir das informações dos próprios quilombolas, foi possível coligir uma série de
lugares de referência para os agentes sociais. Tais referem-se a atividades extrativistas,
como também a sítios históricos e locais de pesca e caça.
170
chamados “regatões” ou por empresas extrativistas que se instalaram no local, como a Casa
Porteira. A partir da implantação da REBIO Rio Trombetas, em 1979, da pressão exercida
sobre os chamados “regatões” pelo IBAMA e a decadência das empresas extrativistas, os
quilombolas vêm construindo alternativas para o escoamento da produção.
nessa fase de setenta era muito marreteiro que tinha ai, atravessadores,
ai o que acontecia, eles ganhavam nossa castanha em três artes: no
tamanho de caixa, no preço e na mercadoria ai quando era no fim do
mês, do ano, chamava pro quilombola de preguiçoso. Às vezes caixa
que era quarenta e dois litros, media cinquenta e pouco, sessenta litros,
o negro não sabia, ai comprava dez caixas, eles tavam com quinze, vinte
caixas que eles faziam, roubavam todo o suor do preto (Entrevista com
Raimundo Adão de Souza, 65 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).
De acordo com o Sr. Vicente, aas áreas das chamadas “roças” estavam separadas
das áreas de extrativismo,
171
até agora eu ainda tô andando por lá […] no mesmo castanhal no que eu
comecei a trabalhar com o papai... continuo trabalhando lá até hoje, vou
todo ano trabalhar, eu acho que eu só vou parar de trabalhar quando...
(Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ).
Antes, as relações que eram controladas por agentes externos, hoje estão nas
mãos dos próprios quilombolas. Surge assim um sistema de aviamento distinto do que era
exercido antes. A dívida perdeu sua força, como forma de imobilização da força de trabalho
do castanheiro. Contudo, organizou-se um sistema complexo dentro de uma rede de
parentesco.
172
e essas coisas, se organizando até que no momento tá chegando nesse ponto nos dias de
hoje”. Referindo-se a melhora no preço de venda da castanha.
173
Os Pontos de Castanha, o assoalho é feito de paxíuba, podendo ser coberto com
três tipos de palha: ubim, caranã ou palha branca. Os instrumentos de trabalho são: garfo
(estrutura de madeira para juntar o ouriço do chão), paneiro e “terçado”. Dependendo da
superfície do terreno o corte do ouriço pode ser realizado próximo do ponto ou não. No
entanto, a localização do ponto é geralmente próxima da margem do rio, facilitando o
embarque.
De toda forma, o corte do ouriço não exige somente força física, atuam em conjunto
com a força, técnicas corporais adstritas ao que se convencionou chamar de conhecimentos
tradicionais. Este conhecimento tradicional auxilia o corte, o tornando mais produtivo e
eficaz. Tais técnicas corporais não são movimentos aleatórios, são conhecimentos
impingidos culturalmente. Toda técnica exige um aprendizado, que se impõe culturalmente
aos indivíduos, já que cada sociedade tem hábitos que lhe é peculiar. Tais conhecimentos
tradicionais sobre as habilidades do corpo assumem certa relevância nesse processo social
de coleta da castanha.
De fato, as técnicas corporais são fenômenos sociais. Há uma técnica corporal para
cortar o cipó, para descascar, para cortá-lo em tiras, para limpar, para secar, para começar
o teçume, para confeccionar a parte inferior, para montar as estruturas, para fazer a beira,
174
para fazer o acabamento. A confecção do paneiro abrange distintas técnicas corporais. Esse
conhecimento tradicional se associa a utilização dos recursos naturais e ao conhecimento
aguçado do território. Muito útil no caso do paneiro de cipó ambé, é saber que o cipó de
igapó pode causar coceiras, diferente do cipó de terra firme.
Os pontos de castanha são passados de pais para filhos, existem pontos, como o
Pirarara (castanhal dos mocambeiros que moravam no Campiche), o Ambrosio, a Serra dos
Vieira, Cutraval, Tajá, Rio do Velho, Caxipacoré, Zé Vieira, Velho Carlos, Traval, Enseada,
Curupira, Ambrósio, Capoeira, Jeju, Paraná do Florêncio, Nicolau, Chapéu, Mungubal,
Castanhalzinho e Cachimbo, que remetem a cinco ou seis gerações de quilombolas. Os
quilombolas sabem a potencialidade de cada castanhal, tem castanhais que chegam a
produzir cerca de 400 caixas, 800 caixas, ou os mais produtivos com 4.000 caixas.
175
As áreas de uso comum são representadas como prioritárias para a reprodução
física, social e cultural dos quilombolas. Contudo, segundo eles, o sistema de uso comum é
atribuído aos mais velhos, como “coisa dos antigos”. A designação dos castanhais está
diretamente ligada ao estabelecimento dos Pontos de Castanha e não a apropriação privada
do castanhal. Esse sistema pode ser explicado da seguinte forma,
Para o acesso aos pontos de castanha dentro de igarapés, depende do fluxo das
águas. No “pico” da cheia dos rios, as canoas sobem próximo as cabeceiras, facilitando o
escoamento da castanha. Caso a cheia não seja grande, terá que ser adotada uma outra
estratégia, como construir o Ponto de Castanha próximo da água.
176
Domingos e Acapu), Igarapé do 52 (Lata, Taperebá, Limão, Água Azul e Coitinho), Tauari,
Km 23: Suçuarana, Km 20, Traval, Enseada, Cumaru.
Tais formas de controle tem gerado uma série de tensões, com a apreensão da
produção de castanha de quilombolas não cadastrados como vendedores, o prazo para
entrar e sair dos castanhais no interior das referidas unidades de conservação.
177
transporte da castanha pelo rio Trombetas. Restringindo direitos básicos, assegurados pela
Constituição Federa de 1988.
178
a indicação a um Ponto de Castanha. O castanhal como um bem, é coletivo. É um recurso
natural de uso comum.
Segundo o Sr. Raimundo Vieira, sua família trabalha nos castanhais “ai pra cima,
pro Ambrósio, o Felisberto, Curupira, no rio Cachorro, começava desde ai de baixo, Serra, ai
vai pro Chapéu, a Capoeira, Buçun, Saúva, Cachorro, agora tem o “Rio Grande” (rio
Trombetas) começa aqui de baixo, o Traval, vai até o Sessenta” (Entrevista com Raimundo
Vieira da Costa, 68 anos, 14 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ). Procedendo a uma
digressão sobre o passado, recorda que as chamadas “roças” eram distantes dos
castanhais. Sobre a Porteira ele lembra que “a roça ficava perto de casa, esses capoeirão,
tudo era nossa roça, aqui pra traz […] foi lá naquelas mangueiras que eu nasci” (Entrevista
com Raimundo Vieira da Costa, 68 anos, 14 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Faz assim: se você planta este ano aqui, você coleta a mandioca,
quando for no outro ano você deixa passar dois três anos pra você voltar
pra cá de novo, que dê de roçar, é assim que a gente trabalha, não é
todo ano só num local não.
Tem muitos que plantam, o arroz, o milho, nós mesmo é só a mandioca,
banana, às vezes macaxeira.
Ano retrasado nós fizemos, tem vezes que você colhe negócio de dez,
vinte sacos, só pro consumo, você faz, coloca ai e vai comendo.
Às vezes chega um vizinho que não tem. Este ano os meus irmão estão
sem roça, eu vou ter que dar da minha pra ele, quando um não tem, o
outro dá.
Um roçado de dois hectares, pra você trabalhar, você não dá conta, só
duas pessoas não dão conta, você vai ter que pegar pelo menos umas
cinco ou seis pessoas, pra ajudar no negócio da capina, pra poder você
ter mais um lucro, só duas pessoas pra você trabalhar nisso ai, você não
vai ter lucro, por que o mato vai crescer, pra você trabalhar pra nós pra
cá, você tem trabalhar na mata, por que na capoeira você não dá conta,
você roça hoje, você queima ai se você passar três dias sem meter a
planta lá, quando você chegar lá já está verde de capim, às vezes antes
da planta nascer. Você tem que trabalhar na mata, você passa dois três
meses sem capinar, é a vantagem que tem pra nós pra cá, que na mata.
a gente troca, mais a gente troca […] uns dias, ai eu trabalho dois dias lá
pra ele, ou um dia, ai ele vai lá e me ajuda, mais que a gente trabalha
179
aqui é assim (Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira).
Fogo
Plantio
Capina
Elaboração: Emmanuel Jr.
180
Quadro 5 - Calendário Agrícola-Colheita
Calendário Agrícola-Colheita
J F M A M J J A S O N D
an ev ar br ai un ul go et ut ov ez
Mandioca
Macaxeira
Banana
Melancia
Jerimun
Cana-de-açúcar
Milho
Feijão
Elaboração: Emmanuel Jr.
Quando o castanheiro vai para o castanhal, caso passe mais de um mês, sua
família é responsável pela capina e zelo das chamadas “roças”. Caso contrário, elas são
tomadas pelo chamado “mato”. Caso o chefe de família e a sua esposa pratiquem a coleta
da castanha, não tendo ninguém para cuida da “roça”, inevitavelmente esta ficará coberta
por “mato”.
181
No inverno é a atividade de coleta da castanha que orientam os rituais de coesão
social e as festividades religiosas. Como a festa dos castanheiros, que acontece
conjuntamente a festividade de Nossa Senhora de Fátima.
182
Quadro 6 - Calendário Extrativista
Calendário Extrativista
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Castanha
Açaí Jussara
Açaí de Toicera
Piquiá
Bacaba
Patauá
Buriti
Breu
Copaíba
Elaboração: Emmanuel Jr.
As aves são consumidas o ano todo, pois além do consumo da carne, são extraídos
óleos, utilizados tanto no preparo de alimento, quanto em praticas de medicinais. É oportuno
notar que algumas prescrições acompanham o consumo de carne de caça. De acordo com
o Sr. Raimundo, “se o cachorro caça, ai não é todas as mulheres grávidas que podem
comer, porque o cachorro fica panema, e ai vai ter que fazer banho pra dar nos cachorros, ai
a mulher termina perdendo o bebê” (Entrevista com Raimundo Vieira da Costa, 68 anos, 14
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
A crença a panema pode atingir animais, objetos e pessoas. A sua existência está
ligada a existência de benzedores, ou autoridades religiosas habilitadas ao preparo de
banhos. Segundo Galvão, a “panema, é, porém, um mana negativo. Não empresta força ou
poder extraordinário; ao contrário, incapacita o objeto de sua ação” (GALVÃO, 1955, p.111).
Segundo o autor, seu significado está associado à “má sorte”, “desgraça” e “infelicidade”.
Trata-se de incapacidade de ação, podendo reconhecer as causas.
183
A panema, segundo Galvão, resulta da quebra de prescrições e podem ser tratadas
com simples banhos e defumações, outras são mais “venenosas”, como as que envolvem
mulheres grávidas e o consumo de carnes de caça e peixes, ou ainda mulheres
menstruadas. Para o autor, “não é tanto pelo medo dos efeitos da panema em si mesma,
como pelas consequências do tratamento para afastar a panema. Acredita-se que a cura
fará mal a mulher. Um aborto é o resultado mais provável” (GALVÃO, 1955, p. 113).
Calendário Caça
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Queixada
Catitu
Anta
Paca
Veado
Capivara
Coata(Coamba)
Guariba
Macaco Prego
Caiarara
Cuxiu
Cutia
Inambu
Mutum
Jacú
Cujubim
Jacamim
Arancuã
Pato do mato
Elaboração: Emmanuel Jr.
184
As áreas de caça se estendem muito acima, no alto rio Trombetas, muitas vezes
são narradas em relação a acontecimentos marcantes, fazendo-os lembrar de lugares.
Procedendo a uma descrição minuciosa dos acontecimento,
Calendário Pesca
A
Jan Fev Mar br Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Pescada
Tucunaré
Aracu
Pacu Cana
Pacu
Camunani
Filhote
Piranha
Trairão
Curimatã
Canamoco
Peixe
Cachorro
Sardinha
Surubim
Jaraqui
Tambaqui
185
Dourada
Jandiá
Pirarara
Cujuba
Aruanã
Saúna
Traira
Pirarucu
Baruca
Elaboração: Emmanuel Jr.
Os santos católicos são muito populares no rio Trombetas. Segundo recorda o Sr.
Valdemar, poderiam ser citados Nossa Senhora de Fátima (festejada dia 19 de maio),
Nossa Senhora de Nazaré (festejada em abril), Santa Luzia (festejada em junho), São
186
Raimundo (festejado em junho), São Raimundo (festejado em junho), Santo Antonio
(festejado em agosto) e São Benedito( festejado em agosto).
Segundo o Sr. Valdemar, se festejava na Porteira o Divino Espírito Santo, até hoje
sua família conserva o templo ao lado de sua casa. Segundo ele, foi com a chegada da
Andrade Gutierrez que veio a Nossa Senhora de Fátima, onde os quilombolas acabaram se
apropriando da “santa da Andrade”. Os festejos de Nossa Senhora de Fátima acontecem
entre os dias 11 e 19 de abril. Ele fala que ainda existiam os festejos para São Sebastião,
organizado pelo Sr. Felipe Xavier (falecido), eram nove noites de festa,
os festejos de antigamente era bom, ali naquele Curuá, faziam festa era
nove noites de festa, dançavam, quando amanhecia o dia aquele que
tinha que fazer seu serviço ia, o outro ia lavar roupa, até anoitecer,
naquele tempo a cachaça era uns garrafões, assim, que chamavam
frasqueira, o copo deles era uma cuia que tinha assim, naquele tempo
dos antigos ali era só os velhos, quando secava aquela frasqueira
puxava uma outra(Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 15
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ) (g.m.).
Atualmente, o festejo de Nossa Senhora de Fátima, mobiliza socialmente a
comunidade quilombola de Cachoeira Porteira. Realizado entre os dias 13 e 19 de maio,
marca simbolicamente o fim do período da safra da castanha. Os quilombolas esperam o
ano todo para a chegada do festejo. O festejo de Nossa Senhora de Fátima, é o principal
ritual de coesão social da comunidade.
187
6.4.2 Os festejos de Nossa Senhora de Fátima
A salva de fogos foi solta diariamente, até o encerramento das festividades no dia
19 de maio. Os fogos pela manhã eram com menos frequência. No entanto, à tarde eram
diários. Entre as 16:00 e 17:00 horas, os responsáveis pela festividade percorriam com a
santa pela comunidade, em direção ao local, de onde sairia a procissão a noite.
A saída da santa era anunciada com a salva de fogos. Quando anoitecia, às luzes
dos postes, fornecida por um motor de luz localizado no centro da comunidade, de quase
nada adiantam diante de noites escuras. Aproximadamente, perto das 19:00 horas, as
pessoas iam se reunindo diante do local de onde sairia a procissão. As mulheres e as
crianças eram em maior quantidade.
Com as pessoas reunidas, eram distribuídas velas, envolvidas por papel de seda
em suportes confeccionados cuidadosamente, para que não pegue fogo. As velas e a
escuridão tinham um ar melancólico. Todos apostos, a comissão organizadora dos festejos
dava inicio a procissão. Duas pessoas seguravam o andador com a santa, todos entoavam
ladainhas e cânticos.
Essa foi a rotina da santa durante os dias do festejo. Após a celebração, em uma
“barraca” improvisada, eram vendidas comidas como mingau, sanduíches e refrigerantes.
Durante os primeiros dias muitos castanheiros ainda estavam para os castanhais. Eles
foram chegando na medida que se aproximava os dias finais dos festejos e da tão
aguardada festa.
188
3º dia (13 de maio de 2012): Casa da Dona Cleomar;
9º dia (19 de maio de 2012): No último dia a santa da comunidade ficou na igreja.
Os participantes que vieram da comunidade quilombola Tapagem trouxeram a Nossa
Senhora de Fátima da Tapagem. A santa da tapagem percorreu a comunidade quilombola
de Cachoeira Porteira até a igreja Nossa Senhora de Fátima, enquanto a santa da
comunidade a esperava.
O som foi encerrado por volta das 17:00 horas do dia 20. Com o final da festa os
barcos zarpam e as visitas vão embora. Retornando a rotina costumeira da comunidade.
Alguns, depois da festa, tentam buscar um novo fôlego para retornarem ao castanhal.
189
6.4.3 Benzimentos
por sonho pra gente, eu tive esse sonho eu fui experimentar depois de
muitos anos, eu tava com uns quinze, dezesseis anos e deu certo, tinha
um pajé muito forte aqui dentro do rio era um senhor por nome Balduíno,
ele disse: compadre nós temos uma conversa entre nós dois, eu tá muito
bem, ele nunca dizia qual era a conversa que ele queria comigo, até que
ele chegou: você tá lembrado de um sonho que o senhor teve há muitos
anos? Não lembro. Pois é, será que não lhe servia? Eu digo, olhe eu não
sei mais eu não lembro, morreu aquilo, quando eu fui experimentar, pois
deu certo, ai eu fiz a primeira vez e pronto, então por isso que dizem que
seu Valdemar sabe benzer, muitas das vezes dá certo, é tenho ajudado
muita gente (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Segundo o Sr. Valdemar, ele aprendeu com uma pessoa que já estava morta, que
lhe ensinou através de um sonho, ensinou inclusive as orações, Estas constituem o segredo
do benzedor e um tabu. Nelas estão as suas forças, “isso é difícil de dizer, se a gente dizer,
não vale mais, foi uma mulher morta que veio comigo e disse: olha se você fizer, tal
beneficio não é pra você, na sua vida eterna vai lhe salvar de seus pecados, de você fazer
bem pras pessoas” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ).
190
perguntava quem é? Fulano de tal então volta chega na casa dele, ele
era assim preparado pra essas coisas, você podia estar do jeito que
tiver, não tinha nada, pra comer, pra beber, pro seu tratamento, chegava
na casa dele ele lhe dava tudo o que você precisava, passava três,
quatro meses ele lhe dando as coisas, até você ficar bom, mais se você
tivesse de morrer, mais quando (Entrevista com Valdemar dos Santos,
77 anos, dia 12 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
O Sr. Valdemar não faz previsões como fazia o sacaca Balduíno. Seu Valdemar
benze, usa orações. Apesar de não receitar remédios e banhos, ele conhece uma série de
plantas, cascas e ervas utilizadas para a cura de doenças do corpo.
6.4.4 As visagens
191
canoa deles que era no remo, eles iam jogando as coisas de dentro da
canoa, e quando se aproximavam mais ainda, quando não tinham mais o
que jogar, ia jogando os filhos e numa dessas jogadas, um deles que
sobreviveu e ficou a lenda que muitos dizem que ele mora debaixo da
cachoeira lá, e no caso, quando vai assim mulher menstruada, ai não
pode ir por causa disso ai, que às vezes ele mexe, ai fica pula e dói a
cabeça, ai foi que criou a lenda do pretinho do porão. Pula é assim que
começa a doer a cabeça, que o pretinho incorpora na pessoa, ai fica
doida. Tem o seu Valdemar, ele benze essas coisas ai. Sempre ele
incorpora, um tempo atrás teve uma moça, ela veio aqui pra beira, ela
tava menstruada e quando voltou tava com muita dor de cabeça, ai
começou a ficar doida e ninguém conseguia segurar e ai levaram ela pra
casa dela e chamaram seu Valdemar e ele foi lá benzer ela e depois
quietou, deu certo (Entrevista com Adriane Cordeiro do Carmo, 31 de
março de 2012, em Cachoeira Porteira ).
No entanto, o seu pai, o Sr. Raimundo narra com maiores detalhes a briga do Sr.
Davi com o Pretinho do Porão, que resultou na morte do Sr. Davi,
192
cachoeira ai... Tô dizendo que era um tipo dum trabalho quase
escravizado mesmo, não tinha jeito você passar ai oh daqui pra serra é 9
km tinha dia que nós não chegávamos lá, não tinha condição. O cara
chegou lá quando foi de noite esse pretinho atacou ele atacou, e ele não
podia dormir era só ele dormir o pretinho tava em cima dele chegou de lá
ele até ficou meio perturbado até que acabou morrendo com essa
historia, o Davi, essa foi a historia do pretinho do porão que perturbou ele
lá nesse porão. Acontece, tem acontecido várias vezes...( Entrevista com
Raimundo Adão de Souza, 65 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).
Os quilombolas se identificam com o Pretinho do Porão, foi uma criança sacrificada
pelos pais, jogada para fora da canoa por sua mãe durante as perseguições aos escravos
fugidos. Este é um fato concreto para os quilombolas: o menino foi jogado e a cachoeira lhe
“encantou”. Qualquer que tem contato com sua história ficará mais precavido ao passar
pelas cachoeiras. Esta história e diretamente distinta do Lago Encantado ou da Praia do
Abuí. Estas duas referem-se a um conjunto de prescrições diante da relação homem –
natureza: recursos naturais.
A ambição se configura como uma prescrição. Não ter ambição. Tal prescrição está
diretamente relacionada a utilização “racional” dos recursos naturais. Assim o Sr. Valdemar
relaciona duas histórias de lugares “encantados”. O próprio Lago Encantado e a praia do
Abuí, com o homem que “grudou” na costa da tartaruga. A relação satisfaz a prescrição
mítica.
193
Não são simples historietas, são modos de vida. Como explicações para realidades
complexas distintas no nosso próprio meio cultural. As chamadas “visagens” regulam a
relação dos homens com a natureza. Estando ainda, associadas ao “tempo ecológico” e ao
movimento de pertencimento étnico.
39
Primeira edição publicada em 1954.
194
com eles lá e ele dizia meus filhos vocês querem comer um ovo de
tracajá? A eu quero, então ele ia buscar, voltava com o paneiro com
milheiros, chegava ai dava pro pessoal, ai quando era de noite tinha
aquele batido de rabo, ai dizia: meus filhos vocês sabem o que é isso?
Não. É peixe-boi na cavalgação, ai o pessoal achava incrível que era
verão, tava tudo seco e ele morava no igarapé do Higino, muito longe
tinha cafezal, ananá, e de repente ele surgia com aquilo, vocês querem
comer uma tartaruga, eu vou buscar pra vocês, ia buscar e trazia, ia
buscar um pirarucu, um tracajá, tudo que você queria ele trazia.
Eu quando trabalhava eu tenho um terreno aqui em cima que eu
produzia muita banana no tempo da firma, ai eu trazia muita banana,
cará, batata, mamão, ai nessa direção que nós andamos de helicóptero
(seu Valdemar foi o primeiro quilombola a trabalhar na Andrade Gutierrez
como mateiro) eu encontrei um lago, não vou dizer que é ele, mais com
essa conversa do lago encantado, eu andei várias vezes procurando
aquele lago e não encontrei, quando você vê assim e marca a direção,
quando você vai, dá um aguaceiro doido, você nunca encontra por esse
motivo, se transforma em nada, aquilo só aparece pra quem tem que
aparecer mesmo (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).
Sobre o Lago Encantado, o Sr. Valdemar o relaciona a Praia do Abuí, descrita pelos
quilombolas do Trombetas como sendo encantada. Em uma ocasião uma pessoa teria ido a
paria pegar tartaruga na paria, devido a sua falta de conhecimento sobre os “bichos” e
ganância, ele acabou “encantado” pela tartaruga tida como a ordenadora dos espaços de
reprodução,
195
quando chega ao abuso […] as consequências são más para o indivíduo” (GALVÃO, 1955,
110).
Por fim, os mitos referidos aos quilombolas do rio Trombetas, explicam também a
divisão territorial. Assim, os mitos da Praia do Abuí e do Lago encantado, estariam
diretamente referidos à comunidade quilombola do Abuí, vizinho de Cachoeira Porteira. No
entanto, o Pretinho do Porão, está diretamente referido a Cachoeira Porteira. No entanto,
isso não impede que os quilombolas do rio Trombetas procurem o Lago Encantado, ou
mesmo utilizem a Praia.
Tais relatos e croquis foram obtidos a partir da realização de uma Oficina de Mapas
adstrita a métodos de cartografia social. Tal metodologia vem sendo desenvolvida pelo
196
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia-PNCSA40, desde 2005. As práticas de
pesquisa concernentes à cartografia social configuram relações sociais complexas.
40
O trabalho intitulado “A guerra dos mapas” de Almeida (1994), é considerado um marco
para os trabalhos de pesquisa utilizando os traços descritivos do que se designou como cartografia
social como um instrumento de descrição etnográfica. No bojo das experiências de cartografia social,
do PNCSA podemos citar alguns trabalhos resultantes da reflexão crítica em torno das práticas de
pesquisa de mapeamento social. Além de uma centena de fascículos no âmbito do PNCSA que
podem ser adquiridos pelo site: www.novacartografiasocial.co m
197
Meire; equipe 6 – Área da comunidade de Cachoeira Porteira (Barracão comunitário
para cima): Claucilvaldo, Tia, Fátima, Amélia, Ivania, Mariquinha e Márcia do Jose; equipe
Castanhal da Serra do Cachorro (área de uso): Raimundo Adão, Genésio, Elias, Silvana,
Dinalva e Valterlane.
RIO TROMBETAS
Panamã: sítio histórico, áreas de caça e castanha;
Ventura: áreas de caça;
Turuna: sítio histórico, muito descrito por viajantes naturalistas, missionários e agentes do
governo colonial como mocambo, áreas de castanha;
198
Fumaça: sítio histórico e áreas de castanha;
Maravilha: sítio histórico, também conhecido como “Cidade Maravilha”, renomado mocambo
do Trombetas, chegando a ter cerca de 2.000 almas como narram os relatos históricos;
Campiche: sítio histórico, junto com o Turuna, foi o local de nascimento de muitos
quilombolas, dando origem a muitas famílias quilombolas do Trombetas. Farta
documentação sobre a ocupação quilombola, o descrevem como área de mocambeiros;
Pirarara: sítio histórico e áreas de grandes castanhais;
Cutraval: sítio histórico e áreas de castanha, recentemente foram achados artefatos de
cerâmica pertencentes aos “antigos” quilombolas;
Munguba: áreas de castanha;
Caxipacoré: áreas de castanha;
Rio da festa: sítio histórico. Segundo as narrativas dos quilombolas sobre este sítio, ele era
um grande sítio (Sr. Francisco Adão dos Santos Neto), onde os quilombolas se reuniam
para realizarem festas. Era um importante espaço para a prática de rituais de coesão social,
como festejos de Santos e outras reuniões. Era espaço social e físico para encontrar os
quilombolas qu residiam na sdistintas partes do rio; podemos comparar a Casa das Pedras,
no Erepecuru, descrito por O. Coudreau (1900);
Taja: sítio histórico e área de castanha;
Franco: cachoeira;
Rio do Velho: sítio histórico e áreas de castanha;
Cajueira: sítio histórico - “paragem antiga”, neste lugar ainda encontram-se plantações de
caju, resíduos do pomar que havia ali;
Ilha do defunto: Sítio histórico – “varador dos antigos”;
Tramalhete: cachoeira e áreas de pesca;
Enseada: sítio histórico e áreas de castanha;
Traval: sítio histórico – neste lugar foram achados alguidar e outros objetos cerâmicos e
áreas de castanha;
Curuá: sítio histórico, muito bem documentado pela literatura regional, antropológica e
militar. Descritos pelos quilombolas como uma grande “centro” de quilombolas, Local de
nascimentos de muitos quilombolas ainda vivos, como Dona Ursulina Vieira, 84 anos. Lá,
ainda existem resquícios do pomar, como mangueiras e cupuaçu, além de pés limão;
Quebra-pote: sítio histórico e cachoeira;
Imagina: cachoeira e áreas de pesca;
Barnabé: cachoeira e áreas de pesca;
199
Madame: cachoeira e áreas de pesca – segundo os quilombolas, esse nome foi atribuído
em homenagem a Madame Coudreau, quando passou lá (1899);
Vira-mundinho: cachoeira e áreas de pesca;
Pedra Lisa: cachoeira e áreas de pesca;
Boto: ligação com o varador do Inferno
Caramujo: “paragem antiga”
Paraná do Roçado: cachoeira e áreas de pesca;
Paraná do Doutor: nome atribuído pelos quilombolas em homenagem a um Doutor que
esteve por lá;
Ilha da Giró: sítio antigo da família Vieira. O nome é por ocasião da Dona Maria Augusta
Vieira dos Santos ter residido no local, este era um local de residência, as roças e
plantações ficam na terra firma, próxima a ilha;
Ilha do cemitério: sitio histórico – muitos familiares dos quilombolas de Cachoeira Porteira
encontram-se enterrados na ilha;
Araçazal: áreas de pesca;
Ponta grande: áreas de pesca;
Andorinha: áreas de pesca;
Escada: áreas de pesca;
Canal Grande: áreas de pesca;
Costa de Faro: áreas de pesca;
Porteira: sítio histórico, fartamente descrito na literatura histórica como núcleo habitacional
de mocambeiros, vastas áreas de roças, residências, atual sede física da comunidade.
Colônia: sítio histórico, farta ducomentação sobre o lugar, onde registraram, em diversos
momentos os mocambeiros. Sítio articulado pela família Vieira e Santos.
Caso do Sr. Vicente Vieira: sítio histórico e unidade residencial do Sr. Vicente Vieira;
Macaxeira: sítio histórico, áreas de castanhal e localização de unidades residenciais;
Santo Antônio: sítio histórico;
Cemitério: sítio histórico – cemitério antigo, situado em frente as unidades residenciais de
Cachoeira Porteira, atualmente reside o Sr. Mauricio.
RIO CACHORRO
Riozinho: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Camunani: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Ananaí: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Cair dos Pretos: sítio histórico, cachoeira, áreas de caça, pesca e quelônios;
200
Cachorrinho: sítio histórico, áreas de castanha – “Castanhal do Curupira”, castanhal
grande, áreas de pesca;
Felisberto: sítio histórico e áreas de castanha – castanhal grande;
Ambrósio: sítio histórico e áreas de castanhal;
Estirão do Vieira: sítio histórico –“cemitério antigo”;
Morcego: curso d’água – igarapé;
Visagem: curso d’água – igarapé;
Paraná do Florêncio: sítio histórico e áreas de castanhal;
Viramundinho do Cachorro: sítio histórico e áreas de castanhal;
Cabeça de Onça: sítio histórico – “paragem” e áreas de pesca;
Cachoeira do Espinho: sítio histórico;
Serra dos Vieira: sítio histórico e áreas de castanhal – castanhal antigo trabalhado pela
família Vieira. Segundo os quilombolas, a coleta de castanha realizada neste castanhal é do
tempo dos “antigos”;
Paraná do Felício: sítio histórico – ainda hoje é possível constatar as mangueiras e
varador;
Chico Gomes: cachoeira e áreas de pesca;
Cachoeira do Jacamim: áreas de pesca;
Canavial: áreas de pesca;
Paraná do Descanso: áreas de pesca;
Tambaqui: áreas de pesca;
Pedreneira: áreas de pesca;
Cumaru: sítio histórico, áreas de castanha e pesca;
RIO MAPUERA
Água Fria: sítio histórico e área de castanha;
Mungubal: sítio histórico e área de castanha;
Castanhalzinho:, sítio histórico e área de castanha;
Cachimbo: sítio histórico, área de castanha e caça;
Sitio Valdemar: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Vava: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Niva: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Sonia Vieira: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Raimundo Adão: sítio histórico – áreas de roças;
Sitio Pedrinho: sítio histórico – áreas de roças;
201
Sitio Valdir: sítio histórico – áreas de roças;
Sitio Dilton: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio antigo Valdir: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Ilha do Patauá: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Novas aldeias indígenas depois do acordo de 2005, como a Aldeia Chapéu, abaixo
da Aldeia Santidade (rio Cachorro) e a aldeia Oficina (rio Trombetas), foz do igarapé
Caxipacoré. Assim, os quilombolas, diante das situações contingentes que se colocaram,
resolveram reduzir a área do território quilombola, deixando de fora as novas aldeias
indígenas, além de castanhais considerados essenciais para a reprodução física, social e
cultural.
202
Durante o trabalho de campo entre os dias 29 de março a 13 de abril, o geógrafo
José Rocha, do Setor de Cartografia do IDESP, ministrou cursos de noções básicas de
cartografia e utilização do aparelho de G.P.S. (Global Positioning System). A partir da
instrução os quilombolas percorreram o território pretendido para marcar as coordenadas.
Com essas coordenadas foi atualizada a base cartográfica. A revisão da base cartográfica
teve o acompanhamento de técnicos do IDESP e ITERPA.
203
Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de 2012, em
Cachoeira Porteira).
Segundo que quilombolas, á área do Mapuera é a única que sobreposição. Mesmo
assim, caso a área seja titulada como território quilombola, a AMOCREQ, não pedirá a
remoção dos indígenas. Em nome da convivência e dos laços adquiridos ao longo de anos
de convivência. Do ponto de vista jurídico, não existe instrumento que possa garantir a dupla
titularidade.
204
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SOUSA, Inglês de. O Coronel Sangrado. Belém: Universidade Federal do Pará,
1968. (Primeira edição em 1877, sob o pseudônimo de Luís Dolzani).
SOUSA, Nicolino José Rodrigues. Diário das três viagens (1877-1878-1882), ao
Cuminá, afl. margem esq. Trombetas do rio Amazonas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1946.
209
SOUZA, Francisco Bernardino de. Lembranças e curiosidades do Valle do
Amazonas. Belém: typ do-futuro, 1873.
210
BRASIL. BRASÍLIA, DISTRITO FEDERAL. Decreto Nº 6.040, de 07 de fevereiro de
2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Brasília, fevereiro de 2007.
BRASIL. MANAUS, AMAZONAS. Lei Nº. 1070, de 19 de outubro de 1920. Autoriza
o Poder Executivo a conceder favores e auxílios a qualquer particular, empresa ou
companhia. Manáos: Livraria Palais Royal, 1921.
BRASIL. SANTARÉM, PARÁ. Memória de reunião. Local: 6ª Câmara de
Coordenação e Revisão-Brasília, 07 de julho de 2011. Ministério Público Federal,
Procuradoria da República no Município de Santarém.
BRASIL. SANTARÉM, PARÁ. OF.PRM/STM/GAB3/0106/2012. Ministério Público
Federal, Procuradoria da República no Município de Santarém.
BRASIL. SANTARÉM, PARÁ. Portaria nº 191, 10 de maio de 2011. Ministério
Público Federal, Procuradoria da República no Município de Santarém.
211
ANEXOS
212
Decreto de 27 de dezembro de 2004 (Cria a Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais. Brasília);
Instrução Normativa nº 20/2005/Incra (reformula o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos);
Decreto de 13 de julho de 2006 (Altera a denominação, competência e composição da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais… doravante denominada
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais);
Decreto nº. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (Institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, fevereiro de 2007);
Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007 (Instituir o Cadastro Geral de Remanescentes
das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também autodenominadas Terras
de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres,
para efeito do regulamento que dispõe o Decreto nº 4.887/03);
Instrução Normativa nº 57, de 20 de outubro de 2009/Incra (Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratamo Art. 68 do
ADCT-CF/88 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003).
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 (Institui o Estatuto da Igualdade Racial).
213
Art. 1º/Decreto nº 3.472, de 22 de julho de 1999 (Compete ao Instituto de Terras do Pará-
Iterpa a execução dos procedimentos administrativos visando à identificação, demarcação e
expedição dos títulos de propriedade de terras ocupadas por comunidades remanescentes de
quilombos);
Instrução Normativa nº 02, de 16 de novembro de 1999/Iterpa (Define os procedimentos
administrativos visando à identificação, demarcação e expedição dos títulos de propriedade de terras
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos);
Decreto nº 261, de 22 de novembro de 2011 (Institui a Política Estadual para as
Comunidades Remanescentes de Quilombos no Estado do Pará e dá outras Providências).
Leis e Decretos
Convenção 169 da OIT, que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais - Edição
2011. Disponível em
http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/international_labour_standar
ds/pub/convencao%20169_2011_292.pdf. Acesso em 09/03/2012
Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o
art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm . Acesso em 09/03/2012.
Decreto 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de
Povos Tradicionais do Brasil. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em
09/03/2012.
SARMENTO, Daniel. Ministério Público Federal. Territórios quilombolas e
Constituição. Rio de Janeiro, Ministério Público Federal, 2008. Disponível em
http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/adi3239/territorios-quilombolas-e-constituicao-a-adi-3-239-e-a-
constitucionalidade-do-decreto-4-887-03. Acesso em 09/03/2012.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Direito dos povos e das comunidades tradicionais no
Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos
definidores de uma política nacional. UEA, 2007. Disponível em
http://www.novacartografiasocial.com/downloads/Livros/livro_docbolso_01.pdf. Acesso em
12/06/2012.
214
PARTE III - CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DA COMUNIDADE DE
CACHOEIRA PORTEIRA
7 PREFÁCIO
Esta população que tem como principais características a união e um forte espírito
de luta – características estas reveladas através de gerações, na conquista diária de sua
sobrevivência, vale dizer no enfrentamento das adversidades, quer no passado – como
revela a história que eternizou na comunidade um homem hoje quase lenda como o negro
Basílio Antonio, que com seu tacho preferiu se jogar numa cachoeira do Trombetas do que
se entregar aos escravizadores brancos que o caçavam – quer no presente como mostra a
luta pelo acesso a terra e pelo respeito aos demais direitos inerentes à cidadania, que lhe
tem sido negados sistematicamente.
215
traços rápidos – destinado a subsidiar a tomada das decisões necessárias à dinamização
do processo de sua titulação coletiva, já requerida por seus moradores ao Estado há mais
de onze anos (cf. Processo ITERPA nº 2004/125212).
b) situação fundiária;
c) ocupação físico-espacial.
d) população;
216
8 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO FÍSICO-NATURAL
41
Estudos destinados a subsidiar a avaliação do impacto ambiental na área de inundação da UHE de Cachoeira Porteira, da
ELETRONORTE, no rio Trombetas.
42
Cf. Revilla, J.; Lima Filho, D.A.; Amaral, I. L.; Matos, F.D.A. 1986. Estudos e levantamentos do impacto ambiental da futura -
PA. Relatório, ENGE-RIO/INPA. 73p; apud Diógenes de Andrade Lima Filho, Juan Revilla, Iêda L. do Amaral, Francisca Dionizia de A.
Matos, Luiz de Souza Coêlho, José Ferreira Ramos, Gláucio Belém da Silva, José de Oliveira Guedes; 2004. Aspectos florísticos de 13
hectares da área de Cachoeira Porteira-PA in: Acta Amazônica. Vol. 34(3) 2004: 415 – 423 (financiado pelo convênio
ELETRONORTE/INPA/MCT).
43
Na cidade de Oriximiná, localizada em área baixa, mais próxima ao rio Amazonas, os valores planimétricos de referência estão
em torno de 37 metros, enquanto na porção setentrional, fronteiriça com as Guianas, esses valores muitas vezes atingem mais de 800 metros
(Cf. portalamazonia@redeamazonica.com.br).
217
Quanto à vegetação, pode-se dizer que na área de pretensão da AMOCREQ/CPT,
tal como em outras áreas ainda não completamente desmatada da Amazônia, é grande a
diversidade florística.
Num dos estudos acima mencionados, publicado em 2004, que utilizou como objeto
algo em torno de apenas 5,5% (13 hectares44) do total da área hoje pretendida pelos
quilombolas, detectou-se, às proximidades do local onde se construiria a barragem da UHE
de Cachoeira Porteira, a ocorrência dos seguintes tipos de componentes florísticos: a)
Floresta densa de terra firme sobre relevo plano ou mata de terra firme; b) floresta densa de
terra firme sobre relevo dissecado; c) floresta de terra firme sobre relevo ondulado; d)
floresta mista ciliar estacionalmente inundável ou mata de igapó; e) floresta mista
descontínua de terra firme e/ou mata de campina e campinarama; f) mata de bambu; e, g)
mata secundária ou capoeira. (Mapa 6)
44
Essa área, conforme se mostra na Figura, foi delimitada pelas seguintes coordenadas: latitude 0o 30’S à 1o 03’S e longitude 56o
49’W à 57o 37’W.
218
Mapa 6 - Aspectos florísticos de 13 hectares da área de Cachoeira Porteira-PA.
Fonte: Eletronorte
Esses dados – que podem ser tomados como uma amostra significativa de
Cachoeira Porteira – permite observar o quanto é grande a heterogeneidade da vegetação
nessa comunidade; vegetação que, segundo os moradores locais, apesar do aumento
paulatino do desmatamento ocorrido nos últimos anos, é muito rica em madeiras de lei ou
madeiras comercializáveis.
45
Lima Filho, Diógenes de Andrade; Revilla, Juan; Amaral, Iêda L. et al. 2004. Aspectos florísticos de 13 hectares da área de
Cachoeira Porteira-PA in: Acta Amazônica. Vol. 34(3) 2004: 415 – 423 (financiado pelo convênio ELETRONORTE/INPA/MCT).
219
No que se refere à fauna pode-se dizer que também é bastante diversificada em
Cachoeira Porteira. Diz-se isto considerando apenas as informações relativas à Floresta
Estadual do Trombetas. Para se fazer uma ideia, basta dizer que nessa Flota já foram
registradas 29 espécies de peixe, 62 de réptil e anfíbio e 244 de ave, além de 53 espécies
de mamífero46.
46
Cf. Pereira, Jakeline. Et al. Resumo Executivo do Plano de Manejo da Floresta Estadual do Trombetas. Belém: Sema; Belém:
Imazon, 2011; p. 7.
47
Cf. Idem, ibidem; p. 416.
220
9 SITUAÇÃO FUNDIÁRIA
Não obstante, não se trata, porém, de uma dificuldade insuperável, mesmo porque
a referida área já foi arrecadada e registrada como integrante do patrimônio fundiário do
Estado. Além disso, não existe dentro de sua poligonal nenhum título de propriedade
particular, passível de indenização, conforme constatado no setor de cartografia do
ITERPA48, e in loco, segundo informação do presidente da AMOCREQ-CPT.
48
Cf. ITERPA. Processo nº 2004/125212, fls. 187/188.
221
referida poligonal, no perímetro que se estende do porto à localidade conhecida como
Arrozal (dentro da área da Reserva Biológica Rio Trombetas)
Essa via, no trecho urbano, possui três pequenas transversais, cujos leitos são
constituídos de terrenos naturais, sem pavimentação; uma delas (que dá acesso à sede da
AMOCREQ-CPT) situa-se na parte do povoado que os moradores chamam de Morro e as
222
duas outras, mais próximas ao porto, na parte conhecida como Buraco (uma dá acesso à
área dos antigos conjuntos residenciais/acampamentos, hoje desmontados, de funcionários
das empresas Andrade Gutierrez e Eletronorte, que por mais duas décadas estiveram no
local; e a outra que dá acesso a umas poucas casas construídas atrás de algumas outras
cujas frentes estão voltadas para a via principal).
A via de que se está tratando aqui serve de divisa entre as áreas da Reserva
Biológica do Rio Trombetas e da Floresta Estadual do Trombetas. Ladeando essa estrada,
por quase toda a extensão da sede da comunidade de Cachoeira Porteira, existem dois
cursos d’água: o igarapé, ou restinga, do Genésio (dentro da área da Rebio) e o igarapé São
Miguel Arcanjo (dentro da área da Flota). Em função deles, tendo em vista evitar
alagamentos na época da subida das águas, é que as casas foram construídas sobre
palafitas.
Dentre essas casas destacam-se, pela grande quantidade, aquelas montadas com
aproveitamento de restos de materiais retirados dos conjuntos residenciais supra-aludidos49,
o que, junto com as palafitas, dá ao povoado certo aspecto de favela, refletindo as precárias
condições de vida da população local.
49
Materiais estes por sua vez reaproveitados em grande parte dos acampamentos das referidas empresas em Tucuruí/PA onde as
mesmas participaram da construção da UHE no rio Tocantins.
223
que um sistema unificado com caracteres autônomos”50. Não obstante, registra-se aí “uma
sucessão de empreendimentos importantes, conhecidos entre os historiadores pela
designação de ‘ciclos’ – ciclos das drogas do sertão (canela, cravo, etc.), ciclo agrícola
(cacau, cana, café, arroz, algodão, etc.) e ciclo pecuário (criação de gado dos missionários
no Marajó”)51
50
Roberto Santos. A Economia do Estado do Pará. Belém, IDESP, 1978 (Relatórios de Pesquisa, 10); p. 12.
51
Idem, ibidem.
52
Cf. Santos, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor Ltda., 1980. p. 35; e A Economia do
Estado do Pará. Belém: IDESP, 1978 (Relatórios de Pesquisa, 10); p. 12.
53
Cf. Lucinda Saragoça. Da Feliz Luzitânia aos confins da Amazônia (1615-62). Ed. Cosmo e Câmara Municipal de Santarém.
Lisboa, Santarém, 2000; apud. Márcio Souza. História da Amazônia. Editora Valer, Manaus, 2009; p. 130.
54
Idem, ibidem.
224
humilhava. Por sua vez os indígenas, antes de ganharem, em 1755, “a liberdade total e sem
reservas”55, quando submetidos ao cativeiro pela violência, regiam rebelando-se ou fugindo.
Isso requereu e canalizou para aquela área um grande número de escravos negros.
E aí, principalmente nas fazendas de gado e de cacau,60 mas também em outros
55
“desde que já integrados ou que se viessem a integrar nas estruturas eclesiásticas e politico-
administrativas do Estado do Grão Pará e Maranhão” . Azevedo e Silva, José Manuel de. “O modelo pombalino
de colonização da Amazônia”. Universidade de Coimbra, 09/05/2002.
56
Moraes, Raymundo. Amphitheatro amazonico. Cia. Melhoramentos de S. Paulo. S. Paulo, 1936, p.
149.
57
Cf. Sales, Vicente. Op. cit.
58
Cf. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – A. H. U., Pará, 14 de Fevereiro de 1774; apud Azevedo
e Silva, José Manuel. “O modelo pombalino de colonização da Amazônia”. Universidade de Coimbra,
09/05/2002.
59
“O Baixo-Amazonas segundo os entendidos estende-se do Rio Negro até o Xingu”. Hermes Filho,
Gabriel. In: O Baixo-Amazonas. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1966, p. 31.
60
Segundo Vicente Sales (cf. Op. cit.), no Baixo Amazonas a força de trabalho escrava foi utilizada
prioritariamente nas fazendas de cacau e gado.
225
empreendimentos, que estes eram vários na Amazônia61, a força do negro escravizado era
então submetida a uma exploração cruel.
61
Edna Castro ao mostrar a relevância da participação do negro na economia regional “cujo trabalho foi
fundamental na construção da sociedade colonial” informa que “Ele participou ativamente nas atividades
agrícolas das fazendas de gado, cacau, algodão, cana de açúcar e nas demais lavouras, no transporte e na
navegação, como também nos engenhos de cana de açúcar, nos moinhos de arroz e nas demais atividades da
indústria extrativa, neste caso a extração de madeira por excelência. As construções de obras públicas
requeriam mão-de-obra escrava aplicada à fortificações, hospitais, cadeias, estradas, prédios para a
administração e comércio, ou ainda para construção de conventos e escolas, e uma série de outros serviços
urbanos. Pedreiras, olarias, extração de cal e serrarias de madeira constituíam atividades essenciais à
construção civil, lugares de trabalho escravo. Em todas as atividades, como inúmeras funções nas cidades e nos
espaços do trabalho doméstico, ele esteve presente pela mediação do seu trabalho. No período pombalino,
concomitantemente à formação de estruturas camponesas e da montagem de empreendimentos agrícolas com
base no trabalho escravo, é intensificado o tráfico de escravos, a comercialização de gêneros e a construção de
obras de infra-estrutura à produção”. Cf. Castro, Edna. “Terras de pretos entre igarapés e rios”...
62
Moraes, Raymundo. Op. cit., p. 145.
63
Funes, Eurípedes Antônio. Comunidades Remanescentes dos Mocambos do Alto Trombetas.
Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.
dezembro de 2000; p. 3.
64
Idem, ibidem, p. 5.
65
Moraes, Raymundo. Op. cit., pp. 145-146
66
Cf. Funes, Eurípedes Antônio. Op. cit.
67
Funes, Eurípedes Antônio. Áreas das Cabeceiras - Terras de Remanescentes: Silêncio, Matá,
Castanhanduba, Cuecé, Apuí e São José. Comissão Pró-Índio de São Paulo. São Paulo, ago-1999, p. 7 (Com
informação do Arquivo Publico do Estado do Pará (APEP). Fundo Correspondência de diversos com o governo
1807-1819. Série Ofícios. Ofício do Delegado de Polícia de Obidos, 24-11-1810, documentação em pacote).
226
Na segunda metade daquele século, durante uma viagem de estudos e
observações pela região, da qual resultou o livro O vale do Amazonas, publicado em 1866,
Tavares Bastos foi informado de que, perto de Óbidos, nos diversos mocambos existentes
no rio Trombetas existiam “muitas centenas de escravos fugidos”. Conforme disseram então
àquele parlamentar e escritor do Império o contingente populacional desses mocambos –
onde além de negros se podia encontrar também “criminosos e desertores foragidos” – já
perfazia “mais de 2.000 almas”68.
E estes foram vários. Os maiores situaram-se no alto dos rios, para além das
corredeiras e cachoeiras e/ou entre algumas delas, em trechos navegáveis72. “No entanto,
abaixo destas, nos igarapés e nos lagos como Mocambo, Conceição, Macaxeira, Abui,
Jacaré, Tapagem, Erepecu (Arepecu) e Moura, havia quilombos menores”73.
68
Tavares Bastos, Aureliano Candido. O vale do Amazonas, p. 201
69
Funes, Eurípedes Antônio. Comunidades Remanescentes dos Mocambos do Alto Trombetas. Projeto
Manejo dos Territórios Quilombolas. Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Dezembro de
2000; p. 3.
70
Idem, ibidem.
71
Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade”, E A Virtual nº
2, p. 6.
72
Idem, ibidem, p, 13.
73
Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade”, E A Virtual nº
2.
227
A origem da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, está ligada a esses
mocambos – tanto os situados nas áreas das “águas bravas”, das corredeiras e cachoeiras,
como os localizados abaixo delas, nas áreas das águas mansas.
Na segunda metade do século XIX, com o cessar das ameaças das ações
punitivas74, os escravos fugidos estabelecidos no alto dos rios, acima da primeira cachoeira
(batizada por um missionário franciscano de São Miguel Arcanjo, e de Porteira, pelos
fugitivos) deram inicio à volta para as áreas das águas mansas, premidos pela carência de
auto-suficiência ou, em outras palavras, pela necessidade de maior integração com a
sociedade mais ampla75, a começar com os quilombos que persistiam no médio Trombetas.
Essa volta, porém, não ocorreu de forma açodada e direta. Antes de chegarem à
área dos lagos, no médio Trombetas, os mocambeiros precavidamente fizeram paradas
estratégicas ao longo do caminho, onde criaram novos quilombos.
Nesta área, a das águas mansas, foi por onde se espalhou no rio Trombetas a
maioria dos moradores do Curuá, após o ciclo das perseguições encerrado, pelo menos
oficialmente com a promulgação da Lei Áurea em 1888. Uns poucos desses moradores se
fixaram ali perto, logo abaixo da primeira cachoeira, na foz do igarapé, que hoje tem o nome
inicialmente dado àquela queda-d’água: São Miguel Arcanjo.
74
“Apesar de não ter havido, após a década de 1860, mais nenhuma incursão de capitães-do-mato no
Trombetas, em 1870, o então presidente da província assinou uma lei autorizando a destruição dos mocambos
do Trombetas e em 1876 ocorreu a expedição que destruiu o mocambo do rio Curuá, vizinho ao rio Trombetas”.
Wanderley , Luiz Jardim de Moraes, “Território Invadido”: As lutas e os conflitos nas terras dos negros do
Trombetas-PA, Rio de Janeiro, 2006, p. 16 (nota 8).
75
“No terceiro quartel do século XIX e primeiro do XX, o aumento da aceitabilidade da existência dos
quilombos, o melhor relacionamento social com a sociedade urbana regional, o fim das expedições de captura e
posteriormente a abolição da escravidão, permitiram que os negros descartassem a proteção das cachoeiras e
começassem a descê-las para ocupar as margens dos lagos abaixo delas. O descenso tinha a finalidade de se
aproximar de Óbidos para facilitar o comércio clandestino”. Wanderley, Luiz Jardim de Moraes, op. cit., p. 17.
76
Não confundir com o quilombo criado, antes, no rio Curuá,
228
Quando no início da terceira década do século XX uma equipe da 1ª. Comissão
Brasileira Demarcadora de Limites, chefiada pelo militar Braz Dias de Aguiar, chegou à área
da cachoeira Porteira, já encontrou aí, na embocadura do igarapé São Miguel Arcanjo, à
margem esquerda do Trombetas, alguns habitantes77, Em frente a esse local, na margem
direita do rio, aquela Comissão construiu um barracão de apoio, onde hoje se situa uma
fazendola de nome “Santa Helena”. Esse barracão, do qual ainda se podem encontrar
ruínas no local, era então chamado de “casa grande”. (Foto 42)
77
Ver foto feita pelo fotógrafo daquela Comissão em 1934 in: Braz Dias Aguiar. Trabalhos da Comissão
Demarcadora de Limites – Primeira Divisão – Nas Fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa, de 1930 a 1940
In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, cf.: Eurípedes Antônio Funes. Comunidades Remanescentes dos
Mocambos do Alto Trombetas. Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas. Departamento de História da Universidade
Federal do Ceará. Dezembro de 2000; p. 7.
78
Alguns destes moradores da área das águas bravas foram Manoel Vieira e Maria Vieira Cotoró; eles formavam um
casal de ex-escravos que, para escapar às perseguições, subira o Trombetas até o Turuna, onde nasceram seus filhos. Mais
tarde essa família, procurando superar dificuldades relativas ao escoamento de seus produtos (castanha, copaíba, andiroba,
mel, jutaí-cica, breu, tauri, cipó e até ouro) mudou-se para o lugar a que deram o nome de Curuá, às proximidades da foz do rio
Cachorro. Foi daí que o referido casal saiu para juntar-se com outros na Vila dos Pretos. Cf. Azevedo, Ozanete Vieira &
Ribeiro, Sebastiana da Silva. O negro no Brasil: educação e cultura dos remanescentes de quilombos na comunidade de
Cachoeira Porteira. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao colegiado de Pedagogia da Universidade Federal do
Pará, para obtenção do grau de licenciatura plena em Pedagogia (Orientador: Ms. Everaldo M. Portela). Oriximiná, 2007, PP.
25-26.
79
. Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit.
80
Idem, ibidem.
229
Foto 45 - Ruínas da “Casa Grande”
81
Idem, ibidem, pp. 26-27
230
9.3 POPULAÇÃO
Com relação à idade pode-se dizer que mais da metade dos moradores (57,99%)
inclui-se no grande grupo de até 29 anos; do restante – exclusive os moradores sobre os
quais não se obteve informação (21,66%) – 18,16 % pertence ao grupo de 30 a 64 anos; e,
2,19 % ao grupo de 65 anos e mais conforme os dados apresentados na Tabela 17.
Especificação Abs. %
0 a 6 anos 64 14,01
Com base nestes dados apesar número de moradores sem informação sobre a
faixa etária, pode dizer, que o contingente populacional da comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira é uma população jovem.
231
Examinando-se a tipologia dessas famílias constatou-se que: a) 50 delas (45,05 %)
são do tipo nuclear completa – formada apenas pelos cônjuges e filhos; b) 18 (16,22%)
constitui-se de famílias ampliadas – que além dos cônjuges inclui também filhos e outros; c)
11 (9,90%) são famílias quebradas com chefe homem – que reúne a nuclear e a ampliada
sem o cônjuge mulher; d) 10 (9,91%) compõem famílias quebradas com chefe mulher –
que reúne a nuclear e a ampliada, com a diferença de que o cônjuge presente é a mulher);
e, 21 (18,92%) são famílias do tipo casal82.
Coleta da castanha.
No início, antes da presença dos europeus na Amazônia, essa coleta era praticada
pelos primeiros habitantes: os indígenas, que, naquela bacia hidrográfica, ocupavam as
áreas de castanhais ou perambulavam por elas83.
Segundo a Comissão Pró-Indio de São Paulo é desde o século XIX que “os
quilombolas de Oriximiná coletam e comercializam a castanha-do-pará que representa para
eles uma importante fonte de renda”84.
82
Cf. sobre a tipologia utilizada: José Pastore et al. Mudança social e pobreza no Brasil: 1970-1980 (o
que ocorreu com a família brasileira?). S.P. Pioneira/FIPE; 1983.
83
O produto era por eles utilizado na alimentação.
232
Em 1898 Oliver Derby escreveu:
84
Comissão Pró-Índio de São Paulo.
http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/pa/pa_comunidades_amazonas_cast.html.
85
Derby, Oliver. O rio Trombetas. In: Hartt, C. H. Smith, H. e Derby, O. Trabalhos Restantes Inéditos da
Comissão Geológica do Brasil, 1875 – 1878. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Tomo II, fasc. 1 – 4,
1897 – 1898, p. 373. Apud: Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e
Identidade”, E A Virtual nº 2, p. 10.
86
Comissão Pró-Índio de São Paulo.
http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/pa/pa_comunidades_amazonas_cast.html.
87
Idem, ibidem.
233
ocupantes ou proprietários de lotes rurais individuais, e em consequência, nenhum dos
castanhais atualmente explorados pertence a uma única pessoa ou família. Isso é explicado
pela percepção que se tem da terra como um bem coletivo, no sentido de que se trata de
um valor de uso indivisível destinado a todos integrantes da comunidade.
Após ser coletada no meio da floresta, em distância que varia, em linha reta, de
quatro a oitenta quilômetros do povoado e depois transportada para este povoado (em
canoas, lanchas movidas a motor de popa e/ou “rabetas”, através de rios e igarapés, nos
quais às vezes se tem de enfrentar remansos e corredeiras; ou, pela BR-163, com a ajuda
de um trator), a castanha é armazenada em paióis pertencentes a cinco intermediários,
88
Idem, ibidem.
89
Idem, ibidem.
234
todos integrantes da associação quilombola local. Destes, quatro atuam com base no
sistema de aviamento, fornecendo aos castanheiros o que eles precisam para coletar a
castanha, deixando, porém, o acerto de contas para cada momento de entrega do produto
ou para o final da safra; o quinto, que não faz uso desse sistema, não avia ninguém; sua
prática, como ele diz, é a de pagar na hora a quantidade de castanha que lhe for ofertada
por qualquer castanheiro/coletor.
A maioria deles, provavelmente, reagirá de forma negativa às ações que devem ser
efetivadas com vistas à mudança necessária da situação, em benefício da comunidade
como um todo.
A comunidade, porém, não deve estancar diante de uma tal reação. E uma das
primeiras coisas a fazer nesse sentido é acabar com o sistema de exploração ao qual
castanheiros de Cachoeira Porteira estão submetidos, a fim de que os mesmos possam
usufruir melhor do produto de seu trabalho. Nesse sentido uma das ações poderia ser a
criação de uma cooperativa, nos moldes da Cooperacre – Cooperativa Central de
Comercialização Extrativista do Acre, que o presidente da AMOCREQ-CPT visitou em 2011,
num intercâmbio promovido pelo SFB – Serviço Florestal Brasileiro como forma de promover
o desenvolvimento socioeconômico de comunidades extrativistas através da
comercialização de produtos não madeireiros.
235
comunidade um quadro de funcionários, em diferentes setores, para o qual repassa
regularmente todo mês um determinado volume de recursos financeiros (salários).
236
Para a coleta do lixo urbano, que acontece duas vezes na semana, a Prefeitura
Municipal de Oriximiná disponibiliza à comunidade, um trator equipado com uma carroceria
de caminhão e mais cinco funcionários: o motorista do trator e quatro garis.
90
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 28.
237
desta comunidade quilombola, na medida em que, de certo modo, amenizam a situação de
miséria que aflige a maioria das famílias que ali residem.
Especificação Abs. %
Enquanto isso as famílias com renda mensal acima de meio até dois salários
mínimos compreendiam 44,14%.
Apenas uma família (0,90%) contava com renda mensal situada na faixa de maior
de dois até três salários mínimos.
91
Na data do levantamento de campo o valor do salário mínimo no Brasil correspondia a R$ 622,00 (cf.
Decreto 7.655, DE 23/12/2011, DOU 26/12/2011.
238
Apesar de não se ter obtido informação sobre os rendimentos mensais de 4,51% do
total de famílias da comunidade, os dados obtidos com relação às demais (95,49%) são
suficientes para se fazer uma ideia da precariedade das condições de vida dessa
população.
Alimentação
239
Porto Trombetas e Oriximiná – para mencionar aqui apenas as mais próximas (cidades
para cujo acesso os moradores de Cachoeira Porteira dispõem de transporte gratuito todo
mês e para as quais, aproveitando esse transporte, poderiam escoar algum excedente de
sua produção).
Educação.
92
Os dados apresentados são referentes ao primeiro semestre de 2012.
240
referido estabelecimento oferta dois níveis de ensino: Infantil e Fundamental (este
complementado com uma classe de EJA – Educação de Jovens e Adultos93).
A carência de material – que, segundo a direção da escola, se pode dizer que tem
quase um caráter permanente em Cachoeira Porteira, não obstante as insistentes
cobranças e reclamações feitas à Secretaria de Educação do Município – soma-se à
inadequações do espaço de trabalho. Diz-se isto considerando que, a despeito de, quando
da construção do prédio da escola ter havido grande preocupação com a sua imponência
arquitetônica, parece não ter havido preocupação nenhuma com a adequação desse prédio
à sua finalidade.
93
A EJA é um dos segmentos da educação básica regulamentado pelo artigo 37 da Lei de Diretrizes e
Bases da educação (a LDB, ou lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996), que recebe repasse de verbas do
governo federal através do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação – FUNDEB.
241
A Lei Federal nº 9.394/19961 (LDB), define o ensino médio como parte da
educação básica, correspondendo à sua etapa final, competindo-lhe preparar o aluno para a
continuidade dos estudos, assim como para o trabalho e o exercício da cidadania.
Estes jovens são os que já tendo concluído o ensino fundamental, não têm, porém,
condições de cursar o ensino médio nas cidades mais próximas que o oferecem, como
Oriximiná, Óbidos, Santarém ou mesmo Manaus, onde uns poucos de Cachoeira Porteira
têm a sorte de contar com parentes, e, com o apoio dos quais, dão prosseguimento a seus
estudos.
Sem emprego, alguns dos jovens ultimamente se têm iniciado em caminhos tortos
como o alcoolismo, por exemplo, não sendo raro o seu envolvimento em algazarras,
tumultos ou brigas em Cachoeira Porteira – o que preocupa não só as respectivas famílias
como a própria AMOCREQ-CPT, que, de vez em quando, para amenizar o problema, edita
comunicados como o de 08/07/2011, que proíbe, entre outras coisas, a “venda de quaisquer
bebidas e cigarros a qualquer pessoa menor de 18 anos de idade (...)”.
Habitação.
242
precárias; realidade essa que se pode inferir a partir da observação de aspectos importantes
da estrutura básica das construções (piso, paredes e cobertura).
Madeira (Tábuas ou
72 68,57
paxiúba)
Cimentado 26 24,76
Chão batido 05 4,76
Outro 01 0,95
No que respeita às paredes, apenas uma das habitações tem todas as suas
paredes de alvenaria; 94,29% delas têm paredes de madeira, e quatro outras (3,81%), de
outro tipo de material, exclusive taipa e juçara. Sobre uma (0,95%) das habitações não se
obteve informação (Tabela 20).
243
Com relação à cobertura constatou-se que das residências existentes apenas duas
(1,91%) são cobertas totalmente com telhas de barro; a maioria (70,48%) tem como
cobertura telhas de amianto (brasilit); Dez residências (9,52%) têm cobertura de palha, e 18
(17,14%), de outro material, exclusive cavaco e sua combinação com palha e telha de barro.
Sobre uma das residências não se obteve informação (Tabela 21.)
Energia elétrica.
Tal situação, como se sabe, repercute negativamente nas condições de vida dos
moradores, privando-os da possibilidade de usufruir de importantes benefícios.
Saneamento e Saúde.
94
Segundo a definição adotada no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS), saneamento é o controle de
todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o bem-estar físico, mental e
social.
244
No caso de Cachoeira Porteira, a exemplo do que ocorre em várias outras
comunidades quilombolas do Estado – ou, melhor, na maioria das comunidades rurais do
Pará – as ações de saneamento ainda deixam muito a desejar, apesar da situação não ser
das piores, conforme se verá em sequência.
No que se refere ao abastecimento de água tem-se que no sistema que utiliza uma
fonte natural, já descrito acima, o fornecimento não é permanente. No verão, por exemplo,
há períodos em que a água da fonte escasseia obrigando os moradores que dependem
desse sistema a passar por situações de aperto. Por outro lado os moradores que
dependem do sistema de bomba hidráulica, são obrigados a utilizar água sem tratamento
adequado, posto que esta é captada diretamente do rio. O mesmo acontece com aqueles
que moram fora de Cachoeira Porteira.
245
mesmas o destino mais comum dado ao lixo aí produzido fosse a coleta realizada pela
prefeitura. Os dados obtidos mostram, porém, que na maior parte dos domicílios de
Cachoeira Porteira a prática mais frequente com relação à destinação do referido material é
a queima (Tabela 23).
37,
Coleta pública 39
14
3,8
Enterrado 03
1
57,
Queimado 59
14
0,9
Outro 01
5
0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012
A sede de Cachoeira Porteira ainda não conta com rede geral de esgoto. No que se
refere às instalações sanitárias domiciliares pode-se dizer com base nos dados obtidos que
na maioria das residências (90) da comunidade faz uso da fossa rudimentar. Em apenas 14
do total de residências a fossa séptica é utilizada (Tabela 24).
246
Tabela 24: Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira
segundo esgotamento sanitário
Especificação Abs. %
Rede geral - -
13,
Fossa séptica 14
34
85,
Fossa rudimentar 90
71
A céu aberto - -
0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012
95
Cf. Nascimento, Aldenor et. al. Repercussões sócio-econômicas do complexo industrial Albrás-
Alunorte em sua área de influência imediata. Idesp: Belém, 1991, passim.
247
permanece sem condições de funcionamento, porquanto não dispõe de água, nem de
pessoal, nem de equipamentos e nem de remédios, entre outros requisitos necessários 6.
Esse fato, a que esses moradores se reportam com certo orgulho, provavelmente
tem correlação com a excelência da água consumida pela maioria deles e com a sua
alimentação, que além de farta, é enriquecida pela constância de um cardápio variado, em
que não faltam frutos regionais silvestres (castanha, piquiá, tucumã, ingá, etc.), pescados
frescos (piau, sardinha, surubim, filhote, dourada, tambaqui, camunanim, etc.), e carnes
verdes, de caça (jabuti, mutum, jacu, paca, caititu ou queixada, anta, etc.).
Comunicação
Na comunidade não circula nenhum jornal diário, semanal ou mensal. Assim como
nenhuma revista.
248
Nessa comunidade ainda predomina o contato face a face e/ou o contado “indireto”
transmitido por terceiros.
Essa associação, cuja diretoria é eleita para um mandato de dois anos, constitui
atualmente a principal organização social atuante na comunidade. Dela participam todas as
famílias que ali residem. Sua criação resultou, basicamente, de quatro tipos de preocupação
ou interesse, que foram: 1º) Usufruir o direito assegurado aos quilombolas nos artigos de nº
68 (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e 322 das constituições federal e
estadual, respectivamente, acima mencionadas; 2º) Garantir a permanência dos
remanescentes de quilombos de Cachoeira Porteira na área dessa comunidade; 3º) Iniciar o
processo de demarcação e regularização de suas terras junto ao Estado (ITERPA); 4º)
Impedir que essa área, constantemente ameaçada por invasores (grileiros, empresas
madeireiras e mineradoras, pescadores de geleira, sojeiros, etc.), seja usada de forma
desordenada e em prejuízo de seus legítimos ocupantes; e, 5º) “Conservar e proteger a
floresta’ (existente dentro da área quilombola) ‘assim como a identidade de seu povo”96.
96
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., pp. 27-28
249
Uma prova evidente disso, a qual convém lembrar aqui, é dada pelo acordo não litigioso
que, por iniciativa da referida associação, os quilombolas de Cachoeira Porteira
estabeleceram em 30/07/2005, com os indígenas das etnias Wai-Wai, Tunayana e Kaxiuana
(com quem, aliás, há mais de século interagem nas bacias dos rios Trombetas, Mapuera e
Cachorro). Com esse acordo, quilombolas e indígenas validaram em conjunto o
reconhecimento dos limites de seus respectivos territórios.
Esse acordo, que no momento em que foi estabelecido, teve importância no âmbito
das inter-relações entre indígenas e quilombolas na referida área, após a criação, em 2006,
das Flotas Trombetas e Faro, pelo governo do Estado (que ignorou – violentou talvez seja a
palavra mais apropriada – o direito de constitucional de propriedade das populações
tradicionais que há muito tempo habitam aqueles territórios) serve ainda para mostrar que
não é de hoje que os povos indígenas reconhecem e concordam com os limites das terras
quilombolas e vice-versa.
250
Um indicador dessa potencialidade que, ao mesmo tempo, a embasa, tem a ver,
certamente, com a experiência associativa desses moradores, cuja origem pode ser
buscada na prática comum de ajuda mútua (mutirão) entre as famílias locais, a qual ainda
existe na comunidade, e, atualmente, com certa frequência, além de ser estimulada entre as
crianças da escola, através dos “mutirões de limpeza”, também pode ser encontrada no
extrativismo da castanha, entre outras atividades econômicas locais.
97
As informações sobre religião em Cachoeira Porteira aqui apresentadas, em sua quase totalidade,
foram extraídas do trabalho de Ozanete Vieira Azevedo e Sebastiana da Silva Ribeiro citado em página anterior.
251
Nesse domínio fala-se em dois grandes eixos componentes da cultura, entendida
como significando tudo aquilo que resulta da produção social do ser humano no seu
exercício cotidiano de sobrevivência: 1) um referente à produção que decorre das relações
dos homens com a natureza; e, 2) o outro alusivo à produção derivada das relações dos
homens entre si. Isso implica no seguinte fato: em qualquer sociedade/comunidade
encontra-se pelo menos dois conjuntos amplos e ao mesmo tempo diversos de elementos
de cultura (os quais, naturalmente, apresentam vastas interseções). Esses elementos, de
certo modo, determinam os aspectos material e não-material da cultura.
98
Koenig, Samuel. Elementos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, pp. 58-59.
99
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 30.
252
obstante, como não poderia deixar de ser, contêm importantes informações, ainda que
fragmentárias, sobre o aspecto material da cultura dos antepassados (criadores e usuários
dos objetos) dos atuais quilombolas da comunidade100.
Importa aí dar atenção para objetos tais como: 1) canoas de madeira, construídas
de caules ou troncos de árvores inteiriços; 2) remos de madeira destinados a manobrar e
impulsionar pequenas embarcações como canoas; 3) paneiros – o comum, feito de cipó-
titica, usado no acondicionamento e no transporte de castanha, e o de alça ou jamanxim,
usado para transportar às costas, a castanha; 4) cofo de palha, espécie de cesto com
diversos usos; 5) peneiras de palha, que servem de crivo; e vários outros, oriundos do
artesanato: 6) tapetes de croché, e 7) miniaturas de embarcações, etc; etc.
Numa lição de Amilcar Cabral, ainda que referente a outro contexto, é possível
aprender que a “luta de um povo, a resistência de um povo tem várias formas”, sendo que a
“primeira condição” para essa resistência, seja ela política, econômica, cultural, etc., “ é a
100
Muito mais desses artefatos provavelmente serão recolhidos quando se fizer uma pesquisa
sistemática nos vários sítios onde aqueles quilombos existiram.
253
união”, a capacidade “de unir as pessoas”, a disposição e a capacidade de luta demonstrada
por um grupo de pessoas101.
Para o autor acima citado, “resistência é o seguinte: destruir alguma coisa, para
construir outra coisa. Isso é que é resistência”102. E, segundo ainda o mesmo Cabral,
resistência é cultura, um elemento da cultura de um povo e, ao mesmo tempo, um indicador
da elevação dessa cultura103.
101
Cabral, Amilcar. Análise de alguns tipos de resistência, Lisboa: Seara Nova, 1974, passim.
102
Idem, ibidem, p. 11.
103
Idem, ibidem, passim.
104
Idem, ibidem, p. 82.
254
A dança que se tenta hoje preservar nessa comunidade como herança de seus
antepassados é o lundum. Nesta dança praticada nas festas de negros, ou, como estes
chamavam antigamente, “festas gandaias”, os integrantes dos casais de dançarinos se
movimentam separados um do outro. Os instrumentos necessários para a dança do lundum
são: violino, gambá, bumbo, pandeiro, viola e cavaquinho105.
Povo Negro
O povo negro era muito
muito humilhado
Para os brancos não podia ser cristão
Era vendido como lote de gado
Tinha que ter a marca do seu patrão
Era obrigado a fugir da senzala
Com um par de roupas e sem alimentação
Tudo isso para viver liberto
Garantir o seu direito
Sair da Escravidão
O povo negro sempre foi excluído
Pra ser cristão ele teve que estudar
Pois a história de quilombo é triste
A mãe cachoeira veio pra libertar
Mas de repente
A Constituinte vendo seu sofrimento
Um artigo criou
E hoje eu vivo e canto feliz
Porque liberto estou.
105
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 30.
255
Outro elemento da cultura não-material da comunidade são as lendas. Conforme
dizem algumas moradoras do lugar, “Cachoeira Porteira é também rica em lendas”106, a
mais popular é a do “Negrinho do porão”, porão da cachoeira.
Afora isso poucas são as opções de lazer em Cachoeira Porteira, algumas delas
como as libações alcoólicas, praticadas principalmente por homens, são consideradas nada
saudáveis pela AMOCREQ-CPT, que as tem desestimulado ou procurado inibi-las.
106
Idem, ibidem.
107
Idem, ibidem.
256
10 CONSIDERAÇOES FINAIS
Nas referências bibliográficas ao final desse relatório há um arrolamento de leis e
de decretos de livre acesso, pertinentes à questão das comunidades remanescentes de
quilombos. Porém, faz-se necessária a conexão de alguns desses mecanismos para evocar
a situação em que se encontra a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, disposta
entre a dúvida de pertencimento e de disputas territoriais.
257
Mesmo que aos olhos da primeira vez Cachoeira Porteira pareça com uma vila de
casas de madeira a beira de um rio, os fatos e as histórias contadas por seus moradores
apontam outra versão: aqueles que vieram de fora não pediram consentimento, foram
chegando, expulsando famílias de seus locais de origem, abrindo a floresta com maquinário
pesado, transformando a paisagem. E impelidos por essa conjuntura, eles foram se
achegando às margens da BR 163, mas próximos do local de pertencimento.
258