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GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ

SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE


INSTITUTO DE TERRAS DO PARÁ
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, SOCIAL E AMBIENTAL DO PARÁ

Relatório Técnico Científico para Identificação do Território


da Comunidade Remanescente de Quilombo Cachoeira
Porteira

JUNHO DE 2012
BELÉM

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GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ
Governador Simão Robison Oliveira Jatene

SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE


Secretário José Alberto Colares

INSTITUTO DE TERRAS DO PARÁ


Secretário Carlos Lamarão

INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, SOCIAL E AMBIENTAL DO PARÁ


Presidente Maria Adelina Braglia

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GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ
SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE
INSTITUTO DE TERRAS DO PARÁ
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, SOCIAL E AMBIENTAL DO PARÁ

Termo de Cooperação Técnica e Financeira nº 001/2012,


de 08/02/2012, celebrado entre a Secretaria de Estado de
Meio Ambiente (SEMA), Instituto de Terras do Pará
(ITERPA) e o Instituto de Desenvolvimento Econômico,
Social e Ambiental do Pará (IDESP)

Coordenação Interinstitucional
Paulo Sérgio Altieri dos Santos - SEMA
Roza Modolo - Coordenadoria de Projetos Especiais do ITERPA
Gustavo Américo Pinto da Silva - Assessoria Técnica do IDESP

Colaboradores
Divino Herculys Lima, economista
Emmanuel de Almeida Farias Júnior, antropólogo
Everaldo Nascimento de Almeida, engenheiro agrônomo
José Ferreira da Rocha, geógrafo
Manuella Mattos Porto, socióloga
Rita de Cassia Gugliotti Braglia, jornalista

Belém
2012

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APRESENTAÇÃO 45
1 INTRODUÇAO 7
PARTE I IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE
CACHOEIRA PORTEIRA
2 METODOLOGIA 9
2.1 PROCESSO DE MATERIALIZAÇÃO DO RELATÓRIO 9
2.2 METODOLOGIAS ESPECÍFICAS 12
2.2.1 Diagnóstico socioeconômico, ambiental e cultural 13
2.2.2 Uso da terra - mapeamento agroextrativista 13
2.2.3 Estudo antropológico 14
2.2.4Representação cartográfica
3. RELAÇÕES INTERNAS, INFLUÊNCIAS EXTERNAS E SITUAÇÃO PRESENTE 16
3.1“OS DE DENTRO” 18
3.2“OS DE FORA” 21
3.3 “OS DO ENTORNO” 28
3.4 AMOCREQ: UM DIREITO FUNDAMENTAL OFUSCADO PELA 33
BUROCRACIA
4. DIAGNÓSTICO SOCIOECONÔMICO, AMBIENTAL E CULTURAL 38
4.1 INFRAESTRUTURAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVA 40
4.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS E AMBIENTAIS 40
4.2.1 Hidrografia 40
4.2.2 Clima 40
4.2.3 Tipos de solo 41
4.2.4 Vegetação 41
4.2.5 Fauna 43
4.2.6 Sítios arqueológicos do período paleozoico 43
4.3 ASPECTOS SOCIOCULTURAIS 44
4.3.1 A Educação 44
4.3.2 A Saúde 52
4.4 ASPECTOS DEMOGRÁFICOS 56
4.5 ASPECTOS ECONÔMICOS 57
4.5.1 Extrativismo Animal e Vegetal (Produtos florestais não madeireiros)
4.5.2 A atividade extrativista da castanha 62
4.6 MAPEAMENTO AGROEXTRATIVISTA 70
4.6.1 Utilização do solo 71
4.6.2 Uso dos recursos da floresta 80
4.7 ANÁLISE DO AMBIENTE INTERNO 85
4.8 MEIO AMBIENTE E ETNOCONSERVAÇÃO 86
4.8.1 Imagens da floresta 88
5 REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA 91
5.1 MAPEAMENTO DA ÁREA DE PRETENSÃO 91
5.2 CONSTRUÇÃO DA CARTA-IMAGEM 93
5.2.1 A malha de drenagem 93
5.2.2 Acidentes geográficos 94
REFERÊNCIAS 97
PARTE llESTUDO ANTROPOLÓGICO
6 COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DE CACHOEIRA PORTEIRA 100
6.1 O ESTADO E A UNIDADE SOCIAL: CONFLITOS E REIVINDICAÇÃO 100
TERRITORIAL
6.1.1 Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de 102

7
Quilombo de Cachoeira Porteira-AMOCREQ-CPT
6.1.2 Produto de relações entre indígenas e quilombolas 105
6.1.3 O Estado e a natureza: políticas ambientais no rio Trombetas 111
6.1.3.1 Políticas ambientais no âmbito estadual 115
6.1.4 A judicialização da relação entre indígenas e quilombolas 116
6.2 QUILOMBOLAS DO ALTO TROMBETAS: CACHOEIRA PORTEIRA 119
6.2.1 Quilombolas de Cachoeira Porteira 120
6.2.2 Uma leitura do conceito de quilombo 127
6.2.3 A Porteira 131
6.2.4 Viajantes e naturalistas 134
6.2.5 O extrativismo na virada do Século XX 135
6.2.6 Projetos de infraestrutura, mineradores e hidrelétricos: expropriação 143
territorial
6.3 FUGA E PERSEGUIÇÃO AOS MOCAMBEIROS DO TROMBETAS 157
6.3.1 Os processos diferenciados de territorialização 167
6.3.2 Extrativismo: um modo de viver 171
6.3.3 Calendários extrativistas e agrícolas 179
6.4 SANTOS E VISAGENS 187
6.4.1“Evangélicos” e “católicos” 187
6.4.2 Os festejos de Nossa Senhora de Fátima 188
6.4.3 Benzimentos 191
6.4.4 As visagens 192
6.5 CONSIDERAÇÕES: “TERRITORIALIDADES ESPECÍFICAS” E OS 196
QUILOMBOLAS DE CACHOEIRA PORTEIRA
REFERÊNCIAS 206
ANEXOS 213
216
PARTE III - CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DA COMUNIDADE DE
CACHOEIRA PORTEIRA
216
7 PREFÁCIO
218
8 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO FÍSICO-NATURAL
222
9 SITUAÇÃO FUNDIÁRIA
222
9.1 OCUPAÇÃO FÍSICO-ESPACIAL
224
9.2 INDICAÇÕES HISTÓRICAS
232
9.3 POPULAÇÃO
233
9.4 ASPECTOS ECONÔMICOS E RENDA DOS MORADORES
233
9.4.1 Sobre a Economia
240
9.5 ASPECTOS DAS CONDIÇÕES DE VIDA DA POPULAÇÃO
10 CONSIDERAÇOES FINAIS 258

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APRESENTAÇÃO

“.... eu faço assim, eu tenho esperança de um dia nós dizer, isto aqui é
nosso, nem que seja trezentos mil hectares, como quer que seja, mais se for nosso, o
problema é nossos filhos, por exemplo, eu to com 65 anos completo, daqui com mais
trinta e cinco anos provavelmente eu não vou mais tá vivo, mais tem... só neto eu
tenho trinta, três bisneta, sete filhos e três genros e duas noras, então é um sonho de
ver o futuro da minha geração, poxa uma beleza, eu vou morrer mais sei que meus
filhos, meus netos, ficaram libertos...” (Entrevista com Raimundo Adão de Souza, 65
anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira )

A existência da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, no município de


Oriximiná, estado do Pará, está documentada historicamente nos registros de escravos nas
plantações de cacau na região do baixo Amazonas em 1778, no registro de autorização,
dos mocambos no Alto Trombetas entre 1823 e 1870, no belíssimo relato de Henri
Coudreau Viagem ao Trombetas (1899), na memória oral dos remanescentes de quilombos
da comunidade.

Os estudos e pesquisas relatam as estratégias de sobrevivência, o conhecimento e


uso do território e os embates com os “de fora”: empresas mineradoras, empresas
construtoras e o estado brasileiro, através de unidades de conservação criadas no entorno,
nas últimas três décadas (Reserva Biológica do Trombetas, Floresta Estadual de Faro e
Floresta Estadual do Trombetas).

Neste relatório, fruto de têrmo de cooperação entre órgãos do Governo do Estado do


Pará, competiu ao Instituto de Desenvolvimento Econômicos, Social e Ambientakl do
Estado do Pará - IDESP, apresentar a definição do território pretendido.
Desde o primeiro levantamento, feito no Núcleo de Cartografia do IDESP, com a
participação das lideranças de cachoeira Porteira e posteriormente em campo, com o
acompanhemtno técnico dos geógrafos da instituição, observou-se perfeita sintonia entre o
território de uso e o território pretendido.

A pretensão inicial dos quilombolas de Cachoeira Porteira, após consultas à


comunidade, foi reduzida - está muito aquém daquela historicamente o comprovada desde
que Coudreu entrou nas águas do rio Trombetas - moldada na solidariedade social dos
quilombolas de Cachoeira Porteira face à demanda da Fundação Nacional do Índio - FUNAI,

5
de criação de terra indígena no entorno - insinuando-se conflitos inexistentes, fato que
chamou a atenção do Ministério Público Federal, representação de Santarém, gerando um
Inquérito Civil Público de maio de 2011 .

Assim, este estudo é um exercício técnico-científico de reavivar o passado, através


da memória e dos documentos existentes, uni-lo ao presente de resistência aos “de fora” e
da solidariedade aos semelhantes do entorno, de responder às dúvidas que porventura
pairem sobre o diretito ao reconhecimento dos “negros do rio” ao futuro com respeito,
segurança e sustentabilidade..

(Maria Adelina Guglioti Braglia – presidente do IDESP)

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1. INTRODUÇÃO

O IDESP assumiu o compromisso de produzir um documento que respeitasse as


peculiaridades da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, fazendo-se necessário
consolidar seus limites territoriais de ocupação, respeitando-se sua identidade, formas de
organização, valores e dimensão antropológica, sociológica, agronômica e histórica . Para
tanto, o Instituto seguiu os meios legais para a contratação de profissionais, de acordo com
o previsto no Plano de Trabalho constante no Termo de Cooperação Técnica e Financeira.

Desde maio de 2011, órgãos públicos de âmbito federal e estadual vêm realizando
reuniões em Santarém, Brasília e Belém - em três ocasiões com a participação da
Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira
Porteira (Amocreq-CPT) -, tendo como pauta a sobreposição dos territórios indígena e
quilombola.

Em 08/02/2012, três instituições do Governo do Estado do Pará celebraram o


Termo de Cooperação Técnica e Financeira nº 001/2012, com o compromisso de produzir
um relatório sobre os acontecimentos locais e realizar um estudo técnico científico,
abrangendo as dimensões antropológicas, agronômicas, sociológicas e históricas para
identificação da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira. São eles: a Secretaria de
Estado de Meio Ambiente - SEMA (órgão proponente), o Instituto de Terras do Pará -
ITERPA (órgão parceiro) e o Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental
do Pará - IDESP (órgão executor).

Dessa forma, o “Relatório Técnico Científico para Identificação do Território da


Comunidade Remanescente de Quilombo Cachoeira Porteira” tem também como principal
componente a revisão histórica da penetração quilombola no Alto Rio Trombetas, visto
existirem inúmeros estudos que versam sobre o tema os quais são apontados nas
referências bibliográficas. A título de sugestão, o livro “Negros do Trombetas: guardiães de
matas e rios”, de autoria de Rosa Acevedo e Edna Castro (2ª edição, 1998), é de uma
seriedade ímpar.

A história da resistência e da sobrevivência dos negros de Cachoeira Porteira no


grande Território Quilombola do Pará vem contada no presente, pontuada por fatos que a
memória ancestral insiste em perpetuar. Eles são quilombolas e se reconhecessem como
tal, vindos de um tempo de perseguições e de lutas, de embates políticos, econômicos e
sociais travados no confim da floresta Amazônica.

O relatório aqui apresentado contém três partes:

7
A primeira, “IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE
CACHOEIRA PORTEIRA”, foi orientada pela análise de fatos contemporâneos (relações
internas, influências externas e situação presente), pela produção do diagnóstico
socioeconômico, ambiental e cultural (perfil da comunidade em seu território) e a
representação cartográfica da área pretendida para titulação, com a projeção territorial das
áreas de uso coletivo.

A segunda parte, “ESTUDO ANTROPOLÓGICO”, partiu de um trabalho de


pesquisa, iniciado em 2005, na região do rio Trombetas (Baixo Amazonas), município de
Oriximiná, tendo como enfoque as comunidades remanescentes de quilombo e suas
relações com os recursos naturais. A inclusão de Cachoeira Porteira nesse estudo, a última
fronteira quilombola, a porteira por assim dizer, completa o ciclo desse universo quilombola
no rio Trombetas, alto Trombetas. Para compilar as informações necessárias os trabalhos
de campo foram realizados em dois períodos: de 29 de março a 13 de abril de 2012 e de 10
a 31 de maio de 2012.

A terceira parte reproduz na íntegra o relatório expedido pelo Instituto de Terra do


Pará, órgão parceiro no Termo de Cooperação Técnica, denominado “Caracterização Sócio-
econômica de Territórios Quilombolas no Pará: a Comunidade de Cachoeira Porteira”.

Espera-se que as impressões e verificações apresentadas a seguir sanem dúvidas,


atinjam os objetivos de consolidação do território à comunidade quilombola, orientem novas
pesquisas e, acima de tudo, que garantam o direito histórico de pertencimento aos
quilombolas de Cachoeira Porteira.

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2. METODOLOGIA

2.1 PROCESSO DE MATERIALIZAÇÃO DO RELATÓRIO

O IDESP assumiu o compromisso de produzir um documento que respeitasse as


peculiaridades da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, fazendo-se necessário
consolidar seus limites territoriais de ocupação, respeitando-se sua identidade, formas de
organização, valores e dimensão histórico-cultural. Para tanto, o Instituto seguiu os meios
legais para a contratação de profissionais, de acordo com o previsto no Plano de Trabalho
constante no Termo de Cooperação Técnica e Financeira.

Todos os procedimentos metodológicos adotados na produção do “Relatório


Técnico Científico para Identificação do Território da Comunidade Remanescente de
Quilombo Cachoeira Porteira” foram orientados por documentos legais, podendo ser citados
os seguintes: Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; Convenção 169 da OIT, que trata dos
direitos dos povos indígenas e tribais; como também, o Decreto 6040/2007, que institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos Tradicionais do Brasil. Tais
dispositivos garantem a participação dos interessados na delimitação do território, a
proteção de seus direitos e a garantia de sua integridade física, social e cultural.

A elaboração deste estudo aconteceu sob a orientação do coletivo quilombola,


implicando em opção metodológica de caráter participativo. Portanto, foram realizadas duas
incursões à comunidade para cumprir esse acordo: a primeira, em atuação conjunta com o
Iterpa, teve como objetivo identificar e validar as coordenadas plotadas na carta-imagem da
poligonal da área pretendida pela comunidade quilombola de Cachoeira Porteira e dar
consistência às informações pertinentes ao processo de regularização fundiária; a segunda
teve como missão consolidar informações para a conclusão do “Relatório Técnico Científico
para Identificação do Território da Comunidade Remanescente de Quilombo Cachoeira
Porteira”.

Para maior compreensão desses procedimentos, a seguir são descritas as etapas


que auxiliaram no processo de materialização do objeto em questão:

1ª Etapa: carta-imagem da área de pretensão – carta-imagem e a descrição da


poligonal contendo a área de pretensão da comunidade foram atualizadas em Belém,

9
no dia 13 de março de 2012, pelo Núcleo de Cartografia e Georreferenciamento do
Idesp e por três representantes da Associação dos Moradores da Comunidade
Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (Amocreq-CPT)1. Para a
elaboração desse primeiro produto foi utilizado o Catálogo de Imagens do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), adquiridas através de download, recobrindo
as áreas de uso e de pretensão. O Idesp colocou à disposição dos interessados
várias cópias da carta-imagem plotada, para subsidiar as etapas de campo relativas
à demarcação de limites, tanto da área pretendida como das áreas de uso dos
castanhais.

2ª Etapa: reunião de planejamento interinstitucional - No dia 14 de março de


2012 foram iniciadas as conversações entre as entidades governamentais Sema, Idesp e
Iterpa e as não-governamentais Amocreq e Coordenação das Associações das
Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Pará (Malungu), para eleger as
prioridades nas ações, ficando acordado que o Idesp e o Iterpa iriam a campo para validar
os pontos plotados na carta-imagem. Seguindo os trâmites legais, o Iterpa divulgou um
edital para que no prazo de 30 dias fosse ou não contestada a condição quilombola de
Cachoeira Porteira (publicação nº 358760, DOE, 28/03/2012).

3ª Etapa: primeira incursão à comunidade de Cachoeira Porteira - No período


de 30 de março a 12 de abril de 2012, a equipe interinstitucional esteve em Cachoeira
Porteira, composta pelos seguintes membros: ITERPA - Aldenor Nascimento, da
Coordenadoria de Projetos Especiais; Renata Guizarde, técnica administrativa; Antônio
Carlos Fausto da Silva e Mário Sérgio Lima, técnicos de campo do órgão; IDESP - Gustavo
Pinto da Silva, engenheiro florestal e assessor técnico; José Ferreira da Rocha, geógrafo;
Rita de Cassia Gugliotti Braglia, jornalista; e Emmanuel de Almeida Farias Júnior,
antropólogo. Os trabalhos foram realizados em duas frentes:

ITERPA: Validação dos pontos de coordenadas plotadas na carta-imagem da


poligonal da área pretendida pela comunidade (memorial descritivo); Aplicação
de formulários voltados para o levantamento socioeconômico das famílias;

1 Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, Artigo 2º, § 3o - Para a medição e demarcação das
terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas
para a instrução procedimental.

10
Atualização da relação de famílias integrantes da comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira (Ficha Cadastral Familiar Quilombola).
IDESP : Mobilização comunitária e coordenação dos trabalhos em campo;
Identificação da malha de drenagem inserida na poligonal, atribuindo nomes
segundo o conhecimento empírico e histórico da região; Treinamento dos
membros da comunidade para operação de GPS de navegação e formação de
equipes para o trabalho de campo;
Acompanhamento da identificação dos pontos das coordenadas da poligonal
pretendida;
Identificação de pontos de coordenadas que compreendem a área de interesse;
Mapeamento antropológico da área pleiteada, a partir da visão dos quilombolas e do
conhecimento local associado à tecnologia aprendida;
Apresentação de todas as etapas realizadas à comunidade.

4ª Etapa: avaliação de resultados – no retorno a Belém, a equipe do IDESP


produziu um Relatório de Atividades – versão Preliminar – contendo as informações obtidas
nessa primeira incursão a Cachoeira Porteira. O relatório versou sobre os seguintes
assuntos: Ocupação territorial (“os de fora” e “os de dentro”); Memorial do levantamento
antropológico preliminar; Meio ambiente e etnoconservação em Cachoeira Porteira;
Levantamento cartográfico (Identificação da malha de drenagem, Treinamento para
operação de GPS, Formação das equipes de campo, Atualização da carta-imagem);
Mapeamento antropológico das áreas pretendidas ; Plano de Trabalho Executado; e
Memória Fotográfica.

5ª Etapa: segunda incursão à Comunidade de Cachoeira Porteira – No período


de 10 a 31 de maio de 2012, a equipe do Idesp retornou à comunidade com o objetivo de
consolidar informações, composta pelos seguintes membros: Divino Herculys Lima,
economista; Emmanuel de Almeida Farias Júnior, antropólogo; Everaldo Nascimento de
Almeida, engenheiro agrônomo; José Ferreira da Rocha, geógrafo; Manuella de Mattos
Porto, socióloga; e Rita de Cassia Gugliotti Braglia, jornalista. Foram concluídas as
seguintes etapas: Levantamento socioeconômico, ambiental e cultural; Estudo de viabilidade
econômica para aproveitamento de produtos não madeireiros; Mapeamento agroextrativista
participativo, contendo as áreas de roçado e dos castanhais; Levantamento de espécies
vegetais (caracterização florística); Atualização das informações cartográficas da área
pleiteada e de uso coletivo dos castanhais e apresentação da carta-imagem; e Conclusão
do mapeamento antropológico.

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2.2 METODOLOGIAS ESPECÍFICAS

O Relatório teve como entendimento a metodologia participativa, contando com a


anuência e a atuação da comunidade quilombola, porém, por abranger diversas áreas da
ciência, os métodos utilizados pelos profissionais vêm descritos a seguir:

2.2.1 Diagnóstico socioeconômico, ambiental e cultural

A coleta de dados necessária à construção do Diagnóstico socioeconômico,


ambiental e cultural se deu através de entrevistas, da aplicação de formulários contendo
questões qualitativas e quantitativas e, para a análise do ambiente interno foi realizado um
diagnóstico participativo envolvendo o coletivo quilombola.

As entrevistas partiram de conversas informais, semi-estruturadas e tiveram como


objetivo adentrar no universo dos entrevistados, o que possibilitou compreender os
processos socioeconômicos desenvolvidos na comunidade, identificando suas formas de
organização e práticas tradicionais.

Os formulários, preenchidos por família, continham tanto informações de ordem


quantitativa (número de membros familiares, idade, sexo, renda, entre outros) quanto
qualitativas, como a opinião sobre educação, saúde, meio ambiente e preservação. Foram
necessários 10 dias para percorrer todas as residências e esse trabalho não se restringiu
àquelas instaladas somente ao longo da BR-163, estendendo-se às localidades do entorno,
como Tapaginha, Nova Amizade, Alzibeira e Lago do Macaxeira.

O Diagnóstico Participativo foi o espaço de manifestação coletiva e teve como


objetivo apontar problemas de infraestrutura existentes na comunidade, visualizar as
dificuldades, buscar soluções e indicar as possíveis formas de gestão comunitária na busca
de soluções.

Simultaneamente à aplicação dos formulários foi realizada a produção de material


fotográfico constando os tipos de moradia e a ocupação do espaço residencial - formação
dos quintais.

Em decorrência da permanência de profissionais do Idesp por 35 dias na


comunidade, convivendo e atuando nas dimensões antropologia, economia, geografia,
agronomia, sociologia e comunicação social, todas as atividades executadas no diagnóstico
foram abonadas pela mesma e tiveram caráter compartilhado.

12
Mapeamento agroextrativista
Para descrever as formas de utilização do solo, das áreas de floresta e o modo de
produção extrativista foram realizadas pesquisas prévias em estudos pertinentes à região de
Cachoeira Porteira, citados nas referências bibliográficas.

Uma vez em campo foram respeitados os saberes locais para compor um


mapeamento agroextrativista, que obedeceu as seguintes etapas: a) Envolvimento da
comunidade na identificação espacial de uso dos recursos, contendo as atividades
agropecuárias e extrativistas; b) Entrevistas informais com representantes das organizações
locais; c) Entrevista estruturada para um grupo representativo das famílias quilombolas
(15%), para a obtenção de informações quantitativas e qualitativas sobre os usos dos
recursos agrícolas e florestais da área em questão; d) Visitas às áreas de produção agrícola
e de uso florestal das famílias para comprovação técnica.

O levantamento agroeconômico englobou tanto as formas de utilização da terra


como dos produtos florestais não madeireiros. A partir da identificação das áreas de uso
coletivo realizada no mapeamento antropológico, outros dois mapas foram elaborados: um
contendo informações espaciais sobre o uso dos recursos (da terra) e outro identificando os
períodos (em meses) em que os ciclos produtivos são realizados.

Os processos utilizados para a identificação e caracterização das atividades


comerciais e extrativistas estiveram vinculados às dimensões sociais, econômicas,
ambientais e culturais que envolvem a comunidade. Somente no processo de coleta e
aviamento de castanha optou-se pela pesquisa amostral com 12 castanheiros de diferentes
grupos de coleta, a fim de evitar duplicidade das informações.

Para descrever as formas de utilização do solo, das áreas de floresta e o modo de


produção extrativista foram realizadas pesquisas prévias em estudos pertinentes à região de
Cachoeira Porteira, citados nas referências bibliográficas.

2.2.2 Uso da terra - mapeamento agroextrativista

Para descrever as formas de utilização do solo e das áreas de floresta foi realizada
uma pesquisa prévia sobre os estudos pertinentes à região de Cachoeira Porteira,
constantes no capítulo das referências bibliográficas.

Uma vez em campo foram respeitados os saberes locais para compor um


mapeamento agroextrativista, que obedeceu as seguintes etapas: a) Envolvimento da
comunidade na identificação espacial de uso dos recursos, contendo as atividades
agropecuárias e extrativistas de interesse; b) Entrevistas informais com representantes das

13
organizações locais; c) Entrevista estruturada para um grupo representativo das famílias
quilombolas (15%), para a obtenção de informações quantitativas e qualitativas sobre os
usos dos recursos agrícolas e florestais da área em questão; d) Visitas às áreas de
produção agrícola e de uso florestal das famílias para comprovação técnica sobre a
veracidade das informações obtidas nas entrevistas.

2.2.3 Representação cartográfica

A carta-imagem da área de pretensão foi elaborada inicialmente em Belém, quando


da visita de três representantes da Associação de Moradores da Comunidade
Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (AMOCREQ) ao Núcleo de Cartografia
do IDESP, em meados de março de 2012. Na ocasião foi produzido o esboço e a descrição
da poligonal da área pretendida, partindo-se de acidentes geográficos e hidrográficos.
Foram utilizadas as imagens fornecidas pelo satélite Resource Sat-1(2), recobrindo as áreas
de uso e de pretensão, que compõem o município de Oriximiná, constantes do Catálogo de
Imagens no site do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O IDESP
disponibilizou o produto final plotado em várias cópias para subsidiar todas as etapas do
estudo em campo.

Já em campo, para a identificação da malha de drenagem na área da poligonal, a


Amocreq indicou alguns quilombolas para a definição das faixas a serem trabalhadas na
identificação e coleta de pontos de coordenadas que compreendem a área de interesse. O
trabalho de identificação da malha de drenagens inserida na poligonal obedeceu os nomes
atribuídos aos acidentes geográficos e hidrográficos de conhecimento empírico e histórico
na região.

Procedeu-se ao treinamento de equipes para operação de GPS de navegação


Etrex Legend da Garmim, onde receberam orientações dos procedimentos e metodologia
para a operá-los. O exercício compreendeu a apresentação das principais funções do
aparelho e uma dinâmica em que as equipes coletaram e registraram pontos próximos,
resultando no acompanhamento e entendimento de todos os componentes, o que garantiria
o objetivo do treinamento.

As equipes também discutiram a melhor estratégia para alcançar os pontos


sugeridos na carta-imagem para, tentarem percorrer a maior extensão do perímetro da
poligonal sugerida, estimando um menor tempo possível, apesar de reconhecerem as
dificuldades em algumas porções da área de interesse.

2
Satélite Resource Sat-1, com instrumento LISS3, órbita ponto P6-316/075 e P6-316/076 de
cobertura em 09/2009 e 09/2011

14
Seis equipes foram a campo: quatro saíram para identificar os pontos das
coordenadas plotadas na carta-imagem da poligonal da área de pretensão (laterais e porção
norte); uma seguiu para fazer o reconhecimento e a demarcação das áreas de uso dos
castanhais; e outra equipe seguiu para identificar os pontos de coordenadas da área de
pretensão na porção sul, compreendendo o Rio Mapuera e os igarapés Mungubal e Água
Fria, com o limite da comunidade quilombola titulada de Mãe Domingas.

As equipes foram assim definidas:

Equipe 1 – Rio Mapuera – levantamento de 09 pontos de coordenadas;


Equipe 2 – Rio cachorro – levantamento de 10 pontos de coordenadas;
Equipe 3 – Igarapé Tramalhete Grande – levantamento de 12 pontos de coordenadas;
Equipe 4 – Rio Trombetas – coleta de pontos para aferir áreas de uso dos castanhais;
Equipe 5 – Rio Trombetas – levantamento de 16 pontos de coordenadas;
Equipe 6 – Rio Mapuera/Mãe Domingas – Iterpa/Idesp – 3 pontos de coordenadas.

No retorno das equipes de campo iniciou-se a coleta dos trabalhos com a entrega
dos aparelhos de GPS e seus apontamentos do levantamento realizado na faixa da
poligonal pretendida. Para melhor registro, as equipes também relataram os principais
acidentes geográficos no decorrer de seus trajetos na busca dos pontos sugeridos. A
entrega de seus apanhados ficou para complementar os dados do levantamento e plotagem
na carta-imagem.

15
3. IMPRESSÕES SOBRE O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE CACHOEIRA PORTEIRA

3.1. RELAÇÕES INTERNAS, INFLUÊNCIAS EXTERNAS E SITUAÇÃO PRESENTE


Este capítulo busca recuperar a constituição de ocupação histórico-geográfica do
território pleiteado pela comunidade remanescente de quilombo de Cachoeira Porteira. A
área em questão está referenciada e é legitimada através de registros históricos, apontados
pelas pesquisadoras Rosa Elizabeth Acevedo e Edna Ramos Castro, no livro “Negros do
Trombetas: guardiães de matas e rios” (1998, páginas 44 a 75), onde, além das expedições
exploradoras no rio Trombetas, constam aquelas que notadamente tiveram o cunho de
recapturar negros fugidos das fazendas de cacau no Grão Pará.

Podem ser citados alguns desses registros:

1778 – Registro de escravos nas plantações de cacau em Santarém, Óbidos e


Alenquer;

1800 a 1812 – Expedições para captura de negros fugidos na região do Baixo


Amazonas. Os negros fogem para o Alto Trombetas;

1823 a 1870 – um período de perseguições e resistência - Lei 653, de 1870, autoriza a


destruição dos mocambos localizados no Alto Trombetas;

1876 – Expedição destrói o mocambo Curuá e os negros escapam para o médio


Trombetas;

1899 – Henri Coudreau faz expedição ao rio Cachorro tendo como guias os
mocambeiros de Cachoeira Porteira.

16
17
Os quilombolas que hoje permanecem em Cachoeira Porteira convivem,
concomitantemente, com três influências em seu modo de vida: a relação com povos
indígenas dentro do território; resquícios da intrusão de empresas mineradoras, hidrelétricas
e de terraplenagem, vindas de fora do território; e de três unidades de conservação no
entorno da área de pretensão para titulação, que se sobrepuseram ao território da
comunidade quilombola.

3.1.1 “Os de dentro”

Rosa Acevedo e Edna Castro, autoras de outro documento, intitulado “Diagnóstico


da situação das comunidades localizadas na Rebio do Rio Trombetas”, iniciam o Capítulo III,
item 6, da seguinte maneira: “Cachoeira Porteira foi a matriz de onde partiu o povoamento
de outros lugares no Trombetas3”. Assim sendo, Cachoeira Porteira foi o ponto de referência
e concentração de povos africanos escravizados e em fuga, que aguardavam para subir as
cachoeiras à procura de lugares seguros. Muitos permaneceram e ainda hoje se encontram

3
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth; CASTRO, Edna Ramos. Diagnóstico da situação das comunidades
localizadas na Rebio do Rio Trombetas (Volume I, p.111). Belém: MMA/IBAMA, 2001.

18
artefatos por eles utilizados - potes, tampas de barro e antigos cemitérios são memórias de
um tempo difícil.

O “Relatório Técnico Científico para Identificação do Território da Comunidade


Remanescente de Quilombo Cachoeira Porteira” pretende caracterizar a territorialidade da
comunidade quilombola e discorrer sobre o contato e suas posteriores relações sociais entre
indígenas e quilombolas. Por observação, desde a chegada da equipe do IDESP em Porto
Trombetas até a subida do rio para Cachoeira Porteira, a constatação é de que este é um
território multiétnico. O documento intitulado “Comunidades Remanescentes dos Mocambos
do Alto Trombetas”, de autoria de Eurípedes Antônio Funes4, assim traduz essa combinação
secular:

Em 1866, Frei Carmello Mazzarino esteve por 10 dias entre os


quilombolas do alto Trombetas. Considerando a data e a descrição feita
por ele, os mocambos visitados foram o de Colônia e do Campiche para
onde aqueles se transferiram após o ataque da expedição comandada
por Maximiano de Souza, em 1855. Ali, esse franciscano encontrou
‘cerca de 130 pessoas, além de índios que estão no meio dos pretos, os
quais estão divididos por muitos lugares e em cada um achei uma linda
capelinha onde praticão atos religiosos’. (FUNES, 2000, p.6)
O presente, no entanto, coloca indígenas e quilombolas vivenciando as mesmas
circunstâncias:

Atravessam grandes distâncias para chegar aos centros comerciais, com viagens em
barcos particulares, cujos fretes são combinados e que levam mais 12 horas para
chegar até Oriximiná (ou mais de 15 horas para Óbidos) - no caso de ser preciso ir
até a capital do Estado, são mais três dias de viagem;
A saúde, tanto preventiva quanto curativa é precária, não havendo assistência
médica constante, medicamentos ou tratamentos emergenciais;
Há deficiência na Educação tanto pela falta de professores especializados quanto
pela própria extensão de ensino;
As fontes de renda são escassas, obtidas através do extrativismo (coleta de frutos da
floresta e pesca), de pequenos roçados ou de benefícios de programas de governo;
Os meios de comunicação estão em más condições e não cumprem a contento seus
propósitos.
Internamente, o exercício cotidiano de viver é que aponta o grau de reciprocidade
entre as comunidades indígenas circunvizinhas e os quilombolas de Cachoeira Porteira. Isso
se aplica nas relações de trabalho, expressas em dois acordos que foram estabelecidos em
2002 e 2005, definindo as áreas comuns de uso dos castanhais e traçando limites,
respectivamente. Ainda, nas relações de parentesco existem os casamentos entre famílias

4
Estudo que integra o Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, conduzido pela Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná e pela Comissão PróÍndio de São Paulo, 2000.

19
indígenas e quilombolas que não causam estranheza. Eles permitem, entre outros
compromissos, relações de coesão social, como a solidariedade nos momentos de
dificuldade e formas simples de cooperação.

A equipe do IDESP pode presenciar do porto de Cachoeira Porteira a ida e vinda de


barcos e a troca de favores que há entre eles. A título de exemplo, pode-se citar que uma
vez por mês o barco Silva Moda II, cujo proprietário é de Cachoeira Porteira, conduz a
comunidade quilombola até Oriximiná, com os custos repassados pela Prefeitura. Como o
barco da FUNAI está quebrado, o transporte dos índios vem sendo realizado pelo mesmo
barco, conduzindo-os ao referido centro comercial nos mesmos moldes aplicados aos
quilombolas. A recíproca é verdadeira, uma vez que o “barco dos índios”, quando em
atividade, também conduz quilombolas.

FOTO 4 e 5 - Embarcação conduzindo indígenas - Porto de Cachoeira Porteira - março/2012

Fonte: IDESP

Ainda, canoas e embarcações de alumínio indígenas ficam sob a guarda dos


moradores de Cachoeira Porteira quando os indígenas viajam à Oriximiná, demonstrando a
confiança desses para com a comunidade.

Uma casa de apoio aos indígenas foi construída com o material doado pela
Comunidade, com painéis pré-moldados deixadas pela empreiteira Andrade Gutierrez, em
decorrência da necessidade de abrigá-los quando em trânsito. É o local em que os índios
aguardam a chegada de ajuda em caso de doenças e outras situações. Há relatos de casos
de acidentes em que índios receberam os primeiros socorros por integrantes quilombolas.
Entretanto indígenas devido às relações de afinidades e parentesco ficam hospedados em
unidades residenciais quilombolas.

20
Foto 6 - Casa de apoio aos indígenas na comunidade quilombola

Fonte: IDESP

O que existe é uma solidariedade cotidiana entre povos. Alijados dos direitos
fundamentais à cidadania, ambos estão ilhados socialmente. Não há políticas públicas
eficientes para a saúde, para a educação, para os meios de comunicação e transporte, além
do cerceamento do direito de ir e vir, ferido pela presença da Mineração Rio do Norte (40%
da Vale), pela Reserva Biológica do Rio Trombetas e pela sombra das hidrelétricas da
Eletronorte.

Em Cachoeira Porteira a convivência entre indígenas e quilombolas é pacífica.

3.1.2 “Os de fora”

Ao longo dos séculos muitas transformações surgiram e, logicamente, múltiplos


interesses econômicos voltados à exploração e à ocupação da Amazônia passaram a
causar inquietação às comunidades quilombolas da região do rio Trombetas.

Durante as duas estadas da Equipe do IDESP em Cachoeira Porteira, muitos


episódios foram relatados. Entre suas próprias histórias mergulhadas no tempo, estão vivas
as lembranças daqueles que vieram “de fora”.

Há de se considerar que em Cachoeira Porteira, assim como em todas as áreas de


castanhais da Amazônia, uma vez vencidas as barreiras naturais de acesso pelos “brancos”,
o território foi expropriado por décadas e tolhido o direito ao uso dos recursos naturais pelas
populações extrativistas residentes.

21
Os castanhais passaram a ter outros “donos”, por intermédio de concessões
outorgadas pelo Estado para aqueles que reivindicavam e pagavam pela possibilidade
exploração, ou seja, através da privatização de terras públicas. Foi contundente o
desrespeito ao direito de usufruto dos recursos naturais às populações locais, uma vez que
o poder público foi omisso diante das pressões e infortúnios sofridos pelas comunidades
quilombolas. No início do século XX, os quilombolas passaram a servir de mão de obra
barata à coleta da castanha no mesmo território que por gerações lhes pertenceu.
Identificados como simples extratores ou como pessoas sem vínculos com a terra ou com a
agricultura, viram-se pressionados por uma política econômica de exploração capitalista dos
recursos naturais, que implicava na compra e venda das “terras dos pretos”.

A partir de 1970, mudam as regras do jogo econômico brasileiro e inicia-se uma


nova etapa: a implantação em solo amazônico de grandes projetos. “Integrar para não
entregar”, jargão utilizado pelo regime militar instalado no país, apontou para políticas de
desenvolvimento regional e de integração nacional, chegando à região em que está inserida
a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, que até então vivia do extrativismo e de
pequenos roçados no interior da mata.

Por volta de 1970 a CPRM - Serviços Geológicos do Brasil já circulava na região,


fazendo serviços de prospecção geoquímica, de sondagem e de hidrologia – que é a
medição da velocidade ou da energia da água em movimento.

FOTO 7 - Marco da CPRM na região conhecida como Caramujo

Fonte: IDESP

Informações locais indicam que até 1971 a margem do rio Trombetas era só um
areal com vegetação típica de beira-rio, um baixio, havendo somente o barracão de
castanha do seu “Ió” e um porto para embarque da produção. Também chegava o Grupo
Andrade Gutierrez, uma empreiteira contratada pelo Departamento Nacional de Estradas e

22
Rodagens – DNER, que entra definitivamente em cena em 1973, para abertura de um
trecho de 220 km de estrada, uma continuidade da BR 163 (rodovia Cuiabá/Santarém),
saindo do porto de Cachoeira Porteira até a conexão com o que deveria tornar-se a
Perimetral Norte.

Contam antigos moradores que quando a empreiteira estabeleceu-se no território,


um enorme serviço de terraplenagem foi empreendido, tendo como consequência o abalo
da cobertura florestal. A contar do porto de Cachoeira Porteira, a empreiteira suprimiu cerca
de 30 km², ou seja, do lado esquerdo da estrada, com 1 km e meio de largura por 20 km de
comprimento, a vegetação foi arrasada e a madeira – com boa densidade e diâmetro acima
do mínimo estabelecido pela empresa serviu – para alimentar os fornos de secagem de
bauxita da Mineração Rio do Norte( MRN5),

Foto 8 - Descaracterização da margem do rio Trombetas - Porto de Cachoeira Porteira - março/2012

Fonte: IDESP

Ressalta-se que a madeira retirada estaria na área a ser alagada pela barragem da
hidrelétrica Cachoeira Porteira, outro megaprojeto de alçada da Eletronorte, ficando claro
que a Andrade Gutierrez, a MRN e essa empresa tinham acordos para o usufruto do
território quilombola.

Da empreiteira também é resultante a construção da pista para pouso de aviões,


bem como a construção de uma vila para aproximadamente 500 funcionários, com escola,
clube, supermercado, hospital, enfim, um canteiro de obras com infraestrutura de uma
pequena cidade.

(...) a firma estabeleceu-se como um super-poder local. Ela autorizava a


entrada de novos moradores no povoado. As roças antigas e maduras
dos moradores foram destruídas para edificação do acampamento. (...)

5
Um megaprojeto de mineração, composto, hoje, pelas empresas: VALE (40%), bhpbilliton (14,8%), Rio
Tinto Alcan (12%), CBR (10%), ALCOA Alumínio S.A (8,58%), ALCOA World Alumina (5%), HYDRO (5%) e
ALCOA AWA Brasil Participações (4,62%), instalado desde 1975 em Porto Trombetas, estimulado pelo II Plano
Nacional de Desenvolvimento do governo Geisel.

23
Foi essa a primeira agressão nesse setor do rio Trombetas sobre o meio
ambiente, pelo corte desordenado e numeroso de espécies. Sobre os
moradores, provocou tensões e conflitos, especialmente ao retirá-los das
terras quando acenou com indenizações irrisórias. (ACEVEDO e
CASTRO, 1998, p.230)

A Andrade Gutierrez em 1982 iniciou a retirada de funcionários de Cachoeira


Porteira – assim como surgiu e degradou o meio ambiente, interferiu no modo de vida das
famílias quilombolas-, desativando o acampamento em 1989, encerrado suas atividades no
local, deixando alguns funcionários para tomar conta de seu patrimônio – os quais foram
mantidos por 13 anos, “sem trabalhar e recebendo salário”, como consta na carteira de
trabalho de um ex-funcionário identificado

O caso das intrusões de grandes empresas não acabou com a saída da Andrade
Gutierrez. Ainda havia a penetração da Eletronorte no território quilombola, por conta do
plano de construção de barragens hidrelétricas no rio Trombetas. No final da década de 70
até o término da década de 80, Engenharia e consultoria S/A, contratada pela Eletronorte,
montou acampamento para pesquisar o potencial hídrico, voltado à construção de uma
barragem, prevista inicialmente na primeira cachoeira, a do Porão (rio Trombetas). Nesse
mesmo período, a Eletronorte montou o acampamento Pioneiro, próximo à pista de pouso
construída pela Andrade Gutierrez, já prevendo a mudança de eixo da barragem para outra
cachoeira: a do Viramundo (rio Trombetas) e Cachorro (rio Mapuera). .

Prospecções e sondagens foram realizadas, os relatos repetidamente demonstram


haver interesses dos mais diversos possíveis sobre o território da comunidade. Em incursão
pela floresta local não é difícil encontrar escavações para estudo de perfis de solo, bem
como furos de sondagens, tendo os primeiros com aberturas que variam de 1,5 a 2 metros
por 6m de profundidade; outras de 4m x 11m de largura e 5m de profundidade; e a mais
profunda encontrada por nossa equipe tem cerca de 9m de profundidade os furos de
sondagem não foram averiguados em relação a sua profundidade devido a dificuldade para
fazê-lo.

24
Foto 9 – Prospecções e sondagens – buracos a céu aberto – abril/2012

Fonte: IDESP

Foto 10 - Prospecções e sondagens - Marco - abril2012

Fonte: IDESP

25
Ao término dos estudos, a empresa, cobriu esses buracos com madeira “branca” e,
passados 20 anos, aproximadamente 200 deles estão totalmente abertos no meio da
floresta, constituindo verdadeiras armadilhas para aqueles que dependem dela para
assegurar a própria sobrevivência. Relatos de moradores dão conta de que em diversas
ocasiões foram encontradas antas agonizando, varas de porcos queixada morto, além de
vários esqueletos de animais que ali caíram e não conseguiram sair.

As marcas deixadas pelos “de fora” comprometeram soberbamente as relações


internas e externas na comunidade quilombola. Ora escorraçados de seus locais históricos,
pelo IBDF (atual IBAMA), ora em busca de escola para os filhos e de trabalho, as famílias se
deslocaram para o local que imaginavam acenar com a melhoria nas condições de vida.

O modo de vida pacato à base de trocas, do extrativismo vegetal e animal, as


relações de compadrio, de ajuda (puxirum) foram abaladas pelo ir e vir de máquinas
pesadas utilizadas para fazer imensas escavações, tanto na retirada de aterro quanto na
promoção de desmatamentos; pela presença de engenheiros e técnicos de outros lugares
do país, preocupados em realizar prospecções e sondagens; pela construção de
acampamentos e vilas para abrigar funcionários; e a mais cruel das consequências do
racismo: o alheamento a que foram submetidos os quilombolas dentro do próprio território.

Hoje, o povoado de Cachoeira Porteira é um apinhado de casas, algumas delas um


misto de sucata e ajeitação, de improvisação de materiais cedidos pela prefeitura quando do
desmonte dos acampamentos da Vila da Andrade e do Pioneiro.

Um morador explica para a equipe do IDESP, que:

(...) quando a Andrade foi embora deixou um documento para a


prefeitura pegar tudo. Daí foi embora a serraria que poderia servir pra
nós, os equipamentos todos do hospital, e mais um tanto de outras
coisas...por fim levaram até a torre de comunicação...do acampamento
Pioneiro já ficou mais material para essas casas que estão aqui. Pode
reparar que o tipo de madeira é um das casas da Andrade e outro do
Pioneiro. (entrevista realizada em maio de 2012)

26
Foto 11 - Modelos das casas pré-moldadas (Andrade Gutierrez)- maio/2012

Fonte: IDESP

Foto 12 - Modelos das casas pré-moldadas (acampamento Pioneiro)- maio/2012.

Fonte: IDESP

Em um universo de 110 construções, utilizadas ou desocupadas, existentes na


comunidade, 34% são da transferência de casas pré-moldadas da Andrade Gutierrez e do
acampamento Pioneiro (EngeRio/Eletronorte). As outras residências foram construídas com
as sobras de madeira e telhas deixadas na região ou com madeira retirada da floresta.

27
Foto 13 - Moradias com aproveitamento de material maio/2012.

Fonte: IDESP

3.1.3 “Os do entorno”

A comunidade de Cachoeira Porteira teve seu território intrusado pelas Florestas


Estaduais (Flotas) do Trombetas e de Faro e da Reserva Biológica do Rio Trombetas (Rebio
Trombetas). Nas duas Flotas estaduais considera-se a interdependência e a inter-relação
existentes entre as populações residentes e o meio em que vivem, sendo as atividades do
extrativismo regidas por planos de manejo. No caso da Rebio, o uso é restrito, sendo vetada
a entrada de pessoas e a construção de habitações, isto é, esse tipo de unidade de
conservação defende a exclusão do homem para maior proteção da biodiversidade.

28
Mapa 1 - Unidades de conservação

Fonte: Secretaria de Estado de Meio Ambiente

Reserva Biológica do Rio Trombetas (Rebio Trombetas)

Segundo relatos dos moradores de Cachoeira Porteira, a desocupação da área onde


foi criada a Rebio, em 1979, através do Decreto nº 84.018 e Lei nº 4.771, ainda no regime
militar, não foi pacífica. Praticamente, os quilombolas que lá habitavam, em povoados como
Arrozal, Tapaginha, Colônia e Nova Amizade, foram despejados e tiveram suas casas
queimadas sem ter direito a nada.

Foi durante o processo de consolidação da REBIO que afloraram os


maiores conflitos concernentes à instalação do grande projeto. O
governo militar, sendo representado pelo Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal – IBDF, promoveu a política de eliminação
dos territórios sobrepostos à nova área de preservação. Para isso,
utilizou-se até mesmo de violência física e moral. Existiram comunidades
quilombolas na margem esquerda do Trombetas expulsas de suas
terras, muitas vezes sem a efetivação de qualquer indenização ou
mediante ínfima quantia. Os diversos atos de violência foram
denunciados pela pastoral de Oriximiná durante a década de 1980,

29
sendo esta a única forma de visibilidade para os remanescentes de
quilombos”. (WANDERLEY, 2006, “Território invadido”, p.49)

Desde sua instalação no Alto Trombetas, a Rebio estremece as inter-relações entre


os povos do rio, sejam eles indígenas ou quilombolas, cerceando o direito de ir e vir ao
longo do rio – caminho de servidão historicamente constituído por estes povos e
comunidades tradicionais as embarcações, sejam elas canoas ou barcos, têm que atracar
para se identificar em duas bases do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio),
órgão que administra a unidade de conservação, instaladas às margens do Trombetas.

Foto 14 e 15: Bases da Reserva Biológica do Trombetas - Rebio

Fontes: ICMBio ; IDESP.

Para o escoamento da produção da castanha, extraída no período de março a junho,


O ICMbio exige um cadastro prévio dos envolvidos no processo produtivo, de
comercialização e de transporte, imputando as embarcações a obrigatoriedade de
apresentação destes documentos nos postos de fiscalização, correndo o risco de haver
apreensão do produto, caso não sejam apresentados. Ainda, à época da desova das
tartarugas, de setembro a janeiro, as embarcações são simplesmente proibidas de passar
em determinado horário no trecho de aproximadamente 140 km. Assim desabafa um
morador de Cachoeira Porteira: “Eles atropelam o direito de ir e vir, isso gera um processo
prejudicial a toda comunidade... professores já foram barrados, gente doente... tanto o
governo como todos os órgãos precisam ver que ainda continuamos escravos... estamos à
margem da sociedade”.

30
No “Cadastro de comunidades quilombolas e ribeirinhas localizadas no interior e
entorno da Reserva Biológica do Rio Trombetas” 6, constante no documento Projeto Povos
do Rio (2006), há certa dificuldade em caracterizar a comunidade de Cachoeira Porteira
como quilombola, referindo-se a seus moradores como ribeirinhos. Mas há três referências
no documento indicando a comunidade enquanto quilombola. A primeira remete ao item 3.3
- Análise das comunidades remanescentes de quilombo localizadas no interior e no limite da
Rebio:

Distribuição dos comunitários entre remanescentes de quilombo,


ribeirinhos e indígenas, moradores das comunidades de Cachoeira
Porteira e Mussurá (...) - ‘Observa-se que em relação à distribuição da
origem dos núcleos familiares moradores das comunidades acima
citadas, (...) que 50,9% da comunidade declararam ser remanescentes
de quilombos. Outros 40,5% se declararam ribeirinhos oriundos de
outras localidades, este, principalmente em relação à comunidade do
Mussurá. Foi registrado um percentual de 8,6% para os declarantes
indígenas estão localizados na comunidade de Cachoeira Porteira.
(Projetos Povos do Rio, MMA, item 3.3, p.130, 2006)

Convém observar que há um equívoco de ordem geográfica: os dados das duas


comunidades foram reunidos, porém, Cachoeira Porteira e Mussurá estão em lados opostos
da Rebio. Outro equívoco relevante é a desconsideração da condição quilombola da
comunidade de Cachoeira Porteira bem como sua ocupação histórica na região do Alto
Trombetas. Percebe-se então, que o referido relatório apresenta uma série de contradições.

A segunda referência é em uma nota de rodapé, a página 329:

“No caso, o cacique da Aldeia procurou o líder quilombola da


comunidade de Cachoeira Porteira e negociaram limites de
vizinhança. Trata-se da necessidade de utilização pelos índios dos
recursos de infra-estrutura existente na comunidade quilombola como
escola, telefone público e ou união matrimonial entre as etnias –
índios/quilombolas”. (Projeto Povos do Rio, MMA, Nota de rodapé nº
95, p. 329, 2006)

A décima sexta foto é constante no mesmo documento, página 331, que apresenta a
seguinte legenda: Figura 76 - Cadastro de moradia quilombola na comunidade de Cachoeira
Porteira.

6
Projeto Povos do Rio - Cadastro de Comunidades Quilombolas e Ribeirinhas Localizadas no Interior e Entorno
da Reserva Biológica do Rio Trombetas - Pará - Brasil.- Relatório Final apresentado ao Fundo Nacional
para a Biodiversidade como Produto 05 do Contrato de Prestação de Serviços – Núcleo Macacoprego
de Vivências Ambientais e Culturais e FUNBIO - MMA, 2006.

31
FOTO 16 – Imagem extraída do documento Projeto Povos do Rio.

Figura 76 - Cadastro de moradia quilombola na comunidade de Cachoeira


Porteira.

As Florestas Estaduais de Faro e do Trombetas

Em 2006, por ocasião da elaboração do Macro Zoneamento Econômico Ecológico,


promovido pelo Governo do Estado do Pará, foram criadas as Florestas Estaduais do
Trombetas e de Faro, ambas no dia 04/12/2006, conforme decretos estaduais nº 2607 e
2605, respectivamente. Os planos de manejo das duas unidades de conservação
consideram a existência de comunidades quilombolas em seu interior e têm a pretensão de
incluí-las.

Os limites da Flota de Faro são: ao norte, com a TI Trombetas-Mapuera, comunidade


quilombola Cachoeira Porteira, Flota do Trombetas e Rebio do Rio Trombetas; a oeste, com
a TI Nhamundá-Mapuera; a leste, com a Terra Quilombola do Alto Trombetas e Flona
Saracá-Taquera; e ao sul, com o município de Nhamundá, Estado do Amazonas.

Os limites da Flota do Trombetas são: ao norte, com a Esec do Grão-Pará; a oeste,


com a TI Trombetas- Mapuera; a leste, com a Flota do Paru e a TI Zo’é; e, ao sul, com a
Rebio do Rio Trombetas, Terra Quilombola do Erepecuru e a Flota de Faro.

32
As três unidades de conservação restringem o modo de vida dos quilombolas e
indígenas ao serem criadas. As pessoas não compreendem o fato de ter perdido o direito do
usufruto pleno e secular dos recursos naturais de seus referidos territórios. Entendem que
as proibições interferem de forma punitiva no modo de vida pouco compreendido e herdado
de seus antepassados.

Mesmo que tenha sido imperativa a criação dessas unidades de conservação no


Estado do Pará para proteção da biodiversidade, é preciso ressaltar que houve interferência
nas bases econômicas extrativistas da comunidade. No caso da Rebio Trombetas, diante de
inúmeras proibições, as marcas impressas no modo de vida da população quilombola foram
profundas, uma vez que se encontram áreas extensas de castanhais em seu interior,
exploradas pelos quilombolas há mais de um século.

3.4 AMOCREQ: UM DIREITO FUNDAMENTAL OFUSCADO PELA BUROCRACIA

A Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de


Cachoeira Porteira (Amocreq-CPT) foi criada em 25 de setembro de 2002. Seguindo os
caminhos habituais para a regularização da organização, em novembro de 2003 conseguiu
obter o CNPJ, passando a existir juridicamente.

A partir de maio de 2004, inicia-se o processo para o reconhecimento de domínio das


terras ocupadas como remanescentes quilombolas. E também um inexplicável e infindável
trâmite burocrático, permeado por ocorrências paralelas que envolvem diretamente a
comunidade e que pode ser acompanhado nos registros a seguir:

Detalhamento do Processo legal

ORIGEM/DESTINO DOCUMENTO RESUMO


25/09/2002 Ata manuscrita Fundação da Amocreq
De: Amocreq
11/11/2003 Registro Nº 1267, fl 437, livro Ata de fundação da Amocreq e Certidão
De: Cartório de 1-A; e de Registro do estatuto da associação
Oriximiná Protocolo nº 1268, fl 438,
Para: Amocreq livro 1-A;
11/11/2003 CNPJ Comprovante de inscrição Nº
06.121.973/0001-65
05/05/2004 Declaração de auto- Declaração de auto-reconhecimento e
reconhecimento identificação como remanescentes das
comunidades de quilombos

05/05/2004 Protocolo nº 125212 Entrada do pedido de reconhecimento


De: Amocreq de domínio das terras ocupadas por
Para: Iterpa remanescentes quilombolas de
Cachoeira Porteira
13/10/2004 Troca de Memorandos - 13/10/2004 – Seção de Cadastro
De: Iterpa informa insuficiência de dados técnicos

33
para localizar e identificar a área;
- 18/10/2004 – Nota a DTA para
inclusão na programação de 2005;
31/07/2005 Assinatura do termo de Reconhecimento de limites entre as
De: Secretaria acordo entre indígenas e duas áreas. Termo de acordo vai
Especial de Estado de quilombolas assinado pela Amocreq, Associação
Defesa Social – dos povos Indígenas do Mapuera,
Defensoria Pública Chefe da Aldeia Mapuera, Cacique
Kaxuyana, Funai, Defensoria Pública de
Oriximiná;
26/10/2006 Alteração de pessoa física Ficha Cadastral da Pessoa Jurídica
De: Ministério da responsável pelo CNPJ
Fazenda
04/12/2006 - CRIAÇÃO DAS FLORESTAS ESTADUAIS DO TROMBETAS E DE FARO, através
dos decretos estaduais nº 2607 e 2605, respectivamente.
19/04/2007 Certidão de auto- Procedimento para identificação,
De: Fundação Cultural reconhecimento - Livro de reconhecimento, delimitação,
Palmares cadastro nº 10, Registro 972, demarcação e titulação das terras
Para: comunidade Fl. 37, em 10/04/2007, ocupadas por remanescentes das
quilombola de publicado no D.O.U. em comunidades quilombolas;
Cachoeira Porteira 16/05/2007
17/12/2007 Espelho do Processo - Troca De 17/12/2007 a 17/10/2008 em trâmite
De: Iterpa de Memorandos no Iterpa; 10/04/2008 -
Encaminhamento a DJ para análise;
lançamento de dúvidas sobre a
condição quilombola;
08/05/2008 Of. Nº 392/2008-GP Solicitação de retificação do estatuto,
De: Iterpa esclarecimento de divergência quanto
Para: Amocreq ao número de assinaturas e quantidade
de votos na Ata de eleição da Diretoria,
entre outros;
08/05/2008 Of. 040/2008- Solicitação de técnico para acompanhar
De: COPPIR COPPIR/SEJUDH a caravana de Ação Social do Projeto
Para: Iterpa de Cidadania e verificar pendências;
17/06/2008 Folha de Despacho Notificação de não haver necessidade
De: Iterpa Processo nº 2008/265755 da presença de técnico do Iterpa, pois
Para: Diretor do DEAF um técnico havia seguido em 16/06
para Oriximiná para verificar se a
comunidade ainda tinha interesse em
regularizar as terras ou se preferia
requerer um assentamento;

01/10/2008 Of. 1206/2008-GP Informação sobre a incidência da área


De: Iterpa de pretensão quilombola sobre a Rebio
Para: ICMBio-Brasília Rio Trombetas – com mapa anexo e
plotado pela Gerência de Cartografia do
Iterpa
14/10/2008 Protocolo nº 442, fls 081, Aprovação da alteração no estatuto
De: Cartório de livro A-1
Oriximiná
Para: Amocreq
21/10/2008 Of. Nº Solicita cópia integral de todos os
De: ICMBio-Brasília 605/2008/DIREP/ICMBio expedientes administrativos em trâmite,
Para: Iterpa notadamente os de nºs 2000/73899;
1997/001452-TDR nº 002/98;
1997/158.126; 1997/000844-TDR nº
001/97; 1994/0081-TDR nº 01/95;
1999/234785; e 2004/125212;

34
06/10/2009 Of. 1504/2009-GP Informação de que a área de pretensão
De: Iterpa incide sobre a Rebio Trombetas, a Flota
Para: Amocreq Faro e a Flota Trombetas.
Fonte: documentos pesquisados na sede da AMOCREQ e nas cópias juntadas ao processo nº
125212, do Iterpa.
Elaboração IDESP

Passados seis anos, desde o pedido de titulação, inicia-se outra etapa, sem que a
anterior estivesse concluída. No entanto, a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira
passa a ser ameaçada pela demarcação da Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana, que,
segundo estudo antropológico realizado pela Funai, avança pela Floresta Estadual do
Trombetas e segue até a divisa da Reserva Biológica do Trombetas (a Rebio),
desconsiderando a existência secular quilombola na região. Diante do exposto a ventilação
de um suposto conflito entre indígenas e quilombolas em decorrência da demarcação da TI
em questão gera a denúncia ao Ministério Público Federal, representação de Santarém.

Este fato culminou na instauração de um Inquérito Civil Público em maio de 2011, o


processo se materializou conforme os seguintes documentos:

Detalhamento do processo no Ministério Público

ORIGEM/DESTINO DOCUMENTO RESUMO


10/05/2011 Nº 1.23.002.000144/2011-57 Inquérito Civil Público para acompanhar
De: MPF-Santarém o processo de regularização fundiária
das comunidades quilombola e indígena
no interior da Flota Trombetas;
13/06/2011 Portaria nº 191, de 10 de MPF-Santarém, considerando
maio de 2011 informações obtidas no dia 13/06/2011
sobre conflito entre indígenas e
quilombolas, resolve instaurar Inquérito
Civil Público e agenda reunião para
07/07/2011
16/06/2011 Of.PRM/STM/GAB3/0534/20 Requisita presença de representante do
De: MPF-Santarém 11 Iterpa para a reunião de 07/07/2011, na
Para: Iterpa 6ª Câmara de Coordenação e Revisão –
Brasília/DF
30/06/2011 Of. nº 0361/2011/GP Indicação de representante para a
De: Iterpa reunião
Para: MPF/Santarém

07/julho/2011 Memória da Reunião da 6ª Presença do MPF, Iterpa, Imazon,


Câmara de Coordenação e Sema, Ideflor, PGE-PA, Funai-Brasília e
Revisão – Brasília/DF Fundação Cultural Palmares com o
objetivo de “Avaliar providências
cabíveis no que tange à situação de
sobreposição entre Terra Indígena
Kaxuyana e Tunayana, a comunidade
Quilombola de Cachoeira Porteira e as

35
Floresta Estadual de Trombetas, no
município de Oriximiná/PA”; Ver
Of.PRM/STM/GAB3/0983/2011, de
09/11/2011 que remete a esta reunião,
com o seguinte texto: “...e estabelecer
diretrizes de atuação conjunta entre
órgãos, com vista a agilizar o processo
de regularização fundiária dos territórios
indígenas e quilombola...”
08/08/2011 Of. 426/2011-GP Iterpa encaminha documentos
De: Iterpa solicitados, cita estudos realizados por
Para: MPF-Santarém pesquisadores sobre Cachoeira Porteira;
informa que os “processos requisitados
situam-se em parte da área de
975.061,1107 ha, denominada Gleba
‘Cachoeira Porteira’, já arrecadada e
matriculada por esta autarquia...” –
Registro de imóveis – matrícula nº 1541
de10/10/2003.
10/08/2011 Nota Técnica referente ao Informa providências registradas no
De: Iterpa processo 2004/125212 processo; cita próximos passos com
relação à comunidade e faz
programação de campo
26/08/2011 Solicitação Associação solicita desafetação da área
De: Amocreq-CPT pretendida das Flotas Trombetas e Faro.
Para: Iterpa
13/09/2011 Memória de reunião Reunião no Iterpa com Ideflor, Iterpa e
Idesp para acordar estudo de
identificação do território quilombola de
Cachoeira Porteira - Nova reunião no
Idesp, envolvendo a Sema, teve como
objetivo elaborar a minuta do Termo de
Cooperação Técnica para discutir o
Plano de trabalho para realização do
estudo.
20/10/2011 Repasse da minuta do TCT e Plano de
Trabalho a Sema
08/11/2011 Relatório Iterpa Reunião em Porto Trombetas, na sede
do ICMBio, com a presença de
indígenas e de quilombolas, Funai-
Brasília, Funai-Manaus, Imazon, Sema,
PGE-PA e Iterpa
09/11/2011 Of.PRM/STM/GAB3/0983/20 Assunto: requerer a assinatura de termo
De: MPF/ Santarém 11 de cooperação técnica (com urgência),
Para: Sema/Iterpa para acelerar o processo de “realização
dos estudos antropológicos e outros
necessários para a identificação e
delimitação do território quilombola de
Cachoeira Porteira”.
08/02/2012 Termo de Cooperação Instituições do Governo do Pará
De: Sema, Iterpa e Técnica e Financeira celebram o Termo, tendo Sema como
Idesp proponente, Iterpa como parceiro e
Idesp como órgão executor;
13/02/2012 Memória da Reunião da 6ª Presença do MPF/antropóloga,
Câmara de Coordenação e Sema/Diap/jurídico/antropóloga, Imazon,
Revisão – Brasília/DF PGE-PA, Amocreq, Funai-Brasília e
Manaus e Fundação Cultural
Palmares/antropóloga.
15/02/2012 Of.PRM/STM/GAB3/0106/20 Ministério Público Federal envia ofício

36
De: MPF 12 do MPF-Santarém) ao Governador do Estado informando
Para: Governador do sobre a importância e urgência em se
Estado do Pará fazer o estudo para a regularização
fundiária do território quilombola. O
citado ofício ainda sugere que haja a
celebração de um acordo entre
quilombolas e indígenas, envolvendo
instituições estaduais e federais, para a
construção de um documento “sui
generis”, que abarque os interesses e
direitos das duas comunidades
envolvidas.
13/03/2012 Ata reunião no IDESP Identificação do Território Quilombola de
Cachoeira Porteira – envio de equipe
para executar os serviços contratados.
14/03/2012 Ata de reunião no IDESP Reunião entre órgãos públicos
estaduais, Coordenação das
Associações das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Pará
(Malungu) e Amocreq-CPT para
deliberações pertinentes aos estudos
contratados.
23/04/2012 Memória da Reunião da 6ª “Avaliar providências cabíveis no que
Câmara de Coordenação e tange a situação de sobreposição entre
Revisão – Brasília/DF Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana, a
comunidade Quilombola de Cachoeira
Porteira e as Florestas Estaduais de
Trombetas e Faro, no município de
Oriximiná/PA”
Elaboração: IDESP

Aspectos socioculturais

A comunidade ainda permanece com a situação de identificação e demarcação do


território inconclusa. Uma nova reunião na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão foi
marcada para o dia 05 de julho de 2012, em Brasília, onde o IDESP apresentará o relatório
acordado do Termo de Cooperação Técnica e Financeira.

4. DIAGNÓSTICO SOCIOECONÔMICO, AMBIENTAL E CULTURAL

4.1 INFRAESTRUTURA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

37
Cachoeira Porteira é uma das comunidades quilombolas pertencentes ao município
de Oriximiná, microrregião de Óbidos e mesorregião do Baixo Amazonas. A localização
geográfica aproximada do povoado é 1°05’20”S e 57°02’51”O. Mas a maior referência é a
bacia hidrográfica do rio Amazonas, alto rio Trombetas, a qual a comunidade está inserida.

A comunidade conta com pequena infraestrutura mantida pelo município:

Transporte fluvial gratuito uma vez por mês para conduzir professores e um outro
para a comunidade;
Escola com ensino fundamental;
Um posto de saúde, que não está em funcionamento; há somente um agente de
saúde e outro de endemias sem condições de trabalho;
Uma casa de força com motor de 114 hp e gerador de 80 kw/h, que fornece energia
termoelétrica durante 4 horas no período noturno. Os 1.800 litros de combustível
mensais são doados pela prefeitura;
Água encanada através de um sistema por declive, que abastece precariamente as
residências. Em períodos de seca, uma bomba entra em funcionamento, extraindo
água diretamente do rio Trombetas;
Barracão comunitário em precárias condições de uso
Em termos de meios de comunicação, a comunidade conta com serviços telefônicos
precários. Há telefones residenciais, porém os de uso público não têm a manutenção
devida: dos quatro instalados apenas um recebe chamadas.

Foto 17 - Telefone público - maio/2012

Fonte: IDESP

38
Foto 18 - Barracão comunitário - maio/2012

Fonte: IDESP

Foto 19 - Posto de Saúde - maio/2012

Fonte: IDESP

Não há representação municipal na comunidade e qualquer assunto tem que ser


tratado diretamente em Oriximiná.

39
4.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS E AMBIENTAIS

4.2.1 Hidrografia

Elemento vital aos quilombolas, o rio Trombetas é a maior referência histórico-


geográfica. Afluente da margem esquerda do rio Amazonas, nasce na região serrana do
Tumucumaque e tem cerca de 760 km de extensão. Outros rios de grande importância que
se juntam ao Trombetas são o Mapuera e o Cachorro. Por estarem localizados na região
geológica conhecida como escudo cristalino, apresentam fortes corredeiras e cachoeiras até
amainarem a força a partir do povoado de Cachoeira Porteira, que se encontra em terreno
de bacia sedimentar.

4.2.2 Clima

Segundo a classificação de Köppen, Cachoeira Porteira apresenta o tipo climático


Awi, ou seja, clima tropical chuvoso, que tem como característica principal uma estiagem de
três meses, geralmente nos meses de outubro, novembro e dezembro. As maiores
precipitações de chuva se dão se janeiro a maio e a região tem temperatura média anual de
26,5º C, pluviosidade de 2.000mm a 2.500 mm anuais aproximadamente (LIMA FILHO et al,
2004).

4.2.3 Tipos de solo

A área pleiteada pela comunidade quilombola é constituída por uma fisiografia que
recorta terrenos onde preponderam estratificações geológicas características da formação
do planalto das Guianas, contendo inúmeras nascentes descendo em direção a tributários,
que deságuam nos rios Trombetas, Cachorro e Mapuera.

Os solos predominantes são os podzólicos vermelho – amarelo, ou seja, são solos


ácidos e de baixa fertilidade (REVILLA et al., 1986). Entretanto, há uma variação bem forte
dos tipos de solos, em algumas partes; há longas áreas de solos lateríticos (pedregosos);
em outras áreas há predominância de uma textura mais arenosa; e em outros casos, há solo
com grande teor de argila. Porém, há manchas de terra que, segundo as famílias locais, são
as mais produtivas, mas encontram-se a longas distâncias do povoado e em áreas de
florestas primárias.

40
4.2.4 Vegetação

O solo é encoberto por uma diversidade de espécies vegetais que são características
das Florestas de Terra Firme e de Várzea. São matas primárias densas, compostas em seu
interior por: A formação vegetal local tem seu solo encoberto por uma diversidade de
espécies vegetais que são características de matas primárias densas de terra firme,
compostas em seu interior por Castanheiras (Bertholetia excelsa Kunth.), Cedros (Cedrela
odorata L.), Piquiazeiros (Caryocar villosum), Jutaízeiros (Dialium guianense (AUBL.) Sadw.,
Louros (Licaria rigida), Ipês (Tabebuia serratifolia), Itaúbas (Mezilaurus itaúba), Itangueiras
(Ximenia americana), Maçarandubas (Manilkara huberi), Cumaru (Dipteryx odorata (Aubl.)
Wild., Sucupira (Diplotropis purpúrea), Aroeira (Astronium fraxinifolium Schott & Spreng.),
Acariquara (Minquartia guianensis), Breus (Protium hepytaphyllum), Uxiraneira (Sacoglottis
amazônica), Manaiara (Campsiandra Laurifolia) e Tauarí (Couratari cf. oblongifolia Ducke).

Essa formação vegetal é notadamente influenciada pelo relevo que em algumas


áreas é bastante acidentado e misto. Foram observadas ainda inúmeras espécies de
palmeiras como: Mumbuca, Patauá (Oenocarpus Bataua Mart.), Tucumã (Astrocaryum
aculeatum), Miriti (Mauritia Flexuosa L.f.), Açaí (Euterpe Oleraceae Mart.), Bacaba
(Oenocarpus bacaba Mart.), Bacaba-í (Oenocarpus minor Mart.), Murumuru (Astrocaryum
vulgare Mart.), Mucajá (Acrocomia aculeata (Jacq.) Lodd. Ex mart.), Ubim (Geonoma
leptospadix Traill), Marajá (Bactris acanthocarpa Mart. Var. trailiana (Barb. Rodr.)
Henderson), Paxiúba (Socratea exorrhiza (Mart.) H. Wendl., Jauarí (Astrocaryum jauari
Mart.), Tachi (Tachigalia sp.), Angelim-rajado (Zygia racemosa Barneby & J. W. Grimes, etc..

Compondo as matas ciliares dos igarapés, furos e lagos locais encontram-se outras
espécies vegetais características dessas bordaduras, como, Breu, Andiroba e inúmeras
palmeiras, entre as quais preponderam aquelas do gênero Geonoma (ubim) e bactris
(marajá grande e marajá pequeno). Concentrações de palmeiras Mumbaca foram
observadas em decorrência da abertura de clareiras provocadas por quedas de árvores
decorrentes de fatores ambientais.

É importante ressaltar que as serras observadas, a exemplo da Serra do Cachorro,


apresentam densa vegetação em seu topo, com ocorrência de castanheiras e outras árvores
de grande porte.

As incursões em campo demonstraram uma grande diversidade vegetal compondo o


território da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, que pode ser observada no
estudo da composição florística “Aspectos florísticos de 13 hectares da área de Cachoeira
Porteira- Pa” (Acta Amaz. Vol.34, n°3, Manaus July/Sept, 2004), que a descreve na área do
reservatório da proposição da hidrelétrica de Cachoeira Porteira – Pa (localizada na margem

41
esquerda do rio Trombetas). Nele se faz a caracterização da vegetação local onde as
famílias predominantes na área estudada foram a Sapotaceae, Burseraceae,
Caesalpiniaceae e Lecythidaceae.Todavia outras famílias ainda foram observadas no
estudo como Rutaceae, Dilleniaceae, Cochlospermaceae, Ebenaceae, Lacistermaceaea,
Convovulaceae e Connaraceae.

O uso das espécies vegetais que ocorrem no território da comunidade quilombola


Cachoeira Porteira tem sido direcionado ao longo da história de existência da comunidade
ao extrativismo de frutos e resinas. Porém, não se pode desconhecer a necessidade de
seus moradores fazerem reparos em suas moradias e pontes utilizando madeiras da
floresta. Por estarem sob a área de amortecimento da Rebio Trombetas, os quilombolas são
submetidos a inúmeras restrições, incluindo aos vegetais caídos na mata. Para tudo têm
que solicitar autorização de uso ao ICMbio, considerando-se que para fazê-lo levam seis
horas por via fluvial até a sede do instituto, em Porto Trombetas, há de se convir que nem
sempre a autorização em questão é solicitada devido a distância e o custo da viagem.

O entendimento consensual do grupo local é de que houve uma grande incoerência


na propositura por parte do Estado Brasileiro ao criar a Reserva Biológica, sem considerar o
contingente de população tradicional habitando seu interior. Esta é uma ameaça concreta à
sobrevivência, reprodução e ao modo de vida quilombola, já que dependem dos recursos
locais para sua manutenção.

4.2.5 Fauna

Em um universo de riqueza e abundância de espécies animais pode-se mencionar a


existência de mais de 40 famílias de peixes (ictiofauna), que se encontram tanto acima de
Cachoeira Porteira, nas corredeiras, como a jusante. Segundo estudiosos, são incontáveis
as espécies de peixes.

Os animais silvestres também perpetuam essa riqueza, exercendo importante papel


na dispersão de sementes de múltiplas espécies vegetais. Primatas de grande porte, como
o macaco-guariba e o macaco-aranha, são responsáveis por essa dispersão, que
certamente se dá em conjunto por espécies de roedores e pássaros locais.

Segundo a Cartilha do Plano de Manejo da Floresta Estadual do Trombetas,


produzida pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente, a biodiversidade soma mais de 530
espécies de plantas; 244 espécies de aves; 29 tipos de peixes; 62 espécies de répteis e
anfíbios; 53 espécies de mamíferos encontrados por pesquisadores do Museu Emílio
Goeldi, informando que ainda há muitas espécies a serem cadastradas.

42
4.2.6 Sítios arqueológicos do período paleozoico

Este estudo não contempla aprofundamento em pesquisas arqueológicas, pois essa


demanda necessita de tempo, autorizações específicas morosas, equipe especializada no
assunto e recursos financeiros de grande monta. Porém, durante o processo de pesquisa
para a sistematização de dados, foram encontrados relatos da existência de sítios
arqueológicos do período paleozoico na região em questão. A comprovação desse fato está
disponível no site da CPRM, link http://sigep.cprm.gov.br/propostas/Mapuera_AM.htm,
acessado em 21/05/2012, sendo visível a preocupação de pesquisadores do Instituto do
Patrimônio Histórico e Cultura (Iphan) e da CPRM quanto à implantação da barragem da
Eletronorte e a perca desses sítios na região de Cachoeira Porteira:

“De: Isolda Honnen [mailto:isoldah@iphan.gov.br]


Enviada em: segunda-feira, 3 de setembro de 2007 15:59
Para: Manfredo Winge; Wagner Souza Lima; Angelo Spoladore; Antonio
Carlos Sequeira Fernandes; Antônio Ivo de Menezes Medina; Carlos
Fernando de Moura Delphim; Carlos Schobbenhaus; Célia Regina de
Gouveia Souza; Clayton Ferreira Lino; Diogenes de Almeida Campos;
Emanuel Teixeira de Queiroz; Gilberto Ruy Derze; José Eloi Guimarães
Campos; Marcello Guimarães Simões; Max Cardoso Langer; Mylène
Luíza Cunha Berbert-Born; Ricardo José Calembo Marra; Ricardo Latgé
Milward de Azevedo; Rodrigo Miloni Santucci; Rogério Loureiro Antunes;
'Diogenes de Almeida Campos'; 'Célia Regina de Gouveia Souza'
Assunto: Re: Conexão 54.. e NOVAS SUGESTÕES DE SÍTIOS
Prezado Professor Manfredo,
Acho a idéia de manter sítios na lista "Sugestão Preliminar" muito
importante tendo em vista a possibilidade deles virem a estimular jovens
geocientistas a descrevê-los ainda que em médio ou longo prazo como o
senhor menciona. Neste sentido pergunto: não é melhor deixar nesta
lista o sítio "Mapuera/AM"? Mesmo não sendo nada especialista no
assunto sei que o estudo de fósseis tem enorme relevância para
entendermos o desenvolvimento da vida no planeta.
Quanto à idéia de fazermos uma Portaria do Iphan sobre a utilização de
cavernas/grutas informei o assunto ao meu colega Carlos Fernando e
espero poder respondê-lo posteriormente embora saibamos, de início,
que esta questão é tratada pelo IBAMA.
Cordialmente,
Isolda Honnen
arquiteta do Iphan”

“De: Carlos Schobbenhaus [mailto:schobben@df.cprm.gov.br]


Enviada em: terça-feira, 4 de setembro de 2007 16:09
Assunto: Re: Sitios Mapuera, AM e Litoral de Torres, SC e RS- Sugestão
de CANCELAMENTO (Mapuera = Cachoeira Porteira?)
Manfredo e demais colegas,

43
Concordo com Isolda em não retirar o sítio Mapuera (= Cachoeira
Porteira?) de nossa lista, até surgir alguém que se candidate para
descrevê-lo. É uma área paleontológica importante da seção paleozóica
do flanco norte da Bacia do Amazonas, incluindo restos de peixes e
quitinozoários, etc. (ver informações da base Paleo da CPRM abaixo).
A represa da Cachoeira Porteira prevista para construção no passado
pela Eletronorte não foi executada (as imagens de satélite não indicam
nada nesse sentido) e não sei se ainda está nos planos do governo.
Cachoeira Porteira é também um conhecido sítio fossilífero (sítio Nº 004,
já excluído) e penso ser possível ser o mesmo que o Mapuera (sítio Nº
040?). Cachoeira Porteira localiza-se na confuência do Mapuera com o
Trombetas, por isso é possivel que ambos os sítios refiram-se à mesma
localidade. Diogenes que já esteve lá com José Henrique G. Melo (veja
publicações deste último no Documento Nº DNPM000769 abaixo), ou
Norma Cruz, que fez tese de doutorado na região, talvez possam
esclarecer a questão (ver documentos Nº CPRM003915 e CPRM003916
abaixo).” (CPRM, disponível em
http://sigep.cprm.gov.br/propostas/Mapuera_AM.htm, acessado em
21/05/2012)

4.3 ASPECTOS SOCIOCULTURAIS

4.3.1 A Educação

A “Escola Municipal de Ensino Fundamental Constantina Teodoro dos Santos” foi


fundada em 1989, com sua estrutura localizada na metade do núcleo habitacional, entre o
pessoal que mora no “Morro” e o que mora no “Buraco”, denominação da comunidade para
os setores em que estão as residências, compreendido o primeiro como sendo a parte mais
elevada do terreno e o seguinte como a região próxima ao Igarapé do Genésio. É uma boa
construção, com cinco salas de aula arejadas, pátio interno, banheiros, cantina, varanda em
todo entorno e um amplo terreno capaz de abrigar uma boa horta e quadra de esportes.

44
Foto 20 - Escola Municipal - abril/2012

Fonte: IDESP

A escola conta com um quadro de nove professores, dos quais sete têm nível
superior completo (Pedagogia, Letras, Biologia, entre outros cursos) e dois estão em fase de
conclusão. Os cursos são oferecidos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Núcleo de
Extensão de Oriximiná, sendo que as viagens dos professores, uma vez por mês, são
custeadas pela prefeitura.

A Equipe do IDESP foi recebida pela professora-coordenadora Sebastiana da Silva


Ribeiro, conhecida como Tiana, que informou ter 181 alunos freqüentando do 1º ao 9º ano
do Ensino Fundamental, divididos em três turnos: manhã, do 1º ao 5º ano; tarde, do 6º ao 9º
ano; e à noite a educação de jovens e adultos, conhecida como EJA, funcionando desde
2007, que tem 30 alunos entre 15 e 69 anos.

Gráfico 1 – Educação de Jovens e Adultos (EJA) – Cachoeira Porteira – maio – 2012.

Elaboração: IDESP

45
Há poucos não alfabetizados, cerca de 20 pessoas, mas na faixa etária que
compreende dos 20 aos 54 anos há 40 pessoas que pouco sabem ler e escrever. Essa é a
clientela da EJA.

Gráfico 2 – Educação de Adultos – Pouco domínio da leitura e escrita – Cachoeira Porteira - maio – 2012.

Elaboração: IDESP

É uma escola para quilombolas, adaptada à realidade local, embora possua pouco
material didático específico. No caso do EJA, como muitos alunos são coletores de
castanha, ficando de março a junho praticamente fora da comunidade, há um documento
específico onde é registrado o período de afastamento e, no retorno do castanhal, é
reiniciada a atividade escolar, com o acompanhamento especial do professor. Também há
aqueles, principalmente mulheres, que pelo tipo de trabalho exaustivo executado não
conseguem freqüentar aulas em determinados dias, para isso a escola tem atividades
especiais, delegando tarefas na própria residência, para que não haja desistências.

Ainda sobre o EJA, professora-coordenadora explica que existem duas etapas: na


primeira o planejamento é voltado à leitura, escrita e matemática; e na segunda já se
trabalha o conteúdo normal. “É interessante porque muitas vezes os pais são alunos dos
filhos”, acrescenta.

Lembranças e vestígios

Instada a contar sobre o passado, a professora, remete ao tempo do auge da


construtora Andrade Gutierrez (1982) em Cachoeira Porteira, quando havia muitos

46
funcionários de fora, ocasião em que foi construída a infraestrutura da “vila da Andrade”
(com hospital, casas de moradia, igrejas, clube, supermercado e escola), separada da
comunidade por uma guarita, chamada pelos quilombolas de “pau do guarda”, onde os
membros da comunidade não passavam sem dizer a que iam.

A escola da construtora, ativada em 1982 e desativada em 1989, era conhecida por


“Vera Andrade7” e atendia alunos de 1ª a 8ª séries - de início só para os filhos de
funcionários, depois com uma pequena porcentagem para as crianças da “Vila dos Pretos”,
“Vila dos Morenos” ou “Vila dos Macacos”, algumas das referências discriminatórias aos
moradores quilombolas.

Enquanto isso, também em 1982, no mundo quilombola lá no Beiradão (do lado da


Rebio Trombetas), era instalada uma pequena escola, de madeira e PVC, mais parecida
com uma garagem: a Escola Santa Luzia. Em 1984 essa escolinha foi reconstruída do outro
lado, um pouco maior, no mesmo local onde hoje está a Escola Municipal Constantina
Teodoro dos Santos.

A narrativa de Tiana vem carregada de lembranças e vestígios de um tempo em que


as crianças quilombolas não percebiam o preconceito racial e de classe social, até que
sofressem na pele a desilusão e o trauma de da discriminação. Conta que uma criança
negra, participante da porcentagem legada à comunidade pela Escola Vera Andrade, foi
convidada a fazer parte de um teatrinho, acreditando que representaria uma princesa.
Durante a apresentação, diante dos pais, foi solicitada como escrava, com música própria
que falava sobre a pretinha da Guiné. Tiana conta que até hoje a senhora lembra o fato com
tristeza.

Cachoeira Porteira chegou a comportar mais de 3 mil pessoas em 1989, tendo até
representante na Câmara Municipal de Oriximiná. À época a comunidade quilombola fervia
com a presença de funcionários das empresas EngeRio, Eletronorte (acampamento
Pioneiro) e remanescentes da Andrade Gutierrez, que já iniciava sua saída da região. Pode-
se registrar, ainda, a presença de pessoas autônomas, que vinham das redondezas para
prestar serviços especializados.

Essa demanda populacional exigia mais professores ou o desdobramento de turnos.


“Havia uma demanda escolar lá da Eletronorte e outra daqui”, completa Tiana. A escola
chegou a atender mais de 800 alunos, funcionando em quatro turnos.

7
A metodologia de ensino aplicada na escola “Vera Andrade” era a mesma da hoje utilizada pela escola
da Mineração Rio do Norte, em Porto Trombetas, ou seja, um convênio feito com o Colégio Pitágoras de Minas
Gerais.

47
Em 1994 iniciou-se êxodo populacional com a saída definitiva de algumas
empresas e de muitas pessoas e famílias que seguiram atrás de novas oportunidades de
emprego.

Análise quantitativa do quesito Educação

Avaliado pela comunidade, o ensino tem boa aceitação por 84% das famílias
entrevistadas. Aqueles que o incluem como regular representam 15%, condicionados não
aos métodos educacionais aplicados, mas à falta de continuidade dos estudos.

Gráfico 3 – Avaliação do Ensino em Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

Segundo a professora-coordenadora, desde 2003 existe na Secretaria de Estado


de Educação (Seduc) a solicitação para implantação do Ensino Médio em Cachoeira
Porteira. Em 2012 já foram registrados 35 alunos em idade de frequentar esse nível de
ensino, sem contar aqueles que já se deslocaram para outros municípios.

Essa história se repete a cada nova turma que completa o 9º ano, exigindo que os
pais providenciem outro local para que haja continuidade nos estudos. Nesse sentido a falta
do Ensino Médio é um dos fatores de desagregação familiar. No universo pesquisado de 93
famílias, 63 indicaram a necessidade da elevação do ensino e 38 delas já têm seus filhos
estudando fora da comunidade.

A maior parte desses jovens segue para o município de Oriximiná e essa demanda
exige que um membro do casal se mude com os filhos. Como essa parte é delegada à
mulher, é comum encontrar casas com a presença somente do homem ou dos avós
assumindo a guarda dos netos que ainda estão no Ensino Fundamental, ou avós que se
mudaram para ficar com os netos, com o intuito de amenizar a situação de desagregação.

48
Gráfico 4 – Proporção de famílias que tem filhos estudando fora de Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

4.3.2 A Saúde

Recentemente, a menos de dois anos, o prédio do Posto de Saúde foi reformado. Sua
estrutura é a mesma deixada pelo acampamento Pioneiro e remontada pela prefeitura
na comunidade. Para uma localidade pequena seria o suficiente, se não fosse um local
abandonado, “só de enfeite”, como diz uma comunitária. Nele não há atendimento nem
medicamento. Esse é o motivo do quesito Saúde constar nas entrevistas com 93% de
desaprovação (ruim).

49
Gráfico 5 – Avaliação da Saúde em Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

Há na comunidade uma agente de endemias, que faz lâminas e dá medicação em


caso de malária e um agente de saúde que “faz o que pode”, porém as condições de
trabalho são inexistentes. Os 7%, que qualificaram o atendimento como regular, são
pessoas que não desassociam as figuras dos agentes – endemias e saúde – ao do serviço
de saúde pública e se vêm socorridas pelos dois agentes citados, mesmo que de modo
precário.

Nos casos em que o atendimento requer serviços mais especializados, as


distâncias a serem percorridas para um tratamento de emergência são feitas por via fluvial,
levando até três horas em voadeiras ou de 6 a 8 horas em barcos maiores, para se chegar
ao hospital de Porto Trombetas, mantido pela Mineração Rio do Norte.

A Cultura
O estudo antropológico constante na Parte II, traz informações mais elaboradas
sobre os aspectos sócio-culturais da Comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira. No
entanto, nas entrevistas realizadas de casa em casa o que se pode perceber é que no
cotidiano deste povo extrativista a coercitividade social se apresenta seja pelas razões
impostas em um passado de lutas por liberdade ou pelo anseio à demarcação da área
pretendida colocado no presente.

Os traços culturais são percebidos na coesão do trabalho, notadamente nos


períodos de coleta de castanha e, logo a seguir, no traquejo dos roçados, que atendem ao
núcleo familiar e se estendem à comunidade. É comum a mudança da família para o

50
castanhal e depois para a roça, exceto nos casos em que as famílias têm crianças em idade
escolar.

Embora tenham sofrido influências em seu modo de vida nos últimos 30 anos com
a vinda de empresas e de pessoas de fora para executar megaprojetos, os quilombolas
mantêm laços familiares em outras comunidades ao longo do Alto Rio Trombetas.

O Projeto Povos do Rio, um inventário das comunidades localizadas no interior e


entorno da Rebio do Rio Trombetas, produzido em 2006 pelo MMA, aponta as famílias
originárias de Cachoeira Porteira nas seguintes localidades: Mãe Cué (3,4%), Juquirizinho
(14,3%), Juquiri Grande (12,5%), Erepecu (2%), Abuí (5.6%), Tapagem (8,5%), Sagrado
Coração de Jesus (6,9%), Moura (1%) e Boa Vista (2%). (Mapa XXX - Comunidades
quilombolas ao longo do Rio Trombetas)

Para entender a inter-relação dessas comunidades é preciso trazer o passado para


o presente e compreender o rio e as cachoeiras como elementos unificadores. O artigo
“Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade”, de Eurípedes Funes, tem em
sua conclusão a seguinte observação:

Porteira é um marco da resistência, um divisor de dois tempos: o tempo


das águas bravas, dos mocambos, e o tempo das águas mansas, o das
comunidades remanescentes. Tempos que se juntam nas histórias de
lutas e de liberdade. Cachoeira Porteira um lugar de memórias daqueles
que buscaram a liberdade - os negros do Trombetas. (FUNES, 2002,
p.27)
Assim, não se pode dissociar a cultura das inter-relações entre as comunidades
quilombolas do Alto Trombetas (também ribeirinhas) das técnicas de pesca com zagaia,
arpão e de finca, do modo de falar, dos gestos, do biótipo, do artesanato em fibras naturais,
das crenças, da divisão do trabalho extrativista e da roça. O todo é a vida que flui entre o
peixe pego para o almoço, o castanhal, a roça e a televisão ao anoitecer.

Perguntados nas entrevistas sobre as manifestações culturais locais, as


informações iniciais foram para os festejos de Nossa Senhora de Fátima (padroeira da
comunidade), aquelas constantes do calendário escolar e o festival da cultura, evento que
acontece nos dias 19 e 20 de novembro, para celebrar o Dia Nacional da Consciência
Negra.

No aspecto religioso, existem três representações de igrejas: a católica, a


evangélica e a batista. Porém, não há prática discriminatória entre as pessoas de uma ou
outra seita. Aparentemente, não se percebeu a prática de cultos religiosos de matrizes
africana, a exemplo do candomblé, mas existem os “raizeiros”, o conhecimento ancestral
das ervas medicinais muito utilizadas pelos quilombolas.

51
No campo da arte, da transformação de fibras naturais, do uso de produtos não
madeireiros e industrializados foram encontradas 37 pessoas que trabalham com cipós
titica e ambé na construção de balaios, jamanxi e paneiros; 25 aprenderam a trabalhar com
material reciclável e fibras industrializadas; cinco fazem doces de frutos nativos; quatro
fazem redes e malhadeiras de pesca; e duas que sabem fazer canoas, muito procuradas
pelos índios.

Gráfico 6 – Trabalho Artesanal por nº de Pessoas – Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

4.4 ASPECTOS DEMOGRÁFICOS

O universo pesquisado pelo IDESP compreendeu 93 famílias, com um total de 359


pessoas. Quatro famílias não se encontravam no local à época das entrevistas.

Do ponto de vista do número de famílias, 15 são dirigidas por mulheres (16%) e 78


por homens (84%), distribuídas no quadro e demosntradas no Gráfico:

52
Gráfico 7 – Chefes de família – maio 2012

Elaboração: IDESP

Gráfico 8– Número de Famílias

Nº de Famílias
Membros Chefiada por Chefiada por
na família Mulheres Homens
1 3 10
2 2 13
3 5 13
4 2 13
5 1 7
6 11
7 1 4
mais de 8 1 7
Total 15 78
Total
Geral 93 famílias
Elaboração: IDESP.

Na questão de Gênero, essa população está distribuída em 55% de homens e 45%


de mulheres, constantes no Gráfico.

53
Gráfico 9 – Distribuição populacional por gênero – Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

Na distribuição populacional por gênero/faixa etária existem três faixas


específicas em que o número de mulheres jovens ultrapassa o de homens: de 0 a 4 anos,
de 25 a 29 anos e de 30 a 34 anos.

Gráfico 10 – Distribuição populacional por gênero e faixa etária – Cachoeira Porteira - maio 2012.

Elaboração: IDESP

O Gráfico 12 destaca os pontos de concentração populacional por faixa etária,


podendo-se afirmar que há maior agrupamento nas faixas que compreendem de 0 a 14
anos, decrescendo nas faixas etárias posteriores.

54
Gráfico 11 - Pontos de Concentração populacional – Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

Como já havia sido mencionado no item 4.2.1, que trata da Educação, esse
decréssimo é motivado pela saída de jovens para outras localidades em busca de formação
em nível de Ensino Médio. Outro fator de decréscimo populacional nas faixas etárias que
compreendem a população adulta é a insegurança com relação a regularização fundiária da
terra.

Segundo informações de muitos entrevistados, um problema social recorrente é a


saída de alguns jovens para a conclusão da educação básica, pois a não oferta do ensino
médio, intensifica o fluxo para os centros urbanos mais próximos, onde a população
feminina contribui para o aumento do subemprego – trabalhando em casas de família –
quando a família não tem condições de custeá-las, neste sentido a população masculina,
que não é aproveitada nesta atividade, tem menos possibilidade de dar continuidade aos
estudos.

Essa situação para as famílias quilombolas é aflitiva, uma vez que a população
jovem é a maior. São 185 pessoas na faixa que compreende dos 0 aos 19 anos, uma nova
geração que espera um futuro mais promissor (Gráfico 12).

A permanência da população jovem na comunidade quilombola está diretamente


relacionada ao desenvolvimento de projetos inclusivos e à implantação do Ensino Médio.

55
Gráfico 12 - População Jovem – Faixa etária de 0 a 19 anos – Cachoeira Porteira – maio
2012

Elaboração: IDESP

4.5 ASPECTOS ECONÔMICOS

As fontes de renda na comunidade estão divididas entre o extrativismo (36%); o


apoio de Programas de Governo como o Bolsa Família (22%); aposentados, pensionistas e
beneficiários especiais que somados resultam em 18%; assalariados pagos pelo município
de Oriximiná (15%); outras fontes como pesca, carpintaria (5 %); e pequenos comerciantes
(4%). (Gráfico 13)

Em uma mesma família pode-se encontrar diversas fontes. No entanto, todos


usufruem do período de coleta de castanha, melhor época para saldar dívidas e adquirir
bens de consumo.

A pesca é para a subsitência, uma vez que são proibidos pelo ICMBio a sua
comercialização. A venda de peixes é interna e muita vezes executada na base da troca por
outros suprimentos.

56
Gráfico 13 – Fontes de Reanda da população – Cachoeira Porteira – maio 2012.

Elaboração: IDESP

4.5.1 Extrativismo Animal e Vegetal (Produtos florestais não madeireiros)

A Comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira carece de serviços públicos


essenciais e de infraestrutura para o escoamento de seus produtos extrativistas. Para
atendimento de tais necessidades, as distâncias aos centros urbanos de Oriximiná e Óbidos
são percorridas por via fluvial, levando de um a dois dias, respectivamente.

Além das dificuldades logísticas, existe o estorvo comercial praticado pela Rebio,
que coloca os quilombolas sob sujeições e restrições presentes em um termo de
compromisso celebrado em 2011, entre Associação dos Remanescentes de Quilombos do
Município de Oriximiná (ARQMO) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio). As cláusulas que o definem determinam as regras de uso para a
coleta e comercialização da castanha-do-brasil no interior da UC de Proteção Integral, e no
entorno, ou seja, inclui a Floresta Nacional de Saracá-Taquera e as Florestas Estaduais
(Flotas) do Trombetas e de Faro. Descreve ainda, de forma contundente, a proibição da
extração e/ou coleta com fins comerciais de outros produtos oriundo da floresta, seja este de

57
cunho madeireiro ou não madeireiro8 (açaí, óleo de copaíba, mel, etc.). As cláusulas ainda
se estendem a outras atividades econômicas, como a proibição da caça e restrições à
atividade pesqueira, autorizada somente para subsistência e respeitando os períodos de
defeso e/ou em extinção.

Em virtude da restrição ao comércio externo à castanha, outras atividades


extrativas acabam compondo a renda familiar de forma indireta, através do consumo
familiar, troca e/ou até mesmo de venda esporádica no interior da comunidade, do tipo
pesqueiro e artesanal.

As madeiras extraídas e/ou coletadas são utilizadas de duas maneiras: as cascas


são utilizadas como medicinal e, quando extraídas são utilizadas na construção e reforma
de casas, canoas ou na reforma dos barcos.

A pesca, além de assegurar a subsistência permite que parte do excedente seja


comercializado internamente (no período da pesquisa a R$ 3,00/Kg independente da
espécie) entre quilombolas e indígenas de passagem pela comunidade. A figura a seguir,
retrata a comercialização do pescado (trairão, dourada e filhote) entre os quilombolas no
interior da comunidade de Cachoeira Porteira.

Foto 21 - Comercialização do pescado no interior da comunidade quilombola de Cachoeira


Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará, 2012.

Fonte: IDESP

8 Produtos Florestais Não Madeireiros (PFNM) são aqueles derivados da floresta, exceto a madeira,
cuja definição engloba fibras, frutos, raízes, cascas, folhas, taninos, cogumelos, mel, plantas
medicinais, lenha e carvão, entre outros (Moçambique, 2008 apud IDESP, 2011).

58
A confecção de artesanato, mais que uma produção da cultura material local
assume um aspecto funcional. No período de coleta da castanha o paneiro, uma espécie de
cesto onde são acondicionados os ouriços, é um dos principais instrumentos de trabalho. A
matéria prima utilizada é o cipó-titica ou o cipó-ambé (oriundo da raiz de cor avermelhada de
uma espécie de tajá). Na verdade, há toda uma “ciência” em sua confecção para que o
paneiro não venha ferir a costas do quilombola. Isso implica na escolha do material, na
resistência da fibra e na habilidade do trançador. Os cipós são abundantes nas margens dos
rios e no interior das florestas.

Os artesãos confeccionam o paneiro conforme a capacidade de carga e transporte


dos ouriços. Mas, independentemente do tamanho, o preço de venda varia de R$ 25,00 e
R$ 30,00, em função do acabamento do produto, ou seja, a formação do preço está
vinculada ao trabalho empírico desenvolvido

pelo artesão sem levar em consideração a quantidade de matéria prima utilizada


nos diferentes tamanhos. De acordo com artesãos entrevistados, um coletor de castanha
usa em média dois paneiros por safra.

FOTO 22 – Quilombola confeccionando o paneiro do cipó-ambé da comunidade quilombola


de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará, 2012.

Fonte: IDESP

Já na confecção de outros produtos artesanais para consumo (peneiras, bolsas,


balaios, chapéu, cestos, etc.) os quilombolas utilizam a fibra de guarumã e o buriti (folha),
com vendas esporádicas no município de Oriximiná.

59
FOTO 23 - Identificação dos artesanatos confeccionados da comunidade
quilombola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará,
2012.

Fonte: IDESP

No quadro a seguir vêm relacionadas as espécies, usos e partes utilizadas dos


produtos florestais não madeireiros (PFNM) identificados na comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira.

60
QUADRO 15 - Espécies, usos e partes utilizadas dos produtos florestais não madeireiros (PFNM)
identificados na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do
Pará, em 2012.
Espécies Nome popular Uso Parte utilizada
Euterpe oleracea Mart. Açaí
Rollinia sp. Biribá
Mauritia flexuosa L. f. Buriti
Theobroma cacao (Mill.) Bernoulli Cacau
Anacardium giganteum W. Hancock ex Engl. Cajuaçu
(Myrciaria dubia H. B. K. (McVough) Camu-camu
Bertholletia excelsa Bonpl. Castanha-do-brasil
Poraqueiba paraensis Ducke Mari
Byrsonima crassifolia (L.) Kunth Muruci
Alimentício Fruto
Caryocar villosum (Aubl.) Pers. Piquiá
Bactris gasipaes Kunth Pupunha
Astrocaryum vulgare Mart. Tucumã
Astrocaryum tucuma G. Mey. Tucumã-do-amazonas
Endopleura uchi (Huber) Cuatrec. Uxi
Oenocarpus bataua Patáua
Oenocarpus bacaba Mart. Bacaba
Theobroma grandiflorum (Willd. Ex Spreng.)K.Schum. Cupuaçu
Spondias mombin L. Taperebá
Heteropsis flexuosa (Kunth) G.S. Bunting Cipó-titica Caule
Ischnosiphon obliquus (Rudge) Körn. Guarumã Fibra
Artesanato
Mauritia flexuosa L. f. Buriti Folha
Philodendron sp. Cipó-ambé Caule
Parahancornia amapa (Huber) Ducke Amapá Leite
Carapa guianensis Aubl. Andiroba Óleo
Medicinal
Copaifera sp . Copaíba Óleo
Coumarouna odorata Aubl. Cumarú Amêndoa
Sapindaceae¹ Timbó Caule
Utensílio
Protium heptaphyllum (Aubl.) Marchand Breu-branco Resina
1 - Família (nº da espécie)

Elaboração: IDESP

Dentre as quantidades expressivas de espécies florestais imprescindíveis para a


sobrevivência, a castanheira tem se destacado como o principal componente desse
ecossistema. Ela é importante fonte de alimento e o elemento gerador de renda, exercendo
grande influência na dinâmica territorial, econômica, social e cultural dos quilombolas, tanto
que a comunidade está inserida no município que é o maior fornecedor de castanha para o
estado do Pará (HOMMA, 2000 apud DESER, 2008). De acordo com estatísticas oficiais,
Oriximiná participou com 26% da produção paraense do fruto em 2010, contabilizada em
8.128 toneladas (IBGE/PVES, 2010).

61
4.5.2 A atividade extrativista da castanha

Como descrito anteriormente, o processo de coleta e de comercialização da


castanha-do-brasil tem que ser desenvolvido conforme prazos e restrições impostas pelo
ICMBio. Essas restrições iniciam com a determinação do período de safra de 15 de janeiro a
31 de maio e ao tempo permitido para que os quilombolas realizem a coleta, trafegabilidade
e comercialização do fruto, seja o oriundo de dentro da Rebio ou das Flotas do Trombetas e
de Faro. Por conseguinte, para exercerem uma atividade secular, os quilombolas têm que
preencher e/ou atualizar o seu cadastro junto ao ICMBio (antes do dia 15 de janeiro) e,
informar qual função desenvolverá durante a safra, de coletor e/ou regatão. Cabe a
Amocreq a responsabilidade do registro dos quilombolas, sendo que o ICMBio, de acordo
com as infrações cometidas em safras anteriores, autoriza ou não o tráfego de castanha
pelo rio.

Em 2012, foram encontrados 100 castanheiros (as) cadastrados, sendo que na


presente safra estão atuantes em torno de 60, conforme informou o presidente da Amocreq.
Dentre esses, cinco castanheiros atuaram como regateiros, isto é, gerenciaram o aviamento
(crédito), a centralização e a comercialização do fruto.

No caso do regateiro, além de autorização prévia, ainda há uma ficha de transporte,


que deve ser apresentada nas duas bases de fiscalização do ICMBio, dispostas ao longo da
Rebio no rio Trombetas. Essa ficha, de caráter obrigatório, é de responsabilidade dos
quilombolas compradores de castanha e corresponde a um inventário, contendo
informações sobre a quantidade de caixas, nome do coletor, local de coleta, nome do
comprador, nome da embarcação e a data da compra.

O sistema de aviamento no interior da comunidade


A comunidade ainda padece ao sistema de aviamento para a realização da coleta e
comercialização da castanha. Ressalta-se, porém, que ao assumirem a tarefa de escoar e
comercializar a produção, os quilombolas deixaram de ter outros intermediários, como os
representantes dos “donos de barracão” do antigo sistema de aviamento tradicional (início
do século XX), que onerava os custos extrativos e supervalorizava os produtos aviados ao
coletor.

A negociação direta com os quilombolas rompeu esta barreira e as negociações se


dão diretamente com os donos das usinas beneficiadoras localizadas em Oriximiná e
Óbidos. As usinas obidenses para ganharem a preferência de compra, oferecem o benefício
da não cobrança de juros pelo crédito adiantado, mas somente o valor do financiamento em

62
mercadorias, já que a concorrência pelo preço obedece externamente o mercado de Bolsas
de valores.

Dentre os fatores para esta reformulação no sistema, pode-se citar a criação da


Rebio (1979), onde se iniciaram, além das fiscalizações na comercialização, uma série de
exigências, cabendo à comunidade (Amocreq) a incumbência de indicar o agente mercantil
que atuará na compra do fruto. Logo, limitou a circulação de pessoas e/ou de agentes que
não integram as comunidades quilombolas e indígenas, no interior e/ou no entorno da
reserva.

Tem-se um novo cenário comercial, com novos parâmetros do sistema: a dupla


função de comercializar a produção e de financiar antecipadamente o extrativista no seu
deslocamento até os castanhais, ou seja, o negociador e o aviador passam a ser a mesma
pessoa.

Desta maneira e, conforme Silva (2009), o sistema de aviamento ainda é o meio


que as usinas de beneficiamento (sistema capitalista de produção) encontram para se
apropriar do volume de castanha extraído nas matas da Amazônia.

Do processo de coleta ao escoamento


De acordo com o presidente da Amocreq, a coleta no interior da Rebio acontece do
dia 1º de março até o dia 31 de maio, conforme estabelece o ICMBio. Para o prolongamento
desse período no interior da reserva, faz-se necessário que a associação justifique o motivo
tal, o que, necessariamente, não quer dizer que será concedido. A coleta nos castanhais
que estão fora da Rebio, mais especificamente no interior das Flotas, se estende até
meados de junho e o escoamento vai até meados de agosto, de acordo com o presidente da
associação.

Os castanhais são denominados pelos quilombolas como “pontas”. Todas são de


uso coletivo, havendo entre os quilombolas um respeito mútuo pelo castanhal do outro; em
caso de impossibilidade de uso de uma ponta pelo coletor tradicional, o trabalho é delegado
a outro. As distâncias entre as pontas e a comunidade são bastante variáveis, uma vez que
existem aquelas que se encontram próximas à comunidade, porém na maioria delas é
preciso percorrer dias e essa circunstância faz com que os quilombolas se organizem em
grupos para a realização da coleta do fruto.

63
QUADRO 2- Identificação dos castanhais utilizados pelos quilombolas da comunidade
quilimbola de Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, estado do Pará, em 2012.
DESCRIÇÃO DOS CASTANHAIS: "AS PONTAS"
NOME DOS CASTANHAIS ACESSO
Traval
Enseada
Taja
Cutraval
Pirarará
Calção
Fumaça
Gavião RIO TROMBETAS
Trezequeda
Cajuau
166 ("da 26")
Laje preta
Rio do Velho
Uanã
Munguba
Km 20
Km 23 Velho Carlos; Da beira da estrada; Suçuarana

Km 52
Lata; Taperebá; Limão; Água azul e Coltinho
(Igarapé do 52)
BR-163 (estrada) e
Km 60 Peréua: Água preta; Maranhão; Castanhalzinho; Apaga luz; RIO TROMBETAS
(Igarapé do 60 e Vai quem quer; Rui; Sorriso; Lago; São Domingos ; Acapú. 60:
Peréua) Viramundinho e Paraná Florenço
KM 72 Caxipacoré; Jatuarana e Caspacoro
Tauari
Serra do cachorro
Nicolau
Chapéu
Igarapé grande
Capoeira
Ambrósio
Felizberto RIO CACHORRO
Curupira
Bucu
Saúba
Jeju
Três buracos
Tamaquaré
Mungubal
Cachimbo RIO MAPUERA
Castanhalzinho

Elaboração: IDESP

64
Dos castanhais relacionados no quadro anterior, onze (em itálico) se encontram
dentro da área de pretensão, que juntas corresponderam a menos de 18% da produção de
castanha comercializada no período de safra determinado. Portanto, grande parte da
produção de castanha foi coletada em castanhais que ficam fora da área pretendida,
inclusive os castanhais mais produtivos: castanhais do Km 60, Ambrósio, Pirarara e
Fumaça. Vale ressaltar, que o castanhal do km 60 possui um aglomerado de 11 pontas
(castanhais) de coleta, sendo em sua maioria no interior da Rebio. A título de exemplo, em
safras anteriores este castanhal teve uma produtividade de 4.000 caixas, mais precisamente
1.600 hectolitros.
A organização do trabalho para a coleta é realizada por grupos de até quatro
pessoas, familiares ou não. Essa estratégia envolve a garantia de segurança diante do
tempo de permanência no interior da floresta e de diversos percalços para enfrentar as
dificuldades impostas na travessia das águas agitadas das cachoeiras e igarapés e de
outras barreiras naturais, a exemplo de terrenos acidentados ou animais silvestres.
As atividades se iniciam ainda no povoado com a aquisição de suprimentos e
combustível para as rabetas ou voadeiras e com o preparo dos meios de produção (facão,
paneiro, terçado, rede, entre outros). Cada grupo tem um piloto de canoas, o prancheiro, e
um proeiro que auxilia na retirada dos obstáculos (galhos presos, correnteza) no trajeto por
água.
Para a realização da coleta é necessária a construção ou reaproveitamento do
acampamento de coletas anteriores, erguido estrategicamente nas margens dos igarapés e
dos rios para centralizar produção, facilitar o escoamento e servir de moradia. Assim,
também há divisão dos trabalhos de caça, pesca e preparo da refeição.
A coleta dos ouriços caídos no chão se dá com auxílio do terçado ou bastão de
madeira com bifurcações na ponta. O transporte até o acampamento se faz em paneiros,
com capacidade de 40 a 120 ouriços (correspondendo de uma a três caixas-padrão,
respectivamente) carregados às costas, cujo tamanho varia de acordo com a força e a
possibilidade de cada quilombola. Saindo da mata, de volta ao acampamento, os ouriços
são abertos e as castanhas (sementes) selecionadas de acordo com a qualidade antes de
serem ensacadas.

Não é um trabalho fácil! Os quilombolas andam quilômetros dentro da mata


carregando paneiros pesados até o acampamento; arrastam as voadeiras ou rabetas
carregadas através de varadouros e de igarapés até os pontos terrestres onde é possível a
chegada de um jerico (trator com carreta capaz de transportar até 40 sacas); e armazenam
o produto em barracões dos agentes mercantis quilombolas com quem realizaram o
“contrato” de compra, consubstanciado no financiamento da coleta.

65
Na comunidade há um total de três barracões de armazenamento de castanha,
cujos aspectos são bem parecidos: estruturas de madeira (tanto nas paredes quanto os
assoalhos), telhas de brasilit, com pequenas janelas que juntamente com as frestas
(espaço) entre as tábuas garantem a ventilação do produto, conforme a foto 24 a seguir.

Foto 24 – Galpão de armazenamento da castanha em Cachoeira Porteira, maio/ 2012.

Fonte: IDESP

Assim que o produto chega aos locais de armazenamento, os quilombolas


compradores refazem todo o processo de ensacamento e costura da saca, a fim de realizar
tanto a contagem de medida de compra junto ao coletor (caixas), quanto à medida de
comercialização na usina, que é em hectolitro, equivalente a duas caixas e meia de
semente. Nesse processo há nova seleção das sementes, onde as que apresentam cortes
do facão e inadequadas para o comércio são descartadas. Esse trabalho é realizado por
outras pessoas da comunidade, contratadas pelos quilombolas compradores, que recebem
diárias ou prestam o serviço na base de troca de favores. A figura 25 demonstra esse
processo:

66
FOTO 25 - Seleção da castanha em barracão de armazenamento - Cachoeira
Porteira - maio/2012

Fonte: IDESP

A comercialização e o preço
A última etapa é o escoamento aos centros de comercialização. As sacas de
castanha são transportadas por barcos com 114 HP e 113 HP de potência, com capacidade
de até 300 sacas. De modo geral, as sacas são acondicionadas no porão do barco, porém,
no período de safra da castanha é comum acondicionarem as sacas no local destinado aos
também passageiros.

FOTOS 26 e 27 - Acondicionamento de carga de sacas de castanha em barcos - Cachoeira


Porteira - maio/2012

67
Fonte: IDESP

Durante o trânsito pelo rio Trombetas, se a carga for apreendida pela falta dos
documentos exigíveis nos pontos de fiscalização do ICMBio, além de perder credibilidade
junto ao comprador final, o tempo de apreensão influenciará na qualidade final do produto,
por já ter sido coletado e armazenado há algum tempo.

Tanto em Óbidos como em Oriximiná, municípios que no período da safra de


castanha estão literalmente debaixo d’água devido às cheias, o local de desembarque é
outro obstáculo, por não contar com uma infraestrutura adequada para o mesmo.

FOTO 28 - Detalhe de uma pessoa desembarcando castanha em Óbidos - Cachoeira


Porteira - maio/2012

Fonte: IDESP

68
De acordo com quilombolas extrativistas, quando os agentes mercantis que
aviavam eram pessoas de fora da comunidade, o preço pago por caixa era muito baixo. O
aumento do preço pago ao extrativista se deve principalmente ao fortalecimento
organizacional da comunidade, isto é, em função da criação da sua associação (2002) e,
também, a inserção de alguns quilombolas ao processo de comercialização do produto.

Na presente safra (2012), o preço pago por caixa ao extrativista, apesar das
variações positivas, decresceu e estagnou-se em R$ 28,00, equivalente a R$ 70,00 o
hectolitro ou ainda a R$ 1,27/Kg pelo produto. Considerando as informações de que
aproximadamente 100 castanheiros estão atuantes na safra/2012, a produtividade média
por coletor se encontrava em 100 caixas até o dia 31 de maio. Conforme o monitoramento
do preço pago por caixa, realizado por um dos agentes quilombolas desde 2010, a renda
média do coletor oscilou da seguinte forma:

Tabela 16 – Renda média bruta dos coletores na comunidade quilombola de Cachoeira


Porteira entre 2010 a 2012.

Produção média por Preço médio pago ao Renda Bruta


Ano
coletador(CAIXA) coletador (R$/CAIXA) média (R$)

2010 100 24,00 2.410,80


2011 100 38,00 3.817,10
2012 100 28,00 2.812,60

Elaboração: IDESP

Como as famílias quilombolas extrativistas obetem sua renda com a coleta e


comercialização da castanha, verifica-se que ela é insuficiente, uma vez que, considerando-
se o salário mínimo atual de R$ 622,00, o rendimento médio mensal (anual) por coletor
estaria abaixo dele, mais precisamente em R$ 234,38 (38% do S.M.).

É importante frisar que a produção de 2012 tende a ser maior que a do ano
anterior, em que a produtividade dos castanhais foi baixa. Sendo assim, a renda média do
coletor, tende a ser maior do que o exposto, levando-se em consideração que a coleta 2012
só encerra ao final de junho e a comercialização em meados de agosto, como prevê o
presidente da Amocreq. No entanto, pouco mudará a renda média bruta orçada em 2012,
em função do preço médio pago ao coletor neste ano estar 26% menor do que o preço em
2011,conforme a tabela 16.

69
4.6 MAPEAMENTO AGROEXTRATIVISTA

Toda a diversidade de recursos naturais existente na área requisitada pelas famílias


quilombolas é de uso comum. Não há divisões de lotes e todos os moradores possuem livre
acesso a pesca, caça e extração de outros produtos da floresta que são coletados de forma
artesanal e utilizados para o próprio consumo, alguns poucos produtos servem como
“moedas de troca” ou são comercializados internamente.

A única comercialização permitida pela ICMBio, instituição ambiental que monitora o


uso dos recursos da região, é o extrativismo da castanha do Pará (Bertholletia excelsa).

Passada a fase de coleta da castanha, as famílias dedicam-se a outras atividades


agroextrativistas, como abertura de área para implementação dos cultivos anuais, plantio de
espécies perenes e semi perenes, manutenção dos quintais, caça, pesca, coleta de frutas,
resina do breu, óleo de copaíba, entre outras.

Gráfico 19 - Ciclo agroextrativista da comunidade de Cachoeira Porteira, Oriximiná - PA

Espécies mais plantadas


Anuais - mandioca e macaxeira
Semi perenes - abacaxi e banana
Perenes – cupuaçu, cacau e laranja
Elaboração: IDESP

4.6.1 Utilização do solo


Abertura da área para plantio

Através de um acordo informal entre os comunitários e o ICMBio, foi designada para


uso agrícola uma área de floresta secundária de aproximadamente 30 anos. O local onde
atualmente são realizadas as aberturas de áreas que dão origem as roças anuais na área
arrasada pela companhia Andrade Gutierrez, já citada anteriormente. A área de floresta

70
secundária acompanha a estrada aberta e possui aproximadamente 30 km de comprimento.
Os quilombolas abrem suas roças à margem desta estrada.

A abertura das áreas é feita em forma de mutirão, onde pequenos grupos de 08 a 10


agricultores quilombolas reúnem-se e realizam a derruba das espécies arbóreas de portes
maiores em áreas que vão de 0,5 a 1,5 ha. Os instrumentos utilizados para essa atividade
são as foices e facões. Após essa fase, a área permanece aproximadamente 30 dias em
pousio, tempo necessário para que a vegetação de capoeira derrubada desidrate, seja
queimada e, finalmente, plantada.

A queima do material seco é feita pelos próprios “donos” das roças. O intervalo
preferido para o inicio da queima é das 12h às 14h, período que, segundo eles, “o sol está
mais quente e favorece uma boa queimada”. Apesar disso, é comum a realização de
coivaras nessas áreas antes do plantio. Sobre as demais práticas de controle de queimadas,
foi observado que 90% das famílias realizam aceiros e contra fogo.

Apesar do horário destinado à queima, surpreendentemente, não tem havido


problemas de incêncidos acidentais. De acordo com informações de produtores mais
experientes, o único incêndio acidental de grandes proporções ocorreu no final da década
de 1980, que atingiu parte da floresta em pé, ocasionando grandes prejuízos aos moradores
locais, uma vez que várias roças já plantadas até então, foram queimadas.

Na roça são cultivados diversos produtos alimentícios. A mandioca predomina em


quase toda a área, em vários casos, essa espécie divide espaço com macaxeiras e
legumes, como, alface e melancia; semiperenes, como, banana e o abacaxi, entre outras
fruteiras, como abacate, graviola, ingás e cupuaçu.

Após o uso das roças anuais, as famílias deixam as áreas em descanso por um
período relativamente curto, de 01 a 02 anos, para posteriormente fazer uso novamente.
Esse fato pode explicar em parte, a presença de doenças em cultivos como a mandioca,
assim como a baixa produtividade das espécies cultivadas nas áreas constantemente
reutilizadas.

Embora exista uma área de floresta secundária destinada para o cultivo de espécies
alimentícias, as famílias preferem utilizar áreas próximas às residências. Segundo os
entrevistados, a falta de transporte para a retirada da produção, assim como o
deslocamento às áreas de uso comum, onde os solos ainda são pouco utilizados, são as
principais limitantes para a utilização dessas áreas. Além do mais, outro fator que
impossibilita maiores cuidados nas áreas de roças é que nos períodos de março a junho, as

71
roças praticamente ficam abandonadas, uma vez que toda a mão de obra quilombola foca
seus esforços para a coleta da castanha.

A mão de obra utilizada para as atividades agrícolas é familiar. A prática de esforço


coletivo (mutirão) é realizada, principalmente, para abertura das áreas de roças. Em alguns
casos, a mão de obra é contratada também para a abertura, plantio e limpeza dessas áreas.

A seguir descrevem-se as principais culturas utilizadas nas roças agrícolas da região.

Principais cultivos
A mandioca (Manihot esculenta) é a principal espécie de subsistência cultivada pelas
famílias locais. As demais espécies anuais como milho, arroz e feijão, raramente são
plantadas. O motivo apresentado pelos comunitários é que eles não possuem conhecimento
sobre essas espécies, além do mais, o período de capina e, principalmente, da colheita
coincidem com a coleta da castanha, que é a principal atividade agroextrativista das famílias
quilombolas. Alguns depoimentos relatam que em vários casos essas culturas se perderam
devido à falta de mão de obra para a realização dos tratos culturais e colheita, em
decorrência da coleta de castanha.

Foto 29 – Produção de mandioca

Fonte: IDESP

Plantio e variedades utilizadas - Utilizada em 95% das roças implementadas, essa


espécie é plantada em toletes com espaçamento de em média 0,50 cm x 0,50 cm. A colheita
é iniciada 01 ano após seu plantio, apenas uma variedade denominada localmente de “seis
meses” tem o seu período de colheita inferior a um ano. As demais variedades conhecidas
na comunidade são: jararaca, açari grande, jacaré, icoaraci e pavulagem.

Tratos culturais e produtividade - A limpeza é uma tarefa indispensável nos plantios,


uma vez que reduz a competição entre o cultivo desejado e as ervas daninhas. No caso da

72
mandioca, realizam-se duas limpezas, mas, ainda assim encontram-se roçados tomados por
ervas daninhas.

A produtividade média da farinha de mandioca do ponto de vista técnico é


considerada baixa, as famílias beneficiam por hectare cerca de 1400 kg de farinha. Há uma
série de motivos que limita o desempenho desse produto, entretanto, a principal razão é a
podridão radicular causada por fungos como o Phytophtora spp., Sclerotium rolfsii,
Scytalidium spp., Botridiplodia spp. e Fusarium spp., entre outros. A incidência da doença
ocorre quando o solo não possui uma boa drenagem e encharca com facilidade. Em alguns
casos, a perda da produção é total, nesse caso, os quilombolas abandonam a área e se
dedicam a outras atividades não agrícolas, como caça, pesca, artesanato, entre outras.

Beneficiamento e comercialização - Existem em Cachoeira Porteira cinco casas de


farinha localizadas nos pátios e quintais de algumas residências. Entretanto, as famílias que
desejam beneficiar as raízes de mandioca e transformá-las em farinha podem utilizar esses
locais, na maioria dos casos, o material é emprestado sem ônus para os moradores donos
da produção. Em outros casos, existem as trocas de favores, onde uma porcentagem do
produto beneficiado é deixada com o dono casa de farinha.

Foto 30 - Casa de farinha - maio/2012

Fonte: IDESP

Plantio e variedades utilizadas - Utilizada em 95% das roças implementadas, essa


espécie é plantada em toletes com espaçamento de em média 0,50 cm x 0,50 cm. A colheita
é iniciada 01 ano após seu plantio, apenas uma variedade denominada localmente de seis
meses tem o seu período de colheita inferior a esse período. As demais variedades
conhecidas na comunidade são: jararaca, açari grande, jacaré, icoaraci e pavulagem.

73
Tratos culturais e produtividade - A limpeza é uma tarefa indispensável nos plantios,
uma vez que reduz a competição entre o cultivo desejado e as ervas daninhas. No caso da
mandioca, realizam-se duas limpezas, mas, ainda assim encontram-se roçados tomados por
ervas daninhas.

A produtividade média da farinha de mandioca do ponto de vista técnico é


considerada baixa, as famílias beneficiam por hectare cerca de 1400 kg de farinha. Há uma
série de motivos que limita o desempenho desse produto, entretanto, a principal razão é a
podridão radicular causada por fungos como o Phytophtora spp., Sclerotium rolfsii,
Scytalidium spp., Botridiplodia spp. e Fusarium spp., entre outros. A incidência da doença
ocorre quando o solo não possui uma boa drenagem e encharca com facilidade. Em alguns
casos, a perda da produção é total, nesse caso, os quilombolas abandonam a área e se
dedicam a outras atividades não agrícolas, como caça, pesca, artesanato, entre outras.

Beneficiamento e comercialização - Existem em Cachoeira Porteira cinco casas de


farinha localizadas nos pátios e quintais de algumas residências. Entretanto, as famílias que
desejam beneficiar as raízes de mandioca e transformá-las em farinha podem utilizar esses
locais, na maioria dos casos, o material é emprestado sem ônus para os moradores donos
da produção. Em outros casos, existem as trocas de favores, onde uma porcentagem do
produto beneficiado é deixada com o dono casa de farinha.

Em média 80% da produção de farinha é consumida pelas próprias famílias, o


restante do produto é comercializado na própria comunidade ou levado em barcos para
venda em Oriximiná ou em Porto Trombetas onde é comercializada em valores que giram
em torno de R$ 50,00 a R$ 60,00 cada saco de 50 Kg.

Macaxeira
Também conhecida como mandioca mansa ou aipim, a macaxeira (Manihot
utilíssima Pohl) é bastante utilizada como alimento para a população local. Plantada
consorciada ou não com a mandioca, a macaxeira é a segunda planta mais cultivada nas
áreas de roça e recebe os mesmo tratos culturais destinados a mandioca. A macaxeira é
colhida de forma seletiva, ou seja, somente alguns “pés” são retirados por vez.

Com exceção da podridão da raiz, não foi observada a presença de outras


enfermidades que afetam o desenvolvimento dessa espécie.

Frutíferas
As espécies perenes e semiperenes mais cultivadas nas áreas de roça são o
cupuaçu (Theobroma bicolor), banana (Musa spp), abacaxi (Ananas comosus L), cacau
(Theobroma grandiflorum) e cana de açúcar (Saccharum sp), com 82%, 64%, 45%, 18% e

74
18% de ocorrência, respectivamente. Dessas espécies, somente a banana é comercializada
na localidade, poucas vezes essa fruta é comercializada na feira de Porto Trombetas,
distante 8 horas de barco da comunidade. No período de produção, há produtores que
comercializam até 30 cachos por mês, sendo que cada cacho é vendido internamente no
valor de R$ 10,00.

Foto 31 – A banana é uma das principais frutíferas cultivadas pelos moradores


locais.

Fonte: IDESP

Não são utilizados fertilizantes químicos nos plantios. Sobre a adubação orgânica,
várias famílias tiveram cursos que ensinaram como realizar o processo de elaboração desse
adubo, mas essa prática não foi adotada.

Pecuária
As poucas famílias que criam animais (9%) utilizam em média pouquíssimas cabeças
em função do tamanho da área (em média 3,75 cab/ha). O gado é utilizado nessas áreas é
mestiço e sua criação é feita de forma extensiva. Há casos em que as famílias não se
beneficiam em nada desses animais, tendo-os apenas como animais de estimação. O pasto
utilizado é o capim marandu (Brachiaria brizantha), que por ser pouco manejado e com o
número de cabeças inferior ao recomendado, é tomado por plantas competidoras.

Sistemas agroflorestais
Algumas poucas famílias participaram de um projeto para a implementação de
sistemas agroflorestais em roças recém-abertas. Nesses sistemas, juntamente com a
mandioca foram efetuados consórcios de abacaxi, cupuaçu, banana e outras espécies
frutíferas.

75
Quintais
Os quintais possuem aproximadamente ¼ de hectare e é onde ocorre a maior
diversidade de plantas medicinais, ornamentais, frutíferas e pequenos animais na
propriedade. Há residências em que as roças familiares são complementos desses quintais.

Foto 32 - quintais frutíferos

Fonte: IDESP

Plantas medicinais

Observou-se a grande diversidade de plantas medicinais encontradas tanto nos


quintais como na floresta da região. Para descrevê-las e apontar a forma de utilização, foi
construído no quadro 20:

Foto 33 e 34 - Quintais com Ervas medicinais

Fonte: IDESP

76
Quadro 20. Frequência e uso de plantas medicinais encontradas nos quintais familiares de Cachoeira Porteira.

ESPÉCIES USO MEDICINAL FREQUÊNCIA

Amor crescido (Portulaca pilosa) Diarréia, ferimento, queimadura 22


Amenorréia, cólica, dor de cabeça, dor de garganta, dores nas costas, entopercimento dos
Arruda (Gruta graveolens) olhos, epilepsia, esclerose múltipla, esparmos musculares, feridas, hipertensão arterial, 22
histeria, infecção no olvido, parasitas, vermes, reumatismo, tosse
Canela (Cinnamomum zeylanicum) Resfriado 11
Possui propriedades febrífugas, sudoríficas, analgésicas, calmantes, anti-depressivas,
Capim cheiroso (Cymbopogon citratus) 11
diuréticas e expectorantes, além de ser bactericida
Copaíba (Copaifera sp) Anti-inflamatório e anticancerígeno 33
Elixir paregórico (Piper callosum ) Diarréia 11
Vermes intestinais, hemorróida, psoríase, afecção cutânea, falta de apetite, insônia,
Estoraque (Liquidambar orientalis) irregularidade menstrual, difteria, afecção nos brônquios e nos pulmões, tosse, catarro 44
pulmonar, reumatismo, ferida, leucorréia, blenorragia
Gengibre (Zingiber oficcinale) Bactericida, desintoxicante 11
Tem efeitos abortivos, laxante, afrodisiaco, também é utilizado contra dores reumáticas,
Gergelim (Sesamum indicum) 11
tumores, queimaduras, dor de ouvido e clisteres
Grajió (Trichilia quadrijuga Kunth) - 22
Eficaz no combate às atonias digestivas, dores espasmódicas do estômago e intestinos,
náuseas, dispepsias nervosas, palpitações e tremores nervosos, vômitos, cólicas uterinas,
Hortelã (Mentha spicata) 56
cólicas intestinais e hepáticas, afecções das vias urinárias, prisão de ventre, asma, bronquite,
tosse, gripe, resfriados e febres
Japana (Eupatorium ayapana Veuten) - 11
Mastruz (Chenopodium ambrosioides) Corrimento vaginal, antisséptico local 33
Utilizado como abortivo, tem efeito analgésico, anti-espasmódica, anti-reumática, bactericida,
Mucura caá (Petiveria alliacea L. ) 22
diurética, fungicida, imunoestimulante; dores em geral e inflamação
Murure (Brosimum acutifolium) Reumatismo 11
Combate a acne, albuminúria, artrite, caquexia palustre, carminativo, catarros crônicos,
Preciosa (Aniba canelilla ) clorose, debilidade, dermatite, diarréia, digestivo, disenteria, edema dos pés, enxaquecas, 22
esfoliação, esgotamento nervoso, espasmos, febre, feridas, fraqueza, frigidez e gases
Salva de Marajó (Hyptis crenata) Dor de cabeça, dor de estômago, gripe e febre 11

77
Indicado para tratamento de bronquite, afecções das vias biliares, febres, dores reumática e
Sangue de cristo (Fumaria sp) 11
prevenção da aterosclerose, afecções do fígado, hemorróidas
Saracura Mirá (ampelozizyphus amazonicus
Usado no tratamento de cansaço físico, sexual, insônia, nervosismo, falta de memória 44
ducke)
Combate a diarréia, hemorróida, dor no estômago, cólicas, garganta inflamada, tosse, fígado,
Saratudo (Byrsonima intermedia A. Juss.) corrimento, tumores no útero, pulmões, úlceras, gastrite, catapora, infecção intestinal, 11
diabetes, pedra nos rins, cólera, inflamações no útero e câncer
Sucuuba (Himatanthus sucuuba) Cicatrizante, câncer, fratura, gastrite, herpes, impigem, úlcera gástrica, verruga 11
Unha de gato (Uncaria tomentosa) Doenças reumáticas e musculares 22
A raiz é febrífuga, e combate a diarréia. Por ser energicamente abortiva. Externamente
Urubucaá (Aristolochia trilobata) 22
emprega-se a raiz, em pó, nas úlceras crônicas e nos lupos.
Usada contra ameba, asma, dermatoses, diabete, erisipela, febre, hemorróida, varizes e
Vassourinha (Borreria vertieillata) 11
vômito.
É diurética, carminativa, estomáquica, anti-emética, espasmolítica, antiiflamatória, antiofídica,
Vindicá (Alpinia zerumbet) 22
anti-histérica, vermífuga, no combate ao reumatismo e como tônico geral.
Chicória (Chicorium intybus) Atua na circulação 33
Elaboração: IDESP

78
Os demais componentes vegetais e animais encontrados nos quintais familiares dos
quintais são os seguintes:

Hortas - Cebolinha, chicórea, coentro, pimenta de cheiro, pimentão, couve, alho

Pomares - Mangueira, açaizeiro, mamoeiro, ingazeira, cupuaçuzeiro, laranjeira,


limoeiro, coqueiro, gravioleira, abacaxizeiro, cacaueiro, pupunheira, jambeiro, goiabeira,
abacateiro, fruta pão, jaqueira, entre outras.

Criação de animais - galinhas e porcos

Foto 35 - Hortas caseiras

Fonte: IDESP

4.6.2 Uso dos recursos da floresta

Madeira - Cachoeira Porteira possui grande parte de seu território ainda com floresta
primária, apesar de ter sofrido muitas intervenções durante as últimas décadas. As madeiras
foram apontadas pelas famílias e em contato com quilombolas mais antigos, apenas as que
são de uso interno e medicinal, o que ainda é um pequeno número considerando a imensa
área de floresta que ainda possui pouca intervenção.

Com relação ao uso, as entrevistas apontam que as famílias não comercializam a


madeira, e sim usam para construção de casa, cercas, entre outras. As espécies florestais
presentes na região de Cachoeira Porteira são: Mogno (Swietenia macrophylla), jacarandá

79
(Machaerium floridum), ipê (Tabebuia sp), louro (Ocotea sp), copaíba (Copaifera
langsdorffii), breu sucuuba (Trattinnickia cf. burseraefolia), maçaranduba (Manilkara
amazonica) , louro cheiroso (Aniba paraense), acapu (Vouacapoua americana), itauba
(Mezilaurus Itauba), morototó (Schefflera morototoni), sapucaia (Lecythis pisonis), angelim
(Hymenolobium petraeum), quariquara (Minquartia guianensis), aroeira (Myracrodruon
urundeuva), Cedro (Cedrela odorata), saracura (Amasonia campestris), carapanaúba
(Aspidosperma Nitidum), pau d´arco (Tabebuia serratifolia), tatapirica (Tapirira guianensis)

Caça e pesca - A caça e, principalmente, a pesca são os principais componentes da


dieta das famílias da localidade de Cachoeira Porteira. Dentre as caças para a alimentação
encontram-se: anta, paca, cotia, macaco, mutum, queixada, porco do mato e veado.

Sobre a pesca, os principais peixes utilizados para a alimentação das famílias locais
são: trairão, pescada, cujuba, tucunaré, pacu, acari, camunani, pirarucu, filhote, piranha,
aracu, peixe cachorro, curimatã, jaú. Há pescados que encontram-se durante todo o ano,
como o jaú, trairão e o camunani. Outros, entretanto, são encontrados em épocas
específicas (inverno e verão).

A melhoria do sistema produtivo encontrado na comunidade quilombola de


Cachoeira Porteira deve ser realizada através de um planejamento que inclua toda a cadeia
produtiva. A seguir são recomendadas propostas em vários âmbitos para que a comunidade
possa ampliar melhorias rumo a um desenvolvimento mais equilibrado econômico e
socioambientalmente

Análise do ambiente interno


Em uma ação realizada junto ao coletivo quilombola pode-se analisar o ambiente
interno da comunidade, como pensam sobre suas dificuldades e quais os caminhos a serem
seguidos para solucioná-las.

Foram formados cinco grupos, aleatoriamente, e distribuídas oito fichas contendo


questionamentos sobre a situação em que vivem. Na primeira etapa foram solicitados a
refletir e anotar os aspectos positivos e negativos que os envolvem.

De modo geral, a comunidade quilombola estrutura o pensamento englobando as


dimensões sociais, culturais, econômicas, políticas, ambientais e éticas à realidade. A
associação de “cuidar da casa” (o meio ambiente), de “cuidar das pessoas” (o social), de
“administrar os recursos da casa” ( o econômico), de “respeitar os saberes e valores locais”
(o cultural), de “participar das decisões comuns” (o político) e de “zelar pelo bem comum” (o
ético) estão estritamente vinculadas.

80
O pensar coletivo é preponderante nas discussões e na análise do ambiente
interno, não havendo uma prioridade específica no elenco de informações e solicitações -
tudo se faz urgente. Salvo a questão da titulação da terra, uma preocupação latente que
perpassa a todas as ponderações realizadas, os grupos assim descrevem a comunidade:

COMO ESTAMOS? POR QUE ESTAMOS ASSIM?


Preocupados, inseguros, insatisfeitos, Por falta de recursos e de projetos
inconformados e, ansiosos Por falta de ajuda dos comunitários
Carentes de trabalho Por falta do título da terra
Sem projetos Pela falta de apoio dos governantes
Em processo de demarcação e Falta profissional da área de saúde
titulação de terra, mas sem
domínio do território Falta de segurança e de apoio de
policiamento, pois devido à
Visados por outras instituições comunidade ser pequena e
Com problemas de abastecimento de distante muitos ficam impunes
água, de cuidados com a saúde de atos de desordem;
e de transporte Com a inexistência do ensino médio
Sem Ensino Médio em nossa comunidade
Não estamos organizados
Fomos esquecidos pelas entidades
que nos representam

81
O QUE QUEREMOS?
Assistência médica Energia elétrica na comunidade: 24
Policiamento horas

Educação: ensino médio Nos sentir valorizados perante a lei;


Usar com restrições próprias e
Creches legais nossos recursos
Cursos de capacitação naturais
Antena para celular, internet Ver ou ter uma comunidade que
Projetos para tirar as crianças das progrida nos aspectos
ruas socioeconômico e cultural

Parcerias: Conselho, IBAMA, MMA, Melhoria no transporte fluvial e


terrestre
Fundação Palmares, Governo
Estadual e Federal Lancha para emergência
Existência de projetos que gerem Título da terra para podermos entrar
emprego e renda nos programas de governo:
Definição da titulação da terra programa Brasil quilombola e
Pronaf
Programa luz para todos -
minibarragem que atenda à
comunidade
Porque necessitamos garantir o futuro
de nossa nova geração

A esses três questionamentos seguiram outros, de modo que os grupos se voltaram


para os aspectos positivos existentes em seu meio. Importante observar a inclusão de
indígenas como parte do convívio diário, dos valores culturais, do detalhamento da pequena
infraestrutura existente, dos recursos de programas de governo e da relação com o meio
ambiente. No caso da coleta de lixo, embora o combustível do trator seja doado pela
prefeitura, trata-se de uma iniciativa da comunidade.

Ao que têm, descrevem o que lhes falta e avaliam os caminhos e resultados


esperados:

82
O QUE TEMOS?
Transporte fluvial gratuito uma vez por Produção agrícola
mês Pequena padaria
Terra para trabalhar Presença de indígenas
Muitos peixes Cerâmicas quilombolas
Família unida; Valores Artesãos
Agente de endemias e um posto de Inúmeras minas de água potável
saúde que não funciona
Escola com ensino fundamental
Delegacia desativada
Energia termoelétrica durante 4
Pequenos comércios e alguns bares horas/dia
Uma rua que poucas comunidades têm Água gratuita encanada precariamente
- BR 163 com 58 km trafegáveis
Três igrejas (Católica, Evangélica e
Pontos turísticos com praias, Batista)
cachoeiras, igarapés, cavernas,
lajeiros Barracão comunitário em precárias
condições de uso
Campo de futebol
Pista de pouso de 870 metros
Floresta preservada em relação a
muitas outras Casa de força com motor de 114 hp,
com gerador de 80 kw/h
Riqueza biológica (flora e fauna)
Uma caminhonete l-200 (em
Associação – AMOCREQ manutenção)
Telefone público e residencial Um trator de pneu para escoamento da
precários produção agrícola e extrativista
Recursos do governo - bolsa família Coleta de lixo

A questão da gestão veio elencada da seguinte maneira:

QUAL A GESTÃO?
Órgãos federais (MMA, e outros; Fundação Palmares)
Apoio da comunidade
Democrática, com direitos constituídos por lei, direitos iguais
Prefeitura
AMOCREQ
Secretaria de saúde
Secretaria de educação – escola
Cooperativa (líderes comunitários)

83
Grupo de lideranças vinculado às áreas de desenvolvimento: saúde, educação, transporte,
agricultura, segurança, habitação, extrativismo, pecuária, comércio, indústria, artesanato, turismo,
etc.

4.7 ANÁLISE DO AMBIENTE INTERNO

1. Na segunda etapa os grupos foram reunidos e convidados a organizar o pensamento por


ordem de prioridade, ficando elencados os seguintes assuntos:
2. 1º - Conquistar o título da terra e se organizar;
3. 2º - Garantir o Ensino Médio e melhorar a qualidade da Educação;
4. 3º - Elaborar e executar projetos sustentáveis para gerar emprego (com a ressalva de
que a prioridade 2 e 3 precisam estar em diálogo constante);
5. 4º - Capacitar mão de obra local para executar os projetos; fazer parcerias com órgãos
públicos e privados; ter maior investimento por parte dos nossos governantes;
6. 5º - Ser persistente na busca de desenvolvimento para a comunidade;
7. 6º - E criar uma cooperativa.

84
Foto 36 e 37 - Análise do ambiente interno – Apresentação

Fonte: IDESP

4.8 MEIO AMBIENTE E ETNOCONSERVAÇÃO

A Carta Magna de 1988 além de salvaguardar o meio ambiente, também assegura


o direito à diferença e se pronuncia sobre o reconhecimento dos direitos étnicos, inclusive
aos da terra. O artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, aponta que a
apropriação formal de terras destinadas a grupos sociais inclui os quilombolas, com base no
direito à propriedade definitiva. A prática do extrativismoda castanha do Pará permitiu que
os moradores da comunidade Porteira pudessem ao longo de sua história de ocupação do
seu território identificar as àreas potencias, tanto em ocorrência de castanha, quando em
ocorrência de outras espécies vegetais alimentares e economicamente importantes, àreas
de caças, pesca, as quais hoje estão identificadas de modo preciso e detalhado por seus
moradores, inclusive quanto a época e disponibilidade destes recursos e quanto as suas
localizações. O defeito assegurado na Carta Magna, em seu art. 215 que diz que “o direito à
terra é um direito fundamental e cultural em se tratando de comunidade Tradiconal” nesse
sentido entendemos que a comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira, como tal, se
privada da “terra” poderá dispensar-se ou até mesmo desaparecer.

Aqui na Amazônia, em especial no Pará, perdura a invisibilidade social,


notadamente, quando o poder do capital se sobrepõe aos interesses de comunidades
tradicionais, usurpando da garantia do direito à propriedade da terra e sobrepondo-se às
áreas territoriais tradicionais, ocupadas e utilizadas para o extrativismo. Em nome de um
crescimento econômico que desconsidera a investigação do meio ambiente percebido pelo
homem, dos múltiplos saberes, da etnobiodiversidade, mega empresas instalaram-se na
região amazônica para sugar seus recursos naturais.

85
As populações tradicionais em especial amazônicas como têm no meio ambiente a
fonte para manutenção da sua sobrevivência, da reprodução física e cultural, não procede
assim.

A ação antrópica em Cachoeira Porteira, observada pela implantação de roças é


incipiente, pois a comunidade adota a agricultura de subsistência com plantio de macaxeira,
abóbora, entre outros produtos para consumo próprio, não tendo sido observadas áreas
extensas de plantio. Esses roçados estão concentrados nas proximidades das áreas abertas
anteriormente pela empresa Andrade Gutierrez.

A coleta e a comercialização das sementes de castanha movimentam uma


economia que gera e proporciona a aquisição de boa parte dos bens de consumo existentes
na comunidade, embora existam outras fontes secundárias extrativas, também geradoras de
renda internamente, como a Copaíba e o Breu. Foram observadas outras atividades
extrativas, objetivando o consumo alimentar, onde predominam a coleta do açaí, da bacaba,
do bacaba-í, do piquiá, do taperebá, do tucumã, do mari-mari, de ingás, miriti, ux,i entre
outros.

A Castanha-do-Pará (ou do Brasil) é a grande fonte de renda da comunidade


quilombola, envolvendo a extração coletiva, que pode ser familiar ou composta por grupos
de castanheiros. Quando familiar, há o deslocamento das famílias para os castanhais, por
períodos que, em algumas safras, chegam a durar quatro ou cinco meses, ocasião em que
são feitos acampamentos, instalados próximos aos castanhais a serem explorados.

Esses castanhais são compostos por concentrações de castanheiras em áreas


descontínuas, mas que formam verdadeiros mosaicos, cuja geografia é largamente
conhecida por aqueles que deles dependem. Os castanhais têm nomes dados pela
comunidade, que os reconhece como entes provedores, aos quais devem respeito em razão
do abastecimento econômico e alimentar do grupo. Eles ainda não foram inventariados,
porém estão sendo utilizados por gerações e continuam exuberantes.

Quanto ao aproveitamento econômico dos castanhais por parte dos grupos


indígenas locais, pode-se dizer que a atividade é recente, cerca de três anos, contando com
o apoio dos quilombolas em negociações comerciais.

Apesar de existirem castanhais produtivos nos aldeamentos antigos localizados no


Rio Mapuera, sua geografia acidentada por muitas cachoeiras, dificultando o escoamento da
produção tem ensejado acordos de fixação de novas aldeias no território quilombola do

86
Trombetas, onde há castanhais com melhor acesso, cujo escoamento se dá até a
comunidade de Cachoeira Porteira.

Importante salientar que esses castanhais explorados recentemente pelos


indígenas foram disponibilizados pela própria Comunidade Remanescente de Quilombos de
Cachoeira Porteira, mesmo após terem assinado um termo de acordo em 2005 onde se
estabeleciam os limites territoriais de uso entre as etnias em questão.

4.8.1 Imagens da floresta

Foto 38 - imagens da floresta - mata ciliar - abril 2012.

Fonte: IDESP

Foto 39 - Orquídeas - ao redor das cachoeiras - abril 2012

Fonte: IDESP

87
Foto 40 - Acampamento de coleta de castanha - Jascuri abril 2012

Fonte: IDESP

Foto 41 - Cachoeiras do Jascuri abril 2012

Fonte: IDESP

88
Foto 42 - Caminho no Jascuri utilizado há séculos pelos coletores de castanha
quilombolas

Fonte: IDESP

89
5 REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA

5.1 MAPEAMENTO DA ÁREA DE PRETENSÃO


Mapa 2 – Comunidade Remanescente Quilombolas Cachoeira Porteira

Elaboração: IDESP

90
Os trabalhos de mapeamento da área de pretensão iniciaram a partir da visita dos
representantes de Cachoeira Porteira ao Núcleo de Cartografia do IDESP, para o estudo da
carta-imagem e da plotagem dos pontos de controle, voltados à elaboração do Memorial
Descritivo.

Após a plotagem da poligonal, ficou definida a área de pretensão onde se observou


que ela estava reduzida em relação às propostas anteriores, que consistia em vários
segmentos de retas interligando pontos com considerável deslocamento - método que
certamente contribuiria para observações e questionamentos quanto à precisão dos vetores,
(distâncias e azimutes) sugeridas entre os vértices. Optou-se pela demarcação da poligonal
utilizando os acidentes geográficos como a malha de drenagem e serras (divisor natural)
além de estradas.

A etapa seguinte foi à espacialização da poligonal em carta imagem a partir da


identificação dos tributários envolvidos e sua hierarquia na bacia hidrográfica da área de
interesse para a identificação das coordenadas geográficas dos pontos definidos como
vértices da descrição, isto é, os pontos de controle do Memorial Descritivo. Concluído este
processo, na última etapa definiu-se o ponto inicial para o descritivo com a identificação dos
segmentos até o próximo ponto, até a conclusão com apontamento de todos os pontos
devidamente identificados no sentido horário, conforme prediz a norma.

91
5.2 CONSTRUÇÃO DA CARTA-IMAGEM

5.2.1 A malha de drenagem


Mapa 3 – Comunidade Remanescente Quilombolas Cachoeira Porteira

Elaboração: IDESP

Apesar da complexidade para a identificação da malha de drenagem da área de


pretensão, utilizou-se a base cartográfica na escala 1/100.000 disponibilizada no site do
IBGE. Observa-se uma malha de forma dentrítica, muito ramificada, porém, com modelagem
estrutural em grandes áreas como ocorre com o igarapé Jascuri desaguando no rio
Trombetas: quando segue por uma falha estrutural forma um grande canal seguindo de um

92
paredão com altura elevada. Outra formação é observada no sentido Norte/Sul que desenha
o rio do Velho até sua foz na margem direita do rio Trombetas, certamente outra falha
estrutural visível.

Nos períodos em que ocorreram as visitas técnicas à comunidade, várias incursões


foram realizadas nos principais rios, como rio Trombetas, rio Mapuera, rio Cachorro entre
outros. Porém, não observamos nenhuma cachoeira ou corredeiras durante os percursos
devido às mesmas estarem totalmente submersas pelo grande volume de água,
identificando apenas suas áreas de ocorrência e ocupação, fato este que não impediu aos
quilombolas participantes das equipes de nomearem cada uma.

O trabalho também oportunizou a identificação de diversos tributários durante a


atualização das denominações dos tributários contidos na Área de Pretensão - a partir da
hierarquia de drenagens que segundo CHRISTOFOLETTI (1980), consiste no processo de
se estabelecer a classificação de determinado curso d’água (ou da área drenada que lhe
pertence) no conjunto total da bacia hidrográfica na qual se encontra.

Este processo caracteriza ainda a ocupação e o conhecimento empírico repassado


através de gerações pelo constante acesso às regiões, utilizando as drenagens para o
transporte das sacas de castanhas ou para praticar a pesca artesanal para subsistência
familiar.

5.2.2 Acidentes geográficos

Na área de pretensão identificamos várias ocorrências de faixas elevadas ou


recortadas por tributários direcionados ou desviados pelas estruturas de relevos que se
destacam como sendo um acidente geográfico, e que, segundo uma definição aproximada,
é uma ou mais entidades diferenciadas no relevo terrestre que interferiram na formação dos
solos continentais ou costeiros. No caso, a área de pretensão possui segmentos destes
elementos que se inserem na poligonal delimitante. Em outros momentos são estruturas ou
elevações totalmente contidas nos limites, como serras, morrotes, paredões, deltas e
nascentes, caracterizando a porção da área de interesse como uma faixa de terrenos em
constante formação condicionados pela grande presença de drenagens e divisores naturais.

Treinamento de equipes quilombolas


Os métodos do treinamento das equipes também aconteceram em três momentos.
O primeiro já descrito acima, na definição da poligonal da área de interesse a partir das

93
indicações em uma carta imagem por parte dos representantes da comunidade quando da
visita ao Idesp e ao Núcleo de Cartografia e Georreferenciamento.

Na sequência, a equipe técnica reuniu com a comunidade para definição dos


trabalhos, e a composição das equipes que participaram das atividades em campo para a
identificação dos pontos da poligonal. A carta-imagem foi apresentada para apreciação e
compreensão da comunidade, em Cachoeira Porteira, com o objetivo de uma vez identificar
os acidentes geográficos e locar os marcos identificadores a partir do conhecimento
empírico desses componentes; pela razão de ser (aparentemente) um lugar comum devido
a perambulação para coleta de castanhas, caça e pesca, seria preciso atingir parcialmente a
poligonal da área de pretensão.

Na ocasião foi aplicado um treinamento para operar o aparelho GPS de navegação


para o registro do ponto, da forma mais prática possível, ou seja, ligar o aparelho no
momento em que identificassem o local, segundo o conhecimento da região da área de
pretensão. Após o retorno, foi possível identificar apenas 30% dos pontos propostos,
alcançados com melhor aproximação, devido à dificuldade de acessos, ao prazo sugerido
em período exíguo, e à execução dos dois procedimentos: identificar o local a partir do seu
modo de deslocamento por entre a malha de drenagem e as serras; e a operação do
equipamento, agora em ambientes dicotômicos do local de treinamento, ou seja, o povoado.

O terceiro momento decorreu do acumulado das informações, como os relatos das


equipes nas atividades de campo, o entender a dificuldade em exercer processos pelo
empírico e tecnológico em curto prazo e a aplicação de outra metodologia ao treinamento.
Revisto o modo de interpretação de dados, visual e leitura no aparelho GPS foram
reorganizadas as equipes e redistribuídas as faixas de atuação para o levantamento. A
dinâmica utilizada foi a de interpretar a malha de drenagem e serras a partir de correlação
com o ambiente da comunidade, como segue:

A estrada principal (variante ou BR-163) da vila correlacionando com o rio


Trombetas, no caso, denominado de rio Variante;
A partir da variante com as entradas de acessos, os caminhos e as ruas que
atravessam correlacionando com a foz (local onde deságuam as drenagens
secundárias na drenagem principal);
A continuidade destes acessso, caminhos ou ruas, até uma determinada distância
correlacionando com o cumprimento da drenagem secundária (igarapés);
O ponto da distância determinada nos acessos, caminhos ou ruas correlacionando
com a nascente ou cabeceira da drenagem secundária;

94
Partindo desta “nascente” até encontrar outra “nascente” correlacionando com os
varadouros (trilhas de acessos pela cota topográfica mais alta);
E entre os cruzamentos das ruas com a variante demarcamos pontos aleatórios
como postes, caixa d’água, telefone público entre outros correlacionando com os
pontos de controle, que poderia ser uma outra foz, uma ilha, uma corredeira (comuns
no ambiente de campo) como balizador de que estavam navegando na drenagem
correta ou próximo da nascente sugerida.
Para tanto, foi confeccionado um mapa com um grid de coordenadas dividido em 05
segundos para latitude e longitude, alcançando desde o porto de Cachoeira Porteira até
1200m (aproximadamente), próximo a estrada para o aeroporto, identificando na base as
coordenadas geográficas destes pontos e acessos, complementando o mapa e o
treinamento das equipes.

Concluídas as atividades, os grupos - compostos por um operador de GPS, um


líder de equipe e auxiliares - percorreram cada ponto sugerido no mapa e, conferindo os
pares de coordenadas indicados, teriam que se posicionar o mais próximo possível do ponto
de coleta a ser registrado, caracterizando a localização do marco em campo.

Após 03 dias de dinâmicas entre treinamento de GPS e práticas improvisadas de


campo, as equipes deslocaram-se para suas respectivas áreas de coleta e passados os
primeiros 15 dias entregaram os primeiros aparelhos com observações do sucesso pela
aplicação do método. As atividades de cada equipe serão concluídas com um relato
descrevendo as coordenadas, o local e seu entorno para registro tanto de trajetos até o
ponto como o ambiente alcançado.

Projeção territorial – áreas de uso coletivo


As Áreas de Uso Coletivo correspondem a outras duas porções de terras
localizadas a Norte da Área de Pretensão, nos domínios do rio Trombetas e foram também
delimitadas a partir dos acidentes cartográficos e nos mesmos parâmetros anteriormente
usados.

As áreas compreendem regiões de castanhais, sendo a primeira, distante a 11,5 km


em linha reta para Norte, a partir da foz do igarapé Viana com o rio do Velho ocupando uma
área equivalente a 396,10 km2, onde estão inseridas várias frentes de castanhais como do
Velho, Cutraval, Pirarara, Caução, Fumaça entre outros. A segunda área dista
aproximadamente 57,3 km em linha reta para Norte a partir de um afluente do rio do Velho,
próximo a sua nascente, cobrindo uma área equivalente a 45,58 km2, denominada pela
comunidade de Castanhal da 26. Trata-se de regiões acessadas em todos os períodos de
coleta de castanhas com práticas estritamente extrativistas.

95
REFERENCIAS

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Belém, 2ª Edição, Cejup. UFPA-NAEA, 1998.

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VEDOVETO, Mariana e outros - Cartilha do Plano de Manejo da Floresta Estadual do


Trombetas – Belém: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, Belém, Pará. Imazon,
2011.

98
6 ESTUDO ANTROPOLÓGICO: COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DE
CACHOEIRA PORTEIRA
Emmanuel de Almeida Farias Júnior9

Mais, vous y avez bien été, dans hauts!


— Oui, mais moi je suis Mucambeiro.10
(Henry Coudreau, 1899, discutindo se o quilombola saberia leva-los ao alto Trombetas)

Este estudo antropológico consiste num produto de trabalho de pesquisa que vem
sendo realizado na região do rio Trombetas, Baixo Amazonas, município de Oriximiná,
desde 2005, focalizando principalmente comunidades remanescentes de quilombo e suas
relações com os recursos naturais. Para a elaboração do texto a seguir apresentado foram
coligidos dados e informações coletadas durante trabalhos de campo realizados entre os
dias 29 de março a 13 de abril de 2012 e de 10 a 31 de maio de 2012.

6.1 O ESTADO E A UNIDADE SOCIAL: CONFLITOS E REIVINDICAÇÃO TERRITORIAL

No dia 25 de setembro de 2002, foi fundada a Associação dos Moradores da


Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira - AMOCREQ-CPT11,
localizada no alto rio Trombetas, município de Oriximiná. De acordo com o Sr. Ivanildo12,
presidente da AMOCREQ, a associação tinha como missão principal a reivindicação de
seus direitos territoriais e o reconhecimento de suas terras tradicionalmente ocupadas como
território quilombola.

Em 05 de maio de 2004, a partir de diversas mobilizações e ações efetivas junto a


órgãos do poder público estadual e federal, a AMOCREQ protocolou junto ao ITERPA sua
reivindicação territorial. A reivindicação da AMOCREQ foi recebida pelo Instituto de Terras
do Pará-ITERPA, que abriu o Processo Administrativo nº 2004/125212. Em 08 de junho de
2004, o ITERPA solicitou à sua gerencia responsável, a plotagem das terras
tradicionalmente ocupadas com o propósito de que fosse verificada a jurisdição devida.

9
Doutorando em Antropologia Social-PPGAS;UFAM. Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia; do Projeto Novas Cartografias Antropológicas da Amazônia-PNCAA/Centro de Estudos
do Trópico Úmido-CESTU/ Universidade do Estado do Amazonas-UEA.
10
Livre tradução do autor:
- Vocês já estiveram lá no Alto (referindo-se ao Alto Trombetas)!
- Sim, eu sou mucambeiro!
11
O termo comunidade será utilizado em seu sentido empírico, como os próprios quilombolas
se referem ao conjunto de seu território.
12
Entrevista: Ivanildo Carmo de Souza, 04 de abril de 2012, Cachoeira Porteira.

99
Para as lideranças quilombolas, que integravam o quadro de dirigentes da
AMOCREQ, este reconhecimento territorial era urgente. Suas terras estavam na eminência
de serem intrusadas por madeireiras. O medo dos quilombolas se concretiza com as
tentativas da empresa Cikel (Cikel Brasil Verde) de se apropriar de suas terras. Segundo o
Sr. Ivanildo Carmo de Sousa, pessoas a serviço de empresários do setor madeireiro eram
frequentemente enviadas para lhes oferecer compensações financeiras pelo uso dos
recursos naturais de seus territórios.

Desde 2003, a empresa Cikel tenta se apropriar de extensas áreas florestais


madeireiras na região entre os municípios de Oriximiná e Faro, no Pará, e o município de
Nhamundá, no Amazonas, provocando tensão social. Há inúmeros registros de história oral
que focalizam este intrusamento das terras tradicionalmente ocupadas, que serão
apresentados mais adiante, bem como informações veiculadas pela imprensa periódica
regional.

Em 2005, o periódico manauara, A Crítica, publica uma matéria intitulada “Áreas de


quilombolas estão no meio de disputa fundiária”, na qual descreve os interesses madeireiros
da empresa Cikel e os conflitos sociais decorrentes. De acordo com a matéria, a empresa
havia solicitado ao ITERPA uma área de 2,367.000 (dois milhões trezentos e sessenta e
sete mil hectares), conforme o Processo Administrativo nº 2003/0000179030.

Segundo o mencionado jornal, os interesses da empresa na região estavam em


plena consolidação, passando por cima dos interesses dos povos e comunidades
tradicionais e de políticas governamentais que aí instituíram unidades de conservação. A
empresa já estava investindo recursos em estudos e inventários, como também em
georeferenciamento. A produção madeireira seria escoada pelos rios Nhamundá e
Trombetas.

Tal interesse madeireiro atingia diretamente terras indígenas, quais sejam:


Trombetas/Mapuera, homologada em 21 de dezembro de 2009, e Nhamundá/Mapuera,
homologada em 17 de Agosto de 1989; territórios quilombolas e unidades de conservação
como a Floresta Nacional Saracá-Taquera, criada em 1989 e a Reserva Biológica do Rio
Trombetas, criada em 1979.

Quanto aos interesses dos quilombolas, à área pretendida pela empresa madeireira
incidia sobre terras tradicionalmente ocupadas pelas seguintes comunidades quilombolas:
Mae Cué, Sagrado. Tapagem, Abuí, Paraná do Abuí, organizadas na Associação
Quilombola Mãe Domingas, e Cachoeira Porteira, organizada na AMOCREQ.

100
Para o Sr. Ivanildo Carmo de Souza, era necessário naquele momento que as
famílias quilombolas (organizadas na AMOCREQ) se mobilizassem em torno de iniciativas
junto aos órgãos públicos para garantir suas terras tradicionalmente ocupadas.

Estes fatos, de acordo com o Sr. Ivanildo, se somaram às pressões sobre essas
terras exercidas por sojicultores. De acordo com Solange Gayoso, consultando-se as
transações de compra e venda de imóveis rurais em cartório de Santarém, constata-se que
a sojicultura entre 2002 e 2003 já estaria consolidada no Baixo Amazonas, mantendo
aquecido o mercado de terras (GAYOSO, 2012, p.25).

Ainda segundo o presidente da AMOCREQ, funcionários ligados a empresários do


setor de grãos procuravam os quilombolas para lhes oferecer recursos monetários. De
maneira concomitante homens armados percorreram a área fazendo reconhecimento de
possíveis locais utilizáveis para o plantio. Tais situações fizeram com que a AMOCREQ
acionasse imediatamente seus direitos constitucionais que garantem o reconhecimento
territorial. O entendimento da liderança quilombola, neste período correspondente aos anos
2002 e 2003 era o seguinte:

Então em dois mil e três veio um grupo de sojeiros trazer proposta: […]
“vocês tem a floresta nós temos dinheiro” […]. Queriam um continente de
área pra trabalhar com madeira e plantio de soja, […] ai reunimos: olha
se nós não formos a Belém antes, vai ser muito difícil depois porque a
terra é do Estado, eles vão entrar com processo no Estado, eles tem
advogados, eles tem facilidades de conseguir a terra e nós vamos ficar
numa situação muito difícil, nós temos que ir em Belém antes que seja
tarde (Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira) (g.m.).

6.1.1 Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de


Cachoeira Porteira-AMOCREQ-CPT

As formas organizativas dos quilombolas de Cachoeira Porteira para se contrapor


ao intrusamento de suas terras tradicionalmente ocupadas convergiram para a criação
Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira
Porteira-AMOCREQ-CPT. A AMOCREQ como forma organizativa adstrita à identidade
coletiva quilombolas, encontra-se mobilizada segundo critérios identitários, com
fundamentos étnicos e critérios de ocupação territorial, referidos à moradias consolidadas e
ao uso habitual dos recursos, com fundamento histórico sobejamente reconhecidos e
evidentes.

A AMOCREQ foi criada dia 25 de setembro de 2002, com a finalidade precípua de


defender os direitos constitucionais e legais garantidos pela legislação vigente. Segundo o

101
Sr. Ivanildo, a primeira forma de organização formal, foi a criação de uma comissão para
tratar das questões mais prementes, composta por três representantes, no mesmo ano de
2002. Com a fundação da AMOCREQ, pretendeu-se buscar o reconhecimento jurídico de
questões étnicas e dos direitos territoriais.

O reconhecimento legal passa a normatizar, a estatuir critérios organizativos


relativos à liderança. Institui-se uma liderança formal. As lideranças formais, legalmente
instituídas, tratando-se de povos e comunidades tradicionais, tem como referência a
chamada “autoridade tradicional”, geralmente associada aos anciãos ou “pessoas mais
velhas”. No entanto, “benzedores”, “rezadores” e “pajés”, dentre outras, constituem também
as chamadas “autoridades tradicionais”. A faixa etária e as funções religiosas concorrem
para operacionalizar os propósitos associativos. Verifica-se um agravamento de tensões
entre as relações comunitárias e as relações associativas no cotidiano da comunidade
quilombola de Cachoeira Porteira.

A criação da associação formalizou uma designação coletiva, que passa a ser


utilizada na interlocução com os órgãos governamentais e nas demais relações com
entidades confessionais, empresas e associações voluntárias da sociedade civil. Tal
designação objetivou criar um “nome especifico voltado pra esses povos” conforme relatou o
Sr. Ivanildo13, aludindo à expressão “remanescente de quilombo”. Os moradores da
comunidade quilombola de Cachoeira Porteira expressando sua autoconsciência cultural
afirmavam sua identidade com base na Constituição Federal de 1988.

A designação “remanescente de quilombo” vai coexistir com outras designações


adotadas na vida cotidiana da comunidade tais como: “negro”, “preto”, “mocambeiro” ou
mesmo “moreno”. A noção de “moreno” tem um peso histórico considerável, uma vez que foi
a designação imposta por agentes coloniais, acreditando ter carga pejorativa menor do que
“preto” ou “mocambeiro”.

A AMOCREQ se constituiu de forma autônoma face a outras entidades de


representação dos quilombolas da região, tal como a Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombo de Oriximiná-ARQMO. De acordo com o Sr. Ivanildo, trata-se
de uma questão política que redefine os critérios da delegação. A relação com a ARQMO
pode ser definida da seguinte maneira; “sempre nós tivemos essa relação, até mesmo pelo
grau de parentesco que é muito próximo […] sempre teve uma boa relação da ARQMO com
a AMOCREQ, mas por decisões internas mesmo, da comunidade, achamos que devia criar,

13
Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 04 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira.

102
ser mais autônoma” (Entrevista realizada com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira) (g.m.).

A partir da criação da AMOCREQ, tem se estabelecido relações mais formais e de


cunho associativo que vão desde a organização da produção da castanha até a gestão do
território. Foi a partir da formalização que os quilombolas encaminharam e protocolaram a
reivindicação formal do território segundo a entrevista do Sr. Ivanildo. Os quilombolas se
organizaram de maneira efetiva “para serem donos do território”. As normas de convivência
locais e os limites “tradicionais” reconhecidos por “todos”, não estavam sendo vividos mais
como capazes de dar conta das novas realidades e das modalidades recentes de conflitos
sociais, provocadas pelas ações de intrusamento por parte dos “novos grupos” interessados
nas terras.

Assim, o reconhecimento tácito não correspondia mais a situações concretas,


precisando buscar o reconhecimento formal junto a instituições oficiais. O primeiro passo
consistiu na relação estabelecida com a Fundação Cultural Palmares, que procedeu a
emissão da Certidão de Auto-Reconhecimento, de acordo com o Livro de Cadastro Geral nº
10, Registro 972.

A partir destas práticas a AMOCREQ constitui-se, em uma “unidade de


mobilização”14 conclamando as famílias quilombolas para o “efetivo controle de domínios
representados como territórios fundamentais à sua identidade” (ALMEIDA,1994, p. 24),
inclusive à sua afirmação étnica. A formalização da AMOCREQ é produto de lutas
sucessivas, que agregam diferentes grupos familiares e étnicos. Podemos nos apropriar
para fins de explicação do conceito de luta weberiano, onde a “luta ‘pacífica’ é
‘concorrência’, quando se trata da pretensão formalmente pacífica de obter para si o poder
de disposição sobre oportunidades desejadas também por outras pessoas” (WEBER, 1994,
p. 23). A luta converge para a “seleção social”: “como tal, nada mais significa do que
determinados tipos de comportamento e, eventualmente, qualidades pessoais têm
preferência quando se trata da possibilidade de entrar em determinada relação social”
(WEBER, 1994, p. 24).

As “unidades de mobilização podem ser interpretadas como potencialmente


tendendo a se constituir em forças sociais” (ALMEIDA, 1994, p. 25), alterando assim, os
“padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com instâncias de

14
Cf. o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, instituído pela Lei nº 9.985, de 18 de
julho de 2000. Art. 7 - inciso 1º: “O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a
natureza […]”.

103
intermediação” (idem). Universalizam demandas localizadas ao incorporarem direitos
constitucionais como o Art. 68 do ADCT. A ocorrência de conflitos localizados e a demanda
pelo reconhecimento formal do território e sua relação com outros grupos sociais,
comunidades e povos indígenas, expressam o campo de atuação da AMOCREQ.

A “unidade de mobilização”, que convergiu para a criação e consolidação da


AMOCREQ, é produto, portanto, de relações sociais, atualizando os diferentes processos de
territorialização. Podemos distinguir assim as diferentes formas hierárquicas, ou formas
politicamente organizadas que atuaram no processo de reconhecimento territorial. Torna-se
mais explicito o processo de demarcação da terra indígena na região, onde a ação
governamental convergiu para o processo de reconhecimento territorial – como explicitado
pela Dra. Leila Sotto Maior: “os limites não são baseados somente na vontade dos
indígenas”15. Tem-se, portanto, uma diferença face à unidade de mobilização quilombola,
cuja reivindicação territorial resultou de uma série de lutas e de processos diferenciados de
territorialização, envolvendo quilombolas e indígenas.

Os critérios que perpassam os referidos processos de territorialização de indígenas


e quilombolas remetem a relações sociais estabelecidas em diferentes épocas e contextos.
Tais relações sociais podem ser descritas da seguinte maneira: formas simples de
cooperação e relações de força. De acordo com as narrativas orais e fontes históricas, os
Kaxuyanas cooperaram historicamente com os quilombolas no momento das fugas e fixação
dos quilombos, estabelecendo, assim, relações de trabalho nos castanhais e relações
comerciais em torno da “troca de cachorros”, de farinha e de outros bens. Por fim, famílias
kaxuyana estabeleceram relações matrimoniais com quilombolas como será explicado
adiante. Dessa forma pode-se dizer que a solidariedade política e a cooperação econômica
antecipam as relações de parentesco16.

6.1.2 Produto de relações entre indígenas e quilombolas


O processo de regularização fundiária iniciado em 2004 permanece paralisado no
ITERPA e sua tramitação tem sido procrastinada. Consultando o Processo Administrativo
2004/125212, constata-se certa ausência do poder estadual responsável pela regularização
fundiária.

15
Cf. Memoria de Reunião com lideranças indígenas e quilombolas sobre situação de
Cachoeira Porteira. Porto Trombetas-Mineração Rio do Norte/Oriximiná. 08 de novembro de 2011.
16
Frikel (1970), os Kaxuyana foram transferidos para Parque Tumucumaque em fevereiro de
1968. Todavia, os laços de parentesco permaneceram, podendo serem reatados com o retorno dos
Kaxuyanas.

104
Em 31 de julho de 2005, foi celebrado um Termo de Acordo entre lideranças
indígenas, quilombolas e a Defensoria Pública em Oriximiná. Este Termo de Acordo trata
especificamente dos limites territoriais entre indígenas e quilombolas.

As lideranças indígenas neste processo de lutas continuadas reconhecem como


território quilombola das seguintes áreas: Nascente do Igarapé do Agua Fria, no rio
Mapuera, até o Igarapé Santidade, do Igarapé Santidade até o Igarapé Araújo às margens
do rio Trombetas.

Assinaram este acordo as seguintes pessoas e instituições: Ivanildo Carmo de


Souza (Presidente da AMOCREQ-CPT), João Batista de Oliveira-Ichoto Wai Wai
(Associação dos Povos Indígenas do Mapuera), Aldo Antonio da Silva Wai Wai (Chefe da
Aldeia Mapuera), Kawuba Tunayana (Cacique Tunayana), Mauro Mukaho Caxuyana
(representando João Pekiriruha Kaxuyana), Francisco Potiguara Thomaz Filho (Fundação
Nacional do Índio-FUNAI) e Mário Luiz Guimarães Printes (Defensor Público da Comarca de
Oriximiná).

Quatro anos depois, enquanto o Processo Administrativo 2004/125212 permanecia


inerte nos arquivos do Iterpa, a Funai, em 31 de julho de 2008, publica a Portaria Nº 875.
Esta Portaria constitui um Grupo Técnico com vista à realização dos estudos antropológicos
de identificação e delimitação da Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana.

O mencionado Grupo Técnico era composto por: Ruben Caixeta de Queiroz -


Antropólogo-coordenador, Maria Denise Fajardo Grupioni - Antropóloga-assistente, João
Batista de Oliveira - Chefe de Posto - PIN Mapuera/Funai/Belém e Benito Barbosa Batista -
Técnico Indigenista - Funai/Parintins.

Em 26 de março de 2010, a Funai publicou a Portaria Nº 418, objetivando a


realização dos estudos complementares da Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana. Estes
estudos teriam características antropológicas e cartográficas.

No verbete Kaxuyana elaborado por Grupioni, para o website do Instituto


Socioambiental (ISA), podemos ler a transcrição de uma entrevista cedida pelo Sr. João do
Valle, liderança Kaxuyana da Aldeia Santidade, a respeito do retorno dos Kaxuyana para o
rio Cachorro e os limites com o território quilombola:

Nós nunca perdemos o sonho de voltar para a terra onde éramos muitos
no tempo dos nossos ancestrais. E estávamos planejando nosso retorno
desde o ano de 2000. Foi um dia triste quando fomos transferidos. Era
20 de fevereiro de 1968. Neste dia a emoção era grande de abandonar
nossa terra natal. Então por isso nunca esquecemos e nunca
abandonamos o plano de um dia retornar.

105
No começo de 1998 uma família partiu da Missão já com plano de vir até
o rio Cachorro. Esta família se instalou na boca do rio Cachorro, na
margem esquerda do Trombetas, numa área de Quilombolas. Depois
outra família veio e se instalou no rio Cachorro, numa distância de 3km a
partir da boca deste rio (João do Valle, entrevista cedida a antropóloga
Denise Fajardo Grupioni, disponível em
<http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaxuyana>>, acessado dia 05
de abril de 2012) (g.m.).

A área em questão é o Curuá, antigo quilombo quilombola habitado pela família


Vieira e ponto de apoio para as famílias negras que desciam o rio em busca das “águas
mansas”. Dona Ursulina Vieira do Carmo, conta que seus pais nasceram no Turuna,
circulavam entre o Turuna e a Enseada do Mocambo, no Campiche, depois desceram para
o Curuá, no lado esquerdo do rio Trombetas, foz do rio Cachorro, onde ela nasceu:

O Curuá era um lugar muito bonito, bom, muito bom, bacabeira na


ribanceira. Era um lugar alto. Açaí tinha muito, muito nesse Curuá,
quando eu converso isso a modo eu enxergo tudo. Na casa do meu tio
Chico Vieira era uma bacabeira assim na ribanceira. Lá mesmo a gente
encostava fazia bacaba. Nós vivíamos bem. Bem mesmo. Eu estou aqui
mas tenho vontade de ir para a minha terra, para o meu lugar (Entrevista
realizada com Ursulina Vieira do Carmo, 84 anos, 18 de maio de 2012,
em Oriximiná).

Os efeitos da ação governamental sobre o sistema de solidariedade alterou o


padrão de relação, qual seja o acordo tácito até então vigente. Assim, o processo de
titulação da Terra Indígena Kaxuyana/Tunayana tem ocasionado insegurança e
preocupação às famílias quilombolas de Cachoeira Porteira. O Sr. Ivanildo, diz não ter
conhecimento dos limites e do mapa proposto pela FUNAI para a Terra Indígena. No
entanto, segundo ele, as preocupações dos agentes sociais quilombolas surgem a partir de
uma reunião com FUNAI em Cachoeira Porteira:

Então, eu quero deixar bem claro que a FUNAI através dos estudos […],
uma pretensão muito rápida da FUNAI, foi tudo o culpado de chegar a
esse choque, devido ela se mostrar muito autoritária, não foi aquela
questão que o quilombola ele os indígenas quisessem criar um conflito,
mais a FUNAI, ela provocou essa situação, por que assim, nós
estávamos em harmonia, a gente pescava junto caçava junto […] de
repente a FUNAI chegou lá, assim, colocou tipo um muro, porque a
reunião dela foi pra separar os dois povos, nos vamos pretender isso
aqui, nós vamos fazer o estudo e vamos, uma vez que a gente comprove
território indígena, nós vamos reconhecer isso tudo pra índio e acabou,
então foi uma coisa muito seca, as colocações. Isso revoltou porque ela,
digamos, não sentou com índio pra chamar o índio e o quilombola pra ter
uma conversa, pra ver se tinha algum espaço, alguma negociação ela
não quis saber disso, ela apenas disse: “nós vamos fazer levantamento
histórico, vamos fazer tantas páginas desse levantamento de campo e
uma vez a gente vai determinar que é território indígena (Entrevista com
Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira).

106
Os quilombolas de Cachoeira Porteira consoante regras matrimoniais vigentes se
consideram “parentes” dos indígenas Kaxuyana. Mantém também relações matrimoniais
com indígenas da etnia Wai Wai. Segundo eles o contato com os Wai Wai é muito mais
recente, em contraposição ao contato com os Kaxuyana. Constata-se um mesmo tratamento
de ambas as partes, sob a designação “parente”. De acordo com o Sr. Valdemar, o contato
mais estreito ao longo dos anos com os Kaxuyana, antes deles serem transferidos,

[…] só existia uma aldeia de índio, só essa aldeia do Cachorro


(Kaxuyana) só essa aldeia aqui, que viviam aqui no Trombetas, essa
aldeia existia, eles vinham brincar aqui, fazer essa coisas assim,
inclusive teve uma mistura de moreno com eles, bom dizer, casava
moreno com índia, vários morenos convivia com índia nesse meio
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março 2012, em
Cachoeira Porteira) (g.m.).

Dona Ursulina fala da relação de parentesco e afinidade com que com seus
parentes Kaxuyanas,

[…] me adoravam muito, meu pescoço ficava enfeitado de contas,


contas, contas, contas no meu pescoço. Até que pro fim eu tive meus
irmãos índios, sobrinha índia. Tenho uma sobrinha lá na Cachoeira, que
tem umas filhas, todas me chamam de tia. O outro meu parente morreu
ai na Tapagem, era irmão da Maria, da Maria (Ayananaru), Miltão, era
Milton o nome dele (Entrevista com Ursulina Vieira do Carmo, 84 anos,
18 de maio de 2012, em Oriximiná) (g.m.).

Segundo Dona Esther Imeriki Kaxuyana [filha de Dona Ayananaru, ou Dona Maria]
(Entrevista com Esther Imeriki Kaxuya, dia 12 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira),
seus familiares moravam na cabeceira, onde sofreram bastante com uma doença
desconhecida, de acordo com sua narrativa. Ela arremata que ficaram poucos Kaxuyana.
Eles negociavam o produto do extrativismo em Óbidos. Dois Kaxuyana falavam português.
Foi então que os indígenas tiveram contato com o Sr. Sebastião Vieira, que andava com sua
mulher e seus filhos. Os “negros” falaram para os Kaxuyana que eles estavam fugindo dos
“brancos” (Dona Esther, 2012).

O tio da sua avó, Yamaiawara17, segundo a mesma entrevistada, pediu que os


“negros” ficassem na aldeia, junto com os Kaxuyana. Outros “negros” começaram a fazer
contato e o casal fundou um quilombo. Dona Esther, relata ainda que os “negros” viviam
pacificamente e trabalhavam juntos. No entanto, cada grupo tinha seu local de moradia,
caça e pesca. Werewere, avó de Dona Esther, baixou para perto de onde estavam os
“negros”.
17
Tentei escrever a grafia de acordo como foi soletrada pela sua filha, Angela Kaxuyana. A entrevista
foi realizada com a participação de sua filha, que procedeu a tradução.

107
No começo, os Kaxuyana mantiveram relações de cooperação simples em
trabalhos na floresta e comerciais, trocavam cachorros com os quilombolas, os kaxuyana
sempre foram hábeis adestradores destes animais para a caça. Referindo-se ao contato
entre índios e quilombolas, a “troca de cachorros” foi registrada por Derby,

As tríbus, com que estão em contacto, são as dos Ariquinas,


Charumans, Tumaianas e Piamicotós, com as quaes negociam em
cachorros, arcos e flexas, etc. Estes indios são muito habeis em ensinar
cachorros a caçar sem serem acompanhados; os compram aos pretos
para seu proprío uso ou para revende-los depois de ensinados. (DERBY,
1989, p. 370) [sic] (g.m.).

Werewere era casada, mas se envolveu com o negro Thiago Vieira e teve dois
filhos: o menino denominado Wotoimoyupüru (“cabeça de macaco” ou Milton) e a menina
Ayananaru (ou Maria). Quando seus parentes descobriram, a relação ficou tensa. Os
Kaxuyana foram para um lado e os negros ficaram no local. Werewere morreu por
consequência de doença e o Thiago Vieira ficou doido, os Kaxuyana acreditam que ele
tenha sido enfeitiçado.

Segundo Dona Esther, quem criou as crianças foi a avó por parte de pai. Mãe do
Cecilio Txur’wata Kaxuyana. Dona Esther explicou que os órfãos casavam com os filhos da
família que os criou. Dessa forma, Ayananaru (ou Maria), casou com o Sr. Cecilio e tiveram
Dona Esther Imeriki Kaxuyana e João Batista Tiriware Kaxuyana. O Wotoimoyupüru
(“cabeça de macaco” ou Milton), quando ficou rapaz, veio18 atrás dos parentes quilombolas
na Cachoeira Porteira, se mudando depois para a Tapagem, onde faleceu. O Sr. Milton era
um conhecido pajé no rio Trombetas.

Estas relações não passaram despercebidas aos cronistas, viajantes e membros de


expedições delimitadoras das fronteiras internacionais. O Curuá foi descrito pelo Capitão
Braz Dias de Aguiar, que chefiou a Primeira Divisão da Comissão Brasileira Demarcadora
de Limites (1930-1940), nas Fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa.
Segundo seus relatos, “ao longo do Trombetas vivem os negros remanescentes dos antigos
escravos egressos das fazendas. Dêsses muitos se encontram hoje em estado semi-
bárbaro, em razão da convivência com os íncolas” (AGUIAR, 1943, p. 116) [sic].

Aguiar procede ainda descrições sobre a dispersão dos mocambos no rio


Trombetas “os mocambos, - aglomerações desses negros, estão disseminados em todo o
curso do rio, notadamente na parte inferior” (idem). Ao chegar no Curuá, faz a seguinte
observação: “a Comissão demarcadora, em 1937, quando se dirigiu ao Trombetas, notou,

18
cf. Frikel (1970), os Kaxuyana foram transferidos para Parque Tumucumaque em fevereiro de 1968

108
na foz do rio Cachorro, afluente da direita do primeiro, um núcleo composto de 20 indivíduos
habitando quatro casas e dez taperas” (idem, p. 117).

Subindo o rio Cachorro, afluente da margem direita do rio Trombetas, ele chega a
aldeia Kaxuyana, onde descreve a relação mantida com os quilombolas,

Pouco acima da foz, do mencionado afluente foi encontrado um núcleo


de índios Cachuianas composto de 13 indivíduos, mantendo estreita
ligação com os pretos do mesmo rio que os empregam na colheita da
castanha e balata, além de se servirem se suas mulheres. Muitos desses
índios apresentam caracteres afro mesclados com o mongólico
característico dos indígenas brasileiros (AGUIAR, 1943, p. 117).

Em 1928, Gastão Cruls acompanhou, como cronista a expedição de fiscalização de


fronteiras do Brasil com a Guiana Holandesa comandada pelo General Cândido Mariano da
Silva Rondon. A expedição subiu o rio Cuninã, afluente da margem esquerda do rio
Trombetas. Segundo Cruls, sobre os Pianocotos “o General gostaria de levar consigo
alguém que os entendesse” (CRULS, 1973, p.8)19. O Sr. José Picanço Diniz, lhes informou
de Martinha, “uma preta que já conviveu com os silvícolas do rio Cachorro” (Idem).

As notícias do contato entre indígena e quilombolas, ou quilombolas com


quilombolas de diferentes comunidades foram ainda observadas pelo cronista. “Os
quilombos que por ai existiram (rio Cuminã) e, segundo consta ficavam acima da cachoeira
do Cajual e do rio Penecura, eram filiados aos nascidos, em 1840, no Trombetas, com os
quais se comunicavam por terra” (CRULS, 1973, p. 11). Segundo o autor, foi com a
cooperação dos indígenas dos povos Ariquena, Charuna, Tunayana, Tiriós e Pianocotos,
que os quilombolas “chegaram a estabelecer contato com os seus irmãos, os negros da
mata (bush-negroes) de Suriname, também escapos ao cativeiro” (idem, p. 11-12).

O contato entre indígena e quilombolas pode ser caracterizado por inter-relações


recíprocas, tais como formas simples de cooperação e relações matrimoniais e de
parentesco. No entanto, este contato não ocasionou o que o senso comum erudito designa
como assimilação, ou aculturação, constituíram identidades étnicas distintas.

Os acordos em questão foram estabelecidos em decorrência da situação de


contato. Não se trata de relação de subalternidade. Os povos e situação de contato estariam
na mesma condição de igualdade, que acabaram desenvolvendo formas de cooperação. Os
estudos desenvolvidos por Barth (2000)20, no trabalho intitulado “Grupos étnicos e suas

19
A Primeira edição foi publicada em 1930.
20
A primeira edição deste texto foi publicada em 1969.

109
fronteiras”, ressaltam justamente as características dinâmicas das fronteiras sociais, o que
faz com que os grupos étnicos reforcem suas posições identitárias.

As relações matrimoniais ocasionaram situações novas tanto para indígenas como


para quilombolas, como por exemplo, rearranjos de relações de parentesco. Indivíduos
quilombolas (filhos e afins) foram incorporados à estrutura étnica Kaxuyana e indivíduos
Kaxuyana foram incorporados pela estrutura étnica quilombola. A identidade étnica não está
relacionada a traços físicos. Mas sim, a aceitação do indivíduo pelo grupo. Mesmo assim,
temos dois povos que reivindicam identidades étnicas distintas.

6.1.3 O Estado e a natureza: políticas ambientais no rio Trombetas

As políticas ambientais aplicadas autoritariamente têm afetado diretamente os


quilombolas do Trombetas desde final da Década de 1970. Tais políticas preservacionistas
objetivaram disciplinar espaços de “natureza intocada”, criando unidades de conservação de
proteção integral21, ocasionaram uma diversidade de conflitos sociais. Isso, porque a
aludida “natureza intocada” era conhecida e também usada por diversos povos e
comunidades tradicionais. Estabelecendo assim um espaço social de disputas.

A estratégia governamental e administrativa a fim de disciplinar os espaços


convertidos em unidades de conservação foi adoção de discursos oficialmente designados
“planos de manejos” e “instruções normativas”. As normas passaram a disciplinar os
chamados “moradores”, impondo-lhes certa clausura.22

Podemos sublinhar que tais cercas ou limites são linhas imaginárias traçadas
arbitrariamente, asseguradas por meios de portarias e decretos dos poderes executivos. No
entanto, é preciso disciplinar os corpos para que as cercas e limites sejam “preservados”. As
normas que disciplinam o espaço social passaram a disciplinar as famílias dentro do espaço
físico, como, por exemplo, a disposição das casas, da escola, do posto de saúde e a própria
relação entre as pessoas.

Neste contexto, o Decreto Federal 84.018, de 21 de setembro de 1979, cria a


Reserva Biológica do Rio Trombetas (doravante REBIO Rio Trombetas), com uma área
estimada de 385 mil há. Esta área intrusou terras tradicionalmente ocupadas por

21
Cf. o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, instituído pela Lei nº 9.985,
de 18 de julho de 2000. Art. 7 - inciso 1º: “O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é
preservar a natureza […]”.
22
Cf. Foucault (1987) aponta que a disciplina possui diversas técnicas: 1) a cerca; 2) a
clausura (esta não é constante); 3) a regra das localizações funcionais; 4) os elementos são
intercambiáveis.

110
quilombolas da margem esquerda do rio Trombetas. Muitas famílias foram deslocadas
compulsoriamente, com requintes de violência, marcas do regime militar, como relata o Sr.
Francisco Adão dos Santos Neto, 75 anos,

Eles (o IBDF23) tiraram o pessoal lá de Tapagem, do Jacaré tinha um


pessoal, que tinha milho, tinha roça, tinha melancia, ai botaram o pessoal
de lá, não deixaram mais o pessoal entrar, chegou vez que a gente ia
trabalhar lá eles estavam com a melancia, milho, banana do pessoal que
eles cortavam lá dentro, pra vir comer lá no acampamento, é eu vi isso
(Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 05 de abril de
2012, na Alzibeira ).

Os relatos de violação de direitos são inúmeros e podem ser coletados do baixo ao


alto Trombetas. A criação desta unidade de conservação de proteção integral sobrepondo-
se ao território quilombola tem dificultado o processo de reconhecimento territorial. É
presente na memória dos mais velhos o processo de implantação da referida unidade

Eu falei hoje, em setenta e seis foi quando foi anunciada a reserva


biológica […], foi assinado o projeto em setenta e nove, mais no começo
até comida da panela o pessoal jogava, você já pensou a policia chegar
armada na casa do cidadão, o que o cara podia fazer […] vários idosos
sabem.
Teve uma garota que morreu embaixo da lancha que os pais culpam que
foi eles, a criança tomando banho e a lancha passou por cima das
crianças. Logo no inicio, jogaram gente de lá, logo atrás desse posto tem
o lago Jacaré, jogaram gente de lá na marra, como eu tô dizendo […] os
quilombolas não tinham uma pessoa que conhecia mais um pouco, eles
se prevaleciam da lei e faziam o que queriam (Entrevista com Raimundo
Adão dos Santos, 65 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira
Porteira).

Para a fiscalização da unidade de conservação foram construídas duas bases de


apoio. A primeira foi instalada na “boca” do lago Erepecu, a segunda foi instalada em um
lugar chamado “Tabuleiro”. Neste lugar morava o Sr. Erpidio Cordeiro dos Santos, pai do Sr.
Valdemar. Ao lembrar do processo de implantação da REBIO, ele conta o seguinte, “eu já vi
IBAMA chegar ai e mandar todo mundo pra rua, foram pegar chuva na rua com os filhos,
que esse lugar aqui é preciso, vão colocando as coisas de vocês na canoa, inclusive

23
O Instituto de Desenvolvimento Florestal Brasileiro-IBDF (vinculado ao Ministério da
Agricultura) foi criado pelo decreto lei nº 289, de 28 de fevereiro de 1967 e extinto pela Lei Nº 7.732,
de 14 de fevereiro de 1989. O IBDF foi substituído pela Secretaria Especial do Meio Ambiente-SEMA,
que existiu de 1973 a 1989. Em 1989 foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis-IBAMA, como prevê a Lei Nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989.

111
mataram uma sobrinha minha” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 12 de maio
de 2012, em Cachoeira Porteira).

Em 1989, o Decreto nº 98.704, de 27 de dezembro de 1989, cria a Floresta


Nacional de Saracá-Taquera. A criação desta unidade de conservação coincide com a
mobilização étnica dos quilombolas do Trombetas pelo reconhecimento de suas terras
tradicionalmente ocupadas. Ironicamente, foi esta unidade de conservação que garantiu a
continuidade da exploração mineradora em territórios quilombolas, pois a exploração
mineradora passou a ser assegurada por autorizações formais do IBAMA.

Da mesma forma que a REBIO Rio Trombetas, a FLONA Saracá-Taquera intrusou


territórios referidos a doze comunidades quilombolas, dificultando o processo de
regularização fundiária. Por outro lado, a FLONA garantiu a continuidade da exploração
mineradora. Podemos citar brevemente o Platô Almeida, Platô Aviso e Platô Monte Branco,
dentro da área da FLONA.

Como analisaram Acevedo Marin e Coelho, “o contexto econômico, político é mais


complexo e impede atribuir o peso dessa decisão do governo militar apenas ao critério
ecológico de preservação dos quelônios” (ACEVEDO MARIN & COELHO, 2007, p. 4).
Conjunturalmente, ambas as unidades de conservação têm atendido aos interesses da
Mineração Rio do Norte-MRN, como podemos observar na Autorização Nº 12/2000, emitida
pelo IBAMA, que autoriza a MRN a drenar sedimentos no interior da REBIO Rio Trombetas.

Esse período foi marcado por violências e abusos de autoridades, permaneceram


resquícios da ditadura militar. O que não faltam são relatos de violações que compõem o
repertório das críticas e acusações ao IBAMA. Os limites físicos da REBIO do Rio
Trombetas passaram a ser vigiados por policiais armados.

Além da castanha, a qual os quilombolas coletam tradicionalmente, também


utilizavam outros recursos naturais, como o peixe, a caça, o breu, o ubim e a copaíba, os
quais ficaram proibidos, com a implantação da REBIO Rio Trombetas. A categoria de
Proteção Integral tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos
naturais existentes em seus domínios.

Neste sentido, percebemos dois momentos na atuação dos agências


“preservacionistas” no rio Trombetas. O primeiro é ainda no início da instalação da REBIO,
época ainda do regime militar, marcada pela truculência e embrutecimento; o outro é a
tentativa de adaptação das instituições ao modelo democrático, ainda muito recente.

112
“Saíram os “patrões”, entrou o IBDF”, como se diz, coagindo e intimidando os moradores, na
tentativa de persuadi-los a deixar a área.

A implantação das respectivas unidades de conservação federais afetou grande


parte das comunidades quilombolas do rio Trombetas. Atualmente, já não acontecem mais
agressões físicas e a violência agora é “simbólica”.

Dez anos após a criação da REBIO, o governo federal cria outra unidade de
conservação, no rio Trombetas, e, como esta iria estar dentro da área de interesse para a
exploração de Bauxita pela MRN, não podia ser uma unidade de conservação de Proteção
Integral, criou-se assim a Floresta Nacional de Saracá-Taquera. Com a criação dessas
unidades de conservação, criou-se um grande problema para os quilombolas que ocupavam
essas áreas, muito antes das suas criações.

Presenciam-se movimentos nos quais se (re)encontram atores diferentes,


articulados nessa expansão das frentes de ocupação empresarial no Trombetas. O primeiro:
sobre as terras avança a MRN, inclusive conseguindo que fosse decretada, nos últimos
momentos do Governo Sarney (1989), a Floresta Nacional de Saracá-Taquera que reúne,
juntamente com as terras pretendidas pela ALCOA, uma extensa área acompanhando o rio
Nhamundá… Estado e empresas estão associados na polêmica e conflituosa permanência
de estatuto da Reserva Biológica do Trombetas. Utilizam o discurso preservacionista, onde
a defesa de tartaruga e de madeira de lei foram as válvulas de sensibilização para justificar
tal medida governamental. (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 1998, p. 208-209)

Observa-se, portanto, nas últimas décadas, a imposição do capital de empresas


nacionais e internacionais, através do interesse da MRN em explorar a área, e a expansão
das fronteiras preservacionistas, com a criação de duas grandes unidades de conservação,
uma REBIO e uma FLONA, a primeira de Proteção Integral e a outra, de forma que não
atingisse os interesses da MRN, possibilitando a exploração da bauxita dentro de sua área.

Os agentes fiscalizadores do IBAMA exercem o papel de polícia na repressão aos


quilombolas, pelo menos, os que estão no entorno como a comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira; já as comunidades que se encontram dentro da reserva, elas até
pescam e caçam para comer, praticam alguma atividades extrativista, mas são impedidas
de negociarem qualquer produto de dentro da área, vivendo literalmente de “pão e água”, ou
seja, não dispõem de nenhum ou pouco recurso para comprar produtos de outras
necessidades que não sejam as alimentares.

113
Desde a criação da REBIO do Trombetas, vários foram os conflitos. Em momentos
críticos de conflito percebemos com mais intensidade a busca da unidade do grupo em torno
da identidade étnica. Assim, “os negros do Trombetas, forjam a memória social e formulam
o jogo de associações entre hoje e ontem, encontram a força de liberdade e de sua etnia”
(ACEVEDO & CASTRO: 1998, pp. 28). Acionando, assim, os seus elementos constitutivos
como a reivindicação do quilombo como “mito de origem”, a posse histórica da terra e seu
modo de produção próprio.

Para os quilombolas a busca da sobrevivência passou a ser ilegal, com punição


prevista em lei e ainda perdas financeiras e patrimoniais, como a apreensão de motores
rabeta, malhadeiras, canoas, etc.

Atualmente, a partir das mobilizações das associações e organizações de defesa


dos direitos quilombolas, medidas tem sido tomadas para a garantia do escoamento da
produção relativa à coleta da castanha.

6.1.3.1 Políticas ambientais no âmbito estadual

Em 2006 foi criada a Floresta Estadual do Trombetas, através do Decreto estadual


no 2.607, de 04 de dezembro, abrangendo os municípios de Oriximiná e Óbidos e a Floresta
Estadual de Faro, nos Municípios de Faro e Oriximiná, através do Decreto Estadual no
2.605, também de 04 de dezembro.

No Decreto 2.607, que criou a FLOTA Trombetas, no Art. 4 é reconhecida a


existência de comunidades quilombolas no seu interior, carecendo de regularização
fundiária. No entanto, tal reconhecimento limita-se à concessão real de uso,

Segundo o Sr. Ivanildo,

foi chocante que foi criada a FLOTA e não teve um primeiro pensamento
da SEMA, que é o órgão representante, dizer não vamos tirar aqui
delimitar uma área de uso, de perambulação deles fora na FLOTA, não
teve isso, teve reuniões mais nós fomos de alguma forma inseridos
dentro da FLOTA e depois agora nós vamos dar pra vocês uma área que
se chama concessão do direito real de uso […] nós temos direito legal na
constituição de um território como propriedade definitiva e é isso que nós
queremos (Entrevista com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira ) (g.m.).

Com a criação das unidades de conservação estaduais, surgiram novos


interlocutores, como a Secretaria de Estado de Meio Ambiente-SEMA. Os quilombolas
passaram a compor o Conselho Consultivo das referidas unidades de conservação.

114
Passaram a ser afetados pelo dirigismo dos gestores ambientais, que tentaram regular as
atividades extrativistas e agrícolas.

Parado no ITERPA, o Processo Administrativo para a regularização fundiária do


território referido aos quilombolas de Cachoeira Porteira, sofreria uma mudança de
estratégia por parte da AMOCREQ. Diante dessa nova realidade, em documento enviado ao
Dr. Carlos Alberto Lamarão Correa, presidente do ITERPA, datado do dia 26 de agosto de
2011, a AMOCREQ solicita a desafetação do território quilombola das FLOTAS Trombetas e
Faro.

6.1.4 A judicialização da relação entre indígenas e quilombolas

Boaventura de Sousa Santos (2008) tem chamado a atenção para o contexto


“latino-americano”, referente à “tribunalização” desses conflitos sociais. Ele designa estes
episódios como “judicialização da política”. Santos refere-se a um “período alto de
judicialização política”. Segundo o autor, os tribunais são acionados na medida em que o
“sistema político em sentido estrito (congresso e governo) não quer ou não pode resolver”
(SANTOS, 2008 p. A3).

Dessa forma, diante da inércia do órgão público responsável pela titulação de


territórios quilombolas no Pará, Iterpa, e o processo acelerado de reconhecimento da Terra
Indígena Kaxuyana/Tunayana, o Ministério Público Federal, em Santarém, é acionado
mediante informações sobre possível conflito social envolvendo indígenas e quilombolas.

Durante reunião realizada no dia 13 de junho de 2011, com representantes da


SEMA/PA, da FUNAI/Belém e do IMAZON, o Ministério Público Federal obtém relatos de
possível conflito entre quilombolas e indígenas, no interior da Flota Trombetas, nas
proximidades de Cachoeira Porteira.

O Procurador da República, o Sr. Marcel Brugnera Mesquita procede a instauração


do Inquérito Civil Publico-ICP nº 1.23.002.000144/2011-57. O referido instrumento jurídico
foi instaurado pela Portaria nº 191, de maio de 2011, que objetiva “acompanhar o processo
de regularização fundiária das comunidades indígenas e quilombolas no interior da Flota do
Trombetas”. A partir deste instrumento jurídico foram chamados os órgãos responsáveis
pelo processo de regularização.

Como assinala o OF.PRM/STM/GAB3/0106/2012, encaminhado ao Governo do


Estado do Pará, a convivência pacifica entre indígenas e quilombolas teria sido abalada

115
pelos estudos realizados pela Funai para o reconhecimento da Terra Indígena Kaxuyana e
Tunayana e pela ausência de estudos semelhantes por parte do ITERPA.

De acordo com a Memória da Reunião do dia 7 de julho de 2011, da qual


participaram: MPF, FUNAI, SEMA/PA, IMAZON, ITERPA, Fundação Cultural Palmares-FCP,
IDEFLOR e PGE/PA, ficou o seguinte como um dos encaminhamentos: “I. ITERPA, SEMA e
IDEFLOR, celebrarão convênio com instituição competente para realizar estudos
antropológicos para identificação do território quilombola de Cachoeira Porteira. O prazo
para a celebração será posteriormente informado”.

Desta forma é celebrado o Termo de Cooperação Técnica e Financeira nº


001/2012-IDESP/ITERPA/SEMA, para a realização do “Estudo Técnico Científico para
Identificação do Território da Comunidade Remanescente de Quilombo Cachoeira Porteira”.
Tal estudo abrange áreas especificas de domínios do conhecimento como: antropologia,
sociologia, agronomia, economia e geografia.

Foram realizadas inúmeras reuniões e audiências, na reunião do dia 08 de


novembro de 2011, os representantes dos Wai Wai e Kaxuyana se manifestaram. O
Cacique Elizeu fala que estava para discutir a questão do conflito e que da reivindicação da
Terra Indígena. No entanto, gostaria de chamar a atenção para o depoimento do Cacique
Mauro Kaxuyana, segundo consta no documento ele falou,

que gostaria de relatar o histórico da relação dos Kaxuyana com os


quilombolas, segundo os mais velhos antes dos kaxuyana serem
transferidos, os dois grupos (indígenas e quilombolas) viviam em
harmonia, mas sabemos da relação inclusive de casamento entre esses
dois grupos. Sabemos que muitos não índios assediavam esses grupos
por causa dos territórios, e os kaxuyana foram transferidos contra
vontade, mas logo retornamos para nossa terra, e quero enfatizar que
nunca deixamos de considerar a existência e história dos quilombolas,
nunca falamos da retirada de vocês, sabe-se que há três anos atrás
houve início de conflito, foi o que dificultou a relação e deixou com que
não firmássemos a força. Vamos decidir, conversar e reconhecer os
nossos erros para nos unir, estamos disposto a retornar o nosso bom
convívio. Vamos lutar pela nossa terra. Solicitamos às instituições
presentes que auxiliem e ajudem os quilombolas na luta, assim como a
Funai nos auxiliam no processo de demarcação da nossa terra (Cf.
Mauro Kaxuyana, memória da reunião realizada no dia 08 de novembro
de 2011, Porto Trombetas – Mineração Rio do Norte) (g.m.).

A partir do retorno dos Kaxuyana para o rio Cachorro, estabeleceu-se novamente


uma série de relações envolvendo formas simples de cooperação e parentesco. A partir de
observações diretas em Cachoeira Porteira realizadas durante os dias 31 de março a 13 de
abril de 2012, pude observar que alguns quilombolas forma destacados para pilotarem
canoas de indígenas kaxuyana até a Aldeia Santidade. Segundo o Sr. Ivanildo a cooperação

116
acontece também de várias formas, ele passa a explicar essas formas simples de
cooperação por fatores primordiais, como o parentesco,

eu vejo que essa relação foi construída começando eu creio por laços de
sangue, um parentesco, por que assim que a família Vieira e os
indígenas kaxuyana tiveram essa aproximação ai aquilo foi afunilando a
ponto de uma indígena casar com quilombola, e ai foi tendo aquele
aumento desses dois povos, com quilombolas e um indígena kaxuyana
[…] alguns indígenas fizeram mudanças levando os quilombolas teve
quilombolas que ficaram aqui casados com indígenas, então isso ai
digamos assim ao longo o tempo ficou marcado como se fosse um
marco histórico pra hoje voltar a ser, quarenta anos depois […] então
aquilo ficou no laço de sangue e a consideração aumentou pelo nossos
antepassados tarem falando essa língua pra gente (Entrevista com
Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de
2012, em Cachoeira Porteira ).

Ser “parente” não implica em vínculos de consanguinidade, ou como eles se


designam mutuamente corresponde a “cunhado”. Para indígenas e quilombolas implica no
estabelecimento de formas simples de cooperação. Esta, contudo, pode ser considerada
uma regra de parentesco ou afinidade firmada ao longo dos anos pelos próprios arranjos
matrimoniais, uma norma fluída e distinta dos rígidos esquemas estruturalistas. Seria o
ponto de interseção de dois grupos étnicos distintos. Não significa converter Kaxuyana em
quilombolas ou quilombolas em Kaxuyana.

O retorno dos Kaxuyana, para o rio Cachorro, representou para os quilombolas a


retribuição dos ensinamentos obtidos no passado, durante as fugas das fazendas de gado e
plantações de cacau de Óbidos e Santarém nos Séculos XVIII e XIX. Tais formas de
cooperação existiam antes dos Kaxuyana serem “transferidos”, como afirmou o Cacique
Mauro, “os mais velhos contam”. Dessa forma, com o retorno, pode ter havido o reatamento
dessas relações, como

o uso múltiplo dos castanhais, eu acredito que foi por uma situação
mesmo de a gente já ter aquela experiência de trabalho ao longo dos
anos, […], os indígenas chegando dentro do rio cachorro de novo, e eles
pediram pra conhecer o espaço, por que até então eles estavam
perdidos nos castanhais, como conhecer os caminhos, dentro dessas
cachoeiras, então chegou aqui o próprio Mauro, o João do Vale e
pediram pra mim que disponibilizasse uns dois, três quilombolas pra dar
um apoio, pra tarem levando, foram tentar sair de motor, então quebrou
hélice do motor deles, por que não tinha o conhecimento do caminho e a
gente não queria ser desumano, a gente tentou atender o pedido deles,
e ai eu pedi pro Laú, eu pessoalmente levei algumas vezes, lá no
Santidade, por ter conhecimento do caminho (Entrevista com Ivanildo
Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de 2012,
em Cachoeira Porteira ).

117
Segundo o Sr. Ivanildo, o começo para os Kaxuyana foi muito difícil, “eles estavam
voltando sem nada, tinham pouca estrutura”. Na medida em que os Kaxuyana iam se
restabelecendo na Aldeia Santidade, os quilombolas de Cachoeira Porteira iam lhes
auxiliando e prestando solidariedade, além de bens materiais, como motor de popa, veículos
e hospedagens nas casas na comunidade, além de gêneros alimentícios. Para o Sr. Ivanildo
o apoio mais significativo foi lhes ensinar o potencial dos castanhais, pois assim, eles
poderiam obter recursos financeiros

a extração da castanha, era ensinando os castanhais pra eles, então a


gente pediu pra alguns quilombolas levar a alguns pontos mais próximos
pra obter conhecimento desses castanhais, o castanhal do Capoeira
como ia ficar próximo do Santidade, o castanhal do Felisberto, e também
ia ficar próximo o castanhal do Curupira, dentro do rio cachorro também
ia ficar próximo e o castanhal do Ambrosio, que chegou a coletar
oitocentas caixas de castanha, então os meninos falaram que iam
mostrar esses castanhais. O Laú foi lá e mostrou pra eles […] fazendo
esse extrativismo junto um com o outro é por uma questão de amizade
(Entrevista com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da AMOCREQ-
CPT, 09 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira ).

6.2 QUILOMBOLAS DO ALTO TROMBETAS: CACHOEIRA PORTEIRA


Pretendo destacar neste ponto a noção de “presencialidade do passado”, elaborada
pelo antropólogo Castro Faria analisada por Almeida (2008). Na situação ora examinada,
posso afirmar a possibilidade de localizarmos os chamados “espaços sagrados” da tradição
erudita, com relação à formação dos quilombos no Brasil. Essa tradição erudita passou a ser
apropriada pelos agentes sociais, que reivindicam uma identidade apoiados na afirmação de
que são descendentes dos antigos mocambos. Os mocambos, nesta interpretação, se
constituem como “espaços sagrados”

Esses “espaços sagrados” se materializam em reivindicações do presente. Assim,


temos os espaços sociais indicados como mocambos, as “praias de verão”, os “pontos de
castanheiros” e as moradas após o “pega-pega”, como se referem os Srs. Vicente Vieira dos
Santos e Valdemar dos Santos a perseguição dos “brancos” contra os negros. Neste ponto,
a tradição oral se mescla entre dois momentos históricos do Pará: a escravização da força
de trabalho negra e a cabanagem.

Vejamos então, a própria noção de mocambo e quilombo como exemplos de


“presencialidade do passado”. Ao analisar a realidade empiricamente observável em
questão: os quilombolas de Cachoeira Porteira; passo a recorrer também a “eventos
rigorosamente datados”, ou seja, à formação dos mocambos do Trombetas e às expedições

118
de captura e destruição. Esses elementos transbordam na memória social. O passado faz
parte de uma reivindicação do presente.

6.2.1 Quilombolas de Cachoeira Porteira

Para efeito deste relatório utilizarei a autodefinição como elemento do presente dos
agentes sociais. A autodefinição tem sido o critério antropológico e jurídico utilizado para a
relação com povos e comunidades tradicionais. Fredrik Barth escreve que, o principal ponto
de partida teórico no estudo de grupos étnicos seria “o fato que grupos étnicos são
categorias atributivas e identificadora empregada pelos próprios atores” (BARTH, 2000, p.
27).

Ao estabelecer uma definição antropológica de grupo étnico, me apoiarei nos


trabalhos de Fredrik Barth (2000) e Abner Cohen (1978). Este último chama ainda, atenção
para o fenômeno da etnicidade. Assim, penso poder definir teoricamente as bases para uma
identidade quilombola, como um grupo étnico, distinto e organizado. Penso ser possível
ainda, descrever empiricamente os elementos da referida “política de identidade”.

Segundo as análises realizadas por Barth sobre o conceito de grupos étnicos, o


autor os define como formas organizativas. Deve-se “enfocar aquilo que é socialmente
efetivo, os grupos étnicos passam a ser vistos como uma forma de organização social”
(BARTH, 2000, p. 31). Essa perspectiva é importante na medida em que ele rompe com o
determinismo cultural, biológico e geográfico, e propõe uma análise mais atenta ao estudo
das fronteiras sociais.

Barth (1961) analisa, por exemplo, a identidade Basseri no sul da Pérsia (conhecido
também como Irã). De acordo com o autor, a identidade Basseri está posta diante de uma
vasta rede de inter-relações de vários status. Essas relações com agentes externos aos
Basseri pode ser empresarial ou individual. A identidade se define em razão do outro, é na
interação que ela é socialmente construída.

Segundo Cohen (1978), a etnicidade é “um fenômeno fundamentalmente político,


pois os símbolos da cultura tradicional são usados como mecanismo de articulação de
alinhamentos políticos” (COHEN, 1978, p. 123). Ainda para o autor “o etnicismo implica uma
reorganização dinâmica das relações e dos costumes, não podendo ser visto como produto
do conservadorismo e da continuidade”, podendo ser colocado ainda da seguinte forma, o
“etnicismo proporciona um conjunto de estratégias simbólicas para solucionar praticamente
todos os problemas básicos da articulação organizacional” (COHEN, 1978, p. 122-123).

119
As “politicas de identidade” são próprias de mobilizações étnicas. Hobsbawm as
define como grupos sociais que buscam uma etnicidade comum. Tais “politicas de
identidade” não são sinônimo de “autodeterminação nacional” escreve o autor. Segundo o
autor, esses movimentos étnicos alegam que “a identidade de grupo da pessoa consistia
numa característica existencial, supostamente primordial, imutável e portanto permanente,
partilhada com outros membros do grupo” (HOBSBAWM, 1995, p. 417). A leitura de
Hobsbawm é, sobretudo, uma leitura crítica desses movimentos. Os agentes sociais
individualmente explicitarão elementos primordiais, o antropólogo é que tem que ler de
forma não primordial.

A identidade étnica, ou a afirmação de uma identidade é, portanto, a objetivação de


características consideradas primordiais pelos agentes sociais. Cabe ao analista,
antropólogo ou sociólogo identificar os elementos considerados primordiais e proceder a
uma análise critica. Não é submetê-los a uma prova de fidedignidade, ou veracidade, mas
sim, isolá-los e analisá-los. A fim de compreender o processo de construção de uma
identidade étnica.

Os quilombolas de Cachoeira Porteira têm se mobilizado etnicamente, a partir de


elementos e fatos históricos compartilhados, como a “origem” comum nos quilombos do alto
Trombetas. Assim, nos são apresentadas artefatos cerâmicos encontrados nos espaços
sociais históricos designados pelos agentes sociais como mocambo, nas praias utilizadas no
verão para o consumo de peixes e ovos de quelônios, nos pontos históricos de castanha e
os locais de morada após a abolição.

Quanto aos espaços sociais designados como mocambos, eles se referem ainda
aos fornos de barro. Essas “ruínas” compõem uma série de elementos para o pertencimento
étnico. A partir das narrativas dos quilombolas durante os trabalhos de campo, o mocambo
ganha força enquanto mito de origem do grupo. Os mitos no sentido antropológico não são
meras historietas. São elaborações de situações míticas ou de acontecimentos às vezes
nem tão recuadas no passado do narrador.

Esses elementos não são auto-evidentes e auto-explicativos. Eles compõem falas


complexas e elaboradas sobre a origem do grupo étnico. A noção de origem precisa
também de uma leitura crítica, o que nos aproxima novamente da noção de “presencialidade
do passado”. O mocambo seria esse marco espaço-tempo.

O mito de origem compõe uma fala localizada que marca uma posição social dentro
da sociedade estudada. De acordo com Edmund Leach (1996), pode haver um ou mais
mitos de origem ou várias versões do mesmo mito. Segundo o autor, o mito de um povo não

120
é um todo coerente, depende da posição social que o narrador ocupa na sociedade. É
dessa forma que compreendo a dinâmica social de reivindicação de uma identidade étnica
enquanto quilombolas, narrada por aqueles que detêm a memória social das comunidades.

A noção de etnicidade se afasta da noção de raça. Segundo Eriksen a noção de


raça tem valor descritivo duvidoso e a distribuição dos traços físicos hereditários não segue
limites claros. Não são os traços fisicos que definem uma identidade.

Na literatura antropologica podemos mencionar os relatos sobre os “índios negros”


de Darcy Ribeiro (1996) e Protásio Frikel (1970). Darcy Ribeiro narra o caso dos “Urubus
Negros”, onde indigenas Urubus entraram em contato com os mocambeiros do alto
Maracaçumé (quilombo do Limoeiro), raptando as mulheres e matando os homens. Protásio
Frikel observa ao contrario sobre os “kaxuyana negros” do rio Cachorro, resultado de
relações quilombolas e mulheres indígenas kaxuyana.

Para Eriksen, “quando falamos de etnicidade, indicamos que os grupos e as


identidades se desenvolveram em contato mútuo e não em isolamento” (ERIKSEN, 1993, p.
10). Para o autor, o grupo etnico surge da interação:

Falar de um grupo étnico em isolamento total é tão absurdo quanto falar


do som de uma mão batendo palmas (Bateson, 1979:1978). Por
definição, grupos étnicos permanecem mais ou menos discretos, mas
eles estão conscientes - e em contacto com - os membros de outros
grupos étnicos. Além disso, estes grupos ou categorias são, num sentido
criado por esse contato diversos. Identidades coletivas devem ser
sempre definidas em relação aos não-membros do grupo (ERIKSEN,
1993, p. 9).

O quilombo nunca foi um lugar isolado, essa identidade tem sido forjada em relação
à sociedade envolvente e essas relações variam no tempo e no espaço. Podemos registar
relações de matrimônio e conflitos, como foi o caso da relação com os indígenas. Ou ainda,
relações militares e de trabalho, como força de trabalho e relações comerciais, como
registrou o Cónego Francisco Bernardino de Souza, “o tabaco é cultivado ainda em escala
menor que o café. A maior quantidade e a melhor qualidade que ali aparece no mercado, é
proveniente dos mocambos do rio Trombetas” (SOUZA, 1873, p.244) [sic].

A identidade étnica, enquanto remanescentes de quilombo na região do rio


Trombetas foi sendo forjada a partir do estabelecimento de fronteiras sociais. Tais fronteiras
podem ser brevemente descritas da seguinte forma: até 1888: contato com indígenas e os
chamados “brancos”. Depois de 1888: contato com indígenas, com os chamados “patrões”,
regatões e agentes externos ligados projetos de infraestrutura e mineração. Depois de 1988:
contato com indígenas e agentes externos ligados projetos de infraestrutura e mineração.

121
A identidade enquanto remanescentes de quilombo é uma construção social
elaborada a partir dos vários contatos entre os negros e a sociedade envolvente: Agentes
coloniais, indígenas, regatões, patrões, empresas de mineração e agências governamentais.
A designação formal do agente colonial era mocambo. Esta designação tentava qualificar os
agentes sociais residentes nos mocambos enquanto “criminosos”. O contrário era a
designação quilombo.

Segundo Acevedo Marin e Castro, o termo mocambo, era utilizado no século XIX
por governadores e pelo policiamento, onde esta “denominação ficou impregnada de
qualificações negativas, lugar onde reuniam-se criminosos, desertores e preguiçosos, pela
sociedade escravista” (ACEVEDO MARIN E CASTRO, 1998, p. 28). O termo quilombo
enquanto “categoria histórica detém um significado de resistência e de auto-definição do
grupo diante da ordem escravista” (Idem).

Se formos pensar no processo identitário, podemos dizer que a identidade


percorreu um contínuo: de mocambeiros a quilombolas. Durante o processo de fuga e
estabelecimento de moradias no alto do rio Trombetas, a designação dos administradores
coloniais era mocambo/mocambeiro. Era o Estado dinástico colonial que procedia à
classificação.

No século XIX estabelecem-se na região do Trombetas empresários arrendatários


de castanhais, regatões e donos de casas aviadoras: Casa Porteira e casa Jacaré. A Casa
Porteira se estabeleceu próxima ao núcleo habitacional da família Vieira, na Porteira. O
referido estabelecimento comercial passa a utilizar também o mesmo topônimo. De
propriedade da família Guerreiro.

O “aviamento” tem sido uma prática social de exploração e imobilização da força de


trabalho. Indígenas, quilombolas e ribeirinhos ficavam presos aos chamados “patrões” pela
dívida, da qual não se livravam facilmente. No rio Trombetas, com o passar do século XX as
casas aviadoras foram coexistindo com regatões, até que estes últimos passaram a
substituí-las.

Com o estabelecimento na região da Andrade Gutierrez e da ENGE-RIO


(prestadora de serviço da Eletronorte para a realização de estudos para a construção de
uma usina hidrelétrica no rio Trombetas), os “pretos” foram convertidos em “peões”, força de
trabalho desqualificada. Com a promessa de salários mensais, a produção de castanha e de
produtos agrícolas, sofreu relativa baixa.

122
Em 1976 foi anunciada a criação da Reserva Biológica do Rio Trombetas – REBIO
Rio Trombetas. Em 1979 teve a sua efetiva implantação, ocasionando o deslocamento
compulsório de diversas comunidades quilombolas em toda a extensão da REBIO. Nesta
ocasião ignorou-se a particularidade das comunidades deslocadas e afetadas. Tal ação
governamental foi executada com requintes de violência, como lembra o Sr. Raimundo
Adão, 65 anos24.

A década de 1970 marcou o final dos regatões no rio Trombetas. Mas


especificamente o ano de 1979. Pelo menos para aqueles agentes geralmente das cidades
de Oriximiná e Óbidos que regateavam.

No mesmo ano que se instala a REBIO Rio Trombetas, se instala na região o


projeto minerador “Mineração Rio do Norte-MRN”. A empresa constrói sua company town
em um lugar conhecido como Conceição. Segundo o Sr. Raimundo Adão, “construíram a
vila em cima de uma roça”, pertencente a um quilombola, o Sr. Lenilde, filho da Sra.
Eufrasia.

O contato estabelecido entre os quilombolas e as empresas que se instalaram ao


longo do rio Trombetas era de subalternidade. Eles eram pejorativamente designados de
“caboclos” ou “pretos” por agentes referidos às empresas extrativistas e regatões.

Em 1988, com a Constituição Federal, ocorre no Brasil uma ruptura nos padrões
usuais de classificação. Os classificadores oficiais, ou aqueles com poder econômico para
classificar perderam suas forças. Embora não assumido, o termo preto passou a ser
positivado, assim como o termo negro e concomitantemente o termo quilombola.

Em toda a região amazônica verifica-se que uma diversidade de agentes sociais


têm se mobilizado identitariamente em torno de reivindicações referidas a fatos do presente,
envolvendo direitos territoriais, ambientais e autoconsciência cultural. Podemos, assim, nos
referir a indígenas e quilombolas.

Tais identidades combinam situações históricas mais permanentes, com situações


sociais contingentes, do mesmo modo que articulam mobilizações de livre acesso aos
recursos naturais e de garantia de direitos territoriais que asseguram sua reprodução física e
social.

Para ilustrar tal mobilização, em abril de 1989, é fundada a Coordenação das


Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB. E em junho/julho do mesmo ano,

24
Trabalho de campo realizado durante os dias 10 a 31 de maio de 2012. Entrevista cedida
no dia 12 de abril de 2012, Cachoeira Porteira. Entrevista cedida dia 31 de março de 2012.

123
na comunidade de Jauari, durante a realização do 2º Encontro de Raízes Negras é fundada
a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná-
ARQMO.

De acordo com Idaliana Marinho de Azevedo (2002), o Centro de Estudos e Defesa


do Negro no Pará (CEDENPA), as comunidades quilombolas envolvidas e outras entidades,
assumiram a organização dos Encontros de Raízes Negras. Através da realização dos
Encontros de Raízes Negras, se articularam diversas entidades além da ARQMO, como:
Associação Comunitária do Quilombo do Pacova-ACOMQUIPAL e Associação dos
Remanescentes de Quilombo do Município de Óbidos-ARQMOB.

O primeiro encontro foi em 1988, na comunidade quilombola do Pacoval, Alenquer.


Esse encontro objetivou reunir os quilombolas dos municípios de Oriximiná, Óbidos e
Alenquer. Possibilitou também a reunião de quilombolas pertencentes a famílias separadas
pela escravidão.

O terceiro foi no quilombo Silêncio do Mata, município de Óbidos. O quarto


encontro foi no quilombo de Tapagem, rio Trombetas, em 1991. Esse encontro denunciou a
devastação provocada pela exploração de bauxita pela Mineração Rio do Norte e pelo início
das construções da hidrelétrica de Cachoeira Porteira, ou seja, da BR 163, das company
town das Empresas Andrade Gutierrez e ENGE-RIO, além das estradas abertas ligando a
margem esquerda do rio Trombetas a BR 163 até a cachoeira Viramundo.

No sétimo encontro, realizado no quilombo da Serrinha, município de Oriximiná, em


1997, foi criada a Comissão de Articulação das Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Baixo Amazonas.

De acordo com Almeida (1994), se configurou uma nova estratégia dos movimentos
sociais com a designação dos agentes sociais a partir de critérios étnicos, não atrelada
necessariamente ao termo camponês. Tal fato traduz, segundo o autor, transformações
políticas destes agentes sociais face ao Estado. Neste contexto, estavam se organizando os
quilombolas do Baixo Amazonas, através dos chamados “encontros”, que para Almeida,
traduz “uma forma de luta superior ou um evento maior de universalização dos localismos”
(ALMEIDA, 1994, p. 26).

Segundo o autor, esses encontros produziram cartas e outros documentos públicos,


vide “Carta de Tapagem”25, denunciando o não cumprimento do Art. 68 ADCT/Constituição
Federal de 1988. Além das supracitadas. Para Almeida, os encontros explicitam o caráter de

25
Comunidade quilombola da Tapagem, rio Trombetas, município de Oriximiná, 1991.

124
consenso circunstancial das demandas locais e evidenciam proposições comuns. Assim, “os
movimentos, através dos ‘encontros’, sugerem desaguar, todos eles, numa única e ideal
mesa de negociações” (ALMEIDA, 1994, p. 28).

De acordo com Deborah Duprat, subprocuradora do MPF, a Constituição Federal


de 1988 representou para os distintos povos e comunidades tradicionais uma possibilidade
de autonomia ao reconhecer o Estado Brasileiro como Pluriétnico. Devendo o Estado
brasileiro garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais”. Segundo ela,

ao assumir o caráter pluriétnico da nação brasileira, que não se esgota


nas diferentes etnias indígenas, como evidencia o paragrafo 1º do art.
215, a Constituição de 1988 tornou impositiva a aplicação análoga do
tratamento dado à questão indígena aos demais grupos étnicos
(DUPRAT, 2002, pg. 44).

Ainda, segundo a autora, a Constituição Federal de 1988, “passa a falar não só de


direitos coletivos, mas também de espaços de pertencimento, em territórios” (DUPRAT,
2007, p. 14). É neste contexto que se inserem as mobilizações étnicas dos “negros do
Trombetas” e da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município
de Oriximiná-ARQMO.

Diante disso os quilombolas passaram a fazer uso do Art. 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988, que
garante “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.

Com igual objetivo, alguns países latino-americanos têm aprovado dispositivos


legais a fim de garantir direitos territoriais para palenques, cimarrones, saramacás, morrons,
bush negroes e garifunas. A Nicaraguá, na Constituição de 1987, reconhece o direto ao
territórios coletivos para as comunidades étnicas da Costa Atlântica. Segundo a lei Ley nº
445, de 13 de deciembre del 2002, as referidas comunidades étnicas aludem a lós afro-
caribenhos.

Do mesmo modo a Colômbia reconhece as Tierras de las Comunidades Negras,


como territórios coletivos, de acordo com a Ley 70 de 1993. Em Honduras a Ley de
Propiedad (Decreto 82-2004), no capitulo III, garante os direitos territoriais para los pueblos
indigenas y afrohondureños. A Constitución Política de Ecuador (1998), no Parágrafo 2 do
Artigo 84, garante a los pueblos indígenas y negros o afroecuatorianos, a conservação de la
propiedad imprescriptible de las tierras comunitárias. Na Bolívia, poderíamos citar o Articulo
32 de la Nueva Constituición Política del Estado Plurinacional.

125
Os instrumentos jurídicos têm garantido o exercício de manifestações étnicas.
Diante das intrusões sofridas ao longo dos anos de suas “terras tradicionalmente ocupadas”,
os “negros do trombetas” passaram a politizar o termo quilombo. Este passou a fazer parte
das designações do dia-a-dia em reuniões, assembleias e encontros, como também
entidades jurídicas representativas.

A análise aqui é como se procedeu a politização do termo quilombo. A partir da


realização de trabalhos de campo na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira26,
observa-se que o termo quilombo coexiste com outras designações, como: negro, preto e
mocambo, a exemplo da Enseada do Mocambo. No entanto, quilombo é o termo da
designação formal, com vistas ao ART. 68/ADCT.

Podemos observar que estas designações não são de forma nenhuma


homogêneas. Para Leite, “os militantes procuram ver o conceito de quilombo como um
elemento aglutinador, capaz de expressar, de nortear aquelas pautas consideradas cruciais
à mudança” (LEITE, 2000, p. 340).

É desta forma que estaremos considerando a realidade empiricamente observável


em questão. A partir de categorias de autodefinição ou auto-atribuição. No caso ora
analisado estaremos utilizando no presente as designações: remanescentes de quilombo ou
quilombolas. Por outro lado, ao proceder a leitura de fontes históricas sobre a região,
utilizarei a designação mocambo ou mocambeiros, que era a designação oficial e formal
utilizada pelos agentes coloniais.

6.2.2 Uma leitura do conceito de quilombo

A produção acadêmica recente referente às chamadas “comunidades


remanescentes de quilombos” na Amazônia tem nos revelado distintas realidades
empiricamente observáveis. Historiadores, geógrafos e antropólogos têm observado
realidades localizadas. Quer dizer, antes mesmo da apropriação dos termos legais e das
normas, tem sido registradas designações localizadas referidas a determinações de
existência. Neste sentido, podemos nos referir aos trabalhos Acevedo Marin (1998) e
Almeida (1996; 2002; 2011).

26
Para a realização deste relatório foram realizados dois trabalhos de campo na comunidade
quilombola de Cachoeira Porteira: o primeiro foi de 30 de março a 13 de abril, o segundo foi entre os
dias 10 e 31 de maio, ambos no corrente ano. No entanto, realizei já havia realizado trabalho de
campo na comunidade quilombola de Moura no ano de 2004.

126
As análises apresentadas neste texto rompem com o formalismo jurídico colonial.
Observam-se na Amazônia, casos onde a identidade enquanto “remanescentes de
quilombo”, tem sido reforçada diante de situações de conflitos. Tais conflitos envolvem,
muitas vezes, os chamados “grandes projetos de desenvolvimento”, políticas ambientais
com a implantação de unidades de conservação, grandes fazendas de gado e monocultura.

A partir de uma revisão de fontes históricas, uma releitura possível, é que as


situações sociais designadas como “mocambos” ou “quilombos”, não se tratavam
efetivamente de situações isoladas, com economia de subsistência voltada para o
autoconsumo. Tais informações históricas encontram-se em crônicas de viajantes,
naturalistas, ou ainda em relatórios tidos como oficiais.

Tavares Bastos (1866) viajou pela Amazônia na segunda metade do século XIX,
1863-64, (a fim de realizar um estudo sobre o comércio e navegação na “região”), nesta
viagem observa que os “mocambeiros” do rio Trombetas e afluentes vendiam seus produtos
agrícolas e extrativos para “regatões”, como também as escondidas no porto da cidade de
Óbidos.

Ainda segundo o autor (1866), referindo-se aos “mocambos” do rio Trombetas,


menciona ter coletado informações que estimavam um número superior a dois mil
“mocambeiros”. Segundo Bastos, os “negros” plantavam e extraíam produtos da “natureza”
para a comercialização, destacando as suas participações na economia regional, rompendo
com noção de isolacionismo.

Na década de 1980, o debate acerca do conceito de “quilombo” em jogo constituiu


um “campo de estudo”, envolvendo as ciências jurídicas, a antropologia e a história27. Tais
debates acirraram a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que assegurou
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”
(CF/88 – Art. 68. ADCT).

No ato da constituinte de 1988, que culminou a promulgação da Constituição


Federal, a partir da pressão de movimentos sociais, os legisladores votaram o Artigo 68, do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. No entanto, imaginavam os legisladores,
tratarem de “situações residuais”, “remanescentes”.

27
Tais noções convergiam para a tentativa de aplicabilidade do referido Art. 68.

127
O debate em torno do reconhecimento territorial dos denominados “remanescentes
de quilombo” movimentou militantes, políticos e pesquisadores durante o debate da nova
constituição no ano de 1987.

Após a promulgação da CF/88, houve uma série de medidas e atos jurídico-formais


que objetivavam disciplinar a aplicação da norma constitucional (cf. anexo 1). Em um
primeiro instante, atribuiu-se a Fundação Cultural Palmares, criada pela Lei nº. 7.668/88.

A fim de colaborar com a discussão em torno do conceito de quilombo, a exemplo


da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Em 1994 a ABA é convidada pela
Fundação Cultural Palmares a se manifestar sobre o assunto. A manifestação formal da
ABA está expressa no Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades
Negras Rurais e assinado pelo então presidente, o antropólogo João Pacheco de Oliveira.
Segundo esse documento o conceito de quilombo:

[…] não se refere a resquícios ou resíduos arqueológicos de ocupação


temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos
isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma
forma que nem sempre foram constituídos a partir de uma referencia
histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados
(ABA, 1997, p. 81-82).

Procedendo a uma breve genealogia da legislação referente à regularização


fundiária dos denominados “territórios quilombolas”, temos um vasto repertório de
instrumentos jurídicos (Cf. anexo 1).

A polêmica após a Constituição Federal de 1988 estava quanto à identificação dos


agentes sociais que seriam beneficiados pelo supracitado instrumento jurídico-formal.
Segundo Almeida (2002, p. 53) a designação “remanescentes das comunidades dos
quilombos”, para os legisladores da constituinte, remetia a ideia de “sobrevivências”, ou
então como “resíduos”, “resto” o que “já foi”.

O termo “quilombo”, no entanto, tem sido utilizado menos como um conceito


sociológico do que como uma noção naturalizada da jurisprudência, vinculada ao significado
dado pelos administradores coloniais através do Conselho Ultramarino de 1740.

Segundo Almeida (1996; 2002), esta noção jurídico-formal, permaneceu


“frigorifícada” na historiografia oficial. Segundo o Conselho Ultramarino, “quilombo” ou
“mocambo” era: “Toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”
(CONSELHO ULTRAMARINO, 1740 apud ALMEIDA, 2002, p. 47).

128
Almeida (2002) propõe a ruptura com a noção arqueológica do conceito “quilombo”,
trata-se do rompimento com noções jurídico-formais elaboradas a partir da visão de
administradores coloniais e naturalizadas pelo discurso oficial, referente à mobilização da
força de trabalho escrava.

A referência histórica em relação à noção de “quilombo” como prática criminosa,


estabelecida pelo Conselho Ultramarino de 1740, absorvida por historiadores e juristas,
conteria cinco elementos “essenciais”, pautava-se pelas seguintes características: fuga;
quantidade mínima de “fugidos”, isolamento geográfico, moradia consolidada e capacidade
de reprodução econômica simples.

Para Almeida, a análise contemporânea teria que proceder à ressemantização do


conceito de “quilombo”, rompendo com uma categoria histórica acrítica. Para o autor, “[…]
se deveria trabalhar com o conceito de quilombo considerando o que ele é no presente… e
sim discutir como essa autonomia foi sendo construída historicamente…” (ALMEIDA, 2002,
p. 53-54). Esta nova interpretação com conceito de quilombo consiste em analisar:

A autonomia no processo produtivo e o não reconhecimento da


autoridade do “dono”, sem pagar renda, foro, ou meia, sem acatar a
autoridade histórica recolocada a força de uma identidade emergente,
antes mesmo da abolição formal em 1888, enunciadora de um
campesinato livre, que enquanto subordinado conhecera situações
diversas, tanto da experiência do quilombo, quanto da captura e do
retorno à senzala nas proximidades da casa-grande. (ALMEIDA, 1996, p.
18).

Além dos embates entre acadêmicos e juristas, tem-se outra posição de fala, que é
a noção estabelecida pelos movimentos sociais autodefinidos como quilombolas e negros
ou afrodescendentes. Podemos observar que estas designações não são de forma
nenhuma homogêneas e constituem-se em “unidades de mobilização” autônomas. Para
Leite, “os militantes procuram ver o conceito de quilombo como um elemento aglutinador,
capaz de expressar, de nortear aquelas pautas consideradas cruciais à mudança” (LEITE,
2000, p. 340).

Assim, podemos compreender o quilombo do ponto de vista analítico e relacional,


onde “não há monopólio da fala de uma e somente uma formação acadêmica, nem há quem
detenha o poder de imposição da definição legitima” (ALMEIDA, 1998, p. 14). Desta forma,
segundo o autor, quilombo pode ser entendido como um conceito, como uma categoria
jurídica, ou como tema e problema da ordem do dia do poder e também como um
“instrumento através do qual se organiza a expressão político-organizativa dos que se

129
mobilizam, recuperando e atualizando nomeações de épocas pretéritas, como quilombola,
calhambola e mocambeiro” (ibid.).

6.2.3 A Porteira

O quilombo da Porteira (atualmente Cachoeira Porteira) tinha como vizinhos outros


núcleos habitacionais, como: Colônia, Muruci e a ilha da Giró. Ainda hoje existem os núcleos
de Nova Amizade, Tauari, Arrozal e Tapaginha. Todos estes foram formados pelos
descendentes dos antigos mocambeiros, após a abolição formal da escravidão, ao
perceberem condições de possibilidade para continuação da vida em “águas mansas”.

Para o Sr. Valdemar28, a Porteira é bastante significativa, traduzindo a divisão de


dois mundos. Tomar para si a Porteira significava marcar uma posição diante do sistema
escravocrata. A Porteira era um lugar estratégico para os quilombolas, e significou o
primeiro “obstáculo para as expedições de captura e punição”. Limitava o acesso aos
perseguidores, onde no verão ficava quase impossível transitar, tinham que esperar,
portanto o período de chuvas, quando as águas fortes cobrem a cachoeira, diminuindo os
obstáculos.

As fugas, as perdas pelo caminho marcaram os quilombolas e seus descendentes,


mas do que a letra F do ferro quente29. Contudo, os negros do Trombetas, não aceitavam
mas a candeia na mão. Assim é a história do Nêgo Basílio, que na época da escravidão
fugia dos “brancos dentro de um tacho”,

Contam a história de um quilombola que foi fugitivo um escravo, Nêgo


Basílio, ele fugia e andava dentro desse tal tacho, quando ele enxergava
os brancos qeu tava querendo pegar ele, ele entrava no tacho e descia a
cachoeira, ai ele escrevia “Morrer sim, agora, entregar não, vala-me
senhor São João”, minha avó contava isso pra nós, essa poesia, por que
ele dentro do tacho e a cachoeira lá em baixo, ele avista morrer, agora,
entregar pros brancos não, ai pedia pro padroeiro dele que salvasse […]
a minha avó viu muito ele, tinha as mãos enroladas, que botava a banha
quente de gordura pra servir de pote pra botar a coisa (candeia), ai a
mão dele encarangou Entrevista com Francisco Adão Viana dos Santos,
dia 01 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira).

Perpassa as narrativas uma noção de sofrimento,

A que eles contavam pra gente, às vezes a gente tava sentado e eles
diziam, a meu filho nós já sofremos muito correndo ai, teve mãe que

28
Membro da família Vieira, neto da Dona Gertrudes Vieira dos Santos.
29
A alvará de 3 de março de 1741, determinando que todos os negros que forem achados
residindo voluntariamente em quilombo, sejam marcados num ombro com a letra F, e, se na ocasião
de os marcarem, se verificar que já estavam marcados, então se lhes corte uma orelha.

130
deixou até filho jogado pela beira com medo de morrer, é filhinho
pequeno, ia correndo e deixava acriança, aqui essa localidade era um
ponto com o apoio dos grandes pra matar os negros, aqui porteira é por
isso que tem esse apelido, que aqui era a porta que eles paravam aqui
só pra matar os negros (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos,
31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

As trajetórias familiares se deram de formas distintas. Segundo os mais velhos


(Ursulina, Valdemar, Francisco e Vicente), o núcleo familiar não estava obrigado a
acompanhar os outros. Formavam famílias nucleares e extensas. Casavam em média entre
os vinte e cinco e trinta anos, formando novas famílias, a residência poderia ser próxima aos
pais ou não, partiam para outra “paragem” no rio. Dona Ursulina, narra o momento em que
sua família desce do Curuá para a Porteira,

Tinha a nossa casa, tinha a do meu tio, do outro meu tio, mas outra da
minha prima… tinha muita casa, nós adomava tudo, muita criança, foi
um lugar bom para nós, tinha cada trairão, peixe-cana, camunani. […]
Viemos embora ai para essa Porteira... arriemos na Porteira. Meu pai
com minha mãe vieram me criar em outro lugar, na Nova Amizade. Eu
achei bom, porque ficava sacrificoso para o meu pai baixar com nós em
um casquinho nessa grande cachoeira, se alagasse morria tudo
(Entrevista com Ursulina Vieira do Carmo, 84 anos, 18 de maio de 2012,
em Oriximiná ) (g.m.).

Os núcleos familiares foram descendo o rio Trombetas e Cachorro, no entanto,


continuavam usando suas terras tradicionalmente ocupadas para a coleta da castanha, para
a caça, para a pesca e para coletar frutos dos pomares dos antigos espaços sociais de
morada e de atividades agrícolas.

Dona Ursulina lembra ainda o local em que seus familiares trabalhavam na coleta
da castanha, segundo ela, “era na Serra (se refere a Serra dos Vieiras no rio Cachorro).
Meus tios… quase toda a minha gente trabalhava lá na Serra, depois mudaram, cada um
trabalhou para outros lugares… pro Pirarara” (Entrevista com Ursulina Vieira do Carmo, 84
anos, 18 de maio de 2012, em Oriximiná ).

A “Comunidade Remanescente de Quilombo” de Cachoeira Porteira tem seu início


assinalado pela literatura histórica como9 um agrupamento de negros denominado
“Porteira”. A cachoeira Porteira está situada na confluência dos rios Mapuera e Trombetas,
município de Oriximiná. Ela constitui-se na primeira cachoeira do rio Trombetas.

A Porteira é habitada desde o Século XIX por quilombolas. Viajantes e naturalistas


registraram suas moradias e roças naquele lugar (DERBY, 1989). Podemos mencionar o
naturalista Orville Derby 1898.

131
Para os quilombolas, como narra o Sr. Valdemar dos Santos, 77anos, este acidente
geográfico, a cachoeira limitava o acesso, “eles paravam aqui”, diz ele referindo-se as
expedições de captura e destruição dos mocambos.

O missionário Frei Carmelo Mazzarino, encontrou a Porteira desocupada em 1868,


os quilombolas haviam fugido de sua presença, segundo lhe foi informado que

um especulador de Obidos e acostumado a negociar, ou antes furtar


aqueles pobres pretos fugidos do Trombetas, lhes disse que
escondessem para o interior das terras e não aparecessem ao padre que
chegava para levar a força do governo, debaixo do pretexto de religião
(APEP. Ofício do frei Carmello Mazzarino 15-01-1868 apud FUNES,
2000, p. 9).

Como observa Funes (2000, p. 14), a designação Porteira contrasta com a


designação dada pelo missionário Frei Carmelo Mazzarino, que a batizou de São Miguel
Arcanjo. Porteira era a designação dos quilombolas. Tal designação é carregada de
simbolismo e enfatiza estratégias de resistência a escravidão. De acordo, com os mais
velhos de Cachoeira Porteira, a Porteira foi convertida em um obstáculo. Era a barricada.

A Porteira, segundo o Sr. Valdemar dos Santos, 77 anos30, era a separação de


dois mundos. Acima da Porteira estava o mundo das águas bravas, da mata, da liberdade e
dos “pretos velhos”, abaixo estava o mundo das “expedições punitivas” para “pegar os
pretos”, das águas mortas e dos “brancos”. A Porteira era, assim, o primeiro obstáculo para
os “brancos” na luta contra os mocambos do rio Trombetas. Tal posição foi final do Século
XIX expressada por Derby,

No verão de 1876, alarmados pela destruição do quilombo de Curuá,


retiraram-se temporariamente para uma posição mais segura, onde
fizeram suas roças, n’uma restinga de terra, que fica entre o Trombetas e
o rio Faro, que desagua na primeira cachoeira chamada Porteira,
restinga esta situada de tal modo que d’ella ninguem se pôde approximar
sem atravessar uma cachoeira muito perigosa, que dá muito tempo para
elles fugirem (DERBY, 1989, p. 369) [sic].

De acordo com Adolpho Ducke (1910, p. 159-160), observou a existência de


diversos núcleos de povoamento quilombola. Os quilombolas ganharam fama de exímios
“cachoeiristas”, o que fez com que fossem procurados por viajantes naturalistas. De acordo
com Ducke, os núcleos populacionais quilombolas eram: Porteira, Colônia, Arrozal e
Tapaginha, como sendo moradas dos descendentes do antigo mocambo, inclusive do
mocambo Maravilha.

30
Trabalho de campo realizado durante os dias 29 de março a 13 de abril de 2012. Entrevista cedida
no dia 31 de março de 2012, Cachoeira Porteira.

132
Se no passado este acidente geográfico era encarado como um recurso para a
proteção dos mocambos do alto Trombetas, atualmente é convertido em um fato histórico-
político pelos quilombolas. Tanto este, quanto os outros acidentes geográficos do alto rio,
das águas bravas, passaram a ser politizados e a integrar a fala do pertencimento étnico,
enquanto quilombolas.

6.2.4 Viajantes e naturalistas

Os quilombolas do Trombetas foram largamente descritos pela literatura


histórico/científica. Esta literatura era de certa forma especializada. Sobre a finalidade das
viagens científicas, segundo Oliveira (1987) elas “enfatizam seu interesse científico,
enquanto contribuição aos diferentes ramos das ciências naturais e físicas” (OLIVEIRA,
1987, 129). Podemos assim elencar uma série de viajantes naturalista que percorreram o rio
Trombetas.

- Orville A. Dery (1871): estudos geológicos;


- Charles Frederick Hartt (1870): estudos de ciências naturais;
- João Barbosa Rodrigues (1875): estudos de ciências naturais;
- Henri Coudreau e O. Coudreau(1899): estudos de ciências naturais;
- O. Coudreau(1901): estudos de ciências naturais.
- Adolpho Ducke (1913): Estudos de ciências naturais.
Poderia, como análise Oliveira (1987), dividir as viagens e os viajantes por:
finalidade, fonte financiadora, esquema de financiamento, formação intelectual,
recompensas, organização interna e duração. Tais elementos possibilitariam “uma
sociologia dos viajantes” como ele denomina seu estudo.

Acevedo Marin e Castro (2001) elaboraram um detalhado quadro dos viajantes e


exploradores do rio Trombetas. Neste quadro são elencados viajantes naturalistas,
missionários e agentes do governo colonial. Este quadro relaciona o ano, o viajante e os
objetivos ou resultados. Dentre as fontes coligidas, podemos destacar a expedição
comandada por João Maximiano de Sousa, em 1855, dirigida à captura de quilombolas.
Como também a viagem de Manoel valente do Couto, em 1868, cujo relatório deteve-se
sobre as atividades agrícolas dos quilombos.

O que interessa, neste elenco de viajantes, é a atenção às suas descrições e/ou


anotações etnográficas. O que chama mais atenção, neste sentido, são os trabalhos de
João Barbosa Rodrigues (1875), que procede a minuciosa descrição do Mocambo Maravilha
de Henri Coudreau e O. Coudreau(1899). O. Coudreau chega a descrever caracteres morais

133
e aspectos do comportamento dos quilombolas, definindo, por exemplo, a dança lundum
como imoral.

Oliveira observa a pluralidade de formações universitárias desses viajantes,


ressaltando que de maneira nenhuma, a “população de viajantes” pode ser tratada
homogeneamente. O autor, ainda ressalta que “os integrantes de tais expedições são
cientistas qualificados, isto é, que passaram por um processo regular de preparação
acadêmica, possuindo uma formação acadêmica especializada” (OLIVEIRA FILHO, 1987, p.
129).

Para além dos relatos de viajantes naturalistas, seria possível elencar ainda as
crônicas de funcionários coloniais, missionários e aventureiros que passaram pelo rio
trombetas, estabelecendo contato com pessoas locais. Estes relatos assumem
características distintas dos relatos de naturalistas, que obedeciam a normas acadêmicas
sobre como proceder a descrição.

Dessa forma, para exemplificar, a partir da leitura de compêndios sobre a


Amazônia, de relatos de agentes da burocracia colonial e militares, podemos mencionar o
Cónego Francisco Bernardino de Souza. Os principais mocambos eram os do rio Trombetas
e rio Curuá. O rio Trombetas, na sua “parte inferior do rio é pouco habitada, havendo todavia
alguns estabelecimentos de civilisados. Um pouco acima encontram-se os celebres
mocambos ou aldeias de escravos fugidos” (SOUZA, 1873, p.234) [sic].

É neste contexto que podemos localizar o quilombo denominado Porteira. Descrito


por Orville A. Dery (1871), Henri Coudreau e O. Coudreau(1899) e Adolpho Ducke (1913).
No entanto, é Henri Coudreau e O. Coudreau que descrevem com mais acuro etnográfico a
presença dos descentes de mocambeiros. Vamos notar assim, do texto dos naturalistas a
presença de famílias e pessoas, como o velho Adão e seus filhos.

6.2.5 O extrativismo na virada do Século XX

O chamado “regatão” na Amazônia foi um agente presente em rios e lagos


vendendo produtos manufaturados e comprando as chamadas “drogas do sertão”. Eles
comerciavam e contrabandeavam, foram várias as leis tentando regulamentar o comércio
fluvial. Segundo Siméia Lopes, o comércio clandestino estava inserido em complexas redes
de relação. O chamado “regatão, ao singrar pelos diversos rios, furos e paranás nos mais
diferentes pontos e portos, tecia com quilombolas, pequenos produtores e comerciantes
locais uma relação comercial” (LOPES, 2002, p. 14).

134
Podemos nos referir aqui, brevemente, às observações do Frei Carmelo Mazzarino,
sobre um “regatão” que alertou os quilombolas sobre sua chegada à Porteira, um
especulador de Óbidos e acostumado a negociar, ou antes furtar aqueles pobres pretos
fugidos do Trombetas” (APEP. Ofício do frei Carmello Mazzarino 15-01-1868 apud FUNES,
2000, p. 9). Tavares Bastos, também observa que os quilombolas do Trombetas negociam
“com os regatões que sobem o Trombetas, elles o fazem habitualmente” (BASTOS, 1866, p.
152) [sic] (g.m.).

Domingos Soares Ferreira Penna (1869), descreve a cidade de Óbidos, a sua


situação geral, economia, instrução pública e infraestrutura. Ao observar o porto da cidade
ele faz a seguinte anotação: “trinta canôas, chamadas de regatões, além de outras menores,
estão em giro continuo pelos rios e lagos, empregando-se no trafico dos gêneros do
município” (PENNA, 1869, p. 18) [sic]. Em geral, a imagem pública do chamado regatão era
carregada de adjetivos pejorativos.

A maior fonte econômica do Baixo Amazonas estava concentrada na produção de


cacau. Especificamente em Óbidos, Ferreira Penna faz a seguinte observação, “a cultura do
cacáo é a indústria favorita e quase exclusiva dos lavradores de Óbidos, e creio que nem-
um outro município do Amazonas possui tam grande numero de plantações d’esse genero”
(PENNA, 1869, p. 19) [sic]. Segundo Acevedo e Castro, (1998), a demanda pela força de
trabalho escrava do negro crescia na medida em que se desenvolvia a cultura do cacau.

Dessa forma, Ferreira Penna, se mostrava animado com a produção de cacau que
estava sempre crescendo. Segundo ele, “a producção tem sido sempre animadora e é raro
haver um anno, como o presente, em que a sua colheta tenha sido mesquinha” (PENNA,
1869, p. 19) [sic]. Ele observa ainda que o café e o tabaco são produzidos em escala
menores que o cacau. “A maior quantidade e a melhor qualidade que apparece no mercado
de óbidos, é proveniente dos mocambos do rio trombetas” (Idem) [sic].

A essa altura na região, os quilombolas do Trombetas já se estabeleceram como


fornecedores de produtos agrícolas para as cidades. Tendo em vista que negociavam com
comerciantes de Óbidos e Santarém. Os mocambos representavam a autonomia produtiva
dos quilombolas. Que forneciam também castanha salsaparrilha e breu.

No rio Trombetas, o comércio itinerante dos chamados “regatões” abriu espaço


para o estabelecimento de casas aviadoras. A partir das narrativas obtidas a partir de
entrevistas, observamos registros de casas aviadoras desde final do Século XIX. A segunda
metade do Século XIX representou momento de grande interesse externo pelas terras no rio
Trombetas.

135
O levantamento dos Registros de Terras nos municípios do interior do Estado do
Pará realizado pelo Engenheiro Civil João de Palma Muniz (1909), explicita os registros de
posse e seus declarantes. O Tomo Quinto refere-se aos municípios de Monte Alegre e
Óbidos (incluindo Oriximiná e Juruti). Os registros no rio Trombetas e Erepecuru referem-se
justamente as áreas tradicionais de exploração da castanha.

Podemos verificar assim registros de posses no lago Arapecú, Arancuã, no


Trombetas e rio Acapú no Erepecuru, dentre outros lugares. Pode-se identificar assim os
nomes de família como: Figueiredo e Guerreiro. Os Guerreiros aparecem também como J.
Guerreiro & Irmãos. As famílias Figueiredo e Guerreiro registraram posses nos rios
Trombetas e Erepecuru. Na segunda metade do século XIX os Guerreiros se estabelecem
na Porteira. Fundando ali a Casa Porteira.

Esteve no Cuminá (Erepecuru) o padre Nicolino José Rodrigues Sousa em 1877,


com o objetivo de catequisar os indígenas da região. Durante sua viagem, ele percorre o
curso do rio com a ajuda dos mocambeiros, se servindo de sua hospitalidade e produtos
agrícolas. Os quilombolas vão lhe descrevendo os nomes de lugares e cachoeiras. Como a
cachoeira do Severino e os mocambos de Sant’Ana e Livramento.

O. Coudreau (1900) também percorreu as terras do Cuminá (Erepecuru),


pernoitando no mesmo mocambo de Santa’Ana. Descreve ainda o Barracão das Pedras,
como um lugar onde se reuniam os mocambeiros. Era nesse lugar onde os mocambeiros
faziam o pagode, eles dançavam e comiam, esse encontro durava nove dias, era uma
mistura de sagrado e profano, onde o santo era a “testenhuma silenciosa da orgia”
(COUDREAU, 1901, p. 22). Fala ainda dos mocambeiros em várias outras passagem, como
também da relação com os índios Pianacotos, às vezes amistosa, às vezes conflitiva.

Estes rios passaram a ser explorados em busca da castanha e de outros produtos


florestais. Membros da família Picanço, antigos proprietários de escravos de Óbidos também
se instalaram no Trombetas e Cuminá. Como levantou Acevedo Marin e Castro (1998, p.
44), esta família chegou a ter 52 escravos no século XVIII.

A “Casa Porteira” se estabelecera nas proximidades do quilombo e passou a


negociar diretamente com esses. Seringa, castanha, couro de animais, óleo de tartaruga.
Aos poucos os quilombolas foram sendo convertidos em “fregueses” da empresa
extrativista. A Casa Porteira, segundo os próprios quilombolas, mantinha uma boa relação
com estes. Deferentes dos outros chamados “patrões”. Desenvolvendo assim, um sistema
próximo ao que Weber (1994) designou de “dominação tradicional”, baseado numa
fidelidade afinada com a noção de “patrão-cliente”.

136
Segundo Acevedo Marin e Castro, “os mecanismos de integração forçada do
trabalhador do quilombo à sociedade foram de natureza econômica” (ACEVEDO MARIN &
CASTRO, 1998, p. 7). Segundo as autoras, a relação de patronagem não se estabeleceu de
forma homogênea entre os quilombolas. Sendo, Cachoeira porteira, como uma das
situações que intensificaram a relação com os comerciantes. A partir das entrevistas e
relatos dos quilombolas, podemos observar que a família Guerreiro possui certa relação
privilegiada no contato com os quilombolas, a partir do paternalismo, característico do tipo
de “dominação tradicional”.

A coleta da castanha era combinada com outas atividades extrativas, segundo o Sr.
Valdemar, eles trabalhavam também “com roça, com tiração de breu, madeira lavrado de
machado, cortava cada pauzão pra derrubar no machado, era aquele sofrimento doa pretos
velhos” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).

O “’sistema de aviamento” é caracterizado pelo monopólio e imobilização da força


de trabalho pela dívida. Convertendo trabalhadores livres em “clientes”, possuidores de
deveres “morais” para com o “patrão”. Esta fidelidade acaba por se converter em
dominação. Esta dominação era exercida diretamente sobre seus “fregueses”, pois a Casa
Porteira tinha uma posição estratégica no rio Trombetas. Estava colocada sobre a Porteira,
exercendo vigilância sobre quem subia ou descia na safra da castanha, seringa, ou outro
produto natural.

Segundo o Sr. Valdemar, o Sr. Cazuza Guerreiro, não foi o primeiro da família
Guerreiro a trabalhar no Rio Trombetas, ele se lembra do “Zé Gabriel Guerreiro, muitos não
pegaram essa época e contam diferente, nessa época era o Zé Gabriel pai do Cazuza
Guerreiro, ainda conheci esse homem, o trabalho dele, então todos os morenos trabalhavam
com ele” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ). A família Guerreiro registra diversas posses no rio Trombetas e
Cuminã.

Referindo-se a rede de relações mantidas com a Casa Porteira, os quilombolas


preferem proceder a uma distinção entre a Casa Porteira e as outras. “Aqui era do Cazuza
Guerreiro, ele era famoso muita gente conhece ele, foi o único homem eu apoiava a
população” (Raimundo Adão de Sousa, 65 anos, 31 de março de 2012, Cachoeira Porteira).

As narrativas constroem ainda como relação ao Cazuza Guerreiro, a ideia de “bom


patrão”, em contraposição aos “patrões” da firma “Machado”. A firma Machado exercia o que
podemos designar de “dominação legal”. Exercia a autoridade pela força da norma legal,

137
dos contratos de concessão dos castanhais. Exercendo um rígido controle sobre a produção
dos castanhais arrendados e proibindo os “fregueses” ou “castanheiros” a negociarem com
outros comerciantes locais e os chamados “regatões”.

A “dominação” (WEBER, 1994) que exercia a família Guerreiro envolvia relações de


paternalismo, como também a noção de “bom patrão”. As narrativas oficiosas falam que
eram os “Guerreiros que ajudavam os negros”. A falência da firma é explicada pelos
quilombolas pela ruptura no padrão da relação estabelecida. Com a morte do Cazuza
Guerreiro, os filhos assumem a empresa extrativista, o responsável tenta impor um novo
padrão de relação próximo ao estabelecido pela firma Machado, o que segundo os
quilombolas, ocasionou a ruptura da “fidelidade”.

A produção de borracha não teve grande expressão da região do rio Trombetas,


comparada a outras regiões da Amazônia, como a região do Xingu, do Acre e do Purus e
Madeira no Amazonas. No entanto, a produção de castanha esteve entre uma das maiores
da Amazônia. O pouco interesse pela seringa do rio Trombetas pode ser explicado pela sua
má qualidade, o que explica o extrativismo da castanha está arraigado ao modo de vida dos
quilombolas,

no tempo do Cazuza Guerreiro que ele tinha o barracão do comércio


dele aqui, no inverno se trabalhava a castanha e no verão trabalhava a
seringa, depois parou por que a seringa daqui fazia um bolão grande,
mais quando chegava lá fora tava bem pequeno, essa seringa daqui dá
muita água (Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 15 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Segundo Emmi (2002), a castanha começou a ser exportada em 1800. Neste


período figuravam como maiores produtores as regiões de Manaus e Itacoatiara, no
Amazonas e Óbidos e Alenquer, no Pará. Em 1921, o Pará produziu as maiores taxas de
exportação, sendo 184.763 hectolitros. A região do Baixo Amazonas foi responsável por
72.667 hectolitros dessa produção. Em 1927, a produção de castanha passou a ser maior
na região de Tocantins.

Até o final do Século XIX a produção nos castanhais do Trombetas era livre e
organizada pelos próprios quilombolas diante da demanda de compradores, os chamados
“regatões” e comerciantes de Óbidos e da pequena freguesia de Uruá-Tapera,
posteriormente, Oriximiná. Segundo conta os quilombolas, os “castanhais eram libertos”.

Segundo Emmi (2002), a mudança na forma de utilização livre dos castanhais,


mudou a partir de 1918, com a Lei 1.747, que permitia a compra de terras devolutas do
Estado, como também da Lei 1.947, que previa o aforamento perpetuo das terras devolutas

138
para a indústria extrativa. Ainda segundo Emmi, foi a partir de 1954, com a Lei nº 913, que
se generaliza no Pará o aforamento dos castanhais, como sua principal forma de aquisição.

Segundo Emmi, foi a partir de 1925 que se introduziu uma nova forma de controle
dos castanhais, “tratava-se do arrendamento, uma espécie de aluguel da terra por safra”
(EMMI, 2002, p. 4). Para a autora, essa forma de controle se generalizou em 1930,
constituindo uma forma de controle dos “castanheiros”, minando assim a extração de forma
livre, tornando-se assim áreas de disputa. Assim, os castanhais do Trombetas, também
passaram a se configurar como áreas concessórias de agentes externos, obrigando os
quilombolas a fidelidade quanto a venda da castanha.

A partir das entrevistas e narrativas, os quilombolas reconstroem o sistema de


trabalho dos castanhais, lugares, acesso, formas de trabalho. A partir da intrusão dos
castanhais por comerciantes e empresários de Óbidos, Santarém e até mesmo de Belém,
eles relatam os supostos donos e os conflitos gerados a partir da proibição da entrada nos
castanhais. Castanhais abertos por seus antepassados. Assim, podemos localizar a Firma
Machado e o Costa Lima. Segundo, os quilombolas “tinha um patrão aqui nesse rio que ele
trabalhou pra cá que ele tomou conta disso aqui, tudo ele dizia que era dele, o Costa Lima,
era um português” (Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 05 de abril
de 2012, na Alzibeira ).

E recorrente na Amazônia o fato dos chamados “patrões” assumirem status de


autoridade, como a designação “coronel”, ou “coronel de barranco”. Assim, podemos
mencionar no rio Trombetas o “Coronel Manoel da Costa Lima”, ou Costa Lima. Segundo o
Sr. Raimundo Vieira dos Santos, em entrevista cedida ao periódico santareno Folha do
Norte31, em 03 de janeiro de 1981, o referido “coronel” se dizia proprietário de grande área,
indo da localidade Mateus ao Jacaré. Ainda, segundo a matéria, publicada no livro “Puxirum:
memória dos negros no oeste do Pará” (2002), o “coronel” Costa Lima, foi o primeiro depois
da escravidão a explorar os quilombolas e tentar tomar as terras.

Com o aumento da circulação de pessoas, ocorre simultaneamente uma


transformação do padrão da relação “patrão-cliente”. A própria relação de aviamento não foi
homogênea, ela existia com pequenas diferenças. A partir do relato do Sr. Valdemar,
podemos proceder à história social das modalidades de aviamento no rio Trombetas,
“primeiramente um não devia pro outro, por exemplo, ele entregava à castanha e dava
aquela mercadoria no valor, pronto, acabou-se, não tinha caderno, depois, eu fui crescendo,

31
A reportagem foi feita por Douglas Lima, texto de M. Dutra, sob o título “Uma triste história
de escravidão”, Folha do Norte, 03 de janeiro de 1981.

139
ai existia o patrão de caderno, ai comprava um açúcar, um café, ai tomava nota” (Entrevista
com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Os conflitos gerados a partir da proibição da utilização dos castanhais perpassavam


tanto violências físicas, quanto simbólicas. Assim, são relatadas prisões e apreensão de
castanha pelos arrendatários. Segundo o Sr. Valdemar, o rio podia ser divido da seguinte
forma: a Casa Porteira da Porteira para cima; a Firma Machado, da Porteira pra baixo:
“então aqui dentro do Trombetas os poderosos desse rio ai era esses dois” (Entrevista com
Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Tal divisão não era rígida, mas têm-se dois tipos distintos de dominação que se
materializam no dia-a-dia dos quilombolas, pelo menos durante a safra da castanha. A
Firma Machado, arrendava grandes áreas de castanhais, impedindo a realização do
trabalho livre de coleta da castanha pelos quilombolas. As áreas de castanhais abaixo da
Porteira, segundo o Sr. Raimundo, eram reivindicadas pela Firma Machado,

o Machado fazia o seguinte, ele arrendava do Estado as pontas de


castanha pela safra e a população não sabia, os quilombolas não sabiam
com o era, diziam que era um terreno definitivo. Ele só fazia arrendar pra
extrair aquela castanha […], era lá pra dentro do Cuminã, era ai o
Erepecú que é um dos maiores castanhais, e Jacaré que praticamente
se unem a um só, vai até o sessenta, tudo por essa mata grande aqui
tudo era castanhal, mais tudo era registrado como Machado, como era
que o cara não ia meter a cara, fica difícil (Entrevista com Raimundo
Adão de Sousa, 65 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Com a possibilidade de arrendar grandes áreas de castanhais, A Firma Machado


ocasiona uma seria de conflitos pela utilização dos recursos naturais, se configurando
assim, na primeira forma de intrusão e expropriação das terras tradicionalmente ocupadas
pelos quilombolas do Trombetas.

O livre acesso aos castanhais passou a ser regulado pelas relações “patrão-
cliente”. Somente os fregueses autorizados poderiam coletar castanha, o contrato era verbal
e “quando pegava o pessoal ai pelo castanhal tirando castanha, mandava levar pra prender
[…]. Eles consideravam o castanhal como deles, topava o caboco dizia que tava roubando e
mandava prender”(Entrevista com Raimundo Adão de Sousa, 65 anos, 31 de março de
2012, em Cachoeira Porteira ).

A expropriação dos castanhais por estes comerciantes e empresários não


aconteceu de forma harmoniosa. Quero dizer que, os quilombolas não aceitavam as novas
regras impostas pelas leis que regulavam o arrendamento e o aforamento dos castanhais.
Dessa forma, burlavam as regras que normatizam a relação “patrão-cliente”. Passaram a

140
negociar as escondidas com regatões e atravessadores, a noite, longe dos olhos e ouvidos
da empresa extrativista.

Na realidade, os regatões do rio Trombetas, comumente mantiveram relações


colaborativas, ou cooperação com os quilombolas do rio Trombetas, como vimos, eles é
quem escoavam a produção dos mocambos, eles é quem avisam das “expedições punitivas
e de captura”. Assim, no século XX, eram os chamados “regatões” que negociavam com os
quilombolas, mesmo diante do “fechamento” dos castanhais e da falta de liberdade para a
coleta e comercialização,

vinha esses compradores, esses atravessadores, ai era que eles


pegavam algum tostãozinho, por ali, de noite, por que a casa chefe era
só o açúcar, o café e nada mais. Ia de noite, já deixava aquela castanha,
media a castanha no paneiro pra não fazer barulho, por que se fosse
pego ia preso por essa firma Machado (Entrevista com Raimundo Adão
de Sousa, 65 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira)

A dominação exercida pela Firma Machado, não se assemelhava à dominação


exercida pela Casa Porteira. A primeira obtinha a “lealdade” pela força da norma legal, ou
seja, o contrato formal com o Estado de arrendamento dos castanhais, meramente
instrumental. A segunda pela carga afetiva declarada pelo “freguês”, com base na noção de
“bom patrão”, de patrono e protetor. Como analisa Eric Wolf (2003), a relação “patrono-
cliente”, implicaria por parte do patrono ofertas com resultados tangíveis e imediatos. Os
“patrono” oferece ajuda econômica e proteção.

É nesse contexto que pode ser definida a relação entre a Casa Porteira e os
quilombolas de Cachoeira Porteira. Se a Firma Machado mandava prender, os proprietários
da Casa Porteira mandava soltar. Bem como nos coloca o Sr. Raimundo, “Cazuza cansou
de mandar soltar peão”. Dessa forma foi se consolidando a relação “patrão-cliente”.

Assim, é possível traçar a seguinte dinâmica social comercial no rio Trombetas:

Quadro 1 - Dinâmica comercial no rio Trombetas

Dinâmica comercial no rio Trombetas


Até 1850 Até 1900 Até 1950 Até 1979
*“Regatão” *“Regatão” *“Regatão” *“Regatão”
*Empresas extrativistas *Empresas extrativistas *Empresas extrativistas
*Arrendamento *Arrendamento
Elaboração: Emmanuel Jr

141
A dinâmica comercial de regatões e empresas extrativistas mostra-se enfraquecida
no final década de 70, mais especificamentre em 1979. Com a criação da Reserva Biológica
do Rio Trombetas.

Esse tempo foi encerrado pela forma mais brutal de exclusão social, que foi o
deslocamento compulsório (expulsão violenta) de dezenas de famílias quilombolas de suas
terras tradicionalmente ocupadas. Essas famílias deslocadas compulsoriamente passaram a
se estabelecer em outras comunidades quilombolas, como por exemplo, em Cachoeira
Porteira, que fica no limite da REBIO Rio Trombetas.

6.2.6 Projetos de infraestrutura, mineradores e hidrelétricos: expropriação territorial

É neste sentido, que hoje os quilombolas de Cachoeira Porteira se mostram


insatisfeitos e se contrapõem aos projetos de infraestrutura, energéticos e de mineração que
se instalaram em suas terras a partir da década de 1970. A análise das lideranças e
pessoas locais sobre a usurpação de suas terras por essas empresas passam diretamente
pela noção de pertencimento. Este pertencimento tem sido construído através de fatos
históricos de luta contra a escravidão. O mocambo era a liberdade e a conquista da terra.

Em 1973, com a chegada da empresa Andrade Gutierrez, para a abertura da BR


163 (ligando à Perimetral Norte), foi realizada uma agressiva modificação no território
quilombola de Cachoeira Porteira. Foram realizados aterros e terraplanagem, foi construída
uma vila para os funcionários e foi aberta uma estrada com aproximadamente 220
quilômetros. A Andrade Gutierrez era a empreiteira contratada pelo antigo Departamento
Nacional de Estradas e Rodagens (DNER), atual Departamento Nacional de Infra-Estrutura
de Transportes (DNIT).

Para Acevedo Marin & Castro (1998), o relacionamento conflitante entre os


quilombolas de Cachoeira Porteira e a Andrade Gutierrez pode ser explicitado pelas
seguintes linhas: a Andrade Gutierrez se estabeleceu em Cachoeira Porteira como um
superpoder local. Para a construção de edificações, destruiu roças antigas e maduras,
deslocou famílias de quilombolas acenando com indenizações irrisórias, provocando
conflitos e tensões.

Essa estrada afetou diretamente os cursos d’água até próximo à cabeceira do rio
Trombetas, como também territórios históricos pertencentes aos quilombolas, como o
Igarapé do Campiche e a enseada do mocambo, a foz do rio Turunã, Igarapé Caxipacorpé,
entre outras referências históricas. Isto além de modificar completamente a área da Porteira.

142
Na Porteira, localizava-se, como vimos, a “vila” dos Vieiras. A designação vila é de certa
forma recente. Mas a ocupação é do século XIX. Era, contudo, conhecido como o lugar dos
Vieiras, a Porteira.

Na Porteira, foi construída uma company town para abrigar os funcionários da


empresa Andrade Gutierrez, que realizava o trabalho de abertura da BR 163. Como
aconteceu em outros lugares no Brasil durante a ditadura militar, a implantação do projeto
de abertura da estrada BR 163, se deu de forma autoritária e sem informação previa aos
quilombolas, que parcelarmente foram sendo agregados à peonagem. Segundo o Sr.
Valdemar,

a Gutierrez chegou e primeira pessoa que eles procuraram fui eu, aqui,
porque eu tava aqui na presença deles, começamos a trabalhar nessa
praiona que tem ai, agente não sabia o que eles queriam daqui eles
entram com uma coisa que ninguém sabia que eles vieram fazer
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012,
em Cachoeira Porteira.).

Lembram, ainda, dos Vieiras que moram na Porteira. Os descendentes dos


quilombolas descritos pelo frei Carmelo Mazzarino. Como observa Acevedo Marin e Castro,
as “mulheres têm especial lugar na história de Cachoeira. São três mulheres fundadoras,
Joana Viana, Gertrudes dos Santos e Augusta Vieira” (CASTRO, 2001, p. 111), ainda no
tempo que eles estavam fugindo da escravidão. Segundo o Sr. Valdemar, existiam na
Porteira “vinte e poucas casas”.

Segundo as autoras, as sucessoras são Dona Cotoró, Dona Luiza Vieira. Dona
Cotoró, segundo Acevedo Marin e Castro, também teria nascido no Turuna e morado no
Campiche e era venerada pelos quilombolas, dançava o ganzá, o lundu e valsa. Faleceu em
1938, sendo enterrada no Campiche, onde estão enterrados os antigos quilombolas.

O. Coudreau, ao passar por Cachoeira Porteira, anotou observações sobre duas


danças dos quilombolas, “J'assiste aux deux premières danses, un "loudou" et une
"Gambá"; ce sont des danses lascives et provocantes, mais les poses plastiques de ces
pauvres négresses, poses qui vont jusqu'à l'immoralité”32 (COUDREAU, 1901, p. 10). As
observações são etnocêntricas, analisam a cultura do “outro” a partir da sua própria cultura.

No trecho da BR 163 que liga Cachoeira Porteira à BR 210 ou Perimetral Norte,


foram feitas terraplanagens e nivelamentos. O plano de construção da Perimetral norte era
interligar os Estado do Amapá, Pará, Roraima e Amazonas. Segundo Ribeiro (2005), se

32
Tradução livre do autor: “Eu assisti as duas primeiras danças, um "lundum" e um "gamba", são
danças lascivas e provocantes, as poses plásticas dessas pobres mulheres negras, poses que vão até à
imoralidade” (COUDREAU, 1901 , p. 10).

143
objetivava com a construção da BR 163, o escoamento de grãos do Brasil Central no
sentido Hemisfério Norte. Sendo assim, o que explicaria uma ligação Cachoeira Porteira –
Perimetral Norte?

O trecho navegável do rio Trombetas se estende justamente da sua foz, no


Amazonas, até Cachoeira Porteira. Os rios Nhamundá e Trombetas se configuraram como
importantes vias de escoamento. Estudos sobre jazidas minerárias no rio Trombetas já
estavam sendo realizadas. Segundo Acevedo Marin e Coelho “na década de 60 já tinham
sido feitas pesquisas exploratórias sobre as ocorrências de bauxita na Amazônia”
(ACEVEDO MARIN & COELHO, 2007, p. 4).

O fato, é que a construção do trecho Cachoeira Porteira – Perimetral Norte da BR


163 estava inserido num grande projeto de mineração e energético. A estrada estava
antecedendo a implantação dos grandes projetos econômicos. Seria o suporte de
infraestrutura regional. Segundo informações do DNIT, o trecho correspondente ao rio
Trombetas e afluentes encontra-se nas seguintes condições:

- Entre PA 254 (B)/ 439 (Onças) – Rio Cuminã: Leito Natural;

- Rio Cuminã – Afluente do Rio trombetas: Planejada;

- Afluente Rio trombetas – Cachoeira Porteira: Planejada;

- Cachoeira Porteira – Igarapé Taja: Implantada;

- Igarapé Taja – Afluente Rio Trombetas: Implantada;

- Afluente Rio Trombetas – Entre BR 210 (A): Implantada;

Assim, a estrada foi construída no trecho Cachoeira Porteira – BR 210 ou


Perimetral Norte. Da mesma forma, a segundo o DNIT, a Perimetral Norte, nos trechos
envolvendo a BR 163 e o rio Mapuera, encontram-se:

- Entre BR 163 (B) – Afluente do Rio Trombetas: Planejado;

- Afluente do Rio Trombetas – Rio Turuna: Planejado;

- Rio Turuna – Rio Imabu: Implantado;

- Rio Imabu – Rio Mapuera: Implantado;

- Rio Mapuera – Div PA/RR: Implantado.

Estas obras de infraestrutura, afetaram diretamente terras tradicionalmente


ocupadas por indígenas e quilombolas, com o pretexto de ocupação e povoamento, pois

144
acreditava-se ser a região da Calha Norte um grande vazio populacional (RIBEIRO, 2005, p.
240). Os quilombolas de Cachoeira porteira, convertidos em trabalhadores braçais da
Andrade Gutierrez, executaram serviços variados, como: mateiros, cozinheiros, caçadores e
pescadores.

Segundo o Sr. Valdemar, o responsável pelas instalações da empresa na Porteira


lhe disse o seguinte: “o negócio aqui vai ser o seguinte, nos vamos fazer uma companhia e
aqui vai ser um movimento muito grande, eu quero que você pare aqui com nos uns dias (o
Sr. Valdemar morava na Colônia), eu passei todo dias roçando pro lado pro outro só abrindo
a rua” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira
Porteira ).

Segundo ele, na primeira vez vieram cerca de dez pessoas, incluindo o topografo.
Que fez os primeiros levantamentos para o arruamento e infraestrutura da company town.
“passou uns dias ai ele disse: 'nós vamos baixar agora […] num saia dai durante dez dias, a
gente lhe paga’. Com uns oito dias, lá vem um rebocador, com um balsa, com o maquinário
e a maioria do povo, ficamos admirados que nós ainda não tinha visto aquela arrumação”
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira
Porteira)

O Sr. Raimundo Adão, também se lembra da chegada da Andrade Gutierrez,


lembra inclusive o dia, o mês e o ano. “Foi dia quinze de agosto de setenta e três, o pessoal
ficou até espantado sem saber o que era, depois nós fomos saber que era uma estrada, a
rodoviária que ela ia fazer, a Andrade Gutierrez sendo empreiteira da DNER” (Entrevista
com Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

No começo, a empresa trata os quilombolas de forma a tentar ganhar a confiança e


se estabelece na Porteira. A company town construída pela Andrade Gutierrez seguia os
modelos padrões, com ruas ordenadas e equipadas com aparelhos de centros urbanos:
cinema, praça, igreja, banco e supermercado. O fato de possuir escola e a promessa de
trabalho assalariado passou a atrair outras famílias quilombolas que residiam na vizinhança
da Porteira.

A empresa constrói suas instalações próximas as ruínas da Casa Porteira, à direita


do antigo quilombo da Porteira, núcleo residencial tradicional da família Vieira. Ainda hoje,
somos levados pelos quilombolas para observar as ruínas da comunidade, os fornos de
barro e as mangueiras centenárias. Os mais velhos como o Sr. Valdemar, o Sr. Vicente e o
Sr. Francisco Adão, localizam ainda as posições das antigas residências. Na ocasião do

145
trabalho de campo realizado entre os dias 31 de março e 13 de abril, podemos verificar
mangueiras centenárias, segundo o Engenheiro Florestal que nos acompanhava.

A company town ficava paralela a BR 163, com certa distancia da estrada. Com o
passar dos anos, os quilombolas, foram das margens dos rios, da proteção da “cortina de
floresta” e se instalando às margens da rodovia, próximos das novas opções de trabalho
renumerado e da escola, enquanto os quilombolas podiam frequentá-la,

“chegou ai agradando o pessoal dando apoio, mais sempre naquela


covardia, quando ela conseguiu se aplumar bem, a gente já não podia
entrar muito fácil, só se fosse funcionário, tiraram os alunos que
estudavam na vila, só ia estudar só se fosse filho de funcionário”
(Entrevista com Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de
2012, em Cachoeira Porteira ).

Ainda segundo o Sr. Raimundo,

eles chegam aqui parece um coitadinho, mas são um leão, ninguém vai
saber quem é ele, é o que acontece, as empresas chegam aqui, olha
agora como está na mineração, quando eles chegaram era uma beleza,
hoje o povo se salta lá, tem que passar lá na triagem, vê quantas horas
você vai passar lá dentro, quantos dias, se tem um parente lá, tem que
pegar autorização, é dois, três, quatro dias, no dia certo se você passar
quatro dias, no quarto dia a segurança tá procurando lá na porta, se
fulano de tal já foi, se já saiu, se vai sair, é assim lá na mineração, o
negocio lá é assim (Entrevista com Raimundo Adão dos Santos, 65
anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Igual situação passou a acontecer na Porteira. As company town eram cercadas e


possuíam portões que impediam o transito dos quilombolas da comunidade, que passou a
ser designado pejorativamente de “vila dos pretos”. Com o aumento da segurança e
fiscalização, segundo o Sr. Raimundo, o atendimento para malária para os quilombolas não
era mais realizado no hospital dentro da vila da empresa, mas sim, em uma instalação
precária próxima aos portões da company town, conhecido como “pau do guarda”.

A empresa e seus funcionários impuseram novos padrões espaciais, tinha a vila


dos funcionários e a “vila dos pretos”, referindo-se as habitações dos quilombolas às
margens da estrada. Antes da rodovia BR 163, as unidades de residência localizavam-se
nas margens do rio Trombetas, acima da Porteira, com casas próximas. Além de outras
núcleos habitacionais, como Colonia, Arrozal, Nova Amizade, Tauari (onde se localiza o
cemitério descrito por Coudreau, em 1899), Tapaginha, Alzibeira, Pedra Branca, Macaxeira,
Santo Antônio e ilha da Giró. Estes são os mais próximos da Porteira.

146
A vila da Andrade Gutierrez não se confunde com as unidades residenciais dos
quilombolas de Cachoeira Porteira, podemos citar o núcleo habitacional dos Vieiras,
organizado ainda no século XIX e as famílias que moravam nas proximidades.

Os quilombolas não abandonaram esses pequenos núcleos habitacionais, no


entanto, algumas optaram em residir às margens da BR 163. Com a reorganização das
unidades familiares quilombolas às margens da BR 163, surgiram novos planos
organizacionais. O Morro (referência a parte mais elevada), a Baixada (com menor
inclinação) e o Buraco (referência a zona desviante da estrada).

As atividades agrícolas foram redimensionadas no espaço e tempo. As chamadas


“roças”, de acordo com as narrativas e conversas, se caracterizavam por estarem próximas
às unidades residências. Temos, contudo, dois momentos distintos, Quando residiam no alto
das cachoeiras, as unidades residenciais estavam também próximas dos castanhais. Na
medida em que foram baixando, trouxeram as chamadas “roças”, sendo que a utilização dos
castanhais permaneceu como antes, continuaram a utilizar os castanhais abertos pelos
antepassados.

À medida que se reorganizam as margens da BR 163, as unidades residenciais


assumem novos padrões, com casas paralelas umas as outras. Impossibilitando que
trouxessem as roças para próximas das residências. Assim, as famílias se apropriaram das
capoeiras que surgiram após a abertura da estrada. As áreas de plantio passaram a ser
cultivadas próximas umas das outras, criando assim. Um grande complexo agrícola,
caracterizado pela utilização comum da terra e por formas simples de cooperação, o
puxirum.

Essa forma de cooperação simples foi largamente estudada por Cloves Caldeira
(1956), que compilou dados referentes a todas as regiões do Brasil, além de destacar as
influências africanas, indígenas e portuguesas. O autor analisa as relações que envolvem as
práticas de cooperação simples. Segundo o autor, tais práticas podem possuir as seguintes
características: pessoal ou coletivo.

Para a primeira situação, podem ser realizadas ajudas em situações como: casos
de morte, doença, partos, casamentos, batizados, acidentes de trabalho, sendo esses os
mais comuns.

Na sua segunda característica, com relação a interesses coletivos, podem ocorrer


formas de ajuda em “derrubadas, roçadas, encoivaramento, queimas, semeaduras, limpas,
colheitas, embarramento ou cobertura de casas” (CALDEIRA, 1956, p. 30). Ou então a

147
obras de interesse geral, como construção ou conserto de estradas, limpeza de córregos de
serventia pública, ou em atos religiosos ou recreativos.

No entanto, o autor coloca que estas relações de solidariedade podem se


manifestar de duas formas, a primeira seria a “solicitada” a segunda, seria a “espontânea”,
sendo esta ultima menos comum segundo Caldeira. Segundo o Sr. Severino Adão da Costa,
36 anos, os roçados, dos quilombolas de Cachoeira Porteira, são trabalhado tanto por meio
do mutirão, como troca de dia entre parceiros.

O mutirão e o sistema de troca de dia implicam em relações de reciprocidade. Mas


exatamente, correspondem a sentimentos de fidelidade entre parceiros, esses parceiros
podem ser compadres, cunhados, irmãos ou amigos. O contrato neste caso é estabelecido
verbalmente entre as partes. De acordo com Mauss (2003) “as trocas e os contratos se
fazem sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados
e retribuídos” (MAUSS, 2003, p. 187).

Com relação aos quilombolas de Cachoeira Porteira, as formas de cooperação


simples perpassam desde a limpeza dos varadouros que dão aceso aos castanhais, das
estradas dos castanhais, como também da área de residências. Os quilombolas se reúnem
periodicamente para executarem o serviço de limpeza das ruas e para a capina do “mato”
na margem da estrada onde se localizam as casas.

As práticas tradicionais de utilização dos recursos naturais se mantiveram apesar


do reordenamento espacial. A noção de tradicional, aqui, toma uma direção distinta
daqueles que atrelam modos de fazer ditos atrasados, inspirados por noções evolucionistas.
O “tradicional” no sentido da administração pública estaria ligado às noções de “atraso”,
“primitivo”, “artesanal”, “rudimentar”, utilizadas, por exemplo, para classificar povos e a
prática da denominada “agricultura de subsistência”.

Como observamos, não ocorre o abandono das atividades agrícolas e extrativas.


As duas, nesse novo momento, foram conciliadas com o desenvolvimento de trabalhos
assalariados. Outros membros da família passam a desenvolver as atividades tradicionais
de utilização dos recursos naturais.

Nem há tão pouco uma ruptura com os padrões históricos de utilização dos
recursos naturais. Pensamos que, como afirmou Almeida (2006, p. 17), o tradicional
enquanto atrelado a fatos do presente redefinindo a própria história do grupo. No âmbito das
mobilizações, este saber tradicional pode, inclusive, ser convertido em reivindicação, como
tem se concretizado nas reivindicações da AMOCREQ.

148
Diante da realidade imposta pela Andrade Gutierrez e pela ENGE-RIO, ou seja, a
disponibilidade de recursos pela execução de trabalhos informais, como lavadeiras,
cozinheiras, mateiros e serviços gerais, os órgão do poder público não assimilaram essa
nova configuração. Na prática, os quilombolas passaram a executar uma pluralidade de
atividades, o extrativismo e as atividades agrícolas passaram a ser realizadas em conjunto
com os serviços disponíveis na Andrade Gutierrez.

Dentro dessa nova dinâmica agrícola e extrativa, os fornos de farinha foram


trazidos para dentro do quintal da unidade residencial. Nem todas as famílias que praticam
atividades agrícolas possuem “casa de farinha”. No entanto, as que o possuem
compartilham com as outras famílias. Outra característica das formas de cooperação
simples.

É nesse contexto de grandes obras e empreendimentos econômicos no rio


Trombetas, que em 1971, no médio Trombetas, segundo informações do site da Mineração
Rio do Norte33, teve inicio o projeto Trombetas, mas as obras tiveram que se paralisadas
devido a queda do preço da matéria prima no mercado mundial de alumínio. Em 1972 as
obras foram retomadas as negociações, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a Alcan
constituíram uma joint-venture. Em junho de 1974 foi assinado um acordo entre os
acionistas.

A retomada das construções ocorreu no primeiro trimestre de 1976. Segundo o Sr.


Valdemar, “vi muita roça ali […], a mineração localizou umas casinhas lá dentro do mato, ai
depois levantou umas barracas maiores […] casa pra ali e acampamento pra aculá, só sei
que com poucos anos já tava uma vila” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31
de março de 2012, em Cachoeira Porteira )

Em abril de 1979, iniciaram as atividades mineradoras. O primeiro embarque de


bauxita foi realizado no dia 13 de agosto do mesmo ano em um navio canadense. Segundo
Acevedo Marin & Coelho (2007), desde a implantação da Mineração Rio do Norte-MRN, o
projeto minerador tem afetado as comunidades quilombolas desde Cachoeira Porteira até
Boa Vista, localizado ao lado da MRN.

É nesse contexto que a Andrade Gutierrez se conecta à Mineração Rio do Norte. A


partir de 1973, cerca de uma dezena de quilombolas de Cachoeira Porteira trabalhava para
a Andrade Gutierrez. O Sr. Raimundo, ele era um desses quilombolas, segundo ele a
empresa, “passou aquele tempo ela trabalhando aqui, foi o tempo que parou a estrada, em

33
Cf. Quem Somos-Histórico: Disponível em <http://www.mrn.com.br/>. Acessado dia 03 de maio de
2012.

149
setenta e seis, ficou desativada uma época, um ano e pouco, ficou só uma equipe de
conservação. Ai veio o projeto de tiração de cavaco, que era pau pra mineração” (Entrevista
com Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

A estagnação das obras da BR 163 ocorrem em paralelo a BR 210 ou Perimetral


Norte. Assim, a Andrade Gutierrez procedeu a desflorestamento compulsório para a retirada
de madeira, para fornecer lenha a Mineração Rio do Norte. A madeira retirada do território
quilombola era para as fornalhas da Mineração Rio do Norte para a secagem da bauxita.

Foram desmatados até o quilometro 25 da BR 163, do lado esquerdo na direção


Perimetral Norte. O desflorestamento chegava até as margens do rio Trombetas. Segundo o
Sr. Raimundo, com a paralisação do trabalho da estrada, a Andrade Gutierrez, começou a
“cortar madeira do quilometro zero até o quilometro vinte e cinco, até as estradas, a zero, a
um, a dois, a três, a quatro, a cinco, a seis, tendo a estrada de trabalho, S0, S1, S2, S3, S4,
tudo isso era estrada, eles cortaram subindo a estrada só a esquerda” (Entrevista com
Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Nesta mesma década, chegou a Cachoeira Porteira a empresa ENGE-RIO,


empreiteira contratada pela Eletronorte, objetivando realizar estudos para a construção da
Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira. Segundo o Sr. Francisco Adão Viana, a ENGE-
RIO utilizou as instalações da Empresa Andrade Gutierrez, construindo posteriormente a
sua própria company town, chamada acampamento Pioneiro. Também um lugar com
infraestrutura necessária para as etapas iniciais da construção da represa.

Segundo o Sr. Raimundo Adão, após a diminuição das atividades da Andrade


Gutierrez, teve novamente uma grande movimentação e circulação de pessoal “a extração
de carvão foi até 1979. Ai eles tiveram uma mistura, uma parte dela tava mexendo com a
madeira e a ENGE-RIO, tava mexendo com o negocio dos picos, da pesquisa, começou em
setenta e nove também” (Entrevista com Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio
de 2012, em Cachoeira Porteira ).

De acordo com trabalhos acadêmicos, matérias em periódicos e os depoimentos


dos próprios quilombolas, o projeto hidrelétrico do rio Trombetas ia acontecer. Os
quilombolas de Cachoeira Porteira ficaram mais uma vez reféns do autoritarismo e dos
investimentos econômicos para a construção de projetos de infraestrutura. Segundo artigo
de Efren Jorge Gondim Ferreira (1993), a hidrelétrica era posta como um projeto aprovado e
em consolidação. Segundo o autor, este investimento estava fase designada “projeto
básico”, referindo-se a sua área de estudo como “futura UHE Cachoeira Porteira”
(FERREIRA, 1993, p. 5).

150
Atraídos pela promessa de emprego também vieram trabalhadores de Oriximiná e
Óbidos, o que ocasionou grande impacto sobre o território quilombola. Segundo os dados
apresentados pela ENGE-RIO, 1985 a área tinha 1.740 pessoas. O que demonstra um
inchaço populacional. No entanto, após a paralisação total dos empreendimentos, os
trabalhadores que chegaram com as empresas se retiraram da região, ficando cerca de uma
dezena, pois já haviam constituído relações matrimoniais com mulheres das famílias
quilombolas. Segundo o Sr. Francisco Adão, o processo aconteceu da seguinte forma,

eles chegam, eles dizem assim: olhe a prioridade é pra empregar o povo
da região, ai é pra roçar, pra desmatar, depois de tudo estruturado, olha
vai ter uma redução, mandando o povo da região embora ai vão
contratando técnicos de mão de obra, aqui na região não tem, então ai o
povo já foi lesado pelo primeiro momento (Entrevista com Francisco
Adão Viana, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Segundo Ferreira (1993), a UHE Cachoeira Porteira foi inicialmente pensada para
atender a demanda por energia da Mineração Rio do Norte, para a produção de bauxita.
Segundo a ENGE-RIO, a UHE de Cachoeira Porteira teriam três etapas: a primeira etapa
seria na Cachoeira Viramundo (um pouco acima da Cachoeira Porteira), a segunda etapa
seria a implantação de uma casa de força no rio Mapuera e a terceira seria o potencial
decorrente da regularização a montante de Cachoeira Porteira pela implantação de novos
reservatórios nos rios Mapuera e Trombetas (ENGE-RIO, 1988 apud FERREIRA, 1993,
p.12).

Em 1988 foi publicado o estudo de Aproveitamento hidrelétrico de Cachoeira


Porteira, de autoria da ENGE-RIO e Centrais Elétricas do Norte do Brasil. Conforme o Sr.
Francisco Adão Viana, ele trabalhou para a ENGE-RIO, e segundo lhe falavam, uma grande
área seria inundada com a barragem, assim, “a parte que ia inundar, ou ia ser atingida pela
barragem, por qualquer efeito, eles iam botar esse povo lá na Serra da Vovó, daqui do
centro a sete quilômetros, lá foi feito o estudo topográfico” (Entrevista com Francisco Adão
Viana, 27 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Segundo o Sr. Raimundo,

Em oitenta e nove parou tudo, até que por fim eles desmontaram o
acampamento, o que eles puderam levar eles levaram, o que não
puderam deram pra prefeitura e ela deu um pouco pra gente, e assim foi
a Enge-Rio, e a Eletronorte também, teve um acampamento dela lá em
cima com o decorrer do tempo viram que não ia ter mais nada, ai
jogaram pra prefeitura, ai a prefeitura deu um bocado que muito material,
esses painel que o alojamento era feito de painel, deram pra muitas
comunidades ai pra baixo que tem esse material (Entrevista com
Raimundo Adão dos Santos, 65 anos, 27 de maio de 2012, em
Cachoeira Porteira ).

151
A possibilidade de construção da UHE Cachoeira Porteira chamou a atenção da
sociedade civil e diversos movimentos sociais, que passaram a se manifestar contrários ao
projeto. Tais mobilizações exerceram fortes pressões populares, como a exercida pela
Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná-ARQMO, pelas
paróquias de Óbidos e Oriximiná.

Final da década de 1980, as empresas estavam encerando suas atividades em


Cachoeira Porteira. No entanto, Andrade Gutierrez manteve cerca de quatro funcionários
renumerados até o ano de 2000, “eles ficaram aqui só zelando, eles permaneceram com
esses funcionários aqui com esperança de ter algum fruto, ela deixou um caminhão, um
Mercedez Benz 113, quando ela viu que nada foi doando pra prefeitura, deixou balsa...”
(Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 27 de maio 2012, em Cachoeira
Porteira ).

Assim, “o relatório de 1989 da MRN, informa o encerramento em 31/10/1990 do


contrato de fornecimento de madeira pela Andrade Gutierrez para a produção de lenha,
fonte energética utilizada na planta de secagem de bauxita, então substituída pelo óleo
combustível” (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 1988, p. 231).

Assim, as empresas e seus funcionários deixam para trás parte do território


quilombola devastado. Seria oportuno observar que apesar do grande fluxo de pessoas,
manteve-se a identidade quilombola. Na realidade essa identidade foi reforçada diante do
trânsito de pessoas, pois fronteiras sociais se consolidaram, criando visivelmente a distinção
“brancos” e “pretos” – a “vila dos pretos”. O estigma revela/exacerba a diferença. E de
acordo com as entrevista, eles sabiam quem eram os “de fora”.

Tal afirmação se concretiza da disposição das casas dos quilombolas, segundo


eles esta disposição estava marcada por núcleos de parentes. Tal modelo de organização
espacial foi reproduzido a partir da própria Porteira e dos outros núcleos habitacionais. Estes
núcleos não estavam restritos a parentes consanguíneos, embora a referência seja familiar.
Os núcleos habitacionais menores eram formados por unidades familiares interligadas pela
parentela. E são reproduzidos atualmente em Cachoeira Porteira. Dispostos da seguinte
forma: a casa dos pais, seguida pelas casas dos filhos. Caso a família possuísse de uma ou
mais gerações anteriores a essas duas, a casa também estaria nessa proximidade.

Como por exemplo, a área denominada “Buraco”, a entrada é perpendicular a BR


163, entre a casa do Sr. Ivanildo, filho do Sr. Raimundo Adão e a casa do Sr. Dilton, filho de

152
Dona Ursulina. Existe a passagem de uma ponte, onde teríamos a casa da Dona Ursulina,
sogra do Sr. Raimundo Adão, mas adiante tem a casa de outra filha do Sr. Adão, enfim tem-
se a casa do Sr. Raimundo Adão.

As unidades residenciais seguem esse padrão parental, com raras exceções. Como
a casa da Sra. Adriane, filha do Sr. Dilton, que está construindo uma casa relativamente
distante do seu núcleo familiar. Dessa forma, o atual modelo de ocupação impõe certos
limites para a reprodução do padrão de residência. Pois limita o espaço para a construção
de casas às margens da estrada.

Os quilombolas reorganizaram seus espaços de moradia e convivência, passando a


morar nas margens da estrada, excluídos da vila da Andrade Gutierrez. Os moradores da
Porteira foram afetados diretamente por este projeto, foram impedidos de transitar e foram,
parceladamente, convertidos em força de trabalho e arrebanhados a peonagem da
empresa, foram utilizados como “mateiros” e “trabalhadores braçais”.

Os quilombolas de Cachoeira Porteira tiveram seus modos de vida radicalmente


alterados pela convivência com a Andrade Gutierrez e ENGE-RIO, que cercaram as áreas e
as protegiam com seguranças e a força da lei. Impotentes diante de tal situação, os
quilombolas viam-se reféns das empresas e da destruição realizada por elas.

Ainda hoje, a UHE Cachoeira Porteira, consta em planos e apresentações do


Governo Federal, como o mapa abaixo, produzido pela Eletrobrás para uma reunião da
COINFRA, 2008,

153
Mapa 4 – Aprovetamentos Hidrelétricos – Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental.

Elaboração: Emmanuel Jr

De igual modo, o empreendimento hidrelétrico de Cachoeira Porteira tem constado


nos planos de ações do governo federal, desde a década de 1990. Os dois quadros abaixo,
referem-se ao Plano Decenal de Energia 1990-1999 e ao Plano Nacional de Energia 2030:

154
De acordo com o mapa da Empresa de Pesquisa Energética-EPE, 2007, os
estudos da bacia do rio Trombetas, indicam potenciais para a construção de quinze
empreendimentos hidrelétricos. Estes empreendimentos estão assim distribuídos: oito no rio
Trombetas, quatro no rio Cuminã/Erepecuru, um no rio Cachorro e dois no rio Mapuera.
Estes empreendimentos afetam diretamente territórios indígenas e quilombolas.

Grosseiramente, o mapa indica os territórios quilombolas como assentamentos do


INCRA. Na realidade corresponde a Terra Quilombola Erepecuru. No alto Trombetas, quatro
UHE’s afetariam diretamente o território quilombola de Cachoeira Porteira. Dessas
projeções, uma situação possui o projeto básico (Cachoeira Porteira I), uma possui o Estudo
de Viabilidade (Cachoeira Porteira II) e treze possuem o inventário.

155
6.3 FUGA E PERSEGUIÇÃO AOS MOCAMBEIROS DO TROMBETAS

A análise dos relatos e fugas coligidos paralelamente aos relatos de cronistas,


viajantes naturalistas e funcionários do governo dinástico colonial, darão certa visibilidade
dos diferentes processos de territorialização. Registra-se perambulações, locais de moradia,
as perseguições e a situação atual. Em termos sociológicos, pensamos que os agentes
sociais têm consciência de sua própria realidade (BOURDIEU, 1996, p. 91-92). A análise
seria, o ponto de vista de vários pontos de vista.

Para analisarmos os dados apresentados, nos aproximamos da noção de “situação


colonial”, Balandier (1993) refere-se a sociedades africanas afetadas pela colonização.
Expandindo a análise para o Brasil, colônia de Portugal por 322 anos. A situação colonial é
uma ação administrativa protagonizada por agentes externos, colonizadores e colonizados.
A colonização cria condições para a formação de sociedades heterogêneas, existindo no
seu interior tensões e conflitos. As colônias constituem “sociedades plurais”.

A “situação colonial” cria novos modos e agrupamentos sociais. Segundo


Balandier, alguns “historiadores e antropólogos consideram a ação administrativa como uma
das causas principais de transformação” (BALANDIER, 1993, p. 113) social e econômica.
Assim, a dominação política é segue juntamente com a dominação cultural, os recortes
administrativos, “conduziram a fragmentação de importantes etnias, a quebra de unidades
políticas de alguma envergadura ou à constituição de reagrupamentos artificiais” (idem, p.
114).

Citando E. Chancelè (1949), “La question coloniale”, Balandier compreende a


colonização como uma espécie de “cirurgia social”, ao analisar o modus operandi da
administração dinástica colonial, ou seja, o “deslocamento de populações e criação de
‘reservas’. Modificações do modo de povoamento, transformação do direito tradicional e das
relações de autoridade” (BALANDIER, 1993, p. 108). Pensamos assim, que dessa forma,
podemos aproximar do processo de ocupação do rio Trombetas pelos negros fugidos das
plantações de cacau e das fazendas de gado de Santarém e Óbidos.

Essa presença colonial segundo Oliveira, “instaura uma nova relação da sociedade
com o território. Deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência
sociocultural” (OLIVEIRA, 1999, p. 20). Esses agentes sociais atualmente autodefinidos
quilombolas, foram objetos de políticas administrativas, o primeiro é a captura e conversão
em escravos, o segundo é a distribuição por propriedades privadas e obras públicas. A fuga

156
é a antítese dessas políticas, no entanto, parte delas. A síntese é o mocambo e as
expedições punitivas.

Assim, selecionamos três depoimentos sobre a aludida origem dos “mocambos do


Trombetas”:

Vicente Vieira dos Santos, 75 anos: filho de Jesuíno Severo e Maria Vieira dos
Santos. Dona Maria Vieira dos Santos era filha de Sebastião Vieira dos Santos e Jovina
Vieira dos Santos (filha de um primo do Sr. Sebastião com uma indígena).

Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos: filho de Hidelbrandina da Conceição


Santos. Dona Hidelbrandina era filha de Francisco Adão dos Santos e Maria da Conceição.
O Sr. Francisco Adão dos Santos era filho do Sr. Florêncio Adão. O sr. Florêncio Adão
morreu com 105 anos em 1960.

Valdemar dos Santos, 77 anos. Filho de Erpidio Cordeiro dos Santos e Joana Vieira
dos Santos. Dona Joana Vieira dos Santos era filha de Elzébio Viana e Gertrudes Vieira dos
Santos.

A história social é contada por agentes sociais localizados socialmente como os


interlocutores privilegiados. Assim, são consideradas as pessoas mais velhas. Encarregadas
de contar as histórias dos antigos, ou dos “pretos velhos” como se refere aos seus
antepassados, o Sr. Vicente. As narrações de fatos históricos de ocupação territorial
pretendem reconstruir um ou mais mitos de origem. De acordo com as narrativas coletadas,
o mocambo seria esse acontecimento.

Assim, esses interlocutores privilegiados são levados a exercer constantemente a


memória social do grupo. Assim, somos levados a pessoas em genealogias, matrimônios e
locais de nascimento: “Eu nasci aqui no Muruci, agora o começo da minha família é lá em
cima, no Turuna” (Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 31 de março de 2012,
em Cachoeira Porteira ). Como explica o Sr. Vicente, “o começo de sua família” é no
mocambo. O mocambo está posto como a origem primordial.

A família reforça a existência coletiva. Distintamente oposta à existência atomizada


do escravo fugido. As famílias foram compostas por negros de diferentes grupos étnicos, ou
mesmo por negros e índios. Todos os espaços sociais referidos as morados antigas,
podemos identificar um ou mais núcleos familiares. Como a ilha da Giró, referida ao núcleo
familiar da Dona Maria Augusta Vieira dos Santos (conhecida como Dona Giró, irmã da
Dona Gertrudes Vieira dos Santos).

157
Este núcleo habitacional localizava-se próximo a ilha do cemitério, acima da
Porteira. Segundo seu Manoel Marco dos Santos, 50 anos (filho da Dona Giró), esta ilha era
o lugar de morada, as atividades agrícolas e extrativistas eram realizadas em lugares
distintos, a roça era na terra firme próxima a ilha e a coleta de castanha, esta é realizada no
mesmo ponto até hoje: Chapéu, no rio Cachorro e Fumaça no rio Trombetas.

O movimento de descida das cachoeiras pode ser descrito da seguinte forma:

Ele com os parceiros dele, que vinham corridos da escravatura, foram se


acampar lá (Turuna), pra lá os branco não iam mesmo […] ai eles
começaram a vir descendo, ficavam escondidos nessas ilhas, nessas
alturas iam fazer compra em Óbidos, mais só de noite, quando
amanhecia o dia procuravam um lago desses e eles passavam o dia
todinho lá no lago, quando era a noite eles saiam, de remo, naquelas
alturas as canoas deles era furada e amarrada com cipó, naquele tempo
não tinha prego, a rodela das canoas era de atravessado (Entrevista com
Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira
Porteira ). (g.m.).

Para os mocambeiros, Óbidos figura como importante centro comercial, onde


poderiam escoar as produções de cacau, café, tabaco e castanha. Como nos relata os Sr.
Vicente, estas viagens eram feitas de canoa e duravam muitos dias. Podemos assim, traçar
uma relação de interdependência do mercado local com a produção dos mocambeiros. A
continuação dos mocambos pressuponha a continuação do fornecimento de produtos in
nature.

O depoimento do Sr. Vicente, vai de encontro aos relatos de Tavares Bastos sobre
os mocambos do Trombetas e as negociações de tabaco no porto de Óbidos. Mesmo
correndo o risco de serem recapturados e inseridos novamente nas plantações ou fazendas
como força de trabalho escravo, “os negros cultivam a mandioca e o tabaco (o que eles
vendem passa pelo melhor); colhem a castanha, a salsaparrilha, etc. A’s vezes descem em
canoas e vêm ao proprio porto de Obidos, á noite, comerciar ás escondidas” (BASTOS,
1866, p. 152) [sic] (g.m.).

A perambulação de pessoas e núcleos familiares no rio Trombetas são resultados


de uma política colonial escravocrata. A fuga estava posta como forma de resistência ao
sistema. A fuga não era a patologia do sistema, é parte do sistema. Não se trata de uma
relação normal ou patológica. Pois a escravidão não é a regra, não é um fato social no
sentido Durkheimiano. A escravidão é uma medida administrativa imposta pela força e
violência.

Em meados do século XIX, o sistema escravocrata no Baixo Amazonas estava


enfrentando relativa crise quanto a força de trabalho escrava. Segundo Souza era preciso “a

158
praga dos mocambos, que são com uma viva e permanente ameaça” (SOUZA, 1873, p.96).
Tavares Bastos, na sua viagem pelo vale do Amazonas, faz a seguinte observação em
Óbidos,

Perto de Obidos entra no Amazonas o rio Trombetas; nas suas florestas


existem muitas centenas de escravos fugidos. Os mocambos do
Trombetas são diversos; dizem que todos contém, com os criminosos e
desertores foragidos, mais de 2..000 almas. Os negros, industriados
talvez pelos outros companheiros de desterro, vivem ali debaixo de uma
governo despótico electivo; com efeito, eles nomeam o seu governador,
e diz-se que os delegados e subdelegados são também electivos. Imitam
nas designações de suas autoridades os nomes que conheceram nas
nossas povoações. Os mocambos attrahem os escravos; nomearam-me
uma senhora que vio em pouco fugirem para ali 100 dos que possuia;
outros proprietários há que contam 20 e 30 perdidos desse modo
(BASTOS, 1866, p. 151-152) [sic].

A cidade de Óbidos, figura também na tradição literária regional. Vários são os


relatos do período escravista no Baixo Amazonas, no entanto a literatura regional refaz
cenas e ambientes desse mundo colonial. O obidense Herculano Marcos Inglês de Sousa,
ou simplesmente Inglês de Souza, narra o cotidiano da cidade de Óbidos no século XIX.
Misturado a fazendeiros, cacaulistas, oficiais militares, comerciantes, burocratas e damas,
estão os “tapuios”, os africanos, os negros e negras, as mulatas e os escravos, personagens
intermitentes.

No romance o Cacaulista34 ele narra o seguinte episodio do Dia de Reis:

As mulatas iam e vinham com uns ares de ocupadas, os moleques


corriam pelo cacaual a procura de ramos seco que deviam alimentar a
fogueira que se tinha de fazer a noite no terreiro, onde os escravos
haviam obtido permissão para de dançar (SOUSA, 1973, p. 47-48).
Mais adiante,

naquela noite fez-se uma grande fogueira e os negros e negras


dançaram em torno dela até a meia noite; as mulatas porém, chamadas
de casa, não tomaram parte no folguedo; estavam de longe assistindo
por traz da senhora; um africano velho e cego tocava gaita
acompanhando-se com um pequeno tambor, e um crioulo dos mais
35
saídos botava os versos que os outros repetiam em côro (SOUSA,
1973, p. 51).

Inglês de Sousa (1968, primeira edição 1877) escrevia sob o pseudônimo de Luís
Dolzani, é considerado um dos pioneiros do naturalismo, escola literária baseada em

34
A primeira edição foi publicada em 1876.
35
Passo a transcrever a música:
“Esta vila já foi vila/Tamburú-pará/Tamburú-pará/Agora já é cidade/Tamburú-pará/Como não queres
que eu chore/Se de ti tenho saudade?/Tamburú-pará./Vamos dar a despedida/Cururú.........../Cu-rú-rú.../Como
deu o pass’ro carão/Cu-rú-rú/Bateu asas, foi se embora, Ai que dor de coração!/Cu-rúrú”.

159
descrições fiéis da realidade e experiência. Dessa forma, as relações sociais na cidade de
Óbidos passam a ser assim descrita. As pessoas eram descritas por suas propriedades,
tantos mil pés de cacau, gado, casa, escravos. Tenentes, políticos, fazendeiros e
cacaulistas, possuíam escravos.

Orville Derby (1989), ao narrar sua experiência de viagem, tenta também uma
mínima caracterização social do rio Trombetas, dos habitantes: indígenas e quilombolas. A
espacialização quilombola vai sendo desvelada por esses viajantes. Derby chega mesmo a
declarar certa simpatia pelos quilombolas, fazendo a seguinte observação: “commummente
representamse os quilombólas como uma classe perigosa de ladrões, violentos e
preguiçosos, e nós achamos o contrario quiétos, de bom coração e industriosos como o
resto da gente do Amazonas” (DERBY, 1989, p. 370) [sic].

Derby relata fatos contatos pelos próprios quilombolas. O viajante naturalista os


designa de quilombolas, diferente de outras fontes que fazem coro a designação colonial no
Baixo Amazonas. Como mencionamos anteriormente, a designação “mocambo” estava
carregada de estigmas negativos.

Derby passa a fazer projeções populacionais, dar localizações dos núcleos


familiares e histórias de fugas das expedições punitivas,

Existem, ha muitos annos, quilombos ou aldeamentos de escravos


fugidos no rio Trombetas e seu tributario o Cuminá, como tambem no
Curuá de Alenquer.
O seu primeiro sitio ficava um pouco acima entre as cachoeiras, perto da
serra chamada de Icamiába. Em 1855 mandaram se tropas contra elles,
mas os quilombolas tendo recebido aviso da approximação destas, a
força encontrou o quilombo deserto, e teve de contentar-se com destruir
os mocambos e as plantações. Diversos negros, que já ahi estavam
n’esse tempo, asseguram-me que elles podiam ter massacrado toda a
força, si tivessem querido. Em vista das contrariedades porque
passaram, alem da destruição de sua aldêa, a moderação dos negros
parece admíravel. Este quilombo foi depois removido para alguma
distancia rio acima, mas no correr de alguns annos, como não foram
mais molestados, muitos pretos têm se mudado para um pouco mais rio
abaixo, e alguns mesmo descartando-se da protecção das Cachoeiras e
estabelecendo-se nas margens dos lagos abaixo d’estas, com o fim de
obter maior facilidade para o commercio clandestino, que mantem com
Obidos, e talvez também para dar aviso em caso de perigo. Aquelles que
vem até á parte inferior do rio tem quasi segura a sua liberdade e alguns
entre tem relações mesmo com seus antigos senhores (DERBY, 1989, p.
369) [sic].

A perambulação de pessoas resulta das políticas administrativas coloniais. A


reação do poder colonial para combater, sejam os mocambos, sejam os revoltosos no
período da cabanagem (1835 a 1840). Tais politicas resultaram no espraiamento territorial

160
dos mocambos. O Sr. Francisco relata dois momentos das perseguições aos mocambos do
alto trombetas, falando das expedições punitivas ele fala o seguinte:

foi o tempo que o pessoal vinham fazer candeia nos escravos, foi muito
antes da comissão de limites, ai foram subindo, até que quando chegou
o corre-corre (algumas pessoas se referem como pega-pega) que os
brancos queriam bota a candeia nas mãos dos pretos, ai eles correram
aqui o rio (Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 05
de abril de 2012, na Alzibeira ).
Na seguinte fala, ele trilha os espaços percorridos por sua família, a descida do alto
das cachoeiras até a Tapagem, e a subida novamente com a perseguição e combate aos
cabanos.

foi o seguinte os meus pais e meus avós, os bisavós moravam aqui, lá


em baixo na Tapagem num terreno lá que hoje tem até umas igrejas lá, e
ai os avós tinha uma mulher por nome Margarida, ai os homens da
cabanagem chegaram lá humilhando, e eles correram aqui pra cima
numa canoa, subiram o rio, quando chegaram lá numa paragem, tinha
um camarada que tava cuidando peixe, quando ele viu os homens
gritaram, foram por terra daqui, pararam a canoa e saltaram por terra e
foram embora, quando chegou lá numa cachoeira bem aqui acima onde
é o quilometro trinta e um, lá ele estava ai gritou ei preto, ele olhou, jogou
o peixe dentro do tacho e tavam acampados num cachoeira chamada
Campiche, e disseram olha os homens brabos vem ai, ai tocaram fogo
na casa, ai as galinhas, os cachorros e eles todos subiram e ficaram lá
em cima da cachoeira Fumaça, lá onde passa a linha do equador, a
espingarda nesse tempo se chamava bengala e soltavam tiros, e lá
começou e já tinha essa mulher Margarida que tava com a mão toda
enrolada, queimado que eles acendiam, botavam banha, assim soltavam
o algodão, aquele morrão que nós chama hoje de lamparina, eles
ensopavam daquele óleo e botavam na mão dela pra se escrever, era
com pena naquela altura, e se escreviam, lá o meu avô nasceu pra lá, já
no Turuna […] com trinta anos ele baixa pra cá, ai foi que ele casou,
encontrou a vovó e casou ali na Tapagem (Entrevista com Francisco
Adão dos Santos Neto, 74 anos, 01 de abril de 2012, em Cachoeira
Porteira ).

Assim, aos poucos vamos identificando lugares e fragmentos de “territorialidades


específicas” que se constituíram ao longo dos anos.

Na trilha do depoimento do Sr. Francisco Adão dos Santos Neto, podemos


recuperar os relatos de Orville Derby onde uma das expedições enviadas para destruir os
quilombos do Trombetas, “os soldados, que foram enviados, ha alguns anos, contra os
escravos fugidos, foram terrivelmente acometidos por elas, e nós encontramos muitos
negros, moradores antigos do rio, alguns mesmo nascidos ahi, que sofrem das febres”
(DERBY, 1989, p. 368) [sic].

Os relatos mais conhecidos sobre os mocambeiros do Trombetas dos viajantes


naturalistas Henri e O. Coudreau, nos livros Voyage au Trombetas e Voyage a la Mapuera,

161
este último de autoria da O. Coudreau. Henri Coudreau morreu antes de concluir a
expedição ao rio Trombetas, suas memórias foram sistematizadas e publicadas por sua
esposa. De acordo com as anotações de Henri Coudreau, ele encontra no Trombetas o
velho Adão e seus filhos.

Segundo o seu Francisco Adão dos Santos Neto, o Adão que descreve o Coudreau
era seu parente e sua avó ainda lhe contou sobre a passagem dos viajantes pelo
Trombetas,

A madame é por que ela subiu esse rio pra fazer uma pesquisa, ela o
marido e mais duas pessoas, subiram e foram embora até que chegaram
lá justamente nesse ponto, a cachoeira é difícil lá ela joga água pra um
lado e pra outro, quando chegou lá em cabo rancho ela baixou, veio
baixando, no rio igarité, quando chegou aqui daqui pra baixo o marido
dela desceu, doeu a cabeça e quando chegou bem na boca do jacaré ele
morreu, ai avistaram aquela luz, justamente era a lamparina que nosso
avô fazia com oito morrão, ai colocavam aquela banha, de pirarucu,
alguma coisa pra acender e manter aquele fogo aceso, e ela avisou
chorando foram pra lá chegaram lá prestaram atenção era eles, tava
morto já na canoa, lá pediram apoio e foram enterrar, já quase no nosso
terreiro, ai com sete anos ela veio buscar os ossos dele, por que ela teve
lá nesse lugar, mais quem morreu foi o marido dela é onde ela parou
passou uma noite e o pessoal viram e colocaram Paraná da Madame
(Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 01 de abril de 2012,
Cachoeira Porteira).

Narra O. Coudreau, que chegou a um pequeno centro fundado por mocambeiros,


chamado Colônia, onde tinha quatro barracas. A viajante, narra ainda a convivência com
seus ajudantes, descendentes de mocambeiros. A expedição subiu o rio Trombetas até a
cabeceira, depois do “Turuna des Mucambeiros” (COUDREAU, 1900, p. 51).

Vicente Sales (1971) escreve sobre o processo de exploração da força de trabalho


escrava no negro. O autor procede à dissecção da administração colonial e a escravidão do
negro na Amazônia. Sua comercialização, seu tráfico, economia e sua localização e suas
formas de resistência. Segundo o autor,

por ocasião da Cabanagem, êsses negros se colocaram ao lado dos


revoltosos, auxiliando-os. A revolução de 1835 foi extraordinariamente
propícia aos mocambeiros. Os negros, aproveitando da morte ou fuga
dos senhores, reorganizaram-se e fundaram acima da décima quinta
cachoeira, denominada esta de Caspacura, uma povoação por êles
mesmos denominada Cidade Maravilha (SALES, 1971, 234) [sic] (g.m.).

O mocambo Maravilha foi uma foi uma referência histórica da resistência à


escravidão na Amazônia. Chamou a atenção de administradores coloniais, viajantes
naturalistas e missionários. O. Coudreau durante expedição ao rio Trombetas, chega ao

162
lugar designados como um dos primeiros mocambos do Trombetas. Segundo ela, “c’est à la
cachoeira do Mina que les Mucambeiros avaient fait leur première installation aussitòt après
leur fuite. Le Mucambo était situé rive gauche près d’un igarapé et s’appelait Maravilha”
(COUDREAU, 1900, p. 67)36.

Les Mucambeiros firent une première installation à la cachoeira do Viramondo, sur


La rive droit du Trombetas. Ne se croyant pas en sûreté ils remontèrent jusqu’à la cachoeira
do Mina à Maravilha où les anciens maitres vinrent les relancer. A la nouvelle de l’approche
des blancs, ils brúlèrent leur Mucambo de Maravilha et s’enfuirent jusqu’à Turuna
(COUDREAU, 1900, p. 130).37

Com a notícia da aproximação dos “brancos” o Mocambo do Maravilha foi destruído


pelos mocambeiros. Tal informação pode ainda ser narrada pela O. Coudreau, como
observamos acima. Cita ainda a autora a cachoeira do Viramundo, temida por suas águas
fortes, era considerada como uma boa forma de defesa e vigilância pelos mocambeiros.

Para os quilombolas o mocambo Maravilha é representado pelas ruínas, pelo que


ainda está lá, pelo espaço social conhecido. Segundo o Sr. Francisco, “o Maravilha é no Rio
Grande, acima do Caspacoro... até um tempo ainda tinha até uma muralha de forno que foi
muito queimado. E tudo era de barro, o forno, a panela, o prato, naquele tempo no interior
tinha uma panela de barro pra fazer a comida” (Entrevista com Francisco Adão dos Santos
Neto, 74 anos, 01 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira ).

O mocambo Maravilha teve grande repercussão, chegou a ser comparado ao


quilombo de Palmares. Barbosa Rodrigues também fornece uma descrição precisa, entre as
cachoeiras de Caspacouro e Mina. A descrição feita por Barbosa Rodrigues foi consultada e
reproduzida por Adolpho Ducke, que a transcreve quando tenta caracterizar os
“mucambeiros”,

existem espalhados outros d'estes descendentes do antigo “mucambo”


(colónia de escravos fugidos de Óbidos, Santarém etc.) do Maravilha,
que ficava um pouco ao Norte do equador, entre as cachoeiras do
Caspacouro e da Mina. Com a falta de hygiene n'uma região insalubre,

36
Tradução livre do autor: “Foi na cachoeira do Mina que os mocambeiros fizeram sua
primeira instalação imediatamente após a fuga. O mocambo estava localizado na margem esquerda
do igarapé chamado maravilha“ (COUDREAU, 1900, p. 67).
37
Tradução livre do autor: Os mocambeiros fizeram sua primeira instalação na cachoeira do
Viramundo, na margem direita do Trombetas. Não considerando-a segura, foram para a cahoeira do
Mina à Maravilha, onde os velhos mestres vieram reviver. Com a notícia da aproximação dos
brancos, eles queimaram seu mocambo do Maravilha e fugiram até o Turuna (COUDREAU, 1900, p.
130).

163
as moléstias dizimaram horrivelmente os mucambeiros, que de mais de
mil estão reduzidos a poucas dúzias de indivíduos; da actual geração,
muitos exercem o officio de “cachoeiristas”, sendo elles quasi
indispensáveis para uma viagem em qualquer um dos affluentes
encachoeirados do Trombetas. Ha entre elles homens fortes e sadios
que gozam d'essa perfeita immunidade contra o paludismo, que ás
vezes se observa na raça africana (DUCKE, 1910, p. 159-160) [sic]
(g.m.).

O Sr. Valdemar dos Santos, narra sua história e a história de sua família a partir do
alto rio Trombetas. A construção das narrativas tenta seguir uma lógica de ocupação
territorial, do alto para o baixo rio, para as “águas mansas”. As narrativas coligidas tentam
focar a histórias de seus núcleos familiares. Dos espaços sociais de morada e trabalho.
Para o seu Valdemar o outro motiva a desconfiança, a proteção era ficar na “moita”,
observar o outro desconfiado no “seu canto”,

Minha avó nasceu no Campiche, o nome dela Gertrudes, era prima da


Maria Vieira dos Santos. Foi a localidade deles, ai vieram baixando
vamos dizer ai chegaram no último ponto que foi o Turuna eles
passaram muitos anos lá, ai vieram de lá e passaram pro Campiche.
e nós viemos aqui pra Colônia né, Colônia um lugarzinho logo aqui
depois dessa curva grande, lá eu comecei assim ter família ai agente
vinha aqui fazia acampamento ai. Os velhos aqui no Curuá um lugar
muito grande, meus avós tinham morado, um lugar muito grande onde
tinha ai parou muito gente ai, eles começaram a baixar ficar nesse ponto,
nessa curva aqui nos moremos aqui baixo aqui nessa cachoeira aqui
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012,
em Cachoeira Porteira ).

Manter-se escondidos nas matas, rios, igarapés e lagos era para os quilombolas
uma estratégia de sobrevivência, já que sua cor os denunciava a primeira vista. O cronista
Gastão Cruls, relata que

num desses lances, acontece vir de descida uma canoinha. Mal seus
tripulantes nos vêem, recolhem-se rápido a uma das margens, cuja
ramaria os acoita […]. São, sem dúvida, pretos dos que habitam por
aqui, remanescentes dos antigos mocambos e, até hoje, ainda
desconfiados e temerosos (CRULS, 1973, p. 7).

Dessa forma se mantiveram por muito tempo os quilombolas de Cachoeira Porteira,


“amoitados”, como diz o Sr. Valdemar. Segundo ele não existia apenas um núcleo
habitacional, as pessoas moravam dispersas pelo território quilombola, “um ali, outro acolá”.
Assim, indica como o foco dos “negros” no quilombo de Curuá, que depois, com o fim das
perseguições, foram baixando,

Se morava uns dois, três, aqui na beira do rio... a gente morava por aqui
pelo igarapé, tinham vergonha, dessas coisas assim, então viviam a
maior parte amoitado, então é isso que convém pra informação de varias

164
pessoas, que não existia gente aqui, mais não, aqui era assim, morava
aqui vamos dizer, no Curuá era o foco dos negros, aqui logo em cima,
então depois eles baixaram e chegaram e ai ficaram, um mora ali, outro
mora pra aculá cercando a área, e é isso, então é mais assim como eu
lhe digo, amoitado (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, 31 de
março de 2012, em Cachoeira Porteira).

Continua o entrevistado,

Ai vieram descendo, moraram no Rio da Festa, grandes mesmo eram


esses pontos, que eu tô dizendo eles moraram em várias partes, mais as
grandes eram assim, eles saíram de uma comunidade e pararam no
Campiche, de lá eles pararam do Rio da Festa um acampamento
grande, de lá eles vieram aqui pro Tauari, ai vieram aqui pro Curuá, ai no
Curuá é a boca do Cachorro, é a divisão do rio (Entrevista com Valdemar
dos Santos, 77 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira).

Turuna, Campiche, Rio da Festa, Curuá, entre outros compõem o território histórico
referido aos quilombolas de Cachoeira Porteira. Este território está diretamente vinculado a
busca pela liberdade e autonomia dos quilombolas. Autonomia essa reconhecida por
autoridades coloniais, missionários e viajantes naturalistas. A guerra contra os mocambos
do Trombetas, era o combate pelas forças coloniais contra o conquista de autonomia, seja
territorial, seja econômica.

A fuga era a libertação e a ruptura da imobilização da força de trabalho escravo.


Com as “expedições de captura” o objetivo era imobilizar novamente essa força de trabalho.
Trazendo-os para dentro da fazenda ou da plantação de cacau. Assim, como os Baruyas
estudados por Godelier (2010)38, os quilombos do Trombetas se formaram a partir de atos
de atos de violências. Diferente do caso analisado por Godelier, por tratar de guerras
envolvendo grupos étnicos distintos. No entanto, a questão seria: o surgimento de novas
identidades a partir de atos violentos praticados a determinados povos.

Os “negros” trazidos como escravos do continente africano tiveram barbaramente


suas vidas e organização social transformada. Como estratégia dos agentes coloniais, foram
separados membros de uma mesma família e do mesmo povo. A fim de impossibilitar a
comunicação e a conspiração. No entanto, a partir dos atos de fuga, se agrupavam “negros”
de diferentes povos para constituir o quilombo.

A partir do agrupamento, passam a se reorganizar através de sociabilidades


distintas, constituindo uma forma nova de sociabilidade. Os quilombos do Trombetas

38
Sua pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 1966-1988. Este texto foi preparado
para a Huxley Memorial Medal and Lecture, 2008.

165
passaram necessariamente por este processo de sociabilização, que envolveu seja os
outros negros e negras fugidos, como também os povos indígenas da região.

Mesmo assim, como observou Aguiar (1943), os quilombolas compartilhavam


quase que os mesmos costume dos indígenas, o que lhe teria custado a “selvageria” na
visão do militar. No entanto, esses grupos reivindicam identidades étnicas distintas. A
relação de contato é dinâmica, assim como a tão falada “cultura”.

Assim, a identidade étnica enquanto remanescentes de quilombo é assumida em


distinção aos outros povos. Só podemos perceber tal situação a partir de situações
concretas de inter-relação entre os povos em contato.

6.3.1 Os processos diferenciados de territorialização

A “situação colonial” para Oliveira (1999, p. 21-22), ocasionou o que ele designou
de “processos de territorialização”. Em outros termos, esses “processos de territorialização”
correspondem a coletividades organizadas, que passam a formular identidades próprias
com mecanismos de decisão e representação, passando também a reestruturar as formas
culturais. Sendo, portanto um processo reorganização social.

A partir das fugas e perseguições os quilombolas passaram a territorializar o alto


Trombetas, atribuindo-lhes caracteres étnicos. Tal dinâmica de construção social do
território quilombola ocorreu de forma heterogênea. A partir de distintas trajetórias familiares.
As unidades familiares permaneceram mobilizadas territorialmente mesmo após a descida
do alto das cachoeiras.

Constituindo suas unidades residenciais ao longo do alto rio Trombetas, como


também na Porteira e localidades próximas. Esses núcleos habitacionais acabaram por
reunir famílias de distintas regiões do alto rio Trombetas. Assim, em Cachoeira Porteira
existem famílias originadas no Turuna, Campiche, Maravilha, Enseada do Mocambo, Rio da
Festa, Cajueira, Enseada, Traval, Curuá, Ilha da Giró. Além de outras referências no rio
Cachorro e Mapuera, a poucas horas da foz destes. Trajetórias marcadas por cronistas e
viajantes naturalistas.

Podemos destacar o local das capoeiras indicadas pelos quilombolas ao naturalista


Henry Coudreau, como sendo do mocambo Maravilha e Campiche, além de áreas entre as
cachoeiras do Travá e Jandiá, antes da Cachoeira do inferno (Cf. anexos 2 e 3). Estes locais
passam a ser descritos pelos quilombolas como locais de sítios antigos, onde se tinha a

166
capoeira, fornos e cerâmicas usadas pelos quilombolas, referem-se, também, a locais de
nascimento.

Os mapas confeccionados por Henri Coudreau foram trocados alguns nomes de


cachoeiras. Como observou Adolpho Ducke, “infelizmente, Coudreau em seu livro (Voyage
au Trombetas) trocou os nomes de algumas cachoeiras dados pelos mucambeiros e únicos
conhecidos no município” (DUCKE, 1913, p. 159). Foi o caso das cachoeiras do Jandiá e do
Ressaco. Para os quilombolas são Enseada e Tramalhete respectivamente (Cf. Anexo 4 ).

Segundo Peinado, o combate aos Cabanos, teve importantes consequências para


os quilombolas do Trombetas, que foi o “el reagrupamiento de los mocambos del Trombetas
por encima de las cascadas y la fundación del mocambo Maravilha […]. En Maravilha se
centralizaba y materializaba la unión de los diferentes mocambos del río” (ALONSO, 2004,
p. 184).

Como observou Alonso (2004), as tropas militares não foram às únicas estratégias
utilizadas pelo governo colonial para a reintrodução dos quilombolas no sistema colonial. O
governador Joaquim Raimundo de Lamare estabelece acordos com os missionários
franciscanos para que estes lhes oferecessem informações sobre os quilombos do
Trombetas. Assim, foi enviado o frei Carmelo Mazzarino, em 1868, na sua viagem aos
quilombos do Trombetas, especificamente no Campiche,

quando chegaram perto, os pretos que o levavam tocaram "gamba", (o


tambor), sinal de aviso. Estes, chegando no porto do Campiche, os
mocambeiros deserram em procissão, cantando hinos, para receber-lo.
A capelinha, ali existente, estava aberta, com todos os Stos. do
mocarnbo por eles mesmos, de varios tamanhos, arrumados em forma
de escada o degráus. Assim Frei Carmelo entrou e fiz uma oração
(Protásio Frikel apud Alonso, 2004, p. 192).

Como observou Funes, “o processo de fuga de escravos, individual ou coletivo,


geralmente ocorria em épocas de festas e mais especificamente, no caso da Amazônia, no
período de cheias” (FUNES, 2004, p. 4).

Segundo Funes, esses nomes são marcas. “No caminho para as “águas bravas” as
marcas dos mocambeiros foram ficando ao longo das margens do rio Trombetas, nos
nomes dados às cachoeiras, às ilhas, aos lagos e igarapés” (FUNES, 2004, p. 6). Assim, os
quilombolas batizaram a primeira cachoeira de Porteira, a “marca do início de um espaço
onde apenas seus donos podiam entrar, mocambeiros e nativos da região” (idem, p. 7).

167
Contudo, com territórios consolidados, os quilombolas estavam dispostos a
defendê-lo. Como descreveu Barbosa Rodrigues, ao chegar na Porteira, “por ella descia
uma canoa tripolada por mocambistas, que ouvindo alguns tiros, que davam meus
companheiros na cachoeira, vinham saber o que significava, como senhores do rio vinham
ver quem ousava transpor os seus domínios" (RODRIGUES, 1875, p. 23-24 apud FUNES,
2004, p. 7).

Funes chama a atenção para o fato dos quilombos terem se constituído no


Trombetas, muito antes da Cabanagem, em 1835, como escreveu Protásio Frikel. Segundo
levantou o autor, em 1827 teve "alguma destruição no rio Trombetas por uma expedição
dessa villa, que capturando muitos escravos, [entre eles o rei Atanásio] sempre escaparão
alguns que para ali continuarão a persistir nas mattas" (Ofício do Delegado de Polícia de
Óbidos, Dionizio Pedro Auzier. 14-01-1854 apud FUNES, 2000, p.10). O Atanásio atuava
como guia para os quilombos no Alto Trombetas, posteriormente, ficou famoso também o
“Negô” Basílio.

Segundo José Luis Ruiz-Peinado Alonso, no texto com o subtítulo “Cimarrones del
Trombetas”, entre 1800 e 1877, houveram vários ataques do governo colonial aos
quilombos do Trombetas. Eram “expediciones ele castigo, organizadas por plantadores y
tropas coloniales” (ALONSO, 1996, p. 61). A partir da cronologia abaixo, compilada por
Alonzo, podemos perceber como se movimentou o Estado Colonial, a fim de perseguir e
capturar os quilombos. Tais atos administrativos ocasionaram o espraiamento territorial,
ocasionando processos diferenciados de territorialização (Cf. anexo 5).

Como observamos na breve cronologia, não é possível tratar os quilombolas do


Trombetas como um caso isolado, isolado e analisado por si mesmos. Estes quilombos
estariam inseridos, como foi visto, em uma “situação colonial”. Podendo analisar os
quilombos no Baixo Amazonas como uma rede de inter-relações.

Funes descreve com muita proficuidade os meandros territoriais dos quilombolas do


Trombetas. O quilombo estava, “atravessando a Porteira e, com Paciência e muita briga, o
Inferno, chegava-se ao lugar onde ser livre era possível – Maravilha. Estes são nomes de
cachoeiras onde os mocambeiros se estabeleceram no Trombetas, as “águas bravas”
(FUNES, 2004, p. 7-8) Grifo do autor.

Os quilombos no alto rio trombetas, acima das cachoeiras representavam não só a


segurança, como também o segredo, eram “paragens” cheias de mistérios e prescrições.
Como analisa Acevedo e Castro, “a imagem da cacheira é sempre mítica. Teria sido o lugar
onde os negros estabeleceram sua primeira base territorial, a menos atingível, mantida em

168
segredo ante os estranhos” (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 2001, p. 49). Objetivavam viver
no “rio manso”.

Como observou Acevedo Marin e Castro, a qual constatou varias direções e fluxos
na descida do alto das cachoeiras, “o primeiro deslocamento seguiu a foz do rio Cachorro e
Mapuera; o segundo, orientou-se para uma área que tem como referência Cachoeira
Porteira e o terceiro, para as terras no médio Trombetas” (ACEVEDO MARIN & CASTRO,
2002, p. 50).

Essa “organização social alternativa do quilombo, reunindo índios, escravos e foros,


nasce com uma visibilidade negativa por representar limites e afrontas à sociedade
escravista” (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 2001, p. 51). O quilombo, ainda para as autoras
representava o domínio social dessa formação. O quilombo era também um espaço
multiétnico.

Descendo as cachoeiras, os quilombolas passaram a ocupar lugares que antes


serviam de “paragem”, pontos de apoio para as fugas mais longas, para o alto das
cachoeiras. O movimento de descida não foi homogêneo e numa direção única como
analisou Acevedo Marin e Castro (1998). Assim, mesmo após o instrumento legal que aboliu
a escravidão no Brasil, os quilombolas ainda “levantavam suas palhoças em lugares menos
visíveis, cuidando de manter uma cortina de floresta” (ACEVEDO MARIN & CASTRO, 1998,
p. 54).

Assim, o quilombo foi a convergência de pessoas para a construção de um espaço


autônomo. Longe do pelourinho e a chibata. As unidades familiares formadas a partir destes
espaços sociais, com a descida do ato Trombetas, ocuparam posições distintas no rio,
sempre com habitações. As trajetórias familiares convergiram para a constituição de
processos diferenciados de territorialização.

Assim, somos levados ao tempo que os mais velhos faziam utensílios domésticos
de barro, como a bilha, o alguidar, a igaçaba, o pote, o prato. Como falou o Sr. Francisco,
tudo era de barro. Como analisa Pereira Jr. (2009), alguns objetos têm funções rituais, além
das suas funções domésticas. O alguidar pode ser usado para a preparação de banhos de
santos. Na cozinha ele é utilizado para temperar e guardar a comida. Segundo Pereira Jr., o
alguidar “é usado nos ritos das casas de religião de matriz africana” (PEREIRA JR., 2009,
28).

As ruídas dos chamados mocambos têm estado no imaginário local, como um lugar
de liberdade e autonomia. Como colocou o Sr, Francisco, ela está lá! “Tem muralha de forno

169
que foi muito queimado” (Entrevista com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, 01 de
abril de 2012, em Cachoeira Porteira ). Os quilombolas como elemento identitário e
territorial, procedem a verbalização dos artefatos arqueológicos, classificando-os
empiricamente.

Segundo Almeida, tais elementos convergem para a constituição de


“territorialidades específicas”, “a qual podemos nomear delimitações físicas de determinadas
unidades sociais que compõem os meandros de territórios etnicamente configurados”
(ALMEIDA, 2006a, p. 25). São, portanto, “resultante de diferentes processos de
territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento coletivo que
convergem para um território” (idem).

O trabalho coletivo nas atividades agrícolas, nos castanhais, ou a limpeza de


caminhos e varadouros, é regido por regras e normas. Segundo Almeida, “as práticas de
ajuda mútua, incidindo sobre recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento
aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referência” (ALMEIDA, 2006a, p. 24). E, “a
atualização destas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas delimitações são
socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes” (idem).

Para Almeida, a territorialidade funciona como identificação entre os agentes


sociais, como defesa e força. Assim, é o fator identitário “que levam as pessoas a se
agruparem sob uma mesma expressão coletiva, a declararem seu pertencimento a um povo
ou a um grupo, a afirmarem uma territorialidade específica e encaminharem
organizadamente demandas face ao Estado” (ALMEIDA, 2006b, p. 26).

A partir das informações dos próprios quilombolas, foi possível coligir uma série de
lugares de referência para os agentes sociais. Tais referem-se a atividades extrativistas,
como também a sítios históricos e locais de pesca e caça.

Assim, “segundo Almeida, as denominações adotadas para nomear essas


territorialidades específicas, mais que meros termos ou expressões, consistem em
categorias classificatórias que apontam para as características intrínsecas e plurais da
identidade étnica” (ALMEIDA, 2006b, p. 52), nos caso ora analisado, dos agentes sociais
quilombolas.

6.3.2 Extrativismo: um modo de viver

Atualmente, os quilombolas de Cachoeira Porteira têm como atividade econômica


principal a coleta da castanha. No passado esta atividade era totalmente intermediada pelos

170
chamados “regatões” ou por empresas extrativistas que se instalaram no local, como a Casa
Porteira. A partir da implantação da REBIO Rio Trombetas, em 1979, da pressão exercida
sobre os chamados “regatões” pelo IBAMA e a decadência das empresas extrativistas, os
quilombolas vêm construindo alternativas para o escoamento da produção.

Segundo o Sr. Raimundo, a comercialização da castanha, até a década de 1970,


era feita de forma desonesta e exploratória por parte de comerciantes externos. Naquela
época,

nessa fase de setenta era muito marreteiro que tinha ai, atravessadores,
ai o que acontecia, eles ganhavam nossa castanha em três artes: no
tamanho de caixa, no preço e na mercadoria ai quando era no fim do
mês, do ano, chamava pro quilombola de preguiçoso. Às vezes caixa
que era quarenta e dois litros, media cinquenta e pouco, sessenta litros,
o negro não sabia, ai comprava dez caixas, eles tavam com quinze, vinte
caixas que eles faziam, roubavam todo o suor do preto (Entrevista com
Raimundo Adão de Souza, 65 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).

Segundo o Sr. Valdemar, a coleta da castanha, desde que começou a trabalhar


coletando castanha, esta esteve associada a realização de outras atividades extrativas,
como a “roça, com tiração de breu, madeira lavrado de machado, cortava cada pauzão pra
derrubar no machado, era aquele sofrimento doa pretos velhos” (Entrevista com Valdemar
dos Santos, 77 anos, dia 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

De acordo com o Sr. Vicente, aas áreas das chamadas “roças” estavam separadas
das áreas de extrativismo,

a roça é do outro lado do rio, no Curuá, de lá pra lá só os homens que


iam lá pro castanhal, as mulheres ficavam lá no Curuá. Lá era uma vila
igual a essa daqui da Cachoeira, depois que desceram de lá eles
passaram lá pro Muruci, onde eu nasci, de lá eles atravessaram e vieram
aqui pra Porteira (Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 15
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Apesar da perambulação e a mudança das unidades residenciais, as áreas dos


castanhais continuaram sendo exploradas pelas gerações seguintes. O Sr. Severino conta
que começou criança,

Eu andei com o papai, o papai ia pro castanhal e às vezes largava a


mamãe e não tinha parceiro […]
Eu comecei a andar com ele pelo mato e fui gostando, ai pronto, o meu
paneiro começou assim desse tamanho, ai eu fui crescendo ai foi que foi
aumentando o paneiro que eu tô até hoje nesta idade, mais também lá
no mato onde ele andava eu ando tudo agora, rápido que eu aprendi, foi
o tempo que ele não quis mais andar no mato, eu passei a andar,
continuei andando com o resto da moçada lá, ai daquele tempo pra cá

171
até agora eu ainda tô andando por lá […] no mesmo castanhal no que eu
comecei a trabalhar com o papai... continuo trabalhando lá até hoje, vou
todo ano trabalhar, eu acho que eu só vou parar de trabalhar quando...
(Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ).

A existência autônoma dos quilombolas de Cachoeira Porteira até a década de


1970, segundo Acevedo Marin & Castro (1998), foi alterada por dois cortes violentos: o
primeiro foi a chegada da Andrade Gutierrez e o segundo foi a criação da Reserva Biológica
do rio Trombetas. Tais cortes causaram efeitos distintos sobre a economia quilombola e
seus modos de vida.

A parir da década de 1980, tiveram que encontrar alternativas para escoar a


produção de castanha. Atualmente, a castanha produzida pelos quilombolas é vendida com
casca para empresários em Óbidos e Oriximiná (Exportadora Mutran Ltda e Exportadora
Florenzano, respectivamente). As relações sociais que envolvem a venda da castanha
perpassam a própria estrutura interna da comunidade.

Antes, as relações que eram controladas por agentes externos, hoje estão nas
mãos dos próprios quilombolas. Surge assim um sistema de aviamento distinto do que era
exercido antes. A dívida perdeu sua força, como forma de imobilização da força de trabalho
do castanheiro. Contudo, organizou-se um sistema complexo dentro de uma rede de
parentesco.

Alguns castanheiros conseguiram acumular recursos financeiros, assim abriu mão


do aviamento. Que pode ser em dinheiro ou em mercadorias. O preço pratica das
mercadorias, não diferem muito dos preços dos centros urbanos próximos, ao contrario. O
preço praticado na comunidade chega a ser inferior ao praticado nos supermercados da
Mineração Rio do Norte-MRN (um refrigerante em lata na comunidade custa R$ 2.00, nas
lanchonetes da MRN, o mesmo refrigerante custa R$ 3.00).

A relação “patrão-freguês”, atualmente, envolve uma série de relações sociais,


como redes de parentesco e compadrio, vizinhança e amizade. O calote da dívida, situação
que no começo do século XX poderia ocasionar a prisão, ou mesmo violência física,
atualmente perdeu força e passou a ser tolerado. Não recaem sobre o “caloteiro”, sanções
graves.

Tal fenômeno ocasionou um melhora significativa no preço praticado pela caixa de


castanha. Contudo, esse processo foi iniciado pela AMOCREQ, como relata o Sr,
Raimundo, que “depois de tantos tempos criou esse negócio de associação, de comunidade

172
e essas coisas, se organizando até que no momento tá chegando nesse ponto nos dias de
hoje”. Referindo-se a melhora no preço de venda da castanha.

Grande parte dos homens de Cachoeira Porteira se entrega a coleta e quebra do


ouriço da castanha. Esse é um trabalho majoritariamente masculino, com raras exceções,
registramos mulheres realizando esse trabalho. Durante o período de coleta da castanha, as
mulheres realizam o trabalho necessário nas plantações. Sejam as chamadas “roças” ou
pomares.

A coleta da castanha é realizada durante o inverno, nos meses de março a maio,


podendo se estender até julho/agosto, no caso de grandes safras. Durante o trabalho de
campo, vários homens tiveram que retornar dos castanhais para uma serie de reuniões e
atividades de mapeamento. Observou-se durante esses dias a “agonia” dos homens para
retornarem aos castanhais. O trabalho de coleta nos castanhais é realizado a partir de
formas simples de cooperação, como a limpeza das estradas, a construção do ponto de
castanha, onde fazem as refeições, dormem e embarcam a castanha.

Esta atividade extrativa é marcada por “tempos ecológicos” e relações sociais,


como rituais de coesão social. O festejo de Nossa Senhora de Fátima, no dia 19 de maio,
marca simbolicamente o fim da coleta e a volta dos castanheiros. A partir daí iniciasse uma
nova fase e a atenção voltasse para as atividades agrícolas. Contudo, este é uma modelo
ideal verbalizado. Na prática, caso a safra seja abundante, os castanheiros coletarão a
castanha até julho/agosto.

A coleta da castanha envolve conhecimentos da natureza e práticas adstritas aos


chamados “conhecimentos tradicionais”. Esses conhecimentos envolvem desde começar a
coleta no tempo certo, prevenindo a queda de ouriços sobre o corpo da pessoa até o corte
do ouriço, que pode ser praticado de duas maneiras: em pé ou apoiado no chão. Envolve
ainda certos trabalhos especializados, como a confecção de paneiros para o transporte dos
ouriços e da castanha.

Conhecimentos da natureza: enquanto esperam a época de coleta, os quilombolas


realizam outras atividades. No entanto, começando um novo ano, caso haja precipitação de
chuvas, como o volume maior do que o normal, a coleta da castanha pode ser antecipada. A
coleta, só irá começar quando diminuir o volume da água das chuvas. Os pontos de
castanha são construídos levando em consideração a área ocupada pelas castanheiras,
esses não são construídos embaixo de castanheiras.

173
Os Pontos de Castanha, o assoalho é feito de paxíuba, podendo ser coberto com
três tipos de palha: ubim, caranã ou palha branca. Os instrumentos de trabalho são: garfo
(estrutura de madeira para juntar o ouriço do chão), paneiro e “terçado”. Dependendo da
superfície do terreno o corte do ouriço pode ser realizado próximo do ponto ou não. No
entanto, a localização do ponto é geralmente próxima da margem do rio, facilitando o
embarque.

Ao começar a safra da castanha, os castanheiros que não têm a prática ou não


querem confeccionar seus paneiros, procuram os artesão especializados. A confecção do
paneiro é uma atividade especializada, os paneiros precisam ser resistentes para suportar o
peso do ouriço, por isso eles devem ser bem trançados e amarrados, com alças resistentes.
Atualmente, na comunidade de Cachoeira Porteira, existem mais de uma dezena de artesão
especializado na confecção do paneiro. O tamanho do paneiro quanto a capacidade, os
mais utilizados variam entre uma caixa e meia a duas caixas e meia de castanha. Os
castanheiros mais bem preparados fisicamente carregam paneiros de duas caixas e meia.

O corte do ouriço é perigoso, podendo o castanheiro decepar a mão. Os


quilombolas de Cachoeira Porteira utilizam dois tipos de corte, o Corte em Pé, com o ouriço
de castanha apoiado somente por uma das mãos. Esse corte é o mais perigoso, porém,
para os que cortam dessa forma, dizem ser o mais rápido. O Corte no Chão, este corte é
realizado com o ouriço apoiado no chão, ou sobre uma base de apoio.

De toda forma, o corte do ouriço não exige somente força física, atuam em conjunto
com a força, técnicas corporais adstritas ao que se convencionou chamar de conhecimentos
tradicionais. Este conhecimento tradicional auxilia o corte, o tornando mais produtivo e
eficaz. Tais técnicas corporais não são movimentos aleatórios, são conhecimentos
impingidos culturalmente. Toda técnica exige um aprendizado, que se impõe culturalmente
aos indivíduos, já que cada sociedade tem hábitos que lhe é peculiar. Tais conhecimentos
tradicionais sobre as habilidades do corpo assumem certa relevância nesse processo social
de coleta da castanha.

Da mesma forma a confecção de paneiros, são utilizadas técnicas que envolvem o


corpo por inteiro, não somente as mãos. Enquanto são trançadas tiras de cipó ambé com as
mãos, a base é apoiada pelos pés, até formar a base inferior, podendo ser tecido, a partir
daí, sentado ou de cócoras.

De fato, as técnicas corporais são fenômenos sociais. Há uma técnica corporal para
cortar o cipó, para descascar, para cortá-lo em tiras, para limpar, para secar, para começar
o teçume, para confeccionar a parte inferior, para montar as estruturas, para fazer a beira,

174
para fazer o acabamento. A confecção do paneiro abrange distintas técnicas corporais. Esse
conhecimento tradicional se associa a utilização dos recursos naturais e ao conhecimento
aguçado do território. Muito útil no caso do paneiro de cipó ambé, é saber que o cipó de
igapó pode causar coceiras, diferente do cipó de terra firme.

O período de coleta da castanha é uma época de muito movimento na comunidade.


Como os quilombolas não dispõem das embarcações necessárias para o transporte. Sendo
assim, realizam equipe fretes de embarcações do período da safra da castanha, o que é
repassado ao preço.

Os períodos de “internação” nos castanhais variam. A primeira viagem pode ser


somente para juntar os ouriços e cortar uma parte para vendê-la, como vimos a castanha é
vendida na própria comunidade.

A castanha de Cachoeira Porteira está sendo vendida em Óbidos, a viagem custa


aproximadamente dois dias, caso o barco não pare em Oriximiná. O Desembarque é rápido
e feito pelos próprios trabalhadores do comprador externo, nesse caso a Exportadora
Mutran Ltda., fundada em 1966, em Marabá.

Os castanhais utilizados pelos quilombolas de Cachoeira Porteira perpassam


complexas relações sociais. O castanhal, não pertence a um dono, é um recurso de uso
comum. No entanto, ocasionalmente, os castanhais são “batizados” com nomes de família,
ou de pessoas, geralmente uma pessoa considerada antiga e já falecida. Os castanhais
utilizados remetem aos mesmos castanhais utilizados no século XIX.

Os pontos de castanha são passados de pais para filhos, existem pontos, como o
Pirarara (castanhal dos mocambeiros que moravam no Campiche), o Ambrosio, a Serra dos
Vieira, Cutraval, Tajá, Rio do Velho, Caxipacoré, Zé Vieira, Velho Carlos, Traval, Enseada,
Curupira, Ambrósio, Capoeira, Jeju, Paraná do Florêncio, Nicolau, Chapéu, Mungubal,
Castanhalzinho e Cachimbo, que remetem a cinco ou seis gerações de quilombolas. Os
quilombolas sabem a potencialidade de cada castanhal, tem castanhais que chegam a
produzir cerca de 400 caixas, 800 caixas, ou os mais produtivos com 4.000 caixas.

Os Pontos de Castanha envolvem, não só os castanhais, mas as formas de aceso


a esses castanhais, como igarapés, furos e varadouros. Alguns marcados por entidades
míticas, encaradas como moradoras perpétuas daqueles lugares. Essas entidades são
recorrentes em cachoeiras, igarapés e varadouros. Podemos assim, citar o Pretinho do
Porão, habitante do fundo do rio, que vaga pelos porões da Cachoeira Porteira. Podendo
ainda ser visto no varador do Cachorro.

175
As áreas de uso comum são representadas como prioritárias para a reprodução
física, social e cultural dos quilombolas. Contudo, segundo eles, o sistema de uso comum é
atribuído aos mais velhos, como “coisa dos antigos”. A designação dos castanhais está
diretamente ligada ao estabelecimento dos Pontos de Castanha e não a apropriação privada
do castanhal. Esse sistema pode ser explicado da seguinte forma,

o castanheiro não pode dizer esse castanhal é meu, negativo se tiver


castanha espalhado o outro pode chegar e pegar, só não pode pegar o
que já está recolhido, o castanheiro tem que dizer esse castanhal é
nosso, é de todos nós a gente tem pontos de trabalho e cada um tem um
ponto, já é uma coisa muito de muito tempo, então cada um vai
colhendo, vai fazendo coleta (Entrevista com Ivanildo Carmo de Souza,
Presidente da AMOCREQ-CPT, dia 04 de abril de 2012, em Cachoeira
Porteira ).

O trabalho nos castanhais envolvem modalidades distintas de cooperação simples.


No tempo da coleta, são formadas as “equipes”, a noção de “equipe” é semelhante a de
“parceiros”. Os integrantes das “equipes” podem ser: parentes, cunhados, sogros, amigos
ou compadres. Neste ponto, não existe o domínio do parentesco como única forma de
composição das “equipes”.

Esse sistema foi interrompido pela chegada das empresas extrativistas e


arrendatários, que passaram a privatizar os castanhais. O castanhal é um bem coletivo,
considerado livre, pertencente a comunidade. É recorrente encontrar artefatos de cerâmica
confeccionados pelos “antigos” nos sítios históricos, entre eles os “antigos” Pontos de
Castanha. Os Pontos de Castanha são feitos e refeitos todos os anos, no mesmo local. Com
algumas alterações nessa regra.

Para o acesso aos pontos de castanha dentro de igarapés, depende do fluxo das
águas. No “pico” da cheia dos rios, as canoas sobem próximo as cabeceiras, facilitando o
escoamento da castanha. Caso a cheia não seja grande, terá que ser adotada uma outra
estratégia, como construir o Ponto de Castanha próximo da água.

Assim, a partir de informações dos próprios quilombolas registramos os seguintes


castanhais:

CASTANHAIS RIO TROMBETAS: 26, Uanã, Gavião, Fumaça, Calção, Pirarara,


Cutraval, Munguba, Caxipacoré/Caspacoro, Rio do Velho, Tajá, Jatuarana, Zé Vieira, Velho
Carlos, Da Beira da Estrada, Igarapé do Peréua (Velho Carlos, Da Beira da Estrada, Água
Preta, Maranhão, Castanhalzinho, Apaga a Luz, Vai Quem Quer, Rui, Sorriso, Lago, São

176
Domingos e Acapu), Igarapé do 52 (Lata, Taperebá, Limão, Água Azul e Coitinho), Tauari,
Km 23: Suçuarana, Km 20, Traval, Enseada, Cumaru.

CASTANHAL RIO CACHORRO: Curupira, Buçu, Ambrósio, Tamaquaré, Sauba,


Três Buracos, Capoeira, Jeju, Paraná do Florêncio, Viramundinho, Igarapé Grande, Nicolau,
Chapéu e Serra dos Vieira.

CASTANHAL RIO MAPUERA: Mungubal, Castanhalzinho e Cachimbo.

Dessa forma o território histórico quilombola, com relação à utilização dos


castanhais corresponde há: trinta e seis castanhais no rio Trombetas, quatorze castanhais
no rio Cachorro e três castanhais no rio Mapuera. No entanto, de acordo com o Sr. Ivanildo,
somente onze castanhais ficaram dentro da área de pretensão. O que ocasionará tensões
sociais futuras, pois com o crescimento da comunidade, serão necessárias novas áreas de
uso. O que não aconteceria se ficassem dentro da pretensão dos quilombolas os castanhais
antigos e mais produtivos.

A produção de castanha produzida pelos quilombolas do rio Trombetas tem sido


acompanhada e controlada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade-
ICMBio, que vem instituindo um rigoroso controle sobre a saída da produção de castanha do
interior da REBIO Rio Trombetas e FLONA Saracá-Taquera. Assim, passou a instituir uma
série de cadastros e termos de compromisso. Tais dispositivos consolidam mecanismos
autoritários e afetam diretamente a autonomia produtiva dos quilombolas.

Tais formas de controle tem gerado uma série de tensões, com a apreensão da
produção de castanha de quilombolas não cadastrados como vendedores, o prazo para
entrar e sair dos castanhais no interior das referidas unidades de conservação.

Tais mecanismos têm gerado insegurança e apreensão nos quilombolas de


Cachoeira Porteira. Pois utilizam tanto os castanhais que estão fora, quanto os que estão
dentro da REBIO Rio Trombetas. Segundo as lideranças da AMOCREQ, o prazo definido
pelos gestores da REBIO, não corresponde a realidade vivida pelos quilombolas de
Cachoeira Porteira que é de 15 d janeiro a 31 de maio, de acordo com a Cláusula Segunda,
do Termo de Compromisso firmado entre o ICMBio e a ARQMO.

Os limites da REBIO Rio Trombetas e da FLONA Saracá Taquera, é o rio


Trombetas. Assim, os quilombolas de Cachoeira Porteira, para se deslocar para Oriximiná
ou Óbidos, para a venda da castanha, passam necessariamente pelo rio Trombetas, trajeto
realizado desde seus antepassados. Assim, o ICMBio, impôs uma serie de normas para o

177
transporte da castanha pelo rio Trombetas. Restringindo direitos básicos, assegurados pela
Constituição Federa de 1988.

Segundo a Cláusula Terceira, do referido termo de Compromisso, ficam instituídas


fichas de cadastro de transporte. As associações devem encaminhar ao ICMBio as listas
com os castanheiros cadastrados (Cláusula Quarta). As aludidas infrações cometidas pelos
quilombolas são punidas com a proibição da entrada para o interior das unidades de
conservação (Claúsula Sexta). As comunidades das zonas Acapu, Mussurá, Jamari, Terra
Alto Trombetas e Cachoeira Porteira devem retirar suas papeletas de Controle com os
coordenadores das comunidades e associações (Cláusula Décima Quinta).

Assim, os quilombolas de Cachoeira Porteira estão sujeitos a quatro fichas de


cadastro: a) Autorização de Tráfego e Compra de castanha, b) Solicitação de Regatão, c)
Termo de Adesão, e d) Declaração de Coletor Tradicional.

Portanto, foram cadastrados na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira cem


castanheiros. Destes cem, dezessete são mulheres e oitenta e três são homens.

6.3.3 Calendários extrativistas e agrícolas

Com base nas informações sobre o território quilombola, elaboramos calendários


extrativistas, caça e pesca. Os calendários destacam a eficácia do conhecimento tradicional
associado as “relações ecológicas” de base territorial. Como observamos as situações
colocadas pela coleta da castanha e a localização dos Pontos de Castanha, o calendário
extrativo não é rígido, nem poderia ser.

Para os quilombolas o tempo ecológico é marcado por duas estações: inverno


(cheias dos rios) e verão (vazante). No entanto, essas estações não são rigorosamente
datadas. É recorrente os castanheiros declararem que coletam a castanha no inverno, a
ideia de inverno é a objetivação da “relação ecológica”. Este tempo está naturalizado. Se
perguntarmos para vários castanheiros: “quando começa o inverno?” teremos respostas
diferentes. Pois a representação do que é inverno é contingente. O inverno pode ter
começado em dias diferentes.

Segundo observamos na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, as


“relações ecológicas” podem ter bases territoriais, atreladas a fatores de pertencimento
étnico, por exemplo: tal castanheiro usa em tal época do ano aquele castanhal dos Vieira. A
noção de castanhal dos Vieira, não significa a apropriação privada dos recursos naturais. É

178
a indicação a um Ponto de Castanha. O castanhal como um bem, é coletivo. É um recurso
natural de uso comum.

Da mesma forma as atividades agrícolas, elas são realizadas em espaços físicos


distintos dos castanhais. A conciliação das duas atividades, só é possível a partir da divisão
social e sexual do trabalho. Tais divisões não são rigidamente seguidas. O trabalho nas
chamadas “roças” é realizado durante o ano todo, pois no inverno envolve as capinas e
cuidado necessário para não deixar crescer ervas prejudiciais a colheita.

Segundo o Sr. Raimundo Vieira, sua família trabalha nos castanhais “ai pra cima,
pro Ambrósio, o Felisberto, Curupira, no rio Cachorro, começava desde ai de baixo, Serra, ai
vai pro Chapéu, a Capoeira, Buçun, Saúva, Cachorro, agora tem o “Rio Grande” (rio
Trombetas) começa aqui de baixo, o Traval, vai até o Sessenta” (Entrevista com Raimundo
Vieira da Costa, 68 anos, 14 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ). Procedendo a uma
digressão sobre o passado, recorda que as chamadas “roças” eram distantes dos
castanhais. Sobre a Porteira ele lembra que “a roça ficava perto de casa, esses capoeirão,
tudo era nossa roça, aqui pra traz […] foi lá naquelas mangueiras que eu nasci” (Entrevista
com Raimundo Vieira da Costa, 68 anos, 14 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

A partir do depoimento do Sr. Severino, podemos observar um sistema agrícola


estruturado por relações de sociais que perpassam formas simples de cooperação, como
também a distinção entre “roça” e “roçado”. Segundo sua descrição os sistemas agrícolas
podem ser descritos da seguinte forma,

Faz assim: se você planta este ano aqui, você coleta a mandioca,
quando for no outro ano você deixa passar dois três anos pra você voltar
pra cá de novo, que dê de roçar, é assim que a gente trabalha, não é
todo ano só num local não.
Tem muitos que plantam, o arroz, o milho, nós mesmo é só a mandioca,
banana, às vezes macaxeira.
Ano retrasado nós fizemos, tem vezes que você colhe negócio de dez,
vinte sacos, só pro consumo, você faz, coloca ai e vai comendo.
Às vezes chega um vizinho que não tem. Este ano os meus irmão estão
sem roça, eu vou ter que dar da minha pra ele, quando um não tem, o
outro dá.
Um roçado de dois hectares, pra você trabalhar, você não dá conta, só
duas pessoas não dão conta, você vai ter que pegar pelo menos umas
cinco ou seis pessoas, pra ajudar no negócio da capina, pra poder você
ter mais um lucro, só duas pessoas pra você trabalhar nisso ai, você não
vai ter lucro, por que o mato vai crescer, pra você trabalhar pra nós pra
cá, você tem trabalhar na mata, por que na capoeira você não dá conta,
você roça hoje, você queima ai se você passar três dias sem meter a
planta lá, quando você chegar lá já está verde de capim, às vezes antes
da planta nascer. Você tem que trabalhar na mata, você passa dois três
meses sem capinar, é a vantagem que tem pra nós pra cá, que na mata.
a gente troca, mais a gente troca […] uns dias, ai eu trabalho dois dias lá
pra ele, ou um dia, ai ele vai lá e me ajuda, mais que a gente trabalha

179
aqui é assim (Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira).

No dia 12 de maio de 2012, durante a oficina sobre atividades agrícolas e


extrativas, realizada pelo agrônomo Erevaldo Almeida e pelo economista Divino Hércules,
foi possível conversar com os Srs. Manoel Francisco dos Santos e Miguel Vieira da Silva
sobre os calendários agrícolas. A partir dessas informações e das informações coligidas a
partir da entrevista do Sr. Severino, podemos construir o seguinte calendário,

Quadro 3 - Calendário Agrícola-Preparação do Roçado

Calendário Agrícola-Preparação do Roçado


Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Derrubada

Fogo
Plantio
Capina
Elaboração: Emmanuel Jr.

Na coluna direita estão os processos necessários para a realização das chamadas


“roças”. Nas colunas seguintes estão os meses do ano. A partir das entrevistas e das
concepções dos entrevistados sobre inverno e verão, pudemos elaborar as distintas
estações nas cores amarela para o inverno e vermelha para o verão.

Idealmente, para os entrevistados o inverno pode ser definido como sendo de


dezembro a maio e o verão de junho a novembro. Este é, contudo, um modelo ideal, na
prática as estações do ano variam de acordo com as atividades exercidas.

Do mesmo modo como procedemos a construção do calendário dos processos


necessários para a realização das chamadas “roças”, construímos o calendários das
espécies cultivadas pelos quilombolas. A lista coligida não diz respeito as mais utilizadas,
mas sim as plantadas no último ano,

180
Quadro 5 - Calendário Agrícola-Colheita

Calendário Agrícola-Colheita
J F M A M J J A S O N D
an ev ar br ai un ul go et ut ov ez
Mandioca
Macaxeira
Banana
Melancia
Jerimun
Cana-de-açúcar
Milho
Feijão
Elaboração: Emmanuel Jr.

Quando o castanheiro vai para o castanhal, caso passe mais de um mês, sua
família é responsável pela capina e zelo das chamadas “roças”. Caso contrário, elas são
tomadas pelo chamado “mato”. Caso o chefe de família e a sua esposa pratiquem a coleta
da castanha, não tendo ninguém para cuida da “roça”, inevitavelmente esta ficará coberta
por “mato”.

O que queremos mostrar com essa descrição? As atividades agrícolas e


extrativistas configuram-se como relações sociais. Segundo Almeida, as chamadas “roças”
expressariam maneiras de viver e de ser. “A denominação ‘roça’ compreende um estilo de
vida que vai desde a definição do lugar dos povoados, passando pela escolha dos terrenos
agriculturáveis” (ALMEIDA, 2006b, p. 51).

Assim, “essa designação expressa, ademais, uma representação particular do


tempo […] traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos, e uma noção de
espaço muito peculiar orientando o uso simultâneo, para cada unidade familiar, de diversas
áreas de cultivo” (ALMEIDA, 2006b, p. 51). “A chamado roça trata-se de uma referencia
essencial que sedimenta as relações intrafamiliares e entre diferentes grupos familiares,
além de assegurar um caráter sistêmico à interligação entre os povoados” (idem).

Na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, as chamadas “roças” no verão


constituem a principal atividade, seu produto é tanto para o consumo próprio, quanto para o
circuito local. De acordo com o Sr. Severino, “você tem pouco lucro, por que aqui cada um
faz, você tendo a roça aqui é muito fácil pra você viver, tem o peixe ai mesmo, você vai ali
na beira, já tem a farinha e sal” (Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira )..

181
No inverno é a atividade de coleta da castanha que orientam os rituais de coesão
social e as festividades religiosas. Como a festa dos castanheiros, que acontece
conjuntamente a festividade de Nossa Senhora de Fátima.

Contudo, as chamadas “roças” coexistem as atividades extrativistas, segundo o Sr.


Severino, os quilombolas trabalham “com a roça, aqui é, aqui fora disso a gente vai tirar um
breuzinho pelo mato […] tem vezes que a gente passa semana ai pra dentro do mato,
tirando breu” (Entrevista com Severino Adão da Costa, 36 anos, 14 de maio de 2012, em
Cachoeira Porteira ).

Sendo maior a sua necessidade e presencialidade na comunidade no período


chamado pelos quilombolas de verão. As chamadas “roças” e o extrativismo autônomo
compõem a trama social dos quilombolas, que afunila para a reivindicação identitária.

As noções quilombolas de tempo podem, contudo se aproximar da noção de


“tempo ecológico” abordado por E. E. Evans-Pritchard (2002), que segundo seriam os
reflexos das relações com o meio ambiente. Podemos assim, analisar o “ciclo ecológico” e
suas respectivas atividades. Segundo o autor, ao analisar o “tempo ecológico nuer”, escreve
que “o conceito de estações deriva mais das atividades sociais do que das mudanças
climáticas que as determinam” (EVANS-PRITCHARD, 2002, p. 109).

Os quilombolas de Cachoeira Porteira combinam estações do ano e atividades


extrativas e agrícolas. O período do inverno, que corresponde à coleta da castanha é o
tempo que residem nos castanhais. O período do verão, que corresponde às atividades
agrícolas, portanto a maior presença de homens na comunidade.

O extrativismo, contudo, não está orientado somente para coleta da castanha,


coexistem outros tipos de coleta e extração. Durante o trabalho de campo, juntamente com
a oficina sobre atividades agrícolas e extrativas foram elencados as nove espécies mais
consumidas pelos quilombolas. A partir dessas atividades foi possível delimitar os locais de
coleta ou extração.

182
Quadro 6 - Calendário Extrativista

Calendário Extrativista
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Castanha
Açaí Jussara
Açaí de Toicera
Piquiá
Bacaba
Patauá
Buriti
Breu
Copaíba
Elaboração: Emmanuel Jr.

Muito específico se mostrou o caso do açaí, encontrado em abundância no rio


Mapuera. Enquanto que as outras espécies podem ser encontradas em quase todo
território.

A partir da entrevista realizada com o Sr. Severino Adão e Raimundo Vieira,


podemos construir um esquema geral das atividades referidas à pesca e caça. Assim, foi
possível descrever pormenorizadamente das espécies que constam no habito alimentar dos
quilombolas. As caças, como os peixes são distinguidos de acordo com a época do ano:
peixes de verão e peixes de inverno. Igualmente as caças. Certos tipos de macacos não são
consumidos durante o período de seca, pois estão infestados de parasitas na pele, como o
Coamba, ou então estão muito magros.

As aves são consumidas o ano todo, pois além do consumo da carne, são extraídos
óleos, utilizados tanto no preparo de alimento, quanto em praticas de medicinais. É oportuno
notar que algumas prescrições acompanham o consumo de carne de caça. De acordo com
o Sr. Raimundo, “se o cachorro caça, ai não é todas as mulheres grávidas que podem
comer, porque o cachorro fica panema, e ai vai ter que fazer banho pra dar nos cachorros, ai
a mulher termina perdendo o bebê” (Entrevista com Raimundo Vieira da Costa, 68 anos, 14
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

A crença a panema pode atingir animais, objetos e pessoas. A sua existência está
ligada a existência de benzedores, ou autoridades religiosas habilitadas ao preparo de
banhos. Segundo Galvão, a “panema, é, porém, um mana negativo. Não empresta força ou
poder extraordinário; ao contrário, incapacita o objeto de sua ação” (GALVÃO, 1955, p.111).
Segundo o autor, seu significado está associado à “má sorte”, “desgraça” e “infelicidade”.
Trata-se de incapacidade de ação, podendo reconhecer as causas.

183
A panema, segundo Galvão, resulta da quebra de prescrições e podem ser tratadas
com simples banhos e defumações, outras são mais “venenosas”, como as que envolvem
mulheres grávidas e o consumo de carnes de caça e peixes, ou ainda mulheres
menstruadas. Para o autor, “não é tanto pelo medo dos efeitos da panema em si mesma,
como pelas consequências do tratamento para afastar a panema. Acredita-se que a cura
fará mal a mulher. Um aborto é o resultado mais provável” (GALVÃO, 1955, p. 113).

O tratamento, nesses caos é complicado, proceder ao tratamento da panema


contraída de uma mulher grávida é irresponsabilidade. Segundo Galvão, a pessoa ou objeto
que contraiu a panema tem que estar na presença da mulher e que ela presida o
tratamento. Contudo, essas crenças são resquícios de tempos imemoriais, ou de ditas
“sociedades primitivas”. Estas crenças são dinâmicas e heterógenas, coexistem com
atividades do dia-a-dia, como o extrativismo, a chamada “roça”, a pesca e a caça.

Quadro 7 - Calendário Caça

Calendário Caça
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Queixada
Catitu
Anta
Paca
Veado
Capivara
Coata(Coamba)
Guariba
Macaco Prego
Caiarara
Cuxiu
Cutia
Inambu
Mutum
Jacú
Cujubim
Jacamim
Arancuã
Pato do mato
Elaboração: Emmanuel Jr.

184
As áreas de caça se estendem muito acima, no alto rio Trombetas, muitas vezes
são narradas em relação a acontecimentos marcantes, fazendo-os lembrar de lugares.
Procedendo a uma descrição minuciosa dos acontecimento,

Numa ocasião eu tava lá no Turuna sozinho, tava caçando gato ainda


nessa altura, nun casquinho que dava duas latas de farinha, ai quando
foi uma noite eu vinha baixando pra lá é só serra de ambos os lados, eu
ouvi um grito, agora eu arrumei, não tem jeito, ai vim baixando, um pra
trás e outro pra frente, mais ai o riozinho bem estreitinho também, e eu
naquele casquinho, e ali não tinha onde dormir por que era só pedra, ai
lá embaixo tinha um pau que caiu no igarapé, ai eu andei até chegar no
pau, e ali você não entende bem pra onde é grito, você precisa escutar
bem, ai quando eu fui chegando perto do pau eu ouvi o baque na água, e
eu: agora eu tô lascado, tem um pra frente e outro pra trás, ai quando eu
cheguei lá era anta, ai uma apitava pra trás e outra pra frente. Eu gostei
de trabalhar no Turuna, por que lá que eu fiz minha família (Entrevista
com Francisco Adão dos Santos Neto, 74 anos, dia 23 de maio 2012, em
Cachoeira Porteira ).
As atividades de pesca são realizadas o ano todo. Diferenciam as espécies de
peixes de acordo com a época do ano e de acordo com o ambiente. Exemplos da
diferenciação ambiental são os chamados pacu; eles distinguem três espécies de pacu:
pacu cana, pacu camunani e pacu canamoco. De acordo com o Srs. Raimundo e Severino,
esses peixes são característicos de áreas de cachoeiras.

Quadro 8 - Calendário Pesca

Calendário Pesca
A
Jan Fev Mar br Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Pescada
Tucunaré
Aracu
Pacu Cana
Pacu
Camunani
Filhote
Piranha
Trairão
Curimatã
Canamoco
Peixe
Cachorro
Sardinha
Surubim
Jaraqui
Tambaqui

185
Dourada
Jandiá
Pirarara
Cujuba
Aruanã
Saúna
Traira
Pirarucu
Baruca
Elaboração: Emmanuel Jr.

Os produtos das atividades extrativas, agrícolas, de e pesca, têm destinações


diferentes. A produção da castanha é comercializada na sua maioria com Oriximiná e
Óbidos. Segundo o Sr. Raimundo ele, antes da popularização dos motores, fazia essa
viagem no remo, “pra Oriximiná no remo era dois dias e meio, em Óbidos de remo, era três
dias de viagem”( Entrevista com Raimundo Vieira da Costa, 68 anos, 14 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ). Com relação aos outros produtos, eles circulam na comunidade em
redes de relações que vão de ofertas a parentes e amigos, como também a comercialização
em pequena escala e em circuitos muito localizados.

6.4 SANTOS E VISAGENS


6.4.1 “Evangélicos” e “católicos”

A vida religiosa dos quilombolas da comunidade de Cachoeira Porteira é


semelhante a de outras “comunidades amazônicas” hoje em dia. Está marcada por
elementos de uma pluralidade de doutrinas religiosas. Entre as denominações denominadas
comumente como “evangélicas” podemos registrar a Igreja Evangélica Assembleia de Deus,
existe também um templo desativado da Igreja Batista.

Segundo os quilombolas, as denominações evangélicas chegaram após a


instalação da Andrade Gutierrez, em 1973. Até então predominava a religião católica. Como
vimos, o rio Trombetas é percorridos por missionários de denominações católicas desde o
século XIX, mantendo uma forte influência sobre o credo religioso dos quilombolas. Como
relatou Frikel, Frei Carmelo Mazzarino rezou uma missa no quilombo do Campiche, em
1868.

Os santos católicos são muito populares no rio Trombetas. Segundo recorda o Sr.
Valdemar, poderiam ser citados Nossa Senhora de Fátima (festejada dia 19 de maio),
Nossa Senhora de Nazaré (festejada em abril), Santa Luzia (festejada em junho), São

186
Raimundo (festejado em junho), São Raimundo (festejado em junho), Santo Antonio
(festejado em agosto) e São Benedito( festejado em agosto).

Segundo o Sr. Valdemar, se festejava na Porteira o Divino Espírito Santo, até hoje
sua família conserva o templo ao lado de sua casa. Segundo ele, foi com a chegada da
Andrade Gutierrez que veio a Nossa Senhora de Fátima, onde os quilombolas acabaram se
apropriando da “santa da Andrade”. Os festejos de Nossa Senhora de Fátima acontecem
entre os dias 11 e 19 de abril. Ele fala que ainda existiam os festejos para São Sebastião,
organizado pelo Sr. Felipe Xavier (falecido), eram nove noites de festa,

a era bumbo, o tambor, eles faziam eles mesmo, matavam o veado,


deixavam secar a pele, e fazia os grampos eles mesmo, pra apertar
aquele couro naquelas palminhas, ai usavam aquela marreta, duas, uma
maior e outra menos, ai batia aquilo sentado em cima, acompanhando as
músicas de antigamente, e tinha o cavaquinho, o banjo e tinha a violino
[…] inclusive esse instrumento serve pro gambá, tudo, então a saia
arrastava no chão, era assim.
Em todas essas comunidades, que era antigamente povoado, na
Colônia, sempre tinha um grupo separado do outro […], vinham os
santos tirando esmola, até onde ele chegava, ele convidando, até o
Erepecú, a mesma coisa de lá com os santos de lá, às vezes era duas
três canoas pra levar o que eles vinham ganhando (Entrevista com
Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de maio de 2012, em Cachoeira
Porteira ).
Os festejos dos santos católicos envolveram instrumentos e rituais atrelados a
“cultura negra”. Segundo o Sr. Vicente, “o gambá era do tempo dos pretos velhos, pegavam
aqueles tora desse pau, aí faziam aquilo, eles batiam com a mão, no tempo da festinha
deles” (Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 15 de maio de 2012, em
Cachoeira Porteira ). Ainda segundo o Sr. Vicente,

os festejos de antigamente era bom, ali naquele Curuá, faziam festa era
nove noites de festa, dançavam, quando amanhecia o dia aquele que
tinha que fazer seu serviço ia, o outro ia lavar roupa, até anoitecer,
naquele tempo a cachaça era uns garrafões, assim, que chamavam
frasqueira, o copo deles era uma cuia que tinha assim, naquele tempo
dos antigos ali era só os velhos, quando secava aquela frasqueira
puxava uma outra(Entrevista com Vicente Vieira dos Santos, 75 anos, 15
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ) (g.m.).
Atualmente, o festejo de Nossa Senhora de Fátima, mobiliza socialmente a
comunidade quilombola de Cachoeira Porteira. Realizado entre os dias 13 e 19 de maio,
marca simbolicamente o fim do período da safra da castanha. Os quilombolas esperam o
ano todo para a chegada do festejo. O festejo de Nossa Senhora de Fátima, é o principal
ritual de coesão social da comunidade.

187
6.4.2 Os festejos de Nossa Senhora de Fátima

Os fogos de artifícios romperam o silêncio da manhã do dia 11 de maio de 2012.


Dava-se assim, início as festividades de Nossa Senhora de Fátima. Durante realização do
trabalho de campo, entre os dias 10 a 31 de maio de 2012, pudemos participar dos festejos
de Nossa Senhora de Fátima.

A salva de fogos foi solta diariamente, até o encerramento das festividades no dia
19 de maio. Os fogos pela manhã eram com menos frequência. No entanto, à tarde eram
diários. Entre as 16:00 e 17:00 horas, os responsáveis pela festividade percorriam com a
santa pela comunidade, em direção ao local, de onde sairia a procissão a noite.

A saída da santa era anunciada com a salva de fogos. Quando anoitecia, às luzes
dos postes, fornecida por um motor de luz localizado no centro da comunidade, de quase
nada adiantam diante de noites escuras. Aproximadamente, perto das 19:00 horas, as
pessoas iam se reunindo diante do local de onde sairia a procissão. As mulheres e as
crianças eram em maior quantidade.

Com as pessoas reunidas, eram distribuídas velas, envolvidas por papel de seda
em suportes confeccionados cuidadosamente, para que não pegue fogo. As velas e a
escuridão tinham um ar melancólico. Todos apostos, a comissão organizadora dos festejos
dava inicio a procissão. Duas pessoas seguravam o andador com a santa, todos entoavam
ladainhas e cânticos.

A procissão caminhava da casa ou lugar onde ela ficou temporária mente


hospedada até a igreja de Nossa Senhora de Fátima, na própria comunidade. A saída a
procissão era anunciada com uma salva d fogos, como também a sua chegada à igreja.
Quando a procissão chegava na igreja a santa entrava primeiro e tomava o seu lugar
próximo ao púlpito. Enquanto isso os participantes iam tomando os seus lugares.

Essa foi a rotina da santa durante os dias do festejo. Após a celebração, em uma
“barraca” improvisada, eram vendidas comidas como mingau, sanduíches e refrigerantes.
Durante os primeiros dias muitos castanheiros ainda estavam para os castanhais. Eles
foram chegando na medida que se aproximava os dias finais dos festejos e da tão
aguardada festa.

Durante os dias 11 e 19 de maio, a Nossa Senhora de Fátima fez o seguinte trajeto:

1º dia (11 de maio de 2012): Capela do Divino Espirito Santo;

2º dia (12 de maio de 2012): Casa do Sr. Willian e Dona Benta;

188
3º dia (13 de maio de 2012): Casa da Dona Cleomar;

4º dia (14 de maio de 2012): Casa do Sr. Claudemir;

5º dia (15 de maio de 2012): Casa do Sr. Valdemar;

6º dia (16 de maio de 2012): Casa do Sr. Manoel e Dona Maria;

7º dia (17 de maio de 2012): Escola;

8º dia (18 de maio de 2012): Casa da Dona Leonila;

9º dia (19 de maio de 2012): No último dia a santa da comunidade ficou na igreja.
Os participantes que vieram da comunidade quilombola Tapagem trouxeram a Nossa
Senhora de Fátima da Tapagem. A santa da tapagem percorreu a comunidade quilombola
de Cachoeira Porteira até a igreja Nossa Senhora de Fátima, enquanto a santa da
comunidade a esperava.

O local de onde sairá a santa é escolhido no dia anterior. No festejo realizado em


2012, participaram quilombolas da Tapagem, Abuí, Paraná do Abuí e Mãe Cué. Participam
também indígenas de aldeias no rio Mapuera.

A banda e a aparelhagem de som chegaram no dia 19 pela manhã. Começaram


então a instalar o som e a fazer testes. O campeonato de futebol começou cedo, onde
disputaram times da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira e das outras
comunidades participantes. Disputaram também o torneio o time dos indígenas, formados
por Wai Wai do rio Mapuera.

Ao redor do campo de futebol, foram armadas barracas, onde os homens e


mulheres que não estavam jogando se confraternizavam, consumiam as comidas e bebidas
disponíveis para venda. O torneio estava sendo organizado por uma comissão diferente das
celebrações de Nossa Senhora de Fátima.

Terminando o torneio, ao cair da noite começou o som “mecânico” e depois a


banda convidada. A festa durou a noite toda e o dia seguinte também. O período da festa foi
marcado pelo consumo de bebidas alcoólicas, dança e namoros. Esta é uma época que os
jovens da comunidade interagem com as jovens das comunidades vizinhas. Digo os jovens,
porque há em Cachoeira Porteira um número maior de homens que o número de mulheres.

O som foi encerrado por volta das 17:00 horas do dia 20. Com o final da festa os
barcos zarpam e as visitas vão embora. Retornando a rotina costumeira da comunidade.
Alguns, depois da festa, tentam buscar um novo fôlego para retornarem ao castanhal.

189
6.4.3 Benzimentos

Na comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, as pessoas procuram os


chamados benzedores para solucionar problemas de saúde física ou mental. A prática de
benzimento é uma prática de “medicina tradicional” heterogênea. Podemos identificar
resumidamente duas situações distintas. A primeira é a utilização de remédios produzidos a
partir de folhas, cascas de madeira, raízes, entre outros. A segunda é a realizada através da
oração, também chamadas rezas. Utilizando, por vezes um ramo verde.

A segunda situação é o caso do Sr. Valdemar, considerado o benzedor da


comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, segundo ele era benze quebranto, dores no
corpo e tantos outros problemas físicos e espirituais. Ele é devoto do Divino Espírito Santo.
Para benzer ele usa orações, que entoa quase que sussurrando. Ele aprendeu a oração

por sonho pra gente, eu tive esse sonho eu fui experimentar depois de
muitos anos, eu tava com uns quinze, dezesseis anos e deu certo, tinha
um pajé muito forte aqui dentro do rio era um senhor por nome Balduíno,
ele disse: compadre nós temos uma conversa entre nós dois, eu tá muito
bem, ele nunca dizia qual era a conversa que ele queria comigo, até que
ele chegou: você tá lembrado de um sonho que o senhor teve há muitos
anos? Não lembro. Pois é, será que não lhe servia? Eu digo, olhe eu não
sei mais eu não lembro, morreu aquilo, quando eu fui experimentar, pois
deu certo, ai eu fiz a primeira vez e pronto, então por isso que dizem que
seu Valdemar sabe benzer, muitas das vezes dá certo, é tenho ajudado
muita gente (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de
maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Segundo o Sr. Valdemar, ele aprendeu com uma pessoa que já estava morta, que
lhe ensinou através de um sonho, ensinou inclusive as orações, Estas constituem o segredo
do benzedor e um tabu. Nelas estão as suas forças, “isso é difícil de dizer, se a gente dizer,
não vale mais, foi uma mulher morta que veio comigo e disse: olha se você fizer, tal
beneficio não é pra você, na sua vida eterna vai lhe salvar de seus pecados, de você fazer
bem pras pessoas” (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ).

As histórias do sacaca Balduíno percorreram rios, lagos e igarapés, era conhecido


até em Óbidos. Segundo o Sr. Valdemar,

ele era o maior sacaca daqui do Trombetas, se você saísse daqui


pensando em mentir pra ele, você chegava lá, ele ia lhe dizer, ele
contava a sua vida toda, se você tivesse de viver, ele dizia não você não
morre, ia lá pra dentro do mato trazia uma folhinha e mandava fazer um
chá e pronto, não demora você tava gemendo, com cinco dias você tava
bonzinho, e se você tivesse de morrer, quando chegava lá no porto ele

190
perguntava quem é? Fulano de tal então volta chega na casa dele, ele
era assim preparado pra essas coisas, você podia estar do jeito que
tiver, não tinha nada, pra comer, pra beber, pro seu tratamento, chegava
na casa dele ele lhe dava tudo o que você precisava, passava três,
quatro meses ele lhe dando as coisas, até você ficar bom, mais se você
tivesse de morrer, mais quando (Entrevista com Valdemar dos Santos,
77 anos, dia 12 de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

O Sr. Valdemar não faz previsões como fazia o sacaca Balduíno. Seu Valdemar
benze, usa orações. Apesar de não receitar remédios e banhos, ele conhece uma série de
plantas, cascas e ervas utilizadas para a cura de doenças do corpo.

6.4.4 As visagens

As visagens são temas considerados fora do espaço religioso na comunidade


quilombola de Cachoeira Porteira. Poucas foram às narrativas sobre os “bichos visagentos”.
No entanto, podem ser identificados os chamados “encantados”. Assim, coletamos
descrições de duas situações específicas de “encantamentos”. A primeira remete a condição
histórica de quilombolas, a outra diz respeito às prescrições para a utilização dos recursos
naturais.

A “lenda” do Pretinho do Porão trás consigo toda a carga histórica. As narrativas de


perseguição, os “brancos” querendo capturar os “pretos”, são padrões de relações
reproduzidas pela “lenda”. Situação parecida é a história do “Nêgo” Basílio. O “Nêgo”
objetiva a cor, diferencia do outro, do que persegue. As narrativas são repassadas como
“lendas” no intuito de se tornarem explicativas para os “de fora”. Internamente elas
funcionam como histórias que regulam espaços e comportamento.

Os mitos podem estar ligados também a relações de parentesco. No caso do


“Nêgo” Basílio. Conversando com pessoas da família Vieira, sobre o “Nêgo” Basílio, fui
levado a membros da família Adão, “isso é coisa dos Adão, ele era dessa família”. Atribuem
legitimidade aos membros da família Adão, quanto a narração do mito. Assim voltamos
novamente às observações realizadas por Leach (1996), segundo o autor, o ato de contar o
mito é carregado de autoridade e legitimação. A família Adão está legitimada a contar.

Está é uma leitura possível do mito do Pretinho do Porão, referido diretamente ao


“mito de origem” – a escravidão e a formação dos quilombos, como frisa a versão narrada
pela Adriane,

Surgiu quando os negros vieram fugindo dos brancos, subiram a


cachoeira e assim quando os brancos iam chegando perto deles, da

191
canoa deles que era no remo, eles iam jogando as coisas de dentro da
canoa, e quando se aproximavam mais ainda, quando não tinham mais o
que jogar, ia jogando os filhos e numa dessas jogadas, um deles que
sobreviveu e ficou a lenda que muitos dizem que ele mora debaixo da
cachoeira lá, e no caso, quando vai assim mulher menstruada, ai não
pode ir por causa disso ai, que às vezes ele mexe, ai fica pula e dói a
cabeça, ai foi que criou a lenda do pretinho do porão. Pula é assim que
começa a doer a cabeça, que o pretinho incorpora na pessoa, ai fica
doida. Tem o seu Valdemar, ele benze essas coisas ai. Sempre ele
incorpora, um tempo atrás teve uma moça, ela veio aqui pra beira, ela
tava menstruada e quando voltou tava com muita dor de cabeça, ai
começou a ficar doida e ninguém conseguia segurar e ai levaram ela pra
casa dela e chamaram seu Valdemar e ele foi lá benzer ela e depois
quietou, deu certo (Entrevista com Adriane Cordeiro do Carmo, 31 de
março de 2012, em Cachoeira Porteira ).

A figura do Pretinho do Porão está relacionada com as cachoeiras, o lugar da


morada dele é o fundo do rio, do porão da cachoeira. Assim, as três versões da história
marcam espaços distintos. Marcam tanto a cachoeira da Porteira quanto a cachoeira do
varador do Cachorro. Não quer dizer que uma esteja certa e a outra errada. O Pretinho
reside nos dois lugares. É oportuno observar, que os locais de morada são justamente os
locais considerados como obstáculos, as cachoeiras.

O Pretinho do Porão é, contudo, um mito de interdito e territorial. É temido pelos


quilombolas como uma entidade maligna, praticante de maldades, seus encontros com os
quilombolas geralmente deixam consequências, seja uma castanheiro distraído e sozinho no
“mato”, seja uma mulher menstruada. O Pretinho é tido como um morador do fundo do rio,
nos porões das cachoeiras, “lá perto do Voradouro o meu tio foi dormir lá e o pretinho pegou
nele eles brigaram, e meu tio amanheceu com muita febre ai foi e não teve jeito e ele
morreu, primo do Vicente” (Entrevista com Ivanildo Carmo de Souza, Presidente da
AMOCREQ-CPT, dia 04 de abril de 2012, em Cachoeira Porteira ).

No entanto, o seu pai, o Sr. Raimundo narra com maiores detalhes a briga do Sr.
Davi com o Pretinho do Porão, que resultou na morte do Sr. Davi,

O pretinho chega lá, aquele molequinho, olha, espia e thum. Caiu na


água!
No Varador do Cachorro então entra o Cachorro ali, quando chega lá,
uma cachoeira e um porão antes passa por terra lá tem um varador, lá
agente tem que passar por terra arrasta canoa, lancha, tudo. Passa por
terra lá, por água não passa.
Essa mesmo historia do pretinho, sempre aparecia um pretinho, o
pessoal sempre viu um pretinho lá. Inclusive um tio da minha esposa
dormiu lá. É um ponto de dormida, hoje já não, é mais porque hoje é na
base do motorzinho, agente saindo daqui agente já passa de lá. Mas de
primeiro na base do remo nós tinha que parar lá. Porque a distancia nós
já não tínhamos hoje, era dois dia daqui pra lá no remo, subir essa

192
cachoeira ai... Tô dizendo que era um tipo dum trabalho quase
escravizado mesmo, não tinha jeito você passar ai oh daqui pra serra é 9
km tinha dia que nós não chegávamos lá, não tinha condição. O cara
chegou lá quando foi de noite esse pretinho atacou ele atacou, e ele não
podia dormir era só ele dormir o pretinho tava em cima dele chegou de lá
ele até ficou meio perturbado até que acabou morrendo com essa
historia, o Davi, essa foi a historia do pretinho do porão que perturbou ele
lá nesse porão. Acontece, tem acontecido várias vezes...( Entrevista com
Raimundo Adão de Souza, 65 anos, dia 31 de março de 2012, em
Cachoeira Porteira ).
Os quilombolas se identificam com o Pretinho do Porão, foi uma criança sacrificada
pelos pais, jogada para fora da canoa por sua mãe durante as perseguições aos escravos
fugidos. Este é um fato concreto para os quilombolas: o menino foi jogado e a cachoeira lhe
“encantou”. Qualquer que tem contato com sua história ficará mais precavido ao passar
pelas cachoeiras. Esta história e diretamente distinta do Lago Encantado ou da Praia do
Abuí. Estas duas referem-se a um conjunto de prescrições diante da relação homem –
natureza: recursos naturais.

Diante da relação homem – recursos naturais, atribuem-se também a ideia de


“mãe”, como “mãe do rio” (Entrevista com Raimundo Adão de Souza, 65 anos, 31 de março
de 2012, em Cachoeira Porteira). Segundo Galvão (1955), a noção de “mãe” dos bichos e
das coisas tem sua “origem” nos negros africanos que trouxeram para o Brasil, como
exemplo ele refere-se à Yemanjá, saudada como “mãe do rio” para alguns povos africanos e
religiões de matriz africana no Brasil. Contudo, teria também influência portuguesa e
indígena. Trata-se de entidades “protetoras na natureza”.

A “atitude fundamental é de respeito pelas forças que presidem a natureza, ao


mesmo tempo de insegurança ante esses poderes cuja ação escapa a interferência
protetora dos santos” (GALVÃO, 1955, p. 110). Alguém viu, alguém apanhou e até morreu,
são consequências do encontro com os “encantados”.

Comumente, essas situações são tidas como produtos imaginados ou inventados.


No entanto, para os quilombolas, são fatos, não existe essa separação. Todos sabem da
existência do lago, ele está lá, basta se dispor a procurar. No entanto, o lago tem que querer
aparecer para a pessoa, não é para todos.

A ambição se configura como uma prescrição. Não ter ambição. Tal prescrição está
diretamente relacionada a utilização “racional” dos recursos naturais. Assim o Sr. Valdemar
relaciona duas histórias de lugares “encantados”. O próprio Lago Encantado e a praia do
Abuí, com o homem que “grudou” na costa da tartaruga. A relação satisfaz a prescrição
mítica.

193
Não são simples historietas, são modos de vida. Como explicações para realidades
complexas distintas no nosso próprio meio cultural. As chamadas “visagens” regulam a
relação dos homens com a natureza. Estando ainda, associadas ao “tempo ecológico” e ao
movimento de pertencimento étnico.

Podemos ainda, nos aproximar das discussões trazidas ao campo antropológico


por Edmund Leach (1996)39, referente ás noções de mito e rito. Segundo o autor não existe
diferença entre rito e mito, são a mesma coisa. “o rito é a dramatização do mito, o mito á a
sanção ou a justificativa do rito” (LEACH, 1996, p. 76).

O Pretinho do Porão, o Lago Encantado e a Praia Encantada do Abuí, são parte de


um sistema de crenças. Segundo Leach, os mitos não precisam ser coerentes ou
constituírem estruturas lógicas, segundo o autor, os mitos são “um modo de descrever
certos tipos de comportamento humano” (LEACH, 1996, p. 77).

O comportamento do homem diante da natureza e dos recursos naturais. Dessa


forma podemos explicar a existência do Lago Encantado. A aparição do lago prescreve um
comportamento. Ele não aparece para pessoas “gananciosas”. Poderíamos dizer que, a
existência e a utilização do lago, prevê um comportamento diante da abundância que ali se
encontra,

Eu ouvi falar eu tem um aqui no Abuí, eu nunca fui lá e eu tinha um


camarada um preto ai que era metido a pajé e tal, ai um dia eu fui lá com
ele, Balduino o nome dele, ai cheguei lá falei pra ele que eu queria ir lá
nesse lago, ele disse que eu podia ir, arrumasse uns três homens que
dava pra mim ir, ai agarrou disse que era pra eu pegar uns banhos, ai eu
me preparei que era pra comprar umas espingardas pra ir, ai arrumei
três homens ai comprei duas espingardas novinhas, quando foi na hora
que tava preparando pra ir lá ele manda nos chamar pra lá, pra mim não
ir por que eu ia morrer, por que ele disse: se vocês chegarem naquela
fartura você vai se afobar com o que tem lá, ai eu disse que não. Eu lhe
conheço, se você chegar lá vai endoidar, ai ele não deixou mais eu ir, e
eu não fui, paguei a espingarda sem ir, mais diz que existe isso ai, mais
eu ainda não vi, agora eu sei muitos lagos pra lá, muitos mesmo, que dá
pirarucu, dá tartaruga, no tempo disso, com uma água dessa, tem muitos
que a gente vai, agora a água tá pequena pra ir, tem um grande
andirobal ai nesse igarapé, tem muito buriti, o meu irmão Raimundo já foi
comigo até no andirobal. Olhe tem deles que procuram, eu já tentei
procurar muito, só que eu não achei (Entrevista com Francisco Adão dos
Santos Neto, 74 anos, dia 23 de maio 2012, em Cachoeira Porteira ).

Segundo o Sr. Valdemar também procurou,

Antigamente existia a conversa dos lagos e inclusive a muitos anos


procurando. Que existia esse lago ai, que tinha um velho que ia passear

39
Primeira edição publicada em 1954.

194
com eles lá e ele dizia meus filhos vocês querem comer um ovo de
tracajá? A eu quero, então ele ia buscar, voltava com o paneiro com
milheiros, chegava ai dava pro pessoal, ai quando era de noite tinha
aquele batido de rabo, ai dizia: meus filhos vocês sabem o que é isso?
Não. É peixe-boi na cavalgação, ai o pessoal achava incrível que era
verão, tava tudo seco e ele morava no igarapé do Higino, muito longe
tinha cafezal, ananá, e de repente ele surgia com aquilo, vocês querem
comer uma tartaruga, eu vou buscar pra vocês, ia buscar e trazia, ia
buscar um pirarucu, um tracajá, tudo que você queria ele trazia.
Eu quando trabalhava eu tenho um terreno aqui em cima que eu
produzia muita banana no tempo da firma, ai eu trazia muita banana,
cará, batata, mamão, ai nessa direção que nós andamos de helicóptero
(seu Valdemar foi o primeiro quilombola a trabalhar na Andrade Gutierrez
como mateiro) eu encontrei um lago, não vou dizer que é ele, mais com
essa conversa do lago encantado, eu andei várias vezes procurando
aquele lago e não encontrei, quando você vê assim e marca a direção,
quando você vai, dá um aguaceiro doido, você nunca encontra por esse
motivo, se transforma em nada, aquilo só aparece pra quem tem que
aparecer mesmo (Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12
de maio de 2012, em Cachoeira Porteira ).

Sobre o Lago Encantado, o Sr. Valdemar o relaciona a Praia do Abuí, descrita pelos
quilombolas do Trombetas como sendo encantada. Em uma ocasião uma pessoa teria ido a
paria pegar tartaruga na paria, devido a sua falta de conhecimento sobre os “bichos” e
ganância, ele acabou “encantado” pela tartaruga tida como a ordenadora dos espaços de
reprodução,

Se conta que um homem tinha uma tartaruga de mais e dois metros de


comprido então ela que demarcava o quadro que era pra lotear o ovo,
então de lá pra lá as tartarugas não passava, ai na boca do Abuí foram
pegar umas tartarugas de noite, ai um disse eu quantas der eu vou
pegar, ai chegando lá tinha varias tartarugas em terra e ele com ambição
pegou logo a maior, e pegou de um lado, grudou, pegou do outro lado
grudou também, e ela levou o homem pra água, então o homem se
encantou, então vários anos esse homem andava na costa da tartaruga,
então esse Higino desencantou esse dito, ele viu esse homem em cima
da costa da tartaruga, encantado, ai ele falava com ele, ai ele pegava
tartaruga em quantidade pouca, ele nunca teve precisão também
(Entrevista com Valdemar dos Santos, 77 anos, dia 12 de maio de 2012,
em Cachoeira Porteira ).

Podemos, assim, explicar certos comportamentos. A própria ideia da existência do


Pretinho do Porão e suas prescrições: “é proibido tomar banho na Cachoeira menstruada”;
“é proibido andar pela cachoeira a partir de tal hora”, “é proibido...”. Ou a existência do Lago
Encantado: “é proibido ter ganância” ou “você só pode caça, pescar, coletar o que pode
consumir”. Como observa Galvão, “nada acontece ao indivíduo que mata um ou outro
animal, ou que de qualquer maneira se utiliza dos recursos naturais à sua disposição, mas

195
quando chega ao abuso […] as consequências são más para o indivíduo” (GALVÃO, 1955,
110).

Para Galvão, a maneira que as pessoas encarram as visagens é distinta da


maneira que encaram os santos católicos. As visagens são encaradas como malignas,
enquanto que os santos católicos são sempre benevolentes. No entanto, “a malineza,
porém, não é uma simples atitude de antagonismo entre o homem e forças extraordinárias
Ela resulta do fato que os bichos visagentos dominam ou controlam um setor do ambiente
natural, a mata e os rios” (GALVÃO, 1955, p. 110).

Por fim, os mitos referidos aos quilombolas do rio Trombetas, explicam também a
divisão territorial. Assim, os mitos da Praia do Abuí e do Lago encantado, estariam
diretamente referidos à comunidade quilombola do Abuí, vizinho de Cachoeira Porteira. No
entanto, o Pretinho do Porão, está diretamente referido a Cachoeira Porteira. No entanto,
isso não impede que os quilombolas do rio Trombetas procurem o Lago Encantado, ou
mesmo utilizem a Praia.

Poderíamos falar de certa territorialização mítica do espaço físico combinada com


os esforços mobilizatórios no sentido de construção social de uma territorialidade especifica
que exprime as reivindicações da comunidade quilombola no presente.

6.5 CONSIDERAÇÕES: “TERRITORIALIDADES ESPECÍFICAS” E OS


QUILOMBOLAS DE CACHOEIRA PORTEIRA

As fugas e a ocupação dos igarapés e lagos no alto Trombetas afluíram para a


consolidação de uma trama social do território etnicamente configurado, com sua
dominialidade reconhecida pelos agentes sociais circunvizinhos. Tais territórios têm sido
reconhecidos por conjuntos de comunidades próximas, ou mesmo referidos a uma
comunidade.

Os relatos orais e os croquis elaborados pelos quilombolas de Cachoeira Porteira


evidenciam a ocupação histórica, caracterizada por sítios históricos, pelo conhecimento dos
castanhais e de outras áreas de extrativismo, por áreas de pesca e caça, como também
antigas unidades residenciais.

Tais relatos e croquis foram obtidos a partir da realização de uma Oficina de Mapas
adstrita a métodos de cartografia social. Tal metodologia vem sendo desenvolvida pelo

196
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia-PNCSA40, desde 2005. As práticas de
pesquisa concernentes à cartografia social configuram relações sociais complexas.

As Oficinas de Mapas são realizadas como parte do processo de cartografia social.


Tais oficinas objetivam tornar público processos de autodefinição de identidades coletivas,
objetivadas em movimentos sociais. Tais mobilizações referem-se a processos étnicos e
culturais que explicitam relações sociais, dentre as quais, conflitos, formas religiosas, formas
de produção, aspectos culturais, uso dos recursos naturais e formas de apropriação
territorial. Convergindo para a composição de “mapas situacionais”, segundo Almeida,

os mapas situacionais: “[…] remetem a ocorrências concretas de conflito


em regiões já delimitadas com relativa precisão e objetivaria delimitar
territorialidades especificas, propiciando condições para uma descrição
mais pormenorizada dos elementos considerados relevantes pelos
agentes sociais em pauta para figurar na base cartográfica (ALMEIDA et.
al., 2005, p. 101).

A cartografia social configura-se, portanto, como um instrumento etnográfico. Dessa


forma puderam ser assinalados os aspectos territoriais que compõem as “territorialidades
específicas" referidas aos quilombolas de Cachoeira Porteira. Com amplo destaque para o
território histórico dos quilombolas.

A oficina de mapa foi realizada durante os dias 07 e 08 de abril de 2012.


Participaram da oficina quarenta e nove quilombolas, entre homens e mulheres. Foram
divididas sete equipes de trabalho para a confecção dos croquis. A divisão das equipes se
baseou em conhecimentos práticos das regiões dos rios Trombetas, Cachorro e Mapuera.

As equipes foram divididas segundo os critérios escolhidos pelos próprios


quilombolas. O Sr. Ivanildo coordenou o trabalho de organização e divisão das equipes,
ficando da seguinte forma: equipe 1 – Lago do Macaxeira: Jonivaldo, Manoel, Benjamim,
Basinha, Cornélio, Ivanei, Edna e Aldenor; equipe 2 - Trombetas (do 60 pra cima até o
Pirarara): Adenor, Duca, Roberto, Marcos, Chico Chico, Tutuca, Araquem, Já Morreu e Bira;
equipe 3 - Castanhalzinho do Mapuera/Cachimbo/Mungubal/Água Fria: Seu Pedrinho,
Dilton, Chico Adão, Raimundo Neves e Elésio; equipe 4 - Cachorro/Chapéu: Forotó,
Malhadeira, Budeco e Valdir; equipe 5 – Área da comunidade de Cachoeira Porteira
(Barracão Comunitário para baixo): Adriane, Maria, Claudemir, Nazareno, Lucivaldo e

40
O trabalho intitulado “A guerra dos mapas” de Almeida (1994), é considerado um marco
para os trabalhos de pesquisa utilizando os traços descritivos do que se designou como cartografia
social como um instrumento de descrição etnográfica. No bojo das experiências de cartografia social,
do PNCSA podemos citar alguns trabalhos resultantes da reflexão crítica em torno das práticas de
pesquisa de mapeamento social. Além de uma centena de fascículos no âmbito do PNCSA que
podem ser adquiridos pelo site: www.novacartografiasocial.co m

197
Meire; equipe 6 – Área da comunidade de Cachoeira Porteira (Barracão comunitário
para cima): Claucilvaldo, Tia, Fátima, Amélia, Ivania, Mariquinha e Márcia do Jose; equipe
Castanhal da Serra do Cachorro (área de uso): Raimundo Adão, Genésio, Elias, Silvana,
Dinalva e Valterlane.

Os croquis elaborados na oficina de mapa junto aos quilombolas de Cachoeira


Porteira podem ser analisados da seguinte forma: a) aspectos naturais: hidrografia, relevo e
acidentes geográficos, b) caça e pesca: distribuição da fauna e espécies, c) extrativismo:
espécies utilizadas e distribuição, d) atividades agrícolas: localização das chamadas “roças”,
e e) fronteiras sociais: aldeias indígenas.

As legendas utilizadas para representar as situações foram desenhadas pelos


próprios agentes sociais. As situações sociais representadas nos croquis convergem para
as demandas da ordem do dia – o reconhecimento territorial. No dia 07 foram
confeccionados os croquis, alguns deixaram para concluir no dia oito. No dia 08 foi realizada
a apresentação das equipes, relatando as situações representadas no mapa. Assim, os
mapas foram submetidos a aprovação pública. Em muitos casos, os integrantes das outras
equipes sugeriam o acréscimo ou a correção das situações representadas.

As informações coligidas a partir da oficina de mapas podem compor com aquelas


coletadas durante a realização de entrevistas e conversas. Como a conversa realizada no
dia 23 de maio de 2012, com os Sr. Ivanildo Carmo dos Santos, Roberto Rivelino dos
Santos, José Vieira e Pedro Pereira de Souza, sobre as áreas de castanhais e a entrevista
com os Srs. Francisco Adão dos Santos Neto, Francisco Adão Viana, Raimundo Adão dos
Santos e Ivanildo Carmo dos Santos, no dia 27 de maio de 2012, sobre os sítios históricos,
como antigas unidades residenciais, antigas capoeiras, varadouros e igarapés.

A partir destas distintas situações de pesquisa foi possível reconstituir os topônimos


que compõem a área estudada. Os referidos topônimos descrevem locais de pesca, caça,
coleta de castanha, capoeiras, antigos mocambos, como também rios, igarapés e
varadouros. Os topônimos são nomes próprios que designam lugares que compõem o
território quilombola. Assim, temos o levantamento das seguintes situações referidas às
terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas,

RIO TROMBETAS
Panamã: sítio histórico, áreas de caça e castanha;
Ventura: áreas de caça;
Turuna: sítio histórico, muito descrito por viajantes naturalistas, missionários e agentes do
governo colonial como mocambo, áreas de castanha;

198
Fumaça: sítio histórico e áreas de castanha;
Maravilha: sítio histórico, também conhecido como “Cidade Maravilha”, renomado mocambo
do Trombetas, chegando a ter cerca de 2.000 almas como narram os relatos históricos;
Campiche: sítio histórico, junto com o Turuna, foi o local de nascimento de muitos
quilombolas, dando origem a muitas famílias quilombolas do Trombetas. Farta
documentação sobre a ocupação quilombola, o descrevem como área de mocambeiros;
Pirarara: sítio histórico e áreas de grandes castanhais;
Cutraval: sítio histórico e áreas de castanha, recentemente foram achados artefatos de
cerâmica pertencentes aos “antigos” quilombolas;
Munguba: áreas de castanha;
Caxipacoré: áreas de castanha;
Rio da festa: sítio histórico. Segundo as narrativas dos quilombolas sobre este sítio, ele era
um grande sítio (Sr. Francisco Adão dos Santos Neto), onde os quilombolas se reuniam
para realizarem festas. Era um importante espaço para a prática de rituais de coesão social,
como festejos de Santos e outras reuniões. Era espaço social e físico para encontrar os
quilombolas qu residiam na sdistintas partes do rio; podemos comparar a Casa das Pedras,
no Erepecuru, descrito por O. Coudreau (1900);
Taja: sítio histórico e área de castanha;
Franco: cachoeira;
Rio do Velho: sítio histórico e áreas de castanha;
Cajueira: sítio histórico - “paragem antiga”, neste lugar ainda encontram-se plantações de
caju, resíduos do pomar que havia ali;
Ilha do defunto: Sítio histórico – “varador dos antigos”;
Tramalhete: cachoeira e áreas de pesca;
Enseada: sítio histórico e áreas de castanha;
Traval: sítio histórico – neste lugar foram achados alguidar e outros objetos cerâmicos e
áreas de castanha;
Curuá: sítio histórico, muito bem documentado pela literatura regional, antropológica e
militar. Descritos pelos quilombolas como uma grande “centro” de quilombolas, Local de
nascimentos de muitos quilombolas ainda vivos, como Dona Ursulina Vieira, 84 anos. Lá,
ainda existem resquícios do pomar, como mangueiras e cupuaçu, além de pés limão;
Quebra-pote: sítio histórico e cachoeira;
Imagina: cachoeira e áreas de pesca;
Barnabé: cachoeira e áreas de pesca;

199
Madame: cachoeira e áreas de pesca – segundo os quilombolas, esse nome foi atribuído
em homenagem a Madame Coudreau, quando passou lá (1899);
Vira-mundinho: cachoeira e áreas de pesca;
Pedra Lisa: cachoeira e áreas de pesca;
Boto: ligação com o varador do Inferno
Caramujo: “paragem antiga”
Paraná do Roçado: cachoeira e áreas de pesca;
Paraná do Doutor: nome atribuído pelos quilombolas em homenagem a um Doutor que
esteve por lá;
Ilha da Giró: sítio antigo da família Vieira. O nome é por ocasião da Dona Maria Augusta
Vieira dos Santos ter residido no local, este era um local de residência, as roças e
plantações ficam na terra firma, próxima a ilha;
Ilha do cemitério: sitio histórico – muitos familiares dos quilombolas de Cachoeira Porteira
encontram-se enterrados na ilha;
Araçazal: áreas de pesca;
Ponta grande: áreas de pesca;
Andorinha: áreas de pesca;
Escada: áreas de pesca;
Canal Grande: áreas de pesca;
Costa de Faro: áreas de pesca;
Porteira: sítio histórico, fartamente descrito na literatura histórica como núcleo habitacional
de mocambeiros, vastas áreas de roças, residências, atual sede física da comunidade.
Colônia: sítio histórico, farta ducomentação sobre o lugar, onde registraram, em diversos
momentos os mocambeiros. Sítio articulado pela família Vieira e Santos.
Caso do Sr. Vicente Vieira: sítio histórico e unidade residencial do Sr. Vicente Vieira;
Macaxeira: sítio histórico, áreas de castanhal e localização de unidades residenciais;
Santo Antônio: sítio histórico;
Cemitério: sítio histórico – cemitério antigo, situado em frente as unidades residenciais de
Cachoeira Porteira, atualmente reside o Sr. Mauricio.

RIO CACHORRO
Riozinho: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Camunani: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Ananaí: cachoeira, áreas de pesca e quelônios;
Cair dos Pretos: sítio histórico, cachoeira, áreas de caça, pesca e quelônios;

200
Cachorrinho: sítio histórico, áreas de castanha – “Castanhal do Curupira”, castanhal
grande, áreas de pesca;
Felisberto: sítio histórico e áreas de castanha – castanhal grande;
Ambrósio: sítio histórico e áreas de castanhal;
Estirão do Vieira: sítio histórico –“cemitério antigo”;
Morcego: curso d’água – igarapé;
Visagem: curso d’água – igarapé;
Paraná do Florêncio: sítio histórico e áreas de castanhal;
Viramundinho do Cachorro: sítio histórico e áreas de castanhal;
Cabeça de Onça: sítio histórico – “paragem” e áreas de pesca;
Cachoeira do Espinho: sítio histórico;
Serra dos Vieira: sítio histórico e áreas de castanhal – castanhal antigo trabalhado pela
família Vieira. Segundo os quilombolas, a coleta de castanha realizada neste castanhal é do
tempo dos “antigos”;
Paraná do Felício: sítio histórico – ainda hoje é possível constatar as mangueiras e
varador;
Chico Gomes: cachoeira e áreas de pesca;
Cachoeira do Jacamim: áreas de pesca;
Canavial: áreas de pesca;
Paraná do Descanso: áreas de pesca;
Tambaqui: áreas de pesca;
Pedreneira: áreas de pesca;
Cumaru: sítio histórico, áreas de castanha e pesca;

RIO MAPUERA
Água Fria: sítio histórico e área de castanha;
Mungubal: sítio histórico e área de castanha;
Castanhalzinho:, sítio histórico e área de castanha;
Cachimbo: sítio histórico, área de castanha e caça;
Sitio Valdemar: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Vava: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Niva: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Sonia Vieira: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Raimundo Adão: sítio histórico – áreas de roças;
Sitio Pedrinho: sítio histórico – áreas de roças;

201
Sitio Valdir: sítio histórico – áreas de roças;
Sitio Dilton: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio antigo Valdir: sítio histórico – áreas antigas de roças;
Sitio Ilha do Patauá: sítio histórico – áreas antigas de roças;

A partir das discussões sobre o reconhecimento territorial, os quilombolas vêm


debatendo e conversando entre eles, a fim de chegar a um acordo com os indígenas. No
primeiro momento a reivindicação territorial quilombola se baseava no Termo de Acordo, de
31 de julho de 2005, entre indígenas e quilombolas. No entanto, foram surpreendidos pela
FUNAI, que declarou que a área de pretensão e estudo da Terra Indígena, estava
intrusando a área definida no acordo.

O Termo de Acordo, segundo o Sr. Ivanildo, foi definido entre indígenas e


quilombolas, levando em consideração as áreas de uso tradicionais. Até a informação
prestada pela Funai, está área ainda não tinha sofrido alteração. Contudo, os anos foram
passando e o ITERPA não caminhava com a demarcação do Território Quilombola, que
permaneceu parado na burocracia até inicio de 2011.

Novas aldeias indígenas depois do acordo de 2005, como a Aldeia Chapéu, abaixo
da Aldeia Santidade (rio Cachorro) e a aldeia Oficina (rio Trombetas), foz do igarapé
Caxipacoré. Assim, os quilombolas, diante das situações contingentes que se colocaram,
resolveram reduzir a área do território quilombola, deixando de fora as novas aldeias
indígenas, além de castanhais considerados essenciais para a reprodução física, social e
cultural.

Segundo os quilombolas, esses castanhais, apesar de constituírem parte do


território histórico, ficaram fora do território protocolado junto ao ITERPA. A partir dos
diversos momentos da pesquisa descritos acima, podemos coligir o número de cinquenta e
três castanhais utilizados pelos quilombolas. No entanto, somente onze castanhais
permaneceram dentro do território, conforme memorial descritivo e mapa com a poligonal
elaborado pelo Setor de Cartografia do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e
Ambiental do Pará-IDESP.

A poligonal desenvolvida pelo IDESP, contou inicialmente com as indicações e


assinalações dos próprios quilombolas, as lideranças se reuniram em Belém, na sede do
IDESP para a indicação do território.

202
Durante o trabalho de campo entre os dias 29 de março a 13 de abril, o geógrafo
José Rocha, do Setor de Cartografia do IDESP, ministrou cursos de noções básicas de
cartografia e utilização do aparelho de G.P.S. (Global Positioning System). A partir da
instrução os quilombolas percorreram o território pretendido para marcar as coordenadas.
Com essas coordenadas foi atualizada a base cartográfica. A revisão da base cartográfica
teve o acompanhamento de técnicos do IDESP e ITERPA.

Durante o segundo trabalho de campo, realizado entre os dias 10 a 17 de maio de


2012, foram ministrados novos cursos de noções básicas de cartografia, bem como
treinamentos práticos. Novamente os quilombolas percorreram o território pretendido
utilizando aparelhos de G.P.S. de navegação, para a complementação das coordenadas.

A partir das atividades de cartografia social e dos pontos de G.P.S. da poligonal


levantados pelos quilombolas, pode-se construir uma base cartográfica com topônimos da
malha hidrográfica e acidentes geográficos, sítios históricos, castanhais, dentre outras áreas
de uso, designamos este mapa de “mapa antropológico”.

Os limites definidos pelos quilombolas são os seguintes: No rio Trombetas: abaixo


do igarapé Caxipacoré; No rio Cachorro: abaixo da Cachoeira do Espinho; No rio Mapuera:
é oportuno observar que no rio Mapuera, permaneceram os limites definidos no Termo de
Acordo de 2005. Por considerarem que essenciais os castanhais localizados neste rio. No
entanto, existem três aldeias indígenas dentro deste limite. Segundo o Sr. Ivanildo, estas
aldeias passaram a serem construídas a parir de 2005. Inclusive, a aldeia próxima da foz do
rio Mapuera foi feita com autorização da AMOCREQ, dizendo que seria um porto para
encostar e guardar canoas. Ainda segundo o Sr. Ivanildo, as aldeias seriam de indígenas
vindos das Terras Indígenas Trombetas-Mapuera (situação jurídica: homologada, 3.970.898
ha) e Nhamundá-Mapuera (situação jurídica: homologada, 1.049.520 há).

Segundo o Sr. Ivanildo, o desenvolvimento do processo de reivindicação territorial


pelos quilombolas, teve o seguinte entendimento,

Pirarara, Cutraval e Fumaça são três grandes castanhais, ficaram


totalmente fora da área de pretensão, estava dentro, mas ficou pra fora,
mais ai você vai fazer o estudo da área, tá lá os vestígios claros, todo
ano a vida toda, então um exemplo, o Frederico, na época a chefe da
FUNAI, a doutora... pediu pro Federico, vai pro Santidade que essa área
aqui do Curuá é dos quilombolas, ele disse não eu vou mudar mas, pra
outro canto, e mudou daqui do Curuá, quis mudar lá pra boca do setenta
e dois, ele não quis mudar pro Santidade, por questão de liderança, ele
mesmo queria administrar a família dele, ai já foi pra boca do
Caxipacoré, fazer a Aldeia agora lá, então ai atrapalhou o Castanhal do
Piraarara e Cutraval e Fumaça, então a gente já fez um recorte e já tirou
três castanhais de dentro da área (Entrevista com Ivanildo Carmo de

203
Souza, Presidente da AMOCREQ-CPT, 09 de abril de 2012, em
Cachoeira Porteira).
Segundo que quilombolas, á área do Mapuera é a única que sobreposição. Mesmo
assim, caso a área seja titulada como território quilombola, a AMOCREQ, não pedirá a
remoção dos indígenas. Em nome da convivência e dos laços adquiridos ao longo de anos
de convivência. Do ponto de vista jurídico, não existe instrumento que possa garantir a dupla
titularidade.

A área reivindicada pelos quilombolas de Cachoeira Porteira corresponde a


228.552 ha (duzentos e vinte e oito mil e quinhentos e cinquenta e dois hectares). Este
território abrange áreas tradicionais de coleta de castanha, de caça, de pesca e das
atividades agrícolas, embora os quilombolas de Cachoeira Porteira se considerem
extrativistas. Além de sítios históricos como antigos mocambos, varadouros, cemitérios,
praias de veraneio (onde se realiza a piracaia) e antigas capoeiras. Além de acidentes
geográficos como furos, igarapés e lagos.

A redução da área do território ocorreu de acordo com o interesse dos quilombolas


em negociar um “território possível”, de acordo com o Sr. Raimundo,

eu faço assim, eu tenho esperança de um dia nós dizer, isto aqui é


nosso, nem que seja trezentos mil hectares, como quer que seja, mais
se for nosso, o problema é nossos filhos, por exemplo, eu to com 65
anos completo, daqui com mais trinta e cinco anos provavelmente eu
não vou mais tá vivo, mais tem... só neto eu tenho trinta, três bisneta,
sete filhos e três genros e duas noras, então é um sonho de ver o futuro
da minha geração, poxa uma beleza, eu vou morrer mais sei que meus
filhos, meus netos, ficaram libertos (Entrevista com Raimundo Adão de
Souza, 65 anos, 31 de março de 2012, em Cachoeira Porteira ) (g.m.).

Observa-se nas narrativas orais a recorrência da noção de “cativos” e “libertos”.


Assim, são traçados algumas similaridades que merecem atenção especial. Considerando
em sinonímia: REBIO como “cativeiro”, a não titulação da terra e a insegurança territorial
como “cativeiro”. A noção de “libertos” está associada ao exercício dominial pleno sobre o
território, a segurança atribuída ao reconhecimento formal.

O processo diferenciado de construção de territorialidades específicas consoantes


à mobilização da AMOCREQ articulada com a representação daqueles mais idosos que
detém a memória da comunidade, esse processo resultou nesta delimitação das terras
tradicionalmente ocupadas e nas reivindicações feitas hoje pela comunidade.

204
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ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA COMUNIDADE REMANESCENTE DE
QUILOMBO DE CACHOEIRA PORTEIRA-AMOCREQ-CPT. Estatuto. Cachoeira Porteira,
Oriximiná, 2002.
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA COMUNIDADE REMANESCENTE DE
QUILOMBO DE CACHOEIRA PORTEIRA-AMOCREQ-CPT. Sem titulo (documento
direcionado à Presidência do Iterpa. Cachoeira Porteira, Oriximiná, 2011.
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Cria a Floresta Estadual de Faro nos Municípios de Faro e Oriximiná, Estado do Pará, e dá
outras providências.
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quilombolas sobre situação de Cachoeira Porteira. Porto Trombetas-Mineração Rio do
Norte/Oriximiná. 08 de novembro de 2011. Secretaria de Estado de Meio Ambiente.
BRASIL, ORIXIMINÁ, PARÁ.. Decreto Estadual nº 2.607, de 04 de dezembro de
2006. Cria a Floresta Estadual do Trombetas nos Municípios de Oriximiná e Óbidos,
Estado do Pará, e dá outras providências.
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julho de 2000. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-
IBAMA.
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Comunidades Tradicionais. Brasília, fevereiro de 2007.
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o Poder Executivo a conceder favores e auxílios a qualquer particular, empresa ou
companhia. Manáos: Livraria Palais Royal, 1921.
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Coordenação e Revisão-Brasília, 07 de julho de 2011. Ministério Público Federal,
Procuradoria da República no Município de Santarém.
BRASIL. SANTARÉM, PARÁ. OF.PRM/STM/GAB3/0106/2012. Ministério Público
Federal, Procuradoria da República no Município de Santarém.
BRASIL. SANTARÉM, PARÁ. Portaria nº 191, 10 de maio de 2011. Ministério
Público Federal, Procuradoria da República no Município de Santarém.

211
ANEXOS

Legislação quilombola no nacional e estadual (Pará)


Legislação nacional
Art. 215. § 1º/Constituição Federal de 1988 (O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional);
Art. 216. § 5º/Constituição Federal de 1988 (Ficam tombados todos os documentos
e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos);
Art. 68 – ADCT/Constituição Federal de 1988 (reconhece a propriedade definitiva referente
aos remanescentes das comunidades de quilombo);
Portaria nº. 25 da Fundação Cultural Palmares, de 15 de agosto de 1995 (estabelece normas
para a identificação e delimitação das terras ocupadas pelos pelas comunidades remanescente de
quilombo);
Projeto de Lei nº. 129/1995 (previa a regulamentar o procedimento de titulação de
propriedade imobiliária aos remanescentes das comunidades dos quilombos);
Projeto de Lei nº. 627/1995 (previa a regulamentar o procedimento de titulação de
propriedade imobiliária aos remanescentes das comunidades dos quilombos);
Lei nº. 10.683/2003 (Art. 27, inciso IV, alínea “c”, que atribui ao Ministério da Cultura, a
delimitação e demarcação das terras dos remanescentes das comunidades de quilombo);
Decreto nº 3.912/2001 (compete a Fundação Cultural Palmares, iniciar, dar seguimento e
concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos);
Decreto nº. 4.883/2003 (transfere a competência que menciona, referida na Lei nº.
10.683/2003, do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, de acordo com
o Art. 1º);
Decreto nº. 4.886/2003 (institui a Política Nacional da Igualdade Racial);
Decreto nº. 4.887/2003 (regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos);
Promulgada pelo Decreto nº. 5.051/ 2004, que Convenção 169 da OIT (assegura entre
outros diretos, o direto a terra referente aos povos e comunidades tradicionais);

212
Decreto de 27 de dezembro de 2004 (Cria a Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais. Brasília);
Instrução Normativa nº 20/2005/Incra (reformula o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos);
Decreto de 13 de julho de 2006 (Altera a denominação, competência e composição da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais… doravante denominada
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais);
Decreto nº. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (Institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, fevereiro de 2007);
Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007 (Instituir o Cadastro Geral de Remanescentes
das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também autodenominadas Terras
de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres,
para efeito do regulamento que dispõe o Decreto nº 4.887/03);
Instrução Normativa nº 57, de 20 de outubro de 2009/Incra (Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratamo Art. 68 do
ADCT-CF/88 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003).
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 (Institui o Estatuto da Igualdade Racial).

Legislação do Estado do Pará


Art. 286. § 2°/Constituição do Estado do Pará de 1989 (Ficam tombados os sítios dos antigos
quilombos paraense, dos sambaquis, das áreas delimitadas pela arquitetura de habitação indígena e
áreas inerentes a relevante narrativas de nossa história cultural);
Art. 322/Constituição do Estado do Pará de 1989 (Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes títulos respectivos no prazo de um ano, após promulgada esta Constituição);
Lei estadual nº 6. 165 de 02 de dezembro de 1998 (Dispõe sobre a Legitimação de Terras dos
Remanescentes das Comunidades dos Quilombos e dá outras providências);
Decreto nº 3.472, de 22 de julho de 1999 (Regulamenta a Lei nº 6.165, de 2 de dezembro de
1998, que sobre a Legitimação de Terras dos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos e dá
outras providências);

213
Art. 1º/Decreto nº 3.472, de 22 de julho de 1999 (Compete ao Instituto de Terras do Pará-
Iterpa a execução dos procedimentos administrativos visando à identificação, demarcação e
expedição dos títulos de propriedade de terras ocupadas por comunidades remanescentes de
quilombos);
Instrução Normativa nº 02, de 16 de novembro de 1999/Iterpa (Define os procedimentos
administrativos visando à identificação, demarcação e expedição dos títulos de propriedade de terras
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos);
Decreto nº 261, de 22 de novembro de 2011 (Institui a Política Estadual para as
Comunidades Remanescentes de Quilombos no Estado do Pará e dá outras Providências).

Leis e Decretos
Convenção 169 da OIT, que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais - Edição
2011. Disponível em
http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/international_labour_standar
ds/pub/convencao%20169_2011_292.pdf. Acesso em 09/03/2012
Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o
art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm . Acesso em 09/03/2012.
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Brasil: declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos
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http://www.novacartografiasocial.com/downloads/Livros/livro_docbolso_01.pdf. Acesso em
12/06/2012.

214
PARTE III - CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DA COMUNIDADE DE
CACHOEIRA PORTEIRA

7 PREFÁCIO

A comunidade quilombola de Cachoeira Porteira apresenta ao longo de sua


existência (cujas raízes penetram o processo histórico de construção da Amazônia, no
século XVIII) um rosário de sofrimento, de injustiça e de dor ainda hoje sustentado por atos
ou ações cruéis de espoliação e/ou expropriação, o qual se pode associar à situação de
pobreza e exclusão social que no momento aflige praticamente a totalidade da população
local.

Esta população que tem como principais características a união e um forte espírito
de luta – características estas reveladas através de gerações, na conquista diária de sua
sobrevivência, vale dizer no enfrentamento das adversidades, quer no passado – como
revela a história que eternizou na comunidade um homem hoje quase lenda como o negro
Basílio Antonio, que com seu tacho preferiu se jogar numa cachoeira do Trombetas do que
se entregar aos escravizadores brancos que o caçavam – quer no presente como mostra a
luta pelo acesso a terra e pelo respeito aos demais direitos inerentes à cidadania, que lhe
tem sido negados sistematicamente.

São dessas características, ou, se se quiser, dessas qualidades, que a comunidade


de Cachoeira Porteira retira a força que alimenta a resistência por meio da qual no decorrer
de sua história tem confrontado um intenso processo de espoliação, expropriação e
exploração que a tem submetido à pobreza e à exclusão social. Apesar do qual,
contraditoriamente, tem conseguido assegurar alguns avanços – poucos, mas importantes
benefícios econômicos, políticos, sociais e/ou culturais, conforme se verá adiante.

É sobre essa comunidade que o presente trabalho se reporta. Os


dados/informações nos quais se baseia, excetuando-se a bibliografia citada, foi obtido no
período de 28 de março a 13 de abril de 2012. Nesse período o governo do Estado, através
de uma parceria entre o ITERPA e o IDESP, procedeu em Cachoeira Porteira uma ação
envolvendo: 1) vistoria da poligonal da área pretendida pela AMOCREQ-CPT – Associação
de Moradores Remanescentes de Quilombo da Comunidade de Cachoeira Porteira; e, 2)
levantamento socioeconômico, através da aplicação de um formulário em situação de
entrevista, observações diretas e entrevistas livres com informantes selecionados.

O objetivo aqui é fornecer um perfil sócio-econômico atualizado, ou, em outras


palavras, um retrato geral dessa comunidade nos dias de hoje, ainda que estruturado em

215
traços rápidos – destinado a subsidiar a tomada das decisões necessárias à dinamização
do processo de sua titulação coletiva, já requerida por seus moradores ao Estado há mais
de onze anos (cf. Processo ITERPA nº 2004/125212).

Na elaboração desse perfil considera-se inicialmente a base física da comunidade,


enfocando-se os seguintes aspectos:

a) localização e caracterização físico-natural;

b) situação fundiária;

c) ocupação físico-espacial.

d) população;

e) atividades econômicas e renda dos moradores;

f) aspectos das condições de vida da população residente;

g) organização social, cultura e lazer da comunidade.

A apresentação desses aspectos, considerados suficientes para a estruturação de


uma imagem panorâmica da comunidade combina informações e/ou dados primários
(obtidos por ocasião do levantamento sócio-econômico supramencionado) com informações
e/ou dados secundários, complementares.

216
8 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO FÍSICO-NATURAL

A comunidade de Cachoeira Porteira, cuja área de pretensão compreende hoje


aproximadamente 228.552,0000 hectares, situa-se no oeste do Estado do Pará,
mesorregião do Baixo Amazonas, município de Oriximiná, microrregião de Óbidos.

O solo predominante na área da comunidade, segundo estudos realizados a partir


dos anos oitenta do século passado41 é o podzólico vermelho-amarelo, mas uma variedade
de outros solos pode ser também encontrada – arenoso, granítico, argiloso, pedregoso,
heteromórfico, etc.42

A topografia da área da comunidade de Cachoeira Porteira revela, em relação ao


nível do mar, formas diferenciadas de relevo Foto 40 com depressões e elevações; no caso
destas, pode-se destacar as serras isoladas (na bacia do rio Trombetas) e as serras
contínuas (à margem esquerda do rio Cachorro). Na referida área, situada na porção central
do município de Oriximiná, a altitude, em vários locais, supera os 100 metros43.

Foto 43 - Topografia às margens do rio Trombetas

Crédito: Aldenor Nascimento

41
Estudos destinados a subsidiar a avaliação do impacto ambiental na área de inundação da UHE de Cachoeira Porteira, da
ELETRONORTE, no rio Trombetas.
42
Cf. Revilla, J.; Lima Filho, D.A.; Amaral, I. L.; Matos, F.D.A. 1986. Estudos e levantamentos do impacto ambiental da futura -
PA. Relatório, ENGE-RIO/INPA. 73p; apud Diógenes de Andrade Lima Filho, Juan Revilla, Iêda L. do Amaral, Francisca Dionizia de A.
Matos, Luiz de Souza Coêlho, José Ferreira Ramos, Gláucio Belém da Silva, José de Oliveira Guedes; 2004. Aspectos florísticos de 13
hectares da área de Cachoeira Porteira-PA in: Acta Amazônica. Vol. 34(3) 2004: 415 – 423 (financiado pelo convênio
ELETRONORTE/INPA/MCT).
43
Na cidade de Oriximiná, localizada em área baixa, mais próxima ao rio Amazonas, os valores planimétricos de referência estão
em torno de 37 metros, enquanto na porção setentrional, fronteiriça com as Guianas, esses valores muitas vezes atingem mais de 800 metros
(Cf. portalamazonia@redeamazonica.com.br).

217
Quanto à vegetação, pode-se dizer que na área de pretensão da AMOCREQ/CPT,
tal como em outras áreas ainda não completamente desmatada da Amazônia, é grande a
diversidade florística.

Num dos estudos acima mencionados, publicado em 2004, que utilizou como objeto
algo em torno de apenas 5,5% (13 hectares44) do total da área hoje pretendida pelos
quilombolas, detectou-se, às proximidades do local onde se construiria a barragem da UHE
de Cachoeira Porteira, a ocorrência dos seguintes tipos de componentes florísticos: a)
Floresta densa de terra firme sobre relevo plano ou mata de terra firme; b) floresta densa de
terra firme sobre relevo dissecado; c) floresta de terra firme sobre relevo ondulado; d)
floresta mista ciliar estacionalmente inundável ou mata de igapó; e) floresta mista
descontínua de terra firme e/ou mata de campina e campinarama; f) mata de bambu; e, g)
mata secundária ou capoeira. (Mapa 6)

44
Essa área, conforme se mostra na Figura, foi delimitada pelas seguintes coordenadas: latitude 0o 30’S à 1o 03’S e longitude 56o
49’W à 57o 37’W.

218
Mapa 6 - Aspectos florísticos de 13 hectares da área de Cachoeira Porteira-PA.

Fonte: Eletronorte

No referido estudo realizado nas unidades amostrais, de um hectare cada, foram


registrados 4.583 indivíduos (DAP ≥ 10 cm) distribuídos em 55 famílias, 217 gêneros e 359
espécies, incluindo árvores, cipós e palmeiras45.

Dentre as espécies identificadas os pesquisadores destacaram 30 (ou 8,4% do


total) que apresentaram maior índice de valor de importância (considerando-se, no caso:
abundância relativa; dominância relativa; frequência relativa; e índice de valor de
importância especifica).

Esses dados – que podem ser tomados como uma amostra significativa de
Cachoeira Porteira – permite observar o quanto é grande a heterogeneidade da vegetação
nessa comunidade; vegetação que, segundo os moradores locais, apesar do aumento
paulatino do desmatamento ocorrido nos últimos anos, é muito rica em madeiras de lei ou
madeiras comercializáveis.

45
Lima Filho, Diógenes de Andrade; Revilla, Juan; Amaral, Iêda L. et al. 2004. Aspectos florísticos de 13 hectares da área de
Cachoeira Porteira-PA in: Acta Amazônica. Vol. 34(3) 2004: 415 – 423 (financiado pelo convênio ELETRONORTE/INPA/MCT).

219
No que se refere à fauna pode-se dizer que também é bastante diversificada em
Cachoeira Porteira. Diz-se isto considerando apenas as informações relativas à Floresta
Estadual do Trombetas. Para se fazer uma ideia, basta dizer que nessa Flota já foram
registradas 29 espécies de peixe, 62 de réptil e anfíbio e 244 de ave, além de 53 espécies
de mamífero46.

Com relação ao clima pode-se dizer que Cachoeira Porteira, segundo a


classificação de Köppen, apresenta o tipo Awi, que tem como característica principal uma
estiagem de três meses (geralmente outubro, novembro e dezembro). Nessa área a
temperatura média anual é de 26,5 º C e a pluviosidade aproximada de 2.000mm a
2.500mm anuais47.

Quanto à hidrografia, Cachoeira Porteira, enquanto Amazônia é uma comunidade


entrecortada por um grande número de rios e outros cursos d’água, tais como lagos,
paranás, furos e igarapés, vários dos quais ainda sem nomes ou registro nos mapas. Entre
os considerados mais importantes, com base em extensão, volume d'água e potencialidade
econômica, encontra-se o Trombetas e seus tributários Mapuera e Cachorro. (Foto 41)

O Trombetas, com aproximadamente 750 km de extensão, é um rio largo, profundo


e navegável, por embarcações de até 500 toneladas, numa extensão de 230 km, que vai da
foz, em frente à sede do município, até a sede da comunidade.

Foto 44 - Aspecto da corredeira Viramundinho em Cachoeira Porteira

Crédito: Aldenor Nascimento

46
Cf. Pereira, Jakeline. Et al. Resumo Executivo do Plano de Manejo da Floresta Estadual do Trombetas. Belém: Sema; Belém:
Imazon, 2011; p. 7.
47
Cf. Idem, ibidem; p. 416.

220
9 SITUAÇÃO FUNDIÁRIA

A área da Floresta Estadual (Flota) do Trombetas, criada no final de 2006 (Decreto


2.607/2006), sobrepôs-se no município de Oriximiná/PA, a duas terras das comunidades
quilombolas não tituladas: Ariramba (Proc. ITERPA 2005/315528) e Cachoeira Porteira.

No caso da área de Cachoeira Porteira, essa sobreposição ocorre na porção norte.


Na sua porção sul a referida área é sobreposta pela Floresta Estadual de Faro, criada na
mesma data (Decreto nº. 2.605/2006). As duas Flotas têm como divisa os rios Mapuera e
Trombetas.

A sobreposição dessas duas Flotas sobre a área de pretensão da comunidade


quilombola de Cachoeira Porteira (que poderia ter sido evitada, considerando-se que desde
2004 o pedido da comunidade tramita no ITERPA) é hoje uma das dificuldades a ser
vencida no processo de regularização desejada. A outra é a pretensão da FUNAI sobre a
área como um todo.

Não obstante, não se trata, porém, de uma dificuldade insuperável, mesmo porque
a referida área já foi arrecadada e registrada como integrante do patrimônio fundiário do
Estado. Além disso, não existe dentro de sua poligonal nenhum título de propriedade
particular, passível de indenização, conforme constatado no setor de cartografia do
ITERPA48, e in loco, segundo informação do presidente da AMOCREQ-CPT.

9.1 OCUPAÇÃO FÍSICO-ESPACIAL

Em Cachoeira Porteira a ocupação físico-espacial se caracteriza por uma


acentuada concentração das residências às margens de uma estrada conhecida como
variante da BR-163, que termina do lado esquerdo do rio Trombetas, um pouco abaixo da
foz do rio Mapuera e da queda d’água que dá nome à comunidade.

Hoje, das 93 moradias quilombolas existentes dentro da poligonal da área de


pretensão, 79 (84,95%) delas situam-se ao longo da estrada mencionada.

As demais moradias dos quilombolas de Cachoeira Porteira, que somam apenas 14


(15,05%) distribuem-se do seguinte modo: 5 pelo lado direito do mesmo rio, ainda dentro da
poligonal, sendo uma em frente ao porto acima referido; 2 à margens do lago denominado
Macaxeira (todas atualmente dentro da área da Flota Faro); 2 outras dentro da área da
associação quilombola Mãe Domingas; e 5 pelo lado direito do rio Trombetas, fora da

48
Cf. ITERPA. Processo nº 2004/125212, fls. 187/188.

221
referida poligonal, no perímetro que se estende do porto à localidade conhecida como
Arrozal (dentro da área da Reserva Biológica Rio Trombetas)

Todas essas moradias localizam-se na área abaixo da cachoeira Porteira; na área


situada acima dela não se registra nenhuma residência quilombola; registra-se, porém, às
proximidades da foz do Mapuera, uma aldeamento que abriga alguns indígenas da etnia
Wai-Wai. Embora tenha um caráter permanente, os que a habitam têm consciência de que
ela se situa em área quilombola e não discutem isso. É que para cuidar melhor de alguns de
seus barcos, que, no verão não ultrapassam a cachoeira, os referidos indígenas, valendo-se
da boa relação com os quilombolas, obtiveram permissão da AMOCREQ/CPT para
construírem no local algumas residências, as quais lhes servem de apoio no vai-e-volta
constante que fazem à cidade de Oriximiná. Ao redor da moradia cultivam eles algumas
roças de mandioca.

A maioria das edificações existentes em Cachoeira Porteira possui apenas um


pavimento, sendo que apenas uma delas possui dois pavimentos. Quanto à estrutura
básica, as casas dentro de Cachoeira Porteira são na sua quase totalidade de madeira,
cobertas com telhas de amianto. Os pisos ou assoalhos em grande parte são de madeira –
tábuas e/ou paxiúbas nalguns casos, quando não mistos: chão batido ou cimento e madeira.
São poucas as casas com assoalhos só de cimento ou lajotados. Os assoalhos em grande
parte das casas são suspensos, assentados sobre palafitas.

No território quilombola de Cachoeira Porteira os prédios públicos existentes são


apenas seis: o do barracão de reuniões, o da escola de ensino fundamental, o da casa de
força, onde fica o gerador de energia elétrica (movido a diesel), o de uma delegacia policial
(desativada), o do posto médico (fechado) e o em que está instalada a sede da AMOCREQ-
CPT. Todos eles localizam-se no povoado-sede da comunidade e pertencem à Prefeitura
Municipal de Oriximiná, com exceção do primeiro, que pertence àquela associação.

As moradias situadas no referido povoado estão distribuídas ao longo da BR-163,


numa extensão de aproximadamente três quilômetros – das proximidades do porto, no rio
Trombetas, até o ramal que dá acesso à pista de pouso de avião existente na comunidade.
Após esse ramal ainda se encontram três residências. Essa via principal tem como
pavimentação um aterro extenso, de piçarra, e que há mais de vinte anos não passa por
manutenção adequada.

Essa via, no trecho urbano, possui três pequenas transversais, cujos leitos são
constituídos de terrenos naturais, sem pavimentação; uma delas (que dá acesso à sede da
AMOCREQ-CPT) situa-se na parte do povoado que os moradores chamam de Morro e as

222
duas outras, mais próximas ao porto, na parte conhecida como Buraco (uma dá acesso à
área dos antigos conjuntos residenciais/acampamentos, hoje desmontados, de funcionários
das empresas Andrade Gutierrez e Eletronorte, que por mais duas décadas estiveram no
local; e a outra que dá acesso a umas poucas casas construídas atrás de algumas outras
cujas frentes estão voltadas para a via principal).

A via de que se está tratando aqui serve de divisa entre as áreas da Reserva
Biológica do Rio Trombetas e da Floresta Estadual do Trombetas. Ladeando essa estrada,
por quase toda a extensão da sede da comunidade de Cachoeira Porteira, existem dois
cursos d’água: o igarapé, ou restinga, do Genésio (dentro da área da Rebio) e o igarapé São
Miguel Arcanjo (dentro da área da Flota). Em função deles, tendo em vista evitar
alagamentos na época da subida das águas, é que as casas foram construídas sobre
palafitas.

Dentre essas casas destacam-se, pela grande quantidade, aquelas montadas com
aproveitamento de restos de materiais retirados dos conjuntos residenciais supra-aludidos49,
o que, junto com as palafitas, dá ao povoado certo aspecto de favela, refletindo as precárias
condições de vida da população local.

9.2 INDICAÇÕES HISTÓRICAS

Após a chegada dos europeus à Amazônia e à consolidação do domínio português


sobre seu território, tomou impulso a empresa de colonização, que, no seu bojo, trouxe um
conjunto de práticas econômicas baseadas na exploração dos recursos naturais sob o
domínio do capital mercantil.

No período colonial (1616-1823) a principal preocupação de Portugal, com relação


à Amazônia (a mesma que demonstrava no que se refere ao restante de suas terras na
América, afora a questão da manutenção das áreas conquistadas) consistiu, sobretudo, na
exploração dos produtos naturais e a sua destinação aos mercados da Europa.

Com relação a esse período pode-se estender à economia amazônica, então


voltada para fora, integrada que estava na engrenagem do sistema mercantilista, a verdade
da afirmação feita com referência explicita a uma de suas partes, a economia paraense, ou
seja, que “era bem mais um estabelecimento produtor, totalmente orientado para a Corte, do

49
Materiais estes por sua vez reaproveitados em grande parte dos acampamentos das referidas empresas em Tucuruí/PA onde as
mesmas participaram da construção da UHE no rio Tocantins.

223
que um sistema unificado com caracteres autônomos”50. Não obstante, registra-se aí “uma
sucessão de empreendimentos importantes, conhecidos entre os historiadores pela
designação de ‘ciclos’ – ciclos das drogas do sertão (canela, cravo, etc.), ciclo agrícola
(cacau, cana, café, arroz, algodão, etc.) e ciclo pecuário (criação de gado dos missionários
no Marajó”)51

Tais empreendimentos acabaram por lançar as bases organizacionais da economia


regional, de modo que a Amazônia, ainda enquanto Estado do Grão-Pará e Maranhão,
ingressou no século XIX, como uma colônia fortemente relacionada com o mercado externo,
numa conjuntura de relativa euforia herdada do final do século anterior (1790-1805)52.

No começo a escassez de braços “para trabalhos produtivos e domésticos era


notória na Amazônia”. Nessa época “era diminuta a quantidade de escravos negros, que
em tudo se confundiam com os escravos da terra”, os indígenas53.54.

Essa situação mudou no século XVIII a partir da guinada imposta ao modelo de


colonização da região determinada pela política ultramarina de D. José I, rei de Portugal
coroado em 1750, em cujo gabinete veio a pontificar o ministro Sebastião José de Carvalho
e Melo, o Marquês de Pombal. De modo que por volta da segunda metade do século XVIII
o contingente de escravos negros já era relativamente significativo na região.

É que apesar de o poder régio, no início do governo do Marquês de Pombal,


considerar necessário “mudar inteiramente de systema” com relação ao modelo de
colonização da Amazônia, a nova conjuntura estabelecida, decorrente do novo modelo
experimentado, não foi capaz de elidir a dependência de mão-de-obra escrava das unidades
produtivas integrantes dos empreendimentos acima mencionados – quer os extrativos (de
especiarias ou produtos silvestres: peles, fibras, resinas, óleos, gomas, leites, madeiras,
etc.), quer os pecuários (fazendas de gado) ou os de lavoura (plantação de cana, tabaco,
algodão, milho, arroz, mandioca, cacau, etc.), etc.

Naquele momento, na região, e sob o regime escravagista vigente o homem


branco, vale dizer, o imigrante espontâneo, recusava-se a todo trabalho braçal, recusava-se,
por exemplo, a lavrar a terra, um ofício necessário, mas que, socialmente, o diminuía e

50
Roberto Santos. A Economia do Estado do Pará. Belém, IDESP, 1978 (Relatórios de Pesquisa, 10); p. 12.
51
Idem, ibidem.
52
Cf. Santos, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor Ltda., 1980. p. 35; e A Economia do
Estado do Pará. Belém: IDESP, 1978 (Relatórios de Pesquisa, 10); p. 12.
53
Cf. Lucinda Saragoça. Da Feliz Luzitânia aos confins da Amazônia (1615-62). Ed. Cosmo e Câmara Municipal de Santarém.
Lisboa, Santarém, 2000; apud. Márcio Souza. História da Amazônia. Editora Valer, Manaus, 2009; p. 130.
54
Idem, ibidem.

224
humilhava. Por sua vez os indígenas, antes de ganharem, em 1755, “a liberdade total e sem
reservas”55, quando submetidos ao cativeiro pela violência, regiam rebelando-se ou fugindo.

De modo que “Para o trabalho agrário da plantação da cana, do tabaco, do


algodão, do milho, do arroz e da mandioca [etc.] só havia um recurso: o da escravatura
negra”56. Este recurso, sob as mais diferentes modalidades57, foi então largamente utilizado,
sobretudo depois da proibição da escravização dos índios (1755) e da atuação da
Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada no mesmo ano com o
objetivo principal de trazer da África escravos negros para a Amazônia a fim de dinamizar a
economia da região, combalida devido, dentre outras razões, à epidemia de varíola que no
final da década de 1690 assolou o Pará, dizimando mais de 40.000 pessoas (indígenas
escravizados, em sua grande parte). E de tal modo se utilizou daquele recurso que em
1774, dentre as quatro capitanias do Estado Grão–Pará e Maranhão, a do Pará, que era
então a mais populosa delas, já contabilizava 11.886 escravos negros (21,8% de sua
população total, que somava 54.464 pessoas; e, 50,5% de sua população branca, que
compreendia 23.454 pessoas58).

Enquanto área produtiva o Baixo-Amazonas paraense59, participou da euforia


econômica resultante da política aplicada pelo Marquês de Pombal, contribuindo no período
para o incremento da economia amazônica como um todo. No cenário dessa área, hoje
classificada como mesorregião – nas circunvizinhanças das cidades de Óbidos, Santarém e
Alenquer, principalmente – foram implantados então diversos empreendimentos
responsáveis pela exploração/geração dos produtos que compuseram parte importante não
só das trocas internas como da pauta das exportações para a Europa realizadas por aquela
companhia de comércio.

Isso requereu e canalizou para aquela área um grande número de escravos negros.
E aí, principalmente nas fazendas de gado e de cacau,60 mas também em outros

55
“desde que já integrados ou que se viessem a integrar nas estruturas eclesiásticas e politico-
administrativas do Estado do Grão Pará e Maranhão” . Azevedo e Silva, José Manuel de. “O modelo pombalino
de colonização da Amazônia”. Universidade de Coimbra, 09/05/2002.
56
Moraes, Raymundo. Amphitheatro amazonico. Cia. Melhoramentos de S. Paulo. S. Paulo, 1936, p.
149.
57
Cf. Sales, Vicente. Op. cit.
58
Cf. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – A. H. U., Pará, 14 de Fevereiro de 1774; apud Azevedo
e Silva, José Manuel. “O modelo pombalino de colonização da Amazônia”. Universidade de Coimbra,
09/05/2002.
59
“O Baixo-Amazonas segundo os entendidos estende-se do Rio Negro até o Xingu”. Hermes Filho,
Gabriel. In: O Baixo-Amazonas. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1966, p. 31.
60
Segundo Vicente Sales (cf. Op. cit.), no Baixo Amazonas a força de trabalho escrava foi utilizada
prioritariamente nas fazendas de cacau e gado.

225
empreendimentos, que estes eram vários na Amazônia61, a força do negro escravizado era
então submetida a uma exploração cruel.

A vida do captivo tornava-se no emtanto dura junto do feitor, na


maioria das vezes estrangeiro, inclinado tacitamente, por injuncções do
cargo, ao rigor e á violência. As plantações de canna, arroz, milho,
algodão e mandioca sob as vistas insensíveis do reinol, á luz crua do dia,
provocaram revoltas, surras, deserções (...) o preto labutava da manhã á
62
noite de terçado e enxada na mão .
Isso acicatou no negro escravo da área do Baixo Amazonas o desejo de liberdade,
ou, em outras palavras, de construção de espaços alternativos, “onde ser livre era
possível”63. Ele então procuva escapar em direção às cabeceiras de vários rios, dentre eles
o Erepecuru, o Curuá e/ou o Trombetas, este em especial64.

Fugia. Acuava-se como o touro amontado. Preso na cabeceira


dum igarapé ou na borda dum lago pelo capitão do matto, repetia a
deserção uma, duas, tres vezes, até que alcançava um núcleo irmão
inaccessível, fora da raia das buscas, um mocambo enfim, como o de
65
dentro do Trombetas (...) .
E assim, procurando ficar longe do alcance dos capitães-do-mato, foi que, na
margem esquerda do Amazonas, desde Almerim até Óbidos, os negros criaram os
mocambos; os quais, ao longo do século XIX, cresceram aceleradamente66. No distrito da
vila de Óbidos, em 1810, “Estando os mocambos consolidados, sua população ia de ‘dia
para dia augmentando pelas continuadas fugas de escravos que se sucedem quaze
diariamente no districto desta Villa” 67(...).

61
Edna Castro ao mostrar a relevância da participação do negro na economia regional “cujo trabalho foi
fundamental na construção da sociedade colonial” informa que “Ele participou ativamente nas atividades
agrícolas das fazendas de gado, cacau, algodão, cana de açúcar e nas demais lavouras, no transporte e na
navegação, como também nos engenhos de cana de açúcar, nos moinhos de arroz e nas demais atividades da
indústria extrativa, neste caso a extração de madeira por excelência. As construções de obras públicas
requeriam mão-de-obra escrava aplicada à fortificações, hospitais, cadeias, estradas, prédios para a
administração e comércio, ou ainda para construção de conventos e escolas, e uma série de outros serviços
urbanos. Pedreiras, olarias, extração de cal e serrarias de madeira constituíam atividades essenciais à
construção civil, lugares de trabalho escravo. Em todas as atividades, como inúmeras funções nas cidades e nos
espaços do trabalho doméstico, ele esteve presente pela mediação do seu trabalho. No período pombalino,
concomitantemente à formação de estruturas camponesas e da montagem de empreendimentos agrícolas com
base no trabalho escravo, é intensificado o tráfico de escravos, a comercialização de gêneros e a construção de
obras de infra-estrutura à produção”. Cf. Castro, Edna. “Terras de pretos entre igarapés e rios”...
62
Moraes, Raymundo. Op. cit., p. 145.
63
Funes, Eurípedes Antônio. Comunidades Remanescentes dos Mocambos do Alto Trombetas.
Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.
dezembro de 2000; p. 3.
64
Idem, ibidem, p. 5.
65
Moraes, Raymundo. Op. cit., pp. 145-146
66
Cf. Funes, Eurípedes Antônio. Op. cit.
67
Funes, Eurípedes Antônio. Áreas das Cabeceiras - Terras de Remanescentes: Silêncio, Matá,
Castanhanduba, Cuecé, Apuí e São José. Comissão Pró-Índio de São Paulo. São Paulo, ago-1999, p. 7 (Com
informação do Arquivo Publico do Estado do Pará (APEP). Fundo Correspondência de diversos com o governo
1807-1819. Série Ofícios. Ofício do Delegado de Polícia de Obidos, 24-11-1810, documentação em pacote).

226
Na segunda metade daquele século, durante uma viagem de estudos e
observações pela região, da qual resultou o livro O vale do Amazonas, publicado em 1866,
Tavares Bastos foi informado de que, perto de Óbidos, nos diversos mocambos existentes
no rio Trombetas existiam “muitas centenas de escravos fugidos”. Conforme disseram então
àquele parlamentar e escritor do Império o contingente populacional desses mocambos –
onde além de negros se podia encontrar também “criminosos e desertores foragidos” – já
perfazia “mais de 2.000 almas”68.

“O processo de fuga, individual ou coletivo, geralmente ocorria


em épocas de festas e mais especificamente, no caso da Amazônia, no
período de cheias: dezembro a maio. Nessa região as festas, em
especial as dos ciclos: natalino e junino, coincidem com o tempo de
inverno e da castanha. Os registros de fugas publicados no Baixo
69
Amazonas apontam essa evidência” .
Ao adentrar a bacia do rio Trombetas, os negros aquilombavam-se em locais
estrategicamente bem situados nos vários cursos d’água que ali existem; locais de difícil
acesso por parte das expedições punitivas, expedições de caça ou captura dos fugitivos,
cujos comandantes não tinham o domínio do meio ambiente.

Hoje, com base em diversas fontes (documentação histórica, depoimentos de


remanescentes de quilombo, etc.) se conhece o itinerário dos fugitivos durante as
escapadas.

Na bacia do Trombetas, os negros escravos fugidos ao buscarem as cabeceiras


dos rios avançaram até a cachoeira Campiche e os igarapés Turuna e Poana70. Nesse
percurso as marcas dos mocambeiros foram ficando ao longo das margens daquele rio, nos
nomes dados às cachoeiras, às ilhas, aos lagos, igarapés71 e aos próprios quilombos ou
mocambos construídos.

E estes foram vários. Os maiores situaram-se no alto dos rios, para além das
corredeiras e cachoeiras e/ou entre algumas delas, em trechos navegáveis72. “No entanto,
abaixo destas, nos igarapés e nos lagos como Mocambo, Conceição, Macaxeira, Abui,
Jacaré, Tapagem, Erepecu (Arepecu) e Moura, havia quilombos menores”73.

68
Tavares Bastos, Aureliano Candido. O vale do Amazonas, p. 201
69
Funes, Eurípedes Antônio. Comunidades Remanescentes dos Mocambos do Alto Trombetas. Projeto
Manejo dos Territórios Quilombolas. Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Dezembro de
2000; p. 3.
70
Idem, ibidem.
71
Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade”, E A Virtual nº
2, p. 6.
72
Idem, ibidem, p, 13.
73
Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e Identidade”, E A Virtual nº
2.

227
A origem da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, está ligada a esses
mocambos – tanto os situados nas áreas das “águas bravas”, das corredeiras e cachoeiras,
como os localizados abaixo delas, nas áreas das águas mansas.

Na segunda metade do século XIX, com o cessar das ameaças das ações
punitivas74, os escravos fugidos estabelecidos no alto dos rios, acima da primeira cachoeira
(batizada por um missionário franciscano de São Miguel Arcanjo, e de Porteira, pelos
fugitivos) deram inicio à volta para as áreas das águas mansas, premidos pela carência de
auto-suficiência ou, em outras palavras, pela necessidade de maior integração com a
sociedade mais ampla75, a começar com os quilombos que persistiam no médio Trombetas.

Essa volta, porém, não ocorreu de forma açodada e direta. Antes de chegarem à
área dos lagos, no médio Trombetas, os mocambeiros precavidamente fizeram paradas
estratégicas ao longo do caminho, onde criaram novos quilombos.

Um dos vários quilombos criados no movimento de volta ou de reterritorialização ao


deixarem a cabeceira dos rios foi o de Curuá76, que alguns ainda pronunciam “Croá” e
“Coroá”, situado a margem esquerda do Trombetas, às proximidades da foz do rio Cachorro,
antes da cachoeira denominada Porteira.

Aí nasceram os ascendentes de várias das famílias desta comunidade quilombola,


que tem também moradores cujos antepassados se originaram dos diversos outros sítios
por onde andaram os negros ex-escravos, tanto aqueles situados na área das águas bravas
(Campiche, Turuna e Poana, etc.) como os estabelecidos na área das águas mansas (Nova
Amizade, Tapagem, Tapaginha, Mãe-Cauê, Abuí, Boa Vista, Macaxeira, Arrozal, etc.).

Nesta área, a das águas mansas, foi por onde se espalhou no rio Trombetas a
maioria dos moradores do Curuá, após o ciclo das perseguições encerrado, pelo menos
oficialmente com a promulgação da Lei Áurea em 1888. Uns poucos desses moradores se
fixaram ali perto, logo abaixo da primeira cachoeira, na foz do igarapé, que hoje tem o nome
inicialmente dado àquela queda-d’água: São Miguel Arcanjo.

74
“Apesar de não ter havido, após a década de 1860, mais nenhuma incursão de capitães-do-mato no
Trombetas, em 1870, o então presidente da província assinou uma lei autorizando a destruição dos mocambos
do Trombetas e em 1876 ocorreu a expedição que destruiu o mocambo do rio Curuá, vizinho ao rio Trombetas”.
Wanderley , Luiz Jardim de Moraes, “Território Invadido”: As lutas e os conflitos nas terras dos negros do
Trombetas-PA, Rio de Janeiro, 2006, p. 16 (nota 8).
75
“No terceiro quartel do século XIX e primeiro do XX, o aumento da aceitabilidade da existência dos
quilombos, o melhor relacionamento social com a sociedade urbana regional, o fim das expedições de captura e
posteriormente a abolição da escravidão, permitiram que os negros descartassem a proteção das cachoeiras e
começassem a descê-las para ocupar as margens dos lagos abaixo delas. O descenso tinha a finalidade de se
aproximar de Óbidos para facilitar o comércio clandestino”. Wanderley, Luiz Jardim de Moraes, op. cit., p. 17.
76
Não confundir com o quilombo criado, antes, no rio Curuá,

228
Quando no início da terceira década do século XX uma equipe da 1ª. Comissão
Brasileira Demarcadora de Limites, chefiada pelo militar Braz Dias de Aguiar, chegou à área
da cachoeira Porteira, já encontrou aí, na embocadura do igarapé São Miguel Arcanjo, à
margem esquerda do Trombetas, alguns habitantes77, Em frente a esse local, na margem
direita do rio, aquela Comissão construiu um barracão de apoio, onde hoje se situa uma
fazendola de nome “Santa Helena”. Esse barracão, do qual ainda se podem encontrar
ruínas no local, era então chamado de “casa grande”. (Foto 42)

A comissão demarcadora teve grande influência no crescimento do pequeno


povoado, pois enquanto desenvolveu suas atividades na área, também ofereceu emprego a
vários ribeirinhos das proximidades (emprego de mateiro, cozinheiro, canoeiro, etc.). Com
isso alguns negros do Trombetas, tanto os que moravam mais abaixo, na área das águas
mansas, como outros que ainda moravam mais acima, no Curuá78, foram residir no povoado
ao lado do igarapé São Miguel Arcanjo, o qual passou então a ser chamado de “Rua dos
Morenos” e/ou “Vila dos Pretos” 79.

Nesse povoado em 1942 habitavam quinze famílias, segundo informação de alguns


moradores antigos80.

Após a saída da comissão de limite, chegaram os regatões:


Costa Lima, Cazuza Guerreiro, que compravam os gêneros produzidos
pelos remanescentes de quilombos, como: farinha de mandioca, milho,
banana, tabaco, etc... O meio de transporte utilizado era a canoa.
‘Em 1971, chegou a empresa DNER, que abriu a estrada grande
(...).
‘Com a chegada construtora Andrade Gutierrez em 1972, o
povoado cresceu bastante chegando aproximadamente umas 3 mil
pessoas.
‘Após a Andrade Gutierrez,chegou a EletroNotorte em 1981,
juntamente com a ENGE-RIO, que vieram fazer o projeto e levantamento
do potencial energético das cachoeiras. A EletroNorte trouxe outras
empresas: Geomecânica, GR, ASEL e outros.
‘A construtora Andrade Gutierrez fornecia madeira para a mineração Rio
do Norte, no período de 1984 a 1989 – projeto empregou grande parte da mão-
81
de-obra negra da comunidade” .

77
Ver foto feita pelo fotógrafo daquela Comissão em 1934 in: Braz Dias Aguiar. Trabalhos da Comissão
Demarcadora de Limites – Primeira Divisão – Nas Fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa, de 1930 a 1940
In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia, cf.: Eurípedes Antônio Funes. Comunidades Remanescentes dos
Mocambos do Alto Trombetas. Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas. Departamento de História da Universidade
Federal do Ceará. Dezembro de 2000; p. 7.
78
Alguns destes moradores da área das águas bravas foram Manoel Vieira e Maria Vieira Cotoró; eles formavam um
casal de ex-escravos que, para escapar às perseguições, subira o Trombetas até o Turuna, onde nasceram seus filhos. Mais
tarde essa família, procurando superar dificuldades relativas ao escoamento de seus produtos (castanha, copaíba, andiroba,
mel, jutaí-cica, breu, tauri, cipó e até ouro) mudou-se para o lugar a que deram o nome de Curuá, às proximidades da foz do rio
Cachorro. Foi daí que o referido casal saiu para juntar-se com outros na Vila dos Pretos. Cf. Azevedo, Ozanete Vieira &
Ribeiro, Sebastiana da Silva. O negro no Brasil: educação e cultura dos remanescentes de quilombos na comunidade de
Cachoeira Porteira. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao colegiado de Pedagogia da Universidade Federal do
Pará, para obtenção do grau de licenciatura plena em Pedagogia (Orientador: Ms. Everaldo M. Portela). Oriximiná, 2007, PP.
25-26.
79
. Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit.
80
Idem, ibidem.

229
Foto 45 - Ruínas da “Casa Grande”

Fonte: Comissão Demarcadora de Limites na fazenda Santa


Helena em Cachoeira Porteira

81
Idem, ibidem, pp. 26-27

230
9.3 POPULAÇÃO

População residente no território quilombola de Cachoeira Porteira por ocasião do


levantamento compreendia 457 pessoas. Destas, 242 (53%) são do sexo masculino, e 215
(47%) do sexo feminino.

Com relação à idade pode-se dizer que mais da metade dos moradores (57,99%)
inclui-se no grande grupo de até 29 anos; do restante – exclusive os moradores sobre os
quais não se obteve informação (21,66%) – 18,16 % pertence ao grupo de 30 a 64 anos; e,
2,19 % ao grupo de 65 anos e mais conforme os dados apresentados na Tabela 17.

Tabela 17: População quilombola da comunidade de Cachoeira Porteira,


segundo faixa de idade

Especificação Abs. %

Menos de 1 ano 05 1,09

0 a 6 anos 64 14,01

7 a 14 anos 102 22,32


15 a 18 anos 43 9,41
19 a 29 anos 51 11,16
30 a 49 anos 60 13,13
50 a 64 anos 23 5,03
65 anos e mais 10 2,19
Sem informação 99 21,66
Total 457 100,00

Fonte: GCQ/CPE – ITERPA - Levantamento de campo: março/abril de 2012

Com base nestes dados apesar número de moradores sem informação sobre a
faixa etária, pode dizer, que o contingente populacional da comunidade quilombola de
Cachoeira Porteira é uma população jovem.

As quatro pessoas mais idosas do lugar em março/abril de 2012 eram Leonardo


Santos (92), Tomásia Pereira de Jesus (82), Venância Melo (77) e Valdemar dos Santos
Vieira (74).

O grupo populacional de Cachoeira Porteira, que soma 111 famílias domiciliares, se


acomoda em um total de 93 residências.

231
Examinando-se a tipologia dessas famílias constatou-se que: a) 50 delas (45,05 %)
são do tipo nuclear completa – formada apenas pelos cônjuges e filhos; b) 18 (16,22%)
constitui-se de famílias ampliadas – que além dos cônjuges inclui também filhos e outros; c)
11 (9,90%) são famílias quebradas com chefe homem – que reúne a nuclear e a ampliada
sem o cônjuge mulher; d) 10 (9,91%) compõem famílias quebradas com chefe mulher –
que reúne a nuclear e a ampliada, com a diferença de que o cônjuge presente é a mulher);
e, 21 (18,92%) são famílias do tipo casal82.

Quanto ao tamanho, do total de 111 famílias da comunidade, 71 ou 63,96% eram


pequenas (com até 4 membros); 23 ou 20,72 % eram médias (com 5 a 6 membros) e 17 ou
15,32% eram grandes (com mais de 6 membros).

9.4 ASPECTOS ECONÔMICOS E RENDA DOS MORADORES

9.4.1 Sobre a Economia

A economia da pequena comunidade de Cachoeira Porteira atualmente tem como


principais suportes: 1) A coleta da castanha-do-pará (ou castanha-do-brasil); 2) alguns
serviços – tais como administração pública municipal e comércio; e, 3) os aportes do
governo federal através da previdência social (aposentadorias) e do Programa Bolsa
Família.

Coleta da castanha.

Na bacia do rio Trombetas, que integra a macrorregião do Baixo Amazonas, a


coleta da castanha (Bertholletia excelsa) tem uma longa tradição.

No início, antes da presença dos europeus na Amazônia, essa coleta era praticada
pelos primeiros habitantes: os indígenas, que, naquela bacia hidrográfica, ocupavam as
áreas de castanhais ou perambulavam por elas83.

Depois, a partir da ocupação da área pelos negros fugidos da escravidão e do


estabelecimento de suas redes de relação social com a sociedade circundante, a extração
da castanha passou a ser realizada também pelos mesmos, os ex-escravos.

Segundo a Comissão Pró-Indio de São Paulo é desde o século XIX que “os
quilombolas de Oriximiná coletam e comercializam a castanha-do-pará que representa para
eles uma importante fonte de renda”84.

82
Cf. sobre a tipologia utilizada: José Pastore et al. Mudança social e pobreza no Brasil: 1970-1980 (o
que ocorreu com a família brasileira?). S.P. Pioneira/FIPE; 1983.
83
O produto era por eles utilizado na alimentação.

232
Em 1898 Oliver Derby escreveu:

Actualmente a população do Trombetas está muito espalhada.


Até ao longo Arapicú há alguns sítios dispersos de brancos e tapuios,
sendo aquelles principalmente negociantes que commerciam em
castanhas. Entre este ponto e as cachoeiras vivem alguns negros em
diversos pontos ao longo do rio até o aldeamento principal que está
situado a uma distância de alguns dias de viagem acima da primeira
cachoeira. Nos mezes de outubro e novembro muita gente da parte
baixa do rio e mesmo do Amazonas, dirige-se as praias de arêa, que
ficam immediatamente abaixo das cachoeiras com o fim de apanhar
tartarugas e ovos de tartarugas, ao passo que pouco tempo depois, esta
85
mesma região fica cheia de colledores de castanhas .
Entre tais coletores estavam, já há bastante tempo, por certo, os negros que deram
origem à comunidade de Cachoeira Porteira.

De acordo com a Comissão Pró-Indio, já citada, no Trombetas:

“A extração da castanha é um dos elos que unem os atuais


quilombolas aos seus ancestrais. O conhecimento dos castanhais é
considerado uma herança deixada pelos antepassados. Dizem os
quilombolas que foram os negros fugitivos que "descobriram" os
castanhais. Até hoje, os conhecimentos sobre a atividade de extração da
86
castanha são transmitidos de geração para geração” .
Essa atividade, a coleta da castanha, é tão marcante entre as comunidades
quilombolas da área (incluindo aí, naturalmente, os de Cachoeira Porteira) que seus
integrantes até a utilizam como um dos elementos de sua identidade étnica.

Trata-se de uma característica concebida por eles próprios como


delimitadora da fronteira étnica entre os quilombolas e os demais setores
da população rural da região que se dedicam preferencialmente à
agricultura e à pecuária. Assim, os quilombolas de Oriximiná muito
87
comumente se autodefinem como "castanheiros .
Nos dias atuais o território de Cachoeira Porteira é utilizado como um bem comum
pelos integrantes dessa comunidade quilombola, tanto no que concerne às suas atividades
agrícolas, como com relação à caça, nas áreas de mata, ou à pesca nos lagos, rios e
igarapés.

Do mesmo modo os moradores dessa comunidade procedem com relação à


principal atividade econômica local: a coleta da castanha. Nessa comunidade não existem

84
Comissão Pró-Índio de São Paulo.
http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/pa/pa_comunidades_amazonas_cast.html.
85
Derby, Oliver. O rio Trombetas. In: Hartt, C. H. Smith, H. e Derby, O. Trabalhos Restantes Inéditos da
Comissão Geológica do Brasil, 1875 – 1878. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Tomo II, fasc. 1 – 4,
1897 – 1898, p. 373. Apud: Funes, Eurípedes Antônio, “Mocambos do Trombetas – História, Memória e
Identidade”, E A Virtual nº 2, p. 10.
86
Comissão Pró-Índio de São Paulo.
http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/pa/pa_comunidades_amazonas_cast.html.
87
Idem, ibidem.

233
ocupantes ou proprietários de lotes rurais individuais, e em consequência, nenhum dos
castanhais atualmente explorados pertence a uma única pessoa ou família. Isso é explicado
pela percepção que se tem da terra como um bem coletivo, no sentido de que se trata de
um valor de uso indivisível destinado a todos integrantes da comunidade.

E assim sendo, em Cachoeira Porteira, cada um de seus moradores tem o direito


de explorar os recursos naturais do território.

Na prática, nessa comunidade – no caso de algumas atividades extrativistas,


dentre as quais, a coleta da castanha – têm-se alguns acordos tácitos que dão às famílias
residentes às proximidades de determinados castanhais a prioridade, não a exclusividade,
para a sua exploração.

O uso dos territórios pelos quilombolas de Oriximiná obedece a


regras calcadas na tradição e no consenso, compartilhadas pelas
diversas unidades familiares. Uma dessas regras proíbe a venda da terra
88
e a destruição de castanheiras.
Além disso, importa dizer aqui que o extrativismo da castanha em Cachoeira
Porteira, assim como ocorre em outras comunidades quilombolas de Oriximiná, implica a
ocupação e a exploração de extensas áreas, fato que nem sempre é bem compreendido se
não se tem informação sobre a peculiaridade dessa realidade.

As áreas das residências e dos roçados (habitualmente


localizados nas margens dos rios e dos lagos) são ocupadas no verão,
período em que se dedicam mais intensamente às atividades agrícolas e
à pesca. Já no período de inverno (época das chuvas), muitos
quilombolas (às vezes famílias inteiras) deslocam-se para as matas a fim
89
de realizar a coleta da castanha .
Quando, em abril/maio de 2012, a equipe ITERPA/IDESP esteve naquela
comunidade constatou esse fato.

Em Cachoeira Porteira a atividade de extração da castanha envolve não só a área


de pretensão da AMOCREQ-CPT, mas, também, parte da área da Reserva Biológica do Rio
Trombetas, com a autorização/monitoramento da administração dessa unidade de
conservação federal.

Após ser coletada no meio da floresta, em distância que varia, em linha reta, de
quatro a oitenta quilômetros do povoado e depois transportada para este povoado (em
canoas, lanchas movidas a motor de popa e/ou “rabetas”, através de rios e igarapés, nos
quais às vezes se tem de enfrentar remansos e corredeiras; ou, pela BR-163, com a ajuda
de um trator), a castanha é armazenada em paióis pertencentes a cinco intermediários,

88
Idem, ibidem.
89
Idem, ibidem.

234
todos integrantes da associação quilombola local. Destes, quatro atuam com base no
sistema de aviamento, fornecendo aos castanheiros o que eles precisam para coletar a
castanha, deixando, porém, o acerto de contas para cada momento de entrega do produto
ou para o final da safra; o quinto, que não faz uso desse sistema, não avia ninguém; sua
prática, como ele diz, é a de pagar na hora a quantidade de castanha que lhe for ofertada
por qualquer castanheiro/coletor.

Os coletores de castanha de Cachoeira Porteira não se vinculam, obrigatoriamente


a qualquer dos intermediários, podendo, num determinado ano, trabalhar com um, no ano
seguinte, com outro deles.

De Cachoeira Porteira, a castanha coletada é transportada para a sede do


município de Oriximiná, ou, com mais frequência, para a cidade de Óbidos, onde os
compradores têm oferecido maiores vantagens àqueles intermediários.

Nessas duas cidades, segundo moradores da comunidade, a castanha de


Cachoeira Porteira é entregue por um preço geralmente duas ou três vezes maior do que o
pago na origem, às usinas de beneficiamento do produto. Mais isto só tem favorecido a uns
poucos, aos intermediários. Sobre estes, se pode dizer que são os substitutos atuais dos
atravessadores, regatões ou patrões de antigamente.

A maioria deles, provavelmente, reagirá de forma negativa às ações que devem ser
efetivadas com vistas à mudança necessária da situação, em benefício da comunidade
como um todo.

A comunidade, porém, não deve estancar diante de uma tal reação. E uma das
primeiras coisas a fazer nesse sentido é acabar com o sistema de exploração ao qual
castanheiros de Cachoeira Porteira estão submetidos, a fim de que os mesmos possam
usufruir melhor do produto de seu trabalho. Nesse sentido uma das ações poderia ser a
criação de uma cooperativa, nos moldes da Cooperacre – Cooperativa Central de
Comercialização Extrativista do Acre, que o presidente da AMOCREQ-CPT visitou em 2011,
num intercâmbio promovido pelo SFB – Serviço Florestal Brasileiro como forma de promover
o desenvolvimento socioeconômico de comunidades extrativistas através da
comercialização de produtos não madeireiros.

Os serviços da administração municipal e o comércio

A administração pública do município de Oriximiná em Cachoeira Porteira destaca-


se como um dos principais suportes da economia local, na medida em que mantém na

235
comunidade um quadro de funcionários, em diferentes setores, para o qual repassa
regularmente todo mês um determinado volume de recursos financeiros (salários).

Esses recursos dizem respeito à manutenção na comunidade de serviços relativos


à educação, saúde, abastecimento de água, energia elétrica, saneamento básico (coleta de
lixo) e transporte fluvial.

Os serviços relativos à educação são disponibilizados à comunidade através de


uma única escola, a qual, em três turnos oferta três modalidades de ensino: Educação
Infantil, Ensino Fundamental (de 1ª a 4ª séries) e EJA (Educação de Jovens e Adultos). No
quadro funcional dessa escola, além do pessoal de serviços gerais, figuram: uma diretora e
nove professores. Os alunos em abril/maio de 2012 somavam um total de 181 (cento e
oitenta e um).

Na área da saúde, a Prefeitura Municipal de Oriximiná mantém em Cachoeira


Porteira apenas dois funcionários: um agente de saúde, e uma técnica em análise de casos
de malária e leishmaniose.

Na sede da comunidade existe um prédio reservado para funcionar como posto


médico, que “apesar de ser reformado todo ano”, conforme dizem alguns moradores, há
muito tempo permanece fechado por falta de médico, enfermeiros/auxiliar de enfermagem,
equipamentos e remédios. Importa dizer aqui que o agente de saúde – que às vezes tem
de atuar como enfermeiro ou auxiliar de enfermagem – atende em sua própria casa.
Enquanto as análises sanguíneas para a detecção de casos de malária e leishmaniose só
podem ser realizadas na comunidade porque a associação quilombola conseguiu adquirir o
equipamento necessário.

Os serviços relativos ao fornecimento de energia elétrica e de abastecimento de


água aos moradores de Cachoeira Porteira estão sob os cuidados de dois moradores da
comunidade, que recebem salários da Prefeitura Municipal.

A energia é fornecida num período de cinco horas diárias, a partir de um gerador,


que funciona à base óleo diesel. Quanto ao abastecimento de água na comunidade ele é
feito a partir da utilização de dois sistemas: 1) um que resulta do aproveitamento de uma
fonte natural situada em terreno elevado, faz com que a água captada, em função da
declividade do terreno, chegue, através de tubulações adequadas, à maioria das residências
(as situadas na área do Morro); 2) o outro, através do qual o restante dessas residências é
atendido, utiliza bomba hidráulica.

236
Para a coleta do lixo urbano, que acontece duas vezes na semana, a Prefeitura
Municipal de Oriximiná disponibiliza à comunidade, um trator equipado com uma carroceria
de caminhão e mais cinco funcionários: o motorista do trator e quatro garis.

O serviço de transporte fluvial disponibilizado aos moradores de Cachoeira Porteira


pela administração municipal de Oriximiná através de um barco/motor é ofertado uma vez
por mês. O barco, através do qual se presta esse serviço, pertence a um morador da
comunidade e tem capacidade para quarenta e cinco passageiros. O percurso coberto
compreende Cachoeira Porteira—Porto Trombetas—Oriximiná/Orimixiná—Porto
Trombetas—Cachoeira Porteira.

Em virtude dos recursos resultantes da manutenção desses serviços é possível


dizer que essa comunidade realmente “depende em grande parte da prefeitura”90 de
Oriximiná. Uma dependência, cuja magnitude parece avultar no período em que ali costuma
ocorrer uma redução de circulação de moeda, de dinheiro em espécie: o da entressafra da
coleta de castanha.

É nesse período que o pequeno comércio existente em Cachoeira Porteira passa


por momentos difíceis, refletindo dificuldades também experimentadas no mesmo período
pela maioria das famílias. Nessas ocasiões o dinheiro dos salários dos funcionários da
prefeitura, assim como das aposentadorias e bolsas-família ajuda a segurar o tranco até a
chegada da próxima safra da castanha.

Em meados do primeiro semestre de 2012 o comércio em Cachoeira Porteira podia


ser dividido em dois segmentos: a) o representado pelos cinco intermediários locais da
castanha era o mais forte, o mais capitalizado, e especializado na compra e venda desse
produto; b) o outro segmento era o dos botecos, baiucas, bares/mercearias e
mercearia/panificadora encontrados na sede da comunidade, num total de dez pequenos
estabelecimentos.

Os aportes do governo federal

Os aportes ou contribuições do governo federal, através do pagamento de


aposentadorias pelo Ministério da Previdência Social (MPS) e o Programa Bolsa Família,
vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), assim como
os recursos oriundos dos serviços mantidos pela Prefeitura Municipal de Oriximiná em
Cachoeira Porteira, constituem, por certo, um importante elemento de reforço da economia

90
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 28.

237
desta comunidade quilombola, na medida em que, de certo modo, amenizam a situação de
miséria que aflige a maioria das famílias que ali residem.

Segundo o presidente da AMOCREQ-CPT, em 2012, do total de famílias existente


em Cachoeira Porteira, 50% aproximadamente possuem pelo menos um aposentado na
família. Número, segundo a mesma fonte, igual é também o de famílias que recebem
recursos através do Bolsa Família, os quais variam em função do número de filhos
cadastrados no programa.

A renda dos moradores

A informação obtida quanto à renda dos moradores de Cachoeira Porteira,


referente a meado do primeiro semestre de 2012, é a que se apresenta na Tabela 18:

Tabela 18: Famílias integrantes da comunidade quilombola de Cachoeira


Porteira, segundo a renda declarada

Especificação Abs. %

Sem renda 16 14,41


Até 0,5 SM 40 36,04
Mais de 0,5 a 01 SM 23 20,72
Mais de 01 a 02 SM 26 23,42
Mais de 02 a 03 SM 01 0,90
Sem Informação 05 4,51
Total 111 100,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

Conforme se pode observar nesta tabela, do total de famílias da comunidade,


14,41% informou não possuir nenhuma renda por ocasião do levantamento; enquanto isso,
36,04% declarou que a sua renda mensal não ultrapassava meio salário mínimo91.

Enquanto isso as famílias com renda mensal acima de meio até dois salários
mínimos compreendiam 44,14%.

Apenas uma família (0,90%) contava com renda mensal situada na faixa de maior
de dois até três salários mínimos.

91
Na data do levantamento de campo o valor do salário mínimo no Brasil correspondia a R$ 622,00 (cf.
Decreto 7.655, DE 23/12/2011, DOU 26/12/2011.

238
Apesar de não se ter obtido informação sobre os rendimentos mensais de 4,51% do
total de famílias da comunidade, os dados obtidos com relação às demais (95,49%) são
suficientes para se fazer uma ideia da precariedade das condições de vida dessa
população.

9.5 ASPECTOS DAS CONDIÇÕES DE VIDA DA POPULAÇÃO

Alimentação

No âmbito das ciências sociais, a compreensão das chamadas condições de vida


de um determinado grupo de seres humanos envolve, pelo menos dois conceitos: o de nível
de vida (que diz respeito aos modos de ter) e o de gênero de vida (que se refere aos modos
de ser) desse grupo. A alimentação – enquanto elemento que é daquelas condições –
situa-se na área de interseção desses dois conceitos, o que convém não esquecer quando
se tem aquela compreensão como objetivo a atingir.

No caso de Cachoeira Porteira as poucas informações disponíveis sobre a


alimentação de seus moradores não possibilitam, per se, o aprofundamento da realidade
observada, mas podem ser úteis como pistas a serem seguidas na direção da compreensão
que se quer daquela realidade.

Uma dessas informações advém de conversas com moradores da comunidade.


Entre estes há como que um consenso sobre o fato de que a produção de alimentos em
Cachoeira Porteira, já há algum tempo, vem experimentando um acelerado processo de
decadência, considerando-se que a comunidade a cada dia parece tornar-se mais
dependente de outros centros de produção.

A importância dada à coleta de castanha na área da bacia do rio Trombetas em


geral explica essa realidade, mas não a explica completamente. Isso só poderia ocorrer se
essa atividade extrativa fosse incompatível, por exemplo, com a agricultura familiar, o que
não é o caso, conforme provam uns poucos que, em Cachoeira Porteira, após o período de
inverno, ao fim da safra da castanha, encontram, no verão, as roças que plantaram antes, já
amadurecidas, prontas para serem trabalhadas ou colhidas.

Em Cachoeira Porteira o abandono da agricultura familiar, na proporção em que


vem ocorrendo não se explica, portanto, em função daquela atividade extrativista.

Sobre isso, aliás, convém lembrar aqui a potencialidade do mercado de produtos


agrícolas no entorno daquela comunidade; entorno esse no qual se situam as cidades de

239
Porto Trombetas e Oriximiná – para mencionar aqui apenas as mais próximas (cidades
para cujo acesso os moradores de Cachoeira Porteira dispõem de transporte gratuito todo
mês e para as quais, aproveitando esse transporte, poderiam escoar algum excedente de
sua produção).

Eles, esses moradores, como se pode deduzir a partir da decadência a que se


aludiu acima, estão necessitados de melhorias na qualidade de suas condições de vida;
melhorias que se poderiam iniciar com alguma atenção à questão da produção local de
alimentos. Desse modo, artigos cuja produção deixou de existir ou se encontra hoje
bastante reduzida em Cachoeira Porteira – tais como farinha de mandioca, feijão, milho,
arroz ou frutas como melancia e abacaxi, assim como frango e outros – voltassem a ser
produzidos na comunidade em quantidade suficiente para o aproveitamento do excedente
como importante fonte de renda (conforme já ocorreu no passado, “no tempos dos
regatões”, por exemplo).

Atualmente em Cachoeira Porteira esses artigos ou produtos são vistos com


frequência sendo postos em terra, retirados dos barcos oriundos das cidades de Oriximiná
e/ou Porto Trombetas com destino ou aos estabelecimentos comerciais para serem
revendidos ou diretamente às casas dos consumidores ao retornarem das viagens.

Apesar da decadência ou do empobrecimento da produção alimentar na


comunidade quilombola em referencia, que a informação acima de certa forma ilustra,
cumpre registrar aqui o fato do qual os moradores de Cachoeira Porteira muito se orgulham
e que os visitantes podem comprovar: essa comunidade ainda apresenta grande fartura em
termos da alimentação proveniente da caça e da pesca.

Educação.

De acordo com o que é amplamente sabido, o domínio da educação – vista como


processo, método e ação que permitem o desenvolvimento das faculdades físicas,
intelectuais e morais do ser humano – é imenso.

Enquanto elemento ou pilar importante que é da infraestrutura social, a educação


em Cachoeira Porteira apesar de registrar alguns avanços, obtidos ao longo de sua história,
ainda hoje92 apresenta grande precariedade, o que se tem refletido negativamente na
qualidade das condições de vida da população.

Conforme se adiantou acima, no item anterior, em Cachoeira Porteira existe apenas


uma escola, de nome “Constantina T. dos Santos”. Localizada na sede da comunidade, o

92
Os dados apresentados são referentes ao primeiro semestre de 2012.

240
referido estabelecimento oferta dois níveis de ensino: Infantil e Fundamental (este
complementado com uma classe de EJA – Educação de Jovens e Adultos93).

No Ensino Infantil a escola atende 26 alunos, no Ensino Fundamental, 125 alunos,


e na classe de EJA, 30 alunos. O quadro funcional da escola compreende: uma diretora,
nove professores e outros funcionários para serviços gerais.

Todos os professores da escola, integrantes da AMOCRQ-CPT, têm formação de


nível superior, graduados que foram pela UFPA - Universidade Federal do Pará, Campus de
Oriximiná.

Os custos de manutenção e funcionamento dessa escola, incluindo os salários do


quadro de funcionários, são de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Oriximiná.

A precariedade da educação, em Cachoeira Porteira, a que acima se faz referência,


revela-se nos seguintes fatos:

A falta de condições de trabalho dos professores não lhes permite oferecer um


ensino de qualidade aos seus alunos, apesar de todos terem formação de nível superior.

A carência de material – que, segundo a direção da escola, se pode dizer que tem
quase um caráter permanente em Cachoeira Porteira, não obstante as insistentes
cobranças e reclamações feitas à Secretaria de Educação do Município – soma-se à
inadequações do espaço de trabalho. Diz-se isto considerando que, a despeito de, quando
da construção do prédio da escola ter havido grande preocupação com a sua imponência
arquitetônica, parece não ter havido preocupação nenhuma com a adequação desse prédio
à sua finalidade.

Devido a isso a escola, atualmente, se por um lado apresenta grandes espaços


ociosos, que da forma como se encontram não podem ser utilizados em atividades
educativas, por outro, não dispõe de um único auditório, assim como não dispõe também de
uma quadra de esporte decente nem de uma biblioteca capaz de ser aproveitada
adequadamente por alunos e professores.

A inexistência de ensino de nível médio público em Cachoeira Porteira.

93
A EJA é um dos segmentos da educação básica regulamentado pelo artigo 37 da Lei de Diretrizes e
Bases da educação (a LDB, ou lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996), que recebe repasse de verbas do
governo federal através do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação – FUNDEB.

241
A Lei Federal nº 9.394/19961 (LDB), define o ensino médio como parte da
educação básica, correspondendo à sua etapa final, competindo-lhe preparar o aluno para a
continuidade dos estudos, assim como para o trabalho e o exercício da cidadania.

A implantação desse nível de ensino por parte do poder público na referida


comunidade quilombola, que já possui os níveis de ensino infantil e fundamental, é uma
demanda já relativamente antiga dos moradores através da AMOCREQ-CPT, segundo um
de seus diretores.

O atendimento dessa demanda, apresentada já há alguns anos aos poderes


competentes, até o momento não foi sequer sinalizado. Este fato tem prejudicado
enormemente a comunidade de Cachoeira Porteira, à medida que tem impedido a vários
jovens ali residentes a preparação adequada quer para o ingresso no ensino superior, quer
para o trabalho e/ou o exercício da cidadania.

Estes jovens são os que já tendo concluído o ensino fundamental, não têm, porém,
condições de cursar o ensino médio nas cidades mais próximas que o oferecem, como
Oriximiná, Óbidos, Santarém ou mesmo Manaus, onde uns poucos de Cachoeira Porteira
têm a sorte de contar com parentes, e, com o apoio dos quais, dão prosseguimento a seus
estudos.

Nenhum dos jovens que já tendo concluído na comunidade, recentemente ou há


algum tempo, o ensino fundamental, e que continua em Cachoeira Porteira conseguiu
emprego nalguma empresa do complexo industrial de Porto Trombetas, ali perto. A
dificuldade disso, segundo se diz entre alguns deles, está fortemente relacionada à falta de
oferta local do ensino médio.

Sem emprego, alguns dos jovens ultimamente se têm iniciado em caminhos tortos
como o alcoolismo, por exemplo, não sendo raro o seu envolvimento em algazarras,
tumultos ou brigas em Cachoeira Porteira – o que preocupa não só as respectivas famílias
como a própria AMOCREQ-CPT, que, de vez em quando, para amenizar o problema, edita
comunicados como o de 08/07/2011, que proíbe, entre outras coisas, a “venda de quaisquer
bebidas e cigarros a qualquer pessoa menor de 18 anos de idade (...)”.

Habitação.

Apesar do fato de praticamente todas as residências de Cachoeira Porteira serem


próprias, ou seja, de propriedade das famílias principais que as ocupam, as condições de
habitação dessas famílias, de acordo com declarações dos próprios moradores, são

242
precárias; realidade essa que se pode inferir a partir da observação de aspectos importantes
da estrutura básica das construções (piso, paredes e cobertura).

Uma grande maioria do total de habitações existentes naquela comunidade


(68,57%) tem seus pisos construídos de madeira (tábuas ou paxiúbas). Do restante, 26
(24,76%) tem pisos cimentados, e cinco (4,76%) de chão batido; uma só residência tem seu
piso de outro tipo de material, exclusive lajota (Tabela 19).

Tabela 19: Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira


segundo material do piso
Especificação Abs. %

Madeira (Tábuas ou
72 68,57
paxiúba)
Cimentado 26 24,76
Chão batido 05 4,76
Outro 01 0,95

Sem Informação 01 0,95


Total 105 100,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

No que respeita às paredes, apenas uma das habitações tem todas as suas
paredes de alvenaria; 94,29% delas têm paredes de madeira, e quatro outras (3,81%), de
outro tipo de material, exclusive taipa e juçara. Sobre uma (0,95%) das habitações não se
obteve informação (Tabela 20).

Tabela 20 Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira


segundo material usado na construção das paredes
Especificação Abs. %
0,9
Alvenaria 01
5
94,
Madeira 99
29
3,8
Outro 04
1
0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

243
Com relação à cobertura constatou-se que das residências existentes apenas duas
(1,91%) são cobertas totalmente com telhas de barro; a maioria (70,48%) tem como
cobertura telhas de amianto (brasilit); Dez residências (9,52%) têm cobertura de palha, e 18
(17,14%), de outro material, exclusive cavaco e sua combinação com palha e telha de barro.
Sobre uma das residências não se obteve informação (Tabela 21.)

Tabela 21 Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira


segundo material utilizado na cobertura
Especificação Abs. %

Telha de barro 02 1,91


Telha de amianto 74 70,48
Palha 10 9,52
Outro 18 17,14
Sem Infomação 01 0,95
100,0
Total 105
0
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

Energia elétrica.

O fornecimento de energia elétrica em Cachoeira Porteira (a partir de um gerador


movido a óleo diesel) é insuficiente. Esse serviço, conforme já dito em item anterior, é de
responsabilidade da Prefeitura Municipal de Oriximiná. O período diário desse fornecimento
é de apenas cinco horas, das 18:00hs às 23:00hs. A iluminação publica na comunidade é
praticamente inexistente.

Tal situação, como se sabe, repercute negativamente nas condições de vida dos
moradores, privando-os da possibilidade de usufruir de importantes benefícios.

Saneamento e Saúde.

Como um instrumento de controle dos agentes do chamado meio ecológico – os


quais exercem ou podem exercer efeitos nocivos ou deletérios sobre o bem-estar físico,
mental ou social do ser humano – o saneamento pode ser considerado um fator da maior
importância na prevenção das doenças e proteção da saúde94, constituindo, assim, um
indicador essencial para a avaliação das condições de vida de qualquer comunidade.

94
Segundo a definição adotada no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS), saneamento é o controle de
todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o bem-estar físico, mental e
social.

244
No caso de Cachoeira Porteira, a exemplo do que ocorre em várias outras
comunidades quilombolas do Estado – ou, melhor, na maioria das comunidades rurais do
Pará – as ações de saneamento ainda deixam muito a desejar, apesar da situação não ser
das piores, conforme se verá em sequência.

Começando-se pelo chamado saneamento básico – de que o abastecimento de


água, a remoção e o destino dos dejetos (lixo), ao lado das instalações sanitárias das
habitações são aspectos fundamentais – pode-se dizer, com base nas informações
disponíveis, que naquela comunidade a situação é de evidente precariedade.

No que se refere ao abastecimento de água tem-se que no sistema que utiliza uma
fonte natural, já descrito acima, o fornecimento não é permanente. No verão, por exemplo,
há períodos em que a água da fonte escasseia obrigando os moradores que dependem
desse sistema a passar por situações de aperto. Por outro lado os moradores que
dependem do sistema de bomba hidráulica, são obrigados a utilizar água sem tratamento
adequado, posto que esta é captada diretamente do rio. O mesmo acontece com aqueles
que moram fora de Cachoeira Porteira.

Com relação ainda ao abastecimento de água nessa comunidade um dado positivo


diz respeito ao fato de praticamente a totalidade das residências da referida comunidade ser
abastecida através de rede publica geral e contar com canalização interna (Tabela 22).

Tabela 22: Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira


segundo material abastecimento de água
Especificação Abs. %

Rede publica com 98,


103
canalização interna 10
0,9
Poço 01
5
0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

No que respeita ao destino do lixo domiciliar a informação obtida chega a


surpreender. Considerando-se a existência de coleta pública regular na sede da
comunidade, onde se localiza a maioria das residências, esperava-se que no caso das

245
mesmas o destino mais comum dado ao lixo aí produzido fosse a coleta realizada pela
prefeitura. Os dados obtidos mostram, porém, que na maior parte dos domicílios de
Cachoeira Porteira a prática mais frequente com relação à destinação do referido material é
a queima (Tabela 23).

Tabela 23 - Habitações da comunidade quilombola de


Cachoeira Porteira segundo destino do lixo
Especificação Abs. %

37,
Coleta pública 39
14
3,8
Enterrado 03
1
57,
Queimado 59
14
0,9
Outro 01
5
0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

A sede de Cachoeira Porteira ainda não conta com rede geral de esgoto. No que se
refere às instalações sanitárias domiciliares pode-se dizer com base nos dados obtidos que
na maioria das residências (90) da comunidade faz uso da fossa rudimentar. Em apenas 14
do total de residências a fossa séptica é utilizada (Tabela 24).

246
Tabela 24: Habitações da comunidade quilombola de Cachoeira Porteira
segundo esgotamento sanitário
Especificação Abs. %
Rede geral - -

13,
Fossa séptica 14
34
85,
Fossa rudimentar 90
71
A céu aberto - -

0,9
Sem informação 01
5
100
Total 105
,00
Fonte: GCQ/CPE/ITERPA - Levantamento de campo: abril/maio-2012

Conforme se adiantou acima, Cachoeira Porteira conta atualmente com um agente


de saúde e uma técnica de análise treinada para o estudo de casos de malária e
leishmaniose, cujas atividades (desenvolvidas com dificuldades em função da falta de
condições adequadas de trabalho) situam no domínio do chamado saneamento geral ou
saneamento ambiental. Nesse domínio também atua a AMOCREQ-CPT quando através de
placas expostas na rua principal orienta os moradores e visitantes da comunidade para não
jogarem lixo em determinados locais como a área do porto, por exemplo.

Tal como no caso do saneamento as informações sobre a saúde são de


importância fundamental para uma apropriada compreensão das condições de vida da
população residente em determinado espaço geográfico. Sabe-se que numa comunidade
como Cachoeira Porteira a saúde de seus moradores é fortemente influenciada por uma
série de fatores, dentre os quais se destacam: a alimentação, o nível de renda das famílias,
as condições de habitação, a quantidade e a qualidade dos serviços, notadamente os
relacionados ao saneamento e ao controle e tratamento de enfermidades, etc.95

Complementando as informações reportadas acima sobre esses fatores, importa


dizer aqui que em Cachoeira Porteira inexiste uma unidade de saúde sequer. O posto de
saúde há anos reclamado pela população local, apesar de existir na comunidade de um
prédio reservado para sua instalação que frequentemente passa por “reformas”, mas

95
Cf. Nascimento, Aldenor et. al. Repercussões sócio-econômicas do complexo industrial Albrás-
Alunorte em sua área de influência imediata. Idesp: Belém, 1991, passim.

247
permanece sem condições de funcionamento, porquanto não dispõe de água, nem de
pessoal, nem de equipamentos e nem de remédios, entre outros requisitos necessários 6.

Essa carência é agravada pela inexistência de visitas médicas periódicas à


comunidade, que poderiam ser agendadas pelas instituições de saúde, quer do município,
quer do Estado. Nos casos que requerem urgência os moradores costumam recorrer ao
Agente de Saúde local, que nem sempre os pode atender satisfatoriamente. Em muitos
casos de doença a esses moradores só lhes resta recorrer à chamada medicina caseira,
posto que, na referida comunidade, muitos são os que cultivam plantas medicinais ao redor
de suas casas.

Não obstante o desamparo a que essa comunidade está submetida no campo da


saúde, não se pode afirmar que nela o estado de doença constitua a normalidade, algo
habitual, permanente ou generalizado como é possível constatar em algumas outras áreas,
onde com frequência há sempre alguém que não pode estudar ou trabalhar, por exemplo,
devido a problemas de saúde. Em Cachoeira Porteira, pelo contrário, o que predomina é o
estado de saúde entre os moradores.

Esse fato, a que esses moradores se reportam com certo orgulho, provavelmente
tem correlação com a excelência da água consumida pela maioria deles e com a sua
alimentação, que além de farta, é enriquecida pela constância de um cardápio variado, em
que não faltam frutos regionais silvestres (castanha, piquiá, tucumã, ingá, etc.), pescados
frescos (piau, sardinha, surubim, filhote, dourada, tambaqui, camunanim, etc.), e carnes
verdes, de caça (jabuti, mutum, jacu, paca, caititu ou queixada, anta, etc.).

Comunicação

A população quilombola de Cachoeira Porteira é precariamente servida pelos meios


e comunicação.

Na comunidade não circula nenhum jornal diário, semanal ou mensal. Assim como
nenhuma revista.

Os telefones públicos existentes na comunidade, praticamente não funcionam; os


fixos particulares o fazem, mas frequentemente, com problemas. Os celulares, por sua vez,
dada a inexistência das torres necessárias, simplesmente não funcionam nem bem nem
mal.

248
Nessa comunidade ainda predomina o contato face a face e/ou o contado “indireto”
transmitido por terceiros.

O rádio (frequência AM), porém, tem ali ampla penetração.

Organização Social, Cultura e Lazer

Em Cachoeira Porteira, ainda um agrupamento primário, a forma de sociabilidade


das pessoas ou a vida associativa dos moradores de há muito ultrapassou o nível de uma
simples agregação familiar ou de uma amorfa aglomeração de vizinhança, atingindo a forma
atual de uma comunidade em que, entre os diversos elementos que a configuram e lhe dão
identidade, já é possível assinalar uma conscientização política e social ou comunitária
significativa. Diz-se isto considerando sobretudo a organização dos moradores após a
promulgação das Constituições em vigor, federal e estadual, em 1988 e 1989,
respectivamente – o que os levou ao seu auto-reconhecimento como descendentes de
quilombo e à criação da AMOCREQ-CPT – Associação de Moradores Remanescentes de
Quilombo da Comunidade de Cachoeira Porteira, no início de 2003.

Essa associação, cuja diretoria é eleita para um mandato de dois anos, constitui
atualmente a principal organização social atuante na comunidade. Dela participam todas as
famílias que ali residem. Sua criação resultou, basicamente, de quatro tipos de preocupação
ou interesse, que foram: 1º) Usufruir o direito assegurado aos quilombolas nos artigos de nº
68 (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e 322 das constituições federal e
estadual, respectivamente, acima mencionadas; 2º) Garantir a permanência dos
remanescentes de quilombos de Cachoeira Porteira na área dessa comunidade; 3º) Iniciar o
processo de demarcação e regularização de suas terras junto ao Estado (ITERPA); 4º)
Impedir que essa área, constantemente ameaçada por invasores (grileiros, empresas
madeireiras e mineradoras, pescadores de geleira, sojeiros, etc.), seja usada de forma
desordenada e em prejuízo de seus legítimos ocupantes; e, 5º) “Conservar e proteger a
floresta’ (existente dentro da área quilombola) ‘assim como a identidade de seu povo”96.

Uma primeira batalha enfrentada pela AMOCREQ-CPT, na qual os associados têm


utilizado praticamente todas as suas forças, diz respeito à titulação de suas terras; batalha,
que, surpreendentemente, apesar das garantias constitucionais, vem se revelando muito
mais intrincada do que se esperava.

Durante essa batalha, porém, a AMOCREQ-CPT tem conseguido contabilizar


alguns sucessos, dentre os quais se pode somar a adesão de vários e importantes aliados.

96
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., pp. 27-28

249
Uma prova evidente disso, a qual convém lembrar aqui, é dada pelo acordo não litigioso
que, por iniciativa da referida associação, os quilombolas de Cachoeira Porteira
estabeleceram em 30/07/2005, com os indígenas das etnias Wai-Wai, Tunayana e Kaxiuana
(com quem, aliás, há mais de século interagem nas bacias dos rios Trombetas, Mapuera e
Cachorro). Com esse acordo, quilombolas e indígenas validaram em conjunto o
reconhecimento dos limites de seus respectivos territórios.

Esse acordo, que no momento em que foi estabelecido, teve importância no âmbito
das inter-relações entre indígenas e quilombolas na referida área, após a criação, em 2006,
das Flotas Trombetas e Faro, pelo governo do Estado (que ignorou – violentou talvez seja a
palavra mais apropriada – o direito de constitucional de propriedade das populações
tradicionais que há muito tempo habitam aqueles territórios) serve ainda para mostrar que
não é de hoje que os povos indígenas reconhecem e concordam com os limites das terras
quilombolas e vice-versa.

Isso significa que em Cachoeira Porteira não há conflito entre quilombolas e


indígenas, e tanto não há que, além da aldeia de apoio dos wai-wai permitida pelos
quilombolas dentro da poligonal de sua área tradicionalmente reconhecida, na sede dessa
comunidade encontram-se duas casas de apoio indígena, utilizadas por wai-wai e
kaxiuanas, principalmente quando da espera do barco que os transporta todo mês até a
cidade de Oriximiná.

O estado Pará, através do IDESP, ITERPA, Procuradoria Geral e SEMA – após


reconhecer o equivoco que foi sobrepor as duas unidades de conservação acima
especificadas sobre a área de pretensão quilombola de Cachoeira Porteira – já providencia
a solução do problema criado. A brevidade dessa solução depende também do governo
federal, através da FUNAI, que, no processo, representa os indígenas acima especificados.
Espera-se que, em sintonia com esses indígenas, não crie maiores dificuldades.

Isto posto, convém aqui, encerrando estas considerações, reconhecer o seguinte: a


regularização do território quilombola de Cachoeira Porteira, a ser realizada agora o mais
cedo possível (como se deseja) ou mesmo mais tarde (no caso de impasses eventuais)
jamais se efetivaria se essa comunidade não tivesse atingido, como de fato atingiu ao longo
de sua historia, um nível considerável de organização social.

O elevado nível de organização social registrado atualmente em Cachoeira Porteira


não significa que quanto a isso não haja ainda muito espaço pela frente, ou que novos
níveis não possam ser conquistados. Há. Mas a comunidade, por certo, dispõe de
potencialidade para isso.

250
Um indicador dessa potencialidade que, ao mesmo tempo, a embasa, tem a ver,
certamente, com a experiência associativa desses moradores, cuja origem pode ser
buscada na prática comum de ajuda mútua (mutirão) entre as famílias locais, a qual ainda
existe na comunidade, e, atualmente, com certa frequência, além de ser estimulada entre as
crianças da escola, através dos “mutirões de limpeza”, também pode ser encontrada no
extrativismo da castanha, entre outras atividades econômicas locais.

Quanto à religião, a maioria da população de Cachoeira Porteira, pertence ao


catolicismo. Nessa comunidade os católicos veneram Nossa Senhora de Fátima como
padroeira do lugar, e São Francisco, como santo protetor, santo este que, segundo dizem,
“esteve junto aos negros desde a primeira habitação nas margens do Rio Turuna”97.

O período de 13 a 19 de maio corresponde ao da festividade em homenagem a


santa padroeira da comunidade, período que tem início com uma novena. Nesse período
ocorre a visita da imagem da santa às residências de seus devotos. No tempo dos primeiros
quilombos o culto católico era realizado nas casas dos moradores. Hoje ocorre num templo
(de madeira) construído em 1989. Não existem padres permanentes em Cachoeira Porteira.

Além da igreja católica, registram-se na comunidade três igrejas evangélicas:


Assembleia de Deus, Batista Missionária e Divino Espírito Santo. Estas surgiram no “período
das empresas”, iniciado em 1971/72 com a instalação de um canteiro de obras da
construtora Andrade Gutierrez e encerrado saída da Eletronorte.

Nesse período, vários foram os quilombolas de Cachoeira Porteira, que aderiram às


igrejas evangélicas. Assembleia de Deus, que, no momento, está construindo um templo
mais amplo e de alvenaria é hoje a maior delas, em número de adeptos. Nessa igreja, que
mantém permanentemente um pastor na comunidade, as celebrações ocorrem em três dias
da semana durante todo o ano: domingo, segunda-feira e quarta-feira.

Essas igrejas – que atuam harmonicamente, sem disputas acirradas quanto à


conquista de fiéis, são forças consideráveis que, em parceria com a AMOCREQ-CPT,
exercem um certo controle social na comunidade.

Os termos destacados acima – organização social, ajuda mútua, religião – aludem


a uma realidade integrante da totalidade que, no domínio das ciências sociais, se denomina
cultura.

97
As informações sobre religião em Cachoeira Porteira aqui apresentadas, em sua quase totalidade,
foram extraídas do trabalho de Ozanete Vieira Azevedo e Sebastiana da Silva Ribeiro citado em página anterior.

251
Nesse domínio fala-se em dois grandes eixos componentes da cultura, entendida
como significando tudo aquilo que resulta da produção social do ser humano no seu
exercício cotidiano de sobrevivência: 1) um referente à produção que decorre das relações
dos homens com a natureza; e, 2) o outro alusivo à produção derivada das relações dos
homens entre si. Isso implica no seguinte fato: em qualquer sociedade/comunidade
encontra-se pelo menos dois conjuntos amplos e ao mesmo tempo diversos de elementos
de cultura (os quais, naturalmente, apresentam vastas interseções). Esses elementos, de
certo modo, determinam os aspectos material e não-material da cultura.

Conforme diz o sociólogo Samuel Koenig,


Cultura material significa os objetos concretos – habitações,
artigos de vestuário, utensílios, instrumentos e invenções (como o
machado e a alavanca), e apresentações concretas de ideias, como
livros e pinturas; cultura não-material significa ideias, conceitos e
técnicas subjacentes a esses objetos, assim como as maneiras de
pensar e agir, valores e reações emocionais e, em geral, as criações
98
abstratas do homem, como idioma e literatura, ciência, lei e religião .
Essa ótica, como se pode inferir destas considerações, descortina uma abrangência
da cultura que aqui não poderá ser detalhada, como exigiria um estudo específico ou mais
exaustivo do conceito. Tal perspectiva, porém, ao enfocar-se aqui Cachoeira Porteira,
contribui para a identificação de alguns de seus elementos culturais, o que é imprescindível
para a apreensão adequada da realidade vivenciada pela população dessa comunidade
quilombola.

Antes, porém, de aludir especificamente a alguns dos elementos culturais dessa


comunidade, convém lembrar um fato importante do qual a maioria de seus habitantes têm
consciência plena: o de que em função da história construída no Trombetas, os negros que
habitam em Cachoeira Porteira se reconhecem como “mediadores de uma cultura
envolvente, onde os índios estão sempre presentes”99 – o que, aliás, não é de estranhar
considerando-se que nessa comunidade, os quilombolas e os indígenas mantêm uma
saudável convivência, como o provam não só as casas de apoio indígenas existentes na
área quilombola, como também a formação de famílias quilombolas resultante de
casamentos de vários remanescentes de quilombo com índias das etnias que por ali
transitam.

Os artefatos ou objetos culturais/históricos produzidos a partir da criação dos


primeiros quilombos ou mocambos na área da comunidade de Cachoeira Porteira,
atualmente sob a guarda da AMOCREQ-CPT, são ainda em número reduzido. Não

98
Koenig, Samuel. Elementos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, pp. 58-59.
99
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 30.

252
obstante, como não poderia deixar de ser, contêm importantes informações, ainda que
fragmentárias, sobre o aspecto material da cultura dos antepassados (criadores e usuários
dos objetos) dos atuais quilombolas da comunidade100.

Com relação a esse aspecto material da cultura de Cachoeira Porteira o olhar


interessado em artefatos culturais da comunidade tem que se dirigir, sobretudo, para a
esfera das atividades produtivas que, de um ou outro modo, envolve toda a sua população:
o extrativismo da castanha, a agricultura familiar de subsistência (no caso, roças de
mandioca) e a pesca praticada, que é, principalmente, para consumo próprio.

Importa aí dar atenção para objetos tais como: 1) canoas de madeira, construídas
de caules ou troncos de árvores inteiriços; 2) remos de madeira destinados a manobrar e
impulsionar pequenas embarcações como canoas; 3) paneiros – o comum, feito de cipó-
titica, usado no acondicionamento e no transporte de castanha, e o de alça ou jamanxim,
usado para transportar às costas, a castanha; 4) cofo de palha, espécie de cesto com
diversos usos; 5) peneiras de palha, que servem de crivo; e vários outros, oriundos do
artesanato: 6) tapetes de croché, e 7) miniaturas de embarcações, etc; etc.

Embora alguns desses artefatos em Cachoeira Porteira comecem a ser importados


das cidades de Porto Trombetas, Oriximiná ou Óbidos, principalmente, de modo geral ainda
são (ou já foram) produzidos pelos moradores daquela comunidade a partir de
conhecimentos herdados de seus antepassados. E enquanto elementos da cultura local,
que tem forte influência indígena, os referidos objetos naturalmente informam sobre o modo
de vida da população quilombola, ou, melhor, expressam o seu modo de ser, de sentir e/ou
de agir no processo constante de interação, integração e/ou adaptação com o meio
ambiente.

Quanto ao aspecto não-material da cultura em Cachoeira Porteira uma primeira


referência deve ser feita aqui ao elemento básico do processo histórico de resistência, que é
a união entre os moradores e a sua disposição para a luta, cujas raízes estão fincadas, por
certo, no enfrentamento da legalidade escravocrata no inicio da formação dos quilombos do
Trombetas, antes da Abolição.

Numa lição de Amilcar Cabral, ainda que referente a outro contexto, é possível
aprender que a “luta de um povo, a resistência de um povo tem várias formas”, sendo que a
“primeira condição” para essa resistência, seja ela política, econômica, cultural, etc., “ é a

100
Muito mais desses artefatos provavelmente serão recolhidos quando se fizer uma pesquisa
sistemática nos vários sítios onde aqueles quilombos existiram.

253
união”, a capacidade “de unir as pessoas”, a disposição e a capacidade de luta demonstrada
por um grupo de pessoas101.

Para o autor acima citado, “resistência é o seguinte: destruir alguma coisa, para
construir outra coisa. Isso é que é resistência”102. E, segundo ainda o mesmo Cabral,
resistência é cultura, um elemento da cultura de um povo e, ao mesmo tempo, um indicador
da elevação dessa cultura103.

Nesse sentido em Cachoeira Porteira a criação da AMOCREQ-CPT é não só uma


prova de resistência política, mas também um fato cultural, que, como tal, não se poderia
deixar de valorizar aqui. Seus objetivos deixam isso claro. Pois, conforme consta dos
estatutos dessa associação dentre seus principais objetivos figura o de “conservar e
proteger a floresta”, mas também o de proteger “a identidade de seu povo”, assim como o
de “contribuir para o fomento e progressividade da demarcação e titulação das terras
pertencentes às comunidades de remanescentes de quilombo, de acordo com o artigo 68 da
Constituição Federal”.

Esses objetivos revelam a intenção/disposição da referida comunidade de destruir


algumas coisas, para construir outras coisas, outra situação ou outra realidade diferente da
atual. Como diria o africano Amilcar Cabral, “Isso é que é cultura, camaradas”104. Cultura
essa, que, no caso de Cachoeira Porteira, está sendo posta, como deve ser, a serviço da
resistência quilombola.

Com relação a isso vale lembrar o envolvimento da comunidade na realização de


eventos relacionados à cultura afro-descendente:

Em 1994, Cachoeira Porteira foi palco de grandes encontros,


reunindo as comunidades quilombolas do Alto Trombetas, Tapagem,
Abuí, Macaxeira, e Boa Vista. O encontro se respaldava no tema: ‘Nosso
Povo, Nossas Tradições’, foi resgatado momentos históricos que até
aquela data eram desconhecidos pelos jovens da comunidade. Foi um
momento em que a história dos negros descendentes de quilombos foi
transmitida socialmente de uma geração a outra e perpetuada na sua
forma original.
Em ocasiões como essa, como ocorre no festival de cultura negra que se realiza
anualmente na cidade de Oriximiná, durante a Semana da Consciência Negra, no mês de
novembro, os moradores de Cachoeira Porteira costumam apresentar danças e músicas
trabalhadas ou produzidas por eles mesmos.

101
Cabral, Amilcar. Análise de alguns tipos de resistência, Lisboa: Seara Nova, 1974, passim.
102
Idem, ibidem, p. 11.
103
Idem, ibidem, passim.
104
Idem, ibidem, p. 82.

254
A dança que se tenta hoje preservar nessa comunidade como herança de seus
antepassados é o lundum. Nesta dança praticada nas festas de negros, ou, como estes
chamavam antigamente, “festas gandaias”, os integrantes dos casais de dançarinos se
movimentam separados um do outro. Os instrumentos necessários para a dança do lundum
são: violino, gambá, bumbo, pandeiro, viola e cavaquinho105.

Quanto à música pode-se destacar em Cachoeira Porteira uma produção regular.


Nesta comunidade, além de alguns simples violonistas, registra-se a existência de três
compositores/cantores de sucesso – dois no cicuito de festivais de cultura quilombolas da
região e um fora deles. São: 1) Chico Adão, que em abril de 2012, já tinha um repertório
suficiente para a gravação de pelo menos dois CDs; 2) Ivanildo do Carmo de Souza, que
embora tenha produzido menos, faz sucesso com músicas politicamente comprometidas
com causa quilombola, sendo que hoje as cantigas mais requisitadas são que as intituladas
“Quilombo Maravilha”, “Quilombolas do Pará”, e “Povo Negro”, e, 3) Val Garcia, que já tem
três CDs gravados, cuja divulgação é feita de porta em porta por ele mesmo. Seu estilo é o
brega, cuja temática de vez em quando tenta inovar cantando as belezas da comunidade,
como é caso na canção “Serra do Cachorro”, que integra o segundo dos CDs já divulgados.

Abaixo a letra de uma das canções de Ivanildo do Carmo Souza:

Povo Negro
O povo negro era muito
muito humilhado
Para os brancos não podia ser cristão
Era vendido como lote de gado
Tinha que ter a marca do seu patrão
Era obrigado a fugir da senzala
Com um par de roupas e sem alimentação
Tudo isso para viver liberto
Garantir o seu direito
Sair da Escravidão
O povo negro sempre foi excluído
Pra ser cristão ele teve que estudar
Pois a história de quilombo é triste
A mãe cachoeira veio pra libertar
Mas de repente
A Constituinte vendo seu sofrimento
Um artigo criou
E hoje eu vivo e canto feliz
Porque liberto estou.

105
Cf. Azevedo, Ozanete Vieira & Ribeiro, Sebastiana da Silva. Op. cit., p. 30.

255
Outro elemento da cultura não-material da comunidade são as lendas. Conforme
dizem algumas moradoras do lugar, “Cachoeira Porteira é também rica em lendas”106, a
mais popular é a do “Negrinho do porão”, porão da cachoeira.

Contam os antigos moradores, que há muitos anos atrás na


época do verão, sempre próximo do meio-dia, quando a cachoeira
estava em silêncio sem presença dos frequentadores, aparecia na pedra
que fica nomeio da cachoeira ao lado de um porão, um negrinho
(menino) que, começava a tomar banho, pulando da pedra para o porão,
do porão para a pedra e assim sucessivamente até desaparecer no
porão. Para os negros é um aviso para serem mais cautelosos quando
107
frequentarem a cachoeira .
O lazer, como atividade recreativa e necessidade fundamental do ser humano,
ganha destaque na comunidade em foco principalmente na época de verão, com os banhos
de cachoeiras, demandados tanto por moradores como por turistas, cujas visitas nessa
época se tornam frequentes. No inverno, quando a cachoeira que dá nome à comunidade
desaparece sob as águas grandes e quando parte da população está voltada para a coleta
da castanha essa atividade experimenta uma baixa. Alguns moradores, então, passam a
utiliza para essa atividade o igarapé São Miguel Arcanjo.

Alguns jovens, adolescentes, praticam futebol, principalmente à tarde; e os adultos,


à noite, no curto período do fornecimento de energia elétrica, assistem televisão.

Afora isso poucas são as opções de lazer em Cachoeira Porteira, algumas delas
como as libações alcoólicas, praticadas principalmente por homens, são consideradas nada
saudáveis pela AMOCREQ-CPT, que as tem desestimulado ou procurado inibi-las.

106
Idem, ibidem.
107
Idem, ibidem.

256
10 CONSIDERAÇOES FINAIS
Nas referências bibliográficas ao final desse relatório há um arrolamento de leis e
de decretos de livre acesso, pertinentes à questão das comunidades remanescentes de
quilombos. Porém, faz-se necessária a conexão de alguns desses mecanismos para evocar
a situação em que se encontra a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, disposta
entre a dúvida de pertencimento e de disputas territoriais.

Ao longo de toda a pesquisa realizada pelo IDESP no território pretendido pela


comunidade, não houve dúvidas quanto a sua identidade e ao tempo de ocupação da área:
o pisado dos caminhos na floresta pelo vai e vem dos coletores de castanha, a avó que
conta casos da bisavó, as regras familiares e de convivência, a variedade de frutos inseridos
sazonalmente na alimentação, o entendimento das cachoeiras, os cemitérios de antes...
assim indica e tem amparo legal no Artigo 68, da Constituição Federal, ADCT, que ressalta:
“Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando as suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”.
Rios, braços de rios, varadouros, furos, lagos e igarapés têm uma designação, um nome
dado pelos moradores da comunidade, com pormenores.

Também o Decreto nº 6040, fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de


Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, lhes dá suporte. Em
seu artigo 3º vem expresso:

“Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por: I -


Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de
organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição; II - Territórios Tradicionais: os espaços
necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e
comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou
temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e
quilombolas, respectivamente.”

No entanto, o território a que está inserida a Comunidade Remanescente de


Quilombo de Cachoeira Porteira também é bastante conhecido e explorado por agências de
turismo e pelas empresas Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, Agência
Nacional de Água – ANA e Eletronorte.

257
Mesmo que aos olhos da primeira vez Cachoeira Porteira pareça com uma vila de
casas de madeira a beira de um rio, os fatos e as histórias contadas por seus moradores
apontam outra versão: aqueles que vieram de fora não pediram consentimento, foram
chegando, expulsando famílias de seus locais de origem, abrindo a floresta com maquinário
pesado, transformando a paisagem. E impelidos por essa conjuntura, eles foram se
achegando às margens da BR 163, mas próximos do local de pertencimento.

Nas relações entre indígenas e quilombolas, dentro da área de pretensão existem


alguns aldeamentos recentes, fruto da concessão de uso dada pela própria comunidade
quilombola a algumas famílias de etnias Kaxuyana e Wai Wai, em razão da necessidade de
apoio logístico para o deslocamento até Oriximiná. Não há conflito latente sobre a
propriedade da terra, senão aquele que pode ser gerado pela falta de comunicação entre as
instâncias governamentais.

Alfredo Wagner (2003:68) sobre a necessidade de se reconhecer aos quilombolas o


direito à terra, constata:

“Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles


construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não
necessariamente aqueles que são produto de classificações externas,
muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da
identidade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apóia. Aliás,
essas categorias podem ter significados especificas, como sugere terra
de preto, que pressupõe uma modalidade codificada de utilização da
natureza: os recursos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não
são individualizados; tampouco são individualizados os recursos de
caça, pesca e extrativismo. São mantidos como de livre acesso.
Caminhos, trilhas e poços são mantidos sob formas de cooperação
simples”.

Negar a existência e o reconhecimento desse território aos quilombolas seria


reeditar no presente uma senzala pós-moderna, seria subtrair do meio ambiente aqueles
que dele fazem parte.

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