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Pandemia do coronavírus – 1

Organizadores

Sandra Medina Benini


Leonice Seolin Dias
Allan Leon Casemiro da Silva
Juliana Heloisa Pinê Américo-Pinheiro
Geise Brizotti Pasquotto
Ana Paula Branco do Nascimento
Andreza Portella Ribeiro
Érica Lemos Gulineli
Karla Garcia Biernath
Karina Andrade Mattos

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
abordagem multidisciplinar

1ª Edição

ANAP
Tupã, São Paulo, Brasil
2021
2

EDITORA ANAP
Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
Rua Bolívia, nº 88, Jardim América, Tupã, São Paulo. CEP 17.605-310.
Contato: (14) 99808-5947
www.editoraanap.org.br
www.amigosdanatureza.org.br
editora@amigosdanatureza.org.br

Editoração e diagramação da obra: Leonice Seolin Dias; Sandra Medina Benini


Revisão de português: Smirna Cavalheiro

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Geografia
Pandemia do coronavírus – 3

CONSELHO EDITORIAL INTERDISCIPLINAR PERMANENTE


____________________________________
P Profa. Dra. Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE Prof. Dr. João Carlos Nucci – UFPR
Prof. Dr. Alessandro dos Santos Pin – UNICERRADO Prof. Dr. João Paulo Peres Bezerra – UFFS
Prof. Dr. Alexandre Carneiro da Silva – IFAC – AC Prof. Dr. Jose Mariano Caccia Gouveia – UNESP
Prof. Dr. Alexandre Gonçalves – Centro Univ. IMEPAC Profa. Dra. Josinês Barbosa Rabelo – ASCES – UNITA
Prof. Dr. Alexandre Sylvio Vieira da Costa – UFVJM Profa. Dra. Jovanka Baracuhy Cavalcanti – UFPB
Prof. Dr. Alfredo Z. Dominguez Gonzalez – UNEMAT Profa. Dra. Juliana de Oliveira Vicentini – USP – Piracicaba
Profa. Dra. Alzilene Ferreira da Silva – UFRN Profa. Dra. Juliana H. Pinê Américo-Pinheiro – Univ. Brasil
Profa. Dra. Ana Klaudia de A. Viana Perdigão – UFPA Profa. Dra. Karin Schwabe Meneguetti – UEM
Profa. Dra. Ana Paula Branco do Nascimento – USJT Prof. Dr. Kleso Silva Franco Junior
Profa. Dra. Ana Paula Novais Pires Koga – UFCAT Profa. Dra. Larissa Fernanda Vieira Martins
Profa. Dra. Andréa Ap. Zacharias – UNESP – Ourinhos Prof. Dr. Leandro Gaffo – UFSB
Profa. Dra. Andréa Holz Pfützenreuter – UFSC Profa. Dra. Leda Correia Pedro Miyazaki – UFU
Prof. Dr. Antonio Carlos Pries Devide – APTA/SP Profa. Dra. Leonice D. dos Santos C. Lima – Univ. Brasil
Prof. Dr. Antonio Cezar Leal – FCT/UNESP Profa. Dra. Ligiane Aparecida Florentino – UNIFENAS
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM Profa. Dra. Luciane Lobato Sobral – UEPA
Prof. Dr. Antonio Pasqualetto – PUC – GO Prof. Dr. Luiz Fernando Gouvea e Silva – UFJ – GO
Prof. Dr. Antonio Soukef Júnior – UNIVAG Prof. Dr. Marcelo Campos – FCE/UNESP/Tupã
Prof. Dr. Arlete Maria Francisco – FCT/UNESP Prof. Dr. Marcelo Real Prado – UTFPR
Profa. Dra. Bruna Angela Branchi – PUC Campinas Prof. Dr. Márcio Rogério Pontes
Prof. Dr. Carlos Andrés Hernández Arriagada – UPM/SP Prof. Dr. Marcos de Oliveira Valin Jr – IFMT – Cuiabá
Prof. Dr. Carlos Eduardo Fortes Gonzalez – UTFPR Profa. Dra. Maria Ângela Dias – FAU/UFRJ
Profa. Dra. Cássia Maria Bonifácio – UEM Profa. Dra. Maria Augusta Justi Pisani – UPM – SP
Prof. Dr. Celso Maran de Oliveira – UFSCar Profa. Dra. Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG – PB
Prof. Dr. César Gustavo da R. Lima – UNESP – Ilha Solteira Profa. Dra. Nádia V. do Nascimento Martins – UEPA
Profa. Dra. Cibele Roberta Sugahara – PUC/Campinas Prof. Dr. Natalino Perovano Filho – UESB – BH
Prof. Dr. Claudiomir Silva Santos – IFSULDEMINAS Prof. Dr. Paulo Alves de Melo – UFPA
Prof. Dr. Daniel Richard Sant'Ana – UnB/ICC Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha – FCT/UNESP
Profa. Dra. Daniela P. Traficante – FCA/UNESP/Botucatu Profa. Dra. Rachel Lopes Queiroz Chacur – UNIFESP
Profa. Dra. Danila F. Rodrigues Frias – Universidade Brasil Profa. Dra. Renata Franceschet Goettems – UFFS
Prof. Dr. Darllan C. da Cunha e Silva – UNESP – Sorocaba Profa. Dra. Renata Morandi Lóra
Profa. Dra. Dayse Marinho Martins – IEMA Profa. Dra. Renata R. de Araújo – FCT/UNESP
Profa. Dra. Edilene M. Murashita Takenaka – FATEC/PP Prof. Dr. Ricardo de Sampaio Dagnino – UFRGS
Prof. Dr. Edson L. Ribeiro – Ministério do Desenvolv. Regional Prof. Dr. Ricardo Toshio Fujihara – UFSCar
Prof. Dr. Eduardo Salinas Chávez – UFMS – Três Lagoas Profa. Dra. Rita Denize de Oliveira – UFPA
Prof. Dr. Eduardo Vignoto Fernandes – UFG/GO Prof. Dr. Rodrigo Barchi – Univ. Ibirapuera – UNIB
Profa. Dra. Eleana Patta Flain – UFMS – Naviraí Prof. Dr. Ronald F. Albuquerque Vasconcelos – UFPE
Profa. Dra. Eliana Corrêa Aguirre de Mattos Profa. Dra. Roselene Maria Schneider – UFMT/Sinop
Profa. Dra. Eloisa Carvalho de Araújo – PPGAU/ EAU/UFF Profa. Dra. Rosío F. Baca Salcedo – UNESP – Bauru
Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCar Prof. Dr. Salvador Carpi Junior – UNICAMP
Profa. Dra. Eva F. da Fonseca de Moura Barbosa – UEMS Profa. Dra. Sandra M. Alves da Silva Neves – UNEMAT
Prof. Dr. Fernando S. Okimoto – FCT/UNESP Prof. Dr. Sérgio Luís de Carvalho – UNESP – Ilha Solteira
Profa. Dra. Flavia Rebelo Mochel – UFMA Profa. Dra. Thais Guarda Prado Avancini
Prof. Dr. Frederico Braida – UFJF Profa. Dra. Vera L. Freitas Marinho – UEMS/ C. Grande
Prof. Dr. Frederico Yuri Hanai – UFSCar Prof. Dr. Vitor C. de Mattos Barretto – UNESP/Dracena
Prof. Dr. Gabriel L. Bonora Vidrih Ferreira – UEMS Prof. Dr. Wagner de Souza Rezende – UFG
Prof. Dr. Gilivã Antonio Fridrich – UNC Profa. Dra. Yanayne Benetti Barbosa
Prof. Dr. Joao Adalberto Campato Jr – Universidade Brasil
Prof. Dr. João Candido André da Silva Neto – UFAM
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Pandemia do coronavírus – 5

SUMÁRIO
____________________________________
PREFACIO EN ESPANÕL 07

PREFÁCIO EM PORTUGUÊS 09

Capítulo 1 11
I CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – 2021:
REFLEXÕES SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS, EDUCAÇÃO AMBIENTAL
E SUSTENTABILIDADE
Marta Juliá; Angélica Góis Morales

Capítulo 2 21
OS DESAFIOS PARA AS CIDADES BRASILEIRAS E AS ALTERNATIVAS PARA O MUNDO
PÓS-PANDEMIA
Jeferson Tavares

Capítulo 3 29
POR UM URBANISMO DE CANTEIRO: PROJETO, PESQUISA E POLÍTICAS PÚBLICAS
NA CIDADE PÓS-PANDEMIA
Adalberto da Silva Retto Júnior

Capítulo 4 49
A EPIDEMIA INVISIBILIZADA É A MAIS VIOLENTA
Carolina Russo Simon

Capítulo 5 67
NEGACIONISMO CIENTÍFICO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Sandra Regina Mota Ortiz

Capítulo 6 75
RESGATE DO QUE NUNCA DEVERIA DEIXAR DE TER SIDO: O PAPEL HUMANO E
HUMANIZADOR DA EDUCAÇÃO E DO EDUCADOR
Leonides da Silva Justiniano

Capítulo 7 95
REFLEXÕES SOBRE CENÁRIOS SOCIAIS E ECONÔMICOS NO PERÍODO PÓS-PANDEMIA
COVID-19
Edilene Mayumi Murashita Takenaka

Capítulo 8 103
O IMPACTO AMBIENTAL DA COVID 19 NA GESTÃO DOS RESÍDUOS URBANOS
Alba Regina Azevedo Arana

Capítulo 9 111
GESTÃO E USO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO
CORONAVÍRUS: REFLEXÕES SOBRE O BRASIL
Ana Paula Novais Pires Koga
125
Capítulo 10
LABORATÓRIOS DO MUNDO REAL: A MICROBACIA DO RIBEIRÃO DO LAGEADO COMO
PROJETO PILOTO DE POLÍTICA PÚBLICA PARA A AÇÃO CLIMÁTICA
Ana Paula Koury
6

Capítulo 11 147
RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA: DESAFIANDO OS LIMITES DA SOBREVIVÊNCIA
Carolina Vieira da Silva

Capítulo 12 157
SAÚDE AMBIENTAL, SAÚDE HUMANA: O SER HUMANO FORMA PARTE DA NATUREZA
Edson Vicente da Silva

Capítulo 13 171
SAÚDE ÚNICA (ONE HEALTH): OLHAR HOLÍSTICO SOBRE A PANDEMIA E O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Vamilton Alvares Santarém

Capítulo 14 183
IMPACTO DA PANDEMIA DA COVID-19 NOS SERVIÇOS DE ZOONOSES QUE ATUAM NO
CONTROLE DE LEISHMANIOSE VISCERAL DA REGIÃO DE SAÚDE DE PRESIDENTE
PRUDENTE, SÃO PAULO
Lourdes Aparecida Zampieri D’Andrea; Caroline Lucio Moreira

Capítulo 15 195
MÉDICOS VETERINÁRIOS SÃO PROFISSIONAIS ESSENCIAIS NA PANDEMIA DE COVID-19?
Fernanda Nobre Bandeira Monteiro

Capítulo 16 203
TÉCNICAS EPIDEMIOLÓGICAS APLICADAS AO ESTUDO DA PANDEMIA DE COVID-19
Rogério Giuffrida

Capítulo 17 215
ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: O DEBATE CONTEMPORÂNEO
Maria Cândida Avellar Oliveira Moraes de Lima

Capítulo 18 221
QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E PÓS-PANDEMIA: POR QUE INVESTIR NA QUALIFICAÇÃO
DURANTE A CRISE?
Wilson Roberto Lussari

Capítulo 19 235
PERMACULTURA URBANA: POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A PRODUÇÃO E PARA A VIVÊNCIA
NAS CIDADES DURANTE E PÓS-PANDEMIA
Fernando Sérgio Okimoto

Capítulo 20 261
CORONAVÍRUS E ATIVIDADE FÍSICA: REFLEXO FÍSICO E MENTAL
Silas Seolin Dias
Pandemia do coronavírus – 7

PREFACIO EN ESPANÕL
____________________________________
Poner la ciencia en lengua diaria: he ahí un gran bien que pocos hacen
José Martí Pérez

El año 2021 quedará en nuestra memoria como un año triste, donde el mundo
atravesó por un evento cruel, la pandemia de Covid-19, causada por el virus Sars-CoV-2
que, sin embargo, ha llamado a los seres humanos a reflexionar sobre su desempeño en
esta “Tierra” donde “todos” debemos convivir en armonía.
Pero yo he recibido un gran regalo, la lectura de 20 capítulos, resultados de
conferencias dictadas en el I Congreso Latino-Americano de Desarrollo Sostenible ¬ 2021,
que conforman el libro “Pandemia do Coronavírus: abordagem multidisciplinar”,
patrocinado por la Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista de Tupã, a quien
agradezco la invitación y el honor de escribir su prefacio.
Ha sido tan grande el placer de esta experiencia que me satisface recomendar
encarecidamente la lectura del texto.
El lector podrá disfrutar de variadas temáticas, enfoques y metodologías
profundamente tratadas que convergen en un gran reto: ¿Cómo será el mundo,
nuestro mundo, pos Covid-19?, donde se reflexiona sobre lo que me gusta nombrar
“imaginario-certeza”; todo lo que imaginamos posible y necesario hacer, razonar,
integrar y vivir pos pandemia, en contraposición con lo que en realidad tenemos certeza
que continúa ocurriendo.
Solo miremos algunos puntos de la geopolítica actual: Inestabilidad y conflictos
de poder; Cambio climático; Ciber riesgos; Incertidumbre en el sistema de comercio.
No es secreto que la carrera por la hegemonía global, o al menos por la construcción
de un escenario multipolar, considera al clima como una variable más y pone a su servicio
los discursos y las prácticas en torno al cambio climático. Detrás de las apelaciones a
una humanidad en abstracto se traslucen intereses particulares y correlaciones de fuerzas.
Para muchos analistas, el recién concluido encuentro de las partes de la
Convención de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático: COP26, realizado en
la ciudad de Glasgow (Escocia), fue un fracaso, básicamente por su incapacidad para
imponer medidas que definitivamente detengan a los hombres en su negativo accionar
sobre el clima una vez más, en la larga sucesión de reuniones gubernamentales iniciadas
hace casi tres décadas, en 1992, con el Convenio Marco sobre el Cambio Climático.
8

Casi doscientos gobiernos firmaron un nuevo compromiso para enfrentar el


cambio climático, pero seamos realistas, todos los gobiernos son responsables de esta
situación, estamos ante un problema que atraviesa a casi todas las ideologías políticas
y por ello tiene raíces mucho más profundas.
En los diferentes capítulos del texto que presentamos, se debate sobre estos
temas y otros como: la relación hombre-naturaleza; la espiritualidad y la salud; el papel
humano del educador; los aportes de la epidemiología en los estudios sobre la pandemia;
la actividad física en la pandemia; el incremento de la violencia contra las mujeres;
la importancia y aceptación de la ciencia; importantes reflexiones sobre los escenarios
sociales y económicos en la pos pandemia; la necesaria competencia personal y profesional
para el dinámico mercado laboral en los nuevos tiempos; las exigencias urbanas; cómo
queremos que sean nuestras ciudades; la gestión de los residuos sólidos urbanos y los
residuos hospitalarios; la situación de las cuencas hidrográficas, el abasto de agua,
saneamiento; el papel de los profesionales en la pandemia: veterinarios, médicos, biólogos,
geógrafos y las tecnologías; el impacto de la pandemia en los servicios de zoonosis.
E, inclusive, se introduce y discute sobre novedosos términos que se avizoran como
nuevos paradigmas en las discusiones académicas y políticas de los nuevos tiempos:
“Antropoceno”, acuñado por el premio nobel de química Paul Crutzen y el biólogo
Eugene Stoermer, que plantea la fuerza transformadora a escala geológica y planetaria de
los seres humanos. El concepto de “One Health”, presentado por Roger Mahr en 2007
y que habla sobre la interconexión entre la salud humana, animal y ambiental y el concepto
de “Permacultura urbana” introducido por Mollison y Holmgren en el año 2007 que busca
armonía entre nuestros espacios de vida y la naturaleza.
Agradezco a todos los autores y deseo que los lectores disfruten tanto como yo
estas páginas de profundos debates y enseñanza.
Muchas gracias,

María Gloria Fabregat Rodríguez


Doctora en Ciencias Geográficas, Profesora Titular
Universidad de Ciencias Médicas de Cienfuegos, Cuba.
E-mail: mgfabregat1961@yahoo.es
Pandemia do coronavírus – 9

PREFÁCIO EM PORTUGUÊS
____________________________________
Poner la ciencia en lengua diaria: he ahí un gran bien que pocos hacen
José Martí Pérez

O ano de 2021 ficará na nossa memória como um ano triste, no qual o mundo
passou por um acontecimento cruel, a pandemia Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2
que, no entanto, exortou os seres humanos a refletirem sobre seu desempenho nesta
"Terra" onde "todos" devemos viver juntos em harmonia.
Mas recebi um grande presente, a leitura de 20 capítulos, resultados de palestras
transcritas no I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável-2021, que
compõem o livro “Pandemia do Coronavírus: abordagem multidisciplinar”, promovido
pela Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista de Tupã, a quem agradeço o convite
e a honra de escrever seu prefácio.
O prazer dessa experiência foi tão grande que me satisfaz recomendar
encarecidamente a leitura do texto.
O leitor poderá desfrutar de diversos temas, abordagens e metodologias
profundamente discutidas que convergem em um grande desafio: Como será o mundo,
o nosso mundo, pós-Covid-19?, em que se reflete sobre o que gosto de chamar
"imaginário-certeza"; tudo o que imaginamos possível e necessário fazer, raciocinar,
integrar e viver pós-pandemia em contraposição do que realmente temos a certeza de
que continua ocorrendo.
Vejamos apenas alguns pontos da geopolítica atual: Instabilidade e conflitos
de poder; Mudança climática; Riscos cibernéticos; Incerteza no sistema de comércio.
Não é segredo que a corrida pela hegemonia global, ou pelo menos pela construção
de um cenário multipolar, considera o clima mais uma variável e coloca a seu serviço
os discursos e as práticas em torno das mudanças climáticas. Por trás dos apelos a uma
humanidade em abstrato, aparecem interesses particulares e correlações de forças.
Para muitos analistas, a recém-concluída reunião das partes da Convenção
das Nações Unidas sobre Mudança do Clima: COP26, realizada na cidade de Glasgow
(Escócia), foi um fracasso, basicamente pela impossibilidade de impor medidas
que definitivamente detenham as ações negativas da humanidade sobre o clima,
mais uma vez, na longa sucessão de reuniões governamentais iniciadas há quase
três décadas, em 1992, com o Convênio-Quadro sobre a Mudança Climática.
10

Quase duzentos governos assinaram um novo compromisso para enfrentar


as mudanças climáticas, mas, convenhamos, todos os governos são responsáveis por esta
situação, estamos enfrentando um problema que permeia quase todas as ideologias
políticas e, portanto, tem raízes muito mais profundas.
Nos diferentes capítulos do livro que apresentamos, debatem-se estas e outras
questões como: a relação homem-natureza; a espiritualidade e a saúde; o papel humano
do educador; as contribuições da epidemiologia nos estudos sobre a pandemia;
a atividade física na pandemia; o aumento da violência contra as mulheres; a importância
e aceitação da ciência; reflexões importantes sobre os cenários sociais e econômicos
na pós-pandemia; a necessária competência pessoal e profissional do dinâmico mercado
de trabalho dos novos tempos; as demandas urbanas; como queremos que sejam nossas
cidades; a gestão de resíduos sólidos urbanos e resíduos hospitalares; a situação das
bacias hidrográficas, o abastecimento de água, o saneamento; o papel dos profissionais
na pandemia: veterinários, médicos, biólogos, geógrafos e as tecnologias; o impacto
da pandemia nos serviços de zoonoses.
E, inclusive, introduz e discute recentes termos que se imaginam como novos
paradigmas nas discussões acadêmicas e políticas dos novos tempos: "Antropoceno",
cunhado pelo Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen e pelo biólogo Eugene Stoermer,
que aborda a força transformadora em escala geológica e planetária dos seres humanos.
O conceito de “One Health”, apresentado por Roger Mahr em 2007, que fala sobre
a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental e o conceito de “Permacultura
Urbana”, introduzido por Mollison e Holmgren em 2007, que busca a harmonia entre
nossos espaços de convivência e a natureza.
Agradeço a todos os autores e espero que os leitores gostem dessas páginas de
discussão e ensino perspicazes tanto quanto eu.
Muito obrigada,

María Gloria Fabregat Rodríguez


Doctora en Ciencias Geográficas, Profesora Titular
Universidad de Ciencias Médicas de Cienfuegos, Cuba.
E-mail: mgfabregat1961@yahoo.es
Pandemia do coronavírus – 11

CA P Í T U L O 1
____________

I CONGRESSO LATINO-AMERICANO
DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – 2021:
REFLEXÕES SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS,
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE1

Marta Juliá2
Angélica Gois Morales3

PRESENTACIÓN EN ESPANÕL

Muchas gracias por la invitación, para mí es un placer poder participar en esta


charla, debate. La verdad es un desafío pensar en las políticas públicas y lo que se vendrá
pos pandemia, Argentina hoy está atravesando el peor momento de lo que va de la
pandemia con muchísimos casos en todo el país y en muchos casos se ha vuelto a fase 1.
Pensé primero en comentarles el diagnóstico de situación que veo hoy y cómo podemos
proyectarlo hacia futuro.
La verdad que como docente e investigadora y en el análisis mismo de las políticas
públicas ha sido un verdadero desafío la pandemia nos ha obligado a utilizar una cantidad
de herramientas que si bien las teníamos disponibles no las usábamos porque
evidentemente la presencialidad es algo que supera ampliamente este tipo de recursos
los podríamos haber utilizado pero siempre nos sobrepasaba la realidad , el apuro,
la investigación, la docencia. Esta situación tanto en el ámbito docente como en el
de investigación fue todo un desafío adaptarnos a la realidad de la pandemia, muchos
proyectos y muchos investigadores se orientaron a estudiar los efectos de la pandemia
o el impacto de la pandemia en sus propios proyectos.

1
Este texto é fruto da transcrição das falas das professoras Marta Juliá e Angélica Gois Morales, que
compuseram a mesa de abertura do I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável,
Tupã, São Paulo ¬ maio de 2021.
2
Doctora en Derecho y Ciencias Sociales de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad
Nacional de Córdoba, Investigadora del Centro de Investigaciones Jurídicas y Sociales UNC-CONICET,
Profesor Titular de Medio Ambiente y Legislación de los Recursos Naturales en la Facultad de Ciencias
Económicas, Jurídicas y Sociales de la Universidad Nacional de San Luis. E-mail: dramartajulia@gmail.com
3
Professora doutora. Livre-Docente em Gestão e Educação Ambiental. Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (UNESP), campus Tupã. E-mail: ag.morales@unesp.br
12

Entonces, creo que nosotros lo pudimos vivenciar más en lo que es la docencia,


donde hemos presentado en distintos eventos como hemos adaptado los aspectos teóricos
y metodológicos de las asignaturas que dictamos a esta época de pandemia. Y por supuesto
que nuestro análisis u objeto de investigación que son las políticas públicas, bueno en el
momento de la pandemia ha tenido un enorme impacto en las políticas, donde las
prioridades han estado centradas en los aspectos sanitarios pero la vida ha continuado y
se han ido desarrollando distintas políticas en materia ambiental y en la materia que yo
específicamente trabajo que son las energías renovables, la promoción y el uso de las
energías renovables. En estos aspectos uno ha podido identificar que ha pesar de la
situación se ha seguido regulando, se ha seguido gestionando y se ha seguido trabajando y
promoviendo, por supuesto que con un impacto mucho menor en una serie de actividades.
Nosotros en la temática de investigación seguimos avanzando en el análisis de las políticas
y uno ha observado un importante cambio, tuvimos el inicio de pandemia con un inicio de
gestión gubernamental nacional donde recién empezaba la gestión.
Así que todos los cambios institucionales, jurídicos, administrativos de una gestión
que tenía 4 meses cuando irrumpe la pandemia alcanzaron algunas modificaciones
generales y por supuesto que comenzó la ejecución de una nueva política y nuevos
aspectos en lo que se refiere a la temática que la institucionalización de un ministerio
de ambiente a nivel nacional produjo cambios en líneas prioritarias, gestiones específicas
pero por ejemplo en el aspecto energético tuvo una demora la decisión del espacio
asignado a las renovables de los programas que se venían implementando que se
ejecutaron pero muchos aspectos se frenaron o no pudieron implementarse o promoverse
y que podrían haber avanzado en situaciones normales y evidentemente aquí la pandemia
estaba haciendo su efecto directo en este tipo de políticas.
Entonces hacer un análisis de las políticas públicas en tiempos de pandemia
realmente requiere tomar en consideración un conjunto de variables que están
estrechamente vinculadas: lo económico, lo sanitario, las materias específicas que nos dan
un contexto de análisis diferente donde todo es transversal y todo está íntimamente
vinculado. Fíjense que los Objetivos de Desarrollo Sostenible que es una meta a la cual
los gobiernos aspiran, los 17 objetivos, hoy son a 2030, pero tiene un impacto enorme
la pandemia, donde cada uno de esos objetivos está íntimamente vinculado con los otros:
la pobreza, el acceso a la energía, el acceso al agua, los ecosistemas, etc. Asi que realmente
Pandemia do coronavírus – 13

esto nos ha transformado los escenarios, primero el escenario internacional porque


estamos todos afectados por igual, luego el escenario regional donde ha habido numerosos
cambios políticos y todavía no se explicitan o manifiestan totalmente en los territorios.
Luego a nivel nacional y local la pandemia ha ido produciendo una cantidad
de hechos acciones vías políticas públicas que empiezan a llegar a los territorios. A partir
de este diagnóstico de situación como pensar la pos-pandemia me acuerdo al principio
de la pandemia todos pensábamos que íbamos a salir mejores frente a esta situación,
íbamos a tener una mentalidad diferente después de haber atravesado semejante
situación. Yo no estoy muy segura de que salgamos mejores, si nos ha obligado a quienes
trabajamos en las políticas, a tener una mirada mucho más amplia, mucho más compleja,
empezar a entender que el azar es parte del análisis. Que de golpe un virus irrumpe
a nivel mundial y nos cambia totalmente los contexto que nos parecían tan claros,
tan definidos tan fáciles de analizar y esto nos ha venido a modificar todo, no. También
uno hace una revalorización de muchos caso que son de tipo personal o interior acerca
de los comportamientos, hemos visto que el comportamiento humano sigue siendo
un elemento objeto de estudio, creo que los sociólogos no han logrado desentrañar,
ni los antropólogos, totalmente y menos quienes hacemos derecho logramos cambiar
las conductas a través de las leyes o de las políticas públicas. Creo que hacemos lo que
podemos y esta pandemia también nos ha enseñado la resistencia a la autoridad,
la resistencia a las cuestiones más racionales, que uno se enfrenta que es lo sanitario. Uno
cree que saber las consecuencias de un virus, contar con información científica adecuada,
era suficiente para cambiar los comportamientos y evidentemente no es suficiente.
Creo que hay un enorme trabajo a realizar en materia de educación a partir de
que va a ser un eje clave pos-pandemia y les diría educación ambiental, educación
democrática, educación política, cultural, económica, todas las variables asociadas a la
educación un gran y enorme desafío a futuro. La pos pandemia la veo también como una
enorme oportunidad que nos da este efecto que hemos sufrido todos pero creo que no
va a ser para nada fácil y vamos a tener que esmerarnos en el uso de mecanismos
políticos, jurídicos, educativos y culturales para poder salir y mejorar esta situación que
nos impone la pandemia pero que nos abre un nuevo camino de esperanza a futuro para
un mejor manejo de los recursos a nivel global en todo sentido. Esto es en general mi
panorama hoy en este tema.
14

Yo creo también que todos hacemos educación política, solo concentrándonos


en nuestros saberes y en nuestras expectativas de un mejor lugar para vivir, creo que desde
el derecho tenemos la obligación de que nuestros estudiantes y el público que nos escucha
conozca cuales son los principales instrumentos jurídicos con que cuentan los ciudadanos
para acceder a la información, para participar en las cuestiones públicas, y para acceder
a la justicia que son los tres elementos que desde el derecho ambiental se han incentivado
me parece que el ejercicio en esas tres instancias todavía no ha sido suficiente, tenemos
la convención de Escazú firmado hace no tanto tiempo que recién empieza a tomar vigor
en América Latina y me parece que ese va a ser el camino. Y por supuesto que los docentes
investigadores tenemos una responsabilidad mayor porque somos quienes estamos
en contacto con los estudiantes, con los profesionales, con los becarios y ahí va a ser un
trabajo de difusión, de interacción, donde empezar a pensar en conjunto de reflexionar
acerca de cómo seguir en pos pandemia y todo lo que nos hace falta.
Muchísimas gracias ha sido la verdad un placer ponerse a reflexionar y pensar sobre
estos temas que son tan complejos y que nos van a demandar mucha reflexión, mucha
interacción, mucha participación, mucho compromiso a futuro y va a ser un gusto poder
participar en las interacciones que planteas y tener contacto, creo que tenemos que
fortalecernos hasta que atravesemos totalmente esta pandemia y una de las formas
de fortalecernos es intercambiar ideas, opiniones, visiones que nos hagan mejorar el lugar
donde estamos, que nos hagan tratar de recomponer todos los efectos que hemos sufrido
en nuestro entramado social, que lo vamos a ver de a poco y a través del tiempo y nos
va llevar mucho tiempo reconstruir. Así que muy agradecida de haber podido participar
y charlar con ustedes.

Dra. Marta Juliá


Professora del Centro de Investigações Jurídicas e Sociais da Universidad Nacional
de Córdoba (UNC/ Argentina) y Titular de Meio Ambiente e Recursos Naturais na
Universidade Nacional de São Luís (UNSL), Argentina.
Pandemia do coronavírus – 15

APRESENTAÇÃO EM PORTUGUÊS

Agradeço à ANAP pelo convite. É um prazer participar deste evento com esta
temática emergente e de grande relevância. Abordar sobre a questão da sustentabilidade
perpassa as políticas públicas, como comentado pela professora Dra. Marta Juliá.
As políticas públicas são fundamentais para pensar em sociedades sustentáveis. Minha fala
parte desse enfoque, pois quando falo aqui de sustentabilidade, é necessário considerar
que é um conceito situado temporal e historicamente, e que precisamos entender que
é dinâmico, que está em um processo permanente de mudanças e deve ser visto a partir
de suas particularidades. Portanto, falar em sustentabilidade é considerar que é um
conceito pluridimensional. Olha o nosso contexto dentro da pandemia, em que a situação
já não estava tão boa antes, e com a pandemia vêm à tona todas as vulnerabilidades
socioambientais, e aquilo que era invisível, neste momento torna-se totalmente visível
para toda a sociedade, ou melhor, para quase toda, já que vale ressaltar também que há
os movimentos negacionistas.
Então, ao abordar sobre a pandemia do novo coronavírus, sabemos que, na
verdade, os cientistas não foram totalmente surpreendidos, principalmente aos da área
ambiental, devido à degradação de áreas naturais e inúmeros problemas que estamos
vivenciando entre a relação sociedade e natureza. Não faltam estudos científicos que
fazem menção aos riscos de possíveis pandemias que poderiam estar relacionadas
à zoonose, associadas ao desmatamento de florestas nativas, entre outros problemas
socioambientais em favor do contexto do agronegócio, que é uma atividade de capital
intensivo. E o que faltou, ou ainda falta é o planejamento, principalmente o planejamento
governamental e, por isso, o debate das políticas públicas se faz tão importante, pois
é emergente. Assim, sabe-se da possibilidade das pandemias como questões que ameaçam
toda a humanidade, mas não se sabe quando outras virão.
Nesse contexto, partimos do pressuposto de que ao falar de educação ambiental na
perspectiva da sustentabilidade é porque nos deparamos com um sistema insustentável.
Como cita Boff (2012), há a insustentabilidade do sistema financeiro mundial que está
em uma crise sistêmica, devido a um sistema capitalista; há insustentabilidade social da
humanidade devido à injustiça mundial, já que não garante os meios de vida para grande
parte da humanidade; há a crescente dizimação da biodiversidade, já que o atual modo
de produção que visa a um alto nível de acumulação de riqueza, comporta a dominação
16

da natureza e exploração dos recursos naturais e, dessa forma, para esses propósitos,
utilizam-se de todas as tecnologias, como tecnologias para extração de gás e petróleo,
nanotecnologia, entre outras; como também os agrotóxicos que são terríveis, devastando
todos microrganismos que habitam o solo e garantem a fertilidade da Terra e os efeitos
de tudo isso é a redução da biodiversidade; há as mudanças climáticas e, assim, há a
insustentabilidade do planeta Terra, em que mostra que já chegamos a comprometer muitos
dos recursos naturais do nosso planeta (BOFF, 201). Tais pontos de insustentabilidade
nos trazem a exigência de pensar sobre a sustentabilidade e a nossa capacidade de
responsabilidade com as questões socioambientais, bem como a importância da elaboração
de processos de gestão e educação ambiental mais sustentáveis; e a Covid-19 nos traz
esse alerta para olhar as situações de insustentabilidade e a necessidade de agirmos como
cidadãos. É emergente!
Diante do que abordei agora, quero trazer sobre os dados da sobrecarga da Terra,
que tem relação com o consumo dos recursos naturais diante da sua capacidade de
regeneração nos ecossistemas. Isso pode ser demonstrado pela data que marca o dia
da Sobrecarga da Terra, que é o momento em que a demanda anual da humanidade em
relação à natureza ultrapassa a capacidade de renovação dos recursos naturais naquele
ano. De acordo com os dados socializados pela Global Foootprint Network, em 2020,
no dia de 22 de agosto o planeta atingiu o esgotamento de recursos naturais para o ano
inteiro e, desde então, já estão no saldo negativo. Em 2019, atingiu o esgotamento em
29 de julho, em 2017, no dia 2 de agosto, e em 1993, o dia da sobrecarga da Terra foi
em 21 de outubro, para terem uma ideia. Então, o que podemos notar é que estamos
gastando o capital natural do planeta a cada ano, reduzindo ao mesmo tempo sua
capacidade futura de regeneração. Estamos consumindo muito rápido e, ao mesmo tempo,
falando em sustentabilidade. Temos uma Agenda Ambiental, pautada na Agenda 21,
depois os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), e atualmente nos Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e mesmo assim estamos consumindo cada vez
mais o capital natural a cada ano. É algo para pensar!
Nós sabemos que a contenção da pandemia atual e de outras que poderão vir deve
estar associada à diminuição do desmatamento, à revitalização da biodiversidade e das
condições ecológicas de áreas degradadas. Acredito que isso seja um dos caminhos para
controlar ou minimizar as causas do surgimento de novas pandemias. E o que vemos
Pandemia do coronavírus – 17

são números cada vez maiores de desmatamentos, de perda de biodiversidade, de áreas


degradadas, e tudo isso contribui para cenários difíceis para a humanidade, seja no presente
ou no futuro. Por isso, é importante olhar para todo este cenário, pois tais questões estão
totalmente ligadas às dimensões sociais, econômicas, políticas, ambientais, éticas, entre
outras, o que reforça que a sustentabilidade tem que ser olhada dentro de um recorte
pluridimensional, pois ela vai muito além do viés econômico, do social ou outro. Assim,
o que quero explicitar aqui é que a sustentabilidade que estou dizendo é diferente do
discurso comum do desenvolvimento sustentável, que usa o termo sustentável como
estratégia do desenvolvimento. Estou falando a partir das sociedades sustentáveis, no plural,
pois, para cada contexto, há realidades distintas. Quando você pergunta para diferentes
comunidades: O que é ser sustentável para vocês? Cada uma vai dizer de maneira distinta,
a partir de suas vivências e necessidades, e isso pode acontecer no mesmo município. Assim,
podemos considerar que a sustentabilidade tem como base os pilares do desenvolvimento
sustentável. Contudo, tais discursos, ao tratar-se de diferentes interesses ambientais
entre inúmeros setores e por distintos sujeitos, não são homogêneos! (LEFF, 2008).
Nesse encaminhamento, podemos retomar o documento “Tratado de Educação
para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global”, que enfatiza a ideia de pensar
em “sociedades sustentáveis”, por acreditar que os princípios da sustentabilidade têm
a necessidade de enraizar-se em âmbito local, por meio de construção de novas
racionalidades, sustentadas em valores e significados culturais de tradição e costume,
em potencialidades ecológicas da natureza, na autonomia política e na apropriação social
da ciência e da tecnologia. Diante disso, a concretização dessa sociedade precisa ser
pensada com novos valores sociais, amparados por ações éticas ambientais e se faz de
grande relevância que todas as esferas da sociedade se unam na discussão e construção
de sociedades sustentáveis. Para tanto, a construção de uma sociedade alternativa deve
buscar um crescimento sustentável, considerando alguns princípios filosóficos-científicos,
como: complexidade, abordagem sistêmica, recursividades e interdisciplinaridade
(CAVALCANTI, 2003; LEFF, 2008).
Pautado em Leff (2008), precisamos pensar numa nova racionalidade para
sustentabilidade que seja fundada no potencial socioambiental e na diversidade cultural,
e que propõe novos valores éticos e procedimentos legais que controlem a racionalidade do
capital, visando à construção de uma racionalidade produtiva alternativa (socioambiental),
18

capaz de mobilizar e reorganizar a sociedade para a transformação. E quando falamos em


Educação Ambiental, qual Educação Ambiental é essa? É uma Educação Ambiental que
precisa estar comprometida efetivamente com a transformação da sociedade, no sentido
de transformar as estruturas do poder, orientando assim a transição para um
desenvolvimento que seja realmente sustentável. Portanto, por isso reforço que devemos
considerar sociedades sustentáveis no plural.
Bom, diante disso, no contexto da pandemia, estamos vivendo como hoje? Estamos
nos deparando com uma trágica transparência do vírus, e quem leu o escrito “A cruel
pedagogia do vírus”, de Boaventura de Sousa Santos (2020), deparou-se com reflexões do
tipo: O que a pandemia trouxe para nós?! E neste contexto, a pandemia nos trouxe
a transparência de uma invisibilidade muito marcada e que todos tiveram que lidar com tal
situação, pois, querendo ou não, tivemos ou teremos que olhar para isso; e ainda Santos
(2020) reforça que as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga,
e nós observamos muito isso na sociedade. Nesta conjuntura, ainda estamos convivendo
com um desmonte da estrutura política ambiental. Então, qual é o papel da Educação
Ambiental para construção de um futuro mais possível? Que pergunta difícil! Pois não há
uma resposta objetiva, já que não podemos deixar de considerar a complexidade que está
posta nesse processo, diante de todas as dimensões envolvidas, como os próprios fatores
políticos dentro do contexto atual.
Nesse momento de luto coletivo, estamos olhando não somente para si (no sentido
de autoconhecimento), mas também para o coletivo, pois não podemos naturalizar essas
mortes e muito menos naturalizar o que todos nós estamos vivendo. E ao pensar o coletivo,
essa sensação de indignação que estamos vivendo é necessária. E no contexto da Educação
Ambiental, precisamos começar a pensar a partir das seguintes questões norteadoras:
Como é o mundo que queremos daqui para a frente? Como podemos pensar o futuro
a partir daquilo que queremos? O que se quer enquanto consumo? Em relação ao trabalho,
o que queremos? E para essas questões, surgem algumas reflexões, como a necessidade
do diálogo e da própria escuta, a importância do trabalho colaborativo, sendo ele local,
regional, nacional e/ou internacional. E um dos grandes desafios hoje (e isso perpassou
na fala da professora Marta) é fazer as pessoas pensarem, mas em que sentido? No sentido
de incentivar um pensamento reflexivo e crítico, pois estamos vendo muitas coisas que nos
trazem o seguinte questionamento: Onde é que estamos falhando enquanto humanidade?
Pandemia do coronavírus – 19

E a pandemia pode ser uma oportunidade para isso, para refletirmos o que de fato
são prioridades para nós e conhecermos as causas do que estamos enfrentando. E isso deve
se dar a partir do diálogo de saberes (científicos e não científicos, por meio de diálogos
interculturais) para compreender e agir no mundo, e na busca de problematizar isso,
transformar conhecimentos por meio desses saberes ambientais e por meio de integração
de processos naturais e sociais de diferentes ordens de materialidade e esferas de
racionalidade para pensar o hoje e naquilo que queremos para o amanhã.
Tais reflexões são muito importantes, mas, para tanto, é preciso recuperar a nossa
capacidade de indignação, porque vemos muitas pessoas querendo naturalizar as mortes
da Covid-19, já que não é natural ver tantas perdas com a existência da vacina, assim como
não é natural ver tantas mortes de negros, não é tão natural ver tantas criminalidades, etc.
Essas reflexões sobre a indignação foram levantadas pelo educador ambiental Marcos
Sorrentino quando fizemos uma live juntos, via Sala Verde Rede de Educação Ambiental
da Alta Paulista (REAP) no ano passado (2020). Realmente, precisamos parar de ir pelo
caminho de querer naturalizar esses fatos. É necessária uma revolução no sentido
de mudança de valores, e, para isso, a indignação é importante, bem como saber
compreender cada conjuntura. Por exemplo, o teto é igual para todo mundo? Quando
dizemos: fica em casa, será que a casa é a mesma para todos? Sabemos que não e temos
diversos fatores que impactam nisso e que não discutimos! É esse olhar mais crítico
e reflexivo que Santos (2020) nos traz em relação às invisibilidades, indiferenças e
desigualdades que a pandemia escancara. Outra questão é a necessidade da participação
política (no sentido de ter tomada de decisão), e para tanto, é preciso politizar a educação
ambiental. Portanto, para atuar em Educação Ambiental, é necessário olhar para nossos
territórios, a fim de que todos os moradores possam participar e compactuar de maneira
que essa ação seja coletiva. Portanto, precisamos nos reconectar socialmente;
nos reconectar de forma solidária e participar dos processos comunitários. A Educação
Ambiental vem nesse encaminhamento, de sensibilizar, de trazer uma discussão no sentido
de estimular esse pensamento reflexivo, mas também de incentivar processos
participativos na comunidade, como formas de atuar em seus territórios.
Bom, é isso, acredito que são algumas pistas iniciais para continuarmos seguindo,
e para fechar minha fala trago o indígena Ailton Krenak, que vem ajudando muito nas
reflexões socioambientais:
20

Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável,


vamos pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões,
nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente, não somos iguais, e é
maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como
constelações [...]. Somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas
diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. (KRENAK, 2019, p. 33).

Então, acredito que no período pós-pandemia, precisamos pensar nisso juntos, de


forma coletiva, mesmo com nossas diferenças. É necessário nos reconectar social,
ambiental e politicamente para podermos ter uma boa economia, bem como questões
básicas de qualidade de vida.
Finalizando, quero dizer que foi uma grata satisfação estar aqui com vocês da ANAP
nesta mesa de abertura, e, em especial, com a professora Marta Juliá (UNC/Argentina)
e professor Nelson Russo de Moraes (UNESP/Tupã). Sempre é um grande aprendizado
esses momentos de escuta e reflexão coletiva. E acabo de lembrar do uruguaio Eduardo
Galeano, que faleceu há poucos anos, e tem uma reflexão dele que sempre me impacta
e me faz ter vontade de continuar caminhando, que é quando alguém perguntava a ele:
Para que serve a utopia? E ele respondia, que a utopia serve para não deixarmos de
caminhar, pois quando a gente se aproxima dois passos, ela se afasta dois passos, quando
a gente caminha dez passos, ela corre dez passos. A utopia está lá no horizonte e por mais
que caminhemos, jamais a alcançaremos, e esse ensinamento nos ajuda a acreditar neste
mundo possível e a termos esperanças para continuar a nossa caminhada. Muito obrigada!

REFERÊNCIAS

BOFF, L. Sustentabilidade: o que é e o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.

CAVALCÂNTI, C. (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo:
Cortez, 2003.

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia de Letras, 2019.

LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

SANTOS, B. de S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

Dra. Angélica Góis Morales


Professora da Faculdade de Ciências e Engenharia da Universidade Estadual Paulista
(FCE/UNESP), Tupã, São Paulo.
Pandemia do coronavírus – 21

C A P Í T U L O 2
_____________

OS DESAFIOS PARA AS CIDADES BRASILEIRAS E AS ALTERNATIVAS


PARA O MUNDO PÓS-PANDEMIA

Jeferson Tavares4

INTRODUÇÃO

O objetivo desta exposição é proporcionar uma reflexão sobre o momento da


pandemia da Covid-19 e construir um lugar para pensar alternativas às cidades brasileiras.
A partir do tema do I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento
Sustentável: “Pós-Pandemia: Como será o mundo depois da crise?”, buscaram-se
impressões e especulações elaboradas em meio à pandemia e tendo a transformação
da cidade em tempo real como principal objeto de análise. O que orienta as reflexões
a seguir é uma leitura territorial do impacto da Covid-19 sobre as cidades brasileiras e a
pergunta que está na base dessas reflexões é: O que podemos aprender dessa experiência?
O método adotado baseia-se numa perspectiva histórica do presente momento
à luz do campo do urbanismo. Por isso não desconsideramos o acúmulo de conhecimento
que desvendou as formas das cidades brasileiras do século XX pelas respostas às
pandemias do século XIX ou dele originadas. E busca construir um pequeno sumário
do impacto imediato da Covid-19 que evidencia com muita força os históricos problemas
das cidades brasileiras, que impulsiona transformações nas relações de trabalho, que
requer novas chaves de entendimentos do nosso processo de urbanização e que, ao
proporcionar lugares de reflexão, também pode proporcionar lugares de transformação.

As cidades e a pandemia

Partimos de três evidências da formação do território brasileiro: a desigualdade


do desenvolvimento, a segregação social e a alta concentração de riqueza. Esses
elementos caracterizam o espaço urbano e colaboram no entendimento dos precários
índices de habitabilidade ainda predominantes nas cidades: o déficit habitacional

4
Professor doutor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP),
Paulo. E-mail: jctavares@usp.br
22

é aproximadamente de 6,5 milhões de habitações; 40 milhões de pessoas vivem sem


água potável; e cerca de 32% das moradias cadastradas pelo IBGE apresentam ausência
de coleta de esgoto. Assim, evidencia-se uma base histórica do processo de urbanização
brasileiro que acentua as vulnerabilidades ambientais e sociais em locais que
tradicionalmente são menos desenvolvidos e marcados pela precariedade.
Essas condições foram intensificadas e agravadas pela pandemia e têm resultado
na falta de saneamento básico, no adensamento por unidade habitacional e na
impossibilidade de cumprir o isolamento social e os requisitos mínimos de salubridade
como estratégia de contenção do contágio. A ausência de políticas públicas econômicas
e sociais frente ao fechamento de comércios e serviços levou ao aumento da precarização
do trabalho e do ensino e à impossibilidade de as famílias arcarem com gastos mensais
de aluguel, compra de gás, energia elétrica, etc. O aumento da miséria é visível e
comprovado pelo número de pessoas em situação de moradores de rua.
Por outro lado, a aceleração das mudanças tecnológicas e da incorporação do
trabalho remoto e do ensino a distância tornaram-se realidade para cerca de 30% das
pessoas que compõem as economias formais das grandes cidades. Essa possibilidade
implicou num duplo movimento: de deslocamentos longos para segunda moradia em
condomínios no interior ou no litoral para aqueles com condições de mudar de cidade;
de deslocamentos mais curtos dentro de bairros residenciais para aqueles que optaram por
permanecer na cidade onde trabalham. Os centros de serviços e comércios que sediavam
concentrações de emprego deverão sofrer alterações, assim como os bairros residenciais
que poderão comportar um movimento cotidiano mais intenso de seus moradores.
As favelas, os assentamentos precários, as comunidades, os loteamentos
irregulares e informais permanecem numa triste inércia. A Covid-19 não tem sido motivo
suficiente para mobilizar esforços públicos em combater as condições precárias de vida.
Contradições de um mesmo processo de urbanização que se expõe pelos conflitos
e anacronismos do sistema de desenvolvimento.

Processos de urbanização e o impacto da Covid-19

As políticas públicas federais a partir dos anos 1960 consolidaram um modelo


polarizado de desenvolvimento que atendeu e reforçou a concentração demográfica
e industrial das manchas urbanizadas. Esse modelo resultou uma hierarquização
vertical e monocêntrica das cidades e que orientou boa parte dos investimentos públicos
a partir de então.
Pandemia do coronavírus – 23

Dessa organização territorial, poucos centros urbanos receberam muito recurso


e assim agruparam as principais infraestruturas urbanas e regionais, dentre as quais a
de saúde. Essa maneira de organizar o território colaborou para, por exemplo, o colapso
do sistema de saúde em grandes cidades como Manaus, que não conseguiu atender
à ampla demanda regional concentrada em uma única cidade. A mesma crise repetiu -se
em menores escalas em cidades médias que são sedes de aglomerações urbanas ou
organizações regionais equivalentes, pois representavam a única alternativa de
atendimento de saúde de uma ampla área de abrangência regional sem, contudo, uma
oferta representativa e proporcional de equipamentos.
Como esses polos são também entroncamentos rodoviários, portuárias e
aeroportuários, o risco de contágio é intensificado e eles se tornam pontos difusores da
doença. Sobretudo pelos portos, aeroportos e principais troncos rodoviários e hidroviários
que se transformam em corredores de propagação por possibilitarem o maior fluxo de
pessoas contaminadas.
Na primeira pandemia do século XXI, os fatores essenciais a serem observados são
o modo como as pessoas se comportam no ambiente urbano, o grau de interdependência
entre as cidades e a intensidade do fluxo material. Por exemplo, o papel regional
de determinada cidade é fundamental para compreender a relevância de seu ambiente
no contágio e no combate do vírus. Assim como as desigualdades e a segregação dos
espaços intraurbanos colaboram no contágio.
As cidades médias e pequenas com baixo potencial de endividamento e capacidade
reduzida de atendimento de serviços públicos transferiram seus pacientes para municípios
maiores. Fato que ilumina um aspecto importante para as políticas públicas que sempre
privilegiaram as áreas mais adensadas como lugar de investimento. E demonstra que
recursos em áreas de baixa dinâmica econômica e baixa densidade também colaboram
na manutenção da qualidade de áreas mais dinâmicas e adensadas.
E as áreas pobres, com precariedade de infraestrutura e em condições de
vulnerabilidade social e ambiental localizadas em metrópoles, cidades médias ou pequenas
demonstram que o avanço da Covid-19 ocorre por redes capilares.
A questão, portanto, deve ser compreendida pelas relações interescalares.
24

A pandemia tem comprovado que as cidades estão integradas, mas não estão
equipadas. As políticas do século XX que buscaram integrar o mercado nacional pela
infraestrutura regional prosperou, contudo, a sociedade do consumo não é saudável.
Complementarmente, pode-se verificar que esse processo de urbanização
polarizado, concentrado e hierarquizado está apresentando tendências de transformação
pela dispersão urbana e pela metropolização do espaço brasileiro. Na prática, essas
transformações representam, respectivamente, o reescalonamento funcional do tecido
urbano e a regionalização do ordenamento territorial pela intensificação das
interdependências e mudanças nas hierarquias urbanas.
Nesse contexto, a própria definição de centro-periferia é questionada, pois no
decorrer do processo de dispersão urbana e de metropolização do espaço, as funções
das áreas centrais alternam-se e o próprio entendimento do que é periferia exige
novas definições.
Os condomínios residenciais de classe média espalhados pelas zonas rurais de
municípios prósperos estão recepcionando os moradores das metrópoles. No entanto, os
pobres dos assentamentos precários mudam-se para os espaços residuais das cidades por
não terem condições econômicas de alugar moradias, ainda que precárias, nas periferias.
Esses fatores estão sempre acompanhados de um debate sobre o antagonismo entre
cidade compacta e cidade dispersa que inibe uma discussão mais ampla e cria um falso
dilema, pois a defesa da cidade compacta pelo adensamento da terra equipada encontra
argumentos contrários pelos processos de gentrificação proporcionados pelo alto preço
dos espaços mais bem infraestruturados. Ao mesmo tempo em que a crítica à cidade dispersa
pela ocupação de áreas verdes é contraposta à oportunidade de soluções alternativas de
assentamentos rurais ou do uso de soluções de infraestruturas vinculadas à natureza
possíveis somente em ocupações de baixa densidade.
A densidade é relevante para constituir qualidade do ambiente urbano, mas a
discussão deve priorizar o modelo de desenvolvimento. Compreender o modelo de
desenvolvimento vigente e construir uma perspectiva daquilo que a sociedade almeja deve
ser o centro do debate. Nesse sentido, algumas respostas à crise sanitária, de saúde, política
e econômica iluminam particularidades do processo de urbanização que podem ser
potencializadas pelo planejamento.
Pandemia do coronavírus – 25

A emergência de alternativas

A primeira e mais evidente dessas respostas é a união de municípios para soluções


conjuntas no combate à propagação do vírus. Essas articulações ocorrem, em geral,
por meio de consórcios; são caracterizadas pela horizontalidade das relações; e rompem
o modelo hierarquizado vertical e monocêntrico por novas formas de governança.
A segunda é a constituição de redes de cooperação em diferentes níveis que se
sobrepõem à estratégia de competitividade. Essas experiências constroem um princípio
de solidariedade territorial entre Estados, entre municípios e entre comunidades. Partem de
representações estatais ou da sociedade civil em função de problemas muito específicos
cujas soluções estão baseadas no compartilhamento de esforços, recursos e iniciativas a fim
de garantir o mínimo de bem-estar social e condições seguras de vida nas áreas urbanizadas.
A terceira é a integração de ações entre diferentes grupos sociais (grupos étnicos,
etários, de gênero, de raça, etc.) que possibilitam um pensamento diversificado, mas coeso.
A transversalidade dessas ações pode garantir aspecto estrutural nos seus resultados
evitando, portanto, soluções paliativas, intermitentes ou provisórias.
Essas três evidências demonstram a capacidade institucional de reorganização da
sociedade por novos espaços de tomada de decisão; demonstram a revalorização dos
aspectos técnicos e políticos como meio de soluções; e reforçam a ciência e a solidariedade
como princípios contra o autoritarismo e o negacionismo. Na base desse processo, o Estado
e o planejamento voltaram a representar a essência da esfera pública, do lugar dos
conflitos, das resistências e oportunidade de alternativas.

Uma agenda para as cidades brasileiras no Século XXI

É preciso reconstruir a função pública do planejamento, essencialmente com a


revalorização do Estado pela sua capacidade de proporcionar bem-estar coletivo.
Essa reconstrução pode iniciar pela transformação da cidade, pela constituição de
oportunidades de emprego, de espaços públicos, de habitabilidade digna, segura e com
qualidade, de acesso aos serviços (saúde, educação, saneamento, transporte, lazer, esportes,
cultura, segurança, etc.) e da cidade como lugar de encontro.
26

A trágica experiência da pandemia comprovou a importância da cidade como


o lugar do imprevisível, da surpresa, das diferenças, do (des)encanto, da saúde,
do aprendizado, do coletivo, das particularidades, da resistência, da festa. O período de
restrições às ruas e ao convívio social demonstrou o quanto o espaço público é importante
na constituição da cidade e na formação do cidadão, sobretudo para garantir lugar onde
o conflito possa emergir. A polarização dos argumentos, a incapacidade de tolerar as
diferenças e o insulamento de grupos ideológicos, religiosos ou de classe aumentam numa
proporção diametralmente oposta à desvalorização do espaço público nas cidades.
Portanto, não é a cidade existente que nos motiva, mas a possibilidade de sua
transformação. A perspectiva histórica demonstra que os problemas estruturais tendem
a ser mantidos nas cidades brasileiras e é essa visão que deve instigar novas ações.
A ingenuidade de que o mundo pós-pandemia fará renascer transformações utópicas deve
ser evitada, mas no seu lugar há espaço para motivar debates e propostas.
A cidade em que vivemos carrega diferentes temporalidades, mas a mais aparente
e concreta é o padrão constituído à base da atividade industrial para alimentar cadeias
produtivas setoriais econômicas e consolidadas como ambiente de contrastes sociais. Esses
elementos que justificam a homogeneização de formas de morar, deslocar-se e trabalhar
proporcionam cada vez menos espaços de lazer ou de encontros que não estejam ligados ao
consumo. A cidade moderna, evidência do século XX, que está marcada pelas relações
monofuncionais, da hegemonia tecnológica e do domínio da natureza tem resultado
na segmentação da sociedade e no distanciamento das classes e oportunidades.
Evidentemente, a pandemia exige uma revisão do olhar que foi construído sobre as
formulações do urbanismo moderno. A compreensão da casa como a célula da cidade,
o afastamento das atividades de trabalho do lugar de morar ou de lazer ou o privilégio
à salubridade são agora observados pela perspectiva histórica em meio à pandemia
similar àquelas que motivaram essas decisões. Essa revisão deve fazer parte da compreensão
do que se quer para o presente.
O que se vislumbra frente à precarização do trabalho e da refuncionalização da
habitabilidade é uma nova trama verde-azul que se sobreponha ou substitua a trama
industrial; uma nova organização dos espaços pelas relações sociais; e um novo modo de
Pandemia do coronavírus – 27

organizar o desenvolvimento urbano integrado ao desenvolvimento ambiental. O combate


às mudanças climáticas, a economia circular, as soluções baseadas na natureza, a segurança
alimentar, a infraestrutura verde e azul, políticas inclusivas, geração de energia limpa são
fatores que não poderão ser excluídos do planejamento das nossas cidades.
No âmbito regional, a possibilidade de conexão entre cidades pela cooperação é uma
alternativa que pode criar agrupamentos de áreas urbanizadas por atividades solidarizadas,
eixos de articulações por funções subsidiárias ou redes de relações que não dependem da
proximidade ou contiguidade física.
A cidade deve ser compreendida como oportunidade de soluções e para isso é preciso
reativar o urbanismo como prática e incumbi-lo da função técnica e política. O urbanismo é
o campo da ação na transformação do urbano, por isso recepciona diferentes áreas de
conhecimento e integra anseios sociais.
A aglomeração que segrega deve ser rompida como lógica de ordenamento
territorial; a mobilidade, elemento estrutural da primeira pandemia do século XXI, deve
estar articulada a uma reestruturação multifuncional da cidade; e a habitação que ganhou
nova centralidade nesse contexto, tem de ser revista pelos novos modos de vida e de
padrões familiares.
É necessário pensar pelas demandas locais, mas também pelo desejo de cidade
que se quer. O bairro, a vizinhança, os setores urbanos e a dimensão regional das
aglomerações urbanas ganham nova importância. Onde está o debate do rural nesse
contexto? Como a água, com função transversal na sociedade, pode ser estrutural na revisão
de nossos paradigmas?
Por fim, é preciso pensar a cidade como bem comum global e considerar o território
para o planejamento interescalar, com projetos sistêmicos e estruturais e investimentos
permanentes. Uma nova instituição urbanística estatal para o ordenamento territorial,
capilarizada nos entes federativos e com autonomia de produção de conhecimento pode
ser uma estratégia para iniciar essas mudanças. Assim, seria possível desvincular as
tomadas de decisões das práticas coronelistas, patrimonialistas e clientelistas e ser
representativa das redes de solidariedade, de cooperação e de relações horizontais que
emergiram no atual contexto.
28

Deve-se reconhecer a nova estrutura territorial que se forma pela reestruturação


produtiva e romper o modelo monocêntrico de ordenamento territorial, pois o domínio
espacial de um único centro representa uma ordem definida pela desigualdade de forças.
Criar alternativa à hierarquia fordista que influenciou a organização territorial significa
superar a divisão racional-funcional dos setores urbanos; privilegiar a diversidade social,
de atividades e paisagens; reconhecer as relações interescalares como possibilidade de
ordenamento territorial e adotar o território como base do planejamento.
Para isso é preciso constituir novas referências teóricas, conceituais e metodológicas
para intervir sobre a cidade contemporânea. Na base dessa reconstrução devem estar nossas
matrizes culturais e nossa história.
Pandemia do coronavírus – 29

CA P Í T U L O 3
____________

POR UM URBANISMO DE CANTEIRO:


PROJETO, PESQUISA E POLÍTICAS PÚBLICAS NA CIDADE
PÓS-PANDEMIA5

Adalberto da Silva Retto Júnior6

INTRODUÇÃO

Para discutir a linha colocada pelo 1o Congresso Latino-Americano de


Desenvolvimento Sustentável, vou abordar o tema intitulado Por um urbanismo de canteiro,
visando a explorar a relação entre projeto, pesquisa e políticas públicas e pensar a nova
condição urbana na cidade pós-pandemia a partir do itinerário de pesquisa aplicada
do Grupo em Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos – Grupo SITU. Desde sua formação
em 2003, esse grupo trabalha a interpolação entre as diferentes escalas presentes no próprio
título: entre plano x projeto, projeto x pesquisa, urbanismo e canteiro.
Tal hipótese de trabalho explora uma linha de reflexão que parte da natureza
ambígua e polissêmica de Plano Diretor e da sua dupla filiação às ciências sociais aplicadas
e à dimensão estético-perceptiva.
Com isso, objetiva-se individualizar um tópos de reflexão sobre urbanismo
contemporâneo a partir da experiência em pesquisa aplicada – conhecimento histórico
-ambiental integrado na planificação territorial e urbana, realizada em cidades do
interior do Estado de São Paulo como um lugar mental no qual imagem e realidade
se sobrepõem na configuração de uma região, como possibilidade de unir, em um
horizonte ideal, o mundo físico àquele fenomênico. O objetivo maior é superar a rígida
antinomia entre plano e projeto para que estes possam emprestar ao Plano Diretor
um papel pedagógico de formação da cidadania e atrelar a estratégia de ação à
normativa, a fim de consubstanciar o desenho social do plano.

5
Agradeço e parabenizo a organização do evento, especialmente as professoras Doutora Geise Pasquotto
e Doutora Sandra Benini.
6
Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, São Paulo. E-mail: a.retto@unesp.br
30

A aproximação com o cenário da cidade pós-pandemia parte do princípio que,


já há algumas décadas, a cidade contemporânea brasileira, com seu caráter de
modernidade inacabada, solicita, experimentações que pudessem restabelecer a relação
íntima entre planejamento e exploração projetual a partir de sistemas novos e mais
articulados que aqueles imaginados para a cidade moderna. Por essas razões, os planos
diretores desenvolvidos pelo Grupo Situ se constituem a partir de um claro programa
de pesquisa, no qual a cidade e/ou partes da cidade são verdadeiros laboratórios de
práticas aplicadas.
Uma reflexão sobre a construção social da ciência, embutida na noção de
laboratório urbano é, portanto, absolutamente urgente no mundo pós-pandemia à medida
que o método científico pode contribuir para moldar e legitimar as decisões políticas.
Há séculos o tempo tem sido o portador de esperança. Do futuro esperávamos paz,
evolução, progresso, crescimento ou mesmo revolução. Esse não é mais o caso. O futuro
praticamente desapareceu e aqueles territórios da cidade atual, dominados pela
precariedade, provisoriedade e uma condição generalizada de instabilidade e metamorfose
contínua, são a expressão mais forte e evidente da incerteza política e programática que
rege a sociedade brasileira atual.
Logo, o conceito de laboratório urbano passa a ser uma das inovações políticas
mais proeminentes dos últimos períodos. Talvez seja a partir desse tipo de experiência,
que possamos começar a responder como as cidades poderão ser transformadas na era
pós-pandemia.
Inicialmente, proponho duas citações significativas. A primeira, do professor Flávio
Vilaça, no livro Ilusões do Plano de 2005, e a segunda de Ítalo Calvino. Ambas serviram
de mote para estruturarmos nosso itinerário de pesquisa e de reflexão:

O planejamento urbano no Brasil, representado pelo Plano Diretor, está a exigir


uma revisão radical, ou seja, pela raiz. Todos os seus pressupostos precisam
ser questionados. Todos, sem exceção. A partir desse questionamento, é
fundamental que o conteúdo do Plano Diretor e seus métodos sejam
redefinidos de baixo para cima. [...]. Os problemas e suas prioridades devem
ser definidos pela maioria e esta deve recusar qualquer constrangimento por
“não entender de planejamento urbano”. Especialista (ou expert) é aquele
a quem o problema diz respeito! Os técnicos têm que ser postos a serviço dessa
maioria e da solução dos problemas que elas pautarem. (VILAÇA, 2005, p. 1).
Pandemia do coronavírus – 31

Para ver uma cidade, não basta ficar de olhos abertos. Em primeiro lugar,
é necessário descartar tudo o que nos impede de vê-la, todas as ideias
recebidas, as imagens pré-constituídas que continuam a obstruir o campo
visual e a capacidade de compreensão. Então é preciso saber simplificar,
reduzir ao essencial a enorme quantidade de elementos que a cada segundo
a cidade põe sob o olhar de quem a olha, e conectar fragmentos dispersos
em um desenho analítico e unitário, como o diagrama de uma máquina, a partir
do qual você pode entender como funciona. [...] É com novos olhos que hoje
olhamos a cidade, e encontramos uma cidade diferente diante dos nossos olhos
[...] Mas é daqui que devemos começar a entender, primeiro como a cidade
é feita e, segundo, como ela pode ser refeita. (CALVINO, 2002, p. 6, tradução
do autor)7.

No meu ponto de vista, as duas citações são dois convites contundentes e úteis,
no momento atual, para buscarmos a essência do que poderia ser planejamento urbano na
contemporaneidade, a partir de mecanismos colaborativos e conflituosos que animam
os contextos urbanos e podem nos fazer pensar quais políticas e inovações podem
transformar as cidades em laboratórios da democracia.
À luz da crise econômica, das tensões sociais e ambientais, o centro-oeste paulista
aparece como região em profunda transformação, principalmente do campo, e que
necessita de quadros interpretativos e cenários evolutivos capazes de estabelecer
novo impulso e nova identidade. Por um lado, o ponto de partida da investigação foi
a interrogação sobre a natureza das práticas de elaboração de planos diretores para
cidades pequenas e médias. Esse questionamento visava a repensar, readequar,
ou mesmo adaptar os parâmetros e instrumentos produzidos pelo Ministério das Cidades
os quais, em certa medida, mostravam-se “folgados” quando se pensa nessa escala
de cidades. Por outro lado, buscou-se delinear as bases da formação de um banco de
dados científico, iniciado com a pesquisa histórica a partir do Projeto Temático Fapesp
(2006-2009), com o objetivo de remontar o processo de configuração e transformação
das zonas pioneiras. Pretende-se que o seu conjunto possa funcionar como um
“manifesto” para uma agenda programática que tem a ambição de delinear a visão futura
de região ambientalmente sustentável, baseada em dados científicos que funcionem
como apoio para a Planificação Territorial e Urbana.

7
Per vedere una città, non basta tenere gli occhi aperti. Occorre per prima cosa scartare tutto ciò che
impedisce di vederla, tutte le idee ricevute, le immagini precostituite che continuano a ingombrare il campo
visivo e la capacità di comprendere. Poi occorre saper semplificare, ridurre all’essenziale l’enorme numero
d’elementi che a ogni secondo la città mette sotto gli occhi di chi la guarda, e collegare frammenti sparsi in
un disegno analitico e insieme unitario, come il diagramma d’una macchina, dal quale si possa capire come
funziona. [...] É con occhi nuovi che oggi ci si pone a guardare la città, e ci si trova davanti agli occhi una città
diversa [...] Ma è di qui che bisogna partire per capire – primo – come la città è fatta, e – secondo – come la si
può rifare. (CALVINO, 2002).
32

Segundo a professora Ermínia Maricato,

a proposta do Ministério das Cidades veio ocupar um vazio institucional que


retirava completamente o governo federal da discussão sobre a política urbana e o
destino das cidades. A última proposta de política urbana implementada pelo
governo federal se deu no regime militar (1964-1985). Com a crise fiscal que atingiu
o país em 1980 e a falência do Sistema Financeiro da Habitação e do Sistema
Financeiro do Saneamento, a política urbana e as políticas setoriais formuladas
e implementadas pelo regime militar entraram em colapso. Desde 1986, a política
urbana seguiu um rumo errático no âmbito do governo federal. Não faltaram
formulações e tentativas de implementação, mas todas tiveram vida muito curta.

Embora a criação do Ministério das Cidades represente desdobramentos de extrema


importância em vários campos, gostaria de me concentrar em dois pontos que tangenciam
mais diretamente o objeto de estudo – as cidades pequenas e médias: a postura e o papel
das cidades respondendo ao novo cenário de gestão contemporânea e as mutações
ocorridas nas práticas do planejamento urbano e do urbanismo a partir de então.
Na busca de novos percursos, destaca-se o mergulho nas raízes profundas
da experimentação, invocando princípios projetuais e normativos da disciplina urbanismo
e suas nuances, para pensar o futuro de uma forma diferente e que demonstrasse a
multidimensionalidade do projeto para a cidade contemporânea. Destaca-se que a mesma
metodologia utilizada pelo Grupo SITU foi construída a partir do diálogo com vários mestres.
Os professores José Cláudio Gomes e Bernardo Secchi foram os dois interlocutores
mais diretos com os quais debatemos o que seria A Pesquisa e o Projeto Urbano e Territorial,
com as seguintes questões:
– Se a arquitetura e o urbanismo se constituem como objetos de pesquisa;
– De que forma;
– Se o projeto pertence ao âmbito da pesquisa científica;
– E qual nosso relacionamento com as outras disciplinas.
Para embasar a continuidade desses questionamentos e escolhas, fez-se oportuno
aprofundar o diálogo entre os dois mestres:
Para o professor Cláudio Gomes, no texto “A pesquisa no projeto de arquitetura e
urbanismo: sete paradigmas”: “o objeto é o projeto. Isto é, o operar artístico. O fazer da arte.
Nem é reflexão “sobre” o projeto, ou “a respeito do projeto”, mas a própria
fabricação de algo que, ao se instituir, reflete o objeto constituído: sobre o projeto”.
Pandemia do coronavírus – 33

O professor Secchi elenca quatro critérios primordiais para o urbanista-pesquisador:

1. Uma boa pesquisa deve reconstruir a “história” do tema;


2. Deve pertencer ao registro acadêmico, pois a pesquisa requer rigor lógico;
3. Refere-se ao papel do projeto na pesquisa;
4. Remete à tradição de trabalhar em equipe.

Quando interrogado por alunos em uma conferência, publicada no livro


“Tra letteratura e Urbanistica”, sobre quais seriam os livros importantes para os urbanistas,
Bernardo Secchi respondeu e listou cinco obras fundamentais que, segundo ele, são livros
de urbanismo:

– “A ilha do tesouro”, ‘porque os mapas sempre dizem mentiras’;


– “Moby Dick”, ‘porque a nossa (busca) é um empenho contínuo, da qual também
podemos ser vítimas’;
– “As viagens de Gulliver”, ‘porque devemos sempre ter um sentido claro das
escalas com as quais trabalhamos’;
– “Robinson Crusoé”, ‘porque o futuro é um fenômeno que construímos
cotidianamente’; e
– “Don Quixote”, ‘porque, salvo o bom senso e realismo de Sancho Pança, a busca
da utopia é a única coisa na vida que pode nos motivar’.

A metodologia foi aplicada, pela primeira vez, no “Laboratório Agudos”, em 2004,


e até hoje é utilizada, pois baseia-se na separação de temas surgidos em cada município.
Tais temas servem de mote para a revisão do próprio conceito de cidade, pois a metodologia
busca ressaltar percursos plurais e indagações nascidas a partir do confronto direto com
as cidades, em um verdadeiro “Urbanismo de Canteiro”.

O Ministério das Cidades e a (nova) forma de conceber urbanismo

Como ressalta a professora Raquel Rolnik,


34

Do ponto de vista federativo, os anos 1990 representaram um movimento de


descentralização na direção do poder local. A República Federativa Brasileira é um
sistema federativo constituído por União e estados e também, desde a Constituição
Federal de 1988, por municípios como entes federados, integrantes autônomos
da federação ao lado da União e dos estados. O arranjo institucional e tributário
decorrente da Constituição Federal de 1988 significou uma transferência real de
renda e poder para os municípios. Particularmente no campo das políticas urbanas,
por um lado aumentou a participação dos municípios, principalmente das grandes
cidades, tanto no financiamento como na gestão dessas políticas. Entretanto, se
tomarmos a realidade dos municípios brasileiros, boa parte deles – especialmente
os menores (que correspondem à grande maioria) – tem pouca capacidade
financeira e de gestão para apresentar uma resposta adequada ao tema.

A delegação de responsabilidades do nacional para o local notadamente implica


uma nova forma de gestão refletida na renovação, no envolvimento e na maneira de fazer
urbanismo, uma condição que apresenta demandas específicas oriundas de projetos,
meros reflexos dos editais divulgados. Trazendo diversas nomenclaturas do vocabulário
urbano, apresentadas com diferentes declinações – projeto urbano, projeto de mobilidade,
projeto de infraestrutura, etc., esses projetos foram se afirmando, ao longo das últimas
décadas, no léxico das políticas públicas.
Entretanto, quando começamos a trabalhar nas cidades pequenas e médias,
uma das primeiras constatações foi a falta de mapas, documentos e a excessiva dispersão
de informações nas secretarias e diretorias. Além disso, há uma pluralidade de
secretarias/diretorias que não refletem uma divisão do trabalho que poderia impactar
a nova forma de conceber o urbanismo. As pastas do Ministério das Cidades encontram
pouca aderência na estruturação administrativa das cidades.
É importante frisar que, nesse cenário, o saber técnico e o projeto urbanístico
demandam outro tipo de atenção, pois essa mudança de rumo traz implicações não
somente cognitivas, mas também éticas, políticas e conceituais. A nosso ver, os planos
individualizados por temas, no caso da cidade de pequeno porte, acabaram por estimular
um urbanismo feito por fragmentos típicos da metrópole contemporânea, distante
daquele abarcado ainda pelo olhar.
É preciso entender que tecido urbano, paisagem, ambiente e território possuem
noções diferentes e devem ser investigados a partir de suas especificidades disciplinares
e operacionais, utilizando-se métodos direcionados de conhecimento. Entretanto,
as segmentações refletidas nos editais do Ministério das Cidades que incidiam em cidades
de 20 mil habitantes acabaram por levar à perda da visão mais ampla da cidade, pois
as pesquisas específicas que as sustentam captam muito pouco de seu real funcionamento
no território.
Pandemia do coronavírus – 35

É verdade, todavia, que o argumento que está no centro do debate é a concepção


de Plano Diretor como atividade de pesquisa entre normativa e projeto. É a participação
da universidade onde tais questões são objeto de experimentação através da tríade: saber
técnico, projeto urbanístico, plano diretor. Ademais, faz-se necessário frisar que existem
diferentes visões e tradições culturais com relação à noção de projeto, ao próprio papel
do urbanista em colocar as três palavras-chave acima citadas como referência no espaço
do trabalho prático.
A atividade de pesquisa nessa área, ainda restrita às universidades, necessita
assumir sua aplicabilidade à luz de algumas convicções sobre o caráter distintivo do
urbanismo em uma dimensão contextual, no sentido de estruturá-la de forma íntima com
as práticas e os cenários sociais e territoriais. Por isso, é útil estabelecer claramente
o tempo da pesquisa no cronograma do plano: o “tempo lógico” e o “tempo histórico”
de sua evolução; verificar a aplicabilidade de certos parâmetros e suas adaptações;
perceber a dimensão projetual — na acepção de que o urbanismo termina na ação —
trazendo em si a tensão da mudança para a prefiguração e o funcionamento espacial,
para um parecer físico e morfológico dos espaços, para a organização e gestão dos
processos. Por isso, é Projeto Urbanístico e Planificação (planejamento + ação);
reconhecer o seu papel social, que suscite na população o entendimento de que o
urbanismo tem a ver com a comunidade e, por isso, deve ser desenvolvido com
competência técnica, equilíbrio e consciência da dimensão civil do trabalho, inclusive no
que tange à participação popular.
No começo do processo de elaboração e revisão de planos diretores, o que tem
despertado maior interesse é a aproximação das equipes das prefeituras e das câmaras
municipais, porque quer se queira ou não, o calendário de obras – que seduziu eleitores à
escolha do corpo representativo peculiar da política brasileira – está intimamente ligado às
formas de gerenciamento das transformações urbanas futuras e da construção da própria
cidade. Da mesma forma e em paralelo, é importante dialogar com os grupos já
consolidados, Conselhos Municipais de Saúde, de Patrimônio, ONGs (Organizações Não
Governamentais), etc., incluindo-os diretamente na construção do plano, antes de partir
para criação de novos conselhos que, certamente, poderão ter pouca representatividade
da comunidade ou ainda ser um braço imediato do Poder Executivo.
36

Esse elenco de proposições, que no limiar representaria o plano de modificações


da cidade, é algo que ganha relevância e, logo, exige análise criteriosa com o objetivo
claro de buscar uma possível racionalidade para viabilizá-lo como obra de bem comum,
transformando-o em agente fundamental de ação a médio e longo prazos. Isso não
significa ratificar de imediato tais sugestões, mas dar atenção a cada uma, uma vez que
podem refletir os rumos da cidade. Em outras palavras, significa começar a discutir com
o executivo e o legislativo de cada município a viabilidade de tais projetos, fundamentar
as decisões dos representantes em interpretações e descrições precisas com base
na investigação científica, nos dados levantados e que possam abrir espaço a essas
hipóteses de representatividade pública.
Uma vez alargada a equipe, pois esse processo significa abraçar o grupo técnico
na condução da elaboração do plano, começa-se a construir a base científica não só
do Plano Diretor (ou de sua revisão), mas da própria cidade e do município, pois sua
interpretação está intimamente ligada à nova forma de urbanismo e, na maioria das
pequenas prefeituras, segue a tradição puramente empirista. Hoje, nas prefeituras em
geral, a consulta à população é obrigatoriedade a ser seguida, em vez de uma
interlocução real na construção da imagem da cidade e de seu projeto, pois a pretensa
base científica dos peritos, quando não qualificados para esse tipo de pesquisa e ação,
reflete somente um saber disperso e segregado que não vai além da classificação
de fenômenos, ficando distante da verdadeira leitura da cidade feita pelos moradores.
A presença cotidiana da equipe nuclear na cidade em uma espécie de escritório,
quase sempre em edifícios históricos; o trabalho paralelo com atividades formativas
de extensão universitária, como cursos de capacitação aos técnicos, vereadores,
professores da rede pública e agentes de saúde; e a inclusão de estagiários, moradores
da própria cidade, podem influir positivamente no envolvimento da população, uma vez
que todos são potencialmente difusores da nova empreitada.
O mais importante é repassar que, no processo de elaboração do plano, existe
clareza metodológica e base científica e que, no processo de planificação, existe clara
diferenciação de papéis entre o político-decisório e o técnico, e que o papel do urbanista
(coordenador científico) é aquele que compreende a importância política dos conteúdos
urbanísticos, que entende a relevância dos dados técnicos para a política pública,
que oferece soluções às decisões políticas segundo um código deontológico e que assume
alguns princípios inderrogáveis, próprios da planificação contemporânea:
sustentabilidade ecológica, factibilidade social e equidade.
Pandemia do coronavírus – 37

Certamente é necessário construir uma visão diferente, uma reVisão como


costumamos escrever, pois a escala dessas cidades é diferente e a relação do funcionalismo
público com as mesmas também. Por isso o saber especializado, baseado na reflexão e na
experimentação, deve ser ressaltado como via de mão dupla pois, apesar de ter uma
dimensão crítica, ele deve estar sempre aberto às mudanças, a fim de semear esperanças
em lugar de dúvidas. Nesse sentido, é necessário dar a devida atenção crítica àquilo que
é possível, pois pensar a cidade durável no tempo requer técnica no fazer e compreensão
dos vários tempos da gestão e da pesquisa.
Não adianta, portanto, repetir soluções de países diferentes, ou ainda copiar planos
de outras cidades – prática frequente e explicitada no texto de vários planos averiguados.
Para cada nação ou cidade é necessário estudar metodologias de leitura e de avaliação
que resultem em resoluções particularizadas, com modalidades e instrumentos científicos
adequados, levando-nos a prestar atenção aos pequenos detalhes justamente para
compreender a real escala da cidade e suas problemáticas, a sua exata medida. Isso não
significa, porém, furtar-se a discutir as práticas exitosas que povoam o imaginário de cada
político e sua equipe, mas sempre no sentido de inseri-las no contexto nas quais estão
sendo geridas, e claro, o porquê de atingirem fortuna crítica.
Assim, pode-se delinear a linha que leva à estratégia de recuperação e construção
da cidade através de instrumentos que lhe são próprios, para individualizar e enfrentar
prioridades de ação gradual e seletiva, em vez de tentar implementar o elenco de
instrumentos urbanísticos na sua totalidade. Repensar o que já foi pensado, imprimir
ao trabalho a dialética dos tempos da cidade e da gestão: essa dinâmica requer certa
astúcia para se movimentar e vai além do comportamento científico, mas permite,
sem deixar de privilegiar a estrutura canônica do mesmo, ter maleabilidade para adaptar
a própria metodologia diante de condições adversas.
Ao final, o resultado será o plano como peça técnica, construído com uma equipe
nuclear de pesquisadores, vereadores e prefeito, apresentado à comunidade por seus
legítimos representantes, retirando o vício da política local de compra de votos para
retalhamento da proposta às vésperas das votações. Não é retirar da câmara o direito
à sua votação, mas referendar a metodologia em que os vereadores são partícipes
do processo, tanto na elaboração da normativa como nos projetos estruturais que irão
qualificar a vida do cidadão.
38

O Território como Laboratório de Projetualidade

Como se pode ressaltar, “o urbanismo hoje não é apenas técnica, mas baseia-se
em três aspectos da palavra cidade: urbs, a cidade como ambiente físico da atividade
do homem; civitas, a sociedade que vive naquele ambiente; polis, a atividade de governo,
mediante a qual a sociedade organiza o próprio espaço (RETTO JR., 2020)[...]. E que a
profissão do “urbanista-pesquisador”, principalmente da universidade pública, se diferencia
por responder ao imperativo de, na organização da cidade, amparar os interesses coletivos,
cuja lógica o mercado é incapaz de levar em conta.
A figura desse profissional, destinado à formulação técnica dos instrumentos para
a gestão das transformações urbanas e territoriais, é depositária dos saberes necessários
para fornecer as bases das decisões das autoridades políticas relativas ao meio urbano
e ao território. Os métodos e ferramentas a serem adotados são os do planejamento
urbanístico como saber constituído, no qual o Plano Diretor se coloca como principal
dispositivo para assegurar o direito à cidade, protegendo-a do livre jogo das forças de
mercado (RETTO JR., 2020).
Porém, a entrada do projeto urbanístico nesse cenário permite apresentar, à lógica
quantitativa da acumulação das coisas, a coerência qualitativa de sua “disposição”
(localização) que consiste em dar ao projeto o valor exploratório da especificidade
e potencialidade dos lugares; e também apontar a viabilidade das escolhas. Portanto, não se
trata somente de colocar empecilhos ou limites, mas de inovar com os novos modelos de
natureza espaço-temporal que produzam ambientes originadores de tempo e valor estético.
A interpretação da cidade contemporânea apresentou aos urbanistas questões
inéditas, que necessariamente conduzem a reavaliações de princípios consolidados pela
prática da profissão. As transmutações atuais do espaço urbano na cidade
contemporânea pós-pandemia, mesmo naquelas de dimensões diminutas – não porque
nascem de um dia para o outro, mas pela radicalização com que se impõem – criam uma
série de necessidades ao modo de fazer urbanismo, derivadas do reconhecimento do
fenômeno em ato e que exigem o repensar de figuras e imagens recorrentes em nosso
vocabulário. Uma dessas imagens é aquilo que, há não muito tempo, era chamado
de “diagnóstico” e que, frequentemente, ainda faz parte da terminologia corrente dos
profissionais do urbanismo e dos técnicos públicos, carregando em si a carga do referido
método que pretendia curar as cidades doentes.
Pandemia do coronavírus – 39

De forma sintética, vale recordar as principais questões que caracterizam a cidade


contemporânea e também as menores: a fragmentação do espaço, configurando um
conjunto descontínuo de locais construídos, semiconstruídos, abertos (as várias formas
de greenfield), de urbanização incompleta, abandonados ou subutilizados (brownfields),
ou por vazios urbanos de outra natureza. E, ainda, a pluralização das práticas pela
articulação das formas de urbanidade, pois uma condição híbrida – sempre mais
insustentável do ponto de vista ambiental –, está se desenvolvendo entre o tecido urbano
e o campo pelo consumo do solo, pela dissipação dos recursos e pela congestão dada
pela mobilidade privada.
Em um planeta majoritariamente urbanizado, os estudos de suas dinâmicas
contribuem para a compreensão da formação de nossas cidades inserindo-as no seu
território mais amplo, a partir do entendimento do funcionamento das vastas redes que,
paulatinamente, superaram as fronteiras da bipolaridade clássica, típica das cidades do
século XIX, entre cidade e natureza, centro e periferia, espaços abertos e terrenos
baldios, dualidade.
Pouco a pouco, a diferenciação entre áreas urbanas e áreas rurais desaparece, num
processo extremamente complexo, pois o estabelecimento de novas formas de morar e a
implementação de atividades econômicas nesses lugares incrementam os movimentos
pendulares, além do crescimento exponencial da mobilidade urbana que contribui para
a indefinição de fronteiras. Esses novos territórios entre o mundo urbano e o mundo rural
são lugares incertos e colocam-se no centro do debate do urbanismo na contemporaneidade.
Pode-se afirmar que o fenômeno da metropolização cresce com especificidades
regionais e dá origem às novas formas de aglomerações urbanas, distendidas, descontínuas,
heterogêneas e multipolarizadas. Esses movimentos, que também incluem algumas
cidades pequenas, apresentam particularidades que podem ser compreendidas por uma
investigação acurada e seus elementos descriptografados.
É justamente a análise da infraestrutura de automóveis e estradas que possibilita
o entendimento da nova dimensão para o urbano, pois essa forma está ligada diretamente
à lógica das redes. Sem redes, não há mobilidade; alterando-as, há diferente cinestesia.
Compreender os modos de vida das populações demanda o entendimento do significado
de sua flexibilidade, pois ela "é hoje a base da relação social e espacial”.
40

A consolidação das novas atividades econômicas no território se faz a partir da


elaboração de protótipos, nos quais os eixos de desenvolvimento são pensados em
conjunto com o “desenho” de sua ocupação, como antes acontecia quando se pensava
a cidade por áreas ou manchas e unidades de produção. Entretanto, os dados demonstram
que as particularidades econômicas do território efetivamente produtivo podem ter um
papel fundamental na lentidão de tal processo.
Assim, a paisagem de algumas dessas pequenas cidades constitui-se em recurso
territorial possível para afirmar a identidade do espaço, indispensável para se pensar
o desenvolvimento compatível com o contexto contemporâneo. Entendida como
patrimônio, a paisagem é considerada recurso com impacto duplo: de um lado constitui
a base do diálogo entre as diferentes cidades com políticas de parcerias, e, de outro,
valoriza a identidade local de cada uma delas, reforçando sua qualidade ambiental.
As paisagens rurais tornam-se, assim, expressões territoriais da relação original com a
natureza e sua ocupação, a fim de proteger seus elementos estruturais, seu caráter
funcional, produtivo, estético e identitário.
Elaborar um plano capaz de trabalhar a ótica de proteção do ambiente – a
sustentabilidade, que é alvo de discussão deste congresso –, e das paisagens culturais,
conduzindo ao incremento da articulação regional (entre municípios), é estabelecer
estratégias para manter a população residente em cada cidade, visando a qualificar o
sistema de mobilidade entre as mesmas, garantindo qualidade de vida a partir de políticas
de parcerias na lógica do desenvolvimento territorial. Dessa forma, o crescimento local
torna-se global, integrado e inclui as dimensões cultural, social e econômica.
Seguindo o percurso que vai da análise de conjuntos ambientais ao projeto
territorial, tal abordagem constrói a ponte entre a cultura da ecologia e a do planejamento,
aquela da análise ao projeto, do desenho à normativa. Com uma abordagem mais ampla
incorporando o vasto território para articular a cultura de modificação – típica do projeto
do fragmento – parte-se da base teórica dos sistemas e da interpretação da realidade,
com atenção especial aos lugares, reconhecendo a paisagem como elemento de ordenação
e apresentação formal das intervenções.
A paisagem é interpretada como um sistema de sistemas, com um nível mais
complexo de integração entre natureza e cultura. Como resumo formal das operações
locais, a paisagem deve se tornar referência para a avaliação das transformações
Pandemia do coronavírus – 41

subsequentes e necessárias à demanda social, não apenas para fazer alusão cultural,
mas organizacional e funcional e executar uma tarefa específica: levar as intervenções para
os lugares e, em paralelo, mediá-los em relação às suas identidades. Tal configuração
informa o decurso da construção de conhecimento para o projeto, que vai desde o estudo
da forma como elemento de representação de acordo com o tempo, do espaço entre o
original e o modificado até à análise do funcionamento da estrutura do processo.
O mesmo projeto territorial torna-se então sistêmico, representando a verificação
e controle das novas balanças propostas ou impostas pelas alterações, informado e
medido em parâmetros ordenados, estes de acordo com a capacidade dos ecossistemas
em manter sua produtividade, adaptabilidade e capacidade de renovação e modificação.
É por isso que funciona como projeto de sustentabilidade ecológica, social e econômi ca.
A análise não pode, portanto, ignorar o valor expresso pela paisagem como
continuidade visual histórica, culturalmente interpretável e sujeita a transformações.
A organização da escala, como expressão explícita no espaço geográfico dos sistemas
ecológicos, é a base interpretativa para a construção do conhecimento relativo ao
complexo da paisagem. A arquitetura do modelo de representação resultante vê um
quadro integrado de unidades ambientais em diferentes escalas, tamanhos e com
características de resolução de heterogeneidade, cujos domínios proporcionais
correspondem aos processos ecossistêmicos.
Dentro dessa perspectiva, destaca-se outro ponto importante na elaboração de
planos diretores que, mais uma vez, culmina no alargamento da equipe, pois há
necessidade de consultores capazes de responder ao viés interdisciplinar da problemática.
Além do mais, o itinerário das pesquisas deve confrontar-se com a transversalidade das
políticas públicas ligadas ao território e estas precisam referir-se aos âmbitos disciplinares,
exigências que auxiliam o desenvolvimento e a integração de diversos saberes. Planificar
hoje é uma atividade multidisciplinar (mesmo em cidades de pequeno porte) e congrega
entendimentos para promover a aquisição, a compreensão e a capacidade de
desenvolvimento original da abordagem das políticas urbanas e territoriais. A implantação
de políticas que visem a alcançar tais objetivos pressupõe a aplicação seja de conceitos,
técnicas e instrumentos novos e harmonizados, seja de uma análise sistêmica que
possibilite visualizar a complexidade das inter-relações entre a cidade, suas estruturas
e seu território.
42

De laboratório ao modelo: as cidades pequenas do oeste paulista e a construção do sentido


do território

Os dois eventos, I Congresso Internacional de História Urbana e o I Workshop


Itinerante “Conhecimento histórico-ambiental integrados na planificação territorial e
urbana: uma contribuição de Bernardo Secchi”, são os acontecimentos que antecederam
a formação do grupo de pesquisa Sistemas Integrados Territoriais e Urbanos (SITU) e,
consequentemente, o Laboratório Agudos. Os dois grupos possuíam programas
entrecruzados: o primeiro, ao reler Camillo Sitte buscou um duplo objetivo: 1– analisar
a difusão de seus princípios, tanto no início do debate sobre o urbanismo quanto
no momento posterior, quando ele é retomado, a partir da tradução de Christiane e
George Collins, na busca efetiva da redescoberta de urbanidade; 2– proporcionar, com
clara direção interdisciplinar, o encontro de interlocutores das áreas da geografia,
urbanismo, estudos do solo e ambiental.
Um e outro se configuraram como possibilidades de alargamento da reflexão,
tanto na linha historiográfica a partir do Projeto Temático Fapesp – História da Cidade
e do Território – como pela Planificação Territorial e Urbana, iniciada pelo Laboratório
Agudos e sedimentada a partir do convite de ex-alunos, que começaram a assumir pastas
administrativas ou de moradia em suas cidades de origem. Dessa forma, paulatinamente
o debate sobre “A Cidade Pública” e o “Território como Laboratórios de Projetualidade”
foi inserido no seio da Universidade.
Se no caso do projeto temático a abordagem metodológica seguiu a implantação
do complexo ferroviário na construção do território moderno no Estado de São Paulo,
em proporções geográficas só antes estudadas por Pierre Monbeig, desde 2004 a posição
das cidades trabalhadas com planos reafirma o rio Tietê como vetor articulador que
circunscreve “certo” território.
Desenvolvidas como suporte aos planos diretores, as pesquisas seguiram a
perspectiva interpretativa ligada à propositiva e projetual, sem negligenciar as
transformações das cidades nos seus territórios como projeto potencial do welfare,
visando a estimular as relações entre as cidades, pensando-as como políticas urbanas
econômicas e de infraestruturas. Os modelos de reurbanização, reconversão ecológica,
enfim, de reconstrução das paisagens urbanas e rurais (com princípios do landscape
urbanism), que balizaram várias ações durante o debate sobre os planos diretores,
objetivaram repensar modelos de governance baseados na dimensão socioterritorial.
Pandemia do coronavírus – 43

Esse tipo de postura permite reformular a própria condição do plano, no caso de


revisão ou mesmo de elaboração, além de restituir-lhe o sentido a partir da lógica
estrutural (plano estrutural) e quadro normativo, ultrapassando aquele modelo que
representa somente a regulação dos usos do solo ligados ao existente, para apresentar
o desenho de múltiplas escalas, no qual seu aproveitamento serviria como moldura
estratégica para a compreensão do território em transformação. Nesse sentido, o plano
representa um quadro importante com capacidade para redefinir a própria “visão de
mundo”, com finalidade de constituir referência viva para entrecruzar os fios da história
do território e das convergências possíveis e, sobretudo, de refundar a cultura crítico-
operativa sob o controle dos sistemas urbanos e territoriais.
A análise, então, deixa de ser premissa fundadora do plano, não assumindo sua
linha evolutiva até o projeto, como anteriormente ocorria – principalmente no período
dos anos de 1970, onde se passava diretamente da análise econômica para a social.
Repensar essa análise junto com a projetAção, coloca os projetos como ideias e
experimentos de modificações do existente, como orientadores do itinerário da própria
análise. O plano torna-se produto social complexo, como resultado instável do regime
contínuo de conflito-cooperação entre grupos sociais; ele não é mais entendido como
projeto disponibilizado apenas à sua realização integral, mas como resultado da sequência
de decisões e destinado às adaptações e à obra do tempo.
Logo, esse novo plano objetiva: reconhecer partes das cidades que estão
formalmente completas; interpretar cada uma delas como resultado de ações específicas
que envolvem atores sociais e procedimentos bem definidos; identificar subdivisões de
lotes, monumentos, suas regras e articulações, sempre com base nas análises dos traçados;
avaliar essas porções urbanas pelo seu sentido, pelas relações entre o espaço visível e suas
funções; e redescobrir o objetivo morfogênico das partes ou de elementos do território.
O processo de planificAção concentra-se, dessa forma, sobre a definição das
temáticas mais praticadas, das opções de fundo, das finalidades constitutivas; abandona
a pretensão de ser oni-compreensível e, por isso, une-se à estrutura para redefini-la,
reforçá-la e dar lhe sentido. Assim, ele se transforma em instrumento capaz de fazer
emergir potencialidades, mais do que de criar equilíbrio; de corrigir, mais do que de
eliminar a criticidade e os riscos; de agir através de opções estratégicas e não só de
normativas e vínculos.
44

Manifesta assim, outro modo de fazer pesquisa urbana e de investigar o território,


não pela sua representação, mas a partir de outros olhares, novas relações, tenras
interpretações. Um processo embasado na racionalidade sensível de conhecimento
experiencial, em que o projeto assume o papel central como dispositivo de imagem e
de transformação.
Seguindo conselhos de grandes mestres como Flávio Villaça, Ermínia Maricato,
Raquel Rolnik, e Bernardo Secchi e Yannis Tsiomis no âmbito internacional, foi possível
alimentar a ideia dessa imagem que, antes de fazer planos urbanísticos, pensa o que seria
mais profícuo para produzir cidade e trabalha para colocar em movimento elementos
criativos no território. E, assim, em vez de preparar planos acabados, configuraria uma
espécie de agente de fermentação para acionar segmentos de produção criativa e
afirmação de cidadania, construiria universos de experimentações urdindo efetivos
confrontos, circulando e socializando a produção da cultura do urbano. A noção básica é a
de agir “onde a vida já age”, objetivando contribuir para emergência de algo novo que se
desenvolve a partir da memória geradora, que alimenta e nutre raízes, para então trazer à
luz questões relevantes.
O sentido de laboratório, dessa forma, não se configura como lugar frenético onde
soluções fáceis são levadas a cabo, mas coloca-se, claramente, como contexto fecundo
para garantir conselhos já configurados, sedimentar práticas ainda em formação,
cultivando a singularidade dos lugares e dos grupos envolvidos. Em síntese, o plano
coloca-se assim como progressão democrática, assumindo a ideia temática e processual,
no qual as revisões são etapas de sedimentação do processo. Afinal, não se pode mais
falar de cidades nos moldes tradicionais; inclusive as que conhecemos não passam de
simulacros, pois a nova perspectiva do urbano, que supera a tradicional dicotomia entre
cidade e campo, trabalha para gerar novos núcleos de urbanidade.
Na medida do possível, é importante estimular a organização territorial
(morfologia, destinação de uso e funcionalidade tradicional) e os componentes naturais
de contexto, com o intuito de aumentar a taxa de biodiversidade urbana, prevendo
os “corredores ecológicos” e os espaços de urbanidades mínimas como forma de
configurar partes de cidades, como âmbitos de experimentos, tanto urbanos como
ambientais. Sendo assim, a área de interesse do projeto – “o território como laboratório”,
território no qual há transformações fundiárias e urbanísticas, coloca-se como
determinante para a recuperação do ecossistema originário.
Pandemia do coronavírus – 45

A concepção do território como laboratório, como espaço material e simbólico


de inter-relação – de pensar e fazer, teoria e práxis, conhecimento e competência,
disciplinas e interdisciplinaridade – partiu de trabalhos individuais que estimularam
algumas atuações em grupo. A operacionalidade, a racionalidade analítica e a reflexão
crítica durante a elaboração dos planos reconheceram o lugar estratégico de mediação
e a ligação entre as atividades de pesquisa e de formação da cidadania.
Apesar da estrutura geral da metodologia ter sido reproduzida em todos os
planos, o primeiro item empregado pressupõe o trabalho de aproximação com os
técnicos das cidades estudadas. Além disso, em paralelo aos levantamentos, fez-se um
trabalho denominado cidade-memória que assume um formato diferente em cada
município: de programa de entrevistas em rádios locais, onde a equipe nuclear convida
memorialistas, trabalhadores e cidadãos para revelarem suas memórias, às vezes inertes;
workshops de fotografias; jornada de estudos com o Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) e com o Conselho de
Patrimônio de cada cidade; entrevistas e reportagens com apoio da TV Unesp; percursos
históricos a pé ou por trem pelas cidades e em seu território; assim como aulas no museu
da cidade, com atores locais levados a escolher peças que narrem memórias da cidade.
Entretanto, uma questão ainda não suficientemente investigada, e sobre a qual
esta parte da palestra objetiva abrir linhas de debate, é a relação entre a definição
dos cenários estratégicos da cidade (e do território) e a construção social de um
conhecimento coletivo e compartilhado da cidade contemporânea, capaz de sustentar a
coesão social, de mesclar identidades e de conservar memória para produzir futuro.
Mas como conjugar racionalidade ecológica de um lado e “procedimentos
democráticos”, de outro? Como avançar no sentido de reavaliar o trabalho pioneiro
de nossos mestres que se empenharam na aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e na
criação e consolidação do Ministério das Cidades (2003), na tentativa de reeducar nossa
esperança com referência à participação popular na construção da cidade?

Reeducar a Esperança: aproximações entre o legado de Paulo Freire e o processo de


construção da cidade contemporânea

Para refletir sobre tais questões proponho uma provocação feita pelo professor
Sechi e que abordei em um texto concebido juntamente com a professora Ana Maria
Lombardi Daibem no âmbito do curso Internacional de especialização lato sensu:
Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território, intitulado:
46

Reeducar a esperança: aproximações entre o legado de Paulo Freire e o processo de


construção da cidade contemporânea

Em 2010, durante um congresso na Itália, foi apresentado um quadro que visava


elencar profissionais que, de uma forma ou de outra, abordaram questões relacionadas ao
tema da participação. Do quadro constavam 14 nomes, cujas atividades não serão descritas
por já serem figuras sobejamente conhecidas na área de Urbanismo: Kevin Lynch,
Christopher Alexander Giancarlo de Carlo, Colin Ward, Adriano Olivetti, Patrick Geddes,
Danilo Dolci, Norman Krumholz, John Forester Aaron Wildavsky, do filósofo alemão Jurgen
Habermas, Patsy Healey e Leonie Sandercock. Além desses, aparece a figura de Paulo Freire.
O primeiro do quadro é Kevin Lynch e seu nome nos remete ao legado desse urbanista
americano e sua contribuição decisiva "para a disseminação de pesquisas sobre o meio
ambiente para orientar as pessoas" (LANGDON, 1984). Assim, ele abriu a projetação do
ambiente para práticas participativas e desenvolveu maneiras concretas para afirmar um
ponto de vista diferente daquele do técnico, do especialista. Na sua teoria da imagem pública
aplicada à cidade moderna, Lynch introduz uma taxonomia de imagens e ações que permite
apreciar como os eventos, rituais e práticas de uso agem sobre a imaginação das populações
urbanas, influenciando o envolvimento dos cidadãos em diferentes partes da cidade.
Na parte superior, quase no centro do quadro, está o escocês Patrick Geddes
(1854-1932), um dos pais do planejamento urbano, responsável por cunhar, dentre
outros, o termo conurbação. Geddes talvez tenha sido um dos primeiros estudiosos, senão
o primeiro, a apontar a importância do envolvimento do cidadão nos processos de tomada
de decisão envolvendo cidades, principalmente a partir de sua experiência na Índia.
Na última linha do mesmo quadro, igualmente em posição quase central, aparece
a figura do educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997) e o título do seu livro Pedagogia
do oprimido, de 1968. É muito oportuno e significativo destacar a presença do educador
brasileiro respeitado no mundo todo em meio àqueles profissionais dedicados à melhoria
da qualidade de vida e do desenho urbano, sobretudo em um momento em que sua figura
e seu legado são desqualificados e desconsiderados por parte do atual governo brasileiro.
Ao rever, no quadro apresentado, a evolução do planejamento participativo,
por meio da retomada de clássicos, reaparecem momentos históricos que acarretaram
profundas mudanças no desenvolvimento urbano e social. Tais momentos identificam fases
Pandemia do coronavírus – 47

que permitiram a implementação de métodos participativos no processo do planejamento,


concentrando a reflexão da pesquisa sobre os momentos decisivos para uma mudança
profunda na teoria e na lógica dos planos. Tais teorias e lógicas, cujas contribuições e práticas
devem mudar a gestão de territórios e as políticas de desenvolvimento, tiveram um ponto
de inflexão significativo com a entrada do tema “sustentabilidade”.
O quadro mencionado nasceu de uma provocação do engenheiro/urbanista e
professor italiano Bernardo Secchi (1934-2014), por ocasião de uma de suas visitas ao Brasil,
ao indagar de que forma as questões relativas ao legado de Paulo Freire estavam inseridas
na prática do planejamento urbano no Brasil. Em certa medida, Secchi explicitou sua
curiosidade ao discorrer sobre as quatro fases de sua metodologia utilizada pelo Grupo SITU,
a qual incorporava (incorpora), em sua segunda etapa – “Leitura da realidade da cidade
no seu território” – três níveis de leitura, sendo o primeiro o ESCUTAR. Escutar os grupos
sociais e políticos, colocando o cidadão no centro do processo de formação como sujeito
narrativo. Da mesma forma, nas etapas subsequentes, – “A cidade que queremos” e
“A cidade possível” – o cenário (de projetos exploratórios) é utilizado como ferramenta
coletiva de construção do projeto de cidade e assume valor de instrumento relevante para o
campo da pesquisa prospectiva, capaz de expressar o itinerário da investigação e do projeto,
como previsão da sequência imaginada de ações futuras.
Nesse sentido, a retomada de Paulo Freire assume grande relevância, pois educar
para a participar das políticas públicas, segundo seus princípios, é educar numa cultura
de diálogo, segundo a ética que valoriza a liberdade e a igualdade dos cidadãos, e aos quais
é preciso garantir adequada formação para a cultura do diálogo.
“Educar para a esperança requer sonho, utopia, projeto”. A transformação do
mundo necessita do sonho tanto quanto a indispensável autenticidade deste depende
da lealdade do sonhador às condições históricas, materiais e aos níveis de desenvolvimento
tecnológico e científico do contexto. Os sonhos são projetos pelos quais se luta.
Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Pelo contrário, sonhar implica
avanços, recuos e, às vezes, demoradas marchas. Implica luta. Na verdade, a transformação
do mundo, almejada pelo sonho, é um ato político e seria ingenuidade não reconhecer que
os sonhos têm seus contrassonhos.” (FREIRE, 2000, p. 53-54).
48

O tema esperança, que permeia a obra de Freire e está encravado na noção de


cenário prospectivo, está claramente vinculado à possibilidade de transformar a realidade
por meio das nossas ações no mundo, em combate a um discurso fatalista e opressor que
aponta que “não há futuro possível’, ou, ainda, “não é possível mudar nada”. Desenvolver
processos educativos que promovam a conscientização e a opção pessoal de atuar
coletivamente, como agentes transformadores da própria realidade social, significa dizer
que todos podem ter a capacidade crítica de interpretar o mundo e desenvolver, por meio
da reflexão, do diálogo e da ação, a construção de saberes e experiências para o bem
comum e a vida em sociedade.
Pandemia do coronavírus – 49

C A P Í T U L O 4
_____________

A EPIDEMIA INVISIBILIZADA É A MAIS VIOLENTA

Carolina Russo Simon8

INTRODUÇÃO

Acredito que esse convite me foi feito exatamente pelo fato de eu ser professora de
Geografia, doutoranda em Geografia e trabalhar alguns anos com pesquisas situadas no
campo da Geografia da Saúde. Assim, trabalhando há alguns anos com Geografia da Saúde
descobri que: o princípio primeiro da geografia é a vida e como geógrafa eu tenho a
preocupação de mudar o mundo, para que essas vidas possam: “Viver mais, Viver Bem, Viver
Melhor” (GUIMARÃES; PICKENHAYN; LIMA, 2014, p. 29).
Para isso, não vejo forma de que vidas femininas possam conquistar o direito de ser
e o direito de viver se eu não for feminista. Então, apresento para vocês um pouquinho
da minha visão sobre como pensar o mundo depois dessa crise sanitária, um mundo da
pós-pandemia da Covid-19, dentro de uma perspectiva mais agravante, que é a epidemia
invisibilizada, a epidemia concomitante à pandemia da Covid-19 e que, com certeza,
é mais violenta.
Desde março de 2020 nós vivemos situações extremas, todos os dias marcados por
mortes. Dormimos e acordamos falando de contaminadas e mortas, essa realidade cruel
chegou ao mundo inteiro, mas o fato é que, apesar do vírus ser “democrático” e contaminar
todos os tipos de pessoas, algumas pessoas sentem muito mais os impactos, seja pela
contaminação, pelo desemprego, pelo isolamento, ou pelo luto. O fato de sentir mais a
pandemia se dá pelas diversas opressões que se interseccionam.

8
Doutoranda em Geografia na Faculdade de Ciências e Tecnologias - Universidade Estadual Paulista (FCT/UNEP).
E-mail: carolina.simon@unesp.br
50

Já em maio de 2020 éramos alertadas que as Américas eram o novo epicentro da


Covid-19. Disse a diretora da Organização Pan-americana de Saúde, Carissa F. Etienne:
“As Américas têm aproximadamente 13% da população mundial, mas 64% das mortes
globais oficiais notificadas” (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE – OPAS, 2020).
Isso já nos faz pensar: Por quê?
No Brasil a situação é uma das piores das Américas, uma em cada cinco pessoas
brasileiras é vítima da Covid-19 e morreram em março 2021 (BRONZE; VITAL NETO, 2021).
Não se para de morrer em nosso país.
Em março de 2021, mês internacional de luta das mulheres, nós batemos recordes
todos os dias, recordes de morte. Foi o mês mais letal da pandemia no Brasil, com cerca
de 4 mil mortos por dia (BRONZE; VITAL NETO, 2021). O mês de março é um mês
muito significativo, porque ele marca os diversos descompromissos com a vida do atual
governo brasileiro.
O mundo inteiro começou a alertar para o fato de que: decretada pandemia da
Covid-19 e a imposição necessária do isolamento social, as mulheres estão em risco.
Começamos a assistir em diversos países o aumento de violência doméstica, como, por
exemplo, na China, quando no primeiro mês de pandemia, março de 2020, já em algumas
províncias houve um aumento de 260% nas ligações de denúncia em comparação a abril
do mesmo ano (OWEN, 2020). Outros países também apresentaram esse cenário de terror.
Já em abril de 2020 o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU)
alertava: “Vimos uma onda Global horrível de violência doméstica [...] em alguns países
o número de mulheres que telefonaram para os serviços de apoio dobrou” (ONU, 2020).
A epidemia de violência contra as mulheres é muito grave e a pandemia da Covid-19
vem demonstrando isso.
O Brasil não está alheio a nenhuma dessas tendências. Em março de 2021,
o governo anunciou que em 2020 tivemos 105 mil denúncias por telefone nos canais ligue
180 e disque 100 do governo federal. Dessas denúncias, 72% se referiam à violência
doméstica e familiar, a maioria das vítimas se autodeclararam pardas, com idade entre
35 e 39 anos e os agressores eram comumente homens brancos, também os jovens
entre 35 e 39 anos (BRASIL, 2021).
Pandemia do coronavírus – 51

Esses dados nos revelam tantas informações importantes... Revelam diversos


cruzamentos de opressões, logo faz-se necessário aprofundar as análises dos dados que
temos para compreender os porquês de estarmos nessa situação.

A epidemia invisibilizada

Quando falamos dessa epidemia de violência contra as mulheres, existem alguns


fatores de risco que são evidenciados pelos estudos de vigilância em saúde, e esses fatores
de risco vêm sendo amplamente divulgados pela mídia mundial. Em abril de 2020,
a Organização Mundial da Saúde (OMS) solicitou que os países limitassem o consumo
de bebida alcoólica por incentivar a violência doméstica (WORLD HEALTH ORGANIZATION
– WHO, 2020). Porém, esses fatores de risco são ainda mais agravados a partir do momento
em que olhamos para o local e nos perguntamos: Onde acontece mais? Isso relaciona a
necessidade de entender quanto de qualidade de vida aquele local tem.
Quando falamos de qualidade de vida, estamos falando de saúde. O problema da
violência contra as mulheres é um problema muito antigo da saúde pública e reconhecido
por isso. Para vocês entenderem por que é um motivo de saúde pública, Maria Cecília de
Souza Minayo e Edinilsa Ramos de Souza elencam dois fatores:

O Primeiro, porque, dentro do conceito ampliado de saúde, tudo o que significa


agravo e ameaça à vida, às condições de trabalho, às relações interpessoais, e a
qualidade da existência, faz parte do universo da saúde pública. Em segundo lugar,
a violência, num sentido mais restrito afeta a saúde e frequentemente produz a
morte. (MINAYO; SOUZA, 1999, p. 11).

Então, quando começamos a olhar para a violência como uma questão de saúde
pública, entendendo enquanto uma epidemia e identificando seus focos endêmicos,
desmitificando este problema como um resultado histórico da formação socioespacial
brasileira9 (SANTOS,1977). A primeira ação deve ser voltada para os sistemas de saúde: Como
atender? Como parar? Como coibir a violência que é uma enfermidade?

9
Formação socioespacial é uma categoria formulada pelo Professor Milton Santos (1977) derivada da
Formação Econômica e Social enquanto modelo teórico de Marx. Segundo ele, trata-se da "inseparabilidade
das realidades e das noções de sociedade e de espaço inerentes à categoria da formação social e desenvolver
uma reflexão original, visando conduzir a uma teoria do espaço, apoiada nos pressupostos da construção
intelectual de uma outra categoria: de formação sócio-espacial” (SANTOS, 1977, p. 19).
52

Essa epidemia de violência contra as mulheres, já era identificada e evidenciada


pelas diretrizes gerais da OMS em 2013: “a violência contra as mulheres é um problema de
saúde global de proporções epidêmicas” (WHO, 2013). Um artigo de 2015, muito
interessante, fala diretamente do impacto do sistema de saúde brasileiro causado pela
violência contra as mulheres. Esse estudo, chamado The health-systems response to
violence against women, foi publicado na revista The Lancet e evidencia que no Brasil já
vivíamos uma epidemia, que as autoras chamaram de invisível, porque, apesar de estar
presente na sociedade todos os dias, o tabu de falar da violência enquanto enfermidade faz
com que sobrecarregasse o sistema de saúde. Afinal, “Mulheres diferentes terão
necessidades diferentes, e a mesma mulher terá necessidades diferente ao longo do
tempo” (GARCÍA-MORENO et al., 2015, p. 1569). Desta forma, afeta diretamente o sistema
de saúde porque se tratava de mulheres enquanto seres diferentes que têm necessidades
diferentes, que não são únicas e muito menos corpos universais. Não é a imagem de mulher
da qual por exemplo eu represento, como mulher cisgênero loira e branca. Estamos falando
de mulheres em sua pluralidade, e uma única mulher também vai ter diferentes necessidades
postas para o Sistema de Saúde ao longo do processo de atendimento, tanto da promoção
da sua vida, da prevenção da sua vida, da cura da sua vida.
É uma epidemia, é antiga, tem um grande impacto no sistema de saúde. Precisamos
trabalhar em cima disso, e precisamos trabalhar com honestidade, porque quando
encaramos a violência contra mulher como uma questão de saúde, colocamos o problema
em escala maior, numa escala que necessita o reconhecimento de toda a sociedade para
que realmente promova as vidas femininas. Continuando nos fatos, com base nos dados que
temos, como que funciona tudo isso? Por que que é uma pandemia?
Uma a cada três mulheres no mundo sofre violência física ou sexual. Das 736 milhões
de vítimas da violência, 641 milhões foram agredidas pelo parceiro íntimo
(ex-companheiros), cerca de 38% dos assassinatos de mulheres em todo o mundo são
cometidos por seus maridos ou namorados (WHO, 2021). Então, o que esses dados nos
mostram? Estamos evidenciando um lugar perigoso que é silencioso, que é exatamente
a casa, o lar nada doce lar, que por muito tempo se perpetua como sendo o local de risco
para muitas de nós.
Pandemia do coronavírus – 53

Porém, mesmo com os dados nos mostrando a gravidade da situação vivida por
mulheres em todo mundo, parece que perdemos a capacidade de se indignar. Eu coaduno
com o geógrafo Raul Borges Guimarães quando ele fala que: “Passamos a conviver com
a violência numa espécie de patologia social da indiferença, a maior das patologias
geográficas” (GUIMARÃES, 2015, p. 52). Então, como ressaltar que as mulheres estão sendo
espancadas, estupradas e mortas pela violência e pela Covid-19 se a sociedade não se
comove com as perdas de vidas?
Para entender violência trago uma das reflexões de que mais gosto, que é da
Hanna Arendt (1990), ela é filósofa política e ela fala que a violência é tanto a prática
da banalidade do mal quanto ela é diferente do poder. Para fomentar esse debate ela afirma
que a violência tem um caráter instrumental e esse caráter instrumental é um meio que
necessita de orientação e justificativa do fim, mas a violência sendo instrumental por
natureza é racional “ela não promove causas, nem a história, nem a revolução, nem o
progresso nem o retrocesso; mas pode servir para dramatizar queixas e trazer a atenção
pública” (ARENDT, [1994] 2010, p. 99).
Quando começamos a entrar na discussão de violência, existe uma ferramenta
analítica que é quase uma sensibilidade, como diria a criadora do termo, que é a
interseccionalidade (CRENSHAW, 1989). A interseccionalidade se faz extremamente
necessária, porque evidencia os sistemas de opressões e dominações sob os quais vivemos.
No caso brasileiro, a interseccionalidade faz parte da nossa formação histórica, a partir
de uma “Encruzilhada de opressões” como diz Carla Akotirene (2019).
A interseccionalidade, essa ferramenta analítica, evidencia o patriarcado, que é um
sistema de opressão e dominação muito mais antigo que o capitalismo. O capitalismo
tem um pouco mais de 500 anos nos oprimindo por meio das classes sociais, já o patriarcado
tem mais de 5 mil anos. Existem pesquisadoras que dizem que o patriarcado
é iniciado ainda no período neolítico. O patriarcado é uma construção muito antiga
na nossa história, mas ele não é uma condição humana. Não é humano a mulher apanhar,
não é humano a mulher morrer pelo fato de ser mulher, isso é uma construção histórica
e “o patriarcado representa tanto uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto
na violência” (SAFFIOTI, 2004, p. 60).
54

Eu trouxe uma imagem que a criadora do conceito de interseccionalidade utilizou


em uma das suas palestras, ela usa essa imagem para ilustrar enquanto metáfora, onde
se encontram diversas avenidas identitárias, como classe, sexo, raça, sexualidade, etc.
A partir do momento em que essas avenidas se encontram, as opressões se encontram
e se interseccionam.

Figura 1 – Interseccionalidade, por Kimberlé Crenshaw

Fonte: Youtube: canal @TED, The urgency of intersectionality | Kimberlé Crenshaw.07 de dezembro de.
2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=akOe5-UsQ2o&t=694s&ab_channel=TED. Acesso
em 20 de fevereiro de 2021.

Na estrutura da família patriarcal, o homem tem o poder pelo fato de ser homem.
Como vocês podem ver na Figura 2 a seguir, o pai tem poder sobre todas e todos,
os meninos têm o poder sobre as mulheres. No quadro a seguir, percebam que o mais novo
tem sempre o poder sobre a irmã, mesmo que ela seja mais velha. Eu acho esse quadro
incrível, porque mostra exatamente o que a Heleith Saffioti quis dizer nesta citação:
“o homem tem poder apenas pelo fato de ser homem, independente de suas capacidades
e este poder varia segundo a sua inserção nas diferentes classes sociais, porém existe
sempre uma mulher com menos poder que o último dos homens” (SAFFIOTI, 1994, p. 460).
Pandemia do coronavírus – 55

Figura 2 – Family Portrait de Yasser Abu Hamed

Fonte: Cartoon Movement (2014).


Disponível em: https://cartoonmovement.com/cartoon/family-portait. Acesso em 20 de fevereiro de 2021.

Seguindo nas análises para América Latina, deparamo-nos com fato de que esta é a
região mais letal para as mulheres, é o local mais perigoso do mundo fora de uma guerra
para ser mulher. Das 2.559 mulheres que morreram por feminicídio na América Latina,
metade morreu no Brasil, com uma média de três mulheres assassinadas por dia
(PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD; ONU MULHERES,
2017). Lembrando que as Américas foram o epicentro da Covid-19.
Sabemos que o patriarcado existe e a família patriarcal é uma ideologia que sustenta
a violência, agora temos que entender onde estamos e compreender o que aconteceu na
América Latina, para assim, conseguir evidenciar e compreender as suas feridas da
colonialidade (QUIJANO; MATIÁREGUI, 1991).
As feridas da colonialidade foram criadas pelos homens brancos que chegaram aqui,
nos feriram tanto que até hoje somos o local mais perigoso do mundo para as mulheres,
principalmente, para as “não brancas” que sofrem ainda mais com um sistema de gênero
moderno colonial (LUGONES, 2014).
56

A situações específicas das mulheres não brancas no Brasil é ainda pior, pois temos
um sistema patriarcal-capitalista-racista (SAFFIOTI, 1969) e fomos o último país a abolir a
escravidão. Essa falta de tomada de decisão lá no passado faz com que, hoje, o racismo
seja estruturante em nossa sociedade, apresente-se de forma sistemática, sendo a forma
que o conceito de raça foi operacionalizado na história (ALMEIDA, 2019). A raça foi
operacionalizada através do sistema de sexo, a mulher negra é o outro do outro
(KILOMBA, 2012). Então, nesse sistema todo de cruzamento de opressões, temos um
patriarcado, um sistema que nos classifica em classes e aqui na sociedade brasileira são as
mulheres indígenas e as mulheres negras as que mais morrem, as mais estupradas,
e eu vou mostrar isso para vocês.

O estupro

Falando de estupro, o Brasil nasceu do estupro tanto da mulher negra como da


mulher indígena. Essas mulheres foram as que criaram nos seus ventres os primeiros
brasileiros (LACERDA, 2010). Todas, todes e todos somos filhas/es/os do estupro. Porém,
a luta dessas mulheres, as sobreviventes não brancas, geraram a maior resistência ao sistema
colonial no mundo, com mais de 500 anos. O fato é que o estupro gerou o Brasil, e nunca
mais saiu dessa situação.
Em 2018, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP), mostrou que as vítimas de violência sexual em 81,8% dos casos
são do gênero feminino, 53,8% tinham até 13 anos, 50,9% eram mulheres negras. Quatro
meninas de até 13 anos foram estupradas por hora, foram 180 estupros por dia (FBSP, 2018).
Em 2020, a situação só piora, um estupro a cada oito minutos, 57,9% das vítimas tinham até
13 anos e 85,7% do sexo feminino (FBSP, 2018; 2020). Os canais de denúncias oficiais do
governo por telefone, ligue 180 e o disque 100, anunciou que a cada duas horas o Brasil
recebe uma denúncia de estupro de meninas de até 14 anos (BRASIL, 2020).
O Mapa 1 a seguir foi feito numa tentativa de identificar se existiam locais onde mais
mulheres ou mais meninas eram estupradas no Brasil. Trabalhei com as taxas de mulheres
estupradas pelo total da população de mulheres e de meninas estupradas pelo total de
mulheres e meninas, as vítimas por 100 mil mulheres.
Pandemia do coronavírus – 57

Como podemos perceber, esse mapa faz o cruzamento das cores, é um mapa
bivariado. No topo da legenda temos o cinza, que representa alta taxa de mulheres
estupradas e alta taxa de meninas estupradas. Quanto mais claro mais baixo o número
de meninas e de mulheres vítimas. Reparem que no Brasil não existe nenhum lugar que
está mais claro, todos os lugares têm estupros de mulheres e meninas com taxas altas.
Alguns Estados chamam mais atenção, como, por exemplo, Mato Grosso do Sul, onde a
taxa é alta tanto para as mulheres quanto para meninas.

Mapa 1 – Meninas e mulheres vítimas de estupro no Brasil, janeiro a julho de 2020

Fonte: Elaborado pela autora, a partir dos dados de FBSP (2020) e IBGE (2018).

Nesse curto tempo, de janeiro a julho de 2020, foram 8.182 mulheres estupradas
no Brasil. Já as vítimas vulneráveis, que são principalmente as meninas, mas são todas
as aquelas mulheres também que não conseguem parar o ato sexual, ou porque estão
drogadas, ou porque estão alcoolizadas, ou porque convivem com algum tipo de
deficiência, foram 17.287 somente nos primeiros seis meses do ano de 2020 (FBSP, 2020).
Um dos fatores importantes para a gente entender o estupro na sociedade brasileira
é que ele funciona, até hoje, como forma de “correção”. As mulheres que não se enquadram
nos padrões da família patriarcal, como por exemplo as mulheres lésbicas. Os dados que
58

apresento para vocês são dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação


(SINAM – Ministério da Saúde), e mostram que a maioria dos estupros com mulheres lésbicas
aconteceu em suas casas, 61% dos casos elas foram estupradas mais de uma vez, em média
seis lésbicas foram estupradas por dia em 2017 (SILVA, 2019).
Isso só reforça o que temos falado, as intersecções de poder. Afinal, “o poder ele é
macho, branco e de preferência heterossexual” (SAFFIOTI, 1987). Então, todos os corpos
que não são esses, estão passíveis de sofrer as violências do sistema.
Este cenário demonstra que a caça às bruxas, que foi o maior feminicídio da história
(FEDERICCI, 2019), ainda não acabou. Assim como na época da Inquisição, dominar nossos
corpos ainda é um gesto de poder colonial, daquele macho branco. Só para termos uma
ideia, já que estamos falando de dados, no período que corresponde à caça às bruxas,
foram cerca de nove milhões de pessoas acusadas, julgadas e mortas e 80% delas eram as
mulheres que morreram na fogueira, que foram espancadas, que foram estupradas, que
foram as bruxas (ANGELIN, 2005).

O feminicídio

Quando olhamos para a Covid-19, percebemos que o isolamento exige um reforço


de guerra contra esses altos dados de feminicídio que temos historicamente, logo temos
de entender o que é feminicídio e por que estão aumentando os dados durante a
pandemia do coronavírus.
Primeiro, feminicídio é um termo que representa o assassinato de mulheres mortas
pelo fato de serem mulheres. O termo foi criado por Diana Russel, em 1976, durante um
depoimento perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres em Bruxelas.
A partir daquele momento, o termo foi ganhando repercussão, principalmente por
movimentos de mulheres feministas que se apoderaram deste termo e começaram a
denunciar os homicídios de mulheres que eram mortas pelo fato de serem mulheres.
Dessa forma, o termo feminicídio foi ganhando ascensão e hoje já temmos, por
exemplo, nos relatórios da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL),
dados específicos sobre feminicídio. A expressão feminicídio (ou femicídio) seria
exatamente o momento do ápice do patriarcado, é quando se tira da mulher o direito de
ter a sua própria vida. Em 2019, na América Latina foram registrados 4.640 casos
feminicídio em 24 países, 18 latino-americanos e seis caribenhos (CEPAL, 2020).
Pandemia do coronavírus – 59

O feminicídio foi incorporado na lei brasileira em 2015. A Lei (13.104/2015) alterou


o Código Penal ao tipificar esse homicídio de mulheres mortas pelo fato de serem mulheres
e também mulheres mortas pela violência doméstica e familiar, menosprezo ou
discriminação. A pena prevista é de 12 a 30 anos de prisão, não é admitido indulto da anistia
e muito menos aplicação de fiança, é um crime hediondo.
Só que isso é recente, foi incorporado à lei somente em 2015 e existe toda uma
complicação da produção dos dados de feminicídio, que vai desde o boletim de ocorrência
até a entrada dos registros nas bases de dados. O registro dos feminicídios ainda dependem
da compreensão da/o policial sobre estrutura de poder entre os gêneros, para que no
momento de registrar possa identificar o crime como feminicídio e não somente homicídio.
Esta dificuldade passa por diversos setores do serviço público de segurança e também dos
serviços de saúde. Logo, estes dados têm uma subnotificação muito alta e mesmo tendo
subnotificação alta, é um dado extremamente alarmante.
Falando de Brasil, em 2019, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio e esta
marca apresenta um crescimento de 11,3% em relação ao ano de 2018 (O INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA, 2017; FBSP, 2019). Mas o que mais nos chama
a atenção são as diversas opressões que esses dados revelam: o ápice da mortalidade
da mulher por feminicídio ocorre quando ela é jovem, com cerca de 30 anos, e 61%
das mulheres mortas pelo ódio em 2019 eram negras, 70,7% tinham no máximo Ensino
Fundamental (IPEA; FBSP, 2019), revelando as diversas encruzilhadas de opressões por
quais os corpos dessas mulheres passam ao viver no Brasil (AKOTIRENE, 2019).
Esse cenário é muito preocupante, porque, ao contrário dos outros países da
América Latina, os dados brasileiros nos mostram que a violência doméstica é o principal
fator de feminicídio, diferente de outros países da América Latina, que é mais praticada
a violência sexual na rua. Aqui a raiva e o ódio contra as mulheres vêm de casa e é extremo.
No Mapa 2 podemos ver a comparação dos dados de feminicídio e homicídio.
E devido a essa dificuldade de que muitos homicídios ainda não são classificados por
feminicídio, por falta de competência e capacitação da sociedade para compreensão do
que é o feminicídio. Em amarelo são os homicídios, em rosa feminicídios, e quando essas
cores se encontram temos que quanto mais laranja mais feminicídio e homicídio, como
os Estados do Acre, Roraima, Alagoas, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Quanto mais
branco mais baixa a taxa de homicídio e de feminicídio.
60

Apesar de alguns Estados se apresentaram “mais brancos”, com taxas mais baixas,
os dados ainda são muito altos e temos que entender toda essa subnotificação, o que
realmente tem por trás dessas informações. Só para termo uma ideia, as vítimas de
feminicídio foram 1.326 no ano de 2019, neste período da pandemia não está sendo
diferente, foram 631 feminicídios no Brasil e dessas 66,6% eram mulheres negras
(FBSP, 2020), o patriarcado é classista e racista no Brasil e dados nos escancaram isso.

Mapa 2 – Meninas e mulheres vítimas de feminicídio e homicídio no Brasil, janeiro a julho de 2020

Fonte: Elaborado pela autora, a partir dos dados de FBSP (2020) e IBGE (2018).

Outro ponto importante para analisar é que apesar de a lei do feminicídio ser aplicável
ao assassinato por ódio ou desprezo de mulheres travestis e transexuais, nós ainda não
temos estatísticas oficiais, mas segundo o Dossiê de assassinato contra travestis e
transexuais da Associação Nacional de Transexuais e Travesti (ANTRA), de janeiro a agosto de
2020, 129 pessoas foram mortas e todas eram negras, um aumento de 70% em relação
a 2019 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020). Estão dizimando as mulheres transexuais e travestis!
Pandemia do coronavírus – 61

Para completar os fatos e dando mais pistas do que acho importante para ajudar
a pensar um mundo pós-pandemia, não posso deixar de evidenciar que a intersecção de
opressões que sofrem as mulheres que são mães na sociedade brasileira. O nível de ocupação
de mulheres com e sem crianças é bem discrepante: mulheres de 25 a 49 anos vivendo com
crianças de até 3 anos de idade representam 54,6% e homens da mesma faixa etária vivendo
com crianças 89,2%, enquanto mulheres sem crianças 67,2% e 83,4% para os homens sem
crianças, segundo o estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE, 2019). Mães não têm vez.
Esses são alguns dos dados que acho podem nos ajudar a começar a pensar por onde
começar, mas o fato é que não se faz nada sem dinheiro.
Esse desinvestimento que temos assistido neste governo genocida comprova a
naturalização da violência como uma prática deste governo. O governo Bolsonaro não fez
o repasse ao programa de combate à violência contra mulher, enquanto o mundo inteiro
está alertando que vivemos uma pandemia de violência. Entre 2015 e 2019 o orçamento
da secretaria da mulher do governo federal diminuiu de 119 milhões para 5,3 milhões,
segundo o Tribunal de Contas da União (LINDER, 2020).
Tratando especificamente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, temos dois grandes problemas. Primeiro, a pasta vazia, não temos dinheiro para
combater a violência e o pouco dinheiro que temos não foi usado. Em 2020, Damares,
a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, anunciou que ia liberar 25 casas da
mulher brasileira, não entregou (LINDER, 2020). A casa da mulher brasileira é um
equipamento público extremamente importante para o Brasil, que foi lançado em 2015 no
governo da Presidenta Dilma, que previa que toda capital de Estado deveria ter esse
equipamento, que reúne diversos serviços de forma integrada, como apoio psicólogo,
assistente social, creche, abrigo para mulheres em situações extremas de violência,
delegacias especializadas no atendimento a mulheres, entre outros.
A situação é crítica, é um projeto, temos que ficar atentas com a questão de gastos,
porque sem dinheiro não se faz política pública.
62

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual o primeiro passo para o Brasil não ser mais igual a esse atual, que mata as
mulheres dessa forma tão cruel e brutal, no qual não temos o direito de existir em nossas
próprias casas? Diante de todo esse panorama de desgraça, pensar pós-pandemia
da Covid-19 como um cenário diferente que nós, mulheres, vivemos é bem difícil, exige
uma capacidade imaginativa de criação de resistência coletiva.
Primeiro, precisamos de mais mulheres na política, que se comprometam em fazer
política para mulheres. Não quaisquer mulheres, mas mulheres que se comprometam com a
causa das mulheres, principalmente das mulheres trabalhadoras e não brancas. Alguns
estudos mostraram na pandemia, a partir de experiências práticas, que as mulheres têm uma
eficiência no combate ao coronavírus. Os países liderados por mulheres se destacaram
no combate ao vírus, exemplos: Katrín Jakobsdóttir, na Islândia; Jacinda Ardern, na Nova
Zelândia; Angela Merkel, na Alemanha; Tsai Ing-Wen, em Taiwan; e Erna Solberg,
na Noruega (BERTOLDO; MARTINS; FERRARI, 2020). Esses fatos devem ser levados em
consideração para continuarmos disputando o espaço de mais mulheres na política.
Outro ponto é que devemos aplicar a lei que temos. Temos uma das melhores leis
do mundo de combate à violência doméstica, de combate à violência contra mulher,
que é a Lei Maria da Penha (11.340/2006), que veio a partir de uma condenação do Brasil
por não julgar o caso de Maria da Penha. Essa lei é completíssima, traz diversas formas
e mecanismos tanto para prevenir a violência quanto para coibir, e ela está de acordo
com as metas globais até 2030 da ONU de combate à desigualdade de gênero.
A lei também implica produção de dados estatísticos, enquanto recomendação
legal. A produção de dados estatísticos é extremamente importante e, como acabamos
de perceber, os dados indicam de forma poderosa a qualidade de vida das mulheres nos
países que vivem. Então, a Lei Maria da Penha é uma lei que nós precisamos nos apoderar
mais dela, até porque ela também traz os mecanismos de proteção e prevenção à vida das
mulheres, como, por exemplo, as casas-abrigo, as delegacias especializadas em atender
mulheres vítimas, que ainda são equipamentos insuficientes para demanda do nosso país.
A casa-abrigo é um equipamento no caso de a mulher estar em risco iminente
de morte, para quando a violência doméstica estiver tão extrema em que a mulher
vai morrer se não for retirada de casa. A partir de um boletim de ocorrência ela é levada
a um abrigo, só que esse não é um abrigo qualquer, ele possui uma estrutura para essa
Pandemia do coronavírus – 63

mulher voltar a ter uma vida após esse trauma violento e compreender as estruturas
patriarcais, a base da violência vivida. Entretanto, só possuímos 153 casas-abrigo no Brasil,
em 134 municípios dos 5.578 municípios brasileiros. Precisamos urgentemente investir
em casas-abrigo (IBGE, 2018).
Precisamos investir em delegacias especializadas no atendimento a mulheres
vítimas, apesar de a primeira delegacia ter mais de 35 anos de implementação, somente
8,3% dos municípios do Brasil possuem esse equipamento (IBGE, 2018). Então, acreditamos
que apostar na ampliação e implementação desses equipamentos públicos ainda é uma
saída necessária.
Diante do exposto, propomos pensar a violência como um problema de saúde. Pois
ao pensar enquanto problema de saúde, devemos pensar em como promover a saúde das
mulheres mais que combater a violência. Então, para promover a vida, é preciso evidenciar
que as violências existem! É preciso incentivar a denúncia.
Acreditamos que não há formas de se pensar em promoção da saúde, para qualquer
população, sem a educação. Já dizia Paulo Freire: a educação é libertária (1986) e hoje
temos plena certeza, frente a todo esse cenário de ódio contra nós, mulheres, que
precisamos promover uma educação feminista.
Quero terminar dizendo que estamos de luto, mas estamos em luta, nunca vamos
nos esquecer daquelas que se foram. Nós somos as bruxas que não conseguiram matar!

REFERÊNCIAS

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art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Brasília:
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Pandemia do coronavírus – 67

C A P Í T U L O 5
_____________

NEGACIONISMO CIENTÍFICO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Sandra Regina Mota Ortiz10

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19 ativou o sinal vermelho em todo o planeta. O


novo coronavírus já infectou milhões de pessoas, milhares de mortes ao redor do mundo e
a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que a atual pandemia é o maior desafio
da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. Cientistas de todo o planeta trabalham
incessantemente para a prevenção da doença e, mesmo assim, uma pergunta ainda é
frequente: Qual o papel da Ciência para a humanidade?
O negar a Ciência (do latim scientia, que quer dizer conhecimento) não é prática
recente. Entendendo como Ciência uma gama de conhecimentos adquiridos e desenvolvidos
por meio do método científico, o qual envolve um conjunto de procedimentos
especializados, tais como métodos, modalidades, técnicas, teorias e conceitos.
Em diversos momentos do último século a Ciência presenciou o nascimento e a
disseminação de grupos que se recusam a aceitar determinado consenso científico,
assumindo uma interpretação baseada em princípios e análises pouco consistentes do ponto
de vista epistemológico e metodológico. Entre alguns, podemos citar grupos que contestam
o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial (LANE, 1999), o aquecimento global causado
por emissões de gás carbônico (JACQUES, 2012), a correlação entre o vírus HIV e a AIDS
(KENYON, 2008), e mais recentemente, a pandemia pelo Sars-Cov2 (FORTALEZA, 2020).

10
Pós-doutora em Neurociências pelo Instituto de Ciências Biomédicas na Universidade de São Paulo (USP),
São Paulo; professora do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciências do Envelhecimento
– Universidade São Judas Tadeu; diretora de Pesquisa e Pós-graduação Stricto Sensu – Universidade São Judas
Tadeu. E-mail: sandra.ortiz@saojudas.br
68

A Ciência deve ser compreendida em seu contexto histórico e em processos


dinâmicos de construção do conhecimento pelas transformações sociais, políticas e
econômicas. É capaz de influenciar a sociedade e gerar consciência, entendimento. Provoca
mudanças nas teorias e práticas educacionais. Possibilita a percepção das diferentes visões
de mundo. E é pelo processo de transmissão do conhecimento que a Ciência se consolida.
Ciência é conhecimento.
São muitas as formas de conhecimento, pois são muitas as formas de se ver o mundo.
O olhar é individual. Ao mesmo tempo, olhando realidades distintas podemos encontrar
semelhanças. Historicamente, sabemos que o opressor não quer a disseminação do
conhecimento, pois promove um processo transformador no indivíduo e na sociedade
através da reflexão, crítica e questionamentos.
O conhecimento é pressuposto para a emancipação, e os cidadãos, dotados de
conhecimento, serão capazes de afetar decisões políticas e a sociedade na qual estão
inseridos (MARKO; PATACA, 2019).
É necessário instrumentalizar o indivíduo com conhecimento, com Ciência. Isso só
se concretiza efetivamente quando este conhecimento se integra ao território, ao
contexto, às histórias de vida do aprendiz. É preciso olhar a integralidade e dar significado
ao conhecimento. Desta forma, podemos maximizar o letramento científico e minimizar
o negacionismo científico.
O termo “negacionismo” foi criado por Henry Rousso, em 1987, para se referir ao
discurso dos autointitulados “revisionistas históricos”, que expressavam grande
incredulidade sobre o genocídio massivo de judeus pelos nazistas, e se consideravam uma
“escola histórica” à parte. Posteriormente, o termo “revisionismo” passou a se aplicar
à contestação pouco crítica de outros crimes contra a humanidade, como o genocídio
Armênio e dos Tutsis em Ruanda (REICHSTADT, 2020).
O negacionismo é definido por Diethelm e Mckee (2008) como:

[...] a prática de empregar argumentos retóricos para dar a aparência de debate


legítimo quando na verdade não há, uma abordagem que possui o objetivo final
de rejeitar uma proposição na qual existe um consenso científico.

O “método” negacionista geralmente envolve um escrutínio exagerado sobre


a versão oficial de um evento ou sobre um consenso bem estabelecido, associado a uma
supervalorização de pequenos detalhes e invenção de fatos e dados. Por outro lado,
a mesma rigidez de escrutínio e valorização de pequenos detalhes não se aplica às
explicações alternativas propostas (REICHSTADT, 2020).
Pandemia do coronavírus – 69

Apesar de poder se manifestar de muitas formas, Diethelm e Mckee (2008)


apresentam cinco elementos comumente presentes de forma interligada em discursos
negacionistas.
O primeiro elemento é a identificação de conspirações. O discurso negacionista
alega que o consenso científico não é fruto da investigação individual de vários
pesquisadores que chegaram a uma mesma conclusão, seguido pelo debate das evidências
científicas sobre a questão. O negacionismo alega que existem sociedades científicas
inteiras envolvidas em uma agenda para ocultar uma verdade.
O conspiracionismo, por sua vez, também apresenta características marcantes:
a não aceitação completa de uma realidade extremamente bem estabelecida e
documentada; a ideia de uma manipulação extraordinária e incomensurável; inversão da
vitimização e acusações contra os “conspiradores” a quem essa “manipulação” pretende
beneficiar; e a revelação de um “motivo oculto”, onde a alegada "fraude" possui uma
natureza política e/ou financeira. (REICHSTADT, 2020)
O segundo elemento estabelecido por Diethelm e Mckee como sendo presente de
forma frequente no discurso negacionista é o uso de “fake experts”, que são indivíduos
apresentados como especialistas em determinada área, mas que, no entanto, apresentam
visões e conclusões que não se sustentam frente ao conhecimento já estabelecido.
A terceira característica é a “seletividade”, que pode assumir duas formas: o apego
intenso a estudos isolados que desafiam o consenso vigente, ou uma atenção exagerada
voltada para falhas em trabalhos menos rigorosos que são consonantes com o consenso da
área, de forma a desacreditar todo o campo de estudo.
O quarto elemento é a cobrança do impossível em relação à investigação
científica. Essa pode envolver a exigência de uma acurácia desproporcional de um modelo
matemático, ou mesmo de um instrumento de medição, ignorando as limitações técnico-
científicas dos métodos e instrumentos utilizados.
O quinto e último elemento é a interpretação equivocada de dados objetivos e a
ocorrência de falácias lógicas.
Embora seja inegável o fato de que a falta de letramento científico e acesso à
informação contribuam para uma postura negacionista, isso não explica completamente
o fenômeno (LEVY, 2019).
70

Como verificado por Kahan (2015) em seu estudo sobre negacionismo em relação
ao aquecimento global, mesmo indivíduos que conseguem compreender a explicação dos
cientistas e respondem corretamente a questões sobre dióxido de carbono e relações entre
mudanças no clima e a intensidade de furacões, podem apresentar um posicionamento
negacionista. No contexto de aquecimento global estudado por Kahan, por exemplo, o
melhor preditor para uma postura científica ou negacionista não era o nível de letramento
científico ou capacidade de racionalização em si, e sim o posicionamento político, que era
o que acabava por definir como o conhecimento e capacidades intelectuais eram aplicadas.
Indivíduos com as características acima utilizavam seus conhecimentos e capacidades para
racionalizar suas crenças prévias acerca do assunto, em vez de as aprimorar.
Uma explicação proposta por Levy (2019) para explicar esse fenômeno é a de que
o ser humano é um “deliberador coletivo” por natureza, tirando melhores conclusões
e obtendo melhores resultados na resolução de problemas ao fazer isso em grupo. Apesar
disso, a epistêmica do próprio indivíduo sempre terá maior valor para o mesmo, assim
como também será dada mais deferência àquelas deliberações mais próximas às do próprio
indivíduo. Quando um grupo não possui uma diversidade de ideias suficiente existe o risco
de o mesmo se polarizar, levando os indivíduos a uma “deferência assimétrica”, na qual
a visão de alguns passam a ser automaticamente aceitas e a de outros automaticamente
rejeitada, reduzindo as chances do grupo como um todo alcançar uma verdade. Assim
sendo, Levy conclui que:

Aqueles que rejeitam o consenso científico podem não ser menos


epistemicamente virtuosos ou conscienciosos do que aqueles que o aceitam.
Seu infortúnio é se ver no fim de cadeias de transmissão que não são confiáveis.
Garantir que a maioria de nós se encontre no final de cadeias de deferência que
remontam a grupos suficientemente grandes de deliberadores suficientemente
experientes requer atenção às estruturas sociais nas quais estamos inseridos, ao
invés dos déficits e pontos fortes de cada indivíduo.

Para o autor não se trata somente sobre “Ao que o indivíduo dá crédito”, mas
também de “O porquê o indivíduo dá esse crédito”; sendo essencial que, além de letramento
e capacidade de racionalização, exista também um número suficiente de pessoas com
capacidade deliberativa em todas as estruturas e esferas sociais, para que distorções
cognitivas não se concretizem.
Pandemia do coronavírus – 71

Kenyon (2016) define a agnotologia (junção das duas palavras gregas agnosis, que
significa “ignorância”, e logia, que significa “estudo”) como o estudo de atos voluntários
para espalhar confusão e engano, geralmente para vender um produto ou ganhar um favor.
Observando os escritos de Robert Proctor, professor de História da Ciência da
Universidade de Stanford, Kenyon (2016) percebe que a ignorância se espalha quando
muitas pessoas não entendem um conceito ou fato científico pela disseminação de
informações controvertidas, culminando em uma sociedade analfabeta e suscetível às
táticas usadas por determinados grupos, que objetivam confundir e achacar a verdade em
detrimento de seus interesses.
A ignorância é considerada o mal do século por incutir no homem um perfil de
servilidade. Servil é aquele que desconhece e que não quer conhecer, que estabelece falsas
ideias sobre o mundo que o cerca, e que alcança o conhecimento científico provado e
comprovado, que gera estagnação e retrocesso (BELLO, 2010).
De qualquer modo, há uma necessidade latente (pela própria sobrevivência
humana) de defender a Ciência nos dias atuais, quando vemos pais que se negam a vacinar
seus filhos, criacionistas religiosos que tentam interferir nos currículos de disciplinas
científicas e negacionistas do aquecimento global, todos propagando desinformação,
pseudociência e anticiência a todo momento (HANSSON, 2020).
A contestação aos argumentos científicos, substituídos por crenças e valores
individuais, aparecem em diferentes polêmicas. O relatório da organização
britânica Wellcome Trust, publicado em 2019, analisou os níveis de compreensão,
interesse e confiança na ciência em uma amostra de 140 mil indivíduos pertencentes a mais
de uma centena de países. No Brasil, por exemplo, as convicções religiosas têm primazia
para 75% dos entrevistados, quando há um confronto entre Ciência e Religião. Nos Estados
Unidos, esse percentual corresponde a 60%.
O mesmo relatório aponta que a desconfiança em relação à eficácia das vacinas
é maior nos países desenvolvidos. Esse fato é comprovado pelo aumento de 400%
no número de casos de sarampo na Europa, os quais – segundo a Organização Mundial da
Saúde (OMS) – saltaram de 5.273 para 21.315 entre 2016 e 2017. Na França, um terço
da população demonstra ceticismo em relação à segurança dos imunobiológicos, atitude
que é em parte explicável considerando-se que, em 1998, houve a publicação de um artigo
do cirurgião Andrew Wakefield na revista Lancet, o qual relacionou a tríplice viral a casos
72

de autismo (essa relação foi negada em estudos posteriores, tendo sido também verificada
a manipulação de dados por parte de Wakefield). No Brasil e em países com baixos índices
de desenvolvimento social – como Bangladesh e Ruanda –, a ampla maioria da população
reconhece os resultados benéficos das vacinas.
No artigo A Test of Three Theories of Anti-Science Attitudes, o sociólogo Gordon
Gauchat explora três hipóteses distintas para o surgimento de atitudes anticientíficas em
uma sociedade. A primeira hipótese parte da carência ou mesmo ausência de letramento
científico; a segunda busca a origem do problema no fundamentalismo religioso; a terceira
hipótese consistiria, por sua vez, em um distanciamento cultural das atividades científicas.
Em termos de correlação, não seria difícil encontrar na sociedade brasileira os três
elementos. Sob um primeiro olhar, a confluência desses três fatores poderia sugerir
soluções de inspiração iluminista: o contato com o conhecimento científico deve conduzir
à construção de uma atitude científica; a atitude científica como libertação do dogmatismo;
o dogmatismo como contraposição à ciência. Esta é, sem risco, uma das soluções mais
familiares ao senso comum, em que pese toda a vagueza implícita quando se fala da
educação como raiz e solução dos nossos problemas.
Para muitos educadores, um dos principais objetivos do ensino obrigatório e da
formação intelectual das crianças e dos jovens é conseguir despertar um pensamento
crítico na população, para que possam ser enfrentados os problemas que surgem nas
sociedades, assim tornando-as mais justas e igualitárias (SOLBES, 2019).
Estendendo e aplicando esse conceito no campo da saúde, podemos pensar que a
educação através da autonomia dos indivíduos em aprender sobre sua condição de saúde
e de sua comunidade pode ser um dos caminhos para minimizar os impactos do
negacionismo científico e combater com informação a desinformação/fake news.
Esta educação em saúde e em ciência, assim como a busca pelo conhecimento está
ligada à aprendizagem e à execução do que se aprendeu. “[...] o ato de estudar, enquanto
ato curioso do sujeito diante do mundo é expressão da forma de estar sendo dos seres
humanos, como seres sociais, históricos, seres fazedores, transformadores, que não apenas
sabem, mas sabem que sabem” (FREIRE, 2009, p. 60).
Pandemia do coronavírus – 73

A capacidade de ler e agir sobre as informações obtidas, bem como de tomar


decisões sobre a própria saúde está ligada ao alto nível de letramento em saúde, bem como
à maior consciência de medidas preventivas e maiores instruções no autocuidado.
Diferentes estudos mostram que Letramento Funcional em Saúde é a capacidade
cognitiva de entender, interpretar e aplicar informações escritas ou faladas sobre saúde;
de forma que, em termos práticos, uma pessoa com nível de letramento satisfatório teria
melhor condição de saúde que um indivíduo com nível de letramento limitado, que teria
menos noção da importância de medidas preventivas, por exemplo, ou maior dificuldade
de entender instruções sobre a medicação (ADAMS et al., 2009).
Dentre as sugestões que podem favorecer o letramento em saúde existem ações
que podem ser feitas tanto pelas equipes da saúde, que envolvem comunicação clara e
simples, além de acesso a informações de forma mais simples para a população, como pela
comunidade de pacientes.
A inserção de novas metodologias e propostas de pesquisa no campo do
Letramento em Saúde, nas unidades de saúde e na educação brasileira, em geral, pode ser
uma estratégia viável para agir na melhoria do negacionismo científico ligado à saúde,
melhorando a qualidade dos atendimentos e de todos os demais índices preconizados pelo
Ministério da Saúde.
É evidente a necessidade de uma sociedade mais esclarecida, valorizando o
conhecimento produzido nas universidades visto que uma sociedade cientificamente
analfabeta provavelmente será mais suscetível às táticas usadas por aqueles que desejam
confundir e obscurecer a verdade. E esta situação só será transformada quando
garantirmos, a todos, o acesso ao conhecimento de forma significativa. Só o conhecimento
é capaz de empoderar o indivíduo e torná-lo capaz de modificar este cenário.

REFERÊNCIAS

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verdade-cientifica-bartira-santos. Acesso em: 27 nov. 2018.

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Public Health, v. 19, n. 1, p. 2-4, 2008.

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Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 53, p. 1-5, 2020.
74

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HANSSON, S. O. How not to defend science: a decalogue for science defenders. Disputatio. Philosophical
Research Bulletin, v. 9, n. 13, 2020. Disponível em: https://disputatio.eu/vols/vol-9-no-13/hansson-
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JACQUES, P. J. A general theory of climate denial. Global Environmental Politics, v. 12, n. 2, p. 9-17, 2012.

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em: http://www.bbc.com/future/story/20160105-the-man-who-studies-the-spread-of-ignorance. Acesso
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REICHSTADT, R. Extending the domain of denial: conspiracism and negationism. Diogenes,


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SOLBES, J. Cuestiones socio-científicas y pensamiento crítico: una propuesta para cuestionar las
pseudociências. Revista Tecné, Episteme y Didaxis: TED, Bogotá, n. 46, p. 81-99, 2019. Disponível em:
http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-38142019000200081&lang=pt.
Acesso em: 5 fev. 2021.
Pandemia do coronavírus – 75

C A P Í T U L O 6
_____________

RESGATE DO QUE NUNCA DEVERIA DEIXAR DE TER SIDO:


O PAPEL HUMANO E HUMANIZADOR DA EDUCAÇÃO
E DO EDUCADOR

Leonides da Silva Justiniano11

INTRODUÇÃO

Embora houvesse o monitoramento de casos suspeitos e, inclusive, a repatriação de


brasileiros que se encontravam na cidade chinesa de Wuhan (em 9 de fevereiro de 2020),
epicentro do surgimento do novo coronavírus SarsCoV-2, foi no dia 26 de fevereiro que se
confirmou o primeiro caso de coronavírus – Covid-19 – no Brasil. Dessa data em diante
o cenário foi se tornando dramático, com aumento progressivo de infectados e mortos.
O recorde de mortos diários, em 2020, se deu no dia 4 de junho: em 24 horas ocorreram
1.473 mortes, conforme dados de consórcio de veículos de imprensa e do Ministério da
Saúde. No dia 8 de agosto o país atinge e passa a marca dos 100 mil mortos pela Covid-19.
No dia 11 de setembro – data de outro evento trágico, o ataque às Torres Gêmeas do World
Trade Center, em Nova Iorque – o Brasil passou de 130 mil mortos e registrou 4.283.978
infectados naquela que foi reconhecida como a maior pandemia da história do país. Veio
2021 e aquilo que parecia ruim demonstrou-se pior: em 16 de março o país superou a marca
dos 280 mil mortos; antes, no dia 10 de março, já havia sido registrado o maior número de
mortos em 24 horas: 2.286 pessoas faleceram vítimas do Covid-19. No dia 24 de março
o Brasil superou a marca dos 300 mil mortos, um dia após ter ultrapassado a marca de mais
de três mil mortos pela primeira vez, em mais de um ano de pandemia.

11
Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, São Paulo. Docente do Centro
Universitário de Lins (UNILINS), São Paulo. E-mail: leojusto@unilins.edu.br
76

Diante do cenário aterrador, que remete a outros conhecidos a partir da literatura,


como a gripe espanhola ou a peste negra, mas pouco experienciados pela imensa maioria
das pessoas que vivem nestes anos de 2019 a 2021, não poucos se perguntavam a respeito
das consequências do que estava se passando. Essas consequências atendiam
por um nome ou título bem específico: “Novo Normal”. Que seria esse “novo normal” a que
quase todos se referiam, embora bem poucos pudessem se arriscar a delinear?
Uma das instituições que ocupou o centro do debate, inclusive por ter sido uma das
primeiras a ter suas atividades radicalmente alteradas foi a instituição de ensino – escolas e
universidades. Especificamente no Estado de São Paulo, em atendimento ao Decreto 64.864,
de 16 de março de 2020, as aulas começaram a ser suspensas no dia 19 de março, sendo que
todas as atividades presenciais nas escolas foram suspensas a partir do dia 23 de março. Um
ano depois, as aulas ainda não tinham sido retomadas regularmente: as aulas continuaram
a ser ministradas remotamente, quando não foram suspensas por antecipação de feriados
e recessos diversos.
Conforme estudo da Fundação Carlos Chagas (2020), a pandemia fez com que 81,9%
dos alunos da Educação Básica deixassem de frequentar as escolas, no Brasil (um contingente
de cerca de 39 milhões de pessoas); percentual que, no mundo, atinge 64,5% dos estudantes
(mais de 1,2 bilhão de pessoas). Essa suspensão das aulas gerou uma série de discussões;
algumas apontavam para o risco de se realizarem aulas presenciais; outras, para o prejuízo
dos conteúdos estudados ou a serem estudados, que se perderiam; outras alegavam, ainda,
que as aulas presenciais não deveriam ser suspensas por se tratar de uma atividade essencial.
Em suma, várias posições, favoráveis ou contrárias tanto à suspensão quanto ao retorno das
aulas presenciais. Os prejuízos à educação não são algo que surpreenda: vários estudos
apontam, até mesmo, para o impacto das férias regulares sobre a retenção dos conteúdos
aprendidos durante os períodos letivos semestrais ou anuais. Um afastamento das atividades
escolares normais por um período prolongado e decorrente de medidas para o
enfrentamento de uma pandemia, com todos os percalços e improvisos que tal afastamento
acarreta, não deixa dúvidas sobre suas consequências negativas. Uma dessas consequências
se refere à própria qualidade da educação.
Pandemia do coronavírus – 77

O discurso da qualidade e a educação

Todo produto, quando avaliado por seus usuários, é referido como útil ou não
(serve ou não serve); é avaliado, porém, sobretudo, por sua qualidade (presta ou não
presta). Daí encontrarmos empresas que primam pelo controle de qualidade de seus
produtos; organizações que desenvolvem programas de treinamento em qualidade total;
sem falar em inúmeros discursos que focam a qualidade como um diferencial a ser
perseguido ou como um ideal a ser alcançado, ou como uma meta estabelecida e que
tem de ser mantida.
Na educação não tem sido diferente. É cada vez mais comum a tentativa de
vinculação de uma determinada marca de instituição educacional com algum selo que
ateste sua qualidade; ou, então, a divulgação de resultados positivos alcançados em
avaliações de âmbito nacional e internacional como sendo um atestado de qualidade.
Também não é rara a informação de que a instituição é de qualidade por ter laboratórios,
computadores, diversidade de atividades extraclasse, professores capacitados e
dedicados... Enfim, todo um aparato que circundaria um ideário de qualidade.
Em uma sociedade cada vez mais dominada pela tecnologia e com uma perspectiva
cada vez mais sombria, em termos de estabilidade social e econômica para as futuras
gerações – a persistirem os atuais modelos de produção e distribuição capitalistas e
neoliberais hoje dominantes – os verdadeiros educadores colocam-se a missão de capacitar
adequadamente aqueles que se encontram sob sua responsabilidade profissional de forma
a poderem fazer frente aos desafios que se apresentam.
Todavia, é justamente nesse ponto que surgem outros problemas; afinal, deve-se
preparar as novas gerações para esse “mundo que está aí” ou para o “mundo desejável”?
E quem tem o direito de estabelecer (para os outros) qual é esse mundo desejável? Além
disso, mais que no futuro ou no presente, há que se reconhecer que o mundo, já de há
algum tempo, é profundamente marcado pela tecnologia (entendida a partir dos
computadores e dispositivos conexos); por conseguinte, faz sentido não a colocar como um
critério de qualidade ou elemento de destaque do processo educativo?
São questionamentos válidos, sim. Contudo, o que significaria, de fato, essa
qualidade tão desejada e exigida na educação e da educação? Ainda mais em tempo de
pandemia e, principalmente, para um mundo pós-pandemia?
78

Ora, para que se possa discutir determinado assunto (como a qualidade) este deve
ser adequadamente conceituado e, posteriormente, deve contar com indicadores que
possam demonstrar ou aferir sua efetivação. Em outras palavras, se se pretende falar
em qualidade na educação, qualidade da educação e/ou educação de qualidade,
deve-se, primeiro, definir o que seja essa qualidade; concomitantemente, estabelecer
aqueles critérios (ou indicadores) que permitirão verificar se essa qualidade está sendo
alcançada ou não.
Em suma, a discussão primeira que se apresenta indaga o que seria essa propalada
qualidade. Afinal, o que seria a qualidade, em si, para que se possa caracterizar
a qualidade da educação? Que fatores, que critérios propiciariam o reconhecimento da
qualidade, em si, para que se possa reconhecê-la, também, na educação?
A qualidade é um dos princípios que embasa o ensino – por extensão, a educação –,
como bem o registra a Lei de Diretrizes e Bases em seu art. 3º, inciso IX: “Art. 3º O ensino
será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] IX – garantia de padrão de qualidade
[...]”. Tal requisito é destacado, novamente, no inciso IX do art. 4º:

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante
a garantia de: [...] IX – padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como
a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

O art. 4º já faz uma indicação do que pode ser entendido por qualidade na
educação: a quantidade de insumos por alunos. Nas demais vezes (oito) em que o termo
qualidade é mencionado, é sempre sob a perspectiva de que tal princípio seja assegurado.
Se o profissional da educação buscar pautar sua prática em busca da qualidade
pelo que dizem apenas as letras dos documentos oficiais, sua busca será um tanto
inglória. Infelizmente, não é possível uma afirmação categórica, no melhor estilo
kantiano, a respeito do que se definir ou entender por qualidade, quando circunscrita ao
campo da educação. Podem-se encontrar indicativos ou indicadores do que seja essa
categoria ou atributo – a qualidade – entretanto, não se pode chegar a uma conclusão
definitiva que ilumine as práticas ou refine as teorias. E não que essa seja uma postura
democrática, que indique que o conceito deva ser construído solidária e coletivamente,
a partir das instâncias participantes do processo educativo. Se assim se argumenta, em
vários lugares ou documentos oficiais ou oficiosos, é mais por uma limitação ou
complexidade conceitual que por uma postura política, salvo raras exceções.
Pandemia do coronavírus – 79

Assim é que, de acordo com o documento do Ministério da Educação (MEC) e da


Secretaria de Educação Básica (SEB), Indicadores da qualidade na Educação Básica (2009),

[...] As definições de qualidade dependem de muitos fatores: os valores nos quais


as pessoas acreditam; as tradições de uma determinada cultura; os
conhecimentos científicos sobre como as crianças aprendem e se desenvolvem;
o contexto histórico, social e econômico no qual a escola se insere. No caso
específico da educação infantil, a forma como a sociedade define os direitos da
mulher e a responsabilidade coletiva pela educação das crianças pequenas
também são fatores relevantes.
Sendo assim, a qualidade pode ser concebida de forma diversa, conforme
o momento histórico, o contexto cultural e as condições objetivas locais. Por esse
motivo, o processo de definir e avaliar a qualidade de uma instituição educativa
deve ser participativo e aberto, sendo importante por si mesmo, pois possibilita
a reflexão e a definição de um caminho próprio para aperfeiçoar o trabalho
pedagógico e social das instituições. (MEC; SEB, 2009, p. 11s).

Em geral, os obstáculos conceituais são superados em direção à quantificação ou


à presença/ausência de recursos humanos e materiais (insumos). Essa concepção de uma
qualidade vinculada à quantidade de insumos por aluno, de certo modo, contaminou-se
ou levou a uma aproximação do conceito como pensado no âmbito das organizações
industriais – um conceito que encontra suas raízes em William Edwards Deming e seu livro
Qualidade: a revolução da administração.
Deming desenvolveu uma teoria a respeito da sobrevivência das empresas
(quaisquer empresas, na prática), indicando que a qualidade, contrariamente ao que se
pensa, implica em produtividade (ou quantidade), menores custos e ampliação de
penetração e ganho de fatias do mercado. A preocupação com a qualidade, em qualquer
estágio de desenvolvimento de um produto (bem ou serviço, e desde seu projeto até seu
consumo final) reduz, inclusive, o trabalho sobre o trabalho, a necessidade de se refazer
o que já estava dado como feito, ou seja, o retrabalho. Desse modo, a busca da qualidade
aumenta a produtividade mais que o próprio controle de produtividade.
A qualidade se consegue menos com a tecnologia em si, menos com a boa vontade
em si, menos com os recursos naturais em si e, mais, com o conhecimento que se tem
daquilo que se quer atingir, e com o conhecimento a respeito de com o quê, como e onde
se pretende atingir esse propósito.
Contudo, ao buscar uma definição da qualidade, Deming (1991, p. 25, itálicos do
autor) é um tanto vago. Em suas próprias palavras:
80

O que é qualidade? A qualidade só pode ser definida em termos de quem a avalia.


Quem é o juiz da qualidade?
Na opinião do operário, ele produz qualidade se puder se orgulhar de seu
trabalho. Baixa qualidade, para ele, significa perda de negócios e talvez de seu
emprego. Alta qualidade, pensa ele, manterá a empresa no ramo. Isto é verdade
tanto para as empresas de serviços quanto para as de produção de bens.
Qualidade, para o administrador de fábrica, significa produzir a quantidade
planejada e atender às especificações. Sua função é, também, saiba ele ou não, o
constante aperfeiçoamento dos processos e a constante melhora de sua liderança.
[...] A dificuldade de se definir a qualidade está na conversão das necessidades
futuras do usuário em características mensuráveis, de forma que o produto possa
ser projetado e modificado para dar satisfação por um preço que o usuário
pague. Isso não é fácil e, assim, que alguém se sente relativamente bem-sucedido
em sua tentativa, descobre que as necessidades do consumidor mudaram, que
concorrentes entraram no mercado, que existem novos materiais com os quais
trabalhar, alguns melhores que os antigos; alguns mais baratos que os antigos,
alguns mais caros.

A qualidade, sendo um valor agregado a um bem ou serviço, pressupõe uma


construção. A qualidade é construída conjuntamente ao desenvolvimento do produto,
dizendo respeito não só a materiais, mas também a rotinas, a procedimentos técnicos,
a condutas pessoais, dentre outros fatores. De acordo com Deming, é possível a construção
da qualidade se forem seguidos “14 princípios”, os quais são denominados de Método
Deming de Administração (MDA). Os “14 princípios” de Deming (DEMING, 1991, p. 18-19),
são os seguintes:

1. Crie constância de propósitos para a melhora do produto e do serviço;


2. Adote a nova filosofia;
3. Cesse a dependência da inspeção em massa;
4. Acabe com a prática de aprovar orçamentos apenas com base no preço;
5. Melhore constantemente o sistema de produção e de serviço;
6. Institua treinamento;
7. Adotar e instituir liderança;
8. Afaste o medo;
9. Rompa as barreiras entre os diversos setores de pessoal;
10. Eliminar “slogans”, exortações e metas para a mão de obra;
11. Suprima as quotas para a mão de obra e objetivos numéricos para o pessoal
da administração;
12. Remova as barreiras que privam as pessoas do justo orgulho pelo trabalho
bem executado;
13. Estimule a formação e o autoaprimoramento de todos;
14. Tome iniciativa para realizar a transformação.

O que se pode observar destes “14 princípios” é que, conforme salienta o próprio
Deming, eles podem ser aplicados indistintamente a qualquer tipo de organização. E isso
porque, também como a qualidade, são genéricos. Não se observa nessas pontuações
ou delineamentos referentes à qualidade ou sua implantação, explicitamente, um
indicativo que possa restringir sua aplicação ao setor industrial ou similar.
Pandemia do coronavírus – 81

Em suma, ainda que o conceito de qualidade seja de difícil definição, parece que
o discurso mais prevalente sobre a qualidade (que vai se imiscuir na educação e nas
instituições de ensino) não consegue – ou não pretende – romper com algumas balizas
colocadas pela visão empresarial original, e que pode ser referida por alguns teóricos
da qualidade, dentre os quais Juran e Garvin.

A qualidade da educação testada pela pandemia

Insumos são necessários à qualidade da educação, sem sombra de dúvidas.


A contínua evolução e inovação das Novas Tecnologias Digitais da Informação e
Comunicação (NTDICs) aplicadas ou voltadas para a educação demonstraram sua enorme
validade durante os tempos de pandemia. Porém, a pandemia revelou outros aspectos
tão ou mais impactantes ao desenvolvimento dos processos educacionais – e nem se quer
referir, aqui, à qualidade desses processos, apenas à sua implementação básica.
Vários estudos foram publicados, no Brasil e no mundo, com o propósito de
discutir os impactos da pandemia sobre a educação e seus agentes. De acordo com a
Unesco (2020), o fechamento das escolas em decorrência da pandemia produziu diversas
consequências negativas seja sobre os docentes, os estudantes, as famílias e as diversas
categorias profissionais. Adaptando o conteúdo elencado em documento publicado pela
Unesco, tem-se o seguinte quadro:

Quadro 1 – Consequências do fechamento das escolas devido à pandemia de Covid-19


Elementos impactados Impacto sofrido durante a pandemia

Aprendizagem interrompida
Má nutrição
Estudantes Aumento das taxas de abandono escolar
Maior exposição à violência e à exploração
Isolamento social
Confusão e estresse para professores
Docentes
Desafios para mensurar e validar a aprendizagem
Desafios na criação, manutenção e melhoria do ensino a distância
Escolas
Maior pressão sobre as escolas e sobre os sistemas educacionais que
permanecem abertos
Pais despreparados para a educação a distância em casa
Famílias
Lacunas no cuidado das crianças
Altos custos econômicos
Profissionais de saúde Pressão não intencional nos sistemas de saúde

Fonte: Elaborado a partir de Unesco (2020).


82

Uma simples leitura do conteúdo do Quadro 1 permite uma constatação: não se


destacam tecnologias, embora elas possam auxiliar na redução de muitas das adversidades
elencadas; o que se destaca são adversidades que atingem pessoas. E, dentre as pessoas,
as mais atingidas são os estudantes. O prejuízo com a aprendizagem interrompida, por
exemplo, tem sido alvo de estudos e revisões de literatura, em que se busca uma
comparação com a interrupção prolongada decorrente do fechamento das escolas devido
à pandemia e interrupções menores, como aquelas levadas a efeito devido às férias.
Muito se tem questionado quanto aos impactos que a suspensão das aulas
presenciais traria sobre a educação; de modo especial sobre o processo de aprendizagem
nos vários níveis de ensino. Uma excelente revisão de literatura a respeito foi elaborada
por Oliveira, Gomes e Barcellos (2020). Consultando dezenas de estudos de âmbito nacional
e global, contemplando aspectos tais como o socioeconômico, étnico-racial e de políticas
públicas, dentre outros, as análises contidas na revisão conduzida pelos autores citados
desconstrói alguns mitos e reforça algumas considerações ou proposições já presentes
no debate a respeito das consequências da pandemia do covid-19 e seu enfrentamento.
Uma dessas constatações diz respeito, sim, à queda do conhecimento adquirido
devido ao tempo de afastamento das atividades escolares; uma queda de conhecimento
que não é tão significativa dentro do processo escolar normal e que, embora possa
se acentuar com as paralisações decorrentes das medidas de enfrentamento da pandemia,
podem ter seus impactos reduzidos se os ciclos posteriores de ensino forem adequadamente
organizados, o que não significa maior tempo da jornada diária em sala de aula, como
às vezes se cogita. Segundo constataram Oliveira, Gomes e Barcellos (2020, p. 560):

[...] a literatura indica que, em condições normais, a ampliação da jornada não


constitui uma panaceia, principalmente, levando-se em conta os custos dessa
ampliação. A maioria dos efeitos positivos encontrados é modesta e depende, de
forma crucial, de outros fatores, como um currículo bem estruturado.

A ressalva com relação às “condições normais” se deve ao fato de que não foram
realizados estudos prévios relacionados aos incrementos positivos do aumento da carga
horária diária em situações como as da pandemia, embora tenham sido realizados estudos
a respeito das possíveis perdas de conhecimento decorrentes de interrupções dos processos
de ensino, como foram os casos, além das férias normais, de períodos mais longos como
aqueles devidos à epidemia de poliomielite nos Estados Unidos em 1916 (dois meses),
Pandemia do coronavírus – 83

a greve dos professores na Bélgica em 1990 (quase seis meses) e a realocação de alunos após
os furacões Katrina e Rita no sul dos Estados Unidos, em 2005. De todo modo, quando
possível a realização de estudos controlados, o impacto de paralisações, sobretudo aquelas
previstas, como as férias escolares, produziriam pouco impacto ou prejuízo ao desempenho
final dos alunos.
As evidências encontradas, todavia, desafiam o senso comum, conforme registram
os autores:

[...] evidências sugerem que, apesar de parecer intuitivo, não há indícios de que
ampliar as horas de aula garanta ganhos de aprendizagem. [...] Jornada diária
e dias letivos indicam apenas o tempo que o aluno passa na escola, e não,
necessariamente, quanto o aluno está, de fato, engajado em atividades
que geram aprendizado. Os poucos estudos, como os de Bruns et al. (2014)
e Kane et al. (2011), que conseguem, ainda que parcialmente, estimar esse
tempo efetivo de instrução, mostram que alunos aprendem mais quando
professores gastam mais tempo em sala de aula realizando atividades
acadêmicas, e são capazes de mantê-los engajados por mais tempo. Nesse
sentido, a capacidade do professor, novamente, assume o protagonismo.
(OLIVEIRA; GOMES; BARCELLOS, 2020, p. 560, grifos nossos).

Junto a esses estudos, outros têm sido feitos com o propósito de averiguar
percepções, sentimentos e impactos, bem como procedimentos e recursos que possam
auxiliar na superação das consequências negativas provocadas pela pandemia. O que se
verificou foi a alteração significativa dos métodos de ensino, com os mesmos se amparando
nas tecnologias da informação e comunicação e no uso massivo da internet. No início da
pandemia, em maio de 2020, a Unesco publicou um relatório a respeito dos impactos do
covid-19 em relação ao ensino superior. Nesse relatório se evidenciou que as maiores
preocupações nos países da Ibero-América eram a conectividade da internet, as questões
financeiras e a dificuldade de se manter um cronograma regular (horário/rotina regular).
A preocupação com a internet é referendada pelos dados referentes à quantidade de
domicílios que possuem conexão com internet: na África e na América Latina e Caribe
encontram-se os piores índices: 17% e 45%, respectivamente. Em vários países da América
Latina, todavia, observa-se que a quantidade de linhas de telefonia móvel chega a superar,
em muito, a quantidade de pessoas: é o caso de Costa Rica, onde se tem mais de 160 linhas
de telefonia móvel por 100 habitantes. No Brasil, essa relação era de quase 100 linhas de
telefonia móvel para cada grupo de 100 habitantes (UNESCO, 2020, p. 19).
84

Possuir linha de telefonia móvel, porém, não é garantia de serviços de internet


adequados aos propósitos educacionais de ensino remoto. No Brasil, esse recurso,
que deveria favorecer a igualdade de aprendizagem no modelo remoto, mas acentuou
as desigualdades, conforme aponta Souza (2020), estudando os impactos da pandemia
na Educação Básica:

Segundo dados da PNAD (IBGE, 2018), 20,9% dos domicílios brasileiros não têm
acesso à internet, o que significa cerca de 15 milhões de lares. Em 79,1% das
residências que têm acesso à rede, o celular é o equipamento mais utilizado
e encontrado em 99,2% dos domicílios, mas muitas famílias compartilham um
único equipamento. Outra realidade que não podemos desconsiderar é que
as casas das classes médias e alta têm uma estrutura privilegiada para o
desenvolvimento de atividades escolares. Porém, as residências das classes
populares se configuram, em geral, com poucos cômodos onde convivem várias
pessoas, tornando-se difícil a dedicação dos alunos às atividades escolares.
A pesquisa TIC Kids Online Brasil (CETIC, 2019) mostra que 11% das crianças
e adolescentes de 9 a 17 anos não têm acesso à internet, correspondendo
a 3 milhões de pessoas, sendo que 1,4 milhão nunca acessou a rede. Estes
dados enfatizam um dos desafios da educação no período da pandemia, que é
o acesso das pessoas à rede internet banda larga para continuarem
aprendendo e ensinando. (SOUZA, 2020, p. 111-112).

Além do aspecto técnico, ainda foram detectados problemas de ordem diversa para
a adequada viabilização do ensino remoto, em todos os níveis de ensino. O já citado
relatório da Unesco chama a atenção para alguns pontos negativos que opuseram grande
parte dos estudantes (embora do ensino superior) à mudança de modalidade de ensino
provocada pela pandemia (UNESCO, 2020, p. 20):

• insatisfação [que] decorre do fato de que o conteúdo oferecido nunca foi


concebido no âmbito de um curso superior a distância, visando-se apenas a
compensar a inexistência de aulas presenciais com aulas virtuais sem preparo
adicional;
• [...] as expectativas dos estudantes são diferentes se eles esperam se inscrever,
desde o início, em um curso a distância ou em um curso presencial, com todos
os elementos sociais e experimentais que sempre acompanham a experiência
presencial em uma IES;
• [...] a educação a distância requer maior disciplina e comprometimento
por parte do estudante, o que talvez explique porque ela é mais bem-sucedida
entre os estudantes mais velhos, ou seja, os pós-graduandos, que entre os
de graduação.

Especificamente em relação ao Brasil, a Fundação Carlos Chagas realizou uma


pesquisa com o propósito de verificar a visão dos professores e professoras da Educação
Básica a respeito da educação em tempo de pandemia. O que se constatou, em linhas gerais,
foi o seguinte (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2020, passim):
Pandemia do coronavírus – 85

• Para mais de 65% das respondentes, o trabalho pedagógico mudou e


aumentou, com destaque para as atividades que envolvem interface e/ou
interação digital.
• Quase oito em cada dez professoras afirmam fazer uso de materiais digitais via
redes sociais como estratégia educacional.
• [...] 49,3% das professoras acreditam que somente parte dos alunos consegue
realizar as atividades. A expectativa em relação à aprendizagem diminuiu
praticamente à metade.
• Sobre o retorno das atividades escolares presenciais, a maioria das professoras
é favorável a uma readequação nos modelos de avaliações; ao rodízio de alunos;
e à continuidade do ensino on-line junto com o ensino presencial.
• Quase a metade das professoras indica um aumento da relação escola-família
e do vínculo do aluno com a família.
• Quase 70% das professoras sentem-se apoiadas pela escola, porém esse
percentual é ligeiramente menor entre docentes negras e negros.
• Embora a maioria das respondentes esteja recebendo regularmente seus
salários, entre aquelas que não estão, o maior percentual é de pessoas negras.

Com um propósito similar ao da pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas,


Grandisoli, Jacobi e Marchini (2021) realizaram uma pesquisa focada nos docentes da Rede
Estadual de Educação de São Paulo, “[...] que avaliou indicadores afetivos, de saúde mental
e pedagógicos nesse período de pandemia e afastamento social, além de explorar a visão do
futuro dos educadores com relação à atuação docente e da Educação pós-pandemia”.
No que tange ao nosso propósito, convém destacar algumas constatações
(GRANDISOLI; JACOBI; MARCHINI, 2021, passim):

• Medo, tristeza, insegurança, ansiedade, angústia e incerteza são os principais


sentimentos associados à pandemia (somando 48,1% das respostas).
• Os sentimentos desafio, aprendizado e inovação correspondem a cerca de 30%
dos sentimentos relacionados ao modelo de educação mediada por tecnologia.
• No geral, 62% dos sentimentos citados foram classificados como positivos
quanto ao novo modelo educacional em curso.
• Há predominância da insegurança com relação à atuação nesse novo modelo
(cerca de 51% das respostas).
• Apesar do quadro positivo relacionado à aptidão e apoio formativo, 85% dos
respondentes têm a percepção de que os estudantes aprendem menos ou muito
menos via educação mediada por tecnologia.

Algumas conclusões ou análises iniciais são apresentadas pelos autores, e apontam


para a necessidade de se rever o modelo de ensino e, sobretudo, o processo de formação
continuada docente:

Existe urgência na revisão do atual modelo de educação mediada por tecnologia


e adoção de novos formatos que garantam a aprendizagem significativa dos
estudantes, bem como permitam que essa trajetória educativa seja avaliada de
forma assertiva. (GRANDISOLI; JACOBI; MARCHINI, 2021, p. 3, grifos dos autores).
86

Tais análises apontam para alguns procedimentos que se mostram imprescindíveis,


segundo Grandisoli, Jacobi e Marchini (2021, p. 3, grifos dos autores):

Esses pontos dependem, não somente da busca por novos formatos tecnológicos,
mas de intensa e competente formação dos professores e outros profissionais
da educação. Novos modelos híbridos de ensino (presencial + remoto) serão
capazes de garantir o melhor dos dois mundos para educadores e estudantes e,
uma vez implantados de forma competente, colaborarão diretamente na
transição para modelos mais remotos em tempos de crise. Pesquisa,
prototipação e testagem de novos modelos educacionais de forma participativa
e colaborativa, apoiados por políticas públicas, subsídios, profissionais capacitados
e garantia de acesso igualitário aos estudantes são caminhos que se mostram
fundamentais para o presente e para o futuro da Educação e que emergem
de forma ainda mais incisiva graças à pandemia da Covid-19.

Contudo, reportando-nos à qualidade correlacionada com a quantidade de


insumos e a tecnologia, que foi nosso enfoque no tópico anterior, quais seriam
as constatações possíveis? Segundo Oliveira, Gomes e Barcellos (2020, p. 561, grifos dos
autores, negritos nossos),

Há também evidências sobre o papel da tecnologia no desempenho escolar.


Teoricamente, a tecnologia seria uma grande aliada por sua capacidade de
diagnóstico, individualização, personalização e interatividade (SOSA; MANZUOLI,
2019; TENA; GUTIÉRREZ; LLORENTE CEJUDO, 2019). Contudo, a literatura
aponta resultados diversos, sendo muitos deles nulos, seja no uso de hardware
(BANERJEE et al., 2007; BARRERA-OSORIO; LINDEN, 2009), seja no uso de software
(BORMAN, BENSON; OVERMAN, 2009; MURALIDHARA; SINGH; GANIMIAN, 2017).
Acesso a insumos também não é garantia de aprendizado. Experimentos
mostram que a distribuição de computadores a alunos não está associada
a maior aprendizagem. (BEUERMANN et al., 2015; FAIRLIE; ROBINSON, 2013).

Ora, se constatamos mediante evidências e revisão de literatura que os insumos,


dentre os quais os computadores – aos quais comumente se associa a qualidade da
educação –, não garantem a aprendizagem, e esta é um dos maiores propósitos
da educação escolar, onde se radicará a qualidade esperada da educação, sobretudo para
o período pós-pandemia?

Qualificação e especialização discursiva

A discussão sobre a qualidade da educação, que em fins do século passado e


década inicial deste século XXI enfatizava as NTDICs, nos últimos anos vêm se
direcionando para a capacitação docente e discente no uso não apenas das NTDCIs,
mas, sobretudo, das denominadas Metodologias Ativas. Tal guinada é identificada pelos
estudos realizados por Oliveira, Gomes e Barcellos (2020, p. 561, grifos nossos):
Pandemia do coronavírus – 87

Os fatores e as estratégias de Ensino que possuem efeitos robustos e bem


documentados na literatura dependem basicamente da qualidade do
professor. Um dos indicadores é a clareza, isto é, a capacidade do professor de
comunicar-se bem e passar o conteúdo de forma organizada.

A transmissão de conteúdos ou o auxílio à apropriação de conteúdos e à


construção de conhecimento é uma das finalidades da educação. A educação, na verdade,
pode ter múltiplas finalidades, das quais destacamos duas – informar e formar –, mas que
não se furtam à eticidade e à moralidade. Essa dimensão ou tarefa moral da educação
é bem destacada por Adorno (2000, p. 119) quando alerta:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.


[...] Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado
e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie
contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão
à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão;
a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de
fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora. Apesar
da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo.
Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da
história mundial, culminaria em Auschwitz.

A tarefa do educador não é, pois, apenas transmitir conhecimentos, noções, mas é


também zelar para que seu educar não seja imbuído de valores e práticas que
despersonalizem ou coisifiquem os educandos, ou instrumentalizem a educação e os
colegas educadores, mediante um agir estratégico, segundo a concepção habermasiana.
Tanto para o educador quanto para o educando devem ficar evidentes os pressupostos de
suas ações. O conhecimento – a informação – não pode se desconectar da formação, sob
o risco de que graves erros ou distorções ocorram. O educar não deve focar apenas o como,
mas, sobretudo, o para quê. As mediações – dentre elas, a tecnologia – não devem ser
desconectadas de suas finalidades. E isso é um imperativo ético, pois, perdida a visão dos
fins, a contemplação dos meios pode obscurecer tudo o mais, com bem salientara Adorno:

Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia


individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação
racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem
projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com maior
rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz.
(ADORNO, 2000, p. 133, grifos nossos).

O imperativo de atender às expectativas dos alunos e familiares e,


concomitantemente, às exigências da sociedade, oferece um amplo espaço para discussão.
O foco de discussão que mais vai ao encontro do interesse em questão, porém, retoma
88

os argumentos das seções anteriores, posicionando-se ante os mesmos de forma crítica:


reduzir as instituições de ensino a uma instituição meramente subsidiária do sistema,
formando e fornecendo a mão de obra necessária, com elevada qualidade técnica (ainda
que nem sempre utilizável) ou tornar as instituições de ensino uma instituição
transformadora e formadora de sujeitos pensantes, sim, mas, sobretudo, solidários e
éticos? Ou, ainda melhor, com ambas as missões?
No primeiro caso, as instituições de ensino assumiriam o perfil de uma instituição
reprodutora, uma empresa entre outras empresas, deixando de lado o aspecto fundamental
de que a matéria-prima com a qual se envolve é o ser humano, devotando-se a resultados,
maximização de lucros, rentabilidade de investimentos, capacitação tecnológica...
No segundo caso, as instituições de ensino passariam a assumir um papel de
formadoras de pessoas, sujeitos críticos, pensantes, transformadores, autônomos e,
principalmente, éticos. E a partir desse alicerce, tais pessoas passariam a gerenciar seus
conhecimentos, a informação, a tecnologia. Quer dizer, a partir do alcance e realização do
segundo objetivo, poder-se-ia dar um sentido mais socialmente justo ao primeiro, além de
facultar ao sujeito uma maior possibilidade de se integrar competentemente na sociedade
onde se encontra.
Apenas atender às expectativas de alunos e familiares nem sempre significa um
trabalho de qualidade humana, pois que os valores alimentados por aqueles – não raro
forjados pela mentalidade consumista – podem dizer respeito ao sucesso (entendido
como reconhecimento social, lucros econômicos, status...) individualista, egoístico,
à revelia dos demais (e, às vezes, justamente à custa dos demais). Por outro lado, atender
às solicitações da sociedade implica em uma reflexão sobre a sociedade que aí está e
o que ela provoca (de benefícios e malefícios), e uma proposição de uma sociedade que
se deseja (com o implemento de benefícios e a redução dos malefícios).
Ainda não há estudos suficientes, ou mesmo passíveis de realização, a respeito
dos impactos da pandemia sobre a vida em um período pós-pandemia, pois ainda
estamos vivenciando a pandemia. Assim, ilações sobre o período pós-pandemia se
caracterizam tão somente como ilações, possibilidades. Não obstante isso, o cotidiano
nos brinda com ações e atitudes que demonstram que algumas pessoas, mormente
quando detentoras de maior poder aquisitivo, revestidas da alcunha de influenciadores,
celebridades ou coisa que o valha, não se pautam pela solidariedade: em meio a centenas
Pandemia do coronavírus – 89

de milhares de mortos, pessoas promovem festas, desrespeitam normas e orientações


preventivas, afrontam protocolos. Ao mesmo tempo que se observam demonstrações de
solidariedade, constatam-se ações egoístas. O vírus permitiu às pessoas mostrarem o que
têm de melhor e de pior. Então, qual será o saldo – positivo ou negativo – quando o pior
da pandemia passar?. O abismo escolar, que separa os mais bem preparados e os mal
preparados, se tornará mais amplo?
Concluímos este tópico recorrendo a Souza (2020, p. 112, grifos nossos):

A pandemia impôs grandes desafios para professores e estudantes, em especial,


na educação básica. Como manter os vínculos com os alunos sem estar no
mesmo espaço físico? Como utilizar as tecnologias da informação e comunicação
(TIC) para aprender e ensinar? Como utilizar estas tecnologias digitais em rede
na educação em um país tão desigual quando o assunto é acesso à internet
e conexão de qualidade? Estas são perguntas que nos inquietam e nos fazem
pensar sobre novas educações (PRETTO, 2005), ou seja, outras possibilidades
que possam superar o modelo tradicional, bancário (FREIRE, 2011) de educação.

Pós-pandemia, “novo normal” e “nova qualidade” da educação

O que pudemos constatar, ao longo do artigo, foram os impactos, mais negativos


que positivos, causados pela pandemia à educação, em todos os seus níveis e em todos os
países. Não obstante esses impactos, a pandemia desvelou, ainda, as desigualdades entre
os estudantes dos vários países e instituições, o que se verificou, justamente, no acesso e
uso das NTDICs, de modo mais específico, o acesso domiciliar à internet estável e com
adequado fluxo de dados.

Apesar das TIC já fazerem parte, direta ou indiretamente, da rotina das escolas
e da realidade de muitos professores e estudantes, a utilização delas no período
de pandemia, para substituir os encontros presenciais, tem encontrado vários
desafios, entre eles: a infraestrutura das casas de professores e estudantes;
as tecnologias utilizadas; o acesso (ou a falta dele) dos estudantes à internet;
a formação dos professores para planejar e executar atividades online.
(SOUZA, 2020, p. 112).

Sob esse aspecto, pois, a qualidade da educação já poderia ser considerada


comprometida ou ruim. Entretanto, não é este, segundo a orientação de nossa reflexão,
o horizonte pelo qual se propõe, aqui, discutir uma nova qualidade, para um novo normal
pós-pandemia.
Como uma reflexão final, podemos argumentar que o “novo normal” pós-pandemia
exige uma nova qualidade da educação. Essa nova qualidade, contudo, não se caracterizaria
pela contínua inovação tecnológica que é necessária, porém não suficiente. O que se
90

pode constatar, na verdade, orienta para a revalorização dos sujeitos envolvidos no


processo educativo. Afinal, “[se] no Ensino presencial o papel do professor é fundamental,
no Ensino remoto isso, provavelmente, também seria o caso, desde que este tivesse
familiaridade com tecnologias e técnicas eficazes de Ensino a distância” (OLIVEIRA; GOMES,
BARCELLOS, 2020, p. 562, grifos nossos).
O diferencial da qualidade, quando referida à educação, consiste, justamente,
em que o indivíduo que esteja participando do processo educativo, docente ou discente,
gestor ou familiar, vá se assumindo como sujeito consciente, livre, responsável e
corresponsável (ou seja, responsável também pelo outro), interagindo solidária,
democrática e simetricamente (pautando-se por um respeito mútuo, que respeita os
outros como iguais) com os demais sujeitos.

Qualidade é, assim, questão de competência humana. Implica consciência crítica


e capacidade de ação, saber & mudar [sic]. Diante da sociedade, pode ser
resumida em dois desafios principais: o construtivo e o participativo.
O desafio construtivo aponta para a capacidade de iniciativa, autogestão,
proposta. Realça a condição de sujeito histórico capaz, que não se deixa levar,
mas busca comandar, com autonomia e criatividade, o processo de
desenvolvimento. [...]
O desafio participativo aponta para a capacidade de inovar para o bem comum,
tendo como objetivo uma sociedade marcada por paz, democracia, eqüidade
[sic] e riqueza. A melhor expressão da qualidade é participação [...] (DEMO, 1996,
p. 19s, itálicos do autor).

O referencial para a educação exigida no período pós-pandemia, portanto, é o da


humanização do processo de ensino, o que envolve os atores institucionais e os diversos
sujeitos coparticipantes (familiares e comunidade educativa ampliada) do processo
educacional, que é mais amplo que o processo de ensino. A escola ou faculdade não é
um microcosmo isolado, mesmo que não seja uma instituição reprodutora da sociedade
que a envolve. Aliás, não se deveria mais se colocar em discussão se a instituição escolar
é reprodutora ou transformadora da sociedade. Todavia, a necessidade de novas redes
de solidariedade demonstra que a qualidade necessária em uma instituição de educa ção
vai além do conhecimento e da competência no uso das NTDICs: faz-se necessária
uma instituição educacional com acentuado perfil humanista, com uma qualidade
humana e política, formadora de cidadã e cidadãos autônomos e aptos a uma vivência
democrática, solidária.
Pandemia do coronavírus – 91

A qualidade exigida para o período pós-pandemia, o “novo normal” resgata o ideal


democrático de uma proposta de educação jamais ou raríssimas vezes alcançada e
vivenciada em sua plenitude. Algo já sugerido no famoso e sempre retomado Manifesto
dos pioneiros da educação nova:

Toda a educação varia sempre em função de uma “concepção de vida”,


refletindo, em cada época, a filosofia predominante que é determinada, a seu
turno, pela estrutura da sociedade. É evidente que as diferentes camadas
e grupos (classes) de uma sociedade dada terão respectivas opiniões diferentes
sobre a “concepção do mundo” que convém fazer adotar ao educando e sobre
o que é necessário considerar como “qualidade socialmente útil”.
[...] a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional
e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e
verbalista, montada para uma concepção vencida.
[...] a educação nova que, certamente pragmática, se propõe ao fim de servir não
aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo, e que se funda sobre
o princípio da vinculação da escola com o meio social, tem o seu ideal
condicionado pela vida social atual, mas profundamente humano, de
solidariedade, de serviço social e cooperação. (VÁRIOS, 1984, p. 410-411).

A nova qualidade da educação, pois, voltada para a construção de uma nova


concepção de mundo e de vida pós-pandemia, emerge como o resgate de uma proposta
de educação (e de qualidade da educação) que nunca deveria deixar de ter sido a prática
educativa: uma prática fundada em valores humanos, caracterizada pela qualidade
humana, valorizando e destacando o papel humano e humanizador da educação e dos
sujeitos nela envolvidos.
Essa valorização do humano para uma renovada qualidade da educação encontra
apoio, certamente, em algumas metodologias inovadoras (embora nem sempre
metodologias novas) e em usos igualmente inovadores e disruptivos das tecnologias
aplicadas à educação: o inovador é a forma de apropriação e uso, a perspectiva sob a qual
se colocam e as novas finalidades que se propõem. Por isso, a importância da formação
continuada e da capacitação docente para o uso de novas tecnologias e metodologias,
como é o caso das Metodologias Ativas.
Algumas das Metodologias Ativas baseiam-se na partilha de saberes entre os pares,
de modo igualitário, baseado em um respeito mútuo. Metodologias como a Aprendizagem
pelos pares, monitorias, Aprendizagem por projetos, Aprendizagem por problemas, podem
ser levadas a efeito em duplas ou em grupos, estimulando a partilha de experiências e a
convivência e respeito com o outro, com a diversidade. As metodologias, bem como as
tecnologias que deverão amenizar as consequências produzidas pela pandemia (dentre
92

as quais os longos períodos de interrupção das aulas presenciais), devem ser selecionadas
e implementadas a partir de uma atuação bastante organizada e adequadamente
planejada, sobretudo nas séries do Ensino Fundamental.

Diante do contexto educacional do país, as saídas mais solidamente


fundamentadas na literatura incluem, em primeiro lugar, um diagnóstico dos
alunos como base para a retomada dos programas de Ensino. E, a partir daí,
intervenções robustas e promissoras que incluem, do lado pedagógico,
o Ensino estruturado, o uso de métodos adequados de alfabetização, o uso
estratégico dos deveres de casa e de programas de leitura. O melhor uso do
tempo consiste na redução do absenteísmo e, para os alunos com mais
dificuldade, programas intensivos de tutoria em pequenos grupos. (OLIVEIRA;
GOMES; BARCELLOS, 2020, p. 566).

As imprescindíveis medidas e os processos interventivos têm como pano de fundo


a pessoa; afinal, dentro de instituições educacionais, cuja matéria-prima é a pessoa e cujos
produtos são, igualmente, pessoas, não se pode descurar o fato de que a implementação
da razão de existir das mesmas instituições – sua missão – está intrinsecamente vinculada
às relações tecidas entre todos os agentes que participam do processo educativo. Esse
diferencial vai colocar exigências singulares à instituição educacional e, sobretudo, aos seus
agentes, especialmente aqueles que assumem a tarefa de consecução das atividades-fim,
que culminam no ensino-aprendizagem qualificado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia e suas consequências educacionais têm evidenciado a necessidade de


um repensar sobre a qualidade do ensino enquanto vinculada apenas aos insumos e,
mesmo, inserção de tecnologias nas escolas, quando as mesmas estão desvinculadas de
uma preocupação maior, que vai ao encontro do que denominamos “qualidade
diferenciada”. Tal qualidade, revestida de um princípio humano, humanizante e
humanizador, é um desafio constante para aqueles sujeitos que atuam nas instituições
educacionais. Isso significa que, mais que o exigido em outras profissões, a docência cobra
do profissional uma formação e uma dedicação extrema, pois o “outro” de seu trabalho
não é apenas um ser inanimado, mas uma pessoa. E aí o grande desafio: os resultados dessa
relação não podem ser determinados de antemão, mesmo que os fins da instituição onde
essa relação se dá assim o exijam. Essa exigência a mais conduz o profissional da educação,
se não encontra reconhecimento e apoio em um modelo humanitário de gestão, pode
conduzir a um quadro desesperador.
Pandemia do coronavírus – 93

Codo e Vasques-Menezes (2000), ao discutirem o problema da saúde psíquica dos


educadores (a síndrome do Burnout), ressaltam que na relação educativa o produto é o
outro; portanto, não existe um produto, no sentido estrito do termo, mas a participação
em um processo histórico cujo resultado depende dos concernidos e, não apenas,
da vontade ou dos propósitos de um dos envolvidos. Esse trabalho vai invocar um elemento
imprescindível para o alcance de seus resultados, mas um elemento alheio à simples
vontade profissional: o afeto. Mas o afeto, se é um elemento central do trabalho educativo,
também é um elemento inegociável e não exigível desse mesmo trabalho, como destaca
Adorno (2000, p. 135):

[...] O amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas,


como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo
direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas.
O incentivo ao amor – provavelmente na forma mais imperativa, de um dever
– constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza.

Acreditamos que a discussão a respeito da qualidade na educação e a qualidade da


educação no período pós-pandemia passa, necessariamente, por esse viés: a qualidade das
relações tecidas no interior da comunidade educativa e da comunidade educativa
(a instituição de ensino) com seu entorno social. O critério de avaliação e de validação da
qualidade de uma instituição de ensino será, justamente, o desempenho socialmente
competente dos membros ou dos egressos de uma determinada instituição, e não
meramente o sucesso, sobretudo se medido em termos econômicos e/ou financeiros.
Se uma instituição educacional não for capaz de formar ética e politicamente aqueles que
recorrem a ela, se não for capaz de formar sujeitos autônomos, participativos,
democráticos, justos e solidários, pautando seu agir por normas morais, essa instituição
pode até formar bons profissionais e gerar lucros, mas não terá cumprido sua principal
missão: formar cidadãos, preparar para a vida – o que a pandemia demonstrou serem
objetivos também muito necessários.
A qualidade diferenciada, plena, que forja a educação integral, que instaura a
verdadeira formação de qualidade envereda pela qualidade socialmente relevante,
política, caracterizada pelo agir comprometido com a ética, que leva ao reconhecimento
do “outro como um si mesmo” e de “si-mesmo como um outro”, diria Ricoeur (1991).
Será que foi preciso uma pandemia para que tal perspectiva se impusesse?
94

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei 9.364, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

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Saúde no Trabalho (INST); Central Única dos Trabalhadores (CUT), 2000.

DEMING, W. E. Qualidade: a revolução da administração. Rio de Janeiro: Saraiva, 1990.

DEMO, P. Educação e qualidade. 3. ed. Campinas, SP: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho
Pedagógico).

DEMO, P. Educação e qualidade. 12. ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.

FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. Educação escolar em tempo de pandemia: Informe nº 1. Disponível em:
https://www.fcc.org.br/fcc/educacao-pesquisa/educacao-escolar-em-tempos-de-pandemia-informe-n-1.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO); INSTITUTO
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Pandemia do coronavírus – 95

C A P Í T U L O 7
_____________

REFLEXÕES SOBRE CENÁRIOS SOCIAIS E ECONÔMICOS


NO PERÍODO PÓS-PANDEMIA COVID-19

Edilene Mayumi Murashita Takenaka12

INTRODUÇÃO

O cenário atual apresenta um período conturbado: a pandemia ocasionada pelo


coronavírus (Covid-19), impacta o mundo significativamente e ainda não há uma dimensão
completa de suas repercussões ou consequências. Neste exato momento, há a necessidade
de profundas reflexões acerca dos impactos das ações adotadas e “o quê” esperar de um
futuro pós-pandemia.
Eventos como o I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável
propiciam a troca de conhecimento entre diversos profissionais envolvidos em uma
discussão produtiva sobre o tema e permite a disseminação de seus resultados entre
acadêmicos, pesquisadores e sociedade em geral.
Afirmo ser um privilégio participar da presente obra e agradeço o convite da
Comissão Organizadora. Fico muito feliz e sinto-me agraciada sempre que tenho a
oportunidade de falar um pouco sobre assuntos que trazem a necessidade de refletir sobre
a realidade do mundo atual a partir dos desdobramentos vivenciados no dia a dia.
Acredito ser esta uma das melhores formas de expressar ideias, trocar
conhecimentos, ampliar redes de contato e nisso o momento atual é muito propício dado
o uso da tecnologia. Prova é a realização de um evento internacional que integra pessoas
do mundo todo em um ambiente virtual.
Assim sendo, o eixo temático escolhido para a reflexão foi: Desafios Sociais e
Econômicos da Pós-Pandemia.

12
Economista, doutora em Geografia, coordenadora do Curso Superior de Tecnologia em Gestão
Empresarial/Fatec, Presidente Prudente, São Paulo. E-mail: edilene.takenaka@fatec.sp.gov.br
96

Há muitas dúvidas em comum entre as pessoas e as perguntas giram em torno de:


“O que vai acontecer?”, “O que nos aguarda no período pós-pandemia Covid-19?”
Existem várias situações que podemos ponderar, mas, antes de tudo, o ideal
é entender que tais questionamentos trazem a necessidade de compreender “o que”
aconteceu para, posteriormente, refletir sobre “o que” nos aguarda nesse futuro
pós pandêmico.

Um pouco sobre o passado

O século XX apresentou um cenário de enormes avanços para a humanidade:


inovações e avanços tecnológicos e grandes conquistas da civilização em âmbitos
econômico-político e sociais.
Frente a melhorias antes impensadas como a lâmpada, o automóvel, o telefone,
a invenção da penicilina, a teoria da relatividade, a realização do primeiro transplante
de coração, a descoberta da estrutura do DNA, o surgimento da energia nuclear, o motor
a jato, a fibra ótica, o computador, a internet, tudo levava a crer em uma conotação
futurista otimizada dada as várias possibilidades de utilização desses avanços.
Afinal, a humanidade enfrentou e superou a ocorrência de duas guerras mundiais
e o flagelo de moléstias altamente contagiosas como a tuberculose e a AIDS, dado o
desenvolvimento de estudos e pesquisas realizadas ao longo do século XX que culminaram
em grandes descobertas e inovações em áreas diversas como física, medicina e tecnologia,
entre outras.
Dessa forma, o nascer do século XXI pressupunha mudanças nos âmbitos soci ais,
culturais, tecnológicos, políticos e econômicos passíveis de reorganizar a vida da
população mundial que agora, supostamente, se encontra mais sábia, mais resiliente
e mais tecnológica.

Acontecimentos durante a pandemia Covid-19

No mundo todo e, em um enfoque especial, no Brasil acreditava-se que


estávamos meio aptos a enfrentar situações diversas a partir da facilidade com que o
conhecimento adquirido favorecia a integração entre os povos, marcado pelos avanços
tecnológicos conquistados.
Pandemia do coronavírus – 97

Eis que, em fins de 2019, a humanidade passa a ter sua rotina impactada pela
propagação de um vírus que chama a atenção pela velocidade de disseminação e números
alarmantes de infectados e de óbitos registrados.
Deflagrada pelo novo coronavírus que apresentou o primeiro caso confirmado
na China em fins de 2019 e alastrou-se rapidamente por cinco continentes, a pandemia da
Covid-19 mostrou-se preocupante dada a alta velocidade de disseminação e, apesar dos
esforços da comunidade científica, o conhecimento sobre o SARS-CoV-2 ainda é ínfimo,
gerando incertezas quanto ao seu enfrentamento.
Reforça-se, assim, uma característica cruel de um vírus: um vírus não reconhece
e não obedece a limites territoriais ignorando fronteiras; um vírus de espalha obedecendo
à própria lógica de sua existência.
Dessa forma, combater a ameaça que o novo coronavírus representa para a
humanidade exige uma ação global, sem dispensar medidas a serem adotadas em âmbito
local e respeitando as particularidades de cada país.
Melhor dizendo, cada país dentro de sua realidade, dentro de sua capacidade passa
a adotar medidas específicas para buscar combater a propagação do novo coronavírus.
Mesmo após um ano de pandemia, enfrentam-se ainda controvérsias sobre
os procedimentos a serem adotados, e como agravante surgem novas mutações do vírus
e as vacinas para buscar a imunização da população surgem em um ritmo lento devido
a vários transtornos que incluem a questão da obtenção de insumos, matérias-primas e o
próprio conhecimento tecnológico e capacidade de produção em quantidade para atender
à demanda mundial.
Neste contexto, a sociedade como um todo passa a ter a necessidade de buscar
novas referências relacionadas ao convívio em coletividade como, por exemplo,
o distanciamento social na tentativa de conter a propagação do vírus e, junto a tais
cuidados, faz-se necessário pensar em questões como higiene e equipamentos de proteção
e segurança.
Como consequência, em nível global, houve uma contração em atividades tanto
produtivas quanto de consumo, principalmente naquelas atividades que ocorrem de forma
coletiva, ocasionando um congelamento parcial da oferta e a contenção da demanda global
afetando todas as economias.
98

Retrato de um Brasil em meio à pandemia Covid-19

O Brasil, de dimensões continentais com mais de 200 milhões de habitantes,


considerado um país em desenvolvimento entre os 10 maiores PIB (Produto Interno Bruto)
do mundo, semelhante a outros países do globo, não estava preparado para enfrentar o
“novo” coronavírus.
Como em tantos outros países, o Brasil precisou adaptar-se a essa nova realidade
na busca por um efetivo conjunto de procedimentos capaz de coibir a transmissão
do vírus enquanto, ao mesmo tempo, buscava formas de combater e salvar as vidas por
ele contaminado.
Desde o mês de março de 2020, no Brasil como um todo e mais precisamente
no Estado de São Paulo, ações estratégicas de isolamento social têm sido adotadas de
forma contundente, e para garantir que sejam acatadas Estados e municípios fazem uso
de fiscalização e aplicação de penalizações para aqueles que desobedecerem às
recomendações impostas.
Ao longo dos meses, uma série de abordagens mais restritivas ligadas ao “isolamento
vertical e isolamento horizontal” foram adotadas na tentativa de limitar o processo
de transmissão do vírus entre a população: suspensão de atividades escolares, restrição
ao funcionamento de atividades do comércio e prestação de serviços, cancelamento de
eventos, controle do consumo de bebidas alcoólicas, uso obrigatório de máscaras,
recomendação para redução de circulação e aglomeração de pessoas, entre outras.
Em um primeiro momento, temendo a escassez de mercadorias, as pessoas correram
para fazer estoques de gêneros alimentícios e produtos de higiene e o resultado trouxe
uma situação preocupante, pois ocorreu a inevitável elevação no preço dos produtos ligados
a esses setores evidenciando uma antiga lei de mercado: demanda alta por determinada
mercadoria sem que haja oferta suficiente para atender ao mercado leva a um aumento
em seu preço.
Para enfrentar a pandemia a partir dos cuidados de contenção, do isolamento,
da quebra do sistema produtivo em algumas etapas, muitas empresas iniciaram um processo
de redução de suas atividades produtivas e, consequentemente, isso levou à redução de
seu quadro de funcionários.
Pandemia do coronavírus – 99

Empresários, prestadores de serviços, profissionais liberais e autônomos


encontraram-se desnorteados frente às restrições impostas ao funcionamento dos
mercados em que, apenas as atividades consideradas essenciais puderam ser oferecidas
obedecendo a rígidos critérios de funcionamento.
O governo brasileiro tem oferecido ajuda à população através de programas
específicos como o Auxílio Emergencial que, espera-se, seja suficiente para garantir a
manutenção das empresas e das pessoas que perderam suas fontes de renda durante
o período que durar a pandemia.
A população em geral, mesmo privada do trabalho, de sua fonte de renda e de sua
sociabilidade, acatou as abordagens mais restritivas ligadas ao isolamento social. Entretanto,
pode-se afirmar que as medidas adotadas para combater a propagação do vírus trouxeram
repercussões econômicas, sociais e psicológicas ligadas à redução da obtenção de renda
nas famílias e ao sentimento de angústia frente a um inimigo invisível tão perigoso.

Mudanças profundas em curto espaço de tempo

Importante reforçar que hoje, maio de 2021, a humanidade precisa enfrentar


o fato de que o vírus conhecido por Covid-19 gerador da pandemia – dessa celeuma
mundial, não vai desaparecer. A humanidade será forçada a conviver com sua existência.
Em outras palavras, a pandemia do Covid-19 trouxe a necessidade de mudanças
e forçou adaptações rapidamente, normativas foram criadas para buscar aprender sobre
algo ainda desconhecido e, mesmo após um ano de seu desencadeamento, ainda não
temos total conhecimento sobre esse vírus.
Contudo, é impossível negar que nossas vidas não tenham mudado durante o ano
que passou: “Nossas vidas mudaram muito, nossas rotinas foram alteradas de forma
rápida, muito rápida”.
Isso não significa que tais mudanças nunca iriam acontecer, significa que iriam
acontecer de forma mais lenta e gradual. Mudanças que levariam décadas para serem
implementadas ocorreram em questão de meses.
A atividade de comércio, por exemplo, passa a utilizar programas e aplicativos
para oferecer seus produtos ao mercado consumidor e a entrega do produto, realizada
por um sistema logístico. Em outras palavras, a loja física em que o consumidor manuseia
a mercadoria e conversa com o vendedor frente a frente passa por um processo
de migração para a loja virtual em uma plataforma de comércio on-line.
100

A transição de uma loja física para uma loja virtual encontrava-se nos planos do
empresariado mesmo antes da pandemia, mas ocorreria de forma gradual. Entretanto, a
necessidade de manter suas atividades comerciais e produtivas fez com que o empresariado
adequasse rapidamente suas empresas a essa nova realidade.
Enfim, a pandemia acelerou o ritmo das mudanças em curso e tais mudanças hoje
passam a fazer parte de nossa rotina.

Desenho de novos cenários

O prolongamento do período pandêmico por mais de um ano traz a seguinte questão:


“Quais cenários seriam mais prováveis em um futuro pós-pandemia?”
Pode-se afirmar que os cenários mais prováveis são aqueles que despontaram
no decorrer do último ano e estão cada vez mais presentes no dia a dia:
– O trabalho remoto, antes uma realidade para pequena parcela de trabalhadores,
tende a aumentar devido às empresas entenderem a premência de adequação a esse novo
modelo. Considerar que o trabalho remoto evita a necessidade de estar em espaços com
grande aglomeração como ônibus/metrôs e promove mudanças dentro da própria empresa
que pode se organizar em ambientes menores além de aventar para a redução
de custos como o consumo de água e energia elétrica;
– O home office ou trabalho remoto também pode ser adotado de forma híbrida em
que os funcionários obedecem a uma escala revezando sua presença física nas instalações
da empresa e de forma remota. Algumas empresas encontram nessa modalidade uma
possível forma de evitar a concentração de pessoas no ambiente de trabalho físico;
– O desamparo e o aumento do desemprego, durante o isolamento social torna
indispensável discutir a organização do trabalho no Brasil, ou seja, torna-se primordial
repensar a flexibilidade nas relações de trabalho;
– A educação a distância, assim como o trabalho remoto, tende a ganhar um espaço
maior na rotina da população;
– A educação presencial que durante o período de isolamento social, adotou
o ensino remoto de forma síncrona, vislumbra a possibilidade de um retorno às aulas
presenciais de forma híbrida;
Pandemia do coronavírus – 101

– A pandemia acirrou os sentimentos de medo e de ansiedade entre a população


estimulando novos hábitos como: cuidados com a saúde e o bem-estar em casa,
no ambiente de trabalho, nas escolas, estendendo-se aos locais públicos, especialmente
os ambientes fechados, uma vez que o receio de locais com aglomeração de pessoas
deve permanecer;
– O consumidor, dada a crise financeira, ao fechamento de empresas, à redução
de postos de trabalho e de fontes de renda, passa a refletir sobre formas de consumo.
O consumidor passa a repensar sobre seus gastos na busca por economizar seus recursos
e, para isso, passa a rever seus hábitos de consumo;
– O consumidor apresenta-se cauteloso elegendo prioridades para consumo
e torna-se mais digital ao utilizar as plataformas de comércio on-line;
– A população em geral demonstra ter simpatia por produtos que representem
empresas preocupadas com a sustentabilidade ambiental e responsáveis do ponto de
vista social;
– Os empresários devem considerar o surgimento de um consumidor mais
exigente, cauteloso e digital, além de atentar-se às tendências de sustentabilidade
e responsabilidade social para manter a competitividade no mercado.

Ponderação: A crise financeira gerada pela pandemia tem prazo para acabar?

As pessoas costumam perguntar a um economista:


“Quanto tempo pode durar a crise econômica decorrente da pandemia?”
A resposta para essa pergunta depende de uma série de fatores como:
– o tempo dispendido até que ocorra a imunização em massa;
– a intensidade do impacto das medidas adotadas no combate ao vírus SARS-CoV-2,
pois, durante esse período, a economia pode passar por períodos de retorno às atividades
produtivas e períodos de estagnação;
– a capacidade de gestão e emprego dos recursos produtivos existentes nos meses
vindouros. A adequada utilização de tais recursos pode amenizar os impactos negativos
deixados pela pandemia da Covid-19;
– outros pontos a considerar são: a renda média da população, a manutenção e
o crescimento das oportunidades de trabalho e a retomada de setores produtivos como
um todo.
A combinação desses e de outros fatores é que vai determinar o ritmo da
recuperação econômica.
102

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os acontecimentos envolvendo o SARS-CoV-2 e a pandemia que se seguiu são muito


recentes. As repercussões positivas e negativas, sentidas ou posicionadas, os fatos
ocorridos ou previstos, ainda merecem muita contemplação, análise, ponderação e estudo.
Em um curto espaço de tempo, as transformações impostas ao mercado e à
população foram assimiladas em grande parte devido à necessidade de reinventar relações
sociais, comerciais, produtivas, de prestação de serviços e de consumo.
Para muitos, o que passamos a chamar como “novo normal” é uma maneira de
vivenciar as transformações que se fizeram prementes para o enfrentamento da pandemia
ocasionada pela Covid-19.

REFERÊNCIAS DE APOIO

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FUKUYAMA, F. The end of history and the last man. New York: Free Press, 1992.

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SOARES, B. R. II Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas


e Territoriais. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/confest_e_confege/pesquisa_trabalhos/arquivosPDF/M593_01.pdf. Acesso em:
19 dez. 2020.

WERNECK, G. L.; CARVALHO, M. S. A pandemia de Covid-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária
anunciada. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, maio 2020. Disponível em:
http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/1678-4464-csp-36-05-e00068820.pdf. Acesso em:
19 dez. 2020.
Pandemia do coronavírus – 103

C A P Í T U L O 8
_____________

IMPACTO DA COVID-19
NA GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS

Alba Regina Azevedo Arana13

INTRODUÇÃO

Gostaria de agradecer ao convite feito pela Associação Amigos da Natureza da Alta


Paulista (ANAP), Tupã, e a Faculdade de Ciências e Engenharia – Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCE/UNESP), campus de Tupã, São Paulo, para
participar como palestrante do I Congresso Latino-americano de Desenvolvimento
Sustentável que este ano (2021) tem como objetivo realizar uma discussão sobre os
impactos da pandemia – Covid-19 na gestão dos territórios.
A atual pandemia muda o comportamento e padrão da geração de resíduos sólidos
urbanos (RSU) no Brasil e no mundo. Houve um aumento do resíduo hospitalar e urbano
de forma geral no mundo. Contudo, no Brasil houve uma retração dos resíduos urbanos
e da coleta seletiva. Ainda estamos diante de um novo risco ambiental e de saúde,
especialmente para os trabalhadores e catadores de resíduos urbanos.
A partir do dia 20 de março, quando o Senado Federal decretou calamidade pública
no Brasil em função da Covid-19, foi instituído o isolamento social com a suspensão
temporária das atividades comerciais, educação, lazer, setor industrial, prestação de
serviços limitada, entre outras.
Nesse período houve uma alteração radical no comportamento da população
brasileira quanto ao consumo, os trabalhadores realizaram parte de suas atividades
em home office e a circulação de pessoas foi reduzida nos transportes públicos e nas ruas.

13
Professora do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Meio Ambiente e Desenvolvimento
Regional (PPGMADRE) da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), campus Presidente Prudente,
São Paulo. Brasil. E-mail: alba@unoeste.br
104

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da Fundação Getúlio


Vargas, esse isolamento com a suspensão de atividades provocou uma queda de até 15%
na massa salarial dos trabalhadores. Comparando os números do ano de 2018, segundo
levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a balança
de emprego no país contabilizou o número de 10 milhões de pessoas desempregadas,
ao passo que no primeiro trimestre do ano de 2020 este número aumentou em mais de
30%, registrando 13 milhões de desempregados (AVENI, 2020).
Alguns estudos mostram também que na maioria dos países durante o período de
emergência sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, o isolamento social e a prática
do home office levaram a um aumento intenso na geração de resíduos domiciliares,
orgânicos e inorgânicos (ZAMBRANO-MONSERRATE; RUANO; SANCHEZ-ALCALDE, 2020).
No início da pandemia, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública
e Resíduos Especiais (ABRELPE) apontou um aumento da produção de Resíduos
Domiciliares (RDO) entre 15-25%, justamente por conta do aumento das compras on-line,
do tipo delivery e das medidas de isolamento social adotadas em todo o Brasil. Ainda temos
o fato de que o governo federal, com o pagamento do auxílio emergencial, tenha
propiciado um aumento de consumo nas populações de baixa renda no Brasil. Isso pode
ser comprovado pelo aumento da coleta seletiva apresentado na Figura 1.

Figura 1 – Comparação da coleta seletiva

Fonte: ABRELPE, 2020.


Pandemia do coronavírus – 105

Outra problemática relacionada à coleta seletiva foi com relação à gestão de RSU
que emergiu com o início da pandemia, alguns Estados e cidades brasileiras tiveram este tipo
de serviço suspenso, seguindo as Recomendações para Gestão de Resíduos em Situação
de Pandemia por Coronavírus (Covid-19) propostas pela Associação Brasileira de
Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) por conta dos riscos de contaminação sofridos pelos
profissionais e cooperativas que fazem a triagem de resíduos. Porém, ressalta a importância
da manutenção e intensificação da coleta convencional e limpeza dos locais públicos para
evitar o espalhamento de contaminantes (ABES, 2020).
Na Malásia, apenas nos primeiros dias de quarentena, a geração de resíduos sólidos
domiciliares aumentou de 20 a 30%. Apesar disso, o relatório aborda que a geração
foi compensada pela redução da geração dos resíduos sólidos em áreas comerciais
(WMAM, 2020).
Na Bélgica, Portugal, Estônia e Finlândia, a geração elevada promoveu acúmulo dos
resíduos sólidos nos coletores públicos e nas unidades de triagem e reciclagem (ESTONIA,
2020; FINLAND, 2020). No Brasil, Grécia e Luxemburgo suspenderam a coleta de
determinados resíduos sólidos urbanos, como resíduos recicláveis durante alguns meses
na pandemia (ABES, 2020; VLAAMSE, 2020; WALLONIE, 2020). Na Inglaterra, a coleta dos
resíduos sólidos urbanos era feita apenas nas residências que comprovassem os resultados
dos testes para Covid-19 negativos ou após 72 horas de armazenamento dos resíduos sólidos
potencialmente contaminados (ENGLAND, 2020).
As medidas sobre o descarte adequado dos resíduos sólidos na pandemia do Covid-
19 são imprescindíveis para garantir que o vírus não se espalhe ainda mais, não sofra
mutações ao se adaptar as novas condições ambientais e se mantenha ativo por um período
maior de tempo (ABES, 2020).
Contudo, em abril de 2020, segundo os dados apresentados pela Abrelpe, e pela
Associação Internacional de Resíduos Sólidos no Brasil (ISWA, 2020) a geração de resíduos
domiciliares (RD) caiu 7,25%, comparando com o mesmo período do ano passado (2019).
Uma razão para essa diminuição seria o atual cenário do Brasil de instabilidade
e retração econômica, gerando incertezas e contenção por parte dos consumidores. Outro
fator relevante foi a redução das atividades econômicas, pois com o lockdown, que tinha
106

como objetivo impedir o fluxo de pessoas e conter o vírus, muitas atividades e trabalhadores
se impossibilitaram de produzirem, havendo queda da procura de produtos e serviços,
redução do consumo e da geração de resíduos.
A Abrelpe, em 2018, aponta que quantidade de RSU gerado chegou ao total de 79
milhões de toneladas, representando um aumento de pouco menos de 1% em relação
ao ano anterior. Para 2020, a geração de RSU permaneceu quase a mesma (79, 6 milhões
de toneladas), onde somente a produção de plásticos descartados chegou a 13,35
milhões de toneladas.
Ainda segundo a Abrelpe, estima-se que por conta das medidas de quarentena,
isolamento e distanciamento social adotadas haverá um aumento relevante na
quantidade gerada de resíduos sólidos domiciliares (15-25%) e um crescimento bastante
considerável na geração de resíduos hospitalares em unidades de atendimento à saúde
(10 a 20 vezes).
Já em Wuhan, na China, estima-se que o volume de lixo hospitalar aumentou
de 40 para 240 toneladas por dia no auge da epidemia, de acordo com o South China
Morning Post (2020). As instalações de processamento de resíduos médicos em
29 cidades estavam na capacidade total ou quase total (THE WALL STREET JOURNAL, 2020).
As máscaras usadas pelos profissionais de saúde são esterilizadas e enviadas para
o aterro sanitário ou são incineradas. Mas os fabricantes chineses estavam produzindo
116 milhões de máscaras por dia até o final de fevereiro. Ainda não se sabe a rapidez com
que as pessoas têm usado e descartado essas máscaras — que o governo sugere que sejam
usadas em público.
Cerca de 165 bilhões de pacotes são despachados a cada ano nos EUA, e a cartolina
utilizada equivale a aproximadamente 1 bilhão de árvores, informou a Limeloop.
As entregas da Amazon e de kits de refeições, como a Blue Apron, são apenas dois varejistas
eletrônicos que contribuem para o excesso de papelão e plástico.
Houve ainda no isolamento uma nova forma de consumo, as compras on-line,
com a população com medo de sair de casa pelas regras de confinamento. As vendas da
Amazon aumentaram ao ponto de a empresa contratar 100 mil novos funcionários para
atender a demanda. Ainda não conhecemos as consequências deste enorme aumento
dos resíduos de embalagens no mundo. As Nações Unidas preveem que, até 2050, haverá
Pandemia do coronavírus – 107

mais plástico do que peixe no oceano. A pandemia de coronavírus indubitavelmente


acelerará esta tendência, contribuindo para outros problemas – o entupimento de sistemas
de drenagem e a liberação de poluentes, quando queimados.
Com relação aos resíduos gerados no Brasil na atual situação de pandemia pela

Covid-19, o Ministério da Saúde, por meio do Boletim Epidemiológico Nº 02/2020

estabeleceu que esse tipo de resíduo gerado a partir de cuidado com pessoas com
diagnóstico de caso suspeito ou confirmado de Covid-19, deve ser considerado
como categoria A1 (reportado à RDC 222/2018), “uma vez que esse patógeno enquadra-se
como agente biológico Classe 3, seguindo a Classificação de Risco dos Agentes Biológicos,
publicada em 2017, pelo Ministério da Saúde (http://bit.ly/riscobiologico), sendo sua
transmissão de alto risco individual e moderado risco para a comunidade”. (BRASIL, 2020).
Essa posição foi confirmada em publicação recente da Anvisa (Nota Técnica
GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 04/2020, atualizada em 31/03/2020).
Já a lei nº 12.305/2010 que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, classifica
os resíduos segundo a origem de geração, sendo os resíduos domiciliares aqueles originários
de atividades domésticas em residências urbanas e, os resíduos de serviços de saúde que
são gerados nos estabelecimentos de assistência à saúde. (BRASIL, 2010).
Os RSS-Covid-19 gerados pelos casos suspeitos ou confirmados dessa doença
no domicílio são resíduos infectantes, mas embora gerados nos domicílios, devem ser de
responsabilidade do serviço público de limpeza urbana, conforme a Lei nº 11.445, de 2007
(BRASIL, 2010).
O município, sendo o gestor de políticas públicas municipais de saúde e saneamento,
deve estabelecer um protocolo mínimo de apoio e atenção a pacientes com diagnóstico
de caso suspeito ou confirmado de Covid-19, oferecendo orientações básicas aos pacientes,
familiares e cuidadores sobre os cuidados com o paciente durante o período de
isolamento/quarentena, incluindo as ações com os resíduos gerados.
Ainda existe o aspecto de proteção à saúde das pessoas que estão em casa
relacionado às soluções adequadas ao problema relativas à segregação, acondicionamento,
identificação, coleta, armazenamento dos resíduos gerados pelos membros da casa com
diagnóstico de caso suspeito ou confirmado de Covid-19.
108

Dentre as atividades decorrentes da coleta seletiva, o processo de triagem dos


materiais apresenta risco elevado aos trabalhadores que manuseiam resíduos
potencialmente contaminados por períodos mais extensos que nas atividades de coleta
ou transporte. Além disso, o armazenamento dos materiais já triados costuma ocorrer
no mesmo local onde é realizada a triagem, propiciando exposição contínua desses
trabalhadores. Caso os resíduos triados sejam comercializados em período em que o vírus
esteja viável, pode ocorrer disseminação por toda a cadeia de reciclagem, propiciando
a expansão da doença.
Não se deve, em hipótese alguma, praticar reciclagem de resíduos gerados
em espaços utilizados para tratamento da Covid-19, seja em âmbito hospitalar, ambulatorial
ou de isolamento/quarentena em domicílios. Ainda, os RSS-Covid-2019 não devem ser
misturados, em nenhuma etapa de manejo, com os demais resíduos gerados pela família
nos domicílios.
A disposição final de resíduos do tipo RSS-Covid-19 pode ocorrer em aterro sanitário
licenciado pelo órgão ambiental somente após tratamento específico. Deve ser proibida,
via de regra, a disposição de RSS-Covid-19 não previamente tratado em aterro sanitário
ou diretamente no solo.
A gestão de resíduos sólidos envolve o cuidado e com o ambiente e
principalmente o respeito ao próximo. As ações devem se voltar no sentido de se colocar
no lugar do outro, requerendo um olhar mais sensível e humanizado, para que os resíduos
recebam o tratamento adequado, sem colocar em risco os profissionais da catação
(ARAÚJO; SILVA, 2020).

REFERÊNCIAS

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assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (2019-ncov). Disponível
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para prevenção e controle. Disponível em: https://saude.gov.br/o-ministro/918-saude-de-a-
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110

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Pandemia do coronavírus – 111

C A P Í T U L O 9
_____________

GESTÃO E USO DOS RECURSOS HÍDRICOS


NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS:
REFLEXÕES SOBRE O BRASIL

Ana Paula Novais Pires Koga14

INTRODUÇÃO

No ano de 2020, marcado pelo início pandemina de Sars-CoV-2, causador da Covid-


19, o direito ao saneamento e, dessa forma, à água potável, tornou-se latente,
já que entre as ações não medicamentosas para a contenção da pandemia está a higiene das
mãos com água e sabão. Nesse sentido, tal reflexão caminha entre as complexidades que
estão conectadas não só à Geografia das águas no território brasileiro, mas também às
desigualdades sociais e desiguais formas de enfrentamento à pandemia.
Dessa forma, o artigo objetiva abordar a relação entre a gestão e uso dos recursos
hídricos a partir da perspectiva do acesso à água potável e da coleta e tratamento
de esgoto, e como tais análises podem ser problematizadas em um cenário pandêmico como
o atual. Para tanto, o embasamento teórico é pautado em autores que discutem
a temática da água enquanto elemento natural e recurso, conforme Fracalanza (2002),
Venturi (2015) e Pires (2016).
Além disso, o entendimento da gestão hídrica, da qualidade da água bruta e dos
aspectos referentes à água potável para consumo humano, coleta e tratamento de
esgoto, é alicerçado pelos respectivos textos legais, desde a Constituição Federal de 1988,
a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei Federal 14.026/2020, sobre a Agência
Nacional de Águas e Saneamento, assim como as referidas normativas a partir das
Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) para as águas doces.
Além disso, o artigo apresenta um panorama sobre o acesso à água potável e ao

14
Pós-doutora em Geografia. Docente no Instituto de Geografia na Universidade Federal de Catalão (UFCAT),
Goiás. E-mail: ana_novais@ufcat.edu.br
112

esgotamento no país, sendo que os dados sobre acesso ao abastecimento de água foram
relacionados com a mortalidade por Covid-19, conforme o Painel Saneamento Brasil,
Portal Trata Brasil e Programa Cidades Sustentáveis.
Nesse sentido, compreende-se que a água é um dos componentes modeladores
do relevo e das trajetórias na relação sociedade e natureza, pois as primeiras civilizações
surgiram às margens dos rios e criaram laços sociais, culturais e econômicos. Nesse
sentido, Fracalanza (2002) menciona a diferenciação da necessidade da água para os
seres vivos e para os demais organismos vivos, bem como a diferenciação teórica,
cultural, econômica e social entre as necessidades sociais do uso da água e as
necessidades como insumo no processo produtivo. Analisam-se, segundo a autora,
três vieses da água: as necessidades humanas historicamente criadas, as modificações na
paisagem e a relação com o trabalho humano. Assim, discute-se a água enquanto
elemento natural e enquanto recurso hídrico (PIRES, 2016).
Quanto à Geografia das águas, ressalta-se que o planeta Terra, em valores
aproximados, dispõe de 97,5% de águas salgadas em sua superfície, nos mares e oceanos,
e dois terços dos 2,5% restantes estão dispostos em geleiras e aquíferos subterrâneos.
A água doce oriunda dos rios e lagos representam 0,006% no planeta. O Brasil possui 12%
das reservas hídricas superficiais mundiais, sendo 70% na Amazônia, região com 8,3%
da população do Brasil. Em contrapartida, a Região Sudeste possui 6% das reservas hídricas
nacionais e 42,1% da população (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS – ANA, 2002).
É importante salientar, conforme aponta Venturi (2015), que a água não pode ser
considerada um recurso renovável, pois seus estoques são estáveis na natureza. Ou seja,
apesar da manutenção da quantidade de água no planeta, o que pode variar é a qualidade
e a capacidade de captação e abastecimento, conforme as tecnologias e os investimentos
financeiros e de recursos humanos para as atividades da área. Segundo esse geógrafo,
as crises hídricas, quando ocorrem, são sempre ligadas à má gestão das águas, e não
à perspectiva fatalista e naturalista de falta de água.
A gestão de recursos hídricos objetiva harmonizar a oferta e as demandas hídricas,
conciliar conflitos existentes e minimizar a possibilidade de novos conflitos, além de atuar
frente à qualidade ambiental das bacias hidrográficas. O gerenciamento de recursos
hídricos está inserido na gestão como parte das atividades concernentes do arcabouço
administrativo, já a gestão hídrica é uma política pública que abrange uma estrutura
legal e institucional.
Pandemia do coronavírus – 113

Nesse contexto, a partir da Lei Federal 14.026, de 15 de julho de 2020, houve uma
alteração no marco legal do saneamento no Brasil e, assim, a Agência Nacional de Águas
passou a se chamar Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), atuando não só na
implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), como integrante do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), regulando as águas
de domínio da União (interestaduais, transfronteiriças e reservatórios federais), mas
também na instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos
de saneamento básico.
O percurso histórico da gestão hídrica nacional passou por modelos burocráticos
e econômico-financeiros, com centralização Estatal, notadamente do setor elétrico.
Primeiramente, o Código Civil de 1916 trazia a informação de que as águas poderiam ser
públicas ou privadas. Posteriormente, o Código das Águas de 1934 (Decreto Federal
24.643) ainda manteve o domínio privado, apesar de citar o domínio público e comum.
A partir da Constituição Federal de 1988 o domínio privado deixou de existir, já que as
águas passaram a ser bens dos Estados e da União, o que também foi ratificado pela PNRH,
Lei Federal 9.433/1997, que representou um novo momento na história da gestão hídrica
no país, com um modelo integrado a partir de um ideal de gestão descentralizada
e participativa. O artigo 1º da PNRH afirma que a água é um bem de domínio público.
Quanto à qualidade das águas e a PNRH, ressalta-se que os municípios podem
participar da gestão hídrica no país a partir dos comitês de bacias hidrográficas, quer como
representantes do poder público, quer como membros de associações civis que atuem
na temática hídrica. Além disso, o artigo 3º, inciso V, afirma, como diretriz geral da PNRH,
a articulação da gestão hídrica com a gestão do uso do solo, apesar de não haver menção
ao saneamento básico.
No que concerne à defesa ambiental e ao papel do município nesse tema, conforme
a Constituição de 1988, insere-se a água e seus aspectos de quantidade e qualidade. Nesse
sentido, nos Planos de Recursos Hídricos, nas atribuições deliberativas dos Comitês de
Bacias Hidrográficas constam metas para racionalização de uso, aumento da quantidade
e melhoria da qualidade das águas numa bacia hidrográfica. No artigo 5º da PNRH, quanto
às diretrizes gerais de ação, o inciso I cita a gestão hídrica sem dissociação dos aspectos
de qualidade e quantidade; no inciso III, a integração com a gestão ambiental e no inciso V,
a articulação da gestão hídrica com a gestão do uso do solo.
114

A captação de água para abastecimento público está sujeita à outorga, sendo que
todas as outorgas estão condicionadas às prioridades estabelecidas nos Planos de
Recursos Hídricos, que são elaborados por bacia hidrográfica, por estado e para o país 15.
Em relação à qualidade e aos usos da água, um dos instrumentos da PNRH é o
enquadramento dos corpos de água, objetivando assegurar a qualidade da água em
compatibilidade com os usos, sendo também um instrumento de planejamento
ambiental no contexto da qualidade da água a ser alcançada e/ou mantida. Dessa forma,
a Resolução Federal 357/200516, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA),
trouxe importantes critérios para o enquadramento dos corpos de água em classes de uso
em função dos usos preponderantes, assim como as definições para ambientes lóticos
e lênticos, entre outras.
Para o abastecimento humano, a Resolução 357/2005 cita, para as águas doces,
que as Classes Especiais 1, 2, 3 e 4 podem ser utilizadas para abastecimento humano
e especifica o tipo de tratamento adequado para cada Classe. Para as águas salobras,
a Classe 1 pode ser utilizada pós-tratamento convencional ou avançado.
Importante ressaltar e trazer à discussão deste texto que, a partir da Constituição
Federal de 1988, o saneamento básico é mencionado em três passagens: no artigo 21,
inciso XX, quanto à atribuição da União para instruir diretrizes para o saneamento básico;
no artigo 23, quanto à competência comum dos entes federativos para a promoção
do saneamento básico, assim como no artigo 200, inciso IV, ao citar que compete ao
Sistema Único de Saúde (SUS), participar na formulação das políticas e exercer as ações
para o saneamento básico.
Nesse contexto, reforça-se que o saneamento básico faz parte da política urbana
e o município o ente com competência para executá-la, sendo importante citar o
compartilhamento entre Estados e União quanto à matéria, assim como quanto à fiscalização
das concessões de exploração de recursos hídricos. Entre a importância dos aspectos
referentes à qualidade das águas está não somente a qualidade ambiental em bacias
hidrográficas, mas também a saúde, em virtude das doenças de veiculação hídrica. Assim,
ratifica-se a necessidade da efetivação dos Planos Municipais de Saneamento Básico e, dessa

15
O atual Plano Nacional de Recursos Hídricos tem um horizonte temporal 2022-2040.
16
A Resolução Federal 357/2005 teve atualizações a partir das Resoluções 370, de 2006, 397, de 2008, 410,
de 2009, e 430, de 2011. Complementada pela Resolução 393, de 2007, esta última sobre o descarte contínuo
de água de processo ou de produção em plataformas marítimas de petróleo e gás natural.
Pandemia do coronavírus – 115

forma, reforça-se o papel dos municípios, já que são os detentores dos territórios das bacias
hidrográficas, do parcelamento do solo urbano, mas que não possuem dominialidade
administrativa das águas.
Faz-se pertinente mencionar que os serviços de saneamento básico incluem não
apenas o abastecimento de água para consumo humano, mas também o esgotamento
sanitário, a gestão de resíduos sólidos e a drenagem urbana de águas pluviais.
Destaca-se, também, que são nos municípios que a integração da política nacional
e estaduais de recursos hídricos se torna possível, entretanto, é evidente que há uma colcha
de retalhos entre a PNRH/PERH, Plano Diretor Urbano e Código Florestal quando o tema
é rio urbano, o que contribui para os aspectos positivos e negativos de qualidade ambiental
em bacias hidrográficas e a qualidade das águas.
A partir da pandemia de Covid-19 e do monitoramento de possíveis contaminações
a partir da eliminação do coronavírus nas fezes de pessoas contaminadas, a presença do
vírus nos esgotos e tubulações pode auxiliar o poder público municipal e espacializar
áreas com maior risco de contaminações caso a contenção de aglomerações não seja posta
em prática. Um exemplo desse tipo de estudo foi publicado por Prado et al. em 2021 no
periódico Water Research com o título de Wastewater-based epidemiology
as a useful tool to track SARS-CoV-2 and support public health policies at municipal level
in Brazil, tendo o Rio de Janeiro como lócus de análise.
Outros Estados também fizeram estudos para identificação de carga viral de
coronavírus em esgotos, como é o caso de Minas Gerais e de Porto Alegre, entretanto, ainda
são necessários mais estudos para entender se é possível a contaminação fecal-oral para
o coronavírus quando há contato com esgoto. Em contrapartida, para a água potável que
chega às residências, o cloro consegue inativar o vírus. Dessa forma, é imprescindível o papel
do saneamento básico num momento de crise sanitária como a da atualidade, assim como
exemplifica o papel dos municípios quanto à disciplina do solo urbano, que interfere na
demanda de água para consumo humano; o adensamento humano, na drenagem das águas
pluviais e o descarte das chamadas águas servidas, vinculando, portanto, município e
abastecimento de água.
116

Acesso à água potável, ao esgotamento sanitário e a pandemia de Covid-19 no Brasil

Conforme a PNRH, no artigo 1º, inciso IV, a regra é que a gestão proporcione os usos
múltiplos das águas, sendo que, conforme o inciso III, em situações de escassez o uso
prioritário dos recursos hídricos é para o consumo humano e a dessedentação de animais.
Nesse contexto, segundo o relatório Conjuntura Recursos Hídricos Brasil 2020, a maior
demanda de uso da água no Brasil foi para a irrigação, com retirada de 1.038,1 m³/s
e consumo de 743,5 m³/s, seguida pelo abastecimento humano, com retirada de 505,7 m³/s
e consumo de 101,1 m³/s. Na contabilização da vazão total consumida nas bacias
hidrográficas no ano de 2019, 66,1% foram para irrigação e 9,0% para abastecimento
humano, sendo que, ainda segundo o relatório, o aumento das demandas pelas atividades
que usam intensivamente a água e o aumento da população representam um aumento
do estresse hídrico, notadamente na Região Sudeste.
Além disso, ainda de acordo com o relatório, apesar do atendimento das redes
de abastecimento urbano nas cidades, as perdas e a água não contabilizadas chegam a cerca
de 40% do volume retirado, predominantemente de mananciais superficiais (57%), que
representam o atendimento de 84% da população urbana. O Relatório de Diagnóstico dos
Serviços de Água e Esgoto de 2019 do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento
(SNIS) traz dados sobre níveis de atendimento urbano por rede de água, sendo que os
menores índices estão nos seguintes Estados: Maranhão, Ceará, Acre e Rondônia, entre 60%
a 80% de atendimento; Pará, entre 40% a 60%, e Amapá, abaixo de 40%.
Outro uso da água citado no relatório e que é significante para esse artigo refere-se
ao lançamento de efluentes nos corpos de água, principalmente esgotos domésticos
sem tratamento, o que contribui para a indisponibilidade do uso da água e, assim,
na situação problemática quanto ao balanço hídrico. Nesse contexto, ainda segundo o
relatório do SNIS para o ano de 2019, 610 municípios foram registrados com totalidade
de atendimento urbano com esgoto tratado.
Ainda de acordo ao SNIS, com valores acima de 70% de atendimento urbano com
rede coletora de esgoto estão os Estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Roraima. Entre
40 e 70% de atendimento estão os Estados do Rio de Janeiro, Goiás, Espírito Santo, Mato
Grosso do Sul, Bahia, Paraíba e Mato Grosso. Já entre 20 e 40% encontra-se o maior número
Pandemia do coronavírus – 117

de Estados, como Rio Grande do Sul, Tocantins, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte,
Santa Catarina, Alagoas, Sergipe e Piauí. Percentuais entre 10 e 20% estão os Estados
Maranhão, Amazonas e Acre. Abaixo de 10% estão os Estados do Pará, Amapá e Rondônia.
No Brasil, no ano de 2020, já com a pandemia em curso, houve uma atualização no
marco legal do saneamento a partir da Lei Federal 14.026, de 15 de julho de 2020,
atribuindo a função de editar normas de referência sobre o serviço de saneamento à
Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA). Nesse sentido, a ANA promoverá
a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Plano Nacional de Resíduos
Sólidos e o Plano Nacional de Recursos Hídricos e a Lei prevê a universalização dos serviços
de água e esgoto até 2033.
Quanto à nova Lei do saneamento, questões que movimentaram as discussões dos
pesquisadores da área referem-se à proibição dos contratos de programas para prestação
dos serviços públicos, tais como água e esgoto, onde prefeitos e governadores poderiam
firmar parcerias diretamente com as empresas estatais, não havendo necessidade de
licitação. Com a Lei, a licitação tornou-se obrigatória e, assim, poderão concorrer
prestadores de serviços tanto públicos quanto privados. Nesse contexto, Heller (2020)
diz que o texto da lei abre caminho à privatização em virtude da obrigatoriedade das
licitações, já que, o setor privado objetivará fortemente o lucro e há, aí, uma assimetria de
poderes em relação às estatais e às privadas. Essa tendência, ainda de acordo com o autor,
vai na contramão de países que estão reestatizando serviços de água e esgoto, como
Alemanha e Estados Unidos.
Outro ponto importante citado por Heller (2020) refere-se ao abandono dos
serviços de saneamento para grupos concentrados em áreas rurais, bem como para as
periferias das cidades médias e/ou grandes e para as cidades pequenas e, também, essas
áreas e populações são pouco representativas para o setor privado.
É importante ressaltar que, para se chegar à universalização do acesso aos serviços
de água e esgoto até 2033 são necessários investimentos e, num recorte temporal de 2014
a 2018, além das perspectivas para até 2033, o Relatório do Cenário Para Investimentos em
Saneamento no Brasil Após a Aprovação do Marco Legal, disponibilizado em 2020 pelo
Portal Trata Brasil, com bases de dados do Sistema Nacional de Informações sobre
Saneamento (SNIS), mostrou que entre 2014 e 2018, ocorreu uma redução de 12,3% nos
investimentos totais em água e esgoto no Brasil. Além disso, a Região Sudeste, com 42,07%
118

da população do país, foi responsável por 54,35% do investimento em abastecimento de


água entre 2014 e 2018, sendo que em 2018 caiu para 49,27%. Quanto ao investimento
em esgotamento no período 2014-2018, em relação ao país, o Sudeste totalizou 54,51%.
Com a segunda maior população do país, com 27,22%, a região Nordeste, investiu
entre 2014 e 2018 20,64% em abastecimento de água, considerando-se um aumento de
23,7% no ano de 2018. Quanto ao investimento em esgotamento, a região representou
17,39% em relação ao país. A região Sul, a terceira mais populosa do país, com 14%
da população, investiu 13,06% em abastecimento de água entre 2014 e 2018, e 15,5%
do total do Brasil para o esgotamento nesse período.
Além disso, na Região Centro-Oeste, com 7,72% da população, para o período citado
os investimentos em abastecimento de água foram de 8,18%. Já para esgotamento, a região
investiu 8,85% entre 2014 e 2018. A Região Norte, com o menor contingente populacional
no país, 8,72%, teve os menores dados de investimento, com 3,77% de todos os
investimentos do país em abastecimento de água entre 2014 e 2018, bem como 3,74% no
setor de esgotamento. Faz-se importante citar que o Relatório ainda aponta desigualdades
de investimentos entre os Estados das regiões citadas, sendo que, ainda no que concerne
à Região Norte, apenas o Estado do Tocantins possui superior representatividade nos
investimentos em relação à população.
Ao avaliar a necessidade de investimentos nos serviços de água e esgoto no país, o
Relatório aponta que o país ainda tem um longo caminho nessa temática, pois, pautado em
dados do SNIS, 34 milhões de pessoas não contam com abastecimento de água e 81 milhões
de pessoas não possuem atendimento de esgoto.
Assim sendo, ainda segundo o Relatório, a média anual de investimentos dos
últimos cinco anos foi de 53% (R$ 13 bilhões) da meta do Plano Nacional de Saneamento
Básico (PLANSAB), de R$ 24,9 bilhões anuais. Ainda, apenas o Distrito Federal, São Paulo
e Paraná estão próximos de alcançar os níveis de universalização dos serviços de
abastecimento de água e esgotamento, sendo que, em sentido oposto, Estados como
Amazonas, Pará, Rondônia, Maranhão, Amapá, Piauí, Ceará e Acre o abastecimento de
água e esgotamento possuem os índices mais distantes da universalização.
Além disso, de acordo com o Painel Saneamento Brasil do portal Trata Brasil, antes
mesmo da pandemia os brasileiros já estavam em vulnerabilidade quanto ao acesso à água
e esgotamento sanitário, conforme mostra a Figura 1, em um comparativo de informações
entre as regiões brasileiras.
Pandemia do coronavírus – 119

Quadro 1 – Brasil: Indicadores de saneamento e doenças de veiculação hídrica

Sudeste Nordeste Sul Centro-Oeste Norte


Percentual da 8,9% 26,1% 9,5% 10,3% 42,6%
população sem
acesso à água
Percentual da 20,5% 71,7% 53,7% 42,3% 87,7%
população sem
coleta de esgoto
Internações por 61.797 113.748 27.759 27.738 42.361
doenças de
veiculação
hídrica
Óbitos por 907 1.069 331 213 214
doenças de
veiculação
hídrica
R$ por mês – 3.057,88 2.500,60 3.316,11 3.684,43 2.950,23
pessoas com
saneamento
R$ por mês – 795,06 428,27 811,42 834,49 593,21
pessoas sem
saneamento

Fonte: Painel Saneamento Brasil (2019). Organização: Pires Koga (2021).

Sobre os dados do Painel Saneamento Brasil (TRATA BRASIL, 2019) para o ano de
2019 e em relação aos números já citados no texto, observa-se a íntima relação entre
acesso ao abastecimento contínuo de água, tratamento de esgoto, saúde, anos de
escolaridade e renda, conforme dados apontados também pelo Painel para anos
anteriores. E trazendo essas informações para contrastar com a situação da pandemia
no país entre 2020 até o atual momento de 2021, as populações que já estavam em
condições de maior vulnerabilidade de contágio são segmentos populacionais de baixa
renda, que vivem em periferias urbanas, em favelas.
Assim, conforme artigo no Urban Studies Journal, citado por Costa et al. (2020)
em publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a própria literatura
confirma a relação entre os aspectos demográficos, de infraestrutura e a vulnerabilidade
às doenças infecciosas, notadamente nas porções periféricas das grandes cidades,
representando riscos de propagação epidêmica. Pesquisas anteriores, que relacionaram
epidemias como a da Aids, dengue e zika, conforme citam Costa et al. (2020), reforçam
que, mesmo o vírus não delimitando classe social para infectar, fatores relacionados
ao saneamento, educação, renda são determinantes para a taxa de contaminação e para
a propagação. Portanto, há uma dimensão territorial da crise sanitária.
120

Nesse contexto, o informativo Radar Covid-19, favelas, da Fundação Oswaldo Cruz


(FIOCRUZ) conseguiu apontar processos sociais ligados ao acesso à água e à coleta de lixo
como contribuintes para o adoecimento das populações que vivem em favelas no Rio de
Janeiro. Assim, a publicação de Brito et al. (2020), The spatial dimension of Covid-19:
the potential of earth observation data in support of slum communities with evidence from
Brazil, abordando questões relacionadas à contaminação e mortalidade por Covid-19
em duas comunidades carentes em Salvador, Bahia, indicou que contribuíram para tanto
as más condições habitacionais e ambientais. Assim sendo, a morfologia das favelas, com
residências mal ventiladas, a alta densidade populacional, falta de água, sabão, esgotos a céu
aberto, são elementos-chave nesse processo de agravamento das taxas de contaminação,
pois tornam os indivíduos vulneráveis às doenças de veiculação hídrica, colaborando para
problemas imunológicos.
Tonucci Filho, Patrício e Bastos (2020), em Nota Técnica, consideram as periferias
e assentamentos informações como áreas sensíveis à disseminação da Covid-19 que, por sua
vez, apesar da diversidade de cenários, possuem como características comuns insalubridade
habitacional, baixa renda, abastecimento irregular de água, coleta precária e/ou inexistente
de esgoto e resíduos sólidos, pouco acesso a serviços de saúde, assim como são áreas
que concentram uma parcela significativa de população negra do país.
Nesse contexto, segundo a Rede Nossa São Paulo, que organizou informações que
relacionam óbitos por Covid-19 e população preta e parda em distritos em São Paulo,
os dois distritos com maior população negra entre seus habitantes, Jardim Ângela (60%)
e Grajaú (57%), apresentavam, até junho de 2020, 507 óbitos. Em contrapartida, os dois
distritos com menor população negra, Alto de Pinheiros (8%) e Moema (6%), registraram,
na mesma data, 110 mortes. Além disso, os distritos com maior número de favelas também
apresentaram maiores índices de óbitos em relação aos distritos sem favelas.
Dados do Programa Cidades Sustentáveis mostram a relação entre o acesso ao
abastecimento de água e o índice de mortalidade pela Covid-19 em 26 capitais do Brasil.
Assim, conforme a Figura 1, Porto Velho, com índice de 35% de acesso à água tratada,
a mortalidade por Covid-19 (26 por 100.000 habitantes), apresentou situação 33% mais
grave que Campo Grande, com 100% da população atendida por rede de abastecimento de
água e com taxa de 0,8 óbito por 100.000 habitantes.
Pandemia do coronavírus – 121

Figura 1 – Relação entre as capitais brasileiras, acesso ao abastecimento de água e mortalidade por Covid-19

Fonte: Programa Cidades Sustentáveis (2020).

Ainda de acordo com a Figura 1, observa-se que outras capitais, como Macapá e Rio
Branco, apresentaram, neste contexto temporal dos dados, índices superiores de
mortalidade em decorrência da Covid-19 por 100.000 habitantes em relação à Curitiba
e Florianopólis, nas quais há 100% de atendimento da rede de abastecimento de água.
É importante ressaltar que, ao observar os dados de óbitos por Covid-19 em São Paulo,
as realidades são distintas, conforme foi explanado com os dados da Rede Nossa São Paulo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou mostrar as implicações entre o acesso à água potável em


tempos de emergência sanitária como na pandemia de Covid-19, ainda em curso no país.
Assim, nessa perspectiva, inserem-se temas como a gestão hídrica por bacia hidrográfica
e outras normativas em relação à proteção das Áreas de Proteção Permanente (APPs),
ao parcelamento do solo urbano, ao enquadramento dos corpos d’água, aos padrões de
qualidade da água para abastecimento urbano. Dessa forma, o tema central é a água,
mas é preciso considerar o rio, a ocupação irregular das suas margens, notadamente
em rios urbanos, a qualidade ambiental em bacias hidrográficas, os usos preponderantes
da água, a outorga, os planos de recursos hídricos. Portanto, é um tema complexo e com
discussões e normativas fragmentadas no cenário brasileiro.
122

Diante do exposto, no cenário de pandemia na atualidade o questionamento acerca


da acessibilidade da medida não medicamentosa mais prática no enfrentamento à
disseminação do vírus, com a lavagem das mãos com água e sabão, é de grande valia para
o entendimento das possibilidades de contenção das contaminações, assim como das
vulnerabilidades ao óbito por complicações pela Covid-19.
Assim sendo, os investimentos para a universalização no acesso à água potável e
à coleta e tratamento de esgoto no país representam um passo importante e, também,
uma política de Estado com fundamentos em diversos aspectos, tanto na esfera da saúde
humana quanto na qualidade do meio ambiente, conforme a atual Constituição.
Outros fatores importantes para garantir a continuidade do acesso à água para
residências com pendências quanto ao pagamento de taxa são a suspensão de cortes
no fornecimento de água potável, a expansão do abastecimento para áreas não atendidas,
como favelas e periferias, garantia às populações em situação de rua, pois, segundo
o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), em carta aberta
à sociedade no ano de 2020, essas populações estão expostas ao risco de contágio e em
períodos como este a necessidade de políticas públicas que articulem moradia, emprego,
saúde e saneamento.

REFERÊNCIAS

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124

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marco legal. Disponível em:
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em: 29 jun. 2021.

VENTURI, L. A. B. Geógrafo da FFLCH alerta sobre noção equivocada de “falta de água”. 2015. São Paulo:
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https://www5.usp.br/noticias/entrevista/geografo-da-fflch-alerta-sobre-nocao-equivocada-de-falta-de-
agua/. Acesso em: 29 jun. 2021.
Pandemia do coronavírus – 125

C A P Í T U L O 10
______________

LABORATÓRIOS DO MUNDO REAL:


A MICROBACIA DO RIBEIRÃO DO LAGEADO COMO PROJETO PILOTO
DE POLÍTICA PÚBLICA PARA AÇÃO CLIMÁTICA

Ana Paula Koury17

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta um projeto piloto de política pública para a ação climática
com base no estudo da microbacia do ribeirão do Lageado, localizado na zona leste da
cidade de São Paulo. O projeto foi desenvolvido no âmbito do Lab Itaim Paulista 18:
Laboratório de política urbana e transformação local do Programa de Pós-Graduação da
Universidade São Judas, envolve o mestrado acadêmico em Arquitetura e Urbanismo e o
mestrado profissional em Engenharia Civil. Também tem apoio do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e do laboratório Klimapolis, uma cooperação
entre parceiros alemães e brasileiros estabelecida em 2018 por meio de um acordo entre
o Instituto Max Planck de Meteorologia (MPI-M) e do Instituto de Astronomia, Geofísica
e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP) para desenvolver
pesquisas sobre clima urbano, poluição da água e do ar, modelagem, planejamento,
monitoramento e aprendizagem social19.

O que é o Lab Itaim Paulista

O Lab Itaim Paulista adota o modelo dos Laboratórios do Mundo Real (LMR), que
experimentos para implementação de uma política de ação climática integrada com a
ciência do clima que têm sido adotados na Europa. Os LMR atuam sobre situações
problema concretas tendo como objetivo a sua transformação. Nesse sentido, os LMR

17
Pós-doutora e docente na Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, e Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo. E-mail: ana.koury@saojudas.br; ana.koury@mackenzie.br
18
Disponível em: https://labitaimpaulista.blogspot.com/
19
Disponível em: https://www.klimapolis.net/
126

procuram abarcar toda a complexidade de interrelações dos fatos que caracterizam


o mundo real onde os problemas são complexos e multifatoriais. Por esse motivo os LMR
são transdisciplinares (SCHÄPKE et al., 2018; WANNER, 2018).
Como um dos objetivos dos LMR é a transformação das localidades onde atua, além
de uma abordagem transdisciplinar dos fenômenos, os LMR entendem que a intenção de
mudança que deve partir de todos os atores envolvidos na situação para que ela seja
de fato transformada. Por isso, muitos LMR adotam como estratégia não apenas a
transdisciplinaridade científica, mas o multiperspectivismo social (ENGELS; WALLS, 2018).
Outra característica dos LMR é que geralmente eles são experimentos de longo
prazo porque as transformações não acontecem de uma hora para outra. O Lab Itaim
Paulista atua há mais de cinco anos junto à subprefeitura, localizada na zona leste da
cidade de São Paulo e é uma das 32 subprefeituras do município. O Itaim Paulista tem
enormes desafios ambientais e sociais. A subprefeitura também faz divisa com os
municípios de Ferraz de Vasconcelos, Poá e Itaquaquecetuba, atraindo populações dos
municípios vizinhos para os equipamentos públicos locais. Todos esses fatores fazem do
Itaim Paulista um objeto de estudo relevante para abordar a gestão e o desenvolvimento
urbano de localidades periféricas como piloto de uma política pública de ação climática.

OBJETIVOS

O objetivo do Lab Itaim Paulista é conhecer a localidade, os problemas, os agentes


e as ações em andamento para identificar os desafios da subprefeitura e contribuir com a
tomada de decisões. Para conhecer a localidade, o Lab Itaim Paulista realizou visitas aos
córregos Água Vermelha, Lageado, Tijuco e Itaim. Realizou duas ações na Escola Dama
entre Rios Verdes e uma ação na casa de cultura do Itaim Paulista, além de uma série de
estudos acadêmicos.
Ao conhecer o território, o Lab entra em contato com os agentes e as várias
propostas formuladas localmente para a solução dos problemas da subprefeitura; então
a primeira responsabilidade do Lab Itaim Paulista é participar das ações locais. Quando
vamos para o território, o Lab está sempre atento ao que as organizações locais, atores e
pessoas estão propondo, uma vez que elas têm conhecimento dos problemas que vivem
e acabam sendo as primeiras a terem boas ideias – que o Lab pretende apoiar e ajudar
no que for possível.
Pandemia do coronavírus – 127

Também promovemos o diálogo através de parcerias com as instituições locais.


Atualmente, nossa maior aliada tem sido a subprefeitura do Itaim Paulista,
principalmente a partir de 2009, com apoio do subprefeito Gilmar Santos, que foi um
grande entusiasta do Lab e por quem temos muita gratidão. Agradecemos muito a ele
por nos ter aberto a subprefeitura, cedido uma sala para o Lab operar ali e isso
potencializou muito o Itaim Paulista como sala de aula para os estudantes da São Judas,
trazendo uma renovação muito importante para a agenda de pesquisa da Universidade.
Entre os problemas identificados elegemos como situação problema a microbacia
do córrego do Lageado. Procuramos entender como o desenho urbano pode ajudar a
resolver o grande problema do Itaim Paulista: as inundações e alagamentos que atingem
a microbacia do ribeirão do Lageado. Mais adiante será explicado com maior profundidade
quais são as características dessa microbacia e por que ela foi escolhida como projeto piloto.
O estudo da microbacia do ribeirão do Lageado contou com o apoio da São Paulo
Urbanismo na gestão de José Armênio Brito Cruz através do gerente de projetos Marlon
Rubio Longo e de um grupo de servidores da empresa, o que foi de grande importância
para o desenvolvimento do piloto que apresentaremos em seguida.

METODOLOGIA

O Lab Itaim Paulista possui tipos de atuação que organizam as ações realizadas na
localidade. Como é um laboratório que estuda assuntos complexos sem ter foco em
apenas uma disciplina, os tipos de atuação estruturam as ações realizadas na localidade.
Um deles é o LAB Participa, quando o Lab Itaim Paulista apoia iniciativas de agentes locais.
Outro é o Papo do LAB, que promove debates sobre temas importantes para a localidade.
Já o LAB Explica são os produtos técnicos que elaboramos a partir do conhecimento que
produzimos sobre os problemas da localidade.
Nossa intenção é que, uma vez originados de uma estratégia de participação local,
engajamento de atores e envolvimento de muitas perspectivas na solução de um problema,
esses produtos técnicos sejam de fato mais aderentes na transformação da realidade
que a ciência disciplinar que predomina na Universidade. As soluções disciplinares induzem
à perspectiva de que os problemas do mundo real podem ser resolvidos pela lógica de uma
disciplina, mas, na realidade, não podem, pois eles são constituídos por muitas lógicas
diferentes, então a solução precisa ser multifatorial, multidisciplinar, multiperspectiva, etc.
É assim que procuramos operar no Lab Itaim Paulista.
128

A Figura 1 a seguir ilustra o que são esses tipos de atuação e dá exemplos. Em 2019,
organizamos uma Caravana Científica na escola Dama entre Rios Verdes, e foi uma
experiência muito transformadora para nós. Daí saiu uma das ações mais interessantes que
fizemos no LAB nesse período, que foi ir até a escola e montar oficinas com sensores de
baixo custo para medição da poluição do ar20. Estávamos ali preocupados com as condições
do ar e resolvemos propor um estudo das condições atmosféricas e de poluição, mas nossa
intenção era fazer isso junto com as escolas, dentro de uma ação que pudesse aproximar
os cidadãos dos elementos da ciência e conscientizá-los dos problemas ambientais.

Figura 1 – Caravana Científica ao Itaim Paulista

Fonte: Acervo Lab Itaim Paulista. Foto de Pedro Henrique Herculano Correia (mar. 2019).

Na escola, fomos recebidos pela imprensa jovem e pelo diretor, que são muito
articulados com as questões locais e já estavam ali promovendo uma ação para resolver
um outro problema, que era o descarte ilegal de lixo que se dava na frente da escola

20
A atividade foi realizada em colaboração com o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas (IAG USP) através da professora Maria de Fátima Andrade e do pesquisador Leonardo
Yoshiaki Kamigauti, que ministrou a oficina com a colaboração do curso de Gestão Ambiental da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades (EACH) através da professora Regina Maura de Miranda e da pesquisadora
Luana Ferreira Vasconcelos.
Pandemia do coronavírus – 129

naquela época. Numa praça, em frente à escola e ao lado do córrego Água Vermelha, havia
um ponto viciado de descarte de lixo. Assim, os alunos toparam nos ajudar a montar as oficinas
de censores de poluição na escola, mas também pediram apoio para fazerem uma ação
de mobilização para resolver esse outro problema anterior deles. É claro que nós topamos.
Os estudantes da São Judas toparam o desafio, mobilizaram-se e foram participar
– temos inclusive um conjunto de alunos que acompanham a nossa equipe há um tempo,
alguns são ex-alunos de graduação que voltaram para fazer o mestrado ou estão engajados
no doutorado, isso também é algo muito gratificante de se ver no Lab. Então, organizamos
uma ação para prestar esse trabalho mais técnico para os alunos da escola, chamamos toda
comunidade, não só os diretores, coordenadores e alunos, mas seus familiares e os
moradores locais, para participarem e também ajudarem a identificar quais eram
os maiores problemas da região. Usamos formulários para essa etapa de identificação,
depois fizemos uma visita técnica de campo com os estudantes e realizamos proposições
– que foram chamadas de “O Livro dos Sonhos”. A partir de tudo isso, criamos um mapa
com a localização dos principais problemas e um guia de diretrizes para transformação
local. Este foi entregue ao subprefeito, que depois realizou obras ali incluindo muitas das
diretrizes que havíamos apontado no relatório em conjunto com a comunidade.
Essa foi uma pequena, mas efetiva, transformação, que aconteceu a partir da
estratégia de multiperspectivismo e contribuição do lado mais técnico do Lab para que isso
acontecesse. É importante dizer ainda que, quando estávamos fazendo os levantamentos
da microbacia do ribeirão do Lageado, visitamos as comunidades – como a do Torresmo,
que fica na região – veio a pandemia. Nesse cenário, não pudemos mais voltar ao território,
o que acabou sendo uma frustração muito grande para nós. Por outro lado, resolvemos
mobilizar a rede de pesquisadores para que fizessem doações e conseguimos arrecadar
recursos, fazendo a doação de cem cestas básicas.
Essa mobilização também aconteceu atendendo a um pedido de ajuda do
subprefeito Gilmar Santos que, diante da pandemia, acionou empresários e organizações
locais, ele mesmo chegou a fazer doações também. Foi uma situação de fato comovente,
já eram comunidades vulneráveis e, com a pandemia, o grau de necessidades básicas deles
aumentou ainda mais. Assim, nós participamos da campanha “Cestas do Bem” que a
subprefeitura promoveu, contribuindo para ampliar o processo de distribuição de
alimentos na região.
130

Essa foi uma importante lição, estávamos lá como pesquisadores, como cientistas,
mas nos deslocamos para a posição de cidadãos. Foi igualmente importante para nossos
alunos, no sentido de entender que esses problemas são todos nossos – não só a questão
da água, mas das pessoas que vivem ali, e como é feita a gestão dessas localidades.
Ou seja, essa ideia de pensar no problema como um todo, de modo complexo e ético,
pressupõe também uma possibilidade de agir de modo diversificado em todos os
sentidos. Não seria justo visitarmos a comunidade para realizar nossas pesquisas e na
hora que chega a pandemia irmos embora, nos isolarmos em casa e não fazer nada.
Isso era o mínimo que poderíamos fazer e ainda gostaríamos de fazer muito mais.
Avançamos pela parte mais científica e acadêmica da pesquisa, que só foi possível
graças à parceria com o IPT, junto ao professor Felipe Falcetta, que se sensibilizou com
a missão do Lab e se ofereceu para dar esse curso de Introdução à Modelagem Hidrológica
na Universidade São Judas (Figura 2). Também tivemos apoio da São Paulo Urbanismo,
que ficou muito empolgada com a possibilidade de pensar o desenvolvimento periférico,
com foco na microbacia do ribeirão do Lageado, utilizando a simulação computacional
como ferramenta de base. Foi interessante poder colocar esses dois atores em contato para
modelarmos juntos a bacia. Então tínhamos a equipe técnica da SP Urbanismo e do IPT junto
com a equipe técnica da subprefeitura e os estudantes da São Judas formando um grupo
muito rico. O material apresentado aqui neste capítulo registra a produção desse grupo.

Figura 2 – Divulgação do Curso de Introdução à Modelagem Hidrológica

Fonte: Acervo do Lab Itaim Paulista. Arte de Mari Anna Camargo Firmino (2020).
Pandemia do coronavírus – 131

DESENVOLVIMENTO

Urbanização

A questão dos alagamentos é a mais sensível decorrente da urbanização. Na Figura


3, é possível ver o rio Tietê ainda na sua forma original com meandros e, abaixo, o rio já
canalizado e retificado. Isso gerou uma transformação do comportamento hidrológico da
bacia e do volume das águas. O padrão de urbanização acarreta menor permeabilidade do
solo devido à ocupação e diminuição da cobertura vegetal, causando menor infiltração das
águas provenientes de chuvas para o solo e para o lençol freático. E, nos rios e córregos, a
retificação do leito diminui o percurso da água, aumentando o volume da água e a
velocidade que ela se acumula nos pontos críticos.

Figura 3 – Fotomontagem com o Rio Tietê em sua conformação meândrica original acima e à esquerda
sobreposto à ortofoto mostrando o rio Tietê retificado e ladeado pelas vias marginais

Fonte: Fotomontagem da autora com base em Santos (1958, p. 58) e GeoSampa (2017).

Para solucionar esse problema é preciso diminuir o volume e a velocidade que


a água atinge os rios e córregos. E como os urbanistas através do Desenho Urbano, junto
com o recurso de Simulação Hidrológica, podem ajudar a transformar essa situação?
132

Figura 4 – Ocorrência de alagamentos, inundações e deslizamentos na zona leste da cidade de São Paulo
(esquerda) e com destaque para a microbacia do Lageado e a localização do ponto do Exutório da
Bacia (direita)

Fonte: GeoSampa (2017).

Na Figura 4, vê-se em destaque a concentração de alagamentos na zona Leste da


cidade de São Paulo. Por exemplo, na bacia do Tietê, onde são feitas as medições, e
também ao longo dos rios e córregos da região do Itaim Paulista. No destaque, é possível
visualizar uma concentração muito grande de alagamentos no Exutório, que é o ponto de
descarga da microbacia do ribeirão do Lageado no rio Tietê. Portanto, esse foi o ponto
que elegemos como estudo no curso de Modelagem Hidrológica – os dados apresentados
a seguir são desse ponto de estudo.
O Itaim Paulista foi escolhido como área de estudo justamente porque é muito
densamente ocupado. Inclusive, é a subprefeitura com a maior densidade demográfica
da cidade de São Paulo (Figura 5). Os setores censitários mais densos estão principalmente
concentrados nas margens de rios e córregos da região (SMDU, 2016, p. 239).
Pandemia do coronavírus – 133

Figura 5 – Densidade demográfica e cobertura vegetal por subprefeitura


DENSIDADE (HAB/ha) COBERTURA VEGETAL
ÁREA HABITANTES DENSIDADE A. VERDE DENSIDADE DENSIDADE
UNIDADES TERRITORIAIS (ha) 2010 por area (ha) por area por hab
MSP 150.900 11.253.503 74,58 67.628,69 0,45 0,01
Aricanduva/ Formosa/Carrão 2.150,00 267.702,00 124,51 200,74 0,09 0,0007
Butantã 5.610,00 428.217,00 76,33 1.854,22 0,33 0,0043
Campo Limpo 3.670,00 607.105,00 165,42 688,42 0,19 0,0011
Capela do Socorro 13.420,00 594.930,00 44,33 6.067,17 0,45 0,0102
Casa Verde/ Cachoeirinha 2.670,00 309.376,00 115,87 738,06 0,28 0,0024
Cidade Ademar 3.070,00 410.998,00 133,88 723,25 0,24 0,0018
Cidade Tiradentes 1.500,00 211.501,00 141,00 515,10 0,34 0,0024
Ermelino Matarazzo 1.510,00 207.509,00 137,42 227,01 0,15 0,0011
Freguesia/ Brasilândia 3.150,00 407.295,00 129,30 1.199,77 0,38 0,0029
Guaianases 1.780,00 268.508,00 150,85 284,47 0,16 0,0011
Ipiranga 3.750,00 463.804,00 123,68 762,26 0,20 0,0016
Itaim Paulista 2.170,00 373.127,00 171,95 140,63 0,06 0,0004
Itaquera 5.430,00 523.848,00 96,47 2.021,56 0,37 0,0039
Jabaquara 1.410,00 223.780,00 158,71 165,85 0,12 0,0007
Jaçanã/Tremembé 6.410,00 291.867,00 45,53 4.441,63 0,69 0,0152
Lapa 4.010,00 305.526,00 76,19 542,24 0,14 0,0018
M'Boi Mirim 6.210,00 563.305,00 90,71 2.083,02 0,34 0,0037
Mooca 3.520,00 343.980,00 97,72 251,63 0,07 0,0007
Parelheiros 35.350,00 139.441,00 3,94 31.475,06 0,89 0,2257
Penha 4.280,00 474.659,00 110,90 783,43 0,18 0,0017
Perus 5.720,00 146.046,00 25,53 4.164,97 0,73 0,0285
Pinheiros 3.170,00 289.743,00 91,40 686,01 0,22 0,0024
Pirituba 5.470,00 437.592,00 80,00 2.320,64 0,42 0,0053
Santana/ Tucuruvi 3.470,00 324.815,00 93,61 1.217,20 0,35 0,0037
Santo Amaro 3.750,00 238.025,00 63,47 804,95 0,21 0,0034
São Mateus 4.580,00 426.794,00 93,19 1.698,82 0,37 0,0040
São Miguel 2.430,00 369.496,00 152,06 363,29 0,15 0,0010
Sé 2.620,00 431.106,00 164,54 302,93 0,12 0,0007
Vila Maria/Vila Guilherme 2.640,00 297.713,00 112,77 436,82 0,17 0,0015
Vila Mariana 2.650,00 344.632,00 130,05 201,27 0,08 0,0006
Vila Prudente /Sapopemba 3.330,00 531.113,00 159,49 158,60 0,05 0,0003

Fonte: Elaborado pela autora com base em dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento
(SMUL, 2020).

Fazendo uma ponte muito breve com a pandemia: a questão do desenvolvimento


sustentável afeta muitas dimensões da nossa vida e a ocupação da microbacia do ribeirão
do Lageado traz problemas em relação à drenagem urbana, aos alagamentos, mas
também à proliferação de doenças como é o caso da Covid-19. Tanto é que a
concentração de óbitos nessas áreas de vulnerabilidade é maior, porque é mais difícil
fazer isolamento social em moradias com alta densidade – muitas pessoas morando em
pouco espaço. Mais uma vez fica em evidência que o problema é multifatorial e nós
escolhemos o recorte da hidrologia, pensando o desenho urbano como mote para
transformação, e respondendo aos desafios desse volume de água concentrado na
microbacia podemos responder aos inúmeros problemas associados a ele.
134

Microbacia do ribeirão do Lageado

Nossa proposta é pensar como essa microbacia pode ser projeto piloto de política
pública para ação climática. Pensando que isso envolve uma transformação urbano-social
por inteiro, não é só uma questão de desenho da cidade, mas de sua forma social,
distribuição espacial e das condições que isso ocorre, temos muitos motivos para interferir
e ensaiar um novo modelo de cidade nessa área.

Figura 6 – Localização da microbacia do Lageado

Fonte: Fotomontagem da autora à esquerda com base em Fernandes et al. (2020, p. 25) e à direita com
base em GeoSampa (2017).

A Figura 6 ilustra onde fica o Ribeirão do Lageado, bem no centro entre o distrito
do Itaim Paulista e o distrito de Vila Curuçá, no extremo leste da cidade de São Paulo. É
uma microbacia relativamente pequena, atualmente, 90% da sua área encontra-se
impermeabilizada e estima-se que abrigue cerca de 153 mil habitantes (HAB) em 1.100
hectares (ha), o que dá cerca de 139 HAB/ha (Fernandes et al., 2020) – um pouco abaixo
da média do distrito, mas ainda assim muito denso em relação à cidade de São Paulo.
Embora a microbacia hoje esteja praticamente toda impermeabilizada e
densamente ocupada, a conformação geomorfológica do terreno permanece muito
próxima da situação original, conforme demonstra a comparação do Mapa de
Hipsometria na Figura 7, que utiliza os modelos digitais de elevação com base nos
levantamentos de 1930, 2004, 2011 e 2017.
Pandemia do coronavírus – 135

Figura 7 – Mapa de hipsometria da microbacia do Lageado

Fonte: Fernandes et al. (2020, p. 53).

Nessa região, passando pela estrada Dom João Neri, que margeia o ribeirão do
Lageado, está prevista uma rede estrutural de mobilidade que fará a conexão entre
a estação terminal do Itaim Paulista e de São Mateus, o que vai ser uma importante
conexão de transporte também à área metropolitana toda, ligando a região de Guarulhos
com o Grande ABC. Portanto, é um local que tem um importante papel no sistema
metropolitano de transporte e, por esse motivo, é um eixo de transformação urbana
que deve receber investimentos da prefeitura e do governo do estado em breve, para
que isso seja implantado (KOURY; CAVALLARI, 2018).
136

Tal fato parece ser uma grande oportunidade para que a implantação desses eixos
de mobilidade se torne ação para as mudanças climáticas que venham, ao mesmo tempo,
a melhorar a condição de drenagem e a reposição das águas subterrâneas, diminuir os
problemas de alagamento na cidade e, consequentemente, melhorar a situação de vida
dessa população vulnerável que se encontra nas margens dos córregos.
Ou seja, não só o nosso problema de pesquisa é multifatorial, como nós temos
muitas possibilidades de solução e transformação desse problema. Por isso que
escolhemos trabalhar essa microbacia. Inclusive anteriormente houve um trabalho
desenvolvido pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos, conduzido
pelo professor Renato Aneli junto com Marlon Longo, que identificou essa configuração
de problema entre oportunidade de desenvolvimento desse eixo de transformação urbana
com a bacia do Lageado localizada na zona leste. Depois é que nós entramos e a
Universidade São Judas se propôs a fazer as parcerias, procurando colaborar com essa
iniciativa em andamento.
Por se tratar de uma microbacia relativamente pequena, há um potencial de estudo
piloto interessante. Conforme apontado, existem outras regiões nas quais estão previstos
eixos de transformação urbana ligados à implantação do sistema de mobilidade e que
justamente correspondem a áreas de córregos e vulnerabilidade urbana, portanto, seria
possível ensaiar aqui um modelo replicável em outras situações da cidade.

Método de estudo: sistema de informações e resultados

O diagrama apresentado na Figura 8 mostra como foi o método do estudo


conduzido pelo professor Filipe Falcetta para estruturação da modelagem hidrológica.
Começamos pelo ponto do Exutório, onde a bacia desagua no rio Tietê e tem aqueles
pontos de alagamento apresentados anteriormente. Há uma série de dados de entrada que
precisam ser fornecidos para a modelagem hidrológica, um deles são os parâmetros de uso
e ocupação do solo. O que nós propusemos foi estudar esses diferentes cenários de uso e
ocupação do solo para propor estratégias de desenvolvimento urbano capazes de alterar o
comportamento hidrológico da microbacia.
Pandemia do coronavírus – 137

Figura 8 – Esquema de entrada de dados no modelo hidrológico com destaque para os diferentes cenários
de uso de ocupação do solo testados durante o Curso de Introdução à Modelagem Hidrológica

Fonte: Elaborado pela autora (2021). Com base em Falcetta (2017).

Também foi mobilizado um conjunto de informações para chegar à delimitação da


bacia hidrográfica, como, por exemplo, os dados topográficos e pluviométricos, um modelo
digital do terreno, etc. Esses parâmetros foram incluídos no modelo para se obter as
simulações e todos eles resultam nos parâmetros do modelo chuva-vazão que determinam,
por fim, o modelo hidrológico, resultando no volume de vazão de pico, que é calculado no
Exutório da bacia.
Apresentaremos a simulação de três situações diferentes, sendo que a quarta
situação já seriam as diretrizes de transformação, tendo em vista os cenários analisados de
diferentes usos e ocupações do solo.

Diferentes cenários estudados

Estudamos quatro cenários dentro dos grupos de trabalho no curso de modelagem.


O primeiro cenário traz a situação da bacia adotando-se os parâmetros de uso e ocupação
do solo de 1930, ou seja, uma conformação muito próxima ao terreno natural, com pouca
área urbanizada. No segundo, a bacia com a ocupação atual de 90% e, no terceiro, uma
proposta da bacia com uma ocupação ideal – onde todas as Áreas de Preservação
Permanente (APP) estariam preservadas, as pavimentações teriam piso drenante e os lotes
com captação de água em parâmetros elevados. O quarto cenário traz oportunidades de
intervenção que existem de fato na bacia e podem melhorar a drenagem local, levando
a uma mitigação do problema das cheias no ribeirão do Lageado.
138

Cenário 1: Simulação do comportamento hidrológico da microbacia do Lageado em 1930

Figura 9 – Mapa de uso e ocupação do solo da microbacia do Lageado em 1930

Fonte: Trabalho da Equipe 1 do Curso de Introdução à Modelagem Hidrológica (2020): Flavio Antonio D'Ugo
Bragaia, Lucas Stéfano Rissatto, Rosana Yamaguti e Vinicius Araújo com base no modelo digital de elevação
levantamento SARA Brasil de 1930 realizado por Filipe Falcetta.
Pandemia do coronavírus – 139

A Figura 9 ilustra o uso e ocupação do solo em 1930 segundo o levantamento SARA


Brasil. A área é majoritariamente ocupada por mata e propriedades rurais, já a área
urbanizada é pouco expressiva. Nessa situação, como mostra a Figura 10, o volume de vazão
de pico no Exutório varia de acordo com o volume de chuvas no intervalo Huff.
O quartil de Huff 1, em azul, mostra uma chuva que começa intensa e vai diminuindo. Nesse
cenário, o tempo de concentração da bacia é de 4 horas e 22 minutos e o volume de pico
é de 38,6 metros cúbicos por segundo. Observam-se situações piores nos quartis seguintes,
atingindo 52,5 metros cúbicos por segundo em um tempo de concentração da bacia de
8 horas e 40 minutos no quartil de Huff 4.

Figura 10 – Resultados de volume de vazão de pico por tempo de ocorrência nos quatro padrões de chuva
de Huff definidos em um tempo de duração de 6 horas no Cenário 01 (1930)

Fonte: Trabalho da Equipe 1 do Curso de Modelagem Hidrológica (Prof. Filipe Falcetta, 2020): Flavio Antonio
D'Ugo Bragaia, Lucas Stéfano Rissatto, Rosana Yamaguti e Vinicius Araújo com base em modelagem
computacional realizada com o software HEC HMS
140

Cenário 2: Simulação do comportamento hidrológico da microbacia do Lageado em 2017

Figura 11 – Mapa de uso e ocupação do solo da microbacia do Lageado em 2017

Fonte: Fernandes et al. (2020, p. 57).


Pandemia do coronavírus – 141

O segundo cenário da bacia hidrográfica do ribeirão do Lageado é mais atual (2017).


A Figura 11 foi feita de acordo com imagens de satélite obtidas através do portal GeoSampa.
Esse cenário indica 90% de taxa de ocupação da bacia e predominam ocupações de uso
residencial horizontal de padrão baixo, que podem ser vistas em amarelo no mapa. No quartil
de Huff 1, esse modelo tem o pior desempenho, ou seja, o tempo de concentração da bacia
é baixo, 2 horas e 3 minutos, caindo quase pela metade, enquanto o volume de vazão é
131 m3/s, quase triplicando o valor visto no primeiro cenário. O gráfico apresentado pela
Figura 12 mostra os resultados do volume de vazão de pico por tempo de chuva obtidos pela
simulação computacional.

Figura 12 – Resultados de volume de vazão de pico por tempo de ocorrência nos quatro padrões de chuva de Huff definidos em um
tempo de duração de 6 horas no Cenário 2 (2017)

Fonte: Trabalho da Equipe 2 do Curso de Modelagem Hidrológica (Prof Filipe Falcetta, 2020): Janilson
Olegário Fernandes, Mari Anna de Camargo Firmino, Matheus Durigan, Pedro Henrique Herculano Correia,
Rafael Giorgi Costa, Rafael Sanches Pimentel com base em modelagem computacional realizada com o
software HEC HMS.
142

Cenário 3: Simulação do comportamento hidrológico da microbacia do Lageado em uma


situação ideal

Figura 12 – Mapa de uso e ocupação do solo da Microbacia do Lageado considerando condições ideais de
respeito à legislação ambiental e inexistência de núcleos e favelas, diminuição da taxa de ocupação e
aplicação de concreto permeável nas vias públicas

Fonte: Fernandes et al. (2020, p. 59).

Para se obter uma comparação de dados de vazão gerado pela simulação


no software HEC-HMS dos dois cenários anteriores (1930 e 2017), foi elaborado um
cenário com alterações e ideias de melhoria no uso e ocupação do solo dessa microbacia
hidrográfica. Fizemos esse cenário ideal considerando que haveria um respeito às APPs
com preservação de 30 metros de cada lado dos córregos, redução da taxa de ocupação
Pandemia do coronavírus – 143

de áreas residenciais, que poderia ser obtida por verticalização das habitações,
por exemplo, e substituição de toda pavimentação por concreto permeável, como pode
ser visto na Figura 12.
Nesse caso, conseguimos uma redução significativa para o primeiro quartil de Huff.
A Figura 13 mostra essa redução de 131 m3/s para 89,9 m3/s. Apesar do tempo de
concentração ter sido praticamente o mesmo, o volume de vazão de pico no Exutório é cerca
de um terço menor.

Figura 13 – Resultados de volume de vazão de pico por tempo de ocorrência no primeiro padrão de chuva
de Huff definidos em um tempo de duração de 6 horas nos Cenários 3, 1 e 2 (ideal, 1930 e 2017)

Fonte: Trabalho da Equipe 2 do Curso de Modelagem Hidrológica (Prof. Filipe Falcetta, 2020): Janilson
Olegário Fernandes, Mari Anna de Camargo Firmino, Matheus Durigan, Pedro Henrique Herculano Correia,
Rafael Giorgi Costa, Rafael Sanches Pimentel com base em modelagem computacional realizada com o
software HEC HMS.

Figura 14 – Comparação do comportamento hidrológico da microbacia do Lageado nos Cenários 1, 3 e 2


(2017, ideal e 1930)

Fonte: Trabalho da Equipe 2 do Curso de Modelagem Hidrológica (Prof. Filipe Falcetta, 2020): Janilson
Olegário Fernandes, Mari Anna de Camargo Firmino, Matheus Durigan, Pedro Henrique Herculano Correia,
Rafael Giorgi Costa, Rafael Sanches Pimentel com base em modelagem computacional realizada com o
software HEC HMS.
144

A Figura 14 aponta uma contraposição entre o cenário atual, o cenário ideal e àquele
de 1930. Apontando que o cenário ideal permite a redução no volume de pico em 30%
em relação ao cenário 2017. Com base no cenário ideal podemos estabelecer indicadores
objetivos de melhoria no comportamento hidrológico da Bacia. Esses indicadores podem
contribuir para aferir o impacto de obras e propostas de desenvolvimento urbano local
e também contribuir através de diretrizes para a regulamentação do uso e ocupação do
solo. Contribuindo assim para aferir o desenvolvimento urbano sustentável na localidade
atendendo os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS 6, 11 e 13).

Oportunidades de transformação

Sob a liderança do professor Rafael Giorgi Costa a equipe da São Paulo Urbanismo
procurou compreender como seria possível mitigar os problemas do comportamento
hidrológico da microbacia do Lageado apontados na análise do modelo computacional do
cenário 2017. Ou seja, quais oportunidades de transformação da bacia existem hoje.
Para entender como ela está configurada, eles mapearam a região, apontando o que são
lotes municipais, onde estão as favelas e os lotes privados transformáveis e zonas de
proteção ambiental.
O grupo também delimitou alguns compartimentos ambientais em função da
declividade, uma vez que os tipos de dispositivos de drenagem devem variar também por
esse fator.
Através dos princípios “reter, armazenar, atrasar, limpar e reutilizar as águas
pluviais”, eles traçaram diretrizes específicas para cada compartimento ambiental
identificado (várzea ou encosta por exemplo). Também procuraram entender como a
legislação urbanística poderia especificar diretrizes de drenagem considerando esses
princípios em função da localização dos compartimentos. Portanto, seria uma forma de
zoneamento em função do comportamento de drenagem da bacia hidrográfica.
Com isso, poderíamos estreitar a relação entre as diretrizes de drenagem com a
própria legislação urbanística existente (PIUs, Projetos Estratégicos, PPPs, projetos de
reurbanização de favelas, zoneamentos).
Para encerrar este estudo de oportunidades, os técnicos da SP Urbanismo, liderados
pelo colega docente Rafael Giorgi Costa, fizeram um conjunto de reflexões no sentido de
estreitar a relação entre dispositivos de drenagem e legislação urbanística. Por exemplo,
Pandemia do coronavírus – 145

Costa aponta que os compartimentos ambientais já utilizados nos Projetos de Intervenção


Urbana (PIUs), atualmente regulamentados pelo Plano Diretor, podem incluir funções
específicas de drenagem, como reter, armazenar, atrasar, limpar e reutilizar as águas pluviais.
Isso pode ser induzido em lotes privados e públicos, através de políticas públicas de
desenvolvimento urbano.
Seria necessário também integrar todas as bases de dados na cidade de São Paulo
para se ter as informações corretas e poder modelar com mais precisão as bacias. Além
disso, o zoneamento pode sim induzir maiores taxas de permeabilidade, com aumento de
gabarito, coeficiente de aproveitamento, verticalização e diminuição da taxa de ocupação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esses foram os resultados do último trabalho que o Lab Itaim Paulista promoveu em
colaboração com os parceiros do Laboratório Klimapolis, o Instituto de Pesquisas
Tecnológicas do Estado (IPT), a São Paulo Urbanismo e a subprefeitura do Itaim Paulista.
Este trabalho procurou estabelecer as bases para uma política pública de ação climática.
Analisou o comportamento hidrológico de uma microbacia hidrográfica periférica
densamente ocupada por população vulnerável frequentemente afetada pelos alagamentos
e deslizamentos de terra localizada no extremo leste da cidade de São Paulo.
Como os eventos de chuvas extremas tendem a ser mais severos e frequentes em
função da crise climática, o quadro analisado pode agravar-se no futuro. O estudo
quantificou através de um modelo computacional o volume de vazão de pico no exutório da
microbacia e estabeleceu um parâmetro numérico de atenuação do pico de vazão em 30%.
O estudo tem como objetivo contribuir para que o desenvolvimento urbano em áreas
periféricas seja mais justo socialmente, mais sustentável e resiliente. Esperamos contribuir
para abordar a complexidade dos problemas ambientais, da ocupação das bacias
hidrográficas e do problema da água (quando falta e quando vaza) e incluir uma nova
abordagem da ciência e da universidade para a transformação das cidades, atendendo aos
objetivos do desenvolvimento sustentável comunidades sustentáveis, água potável e
saneamento e ação contra a mudança global do clima (ODS 6, 11, 13).
146

REFERÊNCIAS

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transdisciplinary research project urban transformation laboratories. GAIA – Ecological Perspectives for
Science and Society, n. 27, p. 39-45, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.14512/gaia.27.S1.10. Acesso
em: 20 jun. 2021.

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topográficas e modelo digital de elevação: procedimentos metodológicos: FIPT-PTC 1001/15. São Paulo:
Fundação de Apoio ao IPT, 23 nov. 2017. . Acesso em: 15 nov. 2021.

FERNANDES, J. O. et al. Obtenção e elaboração de dados para aplicação do método do diagrama unitário
na bacia ribeirão do Lageado pelo HEC-HMS. 2020. Monografia (graduação em Engenharia Civil) –
Faculdade de Engenharia Civil, Universidade São Judas, São Paulo, 2020.

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WANNER, M. et al. Towards a cyclical concept of Real-World Laboratories. The Planning Review, v. 2, n. 54,
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Pandemia do coronavírus – 147

C A P Í T U L O 11
______________

RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA:
DESAFIANDO OS LIMITES DA SOBREVIVÊNCIA

Carolina Vieira da Silva21

INTRODUÇÃO

O homem interfere na natureza desde o início da humanidade, moldando o planeta


Terra em seus aspectos físicos, sociais e ambientais (NAVES; BERNARDES, 2014, p. 7).
Atualmente, as ações que configuram essa interferência são muito influenciadas pela
economia, tanto em nível local quanto mundial (CIDREIRA-NETO; RODRIGUES, 2017, p. 142).
Assim, a relação homem-natureza hoje em dia caracteriza-se como uma relação
predominantemente capitalista (SILVA; SAMMARCO, 2015, p. 2).
Para sobreviver o homem necessita do meio ambiente e essa dependência sempre
existiu ao longo da história. Nossos antepassados, que eram nômades, buscavam o seu
sustento da natureza (NAVES; BERNARDES, 2014, p. 11). Mesmo dominando-a, o homem
não detinha todo o conhecimento sobre o seu funcionamento, e, por isso, era obrigado
a migrar para outras regiões buscando obter seu alimento (AVILA; LINGNAU, 2015, p. 140).
Entretanto, com o passar do tempo, o homem desenvolveu técnicas que possibilitaram sua
permanência em determinados locais, deixando de ter o nomadismo como um estilo de
vida, formando então civilizações (NAVES; BERNARDES, 2014, p. 12).
Com o desenvolvimento das civilizações houve o surgimento dos problemas sociais,
econômicos e políticos, que também estão associados às questões ambientais. Dessa forma,
os impactos ao meio ambiente não afetam apenas a natureza, mas a sociedade como
um todo, sendo, portanto, um problema socioambiental (NAVES; BERNARDES, 2014, p. 9).
Assim, para a construção da sociedade torna-se cada vez mais necessário analisar e estudar
as atitudes do homem em relação à natureza (SILVA; SAMMARCO, 2015, p. 1).

21
Doutora em Ciências Biológicas: Área de concentração Zoologia, docente na Faculdade Eduvale de Avaré,
São Paulo. E-mail: cvscarol@hotmail.com
148

A construção da sociedade também está atrelada ao crescimento da população, que


veio acompanhado de avanços científicos, resultando em progresso e desenvolvimento
econômico dos países, como ocorrido na Revolução Industrial por volta do século XVIII
(NAVES; BERNARDES, 2014, p. 20). Para alcançar o crescimento industrial, o meio ambiente
foi explorado de forma ilimitada e irracional, visando apenas ao lucro e ao aumento
da produção econômica a qualquer custo (GERENT, 2011, p. 24). Com o capitalismo o
homem passou a ter uma visão equivocada da natureza, considerando-a um recurso
inesgotável que deve ser utilizado para o progresso industrial, e sua preservação um
obstáculo para o crescimento econômico dos países (NAVES; BERNARDES, 2014, p. 20).
Assim, a expansão do sistema industrial e da população nas grandes cidades favorece
o aumento da exploração dos recursos naturais, devido à visão capitalista e utilitária que o
homem tem em relação à natureza (CIDREIRA-NETO; RODRIGUES, 2017, p. 148).
No início do século XIX, a humanidade experimentou uma crise ambiental que
trouxe consequências desastrosas para o planeta e para seus habitantes, como a extinção
de espécies, poluição aquática, poluição atmosférica, poluição do solo, alterações
climáticas e esgotamento dos recursos naturais como um todo (GERENT, 2011, p. 25).
A crise ambiental também está associada ao crescimento populacional tanto no passado,
quanto no presente, e nos leva a refletir sobre os seguintes questionamentos:

Como alimentar os habitantes de toda a Terra sem exaurir suas lavouras e sem
causar a extinção de inúmeras espécies de animais? Ademais, como sustentar
o aumento qualitativo nas condições de vida da humanidade se muitos recursos
utilizados para esse fim já estão perto de seu esgotamento, existindo cálculos de
que seria necessário aproximadamente um planeta e meio em recursos naturais
para mantermos a capacidade de regeneração da Terra? (FRIEDE, 2021, p. 84).

A utilização dos recursos naturais do planeta para a produção em maior escala,


devido ao aumento populacional é um assunto que desperta crescente preocupação
no agravamento da crise ambiental. O nível de desenvolvimento dos países e o poder
aquisitivo da população também interferem nessa crise, pois seu avanço está associado
à intensidade do consumo na sociedade, que varia de acordo com a riqueza ou pobreza
da população (AVILA; LINGNAU, 2015, p. 139). Dessa forma, a capacidade suporte e a
quantidade de planetas Terra necessários para suprir a demanda da população estão
relacionados ao estilo de vida das pessoas e aos seus hábitos de consumo, envolvendo
condições de moradia e alimentação, geração de resíduos, formas de deslocamento
e compra de produtos (ARRUDA; AZEVEDO; DALMAS, 2017, p. 108).
Pandemia do coronavírus – 149

Rattner (1977) já chamava a atenção para a associação entre esgotamento dos


recursos naturais, crescimento populacional e o destino da humanidade. Essa
preocupação só tem aumentado, visto que a utilização dos recursos naturais pelo homem
de forma exploratória gerou e vem gerando um rastro de destruição ambiental em grande
escala (CIDREIRA-NETO; RODRIGUES, 2017, p. 143).
A sobre-exploração das reservas de petróleo, de madeira, de água doce e de
minerais, como, por exemplo, a areia extraída nos leitos de rios, vem contribuindo para
a escassez dos recursos naturais em todo o globo terrestre (SUBRAMANIAN, 2018, p. 8,
tradução nossa). Embora o planeta Terra seja composto majoritariamente por água,
apenas 0,3% corresponde à água potável, sendo um recurso natural finito. O desperdício
e a poluição desse importante recurso, desde o passado até o presente, resultam na crise
hídrica que o planeta enfrenta. Além disso, o crescimento da população e do seu consumo
contribui para o aumento da demanda hídrica global (VERIATO et al., 2015, p. 21). Estima-se
que por volta de 2050 a necessidade de água aumente em 55% nos setores de produção,
geração de eletricidade térmica e uso doméstico (UNESCO, 2015, p. 2, tradução nossa).
Além disso, no mesmo período, a demanda por alimento também irá crescer, com um
aumento de 60% da produção agrícola global e de 100% em países em desenvolvimento
(UNESCO, 2015, p. 3, tradução nossa).
Um dos grandes desafios da agropecuária é suprir essa demanda por alimento com
menor utilização de recursos, visto que o meio ambiente já foi muito degradado pelo setor
produtivo nos últimos tempos. O desperdício na cadeia de produção de alimentos contribui
para o aumento dos impactos ambientais, porque faz com que seja produzido mais que
o necessário. Essa prática resulta em perdas que comprometem a utilização sustentável
dos recursos naturais e aumentam sua escassez (NASCIMENTO, 2018, p. 91). A humanidade
depende desses recursos para se alimentar, porém, os alimentos produzidos que não são
consumidos resultam na redução da biodiversidade, utilização desnecessária da água e do
solo, emissões de carbono e de outros gases do efeito estufa (FAO, 2021).
Florestas são importantes sequestradoras de carbono, mas infelizmente muitas
árvores deixam de existir a cada minuto em todo o mundo. Sua destruição e/ou redução
tem aumentado em até 15% as emissões globais de gases do efeito estufa. Além disso,
as florestas são habitats para diversas espécies, incluindo aquelas ameaçadas de extinção,
porém, o desmatamento do último século fez com que mais da metade das florestas
tropicais do mundo fossem exterminadas (SUBRAMANIAN, 2018, p. 9, tradução nossa).
150

Em função das elevadas taxas de extinção de espécies dos últimos tempos,


cientistas acreditam que pode estar acontecendo uma sexta extinção em massa.
Mamíferos são exemplos de que a Terra está perdendo suas espécies, visto que das 5,5 mil
espécies conhecidas, 80 foram extintas nos últimos 500 anos (BARNOSKY et al., 2011, p. 51,
tradução nossa). De acordo com as informações do Livro Vermelho da Fauna Brasileira
Ameaçada de Extinção (2018), publicado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio), a lista de espécies ameaçadas tem sido sempre crescente com
o passar do tempo. A primeira edição da lista foi publicada em 1968 com 44 espécies,
e dessas 30 ainda constam na lista de 2014, que totaliza 1.173 táxons ameaçados de extinção.
Esse dado confirma quanto a conservação da biodiversidade tem sido negligenciada
em nosso país. Ainda de acordo com a lista de 2014, entre os grupos de animais vertebrados,
os peixes cartilaginosos são os que apresentam o maior número de espécies ameaçadas
de extinção.
A pesca predatória e o comércio das nadadeiras de tubarão são alguns dos
principais motivos da redução das espécies de peixes cartilaginosos em todo o mundo.
O Brasil tem grande parcela de contribuição para o declínio desses animais, pois ocupa a 11ª
posição no ranking de países que mais capturam tubarões, sendo também o 1º que mais
importa sua carne. Muitas espécies de tubarão ameaçadas de extinção são desembarcadas
e comercializadas em nosso país, embora seja uma prática ilegal (BARRETO et al., 2017, p. 114,
tradução nossa). No Brasil, a carne de tubarão é vendida como carne de cação, e a maioria
dos brasileiros não sabe o que está consumindo, porque desconhece que o termo “cação” se
refere a todos os peixes cartilaginosos (BORNATOWSKI et al., 2015, p. 196, tradução nossa).
Além de afetar a biodiversidade, a pesca predatória também pode contribuir
de maneira indireta para o surgimento de doenças e epidemias, como no caso da
disseminação do vírus Ebola na África. Muitas comunidades de pescadores ao longo
da costa africana sobrevivem da pesca de subsistência, no entanto, grandes embarcações
estrangeiras, financiadas principalmente por empresas chinesas e europeias estão
dizimando os estoques pesqueiros da região. Dessa forma, os moradores passaram
a procurar alimento nas florestas, o que aumentou a caça e o consumo de animais
selvagens, e consequentemente, o surgimento de zoonoses (OMOLEKE et al., 2016, p. 31,
tradução nossa).
Pandemia do coronavírus – 151

O surgimento de zoonoses é um reflexo de desequilíbrio nos ecossistemas,


envolvendo humanos, animais, patógenos e o meio ambiente. Essas doenças surgem em
hospedeiros animais e são transmitidas a humanos, podendo causar pandemias, como a da
Covid-19, cujas causas são complexas, misteriosas e merecem uma análise criteriosa
(MORENS; FAUCI, 2020, p. 1077, tradução nossa). Em 30 de março de 2021 a Organização
Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório sobre possíveis hipóteses para a origem
do novo coronavírus (SARS-CoV-2), porém, algumas questões permaneceram em aberto,
sendo necessárias mais investigações e estudos para elucidar o que ocasionou a pandemia
da Covid-19 (WHO, 2021).
Entre as hipóteses do relatório, os pesquisadores concluem que o morcego é o
provável hospedeiro e que a transmissão pode ter acontecido diretamente desse animal
para o humano, através de contato. No entanto, os especialistas também não descartam
a possibilidade de que tenha existido um hospedeiro intermediário entre o animal infectado
e o homem, ou seja, o morcego que desenvolveu o vírus infectou outro animal
(possivelmente o pangolim), que posteriormente transmitiu a doença para o ser humano.
Outra hipótese citada no relatório é que o SARS-CoV-2 pode ter sido transmitido
ao homem por alimentos congelados e/ou resfriados e por embalagens e recipientes
encontrados nos mercados, como o de Huanan, localizado na cidade de Wuhan na China
(WHO, 2021, p. 108, tradução nossa). A origem da pandemia da Covid-19 a partir de um
acidente do laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan foi considerada uma hipótese
extremamente improvável. Antes de dezembro de 2019 não foram registrados em nenhum
laboratório cultivos de SARS-Cov-2 ou de outros vírus relacionados. Além disso,
as instalações dos laboratórios apresentavam elevado nível de biossegurança, o que torna
o contágio acidental de pessoas extremamente baixo (WHO, 2021, p. 119, tradução nossa).
Independentemente da origem da pandemia da Covid-19, há dois fatores principais
que facilitam a transmissão de doenças entre animais selvagens e pessoas: a invasão
de áreas naturais pelo homem (ex. desmatamento, atividades de mineração, ocupação de
terras para expansão agropecuária) e o comércio de animais silvestres, tanto para o tráfico,
quanto para o consumo da carne (VOLPATO et al., 2020, p. 1, tradução nossa). As mudanças
climáticas também podem contribuir para o surgimento de zoonoses, porque são capazes
de criar condições que favorecem a sobrevivência e o desenvolvimento de patógenos,
assim como sua disseminação (RODÓ et al., 2021, p. 576, tradução nossa).
152

Diante desse contexto de desequilíbrio ambiental decorrente de impactos


antrópicos, como, por exemplo, mudanças climáticas, extinção de espécies e degradação
de áreas naturais, o homem “é a única espécie no planeta responsável pelas pandemias
observadas no último século, incluindo a atual pandemia de Covid-19” (JOLY; QUEIROZ,
2020, p. 74). Assim, o controle do surgimento de doenças provocadas por patógenos
oriundos da fauna silvestre está diretamente relacionado ao equilíbrio e à preservação
dos ecossistemas. Há uma infinidade de microrganismos prejudiciais ao homem que
ainda não são conhecidos pelos cientistas.
Com a devastação das florestas e extinção das espécies, esses microrganismos
que viviam em equilíbrio com o ecossistema têm maior probabilidade de entrar em contato
com seres humanos e causar futuras epidemias e pandemias (ARTAXO, 2020, p. 65).
Com a destruição do habitat os animais silvestres, principalmente mamíferos, buscam abrigo
em outras regiões, podendo invadir áreas habitadas pelo homem. Esse contato é facilitado
em regiões de floresta tropical, onde a vegetação natural está sendo suprimida. Por haver
um maior risco do surgimento de zoonoses, esses locais são considerados “hotspots” globais
de doenças zoonóticas emergentes (ALLEN et al., 2017, p. 1, tradução nossa).
O Brasil é considerado um desses hotspots e pode ser um epicentro para o
surgimento de novas zoonoses, por tratar-se de um país megadiverso com elevada
extensão territorial e elevado índice de desmatamento, abrigando grande diversidade
de animais silvestres, que podem atuar como hospedeiros para inúmeros patógenos
(ELLWANGER; CHIES, 2018, p. 76). Além disso, o Brasil possui a maior área da floresta
amazônica, e o intenso desmatamento na região, além de ameaçar a sua elevada
biodiversidade, aproxima os seres humanos da vida selvagem e aumenta a disseminação
de vetores de doenças (ELLWANGER et al., 2020, p. 1).
As principais estratégias para prevenção de futuras epidemias e pandemias são
preservar a natureza e eliminar o contato do homem com animais silvestres (UNEP, 2020,
p. 45, tradução nossa). Entretanto, os tomadores de decisão devem reconhecer a
importância disso. É necessário maior investimento financeiro no combate ao
desmatamento e aos impactos negativos na vida selvagem, como a caça e o comércio de
animais silvestres. Estima-se que um plano de monitoramento para prevenção de zoonoses
com base na fiscalização ambiental, com duração de 10 anos teria o custo de somente
2% do valor que vem sendo gasto com a pandemia da Covid-19 no mundo todo (DOBSON
et al., 2020, p. 381, tradução nossa).
Pandemia do coronavírus – 153

A pandemia causou muitos prejuízos financeiros, emocionais, políticos, sociais,


educacionais, culturais e consequências trágicas para a saúde das pessoas, deixando
milhares de doentes e mortos no mundo todo. Até o momento, vivemos um cenário de
incertezas em relação ao futuro da humanidade frente à ameaça de um vírus com um
potencial de destruição tão grande. Apesar de toda instabilidade é preciso traçar um novo
começo com base nas lições que a pandemia da Covid-19 nos trouxe, e entendermos
de uma vez por todas que a saúde humana está intimamente ligada à preservação da
biodiversidade e manutenção dos serviços ecossistêmicos (JOLY; QUEIROZ, 2020, p. 81).
A capacidade regulatória dos serviços ecossistêmicos também foi afetada pela
pandemia, refletindo em uma melhora na qualidade ambiental. Em 2020, durante um
período de lockdown (restrição da circulação da população) em São Paulo capital,
foi verificada uma redução significativa na concentração de poluentes atmosféricos na área
urbana (NAKADA; URBAN, 2020, p. 5, tradução nossa). A melhoria na qualidade do ar em
períodos de lockdown também foi observada em cidades de outros países (SKIRIENE;
STASIŠKIENE, 2021, p. 1, tradução nossa; SINGH; CHAUHAN, 2020, p. 921, tradução nossa).
Além da qualidade do ar, a restrição da circulação de pessoas e a desaceleração da economia,
também reduziram a poluição da água e trouxeram melhorias na qualidade dos recursos
hídricos em diferentes partes do mundo (RUME; ISLAM, 2020, p. 3, tradução nossa).
Esses resultados nos mostram que o planeta Terra é um organismo vivo capaz de se
autorregular. Entretanto, o alcance desse equilíbrio está na dependência das ações
antrópicas, que em sua maioria são contrárias à ideia da conservação do meio ambiente.
Se a humanidade não voltar a respeitar a natureza, os danos ao planeta Terra podem ser
irreversíveis, levando-o à destruição (VALADÃO et al., 2008, p. 2).
As melhorias na qualidade ambiental, observadas durante a pandemia podem ser
temporárias se não houver a implementação de políticas públicas que tenham por objetivo
eliminar o modelo de produção insustentável vigente (Le QUÉRÉ et al., 2020, p. 652,
tradução nossa). A pandemia nos mostrou que é possível reduzir a emissão de poluentes,
e para dar continuidade a esse feito investimentos em tecnologias que possibilitem
o trabalho remoto devem continuar (NAKADA; URBAN, 2020, p. 5, tradução nossa), assim
como estratégias para implementar a economia verde em todos os setores de produção
(HEPBURN et al., 2020, p. 16, tradução nossa; ONCIOIU et al., 2021, p. 15, tradução nossa),
aliando progresso econômico, conservação ambiental e sustentabilidade.
154

A crise ambiental que afeta o país há décadas fez com que a cadeia do setor produtivo
buscasse inovações tecnológicas para a criação de produtos mais sustentáveis. Algumas
empresas investiram na utilização de recursos renováveis para a produção de bens e
serviços, tendo como principal premissa não exceder a capacidade de regeneração desses
recursos, bem como o controle da emissão e o descarte correto de resíduos (ZANIRATO;
ROTONDARO, 2016, p. 84), entretanto, os esforços não foram e ainda não são suficientes.

Certamente será um grande esforço, que envolverá a dedicação de gerações, mas


normalmente, mudanças de longo alcance na sociedade humana surgem a partir
de grandes impactos, assim a Covid-19 se apresenta como um ensejo e uma
oportunidade. (ACOSTA et al., 2020, p. 201).

A pandemia da Covid-19 nos trouxe inúmeras lições, e entre elas tornar ainda mais
evidente que a degradação ambiental traz séria ameaça à sobrevivência da humanidade.
Se não houvesse a exploração da fauna silvestre, o coronavírus causador da Covid-19
não teria evoluído para SARS-CoV-2, e sua circulação estaria restrita aos limites das
florestas, permanecendo somente entre os animais selvagens (ACOSTA et al., 2020, p. 194).
Apesar de todos os ensinamentos que a pandemia proporcionou em relação à
importância da conservação ambiental, ainda continuamos errando com a natureza.
Muitos resíduos plásticos gerados em todo o mundo desde o surto do SARS-CoV-2 não são
descartados de maneira correta e se espalham pelos oceanos. Estima-se que 1,6 milhão
de toneladas de resíduos plásticos biomédicos são produzidas por dia e que 3,4 bilhões
de máscaras sejam descartadas diariamente em todo o mundo. Dessa forma, os níveis de
poluição ambiental por plástico podem constituir um perigo ainda maior para a sobrevivência
dos animais marinhos, os quais já se encontram extremamente ameaçados pelo acúmulo
de plástico nos oceanos (BENSON; BASSEY; PALANISAMI, 2021, p. 8, tradução nossa).
O conceito de Saúde Única (One Health) traz uma abordagem que considera a saúde
humana, animal e ambiental como indissociáveis. Esse conceito foi muito discutido no atual
contexto da pandemia (LIMONGI; OLIVEIRA, 2020, p.146), sendo uma abordagem
fundamental para a superação da Covid-19 e prevenção de futuras catástrofes como essa
(DEEM; BRENN-WHITE, 2020, p.34, tradução nossa). É necessário que profissionais de
diferentes áreas promovam a aplicação da Saúde Única para alcançarmos uma sociedade
mais justa, consciente e sustentável.

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Pandemia do coronavírus – 157

C A P Í T U L O 12
______________

SAÚDE AMBIENTAL, SAÚDE HUMANA:


O SER HUMANO FORMA PARTE DA NATUREZA

Edson Vicente da Silva22

INTRODUÇÃO

Quero inicialmente agradecer ao convite para participar do Primeiro Congresso


Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável, para falar sobre o tema: Como será
o mundo após a crise. Na verdade, há que conhecer o passado e o presente para se poder
projetar o futuro, para projetar de que forma vamos caminhar, que opção a Humanidade
tem de gerenciar e controlar o nosso planeta.
Então optei pelo tema: Saúde Ambiental, Saúde Humana, se conservarmos
a natureza, teremos uma saúde ambiental e humana, mas se degradarmos o ambiente,
o que será de nós? Temos de entender que o ser humano faz parte da natureza, o ser
humano é como o mar, o planeta é só uma nave que desliza no grande rio que é o cosmo.
Essa é a grande e maior necessidade da Humanidade, precisamos de uma inteligência
natural que muitas vezes nos falta, para compreender, sentir, perceber o pertencimento
a essa unidade maior que é o nosso planeta, saber que fazemos parte desse ser único e
maior que nos envolve e propicia a vida.
Na segunda década do Terceiro Milênio, as diferentes formas de vida no planeta
recebem os efeitos e interações das rápidas inovações científicas, tecnológicas, a retomada
das viagens espaciais, a comunicação a distância em tempo presente, a internet, que
domina a vida e cotidiano da sociedade, e principalmente as revoluções no transporte
e comunicação, e como isso facilita a conexão, a rapidez, mas também a transmissão de
enfermidades, como se aborda nesta palestra.
Em determinados setores científicos a Humanidade caminha a passos largos e cada
vez mais rápido e, enfim, chega-se a um elevado estágio de inteligência artificial nunca antes
imaginado, pensado apenas em filmes de ficção científica. Por outro lado, também cada vez

22
Professor doutor, Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. E-mail: cacauceará@gmail.com
158

mais se vão alimentando novas epidemias, de modo que elas virem pandemias. Essa que está
acontecendo agora, a da Covid-19, é algo que já aconteceu de forma similar, no caso da
malária, da peste negra, então, nós temos que compreender como é que isso foi acontecer
e o seu porquê, ou seja, uma questão que ninguém procura responder é como elas surgem.
Esse fato comprova que estamos passando por uma progressiva perda da
inteligência humana natural, da percepção ambiental e social, esquecemos de que somos
parte de um grupo e assumindo cada vez mais comportamentos individualistas. Muitas
das percepções que eram emotivas há anos, hoje se tornam apenas cifras, dados
censitários e estatísticos. A fome, as mortes e desnutrições são abordados apenas como
cifras, números e percentuais.
Assim, a qualidade de vida, a intensidade da fome, as enfermidades e a própria
guerra são maquiadas em forma de valores frios em nosso cotidiano, a mídia vai
transformando essas realidades em algo habitual e comum. A manipulação desses dados,
porém, não pode mascarar as diferenças socioeconômicas e da qualidade de vida no seio
da sociedade contemporânea, principalmente quando lançamos um olhar crítico sobre
o eixo norte-sul no planeta, e se visualizam as tremendas diferenças entre as populações
dos países desenvolvidos e os chamados países em desenvolvimento.
O sentimento que temos pela natureza assume uma visão antropocêntrica,
principalmente junto à população urbana. Compreende-se a fauna e a flora como criaturas
sem espiritualidade qualquer, como se não sentissem dor, nem qualquer tipo de incômodo
e desconforto. A questão dessa diferença de inter-relações com a natureza é como se nós
nos tratássemos como seres privilegiados, independentes e até fora da própria Natureza.
A partir dessa visão antropocentrista predominante, Deus é a nossa imagem e nós
também somos a imagem de Deus. Como filhos preferenciais, o que é pregado pela
maioria das religiões, agimos como a natureza e nosso planeta feito para ser dominado e
espoliado, por sermos justamente os grandes seres superiores.
Na realidade histórica, os seres humanos sempre conviveram com a natureza de
forma orgânica, retirando dela apenas recursos naturais destinados à sua sobrevivência.
No princípio da Humanidade, como ainda é observado em algumas comunidades indígenas
contemporâneas, desenvolve-se maior harmonia e sustentabilidade com a Natureza.
Maior conhecimento perceptivo e intrínseco entre os seres humanos e o seu meio.
A Revolução Industrial e o neocolonialismo foram processos históricos que
levaram a uma grande modificação do planeta, à compartimentação que a gente vê hoje
entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Justamente essas oposições
Pandemia do coronavírus – 159

fizeram com que as relações entre sociedade e natureza se tornassem cada vez mais
antagônicas, predominando as visões antropocentrista, individualista, e cada vez mais
o ser humano aparece como dominante e o há o predomínio das sociedades urbanas.
Mesmo nas zonas rurais há o predomínio dessa visão antropocêntrica, incentiva-se cada
vez mais a assimilação de hábitos e consumos urbanos por parte da população rural.
As pessoas do meio rural, em sua maioria, anseiam ir para a cidade e viver como
moradores urbanos, e a mídia, logicamente, acaba incentivando e estimulando o modo
de vida urbano ocidental, e essa forma de busca acaba se tornando um sonho, uma visão,
um cenário futuro com a predominância da vida urbana, onde o ser humano se mantém
longe da natureza, principalmente para as novas gerações. O homem é lobo do homem,
da própria humanidade, as guerras, os conflitos que o próprio homem cria é que destroem
a natureza, como relatam as histórias da Humanidade.
E depois a aceleração e aumento da capacidade dos meios de transporte e
deslocamento nos países em desenvolvimento, levando a um progressivo acúmulo de
pessoas nos transportes de massa, facilitando a propagação de epidemias. Destaca-se,
assim, que não só a quantidade de pessoas contaminadas aumenta, mas também
a velocidade dessa transmissão, as novas tecnologias atingem não apenas os meios
de comunicação e transporte, mas também os meios de produção, a intensidade de
transformação da Natureza, que cada vez mais chega ao campo.
Nesse sentido, há também uma significativa redução da mão de obra não
especializada, principalmente nas práticas mecanizadas, industrializadas do agronegócio
e de outras formas de produção. Essa população rural acaba buscando o sonho de viver
uma vida urbana, procurando novas formas de comportamento e de consumo que vão
intensificando cada vez mais o êxodo rural dos jovens para os grandes centros urbanos.
A mecanização é um fato no meio rural, quando se falava em meio rural anos atrás,
se pensava em uma fazenda, um agricultor, mas hoje a visão é outra, predominam grandes
áreas de irrigação e o uso de maquinarias pesadas, como ocorre, por exemplo, no bioma
Cerrado, que hoje é praticamente todo ocupado pelo agronegócio. Constata-se que houve
uma grande mudança demográfica e social a partir do século XX, que transformou
significativamente a história da Humanidade, e que essa nova dinâmica social e econômica
que tem surgido vai alterando de forma significativa a natureza, geoambiente,
geobiodiversidade, enfim, as paisagens naturais como um todo.
160

Quanto mais o espaço geográfico vai se tornando urbano e artificial, as paisagens


naturais vão se reduzindo, isso reflete negativamente com a degradação de biomas,
de ecossistemas, das formações fitoecológicas e no estado de conservação da fauna
e de da flora no Brasil. Atualmente, no país, o que ainda resta de natureza está
relacionado às áreas de unidades de conservação, terras indígenas e reservas de
desenvolvimento sustentável.
Um exemplo dessa degradação sobre o que resta ainda de natureza é a Amazônia,
onde é possível observar o arco do desmatamento, os avanços das frentes agrícolas,
da mineração, das madeireiras, da pecuária, da agroindústria, dos grandes
empreendimentos para a produção de energia elétrica e a exploração de minérios, que
impactam de forma irreversível toda a parte sul do Amazonas e vão avançando de forma
acelerada em direção de leste a oeste e ao norte também. Os projetos e mineração
e criação de gado, de escoamento da soja vão implementando transformação também
no entorno do bioma Amazônico, para o litoral e Região Centro-Oeste.
Dentro do contexto científico atual, a concepção de Antropoceno leva à noção de
que estamos entrando em uma nova idade geológica. Com o final do Holoceno, se passa
para uma nova idade, o Antropoceno, dado que um elevado número de cientistas chega
a um comum acordo: de que os impactos humanos passaram a se tornar mais efetivos
a partir de 1950. É nesse momento cronológico que ocorre a denominada “Grande
Aceleração”, quando há um crescimento exponencial da ocupação humana na superfície
do planeta, que, conjugando com as modificações do Holoceno, vem causar grandes
mudanças nos processos sedimentares, de infiltração da água, na qualidade da
termosfera, principalmente quanto aos problemas de eutrofização ambiental e extinção
de diferentes espécies da fauna e da flora.
Todas as atividades em conjunto, como os grandes incêndios, os processos de
urbanização e industrialização, a captação de energia de forma indevida, principalmente
o crescimento das cidades, alteram profundamente os ciclos geobioquímicos. As grandes
concentrações populacionais nas cidades, leva a que parte da população vinculada
ao agronegócio e seus grandes empreendimentos atuem na formação de colônias
e assentamentos paralelos que entram diretamente em contato com a borda da floresta
e sua biodiversidade.
No contexto do Antropoceno, é visível a acidificação dos oceanos, o aumento
emissão de gases de efeito estufa, o aumento de buracos na camada de ozônio,
alterações climáticas e modificações ambientais, que são registradas, que são medidas,
que são quantificadas, porque são as novas realidades no contexto global atual.
Pandemia do coronavírus – 161

Surgem ainda as grandes migrações por conta das mudanças climáticas, por
conflitos socioambientais, por atrativos econômicos, como o desenvolvimento
concentrado da produção de cana de açúcar na Região Sudeste, fazendo com que um
contingente enorme de pessoas do Nordeste trabalhe por temporadas de safra, ou então
em projetos de mineração. Ambas as atividades promovem o surgimento de ocupações
residenciais e assentamentos urbanos irregulares sem condições urbanas mínimas. Todos
esses fatos formam parte do atual cotidiano antropocênico.
Entre 1950 e 2000 houve modificações quantificativas muito importantes no
contexto mundial, houve uma progressão populacional de 3 para 6 bilhões de pessoas.
Em 50 anos dobrou a população, o consumo do petróleo como energia maior que
movimenta a economia aumentou em 4 vezes, as atividades econômicas como um todo
aumentaram 15 vezes, e hoje a urbanização e os padrões de consumo industrial, do
consumo em massa, predominam em todo o planeta.
O grande problema hoje quando se trata do Antropoceno, é que surge uma nova
classe de processos anteriormente naturais, uma nova categoria de sedimentos, alguns
derivados do petróleo, outros nanopartículas e metais pesados, tudo isso começa a se
incorporar no ambiente a partir das ações humanas. Por outro lado, a biodiversidade
começa a se reduzir, e nesse contexto vamos falar sobre o Brasil, que é um dos maiores
exportadores de biodiversidade do planeta.
O território brasileiro possui de 10 a 20% de toda a fauna e flora do planeta,
com um total de 103 mil espécies de animais e 43 mil espécies de plantas. Só a Amazônia
corresponde a 30% das florestas tropicais, ou seja, o que dela ainda resta. Sua floresta
é um legado para a Humanidade, servindo para contrabalancear as mudanças climáticas e
ambientais. Promove o equilíbrio do ciclo hidrológico. Nessa perspectiva, há uma
necessidade essencial de que se desenvolva uma gestão mais adequada da nossa
biodiversidade, das nossas florestas.
No Brasil, cálculos feitos pelo ICMBio, destacam que o Brasil tem cerca de 8.200
espécies de vertebrados, destes são 4.100 peixes, 1.800 aves, 880 anfíbios, 720 répteis
e 710 mamíferos. Então quando se relaciona a biodiversidade com o surgimento de
doenças transmitidas por animais, pode-se constatar que existe uma relação muito grande
de animais e uma possibilidade também muito forte de transmissão de doença por animais,
se não houverem os devidos planos de gestão e de relação entre sociedade e natureza.
162

É na fauna amazônica onde se estabelece a maior biodiversidade e logicamente


os vetores de transmissões de pandemias. A Amazônia demanda melhor estratégia de
planejamento e de gestão de suas florestas e de sua biodiversidade. Segundo Binswanger
(1989), os grandes problemas da Amazônia estão relacionados às políticas públicas vigentes,
uma vez que em sua maioria estão voltadas para a destruição ambiental e não para a
conservação e gestão. Ele destaca a presença de subsídios diretos para desmatar
a floresta por madeireiros e grandes projetos, a criação de desenvolvimento de uma
indústria florestal ineficiente e predadora, o aporte de subsídios para os pecuaristas,
visando a equilibrar a balança comercial, impostos e créditos facilitados para quem vai
explorar a floresta.
Tive a oportunidade de, em 1976, subir o rio Amazonas, de Belém até Letícia, Iquitos
e Pucalpa, na Colômbia e Peru. Nesse período não havia energia, energia elétrica nas
margens fluviais, tampouco cabeças de gado. Atualmente, se observam rebanhos
e rebanhos de gado bovino e babulino nas margens do rio Amazonas, em suas várzeas.
O rio hoje é como uma grande rodovia aquática e pode-se visualizar em seu baixo curso
uma grande estrada ocupada desordenadamente em suas margens, onde a atual instalação
de redes de energia elétrica favorece a sua ocupação.
Com relação às políticas públicas, Binswanger (1989) destaca a isenção de impostos
na renda agrícola para os grandes empreendimentos, créditos agrícolas subsidiados para
o agronegócio, e ainda uma questão que é mais importante por ser conflitiva, que é a
grilagem, a legalização da grilagem. Quando os latifundiários colocam os grileiros paras
as frentes de desmatamentos e queimadas, é porque depois por meio dos cartórios
se busque a legalização das suas terras, que foram em síntese tomadas a força da União.
Há políticas de migração que ainda promovem a visão de ocupação da Amazônia,
da urbanização e da industrialização das cidades amazônicas, como é o caso de Manaus,
que é uma cidade que cresceu de forma incrível nesses últimos anos. Hoje Manaus é a
sétima cidade em população no Brasil, ultrapassando a cidade de Belém que durante muito
tempo foi a maior cidade da Amazônia brasileira.
As transformações socioambientais ao logo da calha do rio Amazonas foram
substanciais nos últimos 50 anos, construções de portos para exportação da soja,
dos minérios, de petróleo, e também para a crescente circulação de passageiros. Foram
e vão surgindo novas formas de ocupação, de transformação, de ocupações urbanas
e industriais no contexto territorial amazônico.
Pandemia do coronavírus – 163

Um aspecto que tem totalmente a ver com a pandemia, é a relação pertinente


à caça e ao tráfico da fauna, uma vez que a mesma apresenta uma elevada
biodiversidade. Ocorre uma exploração dessa biodiversidade de forma totalmente
irregular, como o tráfico de carne de caça como alimento, os animais abatidos são
comercializados nas feiras, mercados populares e nas margens das estradas e ramais que
recortam a região.
É certo que existe, de certa forma, o uso para o próprio sustento, mas este se
desenvolve de forma predatória, além da presença de um comércio de caça nas feiras
e nos mercados livres, muitas vezes também há o tráfico por encomenda.
Existe uma pressão muito grande de um comércio de animais vivos, de uma
exploração do tráfico de animais raros, que é feito através das nossas fronteiras
internacionais. Incluindo nesse processo também novas formas de contrabando por meio
do tráfico de ovos, que não recebe uma devida fiscalização e os ovos são levados para
fora do país.
Quando fui convidado a ministrar esta palestra procurei pesquisar de forma mais
profunda sobre o tema, revisando alguns trabalhos feitos sobre a caça nas terras altas da
Amazônia, no caso específico sobre o Estado do Acre. Por meio de teses e dissertações
sobre a temática em questão, revelam-se registros de dados de caça em assentamentos
rurais e suas imediações florestais (ROSAS, 2006).
As pesquisas realizadas em florestas de terra firme, constatam que quatro principais
espécies de aves são as mais caçadas de forma direta, répteis também, os jabutis que
ocupam as matas de terras altas, as tartarugas nas áreas de várzea, 24 espécies de
mamíferos são caçadas de forma regular. Caçadores locais relataram que em uma caçada
de uma semana, eles capturaram 180 indivíduos de diversas espécies.
No contexto da caça e do consumo de carne de animais silvestres, há a possibilidade
de transmissão de enfermidades através do manuseio da carne e das suas peles. Muitos
dos animais domésticos terminam por comer as vísceras desses animais silvestres, que
pode induzir à ocorrência de novas pandemias.
Essas pandemias e enfermidades provocadas por vírus da fauna silvestre já
ocorrem há muitos anos, como é possível constatar em dados e registros sanitários que
constituem parte da história da Humanidade. Várias epidemias já ocorreram, como
a gripe espanhola, que foi uma das mais significativas e recente, na qual foram
contabilizados um total de 40 milhões de mortos em escala mundial, sendo que a metade
da população do planeta se contaminou.
164

Os registros indicam diversas pandemias ao longo da história recente da


Humanidade. Esse histórico deveria ser mais respeitado e era para estarmos mais
preparados, principalmente para prevenir doenças contagiosas. Desenhos e pinturas
elaborados na Idade Média indicam o uso de máscaras faciais pelos médicos durante
a proliferação da Peste Negra na Idade Média e de forma mais recente, a Gripe Espanhola,
que não tem nada a ver com a Espanha, pois veio da Ásia.
De forma contemporânea, ocorrem fatos e relatos dentro do contexto cotidiano
da saúde pública mundial e que são divulgados pelas mídias. Citam- se as pandemias
recentes, gripe suína, influenza aviária, gripe A no México, Aids, ebola e coronavírus, além
de outras enfermidades contagiosas que se tornaram praticamente comuns. Há, ainda,
casos de doenças emergentes ou doenças reemergentes, que tinham sido dizimadas, mas
que depois voltaram.
Para se ter uma ideia do que ocorre na realidade nacional, existem 23 diferentes tipos
de zoonoses no Brasil, isso registrado em base a estudos científicos desenvolvidos pela
medicina sanitária e veterinária, que comprovam a presença dessas enfermidades
contagiosas principalmente nas bordas de áreas florestais. Porém, podem ocorrer também
em cidades instaladas nas planícies fluviais, nas beiras e margens de rios e igarapés, onde se
constatam relações entre a fauna selvagem e rebanhos de animais criados. Extensivamente.
Atualmente, desenvolvem-se cenas pelas quais muitas pessoas já passaram e que
poderiam corresponder a filmes de ficção científica, mas que na realidade fazem parte
de nosso cotidiano. Nessa nova realidade de pandemias e doenças infecciosas, ninguém
indaga de onde as enfermidades surgiram, como se disseminaram, nem seus vetores
e agentes transmissores.
A partir de uma retrospectiva laboratorial científica, seria possível constatar que
tudo está vinculado com a destruição da natureza, tudo é parte do descuido com a fauna
silvestre. Então, essas zoonoses, segundo Ramos e Silva (2004), têm como principais
causas a introdução de animais domésticos junto aos ambientes naturais, a correlação
entre a fauna silvestre e os animais domésticos e também a translocação de hospedeiros
domésticos para novos biótopos, onde existem os hospedeiros silvestres.
Em um incêndio, parte da fauna de mamíferos silvestres termina migrando para
outros ambientes, podendo transmitir enfermidades de um hospedeiro para outro,
destacando os animais que tenha maior poder de deslocamento de espaço. A transmissão
por exemplo de viroses de um morcego para um lobo, e destes para animais domésticos
e finalmente para os seres humanos.
Pandemia do coronavírus – 165

A modificação da dinâmica dos hospedeiros silvestres, está vinculada aos


desequilíbrios ambientais; esses desequilíbrios são provocados por ações humanas, como
garimpos ilegais, explorações de madeira, a grilagem das terras, tudo isso altera o
ambiente e com a falta de alimento para os animais silvestres, estes começam a ir para
as áreas urbanas e ocupações agrícolas.
Assim, os vetores chegam com a transformação de florestas em áreas inundáveis,
transforma-se o ambiente, mudam as temperaturas, havendo uma proliferação de
vetores e os reservatórios são os mamíferos e outros animais que estão nesse ambiente
florestal. As zoonoses são causadas em quase toda a totalidade pelas intervenções dos
seres humanos, na modificação dos ecossistemas, isso de certa forma vai ajudar na
disseminação dos agentes que são transmissores das enfermidades.
Outro aspecto também que é comum na transmissão de agentes patogênicos
ocorre por meio das aves migratórias, que transmitem as enfermidades para os criatórios
de animais domésticos, de porcos, aves e até o próprio gado bovino. Cita-se o caso
de algumas rotas de aves migratórias, como é o caso de algumas espécies de cegonhas
na Península Ibérica. Constata-se que o seu ciclo migratório está mudando, uma vez que
as aves atualmente permanecem mais tempo nos lixões onde há disponibilidade maior
de alimentos. Assim, elas mudam seu fluxo migratório, começam a permanecer
mais tempo em determinadas áreas, ampliando a interação com outros animais, como
urubus, pardais e outros animais ruderais, e dessa forma a transmissão de enfermidades
passa a ocorrer.
Cita-se no Brasil o caso das avoantes, pequenas aves migratórias que durante
muito tempo fizeram parte da base alimentar da população rural do Nordeste Semiárido,
hoje o Ibama tem o controle muito forte dessas aves migratórias. Entre as causas
da proliferação de enfermidades, Radis (2017) afirma que o processo de contágio
é causado pelo uso intensivo do solo e as alterações ambientais. Outro fator de contágio
são as grandes migrações populacionais humanas, que acabam sendo um importante
vetor não só para os mamíferos silvestres, mas também para outros elementos da fauna,
que passam a ser depositários dos vírus, das enfermidades, incluindo também os próprios
seres humanos.
A migração populacional em direção aos garimpos ilegais, para os grandes projetos
econômicos na Amazônia, e depois um posterior retorno às suas regiões de origem, tem
causado a transmissão de doenças às pessoas e aos próprios animais domésticos.
A construção de barragens, pontes e urbanizações é outro fato que amplia essa
166

transmissão e ainda destaca que como o ser humano se adapta, também os insetos vetores
se adaptam, ficando mais resistentes à aplicação de venenos e também resistentes a essas
modificações ambientais, estabelecendo estratégias de reprodução dentro do contexto
residencial e urbano da sociedade humana.
Desse modo, as ações humanas acabam sendo um grande fator de transformação
ambiental, estamos criando nossas próprias pandemias através da destruição massiva
do meio ambiente, dos desmatamentos e queimadas das florestas, sendo que os
microrganismos que estavam na floresta passam a se disseminar para os diferentes
ambientes humanos, para as diversas paisagens culturais.
Ao analisarmos estudos sobre as mudanças ambientais, verificamos que o ciclo
desses vetores, de alguns insetos, tem uma relação direta com os parâmetros ambientais
que estão sendo modificados, a temperatura, a umidade, a remoção da cobertura vegetal,
de certa forma vão favorecer alguns vetores que irão predominar e ocupar o meio
antrópico. Há ciclos de aumentos da população de insetos, que termina por causar uma
ampliação da transmissão dessas doenças.
A indagação então é: O que fazer? como prevenir e se adequar diante dessa
situação atual? Inicialmente, devemos reconhecer que os próprios seres humanos
também são responsáveis pela proliferação das pandemias.
Não foram os chineses, nem os seus laboratórios que criaram a Covid-19, isso é
uma balela, é agir como uma criança que quebra um brinquedo e fica arrumando
desculpas. Na realidade, devemos buscar estratégias de controle sanitário para impedir
o surgimento de novas pandemias.
Quem a tem? A ciência a veterinária tem, a medicina tem, a geografia tem, nós
precisamos implementar ações a partir de uma visão interdisciplinar. Algumas estratégias
vêm sendo realizadas no contexto amazônico nacional a partir do controle e
monitoramento das zoonoses.
A partir dessas análises, constata-se que há uma correlação direta no surgimento
e ressurgimento de enfermidades devido a construções de barragens, com desmatamento
e com garimpos ilegais, isso é visível, então há que quantificar essa realidade, que mapear
e cartografar esses fatos, identificar e estabelecer estratégias de controle. Estabelecendo
ações em conjunto, por meio de diversos profissionais em diferentes áreas, torna-se
possível planejar, coordenar e propor instituição de modelos de gestão.
Pandemia do coronavírus – 167

Devemos compreender a dinâmica e etologia das populações animais, dos


depositários dos transmissores. Os insetos, através da entomologia, devem ser mais
estudados. Alguns exemplos de transmissões nas bordas das cidades, onde morcegos
passam enfermidades para os animais domésticos que acabam se dispersando inclusive
para os seres humanos.
Já existem modelos para uma gestão florestal adequada, como referência citamos
o plano de manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no
Amazonas. Constitui-se em um modelo de busca da sustentabilidade socioambiental que
pode ser expandido e ampliado em outras regiões do país, na própria floresta amazônica
ou mesmo em outros biomas, como a Mata Atlântica.
Tudo é uma questão de boa vontade, de uma conscientização populacional e de
uma política pública federal, basicamente federal, porque na atualidade a mesma está
estimulando a destruição da natureza. É necessário, realizar o atendimento da população
com relação ao controle das zoonoses, promovendo o controle e a vigilância
entomológica, nós temos que conhecer mais esses vetores, seus ciclos de vida.
Ao efetivar diagnósticos laboratoriais, estamos acompanhando o
desenvolvimento e a transmissão de enfermidades. Devemos quantificar e divulgar os
resultados das pesquisas através de um órgão centralizador no controle das pandemias,
e também atuar diretamente sobre os depositários, com análises de sangue, identificar
níveis de contaminação, compreendendo os ciclos de dispersão desses animais. Torna-se
necessário vincular as universidade e institutos de pesquisa no monitoramento ambiental
e sanitário, assumindo a importância de haver um controle notificado sobre as
ocorrências de pandemias.
O anilhamento, acompanhamento comportamental e registro de deslocamento
de animais vetores de enfermidades constituem estratégias eficazes para o
monitoramento ambiental e sanitário. Para tudo isso é necessário o estudo da paisagem,
do ambiente, a partir de uma visão multi e interdisciplinar, assumir uma metodologia
que trate o ser humano como parte da natureza. Estudar os aspectos da economia, da
cultura, da percepção, do sentimento, da compreensão da ecologia, das comunidades,
como se relacionam os seres humanos com o seu meio.
Não se trata apenas de uma Ecologia Social, mas também de uma Ecologia
Humana, considerando como é que nós como espécie fazemos parte dos diferentes
ecossistemas. Na atualidade, existe uma série de instrumentos para isso, o que falta são
políticas públicas adequadas, uma promoção científica social, devemos atuar em
diferentes esferas, nos âmbitos federal, estadual e municipal.
168

Hoje existem tecnologias suficientes para registrar, elaborar cartas temáticas e mapas
propositivos, isso são exemplos de recursos utilizados pelas geotecnologias. Predomina
no Brasil uma situação ambiental grave, sendo que o que ainda resta de unidades de
conservação e de matas, estão sendo incendiadas e desmatadas intencionalmente.
Cita-se o caso do Parque Nacional do Xingú, no seu entorno, todo o território está
sendo saqueado, destruído e contaminado. Então não adianta se conservar parcialmente,
já que os cursos d’água em sua maioria são oriundos de fora do parque. Há que instituir
zonas tampões, corredores ecológicos e um monitoramento permanente no sentido de
se proteger as unidades de conservação de invasões, das pressões antrópicas. Deve haver
um maior controle sobre os cartórios municipais dessas áreas, evitando o registro e a
legalização fundiárias de terras griladas.
Temos que mudar nossa visão, de levar em conta que isso é uma necessidade vital
e que devemos também congregar os conhecimentos científicos com os saberes
tradicionais, considerando o direito à vida para com os animais e a sustentabilidade das
populações de comunidades tradicionais. Devemos exercer a proteção das áreas ainda
ambientalmente conservadas, dando uma real importância para com as comunidades
tradicionais, sejam eles os povos das florestas, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
seringueiros. Há uma necessidade de promover uma melhor correlação de gestão,
vinculada a essa interação, também temos que assumir uma visão para os cenários
futuros, futuro, desenhando o que projetamos para as seguintes décadas.
Considerando que nós mesmos somos promotores das pandemias, então qual
o sentido da nossa percepção e qual é a nossa concepção sobre o planeta. Estamos indo
para outros planetas, mas não vemos o que ainda está sob os nossos pés, não temos um
sentimento de pertencimento às florestas, pertencimento aos rios e às águas.
Realmente eu não sei até que ponto a pandemia vai causar maior isolamento,
maior medo da natureza, então a necessidade é agora. Em minha vida, passei por
pandemias de cólera, de malária, estive em outros continentes. E em todas as partes
do planeta, as pessoas em seu íntimo sabem que todas essas mazelas sanitárias
são provocadas pelo próprio ser humano devido à ausência de uma gestão ambiental
eficiente e por falta de reconhecimento que o ser humano é o próprio causador de seus
maiores problemas.
Enquanto não admitirmos nossos erros e percebermos que fazemos parte da
natureza, a situação continuará sendo esta, mas eu tenho fé, tenho esperança e
determinação de que poderemos agir nesse sentido.
Pandemia do coronavírus – 169

Considero que este evento é um passo em direção a novos caminhos, juntando


a outros passos e assim com vários passos podemos ir caminhando para a
sustentabilidade socioambiental. Essa caminhada é uma mudança sucessiva e contínua,
essa é a necessidade que nós temos não só do conhecimento científico, mas de uma
consciência própria, uma mudança espiritual, uma mudança ética com relação aos seres
vivos e à própria existência do planeta.

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Pandemia do coronavírus – 171

C A P Í T U L O 13
______________

SAÚDE ÚNICA (ONE HEALTH):


OLHAR HOLÍSTICO SOBRE A PANDEMIA
E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Vamilton Alvares Santarém23

INTRODUÇÃO

O convite pela Comissão Organizadora para contribuirmos com uma palestra no


I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável, cujo tema central
foi pautado no “Desenvolvimento sustentável pós- pandemia: Como será o mundo depois
da crise?”, foi um momento de muita satisfação. Após ampla reflexão de como
poderíamos contribuir para o evento, pensamos em abordar o conceito de Saúde Única,
para lançarmos (eu e os demais congressistas) um olhar holístico sobre a pandemia e o
desenvolvimento sustentável.
Para alcançar nosso objetivo, a palestra foi dividida em quatro eixos. No primeiro
deles (a pandemia), uma breve abordagem sobre o momento atual e uma linha do tempo
para resumir a história das epidemias e pandemias. Logo após, a apresentação ao público do
conceito de Saúde Única e suas aplicações em vários setores. Na terceira parte,
o Desenvolvimento Sustentável foi discutido com uso do conceito de Saúde Única para
alcançar as reflexões, a quarta e última parte da apresentação.
Neste capítulo apresentamos a transcrição da palestra. Tentamos, ao máximo,
nos mantermos fiéis à sua estrutura e ao seu conteúdo.

23
Professor Doutor Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), campus de Presidente Prudente, São Paulo.
E-mail: vamilton@unoeste.br
172

A pandemia

Desde o fim do ano de 2019 e início de 2020, a humanidade vem se deparando com
a pandemia gerada pelo vírus Sars-CoV-2, o que tem gerado diversos problemas
socioeconômicos no mundo. Além dos problemas ocasionados pelo coronavírus
no organismo, sintomas de ansiedade, depressão, estresse, sofrimento psicológico
e transtorno de estresse pós-traumático têm sido relatados na população de diversos países
em decorrência do distanciamento social (GUESSOUM et al., 2020; VINDEGAARD; BENTROS,
2020; XIONG et al., 2020).
Para compreensão dos processos que levam a epidemias e pandemias é necessária
uma reflexão sobre a evolução humana: da origem até onde o homem pretende chegar.
Atualmente, podemos considerar que vivemos na era antropocênica, na qual o
homem vem deixando a sua marca no planeta. O termo “antropoceno” sugere que a era do
Holoceno está chegando ao fim em virtude dos impactos ocasionados pela humanidade no
planeta (STEFENN et al., 2011). O EcoDebate define o termo antropoceno:

[...] a Era da dominação humana desenfreada sobre o Planeta, tem sido a Era do
aquecimento global, da degradação ecológica e do ecocídio que está provocando
a 6ª extinção em massa das espécies. (ECODEBATE.ORG, 2020, on-line).

As transformações ambientais, principalmente aquelas ocasionadas pela ação


antrópica, e o comportamento humano podem modificar o equilíbrio ecológico e predispor
a emergência/reemergência de epidemias e de pandemias.
A revisão de Morens e Fauci (2020) intitulada Emerging pandemic diseases:
how we got to Covid-19 (Doenças pandêmicas emergentes: como chegamos ao Covid-19)
faz uma análise sobre o histórico das epidemias/pandemias. Com base nos dados da revisão,
elaboramos uma linha do tempo para traçar um breve histórico dessas doenças (Figura 1).
Pandemia do coronavírus – 173

Figura 1 – Linha do tempo sobre epidemias/pandemias

Elaboração: O autor com base em Morens e Fauci, 2020.

A primeira epidemia registrada historicamente, a Praga de Atenas, conhecida


também como Peste de Xerxes, ocorreu nos anos 400 antes da Era Cristã. A doença,
de origem bacteriana, que surgiu em decorrência da fome ocasionada pela guerra entre
persas e gregos, dizimou mais que 100.000 soldados do exército persa comandado por
Xerxes. Os soldados se contaminavam pela ingestão de água e alimentos contaminados,
o que resultava em grave quadro de disenteria e morte (UJVARI, 2020).
Outras epidemias e pandemias foram descritas na história, muitas delas de origem
zoonótica (transmitidas dos animais para o homem). A peste bubônica, causada pela
bactéria Yersinia pestis, tem como reservatório os ratos e é transmitida por pulgas. Uma
pneumonia secundária subsequente à forma “bulbar” pode resultar na disseminação da
bactéria por aerossóis. A peste negra, ocorrida no século 14, foi a segunda pandemia
causada pela Y. pestis e matou milhões de pessoas na antiga na Europa e na Ásia. Sua
dispersão se deu em virtude do mercantilismo naval, o meio de “globalização” daquela
época. No caso da tuberculose, os dados sobre o número de casos na idade média eram
imprecisos, mas culminou na morte de milhares de pessoas. De acordo com a OMS em
2020, um milhão e meio de pessoas morreram em decorrência da doença (OMS, 2020).
Ao longo da linha do tempo traçada (Figura 1) pode-se verificar que outras
doenças zoonóticas (ex.: tuberculose, varíola, ebola, AIDS, gripe aviária) culminaram em
pandemias. No início dos anos 1980, um novo vírus, proveniente de primatas não
humanos, deu origem a AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida), uma doença
que ocasionou a morte de milhares de pessoas.
174

A transmissão e adaptação de vírus aos seres humanos têm preocupado


autoridades de saúde em todo o mundo, especialmente aqueles relacionados a síndromes
respiratórias agudas. Nesse âmbito, a Ásia, em especial a China, é o país de origem de vários
vírus da Influenza (H5N1, o vírus da gripe aviária; H5N6; H10N8; H7N9) e do SARS-CoV-2
(Coronavírus tipo 2 da Síndrome Respiratória Aguda Grave), responsável pelo Covid-19.
O histórico da criação e consumo de animais exóticos teve início nos anos 1970,
em decorrência da crise no fornecimento de alimentos ocorrido nos anos 1950 e 1960.
Em 1978, com a privatização da agricultura, teve início a captura e criação de animais
selvagens para sustento das famílias. Dez anos depois, em 1988, o governo chinês
legalizou o comércio de animais selvagens, com a liberação da criação de animais exóticos
para consumo.
Dessa forma, animais exóticos que não eram usados para consumo passaram a ser
comercializados em mercados, possibilitando o estrito contato entre diferentes espécies
e o ser humano. Nesses ambientes, pessoas podem facilmente entrar em contato com
a flora microbiana. Ademais, o transporte, criação, abate e consumo dos animais e seus
produtos podem favorecer a transmissão de patógenos (WANG et al., 2008).
Em relação à Covid-19, os primeiros casos ocorreram em um mercado na cidade de
Wuhan, província de Hubei, na China, em 2019, onde animais exóticos, incluindo morcegos,
reservatórios naturais de coronavírus das SARSs, e pangolins, hospedeiros intermediários
do vírus (YESUDHAS et al., 2021) eram criados.
A OMS decretou a Covid-19 como pandemia em março de 2020. Até início de junho
havia 72.242.495 casos confirmados da doença com 3.709.397 mortes pela Covid-19
(OMS, 2021).
São justamente as ações antrópicas, com alterações no sistema ecológico
compreendendo homem, animal e ambiente, que podem determinar o surgimento
de doenças. É nesse contexto que passaremos a abordar os conceitos de Saúde Única.

A saúde única (One Health)

Em 2008, a Associação Americana de Medicina Veterinária (AVMA) considerou


que a convergência de pessoas, animais e ambiente gera uma dinâmica na qual a saúde
de cada um dos componentes está inextricavelmente interconectada (Figura 2).
Pandemia do coronavírus – 175

Figura 2 – Esquema representativo da interconexão entre saúdes humana, animal e ambiental

Elaboração: O autor, 2021.

A Figura 3 apresenta um breve histórico da formação do conceito de Saúde Única,


desde a criação da medicina comparada até a discussão do conceito apresentado por Roger
Mahr na AVMA, em 2007.

Figura 3 – Breve histórico da elaboração do conceito de Saúde Única

Elaboração: O autor, 2021.


176

Nos últimos anos, o conceito de Saúde Única tem sido adotado como uma
“bússola” para nortear estudos em diversas áreas de saúde humana, animal e ambiental
de forma holística.
O entendimento sobre Covid e outras pandemias são um excelente exemplo para
aplicação da Saúde Única. Ruckert et al. (2020) destacaram quatro áreas nas quais
a aplicação da Saúde Única tem potencial para otimizar o enfrentamento das doenças
infecciosas em geral, particularmente a Covid-19:
a) infraestrutura integrada para vigilância e monitoramento da ocorrência de
doenças infecciosas, tanto em animais como em humanos, para: 1) facilitar
a detecção de novos agentes infecciosos que dividem mesmos genótipos entre
espécies; 2) monitoramento da dispersão espaço-temporal da infecção;
b) otimização da coordenação e colaboração ativa entre diferentes áreas do
conhecimento;
c) Regulação adequada de locais com ambiente que facilitam o risco de
transmissão de zoonoses;
d) elaboração de políticas públicas que reduzam o surgimento de doenças em
população vulneráveis e redução das desigualdades nos serviços de saúde.

De acordo com Ahmad e Hui (2020), a abordagem em Saúde Única minimizaria


os impactos econômicos das doenças e otimizaria a compreensão dos mecanismos
da doença, dos problemas de saúde, da emergência e reemergência de doenças com a
finalidade de proporcionar a detecção e prevenção de futuras pandemias, tomando -se
como base a experiência com a Covid-19.
A abordagem de Saúde Única, segundo Sharun et al. (2021), “é garantida através
de capacitação e educação para todos os participantes envolvidos com políticas públicas
em saúde humana, animal e ambiental para alcance efetivo do controle de doenças
emergentes como a Covid-19”.

Sustentabilidade e saúde única

Em 2015, a ONU reuniu 193 Estados-Membros para elaboração de metas visando


o desenvolvimento econômico, a erradicação da pobreza, da miséria e da fome,
a inclusão social, a sustentabilidade ambiental e a boa governança em todos os níveis,
incluindo paz e segurança. A reunião culminou na elaboração de 17 Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), listadas a seguir:
Pandemia do coronavírus – 177

1– Erradicação da pobreza;
2– Fome zero e agricultura sustentável;
3– Saúde e bem-estar;
4– Educação de qualidade;
5– Igualdade de gênero;
6– Água potável e saneamento;
7– Energia limpa e acessível;
8– Trabalho decente e crescimento econômico;
9– Indústria, inovação e infraestrutura;
10– Redução das desigualdades;
11– Cidades e comunidades sustentáveis;
12– Consumo e produção responsáveis;
13– Ações contra mudanças climáticas;
14– Vida na água: conservação e uso sustentável;
15– Vida terrestre;
16– Paz, justiça e instituições eficazes;
17– Parcerias e meios de implementação. (Fonte: ONU: https://sdgs.un.org/goals).

Queenan e colaboradores (2017) publicaram um artigo no qual traçaram um roteiro


para a Agenda 2030, mostrando que a Saúde Única pode embasar ações para alcance
das 17 ODS (Figura 4).

Figura 4 – A relação entre a Saúde Única e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)


elaborados na Agenda 2030 da ONU, de acordo com Queenan et al. (2017)

Fonte: Adaptado de Queenan et al. 2017.


178

A aplicação da Saúde Única no que se refere aos ODS, pode ser apresentada em três
eixos (bem-estar, infraestrutura e ambiental natural), de acordo com o Quadro 1.

Quadro 1 – Aplicação da Saúde Única em ações para os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,
Agenda 2030, ONU), segundo Queenan et al. (2017)

Eixos ODS Descrição da ODS

I – Bem-estar 1 Erradicação da pobreza


3 Saúde e bem-estar
4 Educação de qualidade
5 Igualdade de gênero
10 Redução das desigualdades
16 Paz, justiça e instituições eficazes

II – Infraestrutura 6 Água potável e saneamento


7 Energia Limpa e acessível
8 Trabalho decente e crescimento econômico
9 Indústria, Inovação e Infraestrutura
11 Cidades e comunidades sustentáveis
12 Consumo e produção responsáveis

III – Ambiental natural 2 Fome zero e agricultura sustentável

3 Ações contra mudanças climáticas


4 Vida na água: conservação e uso sustentável

15 Vida terrestre
Elaboração: O autor, 2021.

Ainda de acordo com Queenan et al. (2017, p. 01), “a fragmentação estrutural


de governança da saúde para humanos, animais e meio ambiente, juntamente com a
abordagem linear convencional para resolver problemas de saúde, leva a falhas para superar
desafios e se torna insustentável”.
Diversos estudos em diferentes áreas exemplificam o uso dos conceitos de Saúde Única que
podem exemplificar a possibilidade de ações para atendimento aos ODS.
Zinsstag et al. (2011), por exemplo, postularam que as soluções para a saúde e
bem-estar requerem todos os esforços em ciência e tecnologia, e, ao mesmo tempo,
de colaboração transetorial. O olhar sobre os processos ecológicos e sociais permitem
identificar potenciais determinantes de saúde e bem estar humano e animal.
Cleveland et al. (2017) hipotetizaram que as intervenções em Saúde Única para
enfrentamento de desafios com doenças zoonóticas ajudam no engajamento de
comunidades e colaboração transetorial. Essas intervenções podem fortalecer os sistemas
Pandemia do coronavírus – 179

fragilizados de saúde na resposta a doenças emergentes e desafios futuros. A Saúde Única,


dessa forma, tem o potencial de fornecer uma abordagem igualitária para alcance dos
objetivos globais para o desenvolvimento sustentável e sustentar a agenda de seguridade
em saúde global.
Zinsstag et al. (2018) verificaram que os custos com surtos de zoonoses podem ser
significativamente menores se descobertos antes (em vetores, água, solo, etc.) de serem
adquiridos pelos animais e posteriormente transmitidos ao homem. No mesmo estudo,
os autores abordam sobre o impacto das mudanças globais sobre a saúde humana, animal
e ambiental. A Saúde Única, por sua vez, contribui para a adaptação às mudanças através de
processo integrado de vigilância.

Reflexões

De acordo com a Organização Mundial para Saúde Animal (OIE), preservar a saúde
dos animais é proteger o futuro da saúde humana, uma vez que 60% das doenças infecciosas
em humanos são zoonóticas, e 80% das doenças infecciosas emergentes (incluindo ebola,
HIV e influenza) têm origem animal.
A pandemia pela Covid-19 é um exemplo dessa estrita inter-relação associada com
as alterações ambientais decorrentes da ação antrópica.
O período pandêmico que a humanidade está atravessando provavelmente
impactará negativamente na Agenda 2030 no que se refere ao cumprimento dos ODS.
Entretanto, apresentamos uma breve introdução aos conceitos de Saúde Única e como eles
podem contribuir para compreensão e elaboração de estratégias para o desenvolvimento
sustentável visando à saúde do planeta e de seus moradores, quer sejam animais ou os
seres humanos.
Voltando ao estudo de Queenan et al. (2017), esses autores destacaram o ODS 17,
que trata de “Parcerias e meios de implementação”, como um ponto que engloba os demais
eixos de ações. A Saúde Única preconiza a colaboração intersetorial para que essas
estratégias sejam maximizadas, o que vai de encontro com a ODS 17.
O I Congresso Latino-Americano de Desenvolvimento Sustentável teve alguns
eixos temáticos:
180

a) Cidade e pandemia: desafios do planejamento e da gestão urbana;


b) Desafios sociais e econômicos da pós-pandemia;
c) Gestão do território durante e a pós-pandemia;
d) Meio ambiente e a crise sanitária do Covid-19;
e) Os caminhos para educação pós-pandemia: desafios e potencialidades;
f) Pandemia: segurança e saúde do trabalhador;
g) Políticas públicas, saúde e ambiente.

Se partirmos da proposta preconizada pela Saúde Única de ações intersetoriais,


não apenas médicos e médicos-veterinários são atores da construção de propostas de
políticas públicas voltadas para a saúde e para o desenvolvimento sustentável.
Profissionais como agrônomos, zootecnistas, biólogos, farmacêuticos, advogados,
psicólogos, economistas, sociólogos, geógrafos, podem e devem fazer parte dessa rede
de colaboração, com comunicação transdisciplinar.
Atualmente, a Saúde Única conta com parceiros como a Organização Mundial
de Saúde (OMS), a FAO, o Banco Mundial, a OIE e o Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD). Segundo a OMS, existem trabalhos em conjunto com a FAO
e a OIE para promoção de respostas multissetoriais para riscos alimentares e de
zoonoses, e outros riscos à Saúde Pública, com foco na tríade homem-animal-ecossistema
e para fornecer diretrizes de como reduzir tais riscos.
No Brasil, a Saúde Única tem despertado a atenção de pesquisadores e já faz parte
da grade de disciplinas de graduação e pós-graduação.
A One Health Brasil (https://onehealthbrasil.com), uma rede de integração,
pesquisa colaborativa e divulgação profissional/científica sob a ótica da Saúde Única,
destaca que a abordagem exige novos tipos de parcerias inclusivas e sustentáveis, apoio
a pesquisas colaborativas transdisciplinares e intervenções que consideram a saúde
indissociável de seres humanos, animais e meio ambiente.
Queremos finalizar nosso capítulo agradecendo a toda comissão do Congresso
e aos congressistas, e elaborando uma reflexão: “A saúde Única é de todos e para todos,
por isso precisa da colaboração de profissionais das mais diversas áreas para promover as
ações para desenvolvimento sustentável e para um planeta com maior qualidade de vida”.
Pandemia do coronavírus – 181

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.
Pandemia do coronavírus – 183

C A P Í T U L O 14
______________

IMPACTO DA PANDEMIA DA COVID-19


NOS SERVIÇOS DE ZOONOSES QUE ATUAM NO CONTROLE
DE LEISHMANIOSE VISCERAL DA REGIÃO DE SAÚDE
DE PRESIDENTE PRUDENTE, SÃO PAULO

Lourdes Aparecida Zampieri D’Andrea24; Caroline Lucio Moreira25

INTRODUÇÃO

O presente capítulo trata de conteúdo apresentado no I Congresso Latino-Americano


de Desenvolvimento Sustentável (2021), evento on-line realizado pela Associação Amigos
da Natureza da Alta Paulista (ANAP) de 26 a 28 de maio de 2021.
A Covid-19, causado pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), foi identificado no final
de 2019, na província de Wuhan, na China. Tornou-se uma emergência na saúde pública
mundial, e considerado pandemia a partir de março de 2020. Apesar da existência
de outras zoonoses de importância médica, as medidas de controle de transmissão da
Covid-19 tornaram-se prioridade, sobrecarregando os serviços públicos de saúde, deixando
que doenças consideradas negligenciadas, como a leishmaniose visceral (LV), ficassem
ainda mais expostas.
A LV é uma zoonose, causada pelo agente etiológico Leishmania infantum –
sinonímia Leishmania infantum chagasi (nas Américas), e de transmissão vetorial,
transmitida pelo mosquito Lutzomyia longipalpis. Essa doença pode afetar tanto humanos
como animais silvestres e domésticos, sendo os cães considerados os principais
reservatórios urbanos da doença. O vetor se contamina ao realizar o repasto sanguíneo em
um mamífero infectado, as células do sistema mononuclear fagocitário, parasitadas pela

24
Pesquisadora do Centro de Laboratório Regional V – Instituto Adolfo Lutz – Presidente Prudente, Brasil,
e doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Brasil. E-mail:
lourdes.andrea@ial.sp.gov.br
25
Biomédica, mestre em Microbiologia pela Universidade do Estadual de Londrina (UEL), Brasil, Bolsista
FEDIAL no Instituto Adolfo Lutz, Brasil. A referida bolsista auxiliou na transcrição da palestra, assim como
na formatação do documento. E-mail: carolinelucio.m@hotmail.com
184

forma amastigota do protozoário, também são ingeridas. No intestino do vetor, as formas


amastigotas se transformam em promastigotas, e após migrarem para a probóscide,
transformam-se em promastigotas metacíclicas, que é a forma infectante. Ao realizar um
novo repasto sanguíneo, ocorre a transmissão da forma infectante do parasito, a qual
é fagocitada pelos macrófagos periféricos, e dentro da célula se transforma na forma
amastigota. Na célula, ocorre a multiplicação do parasito (promastigotas metacíclicas),
a qual resulta na lise do macrófago, liberando o protozoário, e permitindo o acometimento
das vísceras, por isso o nome Leishmaniose Visceral.
A LV é caracterizada por ser uma doença predominante de regiões tropicais
e subtropicais, que possui condições ambientais propícias para o desenvolvimento e
reprodução do vetor. O Brasil é um dos países com maior número de casos da doença,
sendo que em 2018 dos 3.562 novos casos notificados nas Américas, mais de mil novos
casos pertenciam ao Brasil.
Segundo a classificação epidemiológica do Ministério da Saúde (MS), no Brasil
os municípios são classificados como: municípios em transmissão (humana ou canina)
quando existem casos notificados da doença, e municípios silenciosos, quando não há
notificação de casos humanos ou caninos da doença. Por sua vez, a transmissão humana
pode ser classificada de acordo com a média do número de casos no triênio avaliado,
podendo ser esporádica, moderada ou intensa. Quanto à presença do vetor,
os municípios podem ser classificados em: receptivo ou não receptivo. Municípios não
receptivos são aqueles em que o vetor não foi encontrado em seus territórios; já os
receptivos são aqueles em que o vetor foi encontrado. Apesar de os municípios
não receptivos não terem a notificação da presença do vetor, eles podem ser classificados
em vulneráveis: quando existe proximidade com municípios em transmissão; e em não
vulneráveis: quando estão afastados de municípios ou rotas de transmissão (Figura 1).
No Estado de São Paulo (ESP), segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE),
entre o período de 1999 a 2017 foram notificados 7.328 casos de LV, e 38,9% (2.858)
confirmados como autóctones.
Os serviços de zoonoses são compostos por unidades de zoonoses municipais,
nas quais as equipes são compostas por veterinários e agentes de saúde que devem passar
por capacitação por técnicos dos Laboratórios de Referência Central que são os LACENS.
Pandemia do coronavírus – 185

Figura 1 – Classificação epidemiológica para leishmaniose visceral – dez. 2017, ESP

Fonte: Hiramoto et al. (2019).

No caso do ESP, o LACEN é o Instituto Adolfo Lutz (IAL), que é o órgão responsável
para a realização dessas capacitações para que os municípios realizem a triagem
sorológica com imunoensaio cromatográfico Dual Path Platform (DPP) testes rápidos
(TR) DPP Bio-Manguinhos® para LV canina (LVC), produzidos pela Fiocruz, Rio de Janeiro.
Procedimento preconizado pelo Programa de Vigilância e Controle da LV (PVCLV),
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e MS. Essa atividade de triagem sorológica
é um serviço das secretarias municipais de Vigilância em Saúde, desde que ele tenha
uma equipe treinada e uma infraestrutura adequada dentro das normas de qualidade
e biossegurança para a realização desses exames.
A Rede Regional de Atenção à Saúde 11(RRAS 11) de Presidente Prudente,
que corresponde ao Departamento Regional de Saúde 11 (DRS 11), é composta por 45
municípios, nos quais 34 deles estão em atividade (75,6%) quanto ao serviço de zoonoses.
Apesar disso, dois deles (Mirante do Paranapanema e Euclides da Cunha Paulista) utilizam
a estrutura do Centro de Laboratorial Regional do IAL de Presidente Prudente (CRPP)
por não terem finalizado a estrutura física para execução das atividades pertinentes.
Os outros 11 (24,4%) municípios da RRAS 11 não realizam triagem sorológica, de modo que
cinco deles, apesar de terem sido já capacitados, não têm estrutura física para
186

as atividades; um possui equipe capacitada, porém, a estrutura é parcial; um tem equipe


capacitada e estrutura adequada, entretanto, não desenvolvem atividades; e quatro não
apresentam equipes capacitadas e nem estrutura. Vale lembrar que essa situação dos
serviços de zoonoses municipais é dinâmica, de modo que isso que foi descrito acima pode
ser alterado devido às mudanças na gestão do município e até mesmo pela pandemia
da Covid-19. Com essas informações, podemos contextualizar a situação dos serviços de
zoonoses dos 45 municípios da RRAS 11, e de que forma a pandemia impactou em suas ações.
O TR DPP Bio-Manguinhos®, é um teste imunocromatográfico utilizado para a
triagem sorológica de LVC, e para sua realização é necessária a capacitação prévia, como
descrito anteriormente. O kit do TR DPP é composto por 20 cassetes, um frasco contendo
tampão de corrida e 20 alças de plástico para a coleta de 5µL de soro e 20 lancetas.
Os kits são distribuídos mediante a programação anual estabelecida pelos municípios,
que deve ser realizada no final do ano anterior ao que se deseja trabalhar. Sempre em
meados de do mês de novembro. A programação baseia-se na população canina municipal
existente e na capacidade de execução dos serviços pela equipe de zoonose. Esse
quantitativo ainda deve ser baseado no número de amostras de cães a serem coletadas
em inquérito sorológico (focal ou censitário) e por demanda espontânea. Sempre se
baseando no histórico dos dados do município em anos anteriores, caso o município
já tenha esse histórico, caso contrário, estabelece um quantitativo para esse fim.
Essa programação é compilada em cada IAL regional (no ESP são 12), enviada ao
IAL Central, que por sua vez compila os dados do Estado todo e posteriormente envia
ao MS. O MS, por sua vez, compila toda a demanda nacional para o ano seguinte
e encaminha para Bio-Manguinhos/Fiocruz, para que sejam produzidos os insumos
necessários para a confecção TR DPP. Uma vez feita a capacitação da equipe,
programação anual e supervisão técnica, o município entra para a sub-rede de LV do ESP.
Para dar continuidade às atividades e recebimento de insumos no mês seguinte,
é necessário que cada serviço de zoonose cadastrado na sub-rede informe mensalmente um
relatório on-line para prestação de contas, onde o mesmo deve constar: número de
TR DPP recebidos, utilizados, o quantitativo de testes para próximo mês, os reagentes,
não reagentes e na observação deve constar o estoque, as repetições e/outras ocorrências
caso tiver. Ao solicitar esses testes, será avaliado se a programação anual está sendo
cumprida ou não. Se houve alguma intercorrência nos serviços ou não. Deverá ser relatado
Pandemia do coronavírus – 187

nas observações do relatório, explicando, assim, o motivo pelo qual não será cumprida
a programação ou se caso necessitar de maior quantitativo, como, por exemplo, em caso de
bloqueio por conta de caso de LV humano. O relatório on-line é o canal de comunicação entre
as escalas, local, estadual e nacional.
Os laudos dos cães cujas amostras sorológicas resultaram em TR DPP não reagente
na triagem realizada pelos municípios, devem ser confeccionados, impressos e entregues aos
tutores. Caso o TR DPP dê reagente, a amostra sorológica deve ser encaminhada ao
LACEN (no caso da RRAS 11 para o CRPP), para que seja feito o teste confirmatório.
No guia de vigilância em saúde do MS é preconizado o ensaio imunoenzimático indireto
(Enzyme-linked immunosorbent assay – ELISA) para LVC. No caso de um resultado reagente
no ELISA, o município é comunicado por meio de boletins informativos, e o laudo deve
ser impresso no sistema SIGHWEB.
Esse laudo, por sua vez, será essencial para que se realizem ações de vigilância
e controle da doença na escala local junto aos tutores. Quando o resultado do ELISA é não
reagente, esse laudo deverá ser entregue ao tutor, e no momento da entrega, o mesmo
deverá ser orientado sobre os cuidados que devem ser tomados com esse animal, além de
uma posse responsável, o uso de coleira repelente e observar o aparecimento de sintomas.
Além disso, informar que uma nova coleta deverá ser realizada por volta de 30 dias após
a primeira, para a confirmação dos resultados.
Desde os primórdios, as doenças infecciosas afetam pessoas, animais domésticos
e selvagens, e são causadas por uma variedade de patógenos capazes de infectar várias
espécies. Após a fabricação e uso em larga escala de antibióticos e vacinas, parecia que
a batalha contra as infecções estava sendo vencida. Entretanto, além de aumentar a
resistência antimicrobiana entre os patógenos bacterianos, nota-se um aumento no
surgimento de doenças zoonóticas, principalmente virais, na vida selvagem, culminando
muitas vezes em surtos fatais, de proporções epidêmicas.
A emergência e reemergência das zoonoses está altamente associada ao contato
e à destruição do habitat da vida selvagem, que pode ser resultado de conflitos armados,
guerras, mudança no padrão do uso da terra, e também ao alto fluxo de pessoas e bens
entre várias localidades. Enfim, as ações antrópicas. Apesar de melhor conhecimento das
causas subjacentes, pouco foi feito do ponto de vista político para enfrentar essas ameaças.
188

Para o bem da saúde pública, a humanidade precisa trabalhar melhor para conservar
a natureza e preservar os serviços ecossistêmicos, incluindo a regulação de doenças que a
biodiversidade fornece, ao mesmo tempo em que compreende e mitiga atividades que
levam ao surgimento de doenças.
Nesse cenário, no final do ano de 2019, foi identificado o Sars-Cov-2, um novo
coronavírus causador da Covid-19, doença zoonótica, de caráter multissistêmico, com alto
nível de contágio, e responsável por causar, principalmente, síndromes respiratórias
graves. Sugere-se que o principal reservatório do coronavírus sejam animais silvestres,
como morcegos e pangolins.
No mês de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou
a Covid-19 uma pandemia, e medidas de controle como uso de máscaras, diminuição
da circulação de pessoas, lockdowns, recursos para o diagnóstico, e até o fechamento
de fronteiras, foram implementadas por diversos países para o controle da transmissão da
doença. Tendo em vista essa situação, as ações de vigilância e os recursos financeiros
e humanos foram realocados com o objetivo de controlar a pandemia. Dessa forma,
doenças que já eram negligenciadas, como é o caso da LV, passaram a ficar ainda mais
expostas frente a essa situação.
Considerando o exposto, o objetivo do estudo foi avaliar o impacto das medidas de
controle da pandemia da Covid-19 sobre as atividades de inquéritos sorológicos para LVC,
entre os meses de janeiro a dezembro de 2020, nos municípios da área de abrangência
do CRPP.

METODOLOGIA

Os dados foram obtidos da compilação de planilhas de programação anual de


inquérito sorológico e relatórios mensais enviados pelos serviços de zoonoses municipais,
pertencente aos 45 municípios da RRAS 11 de Presidente Prudente, área de atendimento
do CRPP. Foi calculada a efetividade de distribuição dos kits contendo TR DPP LVC
Bio-Manguinhos®, na razão do número de testes programados, pelo número de testes
recebidos pelos municípios e demonstradas em porcentagem (%) e a positividade
encontrada na triagem sorológica com TR DPP LVC Bio-Manguinhos®. Período de estudo
foi de janeiro a dezembro, nos anos de 2017 a 2020. Foi considerada a média calculada
do triênio 2017-2019, como base para comparação com os dados de 2020.
Pandemia do coronavírus – 189

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A efetividade de distribuição dos TR DPP LVC Bio-Manguinhos®, nos meses


de janeiro a dezembro de 2017 a 2020 se encontra na Tabela 1 e a comparação da média
mensal das atividades (recebido/programado) dos municípios no triênio 2017-2019,
com o realizado em 2020, encontra-se na Tabela 2.

Tabela 1 – Efetividade da distribuição dos TR DPP LVC nos meses de janeiro a dezembro, no período de
2017-2020
2017 2018 2019 2020
MESES Rec/Prog Rec/Prog Rec/Prog Rec/Prog
Rec Prog (%) Rec Prog (%) Rec Prog (%) Rec Prog (%)
Janeiro 1100 1680 65,48 2200 2545 86,44 900 1910 47,12 2620 3040 86,18
Fevereiro 2800 2460 113,82 2940 2925 100,51 4160 2500 166,4 2480 2860 86,71
Março 2400 3320 72,29 2960 3445 85,92 3380 2340 144,44 2880 3520 81,82
Abril 1800 3760 47,87 2720 3685 73,81 2740 2560 107,03 840 3720 22,58
Maio 4400 4260 103,29 3300 4265 77,37 2740 3120 87,82 1020 4000 25,50
Junho 3880 5550 69,91 3753 5260 71,35 2840 3740 75,94 840 4180 20,10
Julho 4500 2940 153,06 3256 2900 112,28 3160 3200 98,75 520 4000 13,00
Agosto 2900 3790 76,52 3746 3580 104,64 3100 3140 98,73 1840 3460 53,18
Setembro 3046 3800 80,16 3360 3705 90,69 3820 3640 104,95 540 3420 15,79
Outubro 2760 3880 71,13 3460 3840 90,10 2320 2920 79,45 1920 3380 56,80
Novembro 2700 4190 64,44 2220 4530 49,01 1600 2680 59,70 1200 3220 37,27
Dezembro 20 2960 0,68 1400 2690 52,04 2081 2540 81,93 1100 2160 50,93
TOTAL 32306 42590 75,85 35315 43370 81,43 32841 34290 95,77 17800 40960 43,46

Legenda: Recebida (REC), Programada (PROG). Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.

Em relação à efetividade da distribuição dos TR DPP em 2020, foi observado que


os meses de janeiro e dezembro foram os únicos que não apresentaram redução, quando
comparados à média da efetividade do triênio 2017-2019 nos mesmos meses. Nos outros
meses de 2020, todos apresentaram redução das atividades, quando comparados às
médias dos respectivos meses do triênio, sendo que o mês de julho foi o que apresentou
maior redução (Tabela 2).
190

Tabela 2 – Média mensal das atividades (recebido/programado) dos municípios no triênio 2017 a 2019, em
comparação à atividade em 2020

Média da atividade Atividade no ano Análise atividade em


MESES
no triênio 2017-2019 (%) de 2020 (%) 2020 (%)
Janeiro 66,35 86,18 -19,84
Fevereiro 126,91 86,71 40,20
Março 100,89 81,82 19,07
Abril 76,24 22,58 53,66
Maio 89,49 25,50 63,99
Junho 72,40 20,10 52,30
Julho 121,36 13,00 108,36
Agosto 93,29 53,18 40,11
Setembro 91,93 15,79 76,14
Outubro 80,23 56,80 23,43
Novembro 57,72 37,27 20,45
Dezembro 44,88 50,93 -6,04
MÉDIA 84,35 43,46 40,90

Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.

A efetividade média de distribuição dos TR DPP LVC Bio-Manguinhos® nos anos


de 2017, 2018 e 2019 foi de 75,85%, 81,43% e 95,77%, respectivamente (Tabela 1), e a
média da efetividade do triênio 2017-2019 foi de 84,35% (Tabela 2). A média da efetividade
da distribuição no ano de 2020 foi de 43,46% (Tabela 1), 40,90% menor quando
comparada à média da efetividade do triênio 2017-2019 (Tabela 2). Levando em
consideração o ano de 2020, pode-se observar que a partir de abril houve um impacto na
efetividade da distribuição, um mês após o decreto da pandemia (Tabelas 1 e 2). Reflexo
imediato da pandemia.
Foi observado que os meses de janeiro e dezembro de 2020 foram os únicos que
não apresentaram redução, quando comparados à média da efetividade do triênio 2017-
2019 nos mesmos meses. Nos outros meses de 2020, todos apresentaram redução das
atividades, quando comparados às médias dos respectivos meses do triênio, sendo que o
mês de julho foi o que apresentou maior redução com 108,36%, seguida de setembro com
76,14% (Tabela 2).
Distribuição dos TR DPP LVC reagentes, não reagentes e o total analisado, realizados
nos meses de janeiro a dezembro, no período de 2017-2020 encontram-se na Tabela 3.
Pandemia do coronavírus – 191

Tabela 3 – Distribuição dos TR DPP LVC reagentes, não reagentes e o total analisado, realizados nos meses
de janeiro a dezembro, no período de 2017-2020
2017 2018 2019 2020
MESES
TR TR (%) TNR TOTAL TR TR (%) TNR TOTAL TR TR (%) TNR TOTAL TR TR (%) TNR TOTAL
Janeiro 418 25,27 1236 1654 275 22,60 942 1217 268 22,28 935 1203 266 17,84 1225 1491
Fevereiro 666 19,08 2824 3490 430 18,02 1956 2386 396 10,39 3414 3810 296 17,44 1401 1697
Março 490 17,56 2300 2790 445 14,42 2640 3085 274 14,91 1564 1838 373 18,19 1678 2051
Abril 465 20,46 1808 2273 402 16,62 2017 2419 380 12,11 2759 3139 297 32,35 621 918
Maio 389 17,55 1828 2217 359 14,42 2131 2490 345 17,76 1598 1943 247 24,65 755 1002
Junho 504 23,45 1645 2149 474 17,82 2186 2660 296 11,79 2215 2511 348 25,22 1032 1380
Julho 358 17,67 1668 2026 526 13,95 3244 3770 405 14,99 2297 2702 346 21,76 1244 1590
Agosto 855 22,42 2958 3813 500 12,17 3609 4109 647 14,43 3836 4483 290 23,93 922 1212
Setembro 549 17,09 2664 3213 538 12,33 3825 4363 402 12,68 2768 3170 408 26,07 1157 1565
Outubro 600 14,31 3593 4193 357 11,11 2857 3214 394 15,72 2113 2507 431 30,35 989 1420
Novembro 388 17,72 1801 2189 228 16,69 1138 1366 263 17,81 1214 1477 318 22,57 1091 1409
Dezembro 433 13,42 2794 3227 277 20,34 1085 1362 255 12,12 1849 2104 243 26,53 673 916
TOTAL 6115 18,40 27119 33234 4811 14,83 27630 32441 4325 14,00 26562 30887 3863 23,20 12788 16651

Legenda: Teste rápido Reagente (TR), Teste rápido não reagente (TNR). Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.

Quando avaliado o número de TR DPP LVC Bio-Manguinhos® realizados no ano


de 2020 (16.651), observa-se que houve uma redução de 51,73% em comparação à média
do triênio avaliado (32.187,33), indicando comprometimento do serviço e diminuição da
quantidade de animais analisados (Tabela 3).
Dos 45 municípios avaliados, seis atuaram acima da média no ano de 2020 quando
comparados à média do triênio 2017-2019, apesar do período de pandemia (Tabela 4).
Por outro lado, 21 municípios ficaram abaixo da média do triênio, no ano de 2020
(Tabela 5). Dessa forma, nota-se que o impacto da pandemia não foi homogêneo nos
municípios da RRAS 11, sendo que alguns municípios foram mais impactados que outros,
como é o caso de Martinópolis, por exemplo, enquanto outros atuaram até mesmo acima
da média do triênio. A Tabela 6, por outro lado, reúne os 13 municípios que ainda não
estavam adequados para realizar o inquérito sorológico até dezembro de 2020, e,
portanto, não tinham a série histórica para ser comparada.
192

Tabela 4 – Distribuição dos municípios da RRAS 11 de Presidente Prudente com serviço de zoonoses que
atuaram no inquérito sorológico canino com % de atividade acima da média do recebido/programado do
triênio 2017-2019. Período de janeiro a dezembro de 2020
2017 2018 2019 2020 Média % atividade 2020
MUNICÍPIOS Nº Rec/prog Nº Rec/prog Nº Rec/prog Rec/prog Rec/Progr(% em relação
Rec Prog. Rec Prog Rec Prog Nº cães Rec Prog ) 2017-2019 triênio 2017-2019
cães (%) cães (%) cães (%) (%)
Alfredo Marcondes 1240 180 360 50 1332 260 420 61,90 1392 100 260 38,46 1389 220 360 61,11 50,12 10,99
Ouro Verde 1027 200 220 90,91 1027 240 220 109,09 3465 220 280 78,57 2313 340 240 141,67 92,86 48,81
Panorama 2050 440 1260 34,92 2100 1000 1220 81,97 2100 960 1160 82,76 2100 1280 1180 108,47 66,55 41,93
Pres. Venceslau 4800 740 1600 46,25 4800 680 800 85 4800 1040 1000 104 4800 720 720 100 78,42 21,58
Santa Mercedes 540 360 540 66,67 540 460 540 85,19 540 520 520 100 540 480 540 88,89 83,95 4,94
Tupi Paulista 1200 360 1200 30 1200 900 1200 75 920 620 920 67,39 2200 720 900 80 57,46 22,54
Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.

Tabela 5 – Distribuição dos municípios da RRAS 11 de Presidente Prudente com serviço de zoonoses que
atuaram no inquérito sorológico canino com % de atividade abaixo da média do recebido/programado do
triênio 2017-2019. Período de janeiro a dezembro de 2020
2017 2018 2019 2020 % atividade
Média
2020 em
MUNICÍPIOS Nº Rec/prog Nº Rec/prog Nº Rec/prog Nº Rec/prog Rec/Progr(%)
Rec Prog Rec Prog Rec Prog Rec Prog relação triênio
cães (%) cães (%) cães (%) cães (%) 2017-2019
2017-2019
Álvares Machado 6000 660 1440 45,83 6000 480 520 92,31 6000 220 300 73,33 6000 180 300 60 70,49 -10,49
Caiuá 1486 260 240 108,3 1486 260 240 108,3 1486 160 240 66,67 1486 220 240 91,67 94,44 -2,78
Dracena 4400 1160 3300 35,15 4400 1520 2400 63,33 4400 1840 2390 76,99 4400 460 2400 19,17 58,49 -39,32
Emilianópolis 900 220 1000 22 500 620 500 124 500 500 500 100 500 280 520 53,85 82 -28,15
Flora Rica 357 340 480 70,83 600 520 600 86,67 540 560 540 103,7 520 240 520 46,15 87,07 -40,91
Irapuru 1300 460 1480 31,08 1350 720 1380 52,17 1700 860 900 95,56 1700 420 780 53,85 59,60 -5,76
Junqueirópolis 1800 2440 6500 37,54 1500 3640 5120 71,09 2000 3920 4570 100 4500 1700 4540 37,44 69,54 -32,10
Marabá Paulista 700 200 200 100 700 200 180 111,1 700 160 240 66,67 700 122 360 33,89 92,59 -58,70
Martinópolis 7079 300 500 60 7000 2080 1120 185,7 7000 420 400 105 7000 700 3600 19,44 116,9 -97,46
Monte Castelo 830 320 830 38,55 877 320 720 44,44 660 400 660 60,61 660 140 660 21,21 47,87 -26,66
Nova Guataporanga 480 240 480 50 380 340 380 89,47 350 260 360 72,22 380 200 320 62,50 70,57 -8,07
Paulicéia 766 360 240 150 360 460 360 127,8 880 440 480 91,67 1500 340 1200 28,33 123,1 -94,81
Piquerobi 500 240 200 120 500 180 200 100 500 160 200 80 500 160 200 80 100 -20
Presidente Epitácio 4500 680 820 82,93 4500 1000 1680 59,52 4012 840 720 116,7 4012 860 1020 84,31 86,37 -2,06
Presidente Prudente 47000 20506 18800 109,1 50000 17560 18800 93,40 50000 18100 15000 120,7 50000 6000 18200 32,97 107,7 -74,75
Rancharia 7113 280 1880 14,89 7113 600 1860 32,26 7113 560 740 75,68 6408 340 920 36,96 40,94 -3,99
Ribeirão dos Índios 516 280 160 175 516 140 240 58,33 525 20 100 20 529 20 100 25 84,44 -59,44
Santo Anastácio 4000 460 480 95,83 5000 640 720 88,89 3800 420 480 87,50 3800 420 720 58,33 90,74 -32,41
Santo Expedito 1300 420 1300 32,31 720 500 720 69,44 720 320 720 44,44 720 160 700 22,86 48,73 -25,88
São João do Pau D’Alho 480 220 480 45,83 480 300 480 62,50 280 140 380 36,84 240 60 240 25 48,39 -23,39
Teodoro Sampaio 4000 420 1200 35 4000 600 830 72,29 4000 180 660 27,27 4000 320 480 66,67 44,85 21,81
Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.
Pandemia do coronavírus – 193

Tabela 6 – Distribuição dos municípios da RRAS 11 de Presidente Prudente sem serviço de zoonoses que
não realizaram atividades de inquérito sorológico canino no triênio 2017-2019. Período de janeiro a
dezembro de 2020

2017 2018 2019 2020


MUNICÍPIOS Nº Rec/prog Nº Rec/prog Nº Rec/prog Nº Rec/prog
Rec Prog Rec Prog Rec Prog Rec Prog
cães (%) cães (%) cães (%) cães (%)
Anhumas Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 1372 0 240 0
Estrela do Norte Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 869 0 160 0
Euclides Cunha Paulista Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 4300 0 0 0
Iepê Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 2500 0 200 0
Indiana* NI 0 0 0 NI 0 0 0 1339 0 100 0 1339 0 240 0
João Ramalho Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 1440 0 960 0
Narandiba** NI 0 0 0 NI 0 0 0 750 0 680 0 750 440 13,63 17,65
Pirapozinho* 5050 0 540 0 5050 0 0 0 5050 0 0 0 3277 0 720 0
Quatá*** NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 2800 0 720 0
Regente Feijó* NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 5065 0 180 0
Sandovalina NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0
Taciba Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 1600 0 0 0
Tarabai Δ NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0 NI 0 0 0

Legenda da situação dos serviços de zoonoses municipais sem realizar triagem sorológica em dezembro de 2020:
Sem capacitaçao sem estrutura
* Capacitado sem estrutura
** Municípios capacitados com estrutura parcial
*** Municípios capacitados com estrutura- sem atividade
Δ Sem vetor
NI Não informado

Fonte: Instituto Adolfo Lutz, 2021.

Ao analisar os resultados, pode-se inferir que houve uma diminuição na atuação dos
serviços de zoonoses municipais de maneira geral, entretanto, isso ocorreu de forma
heterogênea entre os municípios estudados. As equipes relataram que, além de a vigilância
do município estar direcionada para as atividades do controle da transmissão da Covid-19,
os agentes também tiveram muitas dificuldades com os tutores dos cães, uma vez que
os mesmos não permitiam que os agentes adentrassem aos respectivos quintais para a coleta
sorológica dos cães. A justificativa era devido ao risco de contaminação da Covid-19, uma vez
que era uma doença nova, temida por todos e que ainda pouco conhecimento se tinha.
É importante ressaltar que apesar da redução das atividades, os serviços de zoonoses
continuaram realizando demanda espontânea e inquéritos focais, também conhecidos como
bloqueios de área de risco, principalmente em torno de casos de LV humana. Assim, pode-se
inferir que a diminuição da atuação dos serviços de controle dessa zoonose possa provocar
o aumento de casos de LVC, e o consequente aumento de casos humanos da doença,
dado não abordado no presente estudo.
194

Verifica-se que, além da LV, a vigilância e controle de outras doenças negligenciadas


ficaram em segundo plano com a pandemia da Covid-19, de modo que a OMS registrou a
suspensão de programas de intervenção de algumas doenças como: tracoma, helmintíases,
leishmaniose cutânea, hanseníase, dengue, entre outras. Além disso, houve diminuição
dos recursos para o diagnóstico rápido de algumas doenças negligenciadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Baseado nas informações expostas, conclui-se que as medidas adotadas para o


controle da pandemia, de uma forma geral, impactaram na atuação dos serviços de zoonoses
municipais, diminuindo a realização de inquéritos sorológicos e, consequentemente,
nas ações de vigilância e controle da LV, embora esse impacto tenha ocorrido de maneira
heterogênea nos municípios da RRAS 11.

REFERÊNCIAS

HIRAMOTO, R. M. et al. Classificação epidemiológica dos municípios do Estado de São Paulo segundo o
Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, 2017. BEPA, Boletim Epidemiológico Paulista,
p. 11-35, 2019.
Pandemia do coronavírus – 195

C A P Í T U L O 15
_____________

MÉDICOS VETERINÁRIOS SÃO PROFISSIONAIS ESSENCIAIS


NA PANDEMIA DE COVID-19?

Fernanda Nobre Bandeira Monteiro26

INTRODUÇÃO

O novo coronavírus, denominado de SARS-CoV-2, causa a síndrome denominada


Covid-19, que afeta principalmente o sistema respiratório de indivíduos suscetíveis. O vírus
apresenta taxas de letalidade particularmente elevadas em indivíduos com mais de 60 anos
e com comorbidades (DE SOUZA et al., 2021). O agente é altamente transmissível,
espalhando-se rapidamente na população exposta (LOTFI; HAMBLIN; REZAEI, 2020).
Uma das formas de reduzir o número de infectados na pandemia é o uso de
programas vacinais em massa, priorizando a vacinação de ao menos dois grupos: indivíduos
com comorbidades ou com algum tipo de debilidade orgânica e profissionais de saúde,
que são essenciais para dar suporte ao atendimento à população acometida (RUSSO;
DECARLI; VALSECCHI, 2021; TALBOT, 2021). Contudo, uma polêmica surgiu no Brasil
enquanto os grupos prioritários para vacinação eram definidos por diretrizes

governamentais: Médicos veterinários devem ser vacinados contra Covid-19 Diante desse
cenário, o objetivo deste artigo é fazer uma revisão sobre o assunto de modo a levar o leitor
a uma reflexão sobre este assunto.

26
Doutoranda em Fisiopatologia e Saúde Animal pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Oeste
Paulista (UNOESTE). Bolsista Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares
(PROSUP), Mestre em Ciência Animal pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Oeste Paulista
(UNOESTE). Bolsista Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP).
Graduada em Medicina Veterinária pela Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) e Graduada em Economia
pelo Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Brasil. E-mail: fernbmonteiro@icloud.com
196

Polêmicas na mídia

No processo de decisão sobre vacinar ou não médicos veterinários, algumas


declarações surgiram nas mídias televisivas: em São Bernardo do Campo, no início
de 2021, o representante da cidade declarou. “Quem vacinou, vacinou errado,
veterinário não está dentro do plano nacional de imunização como profissional da saúde,
então não pode vacinar veterinário, nós vamos vacinar o veterinário junto com a
população da sua faixa de idade”.
Outra declaração pública, feita em 29 de março de 2021, no telejornal de uma
emissora do Distrito Federal sobre a prioridade de vacinação das categorias dos agentes
de saúde: “Ainda é difícil de engolir, por exemplo, o médico veterinário, a gente já ouviu
aí as outras explicações, mas essa categoria, a gente fica ali meio na dúvida”.
Diante das informações da mídia, a população passa a acreditar que os médicos
veterinários de alguma forma tentam “burlar o sistema”, em uma postura corporativista
na tentativa de se vacinar antes dos demais. Contudo, verificamos que tal suposição
é complemente equivocada, como analisaremos a seguir.

Combate à desinformação

O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) esclarece que, desde 1998,


os médicos veterinários são reconhecidos como profissionais de saúde, por meio da
Resolução 287, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), assim como outras 13 categoriais
profissionais; incluindo médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas
ocupacionais, biólogos, biomédicos, farmacêuticos, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos,
assistentes sociais e profissionais de educação física (BRASIL, 1998). Em campanhas
de imunização, como a da gripe, por exemplo, são grupos prioritários para à vacinação,
pelo risco de infecção inerente à atuação junto à população. Desta forma, não faz sentido
questionar a inserção do médico veterinário como profissional que atua dentro do setor
de saúde pública.
Interessante notar que no início da pandemia houve a ação estratégica do Ministério
da Saúde, com o programa denominado “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”,
para o enfrentamento ao coronavírus (Covid-19). Este programa teve o intuito de cadastrar
todos os profissionais da saúde (14 categorias) para capacitação de mão de obra no combate
à pandemia, caso fosse necessário, desde a triagem e até o atendimento aos pacientes
positivos ao Covid-19. Neste programa foram incluídos os médicos veterinários. Mesmo
Pandemia do coronavírus – 197

com esse direito estabelecido em norma, os relatos que chegam ao CFMR-SP é de que
muitos médicos-veterinários tiveram dificuldades em conseguir vacinar-se contra Covid-19
(CRMV-SP, 2021).
Médicos veterinários desempenham ações integradas no controle social do SUS
junto ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) desde 2011, que atualmente conta
com 114 médicos veterinários atuando nos 19 Estados brasileiros. A importância da
atuação do médico veterinário como agente de saúde se dá por conta de que 75%
das doenças emergentes e reemergentes são de origem animal; desta forma, esta
categoria profissional desenvolve ações de estratégia multidisciplinar no que diz respeito
à promoção de saúde, prevenção e ao controle de doenças e agravos. Também conhece
especialidades no tocante ao manejo técnico das questões ambientais e à circulação
de agentes e patógenos no território e nos domicílios (EPIFÂNIO; BRANDESPIM, 2019;
SANTOS; MORIKAWA; LOPES, 2017).
No NASF, o médico veterinário tem como papel crucial porque é o único profissional
na interface humano/animal, capacitado para realizar ações de planejamento e de
intervenção; prevenção, controle e diagnóstico situacional de risco de doenças transmissíveis
por animais, como raiva, leptospirose, brucelose, tuberculose, leishmaniose, dengue, febre
amarela, etc. Além dessas doenças, atua na prevenção do complexo teníase-cisticercose, são
responsáveis também pela educação em saúde, com foco na promoção, prevenção
e controle de doenças de caráter antropozoonótico e demais riscos ambientais, incluindo
desastres naturais e aqueles provocados pelo ser humano. Ele também desempenha ações
educativas e de mobilização da comunidade, relativas ao controle das doenças e ao uso
e manejo adequado do território, com vistas à relação saúde/ambiente (desmatamentos,
uso de pesticidas, uso indiscriminado de medicamentos veterinários), coordena e planeja
estudos e pesquisas em saúde pública que favoreçam a territorialidade e a qualificação da
atenção e atua nos cuidados com os resíduos sólidos (ANJOS et al., 2021; SILVA et al., 2020).
As ações de educação em saúde nas escolas, divulgação nos meios de
comunicação e sensibilização das comunidades e da sociedade são de responsabilidade
do veterinário do NASF, assim como a prevenção e controle de doenças transmissíveis
por alimentos, e ainda as respostas às emergências de saúde pública e eventos
de potencial risco sanitário nacional, de forma articulada com outros setores
responsáveis. Por fim, também atua na identificação e orientações sobre os riscos de
contaminação por substâncias tóxicas (agrotóxicos e inseticidas) (RIBEIRO et al., 2020).
198

Além da atuação direta em saúde pública, os médicos veterinários são profissionais


essenciais para a indústria de alimentos e fármacos veterinários. Sem dúvida, são
necessários para atuar durante a pandemia de Covid-19 a fim de garantir a inocuidade dos
alimentos de origem animal ofertados a população (CFMV, 2021). Além disso, são técnicos
que devem ser obrigatoriamente contratados para desempenhar determinadas atividades
em empresas que incluem frigoríficos, laticínios e supermercados, e no setor público são
necessários para vigilância sanitária realizando inspeção de estabelecimentos que
comercializam ou produzem produtos de origem animal. Também atuam na destinação
correta de resíduos, no uso consciente e humanizado de medicamentos e na redução do
impacto ambiental e em pesquisas.
O planeta Terra é habitado por 47 mil espécies de vertebrados, e nelas estão
incluídos o homem e cerca de cinquenta espécies de animais domésticos, todo o restante
são animais selvagens. Nesse sentido, os médicos veterinários são fundamentais na
denominada Medicina Veterinária da conservação, que abrange a saúde do ambiente
com visão integrada do ecossistema, buscando a conservação das espécies (BRESSAN;
MEDEIROS, 2010).
Outra questão relevante durante a pandemia é a necessidade de manter a
continuidade dos serviços de atendimento clínico aos pets. Dispensar os médicos
veterinários da vacinação contra Covid-19 é sentenciá-los ao risco de contrair a infecção
enquanto atendem ao público, e esta atividade, deve, portanto, ser considerada essencial.
Esta não é uma mera atividade profissional para gerar renda, como muitos interpretam,
visto que, durante o atendimento, o médico veterinário também orienta o tutor sobre
o risco de zoonoses que o seu pet pode transmitir aos que convivem com ele.
Em 2018/2019, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para
Animais de Estimação (ABINPET), a população de animais de companhia no Brasil atingiu a
marca de 141,6 milhões. Destes, 55,1 milhões são cães e 24,7 milhões gatos. Estima-se um
crescimento acumulado de 1,7% de cães e 3% de gatos. Segundo o IBGE, em 2019, em 46,1%
dos domicílios tinham pelo menos um cão, e 19,3% dos domicílios tinham pelo menos um
gato (RIOS, 2020). Em 2019, o faturamento da indústria pet no Brasil foi o total de
R$ 22,3 bilhões, sendo entre eles pet food (alimentos) responsável por 73,3%, 8,3% pet care
(estética) e 18,4% com vet pet (cuidados veterinários) (ABINPET, 2019).
Pandemia do coronavírus – 199

Abandono dos pets durante a pandemia

Pets são utilizados em hospitais, para auxiliar no tratamento de pacientes com


chances altas de desenvolver depressão, assim como para auxiliar pacientes oncológicos.
Na pandemia eles ajudam a manter a saúde mental no isolamento social criando laços
familiares; isso ocorre sem distinção de espécie (PERSSON et al., 2015; SOLOMON, 2010).
Contudo, durante a pandemia, segundo médico veterinário do CCZ de Presidente
Prudente, Guilherme V. Kempe, o número de cães abandonados aumentou em pelo menos
três vezes. Em contraste, o número de gatos abandonados é difícil de estimar, pois não são
recebem chips de identificação eletrônica como no caso dos cães. Mais cães nas ruas
implicam riscos mais altos de disseminação de zoonoses urbanas como leishmaniose, raiva
e brucelose dos cães (GUILLOUX et al., 2018; OTRANTO et al., 2017).
No início da pandemia, alguns estudos sugeriram que os cães podem ser
reservatórios do Coronavirus responsável pela Covid-19, o que possivelmente isso levou as
pessoas a ficarem com medo e abandonarem seus animais. Por outro lado, devido ao
fechamento de muitos estabelecimentos por conta da pandemia, muitas pessoas perderam
seus empregos, ou teve sua renda diminuída, o que contribuiu para que seus pets fossem
abandonados por medo de não terem condições de os alimentarem ou dar qualquer tipo
de assistência.
Os CCZs são unidades de saúde pública que combatem fortemente o abandono e
estimulam a adoção de animais de rua, com objetivo fundamental prevenir e controlar as
zoonoses, como raiva e leishmaniose, desenvolvendo sistemas de vigilância sanitária,
epidemiológica e ambiental em saúde. São distribuídos nos municípios conforme número
de habitantes existentes, divididos em quatro tipos onde são desenvolvidas atividades de
controle de população animais, entomologia e controle de vetores e diagnóstico
laboratorial de zoonoses (BRASIL-FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, 2003):

a) Tipo 1 (CCZ 1): para população acima de 500.000 habitantes;


b) Tipo 2 (CCZ 2): para população de 100.000 a 500.000 habitantes;
c) Tipo 3 (CCZ3), para população de 50.000 a 100.000 habitantes;
d) Tipo 4 (CCZ4), para população de 15.000 a 50.000 habitantes;
200

Canil Municipal (CM), para população de até 15.000 habitantes, desenvolvendo


atividades apreensão de cães e gatos com o objetivo de manejo de controle destas
populações animais, enquanto fatores de risco de transmissão de doenças.
Durante a pandemia do Covid-19 o médico veterinário responsável pelo CCZ de
Presidente Prudente, Dr. Guilherme Kempe, relata que o atendimento à população não
parou nem reduziu, visto que o acompanhamento de casos de leishmaniose e outros
serviços essenciais foram continuados, com visitas às casas, continua normalmente,
respeitando sempre as normas de segurança relativas a proteção individual e o
distanciamento social.
O CCZ tem papel fundamental nas ações sociais para comunidade com a finalidade
de atender os animais, como o atendimento básico de animais de ruas e de famílias
carentes por meio do SamuPet, em Presidente Prudente, com um veículo adaptado e com
serviço gratuito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os médicos veterinários são profissionais essenciais e precisam ser valorizados,


porém pela falta de informação e de conhecimento por parte de políticos, personalidades
e profissionais de imprensa, as notícias da mídia mostram que o médico veterinário é um
profissional sem relação com a saúde humana, passando a ideia de maneira errônea sobre
o vasto campo de exercício desse profissional.
O trabalho do médico veterinário vai além dos serviços prestados ao atendimento
aos pets e animais de produção, eles trabalham para configurar esse novo contexto
de Saúde Única, incorporando ao grupo de profissionais de saúde por estar habituado a
proteger a população contra as enfermidades coletivas, planejando e avaliando as medidas
preventivas e de controle a saúde pública.
O médico veterinário é um profissional indispensável para assegurar a saúde da
população humana e animal e seu trabalho é fundamental para o desenvolvimento
da humanidade no aspecto científico, nutricional, sanitário e em perfeito equilíbrio com
o meio ambiente e com os animais que aqui habitam, especialmente na área de zoonoses,
o desafio, além do diagnóstico e tratamento das mais de 200 doenças transmitidas do
animal para o homem, reafirmando o que dizia Louis Pasteur: “A Medicina cura o homem,
a Medicina Veterinária cura a humanidade.”
Pandemia do coronavírus – 201

REFERÊNCIAS

ABINPET. Mercado PET Brasil 2019. Disponível em: http://abinpet.org.br/mercado/. Acesso em:
31 dez. 2020.

ANJOS, A. R. S. dos et al. A importância do médico veterinário na saúde pública. Research, Society and
Development, v. 10, n. 8, p. e18210817254, 10 jul. 2021.

BRASIL. FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Diretrizes para projetos físicos de unidades de controle de
zoonoses e fatores biológicos de risco. Brasília: Ministério da Saúde, 2003.

BRESSAN, M. A.; MEDEIROS, P. M. O papel da medicina veterinária na conservação da biodiversidade.


Boletim APAMVET, v. 1, n. 1, p. 8-10, 2010.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA (CFMV). Por que o médico-veterinário é insubstituível na


indústria de carnes. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/por-que-o-medico-veterinario-e-
insubstituivel-na-industria-de-carnes/comunicacao/noticias/2021/02/25/. Acesso em: 25 fev. 2021.

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA (CRMV-SP). Profissionais da saúde são grupo prioritário
para vacinação contra Covid-19. Disponível em: https://crmvsp.gov.br/profissionais-da-saude-sao-grupo-
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Pandemia do coronavírus – 203

C A P Í T U L O 16
______________

TÉCNICAS EPIDEMIOLÓGICAS APLICADAS AO ESTUDO


DA PANDEMIA DE COVID-19

Rogerio Giuffrida27

INTRODUÇÃO

Epidemiologia e modelagem de epidemias

A epidemiologia é uma das disciplinas mais importantes das ciências da saúde.


Nos últimos anos, ela tem evoluído com as mudanças ocorridas na sociedade,
notadamente à medida que novas doenças surgem. Trata-se de uma ferramenta útil
e relevante para compreender doenças e eventos de saúde. (FRÉROT et al., 2018).
A palavra epidemiologia vem do grego, que decomposta significa: epi = sobre,
demos = população, e logos = tratado. De forma literal, significa “Estudo do que está sobre
a população”. (CORTÊZ, 1993).
Uma das definições mais aceitas para a epidemiologia é que se trata de um método
de raciocínio sobre doenças e que envolve inferência biológica derivada de observações de
fenômenos em grupos populacionais (LILIENFELD, 1978). Outra definição mais abrangente
denota que a epidemiologia é a análise quantitativa das circunstâncias em que os processos
de doença ocorrem em grupos populacionais, fatores que afetam sua incidência,
distribuição e a resposta do hospedeiro e o uso desse conhecimento na prevenção e controle.
(EVANS, 1979).
Pandemia, por conseguinte, é uma epidemia de grandes proporções, com nível alta
transmissibilidade. Geralmente, trata-se de um evento que atinge uma área ampla e com
grande proporção da população, expansão para países e continentes, ou até mesmo
proporções globais. (MORENS; FOLKERS; FAUCI, 2009).

27
Professor doutor dos Programas de Pós-graduação em Ciência Animal e Meio Ambiente e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), Presidente Prudente, São Paulo.
E-mail: rgiuffrida@unoeste.br
204

A princípio o termo pandemia sugere uma infecção transmitida de forma rápida e


de curso agudo, contudo, ele tem sido aplicado para descrever doenças crônicas com alto
poder de difusão, incluindo a sífilis, o HIV e a tuberculose (ARORA et al., 2017; SHARP;
HAHN, 2011; ZUMLA et al., 1999). O termo tornou-se muito conhecido da população com
o advento da maior crise sanitária da história moderna: a pandemia pelo o SARS-CoV-2, o
sétimo coronavírus conhecido por infectar humanos.
O SARS-CoV-2 é associado à síndrome conhecida como Covid-19, que ocorre por
meio da exposição ao coronavírus, sendo capaz de afetar tanto imunossuprimidos como
imunocompetentes. O vírus é reconhecidamente mais letal para pacientes com mais de
60 anos do sexo masculino e que apresentam comorbidades. (DE SOUZA et al., 2021).
A transmissão da doença é majoritariamente via contágio direto e indireto entre
pacientes com pneumonia ou assintomáticos, inclusive durante o período de incubação.
(LOTFI; HAMBLIN; REZAEI, 2020).
Para compreender como a doença se propaga nas populações e traçar estratégias
de controle, pesquisadores têm lançado mão de diversas ferramentas epidemiológicas,
incluindo modelagem matemática da evolução das taxas de incidência da doença (PINTO
NETO et al., 2021), ensaios clínicos randomizados com drogas novas ou reposicionadas
(LYTHGOE; MIDDLETON, 2020), avaliação da imunidade coletiva (denominada também de
“imunidade de rebanho”) após vacinações sistemáticas (BLOOM et al., 2021), estudos
de desempenho de testes diagnósticos (CASTRO et al., 2020) e avaliação do surgimento de
novas cepas por meio de testes de genotipagem (MOUSAVIZADEH; GHASEMI, 2021).
Durante a pandemia, foram implementados avanços importantes no setor de
tecnologia da informação. Neste contexto, foram desenvolvidos sistemas de gerenciamento
interativo on-line de dados para visualizar e rastrear casos relatados de Covid-19
em tempo real. Alguns desses painéis são capazes de registrar atualizações a cada 15
minutos, nas contagens cumulativas de casos (DONG; DU; GARDNER, 2020). Os dados
gerados impactam diretamente no controle da epidemia (WIMBA et al., 2020), auxiliando
inclusive na elaboração de modelos matemáticos para prever como a epidemia evolui
(FLOREZ; SINGH, 2020).
As epidemias têm comportamentos temporais relativamente previsíveis de forma
que a evolução dos eventos contagiosos pode ser prevista. Esta abordagem pode ser
empregada para minimizar os impactos de uma epidemia na saúde pública (LONGINI; FINE;
THACKER, 1986) e, em geral, é baseada em modelos computacionais para prever a propagação
espaço-temporal com uso de um sistema de equações diferenciais (DUAN et al., 2015).
Pandemia do coronavírus – 205

Os modelos epidêmicos avançaram muto nos últimos anos, notadamente em razão


dos avanços na capacidade computacional. Eles têm sido aplicados principalmente para
eventos epidêmicos veiculados por contágio direto e indireto, situação que exige que
transmissor e receptor estejam no mesmo espaço-tempo (CORTÊZ, 1993). Desta forma,
esses modelos foram amplamente empregados para modelar doenças como a gripe,
ebola, AIDS, malária, tuberculose e outras ( AGUILAR; GUTIERREZ, 2020; HUO; CHEN;
WANG, 2016; METTLE; OSEI AFFI; TWUMASI, 2020; RAFIQ et al., 2020).
Os primeiros modelos adotavam a ideia de que as epidemias tinham
comportamento linear. Posteriormente, verificou-se que as epidemias terminavam antes
que todos os suscetíveis fossem infectados e que a dinâmica de transmissão era não linear
e sim com formato de uma curva (HAMER, 1906).
Nos modelos epidêmicos modernos, foram incorporadas equações diferenciais
pare estimar um valor denominado de “número de reprodução básica”, que, ao
ultrapassar determinado patamar, indica que uma doença infecciosa pode se espalhar
em uma população suscetível. Nesse contexto, surgiu o conceito de imunidade de
rebanho, que define que não é necessário vacinar toda a população para eliminar uma
doença infecciosa, teoria comprovada após a erradicação da varíola na década de 1970
(SCHERER; MCLEAN, 2002).
Os modelos epidêmicos de transmissão são diferentes dos modelos estatísticos,
visto que são uma descrição mecanicista da transmissão do agente entre dois indivíduos.
Uma vez incorporados vários indivíduos dentro do modelo, e conhecidas as taxas com que
a doença evolui entre transmissores e receptores, a descrição mecanicista permite prever
a evolução temporal de uma epidemia em termos matemáticos. Alguns modelos são muito
complexos e com muitos detalhes, requerendo o uso de computadores para uma
modelagem apropriada (HERNÁNDEZ et al., 2021).
A maioria dos modelos epidêmicos modernos utiliza o conceito de
“compartimentos” para explicar a evolução de uma epidemia. Um compartimento é uma
espécie de categoria mutuamente exclusiva na qual o indivíduo exposto é inserido. Como
a epidemia é um processo dinâmico, os indivíduos podem migrar de um compartimento para
outro a uma determinada velocidade que denominamos de “taxa de infecção”. A Figura 1
exemplifica uma epidemia com dois compartimentos: “Suscetível” e “Infeccioso”,
denominado de modelo SI.
206

Figura 1 – Modelo SI (“Suscetible – Infectious”). A seta indica o sentido da migração entre compartimentos
à medida que os suscetíveis tornam-se infecciosos

Fonte: O autor, 2021.

No modelo SI os indivíduos só podem migrar no sentido “S” para “I”, ou seja,


tornam-se permanentemente infectados. Ele é aplicado para modelar epidemias como HIV
e Covid-19 (DEMONGEOT; GRIETTE; MAGAL, 2020; GHOSH et al., 2018). Este modelo,
contudo, é considerado um dos mais simples e pode ser aprimorado pela adição de outros
compartimentos.
Dependendo da forma como a doença progride podem ser incorporados mais
compartimentos (BRITTON, 2010). O modelo SIR incorpora um compartimento de
“recuperados” e o modelo SEIR, um compartimento de “expostos” e de “recuperados”
(Figuras 2 e 3). Ainda podem ser incorporados nos modelos compartimentos adicionais
como “nascimentos” e “óbitos” (Figura 4) e setas adicionais (Figura 5), indicando novos
sentidos de migração entre compartimentos (de “recuperados” para “suscetíveis”, como
no caso de epidemias nas quais indivíduos podem se infectar mais de uma vez). O modelo
SIS é usado quando os indivíduos infectados se tornam suscetíveis novamente (Figura 6).

Figura 2 – Modelo SIR (“Susceptible – Infectious – Recovered”). A seta indica o sentido da migração entre
compartimentos à medida que os suscetíveis se tornam infecciosos e recuperados

Fonte: O autor, 2021.


Pandemia do coronavírus – 207

Figura 3 – Modelo SEIR (“Susceptible – Exposed – Infectious – Recovered”). A seta indica o sentido da
migração entre compartimentos à medida que os suscetíveis se expõem, se tornam infecciosos e
recuperados

Fonte: O autor, 2021.

Figura 4 – Modelo SIR (“Susceptible – Exposed – Infectious – Recovered”) com compartimento de


“nascimentos” (N) e “óbitos” (O). A seta indica o sentido da migração entre compartimentos à medida que
os suscetíveis se expõem, se tornam infecciosos e recuperados

Fonte: O autor, 2021.

Figura 5 – Modelo SIR (“Susceptible – Infectious – Recovered”). A seta indica o sentido da migração entre
compartimentos à medida que os suscetíveis se tornam infecciosos e recuperados. Neste caso os
recuperados podem se reinfectar

Fonte: O autor, 2021.


208

Figura 6 – Modelo SIS (“Susceptible – Infectious – Susceptible”). A seta indica o sentido da migração entre
compartimentos à medida que os suscetíveis se tornam infecciosos e suscetíveis novamente

Fonte: O autor, 2021.

Uma vez estabelecidos os modelos e os estágios da infecção, é possível estimar


as taxas relativas aos indivíduos que migram entre compartimentos em determinado
período. Podemos responder a perguntas como, por exemplo: O que acontece em uma
população de mil indivíduos suscetíveis, na qual duas pessoas infectadas ingressam, após
365 dias de convívio A resposta para esta pergunta vai depender de vários fatores que
incluem (JENNESS; GOODREAU; MORRIS, 2018):

a) a probabilidade de infecção por ato transmissível entre um indivíduo suscetível


e um dos infectados, em um determinado instante de tempo (definido como dia,
semana, ou mês, por exemplo);
b) o número médio de contatos que geram transmissão entre pessoas por unidade
de tempo;
c) a taxa média de recuperação após desenvolvimento de imunidade (em modelos
SIR) ou ressuscetibilidade (em modelos SIS). A taxa de recuperação é o recíproco
da duração da doença, sendo um parâmetro usado apenas para modelos SIR e SIS;
d) taxa de entrada, que exprime a chegada de novos suscetíveis por unidade de
tempo dentro do modelo;
e) taxa de saída do compartimento de suscetíveis para infectados;
f) taxa de saída do compartimento de infectados para os recuperados.

Ainda podem ser incorporadas no modelo variáveis que indicam diferenças entre
sexos ou medidas de contenção da epidemia, como vacinas, isolamento, tratamentos, etc.
(JENNESS; GOODREAU; MORRIS, 2018).
À medida que a epidemia progride, a proporção de indivíduos dentro de cada
compartimento se altera até que toda a população exposta esteja inserida no último
compartimento (Figura 7). Este processo pode ser representado graficamente por meio
de curvas que, sobrepostas em um eixo horizontal, permitem prever o comportamento da
epidemia (Figura 8), após a manipulação matemática de equações diferenciais.
Pandemia do coronavírus – 209

Figura 7 – Evolução relativa de cada compartimento dentro do modelo SEIR (Susceptible – Exposed
– Infectious – Recovered”). A seta indica o sentido da evolução da epidemia

Fonte: O autor, 2021.

Figura 8 – Evolução relativa de cada compartimento dentro do modelo SIR (“Susceptible –Infectious
– Recovered”) a partir de uma população de mil indivíduos suscetíveis após 300 dias. Os parâmetros
utilizados foram: probabilidade de infecção = 30%, taxa de contatos = 1, taxa de recuperados = 1/10, taxa
de entrada no compartimento de suscetíveis= 1/90, taxa de saída no compartimento de suscetíveis
= 2/100, taxa de saída no compartimento de infecciosos = 1/90 e taxa de saída no compartimento de
recuperados = 2/100. As linhas indicam a evolução do número de indivíduos dentro de cada
compartimento (s.num = suscetíveis; i.num = infecciosos; r.num = recuperados). Nota-se que o pico
da epidemia ocorrerá por volta dos 40 dias (linha vermelha)

Fonte: O autor, 2021.

Um número-chave na epidemiologia das doenças infecciosas é denominado de taxa


de reprodução básica, denotado por R0, que é definido como o número de casos
secundários que são infectados por um indivíduo infeccioso. Se uma infecção tem R0 > 1,0,
a epidemia progride e se R0 for <1 se extingue. Se o R0 for 1,5, por exemplo, cerca de 50%
da população se infectará em determinado período de tempo. (DELAMATER et al., 2019).
Considerando-se que R0 está relacionado à taxa de contato efetiva, ele depende do
comportamento e da organização social humana, logo, os valores estimados podem
variar de região para região. (GUERRA et al., 2017).
210

Por que os modelos epidemiológicos falham 

O novo coronavírus (Covid-19) provoca a denominada Síndrome Respiratória


Aguda Grave CoronaVirus 2 (SARS-CoV-2), que se propaga pelo mundo sendo
caracterizada como uma pandemia. São registrados milhões de casos em todo o mundo,
com taxas de hospitalização chegando a 18% dependendo das faixas etárias. (VERITY
et al., 2020), sobrepujando a capacidade de suporte dos sistemas de saúde pública.
(AZARPAZHOOH et al., 2020).
Diante desse desafio, vários modelos epidemiológicos foram desenvolvidos para
melhorar a previsão de epidemias e possíveis resultados de estratégias de intervenção.
A maioria desses estudos aplica a distribuição gama para descrever o tempo da infecção
por Covid-19, além da distribuição lognormal, a distribuição Erlang e a distribuição Weibull
com diferentes configurações para o tempo de incubação. Os resultados alcançados pelos
modelos são consistentemente diferentes, o que sugere que as instituições envolvidas na
prevenção e controle devem ser cautelosas ao formular estratégias de saúde pública com
base nos resultados de previsão de modelos matemáticos. (JEWELL; LEWNARD; JEWELL,
2020; XIANG et al., 2021).
Uma questão-chave é compreender por que diferentes abordagens para modelar
a epidemia de Covid-19 apresentam resultados tão díspares. Existem várias razões para
esses resultados divergentes. Em muitos casos, esses modelos erram em razão de
inserirem parâmetros matemáticos baseados em dados distorcidos, sendo conhecidos
vários fatores capazes de enviesar as informações. Dentre estes fatores destacam-se
as subnotificações e sobrenotificações que mascaram a verdadeira incidência.
As subnotificações são relativas aos indivíduos que efetivamente apresentaram uma
infecção pelo vírus, contudo não foram diagnosticados, principalmente por serem
assintomáticos, enquanto a sobrenotificação se refere a indivíduos que podem ter vindo
a óbito por outras causas (comorbidades), mas que são registrados no sistema de saúde
como óbitos devido ao Covid-19. Essas distorções introduzem incertezas nos indicadores
epidêmicos, como taxa de mortalidade e morbidade incidente, e podem alterar a posição
do pico da pandemia em uma região. Existe dificuldade de correção destas distorções por
que os modelos geralmente trabalham com o pressuposto de que todos os casos de
Covid-19 são notificados. (BASTOS et al., 2021).
Pandemia do coronavírus – 211

Outro fator a ser considerado é composição etária da população, que influencia


no número de mortes em alguns países. Países com populações longevas tendem a ter
mais óbitos que populações jovens. Dessa forma, os modelos devem considerar que a
idade é um preditor importante para a taxa de óbitos por covid-19. Um estudo
desenvolvido na China indicou que a razão de chances. (ODSS RATIO) de óbito aumenta
em 1,1 para cada ano de vida (IC95% = 1,03; 1,17). (ZHOU et al., 2020). Outro estudo
indicou que indivíduos com mais de 80 anos tem seis vezes mais chances de óbitos que
os indivíduos jovens, possivelmente em razão de comorbidades como doença
cardiovascular, hipertensão e diabetes. (BONANAD et al., 2020).
Outro fator que pode interferir na capacidade preditiva dos modelos é o aumento
no número de óbitos devido ao colapso dos sistemas de saúde que após serem
sobrecarregados, deixam de atender à demanda de casos de Covid-19. Este colapso foi
observado no Brasil, onde a maioria dos Estados apresentou mais de 90% de ocupação
de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). No país a letalidade da doença nas UTIs
é mais alta (80%) que na maior parte dos países. (50%) (SILVA; PENA, 2021).
Os modelos também apresentarão variações no desempenho preditivo de acordo
com a forma como os dados de incidência forem padronizados. Dados como a taxa diária
de óbitos costumam ser mais precisas que dados cumulativos, que são amplamente
influenciadas pela taxa de reprodução básica. (SURESH et al., 2021).
Finalmente, os modelos também podem apresentar capacidade preditiva limitada
aos primeiros meses da epidemia, visto que a implementação de medidas de controle
como a proibição das aglomerações de pessoas e obrigatoriedade de medidas de
distanciamento social e que afetam substancialmente a posição das curvas epidêmicas.
(LEE; KWON; LEE, 2021; ORABY et al., 2021).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À medida que os conhecimentos sobre a pandemia da Covid-19 são amplificados,


os modelos epidemiológicos tendem a ser aprimorados ao incorporarem varáveis que
os tornam mais complexos, contudo, mais próximos da realidade. Esses modelos são
essenciais para que gestores de saúde promovam medidas de controle mais eficazes,
ainda que ocorra interferência da imprevisibilidade da enfermidade nas populações
expostas. Novos modelos devem surgir nos próximos meses, sendo o grande desafio
torná-los compreensíveis para os gestores de saúde, muitas vezes, sem a formação
aprofundada em modelagem epidemiológica.
212

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Acesso em: 13 set. 2021.
Pandemia do coronavírus – 215

C A P Í T U L O 17
______________

ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: O DEBATE CONTEMPORÂNEO

Maria Cândida Avellar Oliveira Moraes de Lima28

INTRODUÇÃO

A fé pode ou não alterar padrões, modificar e ajudar no processo pós-pandemia,


na crise pós-pandemia? Para falarmos sobre fé, deixaremos bem claro que não estamos
falando de uma religião ou defendendo um ponto de vista religioso, precisamos primeiro
colocar em breves palavras o que entendemos por fé nesse sentido.
A fé aqui será tratada como uma potência do Espírito, uma potência transformadora
que tem agregação a outras potencias ou, nesse caso, sub-potências que são o desejo,
a vontade e a coragem. A fé é, portanto, uma potência que o Espírito consegue manifestar,
mas o quanto ela pode alterar, vai da capacidade de cada Ser em expressar-se na ação
ou de conseguir fazer emergir de seu íntimo a materialização dessa potência.
Então não vamos falar aqui de fé dogmática, nem falar daquela fé cega que
é baseada e calcada sem um conhecimento, uma ideia imposta, uma ideia pré-concebida,
não. Nós falaremos de fé como potência transformadora.
Então, sim, se entendida dessa forma, a fé é realmente transformadora e pode
atuar, e atua, e temos visto esses resultados o tempo todo, de forma muito dinâmica
dentro dos processos das curas, da cura tanto do corpo físico tanto quanto do Espírito,
da mente, do emocional.
Hoje a fé é considerada, inclusive, a maior ferramenta de agregação nos
tratamentos convencionais, pois é a ferramenta que traz a potência íntima do Ser na
participação dos destinos da sua própria vida.
O fato mais interessante de se observar é a fé enquanto imposta, a fé pré-concebida
por exemplo, onde o ser humano que fica preso a uma determinada ideia, a um
determinado processo é o mesmo, digamos assim, que estando sob um momento de

28
Jornalista e Conferencista.
216

grande decisão estagna-se. Vamos exemplificar: anuncia-se um terremoto e este homem


está sentado no sofá, em sua casa, e lá fica sem buscar um refúgio, ele não busca proteger-
se porque diz: “Deus vai vir aqui me ajudar, Deus vai me tirar dessa”. Isso, aliás, nem fé é,
isso é delegar ao outro, seja a Deus, ao seu vizinho, seu pai, ou sua mãe a sua
responsabilidade perante a vida, e tira de si o direito de ação. Sejam quais forem as nossas
semeaduras, as nossas ações, elas vão gerar sempre consequências, e consequências
diretas de suas causas, e com o agravamento de não serem dotadas da capacidade de
discernir o que é bom ou ruim.
Assim, sejam ações negativas ou ações positivas elas gerarão consequências que
nós, como seres humanos vamos lidar com isso e disso tirar o grande proveito. A fé é,
de fato, um dos elementos que, nos processos das nossas decisões intimas, quando a nossa
estrutura cerebral trabalha na busca de soluções, o elemento que vai fazer com que o ser
humano olhando a si mesmo, percebendo as suas questões, ponha em prática esse arsenal
íntimo para ajudar-se, ajudar o mundo e a sociedade em que vive ou não.
Então o que temos visto, de fato, é quando uma pessoa está diante de decisões que
julga, e que muitas vezes estão fora do suas interpretações, que são inalcançáveis dentro
do seu conhecimento, dentro das suas possibilidades, sabe que em sua estrutura material
não tem o recurso que precisa, mas compreende que dentro da sua estrutura espiritual,
dentro do seu processo íntimo este recurso está presente, e pode fazer isso, utilizar a seu
favor, em seu benefício. Isto é fé!
A fé aqui entendida é a consciência profunda, um ato de consciência, ela é racional,
e não uma ação, ou sentimento, desprovido de sanidade. Ela é racional.
Muito bem. Na questão da pandemia do covid que nós estamos enfrentando e a
situação pós, sabemos que a pandemia física do vírus chegará, em algum momento a um
fim, ou vai se transformar em outra coisa, mas o que agora vemos, hoje e para o futuro, é
que essa pandemia viral gerou uma pandemia paralela, uma segunda pandemia, uma
derivação que chamamos de pandemia das estruturas emocionais, psicológicas e mentais
que está, na realidade, assolando hoje a humanidade e tende a perpetuar no pós pandemia
do vírus. É essa pandemia paralela que na realidade está forjando um indivíduo com
complexidades emocionais, um aumento dos casos de depressão, ansiedade generalizada,
quadros obsessivos, e o mais expressivo dentre todos, a doença do luto, como o sentido
de finitude.
Pandemia do coronavírus – 217

Então o Homem está totalmente sem o controle de sua finitude, sem o suposto
controle de seu destino, de seu amanhã, como por exemplo, aquelas pessoas que têm
medo de andar de avião porque não têm o controle sobre aquele aparelho.
O ser humano tem a necessidade do controle e sempre acreditou que tem o
controle sobre a sua finitude, como se tivesse a autorização intima de decidir quando
e como ele vai desencarnar, Mas não, não é bem assim, embora acreditemos que sim: “não,
isso não é para mim agora, isso não vai acontecer comigo”, e expõe sua vida como se o fim
nunca fosse ocorrer, embora seja a certeza mais absoluta desde que encarnamos, ou seja,
desde que nascemos.
Logo, a pandemia trouxe essa sensação de insegurança pelo sentido da finitude, “eu
não tenho controle sobre isso”, quando também não tem controle sob a própria doença
se vier a se contaminar, e nem sobre o destino dos filhos, nem da família, nem de ninguém.
Esse estado emocional está fazendo emergir as inseguranças intimas do Homem,
todos os seus pânicos, os seus temores, as suas fobias, o seu desequilíbrio, que por vezes
dentro de uma situação linear na vida fica imerso e que agora está vindo à tona, está se
externando. Para esse momento, de fato, esse momento pós pandemia do vírus, a fé é o
que mais vai dar suporte, precisará estar presente em todos os processos.
Assim, uma pessoa que hoje, por exemplo, se desestabiliza durante o processo da
doença, na fase viral, desestrutura todos os processos da chamada segunda semana,
quando sai da crise viral e entra nas consequências do seu próprio processo imunológico.
Nesse momento mostra-se o Ser como é, e cada pessoa terá uma forma de lidar
dentro dessa pandemia e gerará resultados inerentes a ele, que são pertencentes a cada
indivíduo, por isso que cada um tem uma forma de processar esse momento enquanto
dentro da doença, dentro da crise da doença propriamente dita.
Aí se estabelece aquilo que chamamos de fé. O Homem que a possui se vê diante da
doença, na interpretação de sua vida, gerando para si, para seu próprio sistema imunológico,
calma, resignação, elementos de pacificação intima, ou seja, busca dar-se um momento
de paz intima para que seu corpo físico, para que seu sistema imunológico lendo essa paz
intima, lendo esse momento de tranquilidade, de calma, entenda isso mais seguramente.
Dessa forma, o Ser Humano sabe que aquilo que está acontecendo vai afetá-lo,
sim, mas que vai ter controle sobre isso. É nesse sentido que hoje lemos os processos
da fé nos encaminhamentos, nos desenvolvimentos das doenças manifestas. Como essa
doença, propriamente dita, está muito “linkada” a partir da fase viral ao comportamento
218

íntimo de cada um, fica muito claro quando o Homem pode ser o autor de sua doença,
o autor de sua cura, o autor dos processos íntimos aos quais ele é dotado como Espírito.
Ele é dotado, essas respostas estão lá.
A verdade é que todos nós, Humanos em luta pela vida, sabemos dizer se temos em
nós essa fé inabalável, e a fé inabalável em Deus, e sabemos que a fé inabalável em Deus
vai nos gerar resignação, um estado de espírito de altíssimo poder, e que tem uma forma
muito peculiar de manifestar-se.
Resignar-se é aceitação, “eu aceito isso, isso veio eu aceito. Então eu tenho essa
resignação, essa aceitação, não nego o processo, aceito”.
Assim, a aceitação que é essa resignação, é a fé em Deus. “Eu sei o que está
acontecendo e eu entendo que eu preciso passar por isso”. Mas esse comportamento,
esse pensamento, não é aquela fé em Deus do tipo passiva e submissa, “olha eu estou aqui,
não vou fazer nada, não tomo remédio, não faço nada porque você vai me curar”. Não é isso,
é a fé do entendimento da necessidade e da aceitação, da busca na intimidade da consciência
dos elementos que podem ajudar, na realidade o primeiro autoamor. É necessário que se
faça esse link da fé, o amar-se, o conhecer-se, o saber-se para poder utilizar esses recursos
com sabedoria e parcimônia.
Então, o ser humano nesse momento deve utilizar da fé divina que é a resignação e
da fé em si que é saber que tem controle e autoridade moral com seu próprio corpo. O corpo
“obedece” ao seu primeiro mestre que é o próprio Espírito que ali está, é o Ser que ele é.
O corpo é um vassalo, digamos assim, desse seu mestre, o espírito, a mente, a alma.
E quando nós aprendemos a acessar isso em nós mesmos, pelo nosso conhecimento, pela
nossa sabedoria – primeiro, o conhecimento empírico, o conhecimento que já está lá em
nós pela nossa própria criação, pelo ser que somos - emitimos ordens e determinações
ao nosso próprio corpo, as células do nosso corpo, sabemos acessar o nosso sistema
imunológico e falar com ele. Mas não é simplesmente parar e olhar e falar assim “sistema,
é o seguinte, vamos resolver isso”. Não.
Temos que ter a força intima de saber acessar, inclusive verbalmente. Eu ordeno
ao meu corpo, eu ordeno ao meu sistema imunológico, eu ordeno às minhas células. Eu
posso me curar, eu posso ser melhor. Eu sou o meu médico, eu sou meu regente. Estas
expressões, eu ordeno, eu posso, eu sou têm muito poder. Estas expressões são a fé
verbalizada, emitida, sonorizada. São uma ordenação.
Pandemia do coronavírus – 219

Podemos mostrar ao nosso corpo material, ao ligamento do corpo material que


existe entre o espírito e o corpo físico, que existe uma ordenação. Assim, esse ligamento
entendendo essa ordenação, a transmite ao corpo material e faz mutações celulares,
provocando as mutações dentro do organismo.
É nesse sentido que a fé é um elemento absolutamente poderoso, absolutamente
imbatível para qualquer um, independente de religião, de crença, de conhecimento, de
sabedoria, de título, se somos sábios, se somos tolos, não importa: o Homem é dotado
dessa potência. Ele só precisa descobrir como usá-la a seu favor e para o bem no mundo
que ele vive.
E quanto mais essa potência é utilizada em concordância com as leis naturais, em
concordância com o bom, com o bem, com o amor, mais força ela tem, porque o bem e o
amor eles são infinitos, imortais. Não perecem porque são atributos da nossa divindade,
já o mal, não. O mal acaba, em algum momento ele se desfaz, ele some, ele deixa a sua
marca, ele deixa suas consequências, mas ele não é perene. O bem e o amor são imortais,
são eternos como eterno é a nossa divindade.
Então, a fé é sim o maior instrumento que o homem tem para resolver as suas
questões, para curar-se, para melhorar-se, para evoluir. E é claro que num momento
de pandemia como esse onde o ser humano está abalado, a fé assim está, tornando sua
manifestação muito difícil, por isso requer de nós um esforço hercúleo para alcançarmos,
para acessarmos esta nossa fé em momentos como este.
Para muitos é mais fácil deixar que a vida siga, seja lá como for, do que buscar a fé
dentro de si, porque para a encontrar é preciso o esforço de procurar, ela pode estar por
baixo de camadas e camadas e camadas de vícios morais, de questões íntimas, de imposições
de ideias, de ideologias pré-concebidas, de crenças atávicas. Então é difícil, temos que
ir descamando, descamando, descamando para encontrar.
No desafiador trabalho da pós pandemia viral, onde certamente vamos enfrentar
a pandemia espiritual, mental e psicológica com as doenças dos desequilíbrios do Espírito,
do desequilíbrio da mente, do desequilíbrio das emoções, a fé é a maior ferramenta
a disposição para nos curarmos em tempo e a hora de aproveitarmos um mundo melhor que
nascerá ao final de todo esse processo.
220

A fé é, de fato, o nosso maior recurso de sobrevivência, não tenhamos dúvidas.


Se a palavra “fé” incomoda, dê outro nome, isso não importa, não faz diferença.
O importante é sabermos que essa potência está em nós, nós somos os autores e somos
os dirigentes e mestres da nossa própria existência espiritual, mental e emocional.
Eu ordeno!
Eu posso!
Eu sou!

REFERÊNCIAS DE APOIO

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Allan Kardec -


Capítulo XIX, A Fé Transporta Montanhas
- O Poder da Fé:
- A Fé Religiosa. Condição da Fé Inabalável;
- A Fé, Mãe da Esperança e da Caridade;
- A Fé Divina e a Fé Humana.

O Livro dos Espíritos – Allan Kardec


Parte Terceira, Das Leis Morais
Capítulo XII - Da perfeição Moral
- As Virtudes e os Vícios;
- Paixões;
- O Egoísmo;
- Caracteres do Homem de Bem;
- Conhecimento de Si Mesmo.
Parte Quarta, Das Esperanças e Consolações
Capítulo I - Das Penas e Gozos Terrenos:
- Perda de Entes Queridos;
- Decepções, Ingratidões, Afeições Destruídas;
- Temor da Morte; Desgosto da Vida. Suicídio
O Homem Integral – Joanna de Angelis, psicografia de Divaldo Pereira Franco
Capítulo V – Doenças Contemporâneas:
- O Conceito de Saúde;
- Os Comportamentos Neuróticos;
- Doenças Físicas e Mentais;
- A Tragédia do Cotidiano;
- O Homem moderno.
Capítulo VIII – O Homem Perante a Consciência:
- Nascimento da Consciência;
- Os Sofrimentos Humanos;
- Recursos para a Liberação dos Sofrimentos;
- Meditação e Ação.
Pandemia do coronavírus – 221

C A P Í T U L O 18
______________

QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E PÓS-PANDEMIA:


POR QUE INVESTIR NA QUALIFICAÇÃO DURANTE A CRISE?

Wilson Roberto Lussari29

INTRODUÇÃO

O mundo do trabalho

Vamos tratar um aqui um pouquinho sobre a questão do trabalho.


Esse mundo do trabalho que está em constante transformação e, principalmente,
esse mundo que está sofrendo pesadamente em função das transformações sociais, bem
como esse último ano e meio, praticamente, com a grande dificuldade da pandemia, que
acabou efetivamente acelerando esse processo de mudança da sociedade e do
comportamento no trabalho.
Lógico que esses desafios estão diretamente vinculados à pandemia, por achar que
só ela que provocou. No fundo, a pandemia acelerou esse processo de transformação.
Antes de mais nada, precisamos entender que vivemos num mundo de
desigualdades. É um mundo que, por mais que se queira questionar, nós estamos falando
de uma sociedade em que, segundo dados de 2018, os 26 bilionários ou as 26 maiores
fortunas do mundo equivaliam aos 3,8 bilhões de indivíduos mais pobres (ELLIOTT, 2019).
Comparado ao começo daquela década, quando as 85 pessoas mais ricas do
mundo tinham um patrimônio equivalente ao dos 3,5 bilhões de pessoas mais pobres
do mundo (BBC NEWS, 2014), ou seja, esse abismo entre riqueza e pobreza vem se
acentuando gradativamente.
A desigualdade é um indicador importante porque nós estamos falando de uma
parcela cada vez maior da população que está efetivamente numa situação de
vulnerabilidade do trabalho.

29
Doutor em Geografia, Professor da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE), campus de Presidente
Prudente, São Paulo. E-mail: wlussari@unoeste.br
222

Também temos que ver um outro lado que é algo muito curioso que nós percebemos.
Vivemos um ciclo de prosperidade jamais visto na humanidade, apesar de
enxergarmos com mais frequência os problemas humanos e sociais. Precisamos entender
que também temos problemas que foram solucionados há algum tempo e que nos últimos
50 anos evoluímos muito mais em termos de bem-estar social e prosperidade que nos
últimos 500 anos (RIDLEY, 2011).
Boa parte disso derivado da tecnologia e avanço do conhecimento no combate
a doenças, melhoria da compreensão do estado de vida da sociedade e melhoria das
condições de vida da sociedade como um todo.
Lógico que quando mencionamos que melhorou não significa que tenha melhorado
para todos. Sabemos que existe aquela parcela da população que ainda sofre questões
fundamentais, mas é algo que vence lenta e gradualmente, diminuindo ao longo Século XX
e do começo do século XXI, que teve uma aceleração da melhoria da condição de vida da
população mundial.
Também temos que enxergar que precisamos encontrar um ponto de equilíbrio. Se
temos um problema de concentração da riqueza, do outro lado temos um problema de
carência do trabalho.
Em 2020 a força de trabalho no mundo era de 3,387 bilhões de pessoas em idade
de trabalhar (WORLD BANK, 2021). Um indicador interessante, porque ao se dizer que tem
muita gente trabalhando, é esse número que queremos trabalhar aqui.
Por outro lado, temos um outro número que é bastante preocupante. Apesar de ser
um dado um pouco mais antigo, temos em torno de 30 a 45% da população mundial
em idade de trabalho sem utilização, ou seja, está desempregada, inativa ou
subempregada. Algo em torno de 850 milhões nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha,
Japão, Brasil, China e Índia (MANYIKA, 2017).
Isso realmente é um desafio muito grande e está atrelado também a uma questão
básica que convivemos aqui em relação à competição pelo mercado de trabalho.
O grande desafio que o indivíduo tem é: Onde é que você está? É uma pergunta
que apresentamos em nossas aulas, sempre que pegamos uma turma nova.
Particularmente hoje, no ensino remoto ou no EaD, a discussão gira em torno
de como fixar a atenção do aluno, como fazer ele se interessar, porque milagre não tem.
Pandemia do coronavírus – 223

Muitas vezes, por mais que queiramos, não se consegue atender a concentração da
pessoa, até por conta que vivemos um estado de comportamento em que tudo compete
pela atenção.
Ficamos debatendo sobre o que se quer aprender, porque se quer estudar, etc.,
mas também tem aquilo que se gosta de fazer, aquilo que atrai.
Então a internet, a televisão, as redes sociais, isso tudo, acaba roubando um tempo
precioso do indivíduo, para que ele efetivamente se aproprie de algum conhecimento do
qual ele possa empregar de fato no seu dia a dia, na sua carreira profissional, no seu mundo
do trabalho.
Isto porque o mundo do trabalho é individual. Não adianta discorrer sobre o nosso
mundo do trabalho, pois não vamos conseguir fazer com que o outro desenvolva o mundo
do trabalho dele. O nosso desafio é tentar enxergar onde é que estamos nesta “fila”
de trabalhadores. Às vezes, usamos nosso próprio exemplo.
Se estamos falando que temos 3,4 bilhões de pessoas, vamos imaginar todos em
uma fila única.
Por que uma fila única?
Por causa da hipercompetição?
Hoje a hipercompetição faz com que as empresas tenham mobilidade de um país
e outro.
No primeiro semestre de 2021, no Brasil, vimos que a Ford fechou as fábricas
demitiu o pessoal e se transformou numa importadora.
É uma típica situação em que a empresa precisa sobreviver, e para sobreviver toma
decisões que muitas vezes não agrada ou não se insere na cabeça das pessoas com relação
à necessidade de se posicionar.
Como resultado os colaboradores têm o problema de ficarem desempregados
subitamente. O que vão fazer da vida? Vão arrumar emprego em outra empresa…
Mas as fábricas estão paradas ou parcialmente funcionando, além do que boa parte
desse pessoal mora em uma região, onde a fábrica se localizava, e as outras empresas,
ou outras vagas de emprego, estariam em outras regiões do Brasil.
Estamos falando de um país continental, onde as distâncias interferem na
mobilidade das famílias.
224

Não é uma questão simples a pessoa ficar desempregada e já se arrumar emprego


do outro lado do país.
Isto é um problema social e econômico importante na decisão do indivíduo, porque
ele trabalha, a mulher trabalha, o filho trabalha, o pai e a mãe trabalham, não sabemos.
De repente ele não pode simplesmente sair de casa e trabalhar e voltar, ou tem
uma dificuldade de se deslocar com família para um local de emprego. Por experiência
própria, já passamos na vida e é bastante complicado.
É preciso pesar muito as decisões na hora de migrar de emprego de uma região para
outra. É um problema sério.
Isso nos leva à questão da mobilidade, que nos leva a um duplo desafio, porque
existe a mobilidade das empresas e a das pessoas.
Falar em mobile é que quando se tem um celular, com informação em tempo real,
de qualquer lugar do mundo, a qualquer tempo, onde quer que esteja. Outro ponto
importante está relacionado com a nossa capacidade de buscar as informações.
Entretanto, neste contexto da mobilidade humana, o desafio das pessoas é entender
o papel do celular na vida delas.
As pessoas acreditam que por terem um celular ele resolve os problemas delas. Mas
passam despercebidos os motivos de se ter um celular.
Além de comunicação, entretenimento, acesso a produtos e serviços, o celular
é pouco explorado pelas pessoas.
Colocado em uma outra perspectiva, a indústria disponibiliza o celular um preço
acessível para as pessoas, não apenas porque um maior número de pessoas pode
comprar, mas porque quando as empresas precisarem de alguém, sabem onde é que essa
pessoa está.
Hoje o indivíduo é o resultado do que ele se relaciona com o celular, mais o
computador e as redes sociais.
Queira ou não, as empresas vão localizar o indivíduo que ela precisa.
Agora, o que é que o indivíduo usa e o que faz do celular?
Há pessoas que ficam conversando, acessando futilidade, postando coisas sem
sentido, ou sem utilidade prático-profissional, enfim consumindo dados por consumir.
Pandemia do coronavírus – 225

O resultado é uma relação direta com as empresas que estão procurando gente. Elas
querem saber o que as pessoas estão produzindo criativamente, produtivamente,
inteligentemente, que seja de interesse delas.
Aí dizem muitas vezes que a questão da rede social é pessoal, “eu faço o que quiser”.
Bem, você pode fazer “porque eu quero”, como aquela história do “pronto, falei”, mas como
isto impacta no interesse das empresas?
A questão é que as empresas também contratam as pessoas a partir de uma
varrida nas redes sociais, colocando um indivíduo numa posição de entrevista ou
simplesmente de descarte.
A pessoa posta e acha divertido, por exemplo, “odeio meu chefe”, “detesto levantar
cedo na segunda-feira”. Como isto será interpretado? Quem é que vai contratar alguém que
posta isso, especialmente em posições de comando e decisão?
As empresas estão atrás de pessoas. De preferência pessoas qualificadas, que saibam
operar em grupos multiculturais, em escala global, ou, sintetizando, trabalhadores classe
mundial, que dominem o Ethos Virtual de organizações virtuais (GRENIER; METES, 1995).
Ainda assim há momentos de dificuldade de contratação.
No mês de maio de 2021, por exemplo, conhecemos uma pessoa procurando gente
para trabalhar e não conseguia contratar. Isto porque precisava de contratar um gerente.
Já havia entrevistado várias pessoas e não conseguia, porque as pessoas não
tinham as aptidões necessárias, não tinham uma noção com relação a metas de
resultados, liderar equipe, etc. Não tinham essa capacidade.
E aí aparece um dilema da atualidade, algo que chega a ser surreal.
No momento em que nos colocamos como contratantes, precisamos ver quem tem
o perfil adequado para a demanda necessária. E nem sempre ocorre adequadamente.
Também temos aí a questão do trabalho temporário.
O trabalho intermitente e o trabalho temporário, numa primeira análise das
pessoas, têm a ver com a precarização da mão de obra. Mas essa “precarização” da mão
de obra precisa ser mais bem compreendida.
Como foi colocado claramente por Grenier e Metes (1995), é necessário saber
trabalhar em equipes virtuais, que não se refere a equipes virtuais de internet apenas, mas
equipes que são construídas em tempo recorde. Estruturam-se para atender a um objetivo
e se desligam, se desfazem, uma vez este objetivo atingido. E aí vem a questão de qual é a
necessidade do momento.
226

Precisamos de pessoas que preencham este requisito, trabalhadores classe


mundial. Pessoas que tenham competência classe mundial. Não tem outro jeito.
E aí o trabalho temporário pode ser um trabalho permanente, porque a pessoa sai de
um trabalho e entra em outro.
Porque se ganhamos confiança em nosso trabalho e conquistamos a confiança
e respeito dos outros pelo nosso bom trabalho, vão nos chamar novamente, e de novo,
e de novo, e de novo.
É nesta questão que precisamos ter bastante cuidado, por implicar no
desenvolvimento de talentos e competências para o mercado de trabalho.

Novas tecnologias

Outro ponto que acreditamos ser muito interessante é a questão das novas
tecnologias. Ao longo do tempo sempre defendemos a ideia de que tecnologia é tecnologia,
desde o homem das cavernas até hoje tudo é tecnologia.
O que ocorreu é o que chamamos hoje de tecnologia, as coisas de ponta,
eletrônicos, etc., derivam de um mundo que avança, a ciência avança, a engenharia avança,
e elas proporcionam a construção de novas concepções, novos conhecimentos, novas
ferramentas.
Quando se fala de novas tecnologias na atualidade, está se tratando da
sobreposição acelerada de tecnologias que sucateiam a tecnologia imediatamente
anterior. Não é uma questão de que as novas tecnologias estão substituindo a tecnologia
de dez mil anos atrás, nada disso.
Muitas vezes, uma tecnologia substitui uma coisa que saiu o ano passado, ou há
poucos dias.
Mas por que isso ocorre?
Por causa da rapidez de processos e de que as empresas buscam efetivamente
construir aplicações tecnológicas cada vez mais eficientes e que ofereçam mais resultado.
O fenômeno de aplicativos, bem como de startups, são casos típicos de tecnologias
que substituem outras tecnologias imediatamente anteriores ou paralelas.
Assim, o problema não é apenas dominar uma tecnologia, mas saber aprender
outras tecnologias, inclusive largando a que se aprendeu ontem para uma com a qual se irá
trabalhar hoje.
Pandemia do coronavírus – 227

E esse talvez seja o grande desafio das organizações.


Para aqueles como nós, que somos da geração baby boomer, temos certa
dificuldade, de que os velhões se agarram na questão da experiência e têm uma dificuldade
para aprender novas tecnologias.
Por outro lado, a Geração Y ou Geração Z, que estão nativos da tecnologia, trocam
ela com uma facilidade assustadora, especialmente a Z.
Sobre isto, quando se fala de novas tecnologias, nós não estamos falando da
tecnologia A, B ou C, mas de que maneira mais eficiente se consegue oferecer ou obter o
resultado a partir dessa tecnologia, que se está desenvolvendo. E aí faz toda a diferença.
Para completar, a nós temos a Inteligência Artificial (IA).
Quando falamos de Inteligência Artificial, ela vem sendo implementada hoje com a
economia 4.0, mas ela não só veio para ficar, como ela vai se expandir. Agora a expansão
dessa IA está relacionada diretamente com a capacidade de eu, indivíduo, ser humano,
interagir com a ela.
Uma coisa bem interessante dela, é que a IA num primeiro momento assombra,
mas em um segundo momento convivemos com ela numa boa (RIDLEY, 2018).
Quando se tem um aplicativo de tráfego tipo Waze, ele nada mais é do que uma IA.
Só que fazendo parte do dia a dia de forma tão corriqueira, que já chamamos ela
simplesmente de Waze.
Ah, tem a Alexa (Amazon). Que dá a previsão do tempo, faz a lista de compra,
toca uma música, conta uma piada. Mas o que é a Alexa? Alexa é uma IA.
Mas compramos e colocamos em casa, conversamos com ela, nos dá bom dia,
dá boa noite, nos lembra de tomar o remédio. Nem tratamos mais como IA, pois faz parte
da paisagem diária, faz parte do nosso dia a dia.
Aqui temos a questão da IA no mundo do trabalho e podemos ficar tranquilos.
A IA será sua colega de trabalho, poderá ser sua chefe e poderá ser sua subordinada.
Porque vai depender do tipo de aplicação que ela estará disponível para o seu mundo do
trabalho, ou aquele modelo particular de trabalho em que o indivíduo estará envolvido.

Home Office

Hipercompetição, mobilidade, trabalho temporário, novas tecnologias, IA... Faltou


uma coisa, que mudou a questão a partir da pandemia de 2020. Parece que o home office
não existia antes da pandemia ou era uma curiosidade exótica de trabalho.
228

De repente o home office na pandemia virou um pandemônio. Sabemos que não


é fácil, pois nós, na universidade, tivemos que migrar do ensino presencial para o ensino
remoto em 48 horas. Passamos os dois meses mais loucos em nossa vida, sem saber para
que lado estava acertando, ou estava errando.
Todo dia era uma descoberta nova, todo dia um desafio novo, todo dia eram três
leões para matar, porque no outro dia tinham mais três. Ficávamos ensandecidos sobre
o que fazer, além de não estarmos preparados para trabalhar em casa em home office
e nessa intensidade.
Aos poucos tivemos de reaprender todo esse processo na vida, bem como ajustar
o ambiente doméstico para o trabalho em home office. Isso acabou implicando na vida de
muita gente, no mundo inteiro, não só na minha vida, talvez com certeza na sua.
Então esse é um desafio que nós tivemos que enfrentar e desenvolver. Um desafio
que todo mundo abraçou, porque não tinha alternativa.
Algumas atividades produtivas, em que são imprescindíveis o trabalho fora de
casa, permaneceram nas fábricas e escritórios. Mas no resto, toda essa atividade,
indiscutivelmente, precisava ser reposicionada. Esse era um dilema que tínhamos no
nosso dia a dia.
Assim, o home office já existia há muito tempo. Se pesquisar, o artesão no século
XVIII já fazia em casa (KOTKIN, 2005). O home office era algo pré-Revolução Industrial,
só não tinha este nome. Até chegamos a escrever uma apresentação com o título
de Neoartesão, que falava da redescoberta do trabalho do novo Artesão (LUSSARI, 2006).
Com isso o que é que aconteceu? Acabou se trazendo a questão do home office
a uma nova dimensão de trabalho.
Desta forma tivemos que nos adaptar por aqui, nos aparelhando, reformando
a casa, construir um escritório dedicado ao trabalho, com toda infraestrutura necessária
para trabalhar em home office.
Está ideal aqui? ainda não. Tem muita coisa para trabalhar, mas acreditamos que
vamos avançar mais um pouquinho nos próximos meses.
Por que esta perspectiva? Porque o home office veio para ficar.
“Mas já estão reabrindo, quando voltar ao normal na pós-pandemia”. Esquece,
o home office vai continuar.
Pandemia do coronavírus – 229

Porque, do ponto de vista do trabalho, o home office vai expandir daqui para a frente.
As empresas vão deixar em home office tudo aquilo que não cause ônus para ela, que não
seja imprescindível, de forma que o cidadão possa ficar distante e ao mesmo tempo
integrado com a empresa, e o home office vai favorecer o trabalho remoto longe
das instalações.
Atualmente ainda há muitos empregados da empresa na mesma cidade, próximo ao
local de trabalho, trabalhando remotamente.
À medida que as coisas forem sedimentando, as pessoas serão contratadas para
trabalhar em home office, independentemente do local em que ela resida, em qualquer lugar
do mundo.
A pessoa fala bem português, tem contrato de trabalho no Brasil, mas atualmente
reside no Havaí, morando em uma casa à beira da praia.
Para a empresa a questão é: Você dá conta do recado? Sim.
É uma questão que veio para ficar e nós precisamos nos preparar para respeitar esta
nova regra de trabalho.
O home office não é fruto da pandemia, mas com certeza será a árvore que mais dará
frutos pós-pandemia.
Se tínhamos uma expectativa de que novas tecnologias e a IA fossem a bola da vez na
pós-pandemia, além do que foi dito sobre o trabalho temporário, o home office corre por
fora e ultrapassa todas elas.
Por quê? Porque ele atinge um número maior de pessoas do que serão atingidas pela
IA e novas tecnologias. Isso impactará não apenas as questões tecnológicas,
mas também o tecido urbano das cidades, mobilidade urbana, distribuição demográfica dos
trabalhadores, entre outros aspectos.
Ou como citado por Kotkin (2001), em que aponta que no Século XXI as comunidades
precisam sobreviver e prosperar, fomentando um senso de conectividade em união humana,
com um senso de espírito cívico que determinará como elas garantirão lugar na geografia da
era digital.
230

A competitividade pessoal

Diante do até aqui exposto, pode-se perguntar: Mas por que isso? Porque temos
3,387 bilhões de pessoas que estão trabalhando ou em idade de trabalhar. Descontando os
850 milhões citados, temos em torno de dois bilhões e meio de pessoas que
estão trabalhando.
Ou seja, em um mundo de 7 bilhões de pessoas, dois bilhões e meio de pessoas estão
na ativa, trabalhando, produzindo.
E aí vem a questão fundamental: Em que posição você está nesta fila?
Considerando dois bilhões e meio de pessoas estão nesta fila imaginária, então é
preciso saber em que ponto nessa fila o indivíduo está.
Eu estou no primeiro lugar da fila? Estou no último? Pessoalmente, garanto para
vocês que não estamos no primeiro lugar da fila.
Estudamos, fizemos mestrado e doutorado, publicamos livros, trabalhamos há
43 anos, mas não estamos no primeiro lugar da fila. Entretanto, também não estamos
no último lugar da fila.
E aí volta a pergunta: Onde você está? E esse é o desafio que temos na pós-pandemia.
Afinal, muita gente entrou na crise. Porém, a crise tem uma coisa muito interessante:
quando ela ocorre, normalmente a sociedade vai todinha para o buraco, vai por atacado.
Por outro lado, saímos da crise pelo varejo, isto é, um de cada vez, cada um com as
suas próprias forças. Quem tem melhores condições, sai primeiro da crise.
As empresas mais bem estruturadas, mais bem preparadas, saem primeiro da crise
(CHARAN, 2009). As pessoas que estão mais bem capacitadas, e mais bem preparadas para
enfrentar a crise, saem primeiro da crise.
E você? Esse é o seu problema.
Tem gente que só vai se preocupar em se qualificar, investir na educação,
na formação pessoal e profissional depois da crise. “Vamos ver, vamos esperar tudo isso
passar…”.
Aí a vaca já foi para o brejo, porque enquanto a pessoa espera sair da crise, muitas
outras já saíram da crise e pegaram as melhores posições, melhores empregos, as melhores
oportunidades, os melhores negócios, e quem sai por último fica com que tiver, se tiver.
Pandemia do coronavírus – 231

Assim, o nosso dilema individual hoje não é colocar a culpa na sociedade, ou culpar
o futuro, ou na tecnologia. Mas fazer uma autoanálise de fato e refletir: “Onde eu estou essa
fila de trabalhadores?”.
Porque se estiver na fila dos desempregados, pior ainda. Mais ainda eu tenho que
investir em formação, em educação e caprichar no meu currículo. Não tem como fugir disso,
é o nosso maior desafio. E com isso entendemos que, do ponto de vista do trabalho do ser
humano, é preciso se qualificar.
As oportunidades estão aí, onde os governos proporcionaram tantas coisas para as
pessoas. Não apenas do governo presente, mas todos os governos do passado. Ofereceram
oportunidades de ensino superior, favoreceram o ensino a distância, favoreceram o ensino
técnico, cursos gratuitos para toda a sociedade.
Ainda assim, muitos cursos abrem oferta e não conseguem preencher vaga porque
ninguém faz. Ninguém quer, ninguém se interessa.
Qual a razão deste problema?
Falta de conhecimento, falta de iniciativa, falta de interesse, ou acredita-se que
o mundo está bom. Percebemos que muitas pessoas têm uma dificuldade horrorosa em
conceber esse tipo de situação.
O nosso maior pesadelo é exatamente saber ter o momento de parar e pensar um
pouco e dizer: “Eu preciso me qualificar, vou me qualificar e vou me esforçar para fazer isso”.
Porque quando paramos para pensar (lembra-se da fila?), no que você parou para
pensar, já passaram 50 ou 100 pessoas na sua frente. Esta fila é altamente móvel, ela não
estaciona para esperar a pessoa se qualificar.
Mas quando a pessoa obtém um diploma de ensino superior, ela pula milhares de
posições de trabalho, porque mesmo no mundo (e não é só no Brasil), temos ainda uma
minoria da população que tem diploma superior.
Para se ter uma ideia, a “taxa de escolarização líquida (que mede o percentual
de jovens de 18 a 24 anos matriculados no ensino superior em relação ao total da população
da mesma faixa etária) é de apenas 18,1%”. (SEMESP, 2021). Um pequeno crescimento
dos 16% anteriores.
232

O ensino superior nos qualifica para termos melhor condição de trabalho. Se não
exploramos isso, estaremos em dificuldades.
O principal desafio é se qualificar, é nosso dever. Porque nós temos que ser
competitivos nessa fila de emprego e a pandemia lançou uma lente de aumento
nessa questão da competitividade pessoal. Não é global ou coletiva, é uma competitividade
pessoal.
As empresas, à medida que forem saindo da pandemia, vão observar a fila e dizer:
“Vamos ver quem vamos contratar nesta fila”.
Para quem está trabalhando, quem está em boa ocupação, não vai largar o emprego
para trocar para outra, a menos que seja muito vantajoso.
Mas as empresas vão ter que ficar rastreando quem é que está disponível para ocupar
as vagas de trabalho.
Até mesmo em atividades mais simples, no comércio, existem dificuldades para se
contratar pessoas. Porque elas não estão trabalhando, ou não estão voltando a trabalhar,
e tem emprego de atendimento, para garçom, para serviço geral.
Então tem mais do que apenas um problema socioeconômico. Tem um problema
também de atitudes, que vai influenciar pesadamente a nossa capacidade de emprego
(O LIVRE, 2021).

PARA ENCERRAR

Dentro dessa perspectiva colocada, justo nesse momento as empresas estão


procurando desesperadamente pessoas para trabalhar e não estão encontrando.
O dilema do mercado de trabalho é essa preocupação, esta busca incessante de
qualificação, para que as pessoas possam trabalhar.
E o desafio aqui está relacionado diretamente à capacidade de o indivíduo de como
se posicionar nesse mercado trabalho, o qual irá efetivamente influenciar no seu próprio
futuro, sua própria carreira.
Para se ter uma ideia de como o Brasil tem essa necessidade, há uma demanda muito
grande por profissionais que trabalham em novas tecnologias.
Pandemia do coronavírus – 233

Porque o hiato tecnológico de uma fase anterior da sociedade, como, por exemplo,
da Era Industrial, o Brasil levou 200 anos para ingressar na nela, de 1750 da Inglaterra para
1950 no Brasil. Entretanto, na era tecnológica da economia 4.0 esse hiato tem três anos ou
dois anos e meio, ou seja, praticamente de ontem para hoje.
E esse é o nosso principal desafio: Como é que vamos nos enquadrar nessa nova
sociedade e de que maneira podemos nos posicionar nesta fila de emprego?
Para finalizar, gostaríamos de recomendar a todos que se tornem bastante
competitivos, porque o mercado vai efetivamente absorver essa mão de obra. Afinal, ela é
necessária para o desenvolvimento da sociedade e atender os novos desafios do Século XXI.

REFERÊNCIAS

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Brasil. 20 jan. 2014. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/01/140120_riqueza_relatorio_oxfam_fn. Acesso em:
5 ago. 2016.

CHARAN, R. Leadership in the era of economic uncertainty: the new rules for getting the right things done
in difficult times. New York: Mc Graw Hill, 2009.

ELLIOTT, L. World's 26 richest people own as much as poorest 50%, says Oxfam. The Guardian. UK. 21 Jan.
2019. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2019/jan/21/world-26-richest-people-own-
as-much-as-poorest-50-per-cent-oxfam-report. Acesso em: 15 maio 2021.

GRENIER, R.; METES, G. Going virtual: moving your organization into the 21st century. Upper Saddle River:
Prentice Hall, 1995.

KOTKIN, J. The city: a global history. New York: Modern Library, 2005.

KOTKIN, J. The new geography: how the digital revolution is reshaping the American landscape. New York:
Random House, 2001.

LUSSARI, W. R. Neoartesão: as bases de formação do profissional pós-industrial do século XXI. In: ENEPE -
ENCONTRO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO DA UNOESTE, 2006. Ensino, Pesquisa e Extensão:
responsabilidade social: o desafio continua no Terceiro Milênio, 2006.

MANYIKA, J. Technology, jobs, and the future of work. McKinsey Global Institute, May 2017. Disponível
em: http://www.mckinsey.com/global-themes/employment-and-growth/technology-jobs-and-the-future-
of-work. Acesso em: 5 jul. 2017.

O LIVRE. Falta qualificação? Empresários apontam maior dificuldade na hora da contratação. O Livre.
28 abr. 2021. Disponível em: https://olivre.com.br/falta-qualificacao-empresarios-apontam-maior-
dificuldade-na-hora-da-contratacao. Acesso em: 21 jun. 2021.

RIDLEY, M. AI in the UK: ready, willing and able? Matt Ridley on line Blog. 23 Apr. 2018. Disponível em:
http://www.rationaloptimist.com/blog/ai-i-the-uk/. Acesso em: 5 jan. 2020.
234

RIDLEY, M. The rational otimist: how prosperity evolves. New York: Harper Perennial, 2011.

SEMESP. Mapa do Ensino Superior no Brasil. 11. ed. 2021. Disponível em:
https://www.semesp.org.br/mapa-do-ensino-superior/. Acesso em: 21 jun. 2021.

WORLD BANK. Labor force, total. 29 jan. 2021. Disponível em:


https://data.worldbank.org/indicator/SL.TLF.TOTL.IN. Acesso em: 15 maio 2021.
Pandemia do coronavírus – 235

C A P Í T U L O 19
______________

PERMACULTURA URBANA:
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A PRODUÇÃO E PARA A VIVÊNCIA
NAS CIDADES DURANTE E PÓS-PANDEMIA

Fernando Sérgio Okimoto30

TESE: CONTEXTO DA PANDEMIA

A tese que fundamenta a proposição está baseada no contexto em que a taxa


de mortalidade no mundo está em 3,74%31, a economia mundial (e brasileira) está
desacelerando continuamente, os postos de trabalho desaparecendo e os mercados estão
saturando como afirma analista Adriano Braga, da XVI Finance32, que, em 2020, “[...] em
decorrência da pandemia do novo coronavírus, muitos países ao redor do mundo tiveram de
paralisar sua economia e devem passar por recessão nesse ano. Nesse cenário, destaca-se
a previsão do FMI, o aumento do desemprego...”.
A diversidade de alimentos e o acesso das pessoas a eles está cada vez mais difícil,
tanto pela crescente indisponibilidade quanto pela elevação dos custos. Assim, estão
perdendo saúde física e mental. As famílias estão se isolando em si e, às vezes, dos seus
próprios membros primários. A sociabilização e a fraternidade estão retraindo.
Com base nesse cenário, novos modelos de (re)estruturação das cidades e de vivência
nelas devem ser almejados, fundamentados na efetividade de políticas públicas que
permitirão o enfrentamento das agruras porvir...

30
Professor Doutor do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da Faculdade de Ciências
e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP), campus de Presidente Prudente, São Paulo.
E-mail: fs.okimoto@unesp.br
31
https://regiao-sul.pt/2020/03/15/internacional/covid-19-taxa-de-mortalidade-no-mundo-esta-em-
374/490255. Acesso em: 15 abr. 2021.
32
https://xvifinance.com.br/. Acesso em: 15 abr. 2021.
236

HIPÓTESE: A PERMACULTURA COMO INDUTORA DE POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS

A hipótese, aqui declarada, é que um modelo possível seria o planejamento


permacultural das cidades enquanto estratégia fundamentada em uma ética de cuidados.
Cuidados com as pessoas, usuárias desse planejamento, cuidados com o ambiente em que
esse assentamento se insere e cuidados em gerar condições básicas de subsistência e de
excedentes que possam ser distribuídos.
Com o planejamento permacultural haverá uma estruturação eficiente da produção
urbana, edificações, espaços urbanos e sociedade, de modo que o consumo das cidades,
no seu dia a dia, será menos oneroso, menos impactante e mais fraterno.

Referenciando e reverenciando a permacultura

Bill Mollison e David Holmgren (HOLMGREN, 2007) desenvolveram o conceito a partir


do desejo de pensar assentamentos humanos mais eficientes e concluíram que:
a) tinham que estar alinhados com os processos naturais daquele contexto;
b) tinham que estar pautados nas pessoas, nas suas demandas mais básicas, nos
seus potenciais e limites;
c) tinham que suprir as demandas adicionais com excedentes bem distribuídos.

A hipótese aqui é que, independentemente de como foi criado e desenvolvido,


todo o conceito que será apresentado adiante, pode e deveria ser aplicado em qualquer
tipologia ou recorte de assentamento humano, seja rural, urbano, lunar ou sideral e nesse
contexto de pandemia, urge ainda mais... Obviamente, é preciso interpretar os princípios
éticos, de planejamento e metodológicos para cada diferente contexto que se apresenta!
Por fim, é importante reverenciar a permacultura porque está na natureza humana,
nessa era da alta velocidade da informação, esquecer e desconsiderar os méritos do
passado. Existem diversos termos contemporâneos que foram cunhados, mas não citam
as suas fontes de inspiração, tal como a permacultura.
Rótulos à parte, o que vale é a qualidade da atuação individual e coletiva nesse
mundo. A permacultura é só um modelo de conceitos, processos e métodos de cinquenta
anos que pode orientar a atuação humana em geral e na produção e consumo das cidades,
aqui em foco!
Pandemia do coronavírus – 237

O que é permacultura então? Bem, o que foi permacultura está nos livros, textos
e ações passadas, registradas e analisadas ao longo do tempo. O que é permacultura,
ainda está por ser escrito, mas já se encontra impregnado em cada um de nós hoje,
apenas como demanda e, às vezes, também como desejo. O modelo se moldou e se alinhou
com os contextos em que se inseriram ao longo do tempo e há novos conceitos, novas
modelagens e novos rótulos para todos os gostos.
Não parece fazer sentido ficar falando da permacultura do passado, senão para
referenciar e reverenciar seus conceitos e seus criadores num mundo insensível de
copiar/colar. Considera-se preferível falar da permacultura passível de aplicar na construção
civil contemporânea e na vida dos habitantes desse mundo.

Ética

A postura ética da permacultura dizia para cuidar do planeta, cuidar das pessoas
e fazer partilhas justas (NETO, 2018). Se antes remetia aos cuidados ambientais e sociais
nos campos rurais e ao modelo cooperativista de trabalho, atualmente remete:
a) ao consumo responsável dos insumos naturais, buscando preservar, regenerar e
restaurar os processos naturais; b) aos cuidados para com os seres vivos e suas demandas
físicas e emocionais individuais e coletivas (nas associações que buscam naturalmente).
As principais mudanças em relação ao passado foram o aumento da lista de seres vivos que
precisam e cuidados hoje e a visão de que os provimentos necessários aos seres atualmente
são muito mais que alimento e alguns poucos confortos. Hoje, os direitos humanos
são muito mais amplos; e c) se antes a partilha justa significava apenas dividir os custos
e lucros das vendas rurais entre os cooperados ou membros da comunidade, atualmente
significa alinhar todo esse processo capitalista às preocupações e aos impactos ambientais
e sociais que eles promovem. Significa não acumular para além da capacidade do planeta
de acompanhar isso e nunca gerar desperdícios.

Princípios primários

Além dos princípios éticos da Figura 1 (nos seus contextos mais comuns), o modelo
permacultural estabeleceu 12 princípios metodológicos para focar e orientar as metas
e as estratégias de nossos projetos e de nossas ações. Segundo Holmgren (2007),
os princípios são 12 e interpretados por mim como descrito a seguir:
238

Figura 1 – Princípios éticos da permacultura e contextos

Fonte: Disponível em: https://permacultureprinciples.com/pt/index.php. Acesso em: 9 jun. 2020 e adaptado.

1. Observe e interaja: Este princípio se baseia na percepção do problema. Entender


qual é o problema, quais as condicionantes deles, quais os processos que envolvem
a dinâmica dele e quais as restrições existentes, são condições essenciais para entender
o problema. Com esse diagnóstico, tal princípio sugere buscar soluções alinhadas com
padrões simples e naturais. Deverá ser fácil encontrar soluções que serão fáceis
de implementar também. Disputar com a força natural é tarefa inglória. Para exemplificar
na construção civil, pensem nas formas de telhados que vão à ruína por causa da forma
inadequada sob ação dos ventos e nas comuns infiltrações de água e as bobagens que
a engenharia faz para contribuir para isso.

2. Capte e armazene energia: Baseia-se na sazonalidade, na eficácia de se obter


e armazenar recursos quando disponíveis e utilizá-los em tempos de restrições. Entender
a sazonalidade dos recursos é fundamental, mas também precisamos entender as
demandas e estas precisam pensar na redução de consumos, com baixo ou nenhum
desperdício. Não se trata de energia elétrica, necessariamente, mas podemos
exemplificar a produção de energia fotoelétrica do edifício durante o dia e seu consumo
à noite ou a energia térmica do sol na mesma linha. Outro exemplo é a captação das
águas pluviais para consumos não potáveis.

3. Obtenha rendimento: Não devemos praticar ações que não tenham propósito,
que não retornam benefícios. De preferência, cada propositura deve acumular quantas
funções puder ter, quantos benefícios puder oferecer. Tem relação direta, mas não
exclusiva, com a eficiência financeira, energética e dos demais insumos e eficiência social
aos usuários e ao planeta também. Pensem nos benefícios que uma parede poderia
verdadeiramente nos oferecer e os poucos que normalmente obtemos dela. Uma viga
que também é calha, um pilar que também é condutor vertical de águas pluviais, etc.
Pandemia do coronavírus – 239

4. Pratique a autorregulação e aceite feedback: Este princípio aceita o fato da


grandiosidade da natureza e dos processos antrópicos de grande escala e seus poderes
de autorregulação. Práticas não naturais estão fadadas a não funcionar eficientemente,
nem por muito tempo sem intervenção humana. Então, não force a barra! Soluções
autorreguláveis são mais sustentáveis e devemos permanecer abertos aos feedbacks que
a natureza e os usuários nos darão, pois será fundamental considerar. Na construção civil
podemos pensar nos sinistros “da natureza” (feedback da natureza físico-química!)
nas construções e na avaliação pós-ocupação que deveríamos fazer sempre (feedback
da natureza humana!).

5. Use e valorize os serviços e recursos renováveis: Apesar de parecer com o segundo


princípio, são complementares. Complementa falando de não explorar recursos naturais
limitados. Também solicita a preocupação com as interfaces desses recursos, como,
por exemplo, a fauna, a flora do entorno, o solo e os corpos d’água destruídos com
a retirada dessa matéria-prima. Buscar fontes naturais ou manejadas que impedem esses
impactos negativos e ainda oferecem outros impactos positivos, como, por exemplo, mais
eficiência produtiva e segurança dos trabalhadores, pelos manejos. Também propõe
as reduções de consumo e as reutilizações e reciclagens do que poderiam ser considerados
resíduos de outras indústrias. Usar materiais de construção como o bambu, madeira de
reflorestamento ou borracha natural são exemplos.

6. Não produza desperdícios: Bem básico! Adaptar nosso padrão de consumo de


modo a não gerar resíduos. Tem a ver com as escolhas que fazemos dos produtos e serviços
que consumimos. Relaciona-se com outros princípios. Na construção civil, vemos muito
o exemplo de utilizar pré-fabricados de concreto em vez dos moldados in loco em que há
sobras da produção e da aplicação.

7. Projete partindo dos padrões para chegar aos detalhes: Princípio que solicita que
vejamos os processos e padrões naturais ao longo da história. Se prestarmos atenção,
há padrões e processos naturais que se repetem o tempo todo no planeta. Esse princípio
diz que esses padrões, por se repetirem constantemente na natureza, só podem estar
certos, adequados. Portanto, segui-los parece ser boa ideia. Na construção civil, vemos
os sistemas estruturais se espelhando em sistemas ósseos, esqueléticos ou as redes e as
teias de aranhas ou, ainda, os adesivos como a baba de cupim sintética.
240

8. Integrar, não segregar: Este princípio estimula a visão sistêmica das coisas.
Valoriza a cooperação e a colaboração como estratégia de produção mais eficiente das
coisas e resultado mais eficaz para as coisas. Relaciona a eficiência das ações quando
promove as sinergias positivas e as interlocuções entre os elementos de algo complexo.
Na construção civil, é relevante, importante e contemporâneo falar dos projetos
colaborativos, BIM, em que os atores falam e solucionam as interfaces arquitetônico
e estrutural, estrutural e hidráulico-sanitário, hidráulico e elétrico, etc.

9. Use soluções pequenas e lentas: O princípio discute as desvantagens de


processos imediatistas em comparação com as soluções equilibradas, distribuídas
e consolidadas no tempo. Nasceu na discussão agrícola da reposição artificial dos
nutrientes do solo com fertilizantes em detrimento da reposição natural física, química e
biológica do solo que são muito lentas (do ponto de vista predatório, claro!), realizadas
por trabalho humano, microrganismos. Porém, esse último estrutura um sistema
integrado que fortalece todas as formas de vida naquele microssistema enquanto
o primeiro apenas fornece o necessário para as culturas desejadas e classifica o solo como
mera estrutura física do plantio, um substrato. Todos os apoios paralelos à vida das
culturas passam a não mais existir e apoios externos passam a ser necessários, como
os agrotóxicos, por exemplo. Entretanto, esse princípio tem sentido nas situações da vida
urbana também. Usamos carros individuais e pagamos um alto preço por isso na
sociabilização, na saúde, nos custos, mas “ganhamos” tempo. Na construção civil,
podemos enumerar várias coisas que fazemos o mais rápido possível e acabamos
fragilizando ou, pelo menos, potencializando a fragilização de diversos subsistemas
construtivos. Por exemplo, passamos quantas demãos de emulsão asfáltica forem
necessárias para apenas “tingir de preto” o que queremos impermeabilizar e não tantas
demãos quantas forem indicadas para impermeabilizar efetivamente. Esse é apenas um
dos diversos exemplos de imediatismo sem eficiência que podemos citar, mas ainda têm
os não encunhamentos das paredes, a não espera dos tempos adequados de cura,
a drenagem rápida dos lotes e passeios públicos para depois juntar tudo lá na frente
e inundar os fundos de vale e outros que são mais difíceis de identificar depois.
Lembremos que vivemos a era da “modernidade líquida”, em que o tempo dita a forma
de produção na sociedade de consumo.
Pandemia do coronavírus – 241

10. Use e valorize a diversidade: Também é um princípio advindo da agricultura


rural em que nega a monocultura e valoriza a diversidade como estratégia de fortalecer
o sistema agrícola entendendo-o como um conjunto. Na construção civil, fazemos isso em
diferentes escalas, desde uma simples divisão dos circuitos elétricos de uma edificação para
gerenciar melhor os custos e as possíveis adversidades até projetos arquitetônicos flexíveis,
com áreas de reservas técnicas ou ampliações programadas. Normalmente utilizamos
muito essas estratégias de diversificação para o enfrentamento das adversidades
decorrentes das ações dos agentes naturais como chuvas, ventos, incêndios, etc.

11. Use as bordas e valorize os elementos marginais: Este princípio explora


o desconhecido, potencialmente inovador. Nega ficar no lugar comum por entender que
fazer aquilo que já se costuma fazer vai apenas nos manter na situação atual. Mesmo
sendo um bom cenário, nunca vai ser melhor do que está. Não inova! Testar novas
soluções, novos usos do conhecido podem melhorar o produto e nos fazer entender
melhor os caminhos a seguir ou não seguir. O perímetro entre as coisas é o local onde
os eventos mais interessantes acontecem. Na construção civil existem muitos exemplos
na indústria de materiais e processos, mas prefiro exemplificar com a ousadia de
arquitetos (que hoje estão na história da construção civil) ao propor o inusitado que fez
vários segmentos buscarem soluções para as suas ousadias que, ao serem descobertas
e definidas, puderam ser utilizadas por outros profissionais que vieram depois.

12. Use criativamente e responda às mudanças: Parece que o último princípio fecha
muito bem o conjunto que começou com as ações básicas de observar o (e interagir com o)
meio físico real. Este princípio fala de imaginação, de pensarmos como queremos que seja
o futuro a ser construído, mas também fala de imaginarmos o que podemos fazer, desde já,
para chegarmos a um futuro desejado quando nos são impostas condicionantes externas
ao nosso controle. No fim, resume-se no fato que somente podemos agir se soubermos
aonde queremos chegar, o que queremos que seja. Imaginar cenários! A construção civil,
como tem produtos complexos, caros e demorados, está sujeita a toda sorte de mudanças
e criatividade é a palavra de ordem quando se buscam produtos consistentes.

METODOLOGIA

Seja qual for o produto da construção civil para assentamentos humanos, pode-se
aplicar a metodologia da permacultura com a observância de seus princípios metodológicos.
242

Os criadores do conceito também pensaram em “estratégias” para a aplicação dos


conceitos e princípios para assentamentos rurais. Vamos apresentá-las e depois veremos
como são aplicadas nos âmbitos urbanos também.
As estratégias estão baseadas na implantação eficiente dos espaços/atividades
rurais. Eficiente dos pontos de vista funcional, energético, financeiro, etc.
Assim, dividiram por setores e zonas (MOLLISON; SLAY, 1994), significando uma
metodologia de setorizar e zonear para buscar maior eficiência nos assentamentos humanos:
a) ajustando aos elementos antrópicos e naturais que não podemos controlar
através da setorização dessas energias externas para entendê-las e alinhar as
soluções a elas;
b) buscando o entendimento das atividades desenvolvidas pelas pessoas nesses
assentamentos e organizando-as, através de um zoneamento espacial e
energético no dia a dia.

Os setores declarados para um planejamento permacultural estão relacionados aos


elementos da natureza: Sol, luz, vento, chuva, fogo, poluição sonora, poluição visual,
topografia, geomorfologia, etc. A metodologia solicita que analisemos esses elementos
e trabalhemos a favor e não em conflito com eles. Parece óbvio, mas o fato é que não
estamos sempre alerta para eles, no ato de planejar e projetar os elementos de um
assentamento rural ou urbano. Também se enquadram aqui elementos que foram
desenvolvidos por nós mesmos, mas não temos ou nunca tivemos controle sobre eles.
Por exemplo, os ruídos da cidade, isto é, poluição sonora, e a poluição visual e o tráfego.
Entender as energias externas é, para exemplificar, aceitar a supremacia da trajetória
aparente do sol e buscar compreendê-las para realizar propostas que se alinham a ela e não
tentam enfrentá-la, visto que é no mínimo uma tarefa inglória. A Figura 2 indica um estudo
mais detalhado da trajetória aparente do Sol e permite a possibilidade de compreendê-la
e de alinhar as soluções com este conhecimento.
Pandemia do coronavírus – 243

Figura 2 – Trajetória aparente do sol em uma área urbana de exemplo

Trajetória na
Primavera

Solstício de Verão Solstício de Inverno

Fonte: Sun Surveyor, aplicativo android, Adaptado, 2021.

As zonas da implantação permacultural são seis e devem ser definidas de acordo


com a quantidade ou a frequência em que são utilizados, na busca por maior eficiência
de uso (HOLMGREN, 2007).
As atividades que precisam de maiores intervenções das pessoas têm que ser mais
fáceis de acessar, têm que exigir menos energia das pessoas porque, se não for assim, serão
realizadas com menos eficiência e qualidade, certamente!!!!
As zonas da implantação permacultural são seis, a saber:
• Zona 0: É onde permanecemos mais tempo, onde há mais atividades. Costuma ser
a moradia, mas poderia ser qualquer outro lugar.
• Zona 1: Está bem próxima da zona 0, sendo caracterizada por uma zona altamente
produtiva (lugar e fonte de trabalho) para a zona 0 e que necessita de manutenção
frequente dos usuários dessa zona 0.
• Zona 2: Normalmente se encontra mais distante da zona 0, depois da zona 1 e
as atividades ali são frequentes, mas não tanto quanto as da zona 1. Lembrando que
quando se fala de mais ou menos distante, estamos falando de esforço e energia. Há que
se considerar alguns modos e meios de transporte que podem encurtar distâncias físicas
sem agregar usos energéticos.
244

• Zona 3: Já se trata de áreas passíveis de exploração extensiva que acabam


necessitando de manejos regulares, mas não tão frequentes. Podem ser exploradas para
usos próprios ou comerciais para os excedentes.
• Zona 4: Parecidas com as zonas 3, mas se trata de exploração intensiva que acaba
necessitando de manejos esporádicos e pouco intensos. Certamente serão ser exploradas
comercialmente e podem suprir necessidades de uma comunidade muito maior.
• Zona 5: Trata-se de áreas que não devem e não podem ser antropizadas. São as
reservas legais rurais e áreas de proteção permanentes (APPs) urbanas e devem ficar lá,
preservadas e protegidas e, se preciso for, restauradas.

Isso poderia ser desenhado como no sítio/fazenda da Figura 3, que apresenta


claramente uma eficiente estruturação das atividades. Por incrível que possa parecer,
muitos assentamentos rurais não têm essa disposição típica implementada e sofre pelos
desperdícios e retrabalhos. Os assentamentos rurais atuais, os cinturões verdes,
as fazendas urbanas, as hortas urbanas e outros exemplos que se assemelham ao sítio
supracitado poderiam seguir tal modelo e possivelmente precisariam de menores áreas
para realizar o mesmo trabalho ou realizar um trabalho mais eficiente e contundente com
a mesma área.

Figura 3 – Zoneamento da permacultura

Fonte: Disponível em: http://permaculturabrasil.blogspot.com/. Acesso em: 16 jun. 2020.

E no âmbito urbano, onde a metodologia pode ser aplicada? Acreditamos que


em qualquer situação, seja em um novo assentamento ou reorganizando, remediando
um existente.
Pandemia do coronavírus – 245

Reiterando, no âmbito urbano, a mesma análise pode ser feita no momento de


planejar a produção das cidades em função dos seus usuários e atividades. Obviamente,
essa análise tende a ser mais complexa que no âmbito rural devido às diversidades de
usuários e de atividades.
Um exercício de empatia interessante seria analisar, na imagem da Figura 4, a
a soberania e a autonomia dos indivíduos (moradores dessas unidades habitacionais)
acerca das atividades que ele precisa/deseja desenvolver.

Figura 4 – Bairro João Domingos Netto – Presidente Prudente – 2.343 casas

Fonte: Disponível em: http://www.presidenteprudente.sp.gov.br/site/noticias.xhtml?cod=29405.


Acesso em: 14 mar. 2021.

Essa metodologia, fundamentada na ética e nos princípios da permacultura, poderia


ser aplicado intensamente em um lote residencial com edificação e quintal ou numa
edificação residencial com teto jardim ou simplesmente uma laje; em um edifício
residencial ou misto e sua área condominial; em um bairro residencial periférico; em um
centro degradado, comum nas cidades médias; em condomínios edilícios ou gerais
(tradicionais); edifícios comerciais verticais em geral ou edifícios institucionais; shopping
centers; assentamentos emergenciais temporários, edifícios de vocação cooperativista
e coletiva; praças, parques e áreas de lazer institucionais ou privadas; parque urbanos;
parques e reservas naturais institucionais (que tenham, legalmente, permissões parciais
de ocupação); em um terreno urbano ocioso; edifícios escolares, sociais, de atendimentos
de saúde, de esportes, universitários ou mistos; bairros inteiros; urbanizações sociais; etc.
246

Basta haver a intenção de humanizar, cuidar das pessoas, do meio ambiente e dividir
equitativamente seus benefícios, eficientemente. Entretanto, ambientes muito pequenos
podem não permitir um zoneamento completo, mas não precisa ser assim, pode muito
bem trazer em si os princípios éticos e muitos ou todos os princípios metodológicos que
está tudo bem. O zoneamento e a setorização traduzem apenas as buscas por eficiência de
usos e por contextualização com as energias internas e externas, respectivamente.

Áreas de atuação e campos de aplicação

Bill Mollison e David Holmgren desenvolveram uma interatividade entre os diversos


campos de atuação que a permacultura poderia abranger. Deram o nome (Figura 5)
de Flor da Permacultura (MOLLISON; HOLMGREN, 1978).

Figura 5 – Flor da permacultura com os campos de atuação possíveis

Fonte: Disponível em: https://permacultureprinciples.com/pt/pc_flower_poster_pt.pdf. Acesso em: 9 jun.


/2020. Adaptado de Holmgren, 2002.

Considerando o risco de se apoiar uma reserva de mercado de atuação técnicas


e profissional para poucos, não há mais sentido em utilizar essas restrições, a não ser
ainda para o incentivo que oferece às pessoas que veem suas atribuições profissionais
e pessoais contempladas.
De qualquer forma, os títulos nas pétalas da flor precisam de constantes atualizações
e novas atribuições podem ser inseridas sempre que adequado.
Pandemia do coronavírus – 247

Outra forma de entender os diversos campos de atuação poderia ser através da


aplicabilidade da permacultura no desenvolvimento sustentável de assentamentos
humanos, algo que os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030
da ONU, também desejam.

Figura 6 – Objetivos para o desenvolvimento sustentável pela Agenda 2030 da ONU

Fonte: Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/os_ods/. Acesso em: 13 mar. 2021.

[...] os 17 ODS são integrados e indivisíveis. Integrados, pois refletem de forma


equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: social,
econômica e ambiental. Indivisíveis, pois não será possível avançar apenas
um dos ODS, será necessário trabalhar em prol de todos os 17 ODS para tornar
o desenvolvimento sustentável uma realidade. Destacar as interconexões
e a natureza integrada dos ODS é fundamental para assegurar a importância
de se construir uma cultura de integração temática, de forma a evitar a
abordagem fragmentada.33

Figura 7 – Objetivos para o desenvolvimento sustentável pela Agenda 2030 da ONU

Fonte: Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/os_ods/. Acesso em: 13 mar. 2021.

33
Fonte: Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/os_ods/. Acesso em: 13 mar. 2021.
248

CONCEITOS AGREGADOS À PERMACULTURA E POTENCIAIS POLÍTICAS PÚBLICAS DECORRENTES

Aqui são apresentados alguns conceitos alinhados à permacultura que podem gerar
políticas públicas. Na Figura 8 estão alguns desses conceitos. Como exemplo, podemos citar
a agroecologia urbana sendo induzida por decretos e incentivos para o cultivo de alimentos
e a restauração ecológica urbana.

Figura 8 – Conceitos que se relacionam com a permacultura e que podem induzir políticas públicas

Fonte: Autor (2021).

Dentre os vários potenciais conceitos indutores, destacamos três: as Tecnologias


Sociais, a Agroecologia Urbana e a Bioconstrução Civil, considerados aqui conceitos
imprescindíveis na produção urbana hipotética.
Sobre as Tecnologias Sociais (TS), consideramos um “[...] conjunto de técnicas,
metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a
população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria
das condições de vida” (ITS BRASIL, 2018).
As TS aplicadas na produção das cidades podem ser um aliado importante
na diminuição de custos de implantação e manutenção dessas transformações. Deverão
ser melhor entendidas e mais intensamente utilizadas. Promovem e sustentam a criação
e o desenvolvimento de Comunidades Fortes em si e perante o governo local. Fortalece
os indivíduos e aceita a atuação solidária.
Alguns conceitos estão sendo aplicados e estão alinhados com a permacultura
urbana como o Placemaking, que prega a produção do lugar com vivacidade contando com
a participação da comunidade envolvida no planejamento, na execução, na gestão e
na manutenção.
Pandemia do coronavírus – 249

Já a agroecologia urbana pode ser entendida como a agricultura praticada no


território urbano que respeita os processos naturais das espécies cultivadas desde as
sementes, que respeita os ciclos hidrológicos envolvidos, que respeita os ecossistemas,
macros e micros envolvidos, que considera o solo como habitat e não apenas substrato,
que respeita e promove interações com os demais agentes naturais envolvidos como
as abelhas, que respeita e regula as emissões atmosféricas. Estão inseridos na categoria,
as fazendas e hortas urbanas, os parques e áreas de lazer urbanos agriculturáveis,
as hortas e demais estruturas domésticas afins, as plantas alimentícias não convencionais
(PANCs) e as sementes ancestrais. Promovem atividades e insumos para subsistência
e como estrutura de trabalho e fonte de renda que se alinham com às demandas
nutricionais e à soberania alimentar. Invertem a dessecação contínua que as cidades
estão promovendo e toda a gama de consequências que geram. Estão incluídos os
conceitos e as ações de restauração ecológica e de proteção/preservação vegetal.
A (bio)Construção Civil seria um novo paradigma de construção (literal) das
cidades. No passado, bioconstruções se relacionavam mais fortemente com as tecnologias
de construção que utilizavam materiais naturais e técnicas artesanais. Normalmente
remetiam às construções em bambu, em terra, em madeira e afins com técnicas ancestrais,
eventualmente, milenares.
Em nossa opinião, esse conceito ficou pequeno para os dias atuais. Devemos
considerar a industrialização e tecnologia existentes, contar com as restrições de tempo
que o trabalhador contemporâneo tem, devemos considerar ainda as restrições espaciais
e legais para algumas dessas tecnologias e outras questões que dificultam a execução delas
tal como se fazia no passado. Assim, é sensato pensar que as bioconstruções podem ser
quaisquer tecnologias preocupadas e proativas para com as sustentabilidades ambientais,
econômicas e sociais.
Resumindo, para introduzir o assunto, as bioconstruções:
a) são aquelas que se encaixam nos orçamentos e tanto as suas necessidades de
manutenções quanto sua durabilidade são compatíveis com tais custos
(desempenho financeiro);
b) têm materialidades que são de baixo impacto ambiental negativo, desde a
obtenção das matérias-primas básicas até seu descarte pós-vida útil, passando
por essa mesma análise durante o processo de obra, de operação e de demolição
da construção (análise do ciclo de vida - desempenho ambiental);
250

c) devem ter técnicas construtivas de simples execução e de baixo custo tecnológico,


sem muitos equipamentos ou outros insumos. As técnicas para as manutenções
programadas também devem passar por essa mesma análise (tecnologias
apropriadas - desempenho técnico);
d) também devem ser eficientes subsistemas construtivos e oferecer os requisitos
que os usuários solicitam tais como habitabilidade (estanqueidade; desempenho
térmico; desempenho acústico; desempenho lumínico; saúde, higiene e qualidade
do ar; funcionalidade e acessibilidade; conforto tátil e antropodinâmico),
segurança (segurança estrutural; segurança contra o fogo; segurança no uso e na
operação), sustentabilidade (durabilidade; manutenibilidade; impacto ambiental)
e níveis de desempenho (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2013)
(desempenhos físicos sociais);
e) devem, por fim, serem estruturadas por uma rede predial coerente, eficiente
e alinhadas fortemente às sustentabilidades das próprias bioconstruções.
Instalações hidráulicas, elétricas, refrigeração/calefação e outras devem buscar
redução dos consumos e dos resíduos (desempenho operacional).

Finalizando a discussão sobre bioconstrução civil, além da materialidade física das


construções não se pode esquecer as instalações prediais que permitem que as atividades
planejadas aconteçam dentro das edificações. São instalações hidráulicas que consomem
pouca água, reutilizam águas das chuvas ou da condensação dos condicionadores de ar,
por exemplo, do aquecimento solar da água para higiene ou lazer, do aproveitamento
ou tratamento dos esgotamentos domésticos, do controle da drenagem nos lotes das
edificações. Nas instalações elétricas, refere-se à geração da própria energia de sistemas
com fontes renováveis, sistemas mais eficientes, mais seguros, menos consumidoras,
on-grid ou off-grid, luminotécnica eficiente, bem planejada e bem executada. Outras
instalações prediais devem buscar eficiência também, como, por exemplo, refrigeração
ou calefação de ambientes com geotermia, tal como o sistema terra-sol para climas
frios que combina o aquecimento de volumes de terra (ou água) com o calor do dia e o
transfere para os ambientes à noite ou o sistema de refrigeração de ambientes em climas
quentes pelo arrefecimento de ar quente (digamos, uns 37 °C) que entra em contato com
o frescor do subsolo (uns 18 °C) antes de entrar nos ambientes, como uma serpentina
Pandemia do coronavírus – 251

de uma chopeira. Outras instalações devem ser pensadas e propostas, como, por exemplo,
sistema de drenagem e reúso de águas dos ares-condicionados, sistema de drenagem
de óleo vegetal usado, etc.
Saindo das edificações e chegando às infraestruturas urbanas, a mesma postura
sendo observada, chegaremos às infraestruturas verdes e azuis que ajudam as usuais
cinzas a resolverem a drenagem urbana com materiais mais sustentáveis, com sistemas
mais eficientes e paisagens mais verdes e naturais, até mesmo agroecológicas.
Por fim, algumas políticas públicas podem ser desenvolvidas sobre esses conceitos,
tais como:

a) IPTU ecológico;
b) permissão de uso de áreas públicas;
c) educação ambiental: práticas domésticas;
d) apoio local focado nas comunidades;
e) incentivos na sociocracia, autogestão e autonomia comunitária;
f) participação na gestão local também;
g) equidade de gênero e valorização da diversidade;
h) suporte às minorias e populações;
i) geração local e sistêmica de trabalho e renda;
j) incentivos às tecnologias sociais na produção e no consumo das cidades, etc.

APLICAÇÃO EM UM BAIRRO RESIDENCIAL

Para exemplificar, avaliamos a vivência individual, familiar e coletiva em um bairro


periférico de cidades médias ou pequenas. Normalmente não é fácil viver de forma
soberana, empoderada nesses locais. É comum ter uma padaria, um mercadinho ou
um mercado médio, um açougue, um eletricista, um mecânico e outros exemplares
únicos que, se por acaso o serviço ou produto não for bom, não há a quem recorrer
localmente. Também é comum não haver edifícios institucionais (bancos, bombeiros,
secretarias ou departamentos municipais, órgãos estaduais ou federais, etc.). Onde está
a soberania de escolha nessa situação? Se eu precisar de um maço de rúcula, onde
conseguir? Quantas opções de escolha? Qual a qualidade que será imposta? E o custo?
Se um cidadão é alérgico a alguns alimentos, vegetariano ou vegano, por exemplo,
quanto aumentariam suas dificuldades? Nessas condições, viver é um ato contínuo de
adaptar-se e não somente de escolhas, como dizem por aí! Podemos almejar e trabalhar
mudanças, aos poucos. Permaculturar pode ser uma via para isso!
252

Na Figura 9 há uma estruturação de um bairro que pode ter muitos elementos


permaculturais, porque tal exemplo permite isso. Há espaços vazios, há áreas de proteção
ambiental, corpos d’água, áreas (institucionais) verdes e/ou de lazer, etc. Quando
não houver, alternativas podem ser utilizadas ou elementos suprimidos.
A Figura 9 apresenta um zoneamento possível e alguns elementos que poderia
haver desde a unidade habitacional (UH) até a contextualização na escala do município.
Sugiro a vocês a começar a leitura dessa proposta seguindo ordenadamente as zonas,
de zero a cinco.

Figura 9 – Praticando permacultura em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Uma análise desse porte e nessas condicionantes sempre será pessoal porque
carrega em si a personalização das bagagens técnica e cultural individuais.
No bairro, a zona 0 pode ser as unidades habitacionais porque é onde a maioria
dos residentes do bairro passam a maior parte do tempo, mas poderia ser outro
elemento, caso um outro exemplo assim requisitasse.
Os lotes mínimos usuais (entre 200 m 2 e 250 m2) dessas unidades habitacionais
poderiam acomodar planejamentos permaculturais individuais que modificariam o modo
de vida dos habitantes, da família, oferecendo mais autonomia alimentar, menores
consumos de recursos externos, menores gerações de resíduos líquidos e sólidos,
menores custo de vida.
Pandemia do coronavírus – 253

As habitações tradicionais de bairros periféricos de cidades médias, pelo menos


as paulistas, costumam ser meros postos de descanso, alimentação e alguma convivência
social e familiar, o que impõe a necessidade de insumos vitais para essas atividades que
costuma vir de fora. Adquirimos alimentos, materiais de higiene e limpeza, água potável,
energia elétrica, internet, materiais de construção para a manutenção da própria zona 0
e outros tantos insumos. Além disso, manda-se para fora da zona 0 todos os resíduos dos
consumos citados e os demais resíduos residenciais.
Um sistema totalmente dependente e aberto que necessita de muitas entradas
e gera muitas saídas. Essas unidades habitacionais no modelo permacultural vão buscar
eliminar o maior número possível de entradas e de saídas. As limitações de área dessas
zonas 0 impedem-nas de satisfazer tantas entradas e saídas, mas atuando na escala do
bairro, isso pode ser viável. O importante é produzir o que for possível dentro daquilo
que necessita e cuidar, na mesma filosofia, daquilo que sobra em paralelo, lógico, com
a agitação das bandeiras de menores consumos possíveis e menores produções de
resíduos possível e alinhados com as legislações existentes sobre o tema.

Figura 10 – Zona 0 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 0 – Estratégias sugeridas:


a) produzir parte do alimento;
b) produzir sua própria energia elétrica;
c) produzir sua água quente da higiene e limpeza;
d) produzir parte da água de consumo com reúso das APs ou outras residuárias;
e) aproveitar melhor os alimentos (menos resíduos) e compostar os resíduos que produzir;
f) tratar parte das águas residuárias da edificação;
g) infiltrar parte da água que seria drenada ao sistema público;
h) apoiar o sistema de produção de alimentos com abelhas polinizadoras e com o composto;
i) diminuir necessidades energéticas da edificação com melhoramentos advindos da interação com
os itens anteriores;
j) priorizar tecnologias da construção civil mais sustentáveis, de baixo impacto ambiental e altos
propósitos sociais que promovam habitabilidade e outros requisitos necessários, etc.
254

Um exemplo de unidade habitacional que carrega em si o design permacultural


pode ser visto na Figura 11, a seguir, que compara uma proposta tradicional (à esquerda)
e sua versão permacultural (à direita).
Podemos perceber que a unidade habitacional antes está total e integralmente
dependente de concessionárias de serviços e insumos, de seu alimento dos
hipermercados. As massas vegetais existentes são apenas ornamentais e a habitabilidade
da edificação parece depender exclusivamente da qualidade material da edificação.
Por outro lado, depois de implementado o design permacultural, vemos
claramente sistema que minimiza a necessidade de insumos externos e vemos a
diminuição de descarte de resíduos. Parece apenas que houve um aumento no consumo
de água e de terra vegetal. Entretanto, o reúso de águas pluviais pode resolver isso e uso
de sistemas de economia de água para a rega também ajudaria. A terra vegetal necessária
pode ser integralmente suprida pela compostagem proposta. A própria ambiência
externa e interna da edificação parece mais fresca no verão e mais aquecida no inverno.
Mesmo que as áreas dos típicos lotes residenciais não permitam grande volume
de estruturas ou agroecologia dentro de um sistema maior, com mais unidades
habitacionais fazendo o mesmo procedimento, as trocas e vendas serão consequência
automática e direta.

Figura 11 – Unidade habitacional – antes e depois da permacultura

Fonte: Disponível em: https://sitiocurupira.wordpress.com/hortasecanteiros/. Acesso em: 11 maio 2021.


Pandemia do coronavírus – 255

Fica claro o aumento significativo de autonomia da edificação em termos de recursos


necessários para a subsistência e a diminuição da geração e do descarte de resíduos.
A Zona 1 ficaria na escala das quadras que pode ser localizada em áreas
desocupadas, sem edificações ou em lotes com bastante área livre. Nesses lugares seriam
estabelecidas atividades de apoio e em complementação àquelas já realizadas nas zonas 0,
como, por exemplo, outros alimentos, outros compostos ou outras ferramentas e
instrumentais de apoio. Pode haver lotes com edículas ou mesmo maiores áreas ociosas
que seus proprietários aceitariam produzir insumos e serviços que os demais membros
desejam, mas não podem produzir e aceitaria o trabalho dos membros da comunidade
da quadra na produção alimentícia em apreço ao processo grandioso em andamento.

Figura 12 – Zona 1 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 1 – Estratégias sugeridas:


a) produzir uma parte do alimento que requer mais área que poderá ser dividida entre todas as
zonas 0 a que essa zona 1 pretenda gerir;
b) assim como podem receber outros tipos de resíduos para uma gestão coletiva deles;
c) mudários, hortas mais contundentes e mais espaçosas, pequenos pomares;
d) almoxarifado comunitário;
e) estoque de materiais comunitário;
f) Serviços diversos em pequena escala: costureiros, padeiros, boleiros, etc que não precisa de
transporte de longa distância e etc.

A zona 2 desse bairro precisaria de menor número de espaços, porém maiores porque
seriam áreas que trabalhariam para 4 ou 6 quadras, cuidando de produzir bens e serviços
para 200 famílias. Aí, cabem as padarias de bairro, farmácias de bairro, açougues, mercados,
lojas de materiais de construção básicos. Cabem, também, os pontos de entrega voluntária
256

de resíduos recicláveis, da construção civil e, talvez, orgânicos para compostagem como


verdes e de podas, por exemplo. Lembrem-se que, se nas zonas 0 teremos UHs produzindo
parte de seus alimentos e demais entradas, dois fatos parecem consequentes: 1. Vão
continuar a desejar alimentos melhores, materiais de construção e serviços melhores e mais
sustentáveis, em essência; 2. Vão se preocupar cada vez mais com suas saídas, seus resíduos
e continuarão preocupados com as embalagens do que entra e com a forma de consumo do
que entra e isso afeta as construções e os serviços que vão desejar ter ao lado.
Provavelmente, prosperarão mais efetivamente, as empresas alinhadas a isso. Também,
nessa escala coletiva, pode haver propostas sociais e ambientalistas atreladas ao novo
paradigma dos residentes das zonas 0. Poderá haver áreas institucionais “temáticas” como,
por exemplo, “praça das flores” que teriam abelhas nativas para restauração ecológica
e polinização ou uma tradicional academia da primeira idade ou da melhor idade.

Figura 13 – Zona 2 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 2 – Estratégias sugeridas:


a) serviços alinhados com os residentes, nada de pegues, pagues e se mandem! Ouvir os clientes
é a palavra de ordem. Imaginem um espaço para manifestação do que a comunidade pensa,
precisa e deseja;
b) praças e afins com caráter, alma que sejam convidativas e tenham atrativos desejados e não os
impostos. Provavelmente serão os lugares de contemplação, de escape no bairro;
c) também tem lógica serem lugares de construção do conhecimento individual e coletivo,
principalmente de educação ambiental, etc.
Pandemia do coronavírus – 257

A zona 3 já deve ser mais ampla, englobando o bairro todo ou mais bairros, se forem
menores, talvez na ordem de residente de umas 30 quadras. Normalmente, nessa escala há
áreas institucionais maiores, destinadas a espaços escolares, unidades de atendimento de
saúde, supermercados, outras edificações institucionais de médio porte como lotéricas
e bancos, pequenos e médios comércios e áreas verdes, praças e parques. Normalmente
nessas áreas institucionais há poucas (ou nenhuma) estratégias de uso real delas. Muitas
vezes, nas áreas verdes são plantadas espécies diversas em fileiras regulares a 3 metros de
distância e deixadas à própria sorte sem os necessários cuidados iniciais. As praças recebem
vegetação ostensiva, normalmente exóticas, e mobiliário. Recebem cuidados iniciais, às
vezes. Os parques costumam receber vegetação nativa com propósito de restauração e um
mobiliário menos incisivo e fica por isso.
Bem, existem por aí propostas bem fundamentadas, planejadas e executadas, mas
são bastante pontuais, quase raras. Esse comércio de bens e serviços de bairro deverá se
adaptar ao novo paradigma já mencionado e se preocupar com seus produtos e seus resíduos
e praticar sustentabilidade na sua produção e logística reversa dos seus resíduos porque
querem fazer isso e porque os residentes também exigirão. Já para as áreas verdes, parque
e praças, poderiam ser temáticas também, mas mais contundentes, apoiadas em projetos
sociais, ambientais e econômicos. Poderia haver uma “praça das orquídeas” que produziria
mudas de espécies nativas em extinção e as distribuiria para organizações especializadas e,
também, produziria renda e trabalho para os residentes que desejassem participar e incluiria
pessoas de populações fragilizadas em recuperação (toxicômanos, alcoólatras etc.). Poderia
haver outras aplicações como silvicultura (plantar florestas de Teca ou bambu Guadua para
usos no próprio bairro, por exemplo), agroflorestas (para produção extensiva de itens
da alimentação, como, por exemplo, frutas das estações) e até mesmo pastoris de pequeno
porte (para produção de derivados, como, por exemplo, laticínios básicos para geração de
trabalho, renda e consumos locais). Tudo isso em áreas institucionais de porte pequeno.
258

Figura 14 – Zona 3 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 3 – Estratégias sugeridas:


a) produção extensiva e ambiental, baseadas em projetos sociais, ambientais e econômicos;
b) áreas abertas em oposição as áreas das zonas anteriores;
c) geração de trabalho e renda para os residentes com produtos e serviços internos etc.

Falando simultaneamente das zonas 4 e 5 (Figuras 15 e 16, respectivamente),


achamos que nas cidades médias e pequenas paulistas, normalmente fundadas e
desenvolvidas perto de corpos d’água e matas, há muitos fragmentos de florestas e matas
ciliares a recuperar e restaurar, não apenas a flora, mas fauna delas também.
Normalmente, também há fragmentos de florestas nativas que devem ser preservadas e
a zona 5 se destinaria a esses lugares intocáveis que, se preservadas, promoveriam
a recuperação do ciclo hidrológico, contenção de processos erosivos, a restauração e
regeneração das florestas nativas e sua fauna e flora.
Normalmente, as zonas 5 estão distribuídas entre bairros e se estendem ao longo
dos córregos e rios e, por isso, devem ser tratadas como bens municipais. Já as zonas 4
seriam as áreas imediatamente próximas, antecedendo essas APPs da zona 5. Nelas, como
se permite o manejo, espera-se produções mais intensivas ainda: sistemas agroflorestais
urbanos, silvicultura e pastoreio intensivo. Pomares urbanos, fazendas urbanas, sistemas
agroflorestais, corredores verdes, corredores ecológicos, parque ecológicos, centros de
atendimentos da fauna silvestre ou de animais domésticos abandonados são alguns
exemplos para se ter distribuídos pelas várias zonas 4 do município.
Pandemia do coronavírus – 259

Figura 15 – Zona 4 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 4 – Estratégias sugeridas:


a) produções intensivas;
b) centros ambientais abertos, etc.

Figura 16 – Zona 5 em um bairro periférico

Fonte: Autor, 2021.

Zona 5 – Estratégias sugeridas:


a) proteção ambiental;
b) regeneração e restauração;
260

c) escoamento da fauna através de corredores ecológicos, etc.


Bem, esperamos ter provocado algumas reflexões nos leitores, que cada um
vislumbre esse bairro tal como sugerido no décimo segundo princípio da permacultura.
Finalizando, reiteramos que podemos aplicar um planejamento permacultural em
qualquer situação. Que fique bem clara a hipótese ora levantada que a produção das
cidades deve: a) olhar para seus usuários como seres sociais, muitos carentes de cuidados
e todos, fragilizados pela pandemia em curso; b) para o ambiente em que se instala com
o olhar de quem está tratando da casa de todos nós e, portanto, c) construindo para a vida
coletiva, (bio)construindo.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 15.575. Edificações habitacionais —


Desempenho: Parte 1: Requisitos gerais. Rio de Janeiro: ABNT, 2013.

FERREIRA NETO, D. N. Uma alternativa para a sociedade: caminhos e perspectivas da permacultura no


Brasil. São Carlos: [s.n.], 2018.

HOLMGREN, D. Princípios e caminhos da permacultura além da sustentabilidade. [s.l.]: [s.n], 2002.

HOLMGREN, D. Os fundamentos da permacultura. [S.l.]: Holmgren Design Services, 2007. Disponível em:
https://files.holmgren.com.au/downloads/Essence_of_Pc_PT.pdf. Acesso em: 12 maio 2021.

ITS BRASIL. Caderno de debate – tecnologia social no Brasil. São Paulo: [s.n.], 2018. 18 p. Disponivel em:
http://itsbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/02/ebook_TSintroducao.pdf. Acesso em: 12 maio 2021.

MOLLISON, B.; HOLMGREN, D. Permaculture one. Sidney, Australia: Corgi, 1978.

MOLLISON, B.; SLAY, R. M. Introdução à permacultura. 2. ed. [S.l.]: Tagari Publication, 1994.
Pandemia do coronavírus – 261

C A P Í T U L O 20
______________

CORONAVÍRUS E ATIVIDADE FÍSICA: REFLEXO FÍSICO E MENTAL

Silas Seolin Dias34

Introdução

Vírus

O título “Coronavírus e atividade física: reflexo físico e mental” foi pautado na ideia
de apresentar informações sobre o vírus, sobre atividade física, sobre o que a atividade física
reflete no corpo e na mente. Apontar alguns dos impactos que o vírus causou e em que
o exercício pode ajudar. Também trazer uma parte de experiência tanto da minha vivência
profissional quanto eu com Covid-19. A ideia é apresentar algo teórico e prático, vivenciado.
O que é vírus? É a primeira pergunta, e como introdução, sem entrar muito em
conceitos biológicos, os vírus, de forma geral, podem ser definidos como parasitas
intracelulares obrigatórios. Eles são parasitas, pois entram na célula saudável do corpo
humano e parasitam essa célula. Realizam isso para sobreviver, reproduzir e se multiplicar.
Assim, eles precisam invadir uma célula saudável do organismo do ser humano,
aproveitando-se das estruturas dessa célula humana para obter nutrientes (FALKE, 1979;
MURRAY et al., 1994; SOARES, 1993). Podemos dizer que o vírus é “traiçoeiro”, pois entra
na célula saudável do ser humano e se aproveita dela. O vírus não é um ser vivo benéfico.
Os vírus são bastantes pequenos e dotados de uma cápsula proteica que contém
o material genético deles, e esse material fornece o código a ser seguido para que ele
possa se reproduzir. Então, além de entrar na célula humana saudável, ele coloca o
material genético dele nessa célula confundindo o nosso material genético, fazendo com
que nossa célula replique o material genético do vírus, fazendo com que a nossa célula
trabalhe para ele com o material genético dele. Essa invasão nas células do corpo humano
faz com que o indivíduo infectado com algum tipo de vírus desenvolva doenças, sinais
e sintomas de acordo com a variedade invasora do vírus, ou seja, com o tipo de vírus que
infectou o corpo humano (FALKE, 1979; MURRAY et al., 1994; SOARES, 1993).

34
Doutorando em Educação Física na Universidade Estadual de Londrina, Paraná. Professor do Instituto de
Ensino Superior de Londrina (INESUL), Londrina, Paraná. E-mail: silas_ssd@hotmail.com
262

Fora de uma célula hospedeira o vírus não realiza qualquer tipo de atividade
relacionada ao metabolismo. Assim, se não conseguir entrar em uma célula saudável, ele
não consegue se reproduzir e realizar todo processo que foi citado acima (MURRAY et al.,
1994). Não é científico, mas alguns profissionais da saúde dizem que, referente ao
coronavírus, de alguma forma o corpo humano pode inibir o vírus de atuar na célula
humana, mas isso ainda tem muitas lacunas a serem estudadas e investigadas.
Quais doenças os vírus podem causar? Existem vários tipos de doenças de acordo
com cada variedade de vírus, mas as mais conhecidas são a AIDS, que é causada pelo HIV,
que é um vírus de imunodeficiência humana que atua no sistema imunológico,
atrapalhando o sistema imunológico. A herpes, que é famosa e tem vários tipos. A gripe
comum, causada pelo vírus Influenza. O HPV que também é bastante conhecida.
A poliomielite causada pelo Poleovírus e a rubéola. Esses são algumas das doenças
de vírus, pois tem muito mais.

Covid-19

O que é Covid? Sabemos que é um vírus e uma característica geral da Covid-19


é uma infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que é o nome
científico considerado como potencialmente grave e de elevada transmissibilidade, e de
distribuição global (NOGUEIRA, 2020). Grave porque transmite muito rápido. Em relação
à morte, outros vírus têm poder de mortalidade maior, porém de menor poder de
transmissão, então se fôssemos comparar transmissão e morte, como está sendo
transmitido muito rápido, acaba morrendo grande quantidade de pessoas também, sendo
diretamente proporcional.
O SARS é um beta-coronavírus descoberto em amostras em uma cidade chamada
Wuhan, na província de Hubei, na China, e foi descoberto em dezembro de 2019. Pertence
ao subgênero Sarvecovirus da família Coronaviridae, e é o sétimo coronavírus conhecido
a infectar seres humanos, mostrando que já se tinha conhecimento que já contaminava seres
humanos, mas não era tão transmissível e tão abusivo como este Covid-19. O coronavírus
é de uma família comuns em muitas espécies diferentes de animais, como os camelos,
gado, gatos e morcegos, incluindo o homem. E quando os sintomas começam a aparecer?
Antes de responder a essa pergunta, entenda que é possível que o coronavírus de animais
possa infectar pessoas, não é tão comum essa relação, mas é possível, e isso foi o que
aconteceu com a Covid-19, de infectar os seres humanos e até o momento não foi definido
Pandemia do coronavírus – 263

qual o reservatório silvestre do SARS-CoV-2 (VELAVAN; MEYER, 2020). Até no início da


pandemia as pessoas diziam que veio do macaco, também que veio do morcego e até
chegaram matar esses animais.
Os sintomas aparecem de 2 a 14 dias depois da primeira infecção, mas hoje os
dados apontam de 3 a 5 dias para se ter os primeiros sintomas, tanto que se fizer um
teste no dia em que foi infectado até o segundo dia há a possibilidade de que não dê
positivo no teste, tendo que repetir no terceiro dia em diante. Qualquer pessoa pode
apresentar sintomas, sendo que eles podem ser leves ou severos. Os sintomas são: febre
ou calafrios, tosse, falta de ar, fadiga, dores pelo corpo, dor de garganta, dor de cabeça,
coriza, diarreia, náuseas, anosmia (ausência de olfato) e perda do paladar (GUAN, 2020).
Algumas pessoas têm alguns desses sintomas e outros têm todos esses sintomas e outros,
ainda, podem não ter os sintomas.
Quais são os exames utilizados para identificar a Covid-19? Antes de falar dos
exames, o coronavírus pertence a uma família de vírus que também já circulava no Brasil
antes da pandemia e era responsável por grande parte dos resfriados comuns, porém,
essa sétima variação (Covid-19) veio com um potencial maior e sintomas mais graves. Esta
variação está causando a síndrome aguda respiratória severa e a síndrome respiratória
do Oriente Médio, que não tiveram casos no Brasil há pouco tempo.
Os exames utilizados são o PCR, que é a metodologia “padrão-ouro”, capaz de
detectar a presença do vírus nos pacientes, feito de material coletado pela garganta e pelo
nariz (exame do cotonete), por meio dessa técnica é possível constatar se a pessoa está
positivada com Covid-19 ou não. Para esse teste tem que estar com sintomas e é possível
detectar o vírus até o décimo segundo dia de sintomas. A sorologia é outro exame, que
é teste imunológico capaz de detectar os níveis de anticorpos (IgG e IgM) em amostras de
sangue do paciente, e nesta análise dos anticorpos verificam-se quais anticorpos estão
relacionados com Covid-19 no paciente, apontando se já teve a presença do vírus ou se
está com o vírus no corpo, e é aconselhado para pacientes com sintomas a partir do sétimo
dia que foi infectado, que é quando os anticorpos começam a ser produzidos no corpo.
Outro exame é o teste de antígeno, que tem como objetivo identificar a infecção atual
da Covid-19 em indivíduos e é realizado quando a pessoa apresenta sinais e sintomas, mas
também pode ser realizado em pacientes assintomáticos que tiveram contato com alguém
que estava positivo para Covid-19. Mas quando não identificado, é recomendada a repetição
do teste em 72 horas para confirmação se está ou não positivo (DIAS, 2020; LIMA, 2020).
264

Covid no mundo e no Brasil

Abordando uma retrospectiva do vírus no mundo e no Brasil, é muito provável que


tenha iniciado em dezembro de 2019, na China, onde foi detectado o primeiro contato desse
vírus. Em 20 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto
como emergência de saúde pública de âmbito internacional, então nota-se que dentro
de um mês já foi o suficiente para declarar um surto, indicando que o vírus era de alta
transmissibilidade. Em 11 de março de 2020 foi classificado como pandemia, passados três
meses após o início dos casos no mundo, sendo um risco para o mundo todo.
Assim, começaram a aparecer casos confirmados pelo mundo, sendo que 192 países
foram acometidos pela doença, tornando-a assustadora. As medidas preventivas foram
incluídas nesse processo, mas antes de abordar sobre isso, na linha do tempo, voltando um
pouco, em 5 de janeiro de 2020 a OMS começou a publicar sobre o coronavírus e
posteriormente veio o novo código genético desse vírus em 9 de janeiro, e em 28 de janeiro
a OMS admite o risco de epidemia no mundo.
Em 9 de fevereiro, souberam que havia 34 brasileiros vivendo na cidade de Wuhan,
onde iniciou a pandemia. Na data de 20 de fevereiro, o Ministério da Saúde monitora
apenas um caso suspeito do vírus no Rio Grande do Sul, porém foi descartado. Em 21
de fevereiro o Ministério da Saúde ampliou o alerta de países com Covid, onde também
nessa data foi descartado outro caso em São Paulo. No dia 24 de fevereiro, 8 países em
alerta foram incluídos pelo Brasil e monitora alguns casos em São Paulo, porém todos
descartados, mas em 26 de fevereiro, 2 meses depois do início na China, foi registrado
o primeiro caso no Brasil. Sobe para 132 o número suspeito em 27 de fevereiro, um dia
depois do primeiro caso registrado no Brasil. O segundo caso importado no Brasil
confirmou em 29 de fevereiro.
Em março, 15 países além da China estavam em alerta colocado pelo Brasil. Em 4
de março mais um caso confirmado no Brasil, e a linha do tempo mostra que no início veio
lento o número de casos no país. A primeira transmissão interna foi em 5 de março de
2020, até então eram casos confirmados importados de pessoas que viajaram e voltaram
para o Brasil. Em 6 de março chega a 13 o número de casos confirmados e monitora
768 suspeitos e outros 480 casos foram descartados (SANAR, 2021).
Pandemia do coronavírus – 265

A primeira morte de Covid-19 no Brasil acontece em 17 de março de 2020 com um


homem de 52 anos, e assim começaram as iniciativas de lockdown, o que fazer para
controlar a transmissão. A linha do tempo se estende, obviamente, mas era apenas para
realizar uma breve retrospectiva do início. E o que surgiu como impactos? O que aconteceu
quando começaram a aumentar os casos no Brasil? Surgiram as medidas preventivas
recomendadas, como o distanciamento social, uso de máscaras faciais em público,
ventilação e filtragem de ar, lavagem das mãos, cobertura da boca ao espirrar
e tossir, desinfecção de superfícies e monitoramento de autoisolamento para pessoas
expostas ou sintomáticas. Várias vacinas começaram a ser desenvolvidas, produzidas
e distribuídas no mundo. O tratamento era concentrado nos sintomas enquanto drogas
terapêuticas tentavam ser utilizadas para inibir o vírus. Autoridades do mundo
implementaram restrições a viagens, lockdown, controle de local de trabalho, fechamento
de instalações, muitos trabalharam para rastrear os infectados (SANAR, 2021).

Impactos nos profissionais da Saúde

A pandemia resultou em instabilidade social e econômica global significativa,


incluindo a maior recessão global desde a grande a “Depressão”, e isso levou a uma
escassez generalizada de suplementos e suprimentos devido à dificuldade de aviões irem
e virem de países. Houve interrupção da agricultura e escassez de alimentos em alguns
países. Também houve diminuição das emissões de poluentes e gases do efeito estufa
devido à pausa e diminuição de setores que produzem esses poluentes. Muitas
instituições educacionais e áreas públicas foram parcial ou totalmente fechadas, como
escolas, empresas, o que gerou alguns problemas com isso. Também muitos eventos,
como casamentos, foram adiados.
A desinformação também circulou nas redes sociais, pessoas postavam coisas sem
fundamento e isso assustou muitas outras. A pandemia levantou a questão de
discriminação racial (etnia chinesa) e geográfica (preconceito com a China por ter iniciado
a pandemia em seu país). Esses foram alguns dos impactos e isso influenciou nos
profissionais da saúde, como o educador físico (no meu caso), além do fisioterapeuta,
psicólogo entre outros que tratam da saúde, principalmente os profissionais autônomos.
Em relação ao profissional educador físico e os profissionais da saúde, um dos
impactos que surgiram foi o financeiro, pois alguns alunos/clientes deixaram, por medo, de
realizar a prática psicológica, fisioterápica e de exercícios. Muitas academias fecharam
266

tanto pelo período de lockdown quanto por não conseguirem manter as portas abertas
quando foi liberado para voltar às atividades. Os exercícios ao ar livre, na cidade de
Londrina/PR, onde resido, foram proibidos de serem realizados por um tempo. Nós, como
profissionais, fomos prejudicados de certa forma no trabalho e isso afetou financeira e
profissionalmente, assim fazendo com que nos adaptássemos e criássemos situações para
não perder ou até mesmo conquistar novos clientes/alunos.

Experiencia e vivência com a Covid-19

Contando um pouco da minha experiência com Covid, em maio de 2021, minha


esposa e eu fomos infectados pelo vírus. Minha esposa teve muitos sintomas, como dor no
corpo, dor no fundo dos olhos, dor na lombar, dor de cabeça, coriza, porém tomou os
medicamentos preventivos fornecidos pelos profissionais da saúde e dentro do período de
10 dias, que é estipulado aqui em Londrina/PR, recuperou-se e voltou às atividades
normais. Já no meu caso, quando minha esposa estava finalizando os 10 dias meus
sintomas começaram a aparecer e foram bem mais leves, apenas 2 dias de garganta seca,
2 dias de coriza e tosse leve, porém, ao completar os 5 dias do antibiótico que é receitado
tive alterações da temperatura que provocaram febre. Então, mesmo sem muitos sintomas
essa febre me fez procurar novamente médico e foi receitado novamente antibiótico
e corticoide, ficando assim mais 7 dias de confinamento além dos 10 que já havia ficado
por poder ainda transmitir, já que na radiografia foram detectadas manchas no pulmão.
O fato de relatar minha vivência com Covid-19, é para alertar que por mais que não
se tenha muitos sintomas ou sintomas leves, é importante ficar alerta, pois se eu não
me atentasse à febre, talvez tivesse complicações. A médica que me atendeu relatou que
depois de 8 a 9 dias do primeiro dia de sintomas não era para estar com febre e que foi bom
eu ter procurado médico, pois assim consegui tratar de forma mais amena ao ponto de ficar
em casa sem internação. Serve de alerta se caso em meio a pandemia uma coriza apenas,
ou um calafrio que deu em um dia, procure o médico, pois pode ser gripe comum apenas,
mas em pandemia pode ser coronavírus e não devemos brincar, então procure o médico,
até porque, quanto antes você começar a tratar, a chance de ter complicações é menor.
Em 2020 tive uma queda de alunos de praticamente 50% no meio do ano, o medo
era grande de ser infectado, de ter contato, as academias estavam fechadas, nem todos
os alunos aceitaram realizar exercícios por videochamada (meus alunos em sua maioria são
Pandemia do coronavírus – 267

mais velhos e não se adaptaram ou não tinham facilidade de realizar videochamada).


Também a questão financeira de alguns alunos influenciou, mesmo querendo continuar
realizando as aulas de exercícios físicos, pois fecharam alguma empresa ou foram
dispensados da empresa em que trabalhavam. Com isso implicou reflexos em nós,
profissionais da saúde, na prática profissional de fato. Porém, por volta de outubro
de 2020, onde se tinha uma outra perspectiva do que era coronavírus, já estávamos passando
por quase um ano da doença, um conhecimento mais certo do vírus, sem muitas divulgações
de informações incoerentes na rede social, com mais médicos e profissionais da saúde dando
mais informações corretas sobre a Covid-19, tranquilizando a população.
Londrina, Paraná, passou esse período de 2020 sem muitas internações e
complicações, mas agora no começo de 2021 que começaram aumentar os casos
e internações. Mas em razão de antes estar mais tranquilo, as pessoas voltaram a realizar
atividade física até mesmo ao ar livre e isso favoreceu a nós, profissionais, na questão do
trabalho e procura de clientes/alunos. Porém, tivemos que nos adaptar, eu mesmo gravei
vídeos os quais eram repassados aos alunos e eles os realizavam em casa ou fazíamos aulas
on-line por videochamada ou também ao ar livre. Sempre atentando aos cuidados, como
máscaras, houve compra de equipamentos, utilização de álcool em gel para desinfectar
os materiais e até o momento estamos assim. Com o retorno das academias, mesmo com
as restrições, favoreceu pelo menos na cidade de Londrina-PR e melhorou a questão do
trabalho para nós, profissionais da saúde.
Em meio à pandemia tive então uma queda, mas depois de um tempo como citado
anteriormente voltou a ascensão e uma procura maior para a prática de atividade física,
até porque começaram a divulgar notícias e artigos de que os exercícios eram benéficos
à prevenção e ajuda do tratamento do coronavírus.

Adaptações dos profissionais e os cuidados com exercícios em casa e sozinhos

As adaptações que os profissionais da saúde realizaram foram a utilização de


máscaras, álcool em gel, fizemos de garrafas pets e pacote de arroz, por exemplo, pesos
para o treinamento dentro de casa, quando não havia possibilidade de frequentar as
academias ou ao ar livre. Surgiram muitos profissionais divulgando conteúdo de exercícios
para serem realizados em casa, mas conforme as academias iam sendo liberadas o público
que gosta de academias aos poucos foi voltando também e com os outros que tinham mais
receio, realizamos atividades ao ar livre ou dessa forma improvisando para a prática em casa.
268

Não havia desculpas para não realizar exercícios. Porém, devemos tomar cuidado
com os exercícios, vídeos que assistimos sobre exercícios e as formas de como iremos
realizar para não sermos prejudicados, não resultar em dores e lesões posteriormente.
A prática de exercícios não é simplesmente fazer por fazer, por isso procure sempre um
profissional qualificado para orientações sem riscos. É importante realizar exercícios,
nem que sejam apenas 5 minutos diários que você tenha, mas o fato de começar já vai
trazer benefícios para saúde e corpo.

Atividade física e Covid-19

Antes de apontar alguns artigos que tratam da Covid-19 e exercícios, é importante


reforçar que é fundamental a prática de exercícios, já sabemos de todos os benefícios,
porém tem que se ater aos cuidados da prática. Hoje tem vários artigos publicados, como
no estudo de Mattos et al. (2020), em que foi realizada uma revisão que teve como objetivo
mapear as publicações brasileiras sobre recomendações de atividade física e exercício físico
durante a pandemia Covid-19, e aponta que a prática regular de atividade física e exercício
físico durante a pandemia Covid-19 mostrou-se essencial à manutenção da saúde,
sobretudo se regular e orientada, podendo ser realizada em academias, dentro de casa
e ao ar livre, afirmando a hipótese de que os exercícios ajudam nesse momento em relação
ao Covid-19, em que é muito importante esse dado.
Um outro estudo, de Ferreira (2020), aponta que o exercício ajuda no sistema
imunológico e isso é benéfico ao corpo no combate ao coronavírus, pois quando realizamos
exercícios a musculatura comprime os linfonodos (onde os anticorpos estão armazenados)
da circulação linfática do nosso corpo, fazendo com que os anticorpos circulem no corpo
com mais frequência (como se estivessem realizando um mapeamento o corpo como um
todo) deixando o corpo mais preparado, repassando ao sistema nervoso central se está
tudo em ordem sem nenhum risco de doenças, e os exercícios aumentam os níveis de
quantidade de anticorpos, aumentando assim a imunidade.
A pandemia afetou também o psicológico de muitas pessoas, devido à perda de
emprego, questão financeira, isolamento, as mortes, entre outras. Sabemos que o exercício
ajuda também no controle nos efeitos psicológicos negativos, trazendo benéficos à mente.
O exercício ajuda devido à liberação de hormônios como dopamina, serotonina, ajudando a
lidar melhor com as situações do dia a dia da vida. Um artigo com o título “Praticar exercícios
físicos é fundamental para a saúde física e mental durante a pandemia da Covid-19”, que
Pandemia do coronavírus – 269

traz a relação dos exercícios com a saúde mental, Raiol (2020) aborda as mudanças
que a pandemia causou no estilo de vida da população mundial, no intuito de diminuir
o contágio da doença. Assim, a OMS e várias organizações médicas e governamentais
sugeriram o distanciamento social como principal estratégia, essa medida fez com que
a maioria da população ficasse dentro de suas casas e como consequência houve uma
redução drástica na quantidade de pessoas que realizavam atividade física. Essa redução
acarretou problemas físicos e mentais. Sabemos que o exercício vai trazer benefícios para
saúde física e mental, que ajudará a seguir melhor com as dificuldades do dia a dia.

Vacinação e pós-pandemia

Sobre a vacinação e pós-pandemia, é muito incerto afirmarmos algo, mas a


vacinação está avançando e alcançando toda a população. Tomar vacina não significa que
não será contagiado pelo vírus, mas sim temos “ferramentas” e suporte para o sistema
imunológico combater com mais rapidez e precisão, diminuindo os sinais e sintomas da
Covid-19. Em relação ao que se espera do pós-pandemia, é de que aumente a quantidade
de pessoas que pratiquem exercícios físicos (pois ainda é muito baixa a quantidade de
pessoas que realizam exercícios no mundo) devido aos benefícios apontados e às
publicações de artigos que vão surgindo.

CONCLUSÃO

Sabendo da importância apontada das atividades físicas e exercícios, procure


realizar atividades prazerosas, recreativas, lúdicas e também para relaxar, podendo
começar, como citado, com 5 minutos diários, pois a prática tem se mostrado
importantíssima no tratamento e principalmente na prevenção, em que há indícios de que
quem pratica exercícios e se contaminou por Covid-19 passa o período de contágio muito
melhor que os que não praticam.

REFERÊNCIAS

DIAS, V. M. C. H. et al. Testes sorológicos para Covid-19: interpretação e aplicações práticas. Journal of
Infection Control, v. 9, n. 2, p. 90-101, 2020. ISSN 2316-5324.

FALKE, D. Virologia. 2. ed. São Paulo: Springer, 1979.

FERREIRA, M. J. et al. Vida fisicamente ativa como medida de enfrentamento ao covid-19. Arquivos
Brasileiros de Cardiologia, v. 114, n. 4, p. 601-602, 2020.
270

GUAN, W.; NI, Z.; YU, H. et al. Clinical characteristics of 2019 novel coronavirus infection in China. Medrxiv
(preprint posted online on Feb. 9) 2020; 10.1101/2020.02.06.20020974.

LIMA, F. L. O. et al. Diagnosis of Covid-19: importance of laboratory tests and imaging exams. Research,
Society and Development, v. 9, n. 9, 2020.

MATTOS, S. M.; PEREIRA, D. S.; MOREIRA, T. M. M. et al. Recomendações de atividade física e exercício
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Pandemia do coronavírus – 271

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