Você está na página 1de 1434

III SEMINÁRIO DESFAZENDO SABERES NA FRONTEIRA

ANAIS
2021
REALIZAÇÃO

FINANCIAMENTO

APOIO

1
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COMISSÃO ORGANIZADORA

Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado - UNIPAMPA


Mestrando Ewerton da Silva Ferreira UNIPAMPA/CEEINTER
Eduardo Lima – UNIPAMPA
Maria Fernanda Coffi Avila – UNIPAMPA
Bárbara Dutra Fonseca – UNIPAMPA
Crystian dos Santos Oliveira – UNIPAMPA

COMITÊ CIENTÍFICO

Dr. Cristóvão Domingos de Almeida – UFMT


Dra. Cleusa Albília de Almeida – IFRS
Dra. Monique Soares Vieira – UNIPAMPA
Dra. Renata Gomes da Costa – UNIRIO
Dra. Solange Emilene Berwig – UNIPAMPA
Dra. Gissele Carraro – EMESCAM
Doutoranda Naara de Lima Campos – UFES
Dr. Noli Bernardo Hahn – URI
Ma. Lucimary Leiria Fraga – URI
Dra. Juliani Borchardt da Silva – UFPEL
Dra. Angela Quintanilha Gomes – UNIPAMPA
Dra. Lauren de Lacerda Nunes – UNIPAMPA
Dra. Eliane Rose Maio – UEM
Dr. Márcio de Oliveira – UFAM
Dr. Reginaldo Peixoto – UEMS
Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado – UNIPAMPA

2
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mestranda Daniele Bonapace dos Santos Lencina – UNIPAMPA
Me. Edison Ouriques – DAS/Maçambara
Doutorando Amiel Modesto Vieira – UFRJ/FIOCRUZ
Dra. Andréa Santana Leone de Souza – UFOB
Doutor Carlos Antônio Braga de Souza – UFPA
Dra. Nara Salles – UFPEL/UFRN
Doutorando Tiago Herculano da Silva – UDESC
Dra. Simone Barros de Oliveira – UNIPAMPA
Dra. Patrícia Krieger Grossi – PUC/RS
Dra. Alinne de Lima Bonetti – UFSC
Dra. Fabiane Ferreira da Silva – UNIPAMPA
Dra. Léia Teixeira Lacerda – UEMS
Me. Roselaine Dias da Silva – SMED Porto Alegre – RS
Me. Cristiane Pereira Lima – SEMED Campo Grande – MS
Mestranda Jucléia Velasque do Amaral – UNIPAMPA
Mestrando Ewerton da Silva Ferreira – CEEINTER
Dra. Rafaela Vasconcelos – UFRGS
Mestranda Raquel Basilone Ribeiro de Ávila – UFRGS
Dra. Cristine Jacques Ribeiro - UCPEL
Mestranda Camila de Freitas Moraes – UCPEL
Doutoranda Carla Graziela Rodegueiro Barcelos Araújo – UCPEL
Dr. Ronaldo Bernardino Colvero – UNIPAMPA
Me. Roselaine Dias - REDE LESBI BRASIL
Dra. Dayana Brunetto - UFPR

3
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
APRESENTAÇÃO

Esta coletânea, fruto do III Seminário (Des) Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (Re)
Existências, foi organizada em meio a uma grave crise política, econômica, social e sanitária no
Brasil. O ano de 2020 foi avassalador em nossas vidas. Foi marcado por muitos desafios e
mudanças. A pandemia da covid-19 teve um impacto sem precedentes em todas as nossas vidas, Foi
preciso readequar nossas vidas, nosso trabalho, nossos estudos e pesquisas, e o Grupo de Pesquisa
em Gênero, Ética, Educação e Política - GEEP teve que cancelar seus eventos presenciais. E o
Seminário passou para a modalidade virtual com palestras através do Youtube apresentações de
trabalhos e minicursos através da plataforma do Google Meet.
Constata-se que cerca de 270 mil (em 12/02/2021) pessoas perderam a vida para a covid-19.
Estamos sem previsão de vacinação para toda a população. Escolas e universidades com ensino
remoto, híbrido, presencial; ora bandeira vermelha, ora bandeira preta; festas clandestinas, hospitais
atendendo na capacidade máxima, colapsados; profissionais de saúde estressados, doentes;
Professores e pesquisadores criticados, achincalhados, atacados, pelos negacionistas da ciência, por
conservadores, fundamentalistas, por um desgoverno de um país.
E, desta maneira, se encaixa em um processo persistente de lutar, re-exisistir, em qualquer
lugar de fala possível, aos dispositivos sociais que normalizam e até celebram, rotineiramente, as
desigualdades, as opressões e as violências contra corpos dissidentes pretos, femininos e LGBTQIA+.
No entanto, ao refletir sobre esses meses, nos sentimos extremamente gratos pelo apoio de
nossos membros e de nossas/os convidadas/os, e continuamos esperançosos para o ano de 2021.
Numa iniciativa do GEEP/CNPQ da UNIPAMPA, o III SEMINÁRIO (Des) Fazendo
Saberes na fronteira: lutas e (re) existências, realizado nos dias 11, 12 e 13 de novembro de 2020,
na modalidade virtual, em sua terceira edição o evento tem por objetivos principais promover o
intercâmbio entre pesquisadores com foco interdisciplinar nos estudos de gênero, sexualidade,
feminismos e movimento LGBTTIQ+; oportunizando um espaço para problematização dos gêneros,
das sexualidades, do feminismo e suas interseccionalidades nas pesquisas em Ciências Sociais e
Humanas. As pesquisas e práticas extensionistas que perpassam abordagens dos gêneros,
sexualidades, feminismos e lutas dos movimentos LGBTTIQ+ são fundamentais para a criação de
uma sociedade mais justa e igualitária, especialmente, em um contexto de conservadorismo que
vem crescendo em toda América Latina.
4
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nesse sentido, o evento busca responder como os estudos de gênero podem contribuir para
auxiliar na garantia dos direitos das mulheres, dos LGBTTIQ+ e na disseminação dos discursos
democráticos e plurais em tempos de conservadorismo, de ataques misóginos, racistas, sexistas dentre
tantas outras formas de tentativas de silenciamento e não reconhecimentos dos direitos humanos.
O III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira busca o fornecimento de um espaço de
reflexão e debate sobre os mais diversos campos teóricos dos estudos de gênero, feminismos e
sexualidades visando uma ampliação dos horizontes sobre as lutas e (re)existências, através de
pesquisas acadêmicas, considerando e valorizando, a pluralidade de ideias e práticas, da relação entre
teoria e vivências acadêmicas, práticas profissionais e de militância.
O Seminário teve abertura no dia 11/11/2021, às 19horas e contou com as seguintes
presenças: DRA. JAQUELINE CARVALHO QUADRADO - COORDENADORA GERAL DO III
SEMINÁRIO (DES)FAZENDO SABERES NA FRONTEIRAS; DR. MURIEL PINTO -
COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS -
UNIPAMPA; DR. RONALDO BERNARDINO COLVERO - DIRETOR DO CAMPUS SÃO
BORJA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA.
O evento se estruturou a partir da organização de três mesas redondas, três minicursos e
dezoito Grupos de Trabalho (GTs).
As mesas ocorreram nos três dias de evento. Conforme descrevemos:
A primeira mesa ocorreu no dia 11/11/2021, com início às 19 horas, intitulada EDUCAÇÃO,
GÊNERO E SEXUALIDADE, coordenada pelo Mestrando Ewerton Da Silva Ferreira –
UNIPAMPA. Teve como palestrantes Dra. Eliane Rose Maio - UEM e ME. Sara Wagner York –
UERJ.
A segunda mesa ocorreu no dia 12/11/2021, com início às 19 horas, intitulada OS DESAFIOS
DE GÊNERO NA ATUALIDADE!, coordenada pela Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado –
UNIPAMPA. Teve como palestrantes Dra. Cristina Scheibe Wolff - UFSC e Dra.. Teresa Kleba
Lisboa - UFSC.
A terceira mesa ocorreu no dia 13/11/2021, com início às 19 horas, intitulada VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER: UM COMPARATIVO ENTRE BRASIL E PORTUGAL, coordenada
pela Dra. Lauren De Lacerda Nunes – UNIPAMPA. Teve como PALESTRANTES DRA.
Josiane Petry Faria - UPF E Dra. Dália Costa - ISCSP LISBOA.

5
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Os minicursos aprovados, foram apresentadas nos dias 11, 12 e 13 de novembro. O primeiro
minicurso intitulado A CONDIÇÃO TRÁGICA DO FEMININO EM CLARICE LISPECTOR. O
segundo, intitulado COLONIALIDADE, ESTUDOS DECOLONIAIS E O DISCURSO DOS
DIREITOS HUMANOS. E o terceiro, intitulado PENSAMENTO SOCIAL NEGRO NO BRASIL.
Cada um dos GTs teve um momento de apresentação dos trabalhos inscritos e aprovados, no
respectivo GT. Dessa forma, o III Seminário foi formado pelos seguintes Grupos de Trabalho:
Gt 1- Mulheres Sem Fronteiras; Gt 2 - Segurança Pública E Sistema Prisional: Um Diálogo
Necessário! ; Gt 3 - Práticas Educacionais Na Contemporaneidade: Alteridades E Suas
Interseccionalidades; Gt 4 - Práticas Educativas Para O Enfrentamento Da Violência De Gênero,
Homofobia E Lgbtfobia; Gt 5 - Ética, Política E Estudos De Gênero; Gt 6 - 30 Anos Do Eca: Direitos
E Políticas Sociais Para A Infância E Juventude; Gt 7 - Intersexualidade Como Desafio De Gênero;
Gt 8 - Cidade: Sexualidade, Raça E Interseccionalidades; Gt 9 - Cidade: Território, Memórias E
Interseccionalidades; Gt 10 - Proteção Social E Demandas Emergentes; Gt 11 - Afetos E Desejos
Em Tempos De Risco: As Lesbianidades Na Pandemia; Gt 12 - Migrantes E Refugiados; Gt 13 -
Mulheres Quilombolas: Resistências E Lutas Pelos Direitos De Cidadania; Gt 14 - Corpos Silenciados
Em (Re)Existência: Desvendando-Se Em/Pela/Com Arte; Gt 15 - Relações De Gênero, Diversidade
Sexual E Violências: O Campo Da Educação Em Destaque; Gt 16 - Gênero, Identidades,
Sexualidades E Resistência: Corpos Indóceis Na Sociedade Complexa; Gt 17 - Lgbtifobia,
Resistência E Cuidado De Si; Gt 18 - Gênero, Identidades, Sexualidades E Resistência: Corpos
Indóceis Na Sociedade Complexa;
Observa-se que os trabalhos “destaques”, as/os autoras/es foram convidadas/os para
publicarem em e-book que está sendo organizado pelo GEEP, no ano de 2021.
O evento contou com APOIO FINANCEIRO da FAPERGS AOE, o que foi possível a
elaboração de dois produtos técnicos: 01 LIVRO IMPRESSO pela editora EVANGRAF convidados
e trabalhos premiados) E 01 E-BOOK (artigos das/os coordenadoras/es de GTS) PELA EDITORA
CEEINTER. Além disso, a contratação de uma plataforma digital para o evento, a contratação da
empresa CEEINTER para organizar o evento – estrutura, comunicação, organizar os Anais do
evento e certificações.
Outrossim, o evento contou com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas (PPGPP/UNIPAMPA), e do Programa de Extensão Mulheres Sem Fronteiras.

6
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É com muita alegria e agradecendo a cada contribuição dos/as pesquisadores/as convidados,
que finalizamos essa publicação, oriunda do evento. Essa produção só foi viável em função da
participação de cada autor/a, que cede sua produção para esta publicação.

Prof. Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado


Coordenadora do III Seminário (Des) Fazendo Saberes na Fronteira: lutas e (re)existências

SOBRE NÓS...

7
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GRUPO DE PESQUISA GENERO, ETICA, EDUCAÇÃO E POLITICA-
GEEP/UNIPAMPA/CNPq
O grupo foi criado em 2015, e é constituído por estudantes de graduação, mestrado, doutorado,
por professores doutores e mestres, e por técnicos administrativos em educação e colabores externos.
No campo Interdisciplinar, aglutina contribuições da Educação, Serviço Social, Ciência Política,
Filosofia, História, Direito, Sociologia, Geografia, dentre outras áreas do conhecimento, no diálogo
com os estudos de Gênero, ética, educação e política.
O GEEP congrega, além de docentes, discentes da graduação (bolsistas de Iniciação
Científica), discentes voluntária (o) s e da pós-graduação, técnicos administrativos em educação
(TAES), assim como egressas (os), docentes e profissionais vinculados(o)s aos serviços onde a
UNIPAMPA desenvolve atividades de ensino, pesquisa e projetos de extensão
Tem por objetivo fomentar o debate acadêmico e incentivar pesquisas sobre gênero, ética,
educação e política, oferecendo instrumentos teórico-metodológicos para as/os alunas/os da
graduação e da pós-graduação desenvolverem seus trabalhos e, ao mesmo tempo, agrupar
pesquisadores/as para o desenvolvimento de projetos coletivos, contribuindo para consolidação das
linhas e projetos de pesquisa. Realiza atividades em graduação e pós-graduação, bem como eventos
e publicações em âmbito interinstitucional.
A liderança do grupo é exercida pela Profª. Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado, docente
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) e aos Cursos de Graduação
em Ciências Sociais – Ciência Política e Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa/RS-
Brasil.
De forma colaborativa o GEEP está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas do Campus São Borja/RS.
As pesquisas desenvolvidas, e que ainda estão em andamento, têm contado com a participação
de pesquisadoras/es e estudantes vinculados a projetos de Iniciação Científica, com bolsas concedidas
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), CNPq e Universidade
Federal do Pampa, além de estudantes de graduação voluntárias/os.

PRÁTICAS EDUCATIVAS GRIÔ: PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO

8
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fábio Targino1
Lígia Maria Ramalho Ribeiro2
Vilma de Assis Francelino3
Ana Paula Romão de Souza Ferreira4

Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre as ações desenvolvidas no Grupo de Pesquisa
“Práticas Educativas Griô: cultura, gênero e etnias”. Para tal, apresentamos as ações desenvolvidas
pelo grupo durante o período de pandemia, ocasionado pela COVID-19. A proposta do grupo se
baseia no desenvolvimento de práticas educativas Afrocentradas e no conceito Griô. Como destaca
Asante (2009) a ideia de afrocentricidade está relacionada ao projeto epistemológico de lugar,
podendo ser conceituada como uma forma de pensamento, prática e orientação ao africano como
sujeito de sua própria história. Nesse contexto, Asante (2009) elenca algumas caracteríticas essenciais
a um projeto afrocentrado: Interesse pela localização psicológica; Compromisso com a descoberta do
lugar do africano como sujeito; Defesa do elementos culturais africanos; Compromisso com o
refinamento léxico; Compromisso com uma nova narrativa da história da África. Por sua vez, a
palavra griô designa pessoas que possuem um conhecimento popular vasto, uma sabedoria que nasce
com o sujeito griô. Os mestres griôs são poetas, contadores de história, cantores, genealogistas,
pessoas que tem por ofício conhecer e transmitir esse conhecimento atraves da tradição oral
(BRASIL, 2014). Esse conceito nos possibilita um olhar horizontal sobre conhecimentos científicos
e cotidianos, pois é com ele que ressaltamos e valorizamos o conhecimento que vem além da
academia, fortalecendo nossa ancestralidade e coletividade. O grupo de pesquisa atua desde 2016,
tendo sido oficializado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ em 2020. Desde o seu início, o
grupo desenvolve projeto de ensino, extensão e pesquisa no âmbito da Universidade Federal da
Paraíba, UFPB. Na atualidade, propomos reuniões quinzenais através da Plataforma Google Meet.
Para compreender como as ações estão sendo recebidas e vivenciadas pelos componentes do grupo,
realizamos uma pesquisa qualitativa do tipo participante e com análise descritiva dos dados. Como
técnica de coleta dos dados utilizamos a análise de fichas-sínteses, relatório de atividades dos projetos
em curso e a aplicação de um questionário entre os participantes do Grupo. A análise apontou que no
período de quarentena o desafio de desenvolver práticas educativas dialógicas e participativas foi
intensificado, mas que os participantes estão realizando ampliação de leituras referentes ao campo da
Pedagogia Griô e aprendido a lidar com diferentes ferramentas metodológicas e estratégias para
sociabilizar aprendizagens antirracistas e afrocentradas.

Palavras-chave: Grupo de pesquisa; Afrocentricidade; Mestres Griôs.

REFERÊNCIAS

1
Pedagogo/Mestre em Educação/Pesquisador pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-mail:
ftarginopedagogia@gmail.com
2
Licenciada em Letras/Pesquisadora, pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-mail:
ligiarr2010@hotmail.com
3
Licenciada em Letras Libras/Graduanda em Pedagogia com aprofundamento em Educação do Campo, pela
Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-mail: vilma.libras.24@hotmail.com
4
Historiadora/ Mestre e Doutora em Educação/Professora vinculada ao Departamento de Habiltações Pedagógicas,
pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-mail: anarosfe@gmail.com
9
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: ELISA LARKIN
NASCIMENTO (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo:
Selo Negro, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e


Inclusão. História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil. Brasília : MEC/SECADI,
UFSCar, 2014.

ESTUDANTE E TRABALHADORA: UMA ANÁLISE SOBRE A TRAJETÓRIA DE


MULHERES QUE CONDUZEM DUPLA JORNADA

10
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Alessandra Maria Ferreira de Araujo5

Resumo: O objetivo deste trabalho é identificar a partir de uma perspectiva de gênero, os obstáculos enfrentados por
mulheres que conciliam uma dupla jornada de estudar e trabalhar, sendo dois elementos de suma importância para a
vivência humana. A pesquisa pretendeu observar as dificuldades, motivações e desafios nesta trajetória de conciliação,
interpretando como estudantes-trabalhadoras a partir das suas lutas diárias constroem a sua independência pessoal e
financeira. Posto isto, o esboço metodológico constitui-se na pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, destacando
autores e autoras que debatem a temática, com o intuito de problematizar as ideias. Foi constatado que as mulheres que
fazem parte desta categoria, enfrentam muitos dilemas ao tentar conciliar essas duas atividades, das quais geram um
paradoxo que trazem angustias mas também uma percepção de empoderamento e liberdade frente às dificuldades. Assim,
faz-se importante desenvolver a discussão de temáticas acerca de gênero, com enfoque na interface de trabalho e estudo,
destacando o protagonismo da mulher em meio as suas vivências.

Palavras-chave: Mulheres; Estudantes-trabalhadoras; Obstáculos; Empoderamento.

REFERÊNCIAS
BEATRIZ MARQUES, Silva, SILVA, Marcos Antonio da. Trabalhadores-alunos: motivações e
desafios que configuram um cenário de luta. I Encontro Internacional de Gestão, Desenvolvimento
e Inovação. 12 a 14 de setembro de 2017 –Naviraí –MS.

BEAUVOIR, SIMONE. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Traduçao: Difusão Européia do


Livro, São Paulo, 1967.

NYEDJA ABRANTES, Nara Furtado de; et al. Trabalho e Estudo: uma conciliação desafiante. In:
Fórum Internacional de Pedagogia, 4, 2012, Paraíba-PI, Anais... Campina Grande: Realize, 2012,
p. 1-12.

PAIVA, Gleydson Felipe Duque de. Mulher e Trabalho: mais que independência financeira,
conquistas de espaços de igualdade. Seminário Internacional Fazendo Gênero. Florianópolis,
2017.

A DIMENSÃO DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA REGIÃO DA


FRONTEIRA OESTE DO RIO GRANDE DO SUL

5
Graduanda do Curso de Ciências Sociais, pela Universidade do Estado do Pará, campus X.
araujoalee@outlook.com
11
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Vanessa Salaibe Mota6
Cristina dos Santos Lovato7

Resumo: Este trabalho se trata de uma revisão da literatura em que é desenvolvida a discussão sobre
o fenômeno da violência contra a mulher na região da fronteira oeste, tema discutido anteriormente
em uma pesquisa para trabalho de conclusão de curso intitulada Análise da violência contra mulher
no município de Itaqui/RS. Aqui, a finalidade é ampliar o levantamento bibliográfico que
fundamentou a referida pesquisa de modo a expandir a discussão teórica proposta e contextualizar a
dimensão social da violência contra a mulher em uma perspectiva histórica. Além disso, verifica-se
a relação entre esses aspectos com o aumento dos índices de violência contra a mulher. O fenômeno
da violência contra a mulher pode ser considerado um reflexo das sociedades antigas de caráter
patriarcalista e possuidoras de uma postura machista e excludente, que define socialmente a mulher
como inferior ao homem. As questões levantadas aqui parecem corroborar com estudos prévios que
destacam o papel da cultura como uma das fontes da violência.

Palavras-chave: Violência; Mulher; Discurso; Patriarcado

REFERÊNCIAS

LEITE, Renata; NORONHA, Rosangela. A violência contra a mulher: herança histórica e reflexo das
influências culturais e religiosas. Revista Direito & Dialogicidade, vol.6, n.1, jan./jun. 2015.

Itaqui/RS. 2018. 43 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Bacharelado Interdisciplinar


em Ciência e Tecnologia. Fundação Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus XXXX,
2018.

SOLNIT, Rebeca. A mãe de todas as perguntas. ed. São Paulo: SCHWARCZ S. A, 2017.

O SUBEMPREGO E A VULNERABILIDADE DOS IMIGRANTES FRENTE A


EXPLORAÇÃO DOS EMPREGADORES NO BRASIL

6
Bacherela Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, pela Universidade Federal do Pampa. Campus Itaqui/RS. E-
mail:vanessasalaibe23@gmail.com
7
Dra. Letras, professora pela Universidade Federal do Pampa. Campus Itaqui/RS. E-mail:cristlovato@gmail.com
12
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Murilo Coelho Grizza8
Marcelle Perlin Willms9
Alana Taise Castro Sartori10
Nelci Lurdes Gayeski Meneguzzi11

Resumo: Este resumo aborda o tema do subemprego dos imigrantes e sua vulnerabilidade no Brasil,
frente a exploração dos empregadores. O Brasil, no decorrer de sua história, principalmente nos
últimos anos, vem sendo um grande acolhedor de imigrantes e/ou refugiados. Este fenômeno
migratório ocorre por diversos motivos, seja em virtude de problemas políticos, econômicos e sociais
nos países de origem, ou pela oferta de melhores possibilidades de vida e crescimento econômico
pessoal no Brasil. Ainda que o governo brasileiro proporcione ao imigrante um relativo apoio
institucional (seja por meio de políticas estatais, de ONGs ou de organizações religiosas ou
filantrópicas), é preciso compreender que a situação do imigrante em território brasileiro é de
vulnerabilidade, pois ele se encontra submetido a uma ordem jurídica, econômica e social diversa
daquela de sua origem, bem como, em muitos casos, encontra-se em situação de pobreza. Nas raras
oportunidades em que são disponibilizados trabalhos aos imigrantes, enfrentam-se questões de
exploração. Em muitos casos, os imigrantes acabam abraçando a primeira oportunidade que lhes
aparece e, geralmente, por trás dessas oportunidades, está a mão de obra barata, trabalhos que não
respeitam a legislação trabalhista nacional, tampouco os direitos da pessoa humana, muitos em
condições análogas ao trabalho escravo. Em muitos casos, o empregador, mesmo conhecendo os
direitos relacionados aos empregados, acaba tirando vantagem de pessoas nessa condição de
vulnerabilidade. Entende-se que o imigrante não possui muitas alternativas, visto que políticas
públicas brasileiras são escassas nesta área. Da mesma forma, a relação de poder existente entre
empregados e empregadores, devido principalmente ao poder econômico envolvido na relação
trabalhista, muitas vezes impede que o imigrante, submetido a condições de trabalho precárias,
procure auxílio dos órgãos públicos brasileiros. Ademais, vale considerar que, as condições de
trabalho em que pode se encontrar os imigrantes, mesmo sendo de forma degradante perante o senso
de crítica de uma pessoa com nacionalidade brasileira, pode ser melhor do que os mesmos imigrantes

8
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI, campus de Santo
Ângelo. E-mail: murilocoelhogrizza@gmail.com.
9
Acadêmica do quarto semestre do curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI, campus Santo Ângelo. Pesquisadora voluntária no projeto de pesquisa "CRISÁLIDA: direito e arte,
do curso de graduação em Direito da mesma instituição. E-mail: marcelleperlin@gmail.com.
10
Mestranda e bacharela pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de
Santo Ângelo. Bolsista CAPES, na modalidade PROSUC/TAXA. Membro do grupo de pesquisa vinculado ao
CNPq “Novos Direitos em Sociedades Complexas”. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6015-7371. Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3072936815192617. E-mail para contato: alana_t.c._sartori_@hotmail.com.
11
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UNIJUI, vinculada à linha de pesquisa do
PPGDH/UNIJUÍ “Democracia, Direitos Humanos e desenvolvimento”; orientanda do Prof. Dr. Gilmar Antônio
Bedin e coorientanda da Profª. Dra. Denise Pires Fincato. Mestra em Direito pela Universidade de Caxias do Sul -
UCS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, pelo Complexo de Ensino Superior de Santa
Catarina / CESUSC. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo - UPF. Advogada.
Docente de Ensino Superior com experiência na área de Direito: Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e
Direito Previdenciário. Atualmente é docente do Curso de Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, nos campus de Ijuí, Santa Rosa e Três Passos e na Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI- Campus de Santo Ângelo, RS. Orcid 0000-0001-9770-8395. E-mail:
nelcimeneguzzi@hotmail.com.
13
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
viviam em seu país de origem, mas não pode ser chamando de digno. Assim, há um próprio embate
acerca da conscientização dos imigrantes acerca de seus direitos enquanto trabalhadores em território
brasileiro, pois, em muitos casos, podem temer que, caso requeiram mais direitos, percam seus postos
de trabalho e sua parca fonte de renda para subsistência. Neste sentido, a discussão acerca dos
trabalhadores imigrantes no Brasil é delicada, e pode adquirir contornos mais indefinidos quando se
trata de imigrantes ilegais. É indispensável compreender que o Estado tem responsabilidade pela
acolhida a estrangeiros e deve, portanto, criar políticas públicas no que tange a qualificação e
disponibilização de empregos dignos aos imigrantes, bem como manter o contato periódico e
constante com os mesmos, zelando pelo seu convívio digno em sociedade.

Palavras-chave: Imigrantes; Empregadores; Exploração, Direito do Trabalho;

REFERÊNCIAS
BAENINGER, Rosana et al (org). Imigração Haitiana no Brasil. Jundiaí: Paco Editoral, 2016. 684p.
MPT – Ministério Público do trabalho. Imigrantes. Disponível em: https://mpt.mp.br/. Acesso em: 05
jul. 2019.

PORTAL CONSULAR. Apoio ao Imigrante. Disponível em:


http://www.portalconsular.itamaraty.gov.br/apoio-ao-imigrante. Acesso em: 05 jul. 2019.

PRECARIEDADE MENSTRUAL: O ESTADO BRASILEIRO NA PROMOÇÃO DA


IGUALDADE MATERIAL

14
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Rhoana Lersch Oliveira12

Resumo: O presente trabalho versa sobre a precariedade menstrual e a constitucionalidade de


políticas públicas referentes a conscientização sobre a menstruação e a universalização do acesso por
meio da distribuição de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade. Os objetivos
específicos da pesquisa tratam sobre a definição da precariedade menstrual, entendendo a saúde
menstrual como parte da integridade corporal dos sujeitos e, portanto, saúde integral, como se percebe
esse problema no contexto brasileiro e se tal inviabiliza a igualdade entre os gêneros e, logo, se há
violação do princípio da igualdade presente na Constituição de 1988 na proposição dessa política
pública. A pesquisa fez uso do método qualitativo por meio de pesquisa bibliográfica de caráter
exploratório e estatístico. Ademais, analisou-se os projetos de lei existentes em território brasileiro,
em âmbito estadual e federal, acerca da questão para perceber o modo como qual tem se pensado
sobre a implementação da política em contexto nacional. Enfim, inferiu-se que a promoção de
discriminações positivas é fundamental para obter não somente a igualdade formal, mas sim a
material entre os sujeitos de modo que a implementação da política pública busca combater a
desigualdade entre os gêneros e, portanto, possibilitar a igualdade. Além disso, percebeu-se a
presença desse debate na câmara dos deputados e nas assembleias legislativas estaduais a partir da
análise de quatro projetos de lei existentes. Ademais, concluiu-se que enquanto alguns projetos
objetivam a distribuição dos absorventes em locais específicos, outros buscam implementar, além da
distribuição ampla, frentes relacionadas à educação e à universalização.

Palavras-chave: Políticas Públicas; Precariedade Menstrual; Igualdade Material.

REFERÊNCIAS

CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva


feminista. Physis, Rio de Janeiro , v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996 .

Available from . Kayser GL, Rao N, Jose R, Raj A. Water, sanitation and hygiene: measuring gender
equality and empowerment. Bull World Health Organ. 2019; 97(6):438-440.

MATO, Maíra Mesquita. Análise crítica sobre a relação entre o feminismo e o direito penal. Revista
Direito Diário, Fortaleza, v.1, n.1, jan/jun. 2018.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da


isonomia. Novos Estudos Jurídicos, v.1 - n. 2 - p. 77-92 / jul-dez 2008.

EPIDEMIA E IMPRENSA: AIDS NAS REPORTAGENS DA REVISTA MANCHETE NA


DÉCADA DE 1980

12
Graduanda do curso de Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
rhoanalersch@gmail.com
15
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Frederico Renan Hilgenberg Gomes13

Resumo: A atual pesquisa busca entender como os discursos midiáticos na Revista Manchete
representaram a epidemia de AIDS dos anos 1980. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida é o
estágio mais avançado causado pelo vírus HIV, onde o sistema imunológico é atacado deixando o
corpo suscetível a doenças oportunistas (BRASIL). Os primeiros casos no Ocidente ocorreram nos
Estados Unidos, no fim da década de 1970, deixando toda a população alarmada com mais uma
doença altamente infeciosa (DILENE NASCIMENTO, 2005). A Revista Manchete iniciou suas
atividades em 1952 e circulou nacionalmente até 2007, sendo uma das principais revistas da segunda
metade do século passado (GREYCE NASCIMENTO, 2013; PÁDUA, 2015). A Manchete publicava
sobre tudo desde desfiles de carnaval e vida dos famosos, até o jogo dos poderes e temas científicos,
se tratando de ciência a maior parte do material da revista tratava sobre biologia e saúde (ANA
ANDRADE et al., 2001), mostrando assim como a revista possuía uma importância, e interesse, na
cobertura da epidemia. A parte da revista que mais abordou sobre a AIDS é a área de saúde, contudo
não se restringia a isso, tendo entrevistas, descobertas cientificas sobre a doença e artigos de opinião.
Para o levantamento foi utilizado o acervo on-line da revista, que pode ser encontrado na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. O objetivo da pesquisa era sistematizar as reportagens da referida
revista sobre HIV/AIDS. Utilizando os termos “HIV”; “AIDS”; e “câncer gay”, foram levantadas 247
reportagens sobre a epidemia entre os anos de 1982 a 1990, 40 desses resultados são cartas de leitores.
Os meios de comunicação foram os principais portadores de informações da epidemia para o grande
público (DIAS, 2012). Tendo em vista essa importância dos meios de comunicação para a
identificação da infecção sexualmente transmissível (IST), percebe-se como as pessoas reconheceram
a epidemia e a significaram. O estigma se define como um atributo depreciativo de quem carrega esse
sinal e a sociedade utiliza tal sinal para desqualificar um determinado grupo de indivíduos (MARIA
ALMEIDA; LILIANA LABRONICI, 2007). Dessa forma a estigmatização reforça as desigualdades
sociais, uma vez que marca a diferença do que faz de alguém estar no grupo dos estigmatizados, ou
dos “normais”. O conceito de estigma é fundante nessa pesquisa pois permite perceber como a
sociedade via as pessoas portadoras do vírus. No auge da epidemia, não era raro encontrar assertivas
estigmatizantes feitas a homossexuais e travestis, sendo considerados como os responsáveis pelo
surgimento da doença, pois eram praticantes de atividades “degradantes”, como a promiscuidade e o
sexo anal (DIAS, 2012). A noção de “grupo de risco” deve ser problematizada, pois ela surge no meio
médico para identificar quais seriam os grupos mais afetados pela epidemia. Contudo o portador do
vírus passa a ser culpabilizado por sua condição de soropositivo devido a suas práticas amorais, como
o sexo anal, promiscuidade, prostituição e uso de drogas (SUSAN SONTAG, 1989).

Palavras-chave: História e Saúde; HIV/AIDS; Revista Manchete; Doença; Estigma.

REFEREÊNCIAS

ANA ANDRADE, Maria Ribeiro de; CARDOSO, José Leandro Rocha. Aconteceu, virou manchete.
Revista brasileira de História, v. 21, n. 41, p. 243-264, 2001.

13
Graduando do curso de Licenciatura em História, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, campus
Uvaranas.. E-mail: frhg,fred@gmail.com
16
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GREYCE NASCIMENTO, Falcão do. A Imprensa a Serviço do Golpe: O AI-5 nas páginas da revista
manchete (1968-1979). In: Simpósio Nacional de História 27 – Conhecimento histórico e diálogo
social, 2013, Natal, RN. Anais (on-line). Natal, 2013. Disponível:
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364510416_ARQUIVO_GREYCEFALC
AO.pdf Acesso em 30 ago de 2020.

DIAS, Cláudio José Piotrovski. A trajetória soropositiva de Herbert Daniel (1989-1992). 2012. 133
f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências) – Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. DILENE
NASCIMENTO, Raimundo do. As pestes do século XX: tuberculose e aids no Brasil, uma história
comparada. Editora Fiocruz, 2005.

MARIA ALMEIDA, Rita de Cassia Barreto; LILIANA LABRONICI, Maria. A trajetória silenciosa
de pessoas portadoras do HIV contada pela história oral. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, p. 263-
274, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em:


http://bvsms.saude.gov.br/dicas-em-saude/2409-hiv-e-aids. Acesso em: 30 Ago. 2020.
PÁDUA, Gesner Duarte. Manchete: a cortesã do poder. Revista Brasileira de História da Mídia, v. 2,
n. 2, 2015.

SUSAN SONTAG. AIDS e suas metáforas. Companhia das Letras, 1989

REINVENTANDO O CUIDADO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE: NOVAS


TECNOLOGIAS NA COVID 19

17
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Renan Mendonça Alves14
Valentine Cogo Mendes15
Valquíria Toledo Souto16

Resumo: Este resumo versa sobre percepção do/as pesquisador/as a respeito da experiência
intervenção grupo de apoio remoto, criado no ano de 2020 no aplicativo whatsapp em uma Unidade
Básica de Saúde de Santa Maria (RS) no contexto da COVID 19 (GUERRA, et.al. 2020 s/p). O
objetivo do trabalho é discorrer sobre a utilização de novas tecnologias digitais na Atenção Primária
à Saúde (APS) no período de pandemia COVID 19 a partir das residentes que atuam na porta de
entrada do Sistema Único de Saúde (SUS). Para elaboração do presente resumo se utilizou o método
materialista dialético crítico, que tem entre suas categorias historicidade, totalidade, contradição e
mediação. Sendo que tais reflexões foram amparadas por registros em diários de campo, elaborados
a partir da participação nos Seminários Ampliados do Programa de Residência Multiprofissional
Integrada (PRMI) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e de revisão bibliográfica sobre
a temática. Entre os resultados se pontua: 1) Reestruturação criativa do processo de trabalho da
Equipe Multiprofissional na APS; 2) Constituição e garantia de um espaço de acolhimento e suporte
às demandas dos/as usuários/as; 3) Novas tecnologias enquanto mediação do contexto de isolamento
e distanciamento social. O presente trabalho aponta que experiências do grupo de apoio no Whatsapp,
por exemplo, se constitui como resistência da classe trabalhadora nesse contexto de escassez de
atendimento presencial na Política de Saúde; dessa forma promovendo ainda forma diferenciada a
continuidade das ações de garantia do direito aos serviços de saúde com o atendimento remoto da
equipe multiprofissional. Destaca-se que sublinhada pelo resumo, evidencia que a garantia do
acolhimento se constitui como dispositivo de gestão do cuidado, como estratégia de prevenção,
promoção em saúde. Contemplando a dimensão técnico operativa, essa nova forma de trabalho
emerge como pauta do atual contexto, introduzindo a necessidade de apropriação e adensamento
desse fazer profissional multiprofissional. O trabalho apresenta provocações para novas pesquisas
que objetivem a qualificação das intervenções no Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave: Atenção Primária em Saúde; Novas Tecnologias; COVID 19.

14
Assistente Social Residente no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) pelo Programa de Residência
Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ na Universidade
Federal de Santa Maria UFSM/RS campus sede. Assistente Social pela Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) campus, São Borja (RS). Integrante do Grupo de Pesquisa: Educação Direitos Humanos e Fronteira.
E-mail: renan12nio@gmail.com
15
Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente
Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada
pela UFSM/RS. E-mail: valentinecmendes@gmail.com
16
Docente na Faculdade Dom Alberto (Santa Cruz do Sul). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da UFSM/RS. Tutora de campo e de núcleo do Programa de Residência Multiprofissional Integrada
em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ UFSM/RS. Mestra em Enfermagem pelo
Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente Especialista em Saúde Mental pelo Programa
de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada pela UFSM/RS. Integrante do Grupo de
pesquisa Cuidado em Saúde Mental e Formação em Saúde, nas linhas de pesquisa: Saúde mental e o uso de
substâncias psicoativas; Educação e Formação em Saúde. Integrante do Núcleo de Estudos em Metodolodias
Participativas (NEMP). Membro do Centro Regional de Referência de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas da
Região Centro do Rio Grande do Sul. E-mail: valquiriatoledo@gmail.com
18
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

BRASIL Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências. 1990a. BRASIL. Lei Nº 8.142, de 28 de Dezembro de 1990. Dispõe sobre a
participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. 1990b.

GUERRA, C. R; MAZARRO, C.D; MONTAGNER, A; AVILA, E. F. Plano de Atividades Práticas.


R2. Área de concentração: Atenção em Saúde Mental - Unidade Básica de Saúde: Walter Aita .
Programa de Residência Multiprofissional Integrada. Universidade Federal de Santa Maria / UFSM
(RS). 2020.

MANGINI, F. N. R. O conhecimento profissional do Assistente Social: tecnologia para a


transformação social. Tese (Doutorado em Serviço Social), Programa de Pósgraduação em Serviço
Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

MERHY, E. E.; FRANCO, T. B. Por uma Composição Técnica do Trabalho Centrada nas
Tecnologias Leves e no Campo Relacional. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, 2003.

ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA DE SANTA MARIA (RS): DESAFIOS À


GARANTIA DE DIREITOS LGBTTIQ+

19
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Renan Mendonça Alves17
Valentine Cogo Mendes18
Valquíria Toledo Souto19

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão teórico-crítica acerca dos desafios da
garantia de direitos à população LGBTTIQ+, no contexto da atenção primária à saúde de Santa Maria
- RS. Trata-se de uma pesquisa documental a partir de análise dos planos de ação e relatórios de
equipes de residentes do Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde da
Universidade Federal de Santa Maria. Tais documentos são de acesso público, estão disponíveis no
site da referida instituição. Os documentos analisados reúnem informações referentes as intervenções
junto a população LGBTTIQ+ relativa ao período de 2012 a 2020. A partir de suporte para as
discussões teóricas em revisão de literatura atinente ao tema e análise dos documentos, sob a
perspectiva do método dialético crítico, que tem entre suas categorias a historicidade, totalidade,
contradição e mediação, os principais achados foram: a) baixa cobertura das Estratégia Saúde da
Família (ESF) ; b) Fragmentação da linha de cuidado no processo de garantia de direitos a população
LGBTTIQ+; c) Intensificação das expressões da questão social no cuidado a população LGBTTIQ+
no cenário da pandemia COVID 19. Diante dos resultados identificados aponta-se que o
desfinanciamento do Sistema Único Saúde promovido pela Emenda Constitucional nº 95, pode ter
impactado na não expansão das ESF(s) no município, sendo urgente para a garantia de direitos a
derrubada dessa emenda e a retomada do financiamento desse modelo de cuidado, que se constitui
enquanto porta de entrada no sistema e locus de garantia de direitos. A necessidade da
desfragmentação da linha de cuidado, a ser contruída pelo estabelecimento de melhor comunicação
entre os pontos de atenção nas ESF(s) e do processo de cuidado longitudinal, integral e universal, que
tem maior possibilidade de ser viabilizado por meio do investimento em dispositivos da clínica
ampliada, como os Projetos Terapêuticos Singulares. Considerando, ainda, a exacerbação das
vulnerabilidades no contexto sanitário atual, se sublinha a importância na implantação de um Plano
Municipal de caráter urgente, abrangente, dinâmico para a efetiva garantia dos direitos a população
LGBTTIQ+ de Santa Maria (RS). Espera-se que as provocações contidas no presente estudo,
incentivem novas pesquisas sobre a temática e que colaborem para promoção de novas ações de
intervenção junto a comunidade local, na perspectiva de efetivação dos direitos.

17
Assistente Social Residente no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) pelo Programa de Residência
Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ na Universidade
Federal de Santa Maria UFSM/RS campus sede. Assistente Social pela Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) campus, São Borja (RS). Integrante do Grupo de Pesquisa: Educação Direitos Humanos e Fronteira.
E-mail: renan12nio@gmail.com
18
Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente
Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada
pela UFSM/RS. E-mail: valentinecmendes@gmail.com
19
Docente na Faculdade Dom Alberto (Santa Cruz do Sul). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da UFSM/RS. Tutora de campo e de núcleo do Programa de Residência Multiprofissional Integrada
em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ UFSM/RS. Mestra em Enfermagem pelo
Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente Especialista em Saúde Mental pelo Programa
de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada pela UFSM/RS. Integrante do Grupo de
pesquisa Cuidado em Saúde Mental e Formação em Saúde, nas linhas de pesquisa: Saúde mental e o uso de
substâncias psicoativas; Educação e Formação em Saúde. Integrante do Núcleo de Estudos em Metodolodias
Participativas (NEMP). Membro do Centro Regional de Referência de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas da
Região Centro do Rio Grande do Sul. E-mail: valquiriatoledo@gmail.com
20
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Estratégia Saúde da Família; LGBTTIQ+; Garantia de Direitos.

REFERÊNCIAS

Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1 de Dezembro de 2011. Institui, no âmbito do


Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Brasília: Ministério da Saúde;
2011.

Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política


Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção
Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017.

Melo APL. “Mulher Mulher” e “Outras Mulheres”: gênero e homossexualidade(s) no Programa de


Saúde da Família [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro; 2010

Rodrigues M, Ferro LF. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicol
Cienc Prof. 2012; 32(3):552-63.

LESBOFOBIA: VIOLÊNCIAS E RESISTÊNCIAS

Taíse Segobia
21
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Caroline Ribeiro

Resumo: O presente exposto, a partir de uma pesquisa bibliográfica, tem por objetivo conceituar o
termo “lesbofobia” e trazer para discussão reflexões acerca do assunto. Sendo assim, lesbofobia se
caracteriza como diferentes formas de negatividade em relação às mulheres lésbicas como indivíduos,
casal ou como um grupo social. Diante disso, é importante enfatizar que o Brasil é um dos países que
mais mata pessoas LGBTQ+. Além da própria problemática da lesbofobia, o Brasil sofre com a falta
de registro dessas violências praticadas contra as mulheres lésbicas, pois na maioria das vezes esses
crimes são notificados apenas em redes sociais, diminuindo cada vez mais a visibilidade dessas
mulheres e da própria violência. Como o feminicidio, o lesbocídio é motivado pela misoginia (ódio
a mulheres), porém seguem lógicas diferentes. Enquanto o feminicídio generalizado é, na maior parte
das vezes, um crime doméstico, 83% dos crimes contra lésbicas são cometidos por homens que não
necessariamente possuem algum vínculo familiar ou grau parentesco com a vítima, mas que têm
algum tipo de aversão a lésbicas de modo geral (GOLÇALVES, 2018). O perfil das vítimas variam
entre jovens de 20 a 24 anos, sendo São Paulo o Estado que concentra o maior número de assassinatos
e suicídios de lésbicas, representando 20% dos registros dos últimos quatro anos de acordo com os
registros. Consequentemente, a região sudeste é que possui mais casos entre 2014 e 2017. Uma
característica comum a todas as regiões do país é que mulheres lésbicas têm o dobro de chance de
serem assassinadas em regiões de interior. Assim, uma das bandeiras levantadas pelas lésbicas é o
direito de circular por espaços públicos sem sofrer agressões por serem quem são, além do direito de
existir. O preconceito é o responsável por um grande número de mortes que poderiam ser evitadas. A
catalogação dos casos de lesbocídio deixou evidente o acúmulo preconceitos sobre uma mesma
pessoa a torna mais vulnerável, e algo deve ser feito contra essas agressões que podem levar a mortes
(GONÇALVES, 2018). Dessa forma, é importante que existam políticas públicas que defendam os
direitos de todas as pessoas LBGTQ+ no país, para que as mesmas tenham o direito de ir e vir, de
existir, de ser quem são e acima de tudo, que tenham a liberdade de amar.

Palavras-Chave: Lesbofobia; Violência; Resistência.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Juliana. Morta por ser lésbica: um dossiê inédito sobre o lesbocídio no brasil. Acesso
em: 07 jul 2020. Disponível em .

SERVIÇO SOCIAL E A PROTEÇÃO SOCIAL NA PERSPECTIVA DA SAÚDE


MENTAL

22
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Taise Martins Segobia
Caroline Ribeiro

Resumo: O referido trabalho tem como objetivo realizar um reflexão da gênese do serviço social no
âmbito da proteção social voltada a saúde mental, sendo um pesquisa de cunho bibliográfica. O
serviço social no âmbito da saúde mental está ligado a previdência, vinculado a política social. A
profissão surge no Brasil na década de 1940 com caráter higienista, só em 1964 com a mudança do
sistema previdenciário na saúde mental dos indigentes para os trabalhadores e seus dependentes em
internação asilares com a prestação de serviços sociais benéficos à lógica dos manicômios. Na década
de 1990, com estrutura assistencial e equipe multiprofissional e com visão social, foi aproveitada pelo
movimento de reforma psiquiátrica. O serviço social em saúde mental no Brasil não partiu de
necessidades terapêuticas ou clínicas, parte de uma modernização conservadora do Estado brasileiro
em um período ditatorial em busca de legitimação de áreas críticas, como a atenção a saúde dos
trabalhadores no sistema previdenciário. A Saúde Mental está ligada à Questão Social, e é por essa
razão que o serviço social está na Saúde Mental, historicamente e atualmente. O movimento da
reforma psiquiátrica representa um grande avanço nas práticas em Saúde Mental, em paralelo com as
ideias do projeto ético-político do serviço social, ambos falam em cidadania, a reabilitação
psicossocial por meio de programas de trabalho, habitação, lazer, os serviço socioassistenciais são
essenciais para um serviço Integralizado. O movimento da reforma psiquiátrica está presa ao
neoliberalismo, que exige a diminuição dos investimentos hospitalares e extra-hospitalares
alternativos (não asilares) visando diminuir custos, e, tendenciosamente traz de volta a filantropia, as
terceirizações e as parcerias público-privado, que vão de encontro às ideias da reforma psiquiátrica
impossibilitando as suas implementações e efetivações por haver um desmonte das estruturas. O
profissional de serviço social na saúde mental atende as demandas dos usuários, a intervenção
geralmente ocorre diante das necessidades postas para manter o usuário no tratamento dado pelos
outros profissionais de saúde mental mantendo o usuário no processo terapêutico, para que os
objetivos profissional do serviço social com a instituição e que tenha um modelo psiquiátrico que
contemplem uma visão social, onde veja a cidadania como elemento para a reabilitação psicossocial
do usuário. Cabe ao Assistente Social, ir além dessas demandas institucionais e enfrentar esses
desafios que se colocam na sua realidade de trabalho. Usufruir da sua capacidade crítica e reflexiva
da realidade realizando o seu trabalho de maneira que ele possa analisar o contexto social no qual o
seu usuário está inserido, buscando compreender a relação deste usuário com a sociedade que o cerca.
A maior dificuldade que o serviço social encontra para atuar na área da saúde mental é a falta de
recursos financeiros por parte dos investimentos públicos na Saúde, Previdência e Assistência Social,
essa situação limita muito o atuar profissional do Assistente Social. Com a redução dos direitos
previdenciários os profissionais ficam de mãos atadas para realizar a reabilitação psicossocial.

Palavras-chave: Serviço Social; Saúde Mental; Proteção Social.

23
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AS “QUITANDAS” E A BUSCA POR AUTONOMIA DE MULHERES CAMPONESAS DE
JAGUARI – RS20

Renata Piecha21

Resumo: A presente proposta tem como objetivo refletir acerca do trabalho e das formas de
agenciamentos cotidianos de mulheres camponesas da comunidade de Rincão dos Alves, interior do
município de Jaguari, região central do Rio Grande do Sul. O municipio de Jaguari recebeu imigrantes
europeus de diversas nacionalidades durante o projeto de migração iniciado no Brasil no primódios
do século XIX. Atualmente, a comunidade de Rincão dos Alves é composta, majoritariamente, por
descendentes de imigrantes alemães, italianos e poloneses que, na atualidade, se autodenominam
como colonos/as. Relacionando-se à lógica do campesinato, em propriedades que possuem em média
25 hectares, norteadas pela agricultura familiar, a principal fonte de renda dessas familias é a
fumicultura. Utilizando a análise etnografica, observamos que o trabalho das camponesas da
comunidade de Rincão dos Alves é marcado por uma extenuante jornada laboral. A divisão sexual
do trabalho, nessa comunidade, se estrutura por gênero e geração e tem como base a hierarquia
familiar. As funções destinadas às mulheres camponesas vão desde as atividades relacionadas ao
âmbito reprodutivo, envolvendo as atividades domésticas, relacionando-se a manutenção da rotina
camponesa, às atividades que envolvem o cuidado. Estas camponesas, ainda, são as principais
responsáveis por uma dinâmica que se desenvolve no entorno do âmbito doméstico, como uma
extensão deste, que abarca atividades que são consideradas de responsabilidade e domínio feminino.
Ademais, possuem participação ativa na esfera produtiva, no caso em questão, na cultura do tabaco,
uma atividade marcada pela penosidade do trabalho. Em ambos estes espaços o trabalho feminino
não é reconhecido, pois a esfera reprodutiva é, históricamente, desvalorizado em nossa sociedade. Já
o trabalho desenvolvido pelas mulheres no espaço produtivo, isto é, na lavoura, é denominado de
“ajuda” ao marido. Essa falta de reconhecimento reflete na desvalorização do papel social
desempenhado por estas mulheres e, para além, mina a sua autonomia, legitimando, ainda a
destribuição desigual dos bens entre os membros do grupo familiar. Partindo disto, busca-se
compreender as formas de agenciamento, isto é, as formas de resistência cotidianas, adotadas por
essas camponesas nesse contexto ainda marcado pelas diferenças de gênero. Essa forma de
agenciamento ocorre quando estas mulheres buscam formas de obterem um ganho que seja por elas
administrado, visto que em uma sociedade capitalista o acesso ao dinheiro se caracteriza como algo
de grande significância. São das esferas consideradas femininas que produzem e comercializam
produtos que são por elas denominados de “quitandas”, sendo compostos por verduras, frutas, queijo,
ovos, entre outros produtos. Com a comercialização de suas “quitandas” visam uma maior autonomia
que lhes garante ressignificar seu papel como mulheres e camponesas, permitindo que vivenciem uma
vida mais digna e possibilitando uma trasnposição, ainda que tímida, das barreiras de gênero.

Palavras-chave: Gênero; Campesinato; Trabalho; Agenciamento

20
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
21
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Santa Maria. E-mail:
renatapiecha3@gmail.com
24
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS BRUMER, A. Mulher e desenvolvimento rural. In: PREVESLAU, C.; ALMEIDA,
F. Rodrigues; ALMEIDA, J. A.. (Orgs.). Mulher, família e desenvolvimento. Santa Maria:
EDUFSM,1996. BRUMER, A.; PAULILO, M. I.. As agricultoras do Sul do Brasil. Revista de
Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, V. 7, 2004.

FEDERICI, S. O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante,
2017.

KERGOAT, D.. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, H.;
FRANÇOISE, L.; DOARÉ, H.; SENOITIER, D. (Orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora
UNESP: São Paulo, 2009.

ORTNER, S. B.. Subjetividade e crítica cultural. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 13,
n.28, p. 375- 405, jul./dez. 2007.

PAULILO, M. I. S.. O peso do trabalho leve. Revista Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 5, n.28, 1987.

PAULILO, M. I. Trabalho familiar: Uma categoria de análise esquecida. Revista de Estudos


Feministas. Florianópolis: UFSC. V.12, n.1, p.229-252, 2004.

SCOTT, J.. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat,
Maria Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989.

SEYFERTH, G. Campesinato e Estado no Brasil. Revista MANA, vo. 17, n° 2, Rio de Janeiro: 2011.

SEYFERTH, G. A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim. 2. ed. Porto Alegre: Editora


Movimento, 1999.

ZANINI, M. C. C.; SANTOS, M. de O.. Colonas Italianas no Sul do Brasil: Estigma e Identidade. In:
NEVES, D. P.; MEDEIROS, L. S. de (Organizadoras). Mulheres camponesas: trabalho produtivo e
engajamentos políticos. Niterói: Altenativa, 2013.

ZELIZER, V. O significado social do dinheiro. In: MARQUES, R., PEIXOTO, J. (Org.) A nova
sociologia econômica: uma ontologia. Oeiras: Celta. 2003.

25
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
INSEGURANÇA ALIMENTAR NA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE: EMERGÊNCIA A
SAÚDE NA COVID 19

Renan Mendonça Alves22


Valentine Cogo Mendes23
Valquíria Toledo Souto24

Resumo: O objetivo do resumo é promover o debate crítico reflexivo sobre os rebatimentos da


insegurança alimentar enquanto emergência à saúde no contexto pandêmico. Trata-se de um ensaio
teórico reflexivo crítico, cuja elaboração pautou-se em diários de campo do pesquisador, elaborados
a partir das vivências no Programa de Residência Multiprofissional Integrada (PRMI) da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e de revisão bibliográfica sobre a temática. No
caminho metodológico se utilizou a perspectiva analítica do método materialista dialético crítico, que
tem entre suas categorias historicidade, totalidade, contradição e mediação. Como resultados, entre
os principais apontamentos, elucida-se: I) Intensificação de situações de urgências e emergências na
(AB) a partir da insegurança alimentar, devido o não acesso a renda promovido pelo isolamento social
compulsório da COVID 19 e pela falta da oferta de aporte nutricional na pela Política de Assistência
Social municipal; II) A demanda por aporte nutricional, enquanto demanda imediata para
profissionais de saúde na COVID 19, a necessidade por acesso a alimentos chegando na Política de
Saúde, devido ser o ponto de atenção com maior capilaridade no território. III) O colapso intersetorial
entre a oferta do aporte nutricional pela Política de Assistência Social e a demanda da população a
partir da EC 95, que promoveu o desfinancioamento das Seguridade Social. A crítica reflexiva
evidencia que para garantia do direito à segurança alimentar, por seguinte o direito à saúde a
população , o enfrentamento às determinações conjunturais e estruturais do modo de produção
capitalista são indissociáveis do enfrentamento da COVID 19. Para isso se a aponta emergência da
retomada do financiamento sustentável da Seguridade Social e a superação da austeridade econômica
e seus axiomas, aportado no conceito ampliado de saúde. Esse resumo apresenta esse conjunto de
provocações com vistas a qualificar as intervenções no Sistema Único de Saúde (SUS) e instigar as
pesquisas na área.

22
Assistente Social Residente no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) pelo Programa de Residência
Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ na Universidade
Federal de Santa Maria UFSM/RS campus sede. Assistente Social pela Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) campus, São Borja (RS). Integrante do Grupo de Pesquisa: Educação Direitos Humanos e Fronteira.
E-mail: renan12nio@gmail.com
23
Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente
Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada
pela UFSM/RS. E-mail: valentinecmendes@gmail.com
24
Docente na Faculdade Dom Alberto (Santa Cruz do Sul). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da UFSM/RS. Tutora de campo e de núcleo do Programa de Residência Multiprofissional Integrada
em Sistema Público de Saúde - Área de Concentração Saúde Mental/ UFSM/RS. Mestra em Enfermagem pelo
Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM/RS. Residente Especialista em Saúde Mental pelo Programa
de Residência Multiprofissional da UFSM/RS. Enfermeira graduada pela UFSM/RS. Integrante do Grupo de
pesquisa Cuidado em Saúde Mental e Formação em Saúde, nas linhas de pesquisa: Saúde mental e o uso de
substâncias psicoativas; Educação e Formação em Saúde. Integrante do Núcleo de Estudos em Metodolodias
Participativas (NEMP). Membro do Centro Regional de Referência de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas da
Região Centro do Rio Grande do Sul. E-mail: valquiriatoledo@gmail.com
26
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Segurança Alimentar; Aporte Nutricional; Atenção Básica; COVID 19.

DIALOGANDO O DIREITO DE OCUPAR A CIDADE

Paula Mello Costa


Sinara Ferreira das Neves

Resumo: O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual para acessar os recursos
humanos. De acordo com Harvey (2008), o direito à cidade é o direito de mudar a nós mesmos,
mudando a cidade. A propósito, não se trata de um direito individual uma vez que esta transformação,
inevitavelmente, depende do exercício de um poder coletivo para reestruturar os processos de
urbanização. A liberdade de criar, recriar e construir nossas cidades e a nós mesmos é, um dos mais
preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados direitos inerentes à condição humana para uma
sobrevivência digna. Nesse sentido, OCUPAR é um conceito chave e imprescindível, enquanto
movimento de ação coletivo pautado na liberdade, participação, na justiça social e na conquista do
direito à cidade, com base no combate às desigualdades. Não obstante, a organização que temos
afixada hoje nas cidades, é oposta ao exposto acima, onde observamos um aumento da disparidade
social. O reconhecimento desse direito admite a existência de uma carência coletiva, do mesmo modo
que sinaliza e mobiliza um setor de divergências que atualmente tem tido destaque nas disputas
relacionas ao direito à cidade. Desta forma, a fim de problematizar e aprofundar o assunto, O projeto
de Pesquisa "O direito à cidade e os diferentes modos de ocupar o espaço público: O Planejamento
Urbanístico em questão", se propõe a pesquisar e questionar, quais os mecanismos usados pelo
planejamento urbanístico dos municípios de Pelotas e Rio Grande que podem submeter o público ao
ordenamento da iniciativa privada. Tendo como objetivo investigar e observar dados obtidos sobre
as seguintes populações dos dois municípios: população em situação de posse; população em situação
de rua e populações que “sobrevivem” com o trabalho informal. Ao participar deste projeto, apesar
da dificuldade acerca do levantamento de dados, ao que se refere a captação de informações mais
aprofundadas sobre a situação destas populações, devido ao fato dos órgãos responsáveis pelos
municípios não disponibilizarem informações sobre estas populações, está sendo possível elucidar e
comprovar com os dados obtidos até o momento que o direito à cidade, garantido pela Constituição
Federal de 1988, nos artigos 182 e 183 e na Lei 10.257 que trata sobre o Estatuto da Cidade, vem
sendo negado à população. Tal situação evidência a importância e necessidade de discutirmos os
motivos pelos quais a desigualdade na cidade é ignorada pelos mais diversos citadinos e instituições
que definem e regulam códigos de verdade decidindo quem tem direito a cidade.

Palavras-chave: cidade, direito, urbanização, ocupar.

REFERÊNCIAS

HARVEY, David. O Direito à Cidade. Traduzido do original em inglês “The right to the city”, por
Jair Pinheiro. New Left Review, n. 53, 2008.

27
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A RACIALIZAÇÃO DO ECA: UM DEBATE NECESSÁRIO

Ana Carolina de Sá Queiroz25


Caroline de Souza Araújo26

Resumo: Em meio a pandemia do vírus da COVID-19, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)


completou 30 anos, em julho deste ano. Apesar de vários avanços no campo jurídico legal, ainda
possuímos muitas dificuldades em conseguir efetivar no cotidiano de crianças, adolescentes e suas
respectivas famílias, os direitos básicos garantidos nesta legislação. O ECA representa um novo
marco civizatório no campo da infância e juventude no Brasil, ao romper com a Doutrina da Situação
Irregular, através da perspectiva da Proteção Integral, uma vez que compreende as crianças e
adolescentes enquanto sujeitos de direitos, em uma dimensão de universalidade. Destaca-se que o
maior desafio do ECA, na atualidade, seja no sentido de conseguir uma articulação entre todos os
atores do Sistema de Garantia de Direitos, configurando uma ampla e forte mobilização para manter
a juventude negra vida. Avalia-se ser extremamente fundamental racializar o debate em torno do
ECA, pois se não articularmos a discussão do Estatuto através de um olhar sobre esses sujeitos e não
problematizar as formas diferentes e desiguais de acesso as políticas públicas, a partir da questão
racial, teremos um instrumento normativo excelente, todavia reproduzindo o racismo institucional e
estrutural. Através da produção e gestão da morte, considerando o conceito de necropolítica
(MBEMBE, 2018), o Estado Brasileiro tem realizado o extermínio da juventude pobre e negra, por
meio de um projeto societário específico. Diversos estudos e pesquisas têm apresentado indicadores
sociais que mostram as desigualdades sociais e raciais no país; as absurdas distâncias que ainda
separam brancos e não brancos são evidenciadas nas relações diárias de poder e no acesso desigual
às políticas públicas e no gozo dos direitos civis, sociais e econômicos. O racismo, enquanto um dos
elementos da desigualdade social, que se constitui como fundante da sociedade capitalista, é algo que
precisa ser debatido cotidianamente, considerando o mito da democracia racial que vivenciamos há
anos. É latente a compreensão que não iremos avançar na efetivação do ECA e não teremos uma
democracia plena, se não enfrentarmos o racismo e o sistema capitalista. Em que medida podemos
considerar as crianças e adolescentes como efetivamente sujeitos de garantia de direitos, em uma
sociedade permeada pelo racismo estrutural? Dizer que uma família é negligente se torna uma tarefa
fácil, sem considerar que a análise de um modelo de produção e reprodução da questão social no
Brasil, é permeado por resquícios nefastos do escravismo, da colonização e do autoritarismo; Almeida
(2018) já sinalizava a relação intrínseca da discussão sobre raça com a desigualdade social. Em visto
disso, é necessário discutir acerca da necessidade dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos
para crianças e adolescentes de se descolonizarem e se reconhecerem enquanto racista, para que
possamos dá um passo à frente na luta racial, abordando também um debate que articule raça, classe
e gênero. Não há ampliação da democracia, sem considerar a luta antirracial, e o inverso também se
aplica, pois estamos debatendo conceitos analíticos estruturais e fundantes do modo de produção
capitalista. Portanto, racializar o ECA é urgente.

Palavras-chave: ECA; Politícas Públicas; Questão Racial.

25
Mestranda em Serviço Social pela PUC-Rio. carolufrj2006@gmail.com
26
Mestranda em Serviço Social pela PUC-Rio. carol.s.araujo14@gmail.com
28
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BRASIL. Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 27 abr. 2019.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

29
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COLORINDO O ARCO ÍRIS: COMO VEM SENDO PINTADA A DISCUSSÃO SOBRE
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO NOS CURSOS DE SERVIÇO SOCIAL?

Jaqueline de Melo Barros27


Nilza Rogéria de Andrade Nunes28

Resumo: O presente trabalho surge das inquietações emergidas ao longo do cotidiano de trabalho
enquanto docente do ensino superior no Curso de Serviço Social e tem por intuito, compreender como
o debate sobre diversidade sexual e de gênero vem sendo tratado no Ensino Superior, considerando a
formação de futuros profissionais, que lidam com o público LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais, Queer e pessoas Intersex), enquanto usuários dos Serviços Sociais.
Atrevemo-nos indagar se o processo formativo vem ocorrendo de forma plural, crítica, com fins
emancipatórios ou se a discussão sobre sexualidade reproduz a ideologia dominante, seguindo
padrões heteronormativos? Para Butler (2003) a chamada heteronormatividade consiste na imposição
da heterossexualidade como uma norma social, a qual regula a vida social. A obrigatoriedade
configura-se como uma exigência inquestionável, a partir da naturalização materializada pela família,
mídia, religiões, no Estado e em suas instituições. E esta expressão naturalizada e banalizada contribui
para atribuir à sexualidade uma dimensão restritamente privada, uma vez que a dimensão pública é
regulamentada, legitimada como natural para a lógica heteronormativa. Nesse sentido, as demais
expressões da sexualidade humana são rotuladas de desviantes, anormais, contra a ‘natureza humana’,
porque negam a padronização imposta, portanto, ainda que existam devem confinar-se ao privado, ao
invisível. Questionamo-nos ainda: A diversidade sexual e de gênero possui inserção em algum
componente curricular obrigatório, optativo ou é “varrida para debaixo do tapete” ou sucumbida
como tantas outras que tem sua abordagem justificada pelo viés da transversalidade? No campo da
educação, em fins da década de 1990, o debate sobre orientação sexual surge nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de forma gradual a partir dos temas transversais, enfatizando o
respeito à diversidade nas escolas. Enquanto no campo do Serviço Social a discussão ganha folego a
partir da campanha “O Amor fala todas as línguas – O assistente social na luta contra o preconceito:
Campanha Pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual” lançada em 2006, tendo como ápice a
aprovação da Resolução 489 de 2006, a qual institui normas que vedam quaisquer condutas de caráter
discriminatório e/ou preconceituosas por orientação sexual no exercício profissional do serviço
social, além de reforçar o dever deste profissional no combate a práticas que violem os direitos
humanos, o que se constitui como uma relevante ferramenta de luta contra a homofobia, lesbofobia e
transfobia. O que nos remete ao seguinte questionamento: até que ponto a formação profissional em
Serviço Social discute tal resolução, vislumbra sua materialidade e qual o impacto desse
desconhecimento? A pesquisa em curso tem como objetivo problematizar o debate sobre diversidade
sexual e de gênero na formação profissional em Serviço Social, tendo como ponto de partida a análise
dos currículos, os componentes, conteúdos programáticos e as bibliografias adotadas nos cursos de
graduação em Serviço Social em torno dos temas transversais, com ênfase na diversidade sexual e de

27
Doutoranda do Curso de Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail:
profa.jaqueline.barros@gmail.com
28
Pós Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília/professora do curso Curso de Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: n.rogerianunes@gmail.com
30
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gênero, uma vez que o assistente social é um profissional que tem uma atuação orientada pela defesa
de direitos e de forma incondicional dos direitos humanos

Palavras-chave: Diversidade Sexual, Gênero, Formação, Serviço Social.

REFERÊNCIAS
BELLONI, Isaura. A educação superior na nova LDB. In: BRZEZINSKI Iria (org.). LDB
interpretada: diversos olhares se entrecruzam. São Paulo: Cortez, 1997.

BUTLER, J. Problema de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social. 1993.

___. Projeto da Campanha O Amor Fala Todas As Línguas – O assistente social na luta contra o
preconceito: Campanha Pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual. Brasília, 2006.

MESQUITA, Marylucia. Orientação sexual: experiência privada, opressão privada e pública -


um desafio para os direitos humanos IN Cdrom 10º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais
(CBAS), 2001.

SIMÕES NETTO, J. P; ZUCCO, L; MACHADO, M. D. & PICCOLO, F. A.A produção acadêmica


sobre diversidade sexual. Em Pauta, Rio de Janeiro (R.J), vol. 9, nº 28, 2011.

31
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O TECIDO ACROBÁTICO E AS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NAS
AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA DE UMA ESCOLA PÚBLICA EM JUIZ DE FORA/MG

Samuel Moreira de Araujo29


Beatriz Gomes de Souza30
Neil Franco31

Resumo: O universo circense é uma produção cultural que há tempos vem encantando as pessoas.
Por um determinado período histórico, esse foi abafado e não pode ser livre e passar o que tinha de
mais bonito, o improviso e a simplicidade dos seus artistas no picadeiro (SOARES, 1994). Mas, aos
poucos, essa produção cultural, que antes ficava restrita ao núcleo familiar, passou a ser oferecida em
instituições/escolas eespecializadas, permitindo a socialização das produções circenses a um grupo
maior de pessoas. Houve, então, a transição de um circo tradicional para um circo mais moderno, o
show passou a ser um espetáculo, onde grandes artistas se apresentam (BORTOLETO, 2008). Dentre
os aparelhos aéreos mais tradicionais das artes circenses, utilizamos o tecido acrobático, pois esse se
configura como um dos aparelhos de mais fácil aprendizagem, devido a sua maleabilidade e
facilidade de se moldar ao corpo do praticante (CALÇA e BORTOLETO, 2007). De acordo com
uma pesquisa realizada por Batista (2003), a prática do tecido aparece em diferentes contextos formais
e não formais de ensino e também com distintos objetivos. Nesse sentido, ao introduzir as atividades
circenses nas aulas de educação física além de viabilizar o desenvolvimento da imaginação e da
criatividade dos sujeitos participantes, enfatizamos o compromisso da educação física na escola que
tem por objetivo ampliar o conhecimento crítico e as vivências dos alunos a respeito da cultura
corporal de maneira sistematizada por esse campo de conhecimento (COLETIVO DE AUTORES,
1992) e viabilizar possíveis discussões para as questões de gênero e sexualidades necessárias e
urgentes para o referido conteúdo escolar. Dessa forma, buscaremos relacionar a pratica de tecido
acrobatico na escola e nas aulas de educação física ao objetivo deste trabalho que é problematizar
como as acrobacias aéreas em tecido se inserem na escola e como podem provocar discussões a
respeito das questões de gênero e sexualidades em uma escola pública na cidade de Juiz de Fora/MG.
Metodológicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa com análises sustentadas pelos estudos
transviados (BENTO, 2017) e estudos interculturais (CANDAU, 2008). Concluímos nesse estudo
que o binarismo de gênero e heterossexualidade compulsória precisam ser problematizadas e
discutidas nas aulas de educação física, para que possamos ampliar os processos de reconhecimento
das diferenças, e assim, possibilitar que nossos alunos tenham experiências corporais plurais nos
espaços educativos, libertando-se de preconceitos fortemente construídos socialmente e permitindo
uma ampliação dessa emergente e potente área de conhecimento.

Palavras-chave: Circo; Tecido acrobático; Gênero e sexualidade; Educação física; Escola.

REFERÊNCIAS

29
Mestrando em Educação, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: samuca_faefid@yahoo.com.br
30
Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: biag28@gmail.com
31
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, professor do Programa de Pós Graduação em
Educação e do curso de graduação em Educação Física na Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
neilfranco010@hotmail.com.
32
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BATISTA, N. S. O tecido circense como manifestação da cultura corporal: fundamentos
técnicos e metodológicos. 2003. Monografia (Graduação) - Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, 2003.

BENTO, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: UFBA


(2017).

BORTOLETO, M. Introdução a Pedagogia das Atividades Circenses I. São Paulo, ed Fontoura,


2008.

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre


igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.13, n. 37. 2008.

CALÇA, D. e BORTOLETO, M. O tecido circense: fundamentos para uma pedagogia das


atividades aéreas. Revista Conexões, Faculdade de Educação Física, UNICAMP, Campinas, vol. 2,
2007.

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.

SOARES, Carmem Lucia. Educação física, raizes européias e Brasil. Campinas: Autores
associados, 1994.

33
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO EM TEMPO DE COVID-19

Otaviano da Motta Aquino Junior32


Jaina Raqueli Pedersen33

Resumo: O presente texto tem por objetivo problematizar o agravamento da precarização do trabalho
dos entregadores e entregadoras que atuam por meio de aplicativos no cenário de pandemia da
COVID-19. Para isso, o presente trabalho se fundamenta na pesquisa qualitativa e revisão de
literatura. Essa categoria profissional tornou-se fundamental para que parte da população não saia de
casa, de modo a se proteger e não disseminar o coronavírus. Contudo, o aumento do desemprego, não
apenas devido pandemia, tem elevado o número de entregadores diminuindo assim seus rendimentos.
Composta por filhos e filhas do salariato precário, essa categoria profissional, frequentemente
chamada de “motoboys”, mas que inclui também ciclistas, tem negado a aparência que lhe é atribuída,
fixada na figura do “empreendedor de si”. Ao contrário, tais trabalhadores e trabalhadoras têm
denunciado a precarização do trabalho sob o regime da acumulação flexível na forma da uberização
do trabalho. Os rótulos seja de trabalhadores “autônomos” ou “por conta própria” mistificam a real
ausência de seus vínculo empregatícios, o acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários, assim
como o desmonte legislação protetora do trabalho operado no Brasil pelo Estado neoliberal. A
condição de trabalhadores e trabalhadoras sujeitos a entradas e saídas do mercado de trabalho, soma-
se a de trabalhadores a disposição do trabalho intermitente, da subcontratação e de integrantes do
novo proletariado de serviços marcado pelas inovações contraditórias e pelas formas de
estranhamento que constituem a chamada era digital. Os riscos no trabalho desta categoria
profissional incluem desde acidentes de trânsito, que em casos mais graves podem resultar em morte,
sendo que esta também pode ocorrer por conta da exposição a clientes infectados com pelo
coronavírus. São trabalhadores que no mundo do trabalho, vivem as imbricações entre a chamada
precarização salarial gerada pelas formas de contratação e pelas condições trabalho com a
precarização existencial, esta, que invade o modo de vida. A imbricação entre estas formas de
precarização resulta na precarização da pessoa humana, expressão plena do trabalho estranhado em
que tempo livre e tempo do ócio são apropriados pelo capitalismo. Sendo assim, infere-se que na
contramão desta precarização, a categoria profissional não só tem empreendido ações de organização
política por meio de paralisações e debates que reivindicam melhores condições de trabalho e
aumento da remuneração, mas como também questionado as formas de controle impostas pelas
empresas que gerenciam os aplicativos dos setores de entrega.

Palavras-chave: Precarização do Trabalho; Pandemia; Entregadores e Entregadoras de Aplicativo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Dimensões da Reestruturação Produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2.


ed. – Londrina: Praxis, Bauru: Canal 6, 2007.

32
Graduando do curso de Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa-UNIPAMPA, campus São Borja. E-
mail: otavianoaquino.aluno@unipampa.edu.br
33
Professora do curso de Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa-UNIPAMPA, campus São Borja. E-
mail: jainapedersen@unipampa.edu.br

34
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ANTUNES, Ricardo. ADEUS AO TRABALHO?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade
do mundo do trabalho. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006. Disponível em:
<http://www.unirio.br/cchs/ess/Members/renata.gomes/2020.1/servico-social-e-processos-de-
trabalho/Bibliografia/complementar/ANTUNES%20Ricardo.%20Adeus%20ao%20Trabalho%20%
20Ensaio%20Sobre%20as%20Metamorfoses%20e%20a%20Centralidade%20do%20Mundo%20do
%20Trabalho.pdf/view >. Acesso em: 14 de set de 2020.

PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: taylorismo, fordismo,


toyotismo – 1.ed. São Paulo, Expressão Popular, 2007. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2649454/mod_resource/content/1/PINTO%202007%20A
%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20do%20Trabalho%20no%20S%C3%A9culo%2020.pdf>
Acesso em: 10 de set de 2020.

35
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
NOVOS PARADIGAMAS DA PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA EM TEMPOS DE
PANDEMIA

Amanda Machado Barbosa34

Resumo: O presente resumo apresenta os novos arranjos encontrados para dar seguimento ao trabalho
com os usuários dos grupos do serviço de convivencia e fortalescimento de vinculos do CRAS I Cabo
Luiz Quevedo, localizado no bairro Cabo Luiz Quevedo na cidade de Uruguaiana. Todas as atividades
no ambito da proteção social sofreram alguma alteração na forma de atendimento em função da
Pandemia causada pelo novo corona virus, entretanto devido a importância dos serviços ofertados é
importante que de alguma forma eles tenham continuidade. Procurar formas de ofertar atividades,
oportunidades de aprendizagem e de geração de renda sem causar aglomerações e manter a segurança
dos técnicos e usuários envolvidos. Com os objetivos de ampliar o universo informacional, os
vinculos familiares e comunitários dos usuários envolvidos, além de estimular o planejamento e
organização de vida através do Planejamento Individual de Atividades (PIA). Trata sobre o trabalho
realizado com as famílias no âmbito do Serviço de Proteção e Atenção Integral a Familia (PAIF),
especificamente nas atividades do Serviço de Convivência e Forlascimento de Vínculos (SCFV),
tratam-se de atividades por delivery ou remotas realizadas com famílias em situação de
vulnerabilidade social da área de abrangencia da unidade, que atinge aproximadamente sete bairros e
oito conjuntos habitacionais populares. O trabalho vem mostrando bons resultados, como grande
adesão do público alvo e boas devolutivas, seja por fotos eviadas pelas redes sociais, ou mesmo a
entrega espontanea fisicamente na unidade CRAS.

Palavras-chave: CRAS; Grupo de Convivência; SCFV; Serviço Social, Pandemia.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

BRASIL. CRAS, um lugar de (re)fazer histórias. Brasília. MDS, 2007. Disponível em


http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Revista/Cras_Umlugar_fazer_hi
storias.pdf Acesso em 15 de set de 2020.

______.Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Brasília.


MDS, 2009. 72 p Disponível em
http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes_Cras.pdf
acessado em 15 de set de 2020.

______. Desenvolvimento Social: Guia Sintese. 2008. Disponível em


http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Guia/GuiaPoliticasMDS.pdf
acessado em 15 de set de 2020.

34
Coordenadora do CRAS, Cabo Luiz Quevedo, Uruguaiana- RS.. E-mail: amandambt@gmail.com
36
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Rio Grande do Sul. Booletim informativo: especial corona virus. Departamente de Assistencia
Social. 2020. Disponível em
https://issuu.com/sectrabalhoeassistenciasocial/docs/2020_05_22_boletim_informativo acessado em
15 de set de 2020.

37
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MULTIPARENTALIDADE E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS DO DIREITO DE
FAMÍLIAS

Alana dos Santos Noia35


Carolina Cruz Rodolfo Martins36

Resumo: A presente pesquisa objetiva compreender a multiparentalidade no ordenamento jurídico


brasileiro frente às perspectivas de uma sociedade ocidental patriarcal e de mudanças legislativas.
Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, desenvolvido pelo método dedutivo, sendo os tipos de
pesquisa exploratório, descritivo e bibliográfico, e quanto a técnica de análise de dados, utiliza-se a
análise de conteúdo. Por meio das compreensões, destacamos, de Calderón (2013), Dias (2015) e
Rocha (2018), percebemos que, anteriormente, com a vigência do Código Civil 1916, a única família
nuclear reconhecida/protegida pelo Estado brasileiro era a matrimonial, composta por homem,
mulher e filhos; sendo que, neste contexto, ainda imperava, por exemplo, a distinção/hierarquização
entre filhos legítimos e espúrios (advindos “fora” do casamento), estes que não gozavam de
reconhecimento pelo Estado. Dessa forma, diversas outras modalidades de famílias permaneciam
desprotegidas e deslegitimadas, também em razão do forte contexto social patriarcal/cristão presente
à época e que moldava e restringia o conceito de família a preceitos biológicos (seletivos), registrais,
matrimoniais, religiosos e outros. Prosseguindo, então, por uma perspectiva contemporânea, é que
podemos contemplar a Constituição Federal/1988 como marco das relações familiares modernas,
quando, em decorrência da sua entrada em vigor, o conceito e o reconhecimento das entidades
familiares plurais (tais quais a união estável/informal, a família homoafetiva, a monoparental e, ainda,
a multiparental) cresceram de forma exponencial, mais ainda de modo humanitário. Essa transição
paradigmática a considerar “laços invisíveis”, deu-se, entre outros fatores, mas, em especial, quando
da transferência do Estado liberal (em que não era a família mais que uma unidade econômica) para
Estado social ao longo do século XX, com a relevância com que passaram a ser contornadas as
subjetividades, em especial, o afeto. A existência pura e simples de certos vínculos familiares, de
relações matrimoniais que não mais empreendiam satisfação mútua, de vínculos que deixavam de ser
vividos, até então, por aquelas imposições (preceitos) com os quais dialogamos cedeu certo espaço
às noções de realização existencial também pelas experiências do amor, do carinho e da vontade de
constituir família. Assim, uma pré-estruturação familiar passou a não ser mais suficiente para limitar
anseios subjetivos, tampouco a família, a já formada, em si. Nesse contexto, sendo o Direito, como o
compreendemos, adstrito à realidade que lhe rodeia, em meio a separações, ao “nascer” de outras
relações e, desse modo, aos novos moldes filiatórios, foi que a afetividade recebeu status de bem
jurídico digno de proteção, então, tornou-se norteadora dessa espécie de processo de dinamização
plural filial reconhecida quando, na temática, em princípio, fez-se contribuinte no deslinde de muitos
conflitos que a nossos tribunais passaram a chegar, ainda ratificou tantos outros princípios de nosso
ordenamento (a exemplo da dignidade da pessoa humana) e, por fim, serviu a esta produção
legiferante brasileira, como citamos ter ocorrido com nossa Constituição.

Palavras-chave: Multiparentalidade; Afetividade; Famílias.

35
Graduanda do curso de Direito, pelo Centro Universitário do Rio São Francisco (UniRios). E-mail:
alananoiadir@gmail.com
36
Graduanda do curso de Direito, pelo Centro Universitário do Rio São Francisco (UniRios). E-mail:
carolinacrm@outlook.com
38
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília


– DF: Senado, 1988.

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro:


Renovar, 2013.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2015.

STOLZE, Pablo; FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. São Paulo: Editora
Saraiva, 2017.

ROCHA, Daniele da Silva. O reconhecimento da multiparentalidade em tempos de


plurissignificação do conceito de família. 2018, 49 f. (Monografia) Graduação em Direito,
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Brasília, 2018.

TARTUCE, Flávio. O princípio da afetividade no Direito de Família. Breves Considerações. Revista


Jurídica Consulex, Ano XVI, p. 378-15, 2012.

39
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ENTRE INTERSECCIONALIDADE E NECROPOLÍTICA: SISTEMA DE JUSTIÇA
PENAL COMO (RE)PRODUTOR DE CONDIÇÕES “ESPECIAIS” MORTÍFERAS ÀS
MULHERES NEGRAS

Alana dos Santos Noia37

Resumo: Sob perspectivas de raça, classe e gênero, a presente pesquisa objetiva perceber a
contribuição da interseccionalidade na compreensão do sistema de justiça penal à mulher negra
também como um mecanismo necropolítico. Trata-se de um estudo de caráter qualitativo,
desenvolvido pelo método dedutivo, com pesquisas dos tipos exploratória, descritiva, bibliográfica e
a técnica de análise de dados a análise de conteúdo. Destacando os estudos de Davis (2016), Borges
(2019), Hooks (2015) e Mbembe (2016), primeiro na busca por compreendermos a sujeição dos
corpos femininos-negros e a identidade da mulher negra frente a uma sociedade patriarcal,
heteronormativa e esbranquiçada, constatamos ser ela “resultado” de uma experiência de
subalternização que a nenhum/a outro/a sujeito/a se impõe ou, ainda, o que a essa compreensão
elucida, quem constitui uma espécie de avenida identitária. Dizemos isso porque vimos que, em par
com o capitalismo branco-eurocêntrico-universalista-racista que de “invísiveis” se faz, 1) ao tempo
em que o homem branco, pelo patriarcado, oprime a mulher branca; pelo racismo, explora o homem
negro; e, por meio dos dois instrumentos de poder, faz da mulher negra vítima, 2) neste grupo de
oprimidos, porque aquela detém a branquitude (e lhe é possível o racismo) e porque esse último, o
homem negro, usufrui do privilégio de gênero (e lhe é possível o sexismo), apenas a mulher
racializada não se efetua “colonizadora” de ninguém, mas alvo ou instituição de todos. Esssas
percepções vimos se fecundarem ao sistema de justíça penal na direção das mulheres negras quando,
num segundo momento, buscando perceber o agir das dinâmicas penais a elas, compreendemos se
mostrarem aquelas no contexto de produção de condições “especiais” de morte a estas ou, em outros
dizeres, os de necropolítica, constatamos funcionarem as questões penais na elaboração de
circunstâncias nas quais, com violência excessiva e em “especial”, como dizemos, pois potencializada
especialmente pelo racismo, não são sabidos mais os limites entre vida e a ausência dela.
Compreendendo, conforme discussões de gênero, o sistema de justiça penal (mais especificamente,
nesse momento, o cárcere) às mulheres, sem que ainda pesemos singularidades e considerando o
contexto das perfomances gendrificadas intrínsecas ao patriarcado, em princípio, é dito dispositivo
que, em processos pedagógicos, busca reafirmar a vivência de papeis socialmente impostos, tal qual
o de ser a mulher agente passivo, figura sensível. No entanto, às mulheres negras (que, inclusive, são
a maioria nestas duas ocasiões), as em situação prisional ou mesmo as que passam indiretamente pela
prisão junto de seus familiares, percebemos que a temática é insuficiente porque não contempla o
poder ainda mais destrutivo, mortífero, porque interseccionado, que a elas, historicamente, volta-se
todo um sistema que, muito antes de aprisioná-las, pura e simplesmente, ou de controlá-las como
corpos-visitantes, impossibilita, por exemplo, vida mais possível, tal qual digna (bem como também
se é concebido o direito à vida em nosso ordenamento jurídico) fora das grades quando a elas, muitas
vezes em meio à exaustão, como corpos-máquinas-escravizados, restam trabalhos de limpeza
pesados, desumanos, permeados de dores intramuros e de poucas perspectivas de vida (e melhor) fora
deles.

37
Graduanda do curso de Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco. E-mail: alananoiadir@gmail.com
40
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Interseccionalidade; Necropolítica; Mulheres Negras; Sistema Penal.

REFERÊNCIAS

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

GERMANO, Idilva Maria Pires; MONTEIRO, Rebeca Áurea Ferreira Gomes; LIBERATO, Mariana
Tavares Cavalcanti. Criminologia Crítica, Feminismo e Interseccionalidade na Abordagem do
Aumento do Encarceramento Feminino. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, n. SPE2, p. 27-43,
2018.

HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência
Política, n. 16, p. 193-210, 2015.

MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, 2016.

REBOUÇAS, Gabriela Maia; DOS SANTOS, Ramon Andrade. Raça, políticas de morte e o
intolerável dos direitos humanos. In: IV Seminário Internacional Pós-Colonialismo, Pensamento
Descolonial e Direitos Humanos na América Latina. 2019.

41
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CRAS: UM ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO SOCIAL

Amanda Machado Barbosa38

Resumo: Este trabalho apresenta alguns resultados alcançados pelos grupos do serviço de
convivencia e fortalescimento de vinculos do CRAS I Cabo Luiz Quevedo, localizado no bairro Cabo
Luiz Quevedo na cidade de Uruguaiana. Trata sobre o trabalho tecnico realizado com as famílias no
ambito do Serviço de Proteção e Atenção Integral a Familia (PAIF), especificamente nas atividades
do Serviço de Convivencia e Forlascimento de Vínculos (SCFV), tratam-se de atividades em grupo
realizado com famílias em situação de vulnerabilidade social da área de abrangencia da unidade, que
atinge aproximadamente sete bairros e oito conjuntos habitacionais populares. Com os objetivos de
ampliar o universo informacional, os vinculos familiares e comunitários dos usuários envolvidos,
além de estimular o planejamento e organização de vida através do Planejamento Individual de
Atividades (PIA). O trabalho em questão é realizado por uma equipe multidisiplinar composto por
duas assistentes sociais, uma psicologa, duas pedagogas, um professor de inglês e quatro voluntários,
que realizam as oficianas de artesanato, Katratê, dança e violão. É perceptível, inclusive por relatos
dos usuários envolvidos, que os serviços ofertados por esta unidade tem potencial transformador, seja
pelo ingresso no mercado de trabalho, apresndizagens nas oficinas de geração de renda ou de
promoção do protagonismo social.

Palavras-chave: CRAS; Grupo de convivência; SCFV; serviço social.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

BRASIL. CRAS, um lugar de (re)fazer histórias. Brasília. MDS, 2007. Disponível em


http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Revista/Cras_Umlugar_fazer_hi
storias.pdf Acesso em 15 de set de 2020.

______.Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Brasília.


MDS, 2009. 72 p Disponível em
http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes_Cras.pdf
acessado em 15 de set de 2020.

Desenvolvimento Social: Guia Sintese. 2008. Disponível em


http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Guia/GuiaPoliticasMDS.pdf
acessado em 15 de set de 2020.

38
Coordenadora do CRAS, Cabo Luiz Quevedo, Uruguaiana- RS.. E-mail: amandambt@gmail.com
42
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÃO EM GÊNERO E SEXUALIDADE: OUTROS TEMAS E METODOLOGIAS
NO ÂMBITO ESCOLAR

Jacqueline Cavalcanti Chaves39

Resumo: No Brasil, ao longo do século XX e das duas primeiras décadas do século XXI, a história
da educação em gênero e sexualidade no âmbito escolar se transformou devido a muitos processos
sociais e políticos como, por um lado, os movimentos pelos direitos civis, feminista, homossexual,
étnico-racial, e da renovação pedagógica e, por outro, o regime ditatorial e, mais recentemente, o
recrudescimento do ultraconservadorismo presente em movimentos político-partidários, religiosos e
sociais. Neste contexto, na atualidade, a educação em gênero e sexualidade se configura como um
campo em disputa que encontra na escola uma arena singular. Diversas pesquisas têm apontado que
a Educação Básica carece de investimento na formação inicial e continuada do corpo docente. Diante
disso, quando trabalhada, a temática é abordada em sala de aula a partir das próprias vivências,
percepções e preceitos morais e/ou religiosos das/dos docentes. Frente a esta realidade, o objetivo do
presente trabalho foi realizar um projeto de extensão caracterizado como formação continuada em
gênero e sexualidade junto a nove docentes de diferentes disciplinas e uma bibliotecária de uma escola
pública da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo de um ano, foi realizado um total de 14 encontros, os
quais ocorreram uma vez por semana, com duração de uma hora e meia cada. A metodologia utilizada
foi o grupo de discussão, a qual cria um espaço de fala e escuta qualificada que facilita o envolvimento
das/dos componentes no debate, na construção coletiva de saberes, e na produção de sentidos para as
experiências, os sentimentos, os conhecimentos e as ideias colocadas em discussão. Os temas
trabalhados no projeto diziam respeito às mulheres; às hierarquias de gênero que inferiorizam
mulheres e, consequentemente, produzem uma extensa e diversa gama de estereótipos e
discriminações; às múltiplas formas de violência física e sexual sofridas por elas; às políticas de
gênero e sexualidade brasileiras atuais; às experiências educativas das/dos participantes, e seus afetos.
A escolha por estes temas se deu em razão da análise de diversas pesquisas que assinalam a
predominância de um modelo biológico-centrado e preventivo que prioriza uma formação
informacional-instrumental que produz uma educação que mantém a cisão entre objetividade e
subjetividade, razão e emoção, e que versa, prioritariamente, sobre anatomia e fisiologia humana,
prevenção/risco de ISTs/AIDS e gravidez na adolescência. Para deslanchar o debate e a reflexão
crítica, individual e coletiva, nos encontros foram utilizados elementos intermediários, relacionados
ao campo temático, como música, notícias, pequenos textos disponíveis na Internet e falas extraídas
de pesquisas, além de relatos de experiências das/dos próprias/próprios participantes. A utilização do
grupo de discussão como metodologia e a escolha de temas diversos aos que tradicionalmente se tem
trabalhado propiciaram maior aproximação e sensibilização das/dos participantes. Muitas vezes,
produziram um desconforto que as/os deslocou do lugar/posição subjetiva em que se encontravam e
levou-as/os a refletir e imaginar outros modos de fazer e compreender os saberes, os acontecimentos,
as histórias de vida, e suas práticas sociais e educativas.

39
Professora Adjunta da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
jcchaves2@terra.com.br
43
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Formação de Professoras/professores; Violências de Gênero; Afeto, Gênero e
Sexualidade; Políticas Educacionais.

REFERÊNCIAS

BADER SAWAIA, ALBUQUERQUE, Renan e FLÁVIA BUSARELLO, R. (2018) (orgs.). Afeto


& Comum: reflexões sobre a práxis psicossocial. São Paulo: Alexa Cultural.
ELIZABETH MACEDO. As demandas conservadoras do movimento Escola sem Partido e a
Base Nacional Curricular Comum. Educ. Soc., Campinas, v. 38, n. 139, p. 507-524. 2017.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da


C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

GUACIRA LOURO, Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação. 11ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2010.

GUACIRA LOURO, Lopes. Pedagogias da sexualidade. In. GUACIRA LOURO, Lopes. (Org.).
O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

LUCIA CASTRO, Rabello de. Conhecer, transformar(-se) e aprender: pesquisando com crianças e
jovens. In. LUCIA CASTRO, Rabello; VERA BESSET, L. (Orgs.). Pesquisa-Intervenção na
Infância e Juventude. Rio de Janeiro: NAU / FAPERJ, 2008.

MARIA RITA CÉSAR, de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma “Epistemologia”.
Educar em Revista, n. 35, p. 37-51. 2009.

MARIVETE GESSER, OLTRAMARI, Leandro Castro, DENISE CORD, e NUERNBERG, Adriano


Henrique. Psicologia Escolar e formação continuada de professores em gênero e sexualidade. Revista
Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, v. 16, n. 2, p. 229-236.
2012.

MARIVETE GESSER, OLTRAMARI, Leandro Castro e PANISSON, Gelson. Docência e


concepções de sexualidade na educação básica. Psicologia e Sociedade, 27(3), p. 558-568. 2015.
PRISCILA VIEIRA, Mugnai e THELMA MATSUKURA, Simões. Modelos de educação sexual na
escola: concepções e práticas de professores do ensino fundamental da rede pública. Revista
Brasileira de Educação, 22(69), p. 453-474. 2017.

REIS, Toni e EDLA EGGERT. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de
educação brasileiros. Educ. Soc., Campinas, v. 38, n. 138, p. 9-26. 2017.

THAIS GAVA e WILZA VILLELA. Educação em sexualidade: desafios políticos e práticos para a
escola. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 24, p. 157-171. 2016.

44
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ZILENE SOARES, Pereira e SIMONE MONTEIRO, Souza. Formação de professores/as em gênero
e sexualidade: possibilidades e desafios. Educar em Revista, v. 35, n. 73, p. 287-305. 2019.

45
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CORPOS INVISÍVEIS, PASSADO SEM MEMÓRIAS: O DESAPARECIMENTO SOCIAL
DE MULHERES E CRIANÇAS NA DITADURA MILITAR NO BRASIL

Raquel Dias Amaro40


Amanda Bravo Pereira Almeida41
Raquel Gonçalves Salgado42

Resumo: O período que compreendeu a ditadura cívico-militar no Brasil (1964-1985) foi marcado
por inúmeras situações de crueldade, torturas e mortes contra pessoas consideradas subversivas ao
regime. Tais atrocidades afetam, ainda no presente, vidas que tiveram suas lutas, resistências e
memórias das violências sofridas e apagadas socialmente, não aparecendo nos documentos oficiais.
Levando em conta o fato de que as vidas ameaçadas e destruídas de mulheres e crianças não possuem
visibilidade nos históricos da ditadura, esta pesquisa tem como objetivo a análise documental do
relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, especificamente no que se refere aos
registros de violências contra mulheres e crianças, a fim de contribuir para que estes e outros
marcadores sociais apareçam, bem como enfatizar sua relevância em todo o processo de lutas e
resistências. O aporte teórico-metodológico da pesquisa tem como fundamento os estudos da
interseccionalidade, tendo em vista que os marcadores sociais de gênero, raça e idade são importantes
eixos analíticos dos documentos. A discussão levanta questões sobre quais vidas e memórias são
dignas de luto público advindas das violências do Estado totalitário, discutindo quais existências
importam ou não, na ótica dessa lógica racista, misógina, moralista conservadora, que promoveu o
apagamento forçado das vidas de mulheres e crianças durante a ditadura cívico-militar no Brasil.

Palavras chave: Memórias; Mulheres; Crianças; Interseccionalidade; Ditadura Militar.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014a. Disponível em:


http://www.cnv.gov.br . Acesso em: 04/04/2019.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos. Brasília: CNV, 2014b.
Disponível em: http://www.cnv.gov.br . Acesso em: 04/04/2019.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. 2.
ed. Buenos Aires: Paidós, 2015.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.

40
Graduanda do curso de psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis. E-mail: raquel.2da@gmail.com.
41
Graduanda do curso de Psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis. E-mail: amandabpa1@gmail.com.
42
Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Educação e do Curso de Psicologia da Universidade
Federal de Rondonópolis. E-mail: ramidan@terra.com.br.
46
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e apolítica do


empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. 3a


edição. São Paulo: n-1 edições, 2018.

47
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“QUEM FORMA O LAR É O CORAÇÃO DA MULHER”: A CONSTRUÇÃO DOS
DISCURSOS HEGEMÔMICOS SOBRE AS MULHERES NA MÍDIA IMPRESSA

Marina da Silva Schneider43


Ismael Gonçalves Alves44

Resumo: O presente escrito apresentou como objetivo uma análise dos discursos de feminilidade
presente no jornal Campinas -1936 e no jornal Tribuna do Sul -1955 que circulavam na região do
grande Araranguá, Santa Catarina, Brasil. Foram analisados alguns textos presentes nos recortes de
jornais articulando questões tocantes à imprensa, a história e os estudos de gênero. Tais jornais,
durante o período em que circularam, propagaram em seus escritos discursos normativos de
feminilidade na tentativa de homogeneizar o destino das mulheres, Os jornais que estão no Arquivo
Histórico e Municipal da cidade de Araranguá, abrangem inúmeras reportagens que podem contribuir
para repensar as relações entre homens e mulheres na primeira metade do século XX. O recorte
escolhido, para além do acervo, ocorreu a partir da necessidade de pensar como os estereótipos de
gênero foram construídos, alguns anos antes e depois da Segunda Grande Guerra, sofrendo alterações
à medida que a sociedade e padrões normativos vigentes consideravam importante normatizar as
mulheres. Para tal empreitada, a metodologia utilizada foi a análise das narrativas e os discursos. A
análise do discurso se deu como um método na pesquisa que contribuiu para interpretar as
construções narrativas e símbolos que produzem os significados presentes nas relações sociais,
associando a compreensão do imaginário como peça importante nesse processo. Concluiu-se então
que as normatizações femininas ligadas a uma suposta natureza, mesmo no pós-guerra, prevaleceram.
Assim, apesar das mudanças sociais, dos novos modos de vida urbanos, das novas percepções e
vivências dos indivíduos, a condição feminina pouco sofreu alterações. Apesar de uma suposta
modernização das relações sociais, o Brasil acompanhou o restante do mundo no que tange a criação
de novas formas de subordinação das mulheres, pautadas em discursos e formas de coerção que
legitimavam lugares subordinados às mulheres. Diante disto, as duas temporalidades abarcadas
representavam décadas bastante distintas, marcadas pelas grandes guerras que abalaram
consideravelmente as formas de convivência e existência. Mesmo com as ditas mudanças, as
vivências do feminino permaneceram bastante controladas, prevalecendo os discursos da boa mulher,
mãe e esposa sobre quaisquer outros discursos de efetiva emancipação feminina.

Palavras-chave: Discursos; Gênero; Mulheres; Imprensa.

43
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico na Universidade do Extremo
Sul Catarinense, Graduada em História pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail:
msshis@outlook.com
44
Doutor em História/professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico na
Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: iga@unesc.net
48
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
TRANSMASCULINIDADES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Samuel Moreira de Araujo45


Neil Franco46

Resumo: O presente estudo é um recorte da minha pesquisa de mestrado em andamento e tem por
objetivo analisar as vivências de homens transexuais nas aulas de educação física escolar. Parto da
pouca ou nenhuma visibilidade que os "homens trans", "transhomem", "homem transexual",
"transman" ou "FTM” têm no Brasil, seja essa invisibilidade no mercado formal de trabalho ou no
ambiente escolar, pois para algumas pessoas, não é possível a transição de gênero do feminino ao
masculino e, portanto, ignora-se essa transição. (ALMEIDA, 2012). A transexualidade se fundamenta
na não concordância entre o sexo biológico e o gênero através do qual a pessoa deseja ser reconhecida.
Contudo, numa perspectiva contemporânea, falar de transexualidade implica na reflexão sobre o que
é a identidade de gênero para além das concepções biológicas, obrigando-se a pensar nas vivências
da sexualidade nos âmbitos privado e público, tanto como prática individual, como prática social e
política. (AVILA; GROSSI, 2010). Para Guilherme Almeida (2012) a experiência identitária de
homens transexuais, é a maneira nas quais esses sujeitos vivenciam suas masculinidades, a partir da
sua construção do que é ser um sujeito masculino. Aproximando a discussão da pessoa transexual na
escola Dayana Santos (2015) reflete que a imposição desse sujeitos não acontece sem um esforço da
própria instituição em regulá-la, pois essas pessoas que fabricam seus corpos e identidades de gênero
“causam” estranhamentos, incômodos, curiosidades e acabam perturbando a ordem rígida da escola.
A disciplina de educação física na escola tem por objetivo ampliar o conhecimento e as vivências dos
alunos a respeito da cultura corporal sistematizando nesse campo de conhecimento o que os sujeitos
têm produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogo, danças, lutas,
exercício ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser
identificados como formas de representações simbólicas de realidades vividas pelo homem
(COLETIVO DE AUTORES, 1992). A pesquisa enquadra-se como uma pesquisa qualitativa e
através da metodologia da história oral temática (MEIHY, 2002) resgatamos memórias e vivências
nas aulas de educação física. Analisamos ancorados nas teorias pós críticas, com foco nos estudos
transviados de Berenice Bento (2017) e nos estudos interculturais de Vera Candau (2008), as falas de
três sujeitos que nos relataram suas vivências e práticas nas aulas de educação física escolar, assim
como as desestabilizações e discussões que seus corpos dissidentes provocaram naquele contexto e
concluímos que se faz necessário uma ampliação das questões relacionadas as discussões de gênero
na escola e que situações de exclusão e violência simbólica ainda se fazem presentes nas aulas de
educação física escolar causadas por discursos heteronormativos.

Palavras-chave: Educação Física Escolar; transmasculinidades; Escola; Estudos transviados.

REFERÊNCIAS

45
Mestrando em Educação, pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: samuca_faefid@yahoo.com.br
46
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, professor do Programa de Pós Graduação em
Educação e do curso de graduação em Educação Física na Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
neilfranco010@hotmail.com.
49
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ALMEIDA, Guilherme. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estudos
Feministas, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012.

AVILA, Simone e GROSSI, Miriam. Maria, Maria João, João: reflexões sobre a
Transexperiência masculina. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9 (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2010. Disponível em:
http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278255349_ARQUIVO_Maria
,MariaJoao,Joao040721010.pdf Acesso em 02 de agosto de 2020.

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade
e diferença. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.13, n. 37. 2008.

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2002.

SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. A biopolítica educacional e o governo de corpos


transexuais e travestis. Cadernos de Pesquisa. v.45, n.157, p.630-651, jul/set.2015.

SOARES, Carmem Lucia.; CASTELLANI FILHO, Lino.; BRACHT, Valter; ESCOBAR, Micheli
Ortega; VARJAL, Elizabeth; TAFFAREL, Celi Nelza Zulke. Metodologia do ensino de Educação
Física. São Paulo. Cortez, 2009.

50
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
OS INDIVÍDUOS LGBTIS NO CONTEXTO ESCOLAR E O DIREITO
CONSTITUCIONAL À BUSCA DA FELICIDADE: SUAS APROXIMAÇÕES E LIMITES
A PARTIR DOS PLS 7180/2014 E 7181/2014

Kaio Figueiredo Salvador47

Resumo: Neste trabalho pretendemos apresentar uma análise dos PLs 7180/2014 e 7181/2014 sob a
luz do postulado constitucional do direito à busca da felicidade, consagrado pela jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal como postulado implícito na Constituição e de grande valor hermenêutico.
Trata-se de pesquisa qualitativa de natureza documental e bibliográfica, apoiando-se nos principais
autores que dedicam-se ao estudo desse recente entendimento do Supremo, como é o caso do jurista
Saul Tourinho Leal, bem como a análise dos projetos de Lei Ordinária 7180/2014 e 7181/2014, de
onde já foram apensados mais de vinte projetos de leis posteriores que versam sobre a proibição das
temáticas de gênero e sexualidades na educação brasileira. Faz-se necessária também a análise
bibliográfica de renomadas/os autoras/os do campo da Educação e dos Direitos Humanos para
compreender a problemática em um espectro interdisciplinar. Os PLs citados dispõem sobre
impedimentos aos professores para que ensinem sobre educação sexual e combate ao preconceito, à
intolerância e à violência contra sujeitos dissidentes de gênero e sexualidades, educação essa que
poderia contribuir para formar um terreno fértil de respeito e humanização de sujeitos/as
historicamente desumanizados. Já o postulado citado tem, por exemplo, menção explícita na ADI
4.275, que reafirma o direito de travestis e transsexuais alterarem o registro civil sem a cirurgia de
transgenitalização, e é entendido como um desdobramento do princípio da dignidade humana e sua
citação é recorrente nas decisões jurisprudenciais que afetam a população LGBTI. O trabalho, que se
encontra em desenvolvimento, tem como resultado parcial a hipótese de onde se infere que as
propostas legislativas que versam sobre a retirada das discussões de gênero e sexualidades dos temas
transversais abordados na educação brasileira não são compatíveis com os entendimentos mais
recentes do Supremo Tribunal Federal, que buscam assegurar a liberdade, já constitucionalmente
prevista, para que cada indivíduo possa buscar sua própria felicidade, necessitando, para isso, de um
terreno fértil de tolerância e respeito a pluralidade e diversidade sexual e de gênero que a educação
pode e deve fomentar.

Palavras-chave: Direito; Educação; Constitucionalismo; Gênero; Sexualidades.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BRASIL. Supremo Tribunal de Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF.


Direito constitucional e registral. Pessoa transgênero. Alteração do prenome e do sexo no registro
civil. Possibilidade. Direito ao nome, ao reconhecimento da personalidade jurídica, à liberdade
pessoal, à honra e à dignidade. Inexigibilidade de cirurgia de transgenitalização ou da realização de
tratamentos hormonais ou patologizantes. Relator: Min. Marco Aurélio, 1º de março de 2018.

47
Graduando do curso de Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande, campus Carreiros. E-mail:
kaio.fs@hotmail.com
51
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371>. Acesso em: 21
ago. 2020

LEAL, Saul Tourinho. Direito à felicidade: história, teoria, positivação e jurisdição. Tese
(Doutorado em Direito Constitucional) – Pontífica Universidade Católica, São Paulo, 2013.

MIGUEL, Luis Felipe. Da ´doutrinação marxista´ à ´ideologia de gênero´ - Escola Sem Partido e as
leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis, vol. 7, n. 5, 2016.

REIDEL, Marina. A pedagogia do Salto Alto: histórias de professoras transexuais e travestis na


educação brasileira. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2013. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/98604>. Acesso em 17 de
jul. de 2020.

52
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O LUGAR DAS MULHERES: POLÍTICAS SOCIAIS DE ASSISTÊNCIA A
MATERNIDADE E INFÂNCIA EM CRICIÚMA/SC

Marina da Silva Schneider48


Ismael Gonçalves Alves49

Resumo: A presente pesquisa analisa as políticas sociais de assistência às mulheres promovidas pelo
Centro de Estudos, Documentação e Informação Popular de Criciúma (CEDIP), que funcionou de
1983 a 1998, na cidade da região sul de Santa Catarina. O CEDIP foi um órgão articulador de
movimentos e demandas sociais surgidos no contexto de reorganização frente as políticas articuladas
no fim do regime ditatorial. De maneira geral, era formado por pessoas ligadas ao Partido dos
Trabalhadores, as pastorais e movimentos de bairros. Desse modo, o CEDIP, organizava,
documentava e arquivava tudo o que estivesse relacionado a militância social, promovendo ainda,
cursos e palestras de formação popular, política e sindical. Esse Centro funcionava e se reconhecia
como uma ONG, prestando serviços e assessoria às classes populares. Para essa pesquisa, focaremos
nos cursos e na formação pedagógica voltada a maternidade, principalmente através do Grupo de
Incentivo ao Aleitamento Materno (GIAM). Como problemática central de nossas análises,
focalizaremos nas questões de gênero discutindo como os membros do Centro buscaram regular às
condutas familiares através de assessorias e assistência que reproduziam a noção de maternidade ideal
e tradicional, não descontruindo as desigualdades e os estereótipos de gênero, mesmo em um centro
de articulação social que buscava, supostamente, fazer oposição ao regime e as normas vigentes.

Palavras-chave: Maternidade; Pedagogia Materna; Gênero; Assistência.

48
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico na Universidade do Extremo Sul
Catarinense, Graduada em História pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: msshis@outlook.com.
49
Doutor em História/professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioeconômico na
Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: iga@unesc.net
53
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MEMÓRIAS DE RESISTÊNCIAS E VIOLÊNCIAS: A POPULAÇÃO LGBTQIA+
NA DITADURA CÍVICO-MILITAR BRASILEIRA

Dantiely Martins Ferreira50


Rayane Aparecida Silveira Soares51
Raquel Gonçalves Salgado52

Resumo: Atualmente, o contexto brasileiro é marcado por discursos moralistas e conservadores, que
assumem o tema “gêneros e sexualidades” como o inimigo da família tradicional brasileira. O atual
governo tem em sua estrutura um quadro significativo de militares com cargos estratégicos que estão
constantemente atacando as instituições democráticas e promovendo o seu desmonte. Isto posto, a
população LGBTQIA+ que, tradicionalmente tem sido alvo de violências e, até mesmo, extermínios,
teme que novamente tenha seus direitos violados e sua existência aniquilada como na ditadura cívico-
militar. Estes fatos do presente fazem-nos questionar a nossa história, lançando perguntas para o
nosso passado recente de terror, na busca de problematizar também o agora. O objetivo desta pesquisa
é analisar as memórias de pessoas LGBTQIA+ pelos viéses das violências que sofreram, de seus
movimentos de resistência e de sua produção cultural durante a ditadura. Trata-se de uma pesquisa
documental, que tem como fonte principal o relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade,
bem como revistas e artigos, nos quais encontram-se registros das produções culturais e dos modos
como essas pessoas se organizavam coletivamente para resistir às políticas de repressão do Estado,
tais como os jornais Lampião da Esquina e os boletins ChanacomChana. A abordagem teórico-
metodológica é a interseccionalidade, com base na qual são considerados, para as análises, diferentes
marcadores sociais, como classe social, gênero, sexualidade, raça/etnia, que atravessam e configuram
as violências e as resistências vividas por pessoas LGBTQIA+ durante a ditadura cívico-militar. Por
fim, a pesquisa pretende resgatar as memórias dessas pessoas que tiveram suas histórias apagadas por
carregarem as lutas e as resistências contra o autoritarismo do Estado, que dita quem pode viver e
quem deve morrer e a imposição de padrões heterocisnormativos na sociedade.

Palavras chave: Memórias; Gênero; Sexualidade; Ditadura cívico-militar.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014a. Disponível em:


http://www.cnv.gov.br. Acesso em: 04/04/2019.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos. Brasília: CNV, 2014b.
Disponível em: http://www.cnv.gov.br. Acesso em: 04/04/2019.

50
Graduanda do curso de psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis. E-mail: danty_jac@hotmail.com
51
Graduanda do curso de psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis E-mail:
rayaneapsilveira@gmail.com
52
Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Educação e do Curso de Psicologia da Universidade
Federal de Rondonópolis. E-mail: ramidan@terra.com.br.
54
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1985.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. 3a


edição. São Paulo: n-1 edições, 2018.

55
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O (NÃO) LUGAR DO MASCULINO NA DOCÊNCIA EM EDUCAÇÃO INFANTIL:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE CUIDADO E PAPÉIS DE GÊNERO

Vinicius de Abreu Bolina53


Fabiane Ferreira da Silva54

Resumo: O objetivo desta pesquisa qualitativa foi observar as possibilidades de representação do


masculino na docência em Educação Infantil (EI) em uma escola da periferia urbana da cidade de
Uruguaiana-RS. Foi realizada uma observação participante em uma Escola Municipal de Educação
Infantil (EMEI), entre fevereiro e dezembro de 2019. Objetivou-se também considerar as perspectivas
dos Estudos de Gênero e em Educação sobre a realidade nacional de professores nesta etapa de ensino.
Após o trabalho de campo foi analisada a literatura do universo teórico supracitado, buscando relações
e divergências entre estes documentos e os dados empíricos. Dessa forma foi possível perceber traços
já afirmados por pesquisadoras sobre a naturalização da EI como espaço feminino, principalmente
pela comum associação entre feminilidade e maternidade e ao cuidado e educação de crianças. Nestes
espaços o masculino seria visto com estranhamento e com olhares de suspeita pelas famílias e
profissionais da escola tendo sua competência e orientação sexual questionada, além de serem vistos
como possíveis abusadores. Ainda, o masculino nesses espaços serviria para as crianças como um
modelo de figura paterna, seguindo o padrão social heteronormativo. Todas essas considerações
foram percebidas durante a vivência na escola, entretanto, as suspeições de algumas famílias foram
sempre silenciosas, e os olhares nem sempre discretos. Arriscamos dizer que as relações de gênero
atuam fortemente na constituição da EI e que, quando as normas dessas relações são subvertidas há
desconfiança por parte dos atores e atrizes do universo escolar. Se no Brasil o número de professores
na EI é limitado há ainda mais discrepância nos dados do Rio Grande do Sul. Também arriscamos
dizer que tal situação se agrava com as características sócio-culturais gaúchas que colocam a mulher
em posição de inferioridade, visto a baixa remuneração da profissão mencionada, baixo status social
e a associação da masculinidade com profissões que exigem força, virilidade, poder e maior
rentabilidade econômica. Isso estaria ligado a respresentação do masculino como provedor, mesmo
que as configurações familiares atuais não sigam necessariamente estas lógicas.

Palavras-chave: Gênero; Masculinidades; Docência; Educação Infantil.

REFERÊNCIAS

53
Graduando do curso de Licenciatura em Sociologia, da Universidade Federal de Santa Maria. Integrante do
grupo de pesquisa Tuna – gênero, educação e diferença, da Universidade Federal do Pampa, campus Uruguaiana.
E-mail: viniciusmadebre@gmail.com
54
Professora do Curso de Licenciatura em Ciências da Natureza e do PPG em Educação em Ciências, da
UniversidadeFederal do Pampa, campis Uruguaiana. Doutira em Educação em Ciências pela Universidade Federal
do Rio Grande. Vice-líder do Grupo de pesquisa Tuna – gênero, educação e diferença da Universidade Federal do
Pampa. Integrante do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola da Universidade Federal do Rio Grande. E-mail:
fabianesilva@unipampa.edu.br

56
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ALIANDRA CRISTINA LIRA, Mesomo; GEOVANA BERNARDIM, de Paula. O profissional do
gênero masculino na educação infantil: com a palavra, pais e professores. Poliésis, v. 9, n. 15, p. 80-
97. 2015.

ANGELITA ALICE JAEGER; KARINA JACQUES. Masculinidades e docência na educação


infantil. Estudos Feministas, v. 25, n. 2, p. 545-570. 2017.

BAHL, Diego Paiva; ALIANDRA CRISTINA LIRA, Mesomo. Onde estão os profissionais do
gênero masculino na educação infantil? Reflexões históricas sobre a docência com crianças pequenas.
Inter-Ação, v.44, n.1, p. 243-257. 2019.

ELIANA MARIA FERREIRA; de OLIVEIRA, Timóteo Neres. “Fora do lugar ou um lugar novo”: a
presença masculina na educação infantil. Horizontes – Revista de Educação, v.4, n.7, p. 89-108.
2016.

ELIANA SAPAROLLI, Campos Leite. A educação infantil e gênero: a participação de homens como
educadores infantis. Psicologia da Educação, n. 6, p. 107-125. 1998.

KÁTIA MIGUEL, Paschoali; ANA CAROLINA QUEIROZ, de Oliveira; ANDRESSA SIMONE de


CARVALHO. A presença masculina na Educação Infantil: desafios que persistem. Plures
Humanidades, v. 20, n. 2, p. 344-360. 2019.

MARIANA MONTEIRO, Kubilius; HELENA ALTMANN. Homens na educação infantil: olhares


de suspeita e tentativas de segregação. Cadernos de Pesquisa, v. 44, n. 153, p. 720-741. 2014.

NUBEA XAVIER, Rodrigues; BIANCA de ALMEIDA, Camacho. Homens na Educação Infantil:


reflexões acerca da docência masculina. Horizontes – Revista de Educação, v.4, n. 7, p. 109-120.
2016.

SOUSA, Fernando Santos; SHIRLEIDE CRUZ, Pereira da Silva. A condição de pedagogos do gênero
masculino iniciantes na Educação Infantil. Pensar Acadêmico, v. 18, n. 3, p. 564-581. 2020.

TUÉLI da SILVA, Fonseca; GIANI RABELO. Gênero e educação: um panorama das pesquisas
acadêmicas no brasil a respeito da docência masculina na educação infantil. Saberes Pedagógicos,
v. 3, n. 1, p. 319-339. 2019.

57
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÃO POPULAR: FORTALECENDO A DEMOCRACIA ATRAVÉS DE UMA
PRÁTICA EMANCIPATÓRIA

Sheila Teixeira Peres55


Everton Coelho de Matos56
Priscila Nunes Paiva57
Dandara Fidélis Escoto58

Resumo: O presente trabalho relata a experiência pedagógica de uma atividade desenvolvida em uma
comunidade em situação de vulnerabilidade social na cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, no
dia da greve geral ocorrida em 15 de maio de 2019 por todo o país. Na situação de incerteza política
que se desenha nos dias atuais em nosso país, se faz necessário que a escola seja mediadora de
situações e atividades que levem os alunos e alunas a refletir e entender a importância de vivermos
em um estado democrático, formar cidadãos críticos e reflexivos é essencial para que possamos
entender e transformar realidades. A escola onde a atividade foi desenvolvida está localizada em uma
comunidade onde os cidadãos e cidadãs sofrem com a violência estrutural, ou seja, não possuem
acesso a serviços básicos garantidos por direito constitucional é de extrema importância que se
proponham atividades onde os alunos e alunas possam conhecer e reivindicar seus direitos. No dia da
greve geral os alunos, alunas, educadores, educadoras e trabalhadores da educação foram reunidos/as
em um espaço para que participassem de uma palestra com o tema “A doutrina neoliberal e suas
implicações no campo educacional”, logo após foi aberto um espaço para contribuições e
questionamentos sobre a temática. Em seguida o grupo se somou a comunidade para realizar uma
caminhada pelo bairro carregando cartazes construídos pelos alunos e alunas com frases
representativas e alusivas ao tema. Na oportunidade os alunos e alunas conversaram com a
comunidade, esclarecendo duvidas referentes aos cortes de verba previstos para a educação e reforma
da previdência. A prática emancipatória sob uma ótica de educação popular visa desenvolver o senso
critico da comunidade escolar em geral. A proposta visa desenvolver nos alunos a capacidade de ter
um pensamento crítico diante da ameaça a direitos conquistados, em tempos de uma “escola sem
sentido”, trabalhar sob uma ótica emancipatória é um desafio, no entanto se acredita que essas
possibilidades devem ser consideradas e potencializadas tendo os alunos e alunas como
multiplicadores /as das mesmas.

Palavras-chave: Escola; Vulnerabilidade; Emancipação.

REFERÊNCIAS

55
Graduanda de História Unopar e Pesquisadora do GENSQ Unipampa.. E-mail: sheila.tperes@gmail.com
56
Mestrando em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/ Unipampa – Campus Uruguiana. E-mail:
everton_coelho@outlook.com
57
Mestranda em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/ Unipampa – Campus Uruguiana. E-mail:
priscilanunespaiva@gmail.com
58
Doutoranda em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/ Unipampa – Campus Uruguiana. E-mail:
dandaraescoto@gmail.com

58
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CANDAU, Vera Maria et al. Oficinas pedagógicas de direitos humanos. 3 ed. Petrópolis: Vozes,
1999.

FREIRE, Paulo. Papel da Educação na Humanização. Revista da FAEEBA, nº 7. Salvador, 1997.

GADOTTI, M. Educação popular, educação social, educação comunitária: conceitos e práticas


diversas, cimentadas por uma causa comum. Revista Dialogos. IV CONGRESSO
INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL: Domínio Epistemológico, 2012, vol. 18, n. 2; p.
10-32.

59
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER”:
ABORDANDO A REPRESENTATIVIDADE DE MULHERES DE UMA COMUNIDADE

Dandara Fidélis Escoto59


Sheila Teixeira Peres60
Priscila Nunes Paiva61
Everton Coelho de Matos62

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência da construção e vivência de
um projeto pedagógico referente ao Dia Internacional da Mulher, planejado e executado pela equipe
pedagógica e coletivo de educadores/as de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental localizada
na periferia do município de Uruguaiana, Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. É necessário
compreender que a sociedade em que vivemos atualmente, é historicamente misógina na medida em
que as mulheres são invisibilizadas enquanto sujeitos políticos na sociedade contemporânea
(LOURO, 1995). É de Simone de Beauvoir uma das principais frases do movimento feminista: “Não
se nasce mulher, torna-se mulher”, adaptada como título deste trabalho. Em sua obra, O Segundo
Sexo (2014) a autora afirma que a mulher não tem um destino biológico, ela é formada dentro de uma
cultura que define qual o seu papel no seio da sociedade. As mulheres, durante muito tempo, ficaram
aprisionadas ao papel de mãe e esposa, sendo a outra opção o convento. A trajetória e o trabalho de
Simone de Beauvoir se relacionam diretamente com o contexto onde estamos inseridas enquanto
educadoras, uma comunidade basicamente constituída por mulheres trabalhadoras em diferentes
situações sociais. Cabe a escola, enquanto espaço de desenvolvimento de cidadãs/ãos críticas/ e
reflexivas/os buscar estratégias para minimizar as diferenças, buscando modificar o panorama da
sociedade em que vivemos. O trabalho foi desenvolvido com 75 alunas/os do 7º ano do ensino
fundamental em uma escola de periferia do município de Uruguaiana, Rio Grande do Sul. As
atividades envolveram o trabalho com músicas, construção de uma pesquisa na comunidade,
sistematização dos dados e rodas de conversa com mulheres da comunidade que desempenham
diferentes profissões. A sequência das atividades desenvolvidas teve o objetivo de que as/os
estudantes pudessem olhar de forma diferenciada para as mulheres da comunidade da União,
refletindo sobre as oportunidades e as políticas públicas destinadas a este contexto. Porém, é preciso
que as/os estudantes tenham a oportunidade de conhecer as mulheres trabalhadoras que constroem a
comunidade em que vivem e percebam que estas precisam ultrapassar diariamente diversas barreiras,
que na maioria das vezes, não existem para os homens. E que essas mulheres são suas mães, tias,
avós, vizinhas, enfim são mulheres reais que vivem e sobrevivem todos os dias construindo não só
essa comunidade, mas o país inteiro. Uma educação transformadora deve perpassar as relações de
gênero e problematizar essa realidade ainda tão presente em nosso país. Podemos destacar o que foi
dito por Freire (2005) de que devemos desafiar os grupos populares para que entendam de forma
crítica a violência e a injustiça que caracterizam sua situação de desigualdade ou vulnerabilidade, e

59
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências – PPPGEQVS, Universidade Federal do
Pampa, Campus Uruguaiana.. E-mail: dandaraescoto@unipampa.edu.br
60
Graduanda de História Unopar e Pesquisadora do GENSQ Unipampa.. E-mail: sheila.tperes@gmail.com
61
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências – PPPGEQVS, Universidade Federal do
Pampa, Campus Uruguaiana.. E-mail: priscilanunes.aluno.aluno@unipampa.edu.br
62
Mestrand do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências – PPPGEQVS, Universidade Federal do
Pampa, Campus Uruguaiana E-mail: evertonmatos.aluno@unipampa.edu.br
60
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ainda mostrar que essa situação não é destino ou vontade de Deus, que é algo que pode e precisa ser
mudado. A escola tem um papel fundamental na desconstrução dessas desigualdades, promovendo
espaços de constituição das diferentes identidades e apresentando às/aos estudantes inúmeras
possibilidades que o mundo oferece, as consideradas positivas quanto as negativas, buscando o
empoderamento das/os mesmos/as para a tomada de decisões conscientes e independentes.

Palavras-chave: Mulheres; Empoderamento; Trabalhadoras.

REFERÊNCIAS

BLAY, Eva Alterman. 8 de março: conquistas e controvérsias. Revista de Estudos


Femininos, Florianópolis, v.9, n.2, p.601-607, 2001.Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2001000200016&lng=pt&nr
m=iso>. acesso em 08 jul. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200016.
DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 2005.

LOPES, Frederico Alves et al. MULHER TRABALHADORA: CONSTRUINDO AIGUALDADE


E A DIVERSIDADE DE GÊNERO NA ESCOLA. Pedagogia em Ação, v. 10, n. 1, p. 48-63, 2018.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, história e educação: construção e desconstrução. Educação &
Realidade, v. 20, n. 2, 1995. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71722> Acesso em 08 de julho 2019.

61
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIAGEM SOLITÁRIA: MEMÓRIAS DE UM TRANSEXUAL TRINTA ANOS DEPOIS
(JOÃO W. NERY) NA PERSPECTIVA DE PAUL RICOUER.

Luciana Xavier Bastos Lacerda63

Resumo: “Viagem Solitária: Memórias de um Transexual trinta anos depois” é uma obra de João W.
Nery, o primeiro transexual masculino a ser “operado” no Brasil, neste livro ele recupera suas
memórias apresentando ao mundo o seu sofrimento íntimo e solitário encarcerado em um corpo de
mulher, apesar de sentir-se homem. Paul Ricouer, renomado filósofo francês do pós-guerra construiu
uma riquíssima obra tratando da tríade: a Memória, a História, o Esquecimento. Este estudo propõe-
se a refletir sobre as memórias de Nery na perspectiva de Ricouer, corroborando a fragmentação de
um “ser”, inábil em conhecer-se por completo e em dominar inteiramente sua própria condição,
todavia capaz de compreender-se como ser humano a partir das experiências vividas, projetando nas
imagens de memória desdobradas pela “transformação” do corpo, um recurso de resistência,
transgressão e superação.

Palavras-chave: Gênero; Transexualidade; Memória; Esquecimento e História.

REFERÊNCIAS

BEATRIZ SARLO. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. SP: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. SP: Martins Fontes, 1999.

BOURDIEU, Pierre. Memória e Sociedade - o Poder Simbólico. Editora: Bertrand Brasil. 2003.

ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes. Editora Zahar. 1990.

JACY ALVES, Seixas. Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e


história. História. São Paulo: EdUNESP, v. 20, 2001.

NERY, João W. Viagem solitária: Memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo.
Editora Leya, 2011.

MANUELA S. MATTOS. Ética da memória em Walter Benjamin: Um ensaio. Editora Bestiário.


Chapecó/SC. 2016.

MARIE JEANNE, Gagnebin. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

63
Mestranda em Memória, Lingagem e Sociedade (UESB). Especialista em Gênero e Sexualidade na Educação
(UFBA).
62
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MARIETA DE MORAES, Ferreia. Oralidade e memória em projetos testemunhais. In: LOPES,
Antonio Herculano; MONICA PIMENTA, Veloso e SANDRA JATAHY, Pesavento (orgs).
História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n.


3, 1989.

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, Ed. Unicamp: 2007.

TODOROV, Tzvetan. Los abusos de lamemoria. Barcelona: Paidós, 2000. YATES, Frances A. El
arte de la memória. Madri: Taurus, 1974.

63
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES
PARA O COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Fernanda Machado64
Márcio de Oliveira65

Resumo: O presente trabalho visa enfatizar a contribuição da Educação em Direitos Humanos (EDH)
no contexto escolar para o combate à violência contra a mulher, sobretudo em um momento de
desmonte das instituições públicas e avanço de pautas conservadoras no cenário político brasileiro.
Trata-se de uma pesquisa com a abordagem qualitativa, utilizando de análise documental e
bibliográfica. A Educação em Direitos Humanos tem como foco a formação ética, crítica e política,
em que é enfatizada a formação orientada por valores humanizadores, como a equidade, justiça,
liberdade, devendo estar pautada no sentido de emancipar e tranformar os sujeitos de direitos,
servindo de referência ético-política para a reflexão da maneira de pensar e agir individual e
coletivamente. A EDH tem como princípio a dignidade humana, o reconhecimento e a valorização
das diferenças e das diversidades, portanto, enfatizar o debate destes princípios no contexto escolar é
um dos meios, junto com as políticas públicas de combate à violência contra a mulher, de quebrar
paradigmas e estereótipos machistas que tendem a se perpetuar em nossa sociedade. A Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340/2006), por exemplo, ressalta que, se destaque nos currículos escolares de todos
os níveis de ensino, conteúdos relativos aos Direitos Humanos, à equidade de gênero e de raça ou
etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Portanto, debater este tema,
no contexto escolar é um meio para a quebra do machismo enraizado culturalmente, pois, somente
por meio de uma cultura em que os preconceitos são questionados e modificados é que se legitima
uma Educação consciente e livre de discriminação, para que, com isso, a construção de uma sociedade
sem estereótipos onde o patriarcado não tenha vez nem voz, seja de fato, efetivada. É preciso,
portanto, defender a instituição escolar como lócus de debates científicos a fim de diminuir toda e
qualquer forma de violência, almejando uma cultura de paz; e com predicativos basilares como
democracia, justiça e respeito, a partir da pauta dos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos; Contexto Escolar; Violência Contra a Mulher.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências. Brasília, 2006. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm> Acesso em: 02
ago. 2020.

______. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI,
2013. Disponível em:

64
Mestranda do curso de Mestrado em Educação, pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM, câmpus
Manaus. E-mail: fehmelo9@gmail.com
65
Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela Universidade Federal
do Amazonas – UFAM, câmpus Manaus. E-mail: marcio.1808@hotmail.com
64
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15548-d-c-n-
educacao-basica-nova-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 02 ago. 2020.

HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de


Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

65
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ENTRE SABERES TRADICIONAIS, INTERSECCIONALIDADES E APRENDIZAGEM:
A PRESENÇA INDÍGENA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA

Renata Colbeich da Silva66


Tatiane Motta da Costa e Silva67

Resumo: O presente trabalho parte da Universidade Federal do Pampa, campus Uruguaiana e a


inserção indígena em cursos de graduação na respectiva instituição. Seu objetivo foi de pensar por
intermédio da Lei de Cotas – Lei nº 12.711, questões que perpassam as políticas de acesso e
permanência em sua forma burocrática. A partir do método etnográfico, pela observação participante,
pesquisa em arquivos, e ainda, por interlocuções com as(os) estudantes indígenas em seu
protagonismo na experiência no ensino superior, chegamos a resultados que estão para além do
histórico da construção das políticas públicas, que apesar de sua extrema importância, ainda se
constroem por olhares deficitários, não considerando, diferentes modos de ser indígena. Concluiu-se
que para o acesso e permanência indígena na universidade, é necessário um olhar diferenciado para
com as questões indígenas, considerando pautas de aprendizagem significativas que tangem saberes
tradicionais e tensões entre disputas étnicas e diferentes interseccionalidades.

Palavras-chave: Educação Indígena; Saberes tradicionais; Interseccionalidades; Políticas Públicas.

REFERÊNCIAS

MARIA APARECIDA BERGAMASCHI; et all. “Estudantes indígenas em universidades brasileiras:


um estudo das políticas de acesso e permanência”. Revista brasileira de Estudos pedagógicos,
Brasília, v. 99, n. 251, p.37-53, jan./abr. 2018.

CERES BRUM; RENATA COLBEICH. PET-Indígena Ñande Reko UFSM. In: Intelectuais
indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil [recurso eletrônico]: povos
indígenas e os novos contornos do programa de educação tutorial/ conexões de saberes / organização
Ana Elisa de Castro Freitas. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-papers, 2015.

ADRIANA PISCITELLI. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes


brasileiras. In: Sociedade e Cultura. Goiânia: UFG, v.11, n.2, P.263-274, 2008.

66
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail:
rcolbeich@gmail.com
67
Doutoranda em Educação em Ciências, pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus Uruguaiana. E-
mail: tati_mcs@hotmail.com
66
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CULTURA E CUIDADO: SABERES TERAPÊUTICOS ANCESTRAIS UTILIZADOS POR
MULHERES QUILOMBOLAS

Jamile Guerra Fonseca68

Resumo: Povos tradicionais como comunidades quilombolas tem um modo de ser e estar no mundo
muito próprio, rica em saberes e fazeres tradicionais perpassados através de gerações no decorrer do
tempo e espaço em que se situam. A preservação da identidade cultural e diversidade cultural desses
povos costuma ocorrer mediante a preservação dos seus patrimônios naturais, culturais, religiosos e
tradicionais. Ainda assim, são invisibilizadas na sociedade moderna que renega por vezes suas
práticas terapêuticas e modo de produção e reprodução social intensificando as lutas por melhores
condições de vida e reconhecimento simbólico. Nesse contexto a pesquisa tem põe objetivos:
Desvelar sobre o uso de práticas terapêuticas tradicionais entre mulheres quilombolas; descrever
quais as estratégias para o auto cuidado costumam ser utilizados por mulheres quilombolas a partir
do seu contexto social. A justificativa para o estudo é justamente o resgate simbólico e publicização
posterior do uso de práticas terapêuticas ancestrais que são realizadas nas comunidades quilombolas,
adentrando ao possível universo de plantas, oráculos, lunações, rituais, cantos sagrados e suas
diversidades. Essa pesquisa será etnográfica considerando que essa é uma metodologia que se aplica
ao estudo da cultura e comportamento de determinados grupos sociais, com análise qualitativa e que
pretende utilizar entrevistas contextuais com o público alvo. Propõe-se assim o resgate de saberes
tradicionais de mulheres quilombolas e valorização simbólica dessa comunidade.
Palavras Chave: Cultura, Cuidado, práticas terapêuticas, ancestralidade

REFERÊNCIAS

BOURDÍEU, P. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.


FRANCO, E. A. P.; BARROS, R. F. M. Uso e diversidade de plantas medicinais no Quilombo Olho
D’água dos Pires, Esperantina, Piauí. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, Botucatu, v. 8, n.
3, p. 78-88, 2006.

GADELHA, C. S.; PINTO JUNIOR, V. M.; BEZERRA, K. K.; PEREIRA, B. B.; MARACAJÁ, P.
B. Estudo bibliográfico sobre o uso das plantas medicinais e fitoterápicos no Brasil. Revista Verde,
Mossoró, v. 8, n. 5, p. 208-212, 2013.

ROSA, P. L. F. S.; HOGA, L. A. K.; SANTANA, M. F.; SILVA, P. L. Uso de plantas medicinais por
mulheres negras: estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda. Revista da Escola de
Enfermagem da USP, São Paulo, n. 48, p. 46-53, 2014.

SOUZA, Patrícia Borda; ARAÚJO, Klariene Adrielly. A mulher quilombola: da invisibilidade à


necessidade por novas perspectivas sociais e econômicas, p. 163-182. In: ESTEVES, Juliana
Teixeira; BARBOSA, José Luciano Albino; FALCÃO, Pablo Ricardo de Lima. Direitos, gênero e
movimentos sociais II. Florianópolis: CONPEDI, 2014.

68
Graduanda em sociologia. Professora doutora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, campi santo
Amaro-Ba.. E-mail: jamgfonseca@gmail.com
67
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FERNANDES; S.L, SANTOS; A.O. Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas de
Alagoas, Brasil Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 16, n. 2, 2016, p. 127–
143.

MOREIRA, H.; CALEFFE, L. G. Metodologia da pesquisa para professor pesquisador. Rio de


Janeiro: DP&A, 2006.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução a Pesquisa em Ciências Sociais: A pesquisa Qualitativa em


educação. O positivismo, a fenomenologia e o marxismo. 14a tiragem São Paulo: Atlas, 2006.

68
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA DO FEMINICÍDIO NO BRASIL A PARTIR DO
WEBJORNALISMO NO ANO DE 2020

Jessica Palanchuk69

Resumo: Este subprojeto de pesquisa objetiva “compreender a construção da geografia do


feminicídio no Brasil a partir do webjornalismo no ano de 2020”. A Lei nº 13.104/2015, que alterou
o Artigo 121 do Código Penal Brasileiro, previu o feminicídio enquanto uma motivação qualificativa
do crime de homicídio, inserindo-o no rol de crimes hediondos. Contudo, mesmo com a criação desta
legislação, segundo o Fórum de Segurança², 70ocorreu no Brasil entre os anos de 2015 e 2018 um
crescimento do total de feminicídios: 2015 – 449; 2016 – 929; 2017 – 1075; 2018 – 1206. Várias
representações são constituídas sobre este fenômeno, sendo uma delas aquela realizada pelo
webjornalismo (SILVA, 2013). Segundo Balog (2017), a mídia tem um papel importante na visão do
senso comum sobre a violência, tanto a sofrida quanto a praticada. Para esta autora, a mídia tem um
papel crucial na localização de sujeitos envolvidos nos episódios de violência, tendo ela o poder de
formar opiniões, informando a população sobre crimes que ocorreram, caracterizando os agentes da
violência e apresentando os “motivos” que “justificam” estes assassinatos. Portanto como objetivos,
pretende-se mapear a geografia das webnotícias de feminicídio veiculadas na internet no ano de 2020
no Brasil, identificar padrões temporais das webnotícias de feminicídio veiculadas na internet e
analisar os conteúdos das webnotícias. Como metodologia criamos “Alerta Google” com palavras-
chaves como “mulher é morta”, “mulher é assassinada” e “feminicídio”, assim apos as analises das
noticiais, padronizamos as informações no banco de dados criado pelo Grupo de Estudos Territoriais
(GETE-UEPG). A referente trabalho se trata da pesquisa de conclusão de curso, a qual está em
andamento, tento como parceiros o Grupo de Estudos Territoriais (GETE-UEPG)

Palavras-chave: Geografia Feminista; Feminicídio; Mulher; Webnotícias; Webjornalismo.

REFERÊNCIAS

BALOG, Ana Julieta Parente. “A notícia do crime: as representações sociais do assassinato de


mulheres nos jornais cearenses”. In: XXXI Congresso Alas. Las Encrucijadas Abiertas de America
Latina – La Sociologia en tiempos de Cambio. 31ª Edição, Montevideo. Anais…, 2017, p. 1 – 17.

GUARESCHI, Pedrinho. Representações sociais: alguns comentários oportunos. In:


NASCIMENTO- SCHULZE, C. M. (Org.). Novas contribuições para a teorização e pesquisa em
representação social. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1996. p. 9 - 35. (Coletâneas da
ANPEPP, 10).

JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. (Org.).


Representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p. 17 - 44.

69
Graduanda do curso de Bacharelado em Geografia, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, campus
Uvaranas. E-mail: jessica00palanchuk@gmail.com
70
Fonte: <http://estatisticas.forumseguranca.org.br/>. Acesso em 26 de Junho de 2020.
69
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações Sociais: para uma fenomenologia dos saberes sociais.
Psicologia e Sociedade, v. 10, n. 1, p. 54 - 68, 1998.

MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis:


Vozes, 2004.

REIS, Sebastiana Lindaura de Arruda; BELLINI, Marta. Representações sociais: teoria,


procedimentos metodológicos e educação ambiental. Acta Scientiarum. Human and Social
Sciences, v. 33, n. 2, p. 149 - 159, 2011.

SILVA, Dayanne Pereida da. Construção da violência sexual infanto-juvenil em webnotícias: um


estudo de caso no g1 e na folha.com (2007-2011). Dissertação (Mestrado em Comunicação e
Cultura Contemporâneas) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas, UFBA, Salvador, 2013.

SILVA, Joseli Maria. A verticalização de Guarapuava (PR) e suas representações sociais. Tese
(Doutorado em Ciências – Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, UFRJ, Rio de
Janeiro, 2002.

70
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICAS SOCIAIS: PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA

Paula Jordana Moreira Moraes71

Resumo: A Constituição Federal de 1988, em seu Capítulo VII, trouxe especial proteção do Estado
à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso. O artigo 227 da Carta Magna, com redação
dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010, estabelece que é dever da família, da sociedade e
do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dada a relevância de tais
previsões constitucionais, foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de
Julho de 1990, também conhecido como ‘ECA’, que é um conjunto de normas que cuida exclusiva e
especificamente do tratamento social e legal que deve ser dispensado às crianças e adolescentes no
nosso país. O ECA prevê a proteção integral e veda a discriminação de qualquer natureza a todas as
crianças e adolescentes. Além do estabelecimento de tais regras e parâmetros, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, ancorado nesse ‘sistema de proteção dos direitos da criança e do adolescente’ prevê
uma política de atendimento para viabilizar a concretização desses direitos, de maneira conjunta e
articulada. Dentre os órgãos e entidades que atuam na busca da escorreita efetivação dos direitos das
crianças e dos adolescentes, pode-se destacar o Conselho Tutelar, que é um órgão não jurisdicional,
porém que detém poder de decisão e requisição, sendo que as decisões devem se dar de maneira
colegiada e estão sujeitas a controle judicial. As medidas de proteção, também foram delineadas pelo
ECA, entre elas o Acolhimento Institucional que, é tratado de forma aperfeiçoada pela Lei 12.010, de
03 de agosto de 2009. No ano de 2017, com o advento da Lei 13.431, estabeleceu-se o sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, tendo sido
regulamentada pelo Decreto nº 9.603/2018. Para que os Tribunais de Justiça de todo o país estejam
preparados para atender às demandas que envolvam crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editou a Resolução nº 299, para regulamentar a
referida lei e os procedimentos a serem adotados. Nesse contexto, podemos concluir que é necessário
dispensar atenção diferenciada no desenvolvimento e aplicação de políticas públicas voltadas para a
proteção dessas pessoas que encontram-se em desenvolvimento e que, por desequilíbrios sociais
alheios ao seu controle, passam a depender quase que exclusivamente da ação estatal, para que os
direitos da infância e da juventude sejam efetivados através de políticas sociais efetivas. A tarefa de
desenvolver políticas públicas, que pode parecer simples, nem sempre é fácil, pois envolve uma série
de ações cronológicas e tomadas de decisões que pressupõem, dentre outros, a disponibilidade de
recursos financeiros por parte do Poder Público, o que nem sempre ocorre, forçando a fixação de
prioridades.

Palavras-chave: Políticas Sociais; Proteção; Crianças; Adolescentes; Violência.

71
Servidora Pública. Egressa do Curso de Direito da Universidade Regional Integrada – URI, Campus Santiago/RS.
Pesquisa sobre Políticas Sociais: proteção de crianças e adolescentes em situação de violência. E-mail:
jpepjmmoraes@gmail.com
71
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ANDRÉA AMIN, Rodrigues; BORDALLO, Galdino Augusto Coelho; CLÁUDIA CONDACK,


Canto; KÁTIA REGINA MACIEL, Ferreira Lobo Andrade (org.); BIANCA MORAES, Mota de;
PATRÍCIA RAMOS, Pimentel de Oliveira Chambers; HELANE RAMOS, Vieira; ÂNGELA
MARIA SANTOS, Silveira dos; PATRÍCIA TAVARES, Silveira. Curso de direito da criança e do
adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

ÂNGELA CRISTINA MARQUES, Salgueiro. A deliberação pública e suas dimensões sociais,


políticas e comunicativas. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em:
02 Ago. 2020.

BRASIL. Lei 13.431/2017. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-


2018/2017/Lei/L13431.htm>. Acesso em: 02 Ago. 2020.

BRASIL. Decreto nº 9.603/2018. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-


2018/2018/Decreto/D9603.htm>. Acesso em: 02 Ago. 2020.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Senado Federal, 1990. In: DOU de
16/07/1990 e retificado em 27/09/1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 10 de Jul. 2020.

BRASIL. Lei Nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Brasília: Senado Federal, 2009. In: DOU de
04/08/2009 e retificado em 02/09/2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm>. Acesso em: 11 de
Jul. 2020.

CUNHA, Rogério Sanches; LÉPORE, Paulo Eduardo; ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da
Criança e do Adolescente: Comentado. São Paulo: 4ª. ed. Revista dos Tribunais Ltda., 2013.

DIAS, Reinaldo; FERNANDA MATOS. Políticas Públicas Princípios, Propósitos e Processos. São
Paulo: Atlas, 2017.

ESTHER MARIA ARANTES, de Magalhães; PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (org.). A arte de
governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil.
Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria
e Editora, 1995.

ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência. São


Paulo: 15ª. ed. Editora Atlas, 2014.

72
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ESPACIALIDADES E PERFORMATIVIDADE DO SAGRADO FEMININO: O
GRUPO YEBA BELO NA CIDADE DE PONTA GROSSA, PARANÁ

Nelson Resende Paula Filho72


Adriana Gelinsk73

Resumo: O presente trabalho faz parte das discussões do trabalho de conclusão de curso, estando em
desenvolvimento e possui como objetivo compreender “como o espaço compõe a performatividade
do sagrado feminino do Grupo Yeba Belo em Ponta Grossa, Paraná”. O grupo é formado por mulheres
que praticam o que é denominado por Jansen, Carneiro e Ferreira (2019) por ‘círculo do sagrado
feminino’. Tem por símbolo catalisador o ‘elemento fogo’, segundo processos de individuação e
fortalecimento de vínculos. Suas práticas são constituídas pelos elementos de feminilidade,
sacralidade/espiritualidade e espacialidade. Referente às discussões geográficas sobre a temática da
‘religião’, como evidenciado pelo Observatório da Produção Geográfica Brasileira, coordenado pelo
Grupo de Estudos Territoriais (GETE-UEPG), dos 340 artigos publicados nos 97 periódicos
geográficos brasileiros, nos anos de 1935 a 2019, apenas 21 artigos (6,17%) tinham preocupação
pelas temáticas 3 de gênero, feminilidade e corporeidade. Como afirmado por Monk e Hanson (2016),
grande parte da produção geográfica tem adotado uma perspectiva sexista, produzindo o que as
autoras chamam de ‘teoria com cegueira de gênero’. Hopkins (2016) argumenta que a crítica deste
caráter sexista é uma das muitas contribuições que estão sendo realizadas por geógrafas e geógrafos
feministas, como exemplo as denominadas ‘Geografias Feministas da Religião’, que defendem a
importância de considerar as maneiras pelas quais as ‘religiões’ e as ‘espacialidades’ são
distintamente experienciadas por homens e mulheres. Assim, segundo a realização de entrevistas
semiestruturadas e análise de conteúdo do discurso com as mulheres que participam do Grupo Yeba
Belo, compreenderemos como o espaço compõe a performatividade do sagrado feminino deste grupo.

Palavras-chave: Espaço; Gênero; Espiritualidade.

REFERÊNCIAS

SUELLEN GALVÃO, Jansen; JÉSSICA NOCÊRA, Carneiro; LIGIANE, Ferreira. A arteterapia


como facilitadora no processo de rodas do sagrado feminino. In: XI Jornada de Arteterapia e
Filosofia: Arte – Espiritualidade – Saúde, 1ª Edição, Balneário Camboriú - SC. Anais… Anais
Impresso, 2019.

JANICE, Monke; SUSAN, Hanson. Não exclua a metade do humano da Geografia Humana. In:
JOSELI MARIA, Silva; ORNAT; CHIMIN JUNIOR. Geografias Feministas e das Sexualidades:
Encontros e Diferenças. Ponta Grossa: Editora Toda Palavra, 2016, p. 31 – 54.

72
Graduando do curso de Geografia Bacharelado, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-Paraná. E-mail:
nelsonresend@gmail.com
73
Doutoranda do curso de Geografia, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-Paraná. E-mail:
drycagelinski@gmail.com
73
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HOPKINS, Peter. Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geografias feministas da
religião. In: JOSELI MARIA, Silva; ORNAT; CHIMIN JUNIOR. Geografias Feministas e das
Sexualidades: Encontros e Diferenças. Ponta Grossa: Editora Toda Palavra, 2016, p. 109 – 130.

74
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICAS PÚBLICAS E DEMANDAS SOCIAIS: O CONTROLE SOCIAL COMO
FERRAMENTA NA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS

Paula Jordana Moreira Moraes74

Resumo: A atual Constituição Federal vigente em nosso país, promulgada em 1988 e conhecida como
Constituição Cidadã, foi elaborada nos pilares da democracia e da participação a partir da
mobilização social, o que representou um grande avanço na conquista de direitos. Mesmo com todo
esse aprimoramento, a burocracia, herdada de outras constituições e que historicamente acompanhou
os procedimentos adotados pelo Estado continuou a vigorar. Com o advento da Reforma
Administrativa, materializado através da Emenda Constitucional nº 19/98, sobreveio o Estado
Gerencial em detrimento do conhecido Estado Burocrático. Com esse acontecimento, acresceu-se ao
Artigo 37 da Constituição Federal o Princípio da Eficiência. Ocorre que, em que pese o esforço do
legislador, tal mudança não foi suficiente para que o Estado seja eficiente em suas ações, tampouco
resultou em um Estado efetivo, que priorize as políticas públicas voltadas para as ações sociais na
busca da efetivação dos direitos fundamentais. É por essa lacuna, que se faz necessário repensarmos
a estrutura estatal a partir de uma gestão pública empreendedora e democrática que vise suprir as
necessidades da sociedade civil através de Políticas Públicas bem desenvolvidas em prol do cidadão,
que deve retomar seu posto de destaque, seja no acesso aos serviços públicos de qualidade, seja na
tomada de decisões que os viabilizem, elencando prioridades e planejando a distribuição consciente
dos recursos. O cidadão é o principal interessado na efetivação dos direitos sociais, é também quem
propicia o custeio dos serviços através da contribuição, em sua maioria por impostos, mostrando-se
imperioso que participe da formulação de soluções e exerça o controle social dessas ações. A atuação
no processo decisório de políticas públicas não só garante o exercício da cidadania como, também,
contribui para que se alcance a efetivação de direitos, sobretudo os fundamentais, além de promover
a identificação de sujeitos com a constituição que os regem. A participação individual fortalece a
coletividade e propicia o desenvolvimento de políticas públicas sociais de forma mais equânime.
Assim, o exercício da cidadania, através da participação popular, seja ela de maneira exclusiva ou
articulada, durante todas as fases de construção de políticas públicas que busquem a efetivação de
direitos sociais, se mostra adequada e fundamental para a concretização dos anseios da população
independentemente do seu lugar de colocação na sociedade ou do grupo com o qual se identifique. O
controle, por meio da participação social, pode e deve ser exercido desde a concepção das políticas
públicas, passando pelo seu desenvolvimento, fiscalização e avaliação quanto aos resultados obtidos.
Há necessidade do cidadão restabelecer seu protagonismo na busca pela efetivação de seus direitos
para o escorreito atingimento do tão almejado Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Políticas Públicas; Controle Social; Democracia; Efetivação de Direitos.

REFERÊNCIAS

74
Servidora Pública. Egressa do Curso de Direito da Universidade Regional Integrada – URI, Campus Santiago/RS.
Pesquisa sobre Políticas Sociais: proteção de crianças e adolescentes em situação de violência. E-mail:
jpepjmmoraes@gmail.com
75
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ÂNGELA CRISTINA MARQUES, Salgueiro. A deliberação pública e suas dimensões sociais,
políticas e comunicativas. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

BEATRIZ MARIA HEREDIA, Alasia de; BARREIRA, Alencar Firmo; IRLYS BEZERRA, Marcos
Otavio; PALMEIRA, Moacir; CORADINI, Odaci Luiz. Política, governo e participação popular
Conselhos, orçamento participativo e outras experiências. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em:
10 Set. 2019.

BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa por um Direito


Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da
legitimidade. São Paulo: 3ª. Ed. Malheiros, 2008.

CHRISPINO, Alvaro. Introdução ao Estudo das Políticas Públicas uma visão interdisciplinar e
contextualizada. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

DIAS, Reinaldo; FERNANDA MATOS. Políticas Públicas Princípios, Propósitos e Processos. São
Paulo: Atlas, 2017.

ESTHER LANGDON, Jean; MÁRCIA GRISOTTI. Políticas Públicas Reflexões Antropológicas.


Florianópolis: Ed. da UFSC, 2016.

JUNIOR, João Francisco da Mota. A Constituição Cidadã e a Participação Social – além da


cidadania uma questão de efetivação de direitos. Brasília: Publica Direito, 2013-2015. Disponível
em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=eb484fced33f6d6d>. Acesso em: 12 Set. 2019.

MOTA, Marcel Moraes. Teorias Axiológicas dos Direitos Fundamentais e Hermenêutica


Constitucional. In: MATIAS, João Luis Nogueira (coord.). Neoconstitucionalismo e Direitos
Fundamentais, São Paulo: Atlas, 2009.

RODRIGUES, Raimilan Seneterri da Silva. A Moderna Interpretação dos Direitos Fundamentais. In:
MATIAS, João Luis Nogueira (coord.). Neoconstitucionalismo e Direitos Fundamentais, São
Paulo: Atlas, 2009.

TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil.


Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

76
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“MARGARITA COM CANUDINHO”: REFLEXÕES SOBRE SOBRE GÊNERO,
BISSEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA

Danieli Klidzio75
Graziella de Camargo da Costa76
Luciana Cassol Turcato77
Márcia Eliane Leindcker da Paixão78

Resumo: Este trabalho deriva de reflexões junto ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e
Gênero, do Centro de Educação, da Universidade Federal de Santa Maria. O grupo atualmente é
composto por mulheres cisgêneras e busca discutir temas que se relacionam com uma perspectiva
crítica educacional e de gênero. Neste ano de 2020, por conta do isolamento social como medida
preventiva ao contágio do novo coronavírus, nossos encontros têm sido adaptados para a modalidade
on-line. Neste trabalho pautamos a bissexualidade e a deficiência a partir do filme “Margarita com
Canudinho” (2014) que tem como protagonista Laila, uma mulher bissexual e com paralisia cerebral.
Como material de apoio temos capítulos do Guia teórico produzido pelo Coletivo Feminista Helen
Keller, lançado em Maio de 2020 e intitulado “Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para
Exercício da Cidadania”. Escrito por mulheres com deficiência, o Guia traz como centralidade a
deficiência relacionada a temas como feminismo, violência, direitos sexuais e reprodutivos e
educação sexual. Objetivamos analisar a invisibilidade bissexual e a invisibilidade da mulher com
deficiência no que se refere, principalmente ao recorte de gênero e sexualidade. A produção
audiovisual traz a protagonista como uma mulher bissexual e desconstroi e ressignifica lógicas
"capacitistas" (LUIZ, 2020). Utilizamos "gênero" enquanto categoria de análise (SCOTT, 1995) para
discutir estereótipos da bissexualidade e da deficiência entendendo que os papéis sociais se
relacionam com a identidade de gênero, a orientação sexual e a condição social da pessoa com
deficiência. Pautamos o desejo e a liberdade sexual e afetiva das pessoas com deficiência e propomos
nossa discussão por uma perspectiva monodissidente. A "monodissidência" (LEÃO, 2018),
configura-se como a dissidência da monormatividade, que é aquela que nomeia orientações sexuais
como a hetorossexualidade e a homossexualidade que possuem apenas um gênero pelo qual sentem
atração afetiva e/ou sexual ou se relacionam. Entendemos esse contexto como influenciado por
estereótipos que não somente invisibilizam a bissexualidade mas também a denomina de formas
violentas por conta da compreensão da sexualidade que se dá pelo binarismo hétero e homo, que não
comporta outra sexualidade como válida. De maneira semelhante, mas por uma perspectiva que
invalida também o corpo e a vida social, a mulher com deficiência possui sua sexualidade
invisibilizada por uma estrutura capacitista. Vistas sob um olhar objetificador, as pessoas com
deficiência são infantilizadas e fetichizadas. Portanto, ressaltamos a necessidade de uma educação
emancipatória em nossos contextos interioranos e rurais, que preocupada com as questões de gênero

75
Mestranda em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Santa Maria. E-mail:
danieli.klidzio@gmail.com
76
Graduanda em Pedagogia, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Santa Maria. E-mail:
grazicamargo26@hotmail.com
77
Graduanda em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Santa Maria. E-mail:
lucianturcato@gmail.com
78
Professora do Centro de Educação, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus Santa Maria. E-mail:
marciapaixao12@gmail.com
77
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e sexualidade não seja afetada por pânicos morais (BALIEIRO, 2018), em nome de uma suposta
"ideologia de gênero". Uma educação crítica ao capacitismo, que defenda os direitos sexuais e
reprodutivos, possibilitando acessos seguros em espaços de socialização e em instituições de ensino
para as pessoas com deficiência. Assim, o futuro se distanciará de um imaginário estereotipado, que
invisibiliza e violenta. Nesse sentido, fazer essas intersecções de gênero, bissexualidade e deficiência
é urgente, pois o campo educativo contribui com a reflexão e com mudanças de perspectiva. Daí, a
necessidade de trazermos esses temas para o debate.

Palavras-chave: Gênero; Bissexualidade; Deficiência; Capacitismo.

REFERÊNCIAS

BALIEIRO, F. F. “Não se meta com meus filhos”: a construção do pânico moral da criança sob
ameaça. Cadernos Pagu, n. 53, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n53/1809-4449-
cpa-18094449201800530006.pdf Acesso em: 12 dez. 2019

GUIA feminista Helen Keller - Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da
Cidadania, 2020.

LEÃO, Maria. Os unicórnios no fim do arco-íris: bissexualidade feminina, identidades e política no


Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais. 2018, 117 f. Dissertação (mestrado em Saúde
Coletiva) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

LUIZ, Karla Garcia. Deficiência pela perspectiva dos direitos humanos. In. CONSTANTINO,
Carolini; LUIZ, Karla Garcia; COSTA, Laureane Marília de Lima, et al (ORG). Mulheres com
Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania. 2020.

MARGARITA com Canudinho. Direção de Shonali Bose. India: Viacom18 Motion Pictures, 2014.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2,
1995.

78
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MASCULINIDADES EM APLICATIVOS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE E DA DIFERENÇA

Daniel da Silva Stack79


Fernando de Figueiredo Balieiro80

Resumo: Com advento das novas tecnologias, se impôs a necessidade de pesquisar as mudanças nas
relações sociais mediadas pelas tecnologias digitais. A busca por parceiros afetivos/sexuais se
modificou com o surgimento de tecnologias portáteis que trazem mobilidade e praticidade para a
busca amorosa/sexual, que não apenas alteram as dinâmicas do encontro em termos de mobilidade e
praticidade, mas também reproduzem hierarquias sociais que os antecedem. Corpo, gênero,
raça/etnia, classe social são atributos que perpassam a vida social e encontram-se como norteadores
das relações dentro de aplicativos. Dessa forma, os usuários de aplicativos são norteados por padrões
estéticos ideais construídos através da história e amplamente difundidos. Na busca amorosa e sexual
entre homens que buscam homens, destacar certos atributos no perfil é tornar seu perfil mais atrativo
e se destacar entre os usuários, um perfil que exalta um corpo musculoso, viril e masculino é objeto
de desejo, outros fatores como classe social, raça e escolaridade hierarquizam os sujeitos na busca
afetivo-sexual. A plataforma apresenta uma estrutura própria e uma dinamicidade, pois ela produz as
interações entre os usuários mas também é produzida a partir das relações sociais. O objetivo do
trabalho é compreender como homens que residem em Santa Maria e procuram parceiros afetivos e
sexualmente no aplicativo Grindr agenciam sua sexualidade, masculinidade e corpo no aplicativo,
entendendo que a busca por um padrão ideal de masculinidade viril e marcada pela discrição está
presente em perfis de Santa Maria, mas que essa busca não é homogênea, há uma pluralidade de usos
dos aplicativos na região de Santa Maria, que por ser centro de polo militar e universitário apresenta
contraste entre perfis que seguem os ideais de corpo e masculinidade, que optam por viver sua
sexualidade no sigilo e perfis compostos de homens que reivindicam espaços e tentam contradizer a
norma no que tange a masculinidade e corporeidade, no que é possível dentro da plataforma do
aplicativo. Através de uma imersão ao campo (plataforma do aplicativo) por meio de uma etnografia
online, que possibilitará experienciar na plataforma, a construção do perfil e a visualização dos perfis
que residem no município. Através da análise semiótica dos perfis, ao se tratar de aplicativos de
relacionamentos, o perfil constitui um código, que conta com o objetivo do criador em comunicar os
outros usuários sobre algo, o código pode ter várias funções, para a pesquisa sobressaem o código
iconológico, estético e erótico que servirão como categorias de análise. Através de entrevistas semi-
estruturadas, há a possibilidade de aprofundar a discussão da corporalidade, masculinidade e
sexualidade, compreender como as interações no aplicativo se desdobram no encontro presencial. O
campo das mídias digitais, em especial aplicativos com finalidade de encontro de parceiros
afetivos/sexuais, proporcionam uma nova experimentação da sexualidade, do corpo e dos desejos,
para sujeitos que tiveram de viver sua sexualidade a escondida, mas também estão imersos numa
lógica capitalista e mercadológica, onde os perfis disputam entre si e utilizam diversos critérios para
se “vender” aos usuários.

79
Mestrando em Ciências Sociais PPGCS/UFSM, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus sede - Camobi.
E-mail: danielsstack@outlook.com
80
Professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais. E-mail: fernandofbalieiro@gmail.com
79
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Masculinidade; Homossexualidade; Corporalidade; Mídias Digitais.

REFERÊNCIAS

IARA BELELI. (2015), O imperativo das imagens: construção de afinidades nas mídias digitais.
Cadernos Pagu (UNICAMP), n. 44, pp. 91-114.

JUDITH BUTLER. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

REGINA FACCHINI. Histórico de Luta LGBT no Brasil. São Paulo: Pagu, 2011.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo, Graal, 2010.

FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In:


Para o Inglês ver: Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

DÉBORA LEITÃO, K.; LAURA GOMES, G. Etnografia em ambientes digitais: Perambulações,


acompanhamentos e imersões. Revista Antropolítica, n. 42, Niterói, 1. sem. 2017.

MARACCI, João Gabriel; VANESSA MAURENTE, Soares; PIZZINATO, Adolfo. Experiência e


produção de si em perfis do aplicativo Grindr. Athenea Digital, 2019.

MISKOLCI, Richard.; BALIEIRO, Fernando F. Sociologia Digital: balanço provisório e desafios.


Revista Brasileira de Sociologia, vol.6, n°12, 2018.

MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012.

MISKOLCI, Richard..O segredo. In: Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros
on-line. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

MISKOLCI, Richard. San Francisco e a nova economia do desejo. São Paulo: Lua Nova, 2014.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.


Porto Alegre: Sociologias, 2009a.

MISKOLCI, Richard. O Armário Ampliado – Notas sobre sociabilidade homoerótica na era da


internet. Niterói, v. 9, n. 2, p. 171-190, 1. sem. 2009b.

MORELLI, Fábio. PEREIRA, Bruno. A pornificação do corpo masculino: notas sobre o imperativo
das imagens na busca entre homens por parceiros on-line. Dossiê Gênero e Sexualidade. Porto Alegre:
Civitas, 2018.

LARISSA PELÚCIO. Amores em tempos de aplicativos. Bauru: Unesp, 2017.

PEREIRA, Pedro Paulo. Queer nos trópicos. Contemporânea – Revista de Sociologia da


UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 2, jul-dez 2012, pp. 371-394.
80
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EVE SEDGWICK, Kosofsky. A Epistemologia do Armário. In: Cadernos Pagu. Tradução de Plínio
Dentzien. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, 2007.

SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia.


Estudos feministas: 2/2001.

81
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA TAMBÉM “FICA EM CASA” DURANTE O PERÍODO DE
ISOLAMENTO SOCIAL?

Jiulia Estela Heling81


Marina Nogueira Madruga82

Resumo: A violência doméstica tem várias modalidades: física, verbal, sexual, psicológica,
financeira. Algumas são de difícil constatação e muitas vezes nem são compreendidas como
violência, por exemplo, a violência financeira. Não podemos esquecer que em todos os casos, ela é
uma violência de gênero. Historicamente as mulheres sofrem violências que são naturalizados pela
sociedade patriarcal, machista e sexista. E como este processo se desenvolve durante o isolamento
social provocado por uma pandemia mundial? Assim como os indivíduos, a violência doméstica
também tem “ficado em casa"? O “ficar em casa" é um elemento complexo na questão da violência
doméstica. Diante dos dados que são apresentados sobre o período pandêmico e as constatações que
se podem aferir deste período, a resposta a estas perguntas não é animadora. Se por um lado a
violência doméstica tem “ficado em casa", não é pelo aspecto positivo, mas sim porque 23,8% das
violências sofridas por mulheres, tem como agressor o companheiro/cônjuge/namorado da vítima.
Porém, por outra vez, a violência não tem “ficado em casa", no sentido de manter-se “fora de
circulação”, ela tem se concretizado. Dados apontam que os registros oficiais de violência doméstica
durante o período de isolamento social, comparado ao ano anterior, tem se mantido constante. E para
além dos dados computados, especialistas apontam que as condições enfrentadas no momento atual,
estar em casa, em distanciamento social, com o agressor, geram uma subnotificação elevada. Segundo
o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a quantidade de denúncias de violência
contra as mulheres, recebidas no canal 180, cresceu quase 40% ao compararmos o mês de abril de
2019 e 2020. O aumento da violência contra a mulher, durante o confinamento, também se evidencia
pelos relatos observados pelos canais virtuais Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora,
Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. Uma pesquisa realizada em redes sociais, constatou que entre
fevereiro e abril do corrente ano, os relatos no Twitter, de brigas de casal observadas por vizinhos,
com indícios de violência doméstica, teve um aumento de 431%. Esta pesquisa corrobora a tese de
uma subnotificação nos casos de violência doméstica. Assim, podemos concluir que a violência
doméstica “fica e não fica em casa" durante o período pandêmico. Em muitos casos o agressor se
encontra em isolamento social junto à vítima, propiciando condições para que a violência se
concretize e dificultando a busca de auxílio e denúncia destas. A violência doméstica (de gênero) não
sofre “pausa" durante a pandemia do Covid-19, ela se intensifica.

Palavras-chave: Violência Doméstica; Pandemia; Covid-19; Isolamento Social.

REFERÊNCIAS

ARIANE LEITÃO. De acordo com monitoramento, RS é o 4º Estado do Brasil com mais


feminicídios entre janeiro e abril de 2020. Disponível em:

81
Doutoranda em Sociologia, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). E-mail: jiuliaestela@hotmail.com
82
Mestranda em Política Social e Direitos Humanos, pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). E-mail:
marina_mad@hotmail.com
82
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
https://www.brasildefators.com.br/2020/06/22/um-virus-e-duas-guerras-feminicidios-aumentam-na-
quarentena-no-rio-grande-do-sul. Acesso em: 02 ago. de 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório da pesquisa Visível e invisível:


a vitimização de mulheres no Brasil. 2ª edição, 2019. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf.
Acesso em: 02 ago. 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência doméstica durante a pandemia


de Covid-19. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-
domestica-covid-19-v3.pdf. Acesso em: 02 ago.de 2020.

INARA FONSECA. Feminicídios aumentam durante quarentena no Rio Grande do Sul.


Disponível em: https://ponte.org/feminicidios-aumentam-durante-quarentena-no-rio-grande-do-sul/.
Acesso em: 02 ago. de 2020.

LILIA MORITZ, Schwarcz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

PONTE. Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia
da Covid-19. Disponível em: https://ponte.org/mulheres-enfrentam-em-casa-a-violencia-domestica-
e-a-pandemia-da-covid-19/. Acesso em: 02 ago. 2020.

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA. Indicadores da Violência Contra a Mulher - Lei


Maria da Penha. Disponível em: https://www.ssp.rs.gov.br/indicadores-da-violencia-contra-a-
mulher. Acesso em: 02 ago. de 2020.

83
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HISTORIAS EM QUADRINHOS DA LULUZINHA: UM ARTEFATO CULTURAL

Maria Elisabeth Valls de Moraes83

Resumo: Histórias em quadrinhos em minha infância e puberdade eram um deleite a usufruir nas
horas vagas nos anos 60. Haviam várias revistinhas que líamos, meus irmãos e eu: Mandrake, Super
moça, Fantasma, Sobrinhos do capitão, Bolinha e a Luluzinha. Comprávamos na banca de jornais e
revistas e todos líamos e ríamos com as situações. Trocávamos também de revistinhas com amigos e
amigas das redondezas. Sentia uma identificação com a Luluzinha, menina da minha idade que
convivia e brincava com vários guris e gurias. Não entendia o porquê de Lulu não poder entrar no
clube dos meninos do qual Bolinha, seu amigo e companheiro de aventuras e descobertas era
presidente! Após alguns anos, compreendi a intenção sutil que comunicavam estas historinhas, assim
como outros artefatos culturais como o cinema, os jornais e as novelas de época. Este estudo objetiva
analisar sucintamente, em uma historinha da Luluzinha, esta produção de significados e condutas que
normatizam maneiras de sentir, escolher e comportar-se como homens e mulheres veiculando
preconceitos. Com aproximações metodológicas aos Estudos Culturais realizo a análise e situo
brevemente o momento histórico de circulação destas historinhas no Brasil, além dos principais
discursos da sociedade carioca e paulista. Em meados do século XX no Brasil, o voto feminino estava
confirmado. Getúlio Vargas havia anteriormente proposto a reforma da lei do processo eleitoral.
Bertha Lutz liderava o movimento sufragista feminino, criava a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino e ingressava no Congresso Nacional. Fervilhava um cenário propenso a discussões e
debates com dois discursos principais: um, da diferença biológica dos sexos e seus papéis
diferenciados na sociedade e o segundo, alinhado com a ciência defendendo igualdade entre os sexos.
A história analisada segue a linha do primeiro discurso. Embora a Lulu seja uma menina inteligente,
ela é facilmente enganada com papos sobre cuidado de animaizinhos demonstrando que a mulher
sente diferente pois, vai ser mãe e sabe cuidar. Vive em uma família heterossexual assim como seus
amigos e amigas. Sugere também que mulher não gosta de jogar, de competir e não tem capacidade
física e técnica para esportes! A historinha em quadrinhos desvela preconceitos como o sexismo, o
androcentrismo e a heteronormatividade. Considera-se finalmente, que analisar este artefato cultural
possibilita um suporte teórico para discutir com pertinência em sala de aula e nas diversas situações
do cotidiano a existência de preconceitos. Estes, intimidam crianças, jovens e adultos, estimulam
desrespeitos a diversidade e inviabilizam a promoção da cidadania. Artefatos culturais podem
contribuir para a sociedade brasileira tornar-se um lugar de convivência de todos com igualdade de
direitos e oportunidades, desde que a existência de preconceitos seja visibilizada e debatida.

Palavras-chave: histórias em quadrinhos, artefato cultural, preconceitos, Estudos Culturais.

REFERÊNCIAS

BLOG MANIA DE GIBI. Set. 2011. Disponível em https://blogmaniadegibi.com/ Acesso em


01/08/20.

83
Especialista em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Pampa, campus Uruguaiana. E-mail:
melisabethmoraes@gmail.com
84
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CRISTINA FACCHINETTI; CAROLINA CARVALHO. Loucas ou modernas? Mulheres em
revista (1920-1940). Cadernos Pagu [online], n.57, Campinas, 2019. Disponível em
https://scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332019000300506&script=sci_arttext Acesso em
02/08/20.

FERNANDA PICON, Hampe, Sejamos tod@as feministas: interseccionalidade, direitos humanos e


educação. In: FABIANE DA SILVA, Ferreira; ALINNE BONETTI, de Lima (Orgs.). Gênero,
interseccionalidade e Feminismos: desafios contemporâneos para a Educação. São Leopoldo:
Oiko, 2016.

GUACIRA LOURO, Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

DAGMAR MEYER, Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: GUACIRA LOURO,
Lopes; FELIPE, JANE; SILVANA GOELLNER, Vilodre (Orgs). Corpo, gênero e sexualidade: um
debate contemporâneo na educação. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

NATANI MORAIS, Cristtine; IRSCHLINGER, Fausto Alencar. Moda, mulher e sociedade


brasileira (1920-1940). Akrópolis Umuarama, v.20, n.3, p.141-149, jul./set. 2012.

CLÁUDIA DOS SANTOS, Amaral. Dissertação de Mestrado. A invenção da infância


generificada: a pedagogia da mídia impressa constituindo as identidades de gênero. Faculdade
de Educação. Programa da Pós-Graduação em Educação. UFRGS: 2004.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo.
3.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

FABIANE DA SILVA, Ferreira; BENÍCIA DA SILVA, Oliveira. Goldie Blox “Brinquedos para as
futuras engenheiras”: problematizações sobre as implicações dos gêneros. In: ANA CLÁUDIA
MAIA, Bortolozzi et al.;JOANALIRA MAGALHÂES, Corpes;PAULA REGINA RIBEIRO, Costa
(Orgs.). Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2014.

85
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AGENTES PRISIONAIS MULHERES E AS IMPLICAÇÕES DA PROFISSÃO NO
CÁRCERE

Marina Nogueira Madruga84

Resumo: A pesquisa tem como sujeitos agentes penitenciárias gaúchas e se direciona para a
verificação de quais as implicações do ambiente e da dinâmica carcerária as mulheres que atuam nos
estabelecimentos prisionais da 5ª Região Penitenciária do Rio Grande do Sul (Camaquã, Canguçu,
Jaguarão, Pelotas, Rio Grande e Santa Vitória do Palmar). O objetivo específico inclui a indagação
acerca da existência, no estado, de políticas e/ou ações que tratem dessas implicações, desencadeadas
a partir do órgão de gestão penitenciária (SUSEPE). Os objetivos específicos são: a) Averiguar acerca
da existência, no estado, de políticas e/ou ações que tratem dessas implicações, desencadeadas a partir
do órgão de gestão penitenciária (SUSEPE); b) Analisar os efeitos da profissão na vida extramuros
dessas mulheres e c) Verificar como essas mulheres lidam com a diferenciação e se desenvolvem
estratégias próprias para enfrentar esse contexto de assimetrias na profissão. O estudo é o projeto de
pesquisa de Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Política Social e Direitos
Humanos, vinculado a linha Direitos Humanos, Segurança e Acesso à Justiça. A metodologia a ser
utilizada será de caráter qualitativo, a partir de um estudo de caso e valer-se-á de instrumento como
a entrevista semiestruturada, aplicada às agentes penitenciárias lotadas nas instituições carcerárias. O
referencial teórico prioriza três categorias: gênero, questão penitenciária e serviços penais. As
hipóteses de pesquisa são: a) Os ambientes prisionais, por serem instituições masculinizantes,
produzem sobrecargas de relações assimétricas de gênero, em relação as mulheres servidoras
penitenciárias; b) Há invisibilidade das sobrecargas a que são submetidas estas agentes sobretudo e
inclusive por parte dos gestores públicos do sistema prisional e das respectivas políticas. Como
primeiras análises, destaca-se a ausência de produção de conhecimento por parte das ciências sociais
e da área penal acerca das Agentes Penitenciárias em sua relação com as configurações prisionais e a
evidente desvalorição dessas mulheres em seu ambiente laboral. A perspectiva contributiva da análise
é a visibilização dessa realidade e seu enfrentamento no âmbito dos serviços penais.

Palavras-chave: Agentes penitenciárias; Questão Penitenciária; Encarceramento e gênero; Serviços


penais.

REFERÊNCIAS

BARCINSKI, Mariana, CÚNICO, Sabrina Daiana and BRASIL, Marina


Valentim Significados da Ressocialização para Agentes Penitenciárias em uma Prisão
Feminina: Entre o Cuidado e o Controle. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S235818832017000301257&script=sci_abstract&tlng=pt>
Acesso em: 14 de out. de 2019

BELLINELLO, CINTIA HELENA DOS SANTOS. A CASA DOS HOMENS: PASSOS


84
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de
Pelotas, Especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e Bacharela
em Direito pela Universidade Católica de Pelotas – UCPel. E-mail: marina_mad@hotmail.com

86
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DE UMA MULHER ENTRE AS MASCULINIDADES NA PRISÃO. Disponível em <
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNSP_076ad8988b711ee00f076d44928632c1> Acesso em:
14 de out. de 2019

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. A experiência vivida (Vol. 2). 2.ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1967

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e Mitos (Vol. 1). 4.ed. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1970.

BEZERRA, Cláudia de Magalhães, Assis, Simone Gonçalves de and Constantino,


Patricia Sofrimento psíquico e estresse no trabalho de agentes penitenciários: uma
revisão da literatura. Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
81232016000702135&script=sci_abstract&tlng=pt> Acesso em 11 de outubro de 2019

BIANCHI, Fernando Moreira Dardaqui; VASQUES, Patrícia. MULHERES NO


CÁRCERE: AS PECULIARIDADES DAS AGENTES PRISIONAIS FEMININAS.
Cadernos de Iniciação Científica, S. B. do Campo, n.14, 2017. Disponível em
< https://revistas.direitosbc.br/index.php/CIC/article/view/844> Acesso em: 08 de out. de
2019

BOURDIEU. Pierre. A dominação masculina. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2012

BRAUN. Ana Claudia. Síndrome de Burnout em agentes penitenciários: Uma revisão


sistemática sob a perspectiva de gênero. Disponível em
<https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/29165/20636> Acesso em: 06 de
out. de 2019

CHIES, Luís Antonio Bogo. Agentes Penitenciários no PRP: quadro abaixo do


recomendado e insegurança. Disponível em
<http://gitep.ucpel.edu.br/wpcontent/uploads/2019/09/Boletim-Tecnico-Observatorio-2019005-
AgentesPenitenci%C3%A1rios-no-PRP.pdf> Acesso em: 06 de out. de 2019

CHIES, Luiz Antônio Bogo. A questão penitenciária, pp. 15-36, - Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 25, n. 1. Disponível em
<http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/69031> Acesso em: 13 e out. de 2019

COLARES, Leni Beatriz Correia. CHIES, Luiz Antônio Bogo. Mulheres nas so(m)bras:
invisibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios masculinamente mistos.
Estudos Feministas, Florianópolis, 18(2): 352, maio-agosto/2010. Disponível em
< https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2010000200007> Acesso em: 08
de out. de 2019

87
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MACHADO, VALESKA BERMAN. ENCARCERAMENTO FEMININO: A
CAPACITAÇÃO FOCALIZADA EM GÊNERO COMO INICIATIVA POLÍTICA DE
FORMAÇÃO DAS SERVIDORAS PENITENCIÁRIAS DA SUSEPE/RS. Disponível em <
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UCPe_4605aa1338f2104137bea629d5638d8f > Acesso
em: 13 de out. de 2019

MORAES, Rodolfo Bodê de Moraes. Punição, encarceramento e construção de identidade


profissional entre agentes penitenciários. São Paulo: IBCCRIM, 2005

SCOTT, Joan (1995). “Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica”. In Educação e
Realidade.vl. 20, n. 2, p. 71-99, Porto Alegre: Pannonica

SYKES, Gresham. La sociedade de los cautivos: Estudio de una cárcel de máxima


seguridad. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017

88
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A RACIALIZAÇÃO DO ECA: UM DEBATE NECESSÁRIO

Ana Carolina de Sá Queiroz85


Caroline de Souza Araújo86

Resumo: Em meio a pandemia do vírus da COVID-19, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)


completou 30 anos, em julho deste ano. Apesar de vários avanços no campo jurídico legal, ainda
possuímos muitas dificuldades em conseguir efetivar no cotidiano de crianças, adolescentes e suas
respectivas famílias, os direitos básicos garantidos nesta legislação. O ECA representa um novo
marco civizatório no campo da infância e juventude no Brasil, ao romper com a Doutrina da Situação
Irregular, através da perspectiva da Proteção Integral, uma vez que compreende as crianças e
adolescentes enquanto sujeitos de direitos, em uma dimensão de universalidade. Destaca-se que o
maior desafio do ECA, na atualidade, seja no sentido de conseguir uma articulação entre todos os
atores do Sistema de Garantia de Direitos, configurando uma ampla e forte mobilização para manter
a juventude negra vida. Avalia-se ser extremamente fundamental racializar o debate em torno do
ECA, pois se não articularmos a discussão do Estatuto através de um olhar sobre esses sujeitos e não
problematizar as formas diferentes e desiguais de acesso as políticas públicas, a partir da questão
racial, teremos um instrumento normativo excelente, todavia reproduzindo o racismo institucional e
estrutural. Através da produção e gestão da morte, considerando o conceito de necropolítica
(MBEMBE, 2018), o Estado Brasileiro tem realizado o extermínio da juventude pobre e negra, por
meio de um projeto societário específico. Diversos estudos e pesquisas têm apresentado indicadores
sociais que mostram as desigualdades sociais e raciais no país; as absurdas distâncias que ainda
separam brancos e não brancos são evidenciadas nas relações diárias de poder e no acesso desigual
às políticas públicas e no gozo dos direitos civis, sociais e econômicos. O racismo, enquanto um dos
elementos da desigualdade social, que se constitui como fundante da sociedade capitalista, é algo que
precisa ser debatido cotidianamente, considerando o mito da democracia racial que vivenciamos há
anos. É latente a compreensão que não iremos avançar na efetivação do ECA e não teremos uma
democracia plena, se não enfrentarmos o racismo e o sistema capitalista. Em que medida podemos
considerar as crianças e adolescentes como efetivamente sujeitos de garantia de direitos, em uma
sociedade permeada pelo racismo estrutural? Dizer que uma família é negligente se torna uma tarefa
fácil, sem considerar que a análise de um modelo de produção e reprodução da questão social no
Brasil, é permeado por resquícios nefastos do escravismo, da colonização e do autoritarismo; Almeida
(2018) já sinalizava a relação intrínseca da discussão sobre raça com a desigualdade social. Em visto
disso, é necessário discutir acerca da necessidade dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos
para crianças e adolescentes de se descolonizarem e se reconhecerem enquanto racista, para que
possamos dá um passo à frente na luta racial, abordando também um debate que articule raça, classe
e gênero. Não há ampliação da democracia, sem considerar a luta antirracial, e o inverso também se
aplica, pois estamos debatendo conceitos analíticos estruturais e fundantes do modo de produção
capitalista. Portanto, racializar o ECA é urgente.

Palavras-chave: ECA; Politícas Públicas; Questão Racial.

85
Mestranda em Serviço Social pela PUC-Rio. E-mail: carolufrj2006@gmail.com
86
Mestranda em Serviço Social pela PUC-Rio. E-mail: carol.s.araujo14@gmail.com
89
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.


BRASIL. Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 27 abr. 2019.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

90
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A MULHER-MÃE “ALIENADORA”(?): DISCUTINDO ALIENAÇÃO PARENTAL A
PARTIR DOS ESTUDOS DE GÊNERO E CUIDADO

Thaís Tononi Batista87

Resumo: O objetivo do trabalho consiste em discutir uma problemática que comparece com frequência nas varas de
família dos Tribunais de Justiça de todo o Brasil. Diz respeito às constantes acusações de alienação parental por um dos
genitores, no bojo de ações tais como divórcio, guarda e regulamentação de convívio parental. A alienação parental é
compreendida em linhas gerais como a interferência psicológica por um dos genitores, visando modificar a percepção
do(s) filho(s) em relação ao outro genitor, geralmente aquele que não detém a guarda da criança. Considerando que a
guarda de filhos menores de idade ainda tem sido concedida em sua maioria às mães, a Lei nº 12.318/2010 – que dispõe
sobre a alienação parental e prevê sanções àquele que for considerado “alienador” – encontrou nas mulheres/mães a figura
principal, eleita e considerada “alienadora” em potencial. Não obstante, há várias críticas à existência da lei e assiste-se à
constantes questionamentos sobre sua efetividade em torno do fortalecimento do convívio familiar de crianças e
adolescentes cujos pais vivenciam contextos de litígio conjugal. Grupos organizados de mulheres-mães vêm questionando
de forma contundente o referido aparato normativo, fazendo-se subjacente a ideia de que a Lei da Alienação Parental
(LAP) insere-se em última instância num contexto de “ofensiva”das estruturas patriarcais. As discussões em torno do
tema vêm se mostrando polarizadas entre os defensores e críticos da lei, fazendo-se necessária a incorporação de um
debate crítico que considere as múltiplas questões que se fazem presentes nas relações familiares, porquanto, são relações
sociais também atravessadas pela construção social do gênero. As considerações são produto da dissertação de mestrado
da autora88, somadas às reflexões que foram se sucedendo e fazem parte do esforço teórico-metodológico e ético-político
com vistas a refletir de forma crítica sobre a alienação parental. Procura-se incorporar ao debate a perspectiva da
construção social do gênero aliada às discussões sobre o “cuidado” que dialoguem com os feminismos. Conclui-se que
os estudos pautados na perspectiva feminista e de gênero são um importante recurso teórico para o debate que se pretende,
pois possibilitam estabelecer importantes aproximações acerca das transformações sociais no âmbito da família, aliadas
às discussões em torno da naturalização do cuidado enquanto “atributo” das mulheres, ao passo que o homem foi excluído
e se excluiu historicame de tal tarefa. Por outro lado, estudos sobre “homens e masculinidades” que dialogam com as
discussões feministas, demonstram que também os homens são impactados pela ordem patriarcal, ainda que de formas e
intensidades diferentes das mulheres, e portanto, estão também atravessados pela construção social do gênero,
encontrando desafios próprios em torno da construção de uma noção de cuidado em relação aos filhos. Conclui-se a
importância do debate crítico que procure romper com a visão dicotômica socialmente construída de
mulheres/mães/cuidadoras/”alienadoras” e homens/pais/provedores/alienados, sobretudo, porque se faz imprescindível
abandonar visões apriorísticas que impedem uma intervenção ética junto às famílias atendidas no poder judiciário.

Palavras-chave: Construção Social do Gênero; Feminismos; Cuidado; Ética; Alienação Parental.

REFERÊNCIAS
ANA LÚCIA MARINÔMIO, de Paula Antunes. “Sentença vem de sentimento”: sobre a
subjetividade dos atores jurídicos em Varas de Família. 06 de agosto de 2010. Dissertação de
Mestrado. PUC/ RJ, 2010.

CLARA ARAÚJO. Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero. Dossiê Crítica Marxista, São
Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 65-70.

87
Mestra em Política Social (UFES); assistente social do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). E-mail:
thaistononi@hotmail.com.
88
Dissertação intitulada “Judicialização dos conflitos intrafamiliares: Considerações do Serviço Social sobre a
alienação parental”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal
doEspírito Santo (UFES).
91
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CLARA ARAÚJO; CELI SCALON. Percepções e atitudes de mulheres e homens sobre a conciliação
entre família e trabalho pago no Brasil. In: ______, Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2005.

ELISABETH BADINTER. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

ELISABETE DORIA, Bilac. Família: algumas inquietações. In: CARVALHO, M. do C. B. de (org.).


A família contemporânea em debate. 5ª ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003.

ANGELA MARIA, Borges. Reestruturação produtiva, família e cuidado: desafios para as políticas
sociais. In: BORGES, A.; CASTRO, M. G. (orgs.) Família, gênero e gerações: desafios para as
políticas sociais. 1 ed. São Paulo: Paulinas, 2007.

BRASIL. Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236
da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, 26 de agosto de 2010. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil. Acesso em: 29 de
julho de 2018.

DENISE DUARTE, Bruno. Cidadania concedida - uma possibilidade de se pensar sob o enfoque
social o Vampirismo emocional. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese,
IBDFAM, v. 6, n. 24. Jun/Jul, 2004, p. 36- 49. Disponível em http://www.direitodafamilia.net. Acesso
em 29 de abril de 2015.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.

MARIA DO CARMO BRANT, de Carvalho. O lugar da família na política social. In: ______. A
família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2005.

MARY GARCIA, Castro. Marxismo, feminismo e feminismo marxista – mais que um gênero em
tempos neoliberais. Dossiê Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n. 11, 2000, p. 98-108.

CAMILA FERNANDES. Apego e jeitos de cuidar. Afetos, trabalho e gênero na experiência do


cuidado de crianças. In: VII Congresso Latino-Americano de Estudos do Trabalho. O Trabalho no
Século XXI. Mudanças, Impactos e Perspectivas. São Paulo,2013.

GARDNER, Richard. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação


Parental (SAP)? New York: Universidade de Columbia. 2002. Tradução. Disponível em:
http://www.alienacaoparental.com.br. Acesso em 20 de março de 2015.

TATAU GODINHO. Democracia e política no cotidiano das mulheres brasileiras. In: A mulher
brasileira nos espaços público e privado. VENTURI, M. R.; OLIVEIRA, S. (orgs.). 1 ed. São
Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.

92
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CHRISTINE, JACQUET; LÍVIA FIALHO, da Costa. As práticas educativas nas famílias
recompostas: notas preliminares. Sociedade e Cultura, v.7, n.2, 2004.

LYRA, Jorge; LUCIANA SOUZA, Leão; LIMA, Daniel Costa; PAULA TARGINO;
CRISÓSTOMO, Augusto; SANTOS, Breno. Homens e cuidado: uma outra família? In: ACOSTA,
A. R.; VITALE, M.A.F. (Orgs.). Família: Redes, laços e políticas públicas. 5ªed. São Paulo: Cortez:
Coordenadoria de Estudos e Desenvolvimento de Projetos Especiais – PUC/SP, 2010.
ZULEICA LOPES, Cavalcante de Oliveira. A provisão da família: redefinição ou manutenção dos
papéis. In: ARAÚJO, C.; SCALON, C. (orgs.). Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2005.

MARGARETH RAGO. Ser mulher no século XXI ou carta de alforria. In: A mulher brasileira nos
espaços público e privado. VENTURI, M. R.; OLIVEIRA, S. (orgs.). 1 ed. São Paulo: Editora
Perseu Abramo, 2004.

CYNTHIA ANDERSEN, Sarti. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO,


M. do C. B. de (org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2005.

CYNTHIA ANDERSEN, Sarti. Famílias enredadas. In: ACOSTA, A.R;VITALE, M. A. F. (orgs.).


Família: redes, laços e políticas públicas. 5 ed. São Paulo: Cortez: Coordenadoria de Estudos e
Desenvolvimento de Projetos Especiais- PUC/SP, 2010. p. 21-35.

ANALICIA MARTINS, de Sousa. Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos de
família. São Paulo: Cortez, 2010.

ANALICIA MARTINS, de Sousa; LEILA MARIA TORRACA, de Brito. Síndrome de Alienação


Parental: da Teoria Norte-Americana à Nova Lei Brasileira. Psicologia: Ciência e profissão, 2011.

HELOISA SZYMANSKY. Viver em família como experiência de cuidado mútuo: desafios de um


mundo em mudança. Revista Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 71, p. 9-25 , 2002.

MARIA LUIZA CAMPOS, da Silva Valente. Síndrome da alienação parental: a perspectiva do


Serviço Social. Associação de Pais e Mães separados (org.). Síndrome da alienação parental e a
tirania do guardião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2008.

MARIA LUIZA CAMPOS, da Silva Valente. Alienação parental: sintoma da modernidade? In:
SILVA, A. M. R. da; BORBA, D. V. (orgs.). A morte inventada: alienação parental em ensaios e
vozes. São Paulo: Saraiva. 2014a.

93
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COLORINDO O ARCO ÍRIS: COMO VEM SENDO PINTADA A DISCUSSÃO SOBRE
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO NOS CURSOS DE SERVIÇO SOCIAL?

Jaqueline de Melo Barros89


Nilza Rogéria de Andrade Nunes90

Resumo: O presente trabalho surge das inquietações emergidas ao longo do cotidiano de trabalho
enquanto docente do ensino superior no Curso de Serviço Social e tem por intuito, compreender como
o debate sobre diversidade sexual e de gênero vem sendo tratado no Ensino Superior, considerando a
formação de futuros profissionais, que lidam com o público LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais, Queer e pessoas Intersex), enquanto usuários dos Serviços Sociais.
Atrevemo-nos indagar se o processo formativo vem ocorrendo de forma plural, crítica, com fins
emancipatórios ou se a discussão sobre sexualidade reproduz a ideologia dominante, seguindo
padrões heteronormativos? Para Butler (2003) a chamada heteronormatividade consiste na imposição
da heterossexualidade como uma norma social, a qual regula a vida social. A obrigatoriedade
configura-se como uma exigência inquestionável, a partir da naturalização materializada pela família,
mídia, religiões, no Estado e em suas instituições. E esta expressão naturalizada e banalizada contribui
para atribuir à sexualidade uma dimensão restritamente privada, uma vez que a dimensão pública é
regulamentada, legitimada como natural para a lógica heteronormativa. Nesse sentido, as demais
expressões da sexualidade humana são rotuladas de desviantes, anormais, contra a ‘natureza humana’,
porque negam a padronização imposta, portanto, ainda que existam devem confinar-se ao privado, ao
invisível. Questionamo-nos ainda: A diversidade sexual e de gênero possui inserção em algum
componente curricular obrigatório, optativo ou é “varrida para debaixo do tapete” ou sucumbida
como tantas outras que tem sua abordagem justificada pelo viés da transversalidade? No campo da
educação, em fins da década de 1990, o debate sobre orientação sexual surge nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de forma gradual a partir dos temas transversais, enfatizando o
respeito à diversidade nas escolas. Enquanto no campo do Serviço Social a discussão ganha folego a
partir da campanha “O Amor fala todas as línguas – O assistente social na luta contra o preconceito:
Campanha Pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual” lançada em 2006, tendo como ápice a
aprovação da Resolução 489 de 2006, a qual institui normas que vedam quaisquer condutas de caráter
discriminatório e/ou preconceituosas por orientação sexual no exercício profissional do serviço
social, além de reforçar o dever deste profissional no combate a práticas que violem os direitos
humanos, o que se constitui como uma relevante ferramenta de luta contra a homofobia, lesbofobia e
transfobia. O que nos remete ao seguinte questionamento: até que ponto a formação profissional em
Serviço Social discute tal resolução, vislumbra sua materialidade e qual o impacto desse
desconhecimento? A pesquisa em curso tem como objetivo problematizar o debate sobre diversidade
sexual e de gênero na formação profissional em Serviço Social, tendo como ponto de partida a análise
dos currículos, os componentes, conteúdos programáticos e as bibliografias adotadas nos cursos de
graduação em Serviço Social em torno dos temas transversais, com ênfase na diversidade sexual e de

89
Doutoranda do Curso de Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail:
profa.jaqueline.barros@gmail.com
90
Pós Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília/professora do curso Curso de Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: n.rogerianunes@gmail.com
94
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gênero, uma vez que o assistente social é um profissional que tem uma atuação orientada pela defesa
de direitos e de forma incondicional dos direitos humanos

Palavras-chave: Diversidade Sexual, Gênero, Formação, Serviço Social.

REFERÊNCIAS
BELLONI, Isaura. A educação superior na nova LDB. In: BRZEZINSKI Iria (org.). LDB
interpretada: diversos olhares se entrecruzam. São Paulo: Cortez, 1997.

BUTLER, J. Problema de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social. 1993.

___. Projeto da Campanha O Amor Fala Todas As Línguas – O assistente social na luta contra o
preconceito: Campanha Pela Liberdade de Orientação e Expressão Sexual. Brasília, 2006.

MESQUITA, Marylucia. Orientação sexual: experiência privada, opressão privada e pública -


um desafio para os direitos humanos IN Cdrom 10º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais
(CBAS), 2001.

SIMÕES NETTO, J. P; ZUCCO, L; MACHADO, M. D. & PICCOLO, F. A.A produção acadêmica


sobre diversidade sexual. Em Pauta, Rio de Janeiro (R.J), vol. 9, nº 28, 2011.

95
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A REPRESENTAÇÃO DO “COLONO” E SEUS DESDOBRAMENTOS NA REGIÃO
COLONIAL ITALIANA DO RIO GRANDE DO SUL (1875-1930)

Manuela Ciconetto Bernardi91

Resumo: O presente estudo tem por objetivo discutir a representação do “colono” - termo designativo
aos residentes da zona rural na região colonial italiana do Rio Grande do Sul. O recorte temporal de
1875 a 1930, corresponde ao início da colonização italiana no Estado e o término, refere-se ao final
da Primeira República, justificado em uma discussão que inclua o processo migratório de italianos
no período e primeira geração já no Brasil. Os procedimentos téorico-metodológicos, por ser um
estudo histórico, apoiam-se na História Cultural. Como representação, assume-se que ela trará a
capacidade de produzir e constituir o mundo e os grupos sociais, estabelecendo classificações,
divisões, valores e normas (SANDRA PESAVENTO, 2014). Compreende-se que a utilização do
termo “colono”, variou de acordo com o período investigado, mas que de forma generalista, na região
estudada, foi mobilizado pejorativamente, disseminado principalmente na oralidade, que criou um
estereótipo negativo em torno dos indivíduos. Na trajetória, são enfatizados conceitos como colônia
e região, todavia as discussões mobilizam demais reflexões, e os desdobramentos giram em torno do
preconceito tanto pelo sujeito que trabalhava na terra, como temáticas referentes as relações entre o
meio urbano e rural, soma-se que ao abordar a mesma, as mulheres são praticamente apagadas das
discussões já que a representação é sempre produzida na figura de um homem, o “colono”. Questões
que nesse estudo, são abordadas e discutidas para compreender a emergência da representação do que
é ser “colono”, no recorte utilizado, na região colonial italiana do Rio Grande do Sul. Das reflexões
produzidas, foi possível inferir que a representação criada, é permeada de preconceitos contendo
diversos desdobramentos e que são assuntos que devem ser discutidos, já que pouco são abordados
no meio acadêmico e apesar de ser um estudo histórico, a representação ainda se encontra presente
no senso comum, assim não busca-se mudar o passado, mas ao analisa-lo, compreender uma forma
de história e possibilitar o entendimento e a emergência de lacunas para pesquisas e discussões que
visem a desconstrução de preconceitos e representações que circulam atualmente, mas que têm como
base, questões históricas.

Palavras-chave: Colono; Representação; Preconceito.

REFERÊNCIAS

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3. ed. 1 reimpr. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014.

91
Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul.
Participante do grupo de pesquisa GRUPHEIM. Bolsista PROSUC/CAPES. E-mail: mcbernardi1@ucs.br
96
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“CRENTE, MAS SEM IGREJA”: PERCURSOS AFETIVOS-SEXUAIS E A
INTERSUBJETIVIDADE NA PESQUISA ETNOGRÁFICA

Tatiana Bezerra de Oliveira Lopes92


Alinne de Lima Bonetti93

Resumo: Este ensaio articula pertencimento religioso e percursos afetivos-sexuais, junto a jovens
evangélicos e evangélicas sem vínculo institucional, em outros termos, “desigrejados” e
“desigrejadas”. A proposta é pensar a relação intersubjetiva no encontro etnográfico, partindo da
perspectiva dos saberes localizados, de inspiração epistemológica associada à antropologia feminista.
Para tanto, colocará em exame a própria subjetividade da pesquisadora em seu trabalho de campo,
sua trajetória religiosa, bem como seu percurso afetivo-sexual, os quais serão postos em diálogo com
outras experiências, acessadas no campo de investigação. A pesquisa parte do pressuposto de que a
filiação institucional, vivenciada anteriormente, ecoa tanto no processo de “desigrejamento” quanto
nos roteiros e performances sexuais, organizados em torno dos dilemas entre “esperar” e “fornicar”,
referidos pelas interlocutoras e pelos interlocutores, assim como nas angústias relatadas em campo.
O intuito é o de que esta reflexão contribua, por um lado, para problematização acerca dos limites e
possibilidades da reflexividade e da subjetividade como potentes ferramentas metodológicas, que têm
gozado de crescente popularidade na produção antropológica contemporânea sob a insígnia da
autoetnografia, demarcando a especificidade da produção de conhecimento situado já consolidada na
perspectiva antropológica feminista. Por outro lado, pretende-se que esta análise, levada a termo a
partir de um conhecimento situado, possa narrar a agência da intersecção entre gênero, sexualidade,
geração e pertença religiosa na experiência de interlocutoras e interlocutores de pesquisa.

Palavras-chave: Desigrejamento, religiões evangélicas, percursos afetivo-sexuais, conhecimento


situado

REFERÊNCIAS

ALINNE DE LIMA, Bonetti. Antropologia feminista no Brasil? Reflexões e desafios de um campo


ainda em construção. Cuadernos de Antropología Social. Buenos Aires, n. 36, p.51-67, 2012.

DONNA HARAWAY. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da


perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), p. 07-41, 1995.

JOHN GAGNON. Os roteiros e a coordenação sexual da conduta. In: JOHN GAGNON. Uma
interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Garamond universitária, 2012.

REBECCA FERREIRA LOBO ANDRADE, Maciel. Cristãos sem igreja: um olhar a partir da
contemporaneidade. SACRILEGENS. Juiz de Fora, v.12, p.88-99, 2015.

92
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. E-mail:
tatianabezerralopes@gmail.com
93
Professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. E-mail: alinne.bonetti@gmail.com
97
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT MIGRANTES E REFUGIADOS
COORDENAÇÃO
Dr. Dr. Cristóvão Domingos de Almeida – UFMT
Dra. Cleusa Albília de Almeida – IFRS

98
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FEMINIZAÇÃO DA MIGRAÇÃO NA AMAZÔNIA: UMA PERSPECTIVA
INTERSECCIONAL A PARTIR DA FRONTEIRA FRANCO-BRASILEIRA

Lívia Verena Cunha do Rosário94

Resumo: A partir de entrevistas semiestruturadas realizadas nas cidades brasileiras de Santana, Macapá e Oiapoque, no
estado do Amapá, o qual faz fronteira com a Guiana Francesa, departamento ultramarino da França, o objetivo desta
pesquisa é analisar como se articulam as categorias de gênero, raça, classe e nacionalidade nas trajetórias de vida de sete
mulheres negras migrantes, contribuindo para capturar as consequências estruturais e dinâmicas dessas interações nas
fronteiras, além de proporcionar reconhecimento e lugares de fala a essa coletividade historicamente marginalizada e
silenciada. Através das sete interlocutoras, que vieram de Guadalupe, Guiné Bissau, Camarões, Angola e República
Dominicana, foi possível discutir o aspecto humano da questão fronteiriça, evidenciando a mobilidade feminina e
destacado como os estudos migratórios podem contribuir para o combate ao racismo no Brasil.
Palavras-chave: Fronteira; Amazônia; Migração; Interseccionalidade; Mulheres.

INTRODUÇÃO
Localizado na margem esquerda da foz do rio Amazonas, fronteira com Guiana francesa e
com o Suriname, a área que corresponde ao atual Estado de Amapá atraiu interesses de estrangeiros
devido os seus recursos naturais desde o período colonial, (REIS, 1949). Já no século XXI, as
fronteiras amazônicas assistem ao aumento de deslocamento intrarregionais, fomentados entre os
países fronteiriços. Deste modo, Albuquerque (2008, p. 05) destaca que:

As migrações internacionais movimentam as nações e redefinem as fronteiras nacionais. Os


deslocamentos populacionais nas zonas de fronteiras entre dois ou mais países, denominados
de migrações fronteiriças, também geram muitas tensões e questionam os limites
aparentemente fixos dos Estados nacionais. As imagens cristalizadas e delimitadas dos mapas
das nações não correspondem à dinâmica da vida nos espaços fronteiriços.

Para Jakob (2011, p. 425), “o norte do Brasil possui uma seletividade migratória com respeito
ao local de nascimento dos migrantes internacionais, distinta daquela apresentada quando se trata do
Brasil como um todo”. A Amazônia Legal e a vasta extensão de suas fronteiras internacionais
apresentam forte absorção migratória, sobretudo, mas não somente, do Platô das Guianas, países
amazônicos sul-americanos e Caribe (RELATÓRIO ICMPD, 2016). A Amazônia amapaense insere-
se nesse contexto através da cidade de Oiapoque, fronteira com Saint Georges, cidade do
Departamento Ultramar da Guiana Francesa, contudo, a Amazônia Amapaense transformou-se em
plataforma de trânsito para essas mobilidades, o que reconfigurou os tipos de fluxos no estado, que

94
Mestra em Estudos de Fronteiras, pela Universidade Federal do Amapá, campus Marco Zero. Email:
liviaverenac@gmail.com.

99
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
durante muito tempo foi caracterizado pela evasão de pessoas.
Consideradas cidades-gêmeas, o município de Oiapoque no estado do Amapá e Saint-Georges
de l’Oyapock na Guiana Francesa estão separadas pelo rio Oiapoque, o limite internacional do Brasil
com a França ou com a União Europeia é feito em grande parte pelo curso desse rio. Alguns estudos
revelam uma intensa migração de brasileiros para Guiana Francesa (AROUCK, 2001; PINTO, 2008),
mas o fluxo oposto não tem despertado o mesmo interesse.

MAPA 01 – FRONTEIRA ENTRE AMAPÁ E GUIANA FRANCESA

Fonte: Base Cartográfica Sirgas, 2017.

A fronteira com o Departamento Ultramarino Francês propicia não somente a entrada de


migrantes guianenses, mas de todo o Platô das Guianas, bem como de países andinos e caribenhos.
As modificações decorrentes de novos padrões de fluxo da população migrante são frutos de uma
intensificação dos movimentos migratórios curtos e também reflexo do processo histórico de
ocupação e urbanização da Amazônia brasileira, que pode ser explicado pelas diferenças
socioeconômicas dos países amazônicos e a porosidade da fronteira.
Ao tomar como foco a migração de mulheres negras para Amazônia como objeto de análise,
procura-se situar este segmento no conjunto dos fluxos migratórios que se dirigem para a região
ultrapassando o senso comum “de uma Amazônia exclusivamente portuguesa, indígena e mestiça
100
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
cabocla, que merece incorporar outros sujeitos históricos e contemporâneos à consciência de todos
nós” (BRAGA, 2011, p. 170) .
Considera-se a faixa de fronteira na Amazônia franco-brasileira o lócus privilegiado para
analisar a presença negra e consequente migração de mulheres negras. De modo que, o interesse da
pesquisa parte não somente dos locais de origem dessas mulheres, mas da chegada, passagem e/ou
inserção dessas mulheres no mundo social brasileiro.

REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Com o objetivo de recolher dimensões específicas das histórias de vida das mulheres e
relacionadas com seus projetos migratórios, os dados desta pesquisa foram coletados por meio de
entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio. Os dados das entrevistas forneceram informações
pertinentes ao campo de pesquisa, combinando perguntas fechadas e abertas, por meio das quais as
entrevistadas tiveram a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto, sem respostas ou condições
prefixadas pela pesquisadora. Entre janeiro e junho de
2018, as mulheres foram sendo contatadas e as entrevistas agendadas. As entrevistas foram
integralmente gravadas e transcritas, tendo sido inicialmente solicitada às mulheres autorização para
proceder às gravações.

TABELA 01 – IDENTIFICAÇÃO DAS MULHERES MIGRANTES ENTREVISTADAS


NOME PAÍS NATAL IDADE CHEGOU PERÍODO RESIDÊNCIA PROFISSÃO NATURALIZADA
AO NO ATUAL
BRASIL AMAPÁ
1-Laura Guiné- 58 anos 1980 1994- Santana Professora Sim
Bissau
2-Michelle Guadalupe 50 anos 2000 2000- Macapá Professora Sim

3-Sylvie Camarões 20 anos 2017 2017- Ouro Preto Estudante Não


2018
4-Estela Guiné- 20 anos 2016 2016- Macapá Estudante Não
Bissau
5-Fátima Angola 22 anos 2018 2018- Macapá Estudante Não

6-Samantha Guadalupe 40 anos 2017 2016- Oiapqoue Professora Não


2018
7-Maria República 46 anos 2017 2017- Oiapoque Cozinheira Não
Dominicana

MULHERES DO CARIBE: TRANSNACIONALIDADE E PERTENCIMENTO


101
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Michelle e Samantha, nascidas em Guadalupe, departamento ultramarino francês, respaldaram
a ideia de que os motivos que levam a maior parte dos moradores de países caribenhos a deixar seus
países estão ligados a uma familiaridade com a mobilidade no espaço que as fez afrontar mais
facilmente as dificuldades inerentes à experiência migratória. O que as levou a partir para o Amapá,
foi antes – como elas mesmas disseram durante as entrevistas – um “desejo de mudança”, um “espírito
aventureiro”, um desejo de “ver coisas novas”, de “entrar em contato com gente nova”; são, ao mesmo
tempo, uma inquietação e uma curiosidade que se aproximam dessa “disposição à aventura” que elas
declaram possuir, evidentemente alimentada pelos processos anteriores de mobilidade que
operaram no espaço.
Migrar para o Amapá não constava nos projetos migratórios iniciais de Michelle e Samantha,
mas a decisão de fazê-lo resulta de práticas transnacionais, visto que ambas não partiram de suas
cidades natais; antes de chegar ao Amapá, Michelle estava na Guiana Francesa e Samantha estava na
França. Assim, os perfis dessas duas mulheres exemplificam a heterogeneidade constitutiva do sujeito
caribenho, pois, nascidas em um departamento ultramarino francês (DOM), são caribenhas, sul-
americanas e francesas, além de possuírem suas formações identitárias marcadas pelo “drama
linguístico” (MEMMI, 2007, p. 148) referente à diglossia, uma profunda relação de forças que opõe
e hierarquiza as línguas crioulas e o francês:

Eu sou crioula, e esse termo não é muito bem aceito aqui. Inclusive falamos em
brancos crioulos. Crioulo é essa junção de várias coisas. Eu não sou nem europeu,
nem africano, nem indígena, nem asiático, eu sou a mistura de tudo isso. Eu existo,
então não tentem me colocar só aqui, ou só ali, eu estou no meio de vocês, eu existo.
Não estou dizendo que eu não sou negra, eu sou negra, mas dentro de mim,
culturalmente, eu tenho outras coisas e eu não posso negar tudo isso; meu corpo não
deixa, minha mente não deixa. Morando no Brasil, eu sou um pouco brasileira.
(Michelle, Macapá, janeiro de 2018)

Apesar de nascidas em Guadalupe, Michelle e Samantha viveram na Guiana Francesa,


também um DOM. A partir da história de vida de Samantha, foi possível discutir o sentido de
relatedeness, isto é, como a questão do pertencimento não está atrelada exclusivamente ao local de
nascimento, pois para Samantha, seu “país do coração” é o território francês na fronteira com o
Amapá, pois seu pais, irmã e sobrinhos vivem atualmente na Guiana Francesa:

102
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Amapá tem um laço muito estreito com a Guiana, que é o país do meu coração,
hoje quase me sinto mais guianense, é onde eu também gostaria de morar. França,
Guadalupe ou Guiana, eu escolheria Guiana, sem duvidar, por isso também escolhi o
Amapá, faz fronteira com a Guiana, dá pra viajar pra lá e voltar. Então eu escolhi o
Amapá mesmo pela fronteira com a Guiana. Por exemplo, deu pra passar as férias de
Natal lá, já que eu sabia que não daria para ir à França. Natal é festa de família, não
imagino passar o natal longe das pessoas que eu amo. (Samantha, Oiapoque, maio de
2018).

Ao aceitar lecionar língua francesa no Brasil e escolher o estado do extremo norte para exercer
seu ofício, a fronteira franco-amapaense representou para Samantha a possibilidade de unir o
desconhecido e o familiar, já que, ao dispensar a oportunidade de viver em outros estados brasileiros
mais populosos e ricos, Samantha buscou a experiência de uma realidade bem distante daquela que
vivia em Paris concomitante à viabilidade de visitar seus pais, irmã e sobrinhos, que moram na capital
da Guiana Francesa.
Contudo, é fundamental evitar a homogeneização das experiências de movimentação, para
que não se perca a significativa complexidade das vidas em movimento. Conforme adverte Machado
(2014), há movimentos, deslocamentos e sentidos particulares a cada experiência, pois as mobilidades
dificilmente podem ser imobilizadas em quadros teóricos abrangentes. Mas ao olharmos para
determinadas histórias de vida é possível pensar em conexões produtivas para refletir sobre o trânsito
humano. Os exemplos de Michelle e Samantha relacionam movimento a transnacionalidade,
parentesco e pertencimento.

MULHERES DA ÁFRICA: ESTRANHAMENTO E ADAPTAÇÃO


As histórias de vida das guineenses Laura, que mora na cidade de Santana e Estela, moradora
de Macapá, desencadearam a discussão acerca do mito da democracia racial no Brasil, o qual
permeava os imaginários das sete migrantes antes de chegar ao país. Embora não existam raças como
realidade biológica, padrões de percepção sobre as características físicas associam-se à produção de
relações políticas, sociais e econômicas que geram desigualdades. Esse mito da democracia racial,
decantado no Brasil, mas presente no exterior, reflete, no entanto, a ausência de uma reflexão mais
aprofundada acerca da escravidão e os efeitos práticos disso; no decorrer do capítulo foram
mencionadas estatísticas que revelam o racismo institucional e estruturante da sociedade
brasileira. Laura e Estela integram diferentes gerações

103
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de estudantes africanos que encontraram no Brasil a possibilidade de uma formação acadêmica.
Existem várias publicações que analisam a vivência de comunidades de estudantes africanos em
cidades brasileiras, assunto ainda em déficit de análise no Amapá, que também já conta com vários
jovens estudantes estrangeiros. Estela, estudante de Medicina, que chegou ao Amapá em 2016,
descobriu no Amapá que a cor de sua pele é um problema, ao compreender que gênero, raça e classe
são fronteiras cruzadas em um país que, ao abolir a escravidão, imediatamente criou incentivos para
que se pudesse trazer o branco europeu no intuito de miscigenar a nação e eliminar os males das raças
consideradas inferiores pelos cientistas da época. Compreender a questão racial no Brasil, para Laura
e Estela, significou também descobrir a “variedade de cores” do povo brasileiro, entre elas o pardo,
que elas descobriram só existir aqui:
Branco, preto, pardo, amarelo e indígena: essas são as cinco categorias de pertencimento racial
com a qual estamos acostumados a nos identificar em censos, questionários e formulários pelo Brasil
afora. A maioria dos pesquisadores brasileiros constroem a classificação de negro com base nos dados
de cor da pele pesquisados pelo IBGE. O negro seria a soma das pessoas que se auto declaram
“pardas” e “pretas”. Pardos e pretos são categorias de classificação da cor da pele tomadas a partir
daauto identificação da pessoa que responde a pergunta do IBGE:

Eu acho tão estranho que aqui no Brasil qualquer papel você tem que preencher pardo, branco,
negro. Eu reclamei com um amigo e disse: nossa, eu acho isso tão sem noção. Qualquer papel
você tem que se autodeclarar. Lá isso não tem a nada a ver. Você não vai colocar se você é
branco ou se você é preto. (Estela, Macapá, maio de 2018).

O termo “pardo” era desconhecido para Estela até sua chegada ao Brasil, “para fins
estatísticos, o pardo é uma cor que resulta do cruzamento entre as raças/etnias brancas e negras: é o
símbolo da mestiçagem”, (WESCHNFELDER, SILVA, 2018, p. 311). Contudo, ao questionar:
Afinal, quem é negro? Quem é pardo? Quem é branco no Brasil? Estela expõe uma indagação feita
também pelos próprios brasileiros, já que o pardo, por um lado, constituiu-se como elemento central
no entendimento da mestiçagem organização étnico-racial do país, por outro, trata-se de uma
categoria não-fixa.
Outro estranhamento com o qual Estela teve que lidar foi responder sobre sua origem e
constatar que muitos brasileiros compreendem a África como um país, não um continente que
tem 54 países, além de associarem a história da África exclusivamente a pobreza e miséria. O
104
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
questionamento “Você é da Guiana Francesa? ”, assim como para Joyce e Samantha, é constante para
Estela. No Amapá, uma negra com sotaque estrangeiro é imediatamente associada a Guiana Francesa.
Ao dizer que é de um país africano, Estela costuma escutar comentários generalizantes e
questionamentos aleatórios sobre o continente: ‘Uma vez, uma senhora falou: nossa, a saúde aqui
em Macapá é péssima, muito precária, parece pior que os países da África. Tipo, eu não respondo a
esse tipo de coisa, mas as pessoas generalizam muito”. (Estela, Macapá, maio de 2018).
Macapaenses demonstrando ideias errôneas sobre a África exemplificam a realidade
educacional brasileira em que comumente os livros de História reduzem a relação entre Brasil e
África ao tráfico negreiro. Apesar da criação da Lei 10.639/2003 que tornou obrigatório o
ensino de História da África e da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas, vários
livros didáticos insistem em apresentar o africano no Brasil como o escravo oprimido, o quilombola
resistente ou a mão de obra submetida a todo tipo de exploração, cristalizando estereótipos na
realidade popular. É um continente que parece só existir após a chegada do europeu:

Tem gente que acha que a África é um país, e não um continente. Acham que em todo
continente africano tem preto, aí eu digo: você sabia que na África tem gente branca? A reação
às vezes é: Meu Deus! É? Sim, tem gente branca. Já me perguntaram: você já viu um leão? E
eu nunca vi um leão na minha vida. (Estela, Macapá, maio de 2018)

A cor da pele de Estela, assim como sua origem africana, suscitam comentários que
hipersexualizam e objetificam seu corpo, revelando o legado de exploração e esse fascínio sobre as
formas femininas não-brancas, notórios em comentários que Estela já escutou de colegas de faculdade
sobre a curiosidade de fazer sexo com a mulher negra africana:

Eles falam sobre as mulheres africanas, que elas têm um bundão, peitão, tudo avantajado. Eu
digo: não todas, algumas sim, pode ser que a maioria seja assim, mas não são todas. Eu tive
um colega, que disse que tem curiosidade, que ele quer ter, tipo, ter relações íntimas comigo,
porque no dia que ele tiver, a auto estima dele vai se elevar, que ele vai ter certeza que ele é
o cara, tipo isso. (Estela, Macapá, maio de 2018).

A história da “Vênus de Hotentote” é um dos exemplos mais simbólicos da exploração e


hipersexualização da mulher negra. Collins (2000) demonstrou como a africana Saartjie Baartman
tornou-se paradigma da objetificação do corpo feminino negro. A trajetória de Saartjie foi
marcada por sua exploração como atração circense pelas capitais europeias. Assim, a “Vênus de

105
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Hotentote” perdura no legado de exploração e esse fascínio sobre as formas femininas não-brancas,
notórios em comentários que Estela já escutou de colegas de faculdade sobre a curiosidade de fazer
sexo com a mulher negra africana:

Eles falam sobre as mulheres africanas, que elas têm um bundão, peitão, tudo avantajado. Eu
digo: não todas, algumas sim, pode ser que a maioria seja assim, mas não são todas. Eu tive
um colega, que disse que tem curiosidade, que ele quer ter, tipo, ter relações íntimas comigo,
porque no dia que ele tiver, a auto estima dele vai se elevar, que ele vai ter certeza que ele é
o cara, tipo isso. (Estela, Macapá, maio de 2018).

IMAGEM 01: SAARTJIE, “A VÊNUS DE HOTENTOTE”

Fonte: Blogueiras Negras, 2015.

Dessa forma, a naturalização do comentário de um homem branco dizendo que a autoestima


melhoraria ao manter relações sexuais com uma mulher negra evoca o arquétipo feminino da mulher
negra lasciva, a ideia de que a mulher negra é um “sabor diferente” e “mais apimentado” de mulher.
O corpo feminino negro é hipersexualizado e considerado exótico. O rapaz em questão se sentiria “o
cara” não por relacionar-se afetivamente com a mulher negra, mas somente por manter uma relação
sexual com ela. No caso da Estela há um duplo nível de erotização, por ser negra e africana.
Há fenômenos socioculturais específicos da população negra, especialmente dentro de

106
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
um contexto de segregação e classe social. Por isso, a inferiorização da mulher sustentada pelo
patriarcado e a noção de inferioridade do negro advinda do etnocentrismo racista, concepções
Dessa forma, a naturalização do comentário de um homem branco dizendo que a autoestima
melhoraria ao manter relações sexuais com uma mulher negra evoca o arquétipo feminino da mulher
negra lasciva, a ideia de que a mulher negra é um “sabor diferente” e “mais apimentado” de mulher.
O corpo feminino negro é hipersexualizado e considerado exótico. O rapaz em questão se sentiria “o
cara” não por relacionar-se afetivamente com a mulher negra, mas somente por manter uma relação
sexual com ela. No caso da Estela há um duplo nível de erotização, por ser negra e africana.
Há fenômenos socioculturais específicos da população negra, especialmente dentro de um
contexto de segregação e classe social. Por isso, a inferiorização da mulher sustentada pelo
patriarcado e a noção de inferioridade do negro advinda do etnocentrismo racista, concepções
fundantes no século XVIII ainda povoam o imaginário coletivo no século XXI. Em um contexto
racista e machista, mulheres negras são construídas histórica e socialmente ligadas ao corpo e não ao
pensar. O fato é que é incoerente analisar a sexualidade da mulher negra com a mesma ótica que
observamos a mulher branca.

MULHERES NEGRAS MIGRANTES NO AMAPÁ: IMAGINÁRIO E ACOLHIMENTO


O racismo produz marcas psicológicas profundas e o preconceito racial provoca traumas,
ansiedade, crises de identidade e depressão. É prejudicial à saúde psíquica dos sujeitos, visto que,
“Não há um sujeito negro que não seja atravessado pelo racismo e que de alguma maneira, consciente
ou não, vá viver efeitos produzidos pelo racismo” (SOUZA, 1983, p. 23). A reflexão sobre a saúde
mental da população negra é notória diante das preocupações de Fátima. Natural da Angola, ela é a
interlocutora mais recente no Amapá, talvez por isso a partir dela o lado nostálgico da migração esteve
mais evidente, acrescido ao fato de não ter escolhido o Amapá como destino ao candidatar-se para
uma bolsa de estudos no Brasil, situação semelhante à de Sylvie.
A promoção da saúde mental considerando os efeitos nocivos do racismo continua sendo
literatura desconhecida para muitos profissionais da Psicologia. Durante a pesquisa, ao buscar
também bibliografia sobre a saúde mental da população migrante, foi possível perceber que a
migração tem sido discutida mais dos pontos de vista político, econômico e sociológico,

107
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
enquanto, principalmente no Brasil, o tema da saúde mental tem sido pouco considerado, tampouco
a interseção entre saúde, migração e raça.
O Mapa da Violência 2016 (WAISELFISZ, 2016), produzido pela Faculdade Latino-
Americana de Ciências Sociais (FLACSO), demonstrou que, no Brasil, morrem 2,6 vezes mais negros
do que brancos quando se trata de vítimas de armas de fogo. Também data de 2016 o RELATÓRIO
DA CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Senado que investigou assassinatos de jovens e
apontou que, a cada ano, 23 mil negros entre 15 e 29 anos são mortos no país. A violência no Brasil,
portanto, tem cor, idade e classe social e é jovem, já que esses sofreram 318 mil assassinatos entre
2005 e 2015. É uma operação de apagamento forçado de certas parcelas da população. Dentro desse
universo de dor, uma pessoa com todas essas características chega a correr 10 vezes mais risco de
vida.
A angústia da possibilidade de sofrer discriminações raciais, frente aos inúmeros casos de
xenofobia e racismo que Fátima e Sylvie tomam conhecimento pelo Brasil afora, fez com que elas
adotassem posturas mais reservadas das que teriam normalmente em seus países de origem, contudo,
enquanto Fátima, todavia não tinha sofrido atitudes racistas, Sylvie relatou alguns episódios que
despontaram a discussão sobre colorismo ou da constante suspeita que perpassa os corpos negros.

Uma coisa muito estranha. Quando a gente anda, parece que nossa presença assusta. Uma vez
andando, tinha um cara no carro falando no celular, quando viu a gente, ele escondeu, tipo, vou
ser assaltado. Bizarro. Meus amigos falaram: “ah, vamos cumprimentá-lo”. Eu disse: “Não!
Deixa! Tua presença já fala demais. (Sylvie, Macapá, janeiro de 2018).

No episódio acima, os amigos de Sylvie quiseram cumprimentar o homem que havia guardado
o celular enquanto eles passavam, no intuito de tranquilizá-lo, pois não seria roubado. Sylvie advertiu
que não o fizessem, “a presença já fala demais”, melhor seria evitar uma confusão maior. A percepção
de que seus corpos, em determinadas situações, despertam essas reações negativas, Sylvie e seus
amigos passaram a notar no cotidiano vivenciado em Macapá. Sentindo-se ainda mais ameaçado pela
abordagem dos rapazes, o dono do celular poderia, por exemplo, chamar a polícia.
A presença dos corpos negros “fala”, “a presença assusta”. Fanon (2008) aponta como o negro
representa uma categoria histórica, um construto social com objetivo de dominação e sujeição:
“Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da ideia
que os outros fazem de mim, mas da minha aparição”. (FANON, 2008, p. 108). O autor
108
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
martinicano compreende o racismo como elemento central, operador psíquico da dualidade entre
colono e colonizador, branco e negro: “Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e
civilizadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo negro”
(Ibid., p. 162).
Sylvie é o que colorismo chama de negra retinta ou negra de pele escura. Colorismo no Brasil
manifesta-se na discriminação de aspectos fenotípicos, ou seja, apresentar traços que a nossa cultura
associa à descendência africana: nariz largo, cabelo crespo etc. A aceitação de uma pessoa negra pela
sociedade é proporcional aos traços mais finos, os cabelos mais lisos, o nariz menor. Isso não tira a
negritude de quem é mais claro, mas esse indivíduo não sofre tanto quanto o negro de pele escura.
As políticas de incentivo a imigração europeia foram intensas no decorrer do século XIX e
XX. Com o branqueamento da nação pretendia-se atingir uma higienização moral e cultural da
sociedade brasileira. Dessa maneira, no Brasil, o branqueamento como estratégia de eliminação da
população negra no Brasil e classificação racial permanece no colorismo. Já no país natal de Sylvie,
há pessoas que utilizam produtos para embranquecer a pele, pois:

Se acha mais lindo aquele que tem uma pele branca. Dá para mudar as coisas, mas a
mentalidade de uma pessoa leva muito mais tempo a ser mudada. Essa época colonial, passou
há muito tempo, mas até hoje na cabeça das pessoas a pele branca é, vale mais, é mais especial
que a pele negra. (Sylvie, Macapá, janeiro de 2018).

A utilização de produtos cosméticos para embranquecimento da pele em Camarões expõe um


dos severos efeitos da internalização do colonialismo nas sociedades africanas. Pouco conhecido no
Brasil, esse processo de branqueamento é chamado de Skin whitening, Skin Bleaching ou Bleaching,
e, segundo Yaba Blay (2011) consiste no uso contínuo de produtos com princípio ativo em mercúrio
e hidroquinona química com a finalidade destruir os melanócitos, células responsáveis pela produção
de melanina, para obter tons mais próximos da pele branca.

IMAGEM 02 – MULHERES NEGRAS JAMAICANAS ADEPTAS DE PRODUTOS DE


BRANQUEAMENTO DA PELE

109
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Revista Marie Claire, junho 2017
Fanon enfatiza como a reificação colonial tem efeitos devastadores na subjetividade do negro,
reservando-lhe um complexo de inferioridade, e ao branco de igual maneira, um complexo de
superioridade: “O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano (...).
O branco está fechado em sua brancura. O negro em sua negrura” (FANON, 2008, p. 160). Assim, a
condição de humano está na existência do branco.
A alienação colonial, como forma específica de exploração capitalista, nos dá uma ideia da
violência psíquica que representaram a escravidão e o colonialismo como processo de destruição da
identidade e de alienação, além de marcar indiscutivelmente a configuração da sociedade moderna
fazendo com que brancos (colonizadores) e negros (colonizados), vivenciem cada qual a seu modo,
a negação de sua humanidade.
Assim, as quatro mulheres africanas neste trabalho dialogam com outras experiências
divulgadas em trabalhos acadêmicos, relatos e reportagens, que demonstram o “despertar” para a
existência do preconceito de cor após chegar ao Brasil, as quatro interlocutoras relatam a “simpatia
gerada pela curiosidade” que o fato de ser estrangeira provoca, diferenciando o tratamento em relação
a uma pessoa negra brasileira. Marcante nos discursos das interlocutoras, a menção à hospitalidade
do povo amapaense foi um ponto em comum, segundo algumas delas, os nortistas seriam inclusive
mais afetuosos que pessoas das demais regiões brasileiras.
Michelle, Samantha, Laura, Estela, Fátima e Sylvie correspondem a uma migração
documentada e qualificada, para as quais a estrutura de acolhida é maior. Enquanto Michelle,
Samantha e Laura, professoras, gozam de estima social; Estela, Fátima e Sylvie são estudantes
universitárias que contam com o investimento financeiro familiar para suas formações acadêmicas,
tendo em vista o retorno aos países de origem para ocuparem postos de trabalho de prestígio social.
Outro ponto tradicional na experiência migratória, o envio de remessas, não é uma questão central
para essas seis mulheres. Samantha, por exemplo, arremata: “Se fosse por dinheiro não sairia da
França”.

PODE A SUBALTERNA FALAR?

110
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para Maria, da República Dominicana, a fronteira da Amazônia Franco-Brasileira
representou, sobretudo a decadência de seu status social. Dessa forma, ela é a exceção do grupo aqui
apresentado. Estar no Amapá impingiu a ela uma posição subalterna, já que trabalha como cozinheira
e incrementa sua renda com outros trabalhos domésticos. Porém, Maria representa inúmeros
migrantes que necessitam reelaborar seus projetos iniciais diante das frustrações nos países de
destino, ademais de enfrentar o dilema de criar os filhos em outro país.
Para Maria, a fronteira representou, sobretudo a decadência de seu status social. Dessa forma,
ela é a exceção do grupo aqui apresentado. Estar no Amapá impingiu a ela uma posição subalterna,
já que trabalha como cozinheira e incrementa sua renda com outros trabalhos domésticos.
Maria saiu da República Dominicana em 2016, lá trabalhou durante vinte e oito anos em uma
fábrica de produtos alimentícios. Ela possui formação como técnica em alimentos e vários cursos de
aperfeiçoamento, cujos certificados inclusive mostrou-me; foi casada por quinze anos mas divorciou-
se do marido violento, com quem teve sua única filha. Nos últimos anos, Maria sustentava a si, a filha
e mantinha sua casa com o salário que recebia na fábrica de alimentos, contudo, diante da crise
econômica em seu país e a desvalorização da moeda, o saldo estava insuficiente e, seguindo outros
conterrâneos, Maria decidiu partir para o exterior em busca de melhores postos de trabalho, seu
primeiro destino foi o Suriname: “A República Dominicana vai ficar vazia, está todo mundo indo
embora”.
A rota mais barata de vinda do Suriname para o Brasil é através da Guiana Francesa, no trajeto
entre Saint Georges e Oiapoque. Consideradas cidades-gêmeas, o município de Oiapoque no estado
do Amapá e Saint-Georges de l’Oyapock na Guiana Francesa estão separadas pelo rio Oiapoque, o
limite internacional do Brasil com a França ou com a União Europeia é feito em grande parte pelo
curso desse rio:

As cidades gêmeas são o meio geográfico que melhor caracteriza a zona de fronteira. Esses
adensamentos populacionais cortados pela linha de fronteira, seja esta seca ou fluvial,
articulada ou não por obra de infraestrutura apresentam grande potencial de integração
econômica e cultural, assim como manifestações condensadas dos problemas característicos
da fronteira, que aí adquirem maior densidade, com efeitos diretos sobre o desenvolvimento
regional e a cidadania. (SANTOS, 2012, p. 129).

IMAGEM 03 – CATRAIAS NO CAIS DA ORLA DE OIAPOQUE, MARGEM DO RIO


OIAPOQUE, PONTE BINACIONAL FRANCO-BRASILEIRA AO FUNDO
111
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: G1 AMAPÁ, 2018

O rio corresponde à principal via de circulação para o transporte de cargas e pessoas nessa
porção da fronteira amazônica. Esse transporte é feito, sobretudo, por embarcações com motor de
popa denominadas de catraias, conduzidas pelos catraieiros. Foi em uma catraia que Maria chegou
ao Oiapoque. A escuridão do rio e da noite marcaram negativamente a travessia de Maria:

Eu nunca gostei da selva, tenho medo, e aqui é tudo selva, cercado. Então atravessar o rio à
noite na chuva, no escuro, sem enxergar nada, sem saber o que esperar, nem sei nadar, foi
horrível, horrível. Tive muito medo. Não gosto de lembrar. (Maria, Oiapoque, maio de 2018).

Maria literalmente cruzou a fronteira “molhada” franco-brasileira, diferente das outras


interlocutoras que chegaram ao Amapá de avião, aterrissando na capital do estado, ela foi a única que
chegou pelo rio-fronteira Oiapoque. As demais mulheres, se não estavam acompanhadas de outros
estudantes vindos da mesma região, estavam ou com o esposo ou pelo menos tinham algum
representante da Universidade aguardando para recepcioná-las ou como Samantha, que já havia
visitado o estado. Maria chegou sozinha, não foi esperada e não sabia muito bem o que esperar.
Após instalar-se em uma pousada enquanto buscava onde morar, Maria conseguiu um
emprego de camareira em um hotel. Após um mês neste emprego, ela aguardou seu primeiro salário,
que não recebeu. Alguns dias depois do prazo estabelecido para o recebimento, Maria reclamou
seu soldo ao patrão, que lhe entregou o ordenado devido alegando que havia esquecido o
112
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vencimento. Assim que recebeu, Maria comentou com outra camareira sobre a situação, a colega de
trabalho considerou uma audácia a queixa de Maria e indagou-lhe: “Você acha que é o que? Loira de
olho azul?”.
Poucos dias seguintes ao ocorrido, o patrão de Maria comunicou-lhe o aviso prévio. Maria
ainda questionou se havia alguma reclamação por parte dos hóspedes ou funcionários do hotel em
relação a seu serviço, pois se havia, ela desconhecia, já que se dava bem com todos e cumpria seu
horário regularmente. A resposta pontual do patrão a Maria foi: “Não, é esse seu jeito”.
As pessoas negras no Brasil têm lugares sociais bem demarcados e naturalizados, que são os
espaços sociais de pouco prestígio ou o exercício de profissões de baixa remuneração. Não somente
espera-se que ocupem esses lugares como também se comportem de acordo com esses lugares. A
colega de trabalho de Maria considerou a reivindicação salarial uma insolência e um “comportamento
de branca de olho azul”.
Mulheres negras migrantes que se deslocam entre fronteiras físicas também ultrapassam as
fronteiras simbólicas que as encarceram como sujeitos subalternos. Escutá-las e compreender suas
trajetórias associando aos fluxos migratórios contemporâneos, a partir de uma região também
fronteiriça e periférica, contribui para a descolonização do conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta parte do texto onde se colocam as considerações finais ou conclusão, local onde as
ideias possuem um desfecho ou são levadas para uma nova problemática. Esta parte do trabalho
pretende apresentar as principais conclusões, destacando o progresso e as aplicações que a pesquisa
ou experiência propicia.
A escrita das considerações finais deve expressar a relação entre os objetivos do trabalho e os
resultados encontrados. Pode ser iniciada com o que foi aprendido. Deve ser exposto de forma muito
resumida e pontual as ideias principais e as contribuições que o trabalho proporcionou para a área de
estudos.
Nas Considerações Finais podem ser colocadas também as limitações do estudo com relação
ao problema, sugestões de modificações no método para futuros estudos. Deve, portanto, abster-se
do uso de citações. Destinando-se a demonstrar se as hipóteses foram confirmadas, quando

113
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
houver, a responder às perguntas feitas no início do trabalho e a esclarecer se os objetivos fixados na
introdução foram atingidos. A conclusão não é um resumo do trabalho.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, José. Imigração em territórios fronteiriços. Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP). São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/302.pdf.

AROUCK, Ronaldo de Camargo. Brasileiros na Guiana Francesa: Fronteiras e Construção de


Alteridades. Belém: UFPA, 2000.

BLAY, Yaba Amgborale. Skin Bleaching and Global White Supremacy. The Journal of Pan
African Studies, vol. 4, no. 4, June, 2011. Disponível em:
http://www.jpanafrican.org/docs/vol4no4/Editorial.pdf.

BRAGA, Sérgio Ivan Gil. Danças e andanças de negros na Amazônia: por onde anda o filho de
Catirina?. In: Patricia Melo Sampaio. (Org.). O fim do silêncio. 1ed. Belém: Editora Açaí, 2011, v.
1, p. 157-172.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. São Paulo: Boitempo, 2019.
JAKOB, Alberto Augusto Eichman. A Migração Internacional Na Amazônia Brasileira. Informe
Gepec, Toledo, v. 15, número especial, p. 422-442, 2011. Disponível em:
http://saber.unioeste.br/index.php/gepec/article/viewFile/6292/4802.

MACHADO, Igor José Renó. Movimento e parentesco: sobre as especificidades dos deslocamentos.
Curitiba: Campos - Revista de Antropologia Social.n.15, 2014, p.27-42. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.5380/campos.v15i2.46040.

MEMMI, Alberto. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro:


Civilização brasileira, 2007.

PINTO, Manoel de Jesus de Souza. A vida no limite: atividades ilegais, migração irregular e direitos
humanos na fronteira entre o estado do Amapá e a Guiana Francesa. Pracs: Revista de Humanidades
do Curso de Ciências Sociais, Unifap, nº 1, dez. 2008.

REIS, Artur César Ferreira. Território do Amapá: perfil histórico. Rio de Janeiro: Departamento de
Imprensa acional, 1996.

RELATÓRIO DA CPI ASSASSINATO DE JOVENS 2016. Disponível em:


https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-
assassinato-de-jovens.

RELATÓRIO ICMPD – BRASIL MIGRAÇÕES TRANSFRONTEIRIÇAS. International


Centre for Migration Policy Development (ICMPD). Disponível em:
114
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-
pesquisas/mtbrasil_act-1-3-1-4_relatorio_final.pdf.

SANTOS, Emmanuel R. C. Amazônia Setentrional Amapaense: do “mundo” das águas às florestas


protegidas. Tese (Doutorado em Geografia) -Programa de Pós Graduação em Geografia da
FCT/UNESP, Presidente Prudente-SP, 2012. 252 p. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/101428/santos_erc_dr_prud.pdf?sequence=1.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro- As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em


Ascensão Social. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016. Disponível em:


https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf.

WESCHENFELDER, Viviane Inês; SILVA, Mozart Linhares. A cor da mestiçagem: o pardo e a


produção de subjetividades negras no Brasil contemporâneo. Análise Social, 227, liii (2.º), p. 308-
330, 2018. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n227a03.pdf.

115
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ENTRE VIVÊNCIAS E FALAS: A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA VALORIZAÇÃO
DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Wagner Leite dos Santos95


Anna Paula Balbino de Araújo96
Danielle Vitória Pessoa de Sales Santos 97
Thaís Oliveira de Souza98

Resumo: O presente trabalho objetiva refletir acerca das atividades desenvolvidas no projeto de
extensão "Entre Vivências e Falas: a Cultura Afro-brasileira na Brinquedoteca", em meio ao contexto
de pandemia, ocasionada pela COVID-19. O referido projeto busca desenvolver atividades que
proporcionem a transmissão, produção e discussão do conhecimento acerca da Cultura Afro-brasileira
em um contexto de brinquedoteca. Inicialmente a proposta tinha como público alvo crianças três a
dez anos de idade, filhos(as) de estudantes, servidores(as) e professores(as) da Universidade Federal
da Paraíba, utilizadoras da Brinquedoteca do Centro de Educação. Com a paralisação das atividades
presenciais, recorreu-se ao uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), tal ação
ampliou o alcance do público para pais, familiares e pessoas externas. Como destaca Maria Reis
(2010) as manifestações culturais afro-brasileiras ao longo da história foram marginalizadas. Silva Jr,
Maria Bento e Silvia Carvalho (2012) salientam que apesar da africanidade estar presente em diversas
manifestações culturais brasileiras, sabemos que ela não é tão valorizada quanto as expressões de
origem européia. Nesse contexto, torna-se de fundamental importância a existência e resistência de
ambientes que busquem valorizar a Cultura Afro-brasileira. Consideramos, a partir da Teoria
Histórico-Cultural que tem Vygotski (2014a; 2014b) como maior expoente, a atividade do brincar
como a principal via de desenvolvimento e aprendizagem da criança pequena. Problematizando
questões reveladas pelo brincar, os adultos podem trabalhar com os princípios dos Direitos Humanos,
e assim, fomentar uma educação mais igualitária, cidadã e justa. Considerando que os ambientes
educativos não são neutros, podendo perpetuar e fortalecer o racismo, os educadores precisam
fomentar espaços voltados à promoção da igualdade racial. Em nosso projeto de extensão, diversas
manifestações culturais estão sendo desenvolvidas por meio das TICs, mais especificamente pelo
Instagram. Foram elaboradas publicações escritas e em vídeo com manifestações culturais afro-
brasileiras: dança, música, criação/contação de histórias, jogos e brincadeiras. A elaboração do
material é feita a partir de estudos, discussões e planejamento da equipe do projeto, que se encontra
periodicamente via Plataforma Google Meet. As dificuldades encontradas foram de ordem técnica,
com o desafio da utilização massiva de aparelhos eletrônicos e programas, e de ordem emocional,
pois a pandemia causa tensão e medo frente ao futuro. Ao mesmo tempo, as atividades desenvolvidas
nesse contexto criaram e fortaleceram laços afetivos e de colaboração entre os participantes. O projeto
também foca-se na formação docente dos extencionistas, considerando o desenvolvimento de
atividades de reflexão e avaliação da prática pedagógica, de pesquisa e construção do conhecimento

95
Graduando em Dança, pela Universidade Federal da Paraíba, Campus I. E-mail: wagner.leite.cont@gmail.com
96
Graduada em Pedagogia, pela Universidade Federal da Paraíba, Campus I. Cursando Especialização em Educação
de Jovens e Adultos, pelo Instituto Federal de Rondônia, Pólo Mari, Paraíba. E-mail: paula.anna21@yahoo.com
97
Graduanda em Pedagogia, pela Universidade Federal da Paraíba, Campus I. E-mail: danisales533@gmail.com
98
Doutora em Psicologia, pela Universidade Estadual Paulista, Campus Assis, SP. Professora do Departamento de
Fundamentação da Educação, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba, Campus I. E-mail:
thais.oliveira@academico.ufpb.br
116
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sobre a temática abordada. Acreditamos que, dessa forma, promovemos a valorização da diversidade
e o respeito entre os sujeitos.

Palavras-chave: Extensão Universitária; Brinquedoteca; Cultura Afro-brasileira; Racismo.

REFERÊNCIAS

MARIA REIS, Clareth Gonlalves. Corporeidade e Infâncias: reflexões a partir da Lei nº 10.639/03.
In: ANA BRANDÃO, Paula; AZOILDA TRINDADE, Loretto da. (Orgs.) Modos de brincar:
caderno de atividades, saberes e fazeres. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010.

SILVA JR, Hédio Silva; MARIA BENTO, Aparecida Silva; SILVIA CARVALHO, Pereira de.
Educação infantil e práticas promotoras de igualdade racial. São Paulo: Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades - CEERT: Instituto Avisa lá - Formação Continuada de
Educadores, 2012.

VYGOTSKI, Lev. S.Obras escogidas – Tomo III. Madrid: Antonio Machado Libros, 2014.a. 383 p.

VYGOTSKI, Lev. S.Obras escogidas – Tomo IV. Madrid: Antonio Machado Libros, 2014.b. 427 p.

117
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O SUBEMPREGO E A VULNERABILIDADE DOS IMIGRANTES FRENTE A
EXPLORAÇÃO DOS EMPREGADORES NO BRASIL

Murilo Coelho Grizza99


Marcelle Perlin Willms100
Alana Taise Castro Sartori101
Nelci Lurdes Gayeski Meneguzzi102

Resumo: Este resumo aborda o tema do subemprego dos imigrantes e sua vulnerabilidade no Brasil,
frente a exploração dos empregadores. O Brasil, no decorrer de sua história, principalmente nos
últimos anos, vem sendo um grande acolhedor de imigrantes e/ou refugiados. Este fenômeno
migratório ocorre por diversos motivos, seja em virtude de problemas políticos, econômicos e sociais
nos países de origem, ou pela oferta de melhores possibilidades de vida e crescimento econômico
pessoal no Brasil. Ainda que o governo brasileiro proporcione ao imigrante um relativo apoio
institucional (seja por meio de políticas estatais, de ONGs ou de organizações religiosas ou
filantrópicas), é preciso compreender que a situação do imigrante em território brasileiro é de
vulnerabilidade, pois ele se encontra submetido a uma ordem jurídica, econômica e social diversa
daquela de sua origem, bem como, em muitos casos, encontra-se em situação de pobreza. Nas raras
oportunidades em que são disponibilizados trabalhos aos imigrantes, enfrentam-se questões de
exploração. Em muitos casos, os imigrantes acabam abraçando a primeira oportunidade que lhes
aparece e, geralmente, por trás dessas oportunidades, está a mão de obra barata, trabalhos que não
respeitam a legislação trabalhista nacional, tampouco os direitos da pessoa humana, muitos em
condições análogas ao trabalho escravo. Em muitos casos, o empregador, mesmo conhecendo os
direitos relacionados aos empregados, acaba tirando vantagem de pessoas nessa condição de
vulnerabilidade. Entende-se que o imigrante não possui muitas alternativas, visto que políticas
públicas brasileiras são escassas nesta área. Da mesma forma, a relação de poder existente entre
empregados e empregadores, devido principalmente ao poder econômico envolvido na relação

99
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI, campus de Santo
Ângelo. E-mail: murilocoelhogrizza@gmail.com.
100
Acadêmica do quarto semestre do curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI, campus Santo Ângelo. Pesquisadora voluntária no projeto de pesquisa "CRISÁLIDA: direito e arte,
do curso de graduação em Direito da mesma instituição. E-mail: marcelleperlin@gmail.com.
101
Mestranda e bacharela pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de
Santo Ângelo. Bolsista CAPES, na modalidade PROSUC/TAXA. Membro do grupo de pesquisa vinculado ao
CNPq “Novos Direitos em Sociedades Complexas”. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6015-7371. Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3072936815192617. E-mail para contato: alana_t.c._sartori_@hotmail.com.
102
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UNIJUI, vinculada à linha de pesquisa do
PPGDH/UNIJUÍ “Democracia, Direitos Humanos e desenvolvimento”; orientanda do Prof. Dr. Gilmar Antônio
Bedin e coorientanda da Profª. Dra. Denise Pires Fincato. Mestra em Direito pela Universidade de Caxias do Sul -
UCS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, pelo Complexo de Ensino Superior de Santa
Catarina / CESUSC. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo - UPF. Advogada.
Docente de Ensino Superior com experiência na área de Direito: Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e
Direito Previdenciário. Atualmente é docente do Curso de Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, nos campus de Ijuí, Santa Rosa e Três Passos e na Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI- Campus de Santo Ângelo, RS. Orcid 0000-0001-9770-8395. E-mail:
nelcimeneguzzi@hotmail.com.
118
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
trabalhista, muitas vezes impede que o imigrante, submetido a condições de trabalho precárias,
procure auxílio dos órgãos públicos brasileiros. Ademais, vale considerar que, as condições de
trabalho em que pode se encontrar os imigrantes, mesmo sendo de forma degradante perante o senso
de crítica de uma pessoa com nacionalidade brasileira, pode ser melhor do que os mesmos imigrantes
viviam em seu país de origem, mas não pode ser chamando de digno. Assim, há um próprio embate
acerca da conscientização dos imigrantes acerca de seus direitos enquanto trabalhadores em território
brasileiro, pois, em muitos casos, podem temer que, caso requeiram mais direitos, percam seus postos
de trabalho e sua parca fonte de renda para subsistência. Neste sentido, a discussão acerca dos
trabalhadores imigrantes no Brasil é delicada, e pode adquirir contornos mais indefinidos quando se
trata de imigrantes ilegais. É indispensável compreender que o Estado tem responsabilidade pela
acolhida a estrangeiros e deve, portanto, criar políticas públicas no que tange a qualificação e
disponibilização de empregos dignos aos imigrantes, bem como manter o contato periódico e
constante com os mesmos, zelando pelo seu convívio digno em sociedade.

Palavras-chave: Imigrantes; Empregadores; Exploração, Direito do Trabalho;

REFERÊNCIAS
BAENINGER, Rosana et al (org). Imigração Haitiana no Brasil. Jundiaí: Paco Editoral, 2016. 684p.
MPT – Ministério Público do trabalho. Imigrantes. Disponível em: https://mpt.mp.br/. Acesso em: 05
jul. 2019.

PORTAL CONSULAR. Apoio ao Imigrante. Disponível em:


http://www.portalconsular.itamaraty.gov.br/apoio-ao-imigrante. Acesso em: 05 jul. 2019.

119
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PRÁTICAS EDUCATIVAS GRIÔ: PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA INICIAÇÃO
CIENTÍFICA SOBRE A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Daniele do Nascimento Leandro103


Patrícia da Silva Alves104
João Victor Ramos Xavier105
Ana Paula Romão de Souza Ferreira106

Resumo: A pesquisa relatada neste trabalho caracteriza-se por um estudo teórico-analítico em


andamento do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) referente a Educação das Relaões Étnico-
raciais (ERER), aprovado no contexto da Pandemia provocada pelo COVID-19. Teve como
inquietação responder sobre quais são as principais categorias/conceitos nas dissertações e teses sobre
as relações étnico-raciais, defendidas entre 2009-2019, no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE/UFPB). Tendo como objetivos específicos mapear as dissertações e teses que abordam a
temática da ERER com foco na Educação Básica e identificar no Estado da Arte das dissertações
elencadas as categorias recorrentes no tema da ERER. A metodologia utilizada foi com abordagem
qualitativa, do estudo histórico utilizando a pesquisa bibliográfica e documental, utilizando fichas de
leitura de três dissertações escolhidas de acordo com a interface entre a ERER e a Educação Básica.
O campo historiográfico trata-se de um diálogo entre a História Social e Cultural, que possibilita
entender a história e cultura africana e afro-brasileira. Os resultados apontam que o estado da arte
está ancorado em autores/as: (BRASIL, 1996; 2003; 2004; 2015; 2020); Silva (1999); Munanga
(2005; 2018); Gomes (2003, 2008); Nascimento (2002); Gomes (2017); Cunha JR (2020); Silva
(2010) e Fanon (2008). E as principais categorias foram: raça, racismo, identidade negra, currículo,
formação docente, cultura e Lei 10.639/2003. Foi sistematizado um Mapa Conceitual entre as
categorias para suscitar estratégias didáticas na docência e pesquisa com a temática ERER.

Palavras-chave: Educação das Relações Étnico-raciais; Produção científica; Estado da Arte.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional - Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996. Brasília: 2005. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70320/65.pdf. Acesso em: 03 de out. 2019.

______. Lei Federal n°. 10.639, de 9/01/2003. Estabelece a obrigatoriedade do ensino da História
e Cultura Afro-brasileira no currículo da Rede de Ensino no Brasil. Brasília: Gráfica do senado,
2003.

103
Graduanda do curso Pedagogia com aprofundamento em Educação do Campo, pela Universidade Federal da
Paraíba, campus I. E-mail: daniele.leandro1@gmail.com
104
Graduanda do curso Licenciatura Plena em Pedagogia, pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-mail:
patricialves010582@gmail.com
105
Graduando do curso curso Licenciatura Plena em Pedagogia, pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-
mail: joaovictorramos@outlook.com.br
106
Professora do Departamento de Habiltações Pedagógicas, pela Universidade Federal da Paraíba, campus I. E-
mail: anarosfe@gmail.com
120
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
______. Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Etnicorraciais. Brasília: MEC,
2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/orientacoes_etnicoraciais.pdf. Acesso
em: 05 de abr.2020.

______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução n.2, de 1º de julho de


2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em nível superior (cursos
de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e
para a Formação Continuada. CNE/CP, 2015. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/agosto-2017-pdf/70431-res-cne-cp-002-03072015-pdf/file. Acesso
em: 05 de mar. 2020.

CUNHA JÚNIOR, Henrique. A Formação de Pesquisadores Negros no Brasil - Plano 500 de


Política Científica Nacional (uma proposta de um pesquisador militante). Disponível em:
<www.espacoacademico.com.br/027/27ccunha.htm>Acesso: 02 abr 2020.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petropólis-RJ: Vozes, 2017.

MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro mo Brasil de hoje. São Paulo: Global,
2006.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-africanista. 2ª ed.


Brasília/ Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002.

RODRIGUES, José Honório. A tradição, a memória e a história. In.:Brasil Tempo e Cultura 3. João
Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1980.

SILVA, Eliane Borges. Negros e Ciência: uma análise sobre inserção acadêmica de intelectuais
negros - o mal-estar na sociedade da informação. Doutorado (Ciência da Informação)
PPGCI/UFF/IBICT. 2010. Rio de Janeiro, 2010.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.

121
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA EM UMA HISTÓRIA DE VIDA

Mauro Henrique Franzkowiak Martins107


André Guirland Vieira108

Resumo: O processo de construção de uma identidade está inserido num campo social e de relações
sociais, que se constrói de maneira consciente e inconscientemente. Não podemos deixar de
considerar que o racismo, segundo Silvio Almeida, é uma forma sistemática de discriminação que
tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes que
culminam em desvantagens ou privilégios para os indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam. Ainda, o racismo produz o sentido, a lógica e a tecnologia para as mais variadas formas
de violência e desigualdade social que desenham a vida social nos dias atuais. Neste movimento de
eventos múltiplos, a concordância da narrativa ordena logicamente, originando uma composição com
começo, meio e fim, possibilitando a compreensão da história narrada em sua totalidade. Assim, com
a articulação das ações do homem na composição, torna-se possível uma identidade narrativa, ou seja,
por meio da narrativa os acontecimentos das ações dos homens são organizados em uma ordem
temporal, sustentando-se uma identidade, mesmo havendo uma variedade de acontecimentos. Pela
composição narrativa, é possível reconhecer a história de uma vida e o próprio reconhecimento, pois
o que se configura na composição são as histórias reelaboradas das ações dos homens. A identidade
negra não se recupera ou nasce na tomada de consciência de suas diferenças corporais. A negritude
e/ou identidade negra se referem à história comum que liga, de uma maneira ou de outra todos os
grupos humanos que o olhar do mundo ocidental. A negritude é parte integrante da luta para
reconstrução de uma identidade. A identidade consiste em assumir-se plenamente a condição de
negro. Desta forma, objetivo deste trabalho foi analisar, através da história de vida, o processo de
construção de uma identidade negra a partir da narrativa de uma pessoa afrodescendente. O
delineamento deste trabalho foi uma investigação qualitativa utilizando um tipo de desenho narrativo
que analisa história de vida. Utilizou-se do modelo de entrevista narrativa proposto por Bauer e
Gaskell. Após a transcrição, foi realizada a análise dos dados de acordo com a proposta de Análise
de Conteúdo na Modalidade Temática de Minayo. A partir da análise dos dados, foi possível concluir
que a narrativa é uma ferramenta fundamental da identidade negra, uma vez que, por herança, é parte
da cultura afrodescendente utilizar da oralidade para transmitir seus saberes aos seus descendentes.
Também é a partir desta ferramenta que se mantém a história viva da descendência. Ainda, durante
as entrevistas, muitas fábulas foram trazidas, demonstrando a importância do fabular para o
fortalecimento dos elementos identitários negros. É através deste ato que valores, conhecimento,
história, religiosidade são transmitidos. Por fim, o descobrir-se negro. Esta expressão revelada nas
entrevistas nos auxilia a compreender que a identidade negra se dá pelo processo de tornar-se negro,
entre a exclusão e a liberdade, diante da possibilidade de realização de uma democracia racial plena.
É a partir do descobrir-se negro que se assume plenamente e com orgulho a condição de negro.

Palavras-chave: Narrativa; História de Vida; Identidade; Negritude.

107
Mestrando do PPG em Promoção da Saúde, desenvolvimento humano e Sociedade da Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA). E-mail: mhfmartins93@gmail.com
108
Professor adjunto na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).E-mail: andre.vieira@ulbra.br
122
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2020.

BAUER, Martins; GASKELL, George. (editores). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som:
um manual Prático. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes. 2002

BRUNER, Jerome. Actualminds, possible worlds. Cambridge, Massachusetts: Harvard University


Press. 1986.

_____. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas. 2001.

MARIA MINAYO. O Desafio do Conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São
Paulo. Hucitec. 2014.

MUNANGA, Kabengele. Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os discursos


anti-racistas no Brasil. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura. 5(1), 17-24. 1996.

_____. Negrite e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso? Revista da ABPN.


V.4 n.8. jul-out. p. 06-14. 2012.

_____. Negritude: usos e sentidos. 4a.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

_____. Prefácio. In: CARONE, Iracy; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do
racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Vozes,
2002.

123
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - 30 ANOS DO ECA: DIREITOS E
POLÍTICAS SOCIAIS PARA A INFÂNCIA E
JUVENTUDE

COORDENAÇÃO

Dra. Monique Soares Vieira – UNIPAMPA


Dra. Renata Gomes da Costa – UNIRIO

124
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HISTÓRIA ORAL E SUAS POTENCIALIDADES DE ESCUTA PARA A PRODUÇÃO DE
NARRATIVAS DE MÃES COM FILHOS(AS) LGBT+

Carolina Stéphanie Rodrigues Gonçalves109

Resumo: Este trabalho tem sua origem em uma das atividades do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de
São João del-Rei, quando nós, discentes, fomos estimulados(as) a elaborar reflexões em torno da pergunta: Como as
leituras realizadas ao longo da disciplina de Metodologia da Pesquisa podem contribuir para o estudo de um "objeto" que
fala? A partir do exercício proposto, partiremos da defesa da importância de desenvolvermos uma escuta sensível na
prática da História Oral - metodologia por mim escolhida para levar a cabo minha investigação acerca do modo como
mães heterossexuais administrariam a informação de que seus/suas filhos(as) são gays/lésbicas. Fortes, aqui, no
entendimento de que em História Oral se dá ouvidos e não voz, buscaremos problematizar o entendimento equivocado de
que em História Oral "importa dar voz" a nossos(as) colaboradores(as). Como essa expressão nos soa problemática,
confrontaremo-na para pensar o nosso lugar enquanto profissionais oralistas, como sendo este o lugar, por excelência, da
escuta. Com este movimento, buscaremos construir um discurso que esteja atento ao que nos dirão nossas colaboradoras,
mulheres-mães heterossexuais de filhos(as) LGBT+ com as quais realizaremos entrevistas do tipo História Oral de Vida.

Palavras-chave: Homossexualidades; Mães heterossexuais; História Oral; Escuta.

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem sua origem em uma das atividades da disciplina de Metodologia da Pesquisa
do Mestrado em Psicologia do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
de São João del-Rei, quando nós, discentes, fomos estimulados(as) a elaborar reflexões em torno da
seguinte pergunta: Como as leituras realizadas ao longo da disciplina de Metodologia da Pesquisa
podem contribuir para o estudo de um "objeto" que fala? Por meio deste exercício proposto, teremos
a oportunidade de refletir sobre questões de epistemologia e de metodologia, que, como apontado por
Amina Mama (2010), têm sido questões pouco profundamente refletidas.
Especificamente, meu trabalho de reflexão em torno dessas questões será desenvolvido
procurando-se estabelecê-lo em relação a meu tema e a meu problema de investigação enquanto
mestranda do referido Programa, que penso, poderiam ser anunciados do seguinte modo,
respectivamente: meu tema de pesquisa é a revelação da homossexualidade, e meu problema de
pesquisa diz respeito a como mães heterossexuais e cisgêneras de filhos(as) homossexuais
administrariam a informação social (GOFFMAN, 2004) referente à homossexualidade deles(as) ou a
como essas mães enfrentariam o desafio de revelação, para outras pessoas, da homossexualidade de
seus/suas filhos(as)?

109
Mestranda do curso Psicologia, pela Universidade Federal de São João del-Rei, campus Dom Bosco. E-mail:
crln.stephanie@gmail.com
125
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A partir do exercício proposto, partiremos da defesa da importância de desenvolvermos e
aprimorarmos uma escuta sensível na prática da História Oral - metodologia por mim escolhida para
levar a cabo minha proposta de investigação acerca do modo como mães heterossexuais
administrariam a informação social de que seus/suas filhos(as) são LGBT+. Fortes, aqui, no que disse,
por exemplo, "[...] Marta Rovai [...] que em História Oral se dá ouvidos e não voz" (SEAWRIGHT,
2017, para. 4), buscaremos problematizar o entendimento vulgar - de todo equivocado - de que em
História Oral "importa dar voz" a nossos(as) colaboradores(as). Como essa expressão nos soa, assim
como para Leandro Seawright (2017), "autoritária, vertical e desgastada", confrontaremo-na para
pensar o nosso lugar enquanto profissionais oralistas, como sendo este o lugar da escuta, "[...] de
[nos] sentar ao lado de pessoas com a devida atenção, de compreender uma parte decodificada do
mundo alheio, de 'desvitimizar', de 'ouvir o outro lado' e de radicalizar a 'escuta democrática' [...]"
(SEAWRIGHT, 2017, para. 4).
Com este movimento, buscaremos construir um discurso que esteja atento para o que nos dirão
nossas colaboradoras, mulheres-mães heterossexuais e cisgêneras de filhos(as) LGBT+ com as quais
realizaremos entrevistas do tipo História Oral de Vida. Será nossa intenção construir "[...] um discurso
contaminado, [...] multivocal, [...] que tem uma multidão de autores" (PORTELLI, 2010, p. 9) -
discurso este que é característico da História Oral.

APRENDENDO A OUVIR: HISTÓRIA ORAL E SUAS POTENCIALIDADES DE ESCUTA


Nosso projeto de pesquisa ocupa-se da manipulação da informação social pelas pessoas
informadas (indivíduos que, segundo Erving Goffman (2004), a princípio, não são estigmatizados
socialmente, mas cuja situação especial de proximidade com o estigmatizado leva a se tornarem
pessoas "compassivas" em relação a esse estigma). Especificamente, ocupar-nos-emos desse processo
realizado por mães heterossexuais e cisgêneras informadas sobre a homossexualidade de seus/suas
filhos(as). O objetivo da investigação, então, é analisar como essas mães confeccionam seus próprios
regimes de (in)dizibilidade quanto à homossexualidade de seus/suas filhos(as) nos seus trânsitos
sociais. Metodologicamente, servindo ao propósito de respondermos à seguinte pergunta: “como
algumas mães heterossexuais administram a informação social referente à homossexualidade de
seus/suas filhos(as)?”, servir-nos-emos da prática da História Oral.

126
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A prática da História Oral contrapõe-se ao desprezo estimulado, a partir do século XIX, pelo
Ocidente, em relação às fontes orais, por meio de paradigmas cientificistas. Tal desprezo, como
afirmado por Bruno A. Picoli (2010), configurou-se, naquele século, quando a disciplina histórica
estava reivindicando sua independência em relação às demais áreas, como a filosofia e a literatura,
por exemplo. Com tal reivindicação, houve a demarcação de algumas regras para aqueles(as) que
desejassem praticar um exercício historiográfico científico: seu objeto de estudo foi estabelecido
como sendo o passado distante, uma vez que, supostamente, como afirma Picoli (2010), somente este
afastamento temporal seria, em tese, capaz de permitir um distanciamento crítico em relação ao objeto
de estudo; e sua metodologia foi estabelecida como sendo as fontes escritas.

Ao crer que guardavam, de forma imparcial e imóvel, vestígios do passado tal qual este se
deu, os documentos escritos receberam uma áurea de sacralidade, de intangibilidade, pelos
paradigmas cientificistas: através deles, o passado seria reconstruído em sua totalidade
(PICOLI, 2010, p. 168, grifos do autor).

Na contramão desta perspectiva, a História Oral vem revalorizando os estudos voltados para
uma história do tempo presente, e, sobretudo, retomando a relevância das fontes orais, perdida no
decurso do século XIX, como já o dissemos, ao discutir e reivindicar os corpos e suas palavras (como
partes das presenças dos corpos) como importantes suportes tempo/espaciais de saberes e de
memórias e "[...] como elementos reveladores dos processos históricos no nível da micro-história"
(JÚLIA FAVARETTO, 2012, p. 10).
Pressupondo, ao menos, a presença de um(a) colaborador(a)110, de um(a) profissional oralista
(profissional este(a) que pode ser compreendido(a) como sendo a pessoa que trabalha com a História
Oral, e que, portanto, aceita as exigências de cuidados metodológicos e epistemológicos que a ela se
impõe) e de um gravador, esta não poderia ser circunscrita aos atos de se ligar o gravador, fazer
perguntas e esperar que o(a) colaborador(a) simplesmente fale. Sob uma abordagem que a vê como
um conjunto de procedimentos apto a permitir o desenvolvimento de projetos e pesquisas os mais

110
Como bem pontua Leandro Seawright (2017), que "[g]ost[a] de pensar que a 'entre-vista' é uma relação que
acontece 'entre as vistas', com os olhares trocados e as expressões assimiladas de forma 'intersubjetiva', [...] não se
utiliza mais, entre os pesquisadores mais atentos, a expressão 'depoimento' e outras que reforçam um caráter
'policialesco' empregado no passado; e, de outro modo, não se utiliza mais entre tais pesquisadores os termos
'depoente', 'investigado', 'ator' – ao contrário, utiliza-se colaborador (co-labor-ador), isto é, aquele que trabalha junto
ao diretor de um projeto de pesquisa em História Oral" (SEAWRIGHT, 2017, para. 14).
127
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diversos bem como o desenvolvimento de finalidades políticas por meio deles, a História Oral poderia
ser definida como

[...] um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que


continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto
prevê: planejamento da condução das gravações com definição de locais, tempo de duração
e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto
escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos
resultados que devem em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas (MEIHY;
FABÍOLA HOLANDA, 2007, p. 15).

Mas, transcendendo esta abordagem que a vê como uma orientação teórico-metodológica -


como a perspectiva esposada por José C. S. B. Meyhy e Fabíola Holanda -, veremo-na a partir de
outra abordagem que a vê em seu potencial epistemológico apto a reconhecer a necessidade de
questionarmos o conhecimento hegemônico e, por conseguinte, mirarmos a descolonização
intelectual. Sob esta perspectiva, da qual Silvia C. Rivera é uma de suas mais célebres representantes,
a História Oral é vista como "[...] um instrumento de luta política contra os discursos dominantes [...]"
(JÚLIA FAVARETTO, 2012, p. 10), uma vez que a prática da História Oral permitiria a produção
de outros conhecimentos e a revelação de saberes "[...] silenciados por formas de conhecimentos que
desqualificam, subalternizam e hierarquizam saberes e conhecimentos populares" (JÚLIA
FAVARETTO, 2012, p. 12). Como Júlia S. Favaretto (2012) indica, a História Oral se mostraria um
aporte adequado para promover uma recriação epistemológica, uma vez que, como já o dissemos, ela
permitiria o acesso a formas de pensar e existir frequentemente silenciados, omitidos ou soterrados
na produção científica e nos demais discursos que se pretendem hegemônicos e totalizantes. Ao expor
tais fissuras nesses campos narrativos, a História Oral, como afirma Júlia Favaretto (2012), permitiria
o acesso a visões de mundo que são essenciais para compreender a pluralidade humana e sua
irredutibilidade ao monológico. Como colocado por Júlia Favaretto (2012):

A História Oral, nesse sentido, é mais do que uma metodologia, é um exercício, segundo
Cusicanqui, capaz de desalienar. A História Oral adquiriu, assim, um potencial
epistemológico, com possibilidades de contribuição radical, na medida em que o lhe importa
não é o reconhecimento, nas suas fontes, da veracidade, ou da falta dela. Nesta proposição,
permitiu-se [por exemplo] que intelectuais indígenas e mestiços se reunissem na recuperação
de fenômenos sociais, em que, anteriormente, falavam apenas os sujeitos de um
conhecimento eurocêntrico. Invisíveis e excluídos, passaram a registrar, nos relatos orais,
seus modos de formular as narrativas históricas, distantes da lógica evolucionista e
cientificista do colonialismo do saber.

128
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] Através do registro das histórias de vida, percebe-se [assim] que o conhecimento
formalmente produzido contém lacunas que, quando são observadas, se apresentam como
entradas para universos inteiros, até então ocultos na visão criada pela Ciências Humanas
(JÚLIA FAVARETTO, 2012, p. 12-14).

Ademais, a nosso ver, a finalidade precípua da História Oral poderia ser compendiada no que
disse Marta G. de O. Rovai (2013) quando afirmou que a História Oral nos permite "[...] romper com
a 'outridade', ou seja, [...] atravessar a ponte da indiferença entre os ouvintes e a 'morte em vida'111 a
que muitos foram condenados por não poderem falar" (MARTA ROVAI, 2013, p. 134), ou, em outras
palavras, a História Oral nos permitiria nos lançar na encruzilhada da alteridade, que se estabeleceria
entre aqueles que verbalizam suas vozes (os(as) narradores(as)) e aqueles(as) que os(as) entrevistam,
relação está também mediatizada pela memória, como pode ser compreendido a partir da leitura de
Antoinette Errante (2000).
Um primeiro aspecto referente à História Oral é que as pessoas que nos relatam "[...] se
transformam de objetos de estudo [como poderiam ser interpretadas por outros aportes] em sujeitos
da história, conforme Paul Thompson" (CLÁUDIA CARDOSO, 2012, p. 28). Em sentido próximo a
este, Alessandro Portelli (2010) afirma que os sujeitos buscados pela História Oral possuem vozes,
mas, nunca ou quase nunca, estas seriam escutadas. O que a prática da História Oral faria com suas
vozes é permitir que elas acessem à esfera pública e pudessem, com esta chegada, transformá-la.
Como afirmado pelo autor em questão:

Com frequência se diz que, na História Oral, damos voz aos sem voz. Não é assim. Se não
tivessem voz, não teríamos nada a gravar, não teríamos nada a escutar. Os excluídos, os
marginalizados, os sem-poder sim, têm voz, mas não há ninguém que os escute. Essa voz

111
Marta Rovai utiliza a expressão "morte em vida" para se referir não àqueles que passaram pela experiência de
morte física, mas sim àqueles não foram fisicamente mortos, mas que o foram em diversos outros campos (como o
espiritual, o psicológico, o epistemológico etc.). A experiência da morte, assim, a nosso ver, pode ser compreendida
em Marta Rovai (2013) tal como o é em Luiz A. Simas e Luiz Rufino (2018), "[...] como o fechamento de
possibilidades, o esquecimento, a ausência de poder criativo, de produção renovável e de mobilidade: o
desencantamento" (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 34), e não como mero conceito em oposição à vida. Ademais,
precisamos dizer que indivíduos e grupos historicamente discriminados frequentemente têm se lançado contra as
diversas experiências de "morte em vida" a eles impostas historicamente e tem sido "[...] capazes de driblar a própria
condição de exclusão (as sobras viventes [gentes descartáveis, que não se enquadram na lógica hipermercantilizada
e normativa do sistema]), deixaram de ser apenas reativos ao outro (como sobreviventes) e foram além, inventando
a vida como potência (supraviventes)" (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 111). No sentido em que empregam Simas e
Rufino (2018), poderíamos compreender supravivência como a experiência de morte reconfigurada em uma radical
possibilidade de vida. A supravivência não poderia ser circunscrita às noções de vida e de morte. Estaria para além
delas. "A supravivência não é a vida nem a morte. Ela é a existência experimentalmente alterada. [...] A morte se
torna um enigma de continuidade na presença" (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 101).
129
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
está incluída num espaço limitado. O que fazemos é recolher essa voz, amplificá-la e levá-la
ao espaço público do discurso e da palavra. Isso é um trabalho político, porque tem a ver não
só com o direito à palavra, o direito básico de falar, mas com o direito de falar e de que se
faça caso, de falar e ser ouvido, ser escutado, de ter um papel no discurso público e nas
instituições políticas, na democracia (PORTELLI, 2010, p. 3).

Em um sentido bastante próximo a este esboçado por Portelli (2010), Marta Rovai afirma que
"[n]ão se trata de dar voz ao narrador, mas oferecer-lhe ouvidos e olhos atentos" (MARTA ROVAI,
2013, p. 142). João J. V. de Souza (2012) parece convergir para o que afirmam Portelli (2010) e Marta
Rovai (2013), quando diz:

[...] problematizando tais posturas, esse “dar voz aos excluídos” (PEREIRA NETO et all,
2010), essa “recuperação da história dos excluídos" (FERREIRA, apud PEREIRA NETO et
all, 2010), se constituem, ao que parece, em discursos pautados numa visão de caráter
colonizadora na medida em que aponta para o estabelecimento de uma relação “paternalista”
entre quem tem o poder de conceder voz e recuperar história (o pesquisador) e quem
[supostamente] não tem voz nem [supostamente] consegue por si recuperar sua memória, no
caso, os excluídos, o pesquisado (SOUZA, 2012, p. 3, grifos do autor).

Ademais, sob a ótica da História Oral, os(as) narradores(as) orais que entrevistamos não são
vistos(as) como meros(as) informantes de quem se espera seja possível extrair informações, nem
como objetos da investigação; são, antes, vistos(as) como colaboradores(as), como sujeitos ativos,
com os quais construímos juntos um diálogo - entrevistador(a) e entrevistado(a). Como muito bem
sintetizado por Marta Rovai (2013), eles "não transmitem apenas informações: constituem-se como
sujeitos, construindo também realidades e inscrevendo-se na história" (MARTA ROVAI, 2013, p.
138).
Ademais, para Portelli (2010) a entrevista do tipo História Oral seria "um espaço
compartilhado de narração", viabilizado conjuntamente por um(a) profissional oralista predisposto(a)
a ouvir as histórias a serem contadas e um(a) colaborador(a) disposto a falar e que possui a perspectiva
da qual se necessita para viabilizar o projeto do(a) oralista. Os(as) entrevistados(as), tal como
afirmado por Portelli (2010), saberiam coisas que não saberíamos, e, justamente na intenção de
conhecê-las, é que nos predisporíamos a ouvi-los(as) por meio deste encontro dialógico. Ainda
segundo o mesmo autor e também a partir do que nos diz Marta Rovai (2013), nossos(as)
entrevistados(as) nos emprestariam suas vozes para, por meio, por exemplo, de nossa posição
acadêmica ou de publicação, delas fazermos um uso público, "[...] muitas vezes, para obtermos

130
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
títulos, disponibilizarmos a pesquisa ou darmos um retorno acadêmico à universidade" (MARTA
ROVAI, 2013, p. 133).
Outro aspecto definidor da História Oral é que as possibilidades narrativas por ela geradas
seriam necessariamente mediatizadas pela memória, segundo Errante (2000). A marca definidora da
História Oral seria, pois, portanto, "[...] sua dependência à memória em vez de a outros textos"
(Fentresss & Wickham, 1992 apud Errante, 2000, p. 142). Essa dependência à memória humana,
todavia, tenderia a ser negativamente afetada em uma época em que a própria memória e a experiência
caem, ambas, em descrédito. Sob uma ideologia dos dados, com sua falsa clareza, sua suposta
transparência e operando no vazio de sentido, os dados pretender-se-iam como suficientes para dar
conta de explicar o por quê de as pessoas fazerem o que fazem. Eles pretender-se-iam fiéis à realidade
e mostrar-se-iam capazes do que, na verdade, não são: se mostrariam supostamente capazes de
conferir inteligibilidade ao eu e ao mundo social que o circunda.
Sob a égide do neoliberalismo, tal como apontado por Byung-Chul Han (2014) e sob esta
ideologia dos dados à qual Han (2014) intitulou de dataísmo, não precisaríamos mais falar com os
"objetos" que falam, pois os dados existentes sobre eles seriam, supostamente, capazes de, por eles
próprios, falar. No entanto, o que Han (2014) vai afirmar é que "[...] o puro acúmulo de dados não
responde à pergunta quem sou eu?" (HAN, 2014, p. 84, grifos do autor). Seus limites impedem que
um verdadeiro autoconhecimento se dê efetivamente através dos números. Neste mesmo sentido é
que Han (2014) é categórico:

Por mais abrangentes que eles sejam, dados e números não produzem autoconhecimento. Os
números não contam nada sobre o eu. Não há narrativa. Mas o eu se deve a uma narrativa.
Não a contagem, mas a narrativa é que conduz ao encontro de si [...] (p. 84, grifos do autor).

Ou seja, para Han, não podemos ser decompostos em dados. Isso nos esvaziaria de sentido.
Ultrapassando os limites necessariamente impostos pelos números e por uma memória digital que se
constituiria, segundo Han (2014), a partir de uma mera adição e acumulação de eventos ou
informações sem intervalos (como por exemplo nas linhas do tempo (timelines) de redes sociais, tais
como o Facebook), a memória humana apresentar-se-ia, esta sim, como uma narrativa, com a
presença de intervalos de tempo, bem como com a necessária presença do esquecimento,
essencial à sua constituição.

131
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ademais, por um lado, a prática da História Oral, por meio do processo narrativo por ela
propiciado, geraria impactos tanto para os(as) narradores(as) entrevistados quanto para os(as) que
deles(as) fazem escuta atenta. Para os(as) primeiros(as), benefícios poderiam advir na medida em
que, ao serem estimulados(as) a falar, adquirem a possibilidade de "[...] refletirem sobre sua
experiência com maior clareza [...]" (MARTA ROVAI, 2013, p. 145). Já quanto aos(às) profissionais
oralistas, estes(as) "[...] vivencia[m] a experiência de aprendizado sensível da escuta, o trabalho
diferenciado com a memória repleta de significados" (MARTA ROVAI, 2013, p. 145). Tal
possibilidade de desenvolver e aprimorar uma escuta sensível, ainda segundo a mesma autora,
também restaria prejudicada por um temporalidade, qual seja, a capitalista, que

produziu um mundo de especialistas falantes, que muitas vezes têm pouco a acrescentar além
de receitas padronizadas de como se atingir o “sucesso”. A dor é algo abominável, embora
esteja presente no cotidiano; a tristeza torna-se incômoda quando o que se vende
constantemente é certa ideia de felicidade imediatista (MARTA ROVAI, 2013, p. 130).

Ademais, diante de uma surdez coletiva produzida, especialmente, em relação à temática que
ora mais fortemente nos interessa, qual seja, as questões que envolvem a comunidade LGBT+, é que
a prática de História Oral se apresenta como um aporte teórico e metodológico, mas, especialmente,
um aporte epistemológico capaz de oportunizar a criação de lugares de escuta específicos a essas
mães com filhos(as) gays/lésbicas. A criação de tais lugares, vai ao encontro do que apregoa, como
adequado e necessário, a literatura especializada que vem se debruçando sobre a temática de famílias
em cujo seio se encontram entes LGBT+. Isso se evidencia quando trechos tais como os que
elencaremos a seguir são escritos por autores(as) para pensar nas necessidades de escuta que
envolvem tais famílias:

[há] a necessidade de ampliação das pesquisas acadêmicas e principalmente a aplicação desse


conhecimento na elaboração de políticas, tanto no contexto público quanto em instituições
privadas, que possam suscitar na criação de grupos de apoio, lugares de escuta específicos,
acompanhamento integral da saúde mental dessas famílias, para que elas tenham condições
de reconstrução dos laços afetivos e ainda promover uma mudança na cultura de
criminalidade da homossexualidade, que pode ser um fator gerador do conflito familiar em
torno da homossexualidade. Em outra vertente de análise da tabela, os familiares retratam a
importância da informação sobre a homossexualidade e o apoio de grupos para o acolhimento
de seus (as) filhos (as), citados por sete colaboradores. A importância de locais de
escuta especializados fica claro quando seis dos onze pais citam na fase de elaboração
o silêncio em torno da revelação (ELIZABETH ALVES; MONIZ, 2015, p. 10, grifos
nossos).
132
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
E

Políticas de atenção a essa população podem se concentrar nos processos de coming out,
promovendo uma escuta clínica que proporcione maior aceitação e, consequentemente,
maior sentimento de pertença, integração e qualidade de vida (GEYSA NASCIMENTO;
SCORSOLINI-COMIN, 2018, p. 1538, grifos nossos).

Trechos como estes apontam, portanto, para a necessidade de desenvolvimento de mais


estudos em torno do sofrimento frequentemente vivido pelas famílias de origem de pessoas LGBT+
em razão da tomada de conhecimento de uma orientação afetivo-sexual heterodissidente e/ou de uma
identidade de gênero trans ou travesti de seus parentes, por serem estas, orientações afetivo-sexuais
e identidades de gênero tidas como indesejáveis socialmente, e ainda indicam a necessidade de
construção de espaços de escuta especializados em oferecer suporte psicológico e acompanhamento
a essas famílias para que elas, com isso, consigam desenvolver e/ou ampliar seus recursos de
enfrentamento em relação aos estigmas sociais que ainda fortemente recaem sobre seus entes LGBT+
e também sobre elas próprias, por serem pessoas que se encontram próximas de pessoas LGBT+.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Objetivei, com o exercício proposto a partir da colocação da seguinte questão motivadora
"como as leituras realizadas ao longo da disciplina de Metodologia de Pesquisa podem contribuir para
o estudo de um 'objeto' que fala?", por em causa minha própria capacidade de escuta em relação a
corpos e palavras às quais, frequentemente, enquanto sociedade, são negados a possibilidade de
escuta sensível, como é o caso da surdez coletiva diante do sofrimento geralmente vivido por mães
de pessoas com filhos e/ou filhas LGBT+, uma vez que em nossa sociedade há um profundo
enraizamento da heteronormatividade no quadro de valores vigentes, como aponta, por exemplo,
Edith L. Modesto (2010).
Com este movimento, buscamos construir um discurso plural em termos de vozes e de
sujeitos, um discurso que esteja atento para o que nos dirão as participantes com as quais realizaremos
entrevistas do tipo História Oral de Vida. Finalmente, foi nossa intenção, portanto, construir

[...] um discurso contaminado, [...] multivocal, [...] que tem uma multidão de autores.
Não só o que assina a capa ou que tem o nome no artigo, pois os autores são todos os

133
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que falaram e que estiveram no diálogo para que este livro, este artigo, existisse"
(PORTELLI, 2010, p. 9).

Discurso este que é característico da História Oral.

REFERÊNCIAS

AMINA MAMA. Será ético estudar a África? Considerações preliminares sobre pesquisa acadêmica
e liberdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MARIA PAULA MENESES. (Orgs.)
Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.

CLÁUDIA CARDOSO, Pons. Para pensar os feminismos negros no brasil. In: ______. Outras falas:
feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras. 2012. 383f.. Tese (Doutorado em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo) - Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Gênero, Mulher e Feminismo, Universidade Federal da Bahia, 2012.

EDITH MODESTO, Lopes. Homossexualidade, preconceito e intolerância: análise semiótica de


depoimentos. 2010. 288f.. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.

ELIZABETH ALVES, Arruda; MONIZ, André Luis Ferreira. A família no processo de coming out:
sair do armário. Jornal Brasileiro de Ciência da Saúde, v. 1, n. 1, p. 1-14. 2015.

ERRANTE, Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias Orais e modos de lembrar e
contar. História da educação, v. 8, p. 141-174. 2000.

GEYSA NASCIMENTO, Cristina Marcelino; SCORSOLINI-COMIN, Fabio. A revelação da


homossexualidade na família: revisão integrativa da literatura científica. Trends Psychol., v. 26, n.
3, p. 1527-1541. 2018.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de


Janeiro: LTC, 2004.

JÚLIA FAVARETTO, Spiguel. Introdução. In: ______. Descolonizando saberes: histórias de


bolivianos em São Paulo. 2012. 188f.. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012.

MARTA ROVAI, Gouveia de Oliveira. Aprendendo a ouvir: a história oral testemunhal contra a
indiferença. História Oral, v. 16, n. 2, p. 129-148. 2013.

PICOLI, Bruno A. Memória, história e oralidade. Mnemosine Revista, v. 1, n. 1, p. 168-184. 2010.

PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 2-13. 2010.

134
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SEAWRIGHT, Leandro. Um passeio pela História Oral. Café História, Rio de Janeiro, 16 jan. 2017.
Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. Disponível em:
https://www.cafehistoria.com.br/historia-oral-entrevista/. Acesso em 31 jul. 2020.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de
Janeiro: Mórula, 2018.

SOUZA, João José Veras de. A história oral e sua dimensão epistemológica. [S.l.]: 2012.
Disponível em:
https://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1340412618_ARQUIVO_ARTIGO
-Ahistoriaoralesuadimensaoepistemologica.pdf. Acesso em 31 jul. 2020.

135
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIOLÊNCIA/ABUSO SEXUAL CONTRA MENINOS: ENTRE RELAÇÕES DESIGUAIS,
MEDOS E SEGREDOS

Cristiano Eduardo da Rosa112

Resumo: Os dados sobre violência/abuso sexual infantil no Brasil têm se apresentado cada vez mais alarmantes,
independente do gênero das vítimas. Nesta pesquisa, problematizamos a ocorrência de violência/abuso sexual contra
meninos, refletindo sobre as especificidades desses casos frente a uma realidade de subnotificação e envolta de
pensamentos equivocados. Para isso, além de uma revisão de literatura sobre a temática, considerando principalmente
produções acadêmicas nacionais e com este recorte de gênero, realizamos um questionário online em que participaram
170 homens brasileiros, sendo que 74 destes afirmaram ser sobreviventes de violência/abuso sexual na infância. Dos
homens participantes da pesquisa que afirmaram terem sido abusados sexualmente em suas infâncias, 31,1% responderam
que a primeira vez que ocorreu foi entre 7 e 8 anos de idade, sendo eles 54% negros e 51% homossexuais. Já sobre um
perfil do/a agressor/a, os depoentes indicaram que 43,2% tinham entre 14 e 18 anos de idade, e que o abuso aconteceu
mais de uma vez para 75,7% dos homens, sendo que 50% das ocorrências foram na casa da vítima. Neste contexto,
percebemos como as crianças entendem a relação desigual entre elas e os adultos e não reagem à violência/abuso sexual
por diversos motivos, como por não entenderem o que acontece (no caso das mais novas), ficando em estado de choque;
por perceberem que a atitude do/a agressor/a é errada, mas temem contar para a família; e por vezes também por receberem
ameaças. Além disso, elas não se sentem encorajadas para contar aos pais algo estranho que aconteça a elas porque
percebem que a sua palavra de criança não vale e ficam confusas, temendo criar confusão na família (já que o/a agressor/a
pode ser da própria família ou amigo próximo). Ademais, o segredo guardado por muito tempo estaria relacionado com
dois medos: o de ser mal interpretado, como se a criança tivesse contribuído com a situação, e o de ser visto como gay
(em especial no caso de crianças mais velhas, que já entendem sobre o tema). Nesse sentido, esta pesquisa nos trouxe
algumas informações sobre as especificidades da violência/abuso sexual contra meninos comparada quando ocorre com
as meninas: (i) ela acontece mais na infância do que na adolescência ou vida adulta; (ii) na maioria das vezes os abusos
são compreendidos como ataques à sexualidade da vítima; (iii) os meninos violentados sexualmente são menos
culpabilizados do que as meninas; (iv) este abuso sexual é envolto de inúmeros mitos que o naturaliza; e (v) as vítimas
masculinas demoram mais tempo para falarem sobre o acontecimento. Portanto, consideramos que se faz necessário uma
maior discussão sobre casos de violência/abuso sexual contra meninos, debatendo a temática em variados espaços,
principalmente na família e na escola, desconstruindo pensamentos equivocados que naturalizam essas práticas e
fomentando mais políticas públicas de proteção e acolhimento aos menores de idade, estes tanto vítimas quanto
agressores.

Palavras-chave: Infâncas; Masculinidades; Violência/abuso sexual.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico. Análise
epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. v. 49, n.
27, jun. 2018.

FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo o pedófilo? Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 201-223,
jan./jun. 2006.

HOHENDORFF, Jean Von; HABIGZANG, Luísa Fernanda; KOLLER, Silvia Helena. Violência
sexual contra meninos: teoria e intervenção. Curitiba: Juruá, 2014.

112
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: cristiano1105@hotmail.com
136
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IZIDRO, Lúcio; FELIPE, Jane. O que precisamos saber sobre pedofilia e pedofilização: aspectos
médicos, jurídicos e culturais. In: SÁ-SILVA, Jackson Ronie; SANTOS, Marcos Eduardo Miranda;
SILVA, Yuri Jorge Almeida da (Orgs.). A discussão da pedofilia no campo da Educação. São
Leopoldo: Oikos, 2018. p. 23-40.

PINTO JUNIOR, Antonio Augusto. Violência sexual doméstica contra meninos: um estudo
fenomenológico. São Paulo: Vetor, 2005.

PRADO, Sonia Fortes do. Dimensões da violência sexual contra meninos sob a ótica de gênero:
um estudo exploratório. 2006. 215 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Universidade
de Brasília, Brasília, 2006.

137
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA
SEXUAL INFANTO-JUVENIL

Claudiney Lofiego Cacau113


Márcio de Oliveira114

Resumo: O presente texto apresenta um estudo dos Planos Municipais de Educação (PME) da região
metropolitana de Manaus/AM, totalizando oito municípios, com o objetivo de identificar de que
forma a violência sexual contra crianças e adolescentes é inserida (ou não) em tais documentos. Para
embasar a pesquisa utilizamos as abordagens teóricas dos Estudos Culturais e o Materialismo
histórico-dialético. Foi realizada uma pesquisa documental que buscou identificar quais eram as
menções que tais documentos fazem acerca da violência sexual. A análise foi conduzida a partir de
uma leitura crítica das políticas públicas educacionais, da discussão dos diferentes conceitos de
violência sexual e das possíveis estratégias de enfrentamento da violência sexual a partir da política
pública de Educação. Apesar da literatura abordar essa temática, os estudos nesse campo de
investigação ainda são poucos, se comparados com a crescente violação de direitos dessa natureza,
contra o público infanto-juvenil. Ademais, tais informações, sequer chegam a ser discutidas no âmbito
escolar. A análise dos documentos educacionais mostra uma pouca menção acerca da prevenção de
violência no âmbito escolar, em algumas de suas metas de ensino, verificada nos Planos Municipais
de Educação da região metropolitana em estudo, mas tal menção, não é específica para a prevenção,
enfrentamento e/ou combate à violência sexual contra as crianças e os/as adolescentes na escola ou
fora dela. É imprescindível, necessário e urgente que a elaboração de políticas públicas educacionais
leve em conta e priorizem a discussão acerca da violência sexual infanto-juvenil, sobretudo no
contexto escolar, sobretudo como uma forma de capacitar docentes e quipe escolar, além de discutir
sobre prevenção e combate a essa forma de violação dos Direitos Humanos. A escola é um ambiente
em que essa discussão deve ganhar uma dimensão muito maior e eficiente, a partir do momento em
que todos e todas – profissionais da educação; pais/mães; responsáveis e comunidade em geral –
estiverem engajados/as no propósito de enfrentamento e/ou combate à violência sexual contras
crianças e adolescentes no contexto social brasileiro. Enfatizamos, ainda, que 70% dos casos de
violência sexual ocorrem dentro da casa das vítimas, praticados por pessoas da própria família ou
convívio íntimo; disso, destacamos a necessidade de a instituição escolar – por meio do conhecimento
científico – dar visibilidade para o tema, inserindo em suas práticas os limites do corpo, além do
conhecimento em relação ao toque e ao afeto, de modo que uma criança ou um/a adolescentes saiba
identificar atos de violência sexual e reportar o caso a um/a adulto/a de confiança.

Palavras-chave: Educação; Políticas Públicas Educacionais; Violência Sexual.

REFERÊNCIAS

113
Claudiney Lofiego Cacau, professor da Secretaria Estadual de Educação e Desporto. Professor Licenciado em
Geografia pela Universidade Federal do Amazonas. Pós-Graduando do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFAM. E-mail: claudineylofiego36@gmail.com
114
Márcio de Oliveira, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação, pela
Universidade Federal do Amazonas, câmpus Manaus/AM. E-mail: marcio.1808@hotmail.com
138
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções
necessárias. Instituto Millenium, 2016. Disponível em:
<http://www.institutomillenium.org.br/artigos/sobre-politicas-degoverno-e-politicas-de-estado-
distincoes-necessarias/>. Acesso em: 14 set. 2020.

CAPPELLARI, Márcia Schmitt Veronezi. A pedofilia na pós-modernidade: um problema que


ultrapassa a cibercultura. Em Questão, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 67-82, jan./jun. 2005.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação em 2018: Perspectivas para a educação em 2018. Jornal da
Ciência, 2018. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/>. Acesso em: 14 set. 2020.

GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação (para além das teorias da reprodução).
Petrópolis: Vozes, 1986.

LAKATOS, E.M.; MARCONI, M.A. Fundamentos da metodologia científica. 6. ed. São Paulo:
Atlas, 2009.

MANAUS. Poder Legislativo. Assembleia Legislativa do Amazonas. Lei nº 2000, de 24 de junho


de 2015. Disponível em: <https://leismunicipais.com.br/a/am/m/manaus/lei-
ordinaria/2015/200/2000/lei-ordinaria-n-2000-2015-aprova-o-plano-municipal-de-educacao-do-
municipio-de-manaus-e-da-outras-providencias>. Acesso em: 11 set. 2020.

MORESI, Eduardo. Metodologia da Pesquisa. Universidade Católica de Brasília – Pró-reitoria de


Pós-graduação. Programa de pós-graduação stricto sensu em gestão. Do conhecimento e tecnologia
da informação. Brasília – DF, março, 2003.

OLIVEIRA, Márcio de. Políticas Públicas e Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes:
Planos Municipais de Educação do Estado do Paraná como documentos de (não) promoção da
discussão. 136fls. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientadora:
Dra. Eliane Rose Maio. Maringá, 2017.

SILVA, Leandro Vitoriano da; OLIVEIRA, Maria Eliza Nogueira. O Plano Municipal de Educação:
da autonomia construída à autonomia decretada. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 17, n. 47, out./dez.,
2016.

139
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PROGRAMA CRIANÇA FELIZ: A PRIMEIRA INFÂNCIA NA ASSISTÊNCIA SOCIAL
UM MODELO REDUCIONISTA

Ana Claudia Do Prado Lima115

Resumo: O artigo apresentado é resultado de uma pesquisa em andamento, considerando o processo de identificação da
primeira infância como temática importante na agenda governamental, o objetivo deste artigo é refletir o Programa
Criança Feliz e sua implementação com as políticas sociais observando as ações governamentais e da sociedade em torno
da criança. Tendo como princípio a pesquisa documental, o procedimento metodológico utilizado para escrita deste artigo
é a análise de políticas e documentos do Programa Criança Feliz, e dos que foram subsidiário ao programa. Tendo como
questionamento qual o propósito do Programa Criança Feliz em relação ao direito da criança e às políticas sociais?

Palavras-chave: Programa Criança Feliz; Políticas Sociais; Políticas para primeira infância.

INTRODUÇÃO
Após a Segunda Guerra Mundial a criação do fundo das Nações Unidas para a infância em
1946 (Unicef) se deu diante de um movimento internacional em defesa dos direitos das crianças,
tendo como base a Convenção dos Direitos da Criança, conhecido como a Declaração de Genebra
dos Direitos da Criança, datado do ano de 1959, esta declaração é adotada pela Liga das Nações, que
foi uma organização internacional de 1919, construída pelos países vencedores da primeira guerra
mundial, tendo sua última reunião no ano de 1946.
Neste percurso a Organização Intergovernamental (ONU) no ano de 1945 substitui a Liga
das Nações após o fim da segunda guerra mundial, trazendo na agenda a importância dos cuidados ás
crianças, recomendado através do Conselho Econômico e Social a adesão da declaração de Genebra.
As crianças como sujeitos de direitos são evidenciadas internacionalmente no ano de 1948 com a
declaração universal dos direitos humanos proclamada pela assembleia geral das nações.
No Brasil décadas antes da Constituição Federal de 1988, o desenvolvimento das crianças
na política brasileira esteve atrelado ao cuidado, ligado ao assistencialismo de crianças e adolescentes
abandonados, que necessitavam de reparos, o que se evidencia com o Serviço de Assistência ao
Menor (SAM), criado no ano de 1941, e quase três décadas depois da SAM, no ano de 1969 em São
José na Costa Rica as crianças são também alvo de preocupação em escala internacional, através da
Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 19, Direitos da

115
Mestranda, pela Universidade Univille, Universidade da região de Joinville. E-mail:
anaclaudiapradolima@hotmail.com
140
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
criança, estabelece que “Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor
requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado”. (OEA, 1969).
O intuito deste artigo não é a história da criança e da infância, mas é importante situar que o
lugar que a criança ocupa hoje na sociedade foi alcançado através de movimentos sociais, por vezes
pautados nos movimentos médicos higienistas e movimentos religiosos atrelados as forças armadas.
Nos séculos XVIII e XIX as crianças ocuparam o imaginário social de diferentes formas,
desde criança estorvo, personificação do mal e até como possíveis soldados, que para isso
necessitariam da caridade e assistência da sociedade, a criança como cidadã e a infância como
categoria importante no desenvolvimento, são temas recentes na sociedade, que ainda estão em
constante transformação buscando atingir a legitimidade, um exemplo é o extinto Código de Menores
também chamado de Código Mello Matos, Decreto nº 17.947/27 -A. no ano de 1941 foi uma das
primeiras legislações voltadas às crianças no Brasil, que na época eram chamados de menores.
Ainda no mesmo ano com o Decreto Lei nº 3.799 é criado o serviço de assistência ao menor,
similar a uma penitenciária, e por estar subordinado ao Ministério da Justiça, demonstrava um viés
preventivo de combate à criminalidade, evidenciando a concepção de criança que precisa ser
recuperada da marginalidade e moralizada, estabelecendo uma política pautada na correção, no
assistencialismo e repressão.
Ainda no âmbito do assistencialismo, temos no ano de 1942 a legião Brasileira de
Assistência (LBA), dirigindo pela primeira dama Darcy Vargas estreando o primeiro damismo no
Brasil, e algumas décadas depois em 1964 a Política Nacional do Bem Estar do menor (PNBEM) que
é implementada pela FUNABEM- Fundação Nacional do Bem Estar do menor, remetendo a
reformulação do Código de Menores 38 anos depois de sua criação, no ano de 1979, que introduz o
termo "menor em situação irregular".
Percebe-se com o Código de Menores que o direito da criança só tinha visibilidade quando
esta era dita em risco ou situação de doença social. E com o regime militar o assistencialismo
repressor entra em ascensão passando a considerar os menores de marginais a carentes, que
necessitam de políticas sociais compensatórias, ainda atrelado ao período dos anos 30, ao qual o
conceito de periculosidade é ligado aos menores, este se acopla ao conceito de "privação" que o estado
deveria sofrer. Vergara (1992).

141
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tendo como divergência dos anos 30 apenas as políticas compensatórias, evidente ainda é o
autoritarismo e centralização na construção da assistência á infância, a criança vai a passos lentos
tendo maior visibilidade, e em 1988 com a Constituição Federal é proposto à criança a proteção
integral, rompendo com a situação irregular trazida pelo código de menores.

A Doutrina da Proteção Integral reconhece que todas as crianças e adolescentes são


detentores de todos os direitos que tem os adultos e que sejam aplicáveis á sua idade, além
dos direitos especiais que decorrem, precisamente, da especial condição de pessoas em
desenvolvimento. (JÚNIOR, 2007, p. 4).

Os diferentes momentos históricos trazidos até aqui em relação à criança mostra a evolução
das políticas dirigidas para primeira infância, e no Brasil nos anos 30 até 1964 percebe-se um
momento correcional e repressivo, direcionado às crianças, e na ditadura em 1964 até meados de
1988 a criança tem as políticas e programas cunhados em um viés assistencialista e repressor, e
somente a partir de 1988 a garantia de direitos entra no imaginário social e se torna lei com a
Constituição Federal.
No Brasil o grande Marco de conquistas de direitos humanos sociais infantis se evidencia
tardiamente com a Constituição Federal, que traz em seu Art. 227 providencias em relação à criança:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,


com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Passado alguns anos a promulgação da Constituição Federal que dá visibilidade aos direitos
da criança e do adolescente proporciona nos anos 90 a criação do ECA Estatuto da Criança e do
Adolescente, e também a criação da Lei Orgânica de assistência social - LOAS em 1993, e a LDB -
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no ano de 1996, também no ano de 1990 se dá a
Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de
novembro de 1989, entrando em vigor no dia 2 de setembro de 1990. A CDC é o instrumento de
direitos humano mais aceito na história por 196 países.
Nos anos 90 após vários movimentos de luta para reconhecer a criança e o adolescente
como sujeitos de direitos, é promulgada a Lei Nº 8. 609 o Estatuto da Criança e do Adolescente
142
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(ECA), que propõe políticas de atendimento ao adolescente infrator com medidas diretamente
relacionadas à Constituição Federal, ele também estabeleceu a criança até doze anos de idade
incompletos e adolescente entre 12 e 18 anos, as medidas do ECA são protetivas no intuito de
salvaguardar as crianças, adolescentes e suas famílias na garantia de seus direitos e deveres, tendo o
Conselho Tutelar atuando na aplicabilidade das medidas previstas pelo ECA.
A LOAS promulgada em 7 de Dezembro de 1993 trata da organização da assistência social
para garantir uma seguridade social não contributiva, buscando alocar os sujeitos no mercado de
trabalho, auxiliando na habilitação e reabilitação de pessoas com necessidades especiais, as
integrando a vida comunitária. No ano de 1996 é aprovada a Lei Nº 9.394 (LDB) Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional que regulamenta todos os níveis da educação.
O percurso traçado até agora mostra que a garantia dos direitos das crianças e, sobretudo no
Brasil, tem como predomínio a filantropia até meados do século XX, tendo ainda na década de 30
uma ampliação das visões higienistas também se ensaiava políticas de estado para infância, o que se
evidenciou com o Código de Menores e Serviço de Assistência ao Menor (SAM), políticas ainda
voltadas para crianças chamadas de menor em situação irregular.
Após a ditadura militar a retomada democrática possibilitou a eclosão de movimentos sociais
e lutas da sociedade civil organizada, no intuito de garantir os direitos das crianças e adolescentes,
surgindo diante deste cenário a Comissão Nacional Criança e Constituinte (CNCC), com o objetivo
de encaminhar propostas de políticas públicas para a promoção e proteção dos direitos das crianças
para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), diante disso percebe-se a perspectiva da criança
como sujeito de direitos pairando o campo normativo, o qual é consolidado com a Constituição
Federal de 1988, que reafirma com o ECA sua concepção de proteção integral á criança, tomando o
lugar da concepção de cuidado e proteção apenas para menores em situação irregular. Também no
ano de 1998 acontece o Primer Estúdio Internacional Comparativo (PEIC), com 13 países latino-
americanos, inclusive o Brasil, o que fortaleceu a importância dos cuidados na primeira infância para
melhores resultados das políticas educacionais.

Trata-se do primeiro estudo internacional sobre resultados da escola na América Latina a


utilizar testes e questionários comuns em vários países. O estudo do PEIC envolveu (a) mais
de 50.000 alunos da 3ª e 4ª séries para as habilidades de linguagem e matemática e (b)
a aplicação de questionários para alunos, pais, professores e administradores escolares.
Os dados incluíram consideráveis informações sobre os resultados da primeira infância,

143
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
como as práticas domésticas dos pais e se a criança frequentava creche ou não. Este estudo
comparativo é um dos primeiros a avaliar a importância destes fatores. O estudo
multinacional foi financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento; Convênio
Andrés Bello; Ford Foundation; UNESCO (United Nations Educational, Scientific, and
Cultural Organization). (YOUNG, 2010, p. 89).

As ações da sociedade e do governo se reestruturam e possibilitam a implementação de


políticas públicas voltadas para a primeira infância, o que pode ser observado por Egas (2016):

Na última década, a introdução de políticas de superação das desigualdades sociais


beneficiaram, sobretudo as crianças na primeira infância, sendo possível observar melhoria
dos indicadores de saúde física de crianças beneficiadas pelo Bolsa Família, em relação à
estatura e a mortalidade infantil. Além disso, a redução nas taxas de extrema pobreza é mais
acentuada para crianças na primeira infância. A melhora nos indicadores de saúde física e de
pobreza colocou o Brasil em outro patamar quando se trata de políticas públicas voltadas ao
desenvolvimento da primeira infância. Superado o desafio da sobrevivência, agora é hora de
voltar à atenção para outras dimensões da promoção de direitos e proteção contra a violência
(EGAS, 2016, p. 261).

Mesmo com o progresso no atendimento as crianças, é importante estar atento para o fato de
que a legitimação dos direitos da criança, adotados nas normativas internacionais e também nas
legislações nacionais, ainda não são direitos garantidos e efetivados a todas as crianças, tendo muitos
desses direitos ainda subjetivos, como o acesso à educação infantil. E no âmbito da criança cidadã de
sujeito com direitos, destaca-se a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), que iniciou as atividades
no ano de 2007 e elaborou o Plano Nacional pela Primeira Infância, aprovado pelo CONANDA -
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, criado no ano de 1991.
A RNPI também foi aderida pela secretaria de direitos humanos da presidência, como um
plano integral, o qual trata de todos os direitos da primeira infância com metas até 2022, e o Plano
Nacional pela Primeira Infância lançado no ano de 2010 alavanca no país os cuidados com a primeira
infância, tratando do desenvolvimento na primeira infância cientificamente. E a partir do ano
seguinte, 2011, muitas medidas são aprovadas, e vão impactar na construção de determinada
concepção do atendimento a primeira infância, como exemplo a Portaria Ministerial nº 1.459,
Estratégia Rede Cegonha, visando proporcionar as mulheres, “saúde qualidade de vida e bem estar,
da gestação até os dois primeiros anos de vida”. (BRASIL, 2011ª).
No ano de 2012 a Lei nº 12.722 prevê alterações no programa Bolsa Família, o quê repercute
também na primeira infância sobre tudo no âmbito da educação, com o apoio financeiro da União
para ampliação da oferta da Educação Infantil e de benefícios financeiros para a superação da
144
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
extrema pobreza, sendo estes cumulativos as crianças de zero a seis anos. Dois anos depois em 2014,
a Portaria Interministerial nº 2 de 16 de Setembro de 2014, dispõe apoio financeiro suplementar da
Lei nº 12.722 de 2012, que em seu art 1º dispõe:

Esta Portaria dispõe sobre a forma, o acompanhamento e a implementação da transferência


obrigatória de recursos aos Municípios e ao Distrito Federal a título de apoio financeiro
suplementar à manutenção e desenvolvimento da educação infantil, para o atendimento em
creches de crianças de zero a quarenta e oito meses informadas no Censo Escolar da
Educação Básica, cujas famílias sejam beneficiárias do Programa Bolsa Família, de que trata
o art. 4º da Lei nº 12.722, de 2012.

No mesmo ano de 2014, a resolução SEB/MEC nº 1 de 2014 defini as despesas permitidas


com recursos repassados para apoio financeiro a manutenção e ao desenvolvimento da educação
infantil de 0 a 48 meses, e no ano de 2015 é estabelecido os procedimentos operacionais para
transferência obrigatória de recursos financeiros aos municípios e Distrito Federal, para manutenção
e desenvolvimento da Educação Infantil de crianças de 0 a 48 meses, cadastradas no censo escolar,
cujas famílias são beneficiárias do programa Bolsa Família, estes procedimentos são autorizados pela
resolução CD/FNDE/MEC n. 19 de 2015, que também estabeleceu os procedimentos operacionais
do programa Brasil Carinhoso, programa do governo federal, que fomentou no país o
desenvolvimento da primeira infância.
Ainda no ano de 2014, na 15ª reunião da comissão especial da primeira infância tem o projeto
de lei 6.998/2013 aprovado, deliberando a proposta da lei de instituição de uma política integrada
para primeira infância, separado do Estatuto da Criança e do Adolescente, e no ano de 2016 este
projeto de lei é aprovado, originando a lei número 13.257 no dia 8 de março de 2016 o Marco legal
da primeira infância.
Diante do exposto, este artigo discorre a seguir do Marco legal da primeira Infância e do
Programa Criança Feliz analisando sua implementação no ano de 2016 considerando o contexto
político refletindo com as políticas sociais.

PROGRAMA CRIANÇA FELIZ E O ASSISTENCIALISMO NA PRIMEIRA INFÂNCIA


Pensando Com Didonet (2012), é importante refletir que o Marco legal da primeira infância,
regulamentado pela lei nº 13.257 de 2016, “estabelece os princípios e diretrizes para a formulação
e a implementação de políticas públicas para a primeira infância, em atenção à especificidade e
145
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento humano”.
(BRASIL, 2016a). O Marco legal da primeira infância em seu artigo 2º considera primeira infância o
período que abrange os primeiros seis anos completos ou setenta e dois meses de vida da criança.
(BRASIL, 2016a).
Desde os anos 2000 o Brasil conta com mobilizações sociais para que a primeira infância
seja uma pauta constante na agenda governamental, e teve apoio da Rede Nacional Primeira Infância
e da Frente Parlamentar da Primeira Infância, neste âmbito é importante ressaltar que o projeto de lei
que originou o Marco legal da primeira infância tem origem no plano de ação de um grupo de
parlamentares, participantes do curso de liderança executiva em desenvolvimento na primeira
infância, organizado pelo Núcleo Ciência pela Primeira Infância, e evidencia que o projeto de lei nº
6.998/2013 proposto pelo Osmar Terra, cria a política nacional integrada para primeira infância que
se tornou o Marco legal da primeira infância.
Também nos anos 2000 o extinto Comitê de Desenvolvimento Integral da Primeira Infância
(CODIPI), criados sobre os ideais de Osmar terra, deu origem a Rede Nacional Primeira Infância
(RNPI), Osmar Terra em 2011 criou a Frente Parlamentar da Primeira Infância, que realizou em
Harvard o programa de liderança executiva em primeira infância nos anos 2012 a 2014, em parceria
com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), grupo INSPER, e Universidade de São
Paulo, que integrarão o Núcleo Ciência pela Primeira Infância.
No ano de 2014 a Comissão Especial da Primeira Infância é criada, constituída por membros
que participaram do programa de liderança executiva em desenvolvimento da primeira infância, que
visou qualificar os deputados em desenvolvimento infantil, os colocando a parte da importância de
ter estratégias e investimentos nos primeiros anos de vida, diante disso a comissão promove o II
Seminário Internacional Marco legal da Primeira Infância no mesmo ano, tendo como um dos muitos
objetivos colher análises e sugestões para aprimorar o projeto de lei nº 6.988/2013. A Comissão
especial aprovou muitos outros seminários e audiências públicas, tendo como destaque a segunda
audiência que contou com representantes da FMCSV, Instituto Alana, Unicef, do Doutor Cesar
Victora, Rede Nacional Primeira Infância, e Sociedade Brasileira de Pediatria, tendo como convidado
apenas um representante do CONANDA.
É evidente com as informações trazidas até aqui a formulação de políticas públicas
baseadas em evidências científicas, o que traz como foco principal a participação dos pais no

146
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
desenvolvimento das crianças, e também a importância dos primeiros 1.000 dias no desenvolvimento
infantil, especialmente na primeira infância, reforçando as políticas públicas em consonância com as
metas para o desenvolvimento sustentável, estabelecido no período de 2015 a 2030, o qual conta com
17 objetivos.
As Metas para o Desenvolvimento Sustentável no seu objetivo 4.2 diz que “Até 2030,
garantir que todas as meninas e meninos tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na
primeira infância, cuidados e educação pré-escolar, de modo que eles estejam prontos para o ensino
primário” com isso percebe-se uma visão reducionista da educação na primeira infância, sendo apenas
como um preparo para educação primária, o que corrobora com a hipótese de concepção de criança
apenas como investimento e responsabilização das famílias pelo sucesso do desenvolvimento das
crianças, deslocando a criança como sujeito de direitos, para sujeito oportuno de investimentos.
É importante destacar também, no percurso da defesa dos direitos das crianças a Conferencia
de Jomtien de 1990 que fornece definições e novas abordagens sobre as necessidades básicas de
aprendizagem, tendo em vista “[...] estabelecer compromissos mundiais para garantir a todas as
pessoas os conhecimentos básicos necessários a uma vida digna, visando uma sociedade mais humana
e mais justa”. (MENEZES, 2001). Com este feito, os países que participaram da Conferencia,
construíram planos decenais no intuito de atingir os objetivos propostos pela conferencia de Jomtien,
no Brasil o Plano decenal construído, Educação para todos resultou do período de 1993 a 2013.
O Fórum Mundial sobre Educação em Dakar no ano de 2000, marco importante na história
por ter como principal objetivo universalizar a educação para todos, com prazo até o ano de 2015 e
para atingir os seis objetivos trazidos pelo fórum, teve a UNESCO como responsável pela
coordenação e monitoramento. Estes e outros eventos repercutiram fortemente na construção das
políticas públicas para primeira infância, o que nos leva a importância de conhecer as Metas do
Milênio de 2000 a 2015 que foi sucedida por uma agenda universal, contendo metas para o
desenvolvimento que demonstre a presença da primeira infância nas agendas governamentais e este
conta com 17 metas, na pós-agenda de desenvolvimento sustentável do período de 2015 a 2030, e
contou com 194 governos, tendo apoio do sistema das Nações Unidas que se comprometeram com
as metas.
No Brasil para que ocorresse a aplicação dos ideais da convenção internacional dos
Direitos da Criança, diversas medidas legislativas aconteceram, e temos no Brasil o Marco legal

147
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
da primeira infância que se fundamenta na convenção internacional dos Direitos da Criança, e nos
objetivos do desenvolvimento sustentável, é pautado em evidências científicas para fundamentar as
políticas na primeira infância, e percebe-se que para justificar o modelo de políticas públicas adotadas
através do Marco Legal da Primeira Infância, se utiliza de pesquisas com base na neurociência.

Em fins de março de 2015, uma equipe de neurocientistas dirigida por Kimberly Noble, da
Universidade de Columbia, Nova Iorque e Elizabeth Sowel do Hospital de Los Angeles,
California, investigaram os fundamentos biológicos do impacto da pobreza e do status
socioeconômico vinculado ao comportamento e às habilidades cognitivas dos seres humanos.
Ao analisar as imagens dos cérebros de 1.099 crianças, adolescentes e adultos de várias
cidades dos Estados Unidos, seus resultados indicaram que o estresse da pobreza pode
lesionar os cérebros das crianças cujos pais têm rendimentos inferiores a US$ 25.000 anuais.
Elas apresentam até 6% menos de superfície cerebral que as crianças cujos pais ganham mais
de US$ 150.000/ano. (BRASIL, 2016ª).

A citação acima é do documento “Primeira Infância Avanços do Marco Legal da Primeira


Infância”, que integra a série Cadernos de Trabalhos e Debates, do Centro de Estudos e Debates
Estratégicos da Câmara dos Deputados, e teve como relator Osmar Terra. Refletindo toda a trajetória
em volto da criança na sociedade ao depararmos com a citação acima se percebe que a pobreza toma
o lugar biológico, ratificando que a pobreza é culpa do mau desenvolvimento de crianças, e que este
ocorre pela falta de interação e cuidado dos pais e responsáveis.
Não obstante, a responsabilidade pelo fracasso no desenvolvimento das crianças recai ainda
mais para as mães, que ao mesmo tempo em que as responsabiliza as penaliza por não amamentar e
não dar atenção integral de qualidade, e concomitantemente reverte trazendo que a pobreza extrema
é a causa do mau desenvolvimento, e não que o mau desenvolvimento ocorre devido à pobreza, e que
milhares de crianças estão sujeitas, esta inversão desconsidera o que estrutura a base da pobreza no
País, isenta o governo da responsabilidade de reverter à pobreza para que as famílias tenham
condições de atenção integral e adequada ás crianças, o que permitiria melhor desenvolvimento na
primeira infância.

Os distintos graus de desnutrição, especialmente de crianças que nascem e crescem em


ambientes de pobreza e extrema pobreza, podem ser revertidos com uma nutrição adequada
durante a gravidez e os dois primeiros anos de vida, a fim de obter o desenvolvimento normal
do cérebro. As práticas apropriadas de amamentação materna também podem contribuir
para o desenvolvimento emocional e cognitivo saudável da criança. As pesquisas têm
demonstrado que existe efeito sinérgico entre os cuidados de saúde, a nutrição e a
educação se são oferecidos de maneira oportuna e adequada desde a gestação; e que o
148
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
padrão de crescimento, determinado geneticamente, pode ser modificado por fatores
exógenos, por exemplo, a nutrição. (BRASIL, 2016ª).

O ano de 2015 teve os índices de pobreza aumentados, devido retrocesso do Estado diante
de sua responsabilidade com políticas públicas diante das crises econômicas, em seguida o golpe de
Estado por parlamentares conservadores o que levou a América Latina ao momento de crise
aumentando as desigualdades. Neste cenário também ocorre pela UNESCO o Fórum Mundial sobre
a educação o qual aprova a Declaração de Incheon que é associada aos objetivos desenvolvimento
sustentável (ODS), que contou com a participação de mais de 1.600 pessoas de 160 países, 120
ministros, líderes e membros de delegações, chefes de agências e funcionários de organizações
multilaterais e bilaterais, bem como representantes da sociedade civil, da profissão docente, dos
jovens e do setor privado, sendo organizada pela UNESCO, juntamente com UNICEF, Banco
Mundial, FNUAP, PNUD, ONU Mulheres e ACNUR, o Fórum Mundial de Educação em
compromisso com a Agenda Educação 2030, e neste contexto no ano de 2015 é aprovado o Programa
Criança Feliz.
Ao compreender que as ações do Programa Criança Feliz atuam no escopo das políticas de
assistência social, muitas entidades e espaços vinculados a essas políticas foram contrárias à
implementação do PCF, esses movimentos contrários refletiram nos espaços de deliberação e
pactuação das políticas de assistência social como, por exemplo, a SNAS, o CNAS, e a Comissão
Intergestores Tripartite (CIT), que passaram a estabelecer normativas e resoluções no que concerne a
entrega da política de assistência social ao programa criança feliz.
O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), com a Resolução CNAS n. 19/2016,
de 24 de Novembro de 2016, propos que a devolutiva da política de assistência social ao Programa
Criança Feliz acontecesse com a criação do programa Primeira Infância no SUAS, programa
específico pautado pela Política Nacional Assistência Social (PNAS), para fortalecer e potencializar
os serviços socioassistenciais já existentes sob a responsabilidade da Secretaria Nacional Assistencia
Social (SNAS).
Instituir o Primeira Infância no SUAS evidencia-se como resistência do CNAS á
implementação do PCF, e nos anos de 2017 e 2018 a coordenação do PCF sob a responsabilidade do
Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) reduz a SNAS com a criação da Secretaria
Nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano (SNPDH) que passa a ser responsavel pela
149
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gestão das ações do Programa Criança Feliz em detrimento a Secretaria Nacional Assistencia Social
(SNAS), e com a Portaria MDS/SNPDH n. 05/2018, de 19 de março de 2018, passa a responsabilizar
a SNPDH também quanto aos períodos de adesão.

Ao mesmo tempo, essa é a primeira portaria na qual os dois programas aparecem como que
sinônimos, indicando assim que o PCF verdadeiramente, se restringe a apenas às ações
desenvolvidas no âmbito da política de assistência social e o Programa Primeira Infância no
SUAS foi utilizado como uma roupagem para a operacionalização do primeiro. (PEREIRA,
2019, p. 125).

Percebe-se uma busca do governo federal por implementar o Programa Criança Feliz,
mesmo encontrando enfrentamentos resistências e rejeições por parte das políticas de assistência
social, esse esforço do governo em executar o PCF, mostra desconsideração com os órgãos das
políticas de assistência sociais, especialmente o CNAS, o que leva a refletir e destacar o conteúdo do
PCF através da perspectiva de gerenciamento das infâncias e famílias empobrecidas, tendo em seu
conteúdo oculto uma gestão de controle dos modos de ser e de viver das crianças e suas famílias
pobres, pautado em estratégias de gerenciamento através da parentalidade e da visita domiciliar
integral (VDI) para condução na aquisição do capital humano. Diante disso, observa-se o modelo de
cima para baixo da implementação de uma política pública, que a partir dos instrumentos utilizados
traduz a concepção de Estado e o seu papel diante das políticas de assistência social.
Uma vez que o PCF se dá no corpo das políticas sociais e ao não buscar a cooperação entre
os envolvidos na implementação do programa desvalorizando a decisão dos demais servidores das
políticas sociais quanto à implementação, fica evidente um modelo top down (de cima para baixo) de
implementação de políticas públicas, que por ter como principal meio as visitas domiciliares, atuando
na primeira infância e adentrando em suas casas, deve ser colocado em questão o que se pretende
com este programa em relação aos direitos sociais das crianças.
As políticas públicas de assistência social são vistas apenas como urgência, uma forma focal
para amenizar as dificuldades de inserção no mundo do trabalho, as políticas de assistência social
além de legitimadas precisam adentrar no imaginário social e nos discursos como direito e proteção
social. E refletindo o programa criança feliz na assistência social, percebe-se que este programa
contribui no retorno à lógica higienista, caritativa, e filantrópica, pois mostra a preocupação com
as crianças na primeira infância e suas famílias pautadas na teoria do capital humano,

150
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
corroborando com a política de austeridade em andamento no país, a qual dissemina uma ideia de
política social assistencialista.
As concepções deturpadas em relação às políticas de assistência social é campo fértil para
programas como o PCF, ancorados em evidências científicas, e na economia, por meio de VDIs e do
treinamento da parentalidade, adentram no lar das famílias vulneráveis. E paradoxalmente o PCF
assim como o imaginário social acerca da assistência social entende por proteção social apenas
quando “[...] a doença do corpo é palco de atenção quando for necessário que o corpo fique em pé,
ganhe sua vida e a dos seus, com o próprio suor. A concepção de liberdade e autonomia individual é
referida ao” virar-se por si mesmo" sem” depender" de ninguém." (SPOSATI, 2007, p. 442).
Essa concepção vê a proteção pública como fragilidade que impede o desenvolvimento
pessoal, e consequentemente a busca pelo capital humano. Em meio às tentativas do avanço das
políticas de assistência social como responsabilidade do Estado e direito dos sujeitos no
fortalecimento da cidadania, para além da lógica da benemerência e da caridade, indo além da ideia
socorrista, as políticas de assistencia social vinham sendo monitoradas e agenciadas pela sociedade,
através dos conselhos municipais, estaduais, e nacionais da assistência social, regidos pela lei
orgânica de assistência social LOAS, lei federal 8.742 de 7 de Dezembro de 1993. Porém ao longo
desse texto observou as sucessivas tentativas do programa criança feliz em balizar as normativas do
CNAS e da CIT em relação ao monitoramento e gerenciamento do PCF pelas políticas de assistência
social
Diante do exposto, percebe-se a proteção social desconectada das condições de vida e dos
direitos humanos, migrando as políticas e programas de assistência social do direito e da dignidade
humana, a culpa e responsabilidade pelo aumento da pobreza, o que é evidenciado com a política de
austeridade que vê as políticas de assistência social dispendiosa ao Estado, impedindo o crescimento
e desenvolvimento pessoal. No campo ideológico a utilização de políticas e programas de assistência
social é visto como vergonhoso, pois retrata a incapacidade individual de crescimento do cidadão.
Neste Cenário o governo federal insiste em implementar o programa criança feliz na maioria
dos municípios do país, publicando e alterando diversas normativas para que o programa se alastre
nas famílias e infâncias pobres, o que é um retrocesso sabendo que o PCF vem a reforçar a visão
assistencialista e de educabilidade das famílias no que concernem os direitos da criança, e essas
concepções arraigadas ao higienismo, e no primeiro damismo são acentuadas com um avanço

151
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conservador que dificulta a efetivação da cidadania, pois é pautado na moral e na teoria do capital
humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo no intuito de compreender os caminhos que o programa criança feliz está
trilhando, trouxe um panorama das políticas na primeira infância para mostrar que a primeira infância
como pauta na agenda governamental se mostra como um investimento em detrimento do direito da
criança como cidadã, percebendo o trajeto da primeira infância atrelado ao processo econômico.
Em diversos momentos da história da criança é observada a isenção da obrigação do Estado
para com ela passando sua tutela a diferentes instituições, e a educação das famílias por meio das
visitas domiciliares integrais são ações utilizada em muitos programas destinados às crianças pobres
da América Latina, porém analisar o programa criança feliz em relação às políticas de assistência
social mostrou diversas lacunas, e diante do agravamento da retração de políticas sociais no cenário
atual, demonstra que muitos acontecimentos que antecederam a implementação do programa criança
feliz, fazem parte da rede de relações que envolvem a construção de políticas públicas para a primeira
infância.
Em 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Michel Temer lança o plano
“A ponte para o futuro”, que já estava em divulgação antes do afastamento da ex-presidenta, e diante
disso surge o programa criança feliz, esses acontecimentos marcam o avanço de políticas
conservadoras com a desculpa de superar a crise que o país está enfrentando, responsabilizando gastos
excessivos com as políticas sociais, diante disso percebe-se o retorno a conceitos já combatidos, como
da assistência social arraigada ao clientelismo à caridade e a filantropia. Demonstrando que a pobreza
tem causas individuais, que para superá-la basta educar os sujeitos em uma lógica higienista e
familista para construção de um capital humano.
Tendo a constituição federal de 1988 como marco nas políticas sociais na garantia dos
direitos universais é necessário se questionar o que torna a sociedade campo fértil para reestabelecer
ondas conservadoras na condução da sociedade por parte do Estado? Ficando em alerta ao fato de
que, com o retrocesso no repasse de verbas, especialmente ao SUAS e aos seus programas e a
sobreposição do PCF a programas já existentes, e ainda com pouco acesso de vagas nos centros
de educação infantil, qual a finalidade do programa criança feliz nesse contexto? São muitas

152
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lacunas para serem preenchidas, mas todas elas possuem algo em comum que é a subversão do direito
e da condição de cidadania que é garantida pela Constituição Federal, mas não legitimada, ocorrendo
à negação do direito social, exatamente o que acontece com o direito das crianças pequenas de zero
a três anos referente ao acesso à educação infantil, direito este que consta na LDB e na Constituição
Federal, que por ser subjetivo é retirado sempre que a sociedade civil descansa.
Todo este movimento relatado tem como mediador o aparelho estatal, com recorte neoliberal
desde a década de 30 vem se intensificando nos anos 90 e nas últimas décadas demonstra influência
das alianças da nova direita, de cunho conservador o Estado assume e coordena a construção de
políticas para atender as prerrogativas do mercado, como se estas fossem as leis que regem a vida de
toda a sociedade.
Por fim é importante um alerta, refletindo as características do programa criança feliz que
contribui ao retrocesso das políticas sociais, com prevalência ao atendimento da primeira infância por
meio do clientelismo. As ações do programa pautadas no desenvolvimento das crianças desde a sua
gestação até os 6 anos é ancorada em evidências científicas da neurociência para justificar a
necessidade da busca de um capital humano também com a visão do futuro e das famílias em risco
social direciona os sujeitos à expropriação de maior força do trabalho ao sucateamento das políticas
já existentes reduzindo e cortando gastos com a coisa pública, eliminando direitos dos sujeitos e
deveres do Estado, construindo um ideal mistificador para reerguer o país, transformando as políticas
sociais em mercadoria, para valorizar a economia faz com que as políticas sociais sejam instrumento
inerente à dinâmica do modo de produção capitalista, passando uma visão a essas famílias em
vulnerabilidade de que para sair da pobreza basta trabalhar investir em si mesmo e produzir
adequadamente, ou seja, precisa merecer não ser pobre.
Longe de concluir, este artigo quer indagar, perguntar e refletir, no intuito de ser critico em
relação às visões e ações em torno das crianças, é importante refletir as políticas sociais, os programas
e os processos que elevam ou silenciam a primeira infância, sendo primordial para compreender o
projeto de sociedade em andamento.
Ciente de que o Estado historicamente tratou a criança como instrumento, é preciso
pesquisas para desnudar as concepções e ideais que rondam a criança e suas infâncias, pesquisas que
considerem todos os ambitos da sociedade, pois a cultura, a economia, a política e a educação
estão ligados e determinam o processo hegemonico dominante, por tanto, ter consciencia deste

153
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
processo possibilita lutar para que a assistencia social e a preocupação com a primeira infancia se
torne um direito legitimado e constituinte da cidadania.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 de setembro
de 2020.

______. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 10 de setembro de 2020.

________. Decreto-Lei nº 3.799, de 5 de novembro de 1941. Transforma o Instituto Sete de


Setembro em Serviço de Assistência a Menores e dá outras providências. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes. action?id=87272>.Acesso: set. 2020.

______. Decreto n. 8.869, de 5 de outubro de 2016. Programa Criança Feliz, 2016b. Disponível:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2016/decreto/D8869.htm>. Acesso em: 10 de
setembro de 2020.

______. Decreto, de 7 de março de 2017. Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a Primeira
Infância, 2017a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/dsn/Dsn14452.htm>. Acesso em: 20 de fevereiro de 2018.

______. Lei nº 12.722, de 3 de outubro de 2012. dispõe sobre o apoio financeiro da união aos
municípios e ao distrito federal para ampliação da oferta da educação infantil; e dá outras
providências. Disponível em:< https://www2. camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12722-3-outubro-
2012-774306-publicacaooriginal-137757-pl.html> . Acesso em: 10 de setembro de 2020.

______. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 10 de setembro de 2020.

______. Lei n. 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social, 1993.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8742compilado.htm>.

______. Lei n. 13.257, de 8 de março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância, 2016a. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 10 de
setembro de 2020.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas


Estratégicas. Portaria nº 1.459, 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de
Saúde, a Rede Cegonha. Diário Oficial da União, Brasília, 2011e. Seção 1.

154
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome. Portaria Interministerial nº 2
de 16 de Setembro de 2014. Dispõe sobre a forma, o acompanhamento e a implementação do apoio
financeiro suplementar de que trata o art. 4º da Lei nº 12.722, de 3 de outubro de 2012, a partir do
exercício de 2014.

______. Lei n. 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social, 1993.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8742compilado.htm>.

CASTRO, Ieda Maria Nobre de et al. O direito à convivência familiar e comunitária: apontamentos
sobre a trajetória brasileira e reflexões sobre as especificidades da primeira infância. In: GHESTI-
GALVÃO, Ivânia (org.). Primeira Infância: avanços do marco legal da primeira infância. Brasília:
Câmara dos Deputados, 2016, p. 244-256.

CIT. Resolução CIT n. 04, de 21 de outubro de 2016. Brasília, 2016a.

______. Resolução CIT n. 05, de 21 de outubro de 2016. Brasília, 2016b.

CNAS. Resolução CNAS n. 19, de 24 de novembro de 2016. Brasília, 2016a.

______. Resolução CNAS n. 20, de 24 de novembro de 2016. Brasília, 2016b

Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, 16, 2019, Brasília. Crise, fundo público e programa
criança feliz: sucateamento da política de assistência social?. Anais do 16º Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais: 2019.

DIDONET. Trajetória dos direitos da criança no Brasil – de menor e desvalido a criança cidadã,
sujeito de direitos. In: GHESTI-GALVÃO, Ivânia (org.). Primeira Infância: avanços do marco legal
da primeira infância. Brasília: Câmara dos Deputados, 2016.

DIDONET, Vital. Uma rede nacional e um plano nacional pela primeira infância: inovação brasileira.
In: WENDLAND, J, LUCENA, L., CORRÊA FILHO, L., BARR, M. (orgs.) Primeira Infância:
ideais e intervenções oportunas. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 321-335.

EGAS, Heloiza. O marco legal da primeira infância na perspectiva dos direitos humanos. In:
GHESTI-GALVÃO, Ivânia (org.). Primeira Infância: avanços do marco legal da primeira infância.
Brasília: Câmara dos Deputados, 2016, p. 257-262.

FNDE. Resolução CD/FNDE/MEC Nº 19, de 29 de dezembro de 2015. Brasília 2015.

FUJIMOTO, Gaby. Cenário mundial das políticas de primeira infância. In: GHESTIGALVÃO,
Ivânia (org.). Primeira Infância: avanços do marco legal da primeira infância. Brasília: Câmara dos
Deputados, 2016, p. 24-59.

MDS. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. Brasília, 2005.

155
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
______. A participação do SUAS no Programa Criança Feliz. Brasília, 2017b.

______. A implementação das visitas domiciliares do Programa Criança Feliz os Territórios,


Brasília, 2017c.

MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete Conferência de Jomtien.
Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível
em: <https://www.educabrasil.com.br/conferencia-de-jomtien/>. Acesso em: 19 de set. 2020.

Nações Unidas no Brasil - ONU BR. Secretário-geral da ONU apresenta síntese dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável pós-2015. Publicado em: 4 dez. 2014. Atualizado em: 01 set. 2015.
Disponível em :<https://nacoesunidas.org/secretario-geral-da-onu-apresenta-sintese-dos-
objetivosde-desenvolvimento-sustentavel-pos-2015/>. Acessado em: 8 set. 2020.

PEREIRA, Mailson Santos. MODELO DE IMPLEMENTAÇÃO FEDERAL DO PROGRAMA


CRIANÇA FELIZ : uma análise crítica dos seus instrumentos normativos. 2019. 183 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Recncavo da Bahia, Centro Artes, Humanidades e Letras, Mestrado em Ciências Sociais,
2019.

PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais,
da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro. Amais Livraria e Editora, 1995.

SNAS. Portaria SNPDH n. 05, de 19 de março de 2018. Brasília, 2018 a.

______. Portaria SNPDH n. 17, de 22 de agosto de 2018. Brasília, 2018b.

SPOSATI, A. Assistência Social: De ação individual a direito social. Revista Brasileira de Direito
Constitucional, v. 10, n. 1, p. 435–458, 2007.

VERGARA Sylvia Constant. A Gestão da política de garantia de direitos da criança e do adolescente.


Revista de Administração Pública, 26 (3): 130-39, Rio de Janeiro, jul./set. 1992.

YOUNG, Mary Eming. Do Desenvolvimento da primeira infância ao desenvolvimento humano


: investindo no futuro de nossas crianças / Mary Eming Young, (organizadora) ; tradução Magda
Lopes. - São Paulo : Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, 2010.

156
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES

Ana Carolina Segobio Rios116


Monique Soares Vieira 117

Resumo: No presente artigo busca-se apreender conceitualmente a violência contra crianças e adolescentes em suas
múltiplas formas de manifestação, complexidades e particularidades. Oriundo dos resultados de uma pesquisa
bibliográfica de caráter qualitativo, que deu corpus para um trabalho de conclusão de curso em Serviço Social, as
discussões ora tecidas, centram-se na violência sexual, enquanto expressão da violência contra crianças e adolescentes
que carrega consigo as marcas do machismo, adultocentrismo e do patriarcado. Utilizou-se o método dialético-crítico
para a análise da realidade e para investigação teórico-conceitual da categoria violência. Os resultados alcançados,
evidenciaram que a violência estrutural atravessa a cotidianidade das relações familiares e juntamente com a pobreza, o
sistema patriarcal e a naturalização da violência compelem a processos de dominação e relações desiguais de poder entre
adultos e criança, desencadeando em abusos em suas mais diversas expressões.

Palavras-chave: Violência; Violência contra crianças e adolescentes; Cenário Brasileiro.

INTRODUÇÃO
O presente artigo possui a intencionalidade de discorrer acerca das expressões de violência
que assolam cotidianamente milhares de crianças e adolescentes no Brasil. Nesse sentido, as reflexões
tecidas neste artigo propõem-se a descortinar essa perversa realidade, ainda fortemente silenciada na
sociedade brasileira, em que a tônica da naturalização e descredibilidade da fala das crianças e
adolescentes prepondera, enquanto, estratégia para o ocultamento das violações dos direitos da
infância e adolescência.
A violência é um fenômeno complexo e encerra múltiplas determinações e expressões,
requerendo para sua análise um acurado olhar para entendê-la em sua totalidade e não de forma
superficial e/ou fragmentada, mas a partir de suas mediações que são históricas, sociais, culturais,
éticas, políticas e econômicas. O movimento histórico vem evidenciando que a população infanto-
juvenil tem sido constantemente vitimizada, contradizendo os deveres e obrigações assumidos pelos
Estados para a proteção e promoção das crianças e adolescentes a uma vida sem violência.
A violência contra crianças e adolescentes revela o perverso cenário da sociedade brasileira,
em que a violência estrutural aparece como característica basilar e precursora para o aparecimento da
violência. A violência estrutural é prevalecente em sociedades em que existe a distribuição desigual

116
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
anacsrios@gmail.com
117
Doutora em Serviço Social. Professora da Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
moniquevieira@unipampa.edu.br
157
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
das riquezas socialmente produzidas, a dominação de classes e profundas desigualdades sociais e
econômicas.

A violência estrutural se materializa envolvendo, ao mesmo tempo, a base econômica entre


a economia por onde se organiza o modelo societário (a estrutura) e sua sustentação
ideológica (a superestrutura). Claro que isso não significa ressaltar uma dominação mecânica
entre a economia e a superestrutura ideológica (a política, a cultura, entre outras). Significa,
sim, que para viver os homens necessitam, em primeiro lugar, satisfazer suas necessidades
básicas (comer, beber, vestir, etc.) [...]. Assim sendo, a economia não pode ser
desconsiderada nesse contexto, o que não significa atribuir-lhe papel único e mecânico ao
influir na vida do ser social. (SILVA, 2012, p.03).

São diversos os fatores condicionantes do fenômeno da violência, estando dialeticamente


imbricados na composição da estrutura social, sendo “uma forma de relação social que está
inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições sociais
de existência” (ADORNO, 1988, p. 31).
Diante disso, o presente artigo encontra-se estruturado da seguinte forma: No primeiro item
aborda-se os conceitos de violência, sua base epistemológica, as suas múltiplas expressões enquanto
fenômeno social, complexo e de raízes históricas. No segundo item desvela quais expressões da
violência permeiam o cotidiano das crianças e adolescentes brasileiros, com ênfase na violência
sexual. Por sim são tecidas as considerações finais.

AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES


Segundo a Fundação Abrinq, no documento Cenário da Infância e Adolescência no Brasil
(2018, p. 19) “aproximadamente 55 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza no Brasil,
sendo que 18 milhões encontram-se em situação de extrema pobreza”. Dados do UNICEF (2016-
2019), evidenciam o aumento do número de assassinatos de adolescentes no mundo, somente em
2015, 11.403 crianças e adolescentes, com idade entre 10 a 19 anos foram vítimas de homicídios.
Etimologicamente a “origem do termo violência, do latim, violentia, expressa o ato de violar
outrem ou de se violar” (PAVIANI, 2016, p.8). Ainda segundo Paviani (2016, p.11) o “conceito de
violência é tão amplo que dificilmente as classificações abrangem todas as formas. Apesar disso, a
tipologia da violência pode ser útil para visualizar suas modalidades”. Com a leitura de documentos
e sistematizações, elaborou-se a figura 1, como uma forma de síntese da tipologia das manifestações
da violência, como observa-se abaixo:

158
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Figura 1. Classificação das manifestações da violência

Fonte: As autoras (2019), adaptação a partir das discussões contidas no relatório da OMS (2002).

Como pode ser visualizado na figura 1, a violência divide-se entre autoinfligida, interpessoal
e coletiva, ramificando-se, ainda, em outras múltiplas formas. Nesse sentido, é possível afirmar que
há diversas manifestações e, que é dirigida e produzida por distintos sujeitos. Por isso:

A violência, em suas diversas manifestações contemporâneas mais imediatamente visíveis


(física, psicológica, simbólica, estrutural – ou a associação entre elas), possui uma existência
real que impacta a vida de seres sociais sob dada historicidade. Sua objetivação não é uma
abstração e supõe, necessariamente, para que seja violência, uma realização prática – mais
ou menos visível, reconhecida ou não socialmente – capaz de violar, oprimir, constranger
ferir e impor interesses e vontades que se sustentam em desejos de indivíduos sociais,
situados em uma dada existência que impõe os parâmetros por onde tais subjetividades se
formam e se desenvolvem. (SILVA, 2008, p. 268).

A violência física é a mais facilmente reconhecida. No entanto, em meio às múltiplas faces da


violência, existem também sinais que não se restringem à agressão física, ou seja, que não deixam
marcas visíveis no corpo dos sujeitos, mas expressam-se na sutileza do cotidiano com sinais imateriais
que podem vir a destruir a humanidade, tanto dos sujeitos que sofrem, quanto dos que provocam a
violência. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu relatório sobre violência e saúde,
apresenta uma concepção expandida, qual seja:
159
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra
outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento
ou privação. A definição utilizada pela Organização Mundial da Saúde associa
intencionalidade com a prática do ato propriamente dito, independentemente do resultado
produzido. Os incidentes não intencionais – tais como a maioria das lesões de trânsito e
queimaduras acidentais – estão excluídos da definição. (DALBERGH, KRUG, 2002, p. 5).

Uma das formas de violência apresentada no documento da OMS (2002), é a violência


autoinfligida, que caracteriza-se por ser autoprovocada e consiste na violência contra si mesmo, essa
violência manifesta-se por meio de pensamentos e ideações suicidas, bem como automutilação e o
suicídio. Para Silva (2017, p. 87), “as bases para a produção da violência autoinfligida encontram-se
na própria sociedade, a partir do momento que viramos escravos do capital, onde nossa humanização
é retirada para que possamos produzir”.
Refletindo por esse prisma, o ser humano, na sociedade capitalista tem sua vida ceifada pela
exploração do trabalho, mercantilização das suas relações, objetificando-se nesse processo, em que
diariamente é assaltado em seus sentimentos e percepções coletivas, sendo transmutado a uma vida
de competição e egoísmo.
Outra expressão da violência é a coletiva, que se subdivide em três: social, política e
econômica. A violência coletiva é entendida como “qualquer tipo de violência cometida por grupos
de indivíduos ou por Estados” (KLEVENS, 2011, p.1).
Sendo assim, entende-se como violência coletiva toda forma de violência que viola os direitos
humanos básicos dos cidadãos, cometida por entidades políticas e sociais. Pode-se tomar como
exemplo, quando temos uma má gestão dos recursos públicos ou até mesmo um desvio do dinheiro
que serviria para manter em funcionamento várias escolas e é utilizado para outros fins, trazendo
direta ou indiretamente uma exclusão na educação das classes sociais de menor renda.
Tal situação observou-se na operação “Prato Feito” da Polícia Federal118, onde prefeitos,
funcionários e ex-funcionários do governo desviaram cerca de R$ 1,6 bilhões de várias escolas
municipais e estaduais do país.

118
De acordo com informações dos jornais A Gazeta do povo e Agência Brasil. Busca realizada em junho de
2019.
160
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Neste artigo será abordado somente a violência interpessoal, que se manifesta em violência
intrafamiliar e doméstica. A violência intrafamiliar é tida como relações de dominação e
subordinação:

A violência intrafamiliar expressa dinâmicas de poder/afeto nas quais estão presentes relações
de subordinação e dominação. Nessas relações, pais e filhos, de diferentes gerações, estão em
posições opostas e assimétricas. No campo das relações familiares geradoras da violência, é
preciso também considerar a desigualdade de poder entre homens e mulheres. Usualmente,
são as mulheres que ocupam a posição subalterna nessas relações. (MOREIRA; SOUZA,
2012, p. 17).

A violência intrafamiliar diz respeito, portanto, as relações consanguíneas ou não, que residem
sobre o mesmo teto ou que possuam forte vínculo. Segundo o relatório da OMS, a violência
interpessoal se divide em duas subcategorias:

Violência da família e de parceiro (a) íntimo (a) - ou seja, violência que ocorre em grande parte
entre os membros da família e parceiros íntimos, normalmente, mas não exclusivamente,
dentro de casa; Violência comunitária: violência que ocorre entre pessoas sem laços de
parentesco (consanguíneo ou não), e que podem conhecer-se (conhecidos) ou não (estranhos),
geralmente fora de casa. O primeiro grupo inclui formas de violência, tais como abuso infantil,
violência praticada por parceiro íntimo e abuso contra os idosos. O segundo grupo inclui
violência juvenil, atos aleatórios de violência, estupro ou ataque sexual por estranhos, bem
como a violência em grupos institucionais, tais como escolas, locais de trabalho, prisões e
asilos. (DALBERGH; KRUG, 2002, p. 6).

A violência não se caracteriza somente pelo uso da força. Existem também os aspectos morais
e psicológicos, que muitas vezes estão intrínsecos com a violência física. Chauí (2000, p. 432) reflete
sobre a violência e suas coações:

Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica


para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos,
contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como
a morte, a loucura, a autoagressão ou a agressão aos outros.

Com isso, infere-se que a violência psicológica e moral, geralmente não se encontram distante
da violência física, sendo na maior parte dos casos, precedentes que se repetem até chegar na violência
física, principalmente se tratarmos acerca da violência de gênero. Buscando entender a historicidade
da violência no Brasil, é possível compreender que:

161
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por mais pontual que possa parecer um ato violento, ele sempre será ideado, viabilizado e
explicado sob determinadas condições sócio-históricas e, evidentemente, não poderá ficar
circunscrito à esfera puramente individual-subjetiva (embora não prescinda dela), já que o ser
social é, ao mesmo tempo, subjetividade-objetividade, indivíduo-classe. A violência, nas suas
diversas expressões, é uma categoria que se realiza como complexo social, que pertence às
relações humano-sociais (longe de qualquer paradigma biologista) e que carece, para seu
enfrentamento, de reconstrução crítica apoiada na razão que se debruça sobre o mundo e, a
partir dele, formula conceitos e propõe alternativas práticas (SILVA, 2008, p.268-269).

A violência, assim como todas as outras categorias apresentadas nesta pesquisa, possui uma
historicidade, e que está sempre em movimento, como diria Marx (1996, p.50) é “a síntese de
múltiplas determinações”, nunca parada de uma forma estagnada. Pelo contrário, a violência tem
raízes profundas no contexto sócio-histórico do nosso país e que perpetuam até hoje.
O Brasil carrega consigo uma história colonial119, cujo desenvolvimento das forças produtivas
que levou à consolidação do capitalismo no país deu-se por meio de uma série de pactos entre as
elites (FERNANDES, 2005), forjando, assim, um Estado que nunca rompeu com seu passado colonial
e, pelo contrário, apropriou-se das desigualdades para perpetuar no poder uma classe dominante cada
vez mais complexa. Desse modo, a questão da violência, inevitavelmente, ancora-se neste processo
de dominação - de uma classe sobre outra, mas cujas características dessa classe dominante envolvem
também aspectos étnico-raciais, de gênero, culturais, etc. É o que se denomina de violência estrutural.
Em outras palavras:

As marcas históricas do capitalismo brasileiro de base oligárquica e formas de sociabilidade


erigidas sob a escravidão, paternalismo e clientelismo presidem o processo histórico do
desenvolvimento do país, consequentemente das expressões de violência. (VIEIRA, 2015, p.
84).

A violência estrutural, historicamente determinada nas relações sociais brasileiras, possui


relação direta com a questão social120, em que a produção de desigualdades classe, raça e gênero,
assim como culturais e regionais, solidificam um terreno fértil para a persistente presença de relações
de exploração e dominação. Por isso, apreende-se que:

119
Leia mais em: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, Edição comemorativa 70
anos. 2006.
120
Segundo Iamamoto (1998, p.27) “A Questão Social é apreendida como um conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva,
o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada,
monopolizada por uma parte da sociedade”. Ver mais em IAMAMOTO, Marilda Vilela. O serviço social na
contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo, Cortez: 1998.
162
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A violência estrutural é formada por um conjunto de ações que se produzem e se reproduzem
na esfera da vida cotidiana, mas que frequentemente não são consideradas ações violentas (...).
Trata-se do uso da força, não necessariamente física (ainda que não se abdique dela quando
necessário), capaz de impor simultaneamente regras, valores e propostas, quase sempre
consideradas naturais, normais e necessárias, que fazem parte da essência da ordem burguesa,
ou seja, formam sua natureza (SILVA, 2005, p. 3-4).

A violência estrutural faz parte do modo de produção capitalista, onde atua diretamente na
manutenção das desigualdades junto a um Estado omisso de políticas públicas e sociais, sendo palco
para a atuação das demais violências (SILVA, 2017). Ela está ligada à violência social, onde essas
duas formas não se remetem à violência física diretamente, mas sim a um histórico que se perpetua,
principalmente, nas periferias dos grandes centros urbanos e lugares mais isolados do país e onde
existe pouca ação do Estado, sendo este tipo de violência histórico e naturalizado.

Há que se considerar que a violência contra criança e adolescente está baseada na relação de
poder. Embora os adultos sejam socialmente responsáveis e autorizados a exercer o poder
protetor sobre as crianças e adolescentes, ainda é recorrente o exercício de pedagogia de
submissão de crianças e adolescentes ao poder autoritário, arbitrário e violento dos adultos nas
famílias, escolas, igrejas, serviços de assistência e de ressocialização. Aliados a isso temos
crenças e valores culturais na sociedade que são arbitrários (violência simbólica) e produzem
preconceitos, tais como: A mulher é mais fraca que o homem; todo adolescente é revoltado;
os pobres são preguiçosos; os negros são menos inteligentes que os brancos. Isso gera uma
cultura da inferiorização de gênero, raça, classe social e de geração que se tornam naturais,
inquestionáveis e mesmo invisíveis no dia-a-dia. Portanto, temos uma violência estrutural que
retrata as enormes desigualdades econômicas e sociais (classista, adultocêntrica, machista e
racista), profundamente excludente e que afeta principalmente as crianças e adolescentes
pobres, colocando-as em situação de vulnerabilidade e risco do seu processo de
desenvolvimento (FALEIROS; FALEIROS, 2007, apud MORESCHI, 2018, p.36).

VIOLÊNCIA, INFÂNCIA E JUVENTUDE


O direito de ter uma infância com necessidades básicas supridas, necessidades essas que estão
garantidas pelo ECA, mostra-se extremamente ameaçado, ao passo de que as atuais políticas públicas
do país não estão dando conta de garantir uma infância digna.

As crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos, à pobreza e à iniquidade


no País. Por exemplo, 29% da população vive em famílias pobres, mas, entre as crianças, esse
número chega a 45,6%. As crianças negras, por exemplo, têm quase 70% mais chance de viver
na pobreza do que as brancas; o mesmo pode ser observado para as crianças que vivem em
áreas rurais. Na região do Semiárido, onde vivem 13 milhões de crianças, mais de 70% das
crianças e dos adolescentes são classificados como pobres. Essas iniquidades são o maior
obstáculo para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) por parte
do País. (UNICEF, 2015, s/p).

163
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Infere-se que as crianças e adolescentes pobres possuem uma maior susceptibilidade à
violência121, com seus direitos violados devido à falta de acesso a serviços sociais essenciais,
tornando-se mais vulneráveis para que novas formas de violência apresentam-se em seus cotidianos,
podendo a violência sexual ser uma delas.
Sabe-se que há diferentes noções de infância e adolescência ao longo da história, porém, esta
pesquisa concentra-se na sua categoria jurídica. No Brasil, a concepção jurídica de infância e
adolescência passou por profundas mudanças, em especial, com a superação do Código de Menores
de 1979 e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado e promulgado em 13 de julho de 1990, Lei
nº 8.069. Cabe destacar que, a partir da sua publicação, “considera-se criança, para os efeitos desta
Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de
idade” (ECA, art. 2º, 1990).

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,


com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária. (ECA, 1990, s/p.)

A criação do ECA foi de suma importância, pois sua promulgação trouxe definições do que é
ser criança e adolescente e os deveres que a família, sociedade e Estado possuem para com essa
parcela da população, que foi reconhecida como sujeitos de direitos. Isso quer dizer que suas
necessidades básicas devem ser providas e seus direitos garantidos, a partir da política de proteção
integral.
Anterior à criação do ECA, existia o Código de Menores (1927 e 1979), que se baseavam no
adultocentrismo e na exclusão social, pois crianças e adolescentes que não possuíam família, ou esta
era considerada “desajustada”, eram enviados para internatos (VERONESE; SALEH, 2016). Existia

121
Esse dado precisa ser lido com cuidado. Em primeiro lugar, porque os dados sobre a questão da violência, em
geral, são produzidos apenas por denúncias que chegam aos mecanismos de notificação. Além disso, é importante
ressaltar que as discussões sobre a relação entre pobreza e violência não seja vista unilateralmente, a fim de não
entender a pobreza, enquanto, única determinação para a violência.
164
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
um controle social para com esses “menores”, considerados perigosos e um risco a sociedade.
Atualmente, crianças e adolescentes são:

[...] Sujeitos de Direitos ou seja, são pessoas que têm direitos garantidos pelas leis brasileiras,
que devem ser respeitadas por todos. Pessoas em desenvolvimento ou seja, ainda não atingiram
a maturidade de uma pessoa adulta, nem fisicamente e nem psicologicamente. Vale o mesmo
para a sua sexualidade, que também não deve ser tratada como a sexualidade de uma pessoa
adulta. Pessoas que precisam ser protegidas integralmente. Ou seja, a proteção de crianças e
adolescentes precisa ocorrer em todos os aspectos da sua vida. Não basta, por exemplo,
garantir apenas a alimentação. É necessário garantir também a saúde, a educação, a segurança
e todos os direitos (CARTILHA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇA E
ADOLESCENTE, [2005-2010], p.6).

A violência contra crianças e adolescentes se divide em quatro tipos122: a psicológica, física,


negligência e a sexual. A violência psicológica ocorre em sua maioria em jogos de poderes e palavras,
“ocorre quando os adultos sistematicamente depreciam as crianças, bloqueiam seus esforços de
autoestima e realização, ou as ameaçam de abandono e crueldade” (MINAYO, 2001, p. 97).
A violência física é considerada com o uso da força física do adulto contra a criança e
adolescente, propositalmente, com o intuito de machucar. Para Faleiros (2008, p. 34),

[...] a violência física contra crianças e adolescentes é uma relação social de poder que se
manifesta nas marcas que ficam principalmente no corpo, machucando-o, causando-lhe lesões,
ferimentos, fraturas, queimaduras, traumatismos, hemorragias, escoriações, lacerações,
arranhões, mordidas, equimoses, convulsões, inchaços, hematomas, mutilações, desnutrição e
até morte.

Portanto, classifica-se a violência física contra crianças e adolescentes como machucados


propositais provocados por adultos, e que muitas vezes podem resultar em óbito (violência fatal). Em
nossa atual sociedade, a violência física é muitas vezes utilizada como método de educação e
“correção” da criança, apesar de já haver uma lei que visa impedir essa ocorrência.
A negligência pode ser considerada desde a omissão com cuidados básicos até o total
abandono da criança pelos responsáveis:

[...] representam uma omissão em relação às obrigações da família e da sociedade de proverem


as necessidades físicas e emocionais de uma criança. Expressam-se na falta de alimentos, de
vestimenta, de cuidados escolares e com a saúde, quando as falhas não são o resultado de

122
Estes tipos de violência estão diluídos ao longo do ECA, encontram-se sistematizados na Lei 13.431/2018, que
dispõe sobre o atendimento e escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
165
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
circunstâncias fora do controle e alcance dos responsáveis pelos adolescentes e crianças.
(MINAYO, 2001, p. 97).

Contudo, a negligência não está diretamente atrelada à pobreza, e sim a omissão de cuidados
para com as crianças e adolescentes. Pais podem ser omissos e, portanto, negligentes, em todas as
classes sociais.
Enquanto que a violência sexual,

[...] se configura como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um adulto
(ou mais) em uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimulá-los sexualmente e
obter estímulo para si ou outrem. Nos estudos sobre tal fenômeno, todos os autores indicam a
existência de abuso sexual no âmbito familiar. Os principais agressores são o pai, o padrasto,
ou ainda, pessoas conhecidas e do relacionamento familiar com a vítima. (MINAYO, 2001, p.
97).

A violência sexual ocorre de duas formas, pelo abuso sexual ou pela exploração sexual
comercial. A exploração sexual, que se utiliza de crianças e adolescentes para fins sexuais visando
lucro em cima. Possui quatro formas que são consideradas exploração sexual comercial: exploração
agenciada e não agenciada, pornografia, tráfico infantil e turismo com motivação sexual.
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é dividida em: agenciada, que
consiste na comercialização direta da criança. Envolve uma rede de aliciadores, agenciadores e de
qualquer outra pessoa que contribui para que isso aconteça. A exploração sexual não agenciada,
representa as práticas sexuais realizadas por crianças ou adolescentes sem envolvimento de terceiros.
Nesse sentido, abandona-se a categoria de prostituição infantil, terminologia amplamente criticada
pelos movimentos dos direitos humanos das crianças e adolescentes.
A pornografia infantil diz respeito a todas formas de imagens, vídeos ou áudios de conteúdo
sexual que são produzidas, vendidas, adquiridas, publicadas, etc. Outras expressões da exploração
sexual comercial consistem no tráfico infantil promove o deslocamento em território nacional ou
internacional para que a criança seja usada para fins sexuais, e no turismo com motivação sexual se
enquadra na exploração das crianças e adolescentes por visitantes do país (MORESCHI, 2018).
Existe também as formas de abuso sexual, como a sensorial ou por estimulação, onde Vivarta
(2003, p. 128) explica de forma sucinta:

Violência sexual sensorial: exibição de performance sexualizada de forma a constranger


ou ofender a criança ou o adolescente, tais como: pornografia, linguagem ou imagem
sexualizada e assédio. Violência Sexual por estimulação: carícias inapropriadas em
166
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
partes do corpo consideradas íntimas, masturbação e contatos genitais incompletos. Violência
sexual por realização: tentativas de violação ou penetração oral, anal e genital.

Para Faiman (2004, p. 34), a categoria abuso sexual, é “a utilização de uma pessoa como
instrumento na busca de uma satisfação própria”. Portanto, entendemos o abuso como uma relação
de poder e domínio, podendo ser o abuso sexual contra crianças, definido como:

[...] a utilização da sexualidade de uma criança ou adolescente para a prática de qualquer ato
de natureza sexual. O abuso sexual é geralmente praticado por uma pessoa por quem a criança
ou adolescente possui uma relação de confiança, e que participa do seu convívio. Essa
violência pode se manifestar dentro do seu ambiente doméstico (intrafamiliar) ou fora dele
(extrafamiliar). (CARTILHA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇA E
ADOLESCENTE, [2005-2010], p. 8).

O abuso sexual, na maioria das vezes é cometido por alguém conhecido da criança e da
família, criando-se assim um pacto de silêncio, a fim de manter a ordem hierárquica da família
(MORESCHI, 2018). Observa-se a figura 2, o organograma sobre a violência sexual contra crianças
e adolescência.

Figura 2: Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes

Fonte: As autoras (2019).

A exploração sexual cresceu muito a partir do momento que a internet se difundiu no


mundo. A pornografia infantil é um exemplo disso. No Brasil existem várias organizações não
167
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
governamentais que visam proteger a criança e ao adolescente da exploração sexual. A Organização
Não-Governamental (ONG) SaferNet traz indicadores alarmantes sobre o assunto (SAFERNET,
2019, s/p.):

Em 13 anos, a SaferNet recebeu e processou 4.059.137 denúncias anônimas, envolvendo


750.526 páginas (URLs) distintas escritas em 9 idiomas e hospedadas em 67.224 domínios
diferentes, de 250 diferentes TLDs e conectados à Internet através de 63.791 números IPs
distintos, atribuídos para 104 países em 6 continentes. Ajudou 24.201 pessoas em 27 unidades
da federação e foram atendidos 2.315 crianças e adolescentes, 1.947 pais e educadores e
19.939 outros adultos em seu canal de ajuda e orientação. Além disso, foram realizadas 715
atividades de sensibilização e formação de multiplicadores de 297 cidades diferentes, 27
estados, contemplando diretamente 66.861 crianças, adolescentes e jovens, 69.713 pais e
educadores e 3.647 autoridades, com foco na conscientização para boas escolhas online e uso
responsável da Internet. Em 2018, o novo curso de formação à distância formou mais 7 mil
educadores da rede pública de ensino.

Segundos dados do disque 100, em 2017, somente no Rio Grande do Sul, foram feitas 6.082
denúncias acerca destes quatro tipos de violência contra criança e adolescente (DISQUE 100, 2017):
Quadro 1: Dados do disque 100 de 2017
Tipo de violência Número de denúncias

Negligência 2323

Violência Física 1313

Violência Psicológica 1614

Violência Sexual 832

Total de denúncias: 6.082


Fonte: As autoras (2019).

Os dados do disque 100, Balanço Geral entre 2011 e 2017, sobre denúncias relativas a abuso
sexual infantil trazem dados alarmantes, ao mostrarem que com o passar dos anos, houveram mais
casos de violência sexual infantil, de acordo com a figura 3 da ONG CHILDFOUND BRASIL:

168
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Figura 3: Gráfico de denúncias de abuso sexual infantil

Fonte: ONG Childfound Brasil, 2018.

Traçando um comparativo entre o quadro 1 e a figura 3, percebe-se uma necessidade de que


as denúncias sejam realizadas, pois das 6.032 denúncias feitas, somente 832 delas eram relativas a
violência sexual. Os dados da ONG Childfound Brasil afirmam que as denúncias dobraram, sendo
31.435 em 2017, contra 17.176 em 2011.
Apesar de o Disque 100, ser um meio próprio para denúncias, tendo em vista que algumas
pessoas preferem não se identificar ao fazer a denúncia diante da suspeito do abuso contra a criança
e ao adolescente, ele é limitado quando traz seus dados, não contendo a totalidade das denúncias, pois
não são contabilizadas todas as denúncias realizadas nas instituições do município, que são propícias
para isso, como o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), Ministério
público (MP) e conselho tutelar.
O Disque 100 acaba sendo somente um extrato de uma realidade muito mais complexa,
existindo outras formas de denúncia. Importante salientar que a sociedade está cada vez mais virtual,
com o acesso à internet disponibilizado para mais pessoas, o que gera também a ampliação e o
agravamento dos crimes sexuais cibernéticos.
A deepweb, uma parte da internet que não pode ser acessada por navegadores comuns e
necessita de várias criptações e com isso as pessoas que acessam e os sites e conteúdos disponíveis e
pessoas que acessam são quase impossíveis de serem rastreados, trazem outros tipos de explorações
sexuais contra crianças e adolescentes: Pay-Per-view, Sexting e Grooming.

169
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Pay-Per-View, segundo informações do site medium, é uma espécie de leilão online, onde o
abusador compra uma criança ou adolescente, em qualquer parte do mundo e assiste ao vivo a vítima
sendo estuprada e/ou mutilada. Quanto maior a crueldade no ato, maior o valor do pay-per-view.
Sexting consiste no aliciamento de crianças e adolescentes, a partir da exposição de fotos e
vídeo. Segundo o ECA/1990, no seu art. 17:

O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da


criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990, s/p).

Também enquadra a conversa de crianças e adolescentes com adultos que se passam por
“amigos” da mesma faixa etária e podem pedir por fotos e vídeos e espalham na web esses arquivos.
Como envolve menores de idade, se caracteriza como crime. Grooming é outra forma de assédio
sexual na internet, por meio de redes sociais, mensagens de textos (SMS), que vai do mais leve até
da exploração sexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência contra crianças e adolescentes, especialmente, a de caráter sexual, vem
complexificando-se, exigindo a atualização dos conceitos, que evidenciam as particularidades que
esta assume sob diferentes contextos e dinâmicas.
Resignar a violência a um conceito é fechá-la diante a complexidade da legalidade social e
restringi-la ao campo de determinações da racionalidade formal-abstrata que endossa a visão de
sociedade do capitalismo.
Outro ponto a considerar, diz respeito a díade causa/efeito, em que a simplificação, na busca
pela apreensão somente do que acarreta a violência e quais são seus principais efeitos na vida dos
indivíduos, não somente nega a importância do campo das mediações, como categoria ontológica e
central na captura da totalidade dos fenômenos.
Os valores de uma sociedade machista, classista, racista e homofóbica asseguram não
somente as condições materiais para os atos de violência contra as consideradas “minorias”,
mas as estigmatizam e fazem com que tais valores sejam por elas internalizados e
reproduzidos cotidianamente.

170
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A promoção e a garantia dos direitos humanos da população infanto-juvenil requerem um
esforço contínuo, não somente do Estado, mas de toda a sociedade, visando extrapolar o modelo
repressivo-punitivo.
Desse modo, enfrentar a violência em suas múltiplas faces exige um movimento que transite
pela multiplicidade e complexidade desse fenômeno, apreendendo sua dinamicidade e,
essencialmente, identificando suas singularidades (como se expressa no cotidiano), mediatizando
com suas expressões mais universais no sentido de romper com perspectivas unidimensionais.
REFERÊNCIAS
ABRINQ, Fundação. Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil. 4. ed. São Paulo: Fundação
Abrinq, 2018a.

BRASIL. Campanha de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes: cartilha


educativa. PNVSCA; ABTH. Disponível em:
http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/cartilha_educativa.pdf. Acesso em: 28 abr.
2019.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmara dos Deputados, Lei nº 8.069, de 13 de


julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.

BRASIL. Dados do disque 100. Balanço das denúncias e violação dos direitos humanos de 2017.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. Ática: São Paulo, 2000.

DALBERGH, Linda L; KRUG, Etienne G. Violência: um problema global de saúde. In. Relatório
mundial sobre violência e saúde. KRUG, Etienne G; DAHLBERG, Linda L; MERCY, James A;
ZWI, Anthony B; LOZANO, Rafael (org.). OMS: Genebra, 2002. Disponível em:
https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201706/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-
saude.pdf. Acesso em: 25 abr. 2019.

FALEIROS, Vicente de Paula, FALEIROS, Eva Silveira. Escola que protege: Enfrentando a
violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2008.

Faiman, C. (2004). Abuso sexual em família: a violência do incesto à luz da Psicanálise. São Paulo:
Casa do Psicólogo.

FERNANDES, Florestan. A revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª


ed. São Paulo: Globo, 2005.

KLEVENS, Joanne. A Violência Coletiva e as Crianças. Centers for Disease Control and
Prevention, EUA, 2011. Disponível em:
171
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
http://www.enciclopedia-crianca.com/sites/default/files/textes-experts/pt-pt/2676/a-violencia-
coletiva-e-as-criancas.pdf. Acesso em: 4 maio 2019.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência contra crianças e adolescentes: questão social,
questão de saúde. Rev. bras. saúde matern. infant.: Recife, mai-ago, 2001. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbsmi/v1n2/v1n2a02.pdf. Acesso em: 29 abr. 2019.

MORESCHI, Marcia Teresinha. Violência contra crianças e adolescentes: análise de cenários e


propostas de políticas públicas. (Documento eletrônico). Ministério dos Direitos Humanos: Brasília,
2018. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/biblioteca/consultorias/conada/violencia-contra-
criancas-e-adolescentes-analise-de-cenarios-e-propostas-de-politicas-publicas.pdf. Acesso em: 28
abr. 2019.

MOREIRA, Maria Ignez Costa; SOUZA, Sônia Margarida Gomes. Violência intrafamiliar contra
crianças e adolescentes: do espaço privado à cena pública. Ano XV, n. 28, 2012.
PAVIANI, Jayme. Conceitos e formas de violência. In. MODENA, Maura Regina (org). Conceitos
e formas de violência. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016.

SAFERNET. Ciberbullying. Disponível em: https://new.safernet.org.br/. Acesso em: 29 abr. 2019.

SILVA, José Fernando Siqueira da; SANTOS SANT'ANA, Raquel. O método na teoria social de
marx: e o serviço social?. Temporalis [S.l.], v. 13, n. 25, p. 181-203, fev. 2017. ISSN 2238-1856.
Disponível em: http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/4889. Acesso em: 16 maio. 2019.

SILVA, José Fernando Siqueira da. O método em Marx e o estudo da violência estrutural. Revista
Eletrônica da Faculdade de História, Direito, Serviço Social e Relações Internacionais, Franca,
2005.

SILVA, José Fernando Siqueira da. Violência e serviço social: notas críticas. Rev. Katálysis.
Florianópolis, v. 11, n. 2, jul./dez. 2008. p. 265-273.

UNICEF. Infância e Adolescência no Brasil. Disponível em:


http://www.unicef.org/brazil/pt/activities.html. Acesso em: 15 junho 2019.

VERONESE, Josiane Rose Petry; SALEH, Nicole Martignago. Direito da criança e do adolescente
e os impactos do estatuto da primeira infância. 2016.

VIVARTA, Veet. O Grito dos Inocentes: Os Meios de Comunicação e a Violência Sexual contra
Crianças e Adolescentes. Vol. 5. São Paulo: Cortez, 2003.

VIEIRA, Monique Soares. Rompendo o silêncio: o enfrentamento da violência sexual infanto-


juvenil no âmbito dos CREAS tocantinenses. PUCRS: Porto Alegre, 2015.

172
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIEIRA, Monique Soares. A Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: Revisitando sua
interface com a violência de gênero. IN:GROSSI, Patrícia Krieger (org). Violência e Gênero: Coisas
que a genes não gostaria de saber. 2.ed. ver.amp. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

VIEIRA, Monique Soares. A interface entre a violência sexual contra crianças e adolescentes e a
violência de gênero: Notas críticas acerca do cenário do município de Porto Alegre. Revista Margens
Interdisciplinar, [S.l.], v. 9, n. 12, p. 254-269, maio 2016. Disponível em:
https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/view/3075/3096. Acesso em: 20 jun.
2019.

173
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MÉTODO DIALÉTICO CRÍTICO PARA COMPREENDER A VIOLÊNCIA SEXUAL
INTRAFAMILIAR

Ana Carolina Segobio Rios123


Monique Soares Vieira124

Resumo: Este artigo é fruto das discussões que originaram o Trabalho de Conclusão de Curso em Serviço Social,
intitulado: “No labirinto do abuso sexual intrafamiliar: Entre seduções, ameaças e segredos”. As reflexões ora tecidas,
buscam a historicidade dos conceitos de família, abuso sexual e incesto. O método escolhido para realizar esta pesquisa
foi o dialético-crítico e três categorias: historicidade, totalidade e contradição. As categorias explicativas da realidade em
conjunto com as categorias do método dialético-crítico, possibilitou apreender a complexidade que se edifica sobre as
situações de abuso sexual intrafamiliar. Concluiu-se, que o abuso sexual intrafamiliar é uma das formas de violência que
mais exige o rompimento de tabus e superação de concepções idealizadas sobre família, cuidado e proteção, o que torna
seu debate arenoso e de difícil trato, dado a complexidade envolta nessa expressão da questão social.

Palavras-chave: Abuso Sexual intrafamiliar; Método dialético-crítico; Serviço Social; Violência sexual contra crianças
e adolescentes.

INTRODUÇÃO
Através de uma indagação do/a pesquisador/a e sistematização de conhecimentos e
experimentos, busca-se trazer para a academia um saber científico. Porém são nas áreas humanas e
sociais que elas ganham um cunho de maior importância e relevância, justamente por não se tratar de
lucro comercial e capital, mas o lucro enquanto sinônimo de vantagem para o ser humano, aquele que
visa ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária. O lucro que permite ao sujeito
seus direitos (MAURIEL, 2013).
A pesquisa é de extrema importância para a formação em Serviço Social, tendo em vista que
dá o suporte necessário para o aprimoramento e atualização de conteúdos e qualificação para as
dimensões teórico-metodológica e técnico-operativa do trabalho dos/das profissionais de serviço
social.
Durante esse processo de apreensão do conhecimento acerca das teorias que permeiam a
violência sexual contra crianças e adolescentes, surgiu uma necessidade inquietante de entender de
que forma o abuso sexual incestuoso repercute nas relações sociofamiliares.

123
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
anacsrios@gmail.com
124
Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
moniquevieira@unipampa.edu.br
174
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] Ao expormos muitas questões relacionadas a crianças que sofrem violência, percebemos
que nossos esforços fazem parte de uma luta mundial maior pela garantia dos direitos
humanos. Nosso apelo não é no sentido de termos um tratamento especial. Queremos apenas
ser tratados de acordo com os valores fundamentais da dignidade humana, que representam a
pedra angular da Declaração [Universal dos Direitos Humanos]. Como cidadãos globais
queremos ser reconhecidos como cidadãos de primeira classe, e não de segunda.
(DECLARAÇÃO DA CRIANÇA E DA JUVENTUDE DO CARIBE, 2001, s/p).

Considerando o caráter universal do abuso sexual contra crianças e adolescentes, é possível


afirmar que os crimes sexuais “são uma violação dos direitos humanos, não escolhendo cor, raça,
credo, etnia, sexo e idade para acontecer” (CUNHA; SILVA; GIOVANETTI, 2008, p. 245).
Este trabalho foi estruturado a fim de expor o uso do método dialético-crítico para
compreender de que forma o abuso sexual intrafamiliar se encontra estruturado no Brasil. Aborda-se
de forma breve como o Serviço Social incorporou este método teórico metodológico. Também é
mencionado suas categorias historicidade, totalidade e contradição na busca para compreensão do
que acomete a violência contra criança e adolescentes.

MÉTODO DIALÉTICO-CRÍTICO
O método utilizado para compreender o abuso sexual intrafamiliar foi o método dialético-
crítico de Marx. Segundo Gil (2008, p.14) “a dialética fornece as bases para uma interpretação
dinâmica e totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser considerados
isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais, etc.”
Este método foi adotado pelo Serviço Social durante o Movimento de Reconceituação da
categoria, onde rompeu com o conservadorismo que esteve presente desde os primórdios da profissão
no Brasil. Bourguignon (2007, p. 48) aponta que:

Em sua trajetória histórica, a profissão, ao construir e reconstruir um legado teórico,


estabelece diálogo crítico com outras áreas do conhecimento, sendo importante interlocutora
no campo das reflexões sobre a questão social e seu enfrentamento através da política pública.

O Serviço Social Tradicional surge enquanto estratégia de ajustamento social da classe


trabalhadora pela classe dominante, tendo na execução das políticas sociais seu campo privilegiado
de atuação profissional e fiscalização das famílias.
É importante lembrar que as intervenções do Serviço Social sob o prisma conservador
junto as expressões da questão social buscavam a moralização e culpabilização dos sujeitos pela
175
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sua própria condição de vida e pelas mazelas sofridas cotidianamente. Essa realidade
socioprofissional muda com o Movimento de Reconceituação e a introdução da teoria marxista,
trazendo para a academia matrizes teóricas críticas, consubstanciando uma revisão visceral na
profissão (NETTO, 2005).
Com isso, o Serviço Social teve como obrigação mudar seu método teórico-metodológico,
saindo do assistencialismo e partindo para uma organização de categoria profissional e na formação
acadêmica, construindo assim, uma nova perspectiva teórico-metodológica, ético-política e técnico-
operativa no trato com a realidade (NETTO, 2005).
A pesquisa iluminada pelo método dialético-crítico é sempre um movimento do real para o
abstrato, pois esse método pretende analisar a essência do objeto estudado em não se contentar apenas
com a aparência que já está dada, como Netto (2011, p. 25) explica:

Voltemos à concepção marxiana de teoria: a teoria é a reprodução, no plano do pensamento,


do movimento real do objeto. Esta reprodução, porém, não é uma espécie de reflexo
mecânico, com o pensamento espelhando a realidade tal como um espelho reflete a imagem
que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no processo do
conhecimento, seria meramente passivo. Para Marx, ao contrário, o papel do sujeito é
essencialmente ativo: precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada ao objeto,
mas a sua essência, a sua estrutura e sua dinâmica (mais exatamente: para apreendê-lo como
um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo de conhecimentos, criticá-
los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação.

O método dialético-crítico foi escolhido pelo Serviço Social por ser o que melhor se aproxima
da realidade concreta e onde parte-se do abstrato para chegar no concreto. A teoria é usada como uma
modalidade do conhecimento, onde o conhecimento teórico significa descrever o objeto tal como ele
é, sendo fiel a sua reprodução. O objeto de pesquisa tem existência objetiva, não sendo necessária a
pesquisa científica para ele existir. Já existe por si mesmo, e o pesquisador/a busca a essência desse
objeto (NETTO, 2005).
Assim, a atuação profissional parte de uma teoria social crítica, em que as demandas são
trabalhadas de acordo com a vivência de cada sujeito, entendendo suas subjetividades, singularidades,
visando ultrapassar intervenções imediatistas fragmentadas e valorativas.
A historicidade é importante para a pesquisa, pois somente através do conhecimento da
história de vida do sujeito e de sua relação com o meio onde vive, se obtém um resultado
compreensivo de quem é o sujeito histórico-social que está sendo investigado “pela historicidade,

176
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pode-se apreender o movimento e a transição dos sujeitos, dos fenômenos, dos objetos e dos processos
sociais que constituem a realidade” (KOSIK, 1976, p. 42).
Utilizando a categoria historicidade nesta pesquisa, pode-se compreender melhor de que
forma o abuso sexual incestuoso perdurou nos diferentes tipos de sociedades, e como continua sendo
praticado na sociedade capitalista, que existe e se mantém pelos diversos tipos de exploração, o que
culmina nos diversos tipos de violência, incluindo a violência sexual.

A historicidade reconhece o movimento e a provisoriedade dos fenômenos é um elemento de


análise de intervenção fundamental, as questões políticas, econômicas e culturais evidenciam
a história que é construída, cabe ao pesquisador ter uma análise crítica da prática escolhida
pelo sujeito mediante a sua história. (CURY, 1989, p. 46).

O sujeito, sendo histórico-social, é analisado a partir do contexto da época que vive, a


influência das regras e normas da sociedade, que está sempre em movimento e transformações.
A categoria contradição auxilia “na mediação entre o possível e sua realização” (CURY,
1989, p.31), pois ao se usar da contradição, negamos a aparência dada do objeto, buscando sua
essência.

A contradição não é apenas entendida como categoria interpretativa do real, mas também como
sendo ela própria existente no movimento do real, como motor interno do movimento, já que
se refere ao curso do desenvolvimento da realidade[...] A contradição é destruidora, mas
também criadora, já que se obrigada à superação, pois a contradição é intolerável. Os
contrários em luta e movimento buscam a superação da contradição, superando-se a si
próprios. Na superação, a solução da contradição aparece enriquecida e reconquistada em nova
unidade de nível superior. (CURY, 1989, p. 30).

Na negação da realidade que é apresentada, torna-se possível apreender as diversas


contradições que permeiam o cotidiano familiar e que permitem o ocultamento dos abusos sexuais
no seu interior por meio da sacralização da família.

O mundo das relações não só se desenvolve, como também é um todo dialético, em que
fenômenos não se desenvolvem isoladamente, mas em ligação com outros fenômenos. O que
coloca a questão do movimento provocado de fora. As causas externas são a condição das
modificações e as causas internas são a base dessas modificações (CURY, 1989, p.31).

A contradição mostra que por mais que o discurso da maior parte da sociedade seja de
que a família é protetiva para a criança, temos diariamente notícias mostrando o oposto disso,

177
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que é trabalhado de uma forma sensacionalista pela mídia. Os conceitos de família são múltiplos e
amplos, já que a mesma é “uma complexa e dinâmica trama de emoções; ela não é uma soma de
indivíduos, mas um conjunto vivo, contraditório e cambiante” (BRUSCHINI, 2009, p.85).
Kosik (2002, p.44), explica o que é a categoria totalidade, usada no método dialético:

[...] realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer
(classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular
todos os fatos são conhecimentos da realidade se são compreendidos como fatos de um todo
dialético.

Utilizando a categoria Totalidade, é possível compreender melhor o universo do que está


sendo pesquisado, sabendo que não existe “uma totalidade acabada, mas um processo de totalização
a partir das relações” (CURY, 1989, p. 35). A totalidade é um todo articulado e conectado, não se
trata de algo estático, mas sim de algo que está em constante movimento. Para Cury (1989, p. 35):

[...] a totalidade sem contradições é vazia e inerte, exatamente porque a riqueza do real, isto é,
sua contraditoriedade, é escamoteada para só se levarem em conta aqueles fatos que se
enquadram dentro dos princípios estipulados a priori.

Analisar o todo de um fenômeno, não significa chegar em uma conclusão definitiva, pois o
real, os fenômenos, estão em constante mudança/movimento, entendendo que “a totalidade, então, só
é apreensível através das partes e das relações entre elas” (CURY, 1989, p.36).
O abuso sexual intrafamiliar não pode ser analisado como um fato isolado e unicausal, ou
seja, seu processo de produção é multideterminado, assumindo diversas facetas em suas
manifestações concretas no cotidiano de vida das crianças e adolescentes.
Buscar a totalidade do fenômeno, é considerar as múltiplas determinações que envolvem essa
expressão da questão social, mas também apreender as mediações que se apresentam entre os
processos sociais e os processos particularidades que se materializam em situações de violência
intrafamiliar e desamparo social dessas famílias, e, sobretudo das crianças e adolescentes sexualmente
vitimizados.
Partindo da etimologia da palavra, Família vem do latim FAMILIA, que deriva de FAMULUS
ou FAMULI, que significa grupo doméstico, incluindo servos e escravos. Foi a partir da Revolução
Industrial que o conceito se ampliou, surgindo as concepções atuais de família, que foi adotada
e posta como apropriada pela Igreja Católica. Durante o século XIX, foi instituído o conceito de

178
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
propriedade privada, tornando a família parte da dimensão privada, considerando a necessidade de
herança e perpetuação do privado no núcleo, agora transformado em propriedade do sistema
patriarcal.

A comparação das crenças e das leis mostra que a família grega e romana foi constituída por
uma religião primitiva, que igualmente estabeleceu o casamento e a autoridade paterna,
fixando as linhas de parentesco, consagrando o direito de propriedade e de sucessão. Essa
mesma religião, depois de estabelecer e formar a família, instituiu uma associação maior, a
cidade, e predominou sobre ela como o fazia na família. Dela se originaram todas as
instituições, como todo o direito privado dos antigos. Da religião a cidade tirou seus princípios,
regras, costumes e magistraturas. Mas com o tempo essas velhas crenças foram modificadas,
ou desapareceram por completo, e o direito privado e as instituições sofreram idêntica
evolução. Surgiu então uma série de revoluções, e as transformações sociais acompanharam
regularmente as transformações da inteligência (COULANGES, 2004, p. 4).

Realizando um salto qualitativo e temporal nos processos transformatórios da família,


sinaliza-se a década de 1960 sob a influência do movimento feminista, que impulsionou significativas
mudanças na concepção tradicional de família ao disseminar a pílula anticoncepcional feminina.
Desse modo, pode ter algum controle sobre sua sexualidade e fazer prevalecer sua vontade de
ter ou não filhos, não mais ficando refém da imposição da sociedade. Com a chegada da pílula
anticoncepcional houve uma pequena mudança nas relações sociofamiliares. “Desde então, começou
a se introduzir no universo naturalizado da família a dimensão da ‘escolha” (SARTI, 2002, p. 22).
No Brasil, foi somente a partir dos anos de 1980, que a questão “família” ganha destaque, com
a Constituição Federal de 1988 e, mais tarde a ênfase da legislação se volta para o bem-estar e
cuidados da criança e do adolescente, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), em 1990:

Ambas as medidas foram um golpe, de uma extensão desconhecida até então, desferido
contra o pátrio poder. O ECA dessacraliza a família a ponto de introduzir a ideia da
necessidade de se proteger legalmente qualquer criança contra seus próprios familiares, ao
mesmo tempo em que reitera “a convivência familiar” como um “direito” básico dessa
criança. É importante destacar esse aspecto por contribuir para a “desidealização” do mundo
familiar, ainda que se saiba que esse recurso legal é frequentemente utilizado para
estigmatizar as famílias pobres, definidas como desestruturadas, “incapazes de dar
continência a seus filhos”, sem a devida consideração do lugar dos filhos no universo
simbólico dessas famílias pobres. (SARTI, 2002, p. 24-25).

As famílias, atualmente, não estão mais enredadas somente ao núcleo biológico, “mas
configuram diferentes respostas sociais e culturais, disponíveis a homens e mulheres em
179
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contextos históricos específicos” (SARTI, 2001, p. 21). Uma das formas de definir família, nos dias
atuais, de acordo com Sarti (2002, p. 26-27) é entender que:

Família se delimita simbolicamente, baseada num discurso sobre si própria, que opera como
um discurso oficial. Embora culturalmente instituído, ele comporta uma singularidade: cada
família constrói sua própria história, ou seu próprio mito, entendido como uma formulação
discursiva em que se expressam o significado e a explicação da realidade vivida, com base
nos elementos objetiva e subjetivamente acessíveis aos indivíduos na cultura em que vivem.

Pode-se, então, se compreender que cada família constrói seus símbolos, sua cultura própria
dentro do seu núcleo, sendo uma necessariamente diferente da outra e não sendo obrigatório a ligação
por laços sanguíneos. Dentro das relações familiares, a questão de gênero está fortemente ligada aos
papéis desempenhados pelos sujeitos sociais dentro do núcleo familiar, no momento que falamos
sobre marido e esposa, homem e mulher, provedor e cuidadora:

Em consonância com a precedência do homem sobre a mulher e da família sobre a casa, o


homem é considerado o chefe da família e a mulher, a chefe da casa. O homem corporifica a
ideia de autoridade, como uma mediação da família com o mundo externo. Ele é a autoridade
moral, responsável pela respeitabilidade familiar. À mulher cabe outra importante dimensão
da autoridade: manter a unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que tudo
esteja em seu lugar. (SARTI, 2002, p. 28).

Para a mulher mostrar seu valor nessa sociedade patriarcal e desigual na questão de gênero,
ela precisa mostrar seu lado calmo, acolhedor e materno. Medina (1991, p. 15) afirma em seus estudos
que o modelo tradicional de casamento é considerado uma instituição importante, onde através das
etapas de namoro até a lua de mel a mulher tinha sua “verificação concreta [...] para ser mulher e
esposa”.
A mulher precisa mostrar-se em papéis de submissão perante o homem para a sociedade,
sempre reforçando o estereótipo de boa esposa, que cuida bem do seu marido e mantém seu papel
submisso.

A vulnerabilidade da família pobre ajuda a explicar a frequência de rupturas conjugais, diante


de tantas expectativas não cumpridas. Dada a configuração das relações de gênero, o homem
se sente fracassado, e a mulher vê rolar por água abaixo suas chances de ter alguma coisa
através do casamento. Se a vulnerabilidade feminina está em ter sua relação com o mundo
externo mediada pelo homem - o que a enfraquece em face deste mundo, que, por sua vez,
reproduz e reitera as diferenças de gênero - o lugar central do homem na família, como
trabalhador/provedor tornando-o também vulnerável, porque o faz dependente de
condições externas cujas determinações escapam a seu controle. Este fato torna-se

180
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
particularmente grave no caso da população pobre, expostas à instabilidade estrutural do
mercado de trabalho que a absorve (SARTI, 2002, p. 29).

Com esses papéis já postos pela sociedade, do que é ser mulher e do que é ser homem, tem-
se, na sociedade do século XXI um debate sobre esses e sua desconstrução, enquanto estratégia para
o enfrentamento das diversas violências que assolam o núcleo familiar.
O homem-pai, macho alfa da casa, em certas circunstâncias, acredita que a filha é sua
propriedade, portanto tem “direito” de cometer abuso sexual intrafamiliar. Segundo Moreschi
(2018, p. 42), o abuso sexual intrafamiliar é circunscrito pelas:

[...] violências que ocorrem no âmbito do afeto, ou seja, na família, no círculo de amizades,
nas escolas, abrigos, igrejas, nos espaços ou ambientes conhecidos como de proteção da
criança. Ocorre em todas as classes sociais, mas muitas vezes permanece invisível em função
dos pactos de silêncio. Estes pactos são arranjos familiares e de grupo que visam acomodar
papéis, de forma que alguns se submetem a outros, numa hierarquia geralmente de poder, a
exemplo da autoridade de pais sobre os filhos.

Resultado de uma pesquisa feita por Saffioti, pela Fundação Perseu Abramo, intitulada A
mulher brasileira nos espaços públicos e privado, traz a seguintes assertiva: “Não é raro ouvir destes
pais: ‘Dona, eu pus esta menina no mundo, eu criei ela, ela é minha” (SAFFIOTI, 2015, p. 24),
evidenciando dessa forma a que os valores machistas contribuam para que o abuso sexual
intrafamiliar seja um fenômeno presente em famílias rigidamente organizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As categorias do método dialético-crítico permitiram apreender a violência sexual contra
crianças e adolescentes a partir da complexidade que envolve o seu acometimento na sociedade,
desvendando as relações contraditórias que permeiam este fenômeno, levando em consideração os
diferentes e dinâmicos contextos econômicos, sociais, culturais e históricos nos quais esta expressão
da violência revela-se.
Os resultados alcançados evidenciaram que a violência estrutural atravessa a
cotidianidade das relações familiares e juntamente com a pobreza, o sistema patriarcal e a
naturalização da violência compelem a processos de dominação e relações desiguais de poder entre
adulto e criança, desencadeando em abusos em suas mais diversas expressões.
Assim, o abuso sexual intrafamiliar a partir das bibliografias analisadas foi apreendido
como um fenômeno que é produzido socialmente e que encontra em crianças e adolescentes a
181
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
susceptibilidade que concerne todo o rito de sedução, poder, subordinação e silêncio que são
necessários para sua reprodução no interior das famílias.
O abuso sexual intrafamiliar é uma das formas de violência que mais exige-nos o rompimento
de tabus e superação de concepções idealizadas sobre família, cuidado e proteção, o que torna seu
debate arenoso e difícil trato, dado a complexidade envolta nessa expressão da questão social.
Por fim, entende-se que o enfoque Dialético-Crítico, em relação à pesquisa, buscou desvendar
a realidade concreta a partir dos aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos que envolvem a
dinâmica de sua prática, trazendo a luz das quatro categorias - sinteticamente explicitadas nesse artigo
- aspectos que primem pelo desvendamento da realidade, procurando não fragmentá-la e priorizando
a busca da essência do fenômeno.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmara dos Deputados, Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.

BOURGUIGNON, Jussara Ayes. A particularidade histórica da pesquisa no Serviço Social.


Florianópolis: Rev. Katályses, v. 10, p.46-54, 2007.

BRUSCHINI, Cristina. Teoria crítica da família. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA,
Viviane N. de A. (org.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 5. ed. São Paulo:
Cortez, 2009.

COULANGES, Fustel de. Centralidade dos sujeitos nas pesquisas em Serviço Social. In. A cidade
Antiga. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

CUNHA, E. P.; SILVA, E. M.; GIOVANETTI, A. C. Enfrentamento à violência sexual infanto-


juvenil: expansão do PAIR em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

CURY, Carlos R. Jamil. Educação e contradição. 4. ed. São Paulo: Cortez: Autores
Associados,1989.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MAURIEL, Ana Paula; GUEDES, Olegna de Souza. Desafios da pesquisa na formação profissional
do assistente social: um olhar a partir da experiência do curso “abepss-itinerante”. Temporalis,
v. 13, n. 25, p.13-32, fev. 2013. Disponível em:
http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/4835. Acesso em: 10 jun. 2018.
182
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MEDINA, C. A. Família: ontem, hoje e amanhã. Revista Debates Sociais, nº 50/51 – Ano XXVI,
CBCISS, 1991.

MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2007.

MORESCHI, Marcia Teresinha. Violência contra crianças e adolescentes: análise de cenários e


propostas de políticas públicas. (Documento eletrônico). Ministério dos Direitos Humanos: Brasília,
2018. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/biblioteca/consultorias/conada/violencia-contra-
criancas-e-a dolescentes-analise-de-cenarios-e-propostas-de-politicas-publicas.pdf. Acesso em: 28
Abr. 2019.

NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. 1.ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2011.

NETTO, José Paulo. O movimento de reconceituação: 40 anos depois. Revista Serviço Social e
Sociedade. n. 84, Ano XXVI. São Paulo: Cortez, nov. 2005.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1976.

SAFFIOTTI, Heleith. Gênero patriarcado violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação
Perseu Abramo, 2015.

SARTI, Cyntia. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARAVALHO, M. C. B


(Org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 2002.

183
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DISSIDÊNCIAS, APARECIMENTO SOCIAL E MEMÓRIAS DE INFÂNCIA: VIDAS NA
CONTRAMÃO DAS PROGRAMAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Jéssica Matos Cardoso125


Raquel Gonçalves Salgado126

Resumo: Desde a mais tenra idade, as normas de gênero e sexualidade vigiam e controlam os corpos
infantis para que estes se tornem crianças e adultos normativos e obedientes às expectativas impostas
aos seus respectivos sexos de nascimento. Por meio dos(as) pais/mães, as fantasias de gênero são
inculcadas nos meninos e meninas a fim de torná-los(as) heterossexuais e puni-los(as) por qualquer
desvio. Assim, a figura da criança emerge em um campo de constante disputa política entre os
diversos dispositivos discursivos e as várias instâncias sociais, como a família, escola, igreja etc, as
quais instauram práticas regulatórias e produzem verdades hegemônicas. Nesse sentido, em um
sistema cisheteronormativo e adultocêntrico, ancorado em uma perspectiva de infância modelar, as
crianças dissidentes ao sistema sexo/gênero embaralham as fronteiras ontológicas e lançam
interrogações às programações de gênero e sexualidade e às noções vigentes de desenvolvimento e
progresso. Partindo desse pressuposto, apoiamo-nos na análise dos atravessamentos macropolíticos e
da produção de subjetividades dissonantes em memórias de infância de pessoas LGBTQIA+ e sujeitos
desviantes das díades estanques homem/masculino e mulher/feminino. Dessa forma, o objetivo deste
trabalho é evidenciar as estilísticas de existências singulares e as estratégias de resistência e
sobrevivência de crianças queer às políticas de desaparecimento social, em um regime que produz o
apagamento desses corpos, entendendo, por meio dessas problematizações, as crianças desobedientes
das normas de gênero e sexualidade como existências capazes de mobilizar deslocamentos na ordem
inteligível da vida. Apostamos, assim, em uma análise que compreende as memórias de infância como
inquietações críticas e políticas do presente, as quais interrogam o passado a partir de um olhar
reflexivo, como possibilidade de salvá-lo do esquecimento. Por fim, entendemos que as narrativas de
memórias de infância dissonantes das programações de gênero e sexualidade produzem ruídos nas
políticas de aparecimento social e colocam em xeque os regimes de inteligibilidade e gestão da vida.

Palavras chave: Gênero; Sexualidade; Crianças dissidentes; Memórias de infância.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, v. 1, 1987.

BURMAN, Erica. Desenvolvimento desejado? Contribuições psicanalíticas para o


antidesenvolvimento psicológico. São Paulo: A peste-Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia,
v. 1, n. 2, p. 269-294, 2009.

125
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Rondonópolis/UFR. Mestranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFR (PPGEdu). E-mail: jessicamatos19@hotmail.com.
126
Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio. Professora Associada
do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Psicologia da Universidade Federal de
Rondonópolis/UFR. E-mail: ramidan@terra.com.br.
184
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar.
2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Graal,
1988.

PRECIADO, Paul Beatriz. Quem defende a criança queer? Trad. Fernanda Nogueira. 2013.

RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Recife: SOS
Corpo, 1993.

185
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ABUSO SEXUAL CONTRA MENINOS: DA VIOLAÇÃO DE DIREITOS A
INVISIBILIDADE NAS DENÚNCIAS

Maina Saldanha Garcia127


Jaina Raqueli Pedersen128

Resumo: O presente artigo visa apresentar reflexões em relação ao abuso sexual de meninos enquanto expressão da
violência sexual contra crianças e adolescentes. Contextualiza alguns marcos históricos no que diz respeito aos direitos
de crianças e adolescentes e analisa as particularidades da violência sexual vivenciadas por esses sujeitos, dando destaque
para o abuso sexual praticado contra meninos, tendo em vista a pouca visibilidade desta temática. A construção deste
texto tem por base metodológica um estudo exploratório, de caráter qualitativo, considerando referencial bibliográfico e
documental. Pode-se observar que os meninos não são as principais vítimas de abuso sexual, pois estes assim como as
meninas estão inseridos numa sociedade que se estrutura, para além da relações desiguais de classe, por relações de
desiguais de gênero, de raça e de geração, fazendo com que a violência se particulize na vida destes sujeitos. A dominação
patriarcal de gênero além de vitimizar mais meninas, silencia os casos de abuso sexual de meninos para não por em cheque
o projeto de dominação/exploração masculina.

Palavras-chave: Crianças e Adolescentes; Violência Sexual; Abuso Sexual Contra Meninos.

INTRODUÇÃO

No Brasil, o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos se dá a


partir da Constituição Federal de 1988, que representa um grande avanço na proteção desses sujeitos
quando comparado, por exemplo, aos Códigos de Menores que durante o século XX, tratavam
crianças e adolescentes como objetos. Com a Constituição Federal, o dever de proteção e garantia
dos direitos das crianças e adolescentes passam a ser obrigações da família, do Estado e de toda a
sociedade.

Destaca-se que a Constituição Federal de 1988 é resultado de um o processo de


redemocratização pelo qual o país passou na época. Consequentemente a todas as reivindicações do
período, crianças e adolescentes passam a ser tratadas como sujeitos de direitos, tendo em vista a

127
Graduanda do curso Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Voluntária do
projeto de pesquisa “A pornografia infanto-juvenil na internet enquanto forma de manifestação da exploração sexual
de crianças e adolescentes: desvendando suas particularidades”. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas
Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão. E-mail: mainagarcia.aluno@unipampa.edu.br
128
Professora do curso Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Líder e pesquisadora
do Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão. Coordenadora do
projeto de pesquisa “A pornografia infanto-juvenil na internet enquanto forma de manifestação da exploração sexual
de crianças e adolescentes: desvendando suas particularidades” E-mail: jainapedersen@unipampa.edu.br
186
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
substituição da doutrina da situação irregular (do Código de Menores de 1979129) para a doutrina da
proteção integral, que objetiva a garantia e igualdade de direitos.

Em 1989, é aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas - ONU, a Convenção sobre
os Direitos da Criança130, um instrumento de direitos humanos, estabelecendo modelos para exercer
e garantir a proteção integral dos direitos das crianças. Passando a ser legitimada no Brasil em 1990
(UNICEF, 1989, s/p).

Na sequência destes avanços, visando contribuir e compreender as mais variadas necessidades


de crianças e adolescentes, em 13 de julho de 1990 entra em vigor a Lei de nº 8.069, que dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras providências. Este é um marco legal na
normatização dos direitos humanos desses indivíduos, e em 2020 o ECA completa seus 30 anos,
durante este período houveram avanços, retrocessos e permanecem grandes desafios para garantir e
efetivar os direitos à vida, ao desenvolvimento, a participação e à proteção para toda e qualquer
criança e adolescente. Ressalta-se que dentre os direitos fundamentais da Lei nº 8.069, derivado do
art.7º, “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de
políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em
condições dignas de existência” (BRASIL, 1990, s/p).

Ainda que haja a previsão legal dos direitos de crianças e adolescentes e também políticas
públicas que visam sua efetivação, crianças e adolescentes ainda vivem as mais variadas situações de
violações de direitos. Não se pode perder de vista que estes sujeitos vivem numa sociedade que se
estrutura por relações de desigualdade, seja de classe, raça/etnia, gênero e geração e
consequentemente as estatísticas revelam um cenário em que as principais vítimas das violações de
direitos são meninas, negras e pobres.

129
A Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, institui o Código de Menores. Um modelo paternalista, assistencialista
e de caráter repressor, denominada doutrina da situação irregular. “Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência,
proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre
dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei” (BRASIL, 1979, s/p).
130
No ano de 2000, a Convenção sobre os Direitos da Criança adere dois Protocolos facultativos sobre o
envolvimento de crianças em conflitos armados e referente a venda de crianças, prostituição infantil e a pornografia
infantil (UNICEF, 2000, s/p).
187
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com o estudo da Fundação das Nações Unidas para a Infância - UNICEF, que
apresenta as privações que crianças e adolescentes sofrem na Educação, Informação, Trabalho
Infantil, Moradia, Água e Saneamento, dados preocupantes revelam que há “545 mil meninas e
meninos negros de 8 a 17 anos analfabetos, versus 207 mil brancos”, “crianças e adolescentes negros
são 73% do total de meninas e meninos privados de informação”, “crianças e adolescentes negros
trabalham mais que brancos”, “a privação de moradia afeta igualmente meninas e meninos [...] a
grande maioria das crianças e dos adolescentes privados, sete em cada dez, é negra”, “entre crianças
e adolescentes privados de saneamento, 70% são negros” (UNICEF, 2018, p.10-12).

Com base nesses dados estatísticos, aponta-se um cenário extremamente desigual na violação
de direitos humanos básicos de crianças e adolescentes, demonstrando a não garantia sobre os direitos
conquistados, sobretudo devido a cor da pele desses sujeitos, consequentemente oprimidos
racialmente. Há uma realidade muito adversa para crianças e adolescentes negras e pobres, que vivem
no seu cotidiano a violação de direitos sociais básicos. Tal realidade é produto de relações históricas,
que foram e são mediadas por interesses econômicos e políticos de uma classe social rica, branca,
patriarcal, racista e adultocêntrica.

Como agravante, tem-se que a atual conjuntura está marcada por um desmonte nas políticas
públicas, como é o caso da Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, impondo limites
aos gastos da União e instituindo um novo regime fiscal (BRASIL, 2016, s/p). O governo atual e o
que o antecedeu tem uma agenda de compromissos com as contrarreformas neoliberais, que
privilegiam ajustes necessários, segundo a agenda do capital financeiro. Consequentemente devido a
emenda constitucional nº95, não dispõem de autonomia para financiar políticas públicas básicas,
principalmente na área da saúde e educação131 nos próximos 20 anos.

Para além disso, a sociedade está vivenciando a pandemia do COVID-19, ocasionada pelo
coronavírus (SARS-CoV-2), revelando e agravando a vulnerabilidade social já existente para alguns

131
Art. 110. Na vigência do Novo Regime Fiscal, as aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e
em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão: I - no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas
nos termos do inciso I do § 2º do art. 198 e do caput do art. 212, da Constituição Federal; e II - nos exercícios
posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na
forma estabelecida pelo inciso II do § 1º do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(BRASIL, 2016, s/p).
188
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
segmentos da sociedade, como é o caso de crianças e adolescentes. Tendo em vista que o isolamento
e distanciamento social são medidas necessárias para a prevenção contra o vírus, crianças e
adolescentes acabam sendo obrigadas a permanecerem apenas em suas casas, onde as violações de
seus direitos mais ocorrem132.

Considerando as variadas formas de violações que esses indivíduos sofrem diariamente,


problematiza-se neste estudo a violência sexual pois para combatê-la é preciso inicialmente
compreendê-la e, neste sentido é fundamental que profissionais e instituições que visam a efetivação
dos direitos das crianças e adolescentes estejam em permanente atualização para que exerçam seu
trabalho com compromisso e responsabilidade na perspectiva de garantir a proteção integral de
crianças e adolescentes.

Embora existam estudos sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes sem
particularizar os sexos das vítimas, este artigo visa fazer algumas reflexões em relação ao abuso
sexual sofrido por meninos. Ainda que existam instrumentos legais para garantir a proteção de
crianças e adolescentes, como a Constituição de 1988 - CF/88 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA, esses sujeitos são vítimas de violações dos seus direitos diariamente. Deste modo,
neste estudo pretende-se contribuir com a compreensão deste tema e dar visibilidade a questão, a fim
de prevenir esta e outras violações.

Evidencia-se antecipadamente, que o predomínio de vítimas da violência sexual é do sexo


feminino, porém a ausência ou invisibilidade das denúncias de abusos sofridos por meninos, reforça
a necessidade em discutir o assunto, pois já faz parte da cultura sexista na sociedade patriarcal, o
entendimento de que o sexo masculino é o sexo forte e que detém poder reforçando as relações de
dominação e exploração, e que se manifestam nas mais diversas formas de violência.

132
O Disque-180, central nacional de atendimento à mulher, viu crescer em 34% as denúncias de violência doméstica
em março e abril de 2020 quando comparado com o mesmo período do ano passado. A violência contra mulheres e
meninas impacta toda a família e o desenvolvimento e a segurança de crianças e adolescentes. Por isso, durante o
período de isolamento social, crianças e adolescentes correm o risco de estar mais expostos a situações de violência
física, sexual e psicológica (UNICEF, 2020, s/p).

189
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por conseguinte, as reflexões dividiram-se em dois itens, no primeiro aborda-se as violações
de direitos das crianças e adolescentes, com ênfase na violência sexual dando destaque ao abuso
sexual contra meninos. No segundo item discorre-se sobre a invisibilidade nas estatísticas sobre o
abuso sexual em meninos, pretendendo-se compreender esta realidade e dar visibilidade a este
aspecto.

VIOLAÇÕES NOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES


Tendo em vista que crianças e adolescentes sofrem inúmeras situações de violações dos seus
direitos diariamente, e que a violência sexual contra estes se manifesta através do abuso sexual e da
exploração sexual comercial, buscou-se focar no abuso sexual especialmente contra meninos, pois o
mesmo ainda é pouco abordado em estudos, assim como é pouco notificado nos canais de denúncias,
favorecendo uma herança cultural machista a qual permanece em nossa sociedade, vendo o homem
como o sexo forte, como o dominador e nunca como vítima.
Considerando que a violência sexual viola os direitos humanos de crianças e adolescente e
afeta o desenvolvimento das mesmas, é também acompanhada e se expressa com outras formas de
violências graves como: física, psicológica, estrutural, institucional133, simbólica e negligência. A
violência física é o uso da força física na relação com a criança ou adolescente, já a violência sexual
é todo ato que o adulto, estimula estes sexualmente, ou usá-los para obter a própria estimulação
sexual. Violência psicológica age de várias maneiras, no entanto “evidencia-se como a interferência
negativa do adulto sobre a criança e sua competência social, conformando um padrão de
comportamento destrutivo”. E a negligência é a omissão da família em exercer as necessidades da
criança e adolescente seja fisicamente ou emocionalmente, “quando falham em alimentar, vestir
adequadamente seus filhos, medicar, educar e evitar acidentes” (BRASIL, 1997, p.11-14).
O abuso sexual contra crianças e adolescentes até 14 anos é tipificado pelo Código Penal
conforme Lei nº 12.015 de 2009, como estupro de vulnerável. A partir do “Art. 217-A. Ter conjunção
carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a
15 (quinze) anos”, igualmente caracteriza-se como crime “Art. 218. Induzir alguém menor de 14
(catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) ano” (BRASIL,
2009, s/p). Em mesmo sentido, o art.4 da Lei 13.431/2017 o “abuso sexual, entendido como toda

133
Ver Lei 13.431/2017 Art.4º sobre formas de violências.
190
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato
libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente
ou de terceiro” (BRASIL, 2017, s/p).

Conforme Lowenkron (2010), abuso sexual infantil “é definido como qualquer interação
sexual envolvendo criança” (LOWENKRON, 2010, p.19), e para conceituar precisa-se dar destaque
a relação de poder que o adulto e em alguns casos adolescentes mais velhos, exercem sobre a criança
e adolescente, seja pela idade, experiência, força física ou ameaças psicológicas. E principalmente o
não consentimento sexual da criança, vista como objeto.

Em 2019, o Disque 100134 registrou “um total de 86.837 denúncias de violações de direitos
humanos contra crianças e adolescentes, 14% a mais do que no ano de 2018” (BRASIL, 2019, p. 35),
como também “observa-se que 52% das violações ocorreram na casa da vítima, ao passo que 20%
foram praticadas na casa do suspeito” (BRASIL, 2019, p. 37). Destaca-se que as violações são
praticadas por pessoas próximas e/ou membros da família. Tal informação desmistifica a ideia da
família como lugar de cuidado e proteção. Ela é uma instituição repleta de contradições, onde se
revelam, principalmente, relações desiguais de gênero e de geração, o que pode desencadear situações
de conflito e de violência.
Trata-se de compreender o complexo fenômeno das violências, tanto doméstica quanto
intrafamiliar, que por vezes acabam por se confundir e se perdem no interior e no silêncio das famílias,
dificultando as denúncias. Sendo essas praticadas pelos pais, parentes próximos, responsáveis ou
conhecidos, em muitas vezes com relações afetivas, contribuindo com a omissão diante dos casos.
A violência intrafamiliar extrapola os limites do domicílio. Um avô, cujo domicílio é
separado do de seu(sua) neto(a), pode cometer violência, em nome da sagrada família, contra
este(a) pequeno(a) parente(a). A violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com
a familiar. Atinge, porém, também pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou
integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregadas(os) e empregadas(os)
domésticas(os) (SAFFIOTI, 2011, p.71).

134
“A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, constitui-se um importante elo de proteção de violações de direitos humanos assegurando canais
de comunicação permanentes e acessíveis para conhecimento pelos gestores públicos das denúncias apresentadas,
contribuindo para o cumprimento do dever do Estado em preservar garantias individuais ao cidadão para o pleno
exercício de sua cidadania” (BRASIL, 2019, p.7).
191
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O mesmo relatório Disque 100, apresenta 17.830 denúncias sobre violência sexual,
representando a quarta violação contra crianças e adolescentes mais recorrente (BRASIL, 2019, p.
29). Dessas acusações “pais e padrastos representam 40% dos suspeitos nos registros”, isto posto “o
suspeito é do sexo masculino, em 87% dos registros. Igualmente, de idade adulta, entre 25 a 40 anos,
para 62% dos casos”. Quanto às mulheres sob essa violência ocupam uma porcentagem de 13% nas
suspeitas, logo na violação de negligência135 “o suspeito é do sexo feminino, em 88% dos casos, e de
idade adulta, entre 25 e 59 anos”, as mães representam 56% de suspeitas destas denúncias (BRASIL,
2019. p.50-53).
Considerando as idades e sexo das vítimas, a maior parte são adolescentes, “entre 12 a 17
anos, do sexo feminino, em 46% das denúncias recebidas” (BRASIL, 2019, p. 53), totalizando 7.607
meninas vítimas, em comparação com os meninos da mesma faixa etária houve 929 casos de abuso
sexual. Entre as crianças de 0 a 11 anos, meninos representam 2.064 das denúncias, e meninas 5.836
(BRASIL, 2019, p.57).
Diante dos dados apresentados, entre os adultos, homens são os principais agressores, e quanto
às crianças e adolescentes, as meninas são as vítimas principais. Sobre os agressores, é importante
destacar que estes sempre ocuparam um papel de dominadores na sociedade, optando pelo uso da
força na maioria dos casos em casa, contra as crianças e mulheres, situações estas que se perpetuam
através do machismo. Para Saffioti (2011), “o gênero, a família e o território domiciliar contêm
hierarquias, nas quais os homens figuram como dominadores-exploradores e as crianças como os
elementos mais dominados-explorados” (SAFFIOTI, 2011, p.74). No entanto, não pensar em
meninos que podem e são vítimas, igualmente se reproduz um pensamento sexista pautado na ideia
de que meninos e homens não serão vítimas devido ao seu gênero.

Além do mais, há preconceitos em discutir gênero e sexualidade, na qual ao homem sempre


foi dado poderes dentro e fora do meio familiar, determinando o que era bem visto ou não dentro da
sociedade, e ensinando as mulheres e as crianças a serem submissas sobre uma série de violências
caso fugissem do aceitável. Dessa maneira, quando se discute o abuso sexual de crianças e

De acordo com balanço do Disque 100, “A Negligência é a violação de maior ocorrência no grupo de Crianças e
135

Adolescentes, representando 38% dos registros” (BRASIL, 2019, p.50).


192
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
adolescentes, está presente a determinação de gênero e consequentemente de sexualidade, o que ajuda
a explicar, porque, por exemplo as principais vítimas de violência sexual são meninas e não meninos.

É preciso, contudo, pensar que pais vitimizam não apenas suas próprias filhas, como também
seus filhos. Num país tão machista quanto o Brasil, este é um segredo muito bem guardado.
Se a vizinhança souber, dirá que o destino daquele garoto está selado: será homossexual, na
medida em que foi penetrado, fenômeno específico de mulher (SAFFIOTI, 2011, p.19-20).

Com raízes hierárquicas na dominação do maior pela força, que vê a criança como objeto a
satisfazer suas necessidades, baseado na exploração, desconsiderando suas necessidades,
subjetividades e sentimentos. E nos casos do abuso sexual “inclusive em suas modalidades familiar
e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que
privilegia o masculino” (SAFFIOTI, 2011, p. 20), juntamente com o domínio da própria família
patriarcal, seja pelo medo, preconceito e/ou vergonha acabam vitimizando ainda mais a criança e o
adolescente.
No entanto é necessário pensar além da masculinidade hegemônica, entendido que “não é
estática e diferencia-se de acordo com as exigências do espaço e do tempo; na medida em que ocorrem
transformações sociais, há também modificações na expressão da masculinidade esperada”
(CARVALHO, 2015, p.57), e diante dessa sociedade patriarcal, machista e sexista é necessário
reconhecer meninos e homens como vítimas, a fim de construir um espaço que preserva da mesma
forma os direitos destes.
O contexto atual, caracterizado pela pandemia do COVID-19, apresenta um cenário
preocupante em relação às violências contra crianças e adolescentes. À medida que o isolamento
social é uma necessidade, e a maioria dos casos de abuso sexual ocorrem na casa das vítimas, estas
ficam ainda mais expostas a sofrerem tal violação. Como apresenta à Agência Brasil, “um relatório
da organização não governamental (ONG) World Vision estima que até 85 milhões de crianças e
adolescentes, entre 2 e 17 anos, poderão se somar às vítimas de violência física, emocional e sexual
nos próximos três meses em todo o planeta”, pois “infelizmente, a casa não é um lugar seguro para
todos, pois muitos membros da família precisam compartilhar esse espaço com a pessoa que os abusa.
Escolas e centros comunitários não podem proteger as crianças como costumavam nessas
circunstâncias” (VILELA, 2020, s/p).

193
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Entende-se que estudar sobre o abuso sexual em meninos não quer dizer que as meninas não
sejam imediatamente as principais vítimas destas violações causadas por homens. Todavia
demonstrar que acima de tudo enquanto crianças, estes sujeitos também são vítimas, com isso é
necessário desmistificar a manutenção da ordem social estabelecida em relações de exploração e
opressão. Para mais, na prática mesmo com leis, estatutos, políticas públicas e movimentos sociais
em prol das crianças e adolescentes, estas são expostas diariamente a não garantia de seus direitos.
INVISIBILIDADES NAS ESTATÍSTICAS DO ABUSO SEXUAL CONTRA MENINOS

Como já mencionado, a CF/88 e o ECA trazem grandes mudanças e avanços no que diz
respeito aos direitos humanos de crianças e adolescentes, passando a vê-los sem distinção, como
sujeitos de direitos. E, no que diz respeito às situações de violência sexual, assim como de qualquer
outra forma de violação dos direitos infanto-juvenis, cabem responsabilidades e deveres para a
família, a sociedade e o Estado (BRASIL, 1990, s/p).

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e


ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, s/p).

Conforme evidenciado anteriormente, as principais vítimas da violência sexual são meninas.


Portanto, é desafiador apresentar dados específicos referente ao abuso sexual contra meninos, o que,
no entanto, não impede sua problematização. Em razão de que desde a infância a masculinidade é
imposta de maneira dominadora, meninos e consequentemente homens são criados para sobressair.

A socialização dos meninos em nossa sociedade é bastante diferenciada da das meninas e


alguns traços persistem na educação deles, independente do tempo e do espaço: a cobrança
da coragem, da força, da razão. Quando uma menina cai e se machuca, a tendência sob a
perspectiva do gênero é que alguém prontamente a acolha; quando na mesma cena existe um
menino, a fala de muitas, senão da maioria das pessoas é: “Levante menino, homem não
chora!”(CARVALHO, 2015, p. 59).

Para Faleiros (2003), não há como falar da violência sexual sem falar de família, visto que “a
família tem por funções sociais, como processo dinâmico e não como um funcionalismo abstrato: a
reprodução, a socialização, a internalização de valores, a educação e o desenvolvimento de seus
membros” (FALEIROS, 2003, p.65). No entanto, historicamente a família também se reproduz
194
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
como uma instituição contraditória, visto que suas relações são caracterizadas também pela
dominação, opressão e exploração, apresentando aos homens a permissão de dominar os outros
membros da família, restando às mulheres serem oprimidas e as crianças a obediência, e caso haja
questões e divergências que fujam dessa ordem vai ocorrer repressão em forma de abuso e violência.

O poder dentro da família, em geral, é centrado no chefe adulto e masculino. É


tradição, em muitas culturas, que o poder dominante na família seja o do homem, o
do provedor e também senhor e objeto de reverência (“com farinha pouca, meu pirão
primeiro”, diz o ditado). Todos sabem que na história de Esparta esse chefe tinha até o poder
de eliminar aqueles que ele considerava incapazes de viver naquele círculo. Forma-se,
no âmbito familiar, uma hierarquia de poderes das pessoas que obedecem diretamente
ao chefe e executam suas ordens, como os filhos mais velhos (FALEIROS, 2003, p.67).

Assim, a família patriarcal é uma organização hierarquizada, visto que no seu interior é
perpetuado a opressão, e em nome dessa sagrada família, a sociedade acaba sendo complacente com
a violência doméstica, ou seja, com as diferentes formas de manifestação da violência, seja ela física,
psicológica, sexual ou negligência, por exemplo. Como refere Saffioti (2011, p. 93) “importa menos
o que se passa em seu seio do que sua preservação como instituição”, tem-se então uma internalização
ao conservadorismo arcaico, impondo preconceitos, desigualdades, sexismo, homofobia e racismo.
Neste sentido, o abuso sexual contra meninos é uma violação aos seus direitos humanos, fere
sua subjetividade além de danos físicos e psicológicos. Ocorre em sua maioria nas casas das vítimas,
praticada geralmente por homens, transfere o lugar que seria de amor, fraternidade e segurança para
um de pavor e medo. Carvalho (2015), em pesquisa de campo regional, apresenta amostra de 3
meninos sujeitos ao abuso sexual sendo dois deles com participação de uma mulher, e também de 1
homem que sofreu abuso do tio em sua infância, além das violências físicas e psicológicas de seu pai.
Sabe-se que este não é o número real de vítimas visto que “pode ser corroborada pelo entendimento
do abuso como natural, algo que se transfere de pai para filho como “coisa de homem”; há, também,
o temor de que a repercussão do abuso possa resultar na reprodução do ato pelo menino e/ou em uma
suposta homossexualidade provocada” (CARVALHO, 2015, p.110).
Logo, é fundamental questionar essa estrutura social na qual impõe a meninos um modelo do
que seria um homem de verdade, negando suas subjetividades construída a partir do “espaço de
existência histórica e social em que se expressa em todas as suas possibilidades: existencial,
social, valorativa, ética, estética, política etc” (CARVALHO, 2015, p.58). Desta forma faz-se

195
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
necessário falar em sexualidade, uma vez que essa “é antes controlada, incitada e construída nos
indivíduos por instituições, normas, aparelhos, no interior das próprias relações sociais (e não anterior
ou estranha a estas)” (TOITIO, 2013, p.8 apud CISNE; SANTOS, 2018, p.54).
Compreender a invisibilidade do abuso sexual em meninos, é entender o sistema patriarcal
sexista que se constituiu, em que a cultura é baseada no poder hierarquico no qual contrariar essa
ordem, passa a ser visto como errado, sujeito a ser reprimido, “o autoritarismo e o machismo são
os fundamentos dessa violência [...]”. Contudo, identifica-se no decorrer do processo de revelar as
violências e por fim aos abusos, sendo o abusador muitas vezes amigo, irmão, pai, tio e/ou também o
que provê o sustento, a família se depara com inúmeras contradições, “o sujeito se encontra dividido
entre o real e o imaginário, entre o lado amoroso e o lado perverso de alguém muito próximo,
entre a auto-proteção da família e o escândalo público de se saber da violência que a afeta”
(FALEIROS, 2003, p.71-72).

Trata-se de entender que o sexismo, o machismo, o heterossexismo que, muitas vezes, se


expressam individualmente resultam de relações antagônicas mais amplas, mediadas por
conflitos e antagonismos que envolvem a constituição patriarcal das relações de sexo,
imbricadas nas relações sociais e de classe (CISNE; SANTOS, 2018, p.54).

Cabe ressaltar, à medida que se põe fim ao silêncio das vítimas, e os abusos vem a tona, faz-
se o momento do atendimento a vítima, oportunidade na qual se tem a possibilidade de identificar
todas as demandas e necessidades vivenciadas pelos sujeitos, visando assim um atendimento na
perspectiva da proteção integral e que possa enfrentar as diversas consequências causadas pela
violência sexual. Neste sentido, os canais de denúncias são fundamentais, o primeiro passo para este
atendimento é a realização da notificação ao Conselho Tutelar Municipal136, Delegacia Especializada,
Polícia Militar (190), Disque 100 (Nacional) e caso a violação esteja na internet há o canal
SaferNet137.

136
“Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-
tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva
localidade, sem prejuízo de outras providências legais” (BRASIL, 1990, s/p).
137
“A SaferNet Brasil oferece um serviço de recebimento de denúncias anônimas de crimes e violações contra os
Direitos Humanos na Internet, contando com procedimentos efetivos e transparentes para lidar com as denúncias”
(SAFERNET, 2020, s/p).
196
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tendo em vista consolidar os direitos das crianças e adolescentes, o ECA disponibiliza de
uma política de atendimento, conforme “Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e
do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-
governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL, 1990, s/p),
com intuito de proteger esses sujeitos de maneira integrada, articulada e interdisciplinar com todos
os órgãos competentes. Com início na denúncia geralmente realizada através do conselho tutelar, logo
a área da saúde pode também reconhecer e notificar, passando para o acolhimento, atendimentos
necessários, podendo ser dividido em atenção primária138 e também rede de atenção psicossocial139,
dando seguimento de cuidados e proteção social (SANTOS, 2009, p.85-86).
Ações de caráter preventivo, que visam fortalecer as famílias e as comunidades, compõem a
rede de proteção social básica. As estratégias de média complexidade são voltadas para as
pessoas que tiveram seus direitos violados, mas que ainda mantêm os vínculos com suas
famílias. Já as de alta complexidade estão direcionadas para os indivíduos em situação de
risco (SANTOS, 2009, p. 88).

A rede de proteção precisa estar atenta aos sinais que os meninos abusados possam apresentar,
acolhendo e garantindo a proteção integral, “precisa funcionar como o inverso da trama abusadora,
ou seja como uma rede de proteção: com preeminência para a palavra da vítima[...]” (FALEIROS,
2003, p.74). Ao relatar o abuso, a criança e adolescente não devem ser apontados como errados, ou
que fizeram algo para a violência ocorrer, nem usar de argumentos moralistas para tratá-los acabando
a revitimizá-los. Como apresenta a Lei 13.431/2017, que trata da escuta especializada e depoimento
especial140 como ferramentas da vítima não reviver o trauma sofrido
Art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com
criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao
necessário para o cumprimento de sua finalidade.

138
“A Atenção Primária é o primeiro nível de atenção em saúde e se caracteriza por um conjunto de ações de saúde,
no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o
diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver
uma atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde das coletividades” (BRASIL, 2020, s.p).
139
“A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) propõe um novo modelo de atenção em saúde mental, a partir do acesso
e a promoção de direitos das pessoas, baseado na convivência dentro da sociedade. Além de mais acessível, a rede
ainda tem como objetivo articular ações e serviços de saúde em diferentes níveis de complexidade” (BRASIL, 2020,
s.p).
140
O estudo não tem a pretensão de problematizar estas metodologias, embora o Conselho Federal de Serviço Social
apresente críticas especialmente ao depoimento especial, visto que “Na descrição das competências e atribuições
profissionais, conforme estabelecem os artigos 4o e 5o da Lei nº. 8662/1993, não há qualquer indicativo de que
assistentes sociais sejam habilitados/as a realizar a tomada de depoimento, realizar oitiva ou inquirição”
(CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2018, s/p.).
197
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou
testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.(BRASIL, 2017, s/p).

Sobre a responsabilização dos autores dos abusos sexuais, cabe aos órgãos pertencente ao
Sistema de Justiça, como poder judiciário, varas de justiça, ministério público e defensoria pública
“órgãos responsáveis pela investigação, pela prisão, pelo julgamento, controle, execução e sanção do
abusador” (FALEIROS, 2003, p. 77).
Embora pouco mencionado, o profissional Assistente Social é indispensável frente a demanda
apresentada, visto que atua em diversas instituições na perspectiva de garantir e defender os direitos
de crianças e adolescentes. Além disso, assistentes sociais141 atuam em movimentos, fóruns e
conselhos para assim lutar em defesa da proteção integral à crianças e adolescentes. Além de quando
necessário estar preparado para proporcionar uma acolhida a fim de restabelecer a dignidade da
vítima, tem o referencial teórico em sua formação para tratar a criança e o adolescente como sujeito
em sua totalidade, exercendo assim a proteção integral em comprometimento com a garantia de
direitos. Igualmente importante, há os profissionais que atuam no meio acadêmico com pesquisas e
estudos, estratégia fundamental para compreender esta problemática e buscar formas para seu
enfrentamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
À medida que foi-se construindo este estudo, ficou evidente que as violações dos direitos
ocorrem independentemente qual seja o sexo das crianças e adolescentes vítimas, ainda constata-se
que estas ocorrem na sua grande maioria nos lares desses sujeitos, no íntimo das família, lugar que
deveria zelar por proteção. Contudo, a discussão visa entender os processos sociais no qual essa
ordem opressora se constituiu, e não em apontar os culpados, no entanto encontrar caminhos para
reconhecer a problemática, denunciar e encontrar formas de superar, pois se tratando da violência
sexual, principalmente o abuso sexual doméstico e intrafamiliar é um grande obstáculo revelar, seja
pelos laços afetivos ou econômicos. Assim é indispensável fortalecer o compromisso entre família,

141
Conforme código de ética do/a assistente social, é direito do profissional “apoiar e/ou participar dos movimentos
sociais e organizações populares vinculados à luta pela consolidação e ampliação da democracia e dos direitos de
cidadania” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012, p.24).
198
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Estado e sociedade para garantir a proteção e os direitos das crianças e adolescentes, para então
enfrentar todos os tipos de violações.
Cabe destacar que os debates em relação ao abuso sexual de crianças e adolescentes foram
pautados, predominantemente, em dados que fazem referência a violência sexual em meninas, visto
que há uma ausência em análises sobre o abuso sexual contra meninos. Sem dúvida, os abusos sexuais
são mais vivenciados por crianças e adolescentes do sexo feminino, no entanto, cabe ressaltar que
desde a infância a masculinidade de meninos é moldada para ser forte, viril, dominadora e
exploradora, não devendo seus representantes chorar, sentir dores, demonstrar seus sentimentos e
suas fraquezas. Uma lógica que só reproduz o machismo, sexismo e as violências pautadas no gênero,
em uma sociedade com relações desiguais, construída com valores conservadores reproduzir essa
ordem corresponde a anular os sentimentos, vontades e subjetividades desses sujeitos.
Em síntese, a discussão sobre a problemática busca apresentar reflexões necessárias para
contribuir no enfrentamento ao abuso sexual contra meninos, visto que é um tema complexo e pouco
abordado, dado a estrutura social na qual a masculinidade apoia-se desde a família, classe, raça/etnia,
educação, entre outras. Com isso, abre-se o diálogo com o intuito de articular toda a sociedade no
combate a todas as formas de violências que cercam crianças e adolescentes, em especial o abuso
sexual contra meninos, a fim de tornar o enfrentamento mais eficaz a qualquer opressão, dominação
e preconceitos, para assim colaborar com novos conhecimentos no assunto, influenciando
qualificações para prevenir e enfrentar o abuso sexual e outras formas de violações de direitos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.


Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 17
de jul. de 2020.

______. LEI Nº 6.697, DE 10 DE OUTUBRO DE 1979. Institui o Código de Menores. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697impressao.htm> Acesso em: 13 de
ago. de 2020.

_______.LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de jul. de 2020.

199
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
_______. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 95, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2016.Altera o Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras
providências. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm> Acesso em: 14 de
ago. de 2020.

______. LEI Nº12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25
de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o
da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção
de menores. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L12015.htm#art3> Acesso em:15 de ago. de 2020.

_______.LEI Nº 13.431, DE 04 DE ABRIL DE 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos


da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm.> Acesso em: 23 de jul.
de 2020.

______. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.


2013. Disponível em: <http://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/08_2013_pnevsca.pdf>
Acesso em: 27 de jul. de 2020.

______. Violência contra a criança e o adolescente: proposta preliminar de prevenção e assistência


à violência doméstica. – Brasília: MS, SASA, 1997.

_______. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Disque


Direitos Humanos: relatório 2019. Disponível em:
<http://www.cfess.org.br/arquivos/Disque100Relatorio.pdf> Acesso em: 24 de jul. de 2020.

_______. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde em Família. Disponível em:


<https://www.saude.gov.br/atencao-primaria> Acesso em: 31 de jul. de 2020.

_______. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde em Família. Disponível em:


<https://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-de-atencao-psicossocial-raps> Acesso em: 31
de jul. de 2020.

CARVALHO, F. A. HOMEM NÃO CHORA: o abuso sexual contra meninos. Tese, 2015.
(Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, São Paulo.

CISNE, Mirla. Feminismo, diversidade sexual e serviço social. Mirla Cisne, Silvana Mara Morais
dos Santos. - São Paulo : Cortez, 2018. - (Biblioteca Básica de serviço social ; v. 8)

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de ética do/a Assistente Social. Lei
8.662/93 de regulamentação da profissão. 10ª. ed. rev. e atual. Brasília: Conselho Federal de
200
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Serviço Social, 2012. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf>
Acesso em: 22 de jul. 2020.

_______. Nota Técnica sobre o exercício profissional de assistentes sociais e as exigências para
a execução do Depoimento Especial. 2018. Disponível em:
<http://www.cfess.org.br/arquivos/depoimento-especial-notatecnica2018.pdf> Acesso em: 11 de set.
de 2020.

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA - UNICEF. Convenção sobre os Direitos
da Criança. Disponível em:<https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-
crianca> Acesso em: 20 de jul. de 2020.

_______. Pobreza na Infância e na Adolescência. Disponível


em:<https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-
02/pobreza_infancia_adolescencia.pdf> Acesso em: 14 de ago. de 2020.

_______. É preciso fortalecer o ECA e priorizar investimentos na infância e na adolescência,


em meio à pandemia. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/e-
preciso-fortalecer-o-eca-e-priorizar-investimentos-na-infancia-e-na-adolescencia-em-meio-a-
pandemia> Acesso em: 14 de ago. de 2020.

FALEIROS, Vicente de Paula. ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES:


TRAMA, DRAMA E TRAUMA. 2003. Serviço Social & Saúde,Campinas, v. 2, n.2, p. 65-82.
Disponível em:<https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441/4150>
Acesso em: 30 de jul. de 2020.

LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes
nomes, diferentes problemas? In: Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, ISSN
1984- 6487 / n.5 - 2010 - pp.9-29 Disponível em:<https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/394/726> Acesso em: 24 de
jul. de 2020.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. 2a reimpressão, São Paulo, 2011.

SAFERNET. Hotline. Disponível em: <https://new.safernet.org.br/denuncie> Acesso em: 31 de jul.


de 2020.

SANTOS, Benedito Rodrigues dos. Guia de referência: construindo uma cultura de prevenção à
violência sexual. São Paulo: Childhood - Instituto WCF-Brasil: Prefeitura da Cidade de São Paulo.
Secretaria de Educação, 2009. Disponível em: <https://www.childhood.org.br/publicacao/guia-de-
referencia-redes-de-protecao---construindo-uma-cultura-de-prevencao-a-violencia-sexual.pdf>
Acesso em: 31 de jul. de 2020

VILELA, Pedro Rafael. Agência Brasil. Violência contra crianças pode crescer 32% durante
pandemia: Levantamento de ONG aponta aumento de denúncias em escala global. 2020.
201
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-05/violencia-
contra-criancas-pode-crescer-32-durante-pandemia> Acesso em: 27 de jul. de 2020.

202
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COORDENAÇÃO

Dra. Solange Emilene Berwig – UNIPAMPA


Dra. Gissele Carraro – EMESCAM
Doutoranda Naara de Lima Campos – UFES

203
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL: APREENSÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM SERVIÇO SOCIAL

Caroline Ribeiro142
Solange Emilene Berwig143

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o modelo de atenção em saúde mental atual
na realidade local a partir da experiência do estágio supervisionado I em Serviço Social em um Centro
de Atenção Psicossocial, contribuindo para o entendimento das mudanças que marcam o processo de
construção da área da saúde mental no Brasil. Trata-se de um artigo construído com base na
experiência empírica - do estágio supervisionado I em Serviço Social em um serviço de saúde mental
no município de São Borja, complementado com estudo bibliográfico e documental. Para dar conta
de atender ao objetivo proposto este estudo apresenta reflexões que versam sobre a saúde mental
desde à reforma psiquiátrica, à participação do Serviço Social nos serviços de saúde mental, reflexões
sobre a experiência de estágio à luz do referencial normativo do modelo de saúde mental brasileiro.
As reflexões acerca da experiência do estágio supervisionado em Serviço Social contribuíram
significativamente para a apreensão do campo da saúde mental, seu percurso histórico e a
conformação dos serviços pós Reforma Psiquiátrica, bem como oportunizou a compreensão da
inserção do Serviço Social como profissão da área da saúde junto às outras profissões que compõem
os quadros de trabalhadores da saúde a partir da aprovação do Sistema Único de Saúde – SUS.
Palavras-chave: Saúde Mental; CAPS; Estágio Supervisionado; Serviço Social.

INTRODUÇÃO
A formação em Serviço Social tem oportunizado a aproximação com o exercício profissional
de diferentes formas, através dos relatos e mediações em sala de aula à através dos docentes e das
trocas de experiências entre os estudantes, através de visitas técnicas e abordagens estabelecidas por
distintos componentes curriculares, e de forma mais intensa através do período de estágio
supervisionado obrigatório em Serviço Social. Temos a compreensão de que não é apenas no estágio
que estamos em contato com o exercício profissional, pela compreensão dialética da experiência
formativa teoria e prática são indissociáveis, logo, todo o processo formativo está imbricado na
apreensão do exercício profissional. Contudo, é inegável que a experiência do estágio supervisionado

142
Acadêmica do Curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA. Campus São Borja.
E-mail: caroline12ribeiro@hotmail.com
143
Doutora em Serviço Social, docente do Curso de Serviço Social na Universidade Federal do Pampa -
UNIPAMPA. Campus São Borja. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Formação em Serviço Social e
Políticas Sociais na América Latina - GTFOPPS. Membro do GT Seguridad Social y Sistema de Pensiones
CLACSO. E-mail: solangeberwig@unipampa.edu.br

204
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contribui para que estudantes se aproximem com maior ênfase de determinados campos de estágio,
de distintas políticas públicas, e suas particularidades. À partir desta inserção os estudantes vão
desvendando a rotina profissional, os desafios e potencialidades do ambiente laboral, e do fazer
profissional em cada instituição. Neste momento, do estágio supervisionado, todos os estudos
realizados até o período, tornam-se palpáveis, concretos, e em alguma medida, insuficientes
provocando os estudantes a construir novos saberes.
Durante este período da formação, os estudantes se deparam com vários desafios, o exercício
neste ponto é aprender a dinâmica profissional, reconhecer os limites e/ou possibilidades do trabalho
e das políticas em que se inserem os trabalhadores, e ainda, elaborar estratégias de intervenção -
condizentes com os espaços institucionais em que estão inseridos trabalhadores e estagiários, bem
como as atribuições e competências profissionais. Toda a experiência de estágio está acompanhada
sistematicamente pelos supervisores de campo e acadêmico, compondo assim o trabalho da tríade –
estagiário, supervisor de campo e supervisor acadêmico.
Este estudo apresenta uma reflexão que foi demandada pela inserção no período de estágio
supervisionado I em um serviço de saúde mental, em 2019/2. Os desafios que se desdobraram no
processo de estágio tornaram-se fios condutores da experiência formativa, levando os estagiários à
apreensão sobre muitos temas que estão interrelacionados com essa experiência e com o local onde
se realiza o estágio: à política pública como espaço de trabalho para o Serviço Social, o entendimento
do que é saúde mental, o Sistema Único de Saúde - SUS e o campo da saúde mental, conformação
da política de saúde mental brasileira, apreensão sobre os limites e as possibilidades na atenção em
saúde mental no país, entre outras reflexões preciosas para a formação profissional.

SAÚDE MENTAL: resgate a partir da reforma psiquiátrica


Para compreender todas as alterações do campo da saúde mental, e das motivações para
Reforma Psiquiátrica brasileira, partimos da compreensão que é assumida para saúde à partir da
Reforma Sanitária144, a saúde em seu conceito ampliado contempla a promoção de ações que vão

144
O movimento de Reforma Sanitária (1970) surgiu como um resultado das condições de saúde da população, não
só nas reformas de saúde, mas da luta contra a ditadura militar. Assim se colocava como um processo político, e de
estratégia pela reforma sanitária que visava tornar universal o acesso a saúde no Brasil. Deste processo resultou a
criação do Sistema Único de Saúde - SUS, e a alteração das práticas institucionais regidas pelos princípios
democráticos de acesso (SILVA, 2018, p. 157).
205
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
muito além da cura de doenças, ou da ausência de doenças, mas integram ações de educação, acesso
à informação, convivência social, alimentação, habitação e lazer. A partir deste conceito de saúde que
as ações dos serviços existentes do Sistema Único de Saúde (SUS) estão pautados, saúde mental
inclusive. A saúde mental é o conjunto de ações de promoção, prevenção e tratamento referentes ao
melhoramento ou à manutenção ou a restauração da saúde mental de uma população. Tal
compreensão avança acolhendo à saúde como algo que demanda observar fatores concretos das
condições de vida, relações dos sujeitos, e determinações da realidade social que influenciam na saúde
destes, colocando assim à saúde mental como uma das áreas prioritárias na proposta de saúde coletiva.
(SACARENO, 1999).
Foi na época da ditadura militar brasileira que a psiquiatria brasileira passa a ser vista com
novos olhares, baseados em modelos europeus de atenção à saúde mental. O Movimento dos
Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) organizou congressos em níveis regionais e nacionais, com
trabalhadores da psiquiatria e psicologia, onde os mesmos denunciavam a condição precária e
desumana do modelo manicomial da época. É assim, então, que o Movimento da Reforma
Psiquiátrica ganha nome e força no país, na época de 1980, exigindo um tratamento humano e não
hospitalocêntrico. No ano de 1987 acontece na cidade do Rio de Janeiro a I Conferência Nacional de
Saúde Mental, em desdobramento à VIII Conferência Nacional de Saúde, e tais conferências marcam
o início do processo que leva a desinstitucionalização no país. Ainda em 1987, aconteceu em São
Paulo o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que demandou o
debate “Por uma sociedade sem manicômios”, este congresso marca o dia 18 de maio como Dia
Nacional da Luta Antimanicomial no país (BRASIL, 2005).
No ano de 1987, que ocorre a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no
Brasil, na cidade de São Paulo, sendo ele o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha
Cerqueira, conhecido como CAPS da Rua Itapeva. A criação desse CAPS e de tantos outros, em
diferentes partes, é resultado desse movimento de trabalhadores da saúde mental denominado
Reforma Psiquiátrica. Em 1989, dois anos depois da criação do primeiro CAPS no Brasil, dá entrada
no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG145), que propõe a
regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos

145
Deputado Paulo Delgado – Partido dos Trabalhadores. Estado de Mina Gerais.
206
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
manicômios no país. É o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos
legislativo e normativo (BRASIL, 2004).

Com base nos dispositivos da lei, fica evidenciado que todo cidadão têm direito à saúde
integral, sendo esse um direito fundamental do ser humano, o qual garante às pessoas e à
coletividade condições de bem estar físico, mental e social, o qual inclui acesso a todos os
recursos que visem à promoção de saúde da população. Este processo foi base para que a
legislação brasileira pudesse avançar na área da Saúde Mental. Deste modo foi criado o
projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que apresentava a proibição de construção ou
contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público, bem como o
redirecionamento de recursos públicos para a criação de serviços alternativos de atendimento
em saúde mental, além da informação ao setor judiciário das internações compulsórias.
Tornou-se a Lei nº 10.216, em 6 de abril de 2001. Seu objetivo foi o de regulamentar a
assistência psiquiátrica no Brasil e reestruturar o modelo de atendimento em todas as esferas
(BERWIG; SILVA, 2018, p. 159).

Foi através da criação do Sistema Único de Saúde, em 1990, com a Lei nº 8.080, trazendo em
suas diretrizes os princípios da reforma psiquiátrica, que a saúde passa a ser tratada como algo para
além da ausência de doença, contemplando não apenas o indivíduo, mas sua família e comunidade.
O SUS, em conclusão, deu o amparo legal para que a saúde mental se estabelecesse em bases sólidas
no país. Além da legislação de implantação de um sistema único, no campo da saúde mental,
destacamos as Portarias ministeriais n.º 336 e 189, ambas de 2002. Essas portarias,

[...] avançaram no sentido da Lei da Reforma Psiquiátrica, apontando para serviços de saúde
mental abertos e comunitários do Sistema Único de Saúde (SUS); os CAPS podem ser vistos
como uma resposta do setor dominante às reivindicações do Movimento de Reforma
Psiquiátrica e Sanitária. A Portaria 336 (fevereiro/2002) acrescentou novos parâmetros aos
serviços da área ambulatorial, ampliando a abrangência dos serviços substitutivos de atenção
diária; também estabelece diferenciação a partir de critérios populacionais e indica serviços
específicos para pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Também criou
mecanismos de financiamento próprio para além dos tetos financeiros municipais, para a rede
de CAPS (BERWIG; SILVA, 2018, p. 160).

A partir das redefinições amparadas pela legislação e pela proposição de um sistema único
para a saúde, o área da saúde mental foi reestruturada, alternando o modelo hospitalocêntrico para
um modelo de atenção ambulatorial, alterando significativamente à cultura em termos de tratamento
e de compreensão sobre os sujeitos acompanhados.
A Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, institui a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), que tem como finalidade a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde
para pessoas com sofrimento mental e necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas
na perspectiva do SUS. Conforme o artigo 5º da referida Portaria, a RAPS tem como constituição

207
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
inúmeras instituições e componentes, como Unidade Básica de Saúde, servindo como porta de entrada
ao serviço; Atenção Psicossocial Especializada, Atenção de Urgência e Emergência, Atenção
Residencial de Caráter Transitório, Atenção Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e
Reabilitação Psicossocial. Conforme o Manual de Saúde Mental no SUS (2009), os CAPS existentes
são diferentes entre si, a saber:
● CAPS I e II - direcionados para o atendimento diário de adultos com transtornos
mentais severos e persistentes; a diferença entre ambos se dá pelo número
populacional do território em que habita.
● Os CAPS III - destinados ao atendimento diário e noturno de adultos durante os sete
dias da semana.
● CAPSi II - atendimento diário para crianças e adolescentes com transtornos mentais.
● CAPSad II - para atenção diária de adultos com transtornos decorrentes do uso de
álcool e outras drogas.
● CAPSad III - atendimento diurno e noturno, servindo também para espaço de
internação desses usuários.
Todos os Centros de Atenção Psicossocial possuem como objetivo promover a inserção social
dos usuários através de ações que envolvam educação, trabalho, cultura e lazer. A organização da
rede de serviços de saúde mental estão sob sua responsabilidade, para que um trabalho intersetorial e
articulado entre as redes de proteção aconteçam de maneira eficiente e de maneira a sempre priorizar
o usuário que acessa esse serviço. Além do trabalho na perspectiva intersetorial, no âmbito da atenção
em saúde estão previstas equipes multiprofissionais, com enfermeiros, psicólogos, médicos,
terapeutas ocupacionais, oficineiros e outras áreas que possam contribuir para os processos de
tratamento e cuidado em saúde. Observamos no desenvolvimento deste estudo com maior ênfase a
interação dos profissionais assistentes sociais junto ao serviço de saúde mental, a partir da experiência
empírica de estágio supervisionado em Serviço Social em um CAPS no município de São Borja.

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE MENTAL


O movimento de reconceituação que reconfigurou o Serviço Social brasileiro, vai ao encontro
de outros processos - como a abertura para o processo de redemocratização do Brasil, e revisão
de antigas práticas no campo das políticas públicas. O Serviço Social contribui para o

208
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Movimento da Reforma Psiquiátrica enquanto o mesmo está em processo de revisão de suas bases
teóricas, estreitando assim a relação entre marxismo e psiquiatria, o que afeta a profissão. A Reforma
Psiquiátrica passa para o campo da dimensão social e política dos problemas mentais, buscando uma
direção emancipatória para os sujeitos; assim, vai de encontro com o Serviço Social.

O debate em torno da transformação progressiva das organizações institucionais psiquiátricas


e da assistência social; a ênfase no aspecto político da assistência social e da assistência
psiquiátrica; a necessidade da interdisciplinaridade e de ultrapassar os limites entre os
saberes; a necessidade de democratizar as relações de poder entre técnicos e usuários
(BISNETO, 2011, p. 36).

O assistente social é um profissional que materializa as transformações ocasionadas pela


Reforma Psiquiátrica, dando ênfase em proporcionar ao usuário sua condição integral de cidadão, sua
autonomia enquanto ser humano, buscando, por sucessivas aproximações, mediar às situações postas
e desvendar a realidade daquele sujeito, tentando apropriar-se ao máximo das expressões da questão
social ali presentes. Para que o profissional consiga efetivar um trabalho que siga os preceitos da
Reforma Psiquiátrica, é preciso estar em consonância com os objetivos do Projeto Ético-Político da
categoria e as legislações que amparam o exercício profissional, respeitando a autonomia dos
usuários, sua condição de cidadão e ser humano genérico, mediando conforme os transtornos e
necessidades de cada usuário em suas particularidades, em prol de atendimentos mais humanizados,
de qualidade e horizontais, tratando-os juntamente com a sociedade e seus familiares, prezando a
liberdade e autonomia.
O assistente social se torna aquele profissional encarregado de compreender as relações sociais
na vida do usuário do serviço, identificando o impacto que isso causa em sua doença, bem como
trabalhar em uma perspectiva emancipatória, restabelecendo vínculos frágeis entre a família e a
comunidade.

O assistente social intervém nas mais variadas expressões da questão social, tais como os
indivíduos que as experimentam no trabalho, na família, na habitação, na saúde, na
assistência social pública etc. No que se refere aos aspectos sociais na área da saúde, tornam-
se necessários conhecimentos multidisciplinares e plurais, além de práticas complementares
e interdisciplinares. Nesta perspectiva, o Serviço Social possui um lugar nessa área que, em
articulação com as demais áreas de saber, permite obter uma visão integral do sujeito que
adoece, favorecendo a compreensão das implicações socioeconômicas e culturais da saúde,
fator relevante para a humanização e qualificação do atendimento aos seus usuários,
conforme preconizam as diretrizes do SUS (SILVA; GOMES, 2016, p. 88).

209
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para os Centros de Atenção Psicossocial, o assistente social é um profissional que acrescenta
saberes específicos e relevantes em uma equipe multidisciplinar, pois é formado para exercer uma
leitura mais crítica da realidade, para intervir diretamente nas expressões da questão social, sendo
capaz, assim, de colaborar para o desenvolvimento integral do usuário, trabalhando exatamente na
perspectiva de ultrapassar o diagnóstico clínico. Essa dita equipe multidisciplinar é garantida nas
normativas que regem a instituição146, e é materializada quando profissionais de diversas áreas do
saber compartilham um espaço de trabalho, mas que preservam sua metodologia e independência no
processo de trabalho. Existe um ponto em comum entre as áreas - que, no caso de um CAPS, são os
usuários, mas não existe uma relação de cooperação entre elas.
A equipe que compartilha uma instituição para trabalho é extremamente variada, com
profissionais que sempre foram ligados a saúde e outras áreas profissionais que forma incorporadas
ao longo do processo da reforma, pelo entendimento do conceito ampliado de saúde, compõem as
equipes - médicos especialistas em saúde mental e psiquiatras, artesãos, terapeutas ocupacionais e
músicos. Embora a multidisciplinaridade seja um dos princípios para o funcionamento da instituição,
ela não se faz suficiente para as demandas apresentadas pelos usuários e é por isso, então, que se
busca um trabalho interdisciplinar.

[...] uma efetiva interdisciplinaridade fornece o passaporte para um cuidado plural, no qual,
com efeito, o usuário é o denominador comum do entrelace de várias disciplinas e práticas
assistenciais. Essa linha de ação faz o serviço caminhar na direção da integralidade,
afastando-se da assistência reducionista que desconsidera a subjetividade e/ou variáveis
sociais (VASCONCELLOS, 2010, p. 13).

Não apenas nos CAPS, uma equipe interdisciplinar é composta por profissionais de diferentes
áreas do saber que trabalham no mesmo espaço, mas, diferente da multidisciplinaridade,
compartilham saberes e trabalham de forma integrada sob a demanda que lhes é posta, existindo um
diálogo e cooperação entre os profissionais. Trazendo para o âmbito da saúde mental, a Portaria nº
3.088 , de 2011, institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e dispõe, no art. 2º,

146
O documento Saúde Mental no SUS: Os Centros de Atenção Psicossocial, apresenta o quadro de profissionais
que compõem as diferentes estruturas de CAPS, segundo o porte, tipo, e capacidade de atendimento. (BRASIL,
2004).
210
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
inciso IV, sobre a “garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e
assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar”.

Com o objetivo de ampliar o olhar sobre a saúde mental, busca-se na interdisciplinaridade o


referencial teórico capaz de possibilitar reflexões para as práticas que contribuam para a
superação das concepções biologicistas e médico-centradas que historicamente
predominaram na área da saúde mental. Assim, nos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), que atualmente ocupam lugar privilegiado na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), preconiza-se que o trabalho seja interdisciplinar, de forma a articular diferentes
saberes para contemplar a complexidade dos fenômenos que se apresentam nesse contexto
(OLIVEIRA, 2018, p. 38).

Sendo assim, é visto como indispensável o trabalho interdisciplinar em uma instituição como
os CAPS, que trazem demandas que dificilmente podem ser resolvidas apenas por um profissional
em específico. O trabalho de um médico, mesmo assim, não se torna único dentro da instituição
porque, por mais que tenha saberes muito específicos, precisa do olhar social do assistente social, por
exemplo. Em reuniões de equipes, que devem ser frequentes e que são de extrema importância, todos
os profissionais ligados ao tratamento daquele usuário possuem opinião em um processo de alta, o
médico responsável pode reconhecer que o usuário esteja apto para o desligamento do tratamento,
mas o assistente social pode ter outra visão e deve a compartilhar, para que, em equipe, seja pensado
qual o melhor caminho para seguir o tratamento.

NORMATIVAS DO CAPS E A EXPERIÊNCIA EMPÍRICA DO ESTÁGIO


A aproximação com o campo de Estágio Supervisionado I – que foi realizado Centro de
Atenção Psicossocial do município de São Borja, o CAPS I - Drº Caio Escobar, oportunizou observar
no cotidiano como se revelam e materializam os princípios da luta antimanicomial, através da oferta
de serviços pautados por um modelo de tratamento mais humanizado, considerando as
particularidades dos usuários, de seus familiares e comunidade e substitutivo do modelo
hospitalocêntrico. O CAPS I no município é criado em março de 2003, seguindo as orientações da
Portaria 336/2002 - com o objetivo de prestar um serviço qualificado na área da saúde mental para a
comunidade são-borjense. A referida portaria tem importância para a história dos serviços
substitutivos como os CAPS, pois reconheceu e ampliou o funcionamento e a complexidade dos
diferentes serviços ofertados por modalidade de CAPS, com a missão de ofertar um atendimento
diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado
território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de
211
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania
e da inclusão social dos usuários e de suas famílias.
A oferta do serviço em âmbito local segue as diretrizes propostas para este serviço conforme
disposto nas normativas do Ministério da Saúde (2004) que determina que o objetivo CAPS I, então,
é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, sendo um serviço de atendimento de
saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos. Além disso,
realiza acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários, seja pelo acesso ao trabalho ou
pelo fortalecimento dos laços comunitários e familiares. Logo, a instituição visa prestar atendimento
em regime de atenção diária, gerenciando os projetos terapêuticos dos usuários de forma individual
e personalizada, com objetivo de promover sua inserção social por ações que envolvam a educação,
cultura, lazer, etc. Faz parte da Rede de Atenção Psicossocial e segue os princípios e diretrizes do
Sistema Único de Saúde, trabalhando em rede pela ampliação e articulação dos pontos de atenção à
saúde mental.
Não se deve trabalhar apenas com os usuários, pois é essencial a promoção de ações com a
família e a comunidade onde está inserido que combata os estigmas e preconceitos. Constitui-se como
um lugar de referência e de cuidado na comunidade, promotor de vida e está inserido nos bairros onde
preconiza um ambiente acolhedor e de portas abertas (BRASIL, 2015).
A experiência empírica que aproximou estagiário e instituição contribui para a apreensão do
real, do concreto vivido, por usuários e trabalhadores. É possível inferir que o serviço CAPS I – Dr.
Caio Escobar, segue as diretrizes da Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental e
mantém seu funcionamento, como aponta o Art. 3º desta Lei, como responsabilidade do Estado o
desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos
portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família. Essa
constatação se observa pelo serviço estar vinculado à política de saúde e oferece tratamento clínico,
psiquiátrico e psicológico para usuários com transtornos mentais severos e persistentes, visando a
reinserção social dos mesmos através de atividades e oficinas ministradas por uma equipe
multiprofissional.
A população usuária do CAPS I - Dr.º Caio Escobar se configura entre os usuários que
fazem acompanhamento com a equipe técnica e aqueles que passam apenas pelos médicos, cerca

212
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de 132 usuários participam das oficinas, variando seus tratamentos como não-intensivo, semi-
intensivo e intensivo, porém mais de 300 usuários fazem uso apenas do tratamento médico. Os
usuários que fazem acompanhamento não-intensivo geralmente passam pelo médico especialista em
saúde mental, psicóloga ou psiquiatra uma vez no mês; o tratamento semi-intensivo se configura pelo
usuário que frequenta o serviço mais de uma vez na semana, participando das oficinas e o tratamento
intensivo aquele onde o usuário frequenta diariamente a instituição, passando por todos os
profissionais.
O trabalho no CAPS I é ambulatorial, na lógica territorial e substituindo o modelo
hospitalar/asilar, incentivando e contribuindo para a autonomia dos sujeitos. Sendo assim, o CAPS I
também realiza atendimento domiciliar, onde o usuário esteja impossibilitado de locomoção, quando
solicitado pela família ou por alguma instituição que faça parte da rede. Durante o dia a adia é possível
verificar que a demanda de maior notoriedade dentro da instituição se configura sendo referente à
transtornos mentais graves ou moderados, sendo comum a procura por parte da família ou
encaminhamento das Estratégias de Saúde da Família (ESF) de não aderência ao tratamento
medicamentoso por parte dos usuários/as, gerando assim um comportamento agressivo. É comum,
também, a procura de orientação para internação de usuários que não frequentam o serviço, ou
daqueles acometidos por surtos e crises esporádicas, onde a família não possui conhecimento prévio
de quais providências tomar.
Foi observado que a maior demanda do CAPS I - Dr.º Caio Escobar se configura como
atendimento médico e psicológico para a população externa. O médico especialista em saúde mental
atende a população 4 dias na semana, de terça a sexta-feira, mediante a ordem de chegada, seja por
encaminhamento de outro serviço ou procura própria do usuário, assim como a médica psiquiátrica,
que realiza atendimento toda terça-feira de manhã na instituição, atendendo por meio de ordem de
chegada e retirada de ficha ou consulta previamente marcada. Da mesma maneira funciona a agenda
da psicóloga, que no começo do referido estágio não exercia a função de coordenadora, então era
possível realizar atendimento de urgência, não precisando de uma marcação prévia. Durante o período
de observação, contava com a agenda de atendimentos demasiadamente cheia.
Os encaminhamentos para o serviço surgem, em sua maioria, pelos ESF da cidade ou por
parte do Centro Regional de Atenção Integral à Saúde Mental (CRAISM), de usuários que
passaram por períodos de internação e necessitam de acompanhamento. As famílias também

213
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
procuram o serviço sem nenhum tipo de encaminhamento, mas que souberam do serviço pela
comunidade ou outro meio. Logo após, é feito seu Plano Terapêutico Singular (PTS), para encaixá-
lo nas atividades disponibilizadas pela instituição, de acordo com seu gosto. Após a chegada do
usuário na instituição, é atribuição da assistente social a elaboração de documentos próprios da
instituição, bem como visitas domiciliares para compreender a realidade daquele indivíduo em sua
totalidade.
O Serviço Social no CAPS I Dr° Caio Escobar se faz presente desde a sua fundação, em 2003,
onde diversos profissionais da profissão passaram pela instituição por ser sempre um cargo de
contratação temporária. O profissional assistente social precisa estar atento e diretamente envolvido
com os princípios do Código de Ética e Projeto Ético-Político da profissão, com isso, efetivando
serviços de qualidade aos usuários da instituição e seus familiares, viabilizando direitos, sendo
criativo, propositivo e ético em suas ações visando significativas mudanças e transformações na
realidade da vida da população usuária.
As atividades ofertadas pelo CAPS I - Dr. Caio Escobar se divide em oficinas de desenho e
artesanato, caminhadas e atividades físicas. A instituição também conta com um grupo de convivência
com os usuários, coordenado pela psicóloga, toda segunda-feira de manhã, onde é feito uma conversa
sobre o final de semana e um grupo com os familiares na terça-feira a tarde, coordenado pela
assistente social, onde temas pré definidos são discutidos entre a equipe e os familiares, gerando
reflexão e conversa.
Durante o período vigente do referido Estágio, 2019/02, a observação feita foi a partir de olhos
que não estavam acostumados com aquela realidade tão comum para a equipe técnica, sendo possível,
então, fazer uma leitura da realidade onde muito percebido já havia sido normalizado pelos
trabalhadores do CAPS I - Drº Caio Escobar. Os trabalhadores da instituição, vivenciam o
desmantelamento da política de saúde mental em seu cotidiano dentro da instituição, muitas vezes
perdem a percepção de seu trabalho precarizado e sem o objetivo que deveriam guiar suas ações: o
cuidado ao usuário deste serviço.
O Serviço Social, mesmo sendo uma profissão que possui a compreensão sobre o modo de
produção capitalista, a questão social e de como ela se expressa na vida dos trabalhadores, o
profissional assistente social também se constitui enquanto trabalhador assalariado, dentro de
uma política que sobre frequentes desmantelamentos e de um cotidiano de trabalho precarizado,

214
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ele também se constitui enquanto trabalhador assalariado, que necessita vender sua força de trabalho
- nesse caso, para o Estado - para que possa exercer a profissão e intervir nas expressões da Questão
Social na vida do usuário. Contudo, os profissionais do Serviço Social não estão imunes aos processo
de precarização das condições laborais, estão como todo os demais trabalhadores sujeitos aos
processos que flexibilizam suas relações e condições de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o exposto sobre os elementos da Reforma Psiquiátrica e o funcionamento na
realidade concreta de um Centro de Atenção Psicossocial, a partir do Estágio Supervisionado em
Serviço Social, podemos perceber que, apesar do longo processo percorrido pela saúde mental no
Brasil até os dias de hoje, que um amplo caminho foi percorrido, e grandes avanços foram
consolidados formalmente. Contudo, ainda precisamos avançar em termos da oferta de serviços em
relação às demandas da população. Os profissionais, dentro da instituição de saúde mental, enfrentam
diversas barreiras para que seu trabalho seja materializado de maneira integral, seja pela alienação
provocada pela rotina precária e exaustiva, ou algumas das inúmeras limitações no serviço. O
constante ataque que a saúde mental recebe por pré-conceitos estereotipados sobre o campo da saúde
mental, seus usuários e suas demandas.
No contexto do Serviço Social, é de extrema importância ressaltar a autonomia relativa que o
assistente social possui dentro da instituição, muitas vezes preso entre o impasse de cumprir as
demandas institucionais que não necessariamente refletem nas demandas que surgem dos usuários.
O profissional precisa, então, se reconhecer enquanto trabalhador assalariado, onde precisa cumprir
as demandas postas pela gestão, mas sem deixar de primar pelas necessidades da população usuária,
desenvolvendo, assim, suas ações ancoradas nas competências técnico-operativas, teórico-
metodológicas e com base no projeto ético-político da profissão, evitando, assim, tornar-se um mero
reprodutor das políticas sociais.
O processo de estágio supervisionado em Serviço Social constituiu-se como um período
imprescindível na formação profissional, onde as experiências do cotidiano de trabalho e das
instituições contribuem para entendimento da realidade concreta, assimilando tudo o que vem sendo
estudado ao longo do curso, identificando as possibilidades e limitações da atuação profissional,
que, dentro da instituição onde está inserido, depende de inúmeros. Esse momento de inserção

215
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
na instituição é capaz de mostrar ao aluno, a partir de muitas aproximações com a realidade e reflexões
com a tríade, como se estabelecem as relações dentro do sistema, quais ações estão dentro da
possibilidade real de intervenção, novas ações, programas e projetos de intervenção profissional que
sejam passíveis de novas estratégias de enfrentamento das expressões da questão social, fazendo com
que o aluno, posto nessa realidade, tenha subsídios para tornar-se um profissional crítico e
propositivo, que seja capaz de identificar as contradições em seu ambiente de atuação.

REFERÊNCIAS

BERWIG, Solange Emilene; SILVA, Jocenir de Oliveira. Saúde mental e Serviço Social:
contribuições do CAPS-AD para a formação profissional. In: Estágio Supervisionado em Serviço
Social: os (des)caminhos das experiências nos diferentes espaços sócio-ocupacionais / Organizadores
Mariléia Goin, Loiva Machado de Oliveira e Jaina Raqueli Pedersen - Jaguarão, RS: CLAEC, 2018.

BISNETO, José Augusto. Serviço Social e Saúde Mental: uma análise institucional da prática. 3ªed.
São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências. Acesso em: 23 jul 2020. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>.

______. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Acesso em:
30 jun 2020. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de


Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Brasília, 2011. Acesso em: 25 jul 2020. Disponível em
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html>.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros
de Atenção Psicossocial - CAPS, para atendimento público em saúde mental, isto é, pacientes com
transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo,
semi-intensivo e não-intensivo. Brasília, 2002. Acesso em: 25 jul 2020. Disponível em
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html>.

______. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: Volume 5, Saúde Mental. Brasília, 2015.
Acesso em: 18 jun 2020. Disponível em
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_mental_volume_5.pdf>.

216
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde Mental no SUS: Os Centros
de Atenção Psicossocial. (DF) 2004. Acesso em: 28 ago 2020. Disponível em
<http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/SM_Sus.pdf>.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Centros de atenção psicossocial e


unidades de acolhimento como Lugares da Atenção Psicossocial nos Territórios: Orientações
para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA. Brasília, 2015.
Acesso em: 18 jun 2020. Disponível em
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.p
df>.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde
Mental. Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil. Documento apresentado à
Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS.
Brasília, novembro de 2005.

OLIVEIRA, R. M. Interdisciplinaridade e atenção à saúde mental em Centros de Atenção


Psicossocial (CAPS) - Produção de sentidos e subjetividades. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2018. Acesso em: 05 nov 2019. Disponível
em <https://acervodigital.ufpr.br>

SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. CAPS I Drº Caio Escobar. 2017.

SILVA, Carolina Flexa; GOMES, Vera Lúcia Batista. O trabalho do assistente social nos centros
de atenção psicossocial – CAPS do município de Belém/PA: contribuições para o tratamento da
saúde mental dos usuários. SERV. SOC. REV., LONDRINA, V. 19, N.1, P. 84-108, JUL/DEZ. 2016.

VASCONCELLOS, V. C. Trabalho em equipe na saúde mental: o desafio interdisciplinar em um


CAPS. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas. 2010. Acesso em: 05 nov 2019. Disponível
em <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/smad/v6n1/15.pdf>

217
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DESIGUALDADES SOCIAIS E O TRABALHO INFORMAL EM TEMPOS DE COVID-19

Daniel Luiz Pitz147


Marianna Mendes da Costa148

Resumo: A situação de calamidade pública na qual estamos vivendo na atual pandademia da Covid-19 evidencia a crise
do capital e escancara as desigualdades sociais presentes em nosso país. A política neoliberal também contribui
diretamente para esse cenário ao impor diversas contrarreformas trabalhistas que precarizam cada vez mais as condições
de vida e de trabalho da classe trabalhadora. Este trabalho tem por objetivo verificar os impactos gerados nesse período
de isolamento social aos trabalhadores informais e as medidas criadas pelo governo brasileiro para tentar minimizá-los.
Para a realização dessa pesquisa é utilizado a técnica bibliográfica e a sua natureza é a qualitativa. O resultado da pesquisa
nos trouxe a conclusão de que a agenda neoliberal impede a adoção de uma proteção social mais efetiva, onde o auxilio
emergencial se apresenta apenas como uma assistência longe de possibilitar a resolução do problema da desigualdade
social de nosso país. É necessário a superação da exploração das opressões, do racismo, da LGBTfobia, buscando-se
políticas públicas efetivas e alternativas que coloquem a vida e os direitos sociais em primeiro lugar, almejando outra
sociabilidade para além do capital.

Palavras-chave: Desigualdades sociais; Trabalho informal; Pandemia; Covid-19.

INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19 tem gerado grandes desafios para o Brasil e para toda a econômica
mundial. A crise econômica instaurada tem impactado principalmente o mundo do trabalho,
intensificando as desigualdades históricas de nosso país por meio do aumento do desemprego,
expondo a situações de risco vários profissionais da área da saúde e de serviços essenciais, bem como
tem impacto direto na vida de todos os trabalhadores que se encontram na informalidade.
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os impactos da pandemia da Covid-19 no mercado
de trabalho informal brasileiro e as proteções sociais criadas nesse período com o intuito de minimizar
a crise gerada no mundo do trabalho. Em especial, apresentar-se-á um debate sobre a criação de uma
renda básica universal como uma política que diminua o impacto causado pela crise estrutural e como
uma alternativa frente a flexibilização massiva das relações de trabalho no Brasil.
O mercado de trabalho brasileiro é heterogêneo e possui um alto índice de informalidade que
soma um total de mais de 38 milhões de pessoas, representando mais da metade da força de trabalho
em onze estados brasileiros (LICIA RUBINSTEIN, 2020). Na América Latina, os trabalhadores
informais tiveram uma perda média de 81% de rendimento na pandemia, a impactar diretamente o

147
Mestrando em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
danielpitzz@gmail.com
148
Mestranda em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
mariannamendesdacosta@hotmail.com
218
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
aumento da pobreza e das desigualdades. Logo, a garantia de uma renda básica a esses trabalhadores
é fundamental ao combate à pandemia, a miséria e para garantir, minimamente, a proteção aos seus
direitos humanos e fundamentais (SILVA, 2020).
Com base no exposto, a pesquisa propõe-se a responder o seguinte problema: Qual a
importância da criação de políticas públicas eficazes no período de pandemia da Covid-19 para os
trabalhadores informais no Brasil?
Partimos da hipótese de que o auxílio proporcionado pelo governo brasileiro aos trabalhadores
nesse período de pandemia é totalmente ineficaz e insuficiente. A agenda neoliberal impede
diretamente a adoção de medidas mais eficazes que não proporcionam a longo prazo uma solução
para a redução brusca da renda familiar. Dessa forma, o impacto na economia como um todo e a
diminuição drástica no consumo da população tende a perdurar mesmo após o fim da pandemia e do
isolamento social, o que coloca em entrave a própria política neoliberal caso não haja uma alteração
de como os Estados operam sobre a sua economia e distribuem suas riquezas.
A metodologia aplicada a este trabalho foi a pesquisa bibliográfica e a técnica de abordagem
qualitativa. Portanto, utiliza-se a literatura relacionada com a temática com a finalidade de
fundamentar a sua análise.

DESIGUALDADES SOCAIS E O MERCADO DE TRABALHO INFORMAL BRASILEIRO


Para iniciar a discussão é de extrema importância ressaltar que o Brasil é um dos países mais
desiguais no mundo no que se refere a distribuição de renda. Essa desproporção simboliza um
mercado de trabalho heterogêneo e fragmentado por gênero, raça, orientação sexual, classe social,
entre outros aspectos. Dessa forma, as desigualdades afetam de maneira mais perversa esses grupos
que representam a maioria entre os pobres e os trabalhadores informais no país (MARCIA COSTA,
2010).
É imprescindível entender o processo de formação social brasileira, que em suas estruturas
traz marcas profundas de desigualdades ainda não enfrentadas e tampouco superadas. O Brasil se
caracteriza como um país de origem escravocrata, que apresenta altos índices de desigualdade racial
e de gênero, o que é importante para entender como se compõe a classe trabalhadora brasileira
(MARCIA COSTA, 2010).

219
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Além disso, o preconceito e a discriminação em relação a orientação sexual, raça e gênero são
fenômenos universais, específicos e apropriados por diversos modos de produção. Tornando,
portanto, o enfrentamento dessas questões de extrema importância pois tal problemática faz-se
presente no cotidiano dessa população, uma vez que são diversas as manifestações políticas e
religiosas contra esses indivíduos, inclusive por representantes do próprio Poder Executivo,
Legislativo e do Judiciário de forma a negligenciar e a retirar seus direitos (RENATA FERREIRA;
SIQUEIRA, 2007).
Não há como pensar o processo de precarização do trabalho sem levar em conta esses
aspectos, pois as pessoas negras, em especial mulheres negras são as mais atingidas com os aspectos
do neoliberalismo e com a crescente retirada de direitos dentro do mundo do trabalho. É fundamental
a compreensão da totalidade para que possa existir uma leitura que entenda as particularidades do
Brasil (MARCIA COSTA, 2010).
Pensar o racismo, o sexismo e o patriarcado como válvulas fundamentais da dinâmica
capitalista possibilita uma análise que entenda a necessidade de se pensar maneiras de romper com
esse tipo de sociabilidade. A intersecção é de suma importância para pensar a realidade brasileira e
todo seu processo de formação social, a entender todos os âmbitos da vida social (LÉLIA
GONZALEZ, 1984).
É importante ressaltar também a predominância da heteronormatividade na organização
social, pois é notório que homens brancos e heterossexuais possuem muito mais privilégios do que o
outro lado extremo dessa estrutura de desigualdade: a mulher negra, lésbica e pobre. Dessa forma, a
dimensão da orientação sexual cria também opressões, inclusive no interior da mesma classe (MIRLA
ÁLVARO, 2013).
Tudo isso sem falar nas diversas possibilidades que a sexualidade humana possui, como as
travestis que possuem o maior índice de desigualdade e preconceito no mercado de trabalho brasileiro,
estando em sua maioria com trabalhos informais e ligadas a prostituição, já que devido ao preconceito
e a falta políticas publicas e socais não conseguem se inserir no mercado de trabalho formal (PIZZI;
CAMILA PEREIRA; RODRIGUES, 2017).
Muitos LGBTQIA+ se encontram também no setor informal pelo alto índice de preconceito e
discriminação sofridos no mercado de trabalho por outros profissionais ao expõr sua sexualidade
ou quando são forçadamente expostos. Visto que, de forma geral, nas empresas brasileiras além

220
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
da ausência de qualquer política interna de prevenção de práticas discriminatórias, existe uma forte
omissão das mesmas com o auxílio e conscientização de seus funcionários (ANA MARIA COSTA,
2007. p. 98).
Segundo estudo realizado por Menezes, Oliveira e Ana Paula Nascimento (2018, 2013, p. 7):

Muitos desses casos a negligência em forma de omissão das autoridades e chefias dos órgãos
de trabalho para com as ações de violência efetivadas contra esses sujeitos é um fator bastante
presente; o não querer se envolver, ou a reafirmação do preconceito existente também na
omissão de tomadas de providências cabíveis, que busquem combater tal problemática
reforça uma ação de revitimização dos sujeitos ao mesmo tempo em que (in)visibiliza a
homofobia, trazendo a impunidade para o arsenal laboral e potencializando os sujeitos
autores da situação de violência homofóbica.

Além disso, existe ainda gerentes ou funcionários hierarquicamente superiores que quando
descobrem a sexualidade de seus colaboradores, sejam eles trabalhadores ou clientes, incomodam-se
com a presença de LGBTs no ambiente de trabalho, apresentando a homofobia como causa única na
justificativa para a exclusão desses sujeitos, mesmo que na maioria das vezes esse não seja o motivo
verbalizado no processo de demissão (MARCIA MEDEIROS, 2007).
Em um país com enormes desigualdades e um profundo processo histórico de racismo e
exploração, as formas de preconceito e de violências são fortemente presentes. Para a população
LGBT é extremamente difícil sobreviver à essa lógica, pois são criminalizados socialmente, são
excluídos de diversos espaços e são alvos de discursos que reforçam a LGBTfobia no país (MARCIA
MEDEIROS, 2007).
Diante de um processo histórico em que a heterossexualidade é imputada de maneira
compulsória, se entender enquanto parte de sexualidades que fujam desse padrão, coloca a população
LGBT em riscos que ferem sua saúde física, saúde mental e até mesmo seus sentimentos, pois têm
seus direitos fundamentais, por vezes, ferido. São violentados de maneira objetiva e também de
maneira subjetiva, na sua totalidade (ANA MARIA COSTA, 2007. p. 97).
No mundo do trabalho, esses fatores também se apresentam. Entender que o Brasil se
apresenta como um país que carrega raízes de opressão e exploração é fundamental para perceber
como a população LGBT tem grandes lutas ainda para alcançarem cada vez mais direitos, mas é
importante reconhecer que a luta tem apontado para a conquista de direitos, como casamento
homoafetivo, adoção por casais do mesmo sexo (ANA MARIA COSTA, 2007).

221
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para as pessoas LGBTs negras e pobres, a luta é ainda maior, pois ainda sofrem com o
processo de racismo estrutural e com a desigualdade social fortemente presente na sociedade
capitalista. É preciso pensar a luta contra a LGBTfobia atrelada à luta antirracista e anticapitalista,
para que nenhuma forma de opressão seja naturalizada ou entendida como algo que não pode ser
substancialmente mudado (MIRLA ÁLVARO, 2013).
Dessa forma, é necessário reconhecer que a desigualdade de gênero, o racismo e a LGBTfobia,
são expressões da questão social, para assim criar e articular políticas de enfrentamento a
discriminação no mercado de trabalho sofridos por essa população e assim garantir um trabalho digno
a todos.

PROTEÇÃO SOCIAL AO TRABALHORES INFORMAIS NA PANDEMIA DA COVID-19


No dia 02 de abril de 2020, foi publicada a Lei 13.982 que institui medidas excepcionais de
proteção social a serem adotadas no período de isolamento social e de combate a pandemia da Covid-
19. Em seu artigo 2º prevê que durante o período de três meses será concedido um auxílio emergencial
de R$600 reais para trabalhadores informais e para outros trabalhadores que cumpram todos os
requisitos exigidos em lei (BRASIL, 2020).
No entanto, apesar da Lei 13.982 ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, é importante
destacar que a proposta inicial do governo era de um auxílio no valor de R$ 200 reais, ao qual gerou
um intenso debate na Câmara entre os parlamentares até ser liberado o valor hoje aprovado (BRASIL,
2020).
Nessa vertente, Silva (2020, p. 69) destaca que:

Observando as medidas do governo brasileiro, percebe-se que a agenda neoliberal impede a


adoção de medidas mais efetivas. Em um primeiro momento, o governo anunciou medidas
tão irrisórias que gerou críticas até mesmo entre economistas liberais e analistas alinhados
com o mercado financeiro. Depois, anunciou mais medidas de salvamento econômico, como
a possibilidade de redução salarial ou suspensão dos contratos de trabalho com a
complementação do salário pela União; isenção, redução e adiamento do pagamento de
alguns impostos e; abertura de linhas de financiamento com juros reduzidos para pequenas e
médias empresas, a fim de custear as folhas de pagamentos. Tais medidas, apesar de
importantes, não impedem a queda da renda dos trabalhadores e ainda mantêm a incerteza
quanto ao futuro, uma vez que elas se restringem ao período de calamidade pública,
inicialmente previsto para três meses, e não consideram as dificuldades que serão enfrentadas
por empresas e trabalhadores no possível retorno das atividades.

222
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A atuação catastrófica de Bolsonaro no combate a pandemia da Covid-19 tem sido alvo
constante de críticas dentro e fora do país, o que prejudica diretamente diversos trabalhadores,
principalmente os informais que tentam suportar todas as incertezas desse período junto a recorrente
repressão do próprio poder público que tem incentivado diversas políticas públicas que propõe a
retirada dos ambulantes dos centros urbanos (SILVA, 2020).
Apesar do auxílio emergencial garantir, mesmo que de forma inédita e temporária, um mínimo
de dignidade e subsistência para essa população, a realidade brasileira é que muitos passaram por
dificuldades tecnológicas para se cadastrarem e terem acesso ao benefício. Além disso, diversos
trabalhadores de aplicativo e ambulantes também tiveram seu benefício negado ou foram excluídos
compulsoriamente, propagando uma lógica higienista pelo governo (LARISSA COSTA, 2020).
Nesse seguimento, o governo federal se abstém de debates sobre a pauta história da renda
básica universal, reanimado pelo contexto de pandemia, pelo pretexto de aumento da crise econômica
no período pós-pandêmico. No entanto, permanece urgente a preservação da ótica dos direitos
fundamentais, sendo a renda básica universal uma possibilidade de ampliação da cidadania para além
da formalidade, garantindo uma estabilidade mínima aos trabalhadores cuja rotina diária é essencial
para a sua sobrevivência e de sua família (SILVA, 2020).
Jucimeri Silveira (2020, p. 142-143) destaca que:

Percebe-se que a morosidade na garantia de políticas públicas indispensáveis e essenciais no


enfrentamento do Covid-19, por parte do governo federal, além das barreiras no acesso aos
direitos, como a renda básica emergencial, e a insuficiência na destinação de recursos
públicos, compõem parte das tecnologias governamentais que violam direitos, o que impacta,
de modo perverso, na população mais vulnerável, que vivencia as condições mais desiguais.
O processo histórico descolonizador e libertador das amarras do conservadorismo, do
autoritarismo, do estado de exceção, do neoliberalismo, implica a superação do silenciamento
histórico e cotidiano dos subalternos; das opressões epistêmica, ideológica e política, que
subjugam e violentam direitos da população destituída dos atributos e posições valorizados
socialmente pelos parâmetros hegemônicos.

Portanto, é necessário políticas públicas efetivas e abrangentes que atendam diretamente todos
esses trabalhadores atingidos no Brasil, que identifique a realidade de cada grupo social para
organizar o e implementar programas de renda básica, moradia social e promoção de trabalho e renda
sustentáveis, sempre seguindo na direção para que os trabalhos sejam emancipatórios (JUCIMERI
SILVEIRA, 2020).

223
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Contudo, é necessário entender que dentro da ótica capitalista, o trabalho se apresenta não
como um dignificador da vida, mas sim como forma de exploração da classe trabalhadora,
principalmente em países com fortes estruturas desiguais e com determinantes históricos de profunda
desigualdade social, como se apresenta o Brasil em seu processo de histórico, político, cultural. E ao
mesmo tempo pode conter seu viés de emancipação (ANTUNES, 2018).
Antunes (2018, p. 30) aponta ainda que:

Se por um lado necessitamos do trabalho humano e de seu potencial emancipador e


transformador, por outro devemos recusar o trabalho que explora, aliena e infelicita o ser
social, tal como conhecemos sob a vigência e a comando do trabalho abstrato. Isso porque o
sentido do trabalho que estrutura o capital (trabalho abstrato) é desestruturante para a
humanidade, enquanto seu polo oposto, o trabalho que tem sentido estruturante para a
humanidade (o trabalho concreto que cria bens socialmente úteis) (...) Mas, é essa
processualidade contraditória que, presente no ato de trabalhar, que emancipa e aliena,
humaniza e sujeita, libera e escraviza, que (re) converte o estudo do trabalho humano em
questão crucial de nosso mundo e de nossa vida.

É importante, portanto, garantir o avanço de políticas públicas para que possam minimizar o
impacto da Covid-19 na vida da classe trabalhadora, pois mesmo que não se mostrem como formas
de erradicação ou superação das desigualdades existentes, são de extrema importância para a garantia
de direitos mínimos ou formas de subsistência para muitas famílias (SILVA, 2020).
Se do ponto de vista tecnológico parece mais fácil a garantia de direitos e a formalização do
trabalho, do ponto de vista político fica cada vez mais difícil, pois a superexploração tende a se
adensar e com cada vez mais cortes de direitos. A flexibilização, que do ponto de vista neoliberal
facilitaria o mundo do trabalho, só o facilitou para a classe burguesa porque a classe trabalhadora
segue em trabalhos cada vez mais precarizados (ANTUNES, 2018).
Dessa forma, é imprescindível compreender a necessidade de medidas e políticas públicas que
sejam capazes de atuar na realidade e na totalidade da vida da classe trabalhadora brasileira, que é
heterogênea e apresenta características particulares na sua constituição. É importante perceber que,
mesmo de forma precária, as políticas públicas são muito importantes para garantir a diminuição de
impactos diretos na vida dos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

224
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O resultado da pesquisa nos trouxe a conclusão de que diante de um quadro com números
cada vez maiores de desemprego e de trabalhadores informais, as políticas públicas e sociais são
medidas que minimizam os impactos para a vida da classe trabalhadora e garantem sua sobrevivência.
Então, é importante a defesa delas e não a precarização, que vem a ocorrer fortemente diante de um
quadro de crise estrutural do capital e de neoliberalismo.
Com a pandemia do coronavírus esses dados ficam cada vez mais visíveis, pois com as formas
de flexibilização do trabalho, geradas dentro da sociedade capitalista, a informalidade só tende a
crescer, o que significa um enorme retrocesso para a garantia de direitos trabalhistas que foram
conquistados por meio de muita luta e resistência da classe trabalhadora tanto brasileira quanto
mundial.
O isolamento social trouxe ainda mais consequências para esses trabalhadores que não
possuem sequer uma regulamentação e que com as atuais contrarreformas têm estado cada vez mais
em risco. É preciso que exista, de fato, políticas públicas que atendam a essas demandas, mesmo que
ainda de forma precária, pois são insuficientes para garantir uma emancipação, mas importantes para
garantir a sobrevivência.
Nessa perspectiva, é possível também analisar como a população negra é um número
majoritário de usuários de políticas e de beneficiários. A análise de classe, gênero e raça precisam
perpassar por todos os âmbitos da vida, pois estão presentes em todas as esferas sociais. São fatores
fundamentais para entender toda a realidade social brasileira e para a construção de possíveis formas
que venha a enfrentar essa dinâmica social desigual.
É fundamental que todos os sujeitos sociais se sintam responsáveis e envolvidos nesse
processo de combate a desigualde de gênero, ao racismo, ao preconceito e a discriminação acometido
constantemente também contra a população LGBTQIA+ no mercado de trabalho brasileiro. Cabe a
academia, as empresas e a sociedade em geral respeitar e incorporar essa população. É papel dos
pesquisadores buscarem compreender melhor a realidade desta e de outras minorias, cujas vozes são
silenciadas pela sociedade machista e patriarcal. Muito há para se discutir, ainda, sobre o assunto, em
que pese o recente avanço jurídico. Em termos culturais, as percepções se transformam, por vezes,
lentamente.
Diante do atual cenário de aumento do desemprego, frente à indispensabilidade do capital
de que suas mercadorias sejam vendidas, aparenta-se que a renda básica universal tem potencial

225
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
para a manutenção da economia capitalista afetada pela pandemia da Covid-19, além de minimizar
também os impactos gerados a classe trabalhadora. No entanto, como tem demonstrado as atuais
ações do governo Bolsonaro, dificilmente teremos no Brasil uma política que atenda as
transformações que ocorrem no mundo do trabalho e na economia mundial.
Dessa forma, é preciso a construção de um projeto popular radicalmente democrático que vise
sobretudo um país efetivamente igualitário, concebendo novas possibilidades de sociabilidade. É
necessário agir, tendo como perspectiva essa nova cultura e sociedade.

REFERÊNCIAS
ANA MARIA COSTA, Machado. A discriminação por orientação sexual no trabalho – aspectos
legais. In: POCAHY, Fernando. (Org.). Rompendo o silêncio: homofobia e heterossexismo na
sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuances, 2007.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital.


São Paulo, Boitempo, 2018.

BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Estabelece medidas excepcionais de proteção social
a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus (Covid-19). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. Acesso em 10 ago. 2020.

JUCIMERI SILVEIRA, Isolda. Cenário de enfrentamento ao Covid-19: agenda dos direitos humanos
e das políticas públicas em perspectiva decolonial. In: CASTRO, Daniel; SENO, Danillo Dal;
POCHMANN, Marcio. Capitalismo e a Covid-19: um debate urgente. São Paulo: 2020. p. 139-148.

LARISSA COSTA. Trabalhadores têm auxílio emergencial negado mesmo atendendo todos os
requisitos. Brasil de Fato, 2020. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/07/07/mesmo-atendendo-requisitos-trabalhadores-tem-
auxilio-emergencial-negado. Acesso em 7 ago. 2020.

LÉLIA GONZALEZ. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. São
Paulo, p. 223-244, 1984.

LICIA RUBINSTEIN. País tem 11 estados com mais de 50% na informalidade, que ‘sustenta’ o
emprego. Rede Brasil Atual. 14 fev. 2020. Economia. Disponível em:
https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/02/pais-tem-11-estados-com-mais-de-50-na-
informalidade-que-sustenta-o-emprego/. Acesso em: 13 ago. 2020.

MARCIA COSTA, da Silva. Trabalho informal: um problema estrutural básico no entendimento


das desigualdades na sociedade brasileira. Caderno CRH. Salvador, v. 23, n. 58, p. 171-190,

226
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
2010. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ccrh/v23n58/v23n58a11.pdf. Acesso em 13 ago.
2020.

MARCIA MEDEIROS. O trabalhador homossexual, o direito à identidade sexual e a não


discriminação no trabalho. In: POCAHY, Fernando. (Org.). Rompendo o silêncio: homofobia e
heterossexismo na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuances, 2007.

MENEZES, Moisés Santos; OLIVEIRA, António Carlos; ANA PAULA NASCIMENTO, Leite.
LGBT e mercado de trabalho: uma trajetória de preconceitos e discriminações. In. DIAS, Alfrancio
Ferreira et al. I Conferência Internacional de Estudos Queer. Campina Grande, PB: Realize, 2018.
Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/40228. Acesso em 10
de ago. 2020.

MIRLA ÁLVARO, Cisne. Feminismo, lutas de classe e consciência militante feminista no Brasil.
2013. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
408p.

PIZZI, Rodolfo Correa; CAMILA PEREIRA, Zacher; RODRIGUES, Marcio Silva. Portas
entreabertas: o mercado de trabalho sob a perspectiva de travestis e mulheres transexuais. Revista
Brasileira de Estudos Organizacionais. Curitiba, v. 4, n. 1, p. 330-352, 2017. Disponível em:
https://rbeo.emnuvens.com.br/rbeo/article/view/320. Acesso em: 13 ago. 2020.

RENATA FERREIRA, Costa.; SIQUEIRA, Marcus Vinicius Soares. O gay no ambiente de trabalho:
análise dos efeitos de ser gay nas organizações contemporâneas. In: XXXI Encontro da ANPAD,
2007, Rio de Janeiro, RJ. Anais (on-line). Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EOR-B524.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.

SILVA, Pedro Henrique Isaac. O mundo do trabalho e a pandemia de COVID-19: um olhar sobre o
setor informal. Revista Caderno de Administração. Maringá, v. 28, p. 66-70, 2020. Disponível em:
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CadAdm/article/view/53586/751375150138. Acesso em: 11
ago. 2020.

227
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ADOÇÃO TARDIA: ASPECTOS SOCIAIS E O DIREITO A CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Regina Tayrini Bassani149


Larissa Nunes Cavalheiro150
Resumo: No Brasil, o processo de adoção é definido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n.º 8.069/1990 e
pelo Código Civil de 2002, tramitando os processos na Vara da Infância e Juventude, priorizando-se os interesses, as
necessidades e os direitos da criança e do adolescente. Conforme estatísticas do Cadastro Nacional de Adoção realizada
no ano de 2020 há no país 9.077 crianças cadastradas para adoção, deste total cerca de 73% são maiores de 5 anos. Logo,
a presente pesquisa justifica-se, considerando a triste realidade de milhares de crianças e adolescentes que sofrem a espera
na fila de adoção devido à idade. Objetiva-se esclarecer os aspectos acerca da adoção e seus reflexos no desenvolvimento
dos infantes. Como metodologia optou-se pela qualitativa exploratória e bibliográfica. Através do estudo é possível
concluir que a recusa das famílias em realizar a adoção tardia implica na ocorrência de traumas. O desafio é romper com
o preconceito que paira sobre tal adoção, bem como no estabelecimento de políticas públicas para efetivar o direito das
crianças e adolescentes a convivência familiar, pois compete ao Estado especial proteção. Ainda, é dever da sociedade
assegurar à criança os direitos fundamentais necessários para o seu pleno desenvolvimento existencial.

Palavras-chave: Adoção Tardia; Criança e Adolescente; Vínculo Familiar.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho integra os estudos provenientes do desenvolvimento do projeto “Direitos,
transformação social e universo plural da cidadania”, elaborado no âmbito do Curso de Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus São Luiz Gonzaga – URI
SLG, especificamente na linha de pesquisa “gênero, diversidades e cidadania”. Pretende-se expor os
dilemas que envolvem a adoção tardia, tendo em vista se tratar de uma temática atual e de extrema
relevância, considerando a previsão da Constituição Cidadã que refere em seu artigo 227, caput, que
é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à convivência familiar e comunitária, dentre outros direitos. Desta
forma, no momento em que não se mostram presentes políticas públicas para facilitar e agilizar que
tais infantes tenham seu direito respeitado, observa-se que fere o disposto na Carta Maior.

149
Graduanda do 8º semestre do curso de Direito, pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões, campus São Luiz Gonzaga. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos, Transformação Social e Universo
Plural”, desenvolvido na URI/São Luiz Gonzaga. Pesquisa sobre Políticas Públicas e Demandas Sociais. E-mail:
regina_bassani@hotmail.com
150
Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões – URI/Santo Ângelo (PPGD/URI). Bolsista Capes – Taxa. Mestra em Direito e Especialista em
Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Direito Público pela
Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE/RS). Professora do Curso de Direito da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI/São Luiz Gonzaga. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direitos,
Transformação Social e Universo Plural”, desenvolvido na URI/São Luiz Gonzaga e do Grupo de Pesquisa “Núcleo
de Estudos do Comum” (NEC) vinculado ao Departamento de Direito da UFSM. E-mail: larissa-nunes-
cavalheiro@ufsm.br
228
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, será evidenciado no decorrer do estudo qual o significado da expressão “adoção
tardia”, apresentando conceitos e discussões sobre o tema. Posteriormente, será dissertado sobre
o número de crianças e adolescentes na fila de espera pela adoção no Brasil. Da mesma forma,
destaca-se o número de adotantes, expondo-se os fatores que levam ao elevado número de infantes
aguardando a adoção, sendo que há milhares de adotantes cadastrados. Além destes contextos,
apresentam-se as consequências que esta espera gera na vida dos menores.
Para o desenvolvimento da presente pesquisa optou-se pelo metodologia qualitativa
exploratória, pois baseada no contexto que envolve a realidade brasileira acerca da adoção, com o
intuito de interpretar o fenômeno que se apresenta tardio. Enquanto procedimento optou-se pelo
monográfico, com o intuito de estabelecer uma reflexão crítica sobre o tema aqui abordado, suas
especificidades, contudo, sem esgotá-lo. Como técnicas de pesquisa, optou-se pela consulta de
importantes doutrinas e artigos acerca do tema, assim como a análise da legislação brasileira.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ACERCA DA ADOÇÃO


A adoção é considerada um dos mais antigos institutos que se tem notícia, tendo em vista que
sempre existiram filhos não desejados, cujos pais não querem ou não podem assumir, bem como
crianças que são afastadas do convívio familiar pelos mais diversos motivos (DIAS, 2017). Já na era
romana era possível visualizar a existência da adoção, sendo instituição de grande importância pela
necessidade dos césares de legitimar o direito político de seus sucessores (FONSECA, 2002).
Contudo, para alguns juristas que estudam o tema, apenas após as guerras mundiais que se
iniciou a discussão acerca da adoção, devido à preocupação pública com os órfãos que surgiram em
decorrência dos estragos dos grandes conflitos bélicos (FONSECA, 2002). Para a autora Claudia
Fonseca, as guerras e epidemias não eram nenhuma novidade histórica, sendo assim, o que trouxe a
mudança foram as novas concepções da criança e do papel do Estado na vida privada (2002).
Antigamente, a adoção estava intrinsecamente relacionada com a transmissão de bens, por
vezes dizia respeito a transmissão de um nome familiar e, eventualmente, de poder político. Em regra,
o adotante tinha que ser de idade avançada, como no caso do Código de Napoleão que estabelecia os
50 anos como idade mínima, e os adotados eram frequentemente adultos. Apesar de ser possível
realizar a adoção, os poderes centrais agiam em geral contra, permanecendo grande número de

229
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pessoas sem herdeiros, escoando seu patrimônio para o senhor feudal ou para a Igreja (FONSECA,
2002).
Assim, antes do século XX houve poucos movimentos ou debates para adaptar as leis sobre
adoção ao problema das “crianças abandonadas”. Não era raro as pessoas receberem no seu lar um
jovem desamparado, reconhecido como filho de criação, mas eram raras as vezes em que se procurava
legalizar a situação (FONSECA, 2002).
Apenas após a virada do século que o Estado tomou a iniciativa de intervir no que, até o
momento, tinha sido administrado seja por acordos informais, seja pelo direito contratual. Neste
sentido, ao contrário da Igreja que colocava obstáculos à adoção, devido ao seu poder econômico
derivar do patrimônio de famílias sem herdeiros, o Estado tinha interesse na socialização adequada
dos jovens sem família, fomentando assim a discussão jurídica com foco na transferência do pátrio
poder, deixando em segundo plano a questão de herança (FONSECA, 2002).
Surge também, neste período a noção de infância enquanto fase crucial para o
desenvolvimento da personalidade adulta, sendo considerado um ser em formação que carece de
especiais cuidados materiais e afetivos (FONSECA, 2002).
Quanto aos primeiros dispositivos incluídos no ordenamento jurídico brasileiro, o Código
Civil de 1916 recupera uma antiga prática, a transferência por escritura de responsabilidades tutelares
entre um adulto e outro. A lei estabelecia que qualquer pessoa com mais de 50 anos, sem prole
legítima ou legitimada, poderia “adotar” uma criança mediante contrato com os pais biológicos. Não
haviam restrições quanto a idade, sexo, estado civil ou nacionalidade, entretanto deveria haver uma
diferença de 18 anos entre o adotante e o adotado. Ainda, a relação adotiva era revogável e não
anulava o vínculo entre a criança e os seus genitores. Fonseca refere que “a posse da criança era
regulamentada no cartório da mesma forma que se regulamentava a posse de bens e imóveis” (2002,
p. 120).
Foi só em 1957, com certas alterações introduzidas no Código Civil, que tornou-se possível
visualizar o surgimento de um interesse no bem-estar da criança.
Após, com a Lei n.° 4.655 de 1965 sobre “legitimação adotiva”, tem-se, pela primeira vez, a
ideia de um laço irrevogável que confere direitos hierárquicos à criança e que cessa qualquer ligação
com a família anterior. A Lei diz respeito a órfãos, de pais desconhecidos, ou a “menores
abandonados” até a idade de 7 anos.

230
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Código dos Menores (1979), criou duas formas de adoção – a plena e a simples. A simples,
voltada ao menor que se encontrava em situação irregular (“delinquente” ou “abandonado”), dependia
de autorização judicial e apenas fazia uma alteração na certidão de nascimento. Na plena (substituindo
a “legitimação adotiva”), rompia-se todo e qualquer vínculo com a família original (seguindo a Lei
4.655/1965). Somente casais com pelo menos cinco anos de casamento, nos quais um dos cônjuges
tivesse mais de 30 anos, poderiam pedir uma adoção plena — irrevogável e destinada a menores de
7 anos. Porém, ainda se mantinha na lei a distinção entre filhos legítimos e adotados, reforçando a
diferença entre os filhos nascidos dentro do matrimônio ou fora dele (SENADO FEDERAL, 2013).
Apenas com o advento da Constituição Federal de 1988 que houve a eliminação de qualquer
distinção entre adoção e filiação. Restou consagrado no art. 227, §6º, que os filhos, havidos ou não
da relação de casamento ou por adoção, têm os mesmos direitos e qualificações, “proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”.
Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n° 8.069/1990),
reforçou-se a ideia da prevalência do melhor interesse para o menor, adotando a doutrina jurídica da
“proteção integral”. As novas regras procuravam simplificar o processo de adoção, modificando,
entre outros critérios, a idade máxima para ser adotado (de 7 para 18 anos) ou a idade mínima para
poder adotar (21 anos, e não mais 30) e abrindo a possibilidade a qualquer pessoa, casada ou não,
desde que obedecidos os requisitos (SENADO FEDERAL, 2013).
Em agosto de 2009, foi sancionada a Lei 12.010, que além de sedimentar a filosofia do ECA
quanto à ausência de distinção legal entre os filhos adotivos ou biológicos, também foram criadas
novas exigências para os adotantes, implantado um cadastro nacional de crianças para a adoção, assim
reforçando o papel do Estado no processo.
Após esta contextualização acerca da trajetória história do instituto da adoção, passa-se ao
esclarecimento do conceito de adoção tardia e as discussões que envolvem o referido tema, a fim de
introduzir uma base geral sobre a problemática.

ADOÇÃO TARDIA: CONCEITO E DISCUSSÕES


Primeiramente, quanto à compreensão do instituto da adoção, cabível expor o entendimento
da autora Fernanda Levy, a qual preconiza que “a adoção é o ato jurídico que gera um vínculo
paterno-filial entre duas pessoas, o adotante pai e o adotado filho. Esta relação de filiação não

231
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nasce de um fato biológico, mas sim afetivo” (2008, p. 24). Na atualidade, há a valorização do vínculo
afetivo para além de uma noção restrita de família, pois a progressiva interpretação deste conceito
acompanhou as mudanças sociais, complexas e dinâmicas.
Assim, conforme Maria Berenice Dias, em se tratando de vínculo formado pelo afeto não se
pode deixar de conferir o status de família e, por conseguinte, “merecedora da proteção do Estado,
pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade
da pessoa humana” (s.a, p. 2).
É a partir da adoção que cria-se um vínculo de paternidade, maternidade e filiação entre
adotante e adotado visando, primordialmente, a proteção e o bem-estar do infante, integrando-o por
completo a uma família substituta (LEVY apud LOTUFO).
Ademais, o próprio site do TJ/RS, o qual realiza a campanha “Deixa o amor te surpreender”
traz uma explicação acerca do significado da palavra adoção, referindo que a expressão vem do latim
“adoptare" que significa ato de aceitar, acolher, tomar por filho, legitimar, dar o seu nome a – um
filho de outrem –, atribuindo os direitos de filho próprio (JIJ TJRS).
Quanto a expressão “tardia”, é um adjetivo usado para designar a adoção de crianças maiores.
Na visão da doutora em Psicologia e presidente do Ceicrifa – Centro de Estudos Interdisciplinares de
Atenção a Criança e a Família –, Marlizete M. Vargas, considera-se maior a criança que já consegue
se perceber diferenciada do outro e do mundo, ou seja, que não é mais um bebê, tendo certa
independência do adulto para satisfazer suas necessidades básicas.
Diversos autores estabelecem entre dois e três anos a faixa etária que serve de limite entre a
adoção precoce e a adoção tardia, dentre eles a autora citada anteriormente, Marlizete M. Vargas,
bem como Surama Gusmão Ebrahim e Sarah Braga Cordeiro.
Outros fatores também são considerados para estabelecer esta faixa etária, como o tempo de
permanência da criança em instituição e o seu nível de desenvolvimento. Assim, apesar da criança já
ter dois, três anos, devido ao seu comportamento, ou seja, aquelas que ainda não andam sozinhas, não
falam ou usam fraldas, não se enquadram nas características típicas de uma adoção tardia, pois não
estão nas fases de comportamentos agressivos ou regressivos, pelas quais passam a maioria das
crianças adotadas a partir dessa idade (VARGAS, s.a).
A adoção tardia, em geral, é resultante da inserção das crianças e adolescentes maiores
em locais de abrigo. Os motivos da entrada das crianças podem ser abandono dos pais,

232
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
negligência, violência familiar, abuso sexual, entrega das crianças a aos cuidados do Estado por falta
de condições de dar uma vida digna a mesma, entre outras (LEVY apud CORDEIRO, 2016).
As crianças consideradas "idosas" para adoção, segundo Vargas (1998 apud CAMARGO,
2015, p. 4):

[...] ou foram abandonadas tardiamente pelas mães, que por circunstâncias pessoais ou
socioeconômicas, não puderam continuar se encarregando delas ou foram retiradas dos pais
pelo poder judiciário, que os julgou incapazes de mantê-las em seu pátrio poder, ou, ainda,
foram ‘esquecidas’ pelo Estado desde muito pequenas em ‘orfanatos’ que, na realidade,
abrigam uma minoria de órfãos [...].

A concretização da adoção depende da vivência da criança e dos motivos que a


impossibilitaram de permanecer com a família de origem, assim como da tolerância e da capacidade
de dedicação dos pais adotivos, que ora enfrentam problemas habituais, ora condições bastante
estressantes. O fato da criança ser mais velha não é um elemento inviabilizador da adoção, e que, por
si só, afaste a criança dos benefícios que a integração numa família adotiva pode representar (DINIZ
apud EBRAHIM, 2001b).
Cabe ressaltar, porém, que a adoção não pode ser entendida como um meio de resolver
problemas sociais, como o abandono e a institucionalização, mas sim, como um direito de todo
indivíduo a ter uma família, seja biológica ou adotiva, desenvolvendo-se a convivência familiar que
é direito resguardado pela Constituição Federal (EBRAHIM, 2001b).
Elucidada as questões referentes ao conceito da adoção tardia e seus contornos, será analisado
os aspectos sociais da adoção, demonstrando-se a atual realidade dos números de adotantes e
adotando, os principais motivos que levam a essa disparidade, bem como as consequências que a
espera por um lar gera naquelas crianças e adolescentes que aguardam em instituições pela adoção.

ASPECTOS SOCIAIS E AS CONSEQUÊNCIAS GERADAS PELA ADOÇÃO TARDIA


No Brasil, o processo de adoção é definido pelas regras do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA – Lei n.º 8.069/1990 e pelo Código Civil de 2002, tramitando os processos na
Vara da Infância e Juventude da comarca, priorizando-se os interesses, as necessidades e os direitos
da criança e do adolescente.
Assim, segundo disposto no ECA, todas as crianças e os adolescentes possuem o direito
de serem criados e educados no seio de sua família e, quando isso não é possível por terem sido
233
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
esgotados os recursos de sua manutenção, eles poderão ser encaminhados para adoção, a fim de terem
garantido o direto à convivência familiar e comunitária em uma nova família (TJRS, s.a).
Todavia, a realidade não é tão simples, conforme relatório estatístico do Cadastro Nacional
de Adoção (CNA) há no país um total de 9.077 crianças cadastradas para adoção, sendo que deste
total, cerca de 73% são maiores de 5 anos. Quanto aos adotantes cadastrados, verifica-se o número
de 46.057 pretendentes. Logo, levanta-se a seguinte inquietação: Por que essas crianças ainda
aguardam na fila se a procura pela adoção é bem maior do que o número de adotandos?
Vários fatores colaboram para a resposta desta questão. Um dos problemas, que é encarado
como obstáculo pelos adotantes, está o estigma de adotar uma criança mais velha, com possível
histórico de vida, capaz de ter opiniões próprias, com isso se tornando um desafio na mente daqueles
que querem se tornar pais (CORDEIRO et al, 2018).
Em geral, o processo de adoção tardia tende a ser mais complexo do que o de adoção de
crianças menores, pois envolve muitas situações e traumas que permeiam a criança e a história de
inserção da mesma na instituição (CORDEIRO, 2016).
De acordo com Joppert e Fontoura (2009 apud CORDEIRO, 2016, p. 5):

Entre outros aspectos, na adoção tardia está presente um período maior de convivência da
criança ou adolescente com a família biológica, onde provavelmente sofre agressões,
rompimento de vínculos, abandono, negligência, o que levou a destituição do poder da
família; a criança deve estar a algum tempo abrigada, pode já ter estado em diferentes abrigos
ou com diferentes pais sociais e/ou, ainda, ter passado por diversos lares, antes de ser levado
a um abrigo.

Ainda, há o receio de adotar crianças institucionalizadas pelos maus hábitos que,


supostamente, trariam, bem como as dificuldades em respeitar e seguir as novas rotinas e regras. A
autora Sumara Ebrahim (2001a) refere que os adotantes acreditam que as crianças que não sabem que
são adotivas têm menos problemas, por isso preferem adotar bebês e esconder deles a verdade,
imitando uma família biológica. É usual, portanto, que sejam confundidas a aceitação e a inserção
completa da criança na família, com o desejo e a tentativa de apagar suas origens.
Outro fator que dificulta a prática da adoção tardia é o medo de que a criança no decorrer de
seu desenvolvimento sinta o desejo de conhecer a sua família biológica e isto gere conflitos e resulte
na rejeição da família adotiva. Ainda, existentes questões referentes ao sistema jurídico brasileiro
que, de certa forma, reforça o receio e a dificuldade em adotar (CORDEIRO et al, 2018).

234
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Interessante apontar as conclusões do autor Mário Lázaro Camargo, o qual refere que devido
aos mitos que constituem a atual cultura da adoção no Brasil, que geram fortes obstáculos à realização
de adoções de crianças "idosas" e adolescentes (adoções tardias), uma vez que potencializam crenças
e expectativas negativas ligadas à prática da adoção enquanto forma de colocação de crianças e
adolescentes em famílias substitutas.
Na visão do citado autor, a criança recém nascida, como apontam os números, é mais
procurada pelas famílias postulantes à adoção. Tal fato se justifica pelo encontro de "possibilidades"
e "expectativas" que nas mesmas se materializam, porque representam (segundo o imaginário dos
adotantes):

• a possibilidade de uma adaptação tranqüila da criança em relação aos pais e dos pais em
relação à criança e, conseqüentemente, uma saudável relação entre os pais e filho adotivo,
imitando assim a "possível" ou "almejada" relação destes numa situação onde se faz presente
o vínculo biológico-sangüíneo;
• a oportunidade de construção de um vínculo afetivo mais profundo entre mãe-pai-filho, a
tal ponto de apagar as marcas da rejeição e abandono promovidos pela mãe e pai biológicos;
• tempo hábil para a construção do aqui denominado pacto sócio-familiar, caso seja opção da
família adotiva manter segredo quanto as origens da criança adotada;
• o acompanhamento integral de seu desenvolvimento físico e psicossocial que se manifestam
desde as mais primitivas expressões faciais como o sorriso e movimento dos olhos
acompanhando objetos e demonstrando o reconhecimento das figuras parentais até as
primeiras falas e primeiros passos;
• a realização do desejo materno e paterno de poder trocar as fraldas de um bebê a quem
chamará de filho, seguido dos desejos complementares à consolidação da figura materna e
paterna, tais como, dar-lhe colo, amamentar, ninar, dar banho, trocar-lhe as roupas, etc.;
• protagonizar o papel de pai e mãe no processo de educação do filho, incluindo a
possibilidade de acompanhar o desenvolvimento escolar que se desdobra em situações
menores em proporção ao todo do processo, mas que são extremamente significativas aos
pais, como por exemplo, ver seus primeiros rabiscos no papel se transformarem em garatujas
e depois em figuras humanas cada vez mais complexas e representativas, acompanhar os
primeiros passos do filho em direção à alfabetização, fazer-se presente nas reuniões da escola
e nas comemorações cívicas e culturais, participar com o filho de eventos esportivos, etc.;
• construir uma história familiar e registrá-la, desde os primeiros dias de vida do filho, por
meio de fotografias que comporão o álbum de família (CAMARGO, 2005, p. 5).

Além destes motivos, também somam-se questões de toda ordem, que tem levado casais e
famílias considerados aptos à concretização de adoções, tardias ou não, a desistirem:

• o medo manifestado por muitos casais e famílias postulantes à adoção de que a criança
adotada, principalmente a que tem idade igual ou superior a dois anos, por ter
permanecido um longo período de seu processo desenvolvimental na instituição ou
transitando entre diferentes famílias, não se adapte à realidade de uma família em
definitivo, por crer (equivocadamente) que a mesma já terá formado sua personalidade,
235
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
caráter e por ter se lhe incorporado "vícios", "má educação", "falta de limites" e "dificuldade
de convivência";
• a negativa expectativa quanto à possibilidade do estabelecimento de vínculos afetivos entre
os adotantes e a criança tendo em vista seu histórico de rejeição e abandono associado à
consciência de sua não pertença (biológica) à família adotiva;
• o mito de que ao longo do processo de desenvolvimento da criança, seus desejos por
conhecer a família biológica serão intensificados de modo a comprometer a relação com a
família adotiva, sendo este o motivo de constantes conflitos que, quase sempre, culminam
com a revolta e/ou fuga do filho adotivo;
• o tempo de espera nas filas pela adoção de crianças, coordenadas pelos juizados da infância
e juventude, tende a ser longo e o processo burocrático se apresenta como obstáculo dos mais
difíceis de serem superados tendo em vista as exigências a serem cumpridas (aliás, todas em
função do bem-estar das crianças);
• a legislação brasileira, que por cautela e prudência, não dá de imediato a certidão de adoção
plena da criança à família adotiva, gerando uma ansiedade na mesma que, para evitar
desgastes emocionais em ambas as partes, opta pela desistência da adoção em vez de aceitar
a guarda provisória da criança. Vale dizer que em situações como essa, a família adotiva
permanece por um período que varia de um a dois anos com a guarda provisória da criança
que, por sua vez, ainda está judicialmente ligada à família biológica. Como o poder judiciário
prima preferencialmente pela permanência das crianças em suas famílias de origem e
somente na falta ou impossibilidade desta, disponibiliza a criança para colocação em família
substituta, muitas famílias temem – e por isso recusam a guarda provisória – que depois de
um tempo de convívio, que certamente resultará na construção de vínculos afetivos com a
criança, esta tenha que ser devolvida a sua mãe, pai ou família biológica (CAMARGO, 2005,
p. 6).

Ademais, a atual realidade do sistema de adoção brasileiro apresenta diversas falhas, sejam
essas no levantamento dos dados, no conhecimento de quem são os acolhidos e quem são os adotantes,
nos programas de acolhimento e de apoio às famílias, além da longa permanência dos infantes em
abrigos (QUEIROZ & BRITO, 2013 apud CORDEIRO, 2018).
Não bastasse isso, a adoção no Brasil, ainda é comumente vista como solução para a
infertilidade, constituindo uma das razões para a procura maciça de bebês, limitando-se, em geral, as
crianças de até três anos de idade, surgindo assim a figura da adoção tardia, quando aqueles infantes
tidos como “velhos” conseguem ingressar em uma família, sendo na maioria das vezes adotadas por
estrangeiros ou permanecem em instituições (EBRAHIM, 2001a).
Todo este enredo gera a difícil situação enfrentada pelos infantes que buscam um vínculo
familiar e almejam estar em um lar estruturado capaz de recebê-los com afeto.
Dentre as consequências que a espera na fila da adoção gera está o medo da criança ou
adolescente em ser novamente abandonado, o menor pode demonstrar sentimentos contrários aos seus
desejos, como uma forma de evitar o apego. Na maioria dos casos de adoção, houve

236
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
anteriormente uma situação de abandono, separação ou interrupção de algum vínculo (DUGNANI el
al, 2011).
Assim, quanto mais tardia a adoção, mais vivas serão as lembranças do passado, sendo maior
a probabilidade de a criança apresentar desilusões e frustrações devido ao abandono (ANDREI apud
DUGNANI et al, 2011).
Joppert e Fontoura (2009 apud CORDEIRO, 2016, p. 7) também expõem algumas das
dificuldades pelas quais os adotandos passam em decorrência da adoção tardia:

[...] o rompimento do vínculo com os pais biológicos, as dificuldades emocionais advindas,


mais especificamente na adoção tardia, da falta de um relacionamento estável e contínuo em
um lar onde a criança fosse “o” filho e não apenas, “uma criança abrigada”, as expectativas
do adotando sobre a família sonhada [...] a “história de vida” da criança e seus sonhos.

Apesar de todos os impasses, verifica-se a imprescindibilidade do relacionamento com as


figuras materna e/ou paterna para o desenvolvimento saudável de todo e qualquer menor, bem como
para a formação de sua personalidade, para sua adaptação social e constituição como sujeito e cidadão
(EBRAHIM, 2001b).
Embora o fato de pertencer a uma família não assegure um desenvolvimento necessariamente
mais adequado, mas de certa forma auxilia para tanto. Por conseguinte, crianças sem famílias,
abandonadas, institucionalizadas, sem figuras afetivas com quem possam estabelecer vínculos,
interações estáveis e contínuas, estão mais sujeitas a dificuldades em seu desenvolvimento, do que
aquelas que têm um porto seguro onde ancorar (EBRAHIM, 2001b).
Deste modo, o suporte em torno dos adotantes é de valor fundamental, antes, durante e depois
do processo adotivo, compreendendo, como expressam os pais adotivos, um elemento fundamental
para a estruturação e manutenção do vínculo familiar. Os adotantes necessitam tanto do auxílio de
pessoas especializadas, do poder judiciário e dos grupos de adoção, como daquelas que os cercam no
convívio diário (EBRAHIM, 2001a).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adoção é um vínculo legal e solene, estabelecendo-se entre criança/adolescente, que se
encontrava em regime institucional à espera de uma família que a acolhesse e legalizasse sua
filiação, e a pessoa que decide tornar aquela criança/adolescente seu filho/filha perante a lei.

237
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por sua vez, a adoção tardia caracteriza-se basicamente pela adoção de crianças com idade
superior a dois anos e devido aos vários mitos que constituem a atual cultura da adoção no Brasil, há
a necessidade de difusão da cultura da adoção, a fim de proporcionar um lar para
crianças/adolescentes que não o têm, sem valorizar demasiadamente condições de saúde, cor, gênero,
raça, idade.
A adoção deve ter como interesse maior o bem-estar da criança, privilegiando o direito desta
a ter uma família que a ame e a proteja. Isto quer dizer que o fundamental a defender são os direitos
da criança, e não simplesmente o interesse do adulto. Para que haja a adoção são necessárias pessoas
desejosas e capazes de tomar como filho/filha uma criança alheia ao seu convívio familiar.
Cabe expor a colocação de Weber L.N.D. e Kossobudzki (apud EBRAHIM, 2001b), “quando
nós escolhemos amigos, quando nos apaixonamos, as pessoas também não vêm com uma história
prévia?” Isso não impede que as relações cresçam e sejam prazerosas, e que ambos os lados superem
as dificuldades e sintam-se bem, façam o bem uma para a outra, ou seja, estabeleçam uma relacao ao
encontro do bem-estar de todos e todas as pessoas envolvidas.
A partir desta reflexão, deve-se rever e superar os preconceitos que envolvem a adoção de
crianças e adolescentes mais velhos, que já tenham conhecimento da vida e do mundo, pois os
sentimentos que irão se desenvolver no âmbito da convivência familiar, o cuidado e carinho superam
qualquer barreira que possa justificar a negativa em proceder com esta adoção.
A filiação não admite adjetivos, não é civil, comum, plena, estatutária, é simplesmente adoção,
tendo em vista que nosso Diploma Maior proíbe qualquer discriminação entre os filhos e prega a
integração total do adotado na família do adotando.
Enfim, deve-se reconhecer que o sistema brasileiro de adoção é precário na efetivação do
direito da criança à convivência familiar e de ter uma família. As consequências geradas pela recusa
das famílias em realizar a adoção tardia faz com que as crianças permaneçam nas instituições,
privadas da convivência de uma família, tornando alta a probabilidade da ocorrência de traumas,
dificuldades pessoais, e até mesmo, devoluções em processos de adoção. O grande desafio está no
rompimento do preconceito que paira sobre a adoção tardia, bem como no implemento de políticas
públicas para efetivar o direito das crianças e adolescentes a convivência familiar.
Toda criança e adolescente tem direito a convivência familiar e necessita ser adotado,
independente de sua idade, cor, condições de saúde.

238
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 29 Jul.
2020.

BRASIL. Lei n.° 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 29 Jul. 2020.

BRASIL. Lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 17 Set. 2019.

CAMARGO, Mário Lázaro. A adoção tardia no Brasil: desafios e perspectivas para o cuidado com
crianças e adolescentes. 2005. Disponível em:
<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000200013&script=sci_artt
ext&tlng=pt>. Acesso em: 29 Jul. 2020.

CNJ, Conselho Nacional de Justiça. CNA Cadastro Nacional de Adoção – Relatórios Estatísticos.
Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf>. Acesso em: 29 Jul. 2020.

CORDEIRO, Débora Simone Bezerra. Adoção Tardia: um direito da criança a convicencia familiar.
2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/48787/adocao-tardia-um-direito-da-crianca-a-
convivencia-familiar>. Acesso em: 29 Jul. 2020.

CORDEIRO, Sarah Braga; RIBEIRO, Leila Maria Tinoco Boechat; NOVAIS, Alinne Arquette Leite;
CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de. Adoção
Tarida: a Efetividade do Instituto da Adoção na Garantia dos Direitos Humanos. Revista Brasileira
de Direitos Humanos. N.º 25, Abr-Jun. 2018.

DIAS, Maria Berenice. As famílias e seus direitos. s.a Disponível em:


<http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_568)14__as_familias_e_seus_direitos.pdf>
Acesso em 29 Jul. 2020.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Editora Revista dos Tribunais LTDA. 12ª
edição. 2017.

DUGNANI, Katia Cristina Bandeira; MARQUES, Susi Lippi. Construção e validação de


instrumento para prática interventiva na adoção. Paidéia set.-dez. 2011, Vol. 21, n.º 50.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
863X2011000300004&lang=pt>. Acesso em 29 Jul. 2020.

239
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EBRAHIM, Surama Gusmão. Adoção Tardia: Altruísmo, Maturidade e Estabilidade Emocional.
Revista Psicologia: Reflexão e Crítica. 2001a. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
79722001000100006&lang=pt>. Acesso em 29 Jul. 2020.

EBRAHIM, Surama Gusmão. Adoção Tardia: uma visão comparativa. Revista Estudos de
Psicologia. PUC-Campinas. V. 18, n. 2, maio/agosto. 2001b. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
166X2001000200003&lang=pt>. Acesso em 29 Jul. 2020.

FONSECA, Claudia. Caminhos da Adoção. Editora Cortez. 2ª edição. 2002.

LEVY, Fernanda Rocha Lourenço. Guarda de Filhos: Os Conflitos no Exercício do Poder Familiar.
Editora Atlas S.A. 2008.

SENADO FEDERAL. Adoção: mudar um destino. In: Em discussão! Revista de audiências públicas
do Senado Federal. Ano 4, n. 5, maio 2013. Disponível em:
<https://www.senado.gov.br/NOTICIAS/JORNAL/EMDISCUSSAO/upload/201302%20-
%20maio/pdf/em%20discuss%C3%A3o!_maio_2013_internet.pdf>. Acesso em 29 Jul. 2020.

TJ RS. Perguntas Frequentes. Disponível em:<http://jij.tjrs.jus.br/index.php?pagina=perguntas-


frequentes>. Acesso em 29 Jul. 2020.

VARGAS, Marlizete Maldonado. Adoção Tardia. Disponível


em:<http://www.gaasp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=277%3Aadocao-
tardia&catid=47%3Aadocao-tardia&Itemid=67>. Acesso em 29 Jul. 2020.

240
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HISTORICIDADE E DIVERSIDADE NO MOVIMENTO LGBTQI+: OS DIREITOS À
SAÚDE DA POPULAÇÃO TRAVESTI E TRANSEXUAL

Ricardo William Guimarães Machado151


Nathalia de Jesus Januário Nogueira152

Resumo: Este artigo se deu início através do projeto de monografia que apresenta o tema sobre a população
transexual/travestis do município de Três Rios do Estado do Rio de Janeiro e pretende compreender o acesso dessas
pessoas à saúde na Atenção Básica e como esses direitos são viabilizados quando são negados a esta população.
Perpassando historicamente até os tempos atuais, através das leis e resoluções, levantamentos bibliográficos, este projeto
será realizado através de uma pesquisa Quali-Quanti de perfil hipotético dedutivo, com um questionário semiestruturado
em conjunto com uma Observação não - participante sendo um componente para se entender a conjuntura do objeto de
pesquisa sem qualquer envolvimento emocional e ideológico para que não se interfira na construção da pesquisa. Em
suprassumo a pesquisa se utilizará do método hipotético-dedutivo, onde as problematizações levantadas da pesquisa serão
testadas e respondidas com a realidade. Sendo estas uma das metodologias que serão utilizadas para realização desta
pesquisa.

Palavras-chave: transexualidade; viabilização de direitos; Atenção Básica; Sistema Único de Saúde.

INTRODUÇÃO
Quando o tema LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo e mais) se é abordado
na sociedade com debates sobre direitos sociais e culturais para a comunidade, a abordagem do
questão fica ainda mais controversa e polêmica, como as discussões do ser Homem ou Mulher na
conjuntura de uma sociedade contemporânea atual onde se cada vez mais o conservadorismo está
tendo um protagonismo ou seja o binarismo, tão bem apontado por Butler (2003):

A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa


especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificidade” do feminino é
mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da
constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto
constituem a “identidade” como tornam inequívoca a noção singular de identidade.[...](
BUTLER, 2003, p.22).

Quando explicita o tema LGBTQI+, a historicidade do movimento é muito rica e importante


que por muitas das vezes se é invisibilizadas pela sociedade e através de uma revisão da literatura
aprofunda-se mais sobre o tema , como o livro de Okita (2017) intitulado ‘Homossexualidade da

151
Assistente Social; Mestre em Serviço Social. Professor do curso de Serviço Social, pelo Centro Universitário
Redentor, campus Paraíba do Sul. E-mail: wpgerj@gmail.com
152
Graduanda do curso de Serviço Social, pelo Centro Universitário Redentor, campus Paraíba do Sul. E-mail:
nathalianogueiran90@gmail.com

241
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
opressão a liberdade’ traz de forma clara e sucinta a história desde dos tempos fundacionais até
conjuntura atual, desde movimentos de lutas importantes para comunidade do movimento mundial e
brasileira.
Nos últimos tempos através dos meios de comunicação midiáticos se ver tendo protagonismo
a comunidade transexuais e travestis, tanto pelas conquistas de lutas positivamente ou negativamente
como segundo a Ong Transgender Europe (TGEu), o Brasil é o país que mais se mata pessoas
transexuais e travestis no mundo. Este levantamento foi realizado em 72 países em torno do globo,
retirando países que não se contabiliza essas mortes e também informações sobre a etnias das vítimas
não se é levantada.
Este trabalho tem como objetivo principal esclarecer o processo de conquista do direito à
saúde da população transexual (com foco na mulheres trans) e travesti Busca-se responder a
inquietações levantadas ao longo da graduação em Serviço Social, através de disciplinas sobre gênero
e movimentos sociais, compreendendo como se dá a atenção a este público enquadrado com sujeitos
de direitos.

DESENVOLVIMENTO

MARCAS DA INVISIBILIDADE NA HISTÓRIA DO MOVIMENTO LGBTQI+


O ano do crescimento dos movimentos sociais no Brasil foi em 1977, onde os Universitários
de São Paulo gritavam pela Liberdade democrática, a classe trabalhadora voltava à cena política, o
movimento negro lutava contra o racismo e o LGBTQI+153 , dava os seus pequenos passos para
conseguir os seus direitos no país. Para falar sobre o movimento LGBTQI+ é preciso voltar a origem
e assim trazer e esclarecer a luta das pessoas transgêneros e travestis nos tempos atuais.
Numa sociedade patriarcal os preconceitos acerca da sexualidade e gênero vieram através dos
momentos históricos da sociedade desde a sociedade fundacional nos primeiros séculos antes de cristo
perpassando até patriarcal em seus primeiros passos a sociedade que temos hoje.

Atualmente, mesmo nos trabalhos históricos e antropológicos mais "objetivos", as


contribuições da mulher para o desenvolvimento humano são ignoradas. Acontece a mesma
coisa em relação aos homossexuais. Mesmo com todo o preconceito que se manifesta
nesses estudos, eles mostram claramente que a homossexualidade sempre foi parte

153
LGBTQI+ Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, queer, intersexual e mais
242
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
integrante da sexualidade humana, e que as sociedades fundacionais viam a sexualidade de
forma completamente diferente da visão atual.(OKITA, 1981, p. 23-24).

A sociedade fundacional no livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado de


Engels (2009) que foi lançada no período do século XIX, explicita como se baseava o funcionamento
da família naquele período e principalmente em relação a mulher pois ela tinha um papel igualitário
em conjunto com os homens e indícios de que a mulher foi precursora da linguagem, domesticação,
cultivo e construção de moradias.
Naquele período para Friedrich Engels a sociedade ficará conhecida como
matriarcal/fundacional não se pode se colocar o séculos ou período exato, pois não se explicita nos
livros ou pesquisas bibliográficas feitas mas ao que tudo indica foi entre os períodos entre os primeiros
séculos até o início do feudalismo no séc. V, citar esses acontecimentos anteriormente é de suma
importância pois a mulher tem o papel fundamental na história da sociedade e como este projeto será
voltado às mulheres trans e travesti se faz refletir no momento atual em até que ponto essas mulheres
são invisibilizadas pela sociedade.
A homossexualidade entre homens e mulheres e o travestismo no período fundacional era
comum, não existia esse a rejeição que acontece nos tempos atuais, para a sociedade
matriarcal/fundacional daquele período muitos eram considerados curandeiros ou bruxos, Hiro
(1981), deixa claro em seu livro que muitos antropólogos tratavam essas situações como fenômenos
e que isto era um reflexo de seus preconceitos acerca dos segmentos da comunidade LGBTQI+ que
são naturais na sociedade naquele período, pois no modelo matriarcal o homens e mulheres podiam
escolher os seus parceiros ou novos companheiros não se tinha a imposição da monogamia ou
heterossexualidade tanto que Engels cita em seu livro essa sociedade como promíscua.
A sociedade fundacional/matriarcal nas tribos indígenas e várias outras vertentes os
homossexuais e travestis eram de extrema importância para rituais religiosos, tudo começou a mudar
quando a sociedade começou a fazer o acúmulo da riqueza , como sistema de escravidão da sociedade
mesopotâmica e oriente médio da época , guerras que conquistaram nações em nome da religiões
contribuíram para começo de excluírem e invisibilizam a população LGBTQI+ dos momentos
históricos.
O matricialismo vai perdendo suas características com a produção e o acúmulo| da riqueza
material e o com desenvolvimento da propriedade privada, quando começa a exploração entre os
243
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que tinham a riqueza e os que não possuíam, com as mudanças na estrutura da sociedade também se
transforma as relações sexuais e a religiões.
O modelo matricial é substituída pelo patriarcado no século V,no primeiros passos do
feudalismo através da dominação do homem, pois com os interesses dos senhores de que a riqueza
passasse para próxima geração se foi condicionado a monogamia à mulher. Então todas formas de
manifestação da sexualidade foi deixada de fora dessa forma de modelo familiar e passou ser como
algo negativo a sociedade;

Pela primeira vez, sentimentos sexuais e emocionais começaram a ser influenciados pelo
controle social, e proibições sexuais rígidas foram construídas. Vergonha, culpa e medo
passaram a ser relacionados com o sexo e como forma de opressão para a manutenção da
ordem. O que era casual, espontâneo e natural começou a ser objeto de conflitos e, em última
instância, perseguição. Com a propriedade privada, o natural passou a ser não natural.
(OKITA, 1981, p. 33).

Para se dar continuidade da historicidade do movimento, precisar entender os conceitos


gênero, nesse texto em específico tem sentido naquilo que o indivíduo se identifica, pode ser
identificar como homem, mulher e entre outras identidades de gênero possíveis , pois se trata de uma
construção social e não biológica, vale ressaltar que na matriarcal os indivíduos não eram
categorizados pela sua orientação sexual pois a necessidade disso era nula e vai ser o oposto na era
patriarcal ao qual autora Judith Butler(2003) defende e kotlinski (2012) reafirma.

Gênero não é um conceito biológico, é um conceito mais subjetivo, podemos dizer que é uma
questão cultural, social. Gênero é um empreendimento realizado pela sociedade para
transformar o ser nascido com vagina ou pênis em mulher ou homem. Nesse sentido, gênero
é uma construção social, é preciso um investimento, a influência direta da família e da
sociedade para transformar um bebê em 'mulher' ou 'homem'. Essa construção é realizada,
reforçada, e também fiscalizada ao longo do tempo, principalmente, pelas instituições sociais,
são elas: a igreja, a família e a escola. (KOTLINSKI,2012; sp).

Dessa maneira a igreja foi de grande fator para atrair o preconceito e homofobia ao longo dos
séculos, considerada a evolução da religião patriarcal até o séc.XV. Na Grécia clássica existiam duas
cidades distintas Esparta e Atenas, enquanto os atenienses estavam seguindo o modo de vida do
modelo patriarcal, onde as expressões da sexualidade começaram a ser reprimidas , onde se tinha a
supremacia do homem hétero, a prostituição entre homens e mulheres sendo uma forma de ganho

244
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
monetária, em Esparta a sociedade era fundacional como explicado anteriormente com esse sistema
as funções igualitárias e não se tinha a repressão da sexualidade.
Apesar de Engels (2009) em alguns momentos condenar o modo de vida da sociedade
fundacional, ele também deixa explícito que a mudança e preconceitos de uma sociedade se começou
no tocante ao acúmulo de propriedade privada. Vale ressaltar que as duas cidades citadas se faziam
beneficiar da mão escrava e o acúmulo de riqueza.
Em Roma as expressões sexuais eram severamente reprimidas, pois nesse período o
cristianismo tinha um forte apoio da sociedade onde os imperadores colocaram na lei que qualquer
forma de expressão sexual fosse condenados da prisão a morte na fogueira, sendo o ano de 538, o
imperador Justino alterou a lei e colocou que se podia fazer torturas, mutilações entre outros meios
de torturas como forma de não receber o castigo divino. (OKITA,1981)
Na Europa Feudal a igreja tinha um papel mais econômico, o que se deu grandes rixas entre
a igreja católica e os senhores feudais então a autoridade papal se utilizava das denúncias de heresias
religiosa e prática de homossexualidade ou outros, para ser ter os bens a qual se interessasse. Essa
época ficou conhecido como ‘Santa inquisição’ que é explicitado por Hiro Okita (1981).
Vale ressaltar que as manifestações da sexualidade dentro dos clérigos também eram severas
que levava a pena de morte, o controle nos camponeses era forte então se começou o período de caça
às bruxas, pois muitos desse grupos considerados pagãos eram hostis à igreja católica que se
continuou a revolução industrial.
Foi através da transformações de países feudais em industrial que as perseguições as massas
consideradas não naturais foi diminuída, na revolução na França no século XVIII, que se teve uma
ruptura total com o passado, muitos países europeus seguiram os passo da França, menos Grã-
Bretanha, Alemanha, e os Estado Unidos sendo uma país norte-americano.
Hiro Okita (1981) também afirma, que a imposição de ser ter uma família com base na
reprodução naquele período foi de grande fator para repressão da homossexualidade e outras vertentes
da sexualidade até hoje. Mesmo com as leis bárbaras sendo extintas a família patriarcal ainda vive na
ditadura da heterossexualidade e tratando a expressão da sexualidade como não natural. Engels apesar
de ter certos pontos de vistas conservadores, traz explicitado que a diversidade sempre existiu e que
o acúmulo de riqueza e interesses geopolíticos foram de grande fator para os preconceitos que
vivemos no atual momento.

245
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para entender todo o contexto acerca nesse período do movimento, precisa-se compreender
que a igreja foi um dos grandes fatores para os preceitos acerca desse tema na atualidade, como citado
anteriormente neste capítulo no Brasil mas precisamente no período da colonização portuguesa a
perseguição aos homossexuais e tudo acerca da expressão da sexualidade e do gênero a favor da moral
e religiosidade sendo criminalizado como pecado infame de sodomia154 e punidos com a morte.
A igreja católica tinha um poder contra essa população no século XX, mas no momento atual
o cristianismo é um dos fatores para preconceito e repressão as expressões sexuais, como o atual
governo que se utiliza do patriarcado e religião para regressão dos direitos civis adquiridos por esta
população.
O movimento LGBTQI+, apesar de ser de grande influência para no período atual, a
invisibilidade no contexto contemporâneo veio por meio do regime ditatorial e pós ditadura, e nos
tempos atuais escassez de representatividade nos meios de participação Política. No debate para a
desnaturalização dos discursos excludentes e suas práticas se torna uma forma de estabilidade
hierárquica de repreensão a esta população, pois apesar das lutas constantes de para viabilização por
seus direitos ainda se ver o controle do conservadorismo na sociedade.
No Estados Unidos que se teve as primeiras agitações contra as repressões que eram tratadas
pelas autoridades, um dos mais conhecidos aconteceu no bar em Nova York conhecido Stonewall
Inn, em 1969.
Este acontecimento se deu pelos policiais forçaram a retirada dos fregueses do
estabelecimento em sua maioria eram travestis , transexuais e homossexuais de forma violenta que
revoltados pela forma que foram tratados prenderam os policiais no estabelecimento e incendiaram e
atiraram pedras e garrafas contra os policiais que tentavam sair do bar, os participantes desta revolta
organizaram o movimento denominado Frente da Liberdade Homossexual (OKITA,1981).
Na Alemanha as leis contra diversidade sexual e a repressão nazista contra o movimento que
durante um período estavam sendo exterminados pelo governo fascista e entre outros países. A partir
desse acontecimento que se deu início a várias manifestações ao redor do mundo incluindo na
Alemanha com a retirada do parágrafo 175, que tornava as expressões sexuais crimes e no período

154
Sodomia é um termo latina para pessoas que se relacionavam entre pessoas do mesmo sexo, tem sua origem no
livro gênesis do antigo testamento
246
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nazista possibilita o envio dessa população ao campos de concentração e o movimento homófilo na
Europa e na América do Norte que reunia cientista que debatia sobre esse tema.

A CONSOLIDAÇÃO DO MOVIMENTO LGBTQI+ NO BRASIL


A chegada do movimento no Brasil se deu através de muita luta contra repressão as expressões
sexuais ao redor do mundo e no país, em meios a tantos acontecimentos na historicidade ao redor do
globo no século XX, o movimento LGBTQI+ teve seu papel na composição do seu reconto.
No Brasil foi na década de 70, mais especificamente no ano de 1978, através das expressões
artísticas como o jornal ‘O lampião da Esquina’ que trouxe voz ao movimento e desafiava a censura
imposta pelo regime militar.
Se tratando da na área científica a luta era pela despatologização da diversidade sexual ou de
gênero como transtorno sexual do código 302.0 da Classificação Internacional de Doenças (CID) da
Organização Mundial da Saúde (OMS), vem o contexto do movimento da reforma sanitária no final
dos anos 70, veio da articulação desses trabalhadores para fazer denúncias de hospitais psiquiátricos
pelo tratamentos impostos por esse mesmo, umas desta população que foram afetadas foram da
comunidade LGBTQI+ que eram exposto a tratamento invasivos.
Vale ressaltar que os indivíduos internados em hospitais psiquiátricos eram de classe alta e os
de classe baixa eram repreendidos pela polícia e encaminhados ao sistema carcerário.

É no contexto de redemocratização do país que surge um movimento que deve ser


considerado ‘político’ porque, desde logo, interpela o Estado e suas principais instituições,
porque, desde o início, reivindica ‘direitos’. O ponto central era a defesa do direito de não
ser discriminado ou, dito de modo ligeiramente diferente, do direito de ser reconhecido e
respeitado em sua diferença. Nesse sentido, é muito significativo que as primeiras campanhas
do movimento visassem à ciência, à justiça e às políticas públicas ou governamentais.
Inicialmente, no caso dessas últimas, por meio da resistência contra a atuação repressiva das
forças policiais. [...] (CARRARA,2019, p. 452)’.

Nos anos 80 eclodiu a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) ou conhecida


popularmente como AIDS, nesse período o movimento se ver muito afetado tanto pela imprensa com
a síndrome intitulada Peste Gay ou Câncer Gay e pelo público em geral. Apesar das formas de
repreensão que a comunidade estava vivendo neste tempo, também foi um marco para o movimento
no tocante a parceria com estado deixando a luta de atuar só no social para o governamental.

247
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Através desta síndrome o movimento ficou ainda mais estigmatizado e considerados um dos
transmissores principais da Aids, então a luta passa a ser para reivindicação de política públicas
principalmente na área da saúde, que no anos 90 vem com Lei Orgânica de Saúde (LOS) que se baseia
seus princípios na Universalidade, integralidade e equidade, sem discriminações e preconceitos.

O cenário era de conquista de direitos básicos e proteção dos cidadãos, alavancados, também,
pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Ressurge então a discussão sobre cidadania, direitos sociais e democracia. Em 1988, com a
promulgação da Constituição Federal (CF) ², que definiu em seu artigo 196 o Sistema Único
de Saúde, universal, equânime e integral[...] (PRADO & SOUSA-2017, p.. 76-77).

Na linha tempo abaixo pode-se ver que movimento teve bastante participação no contexto de
redemocratização dos País, que muitas das vezes invisibilizada da história desde de 1930 a década de
1990.
Quadro 1 – Linha do tempo

Fonte: Elaboração própria dos autores.

A partir dos anos 80 e 90 que movimento começa a ser organizar de forma efetiva e fervorosa
na política e partidária dos movimentos esquerdista que foi de grande importância para fundação
do partido trabalhista (PT).

248
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A conjuntura de organização política do movimento se houve rupturas e assim retardamento
das implantações e debates políticas públicas e sociais para essa população e que se baseia em duas
fases a primeira onda onde o movimento rejeitava qualquer tipo de autoritarismo advindo do Estado
e Partido políticos e pregavam a autonomia e igualitariedade entre gêneros, antes da separação dentro
do movimento e a segunda onda do movimento com a liderança de Herbert Daniel e movimentos
como Triângulo rosa e o grupo Gay Bahia.

Como bem ressaltam historiadores e cientistas sociais que se ocuparam da questão no Brasil,
a emergência do movimento tampouco pode ser compreendida fora do contexto da luta contra
a ditadura e pela redemocratização do país. Como outros então chamados ‘movimentos de
minorias’, como o movimento negro e o movimento feminista, o movimento homossexual
brasileiro também se estrutura por meio do nem sempre fácil diálogo com as forças
democráticas e de esquerda (CARRARA, 2019, p.452).

Santos (2016) complementa afirmando a influência partidária sob o campo dos direitos desta
população.

[...] grupos LGBT organizados dentro das estruturas partidárias brasileiras aponta para a
crescente importância que os direitos LGBT têm ganhado na política institucional nos
últimos anos. Se nas décadas de 1980 e 1990 havia certo “monopólio” da representação
política de LGBT por partidos identificados como de esquerda, observa-se a pluralização da
representação, com grupos LGBT se organizando em partidos de posicionamentos políticos
mais ao centro e à direita do espectro ideológico (SANTOS, 2016; p.. 192).

Pode-se dizer os anos de 1980 a 2000, foi de grande importância para o movimento pois ao
mesmo tempo que eles lutam por políticas afirmativas na área da Saúde em plena epidemia de
HIV/AIDS, também estavam se afirmando no político trazendo a polarização partidária. Vale
ressaltar que apesar consolidação da comunidade nesses âmbitos através de congressos e conquista
importante a regularização do casamento homoafetivo, processo transexualizador do SUS e ainda se
a perseguição a essas populações, no âmbito governamental, trabalhista e muitas das vezes pessoal.
A partir dos anos 2000, se houve muitas conquistas para o movimento LGBT QI mais através
de sua atuação do Poder Legislativo para a implantação de políticas de direitos humanos e não mais
apenas na saúde, com a contribuição de agências internacionais para ONGs brasileiras na área de
direitos humanos.

249
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É nesse período que se formam as grandes redes nacionais que congregam dezenas de
organizações locais e de base, como: a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (ABGLT), Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA), Associação Brasileira de Lésbicas (ABL), Liga Brasileira de Lésbicas (LBL),
Rede Afro LGBT, entre outras, além do aumento da visibilidade na sociedade e na mídia
através das Paradas do Orgulho LGBT, outra característica marcante deste
período.(PEREIRA, 2016; p. 122)

Através da vitória Eleitoral do partido trabalhista (PT), se trouxe ainda mais aberturas e
conquistas para o movimento o Programa Brasil sem homofobia no ano de 2004, surgiram de
mercado, ampliação de grupos ativistas LGBTQI+ universitários, democratização do ensino superior
e a interlocução entre movimentos e estado por meio de conferências e conselhos de direitos.

POLÍTICA DE SAÚDE, REFORMA SANITÁRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS


Para se entender toda a conjuntura da dinâmica da saúde no âmbito público em relação a
transexualidade e travestismo tem que se entender o contexto histórico da política de Saúde, reforma
sanitária e movimentos sociais.
A lógica curativa era presente por muito tempo na Assistência médico previdenciária
prestadas pela caixa de pensões (CAP's) , esse mecanismo basicamente se consistia na contribuição
do através no desconto da folha de trabalhador na garantia da saúde coletiva que naquele período
tinha o foco no controle de endemias e entre outra doenças, conhecida como lei Elói Chaves criada
em 1923, o Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1933, que mais tarde viria ser sua
unificação com a Previdência Social.
Nos anos 50, como as ações de saúde eram centralizadas, as grandes corporações privadas
começam a ganhar força se fortalecendo com as regime militar a partir de 1964, então a política de
saúde era totalmente excludente e insuficiente, que reverberou através de pressões e manifestações
populares. (BRAVO, 2006)

No início da década de 1960, as classes dominantes, vinculadas ao aparato militar, ao capital


nacional e internacional associado e ao latifúndio agro-exportador, contando com o apoio de
setores da Igreja e de parcelas das classes médias, começaram a articulação de uma
alternativa golpista, capaz de pôr fim à breve experiência democrático-populista vivida pelo
Brasil a partir de 1945. Tal objetivo foi finalmente atingido em 1º de abril de 1964, com a
instalação de um regime no qual o Brasil passou a ser governado por militares.
Paulatinamente, o país foi lançado em um regime autoritário e discricionário,
configurando-se um “Estado de exceção” no qual os direitos civis e políticos foram
duramente restringidos. A Constituição de 1946 foi inicialmente mantida, muito embora
250
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
o governo federal, prescindindo da participação do Legislativo, tenha passado a editar Atos
Institucionais, cujos poderes ultrapassavam as normas constitucionais. Através destes Atos,
estabelecia-se o novo ordenamento jurídico-político do país.(SILVA, 2016; p. 76)

Através deste pequeno resgate histórico sobre a perspectiva geral da política da Saúde se pode
ver que com boom da epidemia da AIDS no Brasil no período entre final de 70 e início de 80, a saúde
vivia um colapso esta consequência trouxe forças ao movimentos em gerais para se unir para reforma
sanitária.

A ditadura militar com seu processo de modernização autoritária, adota uma estratégia de
aliança entre o governo, o capitalismo nacional e o internacional e, implementa uma política
de desenvolvimento econômico que exclui os trabalhadores. O chamado milagre brasileiro,
crescimento econômico com arrocho salarial e perda do poder aquisitivo do salário-mínimo,
enfatiza uma histórica concentração de renda, aumento das desigualdades sociais e também
o aumento da dívida externa do País. Na área da saúde, a configuração é de uma cisão entre
a saúde pública e individual, sendo o Ministério da Saúde, fragilizado financeiramente,
responsável pela promoção da saúde, prevenção de doenças, pelo enfrentamento das grandes
endemias e atendimento aos chamados indigentes, e o Ministério da Previdência, através do
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), responsável pela
atenção individual aos portadores de carteira de trabalho. Nesse período, a saúde transforma-
se em bem de consumo com o fomento à expansão do mercado de planos e seguros-saúde, e
correspondente deterioração dos serviços públicos. (SOUTO & OLIVEIRA, 2016, p.. 208)

Ressaltando que nos anos 80 os movimentos eram organizados por políticos -partidários,
sindicais e outras, também se vivia no contexto econômico uma grande crise, pois além deste fator o
país passava pela transição da volta da democracia na saúde, começou com uma nova atuação de
debates sociais para viabilização de direitos e projetos governamentais para o setor da saúde, onde se
deixou de ser algo técnico para se tratar de uma debate político beneficiando a sociedade em geral.
Considerado pelo economista como o ano perdido, mas de grande importância para social.
Em 1986, a VIII Conferência de Saúde, onde os debates para reformulação do Sistema de
Saúde com participação de várias entidades políticas e partidárias como o texto de Bravo (2006, p..
09) diz que “A questão da Saúde ultrapassou a análise setorial, referindo-se à sociedade como um
todo, propondo-se não somente o Sistema Único, mas a Reforma Sanitária”. É necessário observar
que com a constituição de 1988 veio os três tripés da seguridade Saúde, Assistência e Previdência
Social todas com as garantias da proteção social a responsabilidade passa a ser do Estado. (BRAVO
& MATOS, 2004)

251
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Enquanto nos anos 90 os movimentos foram organizados pelo pluriclassista, com o apoio da
camada média da população, onde os modelos de referência passa a ser enfatizado pela ética e moral.

Como aspectos de continuidade da política de saúde dos anos 90, ressalta-se no atual governo
a ênfase na focalização, na precarização, na terceirização dos recursos humanos, no
desfinanciamento e a falta de vontade política para viabilizar a concepção de Seguridade
Social, como já foi sinalizado. Como exemplos de focalização, podem ser destacados a
centralidade do programa saúde da família, sem alterá-lo significativamente para que o
mesmo se transforme em estratégia de reorganização da atenção básica em vez de ser um
programa de extensão de cobertura para as populações carentes. O programa precisa ter sua
direção modificada na perspectiva de prover atenção básica em saúde para toda a população
de acordo com os princípios da universalidade. Para garantir a integralidade, o mesmo precisa
ter como meta a reorganização do sistema como um todo, prevendo a articulação da atenção
básica com os demais níveis de assistência (BRAVO, 2006, p.. 18).

A cidadania vem desde muitos anos desde da colonização e nunca foi algo recente, pois
movimentos sociais existe no Brasil ao longos décadas, e que a única diferença nos tempos atuais é
que hoje podemos falar da cidadania ativamente, mesmo tendo vestígios de uma cultura de
patrimonialismo em conflitos sociais contemporâneos têm encontrados novas formas de se expressar
,que trata do surgimento dos conselhos como órgão mediador de povo-poder.
Os movimentos sociais foram de grande importância para a estrutura que temos nos tempos
atuais pois mesmo com os seu déficits .Nos anos 90 as lutas sociais tem grande espaços na mídia
eletrônica e imprensa com importância na sociedade nas lutas cívicas pela cidadania ,com lutas que
afetam a população como exemplo violência ,desmatamento de floresta, fome etc. , ou ainda nos
âmbitos políticos ,deixando a população indignada pela corrupção como o impeachment do presidente
Collor, no movimento ética política, que são organizadas por coletivos supra partidários ,ou por
personagens carismático no movimento pela cidadania e toda a comunidade LGBTQI+ na luta na
garantias de direitos.
A partir desta conjuntura que a discussão da transexualização começa dar seus passos nesse
debate no tocante a garantir os seus direitos no contexto nacional em 1997, pelo Conselho Federal de
Medicina os debates acerca da transexualidade começa ser debatida no âmbito da saúde mental, pois
ao contrário da despatologização do homossexualismo ter sido na década de 90, as transexualidade
só terá a sua despatologização no ano de 2018, considerada até então como transtorno de gênero ou
identidade de sexo. Arian et al (2009) no artigo ‘Transexualidade e Saúde Pública no Brasil’ traz
uma crítica psiquiátrica do Brasil pós Reforma sanitária:
252
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, por contrariar a coerência essencial entre sexo biológico e gênero, não se encaixando
em nenhum dos modelos propostos de identidade sexual em conformidade com as práticas
discursivas do século XIX, observamos que restou exclusivamente à transexualidade ocupar
o espaço que foi aberto pela psiquiatrização da homossexualidade: o de uma patologia da
identidade sexual.(ARIAN et al, 2009, p.. 1142-1143).

Nesse contexto a luta do movimento se perpassa por várias trajetória até o momento em que
o movimento chega no processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), que temos
atualmente e que esta discussão vai muito além da redesignação sexual e está ligado a toda uma
conjuntura social que vem se perpetuando há décadas.
Destas questões que se crescia críticas a esse modelo, com Ministério da Saúde incorporou
também essas críticas à saúde mental em conjunto com a elaboração de documentos e outros países
latino-americanos dado início a reformulação dos hospitais psiquiátricos como exemplo o manual de
assistência psiquiátrica. Vale ressaltar que houve uma grande crise na saúde mental neste período,
ainda mais com o pouco investimento e o abandono dessas categorias e a conjuntura da regularidade.
Foi através do surgimento do movimento de Trabalhadores de saúde mental, que se teve
informações sobre a regularidade da ala psiquiátrica, com isto foi de grande impulso para articulação
com outros movimentos principalmente com o da reforma sanitária que começou os debates para as
mudanças /articulação através de congressos e eventos, que se criou uma nova modalidade de
convênio Ministério da Previdência e assistência social e o Ministério da Saúde o sistema de cogestão
segundo Heidrich (2017).
Após várias conferências, ou congresso de Bauru foi marcante e fundante para categoria para
o surgimento de novas alternativas como o primeiro Centro de Atenção psicossocial Luiz de rocha
Cerqueira, intervenção na casa de saúde Anchieta em Santos mais tarde substituída pela criação do
núcleo de atenção psicossocial, mas o projeto de lei 3657/89, que se tem redirecionamento das
políticas de saúde mental mas mais que só é aprovada em 2001.
E isto nos traz uma reflexão acerca das conferências que foi de grande ajuda para a reforma
implantação de lei através dos texto Balanço da reforma psiquiátrica antimanicomial brasileira do
autor Heidrich (2017), percebe-se como a terceira conferência nacional de saúde mental com a
portaria 336/2002, para alimentando serviços de Saúde em três níveis de complexidade e suas

253
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
tipologias, foi com a VI conferência com a portaria 3888/2011 que temos o serviço de atenção
psicossocial que temos hoje.
Então percebe-se que as categorias de saúde mental precisam sempre estar articulação, ainda
mais agora com a conjuntura governamental que estamos vivemos de sucateamento da Saúde
principalmente como quando falamos de da categoria mental, como exemplo a falta de investimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No país desde de 2013, através do Ministério de Saúde, localiza-se a portaria nº 2.803, que
redefine e amplia o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) em conjunto com a
Política Nacional da Saúde Integral de LGBT (BRASIL, 2013), onde a população trans pode atingir
e seus aspecto físico do gênero que se identificam, por uma equipe interdisciplinar e multiprofissional
capacitada.
Ressaltar que nem sempre pessoas trans querem passar pela readequação do sexo do processo
transexualizador, mas que necessitam de acesso à saúde para se ter atendidas em suas prioridades
básicas como a hormonioterapia. Para Lionço (2009), o processo transexualizador no SUS como uma
conquista parcial, pois ainda falta a autoafirmação nas políticas públicas de saúde.
Na luta da comunidade LGBTQI+, trazemos a reflexão sobre em como a comunidade batalha
pelo seu respaldo na lei, para ser ter as devidas consequências para quem comete esses atos e onde se
garanta acesso a suas necessidades básicas para sua subsistência, sem os pensamentos de uma
sociedade que mesmo com o passar dos tempos continua obsoleto.

REFERÊNCIAS

ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transexualidade e saúde pública no Brasil.
Ciênc. saúde coletiva, 14(4), (2009). pp. 1141-1149. Disponível em
https://www.scielo.br/pdf/csc/v14n4/a15v14n4.pdf/ Acesso em: 15 jun 2020.

BRASIL. Portaria n. 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002.Recuperado em 5 julho, 2010, Disponível


em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html acesso em: maio
de 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.803. transexualizador, no âmbito do Sistema Único


de Saúde SUS. Diário oficial federativo do Brasil. Disponível em

254
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html. Acesso 23 mai 2019.

BRAVO, Maria Inês Souza, MATOS, Maurílio Castro de. Projeto ético-político do serviço social e
sua relação com a reforma sanitária: elementos para o debate. Serviço Social e Saúde: formação e
trabalho profissional 4 (2006): 197-217.

BRAVO, Maria Inês Souza. Política de saúde no Brasil. Serviço Social e Saúde: formação e trabalho
profissional 3 (2006): 1-24.

BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

CANABARRO, Ronaldo. História e direitos sexuais no Brasil: O movimento LGBT e a discussão


sobre cidadania. Congresso Internacional de História Regional. Vol. 2. 2013.

CARRARA, Sérgio Luis. O movimento LGBTI no Brasil, reflexões prospectivas. Revista


Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde 13.3 (2019).

DUARTE, Marco José de Oliveira; FERREIRA, Larissa de Castro Marção; COELHO, Millainy de
Oliveira. Diversidade Sexual e de Gênero na Saúde Mental: aproximações e experiências no
campo da pesquisa. Rebeh-Revista Brasileira de Estudos da Homocultura 2.01 (2019): 83-102.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Clube de Autores,


2009.

HEIDRICH, A. V. Balanço da reforma psiquiátrica antimanicomial brasileira. In: DUARTE, M. J.


et. al. (Org.). Serviço Social, Saúde Mental e Drogas. Campinas: Papel Social, 2017

JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília,
2012

KOTLINSKI, Kelly. Diversidade Sexual: Uma breve introdução. Fórum de Entidades Nacionais de
Direitos Humanos (2012). Disponível em
http://www.mp.o.mp.br/portalweb/hp/41/docs/diversidade_sexual-artigo_-_diversidade_sexual_-
_artigos_e_teses.pdf. Acesso em 21 jun 2020.

LIONÇO, Tatiana. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador


do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis: Revista de Saúde Coletiva 19.1 (2009): 43-63.

OKITA, Hiro. Homossexualidade, da opressão a libertação. Proposta Editorial, 1981.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Turismo Pós-moderno: o segmento LGBT no Brasil. Revista


Turismo: estudos e práticas 5.1 (2016).

255
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PEREIRA, Cleyton Feitosa. Direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais em Pernambuco: o caso do Centro Estadual de Combate à Homofobia. MS thesis.
Universidade Federal de Pernambuco, 2016 :122 - 123.

PRADO, Elizabeth Alves de Jesus; SOUSA, Maria Fátima de. Políticas Públicas e a saúde da
população LGBT: uma revisão integrativa. Tempus Actas de Saúde Coletiva 11.1 (2017): 69-80.

SANTOS, Gustavo Gomes da Costa. Movimento LGBT e partidos políticos no Brasil. Revista
Contemporânea v. 6, n. 1, p. 179-212 Jan.–Jun. 2016

SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. O desgaste e a recuperação dos corpos para o capital:
acidentes de trabalho, prevencionismo e reabilitação profissional durante a ditadura militar brasileira
(1964-1985). (2016). Tese (Doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de
Pós-graduação em História, Recife, 2016. 423 f.

SOUTO, Lúcia Regina Florentino; OLIVEIRA, Maria Helena Barros de. Movimento da Reforma
Sanitária Brasileira: um projeto civilizatório de globalização alternativa e construção de um
pensamento pós-abissal. Saúde em Debate 40 (2016): 204-218.

TGEU – Transgender Europe. Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring Project reveals 226
killings of trans people in the last 12 months. (2018). Disponvel em: https://tgeu.org/transgender-
europe-tdor-press-release-october-30-2014/. Acesso em 23 mai 2019.

256
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SER MÃE/MULHER EM FAMÍLIAS MONOPARENTAIS: UMA
DISCUSSÃO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO

Jessyka Lopes Rickli155

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar um projeto de pesquisa, que está sendo desenvolvimento, em fase inicial,
no programa de Pós-Graduação stricto sensu Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário - UNICENTRO. A
pesquisa pretende compreender acerca do ser mulher/mãe em famílias monoparentais, diante das perspectivas de classe,
raça e gênero. Nessa pesquisa objetiva realizar uma panorama demográfico das famílias monoparentais femininas no
Brasil, como também voltar-se a âmbito local, e pensar a subjetividade dessas mulheres em uma cidade do interior do
Paraná. Além disso, pretende-se abordar o abandono paterno e seus atravessamentos na constituições das famílias
monoparentais femininas. O método a ser utilizado para realização da pesquisa, será qualiquantitativa, com instrumentos
de coleta de dados oficiais e entrevistas semi-estruturadas.. Para que seja possível compreender as particularidades, e
desafios vivenciados por essas mães em uma famílias monoparentais, é imprescindível pensar os diversos
atravessamentos sociais vivenciados por essas mulheres segundo várias intersecções. E desse forma poderemos utilizar o
conhecimento científico para uma mudança social.

Palavras-chave: Gênero; Maternidade; Famílias monoparentais.

INTRODUÇÃO
Esse projeto de pesquisa apresenta como proposta compreender acerca do ser mulher/mãe em
famílias monoparentais, diante da perspectiva de classe, raça e gênero.
Para que seja possível compreender as particularidades, impasses e desafios vivenciados por
essa mãe em uma família monoparental, é imprescindível entender o papel da mulher na sociedade,
dando ênfase ao seu lugar de mãe que em diversos momentos mostra-se ambivalente, pois
proporciona sentimentos de prazer e bem-estar, como também uma pressão causada pelas exigências
sociais que este lugar a reserva.
A maternidade é uma discussão que vem sendo realizada em diversos espaços, historicamente
esse papel de mãe foi desenhado e moldado para ser desempenhado pela mulher, um indivíduo que
não precisaria estar atenta as relações sociais, a políticas, o trabalho remunerado, as guerras, o
desenvolvimento global, por fim, as relações que ocorrem no espaço público, sendo assim, sua função
se restringia ao cuidado com a casa e com os filhos.
É a partir dessas constatações que se faz necessário pensar essas estruturas sociais sobre as
perspectivas de gênero, de acordo com Scott, gênero precisa ser pensado enquanto uma categoria de

155
Mestranda do programa de Pós-Graduação stricto sensu Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário –
UNICENTRO. Especializa em Gestão Pública com Ênfase no sistema Único de Assistência Social – UEPG. Membra
Centro Interdisciplinar de Estudos de Gênero (Cieg) – Unicentro. Psicóloga efetiva, lotada no CRAS.
jessykarickli@hotmail.com
257
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
análise, é preciso entender a sociedade diante dessas relações “gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira
de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p.21).
As relações de poder estabelecidas em nossas sociedades são todas embasadas de acordo com
as relações de gênero, elas que fundamentam nossa política, as relações sociais que estabelecemos,
definindo quais os papeis que cada sujeito deve desempenhar.
Partindo desses apontamentos, pretendemos compreender quais os diversos desafios e
impasses vivenciados por essa mulher/mãe em uma família monoparental, experiências essas, que
possivelmente não sejam vivenciados por homens, sendo isso assim, torna- se importante
compreender essa problemática, a partir das perspectivas de gênero desse sujeito mulher, mãe,
responsável pelo lar, em nossa sociedade contemporânea.
Diante dos diversos arranjos familiares presentes na sociedade contemporânea, as definições
de paternidade também vem se modificando, assumindo diversas nuances com o passar dos anos.
Dentre esses diversos arranjos, as famílias monoparentais vem se destacando pelo crescente aumento
com o passar dos anos.
Nas especificidades das famílias monoparentais, encontramos um número expressivo
provenientes de grupos populares, sendo chefiadas por mulheres, onde desempenham diversas
funções, como provedoras, organização do dia-a-dia, educação dos filhos, dentre outras. Quando o
pai não cumpre seu papel social com esses filhos, a mulher/mãe tem de assumir sozinha toda
responsabilidade pela família.(CÚNICO; ARPINI, 2016)
Portanto, é preciso nessa pesquisa, pensamos sobre esse pai, esse homem que tem o poder de
“escolher” desempenhar essa função paterna, e as consequências familiares dessa recusa.
Para que posamos ampliar nosso olhar para essas mulheres, iremos pensa-la diante dos
atravessamentos de classe e raça.
Buther realiza em sua obra, uma crítica a universalização da categoria mulher, de acordo com
ela, “se alguém é uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é”(p.21),(BUTLER;
AGUIAR, 2003) sendo assim, o gênero irá transcender esse indivíduo, e teremos as diversas
intersecções, pois o gênero não é constituído de maneira única, irá depender de diferentes
modalidades, como raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidade, sendo
construído pelo discurso.

258
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Portanto, percebemos a impossibilidade de pensar gênero, sem seu atravessamento pelas
interseções políticas e culturais.
Utilizaremos nessa pesquisa, bancos de dados como, IBGE, IPEA, Cadastro Único, dentre
outros que poderão ser acrescentados com o desenvolvimento da pesquisa, esse levantamento de
dados objetiva gerar um perfil sobre quem são essas mulheres em nossa sociedade hoje, e quais
políticas públicas são necessárias para o atendimento dessa demanda.
Sabe-se que as famílias monoparentais femininas sempre estiveram presentes na sociedade,
sempre existiu mulheres que exerciam os cuidados pelos seus filhos sozinhas, mas esses números
continuam crescendo, sendo esse é um dos fatores de relevância social desse trabalho, visto que se
trata de um tema contemporâneo, e de extrema importância. Os dados do IBGE nos mostram que o
número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres aumentou de 15,3% (2000) para 16,2%
(2010) com relação a todas as famílias brasileiras, sendo que a proporção entre famílias chefiadas por
mulheres sem cônjuge e chefiadas por homens sem cônjuge é de 87,4%, ou seja, de todas as famílias
monoparentais existentes no Brasil, apenas 12,6% é chefiada por homens.
Com isso, nota-se a importância desse trabalho para sociedade, para comunidade em que essas
mulheres residem e para o espaço acadêmico, pois trata de uma problemática contemporânea,
crescente e desafiadora.

METODOLOGIA
Escolheu-se para a abordagem da pesquisa o pressuposto quali- quantitativa, acompanhado de
pesquisa bibliográfica, de caráter exploratório.
A modalidade quali-quantitativa “interpreta as informações quantitativas por meio de
símbolos numéricos e os dados qualitativos mediante a observação, a interação participativa e a
interpretação do discurso dos sujeitos (semântica)”(KNECHTEL, 2014)
Primeiramente será realizado um panorama da evolução das famílias monoparentais em
território brasileiro, realizando coleta em bancos de dados oficiais, como IBGE, IPEA, Cadastro
Único, dentre outros que poderão ser utilizados no decorrer da pesquisa.
Mas ao retornar ao âmbito local, e pensar as subjetividades vivenciadas, teremos como
participantes dessa pesquisa, mães, responsáveis familiares, em estruturas monoparentais,
incluídas no cadastro único, de município do interior do Paraná– PR. Em um breve levantamento

259
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de dados, constatou-se que das 2323 famílias inscritas no cadastro único desse município, 677
famílias cadastradas são mulheres sem cônjuge com filhos.
Além dos apontamentos realizados, torna-se importante localizar público alvo dessa pesquisa,
são mulheres, que estão inclusas no cadastro único, sendo elas referenciadas ao CRAS – Centro de
Referência da Assistência Social, o CRAS é um equipamento do SUAS – Sistema Único de
Assistência Social, e tem enquanto uma de suas diretrizes da territorialidade, sendo assim, a família
será atendida e trabalhada dentro de sua comunidade, dos seus laços sociais e de seu sentimento de
pertencimento.
Pretende-se também nessa pesquisa, realizar um levantamento em qual comunidade do
município existem mais famílias monoparentais, e quais as relações sociais que estabelecem.
Além disso, serão realizadas entrevistas semiestruturadas com algumas mulheres que serão
escolhidas de acordo com as intersecções de gênero, classe e raça.

A entrevista semi-estruturada é uma técnica de coleta de dados que supõe uma conversação
continuada entre informante e pesquisador e que deve ser dirigida por este de acordo com
seus objetivos. Desse modo, da vida do informante só interessa aquilo que vem se inserir
diretamente no domínio da pesquisa. A autora considera que, por essa razão, existe uma
distinção nítida entre narrador e pesquisador, pois ambos se envolvem na situação de
entrevista movida por interesses diferentes (DUARTE, 2002, p.9).

Após a realização das entrevistas, serão obtidos vários dados, que precisam ser ordenados e
organizados, sendo possível assim uma interpretação. Para que esses dados sejam analisados, será
necessário um processo de tabulação e classificação.(RUDIO, 1986)
Tabulação é o processo, onde se apresentará os dados das categorias, “permitindo sintetizar
os dados de observação, de maneira a serem compreendidos e interpretados rapidamente e ensejando
apreender-se com um só olhar as particularidades e relações dos mesmos” (p. 125) (RUDIO, 1986)
Objetiva-se realizar uma pesquisa com base bibliográfica, acerca da construção histórica da
maternidade, seus impactos na sociedade contemporânea, enfatizado as estruturas famílias
monoparentais, sendo essa discussão embasada na interseccionalidade.

DESENVOLVIMENTO
DA FAMÍLIA PATRIARCAL PARA AS FAMÍLIAS MONOPARENTAIS

260
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para que possamos discutir acerca das famílias monoparentais, primeiramente é necessário
realizar uma contextualização história do papel social desempenhado pela instituição familiar e os
objetivos por traz de sua importância na sociedade.
A família é definida como um conjunto de pessoas ligadas entre si pelo casamento e a filiação,
ou ainda pela sucessão dos indivíduos descendendo uns aos outros (ROUDINESCO, 2003).
As estruturas familiares tiveram três grandes períodos na evolução da história, a primeira era
definida como “tradicional” tinha como objetivo principal a transmissão do patrimônio, os
casamentos eram arranjados, e tinham como lógica uma ordem do mundo imutável, submetidos a
uma ordem patriarcal (ROUDINESCO, 2003).
A segunda fase, a família é nomeada como “moderna”, sendo constituída sobre a lógica
afetiva, esse modelo inicia-se no início do século XVIII até meados do século XX, fundada no amor
romântico, nos desejos carnais, mas ainda valoriza a divisão do trabalho entre os sexos, os homens
responsáveis por prover a família e a as mulheres pelos cuidados com a casa e com os filhos
(ROUDINESCO, 2003).
É também, junto com a família dita como moderna, no XVIII, que a maternidade como destino
biológico e social é destinada para as mulheres e seus impactos são presentes até os dias atuais, nessa
pesquisa a discussão sobre esse processo histórico é fundamental (LAQUEUR, 2011).
Laqueur em seu livro a “Invenção do sexo”, apresenta contribuições importantes sobre a
distinção dos sexos e a definição da maternidade como determinação biológica da mulher
(LAQUEUR, 2001).
De acordo com o autor supracitado, o determinismo biológico que será imposto para mulher,
foi articulado pela sociedade da época, que tinha por objetivo destinar as mulheres, a maternidade,
sendo essa função limitada ao espaço privado e longe das esferas públicas.
Outra autora que irá realizar essa discussão sobre como a maternidade foi historicamente
construída é Badinter, de acordo com ela, “O amor materno é apenas um sentimento humano. E como
todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito”(BADINTER, 1985) (p. 21). Sendo assim, a
maternidade não deve ser vista como algo inato, que faz parte da natureza da mulher, mas como um
fenômeno construído historicamente.
A discussão sobre maternidade irá permear toda pesquisa, pois torna-se imprescindível
compreender o lugar da maternidade nas famílias monoparentais.

261
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É apenas no século XX, em meados dos anos 60, que se impõe a família dita contemporânea
ou pós-moderna, “que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações
intimas ou realização sexual. A transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais
problemática, à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam”
(ROUDINESCO, 2003, P.19).
“A família contemporânea é uma instituição democrática, horizontal, no qual o poder está
descentralizado e repartido entre seus membros” (WEISSMANN, 2015, p.149).
Em 1975, Andrée Michel, socióloga, feminista, introduziu na França a expressão “família
monoparental”, que serviu para designar, sem estigmatizar, um novo modelo familiar, acompanhada
do termo “mãe solteira”. A família monoparental pode ser entendida como aquela em que o poder é
exercido pela mulher-mãe, sendo a única figura de autoridade (WEISSMANN, 2015).
O conceito de família monoparental trazida pelos movimentos feministas, possibilitou maior
liberdade as mulheres, fazendo um caminho ao contrário, ao da dominação masculina
(WEISSMANN, 2015).
É importante pensar que as famílias monoparentais são instituídas por diferentes motivos,
como; viuvez do cônjuge, escolha pessoal, várias uniões da qual se conceberam os filhos
(WEISSMANN, 2015).
As mudanças das configurações familiares que ocorrem nos anos 60 na Europa, fruto de
diversos movimentos sociais, como os movimentos feministas e contracultura, impulsionaram
principalmente a evolução nos papeis desempenhados pelas mulheres, promovendo sua emancipação
e a luta pelos seus direitos (AREND, 2013).
No Brasil as novas configurações familiares só iram ganhar força nos anos 80, junto aos
movimentos de redemocratização, os movimentos estudantis e feministas, é apenas na Constituição
Federal de 1988, que as famílias monoparentais são entendidas como configuração familiar perante
a lei (AREND, 2013).
Na Constituição Federal de 1988, a família monoparental é vista como direito, apresentando
sua definição como; “Entende-se como entidade familiar a comunidade formada por qualquer um dos
pais e seus descendentes” (BRASIL, 1988).
Sendo assim, as definições de família foram transformando-se com o passar dos tempos,
devido as diversas tecnologias, e as mudanças da sociedade, as estruturas familiares também se

262
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
modificaram, tendo como resultado diferentes papeis e padrões familiares, tendo como base a
solidariedade, ajuda mútua e laços afetivos (ACOSTA,; VITALE, 2008)
As mulheres/mãe que são as responsáveis pelo lar, em uma família monoparental, estão
presentes nas comunidades, elas fazem parte do espaço social, onde vivenciam e compartilham suas
experiências.
A maioria das relações sociais participa em parte da comunidade e em parte da sociedade,
essas mulheres/mãe estão fazendo parte das comunidades, dos locais, das regiões e da
sociedade.(PERUZZO; VOLPATO, 2009)
Diante dos dados crescentes de famílias monoparentais, podemos perceber o aumento desse
fenômeno em âmbito global, cresce também os novos arranjos familiares, as mudanças no papel da
mulher na sociedade contemporânea, mas essa pesquisa irá dar enfoque principalmente nessas
famílias enquanto um processo comunitário, no protagonismo da mulher em suas relações familiares,
nas redes de apoio que podem estar presentes nos locais próximos, nas políticas públicas locais
necessárias para pensar esse público.
De acordo com os dados do IBGE, as famílias mais pobres são chefiadas por mulheres, com
essa pesquisa será possível ouvir o protagonismo dessas mulheres que são as únicas responsáveis
pelos cuidados de seus filhos.
No artigo “famílias enrendadas”, Cynthia Sarti, a autora realiza uma análise sobre as
mudanças que ocorreram no decorrer do tempo no papel das famílias, enfatizando as famílias podres,
Sarti, descreve as famílias podres como redes, essas famílias tendem a passar das diversas mudanças
em suas estruturas criando diversas ramificações de parentesco, com isso, ocasionado diversas redes,
que podem não ser apenas vinculadas aos laços sanguíneos, mas também sociais.(ACOSTA,;
VITALE, 2008)
Apesar da evolução das definições de famílias, as mulheres no lugar de chefes familiares
podem vivenciar diversas vulnerabilidade, sendo elas atravessas pelas diferentes posições sociais e
culturais, como as intersecções de classe e raça.

QUAL O LUGAR DO PAI?


Anterior a década de 70, o homem, na maioria das vezes, assumia um lugar de
centralidade na família, tendo como principal função a de provedor da esposa e dos filhos.

263
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Atualmente, sabe-se que o homem não é mais o único provedor da família. E com o aumento crescente
das famílias monoparentais, percebemos que muitas vezes, é a mulher a única provedora do lar, apesar
do fato de que nas famílias populares, elas já exerciam essa função (CÚNICO; ARPINI, 2016).
Apesar da existência de modificações na função paterna, nota-se ainda uma prevalência no
modelo tradicional, onde o homem deve prover materialmente a família. Um exemplo de tal
comportamento, é como no momento da separação, quando o homem afasta-se do convívio com os
filhos, e restringe-se apenas ao pagamento de pensões (CÚNICO; ARPINI, 2016).
Outro exemplo refere-se as famílias das camadas populares, quando o homem não possuiu
condição de arcar financeiramente com as despesas familiares, o mesmo afasta-se do convívio, muitas
vezes negando tal paternidade (FONSECA, 2004),
Em sua pesquisa Fonseca, traz a reflexão sobre paternidade, e o lugar dos testes de DNA
nessa problemática, direcionando para o campo médico e jurídico, uma função que a mesma considera
social.
Os estudos sobre masculinidade, tendem a ressaltam a esse a público uma sexualidade não
produtiva, direcionando qualquer discussão sobre reprodução predominantemente para o sexo
feminino. Fonseca destaca, que as discussões sobre saúde reprodutiva masculina e paternidade, tem
auxiliado na modificação desse cenário (FONSECA, 2004).
A autora realiza uma análise embasada nas discussões sobre paternidade, de acordo com ela:

“[...] o homem sente uma forte dose de ambivalência quanto ao seu lugar na família que
pretende constituir. Muitos, sem emprego fixo e sem dinheiro para cumprir seu papel de
provedor, não conseguem realizar a contento o modelo de pai/marido ‘antigo’. Outros,
mesmo tendo renda suficiente para cumprir com o dever financeiro, não sabem lidar com os
modelos ‘novos’ de comportamento – do casal igualitário e da mulher independente. A
ambivalência que o homem sente em relação à paternidade faria parte de um quadro geral da
chamada ‘crise de masculinidade” (FONSECA, 2004, p.17).

Outra leitura que corrobora com essa discussão sobre a paternidade é de Lyra e Medrado. De
acordo com os autores, mesmo com as evolução nas funções das mulheres, como conquista de
direitos, autonomia sexual e reprodutiva, ainda é presente a divisão social, onde as mulheres são
destinadas a criação e educação dos filhos, e os homens responsáveis por prover o lar (LYRA;
MEDRADO, 2000).

264
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As autoras discutem sobre a legitimação da ausência paterna, tendo como base a invisibilidade
da paternidade nos levantamentos estatísticos.(LYRA; MEDRADO, 2000).
Sendo assim, essa pesquisa tem como um dos seus objetivos compreender acerca da função
paterna, e como sua ausência impacta as relações familiares, principalmente no que diz respeito a
papel desempenhado pela mulher.

GÊNERO, CLASSE E RAÇA


Como discutido acima, para pensar as famílias monoparentais é imprescindível, a discussão
diante da perspectiva de gênero, pois essa é uma vivência exclusivamente feminina, percebe-se isso
nos dados estatístico, onde a grande maioria absoluta das famílias monoparentais é feminina.
Uma das autoras de grande importância sobre a discussão de gênero é Scott, a palavra gênero
como mais ou menos conhecemos foi utilizado pelas feministas americanas com a intenção de
enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo (SCOTT, 1989).
Os objetivos do emprego da terminologia gênero se dá também da necessidade de analisar os
fatos históricos por essa premissa, mas não apenas como uma metodologia de olhar a história das
mulheres, mais sim como olhar a história como um todo. Diante dessa afirmação de Scott, de que
gênero não deve ser apenas uma terminologia para se referir a relação entre os sexos, ela precisa ir
mais a fundo, precisa-se analisar a sociedade segundo as relações gênero, com isso, percebemos como
história da humanidade é marcada por uma dominação de gênero e poder (SCOTT, 1989).
Mas somente no início do século XX, que gênero começa a ter seu conceito ampliado, tento
como intenção perceber a sociedade a partir dessa perspectiva. A essência do conceito de Scott sobre
gênero segue a seguinte definição “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações
de poder” (SCOTT, 1989, p.21).
Sendo assim, para que possamos refletir sobre como essas relações de poder são sentidas e
vivências pelas mulheres, é preciso enfatizar que isso irá depender de diferentes contextos. De acordo
com Buther, é preciso realizar uma crítica ao imperialismo cultural – ao eurocentrismo, e as categorias
universais. E será essa universalidade, que no primeiro momento restringia-se apenas os homens, com
a inexistência da categoria mulheres, mas que posteriormente o termo “mulheres” será lido
também enquanto uma categoria universal (BUTLER, 1998).

265
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nesse período histórico em que vivemos, as mulheres começaram a serem vistas como
sujeitos, podendo ser constituídas conforme suas relações sociais, tal visibilidade é fruto de muitas
lutas de movimentos feministas, essas lutas trouxeram direitos e conquistas, como o mercado de
trabalho, o voto, os métodos contraceptivos, esses direitos não eliminaram as desigualdades, porém
foram importantes conquistas para diminuir a desigualdade entre homens e mulheres.
Mas como apontado acima, a categoria universal de mulheres foi fragmentando-se, diante suas
particularidades, as mulheres negras, as mães, as indígenas, as mulheres pobres, as trans, dentre tantas
outras singularidades.
Mesmo diante dessas fragmentações, não devemos deixar de utilizar o termo mulher, ou
anunciar a morte da categoria,

“Ao contrário, se o feminismo pressupõe que “mulheres” designa um campo de diferenças


indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade
descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e re-significação”
(BUTLER, 1998, p.25).

Sendo assim, utilizando-se dessa perspectiva de pensar as relações de gênero fora da visão
universal e eurocêntrica, que as teorias feministas negras tomam um lugar de relevância
epistemológica e social.
A discussão das interseções de raça, se dão, quando vivermos em um país com mais da metade
da população negra, onde uma parte significativa das mulheres das camadas populares são negras,
como também as vivências das mães negras que cuidam de seus filhos sozinhos em uma sociedade
racista e patriarcal.
De acordo com Ribeiro (2009), a mulher não é pensada a partir de si, mas em comparação
com ao homem. Para dar luz essa problemática, a autora utiliza da filósofa francesa Simone de
Beavouir. De acordo com Beavouir, a forma de relação que os homens estabelecem com as mulheres,
parte da premissa de submissão e dominação, a percebendo enquanto um objeto, sendo a mulher
definida a partir do olhar do homem.
Diante dessa proposta, que Beavouir cria o conceito de Outro, uma dualidade, onde para
definir um é preciso colocar o outro. Sendo assim, a mulher foi entendida como o outro, pois é vista
como objeto na interação que possuiu uma função (RIBEIRO, 2019).

266
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mas de acordo com uma pensadora negra, Grada Kilomba, essa discussão deve ser mais
complexa, essa definição da mulher enquanto outra em relação aos homens, e mesmo na sociedade,
não contempla a mulher negra, sendo assim, para ela, a mulher negra seria o Outro do Outro
(RIBEIRO, 2019).

Kilomba sofistica a percepção sobre a categoria do outro, quando afirma que mulheres
negras, por não serem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito difícil na sociedade
suprematista branca, uma espécie de carência dupla, uma antítese de branquitude de
masculinidade. Mulher negras, nessa perspectiva, não são nem brancas e nem homens e
exerciam a função de Outro do outro (RIBEIRO, 2019, p.38).

Portanto, o lugar de subalternidade da mulher negra torna-se muito mais difícil e complexo
de ser ultrapassado.
Além de localizar a mulher negra nessa pesquisa, torna-se importante também apresentar o
conceito de interseccionalidade, é “demarcado pelo paradigma teórico e metodológico da tradição
feminista negra” (AKOTIRENE, 2019 p. 40). De acordo com a autora a mulher negra é o coração
desse conceito.
Segundo a autora, tomando emprestado as discussões de Sojouner Truth, torna-se
imprescindível articular “discursivamente as estruturas do racismo, capitalismo, cisheteropatriarcado
e etarismo, marcando a sensibilidade analítica da interseccionalidade à compreensão das experiencias
atribuídas as mulheres negras” (AKOTIRENE, 2019, p.19).
Será partindo do conceito de interseccionalidade, que poderemos discutir criticamente, as
diversas identidades subalternas impostas a preconceitos, as opressões de gênero, de classe e raça,
tendo como origem a ordem colonial.(AKOTIRENE, 2019)
É diante dessa lógica que as teorias decoloniais fazem-se importante, pois estaremos
enfatizando nessa pesquisa as mulheres brasileiras, as relações de classe e raça que são atravessadores
nessa categoria, com isso, é preciso estudar essas mulheres a partir de suas relações sociais, suas
vivências subjetivas, seu meio âmbito local.
Os estudos decoloniais pretendem compreender a continuação da colonialidade no mundo,
abrangendo os aspectos pessoais, políticos, as relações de gênero, raça, sexualidade e localização
geográfica, objetivando novas formas de pensamento não fundados na dicotomia e

267
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
hierarquização, possibilitando superar a colonialidade das relações constituídas (JARDIM; CAVAS,
2017).
Uma autora que irá trabalhar a teoria decolonial, sobre a perceptiva de gênero é Maria
Lugones, que tem contribuições importantes sobre nossa temática. O estudo decolonial nos dão base
para que saibamos de onde estamos partimos.
Além do atravessamento das discussões de gênero, pensar a subjetividade dessa mulher/mãe,
tornar-se necessário.
Subjetividade, deriva do termo subjetivo, que tem por significado aquilo que pertence à
consciência individual, como também o pensamento humano, subjetividade está ligada a constituição
do sujeito e sua formação da identidade, social e individual(AITA MARILDA GONÇALVES DIAS.;
FACCI, 2011)
Subjetividade pode ser entendida como “dimensão complexa, sistêmica, dialógica e dialética,
definida como espaço ontológico” (p.75)(GONÇALVES, 2004), as relações subjetivas individuas
movem as estruturas da sociedade, provocando um movimento continuo nas redes de relação que são
fundantes no desenvolvimento social.(GONÇALVES, 2004)
Portanto, essa pesquisa se fundamenta nessas definições, pois a subjetividade das
mulheres/mães, que definem sua identidade e sua consciência individual, também promove um
movimento no meio social, tendo impacto nas estruturas da sociedade.
Pretende-se nessa pesquisa realizar um panorama macro, identificando o perfil das
mulheres/mães em famílias monoparentais, como também retornar a ambiento local, e analisar a
subjetividade dessas mulheres, com isso, possibilitando que elas sejam ouvidas, mostrando seu
protagonismo, suas vivências, desafios e contribuições.
Surge dessa forma diversos questionamentos que ainda serão respondidos com o
desenvolvimento dessa pesquisa, dentre eles, quais relações sociais a família monoparental estabelece
dentro de sua comunidade, como desenvolvem seu protagonismo, seus vínculos e suas redes de
apoio?.
Além disso, essa pesquisa pretende responder sobre o perfil dessa mulher/mãe a nível macro
social, pensando em politicas públicas necessária para esse público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

268
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sendo assim, essa pesquisa pretende compreender sobre o ser mãe/mulher em famílias
monoparentais, em uma perspectiva que inclua as intersecções de gênero, classe e raça.
Uma das principais funções para esse trabalho, poderá ser uma forma de tornar visível uma
população que predominantemente tem sido invisibilizada, quando partido de uma discussão a nível
macro e retornamos para nível micro, poderemos visualizar as diversas vivências dessas mulheres,
como também enfatizar suas relações comunitárias, e qual o valor empregado nessa relação.
Além disso, esse trabalho, com apoio de várias autoras, pretende destacar a diversidade e as
diferentes mulheres que desempenham esse papel, rompendo com uma perspectiva eurocêntrica e
universal das mulheres. A pesquisa tem como uma de suas bases centrais, o papel da comunidade na
existência dessas mulheres, e não seria possível analisar e discutir tais experiencias sem romper com
as bases patriarcais, eurocêntricas e capitalistas.
Durante os levantamentos bibliográficos para realização desse projeto, percebeu-se a escassez
de materiais que abordasse as relações paterna, ou a ausência paterna nas famílias monoparentais
femininas, com isso, percebesse nessa pesquisa a relevância de analisar como as relações de gênero
atravessam o fenômeno da monoparentalidade e sua relação com a abandono paterno.
Por fim, para que essa pesquisa possa ter um cunho além de acadêmico, também social,
comprometido com políticas sociais, antirracistas, feministas, igualitárias, anticapitalistas, percebe-
se a necessidade da realização de um panorama, analisando a evolução da constituição das famílias
monoparental no Brasil.
Para dar início a essa pesquisa, finalizamos esse projeto com um pensamento de Boaventura
(2003), é necessário uma nova forma de conhecimento, que nos possibilite pensar a ciência para uma
transformação social.

REFERÊNCIAS

ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amália Faller (Org.). Famílias: redes, laços e políticas
públicas In: SARTRI Cynthia. Famílias Enrendadas,. 4 ed. São Paulo: Cortez/Instituto de Estudos
Especiais/PUC-SP, 2008.

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo, SP: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 152 p.

AITA, Elis Bertozzi; FACCI, Marilda Gonçalves Dias. Subjetividade: uma análise pautada na
Psicologia histórico-cultural. Psicol. rev. Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 32-47, abr. 2011.
269
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AREND, S. M. F. Ainda vivemos como nossos pais? Fronteiras: Revista Catarinense de História,
n. 21, p. 144–164, 30 nov. 2013.

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: O mito do Amor Materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponivel em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05 de Set de 2020.

BUTHER, J. (2013). Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-


modernismo&quot; Cadernos Pagu, (11), 11-42.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade. 17º ed. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2019. 236 p.

CUNICO, Sabrina Daiana; ARPINI, Dorian Mônica. Significados de paternidade em famílias


monoparentais femininas1. Psicol. pesq., Juiz de Fora , v. 10, n. 2, p. 40-48, dez. 2016.

DUARTE, Rosália. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cad. Pesqui. 2002
FONSECA, Claudia. A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA. Rev. Estud. Fem. [online].
2004, vol.12, n.2, pp.13-34. ISSN 1806-9584.

GONCALVES, Maria da Graça Marchina. Sujeito e subjetividade. Estud. pesqui. psicol. Rio de
Janeiro, v. 4, n. 2, dez. 2004.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2012). Síntese de indicadores sociais: Uma análise das
condições de vida da população brasileira. Diretoria de Pesquisas. Estudos e Pesquisas – Informação
Demográfica e Socioeconômica. Rio de Janeiro: IBGE.

JARDIM, Gabriel de Sena; CAVAS, Claudio São Thiago. Pós-colonialismo e feminismo decolonial:
caminhos para uma compreensão anti-essencialista do mundo. Ponto e Vírgula - PUC SP, Nº. 22,
2017 - p. 73-91.

KNECHTEL, Maria do Rosário. Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem teórico-


prática dialogada. Curitiba: Intersaberes, 2014.

LAQUEUR, T. W. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.

LYRA, J., MEDRADO, B. (2000). Gênero e paternidad/e nas pesquisas demográficas: o viés
científico. Estudos feministas, 8(1), 145-158.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,


Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014.
270
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PERUZZO, C.M.K.; VOLPATO, M.O. Conceitos de comunidade, local e região: inter-relações e
diferença. Líbero (FACASPER), v. 12, p. 139-152, 2009.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 112 p.p.
(Feminismos Plurais).

ROUDINESCO Elizabeth, A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

RUDIO, Victos Franz. Introdução ao projeto de pesquisa cientifica. Petrópolis: Editora vozes;
1986.

SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2006.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. TRADUÇÃO: Christine Rufino
Dabat Maria Betânia Ávil. 1989.

WEISSMANN, Lisette. Famílias Monoparentais – Clínica Psicanalítica. Casa do Psicólogo, São


Paulo, 2015.

271
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ISOLAMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: DUAS LUTAS ENFRENTADAS
PELAS MULHERES

Fernanda Pereira Molina156


Mariana Borin 157
Solange Emilene Berwig158

Resumo: A Pandemia tem provocado situações que assolam a população com relação a saúde e aspectos econômicos em
escala mundial. No contexto brasileiro pode-se observar que o cenário historicamente marcado pela desigualdade social
se aprofunda com a presença da Covid-19. A desigualdade expressa pela ausência de condições dignas de vida, situações
de violência contra crianças, mulheres e idosos ficam escancarados em um cenário marcado pela incerteza, e dificuldades
de acessar mecanismos de proteção. Nesse sentido, o objetivo deste texto é identificar como a pandemia da Covid-19 e o
período da quarentena tem impactado para o acirramento da violência contra as mulheres. Para atender o objetivo proposto
buscou-se um conjunto de informações através de revisão bibliográfica e levantamento de matérias e dados de pesquisas
sobre o contexto pandêmico versus a relação com a violência contra as mulheres no Brasil. O que podemos inferir é que
a pandemia e o isolamento social utilizado como estratégia de proteção não causam a violência em si, mas têm contribuído
para aumentar as situações de violência no âmbito doméstico a partir de alguns fatores como: coexistência forçada,
relações conflituosas, preocupações econômicas, e temores sobre o coronavírus.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Violência doméstica; Pandemia; Covid-19.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo conduzir uma análise a fim de compreender de que
forma o período da pandemia, devido à Covid-19 afeta e aumenta a violência doméstica contra as
mulheres. A Covid-19 é um novo coronavírus identificado em dezembro de 2019 em Wuhan, China
e tem se espalhado pelo mundo todo devido ao seu alto contágio. O novo coronavírus tem modificado
a rotina de muitos brasileiros desde que o vírus chegou no país em janeiro de 2020, e, com o avanço
da transmissão da doença foram tomadas medidas de contenção do vírus, estratégias estas propostas
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o seu combate. Entre uma das principais medidas,
destaca-se o isolamento social de casos suspeitos e o distanciamento. Atualmente já são
aproximadamente 3.159.096 pessoas infectadas em todo o Brasil e um extrato oficial de 122.596
óbitos159.

156
Estudante de Serviço Social na Universidade Federal do Pampa. E-mail: nandapmolina@gmail.com
157
Estudante de Serviço Social na Universidade Federal do Pampa. E-mail: mariani.tb@hotmail.com
158
Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora do curso de Serviço Social, na Universidade Federal do
Pampa, campus São Borja. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Formação Profissional em Serviço Social e
Política Social na América Latina. Membro do GT Seguridad Social y Sistema de Pensiones CLACSO. E-mail:
solangeberwig@unipampa.edu.br
159
Dados do Painel Coronavírus no Brasil, atualizado em 01 de setembro de 2020.

272
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O isolamento e o distanciamento social determinado como uma medida de contenção do vírus,
intensificou ainda mais a violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Segundo a Justiça do Rio
de Janeiro ocorreu um aumento de 50% nos casos de violência doméstica durante o período de
confinamento, dado que pode ser ainda maior, eis que o isolamento social dificulta os registros de
ocorrências nas delegacias de polícia. Fatores como perda de empregos decorrente da crise onde as
mulheres são as mais afetadas, estresse econômico e de temores sobre o coronavírus, a sobrecarga de
trabalho doméstico e uma convivência forçada no ambiente familiar são alguns dos motivos que
contribuem para aumento da violência doméstica (BIANQUINI, 2020).
Desta forma, busca-se estabelecer neste artigo a relação com que a Covid-19 e suas medidas
de enfrentamento de isolamento social têm afetado as mulheres que sofrem com violência doméstica
em seus lares, levando em conta a violência contra mulher como processo histórico numa sociedade
patriarcal.

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO


A violência se manifesta de diferentes formas na vida dos indivíduos, a correlação de forças,
a posição de poder que constitui as relações sociais sujeita toda a sociedade a vivenciar em maior ou
menor medida algum tipo de violência ao longo da vida. Contudo, pesquisas e estudos acumulados
no campo das ciências sociais apontam para um conjunto de pessoas que estão mais suscetíveis a
sofrer violações, podendo ser elas divididas em questões de natureza mais estrutural, como a violência
institucional, violência do estado, segregação racial, o que afeta os grupos mais vulneráveis em
decorrência da estrutura desigual da sociedade.

[...] violência é uma realização determinada das relações de força tanto em termos de classes
sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e
transgressão de normas, regras e leis, preferimos considera-las sob dois outros ângulos. Em
primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação
hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a
conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior.
Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma
coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando
a atividade ou a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência (CHAUÍ, 1984, p.
23).

As violações de natureza interpessoal que se manifestam no bojo das relações mais


íntimas, ambientes de trabalho, relações familiares, afetivas ou de vizinhança. O termo que trata
273
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
este estudo – violência doméstica contra as mulheres, ganha visibilidade nos anos de 1970 com o
fortalecimento do movimento feminista, e, consequentemente, com a criação de políticas e leis
voltadas para atender esse tipo de violência.
No campo das relações intrafamiliares, que se dedica este estudo, pode-se observar que
crianças, idosos, mulheres e pessoas com algum grau de deficiência, ou comprometimento psíquico,
estão mais vulneráveis às situações de violência no ambiente doméstico, em decorrência de suas
características físicas, psíquicas, ou grau de dependência. Refletir sobre a violência contra as
mulheres no contexto da pandemia exige a compreensão do fenômeno da violência, como esta se
expressa, possíveis fatores determinantes de risco, nesse sentido busca-se neste item elucidar a
violência contra esse segmento populacional, tendo em vista que o movimento histórico da realidade
vem evidenciando que a população feminina têm sido constantemente vitimizada. Ainda que o estudo
se dedique refletir sobre a violência doméstica contra as mulheres, é importante observar que a
questão estrutural atravessa as relações sociais, mesmo na sua constituição mais singular – afetiva e
familiar.
As famílias que vivenciam em sua realidade os impactos da violência estrutural, tem um risco
maior de cometer violações contra seus membros, dada a complexidade de fatores que estão
interligados as situações de violação. A compreensão sobre o objeto de intervenção profissional do
Serviço Social – a Questão Social e suas expressões160, convoca a entender como a questão estrutural
atravessa, e se, atravessa a constituição da violência contra as mulheres. O fenômeno da violência é
algo que está cada vez mais presente no modelo de sociedade vigente – capitalista, e afeta diversos
sujeitos das mais diversas condições econômicas, raças ou etnias, orientações sexuais, identidade de
gênero e idade. Esse fenômeno é ainda mais forte quando se considera a violência estrutural, ou seja,
aquela que é oriunda da estrutura do Estado. Em suma, essa violência consolida as desigualdades
sociais e a potencializa o sofrimento dos sujeitos. Como exemplos de situações que decorrem da
violência estrutural,

[...] destacam-se o desemprego e as formas de inserção precária no mercado de trabalho e a


desigualdade no acesso aos direitos sociais. Isso muito perceptível em relação aos trabalhos,
saúde, educação e assistência social, entre outras manifestações que para serem compreendidas

160
O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a
produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos
seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO, 1999, p.27).
274
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
deve-se considerar a desigualdade social, a exploração, as relações de poder e a precariedade
de condições do capitalismo moderno (PEDERSEN, 2014, p. 30).

A violência estrutural demonstra relações de forças sociais, culturais, políticas e históricas,


entre os grupos que compõem a estrutura de poder. Isso gera como consequência uma relação de
opressão que se materializa na violência. A violência estrutural ainda, “é marcada pela desigualdade,
inexistência ou fragilidade de políticas públicas que atendam às necessidades da população,
conduzindo as classes menos favorecidas à marginalização e criando a falsa impressão de que os
pobres são os mais violentos” (BERWIG, 2017, p. 118).
Esta estrutura de poder atravessa as relações mais íntimas dos sujeitos se expressando no
conjunto de situações que caracterizam a violência doméstica que vitimiza os sujeitos mais
vulnerabilizados do grupo familiar. As mulheres têm sido vítimas de diversas formas de violação, os
principais tipos de violência cometidos contra esse segmento são a violência doméstica e
intrafamiliar, caracterizadas pela: negligência, violência física, violência psicológica e violência
sexual.
É oportuno sinalizar que ao se tratar da violência doméstica contra mulheres, esta violação
comparece na realidade social com algumas implicações, não é algo simples de dissolver ou de
compreender dada a complexidade das relações envoltas. Para a Organização das Nações Unidas
(ONU) a violência contra as mulheres é todo ato de violação praticado por motivos de gênero,
dirigidos contra uma mulher. Na maioria dos casos, a vítimas permanecem coagidas na relação
violadora, em decorrência de relacionamentos baseados em dependência emocional e financeira, daí
o entendimento para aqueles casos em que a violência é cometida pelos próprios parceiros. Estes
apontamentos são importantes para compreensão de que romper com ciclos de violência doméstica
implica condições objetivas para a proteção e sustento de muitas das vítimas, que não contam com
apoio familiar, demandando assim ações efetivas do Estado através de políticas públicas
comprometidas.
Estudos têm enfatizado a prevalência do fenômeno da violência doméstica contra mulheres
identificando os fatores de risco associados, apontando condicionantes de diferentes níveis de
compreensão,

275
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] de aspectos sociais e culturais (valores autoritários e patriarcais, aceitação da violência
como forma de resolver diferenças, etnias), de gênero (valorização da violência no
desenvolvimento do papel masculino, aceitação da violência e o castigo como forma de
resolver conflitos entre os casais), psicológicos (maior impulsividade, consumo de álcool e
drogas) até as experiências infantis de violência (dos pais, da vítima ou do casal maltratado),
(CASIQUE, FUREGATO, 2006, p. 03).

A violência contra as mulheres (e meninas) incluem o maltrato físico, assim como o abuso
sexual, psicológico e econômico, pode-se afirmar que a violência doméstica baseada no gênero
desenvolve-se como resultado da condição histórica da subordinação da mulher na sociedade. O
homem na sociedade sempre ocupou um lugar de ser superior à mulher, principalmente na relação
conjugal, em que a mulher estava historicamente subordinada ao cônjuge. Por consequência disso,
muitas vezes acaba-se reproduzindo desta relação de poder e autoridade a violência contra a mulher.
Este lugar de inferioridade da mulher ao homem “refere-se a milênios da história mais próxima, nos
quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina” (SAFFIOTI,
2004, p.136).
Ainda que os desafios sejam muitos, é preciso observar que a caminhada em torno da proteção
das mulheres tem avançado, no Brasil a regulamentação da legislação protetiva, Lei Maria da Penha
(Lei Federal nº11.340 de 2006), é um dos principais mecanismos de defesa de mulheres vítimas de
violência doméstica. A Lei Maria da Penha destaca em sua redação o conjunto de situações que
caracterizam violência contra a mulher, conforme quadro 01.

Quadro 01 – Tipo e definições de violência cometidas contra mulheres


Tipo de violência Caracterização
É aquela em que há o uso da força, caracterizada por qualquer
conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.
Violência Física Como exemplo chutes, empurrões, tortura, ferimentos causados
por queimadura ou arma de fogo, estrangulamento e
sufocamento.
É caracterizada por humilhações, chantagens, ridicularização,
excessivas críticas relacionadas à autoestima da mulher, seus
valores e comportamentos. Esse tipo de violência geralmente
inicia-se de forma sutil no relacionamento, o homem seguido do
Violência Psicológica estereótipo de o ''chefe da família'' se sente no direito de controlar
e corrigir a mulher, estereótipo esse criado numa sociedade
extremamente machista e patriarcal. A violência psicológica é

276
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pouco falada e muitas vezes silenciada, começa lentamente e na
maioria dos casos sucede para a violência física.
É caracterizada por qualquer ato sexual ou tentativa de ato não
desejado, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força.
Violência Sexual Como, por exemplo, estupro, obrigar a mulher a fazer atos
sexuais que causam desconforto, impedir o uso de métodos
contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, limitar ou anular o
exercício de direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
É qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
Violência Patrimonial recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades. Como exemplo, controlar o dinheiro da mulher,
deixar de pagar pensão alimentícia, estelionato e privação de
bens, valores ou recursos econômicos.
É caracterizado por qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria. Como exemplo, acusar a mulher de traição,
Violência Moral fazer críticas mentirosas, expor a vida íntima, emitir juízos
morais sobre a conduta, rebaixar a mulher por meio de
xingamentos que ferem sua índole e desvalorizar a vítima pelo
seu modo de se vestir.
Fonte: Sistematizado pelas autoras. BRASIL (2006).

A caracterização das formas de violência contribui para o entendimento da diversidade de


situações vivenciadas pelas mulheres que se enquadram como violência, contudo, ainda é um desafio
identificar, acolher e proteger as mulheres vítimas de violência em decorrência da sua natureza
intrafamiliar. O fato de as violações ocorrerem no âmbito doméstico recobre a situação de
dificuldades para o desvendamento, O Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou em 2019, que

[...] 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no


Brasil, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio.
Dentro de casa, a situação não foi necessariamente melhor. Entre os casos de violência,
42% ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer uma violência, mais da metade das
mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda (FRANCO, 2019, s/p. Grifo
nosso).

As informações levantadas pelo monitoramento dos casos de violência contra as mulheres


aponta ainda, que apenas 8% dos municípios brasileiros possui delegacias especializadas, o que
dificulta ainda mais a atenção especializada sobre o tema. Destacamos na matéria o trecho que
aponta a insegurança que representa o espaço doméstico quando o assunto é violência contra as
277
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres, visto que 42% dos casos registrados ocorreram neste cenário. A leitura de diferentes
estudos estatísticos aponta que os casos de violência doméstica se concentram em violência física,
seguida de psicológica, moral, sexual e patrimonial respectivamente.
A violência doméstica cometida contra as mulheres é um fenômeno antigo e histórico e não
um problema do século XXI, sendo um exemplo visível da violação dos direitos humanos e da
dignidade da pessoa humana, conforme aponta a redação do artigo 6º da Lei Maria da Penha “a
violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos
humanos” (BRASIL, 2006, s/p).
Essa realidade representa a vida de muitas mulheres brasileiras, uma pesquisa realizada pelo
Senado Federal, em 2017, apontou que 31% das mulheres pesquisadas relatam que o lugar no qual
elas são mais desrespeitadas é no seu próprio lar. Tais elementos corroboram para pensarmos no
cenário mais recente – de isolamento social. Neste contexto da pandemia causado pela Covid-19 o
ambiente domiciliar que deveria ser lugar de proteção, têm sido espaço de violação das mulheres.
Nos questionamos, como esse momento que requer o isolamento social tem implicado sobre a questão
da violência contra as mulheres em seus domicílios? O texto a seguir aponta algumas contribuições
para o tema.

ISOLAMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


A Covid-19 tem transformado a vida de muitas pessoas ao redor do mundo, e com os
brasileiros não é diferente. Todos estamos tendo que mudar nossas rotinas e aprender a lidar da melhor
forma com os impactos que a presença do vírus tem causado, sendo o Brasil o segundo161 país com o
maior número de infectados (3.961.502 pessoas) e de óbitos (122.941 pessoas), ficando atrás apenas
dos Estados Unidos. O mundo todo têm se mobilizado com ações de prevenção e contenção, sendo a
principal estratégia para controle das contaminações adotada pelos países o isolamento social. Ainda
que alguns países tenham demorado a tomar medidas de prevenção, ou tem divergências quanto às
medidas de isolamento (como é caso do Brasil, especialmente no que se refere às ações do governo
federal) estados e municípios têm emitido protocolos de isolamento como forma de controlar as
contaminações, e por consequência diminuir o número de óbitos.

161
Mapa do Coronavírus no mundo, dados atualizados em 02 de setembro de 2020.
278
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O isolamento social é uma das medidas de contenção do vírus, essa medida implicou em
mudanças drásticas nas rotinas individuais e coletivas em decorrência da suspensão de aulas,
cancelamento de eventos, reuniões, festas, fechamento de parques/praias e também muitas empresas,
aderindo ao trabalho “home office”162, com o fim de barrar a aglomeração de pessoas em ambientes
públicos e conter a disseminação da Covid-19. O novo coronavírus também tem repercutido em
impactos sobre a economia, afetando a produção e aumentando problemas para a economia do país,
deixando muitos brasileiros sem empregos. De acordo com o Ministério da Economia, o Brasil fechou
1,1 milhão de vagas de trabalho com carteira assinada entre os meses de março e abril. Tal situação
demandou do Estado ações de proteção para manutenção da renda das famílias em situação de
trabalho informal.
A imposição do isolamento social como estratégia de prevenção, expôs as condições
estruturais em que vivem parcela da população brasileira, em que sua casa, seu espaço domiciliar,
não oferece condições dignas, como conforto do espaço doméstico em relação ao tamanho do núcleo
familiar, necessidades objetivas de acesso a água, luz, alimentação, além destas questões mais
objetivas do modo de vida, o isolamento trouxe à tona e, potencializou conflitos do ambiente
domiciliar. Isto tem acarretado adoecimento psicossomáticos, aumento dos níveis de estresse,
depressão, a sensação de isolamento e principalmente a violência que é vivenciada em diversos lares,
em especial a violência contra a mulher.
O levantamento realizado para desenvolver este estudo buscou identificar notificações,
matérias, ou estudos, de domínios públicos, que foram realizados no período de março a julho a fim
de evidenciar se a questão do isolamentos social implicou em situações de violência contra as
mulheres. As palavras chave utilizadas para a o levantamento foram: a) violência contra as mulheres
durante a pandemia; b) violência contra as mulheres e covid-19; c) violência contra as mulheres
durante isolamento social; e, d) índice de violência contra as mulheres e covid-19.
Os dados identificados rendem um banco de informações generoso, o que infelizmente aponta
para a prevalência das situações de violência contras as mulheres no ambiente doméstico, além de
que, apontam para o aumento de situações de violência durante o período da pandemia. No conjunto

162
Home Office é uma expressão inglesa que significa “escritório em casa”, na tradução literal para a língua
portuguesa.Algumas empresas possuem este sistema de trabalho quando os funcionários não precisam ou não podem
trabalhar no escritório.
279
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de informações levantadas, destacamos um grupo de informações de importantes veículos de
imprensa como o canal G1, Agência Brasil de notícias, e de instituições como a página da Câmara
Legislativa com dados nacionais e o Tribunal Regional de Justiça do Estado do Paraná com
monitoração sobre a realidade no estado. A chamada das notícias denotam o teor do conteúdo
sinalizando para o aumentos dos casos de violência,

Isolamento social causa aumento em casos de violência doméstica (SIQUEIRA CASTRO,


2020, s/p.).
Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia
da Covid-19 (PONTE-ORG, 2020, s/p.).
Casos de feminicídio crescem em 20% em 12 estados durante a pandemia (AGÊNCIA
BRASIL, 2020, s/p.).
Violência física e sexual contra mulheres aumenta durante isolamento social provocado pelo
coronavírus (G1, 2020, s/p.).

De acordo com o levantamento a violência doméstica contra a mulher tem aumentado


expressivamente no período do isolamento social no Brasil, segundo o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), o número de ligações para o 180, canal de denúncias de
violência doméstica do governo federal, aumentou 9% desde o início da quarentena, a média entre os
dias 1 e 16 de março foi de 3.045 ligações por dia, número que subiu para 3.303 ligações diárias entre
os dias 17 e 25 de março. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta também um aumento de
ocorrências de violência contra mulher em seis estados - São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio Grande
do Sul, Mato Grosso e Pará, em comparação ao mesmo período em 2019 (G1, 2020, s/p.).
Ainda que o isolamento social não seja o responsável pela violência, esta situação mudou de
forma drástica a vida dos brasileiros e além do vírus trouxe várias outras consequências, sobretudo
para as mulheres que estão tendo que lidar com a presença contínua do homem (majoritariamente os
agressores são os companheiros) em casa e sofrendo com a violência doméstica.

Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a quantidade de


denúncias de violência contra as mulheres recebidas no canal 180 cresceu quase 40% ao
compararmos o mês de abril de 2020 e 2019 (VEJA SAÚDE, 2020, s/p.).
Em março, com a quarentena começando a partir da última semana do mês, o número de
denúncias tinha avançado quase 18% e, em fevereiro, 13,5%, na mesma base de comparação.
[...] Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a empresa
Decode, feito a pedido do Banco Mundial, revela aumento de 431% em relatos de brigas
de casal por vizinhos em redes sociais entre fevereiro e abril deste ano. Segundo a outra
pesquisa realizada junto a órgãos de segurança de 12 estados do País, casos de
feminicídio aumentaram 22,2% de março para abril, enquanto houve queda nos boletins
280
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de ocorrência em casos de agressão e violência sexual. Esses resultados confirmam a tese de
que há incremento da violência doméstica e familiar no período de quarentena, ainda que
esse avanço não esteja sendo captado pelos boletins de ocorrência, aponta o estudo
(ISTOÉDINHEIRO, 2020, s/p.).

Ainda com relação a dados sobre a violência no período da pandemia, o canal Agência Brasil
(2020) aponta que,

Nos meses de março e abril, o número de feminicídios subiu de 117 para 143[...] o estado em
que se observa o agravamento mais crítico é o Acre, onde o aumento foi de 300%. Na região,
o total de casos passou de um para quatro ao longo do bimestre. Também tiveram destaque
negativo o Maranhão, com variação de 6 para 16 vítimas (166,7%), e Mato Grosso, que
iniciou o bimestre com seis vítimas e o encerrou com 15 (150%). Os números caíram em
apenas três estados: Espírito Santo (-50%), Rio de Janeiro (-55,6%) e Minas Gerais (-22,7%)
(AGÊNCIA BRASIL, 2020, s/p.).
No Brasil, mesmo após os primeiros índices demonstrarem uma diminuição das notificações
de violência doméstica, por outro lado, observou-se um aumento substancial nos casos de
feminicídios, em estados como São Paulo e Rio Grande do Sul, o que reforça a hipótese de
subnotificação (CONFAP, 2020, s/p.).

Diferentes fontes de notícias, canais de comunicação têm alertado sobre o aumento da


violência contra as mulheres em decorrência do processo do isolamento social, podemos argumentar
então que fator do isolamento social contribui para o aumento de comportamentos violentos e
opressivos do homem sobre a mulher, da relação de poder, autoridade e manipulação. A mulher
precisa lidar com estresses diários, como a divisão desigual de trabalhos domésticos e cuidados com
os filhos, jornada dupla de trabalho e na maioria das vezes ter um homem em casa não significa mais
ajuda e cooperação, e sim o aumento de trabalho, exigências e conflitos. Outro grande problema que
não é novidade é a dependência financeira que é muitas vezes o que impossibilita a vítima de sair de
um relacionamento violento, sendo o homem sua única fonte de renda. Com a pandemia e com a atual
crise que o Brasil vive, foi agravado ainda mais essa dependência.
É importante destacar que inúmeras mulheres que antes tinham sua fonte de renda, com a crise
atual, acabaram perdendo seus empregos e passaram a ser dependendentes de seus companheiros,
destacando o poder que o homem tem sobre a mulher. A realidade estampada em matérias de jornais,
revistas, páginas de redes sociais apontam para um cenário em que no Brasil as mulheres são mais
sujeitas a informalidades do que homens. Mais de 90% dos trabalhadores domésticos mais
vulneráveis economicamente na crise são mulheres (G1, 2020, s/p.).

281
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Outro fator que compromete a segurança das mulheres no âmbito doméstico tem relação com
o aumento de consumo de álcool durante a quarentena, uma preocupação da Organização Mundial de
Saúde (OMS) que aponta como estratégia de proteção o cuidado no consumo de álcool, orienta ainda
a restrição da venda, circulação e consumo durante o período de confinamento justamente em
decorrência dos possíveis desdobramentos decorrentes de um consumo excessivo que coloquem em
risco aqueles que estão no mesmo ambiente para cumrpimetno do isolamento. Sendo a mulher
potencialmente vítima de agressões de toda natureza nesse contexto. Por consequência do isolamento
outro fator preocupante é a dificuldade para pedir ajuda e romper com o ciclo de violência, o que tem
demandado novas estratégias para acolher as mulheres vítimas neste contexto.

ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO PARA AS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA


Em virtude dos fatos mencionados, é considerável evidenciar como as mulheres vítimas de
violência doméstica no período da quarentena podem buscar a ajuda dos órgãos públicos, tendo em
vista que a denúncia no isolamento social se torna de difícil acesso em virtude ao medo de
contaminação do vírus, e também a redução ao acesso à rede de apoio às vítimas. Conforme enfatiza
(VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020, p. 3), “os serviços de saúde e policiais são geralmente os
primeiros pontos de contato das vítimas de violência doméstica com a rede de apoio”.
É indispensável que, para o atendimento nesse período, as vítimas de violência se sintam
acolhidas e protegidas pelo Estado e pelas políticas públicas de atendimento que já existem e que
devem ser fortalecidas. Como medidas de proteção e prevenção já estabelecidos e que se mantém
neste período destacamos:
● Os canais de atendimentos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos;
● O Disque 100;
● Ligue 180, disponível 24 horas por dia e pode ser acionado de qualquer lugar do Brasil.
● O aplicativo de Direitos Humanos BR;
● Os Serviço públicos como Centros de Atenção Especializados em Assistência Social _
CREAS;
● Centros de Referência em Assistência Social – CRAS;
● Unidades básicas de saúde – UBS;
Estes mecanismos não são novos, contudo é importante retomar como canais oficiais já
282
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
existentes e que neste contexto tem uma função ainda mais relevante dado o crescimentos de situações
a ser acolhidas. O site ouvidoria.mdh.gov.br também pode ser acessados nos endereços
disque100.mdh.gov.br e ligue180.mdh.gov.br. Através desses canais, vítimas e pessoas que
presenciam violência doméstica ou qualquer outras violências que ferem os direitos humanos podem
denunciar, enviar fotos, vídeos e áudios.
Além do acolhimento pelos profissionais e do Estado as vítimas, que deve ser revigorado
durante o isolamento, também há de haver uma ampla divulgação dos canais de atendimentos de
denúncia, e grupos de apoio à vítima, utilizando a internet como ferramenta para auxiliar nessa
divulgação. Nos últimos dias, tem se percebido na internet uma rede de apoio e divulgação vasta
principalmente nas plataformas de redes sociais, com vídeos, fotos, depoimentos, incentivando a
denúncia de situações de violência e orientando como proceder para pedir socorro em caso de estar
sendo vítima de violência.
Com relação ao cenário epidêmico, foi sancionada a Lei Federal nº 14.022 (julho de 2020)
para fins de manutenção dos serviços de acolhimento e atenção às pessoas vítimas de violência
doméstica, como o caso das mulheres, crianças e idosos.

Entrou em vigor nesta quarta-feira (8) a lei que assegura o pleno funcionamento, durante a
pandemia de Covid-19, de órgãos de atendimento a mulheres, crianças, adolescentes, pessoas
idosas e cidadãos com deficiência vítimas de violência doméstica ou familiar. [...] Conforme
a lei, o atendimento às vítimas é considerado serviço essencial e não poderá ser interrompido
enquanto durar o estado de calamidade pública causado pelo novo coronavírus. Denúncias
recebidas nesse período pela Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência
(Ligue 180) ou pelo serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência
sexual (Disque 100) deverão ser encaminhadas às autoridades em até 48 horas (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2020, s/p.).

Diante da dificuldade das vítimas de pedir socorro, novas iniciativas foram surgindo, como
canais silenciosos de denúncias. Campanhas como o “Sinal vermelho contra a violência doméstica”,
que se propõem a facilitar a comunicação da vítima com a comunidade. “A mulher vítima de violência
mostra a palma da mão marcada com um X vermelho feito de batom ou outro material ao atendente
de uma farmácia cadastrada, que aciona a Polícia Militar para socorrê-la” (ISTOÉDINHEIRO, 2020,
s/p.).

[...] o Instituto Avon [...] Lançou, também por meio de um número de WhatsApp, um
serviço de chatbox (caixa de diálogo) em parceria com a Uber. Por meio desse chatbox
é feito o rastreamento das necessidades da vítima e o nível de risco a que ela está

283
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exposta. A vítima recebe todas as orientações e são passados os endereços mais próximos
onde pode encontrar ajuda. Se ela não tem como ir, a Uber oferece uma corrida gratuita até
o destino do socorro. O mapa do acolhimento funciona no País inteiro e o transporte é
gratuito, onde há serviços da Uber (ISTOÉDINHEIRO, 2020, s/p.).

A rede de lojas Magazine Luiza163, criou uma ferramenta em seu aplicativo de compras
‘Magalu’, o qual traz um botão para denunciar casos de violência doméstica, permitindo que as
denúncias sejam feitas de forma sigilosa. Essa ferramenta da loja é antiga e iniciou em março de 2019,
porém com o aumento de casos de violência durante o isolamento social houve uma maior divulgação
para que haja acesso. A rede retomou uma campanha através das redes sociais de forma a atrair a
mulher com produtos de maquiagem para “esconder manchas e marquinhas” (da violência), mas
direciona a vítima a usar o botão de denúncias. O botão está conectado ao canal 180 do MMDH. Este
sistema “registrou em maio, ante o mesmo mês de 2019, aumento de 450% no uso do botão de
denúncia de violência contra a mulher dentro do canal específico que existe em seu aplicativo de
compras” (ISTOÉDINHEIRO, 2020, s/p.).
Todas as estratégias citadas - um X vermelho de batom estampado na palma da mão, um botão
de pânico num aplicativo de loja online de eletroeletrônicos e até um vídeo fake de automaquiagem
que, na prática, orienta a fazer denúncias, tornaram-se estratégias, aliadas as denúncias, todas
ferramentas importantes para a proteção das mulheres que sofrem violência. O Estado e a Sociedade
precisam ser mobilizados a favor do isolamento social para o combate do Covid-19 e também
precisam garantir um atendimento seguro para as mulheres brasileiras, considerando todo o processo
histórico que as mulheres no Brasil vivem, devendo a elas o direito de viver sem violência e com
dignidade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões tecidas aqui apontam para a violência contra a mulher como algo que não é novo,
que não é resultante do cenário pandêmico. Mas, que pela gravidade das situações que emergem neste
contexto de retração da economia, aumento exponencial do desemprego, e pelas repercussões do
isolamento social dadas as características das relações intrafamiliares no nosso País tem contribuído

163
Ainda que seja uma estratégia de marketing, é importante destacar que ações desta natureza atingem de forma
ampliada as camadas mais populares, pela disseminação em redes sociais, e no espaço televisivo, contribuindo
significativamente para o acesso a um mecanismo de proteção por mulheres, em todo o território nacional.
284
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
para desencadear casos de violência contra as mulheres. É correto afirmar que não apenas as mulheres
são vítimas nesse cenário, crianças, idosos, pessoas com deficiência estão igualmente em situações
de vulnerabilidade em um momento pandêmico que tem obrigado a coexistir em espaços domiciliares
em que a violação já é uma realidade, e que agora se expressa de forma mais explícita. Contudo o
objetivo de nossas reflexões tinham como centro do debate a violência contra mulheres e observar
em que medida o contexto da Pandemia (que não tem hora para acabar) tem provocado o aumento
das situações de violência. Podemos inferir que a Covid-19 trouxe a tona inúmeros fatores que
favoreceram o aumento da violência doméstica no Brasil e que não são problemas recentes, e sim um
problema cravejado na nossa sociedade, onde a mulher sempre foi vista como inferior, frágil e
submissa. A sociedade defende o homem e naturaliza sua agressividade, culpabiliza a vítima e não
toma medidas cabíveis para que situações como essas parem de acontecer, assédio virou parte da
nossa cultura e frases machistas e retrógradas estão sempre sendo reforçadas no nosso cotidiano.
Andar na rua sem medo, usufruir de um lar seguro e acolhedor, deveria ser um direito básico e
garantido, mas na prática ainda é um privilégio de classe e gênero (VIEIRA; GARCIA; MACIEL,
2020).
Como apontamentos finais, é ainda, relevante destacar que o processo de isolamento social,
demandado como estratégia para controle de contaminação, impôs de forma ampliada a convivência
em lares que têm como característica um convivência de violação, e que o cenário atual, potencializa
através do nível de estresse, medo, desemprego, ausência de condições dignas de sobrevivência um
processo que por si, desencadeia ou amplia relações violentas, contribuindo para o aumento de
ocorrências de violência doméstica contra mulheres. Logo, é imperioso destacar que a Pandemia não
é responsável pelo aumento da violência, mas sim um processo histórico, calcado na desigualdade,
no machismo, na subalternidade feminina, e que se expressa de forma mais evidente pela situação do
isolamento social.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA BRASIL. Casos de feminicídio crescem em 20% em 12 estados durante a pandemia.


01/06/2020. Disponível em:< https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-
06/casos-de-feminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia> Acesso em: 10 set. 2020.

285
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BERWIG, Solange E. Violência Intrafamiliar: uma aproximação ao tema. In: GROSSI, Patrícia.
JR. FONSECA, Roberto. DUARTE, Joana das F. Expressões de violência: experiência de intervenção
e pesquisa em Serviço Social. Editora: Appris.2017.

BIANQUINI, Heloisa. Combate à violência doméstica em tempos de pandemia: o papel do


Direito. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/direito-pos-graduacao-
combate-violencia-domestica-tempos-pandemia#sdfootnote2sym>. Acesso em: 29 maio 2020.

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei Federal nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/lei/111340.htm>. Acesso em: 29 maio 2020.

_____. Pesquisa DataSenado. Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/violencia-contra-a-mulher-
agressoes-cometidas-por-2018ex2019-aumentam-quase-3-vezes-em-8-anos-1>. Acesso em: 28 maio
2020.

CAMARA DE DEPUTADOS. Notícias. Sancionada lei de combate à violência doméstica


durante pandemia. 08/06/2020. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/noticias/674399-
sancionada-lei-de-combate-a-violencia-domestica-durante-pandemia> Acesso em: 10 set. 2020.

CASIQUE, Leticia. FUREGATO, Antonia R. F. Violência contra a mulher: reflexões teóricas.


In.: Revista Latino Americana de Enfermagem. 2006. Disponível
em:<https://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n6/pt_v14n6a18.pdf>. Acesso em: 02 set. 2020.

CHAUÍ, M. (1984). Participando do debate sobre mulher e violência. In: R. CARDOSO (Org.).
Perspectivas antropológicas da mulher: sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. v. 4.
p. 25-62.

CONFAP. Agência de Notícias. Violência contra a mulher em tempos de Covid-19. 20/05/2020.


Disponível em:< https://confap.org.br/news/violencia-contra-a-mulher-em-tempos-de-covid-19/>
Acesso em: 10. Set. 2020.

FRANCO, Luiza. Violência contra a mulher: novos dados monstram que não há lugar seguro
no Brasil. BBC NEWS, São Paulo, 26 de fev. De 2019. Disponível
em:<http://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503>. Acesso em: 15 set. 2020.

G1. Violência física e sexual contra mulheres aumenta durante isolamento social provocado
pelo coronavírus. 19/04/2020. Disponível em:<
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/19/violencia-fisica-e-sexual-contra-
mulheres-> Acesso em 10 set. 2020.

IAMAMOTO, Marilda. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. São Paulo, Cortez, 1999.

286
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ISTO É DINHEIRO. Violência contra a mulher aumenta em meio à pandemia; denúncias ao
180 sobem 40%. 01/06/2020. Disponível em:< https://www.istoedinheiro.com.br/violencia-contra-
a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-sobem-40/>. Acesso em: 10 set. 2020.

PEDERSEN, Jaina Raqueli. O corpo como mercadoria: exploração sexual de adolescentes e


vulnerabilidade social das famílias. 2014. 200 f. Tese de doutorado em Serviço Social do Programa
de Pós-graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre.

PONTE.ORG. Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e


a pandemia da Covid-19. 18.06.2020. Disponível em:< https://ponte.org/mulheres-enfrentam-em-
casa-a-violencia-domestica-e-a-pandemia-da-covid-19/> Acesso em: 10 set. 2020.

SAFFIOTI. H. I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SIQUEIRA, CASTRO. Isolamento social causa aumento em casos de violência doméstica.


20/05/2020. Disponível em:< https://siqueiracastro.com.br/covid-19/isolamento-social-causa-
aumento-em-casos-de-violencia-domestica/> Acesso em: 10 set. 2020.

VEJA SAÚDE. Violência contra a mulher: a pandemia que não cessa. 12/07/2020. Disponível
em:< https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/violencia-contra-a-mulher-a-pandemia-que-nao-
cessa/> Acesso em: 10 set. 2020.

VIEIRA, Pâmela Rocha; GARCIA, Leila Posenato; MACIEL, Ethel Leonor Noia. Isolamento social
e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela?. Revista Brasileira de Epidemiologia,
[s.l.], v. 23, p. 1-5, 2020. FapUNIFESP (SciELO).

287
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS: CARACTERIZAÇÃO E ASPECTOS
LEGAIS

Adriele Martins164
Solange Emilene Berwig165

Resumo: Este artigo se debruça sobre o tema da violência sexual contra crianças, considerando esta uma situação de raiz
histórica nas relações sociais. Observamos a questão da violência sexual contra crianças neste estudo e como uma das
demandas que se expressam na sociabilidade contemporânea que requer do Estado e da sociedade civil ações para seu
enfretamento sob a perspectiva da proteção integral da infância. As contribuições deste estudo estão apresentadas em dois
blocos, a saber: a) caracterização da violência sexual contra crianças; e, b) aspectos legais que amparam as ações de
proteção à criança e responsabilização dos agressores. As informações reunidas neste estudo demonstram o quanto o tema
da violência, em especial a violência sexual contra crianças, é um processo dinâmico e permeado de múltiplos fatores, o
que aponta para a importância de pesquisas que contribuam para o entendimento desse fenômeno e elaboração de ações
de prevenção e proteção.
Palavras Chave: Violência Sexual; Infância; Crianças.

INTRODUÇÃO
A violência apresenta-se como um fenômeno complexo constituído nas relações sociais,
atravessada por processos culturais, sociais, históricos e afeta a vida das pessoas de múltiplas formas.
Ela, a violência, se manifesta de diversas maneiras, seja em conflitos locais, ou mesmo internacionais
como em guerras, perseguições, processos de tortura, conflitos políticos, étnico ou religiosos. Neste
ínterim, muitas são as temáticas que podem ser elencadas quando o tema em questão é a violência,
vez que ela pode ser expressa por tipos – violência estrutural, institucional, patrimonial, doméstica,
intrafamiliar, física, psicológica, de gênero, sexual etc, ou ainda, pode ser observada sobre
determinados conjuntos ou segmentos - contra a pessoa idosa, a mulher, pessoas com deficiência,
adolescentes ou contra crianças, como é o caso deste estudo.
A violência como toda expressão social não se mostra de maneira simples e estática, mas
dinâmica e constituída de múltiplos processos que necessitam ser estudados e problematizados na
busca de elaboração de estratégias eficazes para seu enfrentamento e prevenção. Ao se tratar da

164
Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Especialista em
Políticas e Intervenção em Violência Intrafamiliar pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Assistente
Social do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJRS. E-mail: adrielemartins@tjrs.jus.br
165
Doutora em Serviço Social. Professora do curso de Serviço Social, Professora Colaboradora do Programa de Pós
Graduação em Políticas Públicas (PPGPP), na Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Vice-líder do
Grupo de Pesquisa Trabalho, Formação Profissional em Serviço Social e Política Social na América Latina. Membro
do GT Seguridad Social y Sistema de Pensiones CLACSO. E-mail: solangeberwig@unipampa.edu.br
288
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
violência contra crianças, mais especificamente a violência sexual contra crianças, há de se considerar
que por muito tempo este tema fora velado, mas vem ganhando espaço nos últimos anos, ao passo
que lutas e conquistas legais vêm sendo travadas no movimento dialético. Segundo informações do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), no ano de 2018 foram
realizados 76.216 registros de denúncias em relação à violação de direitos de crianças e adolescentes,
através do Disque Direitos Humanos – Disque 100166. Ainda, segundo informações do Balanço das
Denúncias de Violações de Direitos Humanos do ano de 2019, dentre as denúncias registradas no
Disque Direitos Humanos em 2019, o grupo de Crianças e Adolescentes representou 55% do total,
com 86.837 denúncias, neste mesmo relatório é observado que das denúncias de violência, 43% do
total das vítimas são crianças (faixa etária entre zero a 11 anos de idade) (p.28, 2019). Em comparação
ao ano anterior, não houve alteração significativa de número de denúncias de violência sexual que
em 2018 era de 17.871 e em 2019 17.830 (p.36)
Em que pese o enfoque deste estudo esteja debruçado sobre o grupo de crianças, é imperioso
observar o montante expressivo de casos denunciados que agregam crianças e adolescentes, o que
demonstra o desafio posto para a sociedade e Estado em termos de enfrentamento e garantias de
proteção da infância. O foco de observar e problematizar a violência sexual contra crianças tem
contribuído para a reflexão sobre os elementos concretos que constituem essa expressão da Questão
Social e compreensão de como esta se manifesta. Apresentamos neste estudo um conjunto de
informações que atentam para as particularidades da violência sexual contra crianças.

VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS: CONTRIBUIÇÕES PARA


CARACTERIZAÇÃO
A violência sexual manifesta-se de diversas formas, nos mais variados contextos, cenários e
sujeitos. Considerando que a violência, em maior ou menor escala, produz reflexos na vida dos
sujeitos, esta se apresenta envolvida por complexas relações de poder sendo determinante na
construção e alteração das relações sociais na sociedade.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2002 no Relatório Mundial sobre Violência e
Saúde definiu violência como “[...] o uso da força ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio,

166
Trata-se de um serviço de atendimento telefônico gratuito que recebe notificações de casos de violações de
direitos de qualquer tipo, incluindo a violência sexual contra crianças e adolescentes (HOHENDORFF;
HABIGZANG; KOLLER, 2014, p.24).
289
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ou contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (OMS, 2002, p. 150).
Para Azambuja (2004) a violência provoca limitação aos direitos, ao respeito, à dignidade, à
integridade, e à liberdade, produzindo uma sensível redução nas condições de vida do ser humano.
Estas limitações são observadas em maior intensidade nas crianças 167 e adolescentes, devido a sua
fragilidade em decorrência do processo de desenvolvimento ao qual se encontram. Este processo de
desenvolvimento, é referenciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considerando esse
período da vida como um período que precisa ser observado e entendido pela condição peculiar de
desenvolvimento.
De posse do entendimento que a criança tem uma condição particular em decorrência de sua
fase de desenvolvimento, busca-se compreender os aspectos que envolvem a violação dos direitos de
crianças violadas sexualmente. Dentre outras formas, a violência pode se apresentar como violência
física, psicológica, sexual, intra168 ou extrafamiliar, no âmbito doméstico ou fora dele, envolta de
elementos que a caracterizam e a definem através de concepções diversas. Vale ressaltar, apesar de
serem explicitadas por tipificações, estas violências podem ocorrer concomitantemente e/ou serem
transversais umas às outras. No ano de 2002, a violência foi considerada pela OMS como um dos
maiores problemas de saúde pública do mundo, dadas as proporções e as multifaces que se expressam
no conjunto da sociedade em relação a esta temática.
É sempre relevante reforçar a compreensão do que caracteriza a violência. Pactuamos com a
posição de que violência é caracterizada pelo

[...] uso intencional da força física ou do poder, real ou por ameaça, contra a própria pessoa,
contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que possa resultar ou tenha alta
probabilidade de resultar em morte, lesão, dano psicológico, problemas de desenvolvimento
ou privação de direitos (FERREIRA; AZAMBUJA, 2011, p. 17).

167
O recorte de idade apresentado pelo Código Penal sobre os crimes sexuais contra vulnerável refere-se a faixa de
até 14 anos, esta faixa etária é protegida pelo ECA, que demanda “[...] atendimento especial do Estado, e da lei e
que, agora, finalmente, o legislador penal reconhece sua vulnerabilidade” (BITENCOURT, 2012, p. 214). Ainda
sobre o recorte de idade é importante observar que enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente proclama ser
adolescente o maior de 12 anos, a proteção penal ao menor de 14 anos continua rígida, logo, as situações de estupro
de vulnerável recebe pena autônoma e superior ao estupro comum, destacando a proteção absoluta da criança menor
de 12 anos.
168
A violência intrafamiliar é caracterizada por toda e qualquer ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a
integridade física ou psicológica, ou liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um integrante do núcleo
familiar. Pode ser cometida dentro ou fora de cada, por qualquer membro da família que esteja em relação de poder
com a pessoa agredida e inclui também as pessoas que exercem a função de proteção, seja pai ou mãe, mesmo sem
laços de sangue.
290
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tais processos de violação estão intimamente ligados com as condições mais estruturais da
sociedade, a violência portanto, não pode ser pensada sem considerar as reflexões que envolvem a
teia das relações sociais em que se inserem os diferentes segmentos. Em relação á violência sexual
contra crianças é possível observar que há algumas dificuldades no processo de caracterização, pois
há determinantes históricos e concretos que se constituem processualmente para definir
conceitualmente criança e violência sexual. No processo de estudo identificou-se um esforço em torno
da compreensão e caracterização no que se refere a violência sexual. No caderno de orientações para
práticas em serviço, o Ministério da Saúde aponta como violência sexual

[...] toda a ação na qual uma pessoa em relação de poder e por meio de forca física, coerção
ou intimidação psicológica, obriga uma outra ao ato sexual contra a sua vontade, ou que a
exponha em interações sexuais que propiciem sua vitimização, da qual o agressor tenta obter
gratificação. A violência sexual ocorre em uma variedade de situações como estupro, sexo
forcado no casamento, abuso sexual infantil, abuso incestuoso e assédio sexual (BRASIL,
2001, p.18).

As contribuições de Azevedo e Guerra (2007) no que diz respeito a vitimação e vitimização


dos sujeitos, apontam que crianças podem ser vitimadas e vitimizadas. Os sujeitos vitimados são
também vítimas de uma violência estrutural, cuja amplitude ultrapassa as questões particulares dos
indivíduos. Em relação a crianças podemos observar que,

[...] embora haja uma certa sobreposição entre crianças vitimadas e crianças vitimizadas, o
processo de vitimação atinge exclusivamente filhos de famílias economicamente
desfavorecidas, enquanto processo de vitimização ignora fronteiras econômicas entre as
classes sociais, sendo absolutamente transversal, de modo a cortar verticalmente a sociedade.
Eis porque conceber a sociedade dividida em classes sociais revela-se insuficiente para
compreensão e explicação do fenômeno da vitimização (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 15
,16).

Em que pese as situações de violência cometidas contra crianças perpassem pela violência
estrutural e, estas estejam intimamente ligadas, é importante observar que a vitimização destes
sujeitos ultrapassa as questões estruturais, tornando ainda mais complexo este fenômeno. Se
considerarmos as condições da estrutura, podemos dizer que a violência enquanto condição produzida
e reproduzida socialmente afeta a todos os extratos da sociedade, contudo, os grupos sociais em
condições de maior vulnerabilidade pelas suas condições materiais e objetivas, estão mais
propensos a sofrerem algum tipo de violação. Nesta esteira, essa forma de violência consolida as
291
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
desigualdades sociais e a potencializa o sofrimento dos sujeitos, “a violência estrutural é marcada
pela desigualdade, inexistência ou fragilidade de políticas públicas que atendam às necessidades da
população, conduzindo as classes menos favorecidas à marginalização e criando a falsa impressão de
que os pobres são os mais violentos” (BERWIG, 2017, p.118).
Outro aspecto importante a destacar em relação a violência estrutural na relação com a
violência sexual de crianças, é que, de modo geral,

Os casos ocorridos nas classes sociais privilegiadas, ao invés de serem levados ao Judiciário,
costumam ser relatados em consultórios de profissionais que trabalham na área da saúde
mental, apenas quando a vítima já é adulta, o que contribui para a sua invisibilidade e por
não serem abarcadas pelo sistema penal na época da ocorrência, pois as famílias de maior
poder aquisitivo dispõe de mais condições de escamotear o que acontece no seu interior
(AZAMBUJA, 2011, p.121).

As desigualdades contidas nas relações de poder, crianças são consideradas socialmente


inferiores a adultos, mulheres socialmente inferiores aos homens, negros socialmente inferiores a
brancos, pobres socialmente inferiores a ricos (AZEVEDO e GUERRA, 2007). Outro aspecto a se
considerar no esforço da caracterização da violência sexual contra crianças, é a questão das relações
interpessoais, sobre a qual destacamos as relações interpessoais violentas entre adultos e crianças.

Enquanto violência interpessoal, a vitimização é uma forma de aprisionar a vontade o desejo


da criança, de submetê-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a satisfazer os
interesses, as expectativas ou as paixões deste. Como, porém, a violência interpessoal
constitui uma transgressão (mais ou menos consciente) do poder disciplinador do adulto, ela
exige que a vítima seja "cúmplice", num "pacto de silêncio" (AZEVEDO; GUERRA, 2007,
p. 35, destaque no original).

Para avançar na compreensão da violência sexual, é importante desmistificar que apenas atos
de relações sexuais com penetração são ações de violação. O processo de indução de uma criança em
atender aos desejos de outrem, em geral uma pessoa adulta, perpassa um conjunto de ações que ferem
as condições objetivas e subjetivas da criança e que se caracterizam como violência sexual,. As
orientações para identificação de tais violações consideram atos como carícias, toques não desejados,
“[...] penetração oral, anal ou genital, com pênis ou objetos de forma forçada, exposição obrigatória
à material pornográfico, exibicionismo e masturbação forçados, uso de linguagem erotizada, em
situação inadequada, [...] ser forçado(a) a ter ou presenciar relações sexuais com outras pessoas

292
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...]” (BRASIL, 2001, p.18). Todas estas situações são agravadas pelo processo de poder pré-existente
na relação adulto x criança. Em relação a violência sexual contra a criança, Santos (2012) aponta para
a utilização de termos usados de formas equivalentes, mas que são distintos, como é o caso do
entendimento sobre abuso sexual169 e violência sexual, não raramente utilizados como sinônimos.

O termo abuso tem sido mais amplamente conhecido e popularizado para denominar
situações de violência sexual contra a criança, principalmente as que se referem à violência
intrafamiliar, também referida como abuso sexual doméstico, violência sexual doméstica,
abuso sexual incestuoso ou incesto (SANTOS, 2012, p.24, destaque no original).

Os aspectos que as diferenciam são muito tênues, contudo, são muito importantes pois são
determinados por um arranjo que envolve as relações interpessoais. A violência sexual “[...] implica
o uso de força física ou psicológica, incluindo-se os atos praticados contra menores ou deficientes
mentais, incapazes de compreender o significado de tais ações”, já as situações que caracterizam
abuso sexual, são compreendidas como o “[...] um ato em que não há o uso da força, caso em que a
satisfação sexual pode ser alcançada pela sedução” (SANTOS, 2012, p. 24). É preciso destacar que
ambas as situações há uma relação de poder. Os abusos sexuais podem ocorrer no âmbito familiar ou
não. São caracterizados como abuso sexual toda e qualquer interação,

[...] contato ou envolvimento da criança ou adolescente em atividades sexuais que ela não
compreende, nem consente. Inclui todo ato ou relação sexual erótica, destinada a buscar
prazer sexual. A gama de atos é bastante ampla abrangendo atividades sem contato físico
(voyeurismo, cantadas obscenas, etc.) ou com contato físico (implicando diferentes graus de
intimidade que vão dos beijos e carícias nos órgãos sexuais até cópulas oral, anal ou vaginal);
e atividades sem emprego da força física ou mediante emprego da força física. (PEDERSEN;
GROSSI, 2011, p 27).

Ainda, em relação ao abuso sexual de crianças chama-se a atenção para o abuso sexual
intrafamiliar que pode ocorrer em qualquer grupo e extrato social, independente de suas condições
econômicas, e envolve o contexto que a priori deveria ser protetivo, o âmbito das relações familiares
da criança. Para Sanderson (2008, p. 5) o abuso sexual contra crianças é caracterizado pelo processo
violento de “forçar ou incitar uma criança a tomar parte em atividades sexuais, estejam ou não cientes
do que está acontecendo”. Tais atos podem se desdobrar em diferentes situações, como,

169
Destacamos, em especial, o abuso sexual infantojuvenil intrafamiliar como uma das mais graves formas de
violência, pois lesa os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, apresentando contornos de durabilidade e
habitualidade; trata-se, portanto, de um crime que deixa mais do que marcas físicas, atingindo a própria alma das
pequenas vítimas (BITENCOURT, 2012, p.215).
293
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] envolver contato físico, incluindo atos penetrantes (por exemplo estupro ou sodomia) e
atos não-penetrantes. Pode incluir atividades sem contato, tais como levar a criança a olhar
ou a produzir material pornográfico ou a assistir a atividades sexuais ou encorajá-la a
comportar-se de maneiras sexualmente inapropriadas (SANDERSON, 2008, p.5).

O abuso sexual pode começar em qualquer idade, desde as primeiras semanas de vida, crianças
de diferentes faixas etárias estão submetidas a violações sexuais. Os estudos de Sanderson (2008)
apontam que a maioria – um percentual de 87%, dos crimes desta natureza são cometidos por pessoas
conhecidas da criança, e que muitas destas violações nunca chegam a ser denunciadas. Além dos
aspectos objetivos para a compreensão do que caracteriza o abuso sexual, observamos os aspectos
mais subjetivos, que envolvem as relações violadoras.

No abuso sexual da criança como uma síndrome conectadora de segredo e adição nós
precisamos distinguir, mais do que em qualquer outra área do trabalho com a criança e a
família, entre o dano primário pelo próprio abuso e o dano secundário pela intervenção
profissional. Essa noção leva em conta o fato de que, no abuso sexual da criança como um
problema normativo de direitos humanos, nem todas as crianças ficam perturbadas
psiquiatricamente, embora todas as crianças sejam afetadas e fiquem confusas pelos efeitos
do abuso sexual como uma síndrome de segredo (FURNISS, 1993, p.23).

Pode-se dizer, que o abuso sexual é uma das formas de violência sexual. A violência sexual
nas suas formas diversas e perversas de apresentação, são permeadas por situações complexas de
encobrimentos, disfarçadas e, muitas vezes velada por longos períodos. Esta característica de silêncio,
de segredo, está ancorada nas relações, familiares ou não, que permeiam os laços afetivos da criança
com o agressor. Essa situação de manutenção do segredo pela criança em situação de violência gera
um processo de grande stress, que coloca em risco seu desenvolvimento psicossocial, bem-estar,
qualidade de vida e segurança.

As crianças que sofreram abuso freqüentemente são obrigadas a não revelar para ninguém
dentro da família ou fora dela. Pode ser dito à criança, especialmente às crianças pequenas,
que aquilo que acontece durante o abuso é um segredo entre a criança e a pessoa que abusa.
O segredo é geralmente reforçado pela violência, ameaça de violência ou castigo. Algumas
vezes encontramos uma mistura de ameaças e suborno, em que o ganho secundário do
suborno e de um tratamento especial mantém o segredo que, não obstante, é basicamente
fundamentado nas ameaças (FURNISS, 1993, p. 30-31).

O cenário que envolve o abuso está, não raramente permeado pela ambivalência de
sentimentos, e sentidos que a criança dá na relação constituída com o abusador pois os agressores
294
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
são principalmente pessoas que fazem parte da família, e acabam utilizando desse vínculo e da
ambivalência, de sentimentos positivos que as vítimas ainda têm por eles para as chantagearem, na
manutenção do segredo, um pacto de silencio entre vítima e agressor. É importante observar que esse
processo é desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa, já que o “agressor pode utilizar-se
de seu papel de cuidador e da confiança e afeto que a criança tem por ele para iniciar, de forma sutil,
o abuso sexual” (HABIGZANG; KOLLER, 2011, p. 13). Esse contexto contribui para que a criança,
na maioria dos casos denunciados e identificados, não consiga identificar de imediato que a interação
que ocorre é abusiva, e por isso não sente necessidade de revelar esta interação a ninguém, só com o
avanço do abuso, ou com ações que se tornem mais explícitos é que a criança poderá (ou não) perceber
que tal situação é uma forma de violência que ela vem sofrendo (HABIGZANG; KOLLER, 2011).
Além desta condição de segredo, observa-se o comportamento identificado como síndrome
de adição, que se refere ao comportamento compulsivo do agressor frente ao estímulo que a criança
representa. Esta observação se refere ao comportamento compulsivo do abusador, que tem clareza de
que sua conduta é criminosa, que inflige dano à criança, contudo, a compulsão à repetição mostra-se
como um elemento comum no abuso físico e sexual.

O aspecto do segredo e o aspecto da adição constituem, ambos, mecanismos de evitação da


realidade para a pessoa que abusa, sendo que a criança é forçada a associar-se à síndrome do
segredo. A grande dificuldade de se parar o abuso sexual da criança, romper o segredo, criar
e manter a realidade e lidar com os apegos mútuos, frequentemente muito fortes e destrutivos,
entre a pessoa que abusa e a criança são efeitos específicos do abuso sexual da criança como
síndrome conectadora de segredo e adição. (FURNISS, 1993, p. 40).

Estas síndromes conectadas são apontadas em abusos prolongados, geralmente dentro da


família, mas também presente em abusos mais breves. Nota-se que estes elementos são agravantes e
podem resultar na demora para a revelação do abuso e o devido atendimento às vítimas. A presença
destas síndromes faz com que o manejo do abuso sexual da criança apresente problemas mais
complexos e difíceis do que o abuso físico, especialmente no que se refere ao controle, à intervenção
protetora e ao processo terapêutico (AZAMBUJA, 2004).
Outro aspecto atravessa as questões que envolvem as situações de abuso e violência sexual
contra crianças, que diz respeito às condições das famílias na acolhida a criança vitimada quando os
casos são denunciados, ou vem a público de alguma forma. Em cada situação a violência assume
um potencial de desarticulador do contexto familiar, em decorrência de suas experiências,

295
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relações internas, e condutas construídas sob um conjunto de valores morais próprios. Em muitos
casos a preocupação com autoimagem familiar sobrepõem a conduta de proteção ou preocupação
com a proteção da criança (FURNISS, 1993).
Essa conduta em termos de como cada grupo familiar conduz uma revelação de abuso, é
perceptível nos registros oficiais sobre os casos de violência sexual contra crianças, pois em sua
maioria, os registros apontam indicadores de que tal violação está preponderantemente mais
expressivo nas camadas mais vulneráveis economicamente, entre os mais pobres. A leitura desta
informação não pode ser realizada de forma enviesada sob o risco de definirmos equivocadamente a
população mais pobre como mais violenta. A informação acaba mascarada, em virtude de que grupos
familiares com melhores condições econômicas procuram serviços privados, como consultórios
médicos e atendimentos psicológicos, não somando aos índices das políticas sociais públicas.

É fato que a ocorrência de violência intrafamiliar é encontrável em qualquer classe social


(Santos, 1997), mas, na classe popular, os maus‑tratos são mais visíveis, uma vez que chegam
com mais frequência aos serviços públicos de atendimento, e também por isso, a atuação
junto a esse público fica facilitada. Cabe dizer que, por mais difícil que seja a intervenção, é
aqui que se visualizam maiores possibilidades de atendimento e proteção à criança.
(PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27).

Neste sentido, que se mostra imperiosa a qualificação dos serviços prestados às vítimas de
violência sexual, a leitura da realidade destas famílias de forma integral e a atuação de políticas
públicas que contemplem suas demandas. Considerando, por exemplo, que a prática do abuso sexual
é permeada por inúmeras variáveis e diversos artifícios para a manutenção de seu segredo, há de se
ter atenção e cuidado redobrado no sentido de garantir a proteção desta vítima, não a expondo a novas
formas de violência, ou seja, revitimizando-a. A complexidade e contradição deste processo
evidenciam-se ao passo que a violência e as relações de afeto se apresentam simultaneamente, o que
leva uma criança ter dificuldade de compreender, e diferenciar situações de carinho de ocorrências
caracterizadas como abuso.
Para além de pensar a caracterização do que envolve a violência sexual contra crianças, é
importante refletir sobre as consequências dessa violação, e os mecanismos disponíveis para
prevenção e proteção das crianças. Muitas podem ser as consequências causadas pela experiência
sexual em idade inapropriada, crianças submetidas ao abuso sexual, podem apresentar uma
infinidade de questões psicossociais ao longo de seu desenvolvimento, e de sua vida. Estudos
296
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que vem se debruçando sobre as implicações em pessoas que sofreram abusos em sua infância
demonstram que estas podem desenvolver problemas, ou situações de risco a vida como “[...]
automutilação, tentativas de suicídio, adição a drogas, depressão, isolamento, despersonalização,
hipocondria, timidez, impulsividade, hiper sexualidade, agressão sexual, desvio de identidade de
gênero e distúrbios de conduta, como mentiras, fugas de casa, roubos e estupro” (AZAMBUJA;
FERREIRA, 2011 p. 372).
Azambuja (2004), alerta que mesmo que uma criança, que tenha sido vítima de abuso sexual
não apresente um conjunto de sintomas que possam gerar preocupação imediata, não significa que
não esteja sofrendo, e que poderá sofrer efeitos futuros dessa experiência que pode se tornar um
trauma. As consequências dessa violência podem se manifestar mais tarde, em outra fase da vida, na
adolescência, ou ainda na vida adulta. Uma criança que sofrei abuso sexual, pela natureza e gravidade
que implica tal violação é uma criança em situação de risco.
Além dos abalos em curto prazo ocorridos nas vítimas de abuso sexual, muitas das
consequências são experienciadas somente na vida adulta. Não raras vezes, somente na vida adulta
são mencionadas situações de violência sexual sofridas na infância. As consequências da violência
sexual contra crianças podem se transpor como traumas que percorrem outras fases da vida Do
entendimento sobre os aspectos que caracterizam a violência sexual contra crianças, observamos a
seguir, os elementos que compõem as ações que visam a proteção, e em especial como tal situação
vem sendo tratada e amparada no campo legal no Brasil.

ASPECTOS LEGAIS BRASILEIROS SOBRE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS


Considerando as diversas formas de manifestação da violência sexual como: contatos físicos,
masturbação recíproca, voyerismo, exibicionismo, penetração oral, anal ou genital e, ainda, que
muitas delas não deixam vestígios ou marcas físicas, é que se tem a preocupação com a qualidade dos
serviços oferecidos para estas vítimas. Há de se destacar que um dos problemas que o país vive com
importante impacto no desenvolvimento da criança e seus direitos é a exploração sexual. Essa forma
de violência visa a obtenção de proveito por parte dos adultos, apresentada em quatro modalidades:
tráfico, turismo sexual, pornografia e prostituição.
Observando o território nacional, podemos perceber como a exploração sexual se
manifesta pelas diferentes regiões, o que é preocupante em termos das dimensões continentais

297
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
do País e do tamanho da população. Em umas das mais recentes publicações sobre a exploração sexual
de crianças e adolescentes no Brasil170, são apontados indicadores sobre essa situação no território
nacional. O levantamento identificou 1.969 pontos de exploração, divididos pelas macrorregiões do
país. Tal levantamento aponta que a região sul apresenta número considerável de pontos de
prostituição, sendo a terceira região do país com maior número de locais com exploração sexual,
ficando atrás apenas da região sudeste e nordeste. O mesmo relatório aponta como sendo crianças e
adolescentes do sexo feminino as principais vítimas (69%), contudo, destaca ainda que em “[...] 41
pontos foi identificada a presença de meninos vítimas de exploração sexual. [...] esses dados
demonstram que meninos também estão sendo vítimas de exploração sexual nas rodovias
(ACRONIMOS, 2015, p.33).
Tais informações da realidade demonstram que além da caracterização, do entendimento de
como ocorrem as violações, é preciso compreender esse fenômeno na relação com os territórios.
Desmistificar ainda a questão de que somente as meninas são vítimas de violência sexual, conforme
apontado pelo estudo realizado no país. Tais elementos são dados essenciais para a construção de
estratégias de proteção da infância. É relevante resgatar que

[...] a violência é parte significativa do cotidiano, retratando a trajetória humana através dos
tempos, e que é intrínseca à existência da própria civilização. Como parte desse fenômeno, e
inserida num contexto histórico-social e com raízes culturais, encontra-se a violência familiar
(violência conjugal, maus-tratos infantis, abuso sexual intrafamiliar etc.), que é um fenômeno
complexo e multifacetado, atingindo todas as classes sociais e todos os níveis
socioeducativos: apresenta diversas formas como, por exemplo, maus-tratos físicos,
psicológicos, abuso sexual, abandono e negligência na educação e formação de crianças e
adolescentes (BITENCOURT, 2012, p.215).

Em virtude de uma sociabilidade violenta e que tem vitimado as crianças e outros segmentos,
tem sido cada vez mais importante instituir mecanismos de proteção a esse público. No Brasil a
Constituição Federal de 1988 é um marco regulatório que, além de descrever direitos fundamentais
para crianças e adolescentes, aponta para a necessidade de sua proteção, exemplificando inclusive as
situações de violência. Destaque para o teor do parágrafo 4º do artigo 227 que indica a punição severa
para situações que envolvam abuso, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes e o

170
Para maiores informações consultar - 6º Mapeamento dos Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças
e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras (2013-2014).
298
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
artigo 5º da carta magna, dispondo que a lei considerará alguns tipos de crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia, dentre estes, os crimes definidos como crimes hediondos.
Lembrando que os crimes de estupro contra vulnerável, previstos no Código Penal, são considerados
crimes hediondos, a partir da alteração do Código Penal171 (BRASIL, 1998).
A regulamentação da matéria de crimes sexuais no Brasil foi apresentada pelo Código Penal
Republicano de 1890 e, até o ano de 2009, os tipos de crimes sexuais encontravam-se relacionados
no Código Penal de 1940. Há de se destacar que na legislação brasileira vigente, mais especificamente
no Código Penal Brasileiro, alterado no ano de 2009, a violência sexual é considerada crime e
disposta, no título VI deste Código, como crime contra a dignidade sexual (POTTER, 2016).
Apresentamos as definições presentes no Código, no quadro 01, a seguir:

Quadro 01 – Definição e penas em relação a crimes sexuais contra crianças, segundo o Código
Penal brasileiro (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).

Definição pelo Código Penal Penas e Agravantes


Estupro de vulnerável. Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Art. 217- A. Ter conjunção carnal ou § 3 o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza
praticar outro ato libidinoso com menor grave - Pena: reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
de 14 (catorze) anos. § 4 o Se da conduta resulta morte – Pena: reclusão, de 12
(doze) a 30 (trinta) anos.
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste
artigo aplicam-se independentemente do consentimento
da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais
anteriormente ao crime.
Corrupção de menores. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
Art. 218. Induzir alguém menor de 14
(catorze) anos a satisfazer a lascívia de
outrem.
Satisfação de lascívia mediante Pena: reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
presença de criança ou adolescente.
Art. 218-A. Praticar, na presença de
alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal
ou outro ato libidinoso, a fim de
satisfazer lascívia própria ou de outrem.
Favorecimento da prostituição ou de Pena: reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
outra forma de exploração sexual de § 1 o Se o crime é praticado com o fim de obter
criança ou adolescente ou de vantagem econômica, aplica-se também multa.
vulnerável.

171
Alteração realizada no ano de 1990, através da Lei 8.072.
299
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair § 2 o Incorre nas mesmas penas: I - quem pratica
à prostituição ou outra forma de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém
exploração sexual alguém menor de 18 menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na
(dezoito) anos ou que, por enfermidade situação descrita no caput deste artigo; II - o proprietário,
ou deficiência mental, não tem o o gerente ou o responsável pelo local em que se
necessário discernimento para a prática verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.
§ 3 o Na hipótese do inciso II do § 2 o , constitui efeito
do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar
que a abandone. obrigatório da condenação a cassação da licença de
localização e de funcionamento do estabelecimento.
Divulgação de cena de estupro ou de Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não
cena de estupro de vulnerável, de cena constitui crime mais grave.
de sexo ou de pornografia. § 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois
Art. 218-C. Oferecer, trocar, terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou
disponibilizar, transmitir, vender ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou
expor à venda, distribuir, publicar ou com o fim de vingança ou humilhação.
divulgar, por qualquer meio - inclusive
por meio de comunicação de massa ou
sistema de informática ou telemática -,
fotografia, vídeo ou outro registro
audiovisual que contenha cena de
estupro ou de estupro de vulnerável ou
que faça apologia ou induza a sua
prática, ou, sem o consentimento da
vítima, cena de sexo, nudez ou
pornografia.
Fonte: BRASIL (2009; 2018). Sistematizado pelas autoras.

A inclusão das redações no Código Penal brasileiro, pelas Leis Federais nº 12.015 de 2009 e
13.718 de 2018 respectivamente, são importantes avanços no reconhecimento dos aspectos distintos
que configuram a violência sexual contra crianças a partir da realidade concreta. Não se vai com esta
redação apagar ou redefinir o que Nucci (2014, p.113) destaca como etimologia do vocábulo estupro,
que “[...] significa coito forçado, violação sexual com emprego de violência física ou moral”. Mas,
acrescentar um importante entendimento no que tange essa violação, contemplando atos sexuais que
superam a conjunção carnal, ancorando-se aí outros atos sexuais, libidinosos172, forçados.
Outro mecanismo protagonista no avanço do processo pela busca da proteção às crianças é o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A legislação de proteção às crianças e adolescentes, é
bem clara quanto à primazia pela proteção integral a esse segmento. Porém, há de se destacar que a

172
Se entende como ato libidinoso o ato lascivo, voluptuoso, que objetiva prazer sexual. Sendo assim, percebe-se a
complexidade que há no momento da materialização da prova deste tipo de violência. Observa-se que a inexistência
de marcas físicas não torna menos danosa as consequências de um ato de violência sofrido, contudo, no âmbito
legal, torna mais complexa a comprovação da violência.
300
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
realização de alguns procedimentos investigatórios nestas situações de violência sexual pode resultar
em um processo de revitimização. Esse processo ocorre por, não raras vezes, a vítima também ocupar
a posição de testemunha do crime, sendo demandada a percorrer toda sua vivência a fim de
reconstituir a violação sofrida. Tal situação é uma prerrogativa para o atendimento, contudo, esse
longo percurso de resgate é desgastante, já que, no geral, a criança é submetida à escuta de diferentes
profissionais como: “[...] juízes, promotores, policiais, psicólogos, assistentes sociais e conselheiros
tutelares, só para citar nomes alguns dada a importância dos efeitos produzidos sobre a pequena
vítima” (SANTOS, 2012, p.47).
Esse processo é identificado pela literatura especializada como revitimização, ou ainda,
vitimização secundária.

[...] no âmbito procedimental podemos verificar outro tipo de vitimização, onde a violência
é causada pelo sistema de justiça que viola outros direitos, vitimizando novamente a criança
ou adolescente. Essa revitimização denomina-se vitimização secundária, que outra coisa não
é senão a violência institucional do sistema processual penal, fazendo das vítimas novas
vítimas, agora do estigma processual-investigatório (POTTER, 2016, p. 29).

O propósito da proteção à infância requer que qualquer intervenção profissional tenha como
objetivo principal evitar o dano secundário, antes mesmo de se dedicar a tarefa terapêutica primária
de tratar o trauma decorrente do próprio abuso sexual. Deste modo, entende-se que a proteção da
criança vítima de violência sexual se sobreporia à busca pela materialidade do crime praticado. Para
entendimento do processo de comprovação dos crimes sexuais contra crianças, pode-se observar duas
concepções de análise que devem andar juntas: o abuso sexual visto como questão de direitos da
criança e como um problema de saúde (FURNISS, 1993).
Nestas diferentes formas de compreensão e dos possíveis encaminhamentos, pode resultar na
fragilidade da atenção e nos resultados das respostas oferecidas pelos profissionais. No trabalho
realizado, após a denúncia do possível abuso sexual, há alguns procedimentos a serem adotados
conforme a legislação penal que poderão estar em desacordo com a perspectiva da proteção da
criança, visto que muitas vezes, as demandas oriundas dos fluxos institucionais com a finalidade da
punição dos perpetradores do crime, acabam se sobrepondo aos cuidados de natureza mais protetiva.

[...] a vitimização secundária dos menores vítimas de abuso sexual (no plano familiar e
extrafamiliar), historicamente tratados pelas autoridades repressoras (Polícia,
Ministério Público e Judiciário), como simples objeto de investigação e meio de prova.

301
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Merece destaque especial, nesse particular, a atuação de muitos representantes do Parquet
que, obcecados pela busca de uma mitológica verdade real, sempre desconheceram a
vitimização secundária daqueles vitimados pela violência sexual, vistos somente como
simples meios de prova (BITENCOURT, 2012, p. 214).

O Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-Lei 3.689) norteia métodos práticos para a
verificação de crimes que deixam sinais. Nesse sentido, o exame de corpo de delito173 é apontado,
como indispensável, pelo artigo 158 do Código de Processo Penal, quando a infração deixar vestígios,
não podendo supri-lo a confissão do acusado. O capítulo II desde Código, intitulado “Do exame de
corpo de delito e das perícias em geral” uma prova pericial demonstra, apenas um grau – maior ou
menor – de probabilidade de um aspecto do delito, que não se confunde com a prova de toda
complexidade que envolve o fato. Tal normativa, coloca o exame de corpo e delito como fase
compulsória para os crimes que podem, pela sua natureza deixar vestígios. O exame de corpo de
delito é apontado como a mais importante das perícias, já que este exame é a perícia feita sobre os
elementos que constituem a própria materialidade do crime, é composto pelos vestígios materiais
deixados pelo crime. Contudo, nos casos de violência sexual contra crianças, onde muitas vezes não
há vestígios materiais a serem encontrados, são vários os apontamentos direcionados à proteção da
criança que precisam ser verificados.

O fundamental é que se perceba de uma vez por todas que crianças e adolescentes, vítimas
de violência sexual, intrafamiliar ou não, antes de objeto de investigação e de meio de prova,
são, acima de tudo, sujeitos de direitos, e que a sociedade, em nenhuma hipótese, tem o direito
de revitimizá-los, seja a pretexto da busca da mitológica verdade real, seja para assegurar a
mais ampla defesa do eventual acusado (BINTENCOURT, 2012, p. 219).

O debate que permeia este universo, é muito importante, já que, as situações que caracterizam
violência abuso sexual nem sempre deixa marcas ou vestígios a serem constatados. Há de se ter um
discernimento quanto aos encaminhamentos para o exame de corpo de delito e alternativas de
atendimento como forma de proteção a criança, evitando o aumento da exposição desta. É preciso
observar que as situações de violência sexual são mais facilmente identificadas quando há um quadro
de lesões orgânicas, como: “[...] as cutâneas, ósseas, oculares e neurológicas, provocados por
agressões físicas, queimaduras, mordidas, tapas, sucos etc. No entanto, atualmente observa-se que

173
É a verificação da prova da existência do crime, feita por peritos, diretamente, ou por intermédio de outras
evidências, quando os vestígios, ainda que materiais, desapareceram (NUCCI, 2008, p.383).
302
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
esses cuidadores se utilizam de materiais que não deixam marcas físicas visíveis” (DE ANTONI;
KOLLER, 2012, p.43).
Aqui, devemos mencionar que há uma desejável e, agora, legitimada possibilidade de
mudança, pois, como veremos a nova Lei 13.431 também traz novas perspectivas em relação ao
exame de corpo de delito. Para além disto, é importante que seja situado o papel da rede de
atendimento, pois torna-se mais difícil que haja a proteção174 sem a cooperação entre os serviços. O
ECA em seu artigo 86 define que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União,
dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Entende-se que esta articulação pode e deve se dar
através do trabalho interdisciplinar já que o abuso sexual “praticado contra a criança é um tema
complexo, portador de múltiplas facetas, com reflexos nas áreas da saúde, educação, serviço social,
sistema de Justiça, assim como na área das políticas públicas”. (AZAMBUJA, 2004, p.145).
Tais reflexões apontam para a importância do entendimento sobre o que caracteriza a violência
sexual e como esta se expressa na realidade, para podermos observar nos dispositivos legais os
aspectos de proteção, e rever condutas que possam estar revitimizando as crianças. É preciso realizar
uma reflexão sobre o depoimento da criança nos casos de violência sexual a que foi submetida, ou
presenciou. Em abril de 2017, foi publicada a Lei 13.431 que estabelece o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera alguns dispositivos do
ECA. Esta lei entrou em vigor no ano de 2018 e contribui com modificações significativas no âmbito
da proteção de crianças vítimas de violência, principalmente, no processo de revitimização, ou
vitimização secundária abordadas neste estudo.
Além das contribuições para compreensão dos tipos de violência, essa legislação aponta para
uma compreensão ampliada do significado de violência, abordando fatores múltiplos que integram a
complexidade deste fenômeno. Oferecendo assim, um aporte jurídico que contribui para identificação
e possíveis encaminhamentos sob a perspectiva de proteção das vítimas. O artigo 4º da Lei
13.431/2017 apresenta formalmente os conceitos de violência física, psicológica, sexual e

174
Em relação a novos dispositivos ou mecanismos para a proteção, destacamos o Decreto nº 7.958/2013 que
estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da
rede de atendimento do Sistema Único de Saúde. Ainda, em 2013, foi publicada a Portaria 528, definindo as regras
para habilitação e funcionamento dos Serviços de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual no
âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e em agosto, houve a publicação da Lei 12.845, versando sobre o
atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.
303
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
institucional. Ainda neste artigo, os dois primeiros parágrafos apontam para a oitiva da vítima através
de depoimento especial175 e a articulação das políticas nos procedimentos para a revelação da
violência. Esta lei,

[...] normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima


ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência, nos termos
do art. 227 da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos da Criança e seus
protocolos adicionais, da Resolução no 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas e de outros diplomas internacionais, e estabelece medidas de assistência e proteção à
criança e ao adolescente em situação de violência (BRASIL, 2017, s/p).

É relevante observar que estudiosos do tema da violência sexual contra crianças, vem
apontando reiteradamente uma preocupação central, que diz respeito ao modo como as crianças
vítimas de violência sexual são tratadas a partir da revelação da violência. Muitos apontam para a
revitimização da vítima ao serem encaminhadas a vários órgãos para contar e, muitas vezes, repetir
os fatos vivenciados e a possível reprodução do trauma ao relatar a situação. Ainda no ano de 2018,
um decreto, nº 9.603, regulamenta a Lei 13.431/2017 trazendo mudanças significativas para a
abordagem e atendimentos nos casos de violência contra crianças e adolescentes. Mudanças de
paradigma que, ao que parecem, podem conseguir a efetivação da proteção preconizada nas demais
leis no âmbito do sistema de garantias de direitos.
Este decreto é recente, aponta para a necessidade de uma escuta especializada176 nos casos de
denúncia de violência contra crianças e adolescentes e o Depoimento Especial como procedimento
de oitiva das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de situações de violação. Ele mostra-se
como um importante marco transformador ao passo que detalha os procedimentos a serem adotados
com o propósito principal a proteção. Nas orientações à autoridade policial, por exemplo, a elaboração
dos boletins de ocorrências destes casos poderá ser realizada, sempre que possível, por pessoa
responsável ou que tenha as informações básicas sobre o fato, além disso, orienta que a descrição dos
fatos não seja realizada diante da criança ou do adolescente e o exame de corpo de delito, como

175
[...] é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade
policial ou judiciária (BRASIL, 2017).
176
A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da
saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o
acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida,
limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados
(ART. 19, 2018).
304
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
comentamos anteriormente, aparece como um instrumento regulamentado, até então realizado sem
restrições. O parágrafo 7º do artigo 13 do decreto dispõe: A perícia física será realizada somente nos
casos em que se fizer necessária a coleta de vestígios, evitada a perícia para descarte da ocorrência
de fatos. Desta forma, o decreto 9.603/2018 inova e aponta para transformações, há muito necessárias,
na questão da proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências, prima pela
não revitimização e sim a preferência da abordagem mínima, com cuidado e atenção às demandas
infantis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A caracterização das situações de violência sexual demonstra a complexidade deste fenômeno.
A violência sexual contra crianças é uma realidade evidente na sociedade brasileira, é uma ocorrência
multifacetada e constituída de determinações que atravessam as relações sociais mais sensíveis, a
relação entre adultos e crianças. Tamanha a complexidade que envolve a violência sexual contra
crianças, envolve também as formas de atenção as vítimas. Em um caminho trilhado por mecanismos
de prevenção, proteção e punição, observamos que muito já foi construído, contudo, observamos
também, que ainda não é o suficiente. O debate acumulado na academia por pesquisadores que vem
se debruçando sobre o tema, e por setores de proteção da infância, tem contribuído para revisão das
formas de atendimento as crianças vítimas, sob a perspectiva de avançar no caminho do cuidado e da
proteção.
Na busca pela responsabilização dos sujeitos que cometeram a violência, vários mecanismos
são apresentados, desde as perícias médicas e psicológicas, como o exame de corpo de delito e o
depoimento da vítima. Este conjunto de ações busca construir o processo e a materialidade da prova,
mas também, a passos lentos, a proteção integral da criança e sua não revitimização. A legislação
mais recente, aponta para uma ampliação na compreensão do que caracteriza violência sexual e isso
em si considera-se um avanço importante, apontando para a revisão dos procedimentos utilizados
quando da identificação/denúncia dos casos de violência sexual. As contribuições aqui destacadas,
ainda que inacabadas, refletem sob a necessidade de rever, reconstruir, elaborar as estratégias a serem
adotadas no procedimento da escuta de uma criança vítima de violência sexual, a fim de evitar
processo de revitimização, e avançarmos no alcance da efetivação de mecanismos mais
protetivos.

305
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ACRONIMOS (Org.). 6º Mapeamento de Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças


e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras. 2015. Disponivel em:
<http://www.childhood.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Mapeamento_2013_2014.pdf>. Acesso
em 22 nov. 2019.

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança?
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.

_____________. Violência sexual contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo (orgs). Crianças vitimizadas:
a síndrome do pequeno poder. 2ª ed. São Paulo: Iglu, 2007.

BERWIG, Solange E. Violência Intrafamiliar: uma aproximação ao tema. In: GROSSI, Patrícia.
JR. FONSECA, Roberto. DUARTE, Joana das F. Expressões de violência: experiência de intervenção
e pesquisa em Serviço Social. Editora: Appris.2017.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública / Cezar Roberto Bitencourt. – 6. ed. rev. e
ampl. – São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

_____________. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em 25 fev. 2020.

_____________. Decreto- Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso
em 25 fev. 2020.

_____________. Decreto- nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9603.htm>. Acesso em 25
abr. 2020.

_____________. Lei 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Impresso.

_____________. Lei 13.431/17. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2017/lei/l13431.htm > Acesso em 28 abr 2020.

306
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
_____________. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar:
orientações para a prática em serviço. Secretaria de Políticas de Saúde. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2001.

_____________. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Crianças e


Adolescentes são vítimas em mais de 76 mil denúncias recebidas pelo Disque 100. Disponível
em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/maio/criancas-e-adolescentes-sao-
vitimas-em-mais-de-76-mil-denuncias-recebidas-pelo-disque-100. Acesso em 28 abr 2020.

_____________. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Relatório Disque


100/2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-
informacao/ouvidoria/Relatorio_Disque_100_2019_.pdf. Acesso em 28 abr 2020.

_____________. Presidência da República – Casa Civil. Leo nº 12.015 de agosto de 2009. Altera o
Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal,
e o art. 1oda Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos
termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho
de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em 25 fev.
2020.

_____________. Lei 13.431/2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do


adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente). 2017. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm. Acesso em 25 fev. 2020.

DE ANTONI, Clarissa; KOLLER, Silvia H. Perfil da violência em família com história de abuso
físico. In: HABIGZANG, Luísa F; KOLLER, Silvia H. (orgs). Violência contra crianças e
adolescentes: teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre: Artmed, 2012.

FERREIRA, Maria Helena Mariante Ferreira. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de (orgs). Violência
sexual contra crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.

FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1993.

HABIGZANG, Luísa F; KOLLER, Silvia H. (orgs). Violência contra crianças e adolescentes:


teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre: Artmed, 2011.

HOHENDORFF, Jean Von; HABIGZANG, Luísa Fernanda; KOLLER, Silvia Helena. Violência
sexual contra meninos: teoria e intervenção. Curitiba: Juruá, 2014

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal - 4ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008.

307
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
_____________. Crimes contra a Dignidade Sexual. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

OMS – Organização Mundial de Saúde. Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Genebra,
2002. Disponível em: <http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-
violencia-saude.pdf>. Acesso em 20 fev. 2020.

PEDERSEN, Jaina Raqueli. GROSSI, Patrícia Krieger. O abuso sexual intrafamiliar e a violência
estrutural. In: AZAMBUJA, Maria Regina Fay; Violência sexual contra crianças e adolescentes.
Porto Alegre: Artmed, p. 25-34, 2011.

POTTER, Luciane. Vitimização secundária infantojuvenil e violência sexual intrafamiliar: por


uma política pública de redução de danos. 2ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

SANDERSON, Christiane. Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores para


proteger crianças contra abusos sexuais e pedofilia. São Paulo: M.Books do Brasil Editora Ltda,
2008

SANTOS, Cristiane Andreotti. Enfrentamento da revitimização: a escuta de crianças vítimas de


violência sexual. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.

308
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RESPOSTA BRASILEIRA À EPIDEMIA DO HIV/AIDS: PERSPECTIVAS E
INTERESSES EM DISPUTA

Gabriela Dutra Cristiano177

Resumo: A epidemia do HIV convoca diferentes atores a construir estratégias de enfrentamento em nível global e local.
A conexão e o resultado da disputa entre interesses diversos constituí a agenda de resposta à epidemia conforme contextos
e temporalidades. Este artigo se propõe a identificar as bases conceituais e epistemológicas que dão suporte ao paradigma
da Prevenção Combinada - principal estratégia adotada no contexto brasileiro. Para tal no primeiro momento apresenta-
se um breve resgate histórico sobre a agenda da estratégia de enfrentamento a epidemia do HIV/AIDS. Após, utiliza-se a
metodologia de revisão documental, de natureza exploratória, relacionando os elementos identificados na publicação do
Ministério da Saúde “Prevenção Combinada do HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as)
da saúde” (BRASIL, 2017) e na publicação da UNAIDS “90-90-90 Uma meta ambiciosa de tratamento para contribuir
para o fim da epidemia da AIDS”, com a literatura sobre o tema. Como resultados, identifica-se avanços e tensões na
disputa entre perspectivas, envolvendo interesses diversos. Aponta-se para necessidade de superação do modelo
puramente biológico, embora reconhecendo seus avanços para a vida das pessoas.

Palavras-chave: Epidemia do HIV/AIDS; Saúde; Prevenção; Populações-Chave.

INTRODUÇÃO
A epidemia do HIV/AIDS pode ser vista, simbolicamente, como aglutinadora e catalisadora
de questões absolutamente emblemáticas na sociedade capitalista. Com base em Mann, um dos
principais pensadores das políticas voltadas a AIDS, é possível identificar pelo menos três fases da
epidemia: a primeira, aquela em que pessoas foram sendo infectadas pelo vírus do HIV de forma
quase despercebida; a segunda, a epidemia da AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida),
momento do adoecimento das pessoas que que viviam com HIV; e a terceira, talvez a mais explosiva,
a “epidemia de relações sociais, culturais, econômicas e políticas à AIDS.” (DANIEL e PARKER,
2018, p. 14)
A terceira epidemia da AIDS atualiza mecanismos de regulação dos corpos e da sexualidade.
No Brasil, em pleno processo de lutas pela reabertura democrática e lutas feministas, pela liberdade
sexual e de gênero, a epidemia permitiu o reforço a norma heterossexual e, especialmente, no reforço
a masculinidade hegemônica - aquela que exerce o mecanismo de poder de vigília da sexualidade.
Pode-se entender que o significado social do HIV se constrói no tecido social das sociedades,
sendo produto e produtor de relações sociais que se materializam nas esferas da cultura, da economia
e das políticas sociais em determinadas territorialidades situadas no tempo e no espaço. A agenda de

177
Assistente social, doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), prestadora de serviços a Secretaria Estadual de Saúde pela Organização Panamericana em Saúde (OPAS).
E-mail: gabrieladutracristiano@gmail.com
309
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
respostas ao HIV/AIDS é, de certa forma, uma síntese da capacidade de disputa entre interesses
diversos: a capacidade do Estado de negociação dos países com as patentes da indústria farmacêutica
e com as orientações das instituições internacionais, a plasticidade em relação às pressões do
movimento social, a capacidade de adaptabilidade a contextos e realidades particulares das
populações a quem se destina e a forma como se insere no conjunto das políticas de saúde e das
políticas sociais.
A história social da epidemia do HIV/AIDS é interseccionada com as regulações de gênero e
sexualidade. Assim, é importante destacar que vivemos atualmente no Brasil um momento de extrema
apreensão no que tange as questões tão emblemáticas que envolvem a epidemia e a agenda voltada
ao seu enfrentamento. Temos a partir de 2018 o Congresso Nacional mais conservador dos últimos
20 anos, que tem como hegemonia a vulgarmente chamada bancada BBB - bala, boi e bíblia. Com a
eleição de Jair Bolsonaro visando alavancar os interesses da elite do país, investindo no agronegócio
e na indústria armamentista, vemos uma alavancada nos projetos de contrarreforma do Estado e nas
políticas de austeridade econômica contra a classe trabalhadora.
Ao que parece, o principal fator que difere das tentativas de Michel Temer (ex presidente
interino) em relação a estratégia de desmonte do Estado brasileiro, é o discurso que legitima o ódio,
a violência e a anulação das diferenças, possibilitando a criação de consensos com a “classe média”
burguesa e com as instituições de poder religioso. Do ponto de vista cultural, adentra-se a vida
cotidiana constituindo e/ou reatualizando mecanismos de controle e opressão de qualquer forma de
exercício da diferença, acirrando todas as faces da desigualdade social.
Nesse contexto, faz-se necessário investigar e problematizar criticamente os avanços, desafios
e as ameaças atuais em relação a agenda de enfrentamento ao HIV/AIDS no Brasil. Para isso, esse
artigo se propõe a identificar as perspectivas e interesses em disputa que sustentam o paradigma da
Prevenção Combinada - principal estratégia adotada no contexto brasileiro.

ANALISE DAS PERSPECTIVAS E INTERESSES EM DISPUTA NA AGENDA DE


PREVENÇÃO DO HIV/AIDS NO BRASIL
Nesta seção reconstrói-se uma breve síntese dos paradigmas que fundamentaram as
estratégias de prevenção do HIV ao longo destas quase quatro décadas de epidemia, na tentativa de
compreender quais os interesses e os fundamentos que se aglutinam no atual paradigma de
prevenção adotado na agenda estratégica brasileira: o paradigma da prevenção combinada.
310
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Posteriormente, realiza-se análise relacionando elementos identificados na publicação do
Ministério da Saúde “Prevenção Combinada do HIV: bases conceituais para profissionais,
trabalhadores(as) e gestores(as) da saúde” (BRASIL, 2017) com as metas de 2015 do Programa
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) a literatura sobre o tema, utilizando a
metodologia de revisão documental, de natureza exploratória. Busca-se, por fim, apontar quais os
principais desafios e ameaças ao programa brasileiro de HIV/AIDS a partir da ofensiva neoliberal
conservadora.

UMA BREVE HISTÓRIA DO HIV/AIDS


A epidemia da AIDS pegou as sociedades industriais desenvolvidas, que se acreditavam
capazes de enfrentar as doenças infectocontagiosas, de surpresas. A AIDS, com características graves
e mortais, envolvendo diversos aspectos das relações humanas - como sexo, morte, preconceito -
escancarou a dificuldades do ponto de vista da prevenção eficaz, do desenvolvimento de
medicamentos e de vacinas. (GRECO, 2008) Por outro lado, é interessante observar que a epidemia
contribuiu, ao mesmo tempo, com a mobilização, reivindicação e resistência de setores da sociedade.
Observa-se, por exemplo, que a participação de pessoas vivendo com HIV/AIDS “em congressos
médicos e em comissões governamentais de controle da doença tem contribuído para mudar o
paradigma dos programas verticalizados” (GRECO, 2008, p. 74)
A permeabilidade da política de saúde em relação ao movimento social de HIV/AIDS foi uma
das características da construção de estratégias de enfrentamento a epidemia no Brasil. O primeiro
caso no Brasil foi confirmado em 1982, época em que pouco se tinha de conhecimento e pesquisas
sobre o vírus e a AIDS era conhecida como o “câncer gay”. Com o avanço de estudos probabilísticos,
identificou-se populações que teriam maior risco de infecção pelo vírus e, segundo Ayres (et al, 2018,
p. s/p), essa população passou a ser alvo de estratégias esvaziadas e “toscas” de prevenção ao HIV
pautadas no isolamento sanitário, sendo identificadas enquanto grupos de risco: “se você é parte de
um dos grupos de risco abstenha-se de sexo, não doe sangue, não use drogas injetáveis”. (AYRES et
al, 2018, p. s/p)
Este cenário encontra um momento de efervescência política no Brasil, em defesa da abertura
política, da Reforma Sanitária, dos direitos de cidadania e, em especial, de um sistema de saúde
universal:

311
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No lugar de uma perspectiva autoritária, a Abrasco e o Cebes defenderam
participação social; no lugar de políticas de controle das doenças, notadamente
transmissíveis, a promoção da saúde e melhoria da qualidade geral de vida; no lugar
de um setor dividido entre saúde pública e medicina previdenciária, um sistema
unificado e universal. Sua agenda, nesse sentido, confunde-se com o próprio processo
de crise da ditadura e de redemocratização da sociedade brasileira, uma vez que, no
âmbito dessas instituições, por transformações da saúde entendiam-se iniciativas de
democratização do Estado, dos seus aparelhos e instâncias decisórias. (PAIVA;
TEIXEIRA, 2014, p. 22).

Em nível mundial, quando a ideologia do progresso (CASTEL, 2013) começa a se decompor,


suas contradições e o esgotamento do modo de acumulação fordista (BOYER, 1986) começa a ser
evidente. A crise econômica dos anos 1970 – a crise do petróleo – foi um novo momento em que
capitalistas se articularam para encontrar uma saída que favorece a manutenção do sistema. Nesse
sentido, é conhecido o pensamento de Hayek (2010) em seu livro O caminho da servidão, em que o
autor tece fortes críticas às experiências socialistas e comunistas na esfera mundial e defende a
liberdade de mercado como princípio fundamental. É nesta perspectiva que se inserem as conhecidas
personalidades na propagação do neoliberalismo como política econômica: Margaret Thatcher
(Inglaterra), Ronald Reagan (Estados Unidos) e Pinochet (Chile).
É na contracorrente da alternativa neoliberal frente à crise do capitalismo que o movimento
de redemocratização no Brasil culmina com a Constituição Federal de 1988. A política de saúde passa
a ser compreendida como direito constitucional, tendo seu financiamento vinculado ao orçamento da
Seguridade Social, sendo de acesso universal e gratuito. “O Brasil que assiste à consolidação de um
programa governamental de combate à aids, é um país que se redemocratiza, testemunha o crescimento dos
movimentos sociais, mas também responde às mudanças estruturais da economia mundial”. (LARISSA
PELÚCIO; MISKOLCI, 2009, s/p)
Neste contexto de maior permeabilidade entre política social pública e movimento social, foi
a partir de estratégias reivindicadas pelo próprio movimento social, especialmente os movimentos de
homossexuais, que se passou a incorporar outras estratégias de prevenção do HIV diferentes do “não
faça” como, por exemplo, o uso de preservativo para esta função para além de método anticonceptivo.
(AYRES et al, 2018, p. s/p)
A resposta brasileira tem sido bastante corajosa, com tendências que se aproximam e
outras que se diferem das orientações internacionais, sobretudo no que se refere ao acesso ao

312
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
tratamento. Desde 1996 o país dispensa a terapia antirretroviral de forma gratuita para todas as
pessoas com HIV dentro dos critérios consensuados cientificamente para início da medicação na
época, medidos especialmente por infecções ou doenças oportunistas e/ou contagem de células de
imunidade CD4.
O Banco Mundial é uma das principais instituições que oferece aporte financeiro para os
países em relação às políticas de HIV/AIDS. Para além de oferecer recursos e valores monetários, o
Banco Mundial é um grande produtor ideológico - de ideias e orientações - para o desenvolvimento
das políticas sociais (MATTOS; JÚNIOR; PARKER, 2001). A experiência brasileira tem
características inovadoras que são tomadas como exemplo por outros países, entretanto:

A questão-chave é que a distribuição gratuita de medicamentos não é uma das


políticas recomendadas pelo Banco, como também não o é a adoção do princípio de
que a saúde é um direito universal, e nem a tese de que é um dever do Estado garanti-
la. Aparentemente, a existência de divergências significativas entre as posições do
Banco e do governo brasileiro acerca da política de saúde e da política frente à AIDS
não tem impedido a concretização de empréstimos nesses dois setores. (MATTOS;
JÚNIOR; PARKER, 2001, p. 8-9)

O Brasil tem perpetuado a política de distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais


para todas as pessoas vivendo com HIV. Desde 2015, quando consensuou-se no campo científico a
medida de Tratamento como Prevenção, a conduta médica vem sendo prescrever a medicação desde
o momento em que a pessoa é diagnosticada com HIV. Considerada a terceira onda de prevenção do
HIV, a intenção de ruptura da distância entre o paradigma da prevenção e o do tratamento baseia-se
na introdução de tecnologias biomédicas também como tecnologias de prevenção. (BRASIL, 2017)
O estado de guerra contra a AIDS e o entendimento de que esta é uma barreira ao
desenvolvimento justifica a disposição de recursos, mesmo em momento de enxugamento do Estado.
Susan Sontag, em seu importante estudo AIDS e suas metáforas (1989), explica que enquanto antes
era o médico que empreendia a guerra contra as doenças na sociedade moderna é toda a sociedade
que o faz. Sobre a metáfora da guerra, a autora refere:

O abuso da metáfora militar talvez seja inevitável numa sociedade capitalista, uma
sociedade que cada vez mais restringe o alcance e a credibilidade do apelo aos
princípios éticos, que acha absurdo o indivíduo não sujeitar suas ações ao cálculo do
interesse próprio e do lucro. A guerra é uma das poucas atividades que não devem ser
encaradas de modo “realista”, ou seja, levando-se em conta gastos e resultados
práticos. Numa guerra total, os gastos são exageradamente imprudentes - pois a

313
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado
excessivo. (SUSAN SONTAG, 1989, p. 15)

É preciso reconhecer que a resposta brasileira ao HIV/AIDS tem sido bastante corajosa,
respondendo a participação popular e as reivindicações do movimento social e apontando a discussão
sobre preconceito e discriminação como central para o enfrentamento da epidemia. Entretanto, isso
não significa que tenha rompido com parâmetros ditados no plano internacional, estruturando seu
discurso em categorias como “vulnerabilidade” e “risco”, “efetivando-se em campanhas que visam às
mudanças de comportamento e à incorporação de práticas disciplinadoras” (LARISSA PELÚCIO;
MISKOLCI, 2009, s/p).

PREVENÇÃO COMBINADA DO HIV: INTERESSES EM JOGO


A principal instituição internacional orientadora das políticas voltadas ao HIV AIDS é o
Programa das Nações Unidas para a AIDS, que tem como organização mãe o Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas. Tal instituição é mantida por copatrocinadores, tais como a Organização
Pan Americana da Saúde/ Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS); o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); a Organização das Nações Unidas para a educação, a
ciência e a cultura (UNESCO) e o Banco Mundial, entre outras.
A partir de 2015 a UNAIDS declara, em nível mundial, a possibilidade de fim da epidemia do
HIV até 2030 (UNAIDS, 2015). O estado de guerra, em busca do fim do inimigo invasor - o HIV -
justifica o investimento de forças e recursos: “será impossível pôr fim à epidemia sem disponibilizar
o tratamento do HIV para todos que precisam”. (UNAIDS, 2015, p. 1)
Em construção discursiva anunciando o fim da epidemia, a UNAIDS pactua a seguinte meta:

• Até 2020, 90% de todas as pessoas vivendo com HIV saberão que têm o
vírus.
• Até 2020, 90% de todas as pessoas com infecção pelo HIV diagnosticada
receberão terapia antirretroviral ininterruptamente.
• Até 2020, 90% de todas as pessoas recebendo terapia antirretroviral terão
supressão viral. (UNAIDS, 2015, p. 1).

Tal meta tem forte apelo ideológico. Conhecida como “meta 90, 90, 90”, pressupõe-se
possível acabar com a epidemia do HIV/AIDS mesmo com as desigualdades econômicas, sociais
e culturais entre diferentes territorialidades do planeta: “modelos matemáticos sugerem que o
314
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
alcance dessas metas até 2020 permitirá que o mundo ponha fim à epidemia de AIDS até 2030, o que
por sua vez gerará grandes benefícios para a saúde e para a economia”. (UNAIDS, 2015, 2)
Embora a UNAIDS reconheça que a “única maneira de se alcançar essa meta ambiciosa é por
meio de estratégias alicerçadas em princípios de direitos humanos, respeito mútuo e inclusão”
(UNAIDS, 2015, 2), as violações de direitos humanos aparecem no discurso da instituição muito mais
como algo que, em sua ausência, pode impossibilitar o acesso à testagem e tratamento que como parte
constituinte da geografia do HIV no âmbito mundial.
Nesse mesmo sentido, compreende que “para implementar uma resposta abrangente para
acabar com a epidemia, serão necessários esforços concertados para eliminar o estigma, a
discriminação e a exclusão social”. (UNAIDS, 2015, p. 2) Embora seja importante salientar a
importância deste posicionamento, no texto este aparece como mero impeditivo para as pessoas
acessarem as tecnologias biomédicas, que já foi comprovado em perspectivas de prevenção adotadas
no início da epidemia, pautadas no medo e no estigma, e não como orientação para uma política de
combate ao estigma, a discriminação e a exclusão social com fundamentos sólidos e com direção
clara.
Neste cenário, reitera-se o papel do Banco Mundial enquanto exportador de orientações e
ideias para o enfrentamento da epidemia. Em documento que declara a participação do Banco
Mundial na UNAIDS, anuncia-se:

Há atualmente uma maior ênfase em se fazer o "melhor por menos”, a fim de ajudar
os países na utilização dos recursos disponíveis de maneira sábia, tornando a resposta
à AIDS mais bem desenhada e maximizando a prestação de serviços”. (BANCO
MUNDIAL e UNAIDS, 2015, s/p)

A orientação do Banco Mundial junto com a UNAIDS na perspectiva de “ajudar” os países a


fazer o melhor por menos recursos vai ao encontro das orientações do banco mundial para as políticas
públicas em geral: em perspectiva neoliberal, não se pauta a luta e necessidade de ampliação de
recursos para as políticas de HIV/AIDS; pauta-se, entretanto, a racionalidade de gestão tecnocrática
de aproveitamento dos recursos, ainda que escassos.
Além de tal perspectiva ir na contramão da universalização do acesso, identifica-se uma
contradição que poderá ser melhor avaliada em estudos futuros: não há no país a possibilidade
de qualquer pessoa comprar a medicação para o HIV em farmácia - toda dispensação é pública e

315
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gratuita, ainda que o acompanhamento de saúde possa ser feito na saúde complementar (privada). É
justamente o fato de o Estado brasileiro ser o único comprador de antirretrovirais no país que confere
ao governo poder de negociação de preços em relação às patentes da indústria farmacêutica em âmbito
internacional, possibilitando destinação de orçamento para tal compra, o que possivelmente não seria
possível se o país perdesse o poder de negociação.
Por outro lado, ainda que signifique avanços no ponto de vista da qualidade do serviço
prestado às pessoas vivendo com HIV, “muitos países - não só o Brasil - estão adotando o tratamento
como prevenção (TcP) como uma maneira de enfrentar orçamentos reduzidos e para abandonar um
leque mais amplo de atividades preventivas” (PARKER, 2015, p. 7)
Na rasteira desse contexto de avanços e retrocessos, o Brasil em 2017 lança o documento
PREVENÇÃO COMBINADA DO HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e
gestores(as) de saúde. Este documento aglutina tendências internacionais e posicionamentos da
agenda estratégica brasileira para a prevenção do HIV. Avançando na concepção de que não é
possível enfrentar a epidemia com estratégias fragmentadas, parte-se do seguinte conceito de
prevenção combinada:

É uma estratégia de prevenção que faz uso combinado de intervenções biomédicas,


comportamentais e estruturais aplicadas no nível dos indivíduos, de suas relações
e dos grupos sociais a que pertencem, mediante ações que levem em consideração
suas necessidades e especificidades e as formas de transmissão do vírus. (BRASIL,
2017, p. 18)

A conexão de tais intervenções é sistematizada em formato de mandala, tendo os marcos


legais e outros aspectos estruturais em seu entorno e as tecnologias voltadas ao centro, onde
encontram-se as populações-chave e prioritárias ao HIV e, ao centro, a própria noção de que é preciso
combinar as tecnologias de prevenção:

IMAGEM 1: MANDALA DA PREVENÇÃO COMBINADA

316
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Brasil, Ministério da Saúde, 2019.

Nota-se, em análise da mandala, uma ênfase nas tecnologias biomédicas voltadas à prevenção
do HIV. O combate ao estigma e discriminação, por exemplo, não se encontram em nenhuma das
fatias. Em texto publicado em 2015, antes mesmo da entrada da Profilaxia Pré-Exposição no Brasil,
Richard Parker já questionava: “estamos vivendo uma nova era (de respostas biomédicas que
substituem as respostas sociais e políticas?) (PARKET, 2015, p. 1)
Para o autor, “o discurso das abordagens biomédicas anda de mãos dadas com os discursos
que justificam políticas neoliberais de ajuste econômico e redução de recursos para o setor da saúde”.
(PARKER, 2015, p. 7) Sobre tais tecnologias temos, em primeira geração, as tecnologias de barreira
- tais como as camisinhas penianas e vaginais - e, em segunda geração, as medicações que incidem
sobre a transmissão do vírus.
Verifica-se, por um lado, o avanço do ponto de vista da ciência através de tecnologias como
a Profilaxia Pré-exposição, a Profilaxia Pós-exposição e o tratamento como prevenção. De fato, estes
recursos podem ser considerados revolucionários paras pessoas vivendo com HIV, suas parcerias
sexuais e paras populações que convivem com o medo da infecção pelo HIV. Além disso, estes

317
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
recursos ampliam a possibilidade de autonomia dos sujeitos, possibilitando a escolha dos métodos de
prevenção que se adequem a suas necessidades, condições e interesses, rompendo com o mantra de
“use camisinha”, que nunca foi suficiente para garantir a diminuição da incidência de infecção. Por
outro lado, é possível verificar a construção de um paradigma biomédico de prevenção e vale
questionar a interesse de quem este se legitima.
Sobre as abordagens comportamentais, estas:

[...] referem-se às intervenções cujo foco está no comportamento dos indivíduos


como forma de evitar situações de risco. O objetivo dessas intervenções é oferecer a
indivíduos e segmentos sociais um conjunto amplo de informações e conhecimentos,
de maneira a torná-los aptos a desenvolver estratégias de enfrentamento ao HIV/aids
que possam melhorar sua capacidade de gerir os diferentes graus de risco a que estão
expostos. Nesse sentido, é imprescindível aprimorar suas percepções quanto ao
entendimento e mensuração dos riscos que vivenciam em termos da exposição ao
HIV, e que estão relacionados às suas práticas cotidianas, envolvam elas ou não
aspectos relativos às práticas sexuais, ao uso de álcool e outras drogas ou a outro
comportamento que signifique risco de infecção pelo vírus. (BRASIL, 2017, p. 18).

Embora o parágrafo que abre a sessão sobre as abordagens comportamentais traga, sobretudo,
como fundamento a noção de risco, no decorrer do texto é feito uma crítica a esta noção. Com base
em MANN, diz-se que a noção de risco não é suficiente para compreender a relação dos sujeitos com
o HIV e sugere a adoção do conceito de vulnerabilidade, que se subdivide em: vulnerabilidade
individual, social e programática.
É curioso notar que a discussão sobre vulnerabilidade em saúde encontra-se no eixo
“abordagens comportamentais”, e não como fundamento do próprio conceito de prevenção
combinada. Diante de tal aspecto, de que forma a adoção do conceito de vulnerabilidade possibilita
(ou não) avançar e/ou romper com a concepção de grupo de risco? De que forma as políticas de
prevenção constroem o que seria o “sujeito do HIV”?

As diferentes situações de vulnerabilidade dos sujeitos (individuais e/ou coletivos)


podem ser particularizadas pelo re-conhecimento de três componentes interligados -
o individual, o social e o programático ou institucional, os quais remetem às seguintes
questões de ordem prática: vulnerabilidade de quem? Vulnerabilidade em que
circunstâncias ou condições? (DOGMAR MEYER et al, 2006, p. 1339).

A abordagem comportamental coloca a tónica na educação em saúde, na direção


compreendendo a possibilidade de os sujeitos assumirem a gestão do risco em relação a infecção

318
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pelo HIV. Isso é um avanço, que vem sendo construído em décadas, em relação às políticas de
prevenção pautadas no terror, no medo e na castração. Por outro lado, com a metáfora da guerra “e a
transformação da doença em inimigo leva inevitavelmente à atribuição de culpa ao paciente, muito
embora ele continue sendo encarado como vítima” (SUSAN SONTAG, 1989, p. 16)
Na rasteira da individualização dos processos de adoecimento, o risco foi “representado como
uma situação de dano em potencial, associado principalmente a fatores individuais” (DOGMAR
MEYER et al, 2006, p. 1335). Esta perspectiva:

[...] reforça a delimitação do foco da educação em saúde na epidemiologia do


comportamento, pautada em fatores de risco circunscrito ao indivíduo e supostamente
passíveis de correção a partir de ações racionais, de responsabilidade de cada
pessoa. (DOGMAR MEYER et al, 2006, p. 1337).

A abordagem comportamental, embora refira pautar-se na concepção de vulnerabilidade em


saúde, coloca no centro o próprio comportamento dos sujeitos. No arcabouço teórico sobre
vulnerabilidade em saúde entende-se que os componentes da vulnerabilidade individual

[...] estão relacionados tanto com condições objetivas do ambiente quanto com
condições culturais e sociais em que os comportamentos ocorrem, bem como o grau
de consciência que essas pessoas têm sobre tais comportamentos e ao efetivo poder
que podem exercer para transformá-los. (DOGMAR MEYER et al, 2006, p. 1339).

Ou seja, não é possível compreender a vulnerabilidade individual dissociada das dimensões


estrutural e social. A fragilidade conceitual com que o documento sustenta tal abordagem traz riscos
no que concerne a abordagem centrada na educação para mudança de comportamento de sujeitos
considerados desviantes: homens gays e outros homens que fazem sexo com homens, profissionais
do sexo, usuários/as de álcool e outras drogas, pessoas em situação de rua, entre outras que são
consideradas populações-chave e prioritárias para as políticas de HIV/AIDS.
Para a UNAIDS,

Sujeitas a riscos e vulnerabilidades desproporcionais, as populações‐chave merecem


uma resposta priorizada baseada em direitos humanos. Contudo, devido à persistência
do estigma, da discriminação e da exclusão social, integrantes das populações‐chave
não têm acesso equitativo à atenção à saúde e vivenciam desfechos em saúde
inferiores aos preconizados. As metas 90‐90‐90 não poderão ser alcançadas se
não forem superados os muitos fatores que desarticulam as respostas efetivas
para as populações‐chave. (UNAIDS, 2015, p. 12)

319
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sobre as intervenções estruturais, o documento aponta que estas “visam evitar que
preconceitos, discriminações ou intolerâncias se convertam em formas de alienação ou relativização
dos direitos e garantias fundamentais à dignidade humana e à cidadania”. (BRASIL, 2017, p. 21).
Vale destacar que esta é comparada com a abordagem comportamental e com as tecnologias
biomédicas, a menor parte do texto, contendo apenas três parágrafos. Ainda que seja um importante
avanço tal posicionamento nas políticas de prevenção, a construção da orientação à trabalhadoras/es
e gestoras/es não sustenta argumentos e nem aponta estratégias para que, de fato, seja possível
embasar políticas e ações voltadas à eliminação de preconceitos e alienações. Além do mais,
considerando a importância do ponto de vista das intervenções estruturais para práticas especialmente
de gestão, o eixo não faz nenhuma referência a orçamento, financiamento e estrutura de serviços de
saúde que possam materializar as estratégias de prevenção combinada.
Assim, na contramão de reducionismos e de fetiche neoliberal, reitera-se o posicionamento de
que “o caminho para uma resposta eficaz da epidemia da AIDS sempre passou, e continua passando,
pelo engajamento da sociedade civil e pela produção do conhecimento comunitário”. (PARKER,
2015, p. 10).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou identificar as bases conceituais e epistemológicas, bem como os interesses
que se aglutinam no paradigma da Prevenção Combinada, principal estratégia de resposta ä epidemia
do HIV/AIDS no Brasil. Para tal, tecemos breves considerações sobre a história da agenda de
prevenção, possibilitando identificar tendência e rupturas em lógicas de controle das populações e em
relação a forma como o país se apoia nas orientações internacionais, especialmente do Banco Mundial
em vias da UNAIDS.
Entre avanços e retrocessos, verifica-se o avanço da ciência e da tecnologia, possibilitando
formas de prevenção revolucionárias do ponto de vista individual e epidemiológico, bem como
ampliando as possibilidades de autonomia dos sujeitos no modo como realizam a gestão de risco e a
escolha por formas de prevenção. Por outro lado, identifica-se que o Tratamento como Prevenção e
as tecnologias biomédicas tem sido o principal fundamento da agenda de prevenção brasileira.
Ainda que tal perspectiva seja passível de diversas críticas, é inegável o avanço que
representa e que está sob ameaça na derrocada neoliberal de orientação conservadora que se
320
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
assiste no governo Bolsonaro. Caso o governo Brasileiro retire a distribuição universal e gratuita das
medicações antirretrovirais, o governo tende a perder o poder de negociação com as patentes da
indústria farmacêutica. Com isso, a tendência será preço da medicação ser bastante alto, dificultando
o acesso das pessoas que ao tratamento medicamentoso, focalizando o acesso público à população
mais pobre.
A ameaça de desmonte representa, de alguma forma, a reatualização da “política de
prevenção” pelo medo da morte. É preciso buscar superar perspectivas puramente biomédicas,
instituindo processos educativos na perspectiva dos direitos humanos, reconhecendo e incorporando
os avanços das tecnologias de prevenção na vida das pessoas.
Por último, destaca-se que governo Bolsonaro demarca o avanço na implementação de
projetos de origem neoliberal no Brasil, com uma diferença crucial em relação aos governos
anteriores: utilização deste referencial para romper com marcos regulatórios que significaram
importantes avanços no país em relação às pautas indenitárias e de luta das populações discriminadas.
Nesse leque, a agenda de resposta a epidemia do HIV é ameaçada pelos cortes e estratégias de
desmonte do Sistema Único de Saúde, pela atualização de políticas de prevenção reducionistas e
conservadoras, e pela insegurança e instabilidade quanto a garantia da universalidade na distribuição
de TARV para pessoas vivendo com HIV. A isso soma-se a legitimidade que o discurso conservador,
especialmente em relação à mulheres e pessoas LGBT, tornando a política voltada ao HIV alvo que
aglutina motivos para o seu desmonte.

REFERÊNCIAS
BANCO MUNDIAL; UNAIDS; Copatrocinadores, 2016. Disponível em https://unaids.org.br/wp-
content/uploads/2016/10/BANCO-MUNDIAL-Hq.pdf Acesso em 3 de junho de 2019.

BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-


br/publico-geral/previna-se Acesso em: 20 de junho. 2019.

BRASIL, PREVENÇÃO COMBINADA DO HIV: bases conceituais para profissionais,


trabalhadores(as) e gestores(as) da saúde. Ministério da Saúde, Brasília, 2017.

BOYER, R. (Org.). La théorie de la régulation: une analise critique. Paris: La Découverte, 1986.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. 11


ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

321
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CAMPOS, Gastão Wagner de S. Reflexões sobre a construção do Sistema Único de Saúde (SUS):
um modo singular de produzir política pública. Serviço Social e Sociedade, n. 87. São Paulo:
Cortez, 2006.

DANIEL, Hebert; PARKER, Richard. AIDS: A TERCEIRA EPIDEMIA ensaios e tentativas. 2


ed. Rio de Janeiro: ABIA, 2018.

GRECO, Dirceu B. A epidemia da Aids: impacto social, científico, econômico e perspectivas. in


ESTUDOS AVANÇADOS 22 (64), 2008.

HAYEK, Frederich .A. O caminho para a servidão. Tradução: Anna Maria Capovilla, José Ítalo
Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990

MATTOS, Rubens Araújo; JUNIOR, Veriano Terto; PARKER, Richard. As estratégias do Banco
Mundial e a resposta à AIDS no Brasil. Rio de janeiro, ABIA, 2001.

DOGMAR MEYER, E. Estermann; MELLO, Débora Falleiros; VALADÃO, Marina Marcos;


AYRES, José Ricardo. “VOCÊ APRENDE. A GENTE ENSINA?” Interrogando relações entre
educação e saúde desde a perspectiva da vulnerabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, 22(6) p. R 1335- 1342, jun, 2006.

PAIVA, Carlos H. A.; TEIXEIRA, Luiz A,. Reforma sanitária e a criação do Sistema Único de
Saúde: notas sobre contextos e autores in: História, Ciências, Saúde - Manguinhos. vol.21 no.1 Rio
de Janeiro Jan./Mar. 2014 Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702014000100015 Acesso em 07
de junho de 2019.

PARKER, Richard. O fim da AIDS? Rio de Janeiro, ABIA, 2015.

LARISSA PELÚCIO; MISKOLCI, Richard. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a


repatologização das sexualidades dissidentes. in: Sexualidad, Salud y Sociedad REVISTA
LATINOAMERICANA n.1 - 2009 - pp.125-157. Disponível em:
www.sexualidadsaludysociedad.org Acesso em : 18 de maio de 2019.

SUSAN SONTAG. AIDS E SUAS METÁFORAS. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

UNAIDS, 90-90-90 Uma meta ambiciosa para tratamento para contribuir para o fim da
epidemia da AIDS. UNAIDS, 2015. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-
content/uploads/2015/11/2015_11_20_UNAIDS_TRATAMENTO_META_PT_v4_GB.pdf Acesso
em 11 de junho de 2019.

322
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E A VIGILÂNCIA
SOCIOASSISTENCIAL: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE A GESTÃO DA
INFORMAÇÃO NO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)

Jucleia Velasque Amaral178


Jaqueline Carvalho Quadrado179
Solange Berwing 180

RESUMO: Esse artigo apresenta uma revisão bibliográfica sobre a vigilância socioassistencial a partir de pesquisa
realizada no Portal Periódico CAPES, objetivando trazer contribuições teóricas relacionadas a temática, com produções
de nível local e mundial. A partir de buscas realizada na Base Scopus, traz alguns autores e apresenta um estudo
comparado de uma pesquisa realizada em Joanesburgo na África, articulando a reflexão do estudo teórico com dados
empíricos da realidade, apontando contribuições para a construção de pesquisas no âmbito da assistência social, para o
aprimoramento da gestão da informação no SUAS, através de um processo democrático de garantia da proteção social e
efetivação dos direitos de cidadania.

Palavras-chave: Assistência Social; Vigilância Socioassistencial; Gestão da informação no SUAS.

INTRODUÇÃO
A política de Assistência Social desde o seu reconhecimento na Constituição Federal de 1988,
como um direito do cidadão e dever do Estado, tem como objetivo central promover a proteção social
a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social. Integra o tripé da seguridade
social, junto as políticas públicas de saúde e previdência social e tem sua regulamentação a partir da
Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), Lei n° 8.742/1993, que enfatiza mais uma vez o caráter
protetivo dessa política.
A LOAS traz em sua regulamentação, o caráter descentralizado e participativo dessa política
e da autonomia aos municípios na coordenação e execução de serviços, programas e projetos, com
financiamento federal, estadual e municipal. Essa descentralização fornece uma nova forma
organizativa de gestar a política de assistência social. Com a aprovação da Política Nacional de

178
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa – PPGPP
Unipampa. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pampa. Linha de Pesquisa -
Configurações Institucionais e Dinâmicas Sociais em Áreas de Fronteira.
E-mail: jucleiaamaral.aluno@unipampa.edu.br
179
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professora do Programa de Pós-graduação em Políticas
Públicas e do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa. Líder do GEEP - Grupo de Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política. E-mail: jaquelinequadrado@unipampa.edu.br
180
Doutora em Serviço Social. Professora do curso de Serviço Social na Universidade Federal do Pampa, campus
São Borja. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Formação Profissional em Serviço Social e Política Social na
América Latina. Membro do GT Seguridad Social y Sistema de Pensiones CLACSO. E-mail:
solangeberwig@unipampa.edu.br
323
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assistência Social – PNAS/2004, é estabelecido a criação de um Sistema Único de Assistência Social
(SUAS).
O SUAS prevê a organização das ações socioassistenciais em todo território nacional por
hierarquização dos serviços, dividindo-os por níveis de complexidade e também levando em
consideração o porte populacional dos municípios. Estabelece como eixos fundantes da política de
assistência social: a matricialidade sociofamiliar; a descentralização político-administrativa e a
territorialização. Estabelece novas bases de relação entre Estado e sociedade civil; financiamento;
controle social, o desafio da participação popular; a política de recursos humanos; a informação; o
monitoramento e a avaliação (BRASIL, 2004).
Todo esse processo legal de regulamentação da política de assistência social, fornece uma
nova base de gestão, ampliação e consolidação dos direitos sociais de cidadania. Anterior a CF de
1988, a assistência não era concebida por essa perspectiva do direito e tampouco preocupada em
atender as especificidades dos usuários com relação a territorialidade e demandas a partir da realidade
dos sujeitos demandatários dessa política, levando em consideração a complexidade dessas demandas
e reconhecendo-os como sujeitos participantes no processo de efetivação da política.
Conforme a PNAS/2004 são funções da política de assistência social, “a proteção social,
hierarquizada entre proteção básica e proteção especial; a vigilância social; e a defesa dos direitos
socioassistenciais (BRASIL, 2004, p. 90).” Tendo como foco principal desse estudo a vigilância
socioassistencial, que conforme a PNAS/2004, preocupa-se em conhecer “o cotidiano da vida das
famílias, a partir das condições concretas do lugar onde elas vivem (BRASIL, 2004, p. 93).”
Farei uma abordagem de pesquisa bibliográfica, sobre essa função, para uma gestão eficaz no
SUAS, trazendo aspectos conceituais, pautadas na proposta de pesquisa vinculada ao Programa de
pós-graduação em Políticas Públicas - PPGPP/UNIPAMPA, linha de pesquisa Configurações
Institucionais e Dinâmicas Sociais em Áreas de Fronteira. A pesquisa se propõe a estudar a
implementação da vigilância socioassistencial em três municípios da fronteira oeste, São Borja, Itaqui
e Uruguaiana, se propondo a fazer uma avaliação da gestão da informação no SUAS, a fim de
contribuir para o processo de efetivação da política pública de assistência social, articulando aos
objetivos do mestrado, que é “contribuir com entidades governamentais e não governamentais na
elaboração, implementação, diagnóstico e avaliação de políticas públicas em regiões de
fronteira” (PE, 2019, p.2).

324
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A pesquisa bibliográfica primeiramente pautou-se na busca de artigos relacionados a temática
da vigilância socioassistencial no Portal periódico CAPES, com produções a nível local e
posteriormente buscou-se na mesma plataforma, porém na Base Scopus artigos relacionados a
temática da vigilância socioassistencial a nível internacional (mundial), usando como metodologia
para produção desse artigo, um estudo comparado, procurando trazer contribuições teóricas e
empíricas para reflexão do assunto.

REFLEXÃO SOBRE A CONCEPÇÃO DA VIGILÂNCIA SOCIOASSISTENCIAL


Conforme a Norma Operacional Básica do SUAS aprovada em 2005 e atualizada em 2012
(NOB-SUAS), compete a vigilância socioassistencial a função de diagnosticar as vulnerabilidades e
riscos sociais e articular as demandas com as ofertas de serviços que integram a rede socioassistencial
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), dando suporte a gestão da política pública de
assistência social para o planejamento, execução, avaliação e expansão dos serviços.
Decorre disso que a Vigilância Socioassistencial (enquanto uma função da política pública de
Assistência Social), foca no desenvolvimento de ações conjuntas de Proteção Social e Defesa de
Direitos, caracterizando-se, por assim dizer, em um tripé que possui estrita correlação em suas
interfaces. Logo, a Vigilância tem uma função importantíssima na política pública de Assistência
Social, uma vez que, se configura em uma função estratégica para a implementação da proteção as
famílias e indivíduos, além de incluí-los no Sistema Único de Assistência Social.
A vigilância socioassistencial, conforme Sposati (2017), não pode ser considerada apenas uma
“função meio”, para promover a proteção social. Ela está atrelada a função de proteção social e defesa
de direitos e não pode ser analisada ou tomada isoladamente. Quanto tomada isoladamente não
cumpre seu papel principal de conhecer a realidade de vida dos sujeitos, atores no processo de
execução e planejamento da política.
Segundo Sposati (2017, p.3) a vigilância socioassistencial é considera a “força institucional
de qualificação dos lócus de gestão e dos agentes da política de assistência social.” Para a autora, os
agentes da política, são os trabalhadores e os usuários, sujeitos que devem estar articulados
continuamente no processo de construção dos direitos de cidadania. Os usuários necessitam conhecer
os serviços e os trabalhadores precisam instigá-los a refletir sobre suas realidades de vida, para
que esses possam reivindicar e reclamar seus direitos.

325
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Se a vigilância ficar apenas atrelada a gestão interna, preocupando-se apenas com dados
quantitativos, acaba limitando-se a cumprir metas, para obtenção de recursos, desvinculada das reais
demandas dos serviços e dos usuários. Dessa forma não será promovido a proteção social e
consequentemente fugirá aos objetivos da política de assistência social, podendo ser comparada a
praticas antigas que seguiam uma lógica de vontade subjetiva de interesses privados de quem
realizava a ação assistencial, sem levar em consideração as necessidades dos sujeitos (SPOSATI,
2017).
Para que os direitos de proteção social sejam efetivados, faz-se necessário dar voz e
visibilidade aos atores da política, para que esses tenham direito a reclamar por melhorias e respostas
a suas demandas. A qualificação da gestão vai decorrer desse processo. Caso contrário, estamos longe
de promover o acesso aos direitos de cidadania e tampouco consolidando o caráter democrático dessa
política. Para a autora a vigilância existe para dar voz aos invisíveis, pois, deve preocupar-se em
publicizar expressões de desproteções sociais para que a sociedade tome consciência das
desigualdades sociais e não culpabilize o indivíduo por sua situação/condição de vida e questione
coletivamente por garantias de seguranças sociais (SPOSATI, 2017).
Prates (2017, p.2), faz uma abordagem da vigilância socioassistencial, primeiramente trazendo
aspectos relacionados aos processos sociais, que segundo a autora, é carregado de valores e
concepções que vão desde “o instrumental de trabalho, a aspectos políticos, culturais, sociais, de
classe, de gênero, de etnia.” Ao gerir, planejar, avaliar e agir, estamos tomando decisão a partir de
valores e visões de homem de mundo, que irão nos direcionar politicamente a atender as “demandas
do mercado ou as necessidades humanas,” e a vigilância socioassistencial não foge a esse processo.
Nesse viés situa a vigilância socioassistencial como:

[...] um processo que se constitui como parte da gestão da informação na medida em que tem
por finalidade primeira a produção de informações, conhecimentos e articulações para
potencializar e democratizar o planejamento e a gestão da política (PRATES, 2017, p. 17)

Prates (2017), traz a responsabilidade dessa função em qualificar os processos de


planejamento no âmbito da política pública de assistência social, através da gestão da informação,
articulando em todo processo de planejamento a gestão de informação e a pesquisa, chamando
ao compromisso ético-político na utilização de métodos científicos de pesquisa, que possibilitem

326
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
constituir sistemas de informações que de fato atendam as reais necessidades da população. Dando
publicidade e devolutiva desses dados a sociedade.
A autora também chama a atenção para a vigilância não ficar preocupada apenas em produzir
dados quantitativos burocráticos e tecnocráticos, seu processo deve ser orientado para uma
perspectiva emancipatória e não ficar restringido ao “controle da pobreza e manipulação de
contextos” (PRATES, 2017, p. 12).

ESTUDO COMPARADO
Fazendo um comparativo com a reflexão teórica dessas duas autoras, buscou-se em nível
mundial/internacional o que vem sendo produzido sobre vigilância socioassistencial, trazendo um
estudo comparativo e contributivo a nível acadêmico, relacionado a vigilância social. A escolha do
artigo, está relacionado ao artigo mais citado, conforme o portal Periódico CAPES, na Base de dados
Scopus. O artigo vai servir de base para um comparativo, relacionando a temática da política social
com conceitos amplos de avaliação da implementação de um benefício de transferência de renda em
comunidade específica da África do Sul, com alto grau de vulnerabilidade social, articulando
dimensões sociais como proteção social e gênero, trazendo dados e análise dos dados, preocupando-
se com métodos científicos da pesquisa possibilitando novas reflexões e qualificação do processo de
efetivação da política social e suas interfaces com outras políticas públicas, para promover a inclusão
social da cidadania.
O artigo, apresentado nessa pesquisa bibliográfica, traz a síntese de uma pesquisa/estudo
realizada em 2010, na África, relacionando proteção social e gênero, através da análise do perfil das
famílias contempladas com um Subsídio de Apoio à Criança na África (CSG), similar ao Programa
Bolsa Família no Brasil, enfatizando o empoderamento das mulheres, a partir do acesso a esse
benefício de transferência de renda. Nessa pesquisa, o método utilizado foi a escolha de uma
determinada região urbana de Joanesburgo, mais empobrecida, tomando por base um estudo anterior
realizado nessa mesma região, onde constatou-se que existia um elevado índice de pobreza e
desigualdade social, no que se refere a emprego, saúde, segurança alimentar, educação, habitação,
acesso a serviços, sobrelotação e apoio social. A pesquisa constatou também que esxiste nessa região
forte desigualdade social relacionada a famílias chefiadas por mulheres, que são mais pobres, do
que as famílias chefiadas por homens (PATEL; HOCHFELD; MOODLEY, 2013).

327
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Foi a partir desses indicadores que foi construída uma nova pesquisa, tomando como conceito
principal a perspectiva de gênero, avaliando a partir de dados coletados em novo estudo, qual a relação
da benefício de transferência de renda da política de assistência social e gênero, como isso impacta
na vida principalmente das mulheres, que estão em condições desiguais aos homens. Para coleta dos
dados, foi desenvolvido um questionário, seguindo um roteiro estabelecido que abarcasse as
dimensões relacionadas ao ambito doméstico, forma de subsistência, presença ou não do (a) conjuge,
poder de decisão, responsabilidade relacionadas aos cuidados e empoderamento das mulheres, sendo
aplicado a 343 famílias, que corresponde uma amostra de 10%, das famílias com crianças na região
da pesquisa. A pesquisa também preocupou-se em relacionar, tanto homens como mulheres chefes
de famílias e também famílias benefeciárias e não beneficiárias do benefício de transferência de
renda. A coleta de dados foi realizada por alunos do curso de graduação em Serviço Social de
Joanesburgo, que foram treinados/capacitados para a coleta de dados (PATEL; HOCHFELD;
MOODLEY, 2013). A seguir apresento as tabelas construídas com os dados da pesquisa trazidos pelo
artigo citado, aspectos demográficos dos entrevistados:

TABELA 1 – ESTADO CIVIL


Variável n Porcentagem
Casado ou
127 37%
União de Fato
Nunca foram
Estado civil casados,
216 63%
divorciados ou
viúvos

Fonte: Elaborada pelo (a) autor (a), 2020.

TABELA 2 – CHEFIA DAS FAMÍLIAS


Variável n Porcentagem
Mulheres 178 52%

328
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Homens 216 63%
Chefia das
Chefia conjunta
famílias 34 10%
homem e mulher
Fonte: Elaborada pelo (a) autor (a), 2020.

TABELA 3 – IDADE DOS BENEFICIÁRIOS DO PROGRAMA DE TRANSFERÊNCIA DE


RENDA - CSG
Variável n Porcentagem
21 a 30 anos 106 31%
Idade dos
31 a 40 anos 89 26%
beneficiários
41 a 50 anos 79 23%
do CSG
51 a 60 anos 38 11%
Fonte: Elaborada pelo (a) autor (a), 2020.

TABELA 4 – NÍVEL DE ESCOLARIDADE


Variável n Porcentagem
Ensino Médio 192 56%
Certificado de
conclusão do 89 26%
Ensino Médio
Nível de
Superior 10 3%
Escolaridade
Ensino
45 13%
Fundamental
Nenhuma
7 2%
Escolaridade
Fonte: Elaborada pelo (a) autor (a), 2020.

TABELA 5 – FONTE DE RENDA


Variável n Porcentagem

329
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CGS
Única fonte de 48 14%
renda
Fonte de
CGS como
Renda
renda
295 86%
complementar a
outras rendas
Fonte: Elaborada pelo (a) autor (a), 2020.

Através dos dados dessa pesquisa sintetizados nesse artigo/estudo citado, é possível identificar
a riqueza de indicadores que nos direcionam a tomadas de decisão no âmbito das políticas públicas,
para uma melhoria contínua no planejamento, execução e avaliação que devem ser processos
contínuos. Na pesquisa trazida como um estudo comparado, a partir dos dados estatístico
apresentados, foram sendo elaboradas discussões teóricas/conceituais que relacionados com os dados,
possibilita enriquecer o processo da pesquisa, mas como o foco não é apresentar minuciosamente toda
pesquisa, vale da importância da pesquisa no processo de gestão da informação no SUAS, através da
vigilância socioassistencial.
A partir do tratamento dos dados, essa pesquisa apresentada, traz as seguintes conclusões, que
o benefício de transferência de renda fornece autonomia as mulheres, no que se refere ao poder de
decisão no lar e que também, as mulheres Africanas, tem maior responsabilidade em relação aos
filhos do que os homens. (PATEL; HOCHFELD; MOODLEY, 2013). Essa conclusão só foi possível,
pela construção teórica em relação aos dados estatísticos, que abordaram aspectos teóricos conceituais
relacionados ao poder da mulher no lar, gênero e cuidado e bem-estar infantil.
Retomando a autora citada no item anterior, que situa a vigilância num Processo social que é
atravessado por valores e concepções e enfatiza que quando esses estão direcionados ao âmbito
público deve se levar em consideração os condicionantes que os lhes dão sustentabilidade (PRATES,
2017). Nessa perspectiva, tomando essa análise realizada nesse estudo comparado, procurando trazer
contribuições teóricas e empíricas, para a discussão da temática de vigilância socioassistencial,
percebe-se a importância da articulação com a academia para o aprimoramento das políticas
públicas, trazendo contribuições teóricas e aspectos metodológicos que auxiliem no processo de
330
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
qualificação dessas. Nem sempre os trabalhadores/agentes públicos tem acesso a condições materiais
objetivas, que possibilitem desenvolver pesquisas que lhes deem subsídios para uma intervenção
democrática, que forneça um novo olhar para aspectos sociais, que a política pública de assistência
social se propõe a atender.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo bibliográfico relacionado a Política Pública de Assistência Social, contribui para dar
luz a processos que possibilitem o aprimoramento dessa política. Conforme estudo apresentado
percebe-se de suma importância articular a tríade Estado, Sociedade e Academia (Universidade), para
auxiliar com pesquisa e extensão, trazendo contribuições relevantes no que se refere a produção de
conhecimento que auxilie na superação das desigualdades sociais.
A assistência social é uma política pública que foi adquirindo diferentes formas de abordagens
desde sua concepção, fortemente ligado ao assistencialismo, sem perspectiva de garantia de direitos,
até seu reconhecimento como direito, que fornece novas bases para sua efetivação. Para se consolidar
como uma política de garantia de direitos, necessita de aprofundamentos teóricos e empíricos que
reflitam com as desigualdades sociais, enfrentadas por essa política pública, onde a reflexão pautada
na função de vigilância socioassistencial, a partir da gestão da informação no SUAS, torna-se de suma
importância, tendo em vista sua articulação com a proteção social e defesa de direitos.
Esse estudo por tanto, preocupou-se em relacionar os objetivos da vigilância socioassistencial
com dados empíricos da realidade abordada, em diferentes contextos mas que se complementam pelas
características visíveis de desigualdade sociais, proporcionando uma reflexão, sobre estudos que
podem serem desenvolvidos, para o aprimoramento da política de assistência social e efetivação dos
direitos sociais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

______. Lei 8.742. Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Brasília: DF, 7 de dezembro de
1993.

331
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
______. Ministério do desenvolvimento social e combate à fome. Política Nacional de Assistência
Social. Secretaria nacional de assistência social, novembro de 2004.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Norma Operacional Básica –


NOB/SUAS, Brasília: MDS/CNAS, 2005.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Norma Operacional Básica –
NOB/SUAS, Brasília: MDS/CNAS, dez. 2012.

PLANO ESTRATÉGICO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS


MESTRADO PROFISSIONAL (2019-2020 e 2021-2024). Universidade Federal do Pampa –
UNIPAMPA, campus, São Borja, 2019.

PRATES, Jane Cruz. A vigilância socioassistencial e sua relação com o planejamento, a gestão
da informação e a pesquisa. VIII Jornada Internacional Políticas Públicas. UFMA. São Luís,
22a25/ago./ 2017.

SPOSATI, Aldaíza. VIGILÂNCIA SOCIOASSISTENCIAL: condição para afirmação do direito


socioassistencial no âmbito da proteção social distributiva. VIII Jornada Internacional Políticas
Públicas. UFMA. São Luís, 22a25/ago./ 2017.

Patel, L., Hochfeld, T., Moodley, J. Gender and child sensitive social protection in South Africa.
Development Southern: Africa, 2013, p. 69-83. Disponível em:
<https://www.scopus.com/record/display.uri?eid=2-s2.0-4873301438&origin=resultslist >Acesso
em: 06 de set. 2020.

332
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE DO SUS E DO SUAS: DE ONDE VIEMOS E
PARA ONDE VAMOS?

Taiana Dornelles Lago181


Thaiara Dornelles Lago182

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a importância da educação permanente enquanto política
para a qualificação dos processos de trabalho dos trabalhadores nas áreas da Saúde e da Assistência Social. Diante do
atual contexto de desmonte das políticas públicas e ataque aos direitos sociais, o texto tem como justificativa o fato de
poder analisar o funcionamento das políticas de educação permanente nos diferentes espaços que foram vivenciados pelas
autoras, tanto no contexto de estágio supervisionado da graduação quanto da Residência Multiprofissional em Atenção
Básica e Saúde da Família. O artigo foi construído a partir de revisão bibliográfica sobre o tema da educação permanente
e apontamentos das experiências empíricas, desdobrando as reflexões sobre: 1) a Política de Educação Permanente no
Sistema Único de Assistência Social; 2) Política de Educação Permanente no Sistema Único de Saúde. A aproximação
sucessiva com os campos de trabalho nas referidas políticas e o estudo sobre os processos da educação permanente
apontam , além das limitações, para o potencial dessa política para a qualificação do exercício profissional, a politização
dos acontecimentos diários como forma de aprendizado em serviço e a garantia de acesso através de profissionais
qualificados para elaborar junto de suas comunidades os caminhos para a efetivação e defesa das políticas públicas como
direito no Brasil.
Palavras-chave: Educação Permanente; SUS; SUAS; Qualificação profissional.

INTRODUÇÃO
Pensar nas mudanças no campo da Assistência Social e na política de Saúde no Brasil, é pensar
também o papel das políticas de educação permanente para a garantia de direitos e a qualificação dos
serviços prestados à população. Se considerarmos o tempo de aprovação e consolidação das políticas
de Saúde e Assistência Social no Brasil identificamos um processo recente que tem mobilizado
trabalhadores, gestores, sociedade civil, e população usuária em torno das demandas emergentes e
das novas tendências em torno da seguridade social brasileira. O arcabouço que se desenha para o
campo da Saúde e da Assistência Social é de: novos modelos de gestão, novas concepções de
acolhimento, segurança social, demandas da população, e novas propostas metodológicas na
prestação dos serviços através de sistemas - Sistema Único de Saúde (SUS), e Sistema Único de
Assistência Social (SUAS).
Para efetivar o disposto pelas prerrogativas legais e formais no âmbito do SUS e do SUAS,
os ministérios de cada política, têm desenvolvido várias estratégias e políticas voltadas para a

181
Graduanda do Curso de Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. E-mail:
taianaa.lagoo@gmail.com
182
Farmacêutica, Residente no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com ênfase na Saúde
da População do Campo - Universidade de Pernambuco (UPE) E-mail: thaiaradlago@gmail.com
333
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
adequação da formação e qualificação dos trabalhadores frente às necessidades da população e do
desenvolvimento dos dois sistemas, entre elas destacam-se as propostas de criação de políticas de
educação permanente em cada um dos sistemas a fim de qualificar os processos e novos fluxos. A
educação permanente, é uma proposta didática de formação dos trabalhadores, em diferentes
profissões que trabalham nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais. As experiências vivenciadas
pela ocasião das inserções formativas183 contribuíram para o conhecimento do campo da educação
permanente nas duas políticas aqui destacadas - Saúde e Assistência Social.
Por este motivo sentimos a necessidade de valorizar as melhorias que essa política integra e
ressaltar a importância de uma política de educação permanente ativa e efetiva. Por ser um desafio
em diferentes espaços, nos debruçamos a analisar como essas políticas são desenvolvidas e integradas
a partir dos olhares do estágio curricular e da residência multiprofissional em saúde. Nesse sentido, a
educação permanente é importante em diferentes espaços, pois ela qualifica e desenvolve
competências junto aos trabalhadores, se constituindo como uma resposta às demandas por
qualificação do provimento dos serviços socioassistenciais e de saúde, da gestão e do controle social,
pensada não apenas para suprir os anseios dos sujeitos envolvidos na formação desse sistema, mas
também como um modo de se conceber consciência, reflexão, formação e informação, tencionando
à autonomia dos trabalhadores e dos usuários.
Como finalidade principal da educação permanente está a valorização dos trabalhadores, onde
o mais importante será - além de qualificar os serviços - a percepção de mudanças ocorridas na vida
das pessoas envolvidas nesse processo, com o propósito de serem instrumento político com trabalho
voltado a consolidar a formação e o exercício profissional, observando como a troca entre
profissionais, usuários e estudantes, pode fazer dos espaços comunitários um diferencial na esfera
educacional.
O contexto brasileiro atual, em que nos encontramos regidos por uma política de austeridade
fiscal, faz com que direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 pautados em um
compromisso do Estado em garantir o bem-estar social - que vinham avançando em sua
implementação desde este marco histórico para o país, se distanciam cada vez mais de sua real

183
As inserções referenciadas dizem respeito ao acesso do período de estágio supervisionado em Serviço Social
junto à política pública de Assistência Social no período de 2019, e à experiência junto à Residência
Multiprofissional em Saúde da Família com ênfase na População do Campo - UPE 2020/2021.
334
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estrutura. O novo regime fiscal do “teto de gastos” na saúde e educação fragiliza ainda mais o
processo de financiamento historicamente deficitário dificultando o fortalecimento das políticas
sociais no país. (CEBES, 2018)
Como consequência dessa nova política, há também uma reorientação no modelo de avaliação
tanto do processo formativo de profissionais, quanto do processo de trabalho em cotidiano do serviço
do SUS e do SUAS que passam a ser pautados na lógica produtivista, onde quantificar a produção
passa a ser mais importante do que entender e refletir sobre as necessidades do território e da
equipe. Diante da conjuntura de fragilização das políticas sociais, situamos a necessidade de um
trabalho que problematize e reflita as consequências desse contexto na realidade dos serviços e que
busquem apontar caminhos possíveis dentro desse tempo histórico. Sendo assim, nos perguntamos:
onde fica a educação permanente dos profissionais? Encontramos nesse modelo de política o interesse
e incentivo para formar, qualificar e valorizar os profissionais em direção à defesa dos direitos
sociais?
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a importância histórica da educação permanente
para a qualificação dos trabalhadores na área da saúde e da assistência social. A partir dessa
compreensão, elaborar de que forma a educação permanente pode contribuir na melhoria do processo
de trabalho no cotidiano dos serviços de saúde e da assistência social. Por fim, identificar quais são
estratégias de enfrentamento construídas no cenário brasileiro para garantir a efetividade das políticas
de educação permanente através de sua concepção ética e política de compromisso com as situações
de trabalho que exigem um repensar e um refazer cotidiano. O caminho para o conhecimento teórico
será construído através de um estudo qualitativo do tipo bibliográfico e documental, que apresenta
reflexões das experiências de formação profissional - estágio supervisionado em Serviço Social na
política de Assistência Social e Residência Multiprofissional em Atenção Básica e Saúde da Família
na Saúde, respectivamente.

A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


SOCIAL

Os processos de capacitação e educação permanente é um dos itens da Norma Operacional


Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS) em relação à proposta de qualificação,
como já sugere o nome do item, em caráter “permanente” dos trabalhadores da política de

335
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assistência Social. O prazo para atendimento da meta sobre a implantação e implementação da
política de educação permanente e valorização dos trabalhadores encerrou no ano de 2010. Contudo
à política só foi aprovada no ano de 2013 (BERWIG, 2014).
Aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), por meio da Resolução nº
04, de 13 de março de 2013, a Política Pública de Assistência Social é fruto de decisões de oito
conferências nacionais. Assim dizendo essas conferências são um marco histórico que relembra um
extenso ciclo de debates, de argumentações que foram importantíssimos para o histórico e para a
efetivação da política.

A Educação Permanente é fundamentada na qualidade dos serviços, programas, projetos e


benefícios socioassistenciais; Realiza-se de forma sistemática e continuada; sustentável;
participativa; nacionalizada; descentralizada; avaliada e monitorada; Produz, sistematiza e
dissemina conhecimentos, direcionados ao desenvolvimento de competências e capacidades
técnicas e gerenciais, ao efetivo exercício do controle social e do protagonismo dos
usuários; Respeita a diversidade e as especificidades territoriais na elaboração das ações de
capacitação e formação; (BRASIL, 2017).

A Política Nacional de Educação Permanente do SUAS (PNEP/SUAS) incentiva o bom


entrosamento entre trabalhadores, gestores, conselheiros e usuários com o intuito de estimular a
construção de processos coletivos e a troca de aprendizagem, como também na busca de novos
conhecimentos que possibilita desenvolver novas competências frente às necessidades de cada
demanda, garantindo os benefícios socioassistenciais, que resulta na melhoria dos atendimentos
auxiliando na autonomia e corresponsabilidade dos profissionais em seu trabalho e dos usuários no
cuidado de si.
O reconhecimento da Assistência Social como política pública integrante da Seguridade
Social, direito do cidadão e dever do Estado, bem como a lógica de sua organização na forma de
sistema único, descentralizado e participativo, possibilitaram a institucionalização dos conselhos e
conferências como espaços centrais e privilegiados do debate democrático, relativamente aos
diferentes aspectos e dimensões de sua implementação.
Esses espaços onde eram debatidos e havia as deliberações das conferências de Assistência
Social, culminaram com a realização da VIII Conferência Nacional, que teve como lema “A
consolidação dos SUAS e a Valorização dos seus Trabalhadores”. Na política de educação
permanente do SUAS, retrata as conferências e a importância dos temas para o desenvolvimento
do reconhecimento da garantia dos direitos, e do bem estar dos trabalhadores. Busca
336
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
institucionalizar, no âmbito do SUAS, a perspectiva político-pedagógica e a cultura da Educação
Permanente, estabelecendo suas diretrizes e princípios e definindo os meios, mecanismos,
instrumentos e arranjos institucionais necessários à sua operacionalização e efetivação.
Segundo a PNEP/SUAS (2017), que traz em seus objetivos o ato de desenvolver junto aos
trabalhadores da Assistência as competência e capacidades específicas e compartilhadas, reafirmando
assim o quanto é importante que haja essa troca e essa interação entre os profissionais, pois isso
possibilita a reflexão sobre o trabalho garantindo a melhoria das suas condições e da qualidade dos
serviços prestados a população. Junto a esses objetivos surge também a necessidade de instituir
mecanismos institucionais que permitam a participação dos trabalhadores e dos usuários do SUAS,
para que assim possam dialogar e compartilhar as necessidades, podendo formular e planejar a
implementação das ações de formação e capacitação.
Os serviços podem se aliar as manifestações dos usuários através da aproximação com os
movimentos sociais, que são fundamentais para o fortalecimento da democracia, como também
auxiliam as pessoas a ocuparem os espaços de direito na sociedade, sempre visando o bem comum.
Quando há a disposição para aproximar-se das demandas reais das comunidades, muitos desafios se
colocam diante dos profissionais devido a diversidade intrínseca que encontramos em nossos
territórios. É nesse ponto que se faz fundamental ofertar aos trabalhadores percursos formativos e
ações e capacitação onde os trabalhadores possam refletir sobre os processos de trabalho que
enfrentam no seu cotidiano e que também possam se qualificar para melhor atender as demandas.
Considerando esse ponto formativo como fundamental, a política de educação permanente do
SUAS ressalta a importância de criar meios e mecanismos institucionais que permitam articular o
universo do ensino, da pesquisa e da extensão. São através dessas pontes e partilhas criadas entre
profissionais, estudantes e usuários no cotidiano dos serviços, que as competências necessárias para
a qualificação dos sistemas e políticas são desenvolvidas.
Dessa forma fica visível a importância do estágios curriculares e das residências em saúde,
pois através dessa articulação podemos aproveitar essa troca de conhecimentos que difere muito a
teoria da prática, consistindo em proporcionar experiências onde possam integrar seus conhecimentos
e também a possibilidade de reviver as experiências do campo de estágio em outro âmbito.
A proposta de Educação Permanente transforma-se em um importante instrumento de
possibilidades transformadoras, na vida dos sujeitos e reflete também diariamente nos processos

337
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de trabalho. O exercício do trabalho qualificado no campo da Política de Assistência Social, em uma
perspectiva emancipatória, exige que a formação dos trabalhadores conjugue três dimensões
absolutamente necessárias no processo de construção da identidade profissional: a dimensão política,
a dimensão ética e a dimensão técnica. Em verdade é preciso primar pela formação de quadros
profissionais com capacidade plena de pesquisar, diagnosticar, planejar, coordenar, monitorar e
avaliar programas, projetos, serviços e benefícios no âmbito do SUAS, encarnado um pensamento
crítico, enraizado em valores ético (BRASIL, 2011, p. 165).

A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE


O conjunto de desafios colocados para o campo da saúde demandaram a elaboração de
estratégias de formação, capacitação e educação permanente que contribuíssem com esse campo. O
artigo 200 da Constituição Federal de 1988, inciso III pode ser considerado um marco regulatório
inicial para o processo de educação permanente em saúde, pois atribui ao SUS a competência de
ordenar a formação na área da saúde no País, mais tarde regulamentado na Lei Federal 8.080-90 que
dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, na Lei Federal 8.142/90 que determina as instâncias do
controle social, e na Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Saúde (
NOB-RH/SUS resolução CNS n° 330 de 2003).
Em 2009, através de esforços conjuntos dos trabalhadores do SUS, Ministério da Saúde, e
grupos da sociedade civil organizados, estruturou-se a construção de uma proposta aprovada como
Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. A proposta de um espaço de educação
permanente surge como forma de contribuir na construção de novas metodologias de intervenção, de
práticas inovadoras no campo da saúde, corroborando com a Constituição Federal de 1988 que, para
além de outros aspectos, determina como competência do SUS organizar formação na área da saúde.
Nesse sentido, o processo de educação em saúde, passa a ser parte integrante das ações constitutivas
desse sistema (BRASIL, 1988).
A necessidade de pensar ações que compreendam a dimensão ampliada da saúde no Brasil
vem se desdobrando em diversas ações no campo da formação. Assim, a ideia de um processo de
educação permanente no SUS, é a viabilidade de incorporar um espaço para pensar, planejar, estudar
e avaliar, novas ações de cuidado e proteção a partir das necessidades do território.

338
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A proposta de um processo de Educação Permanente em Saúde surge em meados dos anos de
1980 , trata-se de uma proposta ético-política e pedagógica que têm como objetivo transformar a
atenção à saúde e os processos formativos, construindo práticas de educação em saúde, e incentivar
ações e serviços numa perspectiva intersetorial, essa proposta só vai se transformar em uma política
em 2004, com a aprovação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS).
A PNEPS é concebida como estratégia do SUS para o processo de formação e
desenvolvimento de trabalhadores. A política tem objetivos que vão do âmbito da pesquisa, avaliação
ao planejamento de ações que compreendam a dimensão ampliada da saúde e integre outras políticas.
Para isso, busca identificar necessidades de formação dos trabalhadores, mobilizar a formação de
gestores para o campo da saúde, planejar e propor políticas e estabelecer negociações
interinstitucionais e intersetoriais orientadas pelas necessidades de formação, articular práticas de
saúde através de instituições de ensino, sempre, observando os princípios e diretrizes do SUS
(BRASIL, 2004).
A PNEPS representa um marco para a formação e trabalho em saúde no país. Resultado de
lutas e esforços promovidos pelos defensores do tema da educação dos profissionais de saúde, como
forma de promover a transformação das práticas do trabalho em saúde, a PNEPS é uma conquista da
sociedade brasileira.
Em termos de definição, segundo o Ministério da Saúde (MS) a Educação Permanente em
Saúde (EPS) se configura como aprendizagem no trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam
ao cotidiano das organizações e ao trabalho. A EPS se baseia na aprendizagem significativa e na
possibilidade de transformar as práticas profissionais e acontece no cotidiano do trabalho (BRASIL,
2007)
No contexto nacional histórico de construção dessa política, o marco que antecede a PNEPS,
e que merece destaque, é a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
(SGTES) do Ministério da Saúde, no ano de 2003. Foi a partir desse ponto que se tornou possível a
institucionalização PNEPS. A SGTES representa, portanto, um lócus privilegiado para a formalização
da PNEPS e o estabelecimento de iniciativas relacionadas à reorientação da formação profissional,
com ênfase na abordagem integral do processo saúde-doença, na valorização da Atenção Básica e na
integração entre as Instituições de Ensino Superior (IES), serviços de saúde e comunidade, com
a finalidade de propiciar o fortalecimento do SUS.

339
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÃO PERMANENTE: CONTRIBUIÇÕES PARA FORTALECIMENTO DO SUS E
DO SUAS
A Educação Permanente tem o potencial de instituir no ambiente laboral, junto aos
trabalhadores e equipes profissionais um estado de permanente questionamento e reflexão acerca da
pertinência e adequação dos seus processos de trabalho e práticas profissionais quanto ao
reconhecimento desses usuários, enquanto sujeitos de direitos e capazes de agir para a modificação
da realidade, e quanto à integralidade dos contextos de vida, demandas e aspirações das populações
com as quais trabalham. Sem dúvida, as políticas de Educação Permanente promoveram avanços na
área da educação em serviço ao requerer esforços de articulação de parcerias institucionais entre
serviço e ensino, educação e trabalho, numa perspectiva dialógica e compartilhada.
Além de ser instrumento para a qualificação profissional espera-se como impacto dos
processos de educação permanente a alteração de uma cultura de trabalho intuitiva, estabelecendo
rotinas de formação, e em consequência qualificação dos serviços prestados à população sob uma
perspectiva do direito ao acesso a Saúde e a Assistência Social. Ao fortalecer a educação permanente
como norteadora de novas práticas em serviço a partir da reflexão sobre o processo de trabalho e a
construção de atividades de aprendizagem colaborativa e significativa, temos como consequência o
fortalecimento do trabalho em equipe, da gestão participativa e da corresponsabilização nos processos
de ensino-aprendizagem. Por essa razão, a educação permanente deve buscar não apenas desenvolver
habilidades específicas, mas problematizar os pressupostos e os contextos dos processos de trabalho
e das práticas profissionais realmente existentes.
Diante de um contexto de desmonte das políticas públicas em geral ou de sua reformulação
através de uma perspectiva neoliberal de direcionamento ao mercado, se faz fundamental reivindicar
o compromisso com o processo de implementação das políticas de Educação Permanente, ressaltando
a importância de mantê-la como uma política de Estado, estratégica para o processo de construção do
SUS e do SUAS, por meio da constante requalificação dos profissionais e trabalhadores de saúde,
tudo isso pautado em princípios constitucionais de garantia de direitos.
Através dessas políticas, assume-se o desafio de executar a ação prática de processos de
formação e desenvolvimento para o fortalecimento dos sistemas públicos, articulando as necessidades
e possibilidades de desenvolver a educação dos trabalhadores, e contribuir para a resolução de
problemas no cotidiano dos serviços. O desafio posto à discussão no processo de formação de
340
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
trabalhadores tanto no SUS quanto no SUAS passa pela necessidade de compreensão da participação
destes profissionais nos processos formativos, visto que a proposta não se dá apenas via oferta de
cursos de maneira verticalizada, ou de aparato técnico, mas, tem objetivos de uma formação de base,
pautada nos princípios constitucionais que buscam construir uma ação participativa, de diálogo na
construção e democratização dos saberes.
Partindo de uma compreensão Freiriana de diálogo como o encontro amoroso entre as
pessoas, é importante salientar que entre o rol de propostas para uma educação permanente de fato
efetiva, é necessário pensar na construção horizontal e coletiva de espaços de socialização,
democratização dos debates a partir de encontros entre trabalhadores, estudantes e usuários, com
abertura para o diálogo, compartilhando experiências, dúvidas e conhecimentos que tenham como
propositores protagonistas, os atores agora mencionados (FREIRE, 2019).
A proposta de educação permanente, portanto, vai além de um processo de formação
individual ou formação de mão de obra qualificada, mas se propõe a uma ruptura com o modelo
educacional formal, hierárquico, verticalizado da educação bancária não problematizadora, ao propor
a construção de novas formas de aprendizagem e ensino pelas experiências e trocas de saberes no
campo de intervenção profissional.
As situações diárias vivenciadas nos serviços se constituem como potentes oportunidades de
aprendizagem, pois exemplificam de maneira concreta as reais necessidades da população. Através
da reflexão crítica sobre o processo de trabalho, é possível aproximar a educação da vida cotidiana,
reconhecendo assim o potencial educativo dos serviços para fortalecer a efetivação dos objetivos e
diretrizes das políticas públicas (BRASIL, 2009).
É oportuno sinalizar que não é tarefa simples alterar uma cultura, e a proposição da educação
permanente sugere a alteração de uma cultura posta para implementar novas formas de fazer, e de
ser, do exercício profissional junto às políticas públicas.

Sabe-se que não é fácil a tarefa de criar um clima propício à partilha dos saberes e de reflexão
sobre situações complexas e contraditórias do trabalho e, fundamentalmente, admitir que é
necessário aprimorar conhecimentos e adquirir outros saberes. O que dá sentido à educação
permanente é o diálogo entre os profissionais de uma equipe, a análise rigorosa do processo
de trabalho e das intervenções e a procura coletiva de melhores formas de agir por meio da
interlocução dos saberes (FERNANDES, 2012, p. 491).

341
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para além destes aspectos cotidianos, a proposta da educação permanente, busca construir
ações de formação articuladas às instituições de ensino em cooperação com as instâncias de
graduação, especialização em serviço, residências em saúde e outras estratégias de pós-graduação.
Essa conexão se faz potente e concreta por meio da elaboração de projetos conjuntos que pautem uma
mudança da educação técnica, perpassando pela dimensão ampliada e politizada do fazer em serviço,
contribuindo assim para a materialização dos princípios e diretrizes dos sistemas públicos e da defesa
de direitos.
Os espaços de educação permanente se fazem fundamentais para potencializar os serviços e
garantir a efetiva implementação das políticas públicas de assistência social e de saúde. Entretanto,
apesar de todo o arcabouço legal e teórico que embasam as políticas de educação permanente, tanto
no SUAS quanto no SUS, desafios institucionais também são pontuados como parte do caminho para
a implementação delas.
Entre as dificuldades citam-se a pouca articulação entre gestores, trabalhadores, controle
social e IES; a reduzida implantação das CIES regionais; a participação incipiente dos gestores
municipais; a indefinição de parâmetros para construção dos projetos; a ausência de avaliação acerca
dos projetos desenvolvidos, no que tange a suas desejadas mudanças nas práticas de formação, gestão
e atenção na saúde; e as dificuldades na utilização dos recursos financeiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os desafios na área da Saúde e da Assistência Social se mostram cada vez mais complexos e
ligados ao processo de determinação social-política-cultural das situações cotidianas. Diante de todo
o histórico da construção de políticas públicas no Brasil, percebe-se a importância da educação
permanente como pilar para o desenvolvimento das competências e habilidades necessárias ao fazer
cotidiano nos serviços de acordo com os pressupostos teóricos e constitucionais pautados na garantia
de direitos.
A partir do local de vivência junto às políticas de Saúde e Assistência Social pelo período de
estágio e de residência, reconhecemos a relevância dos espaços de aprendizagem em serviço, como
são os estágios e residências em saúde, por oportunizar um olhar ampliado, interdisciplinar que
possibilita acolher, cuidar e prestar um serviço de qualidade alinhado ao fortalecimento dessas
políticas historicamente conquistada. Em um contexto de desmonte de políticas públicas,

342
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reforçamos a necessidade de processos mais orgânicos, vinculados aos serviços onde o cotidiano
acontece, em que as situações vivenciadas são problematizadas e potencializadas em processos de
educação no trabalho, buscando a politização dos acontecimentos diários e garantia de acesso através
de profissionais qualificados para elaborar junto de suas comunidades os caminhos para a efetivação
e defesa das políticas públicas como direito no Brasil.
A discussão da educação permanente no SUS e no SUAS não se esgota neste ensaio,
compreendendo que este tema merece aprofundamento teórico sob a perspectiva da concepção de
educação, e mesmo sob o tema e compreensão sob o campo da gestão do trabalho nas duas políticas.
No entanto, minimamente compreende-se que a educação permanente é um eixo importante no
processo de construção do conhecimento acerca do trabalho desenvolvido na Saúde e na Assistência
Social e que os trabalhadores tem a possibilidade de ampliar e consolidar um espaço de formação
continuada a partir das prerrogativas das Normas Operacionais Básicas de Recursos Humanos do
SUS e do SUAS que instituem formalmente o lugar da gestão do trabalho para estes trabalhadores.
Defende-se a importância de ampliar os espaços de formação a fim de materializar uma cultura de
educação permanente contribuindo para o acúmulo de conhecimentos pelos trabalhadores que
instrumentalizados podem romper com velhas práticas.

REFERÊNCIAS

BERWIG, Solange E. A Gestão do Trabalho na Esfera Pública: uma análise a Partir da Norma
Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social. Ed. Faith.
2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 18. ed. Brasília, DF: Senado, 1988.

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE - CEBES (Brasil). Austeridade: que história


é essa?: como o arrocho pode afetar nossos direitos e como enfrentá-lo. 2018. Disponível em:
<http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2018/07/CartilhaAusteridadeCebes-_F.pdf>. Acesso
em 13 Ago. 2020.

FERNANDES, Rosa M. C. Educação Permanente nas situações de trabalho de Assistentes


Sociais. In.: Revista Trabalho, Educação e Saúde. Rio de janeiro. Vol. 10. Nº 3. 2012. Pág. 481-505.
Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/tes/v10n3/a08v10n3.pdf>. Acesso em 16 set. 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 71. ed. Rio de Janeiro/são Paulo: Paz e Terra, 2019.
256 p.

343
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
_____. Ministério da Saúde. Portaria 198/GM em 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política
Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a
formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Disponível em:
<https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/1832.pdf>. Acesso em 29 ago. 2020.

_____. Ministério da Saúde. Política nacional de Educação Permanente em Saúde. Série B.


Textos Básicos de Saúde. Série Pactos pela Saúde 2006, v. 9. Brasília-DF. 2009.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. NOB-RH/SUAS: anotada e


comentada. Brasília, DF. Secretaria Nacional de Assistência Social, 2011.

_____. Política Nacional de Educação Permanente do SUAS PNEP/SUAS. 2017. Disponível em:
<https://fpabramo.org.br/acervosocial/wp-content/uploads/sites/7/2017/08/126.pdf>. Acesso em 13
Ago. 2020.

_____. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: O que se tem produzido para seu
fortalecimento? Disponível em:
<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude_fortal
ecimento.pdf> Acesso em 14 Ago. 2020.

344
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL FRENTE AS QUESTÕES
DA PANDEMIA DO COVID-19

Jamille Freire Luz Benevide184


Resumo: O cenário de desigualdade que marca a realidade brasileira é agravada com a pandemia da Covid-19,
demandando do Estado ações na linha da prevenção,proteção da saúde e ações de sustentação das condições de renda em
decorrência da esturura fragil do mercado de trabalho informal e desemprego no País. As ações do Governo Federal
brasileiro para enfrentamento à Covid-19 estão diretamente ligadas as políticas públicas de Saúde e Assistência Social.
Logo, estes dois campos tiveram um aumento de demandas em um nível muito elevado, trazendo novas situaçãos par aser
acolhidas e orientadas pelas equipes. Este estudo se debruçou sobre o campo da Assistência Social com o objetivo de
compreender os desafios postos para a política de Assitência Social no contexto da pandemia visto que sua importância
já era significativa dada a realidade brasileira. A Covid-19 tem provocado consequências que estão para além das questões
relacionadas à saúde, houveram impactos socioeconomicos atingindo indivíduos e famílias – especialmente da população
mais vulnerável o que aponta para a importância da política de Assistência Social - é essencial neste momento de
pandemia para acolhida das demandas da população.

Palavras-chave: Pandemia; Covid-19; Assistência Social; SUAS.

INTRODUÇÃO
A pandemia causada pela covid-19 implicou em situações de risco á saúde da população, em
especial aos grupos mais sucetíveis em decorrência das caracteristicas do vírus, bem como implicou
em situações de alteração no quadro estrutural da economia – no Brasil e em escala mundial. Tais
situações têm demandado no cenário brasileiro ações que vão de prevenção e promoção à saúde à
mecanismos de preservação de empregos e manutenão da renda. A profundidade da crise econômica
provocada pela pandemia da Covid-19 não tem precedente na história recente do capitalismo. As
últimas estimativas do Fundo Monetário Internacional (IMF, 06/2020) previam, para 2020, uma
queda da economia mundial de 4,9% e da região da América Latina e Caribe (AL), de 9,4%. Com o
avanço da Covid-19 pelo mundo as previsões não são nada favorávesi para o contexto dos Países
latinoamericanos. No caso do Brasil é importante observar que a desigualdade exponencial, marca da
realidade social brasileira, se aprofunda com o cenário Covid-19. Desde março de 2020 até
17/09/2020 o país registrou um total de 4.455.386 casos confirmados de contminados pela Covid-19
e 134.935 pessoas perderam suas vidas em decorrência da pandemia.
As medidas de prevenção estabelecidas especialmente pelo isolamento social trouxeram à
tona um cenário precário nas condições de vida da população brasileira, escancarando a desigualdade

184
Pós-Graduanda do curso de Especialização em Políticas e Intervenção em Violência Intrafamiliar, pela
Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus São Borja. E-mail: mille_benevides@hotmail.com
345
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
histórica do país. Além das condições de habitação insuficientes para um isolamento com garantias
de proteção, a estrutua do mercado de trabalho desistituiu a população mais vulnerável da renda
oriunda de trabalhos informais e precarizados, deixando a população em condições de risco, sem
acesso aos meios para prover seus sustentos. Estas situações desenam as demandas no campo das
políticas públicas, em especial, a política de Assistência Social. Para dar conta da proposta de reflexão
sobre o cenário pandêmico e o campo da Assistência Social, este estudo se dedica dialogar o contexto
da Covid-19, as ações desenvolvidas a nível federal para atenção da população em termos de
manutenção da renda, e apontamentos para o campo da política social dita anteriormente.

A COVID-19 E AS IMPLICAÇÕES COM A POBREZA E A DESIGUALDADE SOCIAL

Para se falar sobre a covid-19 e as suas implicações com a pobreza e a desigualdade social, é
necessário primeirante discutir sobre a realidade social brasileira, isto é, fazer uma breve aproximação
a respeito da formação sócio histórica do Brasil. Então, podemos iniciar afirmando que o nosso país
foi descoberto no ano de 1500 pelos portugueses, sendo que desse ano até 1822, o território brasileiro
foi colonizado por Portugal. Ressalta-se que durante este período, a dominação, escravidão e
extermínio da população indígena se faziam presentes, no intuito de explorar a região (MACHADO,
2012). Desta forma, uma alternativas encontradas para aumentar a mão de obra tanto na área rural
como na área urbana foi através do carregamento de negros africanos para o Brasil. Logo, a população
estava dividida em escravos (indígenas e negros), comerciantes, igreja, proprietários de terra, os
pobres e o principal que era o monarca com seu poder centralizador. É importante destacar que os
direitos civis e políticos era só para alguns, conforme expõe Carvalho (2006, p. 24) onde afirma que
“Os direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais
ainda não se falava, pois a assistência social estava a cargo da Igreja e de particulares”.
Diante disso, nota-se que os direitos eram apenas para os privilegiados, enquanto que a
sociedade pobre e escrava não tinham acesso à nada, isto é, eram invisíveis. Já em 1822, ocorre a
independência do Brasil, entretanto, o governo seguiu baseado na monarquia, e em 1824, Dom Pedro
I, resolve outarguir uma Constituição, modificando a questão jurídica e política do país, pois segundo
Batista:

[...] a independência jurídica e política do país alterou as regras internas. Esse fato,
concreto, permitiu que os direitos civis, políticos e sociais ganhassem espaços
346
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lentamente, abrindo possibilidades para avançar na construção de um país livre das amarras
dos países imperialistas. No entanto, o desdobramento histórico foi trágico. No Brasil,
conquistar, manter e ampliar direitos tem sido uma batalha constante, cujos resultados são
ínfimos (2014, p. 75).

Apesar da Constituição de 1824, a participação era nula para os pobres, escravos e mulheres,
onde apenas uma classe privilegiada tinha acesso, que eram: “proprietários de terras, clérigos,
bacharéis, militares e entre outros” (MACHADO, 2012, p. 35). Já o período de 1889 até 1930, ocorreu
a Primeira República, também conhecida como República do Café com Leite, justamente por esta
época a economia do país se basear em Café (São Paulo) e Leite (Minas Gerais).
Salienta-se que em 1891 foi criada a primeira Constituição Republicana, outra característica
deste período é a política baseada no voto a cabresto, ou seja, “quando se controla o poder político
por abuso de autoridade, compra de votos [...] ” (JUSBRASIL, 2020, s/p). Em 1910 e 1920, ocorre
o movimento operário que lutava por direitos políticos, civis e sociais, enquanto que em 1917
acontece uma grande greve geral dos trabalhadores, mas a repressão dos patrões e do governo
permanecia firme, impedindo com que houvesse participação dos mesmos, assim como Machado
descreve:

[...] a participação da maioria da população na organização da sociedade continuava


inexistente”. Permanecia uma cultura de subalternidade associada a uma cultura de
dependência da classe trabalhadora frente ao Estado. Cabia a [...] elite [...], aliada ao clero e
aos governos, [...] definir os rumos do país. (2012, p. 36).

Posteriormente, na Grã-Bretanha acontece a Revolução Industrial trazendo diversas mudanças


tecnológicas no mundo, no caso do Brasil, a industrialização nas zonas urbanas estava em grande
crescimento, consolidando assim o capitalismo, que pode ser compreendida como:

[...] o processo de constituição de forças produtivas capitalistas, mais precisamente como o


processo de passagem ao modo especificamente capitalista de produção, ao que é
impropriamente chamado de capitalismo industrial” (CARDOSO DE MELLO, 1982, p. 97).

Destaca-se que o capitalismo é um sistema que se baseia na exploração e dominação da classe


trabalhadora, provocando desta forma o surgimento da questão social, que é definida como:

A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento


da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu
347
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no
cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a
exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão. (IAMAMOTO;
CARVALHO, 1983, p. 77).

Diante disso, podemos afirmar que a questão social é desigualdade e resistência, e que ela se
apresenta em um período cheio de transformações, tanto no âmbito político, econômico, social e
cultural. Vale salientar que em 1930 inicia-se o governo de Getúlio Vargas, caracterizado por
momentos de ditadura e implementação de políticas de controle dos trabalhadores, também é
importante ressaltar que no segundo mandato de Vargas a questão social começa a ser vista e tratada
com políticas compensatórias e paliativas (MACHADO, 2012).
Entre 1940 e 1950 houve alguns avanços como a criação do Sistema S (SESC, SESI e SENAI
e dentre outros)185, a própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a ascenção da organização
da comunidade. Já no período da década de 1960, especificamente a partir de 1964, ocorre o golpe
militar, tendo como contexto uma crise econômica, as bases eram no militarismo, opressão, proibição
de qualquer tipo de manifestação, tortura, censura à imprensa, autoritarismo, negação dos direitos
civis e políticos, mortes e prisões de líders de movimentos sociais, violência, etc (VIEIRA, 2014).
Entretanto, mesmo em momentos ditatoriais, a classe trabalhadora pode comemorar a criação do
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)186 e vale dizer que este período de ditadura durou
até a década de 1985, vivenciando a negação de direitos sociais, civis e políticos.
Na década de 1980, representou grandes conquistas para a sociedade, pois nela ocorreu as
Diretas Já (1983)187, a Assembléia Nacional Constituinte (1985) e a Constituição Federal de 1988.
Por meio da implementação desta constituição, a questão social parou de ser visualizada como caso

185
Serviço Social do Comércio; Serviço Social da Indústria e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
186
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) foi criado com o objetivo de proteger o trabalhador demitido
sem justa causa, mediante a abertura de uma conta vinculada ao contrato de trabalho. No início de cada mês, os
empregadores depositam em contas abertas na Caixa, em nome dos empregados, o valor correspondente a 8% do
salário de cada funcionário. O FGTS é constituído pelo total desses depósitos mensais e os valores pertencem aos
empregados que, em algumas situações, podem dispor do total depositado em seus nomes. Fonte:
<http://www.fgts.gov.br/Pages/sou-trabalhador/o-que.aspx>
187
Movimento político suprapartidário em defesa do retorno de eleições diretas para a presidência da República.
Tendo se iniciado em maio de 1983, o movimento ganhou dimensões políticas e sociais mais amplas, culminando
numa série de comícios, nos primeiros meses de 1984, que mobilizaram milhões de brasileiros quando da campanha
para a sucessão do governo do general João Batista Figueiredo, último presidente do regime militar instituído em
1964.
Fonte: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/diretas-ja>
348
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de polícia e benesse, e também trouxe para a população a garantia dos direitos civis, políticos e
sociais, bem como, a criação de políticas públicas, afirmando assim que “a concretização dos direitos
sociais depende da intervenção do Estado, estando atrelados às condições econômicas e à base fiscal
estatal para serem garantidos”(COUTO, 2004, p. 48).
Os anos posteriores foram marcados por políticas neoliberais e
desenvolvimentistas/neodesenvolvimentistas, onde o Estado dava e ainda dá preferência para o
capital, ou seja, para as questões econômicas, e enquanto que as preocupações com o social, ficava
de lado, nulo, aumentando a pobreza, a exclusão social e a desigualdade social. Diante disso, quando
falamos, em pobreza, exclusão e desigualdade, temos que evidenciar que isso representa a
contradição, isto é, desproteção social do Estado. Exemplos disso são a fome, as doenças, a falta de
acesso à moradia, a falta de segurança pública, assim como Oliveira e Moreira descrevem:

Aliados à situação de pobreza e desigualdade social à qual é submetida a população pobre,


que habita essas áreas, estão o desemprego, o trabalho precário, o não acesso a direitos sociais
básicos, a discriminação por cor, sexo, condição física, local de moradia, e tantas outras
forma de negação de direitos e expressões de violência que atingem a sua própria condição
humana. Realidade, aliás, que se repete no contexto de reprodução das desigualdades na
América Latina, em que se associa precariedade de renda com outras variáveis perpetuadas
por privilégios de poder (2010, p. 236-237).

Logo, nota-se que a América Latina é uma das regiões do continente americano considerados
mais desiguais, dentre os países está o Brasil, que perante o contexto histórico relatado anteriormente,
compreende-se que a desigualdade não é um produto que nasceu do nada, mas sim por conta de vários
processos históricos decorrente da acumulação e não distribuição da riqueza.
Além disso, um exemplo que evidenciou ainda mais a questão da desigualdade e dentre outras
expressões da questão social foi a pandemia da covid-19, que no caso é considerada uma doença,
causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), que pode provocar diversos sintomas e/ou poucos, até
mesmo nenhum. É relevante afirmar que os principais sinais deste vírus estão relacionados à uma
síndrome gripal, ou seja, são semelhantes à uma gripe, dentre eles, estão:

• Tosse
• Febre
• Coriza
• Dor de garganta
• Dificuldade para respirar
• Perda de olfato (anosmia)

349
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
• Alteração do paladar (ageusia)
• Distúrbios gastrintestinais (náuseas/vômitos/diarreia)
• Cansaço (astenia)
• Diminuição do apetite (hiporexia)
• Dispnéia (falta de ar)
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020)

Salienta-se que diante destes sintomas, fica a dúvida se é uma gripe ou a covid-19, tornando-
se necessário fazer os testes para se ter os diagnósticos. Dentre eles são: clínico, clínico-
epidemiológico, clínico-imagem, laboratorial, laboratorial em indivíduo assintomático
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).
Entretanto, nem todos tem acesso a estes exames, justamente por conta de sua situação
financeira e social. Destaca-se que “a pandemia escancarou as enormes desigualdades sociais no
Brasil pela primeira vez” (TRAJANO, 2020 apud ONU, 2020), lembrando que estão relacionados
com a estrutura do nosso país.
Ressalta-se que a maioria da população que adquire o vírus é a classe trabalhadora
empobrecida e que não tem acesso a saúde pública (ANTUNES, 2020), fazendo com que esta classe
não encontre meios de se prevenir, já que a mesma só tem o sistema de saúde público que no caso é
o SUS (Sistema Único de Saúde).
Além do mais, pode-se afirmar que não são apenas os homens e mulheres que vivem na
pobreza que são contaminados, a classe burguesa também é infectada, entretanto, elas conseguem
maneiras de se cuidar, de se prevenir, de se distanciar, ou seja, de fazer a quarentena. Destaca-se que
a burguesia consegue atendimento de saúde de qualidade e rápido mesmo em tempos da covid-19, já
que são locais privatizados, sem depender do sistema público de saúde que se encontra deteriorado,
isto é, desestruturado. Segundo a Revista Veja:

O novo coronavírus ataca sem distinção, mas a imensa parte das pessoas infectadas será
aquela que não tem recursos para fugir de aglomerações, receber salário trabalhando em casa
e prover a despensa com compras online. Uma parcela dos que se contaminaram vai morrer,
mas, na lista de fatalidades, a maioria será gente que só chegou a uma UTI, quando chegou,
em algum precário hospital da rede pública. A paralisação das atividades atingiu as empresas
em geral, mas a enorme massa de desempregados é composta principalmente de mão de obra
menos qualificada e mais mal remunerada. (2020, s/p).

E não apenas isso, além do agravamento da desigualdade está sendo exponencial por
conta do coronavírus, está havendo o aumento do desemprego, onde as populações mais
350
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vulneráveis que tem sofrido majoritariamente os impactos econômicos em decorrência do mercado
fragilizado, do mercado informal, da ausência de condições de proteção social, evidenciando assim
um Estado frágil, indo ao encontro do que a jornalista Flávia Oliveira188 reflete, onde ela afirma que
os serviços públicos básicos na vida dos mais pobres é responsabilidade do Estado, mas a atenção a
este público quase sempre foi negligenciada. E com a pandemia acentuou-se as desigualdades e
assimetrias. Pode-se entender que a covid-19 trouxe diversas mudanças nos nossos hábitos, nas ações
e medidas dos governantes, com agravamento da crise econômica, e consequências no âmbito social,
ampliando os processos de desigualdade de as demandas já existentes na realidade brasileira, tal
cenário tem demandado do Estado ações de prevenção, e promoção nos campos da saúde e de
manutenção da renda, conforme destacamos a seguir.

MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA E A ASSISTÊNCIA SOCIAL

No que se refere as medidas de enfrentamento da Covid-19 no Brasil, registra-se um processo


intenso dos gestores municipais e estaduais em contradição ao governo federal que tem demonstrado
uma postura que beira a negligência frente aos números da Covid-19. As ações do campo da
prevenção e promoção em saúde são essenciais neste momento da pandemia para evitar o aumento
dos óbitos e de consequências futuras em decorrência da contaminação, já que ainda são
desconhecidos todos os riscos da Covid-19 para a saúde de quem foi contaminado. Para além das
ações em saúde, em decorrência das questões econômicas, reflexo do cenário pandêmico, o Estado
precisou tomar medidas em duas frentes: a sustentação da renda e manutenção dos empregos.
A principal medida governamental para sustentação de renda foi a implantação do Auxílio
Emergencial, que trata-se de um benefício financeiro no valor de R$ 600,00 concedido pelo governo
federal e destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos,
contribuintes individuais ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e desempregados que
pertençam à família cuja renda mensal per capita não ultrapasse meio salário mínimo (R$ 522,50)
ou cuja renda familiar total seja de até três salários mínimos (R$ 3.135,00). Ainda, pelas condições
da realidade social, e número de famílias brasileiras chefiadas por mulheres, o Auxílio Emergencial
pode chegar a acumular duas percelas no mês, isto é, R$1.200,00, caso seja mulher provedora de

188
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=JaaqtgR1l3g&feature=emb_logo
351
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
família monoparental. Ainda nas regras para acesso ao benefício deste Auxílio em uma mesma
família, no máximo duas pessoas podem receber189. Destaca-se que em Junho de 2020, já haviam
acessado o Auxílio Emergencial 64,1 milhões de pessoas.
Na tentativa de manutenção da renda, o governo também autorizou o saque de até um salário
mínimo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e a antecipação do auxílio doença
concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Contudo, é importante observar que com
o cenário de informalidade no mercado de trabalho brasileiro, esse acesso fica restrito aos
trabalhadores formais. Tais elementos apontam para uma conjuntura em que a política de Assistência
Social se vincula ao atendimento da população para orientação, esclarecimentos, cadastros e acesso
ao Auxílio Emergencial. Estudos já apontam para um crescimento significativo de novos usuários
acessando a rede da Assistência Social, buscando informações, orientações para acessar o aplicativo
do Auxílio Emergencial. além de que a demanda por alimentação aumentou. Além disso, vale
salientar que segundo relatos dos Assistentes Sociais aponta-se que triplicou o número de
atendimentos, e que pessoas que antes sequer tinham conhecimento sobre a política de Assistência
Social, agora tem nesta política a referência para acesso aos serviços e benefícios. (BERWIG, 2020,
s/p).
Anterior à pandemia, a Assistência Social já era responsável pelos principais mecanismos de
manutenção da renda através dos repasses do Benefício de Prestação Continuada (BPC) – benefício
este da política de Assistencia Social, gerido pelo sistema da Previdência Social, dirigido às pessoas
com 65 anos ou mais e aos deficientes cuja renda per capita familiar seja menos do que 25% do salário
mínimo, de valor igual a 1 salário mínimo; e os benefícios do Programa Bolsa Família, dirigidos às
famílias em condição de extrema pobreza190 e pobreza191. Frente a situação emergencial, a Lei 13.982
definiu que o critério de acesso ao BPC pode ser ampliado a ½ salário mínimo e que os beneficiários
do Bolsa Família passariam a receber o Auxílio Emergencial enquanto o mesmo estivesse em vigor.
É importante observar que o Programa Bolsa Família não é um programa da Assistência Social,
contudo, a gestão deste programa está vinculado a esta política, demandando asim das equipes do

189
Inicialmente, o Auxílio Emergencial teria vigência por três meses, mas, em 30/06, foi prorrogado por mais
dois meses (Decreto nº 10.412, de 30 de junho de 2020).
190
Renda per capita de até R$ 89,00, recebendo o benefício fixo de R$ 89,00.
191
Renda per capita de até R$ 178,00, com direito a benefício de R$ 41,00 por criança, adolescente ou gestante, até
o limite de 5, chamado de benefício variável).
352
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Cadastro Único e dos Centros de Referência de Assistênia Social (CRAS), um volume de trabalho
significativo em torno da orientação das famílias e indivíduos usuários. Em Junho de 2020, quando
64,1 milhões de pessoas estavam recebendo o benefício do Auxílio Emergencial, o que envolveu R$
90,8 bilhões, R$ 40,9 bilhões corresponderam ao auxílio recebido pelos beneficiários do Bolsa
Família, R$ 14 bilhões aos que estava inscritos no Cadastro Único 192 (pessoas e famílias de baixa
renda) e R$ 35,9 bilhões para os que se inscreveram no aplicativo ou site do Auxílio Emergencial.
Tais indicadores apontam para um trabalho que já se desenvolvia via Assistência Social, e que
foi ampliada em decorrência das situações que emergem com a pandemia Covid-19. Em Julho de
2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que 29,4 milhões de
domicílios receberam, em junho, algum AE, o que representa 43% do total do país e abrange 49,4%
da população brasileira (104,5 milhões de pessoas). Em termos de renda, 75,2% dos auxílios foram
dirigidos aos estratos mais baixos da população brasileira. Esses dados apontam para o contingente
da população que tem demandado ações do Estado para sustentação da renda. E que para acessar tais
serviços e benefícios demandam o fortalecimento da Assistência Social visto que o mercado laboral
e a crise econômica agravada pela Covid-19 terá impacto a longo prazo.
O contexto do Auxílio Emergencial é algo instável, já há acenos do governo federal em
promover alterações nos valores.

O auxílio emergencial é uma medida urgente e necessária para a garantida das seguranças de
sobrevivência para as famílias com trabalhos informais, desempregadas e autônomos.
Contudo precisamos considerar o papel apaziguador da população ao divulgarem
massivamente a falta de recursos públicos e assim, para fazer o jogo da economia, iniciam
com a proposta de R$ 200,00, direciona aos pobres o problema da “falta de recursos”.
(FONSECA, 2020, s/p.).

Outro fator que rebate enquanto demanda para o campo da Assistência Social é as possíveis
alterações para o valor do Auxílio Emergencial. Há uma incerteza pairando no ar, pois a proposta de
redução do valor dos benefícios terá novo impacto sobre a condição de manutenção das famílias e

192
O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – também conhecido pelas nomenclaturas
Cadastro Único e Cad Único - é um instrumento que objetiva identificar e caracterizar as famílias de baixa renda no
Brasil. São registrados no Cadastro informações sobre as condições de moradia e saneamento, configuração familiar,
situação da renda, escolaridade, entre outras. Quem pode estar no Cadastro são: famílias com renda mensal de até
meio salário mínimo per capita (considerado baixa renda), e famílias com renda mensal de até três salários mínimos.
Pessoas que vivem sozinhas também podem realizar o cadastro basta atender aos critérios do recorte de renda. O
Cadastro serve de base para importantes programas sociais como o Programa Bolsa Família, o Programa Minha
Casa Minha Vida e mais recentemente para o Auxílio Emergencial. (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2020).
353
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
indivíduos vulnerabilizados pelo contexto de empobrecimento, desemprego e trabalho
precário/informal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A covid-19 chegou no Brasil em final de fevereiro de 2020, provocando diversas situações de
risco à saúde da sociedade em geral. Diante disso, a pandemia gerada pelo novo coronavírus trouxe
consequencias de distinta natureza demandando ações do Estado. Além das demandas oriundas da
população, da realidade social agravada pela crise Covid-19, o aumento do fluxo junto à Assistência
Social se torna um desafio aos trabalhadores que precisam trabalhar em um contexto que não vem
garantindo a segurança de trabalhadores e usuários. Logo, é preciso pensar o campo da Assistência
diante de um contexto que tem ampliado as demandas e que estas situações implicam novos recursos,
ampliação de equipes, fortalecimento de todo o aparato institucional da Assistência Social. Todo um
processo de desigualdade social histórica no Brasil se torna ainda mais visível, demandando ações
concretas e sérias a fim de garantir os mínimos para a sobrevivência, quizá avançar para proteção
social.
A Assistência Social vem sentindo os impactos frente as demandas que se deslocam para os
serviços em busca de respostas, gerando novos fluxos, e implicando em se reinventar para manter os
atendimentos a fim de gfarantir proteção aos trabalhadors e usuários. Além das questões cotidianas.
O número de famílias e indivíduos que precisam neste momento de benefícios temporários aumentou,
e deverá persistir, tal situação implica em um desafio importante para os municípios, Estados e União
a fim de adequar a oferta de benefícios, ajustar o orçamento para atender todas as situações que estão
surgindo. Considerar que as situações já agravadas de desigualdade irão permanecer, mesmo após o
controle da pandemia, é um fator importante para compreender os desafios futuros.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. SOUZA, Renata. Coronavírus: o trabalho sob o fogo cruzado. Live.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ExL7KQbcqTU> Acesso em: 14/08/2020

BATISTA, Alfredo A. Trabalho, questão social e serviço social. Cascavel: EDUNIOESTE, 2014.

354
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BERWIG, Solange E. FERREIRA, José W. O Trabalho dos/as Assistentes Sociais e os Desafios
no Contexto Pandêmico. Live. Disponível
em:<http://www.uoutube.com/watch?v=eJRpIeK11KK&t=127s>. Acesso em: 17/09/2020.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº10.316, de 7 de abril de 2020. Regulamenta a Lei


nº 13.982, de 2 de abril de 2020, que estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem
adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus (covid-19). Disponível
em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10316.htm. Acesso em:
01/08/2020.

______. Decreto nº 10.412, de 30 de junho de 2020. Altera o Decreto nº. 10.316 de 7 de abril de
2020, para prorrogar o período de pagamento do auxílio emergencial. Disponível
em:<http://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n-10.412-de-30-de-junho-de-2020-264424956>.
Acesso em 01/08/2020.

______. Lei Federal nº 14.020, de 06 de julho de 2020. Institui o Programa Emergencial de


Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do
estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e
da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm>. Acesso em
31/07/2020.

CARDOSO DE MELLO, J.M.C. O capitalismo tardio. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. 182p.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 8.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.

COUTO, Berenice. O direito social e assistência social na sociedade brasileira: uma equação
possível?. São Paulo: Cortez, 2004.

FGV – FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diretas Já. Disponível em:


<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/diretas-ja> Acesso em: 19/09/2020

FGTS – FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO. O que é FGTS?. Disponível em:


<http://www.fgts.gov.br/Pages/sou-trabalhador/o-que.aspx> Acesso em: 19/09/2020

FMI – FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. El Directorio Ejecutivo del FMI concluye la


Consulta del Artículo IV con Perú correspondiente a 2019. Comunicado de Prensa Nº 20/7, 14 de
janeiro de 2020. Disponível em: https://www.imf.org/es/News/Articles/2020/01/14/pr207-peru-imf-
executive-board-concludes-2019-article-iv-consultation>. Acesso em: 02/08/2020.

FONSECA, Rozana. A Psicologia na Política de Assistência Social. Disponível em:<


https://psicologianosuas.com/2020/04/16/desafios-para-a-politica-de-assistencia-social-frente-
a-pandemia-covid-19/>. Acesso em 02/08/2020.
355
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil:
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo, Cortez, 1983

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Distribuição de auxílio emergencial alcança


29,4 milhões de domicílios em junho. Notícias 23/07/2020. Disponível
em:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/28354-distribuicao-de-auxilio-emergencial-alcanca-29-4-milhoes-de-domicilios-
em-junho>. Acesso em 01/08/2020.

JUSBRASIL. Voto de Cabresto. Disponível em:


<https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26391139/voto-de-cabresto> Acesso em: 19/09/2020

MACHADO, Loiva Mara de Oliveira. Controle social da política de assistência social: caminhos
e descaminhos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. 163p.

MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Cadastro Único para programas Sociais. CadÚnico. 2020.


Disponível em:< https://www.gov.br/pt-br/servicos/inscrever-se-no-cadastro-unico-para-programas-
sociais-do-governo-federal> Acesso em: 18/09/2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença. Disponível em:


<https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid> Acesso em: 12/08/2020

OLIVEIRA, I. M. de; MOREIRA, M. R de A. Desigualdade social e concentração de riqueza:


algumas aproximações a partir da realidade de Natal – RN. In: BOSCHETTI...[et al.] (orgs.).
Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010. p. 230-253

ONU – Organização das Nações Unidas Brasil. Impactos socioeconômicos da COVID-19 são mais
intensos entre população mais pobre no Brasil. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/impactos-socioeconomicos-da-covid-19-sao-mais-intensos-entre-
populacao-mais-pobre-no-brasil/> Acesso em: 06/09/2020

OXFAM BRASIL; MOREIRA, Eduardo; OLIVEIRA, Flávia. Caminhos possíveis no pós


coronavírus. Live. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=JaaqtgR1l3g&feature=emb_logo> Acesso em: 20/09/2010

VEJA. A pandemia expõe e agrava as desigualdades sociais no planeta. Disponível em:


<https://veja.abril.com.br/mundo/a-pandemia-expoe-e-agrava-as-desigualdades-sociais-no-
planeta/> Acesso em: 20/09/2020

VIEIRA, Evaldo. A ditadura militar: 1964-1985: momentos da República Brasileira. São Paulo:
Cortez, 2014.

356
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A VULNERABILIDADE DAS COMUNIDADES RIBEIRINHAS NO MUNICÍPIO DE
ITAQUI: A EXCLUSÃO COMO PROCESSO DE DESQUALIFICAÇÃO SOCIAL

Daniele Bonapace Dos Santos Lencina193


Jaqueline Carvalho Quadrado1942

Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão acerca da vulnerabilidade social e apresentar as
particularidades da vida ribeirinha do Município de Itaqui, no estado do Rio Grande do Sul, atores sociais distintos e
advindos do processo de formação social da região de fronteira e das encostas do Rio Uruguai, que possuem traços muito
singulares em relação às demais regiões. Povos tradicionais que muitas vezes encontram dificuldades por terem alí a
principal forma de subsistência, devido a diversos problemas, tais como, períodos longos de estiagem, períodos de cheias
do rio, carência de Políticas Públicas de saúde e habitação. Contudo, poderemos observar que viver hoje as margens do
Rio Uruguai é memória e resistência.

Palavras-chave: Ribeirinhos; Povos tradicionais; Vulnerabilidade Social; Rio Uruguai.

INTRODUÇÃO

Este artigo visa elucidar a realidade vivenciada pelas populações ribeirinhas tradicionais de
Itaqui, Fronteira Oeste do Estado do Rio Grande do Sul, através de uma análise da conjuntura da
mesma, enfatizando a importância das Políticas Públicas e da Assistência Social na região. O
município fica localizado às margens do Rio Uruguai, fronteira com a Argentina.
O primeiro indício de vida civilizada nestas terras foi no ano de 1657, quando Padres Jesuítas
da cidade argentina de La Cruz atravessaram o Rio Uruguai para fundarem uma estância. Já no início
do século XIX foi incorporado às terras portuguesas e em 1802 foram concedidas as primeiras
sesmarias. Esse povoamento foi se desenvolvendo ao mesmo tempo em que a atividade pecuária se
expandia, sendo até os dias atuais, uma das marcas da economia da região, assim como a orizicultura.
A Lei Provincial n. 419, de 6 de dezembro de 1858 desmembrou Itaqui do município de São
Borja. Nessa época, a população da então Vila, era de aproximadamente quatro mil habitantes, e em

193
Mestranda em Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja, Especialista em
Políticas Públicas pela Faculdade São Braz, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito, pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Pesquisa sobre Análise de Programas, Projetos e Políticas
Governamentais. E-mail: danielebonapace@hotmail.com
194
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Bacharel em Serviço Social pela Universidade Católica de Pelotas, Professora do
Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja.
Pesquisa sobre Análise de Programas, Projetos e Políticas Governamentais. E-mail:
jaquelinequadrado@unipampa.edu.br

357
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
maio de 1879 foi elevada à categoria de cidade. Inicialmente, o nome foi São Patrício de Itaqui, em
homenagem ao padroeiro local, após algum tempo foi então simplificado para Itaqui (ACII, online).
De acordo com estudos de (RECKZIEGEL, 2007) e registros na Defesa Civil, ao longo de
30 anos o município de Itaqui registrou 28 notificações de desastres desencadeados por enchentes e
14 decretos de situação de emergência.
Itaqui possui uma área de 3.404 Km² e, atualmente, conforme censo realizado pelo IBGE
em 2010, uma população estimada em cerca de 38.166 habitantes, sendo que destes 33.301 pertencem
a área urbana.

FIGURA 1 – LOCALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE ITAQUI

Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:RioGrandedoSul_Municip_Itaqui.svg

Um ponto que chama muito a atenção é o fato de a cidade ter se desenvolvido a margem
esquerda do rio Uruguai, mesmo tendo que conviver com processos reincidentes de inundações, ano
após ano. Entre os dezessete bairros (Figura 2), oito deles são suscetíveis a serem atingidos pelas
inundações sendo que destes, os mais propensos são: Ponte Seca, Cerrinho Dois Umbus , Várzea,
Ênio Sayago e Vinte de Quatro de Maio.

358
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FIGURA 2 – MAPA URBANO DE ITAQUI

Fonte: http://www.itaqui.rs.gov.br/?action=estatico&eId=5

Faz-se necessário discutirmos as atuais condições de vida dos seus ribeirinhos e levantarmos
a reflexão acerca das Políticas Públicas voltadas a eles. Para isso mostra-se necessário também
fazermos o levantamento de algumas correntes teóricas desse campo.
Ao longo de muitas décadas o conceito de Políticas Públicas foi se ressignificando e a
definição trazida por (DYE, T., 1984) é extremamente relevante quando abordamos temas como o
que este trabalho se propõe, quanto ao que seria uma Política Pública voltada a comunidades
ribeirinhas, DYE diz que é aquilo que “o governo escolhe fazer ou não fazer”. Esta definição encontra
fundamento no artigo de (BACHRACHIB; BARATAZ, 1962), publicado na American Science
Review, e intitulado de Two Faces of Power. O artigo monstra que a decisão do governo de “não se
fazer” algo mediante uma determinada situação, pode ser enxergado como uma forma de fazer
Política Pública.
É possível entender como Política Pública uma discussão ou uma prática de ações
relacionadas a um caso ou conteúdo, concreto ou simbólico, de decisões reconhecidas como políticas,
ou seja, um campo de construção e de tomada de decisões. Diferentemente do que se pode pensar,
apontar a Política Pública como uma diretriz de enfrentamento de um problema, nem sempre
transforma uma questão em um problema, apenas fomenta a solução do mesmo.

359
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Podemos observar ao longo dos anos que algumas administrações municipais até tentaram
construir casas populares, vilas, etc. Mas a maioria dos moradores da zona ribeirinha de Itaqui acabou
vendendo estas casas e voltando a morar à beira dos rios. O que nos faz pensar que retirá-los
definitivamente dessas áreas é algo muito complexo e nem sempre viável a administração pública.
Muitas pessoas que moram na zona ribeirinha, de várzeas ou encosta do Rio Uruguai,
sobrevivem dali mesmo, seja da pesca ou da lenha. Então, o desalojamento e reassentamento de
muitas dessas famílias torna-se complexo e exige uma maior reflexão sobre o assunto, pois o que se
percebe é que muitas destas pessoas não desejam deixar suas casas, seus vizinhos de anos, muito
menos sua fonte de renda, o que acaba dificultando o trabalho da Defesa Civil e da administração
púbica. Como afirma (VELHO, G., 2002), quando lidamos com pesquisas no universo urbano, temos
a necessidade de considerar este como uma sociedade “complexa”, possuidora de características
heterogêneas.
E essa complexidade é verdadeira, pois se percebe que a tendência dessas pessoas é
geralmente retornar para a zona de risco, ainda que sujeitas a novas enchentes, reafirmando o que
(KOWARICK, 2009) enfatiza como a marca dessas pessoas, o “Viver em Risco”, sob as
circunstâncias da vulnerabilidade social.
A atual necessidade é diagnosticar que tipo de Política Pública os moradores da zona
ribeirinha de Itaqui necessitam de fato para que possam levar suas vidas de forma tranquila e digna
não só em épocas “normais”, mas também em situações de enchentes e inundações, sem a necessidade
de ficarem expostas em barracões improvisados nas calçadas, ou a beira da rua, sem o mínimo
necessário como alimentos, saneamento, acesso a escola, saúde pública e lazer.
Para isso é necessário que tomemos ciência de como momentos como esses vêm sendo
geridos no município. Quais as Políticas e programas sociais já foram colocados em prática e quais
os resultados já obtidos com eles? Quais Políticas Púbicas os ribeirinhos ainda necessitam para que
possam constituir sua dignidade diante das vulnerabilidades, riscos e perigos enfrentados pelas cheias
e enchentes.
O presente artigo tem como objetivo identificar e compreender quem são as comunidades
tradicionais ribeirinhas que vivem as margens do Rio Uruguai em Itaqui, problematizando alguns
conceitos, como vulnerabilidade, risco e enchentes, a fim de caracterizar esse território,

360
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
analisando ainda como é feita a promoção de saúde e moradias dos ribeirinhos de Itaqui. Essa reflexão
nos possibilitará traçar uma perspectiva mais adequada para esta população.

AS COMUNIDADES RIBEIRINHAS CONSIDERADAS COMO POVOS TRADICIONAIS

O conceito de Povos Tradicionais tem impactado ao longo do tempo as Políticas Públicas


contemporâneas, essa conceituação se deu por meio de relevantes contribuições, tanto do mundo
acadêmico como de movimentos sociais. Mas só após um amplo processo de debates, que contou
com a participação do Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais instituído em 2005, gerou-se
um produto final que foi publicizado por meio do Decreto 6040/2007 onde diz que:

Povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se


reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição. (Decreto 6040/2007).

A definição de comunidades ribeirinhas como população tradicional nos remete inclusive


aos conceitos e elementos do campo dos direitos consuetudinários, que vislumbram a ideia de que a
presença de um indivíduo ou comunidade em um determinado território por longo tempo pode gerar
direitos àqueles que ali vivem e que o modo de vida é marcado por diferenças.
Conforme (SILVA et al., 2013):

“O termo ribeirinho, não se refere ao simples fato de alguém morar às margens de um rio ou
igarapé, mas se refere a uma população que possui um modo de vida peculiar, que a diferencia
das demais populações do meio rural ou urbano, possuindo uma dinâmica marcada pela
presença do rio, o qual não é apenas um elemento do cenário ou da paisagem, mas algo
constitutivo do modo de ser e de viver.” (SILVA et al, 2013, p. 09)

As comunidades ribeirinhas desenvolvem suas práticas diárias do cotidiano voltadas à


subsistência de sua família, não demonstrando grande preocupação acerca da acumulação de bem
materiais, a grande maioria busca apenas a sua subsistência, e usam do trabalho informal para isso
(PINTO, M., 2015).
Quem vive nessas comunidades depende tanto da terra quanto da água para seu sustento, que
é baseado na pesca, na caça, na criação de pequenos animais, na extração e comércio de lenhas,
todas estas atividades dependem muito do ciclo da natureza, pois é este que dita quando pescar,
361
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
plantar e colher, em momentos de cheias ou enchente, por exemplo, grande parte de suas atividades
ficam prejudicadas.
Essa ambiguidade pode ser vista como o “viver da água e fugir das águas”, pois a água ao
mesmo tempo em que é sustento, também pode se tornar motivo de perdas, medo, riscos e
vulnerabilidades. Historicamente essas comunidades já residiam naquele local, pois o processo de
formação territorial que deu origem ao município de Itaqui surgiu nas proximidades do Rio Uruguai,
seja pela facilidade de acesso fluvial ou pelo comércio existente na época. Diferentemente da
realidade dos ribeirinhos de outras partes do país, as comunidades ribeirinhas de Itaqui, também
mantém proximidade territorial com o centro da cidade e com a principal área de comércio local.

REPRESENTATIVIDADES
Atualmente escuta-se muito falar em representatividades e na sua importância dentro do
contexto social e na formação da característica de indivíduos e comunidades, neste contexto, significa
o ato de ser representado ou de se identificar dentro de uma sociedade, por meio de exemplos de
atores sociais que tenham poder de dar voz e vez como meio de fortalecimento da comunidade e de
retomada da democracia e da cidadania da mesma.
Historicamente muitos grupos sofrem até hoje com medidas associadas a fatos opressores,
seja social, econômico, político ou cultural. Os povos tradicionais ribeirinhos, por vezes não se
associam a padrões preestabelecidos pela nossa atual sociedade, e acabam sendo excluídos de
programas e Políticas Públicas por grupos dominantes ou gestores, implicando sutilmente no descarte
desses grupos que não pertencem ao contexto social desejado. Desta forma, a ausência de
representantes destes grupos ditos como minoria, faz com que os mesmos participem de um processo
de desqualificação social de forma que não consigam desenvolver a construção do seu
empoderamento.
Já o ato de ser representado de maneira que qualifique o indivíduo sem estereótipos é algo
empoderador e que enaltece a existência humana e proporciona o desejo de buscar algo maior e
melhor para si e sua comunidade. A representatividade como uma função social e humana,
proporciona voz a todos indivíduos e grupos presentes no corpo social, fazendo com que os mesmos
percebam seu potencial no processo identitário.

SAÚDE E MORADIA
362
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quando voltamos nosso olhar para a forma como é promovida a saúde e a moradia das
comunidades ribeirinhas no município de Itaqui é possível percebermos várias carências que se
arrastam por décadas, e que passaram por diferentes tipos de gestão, tanto na elaboração como
execução das Políticas Públicas voltadas a comunidades ribeirinhas e em situação de vulnerabilidade.
A maioria dos ribeirinhos possuem casas de madeira, popularmente conhecidas como
“volantes” (Figura 3), que são residências construídas sobre postes de madeira e adaptadas para os
momentos cheias, de maneira que facilite sua locomoção.

FIGURA 3 - VOLANTES

Fonte: Prefeitura Municipal de Itaqui

FIGURA 4 - REMOÇÃO

Fonte: Prefeitura Municipal de Itaqui

363
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FIGURA 5: ASSENTAMENTO

Fonte: Prefeitura Municipal de Itaqui

SILVA (2013), em uma pesquisa sobre as enchentes do Rio Jaguaribe nas décadas de 1960,
1970 e 1980 no faz refletir quando diz que:

“as narrativas sobre os momentos de uma enchente seguem sempre um denotado fio condutor
[…]. Os sujeitos desta pesquisa, afirmam que o momento mais difícil é o de sair de casa. É o
tempo da resistência. É comum ouvir dos narradores o desejo de permanecer em suas casas
e suas estratégias de permanência, até chegar o tempo do sofrimento, quando o risco de perder
a vida alerta que já não é mais possível resistir (SILVA, 2014, p. 168).

No momento em que o caos assola o município em épocas de cheias o que se espera de


verdade é um novo posicionamento dos gestores, de forma que seja possível pensar e discutir, de
forma ética e razoável tudo o que a comunidade ribeirinha ainda almeja que seja feito relativo aos
seus direitos sociais, a cidadania e a dignidade.

O PAPEL DO CREAS (CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA


SOCIAL)
As Políticas Públicas de Assistência Social apresentam hoje um importante papel nessas
situações, quebrando paradigmas e objetivando uma maior organização quanto à forma de assistência
as comunidades ribeirinhas, deixando de lado o assistencialismo e o tradicional clientelismo no
município.
A história da assistência social, concebida como política pública é bastante nova no município
de Itaqui. Porém, para compreendermos melhor é necessário remetermos ao passado histórico.

364
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tradicionalmente, as necessidades de proteção social eram supridas pelos chamados agentes de
sociabilidade primária, sendo eles, igreja, família, grupos e associações comunitárias.
Sobre a assistência social Couto no diz que:

Apoiada por décadas na ideia de favor, do clientelismo, do apadrinhamento e do mando,


configurou um padrão arcaico de relações, enraizado na cultura política brasileira, esta área
de intervenção do Estado caracterizou-se historicamente como não política, renegada como
secundaria e marginal do conjunto das políticas públicas ( COUTO, BERENICE
ROJAS, 2014, p.33).

Dessa forma percebeu-se a necessidade de uma divisão entre atores, governo e coletividades
locais, assim como na autogestão local, buscando inovações na forma se relacionar com o povo,
visando uma ascensão democrática. Este avanço, ainda recente, foi obtido no ano de 2017, quando
foi instaurado o Cadastro Único como fonte de monitoramento das famílias ribeirinhas. O
desmembramento e a municipalização, como consolidação democrática, estão sempre ligados à
participação e mostram que a força da cidadania está no município, pois é no município que o cidadão
nasce, cresce, vive e constrói sua história, desta forma é ele que tem a responsabilidade de fiscalizar
e exercitar o controle social.
Entretanto, neste processo temos de pensar na Política Pública e na assistência social sob a
lógica do direito, conhecer suas possibilidades e limites, pois o fortalecimento do poder local
representa, sem dúvida, uma real contribuição para a retomada da democracia e da cidadania das
comunidades tradicionais neste momento.
O CRAS (Centro de Referencia de Assistência Social) tem importante função nesse processo
de proteção social às famílias das comunidades ribeirinhas. É por meio do CRAS que a assistência
social se materializa através da aproximação da população, reconhecendo a existência das
desigualdades sociais interurbanas e a importância de termos Políticas Públicas para reduzir as
desigualdades, a vulnerabilidade e risco social.
Através do CRAS é possível explicitarmos as potencialidades locais, modificando a qualidade
de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais que vivem as margens do Rio. O CRAS é composto
por equipes de referência que tornam possível garantir a continuidade, a eficácia e efetividade dos
programas, serviços e projetos de proteção social básica e especial, levando-se em consideração

365
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
o número de famílias e indivíduos em estado de vulnerabilidade, e o tipo de atendimento que será
oferecido aos usuários.
As principais funções do CRAS vão desde a oferta do serviço PAIF (Serviço de Proteção e
Atendimento Integral à Família) e outros programas e projetos socioassitenciais, a articulação e
fortalecimento da rede de Proteção Social Básica local, e a prevenção de risco em momentos e
calamidade, garantindo direitos através de encaminhamentos e orientações durante os atendimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os momentos de inundações, assim como as comunidades tradicionais ribeirinhas sempre
estiveram presentes na história da cidade de Itaqui, que por diversos motivos, já mencionados,
desenvolveu-se as margens do Rio Uruguai.
Após analisar os dados levantados das áreas periféricas da cidade foi possível constatar grande
vulnerabilidade de famílias ribeirinhas que moram nas proximidades dos eixos dos rios e afluentes
que cercam a área urbana de Itaqui.
Foi possível percebermos que para um município ser capaz de criar e gerenciar Políticas
Públicas de qualidade é necessário, mais dos recursos financeiros, mas um planejamento a longo
prazo onde os atores políticos possam definir um objetivo e o melhor caminho para alcançá-lo. Assim,
a elaboração e execução das Políticas Públicas se tornam menos complexas permitindo uma
integração entre elas.
Este trabalho buscou evidenciar a importância de estabelecermos a inter-relação entre o poder
público e a comunidade. Além enfatizar a necessidade de medidas de acesso ao espaço urbanizado
com infraestrutura e moradias adequadas, ações de promoção da saúde e redução da vulnerabilidade
social, abrangendo ações mais dinâmicas que a assistência emergencial e a recuperação pós-cheias.
Percebemos ainda que, as ações dos CRAS, em especial o Serviço de Proteção e Atendimento
Integral à Família (PAIF) necessitam utilizar como instrumento de intervenção estratégias que
abordem temas inerentes ao cotidiano ribeirinho, como o desemprego e preservação do meio
ambiente, convivência familiar entre outros. Para traçar essas estratégias de ações voltadas para a
população ribeirinha é necessário considerar a territorialidade, no sentido de fazer com a Política
Pública de Assistência Social se efetive, mesmo com toda dificuldade relacionada ao aspecto
territorial e histórico.

366
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

BACHARACHIB, P. e BARATAZ, M.S. Two Faces of Power. American Science Review , 56.
1962.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,


Senado, 1998.

BRASIL. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 10 de
setembro de 2020.

BRASIL. I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais. 2004. Disponível em:


<http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/orgaoscolegiados/orgaos-
emdestaque/cnpct/arquivos/relatorios/PDF%20%20I%20Encontro%20Nacional%20de%20Comuni
dades%20Tradicionais.pdf/view> . Acesso em: 18 de setembro, 2020.
CRAS. Mas qual a real função do CRAS? <Disponível em: https://cras.site/cras-em-itaqui-rs-
acolher/. Acesso em 19 de setembro de 2020.

COUTO, BERENICE ROJAS et al. O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma
realidade em movimento. Cortez Editora, 2014, p. 33.
DIAS, F. O que é representatividade e por que ela importa? Disponível em:
http://elas.gaz.com.br/conteudos/comportamento/2017/04/17/93164-
o_que_e_representatividade_e_por_que_ela_importa.html.php. Acesso em: 18 de setembro de 2020.

DYE, T. Understanding Public Policy . Englewood Cliffs: N.J.: Prentice Hall, 1984.

LASSWELL, H. D. Politics : Who Gets What, When, How. Cleveland: Meridian Books,
[1936]1956.

KOWARICK, L. Viver em Risco: Sobre a Vulnerabilidade no Brasil Urbano. Novos Estudos.


São Paulo: CEBRAP, 2009.

PINTO, M. A Identidade socioterritorial Missioneira na cidade histórica de São Borja RS: As


hegemonias de poder sobre uma identidade tradicional enraizada entre antigas reduções Jesuítico-
Guarani. Tese de doutorado, UFRGS, Instituto de Geociências, Programa de Pós Graduação em
Geografia, Porto Alegre, 2015.

(SILVA, Kamillo Karol Ribeiro. “Não tem jeito, o jeito que tem é sair” – as enchentes do rio
Jaguaribe na cidade de Jaguaruana (CE) nos anos de 1960, 1974 e 1985. Revista do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, n. 8, 167-181, 2014.

VELHO, G. A utopia Urbana um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
2002.
367
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - GÊNERO, IDENTIDADES,
SEXUALIDADES E RESISTÊNCIA:
CORPOS INDÓCEIS NA SOCIEDADE
COMPLEXA

COORDENAÇÃO
Dr. Noli Bernardo Hahn – URI
Mestra Lucimary Leiria Fraga – URI
Dra, Juliani Borchardt da Silva – UFPEL

368
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COMO O TWITTER RECEPCIONA CORPOS ABJETOS NO DISCURSO
PUBLICITÁRIO?195
Juliana Maia Albuquerque Pessoa196
Carolina Dantas de Figueiredo197
Rogério Luiz Covaleski198

Resumo: O presente artigo discute a recepção no Twitter de corpos abjetos inclusos na publicidade. Por meio de
apontamentos teóricos discorremos sobre os deslocamentos de narrativa que possibilitam a insurgência do corpo
LGBTQIA+ em campanhas publicitárias. Aqui, nos respaldamos na análise de redes sociais (RECUERO, 2017) e na
análise de conteúdos (BARDIN, 2016) para desenvolver a investigação proposta. Concluímos que a recepção se dá através
da reprodução de múltiplos discursos, que podem reforçar a exclusão ou prover suporte aos indivíduos subalternos. Foi
possível, então, identificar a regularidade de três tipos de discurso: discurso de ódio, discurso de valorização e discurso
questionador.

Palavras-chave: corpo abjeto; publicidade; Twitter.

INTRODUÇÃO

As narrativas publicitárias são espaços de representações, que ocasionam embates sobre a


valorização de determinados corpos a partir de sua dinâmica de torná-los visíveis ou não-visíveis
(HOFF, 2016). A centralidade de corpos hegemônicos nas produções midiáticas no geral é recorrente
e corresponde ao convencional em um espaço que tem a possibilidade de visibilizar vivências através
da reafirmação. Socialmente, reconhecemos a existência do corpo abjeto que resiste e diverge dos
padrões normativo, e, portanto, é excluso das narrativas (BUTLER, 1993). Podendo, assim, ser o
corpo: LGBTQIA+199, não-branco, gordo, velho ou com deficiência.

Existem agenciamentos que possibilitam a existência dessa pluralidade de corpos na


publicidade, durante o mês do orgulho LGBTQIA+, por exemplo, campanhas publicitárias deslocam
as narrativas comuns, tornando tais corpos visíveis. O processo de valorização e visibilidade da
comunidade pode ocorrer através da tendência publicitária de outvertising¸ que elege “[...] como

195 Artigo desenvolvido no âmbito da disciplina "Consumo e Publicidade: Bases Teóricas Brasileiras", ofertada em 2020 no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pelo Prof. Dr.
Rogério Covaleski.
196 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

e-mail: julianamaiapessoa@gmail.com
197 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

e-mail: carolina.figueiredo@ufpe.br
198 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e-

mail: rogerio.covaleski@ufpe.br
199 A sigla LGBTQIA+ refere-se a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais e assexuais, acompanhada do sinal

+ (mais) para englobar a pluralidade de sexualidades e identidades de gênero existentes na comunidade.


369
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
protagonistas pessoas com sexualidades e identidades gendéricas transgressoras, disruptivas, fluidas
e subalternizadas socialmente.” (MOZDZENSKI, 2019, p. 21).

Tal situação repercute entre distintas coletividades, sejam elas abjetas ou não, em ambientes
físicos ou virtuais. Os sites de redes sociais (SRS), como um espaço de reprodução de configurações
sociais (RECUERO, 2017), são utilizados para reiterar posições hegemônicas ou para dar suporte à
aparição do corpo abjeto. Por seu caráter diverso, que traz múltiplas perspectivas de usuários, os SRS
podem ser utilizadas para analisar como se dá a recepção do corpo abjeto no discurso publicitário. O
Twitter é um dos palcos da multiplicidade de posicionamentos e a sua popularidade possibilita
análises de comportamentos sociais e culturais através dele, como já apontado por Yazdani e
Manovich (2015).

Assim, na realização do artigo propõe-se investigar como o corpo abjeto em campanhas


publicitárias é recepcionado no Twitter, tendo como objetivo principal analisar a recepção de usuários
do Twitter da inclusão destes corpos em narrativas publicitárias. Ainda, busca-se:

1. compreender em que condições a publicidade retrata o corpo abjeto;

2. discutir o deslocamento da narrativa publicitária durante o mês do orgulho;

3. categorizar as formas de recepção do corpo abjeto no discurso publicitário.

Para além da análise com apontamentos teóricos de tais situações, procura-se aqui utilizar um
tweet da conta oficial da linha de roupas e acessórios Calvin Klein, que faz parte da campanha #
PROUDINMYCALVINS200 realizada no mês do orgulho LGBTQIA+ de 2020. Tal objeto foi
escolhido devido à possibilidade de ilustrar a multiplicidade identidades, por meio da modelo Jari
Jones, que foi alvo de discursos de ódio, respaldados na LGBTQfobia, no machismo, na gordofobia
e no racismo. A escolha do tweet se justifica pela repercussão e polêmicas decorrentes da presenta da
modelo.

Devido a isso, será possível a realização de um estudo que colabore para análise das dinâmicas
sociais reiteradas na cibercultura, promovendo a expansão de pesquisas na área de integração entre
as narrativas publicitárias e a recepção destas nas redes sociais, visando a condição de abjeção dos

200Hashtag utilizada pela Calvin Klein para veiculação de campanhas relacionadas à comunidade LGBTQIA+. A tradução do
termo é “Orgulhoso/orgulhosa em minhas [vestimentas da] Calvin”, referindo-se ao mês de veiculação e aos produtos utilizados
por modelos e consumidores.
370
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
corpos presentes na publicidade. Além disso, a proposta de análise pode colaborar para
transformações nos processos comunicacionais, reconhecendo discursos excludentes e
discriminatórios, e procurando, a partir disso, contribuir para a equidade de grupos minoritários.

FUNDAMENTAÇÃO

Diferir da norma causa incômodo àqueles que nela se inserem, e estar à margem dela é não
ser reconhecido. Um corpo abjeto é exterior à normatividade que idealiza uma sociedade cisgênera e
heterossexual. Butler (1993) conceituou a condição de abjeção como a existência um corpo que é
inabitável, não-narrativizável e traumático. As vivências LGBTQIA+ conferem uma precariedade
exacerbada devido às constantes tentativas violentas de incluir os sujeitos desta comunidade na
configuração social vigente.

A condição precária se expande ainda mais quando indivíduos se encontram em uma


encruzilhada de negação. Não ser cisgênero, não ser heterossexual, não ser branco, não ser jovem,
não ser magro, não ser rico. O feminismo negro discute interseccionalidade como uma teoria que
permite a crítica política com o propósito de compreender

[...] a fluidez das identidades subalternas impostas a preconceitos, subordinações de


gênero, de classe e raça e às opressões estruturantes da matriz colonial moderna da
qual saem. (AKOTIRENE, 2019, p. 24).

Partindo da perspectiva de regimes de visibilidade, os meios de comunicação podem construir


narrativas que conferem visibilidade aos indivíduos que “[...] permaneciam sem pertencimento no
sistema de representações midiáticas.” (HOFF, 2016, p. 10). A inclusão desses corpos pode colaborar
para a normatização de vivências diversas à sociedade em geral, além de garantir representatividade
àqueles de grupos não-hegemônicos.

Em meio aos aparatos da comunicação, a publicidade, especificamente, conta com o


outvertising201, um conceito que propõe o protagonismo e empoderamento da comunidade
LGBTQIA+, divergindo de narrativas publicitárias que se baseiam na estereotipação
(MOZDZENSKI, 2019). Dessa forma, a lógica tradicional e hegemônica sofre um deslocamento, que
situa os corpos abjetos em condição de valorização, por meio de sua centralidade na produção

201 Tendência publicitária que surgiu a partir do manual de Outvertising lançado pela Pride Advertising and Marketing
(PrideAM). Etmologicamente, a palava é a junção de out (fora, relacionando-se à expressão fora do armário/assumido) e
advertising (publicidade).
371
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
publicitária. Assim, o posicionamento de marcas em suporte a causas sociais ocorre, também, através
da relação entre os corpos abjetos e os produtos, por meio da inclusão daqueles na lógica de consumo.
O termo pink money indica o poder de compra do consumidor LGBTQIA+ e é:

[...] frequentemente associado ao oportunismo de empresas e pessoas públicas


(principalmente políticos e artistas), que externam uma retórica inclusivista e
pró-diversidade em seus discursos, visando precipuamente tirar proveito
financeiro desses consumidores. (MOZDZENSKI, 2019, p. 154)

O mês do Orgulho é um exemplo que deixa evidente os agenciamentos que ocasionam a


inclusão de corpos não-normativos na narrativa publicitária. Colaborando para o processo de
identificação por parte do consumidor, as produções de junho retratam a diversidade e reconhecem o
público LGBTQIA+. Os produtos, portanto, evidenciam um posicionamento das marcas, ao menos
durante o mês dedicado a esta comunidade, e possibilitam a evidenciação de pertencimento a uma
causa através da compra. Relacionando-se ao que Domingues e Miranda (2018) conceituam como
consumo de ativismo, que é caracterizando pela aproximação a um discurso ativista por empresas e
consumidores. No entanto, é importante pontuar que as empresas, em sua maioria, se voltam para a
lógica do pink money, visando o lucro e não levando em consideração as políticas de inclusão de
pessoas LGBTQIA+202.

Sobre tal configuração, foi desenvolvido o conceito de slacktivism203 que é definido como um
ativismo preguiçoso, voltado para os posicionamentos online desconsiderando as mudanças políticas
necessárias para que a inclusão ocorra, também, fora do ambiente virtual, e com isso seja efetiva para
mudanças sociais (MOROZOV, 2010 apud PATRIOTA, 2013). A visualização de tais situações pode
ser realizada através da análise de redes sociais (RECUERO, 2017) visando compreender as diversas
respostas dos usuários dos SRS em relação a um tópico, e como as redes são moldadas por meio desse
processo.
As percepções sobre a proximidade das marcas com o ativismo não são exclusivamente
positivas ou críticas. É recorrente, também, a existência de discursos negativos, principalmente,
devido à condição de valorização em que os corpos abjetos são colocados, questionando a

202 https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/07/01/38percent-das-empresas-tem-restricoes-para-contratar-lgbtqi-diz-
pesquisa-preconceito-velado-relata-mulher-trans.ghtml
203 Slacktivism é um conceito publicitário que surge da junção das palavras slack (preguiçoso/negligente) e ativism (ativismo).

372
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
normatividade social. Os discursos de ódio em SRS são regulares quando se trata de minorias sociais,
e fundamentados por “um espectro de posições de poder complexas e circunstanciais” (MENEZES,
2018, p. 37). Assim, os deslocamentos em produções midiáticas que propõem uma inclusão, ao
menos imagética, são alvos de represálias, que têm como foco violentar verbalmente sujeitos
LGBTQIA+, negros, gordos, velhos, pobres; aqueles que se encontram fora da norma.
A estrutura dos sites de redes sociais permite a expansão, em alguns momentos de forma viral,
das mais diversas temáticas. E, como apontado anteriormente, quando o conteúdo retrata corpos
abjetos, o engajamento de grupos hegemônicos é considerável. O ciberespaço como pontuado por
Martino (2014), permite não só a duplicação de situações do mundo offline como transformações
destas. Através das mudanças possíveis, exacerbam-se discursos múltiplos, principalmente os que
incitam o ódio.

O Twitter é um SRS que tem inerentemente uma participação opinativa de seus usuários, que
publicam tweets partindo de perspectivas pessoais e contribuem para discussões em tweets de outros
seguindo a mesma lógica. Yazdani e Manovich (2015) pontuaram a possibilidade de realizar análises
sobre comportamentos sociais e culturais por meio dele, dada a disposição da rede. Também, van
Dijck (2013) discorreu sobre a propagação instantânea de informações, causas sociais e boicotes que
ocorre através do SRS. Assim, o Twitter mostra-se como um ambiente virtual que abarca discussões
sobre corpos não normativos, tanto atreladas a ativismos, quanto atreladas à LGBTQfobia, ao
machismo, ao racismo, à gordofobia, ao classismo e ao etarismo; sendo, dessa forma, passível de
análises.

METODOLOGIA

Até o momento, esta produção possibilitou a compreensão das condições em que a publicidade
retrata o corpo abjeto, assim como discutiu o deslocamento da narrativa publicitária que se dá, na
maior parte do tempo, durante o mês do Orgulho. Junto aos apontamentos teóricos já realizados,
procura-se analisar a recepção de usuários do Twitter da inclusão dos corpos abjetos em narrativas
publicitárias. Ainda, nos propomos, de forma secundária, a categorizar as formas de recepção do
corpo abjeto no discurso publicitário.

Para ilustrar como tal recepção ocorre, foi escolhido um tweet da campanha
#PROUDINMYCALVINS, da conta oficial da marca de roupas e acessórios Calvin Klein, que
373
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contém uma foto de Jari Jones para a ação publicitária do Orgulho LGBTQIA+. A modelo plus size
é uma mulher transexual, lésbica e negra, o que causou um engajamento notório com a publicação,
possibilitando a análise de uma situação ilustrativa aos comportamentos recorrentes nos SRS.

A ótica da análise se respalda nas noções análise de redes sociais (RECUERO, 2017) e da
análise de conteúdo (BARDIN, 2016). Ainda, nos baseamos na perspectiva desenvolvida por
Menezes (2018, p. 16) das categorias de discurso (Discurso LGBTfóbico explícito, Discurso
LGBTfóbico velado, Outros discursos de ódio, Discurso ofensivo, Discurso dúbio, Discurso empático
à população LGBT, Outros).

De início, a perspectiva de Recuero (2017) é de extrema importância para situar os recortes


metodológicos que guiarão o processo de análise. Aqui, compreendemos que ao utilizar o site de rede
social Twitter, os usuários podem ser visualizados como atores em uma rede complexa e
hierarquizada, que se dão por configurações da cibercultura, fortemente influenciadas pelas normas
sociais (RECUERO, 2017). Assim, a pesquisa se baseia na lógica de análise de redes sociais tendo
como foco uma rede de ego, “cuja estrutura é desenhada a partir de um indivíduo central”
(RECUERO, 2017, p. 44), que neste caso é a conta da marca Calvin Klein.

O que se propõe, aqui, é a realização de uma análise qualitativa e quantitativa, levando em


consideração os apontamentos de Recuero (2017) sobre a hibridização de metodologias. Portanto,
para realização do presente trabalho, a análise de conteúdo proposta por Bardin (2016) será utilizada.
Sobre o método, a autora pontua:

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não


se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor,
será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e
adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações. (BARDIN, 2016,
p. 37)

A análise de conteúdo passará por três fases: descrição, inferência e interpretação (BARDIN,
2016, p. 45), a serem desenvolvidas através dos apontamentos sobre os dados coletados. O processo
de descrição constitui a fase inicial de análise, colaborando para o processo de contextualização. A
inferência “é o procedimento intermediário que permite uma passagem explícita e controlada da
descrição para a interpretação” (Ibidem), já a interpretação será realizada considerando todos os
apontamentos teóricos realizados até o momento, constituindo-se, principalmente, da noção

374
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
corpo abjeto, proposta por Butler (1993), e da instrumentalidade interseccional, explanada por
Akotirene (2018).

Em Menezes (2018) encontramos uma base para desenvolver uma categorização de como os
discursos mencionados se apresentam no Twitter, diferindo da perspectiva do autor que retrata o
Facebook. Através dele, foi possível compreender as dinâmicas sociais que possibilitam a expressão
escancarada do ódio através dos SRS, e a partir disso categorizar os dados obtidos. Assim,
pretendemos categorizar as respostas como: 1. Discurso de ódio; 2. Discurso de valorização; 3.
Discurso questionador.

A primeira categorização pode ser vista como um termo guarda-chuva que irá englobar tweets
LGBTQfóbicos, gordofóbicos e racistas. Já a segunda, inclui tweets de valorização à iniciativa
apresentada pela marca. Quanto à terceira categoria, serão levados em consideração os tweets que
questionam a coerência da marca em suas ações e a forma como a inclusão é realizada. Por meio das
delimitações realizadas neste tópico, pretende-se responder à pergunta que rege o presente artigo e
explanar como a recepção do corpo abjeto ocorre no Twitter.

ANÁLISE

Em 2018, a campanha do mês de Orgulho da Calvin Klein não identificava seus modelos, as
peças voltadas para o público LGBTQIA+ foram apresentadas em dois tweets, com foco nas
vestimentas e uma menção a uma campanha pelos direitos humanos para qual a empresa realizou uma
doação. Ainda, um tweet foi feito com uma fotografia da revista Vogue, em que uma pessoa negra
LGBTQIA+ utiliza as vestimentas da linha.

Imagem 1 – Tweets de junho de 2018

375
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

A campanha #PROUDINMYCALVINS se iniciou em 2019, no mês do Orgulho, e tem ações


voltadas para o público da comunidade, propondo apresentar os corpos abjetos em uma situação de
valorização, diferindo da norma social. Desse modo, a marca introduziu sua campanha trazendo
quatro modelos que participaram das publicações voltadas à comunidade LGBTQIA+ durante o ano
mencionado. A aproximação ao público alvo foi, finalmente, possível por meio da inclusão da
vivência de cada um dos modelos em cada um dos tweets. A campanha, contou também com
produções audiovisuais que participam da dinâmica de divulgação da linha de roupas e que procuram
debater questões de visibilidade com os modelos.

O destaque da campanha foi Indya Moore que é uma pessoa transgênera, não-binária e não-
branca. Moore apareceu com maior frequência, em relação ao grupo de modelos, em uma narrativa
positiva, que pontua sua importância e traz debates sobre a dissidência de um ideal hegemônico.

Imagem 2 – Vídeo de divulgação da campanha #PROUDINMYCALVINS

376
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

Em 2020, a Calvin Klein iniciou sua campanha de Orgulho LGBTQIA+ em maio e até o
momento (agosto de 2020) tem publicado materiais visuais sobre a temática. Dessa vez com nove
modelos, a narrativa se expandiu e buscou tratar da diversidade de forma ainda mais ampla. Porém,
com esta iniciativa, a reação conservadora também foi ampliada, principalmente, em relação a Jari
Jones que teve destaque por sua presença em um billboard em Nova York, representando a campanha
#PROUDINMYCALVINS.
A modelo foi celebrada e criticada através das redes sociais por questões como: raça, gênero,
orientação sexual e biotipo. Jones é uma mulher negra, transexual e lésbica que fez parte da linha plus
size da coleção do Orgulho. As reações não se voltaram somente para ela, mas à marca que escolheu
dar visibilidade a um corpo subalterno.
É evidente que as respostas não foram exclusivamente positivas ou negativas, e nosso
propósito aqui é analisar como se deu essa recepção. A intenção ao mencionar o deslocamento de
narrativa é pontuar como o maior engajamento da marca com campanhas inclusivas ocasiona o

377
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
maior engajamento de usuários das redes sociais na repreensão. Ou seja, a extensão da campanha e
diversidade presente nela são vistas como alvos para os ataques de ódio.
O caso de Jari Jones, particularmente, ilustra diversas reações possíveis. Analisando de forma
quantitativa e qualitativa, a rede de ego que surge com o tweet da Calvin Klein como sujeito central
teve 322 respostas à presença da modelo em seu perfil (variando em seu caráter). Além disso 965
usuários do SRS curtiram o tweet (o que pode ser visualizado de forma positiva), junto a 138 retweets
(que podem ser visualizados, também, positivamente) e 102 retweets com comentários (que podem
ter diversas caracterizações). Todos os dados mencionados foram coletados em 10 de agosto de 2020.

Imagem 3 – Tweet com fotografia de Jari Jones para a campanha #PROUDINMYCALVINS.

Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

378
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Até esse ponto, os processos de descrição e de inferência da metodologia de análise de
conteúdo foram realizados através da contextualização, da descrição dos dados coletados e da
caracterização dos mesmos para que o processo de interpretação possa suceder o presente tópico. Por
meio das informações quantitativas obtidas pelo tweet da Calvin Klein, é possível discorrer a respeito
de como se dá o engajamento em um SRS pela presença de um corpo não-normativo, porém, aqui
procuramos ter uma abordagem, também, qualitativa. Assim, algumas respostas foram extraídas para
colaborar com o processo de análise, e, desse modo, categorizar as formas de recepção do corpo
abjeto no discurso publicitário.

DISCURSO DE ÓDIO
Entre as respostas que Jari Jones teve no Twitter, o discurso de ódio mostrou-se presente e
incluiu diversos aspectos da vivência da modelo. É importante reforçar que os discursos de ódio
ocorrem quando uma coletividade é atacada através de retórica hegemônica. Seguindo a premissa da
interseccionalidade, visualizamos a situação de Jones por uma ótica que leva em consideração
questões de: transexualidade, orientação sexual, raça e biótipo. A seleção de respostas abaixo retrata
alguns dos ataques a Jones, questionando de forma constante sua identidade de gênero e orientação
sexual; realizando comparações entre seu corpo e de uma mulher branca e magra; e argumentando
em prol de um ideal biomédico de saúde, que se afirma pela aparência.

Imagem 4 – Tweets com discurso de ódio204

204Tradução do 1º tweet da imagem 4: “Um homem que acha que ele é uma mulher, mas gosta de mulheres, assim, um homem
representando as mulheres, os homens vencem novamente. Viva o patriarcado!” e “Tchau Calvin Klein, você não estará mais em
meu guarda-roupa”. Tradução do 2º tweet da imagem 4: “Sinto falta dos velhos dias bons!”. Tradução do 3º tweet da imagem 4:
“Promover a obesidade em vez de relacionar seu produto a hábitos saudáveis não faz bem à sua marca e menos para a população
com % de obesidade, o que faz é relacionar a raça com maus hábitos alimentares, um risco para a saúde que pena”.
379
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

O raciocínio desenvolvido nessas respostas está presente em ambiente físicos e


virtuais, mas mostra-se fortalecido pelo ambiente opinativo que o Twitter proporciona, já que o
conteúdo compartilhado é acompanhado de comparativos imagéticos, links e de suporte de outros
usuários. O engajamento de outros torna-se um fato encorajador para que diversos conservadorismos
sejam reiterados de forma violenta, procurando invisibilizar uma vivência que ganhou protagonismo
recentemente.

Um lado menos convencional do discurso de ódio também se mostrou presente no ambiente


online. Algumas das respostas ao tweet da Calvin Klein surgiram da lógica feminista radical trans-
excludente (TERF205), que se dá pela negação da identidade de gênero, tendo como foco o sexo
biológico como determinador do gênero. Apesar de ser uma vertente do feminismo, tal ativismo
reitera a hegemonia e se utiliza do determinismo biológico para subalternizar corpos.

Imagem 5 – Tweets com discurso de ódio206

205 A sigla TERF é utilizada para referir-se às feministas radicais que perpetuam a lógica trans-excludente, e surge da escrita em
inglês que é: trans-exclusionary radical feminist.
206 Tradução do 1º tweet da imagem 5: “Se essa pessoa realmente fosse uma mulher e se parecesse com isso, vocês não a teriam

contratado. Todos nós sabemos. Homens heterossexuais não se tornam mulheres se ele dizem que são. #apagamentofeminino
#apagamentolésbico”. Tradução do 2º tweet da imagem 5: “Mulher transexual sim, lésbica não. Lésbicas são mulheres/fêmeas
atraídas pelo próprio sexo. Uma mulher transexual não é, e nunca poderá ser, uma fêmea”. Tradução do 3º tweet da imagem 5:
“Uma mulher é uma fêmea humana adulta, e uma lésbica é uma mulher que se atrai por seu próprio sexo”.
380
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

De forma geral, a propagação dos discursos de ódio ocorre pela necessidade de garantir a
determinados corpos a precariedade como condição inerente à vida. Assim, em diferentes
intensidades, os sujeitos se direcionam aos corpos abjetos para afirmar suas condições normativas, e
colaborar para que a exclusão cumpra sua função na manutenção da hegemonia.

DISCURSO DE VALORIZAÇÃO
As ações inclusivas de corpos abjetos na narrativa publicitária também são vistas de forma
positiva por parte dos usuários dos SRS, que celebram o protagonismo de grupos que, comumente,
são retratados de forma estereotipada. Entre as respostas no Twitter, um discurso de valorização se
mostrou presente. Ele incluiu tanto comentários a respeito de Jari Jones, quanto sobre a iniciativa da
marca Calvin Klein.

Imagem 6 – Tweets com discurso de valorização207

Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

Através do SRS, a aprovação pode ser demonstrada por meio do maior engajamento com as
publicações da marca através de respostas, curtidas e compartilhamentos; o que colabora para um

207
Tradução do 1º tweet da imagem 6: “Ótima campanha. Eu realmente a amo. É muito positiva!”. Tradução do 2º tweet da
imagem 6: “Ótimo! Espero que isso continue, não só em junho.”. Tradução do 3º tweet da imagem 6: “Eu amo essa campanha,
ela [Jari] é linda”.
381
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contexto em que há o aumento de consumo dos produtos, por meio da lógica de popularidade da rede.
Como já mencionado anteriormente, o consumo de ativismo ocorre pela identificação com uma causa
resultando na compra, como forma de suporte à empresa que se posiciona em prol da comunidade
LGBTQIA+, por exemplo, ou pela identificação com um produto voltado para sua vivência.
Assim, o discurso de valorização presente no Twitter explicita uma resposta positiva a iniciativas
que deslocam a lógica existente de representação de corpos abjetos. Tal discurso pode ocorrer em
diversas situações em que há o deslocamento da narrativa convencional, colaborando para midiatizar
a diferença (SILVA; COVALESKI, 2016).

DISCURSO QUESTIONADOR
A presença de corpos abjetos pode acarretar, ainda, questionamentos por parte de usuários dos
SRS quanto à coerência da marca e seu comprometimento com a causa. A reprodução de tal discurso
crítico procura compreender os limites da ação da empresa e como, de forma prática, a inclusão é
realizada. Assim, a análise realizada aqui categoriza mais um comportamento recorrente às aparições
de corpos não-normativos no ambiente virtual.

Imagem 7 – Tweets com discurso questionador208

208
Tradução do 1º tweet da imagem 7: “Então agora ela pode entrar em qualquer loja da Calvin Klein e encontrar roupas de seu
tamanho?” Tradução do 2º tweet (em resposta ao primeiro tweet) da imagem 7: “Oi, certos produtos estão disponíveis em
tamanhos maiores em algumas áreas, e nós estamos trabalhando ativamente para expandir essa oferta. Caso você queria ajuda
para encontrar um produto em tamanho grande perto de você, nos diga de qual país você está comprando e qual o item em que
está interessada”. Tradução do 3º tweet da imagem 4: “E como vocês lidam com os tamanhos extra grandes? Ou só é para
conviver!!!!”.
382
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Twitter da marca Calvin Klein, 2020.

Os questionamentos apontados acima retratam ressalvas que compradores têm com as marcas
que se mostram inclusivas e, no entanto, não possibilitam a compra de produtos aos corpos gordos.
O destaque ao título “modelo plus size” foi feito pela própria marca, por apoiadores e por críticos
para discutir a presença de Jari Jones na campanha #PROUDINMYCALVINS.

No entanto, o site brasileiro da Calvin Klein, por exemplo, possui uma numeração de
vestimentas que vai até os números 52 ou 54 (a depender da peça), o que não é efetivamente inclusivo.
A pesquisadora Aliana Aires apontou que apesar de tal forma de deslocamento no regime de
visibilidade do corpo gordo contribuir para uma construção indenitária, a situação “na verdade
representa uma estratégia para ampliar a produção e o consumo.” (AIRES, 2016, p. 119).

Por fim, é possível afirmar que a presença do corpo abjeto em narrativas publicitárias acarreta
múltiplas reações no Twitter, com diferentes caráteres que colaboram para o apoio de vivências ou
procuram confina-las à exclusão. Através da análise realizada aqui, nota-se uma dinâmica que pode
ser expandida para compreender a recepção de uma pluralidade de corpos em SRS no geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

383
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na presente produção foi realizada uma investigação da recepção do Twitter do corpo abjeto
em campanhas publicitárias. Através dos apontamentos teóricos foi possível realizar os objetivos
específicos de compreensão das condições de aparecimento do corpo abjeto na publicidade, assim
como foi realizada uma discussão a respeito do deslocamento, durante o mês de Orgulho LGBTQIA+,
da narrativa publicitária. Por meio da argumentação desenvolvida – sobre as dinâmicas midiáticas
que envolvem os processos de representação, de consumo e da presença da comunidade no ambiente
físico e virtual – possibilitou o entendimento da relação entre os corpos não-normativos, a publicidade
e os sites de redes sociais.

Também, junto fundamentação teórica, os aparatos metodológicos fornecidos proporcionaram


a realização da análise da recepção de usuários do Twitter, especificamente, da recepção de corpos
abjetos em narrativas publicitárias por meio da presença de Jari Jones na campanha
#PROUDINMYCALVINS. Assim, foi desenvolvida uma categorização das formas que tal recepção
ocorreu, para colaborar com a análise. Dessa forma, foram encontradas regularidades nos discursos
apresentados nas respostas ao tweet, tais regularidades colaboraram para a criação da categorização:
1. Discurso de ódio; 2. Discurso de valorização; 3. Discurso questionador. E, portanto, permite uma
expansão nos estudos comunicacionais que integram as redes sociais e a publicidade.

REFERÊNCIAS
AIRES, A. Convocações midiáticas para os corpos magro e obeso: produção de biossociabilidades
do consumo In: HOFF, T. (Org.). Corpos discursivos: dos regimes de visibilidade às
biossociabilidades do consumo. Recife: Editora UFPE, 2016.

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.

BUTLER, J. Bodies that matter, on the discursive limits of "sex". Nova York: Roudedge, 1993.

DOMINGUES, I.; MIRANDA, A. Consumo de ativismo. Barueri: Estação das Letras e Cores, 2018.

HOFF, T. (Org.). Corpos discursivos: dos regimes de visibilidade às biossociabilidades do consumo. Recife:
Editora UFPE, 2016

MARTINO, L. Teoria das Mídias Digitais: linguagens, ambientes, redes. Petrópolis: Vozes, 2014.

384
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MENEZES, R. Entre a anormalidade e a abjeção dos corpos: estratégias discursivas da LGBTfobia nos
comentários da página do facebook do Diário de Pernambuco. 2018. 150f.: il. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife PE 2018. Disponível em: <
https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/33293 >. Acesso em 4 de agosto de 2020.

MOZDZENSKI, L. Outvertising – a publicidade fora do armário: Retóricas do consumo LGBT e


Retóricas da publicidade lacração na contemporaneidade. 2019. 310f.: il. Tese de Doutorado –
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2019. Disponível em: <
https://www.repositorio.ufpe.br/handle/123456789/35630 >. Acesso em 29 de julho de 2020.

PATRIOTA, K. (org.) A natureza das mídias digitais. Recife: Editora UFPE, 2013.

RECUERO, R. Introdução à análise de redes sociais online. Edufba, 1ª edição, 2017. Disponível em: <
http://www.edufba.ufba.br/2017/12/introducao-a-analise-de-redes-sociais-online/&gt; > Acesso em: 20 de
Julho de 2020.

SILVA, K.; COVALESKI, R. A representatividade do corpo na publicidade brasileira: estereótipos de beleza


e o corpo diferente. In: HOFF, T. (Org.). Corpos discursivos: dos regimes de visibilidade às
biossociabilidades do consumo. Recife: Editora UFPE, 2016.

VAN DIJCK, J. The culture of connectivity: a critical history of social media. United States Of America:
Oxford University Press, 2013.

YAZDANI, M.; MANOVICH, L. "Predicting social trends from non-photographic images on


Twitter" 2015. IEEE International Conference on Big Data (Big Data), Santa Clara, CA, 2015, pp. 1653-
1660, doi: 10.1109/BigData.2015.7363935. Disponível em: <
http://manovich.net/index.php/projects/predicting-social-trends >. Acesso em 1º de agosto de 2020.

385
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REPRESENTAÇÕES DE FEMINILIDADES E MASCULINIDADES NOS
DISCURSOS DE HOMENS-PAIS DURANTE A GRAVIDEZ

Camila Rebouças Fernandes209

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as representações de feminilidades e masculinidades
encontradas nos discursos de homens-pais durante a gravidez. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e
exploratória, realizada no serviço de pré-natal de uma unidade de saúde pública federal localizada no Rio de Janeiro.
Foram entrevistados dez homens que utilizavam este serviço e, lhes foi perguntado, se eles achavam que seria igual ou
diferente cuidar de meninos e cuidar de meninas. Nem todos os entrevistados sabiam o sexo biológico de seus filhos no
momento das entrevistas, mas todos apontaram se achavam que esses cuidados seriam iguais ou diferentes. Somente três
participantes afirmaram que não há diferenças nos cuidados, sem apresentar muitas justificativas. A maioria achava que
seria diferente cuidar de seus filhos se fossem meninos ou meninas, usando estereótipos de gênero e discursos
homogeneizantes de feminilidades e masculinidades na condução de seus relatos. Nenhum dos participantes apresentou
discursos envolvendo cuidados das crianças associados a equidade de gênero, indicando a valorização, a manutenção e a
reprodução de modelos padronizados e heteronormativos de socialização.

Palavras-chave: Gênero; Relações de gênero; Feminilidade; Masculinidade.

INTRODUÇÃO
O conceito de gênero é fluido e transitório, caracterizando-se por conflitos, principalmente
políticos, e se referindo a um modo de falar sobre o sistema de relações sociais e sexuais. Entende-se
o conceito como uma categoria social que possibilita aos sujeitos rejeitar a anatomia e o sexo
biológico como um destino, fator que durante muito tempo serviu para justificar as iniquidades de
gênero (JOAN SCOTT, 2012).
É necessário pensar em gênero com criticidade, refletindo sobre os papeis designados para
homens e mulheres na sociedade, bem como as contradições presentes nessas determinações (JOAN
SCOTT, 2012). O debate sobre essencialismo e construtivismo social ajuda a problematizar essas
questões e a entender que as relações de gênero não são determinadas biologicamente, uma vez que
se configuram como construções sociais históricas.
Entender gênero a partir do dualismo homem x mulher remete a uma abordagem essencialista
que percebe a sexualidade e o comportamento dos sujeitos como produto natural do instinto. Em
contrapartida, a perspectiva do construtivismo social busca romper com a universalidade e questionar
estruturas hegemônicas (MARIA LUIZA HEILBORN, 2003), compreendendo que as visões de

209
Mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em
Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPDH-UFRJ). E-mail: camila-
fernandees@hotmail.com.
386
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mundo dos sujeitos e seus comportamentos são orientados por fatores sociais, econômicos, políticos
e culturais.
Antes mesmo da criança nascer, a família pré-determina estereótipos a partir do sexo
biológico, pensando em nomes, cores, brinquedos, ornamentações e eventos como o famoso “chá de
bebê” ou, o mais recente “chá de revelação”, onde o sexo biológico assume uma dimensão tão grande,
que se transforma em um evento familiar.
Ao longo da infância os sujeitos absorvem um modelo padrão de como devem se comportar,
incluindo a forma de se vestir, de brincar, de expressar (ou não expressar) sentimentos e desejos,
assim como as atribuições de cada um e os espaços a serem ocupados de acordo com o sexo biológico.
Esses mecanismos são facilmente encontrados na socialização de meninas e meninos e normatizam,
disciplinam, regulam e controlam seus comportamentos e suas posturas (DANIELA FINCO, 2010).
Até mesmo crianças socializadas em espaços onde as tarefas são divididas igualitariamente
reproduzem as hierarquias de gênero, já que as práticas, as habilidades e as expressões corporais
infantis são atreladas às relações sociais de gênero arraigadas culturalmente (DANIELA FINCO,
2010; JUCÉLIA RIBEIRO, 2006) e essas crianças frequentam espaços para além do âmbito
doméstico, acessando veículos de comunicação onde os papeis de gênero são elucidados.
Homens e mulheres podem educar as crianças segundo as definições de gênero a partir do
determinismo biológico e as relações entre as crianças e entre crianças e adultos constroem
gesticulações, linguagens e performances ditados a partir dos parâmetros culturais da sociedade
(DANIELA FINCO, 2010; JUCÉLIA RIBEIRO, 2006). Neste contexto, as crianças desenvolvem
habilidades na expectativa de corresponder aos moldes de masculinidade e feminilidade hegemônicos
(DANIELA FINCO, 2010), o que implica na invisibilidade e no desprezo pela pluralidade e, na pior
das hipóteses, em sua repressão.
Juntamente com as famílias, as escolas, as creches e outras instituições educadoras legitimam
e reproduzem os papeis cristalizados de gênero e suas iniquidades (DANIELA FINCO, 2010;
JERUSA GOMES, 1994; SILVANA SANTOS; LEIDIANE OLIVEIRA, 2010), especialmente
quando acrescidas da influência religiosa cristã, idealizando a mulher como mãe e cuidadora e o
homem como provedor, disciplinador e condutor da mulher e dos filhos (SILVANA SANTOS;
LEIDIANE OLIVEIRA, 2010).

387
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Segundo Daniela Finco (2010), instituições incentivam e reprimem habilidades específicas
para cada sexo, demonstrando expectativas quanto ao desempenho intelectual e oferecendo
bonificações e castigos quando essas expectativas são ou não correspondidas. A educação direcionada
a meninas e meninos é diferente, ainda que sejam irmãos de uma mesma família, estudantes de uma
mesma turma, que leiam os mesmos livros ou que ouçam os mesmos professores, pois os
comportamentos tradicionais norteiam o tratamento dispensado às crianças, mesmo que sutilmente,
no cotidiano.
Masculino e feminino são difundidos como extremos opostos, ainda que possam ser
considerados complementares, os comportamentos reconhecidos como femininos são socialmente
positivos nas meninas, mas se meninos possuem esses atributos (e vice-versa), estes são vistos como
“anormais”, gerando mobilização nas famílias para “corrigi-los” através da repressão.
Em uma tentativa exitosa de domesticação dos corpos, as meninas são controladas em suas
expressões de insatisfação e agressividade, enquanto os meninos são chamados ao silenciamento de
suas emoções e de todo e qualquer sentimento que demonstre sensibilidade (MARIA JOSÉ
BARBOSA, 1998; DANIELA FINCO, 2010; JUCÉLIA RIBEIRO, 2006). Nos meninos, a
necessidade de controlar emoções é um dos elementos que determina o modelo hegemônico de
masculinidade, se relacionando com força, virilidade e coragem (MARIA JOSÉ BARBOSA, 1998;
JUCÉLIA RIBEIRO, 2006).
Mari José Barbosa (1998) aponta que para os meninos, de todas as formas de se expressar,
chorar é considerada a mais desprezível, simbolizando fraqueza, vulnerabilidade e inabilidade de se
organizar interiormente e que, ao público masculino adulto, a expressão de sentimentos é permitida
em momentos específicos, como em casos de morte, se estiverem sob efeito de álcool e na arte, através
de música e poesia.
Para Jucélia Ribeiro (2006), as famílias, junto à outras instituições educadoras, exercem
pressão para que as crianças tenham seus papeis já determinados, onde meninas e meninos devem
brincar separados. Neste cenário, as mulheres-mães orientam as meninas a manter distância dos
meninos, acreditando que suas filhas podem ser vítimas da “obscenidade” e da “malícia” masculina.
Ainda de acordo com a autora, a fragmentação mais expressiva entre meninas e meninos se dá a partir
dos sete anos, onde os adultos começam a perceber nas crianças maior interesse e questionamento
sobre temas que envolvem sexualidade, assunto que ainda é considerado um tabu.

388
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Não é recente a interferência da família, da escola, da Igreja e dos espaços de saúde na
socialização e na educação de crianças, adolescentes e jovens, principalmente no campo da
sexualidade. As instituições educadoras não operavam, como não operam até hoje, isoladamente,
apresentando um discurso alinhado. Neste sentido, pode-se dizer que a educação corporal é
historicamente lenta e complexa, integrante de processos civilizatórios (DANIELA FINCO, 2010).
Ao analisar os registros de Armanetti (1967) sobre adolescência e sexualidade, Anna Marina
Pinheiro (2017) identificou uma abordagem destacando os pais, os professores, os médicos e os
padres como agentes educadores para a construção da personalidade dos jovens.
A imprensa também assume um papel significativo na educação de crianças, adolescentes e
jovens, principalmente no que tange a “educação sexual” feminina. Ao analisar publicações de 1952
até 1973 de revistas direcionadas às meninas, Anna Marina Pinheiro (2017) observou que o tema da
sexualidade se destacava a partir da publicidade de absorventes higiênicos e de medicamentos para
regular o fluxo menstrual e/ou aliviar possíveis sintomas menstruais, caracterizando, ainda,
abordagens voltadas para meninas socializadas no cristianismo, que futuramente ocupariam o lugar
de esposa e mãe.
Outra revista, que teve suas publicações entre 1946 e 1961 analisadas por Anna Marina
Pinheiro (2017), ao falar sobre sexo, apresentava um discurso negativo, de sofrimento para as
mulheres. Segundo a autora, as revistas direcionadas ao público feminino dispunham de propagandas
de instrumentos considerados muito avançados para serem expostos às adolescentes, fazendo com
que a mulher-mãe da família conservadora assumisse o papel de educadora das filhas. Isso
proporcionava às mulheres-mães maior destaque na socialização doméstica através da procriação, do
cuidado com a família e da conciliação de conflitos, enquanto que os homens se sobressaíam na esfera
pública (SILVANA SANTOS; LEIDIANE OLIVEIRA, 2010).
Os estereótipos de gênero têm funcionado como parâmetro para localizar socialmente os
sujeitos e as relações sociais, determinando a socialização das crianças antes mesmo de elas nascerem.
Entender as percepções das famílias sobre essas questões é fundamental para promover reflexões e
estimular iniciativas que rompam com os papeis cristalizados de gênero.
Considerando que raramente o público masculino é chamado a refletir sobre esse assunto em
seu cotidiano, esta pesquisa trabalha diretamente com os homens, enxergando-os como

389
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
potenciais cuidadores e valorizando sua participação, que em muito influencia na socialização das
crianças.
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo apresentar as representações de
feminilidades e de masculinidades encontradas nos discursos dos homens durante a gravidez. Essas
representações se tornaram evidentes quando os homens apontaram se eles achavam que seria igual
ou diferente cuidar de menina e cuidar de menino, mesmo aqueles que ainda não sabiam o sexo
biológico da criança.

METODOLOGIA
O presente estudo, de caráter qualitativo, descritivo e exploratório, se configura como recorte
de uma dissertação de mestrado. A coleta de dados foi realizada na Unidade de Produção Pré-Natal
do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira
(IFF/Fiocruz), reconhecido como referência nacional pelo Ministério da Saúde, localizado no Rio de
Janeiro, metrópole que acolhe usuários de diversos municípios e estados do Brasil.
Foram incluídos nessa pesquisa homens com 18 anos ou mais que estivessem utilizando o
serviço de pré-natal da referida unidade. Por questões éticas, foram excluídos do estudo homens cujos
fetos fossem incompatíveis com a vida, considerando possíveis danos de pesquisa. Também foram
excluídos deste estudo homens-pais de gêmeos ou de bebês com diagnóstico suspeito ou confirmado
de malformação, pois estes grupos apresentam questões específicas que implicam numa abordagem
diferenciada.
Seguindo a Resolução nº 446/2011 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP),
que atua em conformidade com a Resolução nº466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a
pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), recebendo o Certificado
de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 75566517.0.0000.5269.
O convite para participação na pesquisa foi feito individual e pessoalmente, atentando para os
aspectos éticos que envolvem estudos com seres humanos. Foi ressaltado que se tratava de uma
participação voluntária, não havendo obrigatoriedade e que, caso o entrevistado desejasse, poderia
retirar sua participação a qualquer momento – o que não aconteceu em nenhum dos casos. Foi
oferecida aos entrevistados declaração de comparecimento, garantida pelo serviço de saúde a
todos que sentiram necessidade do documento.

390
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Todos que foram convidados a participar do estudo foram informados sobre seus direitos e
sobre os objetivos da pesquisa, sendo apresentados ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE). Ao aceitarem participar da pesquisa e concordarem com o documento apresentado, a
documentação foi assinada e uma via ficou com cada participante. Antes de dar início às entrevistas
todos os participantes concordaram que estas fossem digitalmente gravadas para fins de pesquisa.
Observando os aspectos éticos em pesquisa, todos os participantes foram referenciados por
nomes fictícios, a fim de garantir o sigilo e a confidencialidade das informações prestadas. Além
disso, cabe destacar que foram respeitados todos os valores sociais, culturais, morais, religiosos e
étnicos dos entrevistados.
Foram entrevistados dez homens, quantidade definida pela técnica de saturação, onde os
discursos expressos se repetem e a coleta deixa de produzir novos dados e, após a realização das
entrevistas, todo o material foi transcrito, constituindo o corpus da pesquisa (BAUER; AARTS, 2008)
que foi estudado por três fases através da análise de conteúdo na modalidade temática (BARDIN,
1977).
Na primeira fase, houve uma pré-análise dos dados coletados através de uma leitura flutuante
visando contextualizar as falas. Na segunda etapa, o material foi explorado, havendo o ordenamento
de dados. Na terceira e última fase, os dados foram analisados e trabalhados para além do que foi
verbalmente exposto pelos entrevistados (BARDIN, 1977).
Posteriormente, todo o material foi sistematizado e articulado à literatura científica que versa
sobre o fenômeno estudado, cotejando os dados desta pesquisa com diversos olhares e saberes,
entendendo que os assuntos abordados não se restringem a um campo específico, integrando diversas
áreas de pesquisa e valorizando a interdisciplinaridade como uma potência que enriquece e pluraliza
o debate.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Embora este não fosse um critério de inclusão para a pesquisa, todos os participantes estavam,
no momento da entrevista, em um relacionamento afetivo com a mãe do bebê, reforçando o modelo
familiar ocidental que tem a família mínima como centro classificatório das relações. Este é um dado
relevante, pois o vínculo dos participantes com as gestantes pode influenciar em sua participação
no pré-natal e nas perspectivas de cuidados com as crianças.

391
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Bicalho (2013) afirma que o descobrimento do sexo biológico da criança é uma das principais
preocupações sociais, ficando atrás somente da expectativa de que a criança seja considerada saudável
ao nascer e que, ao classificar a criança pelo sexo, esta recebe tratamento diferenciado de acordo com
as normas sociais que determinam o que é adequado para meninas e meninos, encaixando-a em uma
categoria a depender do seu sexo biológico. Na maioria dos casos, após o descobrimento do sexo
biológico do bebê, são determinados nomes, cores do enxoval e decoração de ambientes.
Dos dez entrevistados, dois ainda não sabiam o sexo do bebê. Dos oito que já sabiam o sexo,
quatro seriam pais de bebê do sexo masculino e quatro seriam pais de bebê do sexo feminino,
caracterizando um certo equilíbrio. Mesmo aqueles que ainda não sabiam o sexo do bebê, apontaram
se achavam que era diferente cuidar de menina e cuidar de menino, afinal, é possível emitir uma
opinião sobre este assunto independente de saber ou não o sexo da criança.
Sete entrevistados afirmaram que é diferente cuidar de menino e cuidar de menina e três
entrevistados disseram que é indiferente o sexo da criança no que se refere ao cuidado. Mantendo o
equilíbrio, dos que afirmaram que os cuidados indiferem quando se trata do sexo da criança, um ainda
não sabia o sexo do bebê, um seria pai de uma menina e um seria pai de um menino.
Os três participantes que relataram que o sexo da criança indefere quanto ao cuidado
dispensado, apresentaram respostas sucintas e sem muitas justificativas. Considerando que a maioria
dos entrevistados vê diferenças nos cuidados direcionados a meninas e meninos, serão trabalhadas as
narrativas onde eles expõem suas percepções:

[...] Bem diferente, assim... [...] Menino é mais prático em relação a algumas coisas, até
roupa, se arrumar... A menina é um pouco mais de detalhe, né?! Ter um pouco de cuidado
mais em relação a banho, roupas e tudo mais (Carlos, 28 – bebê sexo feminino).

Preço! E também os cuidados... [...] só que tem que tomar um pouco mais de cuidado no caso
de qualquer coisa que queiram fazer com ela [caso o bebê fosse do sexo feminino]. É...
Maquiagem, roupa... É caro. Eu vejo isso porque eu tenho que ajudar a minha mulher e, sei
lá, por ser um menino eu posso fazer... Eu sei o que vou fazer, porque... pô, compra um
hotwells [marca de carrinhos de brinquedo]. Eu ficava doido quando eu ganhava, sabe?!
Ensinar a andar de bicicleta, fazer tudo... Eu acho que talvez eu possa me dar um pouco
melhor com ele (Charles, 19 – bebê sexo masculino).

A menina é muito mais delicada, o menino é um tratamento mais tranquilo: é roupa, tudo
mais... A menina não, é toda delicada, tem cabelo, mais futuramente maquiagem e tudo
mais... (Cesar, 26 – bebê sexo feminino).

[...] A menina geralmente tem que ter um cuidado um pouco maior, né?! Agora, menino,
é aquilo... Não que seja mais frouxo, mas você consegue... Assim... Ah, botou uma
392
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fraldinha, tá bom. Já limpou, direitinho, tomou o “bainho”... Já. Agora, a menina não. Tem
todo um “cuidadinho”, entendeu?! Já o menino, acaba sendo um pouco mais fácil até em
questão de custo, né?! [...] A menina acaba tendo um pouco mais... [...] Roupinha, essas
coisas [...] um custo maior, né?! (Jorge, 28 – ainda não sabia o sexo do bebê).

Acho que sim, porque menino... Ainda mais pro pai, você tá falando de uma coisa que ele já
viveu, como homem e tal... Acho que é mais fácil nesse sentido levar pra esse caminho. E
menina não, pelo perigo, pela maldade... Que também tem com o menino também, mas com
menina é mais... Porque ela é, assim, mais... Frágil, né?! Então, por esse lado sim (Luiz, 35
– bebê sexo masculino).

Sim, eu tinha preocupação se fosse uma menina... Porque eu sou uma pessoa... Tipo assim...
Como eu vou dizer?!... Muito bruta, minhas brincadeiras são muito brutas... (Olavo, 28 - bebê
sexo masculino).

[...] Não vou dizer que tem que ser agressivo com o menino, mas com a menina tem que
tomar cuidado, essas coisas (Oswaldo, 29 - bebê sexo feminino).

Identifica-se estereótipos de gênero em todos os relatos. As diferenças entre cuidar de menino


e cuidar de menina são pautadas nos conceitos hegemônicos de masculinidade e de feminilidade,
onde já é esperado que as crianças antes mesmo de nascer reproduzam padrões de comportamentos.
Assim como Daniela Finco (2010) aponta em seu estudo, nessa pesquisa as meninas também
carregam a responsabilidade de serem delicadas, pintar as unhas, usar maquiagem, salto alto e
consumir moda.
Um dos entrevistados compara a filha que ainda não nasceu à sua companheira, enxergando
no feminino uma regra: se a companheira age de determinada forma, a filha também agirá. A
masculinidade também é retratada de forma enrijecida, de modo que alguns entrevistados afirmam
que cuidar de menino significa conviver com uma realidade que eles já conhecem, como se as
experiências masculinas fossem homogêneas.
Depositar expectativas nos comportamentos das crianças causa danos não somente a elas, mas
também às próprias famílias. Quando as práticas dos filhos não correspondem aos desejos da família,
há uma tendência de auto culpabilização, sensação de fracasso, estranhamentos e até mesmo
questionamentos.
É preciso lembrar que essas expectativas sociais são impostas não apenas pelas famílias, mas
também pelas diversas instituições educadoras, que influenciam diretamente no comportamento das
crianças, porém, as mulheres-mães e os homens-pais atuam como principais incentivadores de
estereótipos logo no começo da infância, pois antes que as crianças possam fazer escolhas, a mãe

393
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e o pai tomam decisões baseadas nos papeis de gênero (BICALHO, 2013; ANDRESSA BOTTON;
MARLENE STREY, 2015; JUCÉLIA RIBEIRO, 2006).
Percebe-se, na presente pesquisa, que os entrevistados acreditam que seus filhos terão as
mesmas experiências de infância que eles tiveram. Isso não é de surpreender, já que desde o
nascimento, a família tende a passar para os filhos seus hábitos, costumes, valores e atitudes, fazendo
com que suas biografias sejam atravessadas pela socialização recebida no âmbito doméstico
(JERUSA GOMES, 1994), embora este fator não seja capaz de definir, exclusivamente, as trajetórias
de vida.
Todavia, há que se considerar que as experiências vividas em casa impactam nos
comportamentos das crianças, de forma que quando as meninas assistem somente as figuras femininas
desempenhando tarefas domésticas e cuidados com as crianças, elas tendem a reproduzir estas
práticas em suas brincadeiras e internalizar essas concepções e, aquelas advindas de espaços
domésticos com atividades pouco delimitadas pelo gênero, costumam desenvolver práticas menos
cristalizadas (JÚLIA BANDEIRA; CAMILLA COSTA, 2019).
Alguns entrevistados deste estudo falaram sobre diferenças pautadas nas brincadeiras,
reafirmando comportamentos de gênero. Charles, por exemplo, sugere que pretende presentear o filho
com o mesmo tipo de brinquedo com o qual ele costumava brincar, o clássico: carrinho; e andar de
bicicleta, como se ele não pudesse desenvolver essas atividades com uma filha. Outro exemplo disso
está na fala de Olavo, que afirmou que se sentiria preocupado, caso seu bebê fosse uma menina, já
que ele afirma que o tipo de brincadeira que ele costuma fazer é “bruta”.
Apesar de não ter especificado que brincadeiras são essas e de que maneira elas envolvem o
campo da brutalidade, torna-se evidente que o “brincar” se torna um dos cenários mais privilegiados
para o sexismo. Segundo Bicalho (2013), já nos anos iniciais de socialização, as crianças tendem a
escolher brincadeiras e brinquedos a partir dos papeis de gênero estabelecidos. Essas escolhas são
socialmente orientadas, sobretudo pelas famílias, fazendo com que o ato de brincar se torne
fragmentado entre meninos e meninas, de modo que dificilmente estes grupos se unem e uma mesma
atividade, principalmente quando envolve contato físico (BICALHO, 2013; JUCÉLIA RIBEIRO,
2006).
Essa fragmentação entre meninos e meninas se dá, muito em parte, pela crença de que
meninos são potenciais instrumentos de perigo para as meninas, podendo corromper sua

394
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
inocência e delicadeza. Além disso, no imaginário social, os meninos participam de brincadeiras
consideradas violentas e agressivas para as meninas, podendo machucá-las.
No ambiente lúdico, o contato corporal entre os meninos é limitado e discreto, já as meninas
têm maior permissão social para se abraçar e demonstrar afeto (BICALHO, 2013). Essa dinâmica
contribui para que as meninas desde cedo expressem suas emoções mais livremente e fortaleçam os
vínculos de amizade, enquanto os meninos estabelecem relações de pouca ou nula afetividade entre
si e seu contato físico, no geral, é resultante de competições ou desavenças durante atividades
esportivas. Neste sentido, pode-se dizer que, se as brincadeiras entre os meninos de fato têm uma
conotação considerada agressiva, isso não constitui produto de sua natureza e sim, de sua
socialização, idealizada antes mesmo do seu nascimento.
Os relatos dos entrevistados remetem a uma socialização que tende a fragmentar meninas e
meninos, estabelecendo brincadeiras, comportamentos e estilos de vida. Alguns mencionavam a
fragilidade e a delicadeza como elementos constitutivos do “ser feminino”, indicando que os
sentimentos e suas demonstrações socialmente não pertencem aos meninos. Sobre isso, a literatura
científica aponta que os valores afetivos são hostilizados e condicionados às meninas. Em
contrapartida, o comportamento racional é estimulado entre os meninos e visto como superior
(BICALHO, 2013; ANDRESSA BOTTON; MARLENE STREY, 2015).
A dualidade afeto x racionalidade, assim como o binarismo entre homens e mulheres, reduz e
empobrece as relações sociais, pois não permite que os sujeitos disponham de emoções e
racionalidade ao mesmo tempo. As emoções e a racionalidade estão presentes nos sujeitos,
considerando sua complexidade, no entanto, há uma exaustiva e adoecedora tentativa diária de
reprimi-los ou exibi-los, a depender das imposições sociais.
Atrelada aos aspectos comportamentais, para os entrevistados deste estudo, há uma
idealização de como a menina deve se apresentar esteticamente. Esta não é uma concepção particular
desses homens, visto que há todo um incentivo social para que as meninas se aproximem de modelos
socialmente valorizados.
Ao analisarem um material direcionado às meninas tendo a figura da boneca Barbie como
interlocutora, Ivana Simili e Michely Souza (2015) observam que a imagem da boneca se comunica
com as meninas a partir de um layout simbolicamente cor-de-rosa, oferecendo sugestões de
cuidados com a pele, com o corpo, com o cabelo e tudo o que tenha a ver com a estética. As

395
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
atividades diárias de embelezamento propostas pela Barbie nivelam as meninas às adolescentes e às
adultas e advêm de uma personagem com padrão norte-americano, branca, loira, alta e magra, modelo
não por acaso supervalorizado na sociedade ocidental.
Este tipo de material, que pode parecer inofensivo, é capaz de provocar danos as
subjetividades das meninas, impactando na forma como se percebem socialmente. Principalmente
por conta da diversidade estética, ao não se enquadrarem no “estilo Barbie de ser” podem se sentir
“desajustadas”. Além de todas as questões estéticas, figuras como a boneca Barbie tendem a aparecer
sempre sorridentes e alegres, gerando a falsa sensação de que a mulher precisa estar feliz e satisfeita
em tempo integral, acolhedora, dócil e receptiva, especialmente no âmbito familiar e nas atividades
de embelezamento. Não há grandes estímulos à satisfação em outras esferas da vida para além da
aparência.
Os participantes deste estudo falam de um cuidado diferenciado com as meninas, ressaltando
maiores custos com roupas, maquiagens e cuidados com o cabelo, elementos constituintes de um
modelo padronizado de feminilidade, centrado na estética e na constante preocupação com a
aparência. Os discursos desses homens irão reverberar na socialização dessas crianças, uma vez que
irão incidir diretamente em suas práticas enquanto pais.
Diante disso, não surpreende que o uso de maquiagem pelo público infantil tem crescido
exponencialmente e que os meios de comunicação têm identificado nas meninas o seu alvo para
comercialização de produtos de beleza (IVANA SIMILI; MICHELY SOUZA, 2015). A crença de
que o foco na aparência desde cedo contribui para retardar o envelhecimento futuro. Esse culto à
juventude se justifica pelo repúdio ao envelhecimento, especialmente nas mulheres, já que a velhice
é um ciclo da vida constantemente desvalorizada e afastada dos padrões de beleza.
As representações de feminilidades e de masculinidades localizadas nos discursos dos
entrevistados deste estudo são facilmente encontradas nas novelas, nas revistas e em outros canais de
comunicação, que retratam a mulher como consumidora de moda e de cosméticos (IVANA SIMILI;
MICHELY SOUZA, 2015) e o homem como afastado das esferas de cuidado, seja consigo ou com
os outros, através da imagem de dominador e conquistador, aproximando-se de profissões, de
veículos automobilísticos e demais assuntos próprios dos espaços públicos, onde a figura do homem-
pai se focaliza em datas comemorativas (FLAILDA GARBOGGINI, 2005).

396
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com Ivana Simili e Michely Souza (2015), as revistas reafirmam a figura materna
como responsável pelo consumo familiar, principalmente pela expressiva atuação das mulheres-mães
na educação das crianças e, mais especificamente, das meninas, que são aconselhadas sobre o que
fazer e o que não fazer desde cedo, ao se tornarem “mocinhas”. As autoras destacam, ainda, que os
periódicos voltados para as mulheres-mães, contam com um grande contingente de comerciais de
produtos para o público infantil, com reportagens indicando vestimentas e brinquedos considerados
adequados para meninas e para meninos.
Pode-se dizer que estas informações, fornecidas massivamente às mulheres-mães (e aos
homens-pais), influenciam, consciente ou inconscientemente, nas decisões cotidianas a respeito dos
cuidados com as crianças a partir de “pequenas” escolhas do dia a dia, como os brinquedos, as
vestimentas e até mesmo matricular os filhos em atividades extraclasse “de meninos” e “de meninas”,
tendo o potencial de moldá-los.
Esses fatores se expressam nos relatos dos participantes deste estudo tanto em relação às
meninas quanto em relação aos meninos. Quanto às meninas, os entrevistados partem da ideia de que
os padrões de estética integram o “universo feminino”, baseando-se em mulheres representadas pela
mídia que em nada se assemelham a mulheres em sua realidade, dada a utopia das exigências abusivas
em nome da “beleza”. Além disso, os entrevistados enxergam nas meninas uma representação de
“sexo frágil”; quanto aos meninos, observa-se nos relatos dos participantes, ideais de coragem,
virilidade, agressividade e praticidade, elementos constitutivos de um padrão hegemônico de
masculinidade que tende a homogeneizar e heteronormativizar as experiências masculinas.
Diante disso, pode-se dizer que os participantes dessa pesquisa apresentam visões enveredadas
pelo senso comum e por esses “inofensivos” dispositivos que ditam normas de comportamentos
diariamente. Entretanto, mesmo que precocemente influenciados pelos padrões, há a possibilidade
desses corpos (no momento das entrevistas ainda nem nascidos) resistirem, viverem seus desejos, sua
pluralidade e, de fato, serem o que são, contrariando as imposições sociais, o que acarreta
consequências severas, como estranhamento, reprovação social, violências, hostilização e julgamento
moral.
Além das questões já observadas nos discursos dos participantes deste estudo, acrescenta-se
ainda a notória preocupação de alguns com “maldades” que as meninas possam sofrer ao longo
da vida, reafirmando a crença de uma preservação constante dos seus corpos. Esse discurso de

397
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pseudo-preservação tem sido uma justificativa histórica para exercício de poder e controle sobre o
corpo “feminino” a partir da tradicional e exacerbada proteção devotaa à menina, sugerindo que esta
deve ser vigiada e regulada desde cedo.
Entende-se que essa preocupação também se configura como um exercício de poder, pois as
violências que costumam acometer as meninas geralmente acontecem dentro de casa. Contudo, apesar
das preocupações dos homens-pais com a exposição das meninas às violências, nenhum deles
mencionou que os crimes de ódio, como as violências de gênero contra meninas e mulheres, são
oriundos principalmente do público masculino no âmbito familiar.
Ao analisar os discursos dos participantes deste estudo, percebe-se que nenhum citou a
importância de educar os meninos para que as meninas não precisem ser resguardadas o tempo todo,
nem se defender do “perigo”. Para estes homens, a prevenção da violência em nada se aproxima da
socialização dos meninos, mas se baseia no exercício de poder e controle sobre as meninas, o que não
deixa de ser uma prática violenta, ainda que não intencional, além de reforçar a culpabilização
feminina pela violência sofrida.
Isto posto, cabe destacar que a própria socialização envolve os homens em episódios de
violência, seja como autores ou como alvos, tornando este grupo ao mesmo tempo dominante e
fragilizado e que, à nível mundial, o Brasil ocupa o sétimo lugar em homicídio de mulheres
(feminicídio), sendo a maioria cometida dentro de casa (ANGELITA HERRMANN, 2016). Neste
sentido, torna-se ainda mais necessário não fazer uma abordagem essencialista dos comportamentos,
entendendo que as violências não são naturais, pois resultam de socializações legitimadoras das
hierarquias de gênero.
Apesar dos participantes deste estudo se considerarem mais aptos a cuidar de meninos do que
de meninas, percebe-se que essa “facilidade” no cuidado se dá a partir de atividades mais práticas
envolvendo brincadeiras, vestimentas e custos financeiros. Quando se tratam de atividades mais
complexas envolvendo socialização, educação e transmissão de valores, estas sequer são
mencionadas. Sobre isso, a literatura científica atenta que grande parte dos homens-pais apresenta
dificuldades na socialização dos meninos, pois não consegue conversar com seus filhos sobre as
diferentes possibilidades de “ser homem”, como também não consegue falar sobre a perda do papel
exclusivo de líder e autoridade (FLAILDA GARBOGGINI, 2005).

398
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mesmo com a ampliação da participação masculina nos cuidados com as crianças, avanço que
precisa ser reconhecido, observa-se que parcela significativa dos homens ainda têm uma atuação
limitada na educação dos filhos (JÚLIA BANDEIRA; CAMILLA COSTA, 2019), o que parece se
coadunar com a proposta de cuidado dos homens desta pesquisa, que não ressaltam a importância da
dimensão dialógica e da educação diária com os filhos, sejam meninos ou meninas.
Essas observações não têm como intuito culpabilizar os homens-pais, já que é preciso
considerar os modelos sob os quais este grupo tem sido socializado e também reconhecer que, ao
mesmo tempo que a sociedade exige que o homem se envolva mais ativamente nos cuidados com os
filhos, também o hostiliza quando este se dedica exclusivamente às atividades domésticas ou até
mesmo quando precisa se ausentar esporadicamente do ambiente de trabalho para acompanhar os
filhos (JÚLIA BANDEIRA; CAMILLA COSTA, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos os participantes deste estudo estavam em um relacionamento heteronormativo com as
gestantes no momento das entrevistas. Esta homogeneidade impossibilitou explorar uma diversidade
maior de paternidades, como homens-pais homoafetivos, monoparentais e/ou adotivos e sem vínculo
afetivo com a gestante. Entretanto, esta já era uma questão prevista ao longo do delineamento da
pesquisa, visto que o campo de coleta de dados se trata de um serviço de pré-natal, onde não é
recorrente encontrar figuras masculinas em maior representatividade.
A maioria dos participantes deste estudo considera que há diferenças em cuidar de meninas e
cuidar de meninos, baseando suas respostas em estereótipos de gênero. No geral, os entrevistados
associam a imagem das meninas à fragilidade, delicadeza, uso de cosméticos e adornos e à
necessidade de proteção. A imagem dos meninos é atrelada à praticidade, facilidade e a uma
experiência que eles avaliam já conhecer pelo fato de serem homens.
Neste sentido, os relatos dos entrevistados remetem a uma perspectiva homogeneizante tanto
das masculinidades quanto das feminilidades, uma vez que eles entendem que seus filhos e suas filhas
serão reflexo do que eles e suas companheiras são. Essas perspectivas desconsideram a pluralidade e
a complexidade do “ser homem” e do “ser mulher”, podendo gerar conflitos futuros, caso seus filhos
e suas filhas não correspondam a essas idealizações.

399
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Os participantes deste estudo afirmam que as meninas estão mais suscetíveis a passar por
situações de vulnerabilidade, principalmente violências, mas não fazem uma problematização desse
fenômeno. Não foram identificados discursos envolvendo educação e relações equitativas de gênero,
sugerindo que meninos e meninas continuam a ser socializados de acordo com padrões que legitimam
e naturalizam as iniquidades.
Talvez, seja por acreditar que é mais simples cuidar dos meninos, que cada vez mais, estes
têm ficado expostos a vulnerabilidades e têm sido autores de crimes de ódio envolvendo feminicídio
e homofobia, uma vez que os homens que vivem a masculinidade em sua diversidade também se
tornam alvo de violência da masculinidade heteronormativa. O fato é que cuidar de meninos (e
meninas) e socializá-los em perspectivas equitativas de gênero ainda representa um grande desafio.
O momento da gestação é estratégico para dialogar com os homens e provocar inquietações
envolvendo gênero, cuidados, socialização e educação. Ainda que estes homens tenham outras
experiências de paternidade, uma gravidez atual constitui uma nova experiência e este público não
tem sido chamado a discutir sobre esses assuntos em seu cotidiano. Trabalhar essas questões durante
o pré-natal significa oportunizar maiores reflexões e contribuir para a reorientação de práticas até
então interpretadas como naturais.
Entende-se que o processo de desconstrução é lento e permanente e que somente o período da
gravidez não é o suficiente para promover mudanças radicais em comportamentos historicamente
perpetuados. Entretanto, o fato de esses homens refletirem sobre essas questões ao longo da gravidez
pode propiciar benefícios às vivências das crianças que estão para nascer e das famílias no geral.
Neste sentido, recomenda-se que os espaços de cuidado (principalmente saúde e educação) se
aproximem dos homens-pais, incentivando, oportunizando e valorizando a sua presença e sua
participação ativa. Espera-se que esse estudo tenha o potencial de contribuir para futuras discussões
e ações, reconhecendo que essas reflexões não se esgotam, dada a sua complexidade.

REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Júlia; COSTA, Camilla. O que os adultos compreendem como gênero? Uma
perspectiva sob olhar do terapeuta ocupacional em relação aos brinquedos e brincadeiras. Revista
Ártemis, v.28, n.1, p. 191-208, jul-dez, 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/view/41510/29010. Acesso em 07 jul. 2020.

400
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BARBOSA, Maria José Somerlate. Chorar, verbo transitivo. Cadernos Pagu, v.11, p. 321-343, 1998.
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8634637.
Acesso em 07 jul. 2020.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 225 p.

BAUER, Martin W.; AARTS, Bas. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados
qualitativos. In: BAUER, M.; GASKELL, G. (Orgs). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e
som: um manual prático. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 39-63.

BICALHO, Chaiton Washington Cardoso. Brincadeiras infantis e suas implicações na construção de


identidades de gênero. Rev Med Minas Gerais, Minas Gerais, v.23 (Suppl. 2), p. 41-49, jan./jun.
2013. Disponível em: http://rmmg.org/artigo/detalhes/117. Acesso em 07 jul. 2020.

BOTTON, Andressa; STREY, Marlene Neves. O gendramento da infância através dos livros infantis:
possíveis consequências em meninos e meninas. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 33, n.3, p.915-
932, set./dez. 2015. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2015v33n3p915/pdfa.
Acesso em 07 jul. 2020.

BRASIL. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa: Resolução 446, de 11/08/2011.


______. Conselho Nacional de Saúde: Resolução 466, de 12/12/2012. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html. Acesso em 07 jul.
2020.

FINCO, Daniela. Brincadeiras, invenções e transgressões de gênero na educação infantil. Revista


Múltiplas Leituras, v.3, n.1, p. 119-134, jan./jun. 2010. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ML/article/view/1905/1908. Acesso em 07
jul. 2020.

GARBOGGINI, Flailda Brito. O homem na publicidade da última década. Uma cultura em mutação?
Educar, Curitiba, n. 26, p. 99-114, 2005. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/educar/article/viewFile/4726/3652. Acesso em 07 jul. 2020.

GOMES, Jerusa Vieira. Socialização primária: tarefa familiar? Cadernos de Pesquisa, São Paulo,
n.91, p. 54-61, 1994. Disponível em:
http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/876/962. Acesso em 07 jul. 2020.

HEILBORN, Maria Luiza. Articulando gênero, sexo e sexualidade: diferenças na saúde. O clássico
e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Paulete Goldenberg,
Regina Maria Giffoni Marsiglia, Mara Helena de Andréa Gomes (Orgs.). Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2003, p. 197-208.

HERRMANN, Angelita. Guia de Saúde do Homem para Agente Comunitário de Saúde


(ACS) /Angelita Herrmann, Cicero Ayrton Brito Sampaio, Eduardo Schwarz Chakora, Élida
401
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Maria Rodrigues de Moraes, Francisco Norberto Moreira da Silva, Julianna Godinho Dale Coutinho.
- Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2016. 67 p.: il. Disponível em:
https://central3.to.gov.br/arquivo/369121/. Acesso em 07 jul. 2020.

PINHEIRO, Anna Marina Madureira de Pinho Barbará. Igreja Católica, Medicina e Imprensa
Feminina: representações sobre o corpo da mulher no Brasil Republicano. 1. Ed. Rio de Janeiro:
Autografia, 2017. 270p.

RIBEIRO, Jucélia Santos Bispo. Brincadeiras de meninas e de meninos: socialização, sexualidade e


gênero entre crianças e a construção social das diferenças. Cadernos Pagu, v.26, p. 145-168, jan-jun
2006. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30389.pdf. Acesso em 07 jul. 2020.

SANTOS, Silvana Mara de Morais; OLIVEIRA, Leidiane. Igualdade nas relações de gênero na
sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Revista Katálysis, Florianópolis, v.13, n.1, p.
11-19, jan./jun. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rk/v13n1/02.pdf. Acesso em 07 jul.
2020.

SCOTT, Joan Wallach. Os usos e abusos do gênero. Projeto História: Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados de História, v.45, p. 327-351, 2012.

SIMILI, Ivana Guilherme; SOUZA, Michely Calciolari. A beleza das meninas nas “dicas da Barbie”.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v.45, n.155, p. 200-217, jan./mar. 2015. Disponível em:
http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/2878/2875. Acesso em 07 jul. 2020.

402
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
TRANSEXUALIDADE E GÊNERO: AS DIFERENTES ESFERAS DE
RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE TRANSEXUAL

Daniel da Silva Stack210


Mari Cleise Sandalowski211

Resumo: A população transexual luta para ter sua identidade reconhecida em todos os âmbitos sociais, serem
respeitados(as) e terem seus documentos de acordo com sua identidade de gênero. Este artigo se propõe a refletir sobre
as diferentes esferas de reconhecimento social e seus tensionamentos, utilizando a teoria de Honneth, este artigo se
desenvolveu à partir da pesquisa de trabalho de conclusão de curso intitulada “Não é a realidade de todo mundo: acesso
ao SUS por pessoas trans do município de Santa Maria a partir da normativa n°2.803/2013”. A pesquisa é de ordem
qualitativa, com entrevistas semi-estruturadas, aplicadas a três mulheres transexuais e dois homens transexuais que
residem no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Todos tem sua identidade preservada no trabalho. O objetivo
do trabalho foi compreender como a população transexual do município acessa o serviço de saúde para tratamento iniciar
o hormonal, a partir dessas escutas, novas questões surgiram pautadas no reconhecimento familiar, jurídico e social.

Palavras-chave: Reconhecimento; Transexualidade; Identidade; Honneth.

INTRODUÇÃO
Aliando-se a ideia de Butler (2003) nascemos numa sociedade cis-heterossexista na qual
presume-se que todo o indivíduo que nasce se identifica com o sexo anatômico, incorpora os papéis
sociais do mesmo, o que constitui seu gênero e o deseja em suas relações o sexo oposto.

O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se
entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero — sendo o gênero uma designação
psíquica e/ou cultural do eu — e um desejo — sendo o desejo heterossexual e, portanto,
diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A
coerência ou a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim
uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e
produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que
constituem o limite das possibilidades do gênero no interior do sistema de gênero binário
oposicional. Essa concepção do gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero
e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero
reflete ou exprime o desejo (BUTLER, 2003, p.45).

Quando o indivíduo não corresponde às práticas atribuídas ao gênero, acaba sendo submetido
a uma série de violências físicas e simbólicas. É importante destacar o quanto a sociedade divide-se
em dois pólos opostos, o masculino e o feminino, as práticas generificadas estão presentes nos
indivíduos desde o nascimento, como por exemplo, os meninos se vestem de azul, brincam de futebol,

210
Mestrando em Ciências Sociais PPGCS/UFSM, pela Universidade Federal de Santa Maria, campus sede -
Camobi. E-mail: danielsstack@outlook.com
211
Professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais. E-mail: mari_ppgs@yahoo.com.br
403
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de super-heróis, já as meninas se vestem de rosa, usam maquiagem, ganham bonecas e aprendem a
fazer os serviços domésticos. (PEARSE; CONNELL, 2015).
É importante destacar que não existe apenas uma forma de construir o gênero, ele é um
espectro onde numa ponta se fixa o que é considerado feminino e na outra o masculino, de modo que
os indivíduos se posicionam ao longo dessas definições e comportamentos (PEARSE; CONNELL,
2015; BENTO, 2006; BUTLER, 2003). Ao discutir a performatividade de gênero, Butler (2003)
defende a constante construção da nossa identidade, performando o que é esperado de um homem ou
mulher. Essa construção identitária se dá sobre os signos sociais atribuídos ao gênero.

Gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos
históricos, é por que gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente construídas (BUTLER, 2003,
p.45).

Letícia Lanz (2014) afirma que dificilmente um indivíduo consegue alcançar o patamar ideal
esperado de seu gênero, de homem ou de mulher, essa ação exige uma constante vigilância de todas
as esferas, a fim de manter a performance coerente com a práxis social. Ela utiliza-se do termo armário
de Eve Kosofsky Sedgwick212, criado por ela para definir o processo de encobrir sua identidade em
espaços públicos. Portanto, os indivíduos que se reconhecem como transgêneros na esfera pública
estariam no processo de “sair do armário”.
Essa reivindicação identitária pode variar de acordo com os sujeitos. Ira213, interlocutor de
minha pesquisa e que realiza tratamento hormonal no sistema de saúde privado, diz não se identificar
com o gênero feminino desde a infância, se reconhecendo como homem transexual aos dezesseis
anos, assumindo-se para sua família com vinte e seis anos. Nesse período de dez anos escondendo da
família sua real identidade, ele relata que suas experiências foram cheia de angústias e insatisfação
pessoal.
Cosima, mulher transexual, que realiza tratamento hormonal pelo sistema privado, relata que
em sua experiência não existiu um momento específico de “confissão”. Foram incontáveis momentos
que ela demonstrou ter uma identidade feminina. Aos dezesseis anos ela se “assumiu” enquanto

212
Epistemologia do armário é um livro publicado em 1990 por Eve Kosofsky Sedgwick, que é considerado um dos
fundadores dos estudos queer.
213
Todos os nomes presentes no artigo dos interlocutores são fictícios.
404
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulher trans para seus pais, buscando ajuda profissional de psicólogos, psiquiatras e
endocrinologistas, e posteriormente, aos dezoito anos, se “assumiu” publicamente.

Não há um padrão de identidade transexual. O que define a vivência transexual é a existência


e o pertencimento social em um gênero distinto daquele que lhe foi imposto através do
nascimento. Essa questão exclui os travestis e transexuais de todos os campos sociais
existentes, o que gera desconfortos, podendo acarretar em sérios problemas psicológicos aos
indivíduos transexuais. (SALLES et. al, 2017. p. 270)

Na trajetória de meus interlocutores, destacam-se três momentos em sua construção


identitária. Primeiro, o não-reconhecimento com o gênero atribuído ao nascimento, o segundo
momento, o de se reconhecer como transexual, pertencente ao gênero oposto, e um terceiro momento,
o de reivindicar sua identidade de gênero no espaço público. É importante salientar que essas etapas
podem não ocorrer com todos os sujeitos transexuais, posto que a experiência transexual é distinta
para cada indivíduo.
Um dos primeiros momentos do (des)reconhecimento com o gênero entre meus interlocutores
ocorreu na socialização da primeira infância, tendo por base a criação familiar. Honneth (2003) define
três esferas do reconhecimento dos indivíduos, ele utiliza-se da abordagem de Hegel (1770-1831) e
da psicologia social de George Herbert Mead (1863-1931). Na sua concepção existem três esferas do
reconhecimento do indivíduo, a afetiva, a jurídica e a estima social.

A primeira esfera de reconhecimento se tece no plano dos afetos, entre as pessoas próximas,
nas relações primárias. O que acontece primeiro na forma do amor entre mãe e filho, na
primeira infância, desenvolve-se ao longo do que se pode chamar de aventura infantil do pré-
reconhecimento, e é nesse movimento intersubjetivo em que se constrói, ao mesmo tempo, o
amor de si mesmo e a autoconfiança, possibilitados pela experiência do amor do outro e da
confiança no amor do outro, formando-se assim a base concreta emotiva para a defesa e
reivindicação de direitos, na rede do reconhecimento jurídico, bem como as condições pessoais
para a participação no plano da rede de solidariedade e da estima social. (ALBORNOZ, 2011,
p.136).

Essas diferentes esferas de reconhecimento estiveram presentes nas narrativas dos


interlocutores, o reconhecimento familiar, médico-jurídico (envolvendo os diagnósticos da
transexualidade e as mudanças na documentação, como nome social) e a estima social, onde se
debruça o desejo de ser reconhecido e respeitado na esfera pública.

405
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RECONHECIMENTO PELO AMOR

A socialização de gênero masculina e feminina é opressora para todos os indivíduos, mas


principalmente os que não correspondem ao padrão esperado de comportamento.

Desde a primeira infância eu sofri muito com a tentativa de socialização masculina. Nunca
me senti pertencente ao gênero masculino. Mas vir a me entender mulher levou mais tempo.
Eu vivi durante a minha adolescência no que chamo de limbo. Sempre fui muito andrógina e
naquela época muitas pessoas me liam como mulher cis. Mesmo eu desconhecendo a
categoria trans. Eu demorei a me entender "trans" no sentido de ter me entendido
primeiramente mulher. A aproximação com os termos mais políticos só aconteceu em 2009.
Antes disso, como disse, vivi a androginia. - Cosima, 26 anos, realiza o tratamento hormonal
no setor privado.

A não-identificação com o sexo biológico acontece antes de se entender como de outro gênero,
“o vir” a se entender como transexual. No imaginário social, o homem e a mulher que realiza práticas
opostas ao seu gênero é rotulado de “viado”, “mulherzinha”, “sapatão” etc. O que se questiona
inicialmente a partir dessas práticas é a sexualidade do sujeito, questionar o gênero é uma tarefa mais
árdua visto que desestabiliza as fronteiras que concebemos como gênero (LANZ, 2014).
Dessa forma, os sujeitos relatam viver nesse período da infância uma espécie de “limbo” de
não saber o que são. Sarah, mulher transexual, em suas palavras relata que “desde sempre” não se
reconheceu como menino. A princípio, com doze anos ela veio a se identificar como homem gay,
para aos treze anos acessar um vídeo da youtuber Thiessa e a partir do seu relato se entender como
trans.
Ira relata que sua identificação com a transexualidade ocorreu através de um trabalho da
graduação onde entrevistou um homem trans, reconhecendo-se em sua narrativa. É importante
pontuar que a disseminação das informações sobre transexualidade aumentou com as mídias digitais,
uma vez que os smartphones possibilitam os sujeitos a adentrar em discussões que por ventura não
permeiam seus espaços sociais (MISKOLCI, 2012). Outro fator que chama a atenção nas narrativas

406
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
é inicialmente o conhecimento apenas das categorias gay e lésbica, logo que a sigla LGBTQIA+
iniciou-se como movimento GLS214.
No âmbito familiar, o não-reconhecimento afetivo de pais, parentes e amigos é uma
problemática para os sujeitos LGBTQIA+, que os condicionam a permanecer no “armário”. Nas
narrativas dos cinco entrevistados, na vida de três desses interlocutores, se “assumir” para a família
foi período com alguns percalços na relação familiar, mas com aceitação. Dois desses interlocutores
fazem o tratamento hormonal pelo setor privado, com auxílio financeiro dos pais (Cosima e Ira) e
Sarah que vai a Porto Alegre regularmente com sua mãe para o tratamento hormonal pelo SUS. Para
Mark e Krystal o ato de se “assumir” para família enquanto transexual foi um período marcado por
rejeição da família. Esses dois interlocutores não recebem apoio financeiro da família para realização
do tratamento hormonal, nem acessam o SUS, utilizando-se da automedicação.
Nas palavras de Krystal, quando se assumiu “foi bem ruim, rejeição por todos no ínicio, levou
uns dois anos para melhorar as coisas. Hoje em dia me aceitam, mas no início não é fácil e a pior
rejeição é a da família, é a que mais dói e afeta”.
Para Honneth (2003) o não-reconhecimento pelo amor afeta a auto-confiança do sujeito,
portanto, ser rejeitado pela família por ser uma pessoa transgênera pode comprometer a visão que o
indivíduo tem sobre si mesmo.
O reconhecimento errôneo na perspectiva de Charles Taylor (2000) é algo que pode afetar o
modo como as pessoas se vêm, desenvolvendo um horror às suas características. Portanto, a rejeição
por parte da família contribui para que o indivíduo esteja em constante sofrimento psíquico e não se
sinta pertencente do grupo.
O maior número de suicídio entre adolescentes de 11 a 19 anos, segundo a pesquisa intitulada
Transgender Adolescent Suicide Behavior215 realizada entre 2012 e 2015 pelo pesquisador Russell
B. Toomey são representados por sujeitos transexuais, um dos fatores determinantes para redução
desse dado é a aceitação, reconhecimento e o apoio familiar.

214
Gays, lésbicas e simpatizantes. Para maiores informações, ler “OUSANDO TEIMAR POR LIBERDADE:
trajetória e lutas do Movimento LGBT no Brasil de Iago Henrique Fernandes de Sousa Moura, disponível
em<http://twixar.me/Q5GT> acesso em 20 de Nov de 2019.
215
disponível em <http://twixar.me/7SGT> acesso em 20 de Nov de 2019.
407
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
The Trevor Project216 é uma ONG destinada a prevenção do suicídio entre LGBTs entendendo
que existe três vezes mais possibilidades de suicídio comparado com pessoas cis e heterossexuais e
cinco vezes mais chance de executar o suicídio. O protocolo de estresse de minorias217 se volta a
partir de uma amostra com 1451 participantes gays, lésbicas e bissexuais a avaliar a escala de
homonegatividade internalizada, a escala de revelação da sexualidade e a escala de experiências de
estigma. Esse estudo foi pautado no estresse de que minorias são submetidas a uma série de
estressores específicos levando esses sujeitos a uma maior vulnerabilidade social e sentimento de
inferioridade na forma que vêem a si mesmos.
Ira relata como se adaptou a dificuldade da mãe em reconhecê-lo no pronome masculino, algo
que anteriormente causava sofrimento.

[...] os pronomes ela tem mais dificuldade e as vezes saí “ela” mas ta no caminho sabe, também
respeitar, eu adaptei outra estratégia, antigamente eu ficava horrorizado, me afeta de uma
forma que isso tire quem eu sou, ela se equivocou errou, às vezes eu vou lá e digo, não é “ela”
é “ele”, mas isso não pode me afetar de uma forma que eu vou deixar de ser “ele” porque a
pessoa ta me chamando de “ela” sabe, mas isso são construções nossas, nosso processo, nosso
tempo também. Ira - 28 anos

Em muitos casos, os familiares temem as dificuldades que o indivíduo enfrenta no espaço


público por ser trans. Essas concepções da transexualidade estão ancoradas nos estigmas sociais e na
marginalização de travestis e transexuais. Cosima relata a preocupação que seus pais tiveram assim
que se assumiu mulher transexual.

Como sempre foi evidente aos olhos dos outros e deles a minha feminilidade, ao me assumir
mulher trans e falar da necessidade da hormonização, houve compreensão mas também muita
preocupação. Tanto em relação aos efeitos dos fármacos como - e ainda mais nesse caso - em
relação à transfobia. As violências e violações que provavelmente eu passaria. Foram dias ou
até semanas, não lembro com exatidão, de reuniões e conversas familiares para encontrar uma
solução para "meu problema". Depois disso, tudo ficou mais simples para mim e para eles. E
logo eu ingressei no ensino superior. O que eu acho que deu muita segurança. Eles tinham
medo que não conseguisse ascender e me inserir em espaços meus por direito por conta da
transfobia, das dificuldades três vezes maiores por eu ter uma identidade de gênero dissidente.
Cosima - 26 anos (grifos meus).

216
disponível em <https://www.thetrevorproject.org/> acesso em 20 de Nov de 2019.
217
disponível em <http://twixar.me/lXGT> acesso em 20 de Nov de 2019.
408
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na sociedade as identidades de travestis e transexuais estão ligadas ao estigma social da
prostituição. As políticas públicas para esses sujeitos surgiram apenas com o pânico da AIDS na
década de noventa, no qual se tornaram grupos de risco, esse estigma está presente em toda a
publicização de campanhas do ministério da saúde para transexuais e travestis (CARVALHO, 2015).
A publicização do tema não significa um reconhecimento positivo dos sujeitos transexuais.

Assim, as imagens de travestis mortas divulgadas em jornais nos informam também sobre a
associação entre certos modos de vida e a criminalidade. Recorrendo ao panóptico, tanto de
Bentham, quanto de Foucault, Mason (2002) faz uma relação entre sistemas de conhecimento
e de visibilidade afirmando que tornar algo visível é tornar algo conhecido de uma
determinada maneira. Logo tornar travestis visíveis apenas a partir de corpos mortos é
construir um regime de visibilidade/conhecimento no qual assassinatos cruéis seriam
constitutivos da experiência dessas pessoas. Ou ainda, o fetichismo de alguns programas de
TV brasileira, que lançam desafios para que se descubra se determinada pessoa com
aparência feminina seria “mulher de verdade” ou “travesti”, construindo um regime de
visibilidade no qual essas travestis e/ou transexuais seriam pessoas que escondem um
segredo, que podem enganar ou que haveria uma “mulher de verdade” em oposição a “falsas
mulheres” (grifos meus, CARVALHO, 2015, p. 87-88).

Em muitos ambientes a mídia coloca a identidade travesti e transexual como alvo de “piadas”.
Exemplo disso é a abordagem da emissora de televisão brasileira SBT que exibiu no dia 25 de
fevereiro de 2019 a câmera escondida “travesti no mictório”218, no qual satiriza o medo de muitas
pessoas transexuais de acessarem banheiros públicos. Ira relata não utilizar banheiros da universidade
e outros espaços públicos pela exposição e o risco de violência.
A forma como a transgeneridade é abordada na esfera social pela mídia contribui para um
reconhecimento errôneo dos indivíduos (TAYLOR, 2000) subordinados aos estigmas sociais que o
envolvem. No caso de Krystal, sua mãe se reaproximou logo que ela assumiu um relacionamento
com um homem, o qual hoje é seu noivo. Quando Krystal assume um relacionamento estável, ela se
desvincula do estigma relacionado à prostituição, trazendo a perspectiva de um relacionamento
heterossexual. Da mesma forma, os pais de Cosima de certa forma se tranquilizaram quando ela
conseguiu ingressar no ensino superior.

A leitura que faço hoje faz eu ver que eles tiveram dificuldades sim ao me reivindicar mulher,
mas teve compreensão e amor (naquele momento como preocupação) por parte dos meus pais

218
O caso foi abordado na matéria “Close errado | SBT faz piada transfóbica e confunde trans com drag queen”
disponível em <http://twixar.me/BpGT> acesso em 20 de Nov de 2019
409
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e demais familiares. O apoio eu tive e foi crucial para o meu desenvolvimento e para a minha
existência no mundo. Provavelmente eu não sobreviveria sem ele. Cosima - 26 anos.

O reconhecimento afetivo na transexualidade é permeado de medo, pois o indivíduo fica


vulnerável a ser rejeitado e não-reconhecido pelos familiares, que acabam por não respeitar sua
identidade. Nos casos que a família consegue demonstrar acolhimento e apoio, há um período em que
a nova identidade do sujeito vai se constituir em um espaço seguro.

AS RELAÇÕES MÉDICO-JURÍDICAS
A área médica e jurídica tornam-se centrais para a emancipação do sujeito transexual, pois é
através da medicalização do corpo, do tratamento hormonal e das práticas cirúrgicas que esses sujeitos
podem modificar o corpo anatômico para se adequar a sua verdadeira identidade de gênero. No campo
jurídico, o transexual adquire o direito de alterar sua documentação e ser reconhecido por um órgão
oficial, uma validação de sua identidade.
Essas esferas não estão separadas, assim, o direito e a área médica se tornam um campo cheio
de novos desafios, onde os transexuais vão passar por novos constrangimentos e
(des)reconhecimentos. Segundo Honneth (2003), a segunda esfera de reconhecimento é o jurídico219,
no qual o indivíduo é reconhecido como portador de direitos, o que envolve o respeito cognitivo, pois
na sua visão, a privação de direitos ameaça a integridade social dos sujeitos.
Para evitar a privação de direitos que sujeitos transgêneros têm lutado por reconhecimento.
Quando o assunto é transexualidade não conseguimos separar definidamente a esfera jurídica da
esfera médica, pois ambas influenciam-se em suas decisões.

Aqui não se trata de reconhecer esses dois campos, o dos/das médicos/as e o do/da juiz/juíza,
como sendo absolutamente distintos e não comunicáveis; eles se retroalimentam.
Contemporaneamente, quando o assunto é inteligibilidade e reconhecimento no campo do
gênero e da sexualidade, não é possível afirmar onde inicia um e termina o outro. (DUQUE,
2013, p. 97).

219
Honneth analisa somente a esfera do direito, no caso da transexualidade, nos estudos de Flávia Teixeira
Bonsucesso(2009) e Tiago Duque (2013) a esfera do direito se une com a esfera médica, ambas se tornam
responsáveis pelo reconhecimento do sujeito.
410
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As definições na área médica apontam para um conhecimento que exerce controle sobre o
indivíduo transexual o colocando em posição de doente (LANZ, 2014; BENTO, 2006). O laudo do
“verdadeiro transexual” no qual os profissionais buscam enquadrar os sujeitos é uma forma de sufocar
outras identidades que fujam do binarismo de gênero, vendo a cirurgia de redesignação sexual como
a “cura” para essa “problemática” (BENTO; PELÚCIO, 2012).
Para Bento (2006), o que acontece com pessoas trans na esfera social de reconhecimento pode
se chamar de cidadania precária, em um momento que para acessar o nome social o indivíduo utiliza-
se do auto-reconhecimento se identificando como transexual no cartório. Já para a mudança dos
documentos oficiais no campo jurídico entendia-se que o indivíduo deveria ter passado pela cirurgia
de redesignação sexual, pois se trata de um processo visto como irreversível, processo a qual não se
pode voltar atrás (BONSUCESSO, 2009).

A adequação do corpo para uma performance de gênero coerente e fixa de acordo com as
normas sociais vigentes é sempre colocada como única meta a ser alcançada através da cirurgia
que garantiria a “inclusão”. O discurso que justifica a cirurgia se sustenta na necessidade de
favorecer os laços de sociabilidade das pessoas (transexuais). (BONSUCESSO, 2009, p.56).

O campo jurídico é influenciado pela sociedade, e o direito não apresenta valores trans-
históricos, ele se constitui de acordo com o tempo histórico e a organização social. João Farina, o
médico que operou Waldirene220, foi indiciado por lesão corporal, sendo que nos autos do processo
conta com o parecer de um promotor a qual afirmava que “homossexuais bichinhas” não poderiam
decidir sobre seus corpos. Bourdieu (2005) vai definir essa presença de valores morais nas decisões
judiciais, a qual ele chama de espaço de possíveis.

As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um corpo


cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força
específicas que lhe conferem a estrutura e que orientam as lutas de concorrência e, mais
precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar, e para o outro lado, pela lógica
interna das obras jurídicas que dele estão em cada momento o espaço dos possíveis e, deste
modo, universo das soluções propriamente jurídicas. (BOURDIEU, 2005, p. 211).

O campo jurídico se caracteriza pela competição ao monopólio do dizer o que é o direito,


dessa forma os juristas formulam as leis e são responsáveis pela interpretação da lei. No que Bourdieu

220
A primeira mulher transexual brasileira a fazer a cirurgia de redesignação sexual em território nacional em 1971.
411
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(2005) caracteriza como espaço de possíveis podemos perceber estigmas sociais que perpassam as
decisões jurídicas.
Em sua tese, Flávia Bonsucesso (2009) analisa os autos de processos encaminhados por
pessoas trans para a alteração do nome nos documentos. Na época analisada da pesquisa qualquer
mudança no nome deveria ser realizada somente pelo aparato jurídico e também sob a confirmação
da cirurgia de redesignação sexual. Alguns juristas exigiam que o solicitante passasse por perícia.
Os sujeitos acompanhados por Flávia que foram encaminhados durante seu processo à perícia,
relataram o constrangimento de passar pelo procedimento que era realizado no IML com profissionais
despreparados. A perícia exigia fotos, geralmente invasivas, necessitando que o indivíduo ficasse
totalmente exposto a olhares constrangedoras e preconceituosos das pessoas presentes na sala.

[...] não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. [...] Quem nasce homem ou mulher,
morre como nasceu. Genitália similar não é autêntica. Autêntico é o homem ser do sexo
masculino e a mulher do feminino, a toda evidência. Excerto da decisão do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, 8ª Câmara Cível, processo nº. 6.617/93 em que os
Desembargadores negaram o provimento do pedido formulado na inicial e mantiveram a
decisão do Juizo de Primeira Instância negando a alteração de pré-nome e sexo.
(BONSUCESSO, 2009, p.65).

No trecho acima podemos perceber como as decisões judiciais incorporam o discurso


biológico, em outros casos a noção do “verdadeiro transexual”. Os processos não seguiam uma
conformidade nas decisões tomadas, ficando sob decisão de juízes que poderiam tomar uma decisão
favorável ou não ao processo.
Em seu estudo, Thiago Duque (2013) acompanha um processo onde a decisão para a
retificação do nome foi aprovada, de forma que a argumentação do júri concluiu se tratar de um
sujeito feminino, e que ter documentos originais geraria desconforto e confusão para quem estivesse
lidando com a pessoa.

O reconhecimento reivindicado e garantido pela sentença envolve justificativas médico-


patologizantes e jurídicas, e a vê em interação com outras pessoas igualmente prejudicadas
com o fato de ela ser “uma mulher com documentos masculinos”. Como se lê, a sentença não
remete apenas às “características secundárias” do corpo, a passabilidade e a reivindicação
dela, mas os prejuízos das outras pessoas que, em interação com ela, sofrem situações
bizarras. Como nas interações cotidianas comumente a genitália não estará exposta, o maior
número de pessoas prejudicadas, isto é, “constrangidas”, é pelo fato dela passar por
mulher até o momento de mostrar os documentos. Isso é corroborado pelo fato das fotos
serem identificadas como reveladoras/comprovadoras de que a requerente é uma

412
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“pessoa do sexo feminino, com características secundárias indiscutivelmente femininas”. O
fato de esta sentença ser justificada levando em consideração os prejuízos dos outros e não
exclusivamente o da requerente, de certa forma, até mesmo dando menor atenção à cirurgia
e maior enfoque à passabilidade e os constrangimentos alheios, corrobora a dificuldade de
pessoas como ela, em muitos casos, não ter os documentos alterados pelo fato de serem
acusados de não passar por. (DUQUE, 2013, p.100-101).

Importante considerar o quanto uma performance de gênero deve ser coerente com o
indivíduo para que ele seja reconhecido legalmente. O auto-reconhecimento do indivíduo não era
levado em questão, nos processos precisava-se do laudo psiquiátrico, o parecer médico e da perícia,
em nenhum momento o sujeito é ouvido, ficando a mercê da manipulação do direito e da medicina,
esses pontos contribuem para o não reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de direito.

Os Pareceres Sociais, nos processos analisados, parecem procedimentos complementares,


pois alguns deles foram confeccionados após a realização da cirurgia. As entrevistas
ocorreram dentro dos limites da Promotoria Pública por peritos da própria instituição. As
informações contidas nos relatórios focam as histórias de vida dos sujeitos, também
rastreando indícios de feminilidade e masculinidade - a exemplo dos Pareceres Psicológicos
e Psiquiátricos. Ao focalizar o olhar sobre a verdade de uma transexualidade e a autenticidade
da demanda da cirurgia, que impedirá o arrependimento após o ato cirúrgico e sobre a
possibilidade de cumprir com as normas de gênero após este processo, os peritos silenciam
sobre os constrangimentos e violências vivenciadas pelos sujeitos que ameaçam até mesmo
a capacidade de viver. Silenciando também sobre a coragem dos homens e mulheres
(transexuais) de suportar as discriminações e abandonos para viverem em acordo com o seu
desejo. Novamente a vida vivida parece importar apenas enquanto fragmentos capazes de
preencher critérios diagnósticos. Os laudos fornecem poucos elementos significativos,
corroboram as decisões anteriores dos peritos e, somente nos casos em que os “candidatos”
foram recusados, a sua elaboração contribuiu para as decisões da Promotoria.
(BONSUCESSO, 2009, p.116).

A portaria PGR/MPU nº 7, de 1º de Março de 2018, altera a solicitação da retificação do


nome, o sujeito mediante ao reconhecimento pessoal enquanto transexual pode solicitar o nome social
de forma gratuita e retificar o documento mediante a gastos aproximadamente de trezentos reais.
Assim retornamos a um ponto importante da pesquisa a autonomia financeira da pessoa trans, como
que para essas modificações a classe torna-se novamente responsável por definir os que têm ou não
tem acesso.
Boaventura Santos (1994) nos diz que o acesso ao direito é permeado pelo fator de classe,
assim, os serviços jurídicos são mais custosos para pequenas causas do que para movimentar grandes
ações. No Brasil, a maioria da população depende do serviço público, que encontra uma demanda
maior da qual pode atender.
413
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O acesso ao reconhecimento jurídico à partir da portaria PGR/MPU n° 7/2018 se dá pelos
indivíduos terem condições econômicas de conseguirem arcar com os gastos nesse processo. Krystal
conta sobre as informações que tem da regularização da documentação.

[...] aqui em Santa Maria tem um lugar específico para pessoas trans poderem fazer a inclusão
do nome social na identidade.Tem a inclusão que você inclui o seu nome que você se
identifica nos seus documentos e tem a retificação. A retificação seria trocar o nome pra
sempre e você paga infelizmente. Como é direito nosso deveria ser de graça mas não. No
caso pra trocar o nome no registro é preciso ir no cartório onde a pessoa nasceu e falar que
você quer retificar o nome civil que foi dado no seu nascimento por que não condiz com sua
pessoa personalidade seu gênero, no caso a inclusão fica o seu nome social e abaixo o nome
civil. Entretanto a inclusão só serve pra você não passar constrangimentos em locais que você
vai como balada etc algum local que possam pedir documentos. Mas caso você queira casar
você tem fazer a retificação que é a troca do nome em todos seus documentos. - Krystal 20
anos (grifos meus).

O que fica nítido na fala de Krystal são questionamentos quanto a um direito ofertado pelo
Estado que é inacessível a determinados sujeitos. Encontramos uma resposta novamente na definição
de cidadania precária de Bento (2006), em que há uma ação do Estado de incluir os sujeitos para
excluir. Primeiro se oferta o tratamento hormonal de forma gratuita pelo SUS, depois dificulta-se o
acesso definindo a cirurgia para somente “verdadeiros transexuais”. Posteriormente, o Estado
concede a autonomia do sujeito para retificar a documentação sem ter passado pela operação, para
garantir o acesso a indivíduos que tenham somente condições econômicas para tal.
Entendendo a dificuldade de inserção de pessoas trans no mercado de trabalho e incorporando
as questões de classe já pontuadas, o acesso e divulgação da informação também é responsável por
garantir que transexuais saibam seus direitos. Krystal segue falando da dificuldade de encontrar
informações na esfera social sobre seus direitos.

[...] no caso os postos de saúde disponibilizam a inclusão do nome social no cartão para que a
pessoa trans não passe constrangimento, por incrível que parece é uma porcentagem muito
grande de pessoas trans que não sabem que têm esse acesso para não passar por
constrangimentos. Por exemplo ninguém fala na televisão, jornal que quaisquer travesti e
trans podem ir até um posto de saúde e pedir para fazer a inclusão de nome social no cartão
do sus. Assim como a maioria das travestis e trans também não sabem que podem fazer a
inclusão do nome no CPF na receita federal e não é pago a inclusão do CPF. Krystal - 20 anos
(grifos meus).

414
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A falta de divulgação da informação dos direitos de transgêneros contribuem para manutenção
da precarização do acesso, logo que a concepção de que esses sujeitos não devem acessar
determinados campos contribuem para o estigma de corpo abjeto (BUTLER, 2015) e
consequentemente a visão de serem sujeitos que não possuem direitos.

O RECONHECIMENTO NA ESFERA SOCIAL


Como elencado por Krystal mesmo com a garantia de direitos, como exemplo o uso do nome
social e a retificação da documentação com a portaria PGR/MPU n°7/2018, muitos transgêneros
acabam não utilizando esse serviço pela falta de conhecimento dos seus direitos.
Adentramos na terceira esfera proposta por Honneth (2003), o reconhecimento por parte dos
grupos sociais, o que ele chama de reconhecimento pela solidariedade. Em sua visão, esse
reconhecimento gera estima social, ser reconhecido como sujeito portador de direitos, respeitado e
atuante na sociedade.
Em sua tese, Mario Felipe de Lima Carvalho (2015) acompanhou as conferências organizadas
pelo movimento transexual de 2004 à 2015 e trouxe pontos importantes sobre a luta de ativistas trans
por reconhecimento na esfera social.

Primeiramente, lembrar que em sua origem o movimento trans é prioritariamente um


movimento de prostitutas que são travestis. Em segundo lugar, o processo de construção
desses sujeitos políticos é atravessado pela práxis do ativismo relacionado ao enfrentamento
à epidemia do HIV/AIDS e, portanto, passa pela consideração que a maior vulnerabilidade
ao vírus é atravessada por diversos fatores como classe, raça, e discriminações decorrentes
das práticas sexuais e expressões de gênero. (CARVALHO, 2015, p.44).

Levando em consideração a vulnerabilidade de travestis e transexuais, as primeiras


articulações do movimento envolveram parceria com o Ministério da Saúde para a confecção de
folders informativos sobre saúde sexual, cuidados com a pele, perigos do uso do silicone industrial e
dicas gerais. No decorrer dos anos foram confeccionados materiais para escolas e profissionais de
saúde. O que gerou polêmica por parte de parcelas da população que se opõe ao tema ser trabalhado
nos espaços escolares.
A articulação do movimento trans visa mostrar que são sujeitos de direitos, que devem ser
reconhecidos e respeitados. A campanha “Olhe, olhe de novo e veja além do preconceito, sou

415
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
travesti e tenho o direito de ser quem eu sou” do Ministério da Saúde mostra a reivindicação do
movimento para obter respeito de sua condição transgênera.

Nestes espaços, reais, virtuais ou imagéticos, a luta por reconhecimento opera


simultaneamente sobre o imaginário social do grupo e da sociedade englobante. Proponho,
então que “cidadania” é uma categoria encenada pelas/os ativistas com diferentes propósitos
e efeitos em diferentes contextos. Torna-se cidadã/o, jogando-se luz sobre os elementos que
conferem tal estatuto. A publicidade e seu processo de construção opera um regime de
visibilidade que visa também os operadores de políticas públicas, assim como a própria
população trans. Neste último caso, a conquista de reconhecimentos periféricos é ferramenta
na promoção de autoestima dessa população, como se tais cartazes dissessem: “você é
travesti, mas também pode ser advogada”(CARVALHO, 2015, p.96).

A articulação do movimento também buscou a abertura de possibilidades para as pessoas


travestis e transexuais, mostrando que a ascensão social é possível, embora seja mais difícil adentrar
em determinados espaços sendo transgênero. O reconhecimento na esfera pública além de demarcar
como sujeitos de direitos, tendo sua identidade preservada, busca reivindicar novos direitos.

Se para Honneth (1992, 2003 e 2009), são as situações de desrespeito que sinalizam a
ausência de reconhecimento, percebemos aqui a produção de um circuito afirmativo do
reconhecimento. Ou seja, a partir da reivindicação do estatuto de “cidadã/o”, a consequência
lógica é o respeito, que se configura num duplo processo de reconhecimento, tanto social
quanto jurídico. (CARVALHO, 2015, p. 85).

Segundo Nancy Fraser (2001) existem dois tipos de injustiças, uma cultural e simbólica e
outra de ordem econômica/distributiva. Em sua visão, o Estado deve separar uma política de
reconhecimento para remediar a injustiça simbólica e políticas de redistribuição para os problemas
de ordem econômica. Sobre o viés da autora essas duas políticas se relacionam.
No reconhecimento de travestis e transexuais é de suma importância que essas políticas
efetivem-se socialmente juntas, uma vez que são excluídas do mercado de trabalho por uma injustiça
cultural pautada na normatividade dos corpos. Um exemplo de ações de reconhecimento seriam as
cotas no ensino superior para pessoas transexuais. Uma outra proposta, que foi desenvolvida pela
prefeitura do Rio de Janeiro, é o Projeto Damas221 que visa instruir e profissionalizar travestis e
transexuais para que possam se inserir no mercado formal de trabalho. As ações de reconhecimento

221
Mais informações disponíveis em <http://abre.ai/projetodamas> acesso 23 de Nov de 2019.
416
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
se apoiam no debate de gênero e sexualidade nas escolas e na instrução de profissionais de saúde para
desmistificar o preconceito.

O remédio para a injustiça econômica é a reestruturação político-econômica de algum tipo.


Isso pode envolver redistribuição de renda, a reorganização da divisão do trabalho, submeter
investimentos a uma tomada de decisão democrática, ou transformação de outras estruturas
econômicas básicas. [...] O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é algum tipo de
mudança cultural ou simbólica. Isso poderia envolver a revalorização de identidades
desrespeitadas e de produtos culturais de grupos discriminados. Também poderia envolver o
reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda,
poderia envolver a transformação total de padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação de modo que mudaria o sentido de si mesmo em todas as pessoas. (FRASER,
2001, p. 16-17).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratar os problemas de reconhecimento como injustiça social é identificar o déficit de status
social que esse grupo enfrenta. As políticas de reconhecimento aliada àquelas de redistribuição
econômica são as responsáveis por transformar o status social do grupo transgênero, de modo a trazê-
lo para a esfera social como conjunto de cidadãos e, como tal, merecedores de respeito, extirpando o
preconceito, mas também proporcionando ferramentas responsáveis pela abertura de novas
possibilidades de vida que destoam da prostituição.
Mark relata que em todos os espaços públicos que já frequentou recebeu olhares que classifica
como “tortos” e “de desprezo”. Ele conta ter sido tratado mal por uma caixa em um mercado quando
estava com sua namorada. Analisando esse cenário onde Mark estava fazendo compras tendo capital
econômico para levar tudo a qual se propôs a comprar, o poder econômico pouco importou para evitar
o desreconhecimento enquanto sujeito e consumidor. Dessa forma, mesmo as pessoas trans que
podem acessar outros espaços por suas classes, podem sofrer situações de desrespeito. Assim, a
aparência é outro fator de (des)reconhecimento.
No já mencionado estudo de Thiago Duque (2013) que acompanha situações de seus
interlocutores que passam ou não passam por pessoas cisgêneras, e relata uma “normalidade” no
tratamento o quanto mais próximas se encontram do ideal de aparência e comportamento do gênero
que se identificam.

Portanto, o reconhecimento de direitos em relação ao gênero e a sexualidade passa,


necessariamente, pelo reconhecimento e valorização da passabilidade, quando, por
417
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exemplo, da alteração da mudança do nome e do sexo nos registros civis, levando em
consideração não exclusivamente a pessoa passável (DUQUE, 2013, p.181).

Cosima relata um assédio sofrido num consultório de endocrinologista, o constrangimento


iniciou quando revelou ser mulher transexual, visto que sua expressão de gênero é passável como
uma mulher cisgênera. Mesmo quando acessou a rede privada, vantagem proporcionada por sua
classe, sofreu situações de desrespeito e desreconhecimento.

Outro tipo de violência que sofri nitidamente por ser uma mulher trans foi um assédio de um
médico urologista. Precisei buscar esse especialista por estar com fortes dores na região
pélvica. Chegando lá, me fizeram inúmeras perguntas do por que estar buscando esse
profissional. Tive de dar muitas explicações íntimas tanto a atendente quanto ao médico. Ele
ficou muito surpreso e teceu comentários muito machistas e transfóbicos do tipo: “tu coloca
muita mulher no chinelo”, “nossa, como pode tu ter nascido homem e ser tão linda e feminina”,
etc. A gota d'água foi ele pedir pra me despir pra fazer alguns exames de imagem. Detalhe: ele
quis fazer exame de imagem nos meus seios, que nada tinham a ver com a minha dor e procura.
No meio dos exames ele fez mais comentário, alguns deles sórdidos. Ao me despedir ele disse:
se perguntarem quem é o teu GINECOLOGISTA, diz que sou eu. Saí de lá péssima, suja,
como se estivesse sido estuprada. Mas não cheguei a denunciá-lo. - Cosima, 26 anos, realiza
o tratamento hormonal pelo setor privado.

Essas situações de desrespeito e não-reconhecimento com pessoas trans na esfera médico-


jurídica e na social se sobressaem quando a performance de gênero é distante do modelo normativo
vigente. Dessa forma, a luta pela aceitação social reivindicada pelo ativismo trans vem para
resguardar os direitos, evitar que preconceitos atravessem esses sujeitos, e também, produzir novas
políticas que busquem facilitar o acesso da população transgênera às esferas sociais. Mesmo quando
uma pessoa transexual condicionada por sua classe consegue acessar espaços onde a maioria não se
faz presente, tem de lidar com situações de desrespeito advindas de pessoas cis. Os momentos em
que o preconceito não atinge esses sujeitos são aqueles em que sua identidade enquanto transexual
não é exposta seja por vias discursivas ou físicas.

REFERÊNCIAS
SUZANA ALBORNOZ, Guerra. As esferas do reconhecimento: uma introdução a Axel Honneth,
In: Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2011, vol. 14, n. 1, pp. 127-143.

BERENICE BENTO. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual.


Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

418
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BERENICE BENTO.; LARISSA PELÚCIO. Despatologização do gênero: a politização das
identidades abjetas. Florianópolis: Estudos Feministas, 2012. p.569-581.

FLÁVIA BONSUCESSO, T. Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se
outro no gênero e na sexualidade. Campinas: UNICAMP, 2009.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

BRAZ, Camilo. Transmasculinidades, temporalidades: antropologia do tempo, da espera e do


acesso à saúde a partir de narrativas de homens trans. Florianópolis: Seminário Internacional Fazendo
Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), 2017.

JUDITH BUTLER. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

__________ Vida precária in: Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.

CARVALHO, Mário. F. L. “Muito prazer, eu existo!” Visibilidade e Reconhecimento no


Ativismo de Pessoas Trans no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, 2015.

RAEWYN CONNELL; REBECCA PEARSE. Gênero uma perspectiva global: compreendo o


gênero - da esfera pessoal à política - no mundo contemporâneo. São Paulo: nVersos, 2015.

DUQUE, Tiago. Gêneros incríveis: identificação, diferenciação e reconhecimento no ato de passar


por. Campinas: UNICAMP, 2013.

REGINA FACCHINI. Histórico de Luta LGBT no Brasil. São Paulo: Pagu, 2011.

FILHO, Roberto. E. Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT. São
Paulo: Pagu, 2016.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo, Graal, 2010.

NANCY FRASER. “Da redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-


socialista”. In: SOUZA,J. (org) Democracia Hoje. Brasília: UNB, 2001.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
LTC, 1988.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo:
Ed.34, 2003.

LETíCIA LANZ. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade


com as normas de gênero. Curitiba: UFPR, 2014.
419
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica,
2012.

ANA CAROLINA OLIVEIRA, G. A. Os corpos refeitos: a intersexualidade, a prática médica e o


direito à saúde. Minas Gerais: Revista Gênero, sexualidade e direito, 2015.

DÉBORA SALLES, G; JESSICA GONÇALVES, S; LUCIANA DANIELLI ARAÚJO. A


transexualidade na literatura científica das ciências da saúde. Londrina: Inf&Inf, 2017.

SANTOS, Boaventura. S. Pela mão de Alice - o social e o político na pós modernidade. Porto
Alegre: Edições Afrontamento, 1994.

SORAYA SCKELL, N. Os juristas e o direito em Bourdieu: A conflituosa construção histórica da


racionalidade jurídica. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 28, n.1, p.157-178.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola,
2000.

420
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MARCADORES EUROCÊNTRICOS PARA SE PENSAR A DIVERSIDADE, OS
GÊNEROS E AS SEXUALIDADES SOB UM OLHAR DESCOLONIAL

Carolina Cruz Rodolfo Martins222


Luísa Vanessa Carneiro da Costa²
Roberta Rayza Silva de Mendonça³

Resumo: O presente artigo objetiva estudar o modelo eurocêntrico colonial como percussor da marginalização dos seres
na sociedade ocidental, sobretudo na América Latina, bem como perceber a subalternização das sexualidades não-
heteronormativos e do gênero, sob uma perspectiva descolonial e humanística. Buscamos embasar esse estudo nas óticas
de Louro (2004), Butler (2002), Quijano (2002), Lugones (2008), dentre outros autores e autoras que também conduzem
essa pesquisa. Nesse sentido, poderemos discutir a re(produção) da marginalização dos sujeitos, percebendo os sujeitos
ativos e passivos que fomentam a subalternização deles; assim como analisar a importância de estudos descoloniais que
fomentam a desarticulação do gênero para que sejam percebidas e reconhecidas novas identidades fora do espectro
heteronormativo e estudar a teoria queer como objeto de realocação do subalterno.

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Subalternização. Descolonialidade. Teoria Queer.

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como pretensão perceber se os modelos eurocêntricos do “ser”
subalternizam e marginalizam identidades e orientações sexuais dos indivíduos que compõem o Sul
global, bem como conhecer os marcadores do gênero que constroem a sociedade ocidental sob a ótica
de uma dicotomia hierárquica.
Dessa forma, estabelecemos como problemática: Como a colonialidade do ser reforça os
padrões heteronormativos na sociedade ocidental? Uma vez que o trânsito dos colonizadores
estadunidenses e europeus para os países latino-americanos significou também o deslocamento de
conhecimentos, saberes e implicou, sobretudo, na rotulação de corpos subalternos.
Assim, o objetivo geral consiste em: compreender se a colonialidade do ser reforça os padrões
heteronormativos na sociedade ocidental; os objetivos específicos visam: I. Perceber como a
colonialidade do ser contribui para a marginalização dos sujeitos na sociedade ocidental; II. Discutir

222
Graduanda do curso Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco - UNIRIOS. E-
mail: carolinacrm@outlook.com.
² Professora do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco – UNIRIOS. E-
mail: luisavanessa1@hotmail.com.
³ Professora do Curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco – UNIRIOS. E-
mail: robertas.mendonca@hotmail.com.

421
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
como as matrizes heteronormativas refletem no reconhecimento de novas identidades e do próprio
sujeito; e III. Estudar a descolonialidade do ser a partir de uma perspectiva queer humanística.
Os temas abordados nesta pesquisa ainda encontram respaldo para obterem atenção e
relevância no corpo da academia, pelo fato de estarem atrelados ao questionameto do sistema
patriarcal do gênero e do sexo. Nesse sentido, essa pesquisa justifica-se pela intenção de fortalecer os
estudos sobre a temática no cenário acadêmico, a fim de ser traçado um caráter humanístico às
denúncias ao heteronormativismo.
Em um caráter pessoal, esse estudo justifica-se pela inquietação de perceber como a
heteronormatividade racial (esbranquiçada) e burguesa continua ditando e validando as relações inter
e intrapessoais na sociedade ocidental contemporânea; e no plano social, justifica-se para fomentar
discussões e promover a contestação dos locais periféricos em que as minorias sexuais e de gênero
foram alocadas dentro das sociedades latino-americanas.
O percurso metodológico utilizado nessa pesquisa será feito a partir do método dedutivo, com
abordagem de pesquisa qualitativa, sendo os tipos de pesquisa exploratório, bibliográfico e descritivo;
e quanto à técnica de análise de dados, será feita a análise de conteúdo, para que possamos discutir
aspectos sobre a colonialidade do ser e (re)pensar suas matrizes heteronormativas.
Nessse sentido, buscaremos discutir a colonialidade do ser sob uma ótica humanística que visa
desarticular a dominação eurocêntrica instaurada sobre os corpos, gênero e orientações sexuais
diversas da heteonormativa na sociedade ocidental, sobretudo analisando mecanismos descoloniais
que fomentam a discussão sobre a independência identitária dos indivíduos da América Latina.

A CONTRIBUIÇÃO DA COLONIALIDADE DO SER PARA A MARGINALIZAÇÃO DOS


SUJEITOS NA SOCIEDADE OCIDENTAL
Nesta seção buscaremos estudar e compreender o deslocamento epistêmico e a formação da
colonialidade do ser nas sociedades ocidentais latino-americanas, sobretudo no Brasil, que é
responsável por hierarquizar os seres e classificar o mundo em categorias dicotômicas e binárias,
resultando, portanto, na formação de núcleos subalternos quando separados por categorias sexuais,
sobretudo gendrificadas.
Nesse sentido, podemos perceber que o período colonial, marcado pelas grandes navegações
dos séculos XVI ao XIX, foi caracterizado pelo entusiasmo dos colonizadores (europeus/norte-
americanos) em invadir as terras “virgens” e ricas do Sul global, com a missão civilizatória e o
422
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pretexto de utilizar a revolução/exploração econômica para subsidiar o desenvolvimento da matriz do
poder colonial europeu (MIGNOLO, 2017).
À América Latina, dessa maneira, foi designado um papel secundário, uma vez que foi
classificada e mantida como território marginalizado. Ao ter as suas terras exploradas
economicamente até a exaustão, a missão civilizatória, por conseguinte, promoveu de forma arbitrária
a dominação de povos, raças, corpos, culturas, etnias e religiões nativas; desencadeando, assim, uma
ampla ideia de colonialidade.
A colonialidade pode ser entendida por Mignolo (2017) como o lado mais escuro da
modernidade, pois embora as lutas populares marcadas na história do Brasil como ascendentes à
soberania e independência estatal tenham sido arduamente exitosas há não muito tempo, elas não
foram capazes de romper com os vínculos incorpóreos e coercitivos importados dos europeus que
aqui se estabeleceram com o pretexto civilizatório (que, na verdade, mascarava abusos e violências).
Nesse sentido, o primeiro marcador da dicotomia humana (colonizador)/não-humano
(colonizado) e que embasa diversas hierarquizações até a contemporaneidade, foi/é o critério racial.
Foi desembarcada, na esfera colonial, uma relação de opressão racista e estruturalista que tecia o
reconhecimento de ser humano a homens brancos, europeus, heterossexuais e burgueses.
Assim, a escravidão dos nativos foi legitimada, bem como a aniquilação de povos locais e as
violências em detrimento do gênero, raça e orientações sexuais diversas, pois “os colonizadores, ao
substituírem as diversas autodeterminações desses povos, impondo-os uma denominação
generalizada, estavam tentando quebrar as suas identidades com o intuito de os
coisificar/desumanizar” (SANTOS, 2015, p. 27).
Instaurado, dessa maneira, o monopólio do poder, ser e saber pelos colonizadores em
detrimento dos corpos colonizados, podemos perceber que a verdadeira herança eurocêntrica deixada
no nosso território expropriado foi/é marcada pela marginalização dos corpos, das culturas dos povos
nativos, das etnias, do gênero e dos seres que compõem a sigla LGBTQIA+ (LUGONES, 2008).
A partir da premissa da existência de um sujeito maior que sobrepassou o contexto colonial e
que ainda se faz muito presente, é que podemos compreender o privilégio do “homem branco” muito
discutido atualmente, que é fruto da hierarquização colonizada entre os sujeitos e continua sendo
responsável por fomentar a formação de grupos subalternos e marginalizados, baseados em
critérios heteronormativos, raciais e cristãos.

423
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A ideia da organização entre os sujeitos que favorece o homem branco, investido dos atributos
heteronormativos, se constitui pelo fato de que a masculinidade foi e é, por muito tempo, entendida
como espelho da marginalização ou naturalização dos corpos, uma vez que é responsável por tolher
espaços específicos para os corpos femininos e corpos masculinos, de forma misógina, racista e
homofóbica (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013).
A hierarquização social que desfavorece aquilo que foge do heteronormativismo se expandiu,
também, “a partir da experiência de homens homossexuais com a violência e com o preconceito dos
homens heterossexuais. O conceito de homofobia originou-se nos anos 1970 e já estava sendo
atribuído ao papel masculino convencional” (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 243).
Dessa forma, os marcadores raciais, de gênero e/ou de classe que distinguem e reiteram uma
subordinação dos sujeitos, permanecem encontrando espaço para atuar na sociedade do Sul global e
no Brasil, utilizando a mesma estratégia de objetificação dos corpos e das suas liberdades, atribuindo
a eles valores ínfimos e marginais.
O próprio Supremo Tribunal Federal, ao tratar da omissão legislativa que não havia tipificado
a homofobia e transfobia como crimes, decidiu classificá-las como crimes de racismo, pois entendeu
que o “racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da
dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis” (BRASIL, 2019, p. 01).
Percebemos, assim, que o alcance da dominação racial dos sujeitos não deixou de existir com
a conquista da independência nacional, apenas encontra disfarces amparados na democracia, no
neoliberalismo e/ou nas próprias brechas do ordenamento jurídico brasileiro (QUIJANO, 2002).
Através disso, podemos pensar sob a ótica de que a colonialidade do ser reflete no árduo
processo de validação social e reconhecimento das relações homoafetivas e das identidades plurais,
uma vez que estas fogem do estereótipo estruturalmente dominante e historicamente construído.

A masculinidade hegemônica foi entendida como um padrão de práticas (i.e., coisas feitas,
não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que possibilitou que a
dominação dos homens sobre as mulheres continuasse. A masculinidade hegemônica se
distinguiu de outras masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas. A
masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma
minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma
mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem
em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos
homens (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 295).

424
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa maneira, percebemos que as relações homoafetivas, quando toleráveis
socialmente, justificam-se, majoritariamente, porque estão ligadas a algum (s) dos preceitos trazidos
pelos europeus (no que tange ao sujeito dominante/detentor de direitos): seja ele racial, de gênero,
poderio econômico ou estereótipo mais próximo ao classificado como heterossexual, etc.
Além disso, até dentro da própria comunidade LGBTQIA+ existem críticas aos seres
partícipes da sigla que se valem dos estereótipos do homem médio eurocêntrico para possuir
privilégios nas relações não-heterossexuais, uma vez que os mesmos estabelecerem, muitas vezes,
uma dominação hierarquizada dentro dos núcleos afetivas que constituem (CONNELL,
MESSERSCHMIDT, 2013).
Assim, notamos que dentro de um grupo subalterno podem ser formados outros vários, porque
a colonialidade do ser se apresenta de uma forma tão sutil e enraizada que aqueles que se encontram
em alguma posição de privilégio, até mesmo dentro da sigla LGBTQIA+, acabam por oprimir outros
seres.
Nesse sentido, o/a gay afeminado/a é, muitas vezes, subalternizado/a; uma vez que foge do
padrão comportamental designado ao seu gênero e ao refletir na sua imagem traços da postura
feminina hiperssexualizada e violentada, torna-se alvo de discriminação (LUGONES, 2008).
Assim como as pessoas transgêneros, a pansexualidade, a bissexualidade, a lésbica preta e
pobre, o assexual periférico, e assim sucessivamente, por conseguinte, são, recorrentemente,
descredibilizados; uma vez que fogem da visão binária heteronormativa-racial constituída
socialmente.
Nessa perspectiva, a cadeia criada a partir da colonialidade dos corpos/seres
permanece encontrando amparo na heteronormatividade da raça, do gênero e da classe e,
consequentemente continua formando grupos subalternos marginalizados e invisibilizados, apenas
mascarando as formas de dominação, mas sempre deixando explícitas as características do sujeito
dominante.

AS MATRIZES HETERONORMATIVAS E SEUS REFLEXOS NO PROCESSO DE


RECONHECIMENTO DE NOVAS IDENTIDADES E DO PRÓPRIO SUJEITO
Ao percebermos a heteronormatividade como instrumento estereotipado que coloniza e
subverte os seres diversos, desde o momento do descobrimento da nossa nação, aliada a preceitos

425
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
raciais, religiosos e gendrificados, notamos também a grande dificuldade de se construir novas
identidades, respaldadas na pluralidade dos seres e nas suas respectivas necessidades/vontades.
Nesse sentido, na presente seção buscaremos compreender mecanismos que apontam o
colonialismo identitário, oriundo dos saberes e seres heteronormativos, como imperador direto dos
óbices ao reconhecimento dos sujeitos e de suas múltiplas identidades, uma vez que são
constantemente apagadas por preceitos patriarcais do gênero; bem como pensar em fugas a esse
roteiro colonial.
Partindo de uma perspectiva pós-colonial, Santos (2008) nos ensina que os conhecimentos,
bem como as estruturas de poder e saber, produzidos a partir dos grupos marginais ou periféricos,
podem ser mais percebidos, pois questionam o status moderno e pós moderno da construção dos seres.
Dessa forma, ao ser apontado um interesse no conhecimento construído pelas realidades
silenciadas, que se traduz ao problematizar quem o produz, em que contexto o produz e para quem o
produz; questionamos, por conseguinte, os marcadores heteronormativos que permeiam na formação
dos sujeitos e identidades marginais.

[...] os direitos fundamentais são comumente separados dos direitos humanos em razão destes
se situarem acima do direito positivo e existirem independentemente de consagração
legislativa, enquanto os primeiros são aqueles já reconhecidos pelo Legislativo e positivados
na ordem jurídica. E nesse aspecto deve-se ressaltar que os direitos da personalidade, porque
tratam-se de direitos relacionados à própria condição humana, sendo inatos e anteriores ao
Estado, existem independentemente de enumeração formal (DANTAS, 2019, p. 42).

A dignidade da pessoa humana, elencada pelo ordenamento jurídico brasileiro como o


princípio basilar que rege as relações interpessoais e que acolhe o direito a livre manifestação
identitárias nos remete à ideia de que há uma construção dicotômica e horizontal nesse aspecto
legislativo, que infringe a ceara do direito privado.
A dificuldade de serem reconhecidas novas identidades pode ser percebida, de acordo com
Facio (1999), porque os estudos sobre gênero consideram que a sociedade ocidental é androcentrada,
dessa maneira, as instituições foram/são criadas por homens cisgêneros, para homens cisgêneros, de
acordo com seus interesses e necessidades.
Assim, os binômios heteronormativos (homem/mulher, masculino/feminino, macho/fêmea)
imperam e se fortalecem, até mesmo nas decisões ou ordenamentos “coletivos”, carregando

426
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sempre essa bandeira estereotipada e limitada, pregando o sexismo, homofobia e patriarcado como
normas binárias e vigentes.
Nesse sentido, podemos perceber que os direitos da personalidade previstos pelo Direito
brasileiro não se apresentam apenas em uma esfera negativa (esta vinculada à proteção desses direitos,
caso sofram alguma violação), com o intuito de resguardar a individualidade das pessoas, como
também em “uma dimensão positiva, vinculada à necessidade de promoção do desenvolvimento das
personalidades pelo Estado por meio da juridificação de atos que permitam esse livre
desenvolvimento pelos indivíduos” (DANTAS, 2019, p. 44).
A positivação de determinadas contutas entendidas como inerentes aos indivíduos, de forma
geral, acaba por invisibilizar o caráter personalíssimo que as relações pessoais constituem
naturalmente ao longo dos séculos, a partir de vivências que, muitas vezes, se distanciam de qualquer
dicotomia hierárquica e heteronormativa.
Dessa forma, os binômios heteronormativos são tidos como critérios elementares constitutivos
do status de pessoa humana digna, uma vez que pregam que o sexo biológico rege o reconhecimento
identitário das pessoas e que a heterossexualidade é a manifestação mais coerente dos desejos
(CHAVES, SANTOS, 2016).
Tal construção das identidades binárias é fruto das imposições tolhidas no processo de
colonização dos corpos, saberes e dos seres. Isso resulta no silenciamento das demais manifestações
identitárias, sejam elas relativas à orientação sexual diversa da heterossexual, ou aquelas que
questionam ainda mais o espectro heteronormativo, como, por exemplo, a transexualidade e o não-
binarismo.
Nessa perspectiva das realidades silenciadas, Butler (2002) vem nos ensinar que os gêneros
não deveriam ser vistos como uma continuidade natural e pragmática do sexo biológico, mas sim
como práticas estruturadas de acordo com o conceito da heterossexualidade compulsória;
defendendo, por conseguinte, que o gênero fruto da construção social.
A ideia de se pensar na influidez do gênero nos remete à previsão e constituição de normas
jurídicas que tolhem as subjetividades, além de replicarem esteriótipos e criarem moldes identitários
a serem seguidos sob a égide do patriarado e heteronormativismo.

Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode
dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico,
427
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros
culturalmente construídos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não
decorre daí que a construção de “homens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos,
ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os
sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição (ao que
será questionado), não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer cm
número de dois (BUTLER, 2002, p. 24).

O questionamento à dicotomia adotada majoritariamente por preceitos heteronormativos na


nossa sociedade ocidental, que fomentam a separação do mundo em categorias hierárquicas, se faz
através de uma perspectiva descolonial que não visa buscar as origens do gênero para erradicá-lo,
mas sim entendê-lo como processo socialmente constitutivo, passivo de entendimentos plurais.
Nesse sentido, “desarticulado o binarismo sexual, o corpo pode ser um aporte subsidiário nas
manifestações de gênero, e não um destino peremptório, podendo ele mesmo – assim como a
sexualidade, para Foucault – ter uma genealogia” (DANTAS, 2019, p. 19), nessa perspectiva,
questionar o binarismo pode significar a livre manifestação dos corpos socialmente construídos e das
orientações sexuais naturalmente desenvolvidas.
Com o aporte de lutas e manifestos LGBTQIA+, juntamente com o auxílio de outros
movimentos, como o feminista, somente em 2018 o Supremo Tribunal Federal, que posteriormente
positivou como provimento nº 73 do CNJ, garantiu o direito de acessibilidade à retificação do nome
civil e gênero (diretamente nos cartórios de registro de pessoas físicas e não por meio de ação judicial)
de pessoas que se identificam como transexuais e/ou travestis (BRASIL, 2018).

[...] na América do Sul, a Constituição boliviana prevê direitos da personalidade no artigo


14, enumerando alguns deles, inclusive protegendo a identidade de gênero contra violações.
A Constituição colombiana trata expressamente do direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, assim como a venezuelana e a paraguaia, onde além da previsão de direito à
livre expressão da personalidade, fala-se no direito à criatividade e formação da própria
identidade e imagem (DANTAS, 2019, p. 41 e 42).

A importância de serem construídas alternativas que visem resguardar a livre manifestação da


identidade nos faz perceber que, por exemplo, no ordenamento jurídico brasileiro, embora a
retificação do nome civil para pessoas trans e travestis tenha sido um passo muito importante frente
ao resguardo e promoção da dignidade da pessoa humana, com respaldo em um discurso humanístico,
ele ainda é baseado em princípios que limitam as expressões pessoais e que acolhem a visão
binária do gênero.
428
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, a construção das subjetividades encontra alicerce nas discussões e questionamentos
trazidos nos estudos críticos pós-coloniais e na teoria queer, esta que indaga a heteronormatividade e
propõe que as realidades silenciadas ocupem um espaço de empoderamento para que possam
enfrentar os binômios que ditam a validade dos seres, das relações e identidades, analisando o papel
fundamental do Direito brasileiro como remédio para a invisibilidade e genocídio das populações
subalternas.

A DESCOLONIALIDADE DO SER ATRAVÉS DE UMA PERSPECTIVA QUEER


HUMANÍSTICA
Através da análise de estudos e questionamentos descoloniais referentes à formação e
identificação dos seres, poderemos estudar na presente seção a teoria queer de Judith Butler e os seus
desdobramentos que refletem diretamente em um olhar humanitário aos núcleos minoritários
alocados no bojo da periferia social, através de uma visão que impugna os marcadores do subalterno.
Com questionamentos direcionados aos mecanismos sociais que marginalizam as pessoas,
bem como as classifica em nichos binários repletos de preconceitos e intolerâncias, sobretudo
direcionados às minorias sexuais, a teoria queer visa ressiginificar e realocar o status radical e
periférico em que integrantes da sigla LGBTQIA+, que questionam a heteronormatividade, foram
colocados ao longo dos anos.
Nesse sentido, podemos entender que a referida teoria teve a sua atividade iniciada na década
de 90 do século XX, nos Estados Unidos, tendo sido idealizada por teóricos como a contemporânea
Judith Butler, bem como Focault, Teresa de Lauretis e Derrida, dentre outros pesquisadores e
pesquisadoras, em um contexto pós-estruturalista francês (MIRANDA, GARCIA, 2018).

Também no Brasil, ao final dos anos 70, o movimento homossexual ganha mais força:
surgem jornais ligados aos grupos organizados, promovem-se reuniões de discussão e de
ativismo, as quais, segundo conta João Silvério Trevisan, se faziam ao “estilo do gay
conscious raising group americano”, buscando “tomar consciência de seu próprio corpo/
sexualidade” e construir “uma identidade enquanto grupo social” [...] a política de identidade
praticada durante os anos 70 assumia um caráter unificador e assimilacionista, buscando a
aceitação e a integração dos/das homossexuais no sistema social (LOURO, 2001, p. 544 ).

Nesse cenário brasileiro em que operava de forma contundente a política de identidade


homossexual, começaram a surgir crises que traziam à tona as fragilidades do movimento que,
de forma insuficiente, reproduzia o pensamento de aceitação dos/das homossexuais e os colocava

429
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em novos núcleos adequacionais majoritariamente atrelados a preceitos e estereótipos
heteronormativos e esbranquiçados para serem vistos e vistas de forma positiva socialmente e assim,
atendesses os padrões sociais.
Nessa perspectiva, Louro (2004) destaca que as reivindicações desses primeiros movimentos
homossexuais do séc. XX, que buscavam a legitimidade das identidades gays, acabaram reproduzindo
a dominação das personalidades masculinas, quando invisibilizaram demais orientações sexuais e
identidades de gênero, como a bissexualidade, transexualidade, etc.
Dessa forma, nos movimentos brasileiros e de outros locais do mundo que questionavam o
local do homossexual na sociedade, frente a um questionamento da adequação e equiparação ao locus
heterossexual, foram percebidos fragmentos de uma política sexual que tratava de forma rasa a
pluralidade e subjetividade identitária dos seres.
Além disso, foram percebidos alguns desmembramentos dessa política que fugiam/fogem do
espectro de luta por aceitação/adequação ao heteronormativismo, uma vez que “estão preocupados
em desafiar as fronteiras tradicionais de gênero e sexuais, pondo em xeque as dicotomias
masculino/feminino, homem/mulher, heterossexual/homossexual” (LOURO, 2001, p. 543).
Nessa perspectiva, foi direcionada uma importância aos aportes teóricos que pudessem
abarcar a fluidez das percepções e sensibilidades inerentes às pessoas, não mais buscando uma
determinada adequação social voltada para o molde heteronormativo, mas sim para uma resistência
identitária, sobretudo questionadora e heterogênea.
A ideia de identidade homogênea, absoluta e estática trata-se de uma uma fantasia, pois “à
medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p.13).
Nesse sentido, com uma maior problematização dos sujeitos frente uma sociedade patriarcal
e gendrificada, podemos perceber que o desenvolvimento e acolhimento da teoria queer pelas
realidades silenciadas e inconformadas com as adequações sociais compusórias possibilitou um leque
maior de combate às dominações corpóreas e ideológicas dos/das LGBTQIA+.
Assim, podemos entender que o corpo da teoria queer consiste em buscar transfomar o espaço
subalterno em que as minorias sexuais foram alocadas, em local estratégico de luta; rebatendo e

430
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reproduzindo, com coragem e até mesmo deboche, os insultos pejorativos e homofóbicos que
transferem “ofensas” aos/as gays.
Dessa forma, a discriminação sofrida não é, de alguma forma, apagada; mas sim contestada
nos mesmos moldes que foi promovida. A força da invocação dos insultos faz parte da resistência
identitária adotada no processo de construção dos seres; de forma nua a homofobia é transformado
em resposta.

Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não
deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não
aspira ao centro e nem o quer como referencias; um jeito de pensar que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do
indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba, provoca e fascina (LOURO,
2004, p. 8).

A diversidade sexual atrelada à ideologia queer contesta e denuncia a essência


heterossexual que marginaliza e violenta aquele que foge da visão heteronormativa do ser, de produzir
saber e de se reconhecer; nesse sentido, a homofobia sentida é rebatida através da educação e tentativa
de normalização sexual.
Dessa maneira, “estudos queer nascem assim, preocupados antes em tornar visível e
questionar as lógicas que estabelecem uma classificação entre os indivíduos e que impõem o “normal”
e, consequentemente, o desviante” (SILVA, 2015, p.149), e sobretudo buscam denunciar a
universalização das subjetividades, binarismos e hierarquias, ressaltando a diversidade das lutas e das
identidades que cada letra sigla (LGBTQIA+) representa.
É interessante destacar que o termo “queer” não possui adequada tradução para o português;
sendo notada uma das primeiraa fragilidades epistêmicas do deslocamento da teoria estadunidense
para sociedades brasileiras e/ou latino-americanas; no entanto, existem desdobramentos da teoria
queer no sul global que buscam minimizar a “americanização” não só epistêmica, mas sociocultural
da mesma, como a teoria queer of colour.
Nessa perspectiva, “os estudos queer atacam uma repronarratividade e uma reproideologia,
bases de uma heteronormatividade homofóbica, ao naturalizar a associação entre heterossexualidade
e reprodução” (LOURO, 2004, p. 24), dessa maneira, buscam constituir uma visão plural dos
seres, não mais sujeitos ou adequados a moldes heteronormativos.

431
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O dualismo que percorre na oposição homossexual/heterossexual, construído sob a égide de
uma hierquia ortodoxa, mais precisamente em concordância com preceitos cristãos/católicos, é
responsável por fomentar a abominação de qualquer manifestação identitária que fuja do
heteronormativismo; o que demonstra a necessidade de artifícios que acolham todos os seres enquanto
humanos que não os classifiquem em categorias dicotômicas em razão de suas subjetividades
personalíssimas.
Dentro das ideias trazidas pela percussora da teoria queer, Judith Butler, podemos destacar
que um dos maiores desafios trazidos a respeito do reconhecimento de novas identidades foi a ideia
de o gênero ser performativo. Seria, assim, oriundo de uma regulação das diferenças binárias que se
hierarquizam de forma autoritária (BUTLER, 2002).
Sendo assim, Butler (2002) compreende que um dos principais requisitos para denunciar o
binarismo do gênero é a ligação esse este a a linguagem. Dessa forma, ao identificar uma estrita
relação entre a linguagem e o que vem a permear o binômio feminino/masculino (pautado na biologia)
é construída socialmente a ideia de marcadores que resumem e alocam os sujeitos em determinados
pontos dessa dualidade preestabelecida.
Nesse sentido, se a adequação social é fomentada através do vício da linguagem/discurso,
nada mais interessante para se pensar nas manifestações identitárias plurais que fogem dos binômios
(masculino/feminino; macho/fêmea; homem/mulher; heterossexual/homossexual, etc) o
questionamento dessas matrizes hegemônicas, através da excêntrica visão queer, para a exclusão dos
subalternos ser transformada.

Os corpos possuem, assim, significados culturais, são assinalados pela linguagem e por isso
são atravessados por relações de poder que definem o que é “normal” para esses corpos. A
partir desse entendimento, podemos questionar não somente o gênero, como também outras
noções relacionadas ao sexo e ao gênero, como a homossexualidade e heterossexualidade. A
homossexualidade, a transsexualidade, a bissexualidade são noções importantes para a
presente discussão por também atravessarem determinações identitárias dos sujeitos, mas,
principalmente, por serem noções que desafiam o discurso dominante, questionando a
legitimidade daquilo que teóricos queer chamam de heteronormatividade (SILVA, 2015,
p.152).

Nessa perspectiva, é importante pensar na desarticulação dos marcadores sociais que muito se
manifestam através do discurso e que classificam o mundo, os gêneros, as identidades e as

432
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sexualidades em categorias dicotômicas hierárquicas, que sobrevivem à margem da linguagem
corporal e intelectual patriarcal e estereotipada, ligada estritamente à heteronormatividade.
A teoria queer pretende distanciar as identidades diversas das demarcações prontas e práticas
que limitam a pluralidade dos sujeitos, bem como as restringem e as invisibilizam. Butler (2002)
percebe que a não adequação às normas sociais significa, simplesmente, não existir; dessa forma, a
denúncia do discurso heterossexual como norma única torna-se essencial para desarticular a
estabilidade dessa representatividade homogênea.
Na interpretação queer, ao passo em que as minorias sexuais observam a importância de
resistir ao englobamento nos preceitos heteronormativos, podem, por conseguinte, pensar em tornar
o subalterno em um local fortalecido para que as suas subjetividades sejam percebidas de forma
plural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trazermos como problemática “como a colonialidade do ser reforça os padrões


heteronormativos na sociedade ocidental?” percebemos, na primeira subseção, que a colonialidade
do ser é oriunda de um processo histórico pautado no critério racial e heteronormativo que gera uma
hierarquização dos corpos.

Nesse sentido, a subalternização do gênero, dos desejos e das identidades pode ser reproduzida
também pelos núcleos periféricos/subalternos (estes alocados fora do padrão dominante) na
contemporaneidade, através da ideia de uma supremacia estereotipada de gênero e orientação sexual
como mecanismo de validação das relações inter e intrapessoais.

Já na segunda subseção, notamos que o direito à identidade, personalidade e livre


manifestação necessitam do amparo de estudos descoloniais que sejam capazes de questionar e
reconhecer as diversas manifestações identitárias subjetivas e personalíssimas dos seres, juntamente
com um ordenamento jurídico que seja capaz de acolher todas os indivíduos sob uma ótica
humanística e não hierarquizada, o que, até então, se apresenta de forma muito remota e precária no
Brasil.
Na terceira subseção trouxemos a teoria queer como aporte teórico que objetiva
desarticular o gênero e perceber o que há de personalíssimo em cada ser humano; sem rótulos,

433
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sem demarcações, entendendo que cada corpo deve ocupar o lugar de sua vontade e transformá-lo,
por conseguinte, em local estratégico de luta.
Nesse sentido, a perspectiva de resistência humanística trazida por essa teoria necessita,
ainda, do auxílio de um giro descolonial para tecer a qualidade queer aos indivíduos de outras culturas
que possuem qualidades fenotípicas divergentes da estadunidense para, assim, ampliar os horizontes
da diversidade e traçar um olhar humano a cada pessoa.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 73 do CNJ regulamenta a alteração de


nome e sexo no Registro Civil. Disponível em:
https://www.anoreg.org.br/site/2018/06/29/provimento-no-73-do-cnj-regulamenta-a-alteracao-de-
nome-e-sexo-no-registro-civil-2/. Acesso em 12 de agosto de 2020.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF enquadra homofobia e transfobia como
crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010. Acesso em 10 de
agosto de 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Editora Civilização Brasileira, 2002

CHAVES, Emanuelle; SANTOS, Matheus Mendes dos. Não-Binariedade, Teoria Queer e o


Direito ao Reconhecimento da Identidade de Gênero. Recife, 2016. Disponível em:
https://www.ufpb.br/evento/index.php/ixsidh/ixsidh/paper/download/4393/1790. Acesso em 10 de
julho de 2020.

CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade Hegemônica: repensando o conceito.


Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1), p. 241-282, janeiro-abril, 2013.

FACIO, Alda. Metodología para el análisis de género del fenómeno legal. In: FACIO, Alda e
FRIES, Lorena (Orgs). Género y Derecho. Santiago de Chile: LOM, 1999.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer – uma política pós-identitária para a educação. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n.2, p. 541-553, 2001.

LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2004.

434
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, Colômbia, nº 9, p. 73-101, julho-
dezembro, 2008.

MIGNOLO, D., Walter. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 32, n. 94, p. 01-18, junho, 2017.

MIRANDA, Olinson Coutinho; GARCIA, Paulo César. A Teoria Queer como representação da
cultura de uma minoria. Encontro Baiano de Estudos em Cultura, III, 2012, Cachoeira.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos, v.17,
n. 37, p. 04-28, 2002.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. INCT de Inclusão:
Brasília, 2015.

SILVA, Caio Ramos da. Identidade e pós-identidade, uma perspectiva queer. Revista Contraponto,
v.2, n.1, p. 140-158, 2015.

435
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUESTÕES SOBRE GÊNERO E DROGAS EM PERSPECTIVA

Isadora Neves de Oliveira223


Luísa Vanessa Carneiro a Costa2
Roberta Rayza Silva de Mendonça3
Resumo: A presente pesquisa tem a pretensão de estudar e refletir sobre questões de gênero diante do cenário da
aplicabilidade da Lei 11.343/06, de forma a perceber a posição em que se encontra a mulher mula frente ao tráfico de
drogas. Desse modo, o principal aporte teórico se consolidou com discussões de Costa (2019), Boiteux (2016) e Saffioti
(2004). Objetivamos, ainda, analisar como a atual posição das mulheres que exercem o papel de mula no tráfico está
relacionada ao papel de submissa que normalmente as mulheres exercem em sociedade. Em relação à metodologia, o
método utilizado foi o dialético. O tipo de pesquisa é definido como bibliográfica, exploratória e descritiva. Quanto à
abordagem, esta foi a qualitativa e a técnica de análise de dados foi da de análise de conteúdo de forma a perceber as
várias questões de gênero existentes no âmbito do tráfico de drogas e em qual posição a mulheres encontra nesse âmbito.

Palavras-chave: Gênero; Mulheres Mulas; Tráfico de Drogas.

INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende estudar e discutir questões de gênero dentro do contexto do tráfico
de drogas, diante da aplicabilidade da Lei 1.343/06. A presença das mulheres no esquema hierárquico
do tráfico pode ter vários motivos e que envolvem diretamente o seu gênero e o que ele representa
para a sociedade, o que pretendemos é uma reflexão sobre como esse papel é refletido no contexto
das drogas.
Para tanto, a problemática estabelecida foi a seguinte: Quais as interceções entre questões de
gênero e tráfico de drogas, para perceber o lugar da mulher mula, diante da Lei 11.343/06? De forma
a notar quais são os principais motivos que levam essas mulheres ao envolvimento com a questão das
drogas e refletir sobre qual o papel que se espera de uma mulher na hierarquia do tráfico.

223
Graduanda do curso de Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário Rio São Francisco. Aluna Pesquisadora
do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade - GEPIDDS. Aluna
Pesquisadora do G-Pense! - Grupo de Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e Novas Epistemologias
(UPE/CNPq). E-mail: isadorabno@hotmail.com
2
Professora do curso de Bacharelado em Direito, pelo Centro Universitário Rio São Francisco. Professora
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade -
GEPIDDS. Professora Pesquisadora do G-Pense! - Grupo de Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e
Novas Epistemologias (UPE/CNPq). E-mail: luisavanessa1@hotmail.com
3
Professora do curso de Bacharelado em Direito, pelo Centro Universitário Rio São Francisco. Professora
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade -
GEPIDDS. Professora Pesquisadora do G-Pense! - Grupo de Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e
Novas Epistemologias (UPE/CNPq). E-mail: robertas.mendonca@hotmail.com

436
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa maneira, o objetivo geral consiste em: Estudar questões de gênero e tráfico de drogas,
para perceber o lugar da mulher mula, frente a Lei 1.343/06. Por sua vez, os objetivos específicos
propõem-se a: I-Discutir sobre questões de gênero no tráfico de drogas; II-Perceber o lugar da mulher
mula, no contexto do tráfico de drogas; III-Identificar como o papel da mulher na sociedade é refletido
na hierarquia do tráfico.
No âmbito pessoal, a pesquisa científica tem como justificativa a inquietação referente ao
papel da mulher que exerce a função de mula no tráfico de drogas, bem como a posição dessas mulher
em relação às outras pessoas envolvidas no esquema do tráfico, e ainda o contexto social em que essa
mulher está envolvida e que leva a sua inserção nesse tipo de crime.
No contexto social, a justificativa se dá visto que é de suma importância a reflexão sobre as
consequências do machismo e do patriarcado estrutural, que acaba deixando a mulher, geralmente,
em uma posição de submissão em relação ao homem, fato que se repete no contexto do tráfico de
drogas, principalmente quando essa mulher precisa cumprir a função de mula.
Estudar questões de gênero no cenário das drogas também é bastante relevante
academicamente, visto que refletimos sobre o conceito de machismo, patriarcado, sexismo, e a
aplicabilidade da Lei de drogas. Todas essas questões, neste trabalho, são voltadas para a participação
feminina nos crimes de drogas, trazendo uma perspectiva a partir do gênero.
Em relação à metodologia escolhida, o método utilizado foi o dialético. O tipo de pesquisa é
definido como bibliográfica, exploratória e descritiva. Quanto à abordagem, esta foi a qualitativa e a
técnica de análise de dados foi da de análise de conteúdo, de forma a perceber as diversas questões
relacionadas ao gênero que envolvem a posição da mulher no tráfico de drogas.
Diante disso, é preciso refletir sobre como a cobrança social do papel de mulher submissa
reflete a situação de tais mulheres do contexto do tráfico de drogas, por causa do seu gênero. Ao que
a mulher mula é submetida pelos seus companheiros e o que se espera dela ao exercer a sua função
no âmbito do tráfico.

A PERSPECTIVA SOBRE GÊNERO NO CENÁRIO DAS DROGAS


Quando se fala em questões de gênero no cenário das drogas, falamos sobre as relações
discriminatórias que envolvem a mulher por conta do seu gênero, e como essas discriminações
também perduram no ambiente do tráfico de drogas. As mulheres inseridas no tráfico são

437
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres cuja realidade social está repleta de diversos mascadores de vulnerabilidade, o que reflete
bem a sua posição hierarquia do tráfico de drogas.
Discutir questões de gênero no cenário das drogas é estudar em qual contexto a mulher está
inserida dentro do esquema do tráfico de drogas, a sociedade em que vivemos atualmente ainda tem
a presença da influência do machismo e do patriarcado, o que interfere diretamente na posição a ser
ocupada pela mulher. É importante entender essa influência e qual a situação enfrentada pelas
mulheres no contexto do comércio ilícito de drogas.
O contexto social em que as mulheres ingressam no tráfico de drogas muitas vezes está
relacionado com as circunstâncias relativas ao gênero, de acordo com Cortina (2015), se por um lado
as mulheres ingressam no tráfico ilegal de drogas visando alcançar poder e status, por outro, podemos
perceber que as relações discriminatórias de gênero também as atingem nesse mercado de trabalho
ilícito, já que elas são colocadas em lugares de subordinação.
Os lugares de subordinação são provenientes da cultura machista que ainda ase econtra
enraizada na estrutura social. Percebemos, também, os reflexos dessa cultura dentro do contexto do
tráfico, onde as relações de discriminação por causa do gênero ainda são frequentes, e essa busca pelo
poder reflete bem a posição de subordinação em que essas mulheres estão inseridas tanto dentro de
casa, no cotidiano, quanto dentro da hierarquia do tráfico.
O ingresso das mulheres nessas questões relacionadas à Lei 11.343/06 está relacionado ao seu
estado de vulnerabilidade social e de gênero (CHERNICHARO e RODRIGUES, 2014). Percebemos,
então, como as questões de gênero refletem nesse lugar da mulher em relação ao crime. As interseções
que marcam as questões de gênero e o tráfico de drogas nos fazem refletir que não importa o contexto
social em que a mulher está inserida, ela geralmente será colocada em uma posição inferior, de
subordinação, mesmo que esse contexto seja o do mercado ilícito de drogas.
É nesse meio, de condição de submissão, da hierarquia do tráfico, que as mulheres muitas
vezes buscam visibilidade, uma posição que demonstra status, como meio de adquirir respeito e poder
na vista dos demais. Dessa forma, nos deparamos com um cenário de drogas que ao mesmo tempo
leva a mulher a ensejar por uma posição de respeito naquele meio em que está inserida e
simultaneamente também a deixa à disponibilidade dos homens chefes de tráfico.
A mulher, então, se encontra inserida em uma situação em que ao mesmo tempo em que
precisa cumprir seu papel de mãe, ela também precisa participar da fonte de renda que o mercado

438
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ilícito das drogas proporciona. Tanto a busca pelo respeito quanto o papel familiar de prover o
sustento dos filhos são motivações que se mostram recorrentes e refletem as questões de gênero dentro
do contexto do tráfico (BERNARDI, 2013).
Quando se fala em discussões de gênero no cenário da Lei 11.343/06, é de grande importância,
mencionar o fenômeno da feminização da pobreza, que se mostra sendo um grande motivo para a
inserção das mulheres do tráfico. A feminização da pobreza é uma situação que traduz a constatação
de que as mulheres jovens, que já possuem filhos, e que são as responsáveis e as provedoras de
famílias monoparentais, representam um grande perfil de vulnerabilidade social (CORTINA, 2015).
Esse contexto de vulnerabilidade social abarca a grande maioria das mulheres que se
encontram em situação de: jovem, mãe, solteira, com escolaridade incompleta, negra e desempregada,
é essa a situação em que se encontram as mulheres e que as levam a ingressar nesse mercado ilegal,
e é nesse ingresso que existe também a figura masculina como influência.
De acordo com Ramos (2012), a realidade das mulheres que ingressam no tráfico de drogas,
reflete o contexto social de serem jovens, mães, negras, que provém de espaços excludentes e carentes
e que acabam encontrando na venda ilícita de drogas um meio de possibilidade financeira. É muitas
vezes a partir desses marcadores de vulnerabilidade, que a mulher acaba não encontrando outro meio
de sustentar os filhos, recorrendo ao tráfico.
É nesse meio familiar que, geralmente, ocorrem consequências provenientes do machismo e
do patriarcado, uma vez que muitas mulheres acabam entrando para o mundo do tráfico através de
seus maridos ou companheiros. Estudos no âmbito prisional apontam que, muitas vezes, as mulheres
relatam que houve a participação dos homens durante os episódios criminosos e que são esses homens
os responsáveis pelas suas inserções no mundo da criminalidade (BERNARDI, 2013).
A influência proveniente do patriarcado acaba afetando bastante a vida dessas mulheres que
seguem os homens até o tráfico de drogas, muitas vezes, por uma questão de prova de afeto e carinho,
elas são presas por estarem levando as drogas para dentro das prisões, para os seus companheiros, é
esse o meio em que se encontram as mulheres participantes do tráfico.
Segundo Bernardi (2013), além da busca pela estabilidade financeira proporcionada pelo
tráfico, muitas mulheres também ingressam em tal crime, numa busca pelo respeito que lhes é negado
dentro da sociedade machista. Elas procuram um status diferente das outras mulheres que

439
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conhece, uma posição de poder para sustentar o rendimento e manter o padrão de vida que ela quer
ter.
Essa busca pelo poder é proveniente de uma vida em que as mulheres são constantemente
cobradas pela sociedade para cumprir não só o papel de mãe, mas também o de doméstica e o de
companheira do marido, são papéis que levam a mulher a sempre ocuparem uma posição inferior e
hierarquizada, ao passo que o homem sempre ocupa a posição de superior e detentor de poder.
De acordo com Chernicharo (2014), para compreender o lugar da mulher dentro do contexto
do tráfico de drogas, antes é preciso compreender as análises das relações e interpretações em relação
ao gênero. É preciso perceber que existem relações de poder e são estas que levam a mulher a
preencher o papel de submissa dentro da sociedade, refletindo, também, esse papel dentro do tráfico.
Percebemos, então, que ao refletir sobre como as questões de gênero em que a mulher mula
está inserida na hierarquia do tráfico de drogas, podemos notar que o seu papel reflete o papel que é
exigido da maioria das mulheres em nossa sociedade, um papel de pessoa que está abaixo do homem,
e que qualquer função que venha a exercer será sempre caracterizada pela submissão.

O PAPEL DA MULHER MULA NO CONTEXTO DO TRÁFICO DE DROGAS

Quando paramos para refletir o papel da mulher no tráfico de drogas, percebemos que
constantemente as encontramos cumprindo a função de mula. Esse papel reflete bastante a posição
da mulher na nossa sociedade, geralmente em um lugar de subordinação e excepcionalmente como
líder, o contexto do tráfico de drogas reflete também esse quadro de realidade social.
Podemos perceber a influência do patriarcado e machismo mesmo diante do cenário de
encarceramento e criminalidade, onde sempre foi esperado que a mulher assuma o papel que é
definido por muitos como exemplar, o de boa, mãe, cuidadora, prendada nos afazeres do lar (COSTA,
2019).
Assim, vemos que o papel da mula no tráfico é marcado ainda pela dominância e
subordinação, e que as mulheres comumente não são colocadas em nenhuma posição de poder, ainda
que no mercado ilícito. Essas mulheres muitas vezes precisam submeter seus corpos como meio de
encobrir a droga, tudo para poder transportar para dentro dos estabelecimentos penais.
De acordo com Ramos (2012), o que vai diferenciar a mulher que trabalha como mula
para aquela que trabalha como avião, é que esta apenas faz a curculação e a movimentação das
440
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
drogas além de pequenas vendas, enquanto a mula faz essa cirulação e movimentação inserindo essas
drogas na cavidade genital ou anal, no estômago, e estão muito mais ligadas ao tráfico internacional
de drogas e, principalmente, ao transporte dessas substâncias para as unidades prisionais, em sua
maioria, masculinas.
É cumprindo essa função de mula, obedecendo os verdadeiros chefes de tráfico, que muitas
vezes as mulheres são mais expostas que os homens, no contexto da Lei 11.343/06, pois são elas que
fazem esses pequenos transportes e vendas exercendo o papel de mula, por estarem nas ruas
exercendo o comércio, são facilmente presas, diferente dos chefes que não se expõem dessa forma.
De acordo com Soares et. al (2002), o lugar de mula dentro da escala hierárquica contribui
bastante para o aumento do encarceramento feminino, por transportarem a droga em seus corpos em
troca de dinheiro, essas mulheres ficam mais vulneráveis a quaisquer abordagens que venham a
ocorrer durante o empenho do seu papel. Além de precisarem submeter o próprio corpo para o
encobrimento das drogas, as mulheres ainda ficam mais suscetíveis que os homens à prisão.
No contexto de cárcere, essas mulheres presas por atuarem como mulas sofrem um
preconceito duplo advindo da sociedade. Elas se encontram no papel de vítimas de uma estrutura
prisional que já é extremamente marcada pelo machismo, além de uma estrutura social e judiciária
que são caracterizadas pelo silêncio e pela invisibilidade do assunto das mulheres presas no contexto
do tráfico de drogas e ainda um o Estado seletivo e subalterno (COSTA, 2019).
Assim, o papel da mulher que exerce a função de mula no tráfico é constantemente marcado
pela busca pelo protagonismo na posição que ela deve ocupar, refletindo a ideia de que a mulher
procura ser respeitada, adquirir voz e poder independente do meio em que ela está inserida, mesmo
que no contexto da Lei 11.343/2006.
De acordo com Barcinski (2009) o protagonismo e a vitimização caminham lado a lado
quando se trata de mulheres que ingressam no tráfico de drogas. O protagonismo é uma expectativa
criada por elas, que buscam poder e respeito dentro da hierarquia do tráfico, e a vitimização existe
porque, geralmente, muitas delas ingressam nesse tipo de crime por conta do seu estado de
vulnerabilidade social, não restando outra maneira de conseguir renda e/ou visibilidade.
Percebemos os fatores que rodeiam essas mulheres durando o surgimento da interseção entre
a condição de mulher e a condição de estar no âmbito do tráfico. A função de mula é uma das

441
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mais inferiores na escala hierárquica dos crimes envolvendo a Lei 11.343/06, por isso esse papel é
muitas vezes ocupado por mulheres que estão iniciando a vida no crime.
Dessa forma, grande parte das mulheres que acabaram de ingressar nos crimes é designada a
exercer o papel de mula, principalmente por conta de seus corpos e da possibilidade de encobrir a
droga em suas cavidades genitais ou anais. “Apesar dos riscos envolvidos, a prática significa ‘fazer
dinheiro fácil e rápido’ e não é necessário ter grandes habilidades ‘técnicas’ para tanto (não precisam
ter armas ou saber atirar, por exemplo)” (MELO, 2016, p. 186).
As mulheres mulas são o exemplo, dentro do âmbito do tráfico de drogas, de qual o papel
esperado das mulheres pela sociedade. Submeter os próprios corpos para o transporte dessas drogas,
mostra como a posição social de vulnerabilidade dessas mulheres é frágil, quando o fazem,
geralmente, para adquirir algum respeito ou para tentar garantir o sustento dos filhos.
É por assumir essa posição inferior e subordinada que muitas vezes as mulheres se tornam
“alvo fácil” para o sistema judiciário (BERNARDI, 2013). Os homens que ficam em cargos
superiores, como chefes do tráfico, ficam em uma posição acima dessas mulheres, gerando uma
relação de obediência, são essas mulheres que se expõem nas ruas para fazer a circulação das drogas,
cumprindo o papel esperado.
O papel que as mulheres mulas exercem dentro da organização das funções do tráfico é um
dos mais inferiores, é caracterizado pela subordinação e obediência e raramente encontramos uma
mulher como chefe do tráfico, cabe a reflexão sobre como esse papel reflete a posição esperada pelas
mulheres por parte da sociedade, o que abordaremos no próximo item.

COMO O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE É REFLETIDO NA HIERARQUIA DO


TRÁFICO
Podemos perceber que o perfil de vulnerabilidade social dessas mulheres muitas vezes as leva
ao ingresso da criminalidade, e o tráfico de drogas acaba sendo uma “solução” recorrente dentro dos
seus contextos sociais. O machismo e o patriarcado acabam influenciando bastante na atuação das
mulheres mulas, quando muitas delas acabam transportando a droga em nome de algum vínculo
afetivo com o companheiro.
Segundo Ramos (2012), é importante destacar o papel passivo exercido pelas mulheres mulas
dentro da escala do tráfico, sem quase nunca haver a ocupação de algum cargo normalmente
ocupado por um homem. Essa passividade demonstra bem a posição que normalmente a mulher

442
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ocupa em qualquer escala trabalhista que encontramos na sociedade, muitas vezes ganhando até
menos do que os homens que exercem a mesma função.
Para Ramos (2012) existem duas reflexões da perspectiva feminista, sendo a primeira delas é
de que as mulheres são levadas pelos homens a exercer o seu papel no tráfico. Seja para manter as
relações afetivas, para demonstrar carinho ou afetividade para esses homens, as mulheres acabam
aceitando a posição de mula.

A segunda análise possível é a de que a preocupação com o homem que está preso e a
necessidade de levar a droga para ele, passam por uma construção social, muitas vezes
biologizada, de que às mulheres cabem as tarefas de cuidado, de zelo pelos entes familiares,
sendo uma obrigação, portanto, cuidar e zelar pela vida e bem-estar daquele homem que está
preso – posição estereotipada do ser mulher (RAMOS, 2012, p. 107).

Podemos, então, notar a influência das reflexões estruturais e sociais mascadas pelo machismo
e como estas cercam a vidas das mulheres, até mesmo no âmbito do tráfico de drogas. Essa
responsabilidade de cuidado familiar é uma característica estereotipada por toda sociedade em cima
dessas mulheres, o que pode levar a refletir no ingresso das mulheres nos crimes da Lei 11.343/06.
O papel das mula no tráfico apenas reafirma a situação de vulnerabilidade que elas enfrentam,
tendo em vista que as mulheres que se submetem a essa função possuem um perfil padronizado. Na
visão de Boiteux (2015), o encarceramento de mulheres por tráfico só reforça o patriarcado pois a
guerra contra as drogas acaba se caracterizando como uma guerra contra mulheres, pois afeta
especialmente as mulheres que são geralmente pobres e negras.
A hierarquia presente na organização criminal do tráfico de drogas recebe a mulher a partir de
uma posição que ela já ocupa comumente no meio social. São os reflexos desse meio que criaram a
ideia da função de mula no contexto do tráfico, uma vez que as mulheres podem fazer o uso de seus
corpos femininos para enconbrir as drogas.
Segundo Costa (2019), ao pensarmos nessa objetificação que existe dos corpos femininos,
podemos perceber como as mulheres acabam sendo caracterizadas como ferramentas para gerar renda
para os traficantes, os chefes do tráfico, e muitas vezes para o companheiro ou esposo atuante do
comércio ilegal de drogas, na maioria das vezes para uma figura masculina, acabando por ser
instrumento de trabalho desde muito cedo.
Podemos então perceber que mulheres que são jovens, muitas vezes mães, e provedoras
do lar, acabam ingressando nos crimes da Lei 11.343/06 sendo usadas como um ser que serve

443
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
unicamente para a carga das drogas, como mula para essas drogas. A estrutura hierárquica
normalmente encontrada é a que a mulher está quase sempre nessa posição inferiorizada e
subordinada.
Ao pensar o estado de vulnerabilidade em que vivem essas mulheres, Melo (2016) aponta que
grande parte das mulheres mulas que estão em situação de prisão, apresentam serem jovens, mães e
que possuem pelo menos um parente, ou o próprio companheiro na maioria das vezes, também em
situação de prisão. Percebemos também os traços de vulnerabilidade presentes nas relações afetivas
dessas mulheres.
De acordo com Melo (2016) existem mulheres donas de bocas de fumo, porém essa posição,
na maioria das vezes é herdada de seus maridos, particularmente quando estes são presos. Podemos
notar, então as relações de poder presentes na organizão do tráfico de drogas e o lugar da mulher que
convive nesse meio, sendo constantemente subalternizada.
A função de mula dentro dos crimes da Lei 11.343/06 é marcada pelas raízes do patriarcado
estrutural, quando estudamos que essas mulheres que ingressam no tráfico, possuem marcadores de
vulnerabilidades bastante parecidos, quais sejam serem jovens e moradoras de ambientes precários
economicamente, ou possuírem baixa escolaridade e se encontrarem em situações de maternidade.
De acordo com Bernardi (2013), as mulheres em situação de cárcere, além de enfrentarem a
pena privativa de liberdade também enfrentam a punição de terem seus vínculos familiares destruídos.
Ao contrário dos homens chefes de tráfico que na maioria das vezes não são abandonados,
principalmente pelas suas companheiras, que eventualmente até transportam drogas para dentro da
prisão, como é o caso das mulheres mulas.
Notamos, então, a diferença entre os lugares feminos e masculinos frente ao cenário das
drogas. Enquanto o homem normalmente se encontra em uma posição de líder, de chefe, de mandante,
a mulher geralmente fica em uma posição inferiorizada, precisando obedecer esse chefe masculino, e
quando ocupam esselugar de liderança, normalmente não é por conta própria, é uma posição deixada
pelo próprio companheiro.
Segundo Saffioti (1987), ao tratar das relações de poder entre homens e mulheres, percebemos
que a a dita inferioridade das mulheres em relação aos homens é exclusivamente sociocultural. Esse
tipo de pensamento carrega um viés da cultura que transmite a ideia de que, por exemplo, quando

444
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
se trata de um ambiente de trabalho, as mulherem “ajudam” os homens, e estes é que são os
verdadeiros líderes do negócio.
É nessa perspectiva que também acaba surgindo o papel da mulher mula dentro do contexto
do tráfico de drogas, pois a sua função muitas vezes surge a partir das raízes sociais do patriarcado e
do machismo, trazendo essa ideia de hierarquia e os lugares do homem e da mulher. A mula cumpre
justamente essa função de “ajuda”, em relação aos papéis exercidos pelo homem, e muitas vezes
recebem muito menos, apesar de estarem fazendo a parte mais excplícita do tráfico, que é a circulação
nas ruas.
De acordo com Barcinski (2009) as questões de gênero no cenário das drogas são marcadas
pelo protagonismo e vitimização dessas mulheres. Elas muitas vezes se enxergam como
protagonistas, pois o seu entorno social é muitas vezes marcado pela vulnerabilidade de ser jovem,
mãe e negra, portanto alcançar uma posição na hierarquia do tráfico significa receber um certo
respeito.
Porém, a vitimização vai aparecer no momento em queessas mulheres desempenham papéis
que são consideradas menos prestigiosas ou arriscadas (BARCINSKI, 2009). Dessa forma, o papel
da mulher mula no cenário das drogas é perceptivelmente marcado pela ideia de inferioridade.
De acordo com Saffioti (2004), a dominação faz a presunção da subordinação, a partir disso
ao pensarmos em uma dominação patriarcal, percebemos que sãoos homens que estão na posição de
dominantes, tendo mulheres e homens como subordinados, mas nunca mulheres em uma posuição de
poder. São os reflexos da dominação patriarcal no âmbito do tráfico de drogas que nos fazem refletir
sobre as raízes discriminatórias em nossa cultura, numa perspectiva de gênero.
Essa dominação acaba tendo muito destaque quando paramos para pensar na vida das
mulheres mulas, que ao obedecer os chefes de tráfico precisam muitas vezes submeter os próprios
corpos para a realização da comercialização das drogas nas ruas. As discriminações decorrentes de
questões de gênero acabam sendo muito presentes na vida dessas mulheres.

São comportamentos decorrentes da violência sistemática e injustiça, que objetificam o corpo


da mulher à processos de sujeição e silenciamento, simplesmente pelo fato de ser mulher,
consequentemente uma forma de controle dos machos, do Estado e da sociedade patriarcal e
misógina (COSTA, 2019, p. 94).

445
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É importante a reflexão sobre como o papel da mulher mula dentro do contexto do tráfico
de drogas refleteo papel da mulher na sociedade. Uma vez que das mulheres é sempre cobrada uma
posição de doméstica, cuidadora, mãe, elas sempre são colocadas em uma posição de subordinadas e
m relação aos homens, que ficam quase sempre com as funções de chefia no tráfico de drogas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após explanação sobre o tema, percebemos que a problemática “Quais as interseções entre
questões de gênero e tráfico de drogas, para perceber o lugar da mulher mula, frente à Lei
11.343/06?”, nos leva a perceber que o encontro que existe entre a condição do gênero feminino e a
situação do tráfico de drogas, é o que duplica e piora a vulnerabilidade dessas mulheres diante da
sociedade.
Durante a seção “Questões de gênero no cenário das drogas” podemos perceber que mesmo
inserida no contexto do mercado ilícito das drogas, a mulher é colocada em uma posição inferior a
do homem, tendo que exercer um papel que já remete à forma como as mulheres são tratadas em
nossa sociedade, exercendo a função de doméstica, preparando e embalando essas drogas, porém
nunca na posição de chefa.
Posteeriormente, quando falamos sobre “O papel da mulher mula no contexto da Lei
11.343/06” podemos perceber que geralmente a mulher é colocada para exercer o papel de “mula”,
sendo submetida a fazer o transporte e a venda dessa droga nas ruas, e até mesmo a locomoção dos
entorpecentes para dentro das prisões.
E, ainda, no item “Como o papel da mulher na sociedade é refletido na hierarquia do tráfico”
notamos como as relações de poder impostas pelo patriarcado e pelo machismo estão enraizadas pela
cultura bem como pela sociedade e como essas relações refletem na função de mula exercida pela
mulher dentro do contexto do tráfico de drogas.
A situação da mulher dentro desse contexto do tráfico de drogas reforça a sua vulnerabilidade
diante da sociedade, ao estudar o tema podemos perceber que existe um perfil padrão das mulheres
que se encontram nesse contexto e cabe ao Estado exercer a atenção e a visibilidade que essas
mulheres necessitam.

REFERÊNCIAS

446
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BARCINSKI, M. Protagonismo e vitimização na trajetória de mulheres envolvidas na rede do tráfico
de drogas no Rio de Janeiro. Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro-RJ, vol. 14(2), p
577-586, abr, 2009.

BERNARDI, Maria Luiza Lorenzoni. Gênero, cárcere e família: Estudo etnográfico sobre a
experiência das mulheres no tráfico de drogas. 2013. 100 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Instituto de Filosofia, Sociologia e
Política. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2013.

BOITEUX, Luciana. Paulo Teixeira: A guerra contra as drogas é uma guerra contra as mulheres.
Agência PT de Notícias, [S.l], 10 nov. 2015. Disponível em: https://pt.org.br/paulo-teixeira-a-guerra-
contra-as-drogas-e-uma-guerra-contra-as-mulheres/. Acesso em: 23 maio 2016.

CHERNICHARO, Luciana Peluzio; RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Encarceramento


feminino, seletividade penal e tráfico de drogas em uma perspectiva feminista crítica. In: Seminário
Nacional de Estudos Prisionais e Fórum de Vitimização de Mulheres no Sistema de Justiça Criminal.
6. 2014, Marília. Anais. Marília, UNESP, 2014. p. 1-6.

CORTINA, M. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia Feminista. Revista


Estudos Feministas, Florianópolis, vol.23, n.3, p. 761-778, set-dez, 2015.

COSTA, Luisa Vanessa Carneiro da. Mulheres mulas do tráfico: estudo sobre a Lei 11.343/06 sob
uma perspectiva de gênero. 2019. 182 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de
Pernambuco. Programa Pós-Graduação em Direito. Mestrado em Direito, 2019.

MELO, Juliana Gonçalves. Percepções sobre o sistema de justiça criminal brasileiro a partir de
narrativas de mulheres inseridas na prisão como mulas de tráfico. Revista Eletrônica da Faculdade
de Direito de Pelotas, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 179-193, 2016.

RAMOS, Luciana de Souza. Por amor ou pela dor?: um olhar feminista sobre o encarceramento de
mulheres por tráfico de drogas. 2012. 126 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de
Brasília, Brasília, 2012.

SAFFIOTI, Heleieth, I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2004.

SAFFIOTI, Heleieth, I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

SOARES, Barbara M.; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras. Vida e violência atrás das grades. Rio de
Janeiro: Garamond, 2002.

447
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A NORMALIZAÇÃO DA CIS-HETEROSEXUALIDADE NA ESCOLA
ANÁLISE DO CURTA METRAGEM “VESTIDO NUEVO”

Luciana Xavier Bastos Lacerda224

Resumo: O curta-metragem “Vestido Nuevo”, enseja uma discussão sobre as relações do poder hegemônico, com as
narrativas reproduzidas e reverberadas na escola, ao normalizar a cis-heterosexualidade e reprimir ou oprimir a liberdade
de gênero das crianças na performance das suas identidades de gênero. O texto, busca analisar o tema abordado no filme,
a partir da discussão sobre ideias hegemônicas, norma e identidade, levantando reflexões sobre os efeitos dos discursos
compulsórios na vida dos educandos/as. A formação dos/as professores/as é pensada como fator contribuinte para o
rompimento das discriminações contra as sexualidades dissidentes. Na análise da película, o viés teórico
de Butler, Miskcolci, Benjamin, Freire, Trevisan, Quijano e Veiga são utilizados, intentando compreender o
“estranhamento” da performatividade de gênero, no âmbito normativo. O coletivo Mujeres Creando é atravessado na
discussão, como experiência de resistência contra a “ordem” imposta, demonstrando que “descolonizar
sem despatriarcalizar” são palavras de ordem na luta a favor da liberdade de gênero.

Palavras-chave: Cis-heterossexualidade; Liberdade; Identidade; Dissidente; Performace.

INTRODUÇÃO
A escola é um espaço composto por diversidades, de classe, gênero e raça, no qual, a todas
essas identidades, deviam o reconhecimento das suas subjetividades, acolhida, inclusão, respeito e
combate a qualquer forma de discriminação. Contudo, oprimir e reprimir também é uma forma de
discriminar, veladamente, aqueles que causam abjeção e estranheza por se performatizarem de formas
dissidentes da norma hegemônica.
O curta-metragem “Vestido Nuevo”, suscita uma discussão sobre liberdade de gênero na
Escola, ao apresentar a personagem Mário, reprimido, por resolver vestir-se com um vestido rosa no
carnaval. A escola, problematiza essa performace de Mário, tratando-a uma prática repulsiva, não
apropriada, portanto não aceita, excluindo-o. Este estudo, busca analisar através do pensamento de
Butler, Misckolci e Trevisan a questão da sexualidade, do gênero, da diferença nas práticas escolares.
A ponderação sobre as relações de poder presentes no currículo escolar são levantadas, através
de Veiga, evidenciando o papel da escola na reprodução e transmissão das narrativas hegemônicas.
A formação do professor é discutida como um mecanismo contribuidor na superação da cis-
heterossexualidade enquanto discurso compulsório produzido em âmbito escolar. É estabelecido um
diálogo com o pensamento do coletivo feminista Mujeres Creando, intentando, demonstrar que as

224
Mestranda em Memória, Lingagem e Sociedade (UESB). Especialista em Gênero e Sexualidade na Educação
(UFBA).
448
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mentes precisam ser descolonizadas, para despatriarcalizar e por fim alçar a liberdade de gênero nas
práticas sociais.

VESTIDO NUEVO: ENTRE O ROSA E AZUL


O curta-metragem, denominado Vestido Nuevo é uma película espanhola de 2007, dirigido
por Sergi Pérez. A história reflete sobre a imposição cis-heterosexual no espaço escolar, através de
práticas prenconceituosas veladas, que “violentam” os educandos/as, ceifando sua autonomia
concernente à liberdade de gênero. O cenário é a sala de aula em meio a organização dos festejos de
carnaval, Mário, é o personagem protagonista da história. Quando Mário, decide ir à escola, vestido
com um vestido rosa, os colegas estranham a vestimenta e debocham dele. As crianças, o estigmatiza
com palavras ofensivas, verbi gratia, “maricas”, contudo a conduta da professora, em nossa
perspectiva é espantosa, pois não acolhe Mário, evidenciando o quanto as práticas escolares estão a
serviço da heterosexualidade compulsória, mesmo não estando plenamente conscientes disso.
A docente o repreende perante a classe, reforça a ação estigmatizadora dos colegas de Mário,
e o ordena a sair da sala, subtendendo-o a uma repressão da sua liberdade de gênero, repreendendo a
sua performace, como ela fosse uma falta grave nas relações sociais. No corredor, a professora,
conduz uma conversa repressora, e procurar alertá-lo sobre a inadequação da fantasia: “a fantasia
apropriada seria a dos 101 Dálmatas e não a fantasia de uma garota”. O gestor escolar, orienta a
docente a vestir Mário “adequadamente” e a questiona sobre os pais do menino, ela, no entanto,
informa que os responsáveis pelo garoto irão buscá-lo na escola.
Quando o pai de Mário chega para levá-lo embora da escola, uma funcionária insiste para que
converse com o gestor escolar, na conversa o diretor ratifica o tema da fantasia, o pai de Mario
aproveita o ensejo e relata sobre o desejo do filho de se vestir como menina. Proibido de permanecer
na escola performativo, o menino é compelido a ir embora com seu pai, as câmeras captam um olhar
emblemático, de uma criança, sendo evadida da escola por não poder expressar o “direito de ser e
existir”.
A história explorada nesse filme contempla as muitas “facetas” do heterossexismo nas nossas
escolas. Existe um notável despreparo dos profissionais de educação envolvendo as questões de
gênero, pois no plano cultural, através dos processos históricos, a égide cis-heteropatriarcal é
compreendia como a concepção normal e natural de identidade de gênero, orientação sexual e

449
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
modelo familiar, produzindo “estranheza” e desejo de segregação: A fabricação normativa, constroi a
ideia de rompimento com a dissidência: aos diferentes existem duas alternativas: adaptação a norma
ou exclusão. A experiência da exclusão, tem sido vivenciada por tantos “Mários” e diversos tempos.
Ao esperar seu pai, no corredor, Mário é abordado por sua amiga, Elenita, a menina explica-
lhe que não devia vestir-se como menina, por ser “ilegal”. Esse “alerta” evidencia a recuperação de
memórias oriundas da criminalização da homossexualidade, no qual, monarcas convertidos a fé cristã,
em um longo processo histórico, institucionalizaram a homofobia, através das legislações que
criminalizavam e puniam severamente as sexualidades dissidentes. Elenita, repara ainda nas unhas
pintadas de Mário: “Não pode pintar as unhas, veja como os outros meninos se vestem” e Mário
retruca: “Mas, na sua casa, fizemos isso” e Elenita rebate: “Sim, mas fora de casa, não pode, os
meninos não se vestem de meninas”.
Na sequência, de cabeça baixa, Mário concorda tristemente, a reflexão produzida nesse trecho
é intensa, nos provoca a pensar sobre como atua as relações de poder no currículo escolar e na
sociedade. Narrar a história é um privilégio, concedido aos beneficiados pelas ideias hegemôncias. É
desconcertante perceber que muitas “Elenitas”, estão, aprendendo através das narrativas
hegemônicas, reproduzidas na escola, que a liberdade de gênero é algo impróprio, reservada de
expressão apenas na forma clandestina. Essa reflexão é corroborada pelo pensamento de Miskolci:

A recusa violenta de formas de expressão de gênero ou sexualidade em desacordo como


padrão é antecedida ou até apoiada por um processo educativo heterossexista, ou seja, por
um currículo oculto comprometido com a imposição da heterossexualidade compulsória. Um
comprometimento em construir uma experiência educacional que tenha uma perspectiva
queer exige lidar com a experiência da abjeção como algo concernente a todos e que não
deveria ser parte da experiência educacional (MISKOLCI, 2012, p. 34).

O pai de Mário, ao sair da sala do diretor, tenta ocultar o vestido trajado pelo seu filho e o
cobre com seu paletó, ao saírem, seu colega “Santos”, intentando insultá-lo, o chama de “v-i-a-d-i-
n-h-o”. Ternamente o pai de Mário, o abraça e carrega no colo, o olhar do garoto, demonstra tristeza.
De quantos espaços e serviços, será excluído? Por quantas vezes, será insultado? Quantas vezes, será
repreendido e oprimido, por performatizar com liberdade, sem obediencia a um telos normativo? A
todas essas perguntas, temos uma resposta: muitas vezes. Segundo, Butler:

450
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O gênero é uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais
plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada. Uma coalização aberta, portanto,
afirmaria identidades alternativamente instituídas e abandonadas, segundo as propostas em
curso; tratar-se – à de uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências,
sem obediência a um telos normativo e definitivo (BUTLER, 2003.p. 37).

Enquanto, não houver a superação dos discursos compulsórios de heterossexualização na


escola, a compreensão do gênero, como uma complexidade, uma coalização aberta em assembleia,
não sendo jamais definido por uma norma, muitos “Mários” sofrerão e muitas “Elenitas” se tornarão
sentinelas do cis-heteropatriarcardo. O que foi aprendido, é reverberado e transmitido, com o
propósito de manter, em grande escala, os privilégios daqueles que se beneficiam com a reprodução
dessa norma, através de um modelo político e cultural da superestrutura de organização social do
capital.
A vida não se separa da escola, a sala de aula, tem caráter psicossocial. A descontinuidade
dos programas e projetos contra a Homofobia e pela Diversidade Sexual, representam retrocessos
significativos, conservando, aparatos ideológicos de opressão e repressão a liberdade de gênero. É
angustiante a vivência de tempos tão complicados, nos quais a descrença da sociedade na política e
na economia despertam o clamor cético pela censura e nos remete ao reforço da concepção binária
de gênero, desvalorização dos conhecimentos científicos, ataques a escola com matérias como a
Escola Sem Partido e a acusação de doutrinação no âmbito da Ideologia de Gênero, ressalvando
preocupações com discursos que colocam em risco a laicidade e a liberdade.
Verbi gratia, a pastora-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos: Damares Alves, ao
assumir o papel de “porta-voz” dos “vencedores e seus herdeiros” ao reclamar a manutenção da ordem
normativa e hegemônica, com declarações cis-heteropatriarcais, ao declarar que é inaugurada agora
uma “nova era” no país, em que “menino veste azul e menina veste rosa”. Essa afirmação, da pastora-
ministra, dialoga com a reflexão-crítica trazida em “Vestido Nuevo”. A superestrutura da organização
social do capital, através do plano ideológico (cultura, mídia, religião) recupera e reproduzi discursos
compulsórios em busca da manutenção de uma “ordem” e evidentemente, muitas pessoas impedidas
de “ser e existir”, sofrem com a discriminação normalizada.
Em outra declaração Damares Alves, afirmou que as mulheres nasceram para serem mães e o
modelo ideal de sociedade as deixaria em casa, sustentadas pelos homens e desempenhado o
papel social de mãe. A trajetória das pessoas com sexualidades dissidentes, é marcada por

451
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
investidas mensageiros das elites, em construir uma narrativa épica, superada e irreversível dos
valores patriarcais, de modo a sufocar a liberdade e igualdade de gênero e intenta esvaziar os debates..

Depositárias das ideias de tradição patriótica e dos valores patriarcais, as elites brasileiras
sempre se apresentam muito defensivas por isso mesmo, vulneráveis ao fantasma do desejo
desviante. Tornaram-se permeáveis ao pânico homofóbico na mesma proporção com que
zelaram pela estrita observância das normas morais “que são aspirações legítimas da família
e da sociedade”. (…). No conceito de elite, estou aqui incluindo além dos óbvios donos do
poder (político, econômico e religioso), tanto uma emergente nova burguesia, ansiosa por
ascensão social, quanto o setor intelectual que, além de usufruir privilegiadamente do
aparelho cultural, em geral, é o que prepara os caminhos ideológicos de dominação da
população — mesmo quando invoca ideais e intenções progressistas. Foram também essas
elites que reorganizaram continuamente e a moldura da repressão sexual, de maneira sutil ou
não, na vida brasileira. Às vezes criando uma densa muralha de justificações teóricas, às
vezes disseminando em doses homeopáticas preceitos de naturalidade e normalidade, os
grupos oligárquicos estiveram envolvidos em atividades que coibiram incansavelmente as
práticas homossexuais entre os brasileiros em vários momentos como a Inquisição, os
códigos penais, a policiais estatais e a censura estatal (TREVISAN, 2018, p. 155).

O curta-metragem “Vestido Nuevo”, expõe com a ótica da história narrada pela perspectiva
dos vencedores, tende a promover o apagamento dos dissidentes, como estratégia apresentam como
obra tanto a construção da sociedade quanto a produção dos mais diversos bens culturais (FRANCO,
2019, p. 113). Precisamos, pensar sobre o “Vestido Nuevo”, tão estranhado e combatido, nas escolas,
nas práticas socias, e valorizar as formas de resistência, proponentes da liberdade. Como exemplo de
resistência, o coletivo feminista boliviano “Mujeres Creando”, reúne mulheres das mais diversas
identidades sexuais, classes e condições, demonstrando que “não se pode descolonizar sem
despatriarcalizar” (THÜRLER, 2019, p.32). São estes movimentos, essas redes de reflexão-crítica,
que trazem a esperança de um futuro mais libertador para os “Mários” e as “Elenitas”.
O resistir e o (re)significar a normalização a que estão submetidos, promove a desarticulação
da estrutura do poder colonial ou “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005, p.6) relacionada com
os interesses do “capitalismo mundial” que produziu e ainda produz as discriminações decodificadas
como “raciais”, “étnicas”, “gênero” ou “sexuais”, de acordo com os momentos, os agentes e
populações envolvidas (THÜRLER, 2019, p. 37).
Contudo, a escola enquanto espaço de disputas de poder, tem na formação docente, a
materialização do processo de reflexão crítica da ‘práxis’, necessitando ser contínuo ao exercício da
docência, na qual os/as atores/atrizes no processo de aprendizagem estejam envolvidos em um
ciclo gnosiológico: ensinando o conhecimento já existente e trabalhando na produção do
452
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conhecimento ainda não existente, abrindo espaço para “olhar” a formação docente em ressonância
com as práticas escolares rumo a uma escola reflexiva que possibilite o diálogo com as diferenças
entre os sujeitos na experiência escolar e social como condição do processo educativo. Não obstante,
este processo de certa maneira, ratifica uma das teses sobre o conceito da história de Walter Benjamin:

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.
E, assim como a cultura não é isente de barbárie, não o é, tampouco o processo de transmissão
da cultura. Por isso, na medida do possível o materialista histórico desvia dela. Considera
sua tarefa escovar a história a contrapelo225 (BENJAMIN, 1985, p. 225, grifo nosso).

É preciso que a escola reflexiva possa ser um espaço no qual se “escove a história a
contrapelo”, percebendo a escolarização como um recurso de transmissão da cultura dos grupos
hegemônicos (vitoriosos) por isso não isentos de barbárie e opressão; sendo urgente dar voz, lugar,
liberdade e isonomia aos grupos não hegemônicos, minorias estigmatizadas, compreendidos/as como
diferentes e estranhos/as à normatividade.
Contribuir para a construção de experiências educacionais, que tenham uma perspectiva
“queer”, é uma necessidade, pois os/as professores/as precisam ser oportunizados/as à formação em
exercício, para que tenham condições de articular nas práticas escolares a necessidade de lidar com a
experiência das diferenças, concernente a todos/as, fazendo parte da experiência educacional,
minimizando a “sensação de dicotomia entre vida e estudo” (VIÑAO, Antônio, 2008, p. 180). A
trajetória de Mário, com seu “vestido novo”, escancara essa necessidade no âmbito escolar. Destarte,
ratificando essa premissa, Freire reflete:É na minha disponibilidade permanente à vida a que me
entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu
mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem
medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. (FREIRE,
2018, p. 131).
É certo que, durante a vida, as pessoas mudam, e analisando as questões de gênero e
sexualidade é notória uma instabilidade crescente na forma como os sujeitos se compreendem e se
relacionam na sociedade resultando assim, no desafio de tentar superar a ideia de uma educação
sexual pensada como orientação, que acabava resultando em uma normatização das identidades

225
Grifo nosso, para destacar a importância de considerar o lado da história dos “vencidos”, dos diferentes, dos
estranhos, daqueles que não contemplam a norma dos grupos hegemônicos.
453
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
práticas. “Orientar se confunde com direcionar o desejo, induzi-lo e, até mesmo criá-lo, segundo os
interesses de uma época e sociedade” (MISKOLCI, 2012, p. 19).
É preciso repensar essa educação para a diversidade, tão amplamente divulga em nosso país,
para que sejam construídas novas significações ao lidar com as diferenças. Tal reflexão só é possível
com a formação docente, articulada a prática crítica com as demandas dos/as educandos/as. A
realidade não pode ser dissociada da sala de aula, e muitos alunos e alunas sente-se condicionados à
normalização, a heteronormatividade e a heterossexualidade compulsória não permitindo o exercício
de sua liberdade de gênero, promovendo discriminação e violência, porquanto o “estranho”, o
“diferente” não encontra espaço para reconhecer-se e viver a assunção da sua identidade nas práticas
escolares, justamente pelo fato das experiências pedagógicas e escolares não oportunizarem esse
reconhecimento. Pois, segundo Grosfoguel:

A homofobia, o racismo, o sexismo, o heterossexismo, o classismo, o militarismo, o


cristianismo, o eurocentrismo, são todas ideologias que nascem dos privilégios do novo poder
colonial capitalista, masculinizado, branqueado e heterossexualizado (GROSFOGUEL,
2012, p. 343).

Destarte o professor e a professora precisam refletir criticamente, conscientes do seu


inacabamento, que “os estranhos”, “os abjetos”, “os rejeitados” precisam fazer pate do discurso e do
debate. É de suma importância ressaltar as significativas contribuições de militância e produção de
conhecimento sobre os estudos queer proporcionadas pela pesquisadora e pensadora Judith Butler,
na qual suas obras e vivência corroboram na atualidade com relevância social e educacional, no que
concerne à reflexão crítica das práticas educativas no desenvolvimento do currículo oculto. Pois, o
currículo oculto relaciona-se de maneira cíclica com o poder, a cultura e a identidade:

O currículo oculto reflete a seleção de significações, a cultura, a identidade dos grupos sociais
e a discussão de poder. Ele nunca é uma simples montagem neutra. Ele é produzido pelos
conflitos e pelas tensões que circundam o nosso ambiente, refletindo as relações de poder
entre os atores que convivem na escola. “Então, planejar currículo implica tomar decisões
educacionais, implica compreender as concepções curriculares existentes que envolvem uma
visão de sociedade, de educação e do homem que se pretende formar.” (VEIGA, 1991, p.
83).

454
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A análise do curta-metragem “Vestido Nuevo”, vislumbra demonstrar que é possível trabalhar
educação sexual, a liberdade de gênero e consequentemente acolher e conviver com “o diferente”
corroborando a autonomia do educando, na exigência da ética, da consciência do inacabamento, da
apreensão da realidade, do bom senso e da liberdade na especificidade humana, como interpela Paulo
Freire: “A assunção de nós mesmo não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”
ou do tu, que me faz assumir radicalidade do meu eu”. (FREIRE, 2018, pág. 42). Para que, outros
“Mários”, possam encontrar na escola, a liberdade performática e outras “Elenitas” com mentes
descolonizadas e despartriarcalizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme “Vestido Nuevo”, relata uma história possivelmente corriqueira nas escolas de muitos
lugares do mundo. A repressão contra performances dissidentes é normalizada, tomada como a
“aparência” de disciplina, quando, na verdade, é coerção, praticada muitas vezes, sem que a escola se
dê conta, do papel que exerce nesse processo. Na condição de reprodutora do discurso cis-
heterosexual, a consciência sobre as relações de poder materializadas no currículo e nas práticas
escolares são veladas.
Crianças, sofrem por serem inibidas de exercerem a liberdade de gênero. O curta-metragem
mostra esse sofrimento, a tristeza e o sentimento de “inadequação” com muita sensibilidade. Expondo
as “vísceras” da “sutileza” dos discursos compulsórios heterossexistas no âmbito escolar. Exclusão,
punição, repressão, são algumas das evidências de violência simbólica apresentadas contra Mário,
que queria apenas vestir-se com um vestido rosa no carnaval.
Contudo, o “vestido novo”, torna-se um problema, um escândalo. A performance, diferente
da imposição normativa, é estranhada e segregada. Aos dissidentes, resta-lhe a exclusão ou a
adaptação. Este estudo é uma visão preliminar de algumas discussões teóricas produzidas sobre
“pedagogias transgressoras”, indicando que, as sexualidades dissidentes precisam encontrar espaço
para “ser e existir” na escola, e “transgredindo” as normas padronizadoras da sexualidade, ao permitir
o exercício da liberdade de gênero, e a acolhida aos diferentes, como parte da totalidade é
encontraremos meios de contribuir com a superação de uma norma compulsória e coercitiva. Em
suma, a partir das reflexões propostas pelo coletivo Mujeres Creando, é preciso descolonizar as

455
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mentes para despatriarcalizar e para que outros “Mários” possam performatizar suas existências,
livres, sem obediência a nenhuma “ordem” hegemônica.

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica. 8 ed. São Paulo. Editora Brasilense, v. 1,
2012.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/materiais-de-apoio. Acesso em: 17 de janeiro de 2019.

BARBIÉR, Luiz Felipe. Mulher deve ser “submissa” ao homem no casamento. O Globo. 2019.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/16/damares-diz-que-em-sua-
concepcao-crista-mulher-deve-ser-submissa-ao-homem-no-casamento.ghtml Acesso: 26/05/2020.

CLARISSA PAINS. Menino veste azul e menina veste rosa. O Globo. 2019. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-
video-23343024 Acesso: 26/05/2020.

GUACIRA LOURO, Lopes. Um corpo Estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte, Editora Autêntica, 2004.
FRANCO, R. Dez Lições sobre Walter Benjamim. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 57ª ed. Rio de
Janeiro, Editora Paz e Terra, 2018.

GOBIERNO DE ESPAÑA. Vestido Nuevo. Disponível em:


<http://www.mcu.es/comun/bases/cine/Anuarios/2007/P43406.pdf>. Acesso em: 17/01/2020.

GROSFOGUEL, R. Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas


eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial. Revista de Sociologia da UFSCar,
2012.

JUDITH BUTLER. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. 17ª ed. Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2003.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte. Editora
Autêntica, 2012.

NILDA GUIMARÃE, Alves. Formação de docentes e currículos para além da resistência. Rio de
Janeiro. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Educação, V.22, n. 71,
p.147-227, 2017.

456
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PRECIADO, Paul B. La isqueierda bajo la piel. Um prólogo para Suely Ronilk. In: ROLNIK, S.
Esferas da insurreição – notas para uma vida não cafetinada. São Paulo, Editora N-1, 2018.

RUTH SABAT. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 11-21,


set. 2001.

SACONI, João Paulo. Cotada para ministra diz que mulher nasce para ser mãe. O Globo. 2019.
Disponível em < https://oglobo.globo.com/brasil/cotada-para-ministra-diz-que-mulher-nasce-para-
ser-mae-infelizmente-tem-que-ir-para-mercado-de-trabalho-
23272762?fbclid=IwAR2dXU5oKfkrDILFrCG3ROpFcnN3cguZtadifeQrRgujQjhoshw_h5O_HBI
> Acesso: 26/05/2020.

TREVISAN, J. S. Devassos no Paraíso - A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.


4 ed. Rio de Janeiro. Editora Objetiva, 2018.

TÜLHER, D. Sexualidades e políticas de subjetivação no campo das artes. Salvador/Ba. Editora


UFBA, 2019.

VEIGA, I.P.A. &CARDOSO, M.H.F.(orgs.). Escola fundamental: currículo e ensino. Campinas, SP:
Papirus, 1991.

VESTIDO Nuevo. Direção de Sergi Pérez. Barcelona: Espanha: Escándalo Films, 2007.

457
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PELO DIREITO DE SER: CORPOS TRANS NA MARGINALIDADE E A
NECROPOLÍTICA COMO MEDIDA ADOTADA PELO ESTADO

Léo Lins da Silva226


Luísa Vanessa Carneiro da Costa227
Roberta Rayza Silva de Mendonça228

Resumo: O presente artigo objetiva discutir as complexidades por trás da vivência das pessoas trans enquanto sujeitos
subalternizados com o relato da minha experiência como único homem trans da minha cidade com um cargo institucional,
chamando atenção para a invisibilidade e marginalização dos nossos corpos e identidades. Busquei fomentar esse estudo
baseado nas óticas de Butler (2010), Foucault (1988), Nery (2013), entre outros autores que também conduzem essa
pesquisa. A metodologia utilizada se faz a partir do método indutivo, com abordagem de pesquisa qualitativa, sendo o
tipo de pesquisa exploratório, bibliográfico e descritivo, e quanto a técnica de análise de dados, será feita a análise de
conteúdo. Dessa maneira, busquei discutir a marginalização e subalternização dos corpos trans nos espaços sociais e de
empregabilidade, para que possamos trilhar um caminho que venha ressignificar os olhares e apontamentos voltados a
essa comunidade.

Palavras-chave: Gênero. Marginalização. Trans (gêneros/sexuais e travestis).

INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende discutir as complexidades por trás da vivência das pessoas trans
enquanto sujeitos subalternizados com o relato da minha experiência como único homem trans da
minha cidade com um cargo institucional, chamando atenção para a invisibilidade e marginalização
dos nossos corpos e identidades.
Dessa forma, estabeleci como problemática: Como os discursos de poder silenciam e
contribuem para a marginalização de corpos transgêneros/travestis e/ou transexuais? Sendo o objetivo
geral: perceber como os discursos de poder silenciam e contribuem para a marginalização de corpos
transgêneros/travestis e/ou transexuais.

226
Graduando do curso Bacharelado em Direito, pelo Centro Universitário do Rio São Francisco - UNIRIOS, Aluno
pesquisador pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Direito, Diversidade e Sociedade –
GEPIDDS/UNIRIOS e pelo Grupo de Pesquisa Sobre Contemporaneidade, Subjetividades e Novas Epistemologias
– G-PENSE/UPE, E-mail: leollins12@gmail.com
2
Professora do Curso de Bacharelado em Direito – UNIRIOS. Coordenadora do Grupo Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS; Pesquisadora do G-Pense! – Grupo de
Pesquisa sobre contemporaneidade, Subjetividade e Novas Epistemologias (UPE/CNPq), E-mail:
luisavanessa1@hotmail.com
3
Professora do Curso de Bacharelado em Direito – UNIRIOS. Coordenadora do Grupo Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS; Pesquisadora do G-Pense! – Grupo de
Pesquisa sobre contemporaneidade, Subjetividade e Novas Epistemologias (UPE/CNPq), E-mail:
robertas.mendonca@hotmail.com

458
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Onde os objetivos específicos são: I. analisar como os corpos trans estão à margem dos
espaços formais de sociabilidade e emprego; II. perceber a intersecção entre o genocídio da população
trans e a necropolítica. III. Apontar os efeitos do silenciamento institucional para com a população
trans.
Assim, este relato é justificado pelo interesse em levar informação e ser exemplo da vivência
e experiência das pessoas trans por meio da pesquisa científica, a fim de conscientizar os
desinformados e inspirar outros(as/es) a contarem sua história de vida e resistência.
Quanto a metodologia utilizada, esta se faz a partir do método indutivo, visto que minha
pesquisa partiu de uma observação pessoal sistematizada nesse relato. No que pese a abordagem de
pesquisa se definiu como qualitativa, pensando que essa abordagem considera as subjetividades do
objeto analisado, assim dando o aporte necessário para o debate sobre o silenciamento da comunidade
t. (SANTOS, 2012).
Sendo portanto, o tipo de pesquisa exploratório, bibliográfico e descritivo, pensando que esses
tipos de pesquisa permitem que seja feita uma análise mais crítica do objeto estudado e dão suporte
para a utilização de outros pensadores que estudam a situação de vulnerabilidade das pessoas trans, e
por fim, utilizei a técnica de análise de conteúdo, que me permitiu fazer o levantamento dos
documentos citados, e ainda o estudo das questões que envolvem a marginalização e a omissão estatal
para com as pessoas trans (GIL,2002).
No âmbito pessoal, a pesquisa justifica-se pela inquietação de perceber uma grande lacuna na
educação básica sobre os estudos de gênero, o que fomenta o desenvolvimento de indivíduos
intolerantes, preconceituosos e reprodutores de violências.
No cenário acadêmico, justifica-se por entender que no corpo da própria academia ainda há
resistência para tratar sobre as temáticas identitárias, visto quando falamos da comunidade t
enfrentamos resistência e a própria evasão escolar.
No contexto social, justifica-se por compreender que a sociedade é responsável por
marginalizar e negar nossas múltiplas identidades, então torna-se necessário o processo reverso de
provimento de conhecimentos despidos de tabus para que seja feita uma desmistificação sobre o tema.
Assim, passaremos a discutir sobre aspectos centrais ligados à esta problemática, que se faz
necessária na discussão e desconstrução dos estigmas gendrificados, para tentar entender o
fenômeno da subalternização desses corpos transgêneros/travestis e/ou transexuais.

459
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DESENVOLVIMENTO

A MARGINALIZAÇÃO E SUBALTERNIZAÇÃO DE CORPOS TRANS NOS ESPAÇOS


SOCIAIS

Podemos estudar o fenômeno da exclusão de pessoas t por aspectos como a moral religiosa,
criada e executada pelo homem-cis-hétero-branco, que foi o pivô da colonização culminada na
desumanização e tomada de poder dos locais, das pessoas, suas culturas, sexualidade e identidades,
ou seja, toda e qualquer manifestação nativa tinha de ser apagada para dar lugar ao modelo
eurocêntrico.
Assim, uma das razões para a – e simultaneamente consequência da – invisibilidade destes
fenômenos na sociedade ocidental é a confusão em termos de senso comum entre a transexualidade
e/ou o transgênero e a homossexualidade, podemos observar o conceito na visão sociológica:

Trata-se efectivamente de realidades diferentes e, como tal, de problemáticas diferentes:


enquanto a primeira se refere à orientação sexual, relacionando-se com a sexualidade, e
respeitando ao sentido da atracção sexual; os fenómenos que aqui nos ocupam remetem
conceptualmente para as identidades de género, ou seja, ao modo como as pessoas se sentem
e se expressam em termos de género. A homossexualidade designa a atracção sexual por
indivíduos do mesmo sexo/género, não implicando a experienciação de descoincidência entre
sexo biológico e género social (SALEIRO, 2013, p. 03).

Nessa perspectiva, trago minha experiência como exemplo para podermos analisar em que
circunstâncias ocupo um espaço pouco comum e de difícil acesso para pessoas t, me entender trans
foi um processo (comparando aos índices de violência) bem tranquilo, socialmente falando, pois não
fui expulso de casa, tenho um relacionamento estável, nunca sofri agressões físicas e tenho acesso a
maioria dos direitos básicos como educação, saúde e lazer.
Ser trans é um desafio constante, olhando para o Brasil fica ainda mais nítido a guerra que
enfrentamos pela nossa liberdade, há dez anos nosso país lidera o ranking de homicídios da população
trans em todo o mundo, justificados por uma política de extermínio com base em períodos históricos
de violência no país, como a escravidão e o regime ditatorial (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019).
Essa marginalização social para com a comunidade trans ocorre desde a ignorância em relação
aos conceitos e termos corretos a serem utilizados para fazer referências aos nossos corpos, tanto

460
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a mídia quanto o senso comum deslegitimam nossas identidades, como também nossos nomes e
pronomes (SALEIRO, 2013).
Dessa forma, dificilmente você vai encontrar uma pessoa trans trabalhando com dignidade
em muitos espaços, embora algumas empresas tenham programas para contratação da comunidade
LGBTQIA+, existe uma categorização do que será bom ou ruim para a empresa em termos de imagem
que são, em sua maioria, regidas pelo capitalismo de vigilância.
Portanto, sendo eu um homem-trans branco que tem aparência de um homem-cis, consigo ter
passibilidade nos espaços que frequento, e essa pode ter sido uma das razões para que obtivesse êxito
na minha procura por trabalho, ainda que as pessoas saibam que eu sou trans, existe um mínimo de
tolerância pois eu atendo aos mínimos padrões.
Segundo Mendonça (2015, p.26), “[...] ao fugir deste padrão, o indivíduo, dificilmente será
aceito em todos os grupos sociais, pois rompe com uma identidade 8hegemônica.” Ou seja, quanto
mais o indivíduo for diferente da heteronormatividade menos acesso terá aos seus direitos básicos.
Nessa perspectiva, pouco se fala em políticas públicas de inclusão para a comunidade trans, a
maiorias das ações são na área da saúde e segurança pública, de forma que estas ainda são falhas, mas
para a inserção no mercado de trabalho ainda somos exceções, Luma Nogueira de Andrade foi a
primeira travesti a conseguir o título de Doutora no Brasil e sua tese discutiu justamente a falta dessas
políticas efetivas de educação.
Com isso, começamos a entender que tanto a cultura de violência no Brasil, quanto as políticas
de omissão estatal constroem pilares para que os que estão à margem permaneçam invisíveis e em
condições de subsistência, pois Luma nos traz o exemplo de como a evasão escolar é gritante,
excluindo as possibilidades de formação com dignidade (ANDRADE,2012).
Porém, a Constituição brasileira é clara: todos têm direito à educação, à saúde e ao trabalho,
permitindo que as pessoas vivam de forma digna, com direitos iguais (BRASIL, 1988). Contudo,
basta olhar para o lado para perceber que, muitas vezes, essas garantias ficam apenas no papel quando
se trata da população t, pois na prática é negado o respeito.
A negação das nossas identidades já culminou em diversos episódios de constrangimento onde
somos impedidos de frequentar banheiros públicos, temos nossos nomes sociais ignorados e também
atendimento médico negado; a controvérsia estatal é gritante no que tange o cumprimento da
Carta Magna.
461
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Observamos que a cultura patriarcalista se espalhou ditando a que parâmetros e em que
condições os prazeres, as identidades e a sexualidade como um todo devem ser socialmente aceitos,
uma vez que “[...] a causa do sexo — de sua liberdade, do seu conhecimento e do direito de falar dele
— encontra-se, com toda legitimidade, ligada às honras de uma causa política” (FOUCALT, 1988,
p.11).

Dessa forma, percebemos que essa política de desumanização contribui, até os dias atuais,
para que cada vez menos as pessoas que destoam do padrão cis-hétero-branco-cristão tenham acesso
aos espaços de emprego e demais locais de socialização. Embora muitas ações tenham sido positivas
em favor da liberdade de identidade e sexualidade, a violência continua sendo a principal política
oferecida (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019).
Grande parte do sofrimento na transexualidade advém do fato de perceber-se fora do padrão
cis. Não são as características biológicas macho/fêmea que predeterminam a identificação com as
categorias homem/mulher, construídas sócio-historicamente. O sofrimento desse “não-
pertencimento” se intensifica a partir das ações da sociedade, guiados por um sistema de crenças e
normas, que acabam por negar à comunidade a autonomia de sua construção identitária
(GASPODINI, 2013).
Somente no ano de 2018 a Organização Mundial de Saúde reconheceu que a transexualidade
não é um transtorno comportamental, e retirou o termo “transexualismo” do seu rol de doenças,
definindo a transexualidade apenas como “incongruência de gênero”, um avanço significativo na luta
contra a transfobia, mas pequeno e ainda muito recente para ter um impacto significativo nos índices
contra a violência (ONU, 2019).
Assim, não é difícil encontrar travestis e transexuais nas ruas das grandes capitais recorrendo
a prostituição como emprego, ainda segundo a ANTRA, estima-se que cerca de 90% da comunidade
trans recorre a essa vala de escape para sobrevivência, embora estas também sejam agredidas por seus
clientes, esse ainda é o meio que lhes permitem sobreviver (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019).
Vivendo em condições que não facilitam a inserção no mercado de trabalho ou, até mesmo, a
possibilidade de frequentar cursos profissionalizantes, a comunidade trans, muitas vezes, não têm
opção, senão a de procurar meios de sustento na prostituição, que é, por si só, uma profissão
marginalizada que coisifica as pessoas que a ela recorrem para sobreviver (PEREIRA; GOMES,
2017).
462
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para Freud (1905) a sexualidade é algo constituinte e estruturador do sujeito, tal afirmativa
nos explica que quando essa sexualidade é frustrada, corrompida e/ou negligenciada são grandes as
chances desse sujeito replicar essas frustrações dando lugar ao ódio e a intolerância, evidenciando a
importância de políticas públicas em favor da diversidade como antídoto para essas violências.

A cultura em que o sujeito está inserido é o que produzirá sua sexualidade. Baseia-se no
momento histórico em que está inserido, nos laços familiares, na escola e nos demais espaços
sociais. Portanto a sexualidade humana é uma invenção social, histórica e cultural, que se
constitui através dos discursos que normatizam e instauram saberes, que produzem verdades
(BRASIL, 2014, p. 17).

Questões de sexualidade e identidade de gênero, embora sejam distintas, se completam


quando o assunto é liberdade e intolerância; os caminhos para lidar com a opressão das orientações
sexuais também perpassam pela figura da descoberta da identidade do sujeito, ou seja, eu preciso
entender quem eu sou para assim entender do que eu gosto e vice/versa.
Desse modo, quando o sujeito é excluído socialmente por se entender diferente do que cobra
o modelo eurocêntrico, este não está sendo somente oprimido, mas com sua exclusão o sis(cis)tema
obtém êxito na sua política de apagamento do “anormal” e “indesejado”, como prega o cis-
heteronormativismo (SALEIRO, 2013).
Logo, se a comunidade trans não é inserida nos espaços sociais, tampouco participará do
processo de desconstrução desses estigmas entre as outras identidades; para inserção efetiva da
diversidade é necessário levantar esse debate em todas as esferas públicas e privadas, pois nós
estamos presentes em todos os lugares, mas, infelizmente, invisíveis e silenciados ainda.

A INTERSECÇÃO ENTRE O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO TRANS E A


NECROPOLÍTICA
Entendemos que, pelo elevado número de vítimas que acarreta e pela magnitude de sequelas
orgânicas e emocionais que produz, a violência configura-se no século XXI como um problema de
graves consequências, e quando trazemos recortes, a amplitude é ainda mais assustadora; os dados
supracitados pela ANTRA em 2019 revelam a ascensão de tais práticas para com a população
LGBTQIA+.

463
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Segundo Achille Mbembe (2018), “a expressão máxima da soberania reside, em grande
medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, em outras palavras,
a opressão não se resume a uma única atitude, mas sim várias camadas e diferentes formas de
violências organizadas pelos detentores do Capital.
Dessa forma, observamos que as noções de necropolítica, cunhadas por Mbembe (2018), se
encaixam na falta de políticas públicas do nosso país, o que é entendido como uma manobra de
apagamento e exclusão em relação as minorias marginalizadas, submetidas a condições de
menosprezo e, literalmente, são deixadas para morrer pelo descaso estatal.
Confinados nesse terreno de brutalidade genérica, concordamos com o pensamento de que o
poder em tempos pós-coloniais assume a forma de necropolítica, já que preconiza como bandeira a
morte daquele que não é capaz de se enquadrar dentro de suas normativas manipuladoras e
prescritivas.
Assim, a fetichização e fragmentação do corpo trans que a moral, a política e a sociedade
diagnosticam, catalogam e ditam como estranho e plausível a homicídios (literais e metafóricos), que
na maioria das vezes são caracterizados pela impunidade do agressor, percebe-se o efeito da
transfobia e o terrorismo sofrido, através de diversos dispositivos de violência e abandono.

A necropolítica trans é compreendida como uma engrenagem social, cultural e simbólica que
produz outros códigos gramaticais e interações sociais por meio da gestão da morte e a
invisibilização. Ditos termos formam parte de uma taxonomia discursiva que busca despir a
complexidade do tecido criminal no contexto cisnormativo, e suas conexões com a
globalização, a construção binaria do gênero como performance política e a criação de
subjetividades capitalistas, recolonizadas pela economia e representadas pelas pessoas trans
(CARAVA-MORERA; PADILHA, 2018, p. 08).

O pós-colonialismo não trouxe esperança para as minorias, apenas as colocou na ilegalidade


e subalternidade; um projeto fraudulento de meritocracia foi implementado para velar toda violência
e invisibilidade que o capitalismo ofereceu como moeda de troca para toda a exploração resultante
desse sistema.
Os mecanismos de implantação da necropolítica são estratégicos, se apropriam do saber e dos
discursos distorcidos de uma época que os considerou como verdadeiros - o necropoder interage com
o saber e simultaneamente o constitui na mesma medida, pertencem ao saber e ao poder
(CARAVA-MORERA; PADILHA 2018).

464
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Com isso, o poder necropolítico é a rede que se estabelece entre esses elementos que não só
declaram a morte e a invisibilidade das identidades trans, mas também que perpetuam atos que
ajudam a segregar o reconhecimento de sua identidade em aquelas pessoas que lutam por sobreviver
e recusam a morrer.
Assim, a luta por sobreviver acaba se resumindo a andar em círculos, já que estamos lutando
não contra um problema, mas contra um sistema estruturado por uma política completamente objetiva
que vai desde fazer piada com nossas subjetividades até nos matar de todas as formas possíveis para
que ainda que “vivos” nós não sejamos reconhecidos como sujeitos de direito.

Vemos no referencial da necropolítica associado à interseccionalidade (articulação e análise


dos sistemas de dominação e privilégios históricos em termos de raça, classe, sexualidade e
gênero) como uma ferramenta potencial para explorar as possibilidades de acionar o político
contra a violência estrutural, sistemática e institucionalizada e, as inequidades atuais, pois
nos provê de uma visão da co-presença simbiótica entre vida e morte [...] (CARAVA-
MORERA; PADILHA, 2018, p. 09).

Percebemos que essa articulação é necessária para atender e suavizar os diversos estigmas, a
exemplo do estigma público, o auto-estigma e o estigma estrutural, que associam uma pessoa trans
com outras variáveis, tais como religião, raça, etnia, deficiência física, imigração, sexo-serviço,
homossexualidade, lesbianeidade, bissexualidade, pansexualidade, reclusão penal (ou exclusão
penal), pobreza e baixa escolaridade.
Por isso, embora conquistar direitos seja plenamente importante e necessário, devemos
observar que sem uma fiscalização e um acompanhamento pedagógico as leis não chegarão à
sociedade com a eficácia, tão pouco passarão segurança nesse desmonte que vêm enfrentando.
Segundo Oliveira (et al. 2015, p. 203) “as empresas precisam se abrir a políticas que
viabilizem a inclusão das travestis e transexuais em seus quadros de funcionários, bem como sua
ascensão organizacional”, e de fato precisam se abrir com o intuito de promover dignidade a nós,
como uma contra política da morte.
Somente com as instituições públicas e privadas estiverem dispostas a trabalhar para
transformar esse sistema e extinguir essa política de morte poderemos a ter esperança de paz e
conforto, enquanto a necropolítica for a saída para nos manter longe do social, jamais estaremos
seguros, seguras e segures.

465
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O SILENCIAMENTO INSTITUCIONAL PARA COM A COMUNIDADE TRANS
A existência de uma pessoa trans é por si só um ato político, e por isso tanto nos afeta a
negação de nossa identidade e tanto nos prejudica quando somos apagados e reduzidos a estatísticas,
os números têm nomes e tinham sonhos que foram destruídos pelo preconceito, o peso de eu ter um
cargo institucional na cidade onde moro trouxe os olhos para esse debate na minha região.
Em março de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou que, pela Lei Eleitoral,
mulheres transexuais e travestis podem concorrer a cargos eletivos na cota destinada ao sexo feminino
e os homens trans nas vagas para o sexo masculino. Ainda em março, os membros do Supremo
Tribunal Federal (STF) autorizaram que transexuais e transgêneros alterem o nome no registro civil
sem a realização de cirurgias (BRASIL,2018)
Todavia, devemos comemorar essas pequenas vitórias lembrando que o direito sempre deixou
lacunas quanto ao respeito a diversidade e às subjetividades dos sujeitos, uma vez que posterga essas
resoluções e é moroso para as investigações, a ANTRA relata que apenas 7% dos homicídios de
pessoas trans são investigados e quase nunca respeitam o nome social e a identidade de gênero da
vítima.
Na contramão das medidas positivas, o Estado fomenta o discurso hegemônico da supremacia
branca, hétero e cristã, e pouco se fala em representatividade nas nossas casas legislativas e menos
ainda nos cargos do executivo, pelo contrário, os projetos de lei que tramitaram na câmara dos
deputados sobre identidade de gênero tratavam da criminalização desta.

Questões que perpassam todo o Direito Civil Brasileiro permanecem omissas mesmo frente
à plena existência da transexualidade na sociedade brasileira contemporânea que ainda não
buscou efetivar totalmente os direitos dos transexuais brasileiros, que ainda padecem de um
preconceito arraigado na sociedade que fecha os olhos para uma realidade gritante (VEIGA,
2016, p. 12).

Direitos básicos como o registro civil, a alteração do prenome, a identidade social, o


casamento, a união estável, a filiação, o direito de constituir família entre outras questões continuam
ignoradas sem qualquer respaldo legal positivado para solucionar casos advindos da realidade social
contemporânea brasileira (VEIGA,2016).
Ainda não somos reconhecidos plenamente pelo Estado, tendo em vista que persiste a
necessidade de inúmeras políticas públicas para que alcancemos a equiparação social aos

466
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
cisgêneros, principalmente no mercado de trabalho, ou seja, a igualdade material/social está longe de
ser concretizada.
Nos hospitais, inclusive os credenciados pelo SUS, transhomens não são respeitados com seu
nome social conforme estabelece a legislação. Poucos frequentam ginecologistas ou psicoterapeutas
particulares, porque estes não estão preparados/as para recebê-los; o que prejudica em vários níveis a
saúde mental e física dessas pessoas (NERY; FILHO, 2013).
Devemos entender que existe uma matriz heterossexual que atua de forma compulsória,
constituindo não somente o que é normal, mas também as identidades e as possibilidades de existência
do que pode ser considerado anormal, dessa forma essa matriz atua no apagamento do dito anormal
com violências que acarretam a invisibilidade das nossas identidades (BUTLER, 2010).
Assim, o apagamento de indivíduos trans que não tem sua dignidade resguardada pelo Estado
em razão da omissão legal, cominada com a inércia do judiciário no que se refere a proteger direitos
não positivados, continua sendo a verdadeira política pública apresentada e eficaz; nada poderia ser
tão frustrante em um mundo pós-moderno como a falta da liberdade de pertencer a si mesmo.
De fato, João W. Nery, foi vítima de um preconceito e ignorância social que lhe causou
problemas desnecessários pelo fato de lutar pelo direito de pertencer a si mesmo, assim, verifica-se
que o primeiro transhomem do Brasil perdeu uma vida social em busca de adquirir, a um preço
extremamente exorbitante, uma identidade real (VEIGA,2016).
Com isso, a família é o espaço de relações sociais mais fortemente reprodutor de sofrimento,
sobretudo se muito religiosa, utilizando-se do pecado e da culpa para condená-los. Cito, entre as
atrocidades cometidas, o “estupro corretivo” 20, inclusive com participação de familiares, como
forma de “tratamento” (NERY; FILHO, 2013).
Portanto, a abominação e todas as condenações que sofremos reverbera em toda nossa
construção como sujeito, de modo a desorientar o que conhecemos e nos levar a um caminho de
solidão dor e muitas incompreensões; um “estupro corretivo” jamais é o que esperamos dos que dizem
nos amar, muito menos é o que merecemos.
Argumentos embasados em achismos e más interpretações de antigos escritos, como a bíblia,
se quer deveriam bastar quanto mais receber a institucionalização presente nos dias atuais com
parlamentares que defendem “cura gay” entre tantos outros absurdos que negam nossas
existências e proliferam violências veladas.

467
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Posterior a discussão do tema, notamos que a partir da problemática “como os discursos de
poder silenciam e contribuem para a marginalização de corpos transgêneros/travestis e/ou
transexuais?”, podemos compreender que os discursos de poder adotados pelas instituições são o fator
primário para as opressões quanto às identidades e subjetividades das pessoas trans.
Em seguida, na seção “A marginalização e subalternização de corpos trans nos espaços
sociais”, percebemos que a falta de oportunidade tanto de formação, quanto de emprego colocam as
pessoas trans num estado crítico de vulnerabilidade e isolamento social por não se enquadrarem no
dito como normal.
Dando seguimento, a seção “A intersecção entre o genocídio da população trans e a
necropolítica” entendemos como o Estado trata de tudo que destoa do padrão eurocêntrico; a chamada
“política da morte” tem sido o único programa eficaz oferecido às pessoas trans para nos manter longe
dos espaços sociais de todas as formas possíveis.
Por fim, na seção “O silenciamento institucional para com a comunidade trans”, percebemos
como a omissão estatal alimenta esse discurso hegemônico trazido pela colonização que ignora a
individualidade dos seres em busca de cada vez mais poder, pontuando a morosidade das nossas
autoridades em legislar, julgar e executar políticas públicas efetivas para a população trans.
Existem alguns e tímidos esforços por conseguir uma saída à situação do reconhecimento dos
direitos humanos daqueles que se identificam dentro do espectro trans, mas ao mesmo tempo
permanece latente o temor de ressignificar estruturas históricas sociais e jurídicas amplamente
consolidadas, tais como as instituições do sexo, corpo, gênero, sexualidade.
Estar empregado hoje fez de mim uma pessoa com perspectivas e dignidade, alguém que tem
o que esperar da vida e pretende conquistar todos os horizontes que conseguir, pensar que direitos
básicos são tidos como privilégios é desanimador e desumano; nossas diferenças e subjetividades
fazem de nós o que somos e isso jamais deve ser passível de morte e/ou qualquer outra violência.

REFERÊNCIAS

468
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento ou resistência à ordem
normativa. Fortaleza, 2012. 279f. Tese de Doutorado – Universidade Federal do Ceará, Programa de
Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 2012.

BENEVIDES, Bruna G; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. [Dossiê (2019)]. Dossiê dos
assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo, SP:
Expressão Popular, ANTRA, IBTE [2020]. Disponível em:
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-
contra-pessoas-trans-em-2019.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. 2018. TSE Aprova o Uso do Nome Social de Candidatos na
Urna. Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Marco/tse-aprova-uso-do-
nome-social-de-candidatos-na-urna. Acesso em: 13 jul, 2020.

BRASIL, Márcio Moreira. Sexualidade, Adolescência e Escola: Implicações n@ Internet e a


Orientação Sexual. 2014. Monografia. Especialização Fundamentos da Educação: Práticas
Pedagógicas Interdisciplinares, Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa, 2014.

BRASIL. [Constituição (1988)] Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília-


DF: Senado, 1988.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade do saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.

FREUD, S. (1905). Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard, 1987.

GASPODINI, Icaro Bonamigo. Transcrianças em Sofrimento Dispensável. História Agora, dossiê


(In) Visibilidade Trans 1, São Paulo, v.1, n. 15, p. 84-100, 2013.

GIL, Antônio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MENDONÇA, Roberta. Pensar o Outro e a Diversidade humana: Interseções entre Emmanuel


Levinas e Judith Butler. Caruaru, 2015. 61 f. Trabalho de Conlusão de Curso - Centro Universitário
do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP/DeVry, Bacharelado em Direito, Caruaru (PE), 2015.

NERY, João Walter; FLHO, Eduardo M. A. Maranhão. Transhomens no ciberespaço: micropolíticas


das resistências. História Agora, dossiê (In) Visibilidade Trans 1, São Paulo, v.1, n. 15, p. 139-162,
2013.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.


1.ed. N-1edições, Minas Gerais: Biblioteca Universitária, 2018.

469
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CARAVACA-MORERA, Jaime Alonso; PADILHA, Maria Itayra. Necropolítica trans: diálogos
sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto contexto -
enferm., Florianópolis , v. 27, n. 2, 2018 .

RONDAS, Lincoln de Oliveira; MACHADO, Lucília Regina de Souza. Inserção profissional de


travestis no mundo do trabalho: das estratégias pessoais às políticas de inclusão. Pesquisas e
Práticas Psicossociais, São João Del-rei, p. 192-205, jan/jun. 2018.

Organização das Nações Unidas. 2019. OMS retira a transexualidade da lista de doenças mentais.
Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-retira-a-transexualidade-da-lista-de-
doencasmentais/#:~:text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial%20da%20Sa%C3%BA
de,lhes%20foi%20atribu%C3%ADdo%20no%20nascimento. Acesso em: 14 ago, 2020.

PEREIRA, Fábio Queiroz; GOMES, Jordhana Maria Costa. Pobreza e Gênero: a marginalização de
travestis e transexuais pelo direito. Revista Direitos Fundamentais e Democracia., v. 22, n. 2,
p.210-224, mai./ago. 2017.

SANTOS, Fernanda Marsaro dos. Análise de Conteúdo: a visão de Laurence Bardin. Resenha de:
[Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011, 229p.] Revista de Educação. São
Carlos, SP: UFSCar, v.6, n.1, p.383-387, maio 2012.

SALEIRO, Sandra Palma. Trans géneros: uma abordagem sociológica da diversidade de género.
Lisboa: ISCTE-IUL, 2013. 412f. Tese de Doutorado – Instituto Universitário de Lisboa,
Departamento de Sociologia. Lisboa, 2013.

VEIGA JR., Hélio. O direito de pertencer a si mesmo: a despatologização do transexualismo e a


regulamentação jurídica como um direito fundamental ao gênero. 2016. 161f. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Franca, 2016.

470
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DIVERSIDADE SEXUAL, DIREITO E RELIGIÃO CRISTÃ: UMA DISCUSSÃO
NECESSÁRIA NO COMBATE AO FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Alana Taíse Castro Sartori229


Noli Bernardo Hahn230

Resumo: Este trabalho possui como temática a diversidade sexual, o Direito e a Religião. Questiona-se acerca da
possibilidade de relacionar o Direito e a Religião de forma a proporcionar a emancipação e a dignidade das pessoas com
gêneros ou orientações sexuais diferentes do padrão binário macho-fêmea e do padrão heteronormativo. O objetivo
consiste em demonstrar como diferentes formas de interpretação dos escritos bíblicos podem fundamentar tanto discursos
discriminatórios quanto discursos emancipadores e de reconhecimento, e, neste sentido, como um discurso religioso
emancipador incentiva a diversidade sexual e influencia de forma positiva os direitos à diversidade sexual. O método
utilizado é dedutivo, com abordagem complexo-paradoxal e pesquisa em fontes indiretas, predominantemente, em fontes
de estudos da Bíblia. O trabalho subdivide-se em três tópicos, sendo que o primeiro apresenta as relações entre diversidade
sexual e Religião, o segundo demonstra como uma interpertação bíblica pode incentivar a diversidade sexual e o terceiro,
indica possíveis influências positivas da leitura bíblica libertária para os direitos que reconhecem e promovem o respeito
às diversidades sexuais.

Palavras-chave: Diversidade Sexual; Direito; Religião; Fundamentalismo Religioso; Bíblia.

INTRODUÇÃO
Diversidade sexual, Direito231 e Religião232 não são temas frequentemente discutidos de forma
interconectada no espaço acadêmico brasileiro. Muito disto deve-se ao fato de que há uma
compreensão firmada no sentido de que a Religião é um mecanismo castrador de corpos e desejos, e,
portanto, tratate-se de um campo de discussão que se afasta dos direitos que objetivam o
reconhecimento e o tratamento igualitário aos diversos gêneros e orientações sexuais. Assim, a

229
Mestranda e bacharela em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI,
campus de Santo Ângelo. Bolsista CAPES, na modalidade PROSUC/TAXA. Membro do grupo de pesquisa
vinculado ao CNPq “Novos Direitos em Sociedades Complexas”. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6015-7371.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3072936815192617. E-mail para contato: alanatcs.adv@gmail.com
230
Pós-doutor pela Faculdades EST. Doutor em Ciências da Religião, Ciências Sociais e Religião, pela UMESP.
Professor Tempo Integral da URI, Campus de Santo Ângelo. Graduado em Filosofia e Teologia. Possui formação
em Direito. Integra o Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado em
Direito. Lidera, junto com o professor Dr. André Leonardo Copetti Santos, o Grupo de Pesquisa Novos Direitos em
Sociedades Complexas, vinculado à Linha 1, Direito e Multiculturalismo, do PPG Mestrado e Doutorado em Direito
da URI. Pesquisa temas relacionando Gênero, Direito, Cultura e Religião. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2637-
5321. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4888480291223483. E-mail: nolihahn@san.uri.br
231
Utiliza-se o termo Direito com inicial maiúscula quando se refere ao ramo de conhecimento da ciência jurídica.
Quanto se referir às garantias que protegem os seres humanos contra poderes arbitrários e lesivos, utiliza-se o termo
direito com inicial minúscula.
232
Da mesma forma, utiliza-se Religião com inicial maiúscula por se referir ao ramo do conhecimento do saber
religioso. Quando se referir ao sentimento espirituoso, utiliza-se o termo religiosidade.
471
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Religião fica restrita a um espaço de misticismo e fundamentalismos e permanece multilada de sua
força revolucionária e libertadora.
Não obstante, na medida em que posturas fundamentalistas afirmam ter Deus a seu favor,
revestem-se de legitimidade transcedental para propagar discursos de ódio e de intolerância contra
determinados segmentos sociais, coletividades e individualidades que divergem do padrão
institucionalizado pela Igreja. É importante, neste sentido, demonstrar através de um estudo crítico e
científico da Religião, que a vontade de Deus pode não estar a favor dos fundamentalismos, e isto
pode promover uma mudança exponencial nas estruturas rígidas de pensamento que condenam as
diferenças e a multiculturalidade.
Assim sendo, esta pesquisa possui como tema gênero, Direito e Religião. Seu objetivo é
interligar estes três elementos a fim de possibilitar um vislumbre acerca do caráter de
complementariedade que promove a emancipação e a libertação dos pensamentos fundamentalistas
que condenam diversidades de gênero. Pode-se definir a pergunta que norteia esta pesquisa como: é
possível conectar diversidade sexual, Direito e Religião de uma forma positiva, no sentido de
promover o reconhecimento, os direitos e a dignidade dos diversos gêneros e orientações sexuais?
Importante que a vertente religiosa a ser discutida no trabalho é a advinda do Catolicismo
Apostólico Romano que, inclusive, comporta o Catolicismo contemporâneo e os ramos do
Protestantismo. Neste contexto, a hipótese que se busca comprovar com a pesquisa é de que os
escritos sagrados destas Religiões não condenam a diversidade sexual e, a partir desta compreensão,
é possível promover ações e ideias que reascendam a potência libertária da Religião para que ela atue
como mecanismo de emancipação, reconhecimento e luta por direitos.
Em termos metodológicos, a pesquisa baseia-se em uma abordagem metodológica complexo-
paradoxal. A complexidade e a paradoxalidade se evidenciam não como uma redução a apenas uma
abordagem, mas sim a aplicação de abordagens diversas, mesclando análise, interpretação e dialética
a fim de construir uma rede de relações que possibilitam a formação de uma racionalidade ecológica,
ou seja, que estimule uma praxis de bem viver. As fontes consultadas são predominantemente
indiretas, advindas de bibliografias específicas. O texto subdivide-se em três momentos: o primeiro
momento aborda a relação entre diversidade sexual e Religião, o segundo, desmistifica os
fundamentalismos religiosos com base nas escrituras bíblicas e, o terceiro, relaciona de forma
positiva o Direito, a Religião e a Diversidade Sexual.

472
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ENTRELAÇANDO DIVERSIDADE SEXUAL E RELIGIÃO

Uma discussão diversidade sexual e religião é delicada, principalmente porque algumas destas
questões se apresentam como tabus ou fundamentalismos para o meio público. Ao resgatar estes
termos - que também compreendem categorias de compreensão - para a seara de uma discussão
científica, se requer também uma sensibilidade, a fim de demonstrar alguns elementos que compõem
os conceitos de cada um destes termos. Importante que, neste trabalho, em referência ao pensamento
complexo e paradoxal de Edgar Morin (2007), não se definem conceitos fechados. Em virtude da
complexidade do mundo e devido ao fato de que conceitos últimos e absolutos podem promover
multilações em formas de ser e de viver, mantém-se, através da abertura conceitual, um campo teórico
que aceita incertezas, aceita outros elementos de composição dos conceitos e, consequentemente,
incentiva a diversidade das formas de ser e de bem viver. Assim, tendo estas premissas como base
para a construção da lógica do pensamento aqui exposto, é possível identificar alguns elementos que
compõem os conceitos dos termos: diversidade sexual e Religião.
Diversidade sexual é uma temática ampla, que compreende formas de ser e de reconhecer sua
sexualidade, e formas de ser e se sentir identificado com alguma sexualidade. Nesta senda, termos
como gênero e orientação sexual são importantes, e compreendem elementos da diversidade sexual.
Gênero, historicamente, foi concebido a partir de um padrão binário macho-fêmea, que se distingue
a partir da fisionomia biológica, mais precisamente, da genitália. Como menciona Cardoso, gênero
se refere a “algo singular e não-plural, a medida de masculinidade e feminilidade, com duas
dimensões como os dois lados de uma mesma moeda que irão estruturar categorias como masculino,
feminino ou andrógino” (2008, p. 69). Hodiernamente, para se referir a este padrão binário macho-
fêmea utilizam-se categorias de compreensão como sexo biológico. Cardoso (2008), explicita em
seus estudos três categorias de gênero: macho, fêmea ou andrógino, este último que se situaria em
um campo entre a masculinidade e a feminilidade. Todavia, como a categoria gênero abrange uma
identidade própria de cada sujeito, compreende-se que podem existir as mais diversas variações, para
além destes três explicados pelo autor. À luz de uma teoria complexa e paradoxal, neste estudo
compreende-se gênero como uma identidade – dentidade de gênero - e um campo amplo, sujeito

473
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a diversas manifestações de identidades que tem relação não apenas com as sexualidades, mas
também com os modos de ser, de viver e de se reconhecer enquanto indivíduo.
Se, por um lado, a categoria de gênero indica uma imprecisão teórica acerca de suas definições
exatas, a categoria orientação sexual possui contornos mais bem definidos, apesar de também não
compôr uma classe de conceitos fechados e absolutos. Por orientação sexual é possível identificar
que “Na maioria das vezes, esse conceito está relacionado ao sentido do desejo sexual” (CARDOSO,
2008, p. 73). Utiliza-se esta concepção para explicar a orientação sexual para fins deste estudo: trata-
se do desejo afetivo-sexual para com o outro, sendo que ambos nesta relação podem expressar as
mais variadas identidades de gênero.
Por fim, quanto à explicação acerca do conceito de Religião, se adotam conceitos mais
precisos. Isto porque se faz necessário limitar a amplitude do estudo a determinadas relações,
firmadas em determinadas instituições e campos sociais. Assim, Religião, neste estudo, possui um
caráter de institucionalização da fé, das crenças e de ensinamentos tradicionais. Conforme apreende-
se dos escritos de Gianni Vattimo (1998), a Religião pode adquirir sentidos diferentes, de acordo com
os elementos que compõem a sua compreensão e amplitude. O autor utiliza esta terminologia para se
referir à fé institucionalizada em um órgão burocrático e hierárquico, como é o caso das Igrejas
Medievais, Modernas e Contemporâneas. Recorrendo-se a mais uma especificação do campo a ser
estudado como Religião, utiliza-se neste estudo a Religião institucionalizada a partir da vertente
Cristã Apostólica Romana, que compreende o catolicismo ocidental e as ramificações do
protestantismo (evangélicos, luteranos, etc).
Tendo definido os contornos das categorias que servem de base para este estudo, é possível
identificar seus entrelaçamentos, suas relações. Sabe-se que as sexualidades são abordadas como
tabus sociais principalmente pelo domínio da Igreja Cristã no período Medieval. Na Idade Média
(séculos X ao XV), o controle das populações era exercido predminantemente pela instituição
eclesiástica – a Igreja Cristã. Isto se deve, principalmente, pela influência anterior exercida pelo
Império Romano, antes de sua queda. O Império Romano, na figura do imperador Constantino
(aproximadamente a partir de seu reinado em 306 a.C), reconheceu o cristianismo, que até então era
um culto marginalizado, como Religião oficial, pois viu nele um instrumento interessante para
subjugar os demais povos e submetê-los ao seu domínio (VATTIMO; DE CAPUTO, 2010). A
política de expansão e conquista dos romanos internalizou-se no seio da institucionalização do

474
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
cristianismo e, assim, a Igreja Cristã alicerça-se em ideais hegemônicos, de domínio e de
padronização de culturas, corpos e vontades à seus estereótipos.
Um dos mecanismos utilizados pela Igreja Cristã para o controle e a homogenização de corpos
e vontades é o controle da sexualidade. Este controle se dá através de rescursos linguísticos e
ideológicos, baseados no pecado, no inferno e na vontade de Deus. O pensamento popular da época
pressionava os corpos, os desejos e as subjetividades humanas a um processo de padronização,
impulsionado pelo medo de sofrer represálias de um poder divino e transcedental. Nesta época, os
únicos gêneros reconhecidos eram o feminino e o masculino, sendo o feminino o gênero perverso,
desviante e imoral. O feminino era considerado vetor do prazer sexual e, portanto, do pecado carnal,
sendo severamente reprimido pelas instâncias de poder da Igreja. Apesar dos grandes avanços
conquistados após o término do período medieval, no que se refere à questões de gênero e à liberdade
sexual, persistem até os dias atuais no imaginário popular estas influências religiosas repressivas
(RICHARDS, 1993). E estas influências fazem, muitas vezes, surgir no seio institucional das Igrejas,
discursos que fomentam práticas discriminatórias e violentas.
Outro possível fator que auxilia a perpetuação de discursos e práticas repressivas de gênero e
sexualidade na Religião é a cultura patriarcal. Historicamente, o cristianismo se firma como uma
Religião institucionalizada em culturas de contexto extremamente patriarcalistas e repressivas a
outras identidades de gênero. O patriarcalismo pode ser entendido como uma cultura que constrói
discursos e práticas de supervalorização do sexo masculino e submissão do sexo feminino. Para a
cultura patriarcal, existem apenas estas duas identidades de gênero, e elas são definidas a partir da
biologia do corpo, da genitália (RICHARDS, 1993).
É importante compreender que os discursos e práticas das Religiões Cristãs, tanto a
Apostólico Romana quanto o Protestantismo, foram idealizadas inicialmente em momentos históricos
e contextuais onde o controle social sobre os corpos dos indivíduos e a cultura patriarcal estava em
ascenção. Desta forma, apesar de haverem mudanças culturais e sociais que fizeram emergir diversas
identidades de gênero e manifestações pela liberdade sexual, o discurso de muitas Igrejas destas
Religiões permanece vinculado com os contextos sociais e ideológicos originários. Isto ocorre
basicamente porque a racionalidade por detrás do pensamento teológico tradicional é centrada na
figura do divino, de onde provém tudo que é bom e correto. Por de tratar de um fundamento
transcedental, o divino não erra, não mente, pois ele não é humano, é superior ao ser humano e é

475
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a manifestação de tudo aquilo que é correto. Assim, o ensinamento advindo do fundamento de
pensamento teológico transcedental é metafísico, no sentido de ser absolutamente verdadeiro
aplicável a todas as épocas e contextos, sem acompanhar o ritmo de modificação das sociedades
(VATTIMO, 2016).
Então, neste contexto, gênero, orientação sexual e Religião estão relacionados,
principalmente, de forma que a Religião exerce uma pressão ideológica sobre os padrões de gênero e
sexualidade, que impõe a estes regras morais de controle sobre os desejos, subjetividades e diferenças.
Mesmo a Religião estando adstrita a um espaço de discussão privada – ou seja, ela não deve ser
utilizada como fundamento para políticas, decisões ou leis que no modelo de Estado Democrático de
Direito são responsáveis pelo governo da vida pública – ela exerce pressão moral e tradicional sobre
os corpos das pessoas, que escapa do poder regulamentador do Estado, e acaba criando um
movimento de marginalização, discriminação, segregação e violência contra as identidades de gênero
e orientações sexuais que a Igreja condena como pecado. Este movimento se dá no campo das relações
sociais regidas pela moral, pelo costume e pela tradição e, mesmo havendo legislações que garantam
a dignidade e o respeito a todas as diferenças, culturalmente se institui o contrário (FURLANI, 2011).
Em casos mais radicais, o discuso tradicionalista religioso interfere, inclusive, na seara pública, dos
governos e das leis, atuando como força que impede o reconhecimento e o respeito às diversidades.
Isto se evidencia, principalmente, pela formação de uma Bancada Religiosa no Congresso Nacional
Brasileiro, que possuem muitas tentativas de legalizar por meio da força do Estado, dogmas religiosos
(DIP, 2018).
É interessante pensar, de acordo com Furlani (2011), é extremamente necessária na sociedade
brasileira a discussão pública de questões de gênero e orientação sexual. Esta necessidade se dá tanto
por um objetivo educacional de saúde, quanto por um objetivo de incentivar o respeito às diversidades
a partir da compreensão e da desmistificação destas categorias. Entretanto, existem várias formas de
aborgar o gênero e a sexualidade na esfera de discussão pública, e uma destas formas é a
tradicionalista religiosa ou radical religiosa. Para a autora, esta abordagem é caracterizada pelo apelo
a interpretações bíblicas literais “usando o discurso religioso como uma “incontestável verdade” na
determinação das representações acerca da sexualidade “normal”” (FURLANI, 2011, p. 16). Dentre
os descritos bíblicos que podem ser utilizados por esta abordagem, é possível citar a história de

476
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sodoma233, onde se interpreta que a homossexualidade e as práticas sexuais livres levaram Deus a se
vingar da humanidade, destruindo a famosa cidade bíblica e toda sua população. Outra passagem
famosa é “Não te deitarás com um homem como se fosse mulher: isso é abominação”234 (LV, 18:22),
ou “Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometem uma coisa
abominável. Serão punidos de morte e levarão a culpa”235 (LV, 20:13).
A partir destes trechos, parece extremamente difícil convencer os fundamentalistas religiosos
de que as identidades de gênero e as orientações sexuais devem ser respeitadas em toda sua
diversidade, tendo em vista que seus pensamentos estão moldados pela lógica de uma interpretação
bíblica literal e absoluta. Parece que a vontade de Deus interpretada da Bíblia está ao lado dos
fundamentalismos religiosos, e isto lhes garante legitimidade sobrenatural para propagar o ódio e a
discriminação. Entretanto, uma leitura fragmentada e descontextualizada pode tornar o texto mais
simples em instrumento utilizado pelas estruturas de poder e controle social. No tópico seguinte desta
pesquisa, se explica o que os estudos teológicos têm a dizer sobre gênero e sexualidade com base nas
interpretações bíblicas contextuais, e como ela representa um potencial libertário e emancipador – em
prol dos direitos de dignidade - que combatem os fundamentalismos religiosos em suas bases de
fundamenação.

DESMISTIFICANDO INTERPRETAÇÕES FUNDAMENTALISTAS DOS ESCRITOS


BÍBLICOS: O LEGADO RELIGIOSO DE RESPEITO À DIVERSIDADE

Para compreender como se abordam questões de gênero e sexualidade nos textos bíblicos é
necessário um parâmetro para sua leitura e interpretação. Ao se proceder uma leitura de qualquer
texto, há uma margem de interpretação, onde o sujeito que aprecia as palavras pode definir seus
sentidos e seus significados. Assim, podem haver casos em que o sentido e significado utilizados pelo
autor do texto são diferentes dos sentidos e significados interpretados pelo leitor do texto. Deniel
Helminiak (1998) explica que existem duas formas de ler a Bíblia: a leitura literal e a leitura
contextual. Uma leitura literal é uma leitura simples, que interpreta o sentido e significado das
palavras contidas nos textos bíblicos de acordo com a compreensão contemporânea delas. Isso

233
Ver Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 19, versículos 1 ao 11.
234
Ver Bíblia Sagrada, Levítico, capítulo 18, versículo 22.
235
Ver Bíblia Sagrada, Levítico, capítulo 20, versículo 13.

477
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
significa que, em uma leitura bíblica literal, os textos e ensinamentos estão de acordo com qualquer
realidade, indepentende de seu contexto cultural ou temporal. Significa que o sentido das palavras é
definido pelos significados incorporados na linguagem e no patromônio axiológico daqueles que
procedem a leitura.
Por outro lado, a leitura contextual é uma forma de ler a Bíblia de maneira mais complexa.
Helminiak (1998) explica que uma leitura contextualizada é aquela que busca compreender o sentido
das palavras com base nos significados que possuiam à época da escrita do texto. É também uma
leitura que precisa encontrar sentidos a partir da realidade social, economica, política e cultural da
época em que o texto foi escrito. Isto porque é necessário ter em mente que as culturas se modificam
através do tempo e do espaço, e os motivos que levaram a proteger determinados interesses não
permanecem inertes.
Ludwig von Mises (2010) ensina que tudo oque é posto em prática no mundo através de ações
humanas concretas é antes idealizado. No mundo das ideias, são formadas ideologias, bases de
legitimação e explicação dos motivos pelos quais determinada ação deve ser empreendida. Estes
motivos, historicamente, são definidos pela necessidade dos povos. Estas necessidades podem se dar
em vário campos, como educação, saúde, defesa do propriedade e da vida. Por outro lado, se as
necessidades dos povos se alteram, os motivos que levam tal ideia prevalecer também se modificam
e muitas ações deixam de ser coerentes com a realidade. Para Helminiak (1998) é isto que ocorre nos
fundamentalismos religiosos que compreendem a Bíblia através de uma leitura literal.
O contexto histórico, cultural e social da época em que a Bíblia foi escrita possuia diferenças
substancias com a era atual. Na sociedade hebraica originária, onde estes textos foram escritos, as
tribos organizavam-se em clãs, onde as crianças e os jovens submetiam-se à autoridade do pai que,
por sua vez, submetia-se também à autoridade de seu genitor, e assim sucessivamente. o pai mais
antigo era o grande líder da tribo, o patriarca. Todas as relações humanas se dava, portanto, tendo
como instituição base a família. Atualmente, isto não mais ocorre (HELMINIAK, 1998). A família,
apesar de ser ainda uma instituição primária de muita importância na vida das pessoas, é apenas parte
de uma estrutura social maior, que engloba instituições educacionais, correcionais e estatais.
Outro fator de interesse no contexto em que os textos bíblicos foram escritos era do caráter de
ser humano. A sociedade hebraica originária era essencialmente patriarcalista, ou seja, governada
por homens. As mulheres, nesta sociedade, não possuiam status de seres humanos. Elas eram

478
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
consideradas propriedade do pai ou do marido, tanto que eles poderiam dispôr delas como bem
entendessem. A virgindade era supervalorizada nesta época, bem como a sexualidade era reprimida.
Isto se deve, principalmente, à importância econômica que os corpos das mulheres possuiam. Como
propriedades, eram dos corpos das mulheres que provinham os herdeitos e um possível dote da família
do noivo para a família da noiva. A sociedade hebraica originária não reconhecia o instituto da adoção
e, portanto, a ideia de filhos legítimos do casal era supervalorizada e protegida. Restringir a
sexualidade era uma forma de garantir a legitimidade da linhagem sanguínea da família, bem como,
garantir que mais mão-de-obra familiar para conquistar ainda mais riquezas (HELMINIAK, 1998).
Tendo em vista que, na contemporaneidade a instituição familiar não possui tanta centralidade
na vida em sociedade e a mulher não é mais considerada propriedade de seu pai ou marido, parece
controverso adotar os ensinamentos cristãos em toda sua literalidade originária. Esta é a principal
crítica aos fundamentalismos religiosos, pois eles realizam interpretações literais bíblicas e tendem a
mobilizar fiéis em torno de ensinamentos autoritários, machistas, discriminatórios e que causam
sofrimendo às pessoas porque as condições de vida atuais não são as mesmas condições de milênios
atrás. Muitas vezes, os fundamentalistas religiosos tendem a condenar a leitura contextual histórica
da Bíblia como subversão à vontade de Deus. Aqueles que subervetem a vontade da divindade são
punidos com situações adversas na vida e com o inferno no pós-vida. Mas esta argumentação é
contraditória, na medida em que o fundamentalismo cristão prega uma doutrina religiosa de bondade
e caridade e apresenta, concomitantemente, como divindade um ser autoritário, severo e rancoroso.
Esta é outra contradição apresentada por uma leitura literal. É preciso compreender que as
cosmovisões do povo hebraico originário são substancialmente diferentes das cosmovisões atuais. O
que atualmente pode ser considerado autoritarismo e violência, em tempos remotos poderia ser bem
recebido pelas tribos e comunidades, visto os interesses que importava proteger. Assim, algumas
posturas que hoje se consideram repressivas, no tempo da redação dos tempos bíblicos poderiam ser
compreendidas como forma de proteção, de bondade.
Nete sentido, o que importa não é a literalidade do texto bíblico, mas sim a mensagem
contextual que ele apresenta. Helminiak explica que “Para compreender a vontade de Deus com
relação à nós, temos de aplicar as lições do passado aos problemas de hoje” (1998, p. 34). Se, no
passado, as condenações e repressões de Deus eram motivadas por interesses de proteção, de
qualidade de vida, de saúde e de bem-estar, e, na contemporaneidade degradam estes mesmos

479
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
valores, a vontade de Deus não está sendo respeitada. É isto que os fundamentalismos religiosos
resistem em compreender. As representações bíblicas revelam ensinamentos de bondade, de paz e
respeito à vida em sua completa diversidade.
Tomando como exemplo as passagens bíblicas anteriormente citadas neste trabalho, que são
normalmente utilizadas para promover discursos de ódio e de discriminação contra a diversidade
sexual, é possível ressignificá-las por interpretações diversas, de acordo com uma leitura histórica
contextual e com a vontade de Deus originária de promover o respeito, o amor ao próximo e a não-
violência. Em Gênesis, capítulo 19, versículos 1 ao 11, onde se discorre acerca do conto de Sodoma,
Helminiak (1998), por itnermédio de um estudo crítico e científico da linguagem e dos contumes da
sociedade hebraica originária, explica que o tema do conto é a hispitalidade, e a condenação recai sob
aqueles que não são hospitaleiros para com o próximo. O autor explica que, por mais que o conto
possua uma menção sexual – principalmente quando Lod oferece suas filhas ao povo enfurecido da
cidade por ele ter acolhido em sua casa estranhos viajantes – a condenação recai sob aqueles que não
se preocupam e não respeitam a vida do próximo. É sabido que as condições de temperatura no
deserto, onde o povo hebraico originário vivia, eram severas à noite e podia levar às pessoas à morte.
Tanto que, na cultura hebraica, mesmo em estados de guerra não se podia atacar uma casa que
acolhesse um inimigo durante a noite. A hospitalidade era algo muito importante para a cultura
hebraica, e ela se vinculava com o respeito e com a preocupação pela vida e pela saúde e bem-estar
do outro. Então, é possível, através de uma interpretaçao histórica e contextual, definir que o valor
protegido por esta passagem bíblica é a hospitalidade e o amor ao próximo, não se tratando de uma
condenação à liberdade sexual do povo de Sodoma, mas sim, de uma condenação ao seu desprezo
pela vida do outro.
Da mesma forma, as passagens de Levítico, capítulo 18, versículo 22 e Levítico, capítulo 20,
versículo 13, não estão preocupadas diretamente com o ato sexual livre entre dois homens. Na cultura
hebraica originária não se reconheciam outros gêneros que não o feminino e o masculino ou
orientações sexuais diversas da heterossexualidade. O sexo entre dois homens, neste sentido, era
constantemente utilizado como instrumento de guerra e humilhação quando as tribos hebraicas
subjugavam outras tribos. Isto principalmente porque nesta cultura as mulheres eram consideradas
objetos. Subjugar um homem, à força, a ter relações com outro homem como se fosse mulher
significava humilhação. Na leitura contextual e histórica da Bíblia, percebe-se que o valor a ser

480
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
protegido pelas normas divinas é a vida e a dignidade do outro. Não se trata de uma condenação à
homossexualidade, mas sim uma condenação ao uso do estupro de homens como ferramenta de guerra
(HELMINIAK, 1998).
Ao investigar sobre liberdade sexual e homossexualidade nos escritos bíblicos, Helminiak
(1998) afirma que a Bíblia não está diretamente preocupada em condenar diversidade de gênero ou
de orientação sexual. Atendo-se ao período histórico e a cultura em que foram escritos seus textos,
todas as passagens que possuem algum conteúdo sexual se referem a ele de maneira secundária. As
narrativas possuem, a fundo, uma preocupação principalmente com as formas de vida que eram
consideradas boas naquela época. Isto inclui lições morais como bondade, caridade, amor ao próximo
e não-violência. Logo, a sexualidade não é condenável. Nos escritos bíblicos ela é uma forma
específica de procriar e manter a economia tribal ativa. O sexo se torna um instituto de regulação
pública porque está vinculado com a economia e com a crueldade da guerra. No momento em que o
sexo deixa de ter um papel central para a economia e para a guerra, ele deixa também de ser objeto
de regulamentação pública, e pode ser exercido de forma livre, desde que consciente e em acordo
com a vontade dos indivíduos envolvidos na relação.
Sabe-se que, a séculos atrás, a Bíblia também era interpretada de forma a naturalizar e
legitimar a escravidão como a vontade de Deus. Atualmente, não se fala mais em utilizar seus
ensinamentos para escravizar povos, e isto se deve a interpretação histórica e contextual que busca
identificar os valores protegidos pelos escritos cristãos e aplicá-los na sociedade atual. Os
fundamentalismos religiosos, mais uma vez, têm uma estrutura frágil neste sentido, pois, em certos
momentos adotam uma interpretação histórica e contextual da Bíblia e, em outros, adotam uma
interpretação literal. Não se trata, portanto, de identificar a vontade de Deus que conduz os seres
humanos a modos de viver-bem, mas sim de instrumentalizar escritos religiosos antigos a fim de
manipular as pessoas e exercer dominação sobre seus corpos e seus desejos.
Um ponto interessante da discussão é que a moral religiosa atua, portanto, como uma forma
de regulamentar a vida pública e privada dos inivíduos. Há, atualmente, outras formas de
regulamentação da vida pública, como por exemplo, as leis de Direito. Em relação com as leis,
percebe-se que há uma notável aproximação entre a leitura contextual histórica da Bíblia e os valores
protegidos pelos ordenamentos jurídicos. Por outro lado, uma leitura literal, promovida pelos
fundamentalismos, viola profundamente estes ordenamentos. Assim, o proximo tópico desta

481
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pesquisa visa estabelecer uma relação positiva entre a Religião, a diversidade sexual e o Direito,
demonstrando que estes três elementos podem se influenciar mutuamente de forma positiva, a fim de
reforçar a luta contra as violências causadas pelos fundamentalismos.

RESGATANDO O POTENCIAL EMANCIPADOR DA RELIÃO: EM BUSCA DE UMA


RELAÇÃO POSITIVA ENTRE DIREITO, RELIGIÃO E DIVERSIDADE SEXUAL

A estrutura de um pensamento, seja ele teológico, político ou doutrinário, encontra-se


intimamente entrelaçada com algum interesse contextulizado na história. Isso significa pensar que as
ideias, com ênfase naquelas que visam a organização da sociedade, são construídas com base em
vontades humanas. Ludwig von Mises dirá que “Ideologia é o conjunto de todas as nossas doutrinas
relativas à conduta individual e às relações sociais” (2010, p. 222). Mais adiante, dirá também que
estas doutrinas perpassam as gerações, em um processo contínuo de reconstrução e ressignificação.
No que se refere ao objetivo destas ideias, “Por mais que as várias ideologias sejam conflitantes entre
si, estarão sempre de acordo numa questão: a conveniência de se manter a vida em sociedade”
(MISES, 2010, p. 224).
A princípio, o objetivo de manter o convívio social parece legítimo, sendo coerente com o
bem comum. Entretanto, existe a problemática referente à forma pela qual essas ideais visam
organizar e manter este convívio. Na maioria dos casos, esta organização é baseada na exclusão de
diferenças e na padronização dos comportamentos individuais. Estas são características de
pensamentos hegemônicos ou, seja,

[...] uma rede multifacetada de relações econômicas, sociais, políticas, cultuais e


epistemológicas desiguais baseadas nas interações entre três estruturas principais de poder e
dominação – capitalismo, colonialismo e patriarcado – que definem a sua legitimidade (ou
dissimulam a sua ilegitimidade) em termos do entendimento liberal do primado do direito,
democracia e direitos humanos, vistos como a personificação dos ideais de uma boa
sociedade. (SANTOS, 2014, p. 34-35).

Na seara religiosa, “a teologia política tem sido identificada com a metafísica teológica que
concedeu a sanção religiosa às estruturas sociais e políticas existentes” (SANTOS, 2014, p. 38). O
fator que identifica as teologias de viés tradicionalista é esta estrutura de pensamento universalista e
padronizar que tende a sufocar expressões derivadas das diferenças sociais. Esta postura também
promove a castração dos desejos humanos e, consequentemente, o sofrimento das pessoas

482
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
envolvidas. Este pensamento teológico tradicionalista é oque norteia o ideológico dos
fundamentalismos em uma batalha retórica contra as diferenças, principalmente, contra a diversidade
sexual.
O pensamento que envolve tanto a teologia, quanto a política ou o Direito são disseminados
em seus campos de envolvimento específicos, mas correspondem à matéria e estruturas semelhantes
que indicam qual interesse contextualizado está sendo resguardado. Exemplificativamente, pode-se
analisar a desigualdade de gênero neste contexto. Segundo Tesser (2019), os discursos religiosos,
com ênfase nas Igrejas de matriz cristã, promovem a invisibilidade das mulheres em suas pregações.
Esta invisibilidade deriva do fato da maioria das escrituras bíblicas conterem como protagonistas
homens e, quando se refere às mulheres, valoriza seu papel doméstico de progenitora e cuidadora,
acusando de pervertidas as que não se encaixam nestes papéis, como Eva ou Maria Madalena. Estas
pregações introjetam mensagens hegemônicas de dominação entre os sexos nas comunidades,
influenciando valores e interesses individuais e coletivos que buscam manter a organização social
pautada na submissão das mulheres perante os homens.
Tesser está correta, na medida em que analisa a instruentalização dos discusos bíblicos pela
intepretação literal disseminada pelos fundamentalismos. Como apreende-se dos estudos de
Helminiak (1998), é importante entender que, no contexto da sociedde hebraica antiga, as mulheres
eram objetos da propriedade do pai ou do marido, e isto, naquela época, tratava-se sde uma forma de
viver-bem. Importante frisar que, mesmo nesta estrutura patriarcalista e objetificadora, as menções
às mulheres na Bíblia podem ser consideradas revolucionárias em alguns aspectos, na medida em que
existem narrativas que valorizam a escolha livres delas e seu papel para a construção de uma tribo.
Interpretando-se de forma contextualizada, percebe-se que menções ao papel de mulheres na
sociedade hebraica é deveras revolucionário, visto que elas eram considerados meros objetos.
Entretanto, não se trata de defender e naturalizar a submissão das mulheres aos homens, defindo-a
como uma forma de viver bem atualmente. Se trata de compreender as condições sociais antigas e as
cosmovisões que orientavam uma vida boa. Se estas cosmovisões mudam, os parâmetros de vida boa
também mudam.
Vontando-se ao campo de normativização do Direito, é possível relacioná-lo de maneira
positiva com a Religião e com os direitos de respeito às diversidades sexuais. De acordo com
Miguel Reale (2010), o Direito possui três dimensões diferentes: norma, fato e valor. Nesta

483
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
terceira dimensão (valor), Reale indica que condutas valorizadas na cultura como justas ou injustas
acabam por refletir um valor ao ordenamento jurídico, e, em última análise, podem tornar-se
positivadas em lei. Em uma cultura em que se sobressaiam valores pregados pelos fundamentalismos
religiosos, com base na leitura literal bíblica, os ordenamentos jurídicos irão refletir isto na
formulação de leis que consideram a submissão da mulher ao marido (a exemplo, o Código Civil
brasileiro de 1916), que criminalizam a homossexualidae e que discriminam as diferenças. Este
reflexo do pensamento teológico nos ordenamentos jurídicos é comprovado pelos estudos de
Boaventura de Sousa Santos (2014), quando ele relaciona leis discriminatórias e hegemônicas com
as teocracias tradicionalistas.
Ressalta-se que, discriminar e negar direitos com base nas diferenças, sejam elas culturais,
sociais ou sexuais, causa prejuízos aos indivíduos que se enquadram no quesito diferente, pois estes
terão suas garantias suprimidas em nome da manutenção da convivência e coesão social baseada na
padronização dos corpos e das vontades. Isto é uma grande contradição com os valores interpretados
de forma conteextual histórica da Bíblia, pois atuam como negação das formas de viver-bem. Tendo
em vista este contexto de conexões entre o pensamento teológico e o Direito por meio do interesse de
hegemonia, é possível estabelecê-la em caráter contra-hegemônico? Em outras palavras, existe
possibilidade do pensamento teológico auxiliar a evolução jurídica no sentido de promover o
reconhecimento e respeito das diversidades?
Para Boaventura de Sousa Santos esta relação não é apenas possível, como também já se
encontra materializada no plano fático. Ela se dá a partir do pensamento teológico progressista,
advindo da corrente das Teologias Progressistas, surgidas na América Latina a partir da segunda
metade do século XX. De acordo com o autor, As Teologias Progressistas têm estado atentas a estes
dilemas, ao formular concepções historicamente concretas de dignidade humana em que Deus é o
garante último da liberdade e da autonomia nas lutas entre os sujeitos, tanto individuais como
coletivos, travam no sentido de se tornar sujeitos da sua própria história (SANTOS, 2014, p. 114). Na
perspectiva progressista, as teologias tendem a reformular seus discursos para promover a
emancipação e o reconhecimento dos sujeitos considerados diferentes. Elas se baseiam em uma
vertente no combate aos fundamentalismos religiosos, pois utilizam-se de interpetações bíblicas
contextuais de forma a fomentar as diversidades, entre elas, a sexual.

484
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com Musskopf (2019), as Teologias Progressistas estão essencialmente conectadas
com movimentos sociais e com a experiência dos oprimidos. É um novo pensar teológico que surge
em pequenas comunidades marginalizadas e ganha força no combate à hegemonia cultural, política e
social. Em análise, por exemplo, ao surgimento das Teologias Gay/Queer, o autor revela que através
da fala de matriz religiosa é possível promover o reconhecimento dos indivíduos não-heterossexuais,
de forma a conscientizá-los acerca de seu caráter humano e da importância de terem seus direitos
respeitados e de integrarem a sociedade de forma ativa, e não apenas como espectadores deixados de
lado das decisões. Esta análise também se aplica às Teologias Feministas e às Teologias Negras, cada
qual atuando como tradição oral emancipadora destas minorias em situação de vulnerabilidade em
virtude de suas diferenças.
Se, por um lado, o discurso hegemônico possibilita a alteração de valores sociais em prol de
interesses que podem ser positivados em norma de Direito, o mesmo vale para os discursos contra-
hegemônicos. A partir de narrativas libertárias, os interesses sociais voltam-se para a proteção dos
vulneráveis e, consequentemente, surgem leis para garantir que o Estado tenha a força necessária para
promover o amparo destas pessoas. Da mesma forma, as Teologias Progressistas apresentam outros
dois efeitos emancipadores e libertários: o primeiro é que promovem a mobilização das pessoas em
prol da conscientização e reivindicação de seus direitos. Ao utilizar o campo religios para tal, esta
conscientização atinge as mais variadas classes sociais e promove uma efetiva mudança nas
ideologias tradicionalistas. A partir do reconhecimento que estas pessoas adquirem mediante seus
próprios direitos e diante da comunidade em que estão inseridas, podem mobilizar-se em lutas sociais.
O segundo, é que atuam contra os fundamentalismos religiosos em suas bases de fundamentação, ou
seja, são capazes de utilizar os mesmos textos bíblicos que os fundamentalismos utilizam, mas com
uma significação totalmente diversa. Isto tem um valor fundamental na seara das discussões públicas
e privadas, pois raramente se reconhece a ciência ou a lei estatal como um oponente à altura das leis
de Deus.
Neste sentido é possível vincular a Religião com o Direito, de forma a promover o respeito e
os direitos às diversidades sexuais. Não se trata de negar que as implicações de uma moral religiosa
para o regimento da vida pública são prejudiciais. Também não se trata de requerer um retorno das
moral religiosa para a regulamentação da vida pública. A Religião deve permanecer na esfera
privada, pelo menos, enquanto ainda houverem discursos que promovam sofrimento de pessoas

485
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
com base na exclusão e discriminação. O que se pretende apresentar é um contraponto aos
fundamentalismos que aprisionam corpos e castram desejos. Diferentemente dos estudos tradicionais,
este contraponto não se baseia apenas em uma apresentação das condições contemporâneas e nos
campos da ciência e da lei, baseia-se também no pensamento teológico e da moral religiosa para
desmistificar práticas e discursos que promovem discriminação da diversidade sexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste trabalho foi possível relacionar Diversidade Sexual, Direito e Religião Cristã
de forma a proporcionar o reconhecimento e a dignidade dos mais variados gêneros e orientações
sexuais. Compreende-se que, historicamente, a Religião foi fonte de discursos hegemônicos, que
marginalizavam e discriminavam quaisquer diferenças que não se enquadravam no padrão estipulado
pela Igreja. A discriminação voltada para a diversidade sexual obteve atenção especial da moral
religiosa tradicionalista, sendo que muitas práticas de violência, inclusive autorizadas pelo Estado,
foram permitidas contra gêneros não-binários e sexualidades não-hétero. Os discursos religiosos que
condenam a diversidade sexual advém dos fundamentalismos, que se baseiam em leituras literais e
atemporais dos escritos bíblicos. Isto significa que a interpretação dos sentidos e significados das
palavras são definidas pelas cosmovisões e pelos níveis de compreensão contemporâneos, sem levar
em consideração as época histórica em que estes textos foram escritos. É importante mencionar que
as ideias, os valores protegidos são todos definidos por contextos fáticos de necessidade de normatizar
a sociedade de forma coesa, pacífica e de qualidade. Mudando o contexto fático, mudam-se os valores
a seres protegidos e, consequentemente, mudam-se as ideias. Este é o problema do fundamentalismo
religioso: ele objetiva normatizar a sociedade do século XXI com as mesmas regras de sociedades
hebraicas originárias, cuja organização social e cultural era substancialmente diferente da atual.
Em uma releitura bíblica, interpretada de forma contextual e histórica, percebe-se que muitos
arguments utilizados pelos fundamentalismos religiosos são contraditórios e incoerentes. O texto
bíblico contextualizado na história do povo hebreu não promove a discriminação da diversidade
sexual, pois ela nem sequer é conhecida daquele povo. O que os hebreus condenam com veemencia
é a despreocupação e a irresponsabilidade para com a vida do outro, para com a sua dignidade e
integridade. O que a Bíblia condena não é a liberdade das pessoas sobre seus corpos e desejos,
mas sim a violência, a falta de amor ao próximo, a falta de respeito e de bondade. Neste sentido,

486
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
uma leitura bíblica contextual é um importante instrumento de combate aos fundamentalismos e de
emancipação da diversidade sexual, pois utiliza as mesmas bases do fundamentalismo para apontar
seus erros, suas incoerências e suas fragilidades. Assim, atualmente, a vontade de Deus só pode ser
expressa por uma leitura contextual histórica da Bíblia, pois é ela que melhor representa os valores
protegidos pela sociedade hebraica originária.
Por fim, cabe ressaltar que a Religião é uma instituição com grande influência sobre a vida e
as ideias das pessoas, e isto pode influenciar diretamente a construção das leis. Assim como professar
um discurso religioso fundamentalista pode levar a sociedade a clamar pela regulamentação legal da
discriminação contra minorias, professar um discurso religioso libertário e progressita pode levar a
sociedade a reconhecer, aceitar e respeitar as diferenças, de forma a exigir leis que garantam este
reconhecimento e respeito. Neste sentido, firma-se a relação positiva entre uma Religião Cristã
Progressita e o Direito, de forma a possibilitar o reconhecimento e o respeito à diversidade sexual.
Ressalta-se novamente que este estudo não se trata de exigir um retorno da Religião ao campo
de discussão sobre a normatização da vida pública. Mas sim de enfrentar a Religião como um
problema a ser debatido cientificamente, uma vez que, relegá-la ao espaço das relações e discussões
privadas possibilitou que ela não acompanhasse os parâmetros éticos contemporâneos, e assim,
tivesse total liberdade para propagar discursos de ódio. Neste sentido, visto as proporções nocivas da
propagação do ódio pelo campo religioso, bem como o não reconhecimento pelas instâncias
episcopais da autoridade da lei do estado para limitá-lo, a leitura bíblica contextual histórica
promovida pelas Teologias Progressistas é um importante instrumento de combate ao
fundamentalismo e uma força potencial positiva para promover os direitos à diversidade, incluindo,
a diversidade sexual.

REFERÊNCIAS
CARDOSO, Fernando Luiz. O Conceito de Orientação Sexual na Encruzilhada entre Sexo, Gênero e
Motricidade. In: Revista Interamericana de Psicología. Disponível em:<
https://www.redalyc.org/pdf/284/28442108.pdf> Acesso em set 2020.

DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.

FURLANI, Jimena. Educação Sexual na Sala de Aula. São Paulo: Autêntica, 2011.

487
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HELMINIAK, Daniel A. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. São Paulo:
Summus, 1998.

MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de economia. São Paulo: Instituto Ludwig von
Mises, 2010.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007.

MUSSKOPF, André. Teologias Gay/Queer. In: JURKEWICZ, Regina Soares. Teologias fora do
armário. São Paulo: Max editora, 2019, p. 114-146.

REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. São Paulo: Saraiva, 2010.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo:
Cortez, 2014.

TESSER, Tabata Pastore. Legitimação da violência contra as mulheres no discurso religioso


hegemônico. In: JURKEWICZ, Regina Soares. Teologias fora do armário. São Paulo: Max editora,
2019, p. 74-90.

VATTIMO, Gianni. Acreditar Em Acreditar. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998.

VATTIMO, Gianni. Adeus à Verdade. Petrópolis: VOZES, 2016.

VATTIMO, Gianni; CAPUTO, John de. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre
religión, política y cultura. Espanha: Ediciones Paidós, 2010.

488
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CORPO ENQUANTO TERRITÓRIO: TRANSEXUALIDADE, INTERNET E A
REITERAÇÃO CIS BINÁRIA DE GÊNERO

Adriana Gelinski236
Guilherme Silva Safraider237

Resumo: A presente reflexão tem como objetivo compreender como o corpo da atleta Tiffany pode ser entendido como
território a partir dos discursos presentes nos comentários de sites de notícias, publicadas no ano de 2018. Apesar do
mundo esportivo ser constantemente marcado pelas relações binárias de gênero e cheia de estigmas a atleta transexual
Tiffany teve aprovação do COI e federações para a sua atuação no esporte de alto nível. A sua inserção no meio esportivo
foi de grande destaque nos sites de noticias esportivas, gerando assim apoio e revolta d@s internautas. Foram realizados
buscas em 62 sites, 18 obtiveram 658 comentários dentre eles 540 negativos em relação à participação da atleta Tiffany
na superliga feminina de vôlei do Brasil. Para análise do conteúdo dos comentários foram separadas as evocações e
divididas em subgrupos. Evidenciou-se concepções binárias, normativas e de controle em relação ao corpo da atleta
Tiffany.

Palavras-chave: Atleta Transexual, sites de noticias, noções binárias.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo compreender como o corpo da atleta Tiffany pode ser
entendido como território, marcado pelas relações de poder evidenciados nos discursos presentes nos
comentários de sites de notícias, publicadas no ano de 2018. No ano de 2016 houve alteração da regra,
pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para a participação de atletas transexuais nas Olimpíadas.
Em suma, a regra atual não exige operação de transgenitalização, mas sim níveis hormonais
adequados e controlados por no mínimo dois anos anterior a competição. Regra esta que possibilitou
a inserção de pessoas transexuais no esporte amador e profissional.
No início deste ano esteve em destaque à jogadora de vôlei Tiffany, a primeira mulher
transexual a jogar no Brasil na Superliga feminina de vôlei. A sua atuação teve grande repercussão
em sites de notícias esportivas, apoio e, principalmente, revolta entre as/os internautas, visto que o
esporte é marcado pela binariedade de gênero, percebe-se esta binariedade pela divisão de categorias
distintas para homens e para mulheres. Diante disto, questiona-se a participação de pessoas
transexuais, as quais nem sempre seguem a linearidade entre identidade de gênero, corpo e órgão
genital.

236
Doutoranda em Geografia, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná. E-mail:
drycagelinski@gmail.com
237
Pós-Graduando em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná. E-mail:
guisafraider@gmail.com
489
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No início deste ano esteve em destaque à jogadora de vôlei Tiffany, a primeira mulher
transexual a jogar no Brasil na Superliga feminina de vôlei. A sua atuação teve grande repercussão
em sites de notícias esportivas, apoio e, principalmente, revolta entre as/os internautas, visto que o
esporte é marcado pela binariedade de gênero, percebe-se esta binariedade pela divisão de categorias
distintas para homens e para mulheres. Diante disto, questiona-se a participação de pessoas
transexuais, as quais nem sempre seguem a linearidade entre identidade de gênero, corpo e órgão
genital.
A repercussão da participação de Tiffany foi tamanha que foram encontrados sessenta e duas
notícias, em sites nacionais e internacionais no período de janeiro a abril de 2018. A soma dos
comentários totalizou 658 comentários, os quais foram analisados e classificados em: a favor, contra
e sem ralação. Para realizar a busca de noticias foi utilizado o Google notícias com as seguintes
palavras Tiffany e vôlei, com recorte temporal do ano de 2018 nos meses de janeiro a abril.
Desta forma, das 62 notícias encontradas, 18 obtiveram comentários realizados por
internautas, totalizando 658 comentários. Após analisados e agrupados totalizaram 39 comentários
favoráveis, 79 sem relação e 540 contra a participação da Tiffany no time de vôlei e na liga. Assim,
para análise dos comentário adotamos a análise de discurso proposto por Bardin (1977), a qual
consiste em três fases, a primeira a préanálise, segunda a exploração dos materiais e por último o
tratamento dos resultados: inferência e interpretação.
Para análise do conteúdo dos comentários foram separadas as evocações e divididas em
subgrupos, para aqueles favoráveis obtivemos subgrupos: ‘direito participar’ com 10 citações, ‘ela
está dentro da regra’ 9 vezes evocado, ‘novos tempos’ e ‘opinião leiga’ com 6 cada; internautas que
acreditam que é resultado de muito treino e que pessoas contra é por preconceito ou discriminação,
somaram 5 cada.
Já os comentários contra (os quais é recorte desta reflexão) foram agrupados nas categorias:
‘binário, ideológico/político’ e ‘motivos/ofensas/soluções’. Importante ressaltar que as categorias
foram criadas pela similaridade entre os indicadores. Para análise quantitativa os dados foram
sistematizados por meio do Software LibreOffice
Sendo assim, esta discussão faz parte da construção reflexiva do presente trabalho, em que o
corpo através das relações e interações, dos vários discursos (médico, juridico, biológico e
religioso) que embasam a estrutura social e cultural contribuem para as concepções binárias e

490
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
normativas. Indo além, contribui para compreender como os corpos que dissidem da linearidade sexo,
gênero e prática são entendidos como corpos pássiveis de estigmatizações e marcados pelas relações
de poder.

UMA ATLETA TRANSEXUAL? REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO,


CORPO E DISCURSOS NAS REDES SOCIAIS

Partindo da premissa que o ambiente esportivo é constantemente marcado pelas relações de


gênero, normatizações e cheio de estigmas, pode-se entender os espaços esportivos como espaços
generificado. Assim, torna-se imprescindível estabelecermos como um dos fios condutores as
reflexões sobre identidade de gênero e corpo. De acordo com Letícia Lanz (2015) as identidades fora
da hegemonia heterossexual ou "gênero-divergentes" rompem e afrontam a heteronormatividade e a
noção binária gênero homem\mulher. Tais identidades transgridem os discursos hegemônicos de
gênero. Entendemos que as sexualidades podem ser compreendidas como uma complexa malha de
regulação (FOUCAULT, 1996), historicamente construída por discursos, práticas e normas.
Entendendo as noções binárias homem x mulher, masculino x feminino como produtos do mecanismo
de regulação de perspectivas de gênero, este que, por sua vez, é construído e estabelecido de forma
pré-discursiva, podemos estabelecer assim uma conexão com nosso fenômeno.
O mecanismo de gênero, regula e normatiza os corpos, esses corpos, por sua vez, que não
seguem este modelo regulatório são passíveis de punição e vigilância para se adequar às regras
estabelecidas (JUDITH BUTLER, 2003) nas mais variadas espacialidades desde casa da família,
escola, as praças, espaços de sociabilidade, espaços religiosos até os espaços esportivos. Ressaltando
que o espaço pode ser compreendido a partir das as relações e os discursos estão conectados e
compõem a vivência das pessoas, ao passo que determinados espaços podem ser acolhedores e outros
excludentes. Além disso, os espaços, de acordo com Doreen Massey (2000), são constituídos pelas
relações e interações entre as pessoas, compreendendo que o espaço é o lugar de encontro:

em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-los como
momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, mas onde uma grande
proporção dessas relações, experiências e entendimentos sociais se constroem numa escala,
seja uma rua, uma região ou um continente. (DOREEN MASSEY, 2000, p. 10).

491
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Desta forma, como afirma Judith Butler (2003), o mecanismo de gênero reforça e naturaliza as
noções de masculino e feminino. Segundo a autora, é a partir dos discursos e práticas constantemente
repetidos que a noção de gênero é concebida. Reforça que o gênero não é o que somos em essência,
mas é algo que foi produzido, reproduzido e naturalizado.
Para Judith Butler (1990), o gênero nada mais é que uma construção e uma ordemfantasiosa
sobre os corpos. Através de repetições, gestos, contextos e práticas há a reiteração sobre a construção
de feminino e masculino, isto é, através da performatividade. Judith Butler (2003) reforça ainda que
a materialidade corpórea está diretamente ligada aos discursos. Para a autora, o gênero e o corpo são
elaborados e interpretados, ou seja, fazem parte de uma construção.
A autora ressalta que o sexo não pode ser entendido como uma unidade estática do corpo, mas
sim é entendido como algo discursivo, produzidos devido às práticas regulatórias. Sendo assim, o
gênero é fruto de um mecanismo. Para Scott (1989), o gênero está associado com as relações de poder.
Este por sua vez, não está desencaixado do contexto cultural, social, histórico, político e religioso que
o elaboram e o mantém, como afirma Butler (2003). Noutras palavras, o gênero não é algo que a
pessoa é em sua essência, mas é elaborado de maneira prédiscursiva, aberta para atuação na cultura
(JUDITH BUTLER, 1990). Judith Butler (1990, p.15) ainda afirma que:

o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e
estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra
sobre a qual age a cultura.

Pensando assim, ao evocar que uma criança antes mesmo do seu nascimento é uma menina ou
menino, há uma suposição do sexo, gênero e desejo como algo ahistórico, antecedente da cultura,
constituindo assim um pensamento binário. Judith Butler (2003) também afirma que esta prática faz
parte de uma ordem, leia-se, é parte da norma hegemônica heterossexual. Logo,

Gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e


naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem
ser desconstruídos e desnaturalizados. De fato, pode ser que o próprio aparato que pretende
estabelecer a norma também possa solapar esse estabelecimento, que esse estabelecimento
fosse como que incompleto na sua definição (JUDITH BUTLER, 2014, p. 254).

492
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O que equivale dizer que o gênero é entendido como uma produção, reprodução e expressão
ou, como conceitua Judith Butler (2003), é uma identidade constituída. Pensando assim, as roupas ou
a forma de se vestir, seguindo uma norma ou não, transforma um corpo reconhecível, ‘apropriado’
ou não (LETÍCIA LANZ, 2014). Para a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos serem
identificados ou estigmatizados dentro de contextos específicos. Logo, a roupa não é apenas uma
vestimenta, mas faz parte da identidade da pessoa, a qual se torna uma marca para o corpo. Esta forma
binária de pensar foi reforçada pelos discursos da medicina, áreas jurídicas, biológicas e religiosas,
pois asseguravam/asseguram que existem duas classificações: somente homem e mulher.
No entanto, inúmeras são as combinações possíveis entre os arranjos sexo, gênero e desejo
(JUDITH BUTLER, 2003), uma vez que uma pessoa traz consigo todos os acessórios e combinações
para se transformar. Logo, pessoas com o corpo identificado como feminino, devido a sua genitália e
seus seios, podem trazer combinações como suas práticas, expressões e roupas associadas ao
masculino. Pensando assim, a sociedade, muitas vezes, faz uma suposição de corpos circunscritos de
homens e mulheres. Entretanto, não são as diferenças físicas que posicionam as pessoas em
hierarquias, mas sim como a sociedade vê e interpreta o conceito de gênero (GILLIAN ROSE, 1993).
Desse modo, a correspondência entre a noção linear de sexo, gênero e desejo (Judith Butler,
2003) é correlata a um conjunto de ideias e valores que a sociedade, a cultura e a vivência constroem
e reconstroem dialeticamente. Desta forma, é ilusório afirmar que o gênero é algo natural, pois ser
homem ou “ser mulher é uma construção e representação social” (JOSELI MARIA SILVA, 2009, p.
100), a qual faz parte de um discurso hegemônico da heterossexualidade. Os corpos assim são vistos,
representados e identificados de acordo com o sexo/genitália. Conforme Joseli Maria Silva e Ornat
(2011), quando nascemos há uma classificação feita pela sociedade, em que são usadas características
baseadas na forma da genitália para orientar os gêneros. Tal classificação colabora para que haja
relações de poder fundamentadas no binarismo mulher/homem.
A partir disso, a sociedade criou certa hierarquização relacionada a características físicas: aos
homens atribui-se a força, razão e objetividade, bem como uma pessoa identificada como homem é
aquela que possui características físicas, órgão genital masculino, músculos, barba; por sua vez, são
identificadas como mulheres as pessoas com certos atributos ‘ditos’ femininos: cabelos cumpridos,
seios e os gestos. No entanto, pessoas que não correspondem às concepções binárias e normativas

493
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de feminino e masculino, como o grupo LGBTQI+, são colocadas à margem, lidas como desviantes
e pecadoras diante das compreensões religiosas entre outras.
Entretanto, as diferenças físicas e a genitália não definem se a pessoa é mulher ou homem, não
definem se irá seguir a linearidade sexo, gênero e desejo; a exemplo do grupo LGBTQI+, tal noção é
empregada de forma normativa pela sociedade. Visto que “a materialidade corpórea só adquire
existência quando assumida pela existência das ações” (JOSELI MARIA SILVA, 2009, p. 35) e de
acordo com suas vivências e experiências. Noutros termos, não é o fator biológico, mas sim a
construção social que “transforma fêmeas e machos humanos em mulheres e homens ou classifica
em gênero feminino ou masculino, conforme os papéis desempenhados na sociedade” (JOSELI
MARIA SILVA, 2009, p. 35).
Desta forma, corpos que destoam do ideal binário de gênero exercendo as mais variadas formas
de feminilidades e/ou masculinidades estão desempenhando performances de gênero. De acordo com
Joseli Maria Silva (2009), o ato performático de gênero não existe de maneira individual ou isolada,
mas é uma construção através das relações. Pensar o gênero como essência natural nada mais é que
reproduzir o pensamento heteronormativo regulatório. Para Ornat (2011), influenciado pelas
reflexões de Judith Butler (2003), a concepção de gênero é construída através de atos repetitivos ou
‘performances’. Assim, é tendo práticas, expressões e se identificando como mulher que alguém se
torna mulher, independente do sexo/genitália.

É sendo mulher que alguém se torna mulher. Nós projetamos a nós próprios nos modelos
culturais de identidade que nos são oferecidos, e é a partir dessas projeções que criamos em
nós a noção da pré-existência de uma tal identidade. Através da socialização, internalizamos
os atributos, significados, valores e expressões dos modelos identitários que a cultura tem
para nos oferecer, tornando-os parte de nós ou, melhor ainda, nos transformando no próprio
modelo que nos serviu de inspiração. (LETÍCIA LANZ, 2014, p. 114).

Desta forma, juntamente com o corpo, as práticas, a sexualidade e o gênero compõem o ser de
cada pessoa, constituindo assim a identidade de cada pessoa. E não há um destino único e fixo para
os corpos (JUDITH BUTLER, 2003), mas sim são mutáveis para subverter e rearticular a lógica
normativa imposta pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo. Nessa perspectiva, nada há de
exclusivamente natural nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo. Através de
processos culturais, definimos o que é ou não natural; produzimos e transformamos a natureza e
a biologia e, conseqüentemente, as tornamos históricas.

494
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REITERAÇÃO CIS BINÁRIA HETERONORMATIVA A PARTIR DOS COMENTÁRIOS
DE INTERNAUTAS
O material analisado é fruto de comentários em sites de noticias referentes a participação da
atleta Tiffany na superliga, para atingir os objetivos foi pesquisado no Google as palavras chaves
Tiffany e volêi, em seguida foram selecionadas as notícias publicadas de janeiro a abril do ano de
2018. O que totalizou em 62 sites, entre nacionais e internacionais, destes somente 18 sites tiveram
comentários efetuados por internautas, resultando em 658. Posteriormente foram divididos em a
favor, contra e sem relação primeiramente.
A primeira divisão resultou em 39 comentários a favor, a segunda que diz respeito aos
comentários contra totalizaram 540 e a terceira agrupada na divisão nomeada sem relação resultaram
em 79 comentários. Após esse momento foram criadas categorias que resultam do agrupamente de
indicadores com similaridade de conteúdo. Por fim, para sistematização e análise quantitativa os
dados foram sistematizados por meio do Software LibreOffice
Desta forma, para os comentários favoráveis obteve-se os seguintes indicadores: seu direito
de participar, está dentro da regra, são novos tempos, resultado de muito treino. Já os comentários
contra foram agrupados nas categorias: ‘binário e político’ e ‘motivo, ofensas e soluções’. Assim a
categoria ‘binário e político’ engloba os indicadores ‘desempenho de homem/vantagem masculina’
36%, ‘homem/xy/masculino’ 36%, ‘LGBT/esquerdista’ 9%, ‘culpa das feministas’ 7%, ‘vão falar
que é preconceito’ 6% e ‘orientação sexual’ 6%.
Por sua vez, a categoria ‘motivos, ofensa e soluções’ agruda os seguintes indicadores:
‘aberração/nojo/traveco’ 22%, ‘covardia/injustiça’ 19%, ‘times/ligas trans’ 17%,
‘vergonhos/inaceitável’ 16%, ‘sem destaque na liga masculina’ 13%, ‘joga mal’ 9% e ‘times mistos’
4%
Como resultados evidenciou-se que diante de um total de 658 comentários, 540 foram não
favoráveis e dentre eles em sua maioria são comentários relacionadas ao corpo da atleta e à questão
binária. Evidencia-se que há uma leitura no corpo da atleta Tiffany relacionada primeiramente ás
questões biológicas e fisiológicas, como a discordância que a atleta está apta para jogar no time
feminino, pois nasceu homem e torna-se desigual com as outras atletas. Nota-se que as evocações
“homem/masculino”, “desempenho de homem’ e ‘vantagens físicas’ totalizam a 72%. Seguidas

495
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de comentários de cunho político, com as evocações ‘LGBT esquerdista’ 9% e ‘culpa das feministas’
7%. Por fim, as evocações ‘orientação sexual’ e ‘vão falar que é preconceito’ totalizando 12%. Como
evidenciado no gráfico 1.

GRÁFICO 1 CONFIGURAÇÃO DAS EVOCAÇÕES BINÁRIAS E POLÍTICAS

Fonte: Dxs autorxs

Os comentários ainda evidenciam que para algumas pessoas o que motivou a atleta jogar no
time feminino foi o não destaque na liga masculina ou por que não joga tão bem para jogar no time
masculino totalizando 22% comentários. Já se tratando do subgrupo Ofensas, as evocações são
‘aberração/nojo/traveco’ somam 22% comentários, ‘covardia/injustiça/abuso’ 19%,
‘vergonhoso/absurdo/ inaceitável’ 16%. Para tanto as evocações do subgrupo soluções dizem respeito
a ligas transexuais com 17% e times mistos com 4%. Como evidenciado no gráfico 2.

496
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GRÁFICO 2 CONFIGURAÇÃO DAS EVOCAÇÕES MOTIVOS, OFENSAS E SOLUÇÕES

Fonte: Dxs autorxs, 2018.

Evidencia-se assim através das evocações anteriormente demonstradas a concepção binária e


política em torno do corpo da atleta Tiffany, bem como as possíveis motivações e soluções segundo
internautas para a prática esportiva. Neste sentido, os discursos presentes nos comentários são
permeados por relações de poder sobre o corpo da atleta, o qual atua para a normatização de práticas.
Indo além, a intenção “é controlar as formas territoriais que se formam para administrar os corpos”
(MONTARDO, 2009, p.6). Como evidenciado na fala de um internauta “é totalmente inaceitável e
injusto uma aberração jogar com as mulheres, ele nasceu homem é homem”.
È possível compreender que os corpos vivenciam práticas, criam espaços e relações de poder,
assim “o controle dos corpos se dá para controlar a forma de produzir as relações e, portanto, a própria
direção que a vida” das pessoas toma como afirma Mondardo (2009, p.3). Assim, o corpo pode ser
entendido não somente como território, mas a espacialização de experiências e modos, “o território é
um recorte espacial. (...) É o espaço de poder de um corpo, é o ponto de referência da regulação e da
hegemonia no plano global do arranjo” como afirma Moreira (2002, p.53). O corpo, antes de qualquer
coisa, está no espaço como é o espaço (Lefebvre 1991 [1974]), e este mesmo corpo vivo dotado de
energias, envolto por redes de relações (JUDITH BUTLER, 2015), também carrega marcas.
Noutros termos, o corpo não é somente natural e fixo, mas sim é fluido e móvel, sendo
entendido e significado no tempo e espaço (JOSELI MARIA SILVA E ORNAT, 2016). Para
497
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
tanto, este “corpo não apenas existe no vetor das relações, mas é o próprio vetor” (JUDITH BUTLER,
2015, p. 85). Corpo este ilimitado em suas práticas, discursos e mobilidade na exterioridade. O corpo
está em um tempo e espaço que não controla, estando social e geograficamente distribuídos. (JOSELI
MARIA SILVA E ORNAT, 2016). Desta forma, as roupas ou a forma de se vestir, seguindo uma
norma ou não, transforma um corpo reconhecível, ‘apropriado’ ou não (LETÌCIA LANZ, 2014). Para
a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos serem identificados ou estigmatizados dentro
de contextos específicos Porém, algumas marcas são mais suscetíveis à estigmatização e preconceitos
como evidenciado nos comentários analisados em relação à atleta transexual.
Como evidenciado nos comentários de internautas a seguir: “É totalmente descabido e coisa de
esquizofrênico alterar sua natureza”. “Se nascem homem, como vai ser mulher?! Não é Deus para
mudar as coisas”. “Homem é homem, mulher é mulher...é injusto um homem jogar com mulheres.
Tem força de um homem”. Revela-se nos comentários o sentimento de aversão a não linearidade
entre sexo, gênero e práticas, isto é, a todas as pessoas que destoam da norma, desde as vestimentas,
os gestos, a corporalidade, práticas e desejos como algo abominável/’não normal’. Natividade e
Oliveira (2009) ressaltam que várias são as motivações para as reações de repúdio e menosprezo para
com uma categoria identitária da pessoa divergente da norma.
Sendo assim, a noção de domínio sobre os corpos relaciona-se com a produção do poder, pois
é imprescindível que haja a manutenção das ações, comportamentos e modos dos corpos para que o
controle seja bem sucedido. Assim os corpos devem ter práticas que se encaixam com as regras e
normas presentes nos territórios, os quais são reiterados de modo natural e apresentam-se
como“normais” e para o “bem comum” como ressalta Mondardo (2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente reflexão evidenciou como os comentários em reportagens demonstram as noções,
concepções binárias em relação ao corpo da atleta Tiffany. Tais concepções têm influência na noção
normativa sobre as sexualidades, sobre a noção binária em relação a feminino e masculino, bem como
a noção linear sexo, gênero e desejo como algo natural.
Os comentários evidenciaram concepções que reiteram discursos heteronormativos, onde o
aceitável e bom é somente corpos que seguem a linearidade de sexo, gênero e orientação sexual.
Estando diretamente ligada ao dispositivo hegemônico composto por normas regulatórias de

498
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gênero e sexualidade. Indo além, o corpo da atleta Tiffany assim faz parte de uma teia de relações,
conseqüentemente de relações de poder, o qual pode ser entendido como território criando e recriando
espaço e as relações de poder. Por outro lado, por se tratar de um corpo dissidente, fora da
normatividade é passível de preconceitos, estigmatizações e controle. Isto fica evidente na grande
porcentagem de comentários e evocações (após análise e sistematização dos dados), em que dentre a
maior porcentagem estão as evocações ‘vantagens físicas’, ‘Aberração/nojo/traveco’,
‘vergonhoso/absurdo/ inaceitável’ e ‘covardia/injustiça/abuso’.
Para tanto, a análise exposta tratou de compreender como o corpo da atleta Tiffany pode ser
entendido como território, indo além, pudemos pensar como os corpos divergentes da norma
heterossexual e binária tornam-se passíveis da brutalidade, de estigmas e passam a ser entendidos
como corpos abjetos, isto é, corpos não passívies de luto, mas sim passiveis de controle, regulações
e estigmas. Tal concepção contribui para compreender o corpo como o primeiro território de
dominação e estigmatização. É esse corpo com as mais variadas marcas que tentará viver e sobreviver
nos mais diferentes espaços. Sendo assim, é possivel compreender que pessoas com corpos
dissidentes a norma heterossexual buscam viver e produzir suas subjetividades, em meio a uma
sociedade estruturada em conpeções e cultura que nega direitos e invisibiliza um direito básico que é
existir como se é/está.

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BUTLER, Judith. Critically Queer. In Playing with Fire: Queer Politics, Queer heories. Ed. Shane
Phelan. New York & London: Routledge.11-29, 1990.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

______. A reivindicação da não violência. In: __________. Quadros de guerra: quando a vida é
passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FOUCAULT, Michael. A Ordem do Discurso: Aula Inaugural no Collége de France, pronunciada


em 2/12/1970. São Paulo: Edições Loyola, 1971/1996.

499
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com
as normas de gênero. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2014.

LEFEBVRE, Henri. Espacio y política: El derecho a la ciudad, II. Barcelona: Ediciones península,
1972.

NATIVIDADE, Marcelo Tavares; OLIVEIRA, Leandro. “Nós Acolhemos os Homossexuais”:


Homofobia pastoral e Regulação da Sexualidade. Tomo. São Cristovão-SE. nº. 2009.

MONDARDO, Marcos Leandro. O Corpo enquanto “primeiro” território de dominação: O biopoder


e a sociedade de controle. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. Disponível em: <
http://www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 03 abr. 2018.

MOREIRA, Ruy. O espaço e o contraespaço: as dimensões territoriais da sociedade civil e do estado,


do privado e do público na ordem espacial burguesa. In: Território, território(s). Programa de Pós-
Graduação em Geografia– PPGE UFF/AGB – Niterói, 2002.PERROT, Michele. As mulheres ou os
silêncios da história. Bauru, SP:EDUSC, 2005.

ORNAT, Márcio José. Território Descontínuo e multiterriterritorialidade na prostituição travesti


através do Sul do Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

ROSE, Gillian. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge. Cambridge: Polity
Press, 1993.

______. Performing Space. In: MASSEY, Doreen; ALLEN, John; SARRE, Phillip. Human
Geography Today. Cambridge: Polity Press, 1999.

SILVA, Joseli Maria. Geografias Subversivas. Discursos sobre Espaço, Gênero e Sexualidades.
Ponta Grossa: Toda Palavra, 2009.

SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose. Corpo como espaço: Um desafio à imaginação
geográfica. 2016.

500
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - ÉTICA, POLÍTICA E ESTUDOS DE
GÊNERO
COORDENAÇÃO
Dra. Angela Quintanilha Gomes – UNIPAMPA
Dra. Lauren de Lacerda Nunes – UNIPAMPA

501
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PLANEJAMENTO REPRODUTIVO SOB A ÓTICA MASCULINA DURANTE A
GRAVIDEZ

Camila Rebouças Fernandes238

Resumo: O presente estudo teve como objetivo descobrir se as experiências atuais de paternidade dos homens foram
planejadas. Essa pesquisa aconteceu durante o período da gravidez. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e
exploratório, realizado no serviço de pré-natal de uma unidade de saúde pública federal localizada no Rio de Janeiro.
Foram entrevistados dez homens que utilizavam este serviço. Dos dez homens entrevistados, cinco afirmaram que a
gravidez havia sido planejada, dois relataram que a gestação não tinha sido planejada, dois participantes disseram que a
gestação foi “mais ou menos” planejada e um entrevistado afirmou que ele e a gestante planejaram inicialmente e, depois
que desistiram da ideia de ter um filho, a gravidez já havia acontecido. A complexidade dos relatos dos entrevistados
indica que o planejamento reprodutivo é um fenômeno multideterminado e não se limita ao campo biológico, sendo
atravessado por elementos sociais, econômicos, políticos, culturais e, principalmente, de gênero.

Palavras-chave: Planejamento familiar; Serviços de planejamento familiar; Gravidez; Anticoncepção.

INTRODUÇÃO
A Lei nº 9263/1996 da Constituição Federal, também conhecida como Lei do Planejamento
Familiar (BRASIL, 1996) é uma parte fundamental da política de saúde e prevê o acesso de todos os
cidadãos, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), aos seguintes serviços: assistência à
concepção e contracepção, atendimento pré-natal, assistência ao parto, puerpério e pós-parto, controle
de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), controle e prevenção de cânceres cérvico-uterino,
de mama, de próstata e de pênis.
Também conhecido como planejamento reprodutivo, visto que não há a necessidade da
constituição de uma família para acessar o serviço, as ações que orientam essa iniciativa são de caráter
socioeducativo e de prevenção, com o objetivo de garantir acesso igualitário a informações, meios,
métodos e técnicas disponíveis para regular a fecundidade (BRASIL, 1996). Neste sentido, o
planejamento reprodutivo se configura como um avanço na saúde pública e, de uma forma geral, nos
direitos sociais dos sujeitos, que passam a dispor de possibilidades concretas para conduzir suas
trajetórias sexuais e reprodutivas de forma segura e com autonomia sobre seu próprio corpo.
A partir do planejamento reprodutivo, é possível viver a prática sexual com segurança e
proteção. Além disso, também é possível exercer o protagonismo, decidindo de forma horizontal com
a equipe de saúde qual método conceptivo ou contraceptivo se adequa mais confortavelmente à

238
Mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em
Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPDH-UFRJ). E-mail: camila-
fernandees@hotmail.com.
502
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
realidade dos sujeitos. O acesso a esse serviço propicia que os sujeitos escolham se querem ter filhos,
quantos filhos desejam ter e em qual momento da vida o desejam.
Diante disso, a instituição da Lei do Planejamento Familiar (BRASIL, 1996) também se
configura como um reconhecimento de que a maternidade e a paternidade não são acontecimentos
naturais decorrentes do destino de toda mulher e de todo homem, uma vez que oferece subsídios para
que os sujeitos não vivam essa experiência, se assim desejarem. Ao entender que nem todo homem e
nem toda mulher desejam ter filhos, o planejamento reprodutivo acaba por reconhecer o surgimento
das novas configurações familiares e, portanto, a pluralidade das famílias, que não necessariamente
precisam se constituir de mulher-mãe, homem-pai e filhos.
Apesar dos variados serviços ofertados pelo planejamento reprodutivo, deixando explícito que
este não se restringe ao processo de contracepção, ainda é comum que muitos sujeitos, incluindo
profissionais, enxerguem esta prática única e exclusivamente como um caminho contraceptivo. Esta
percepção reduz o planejamento reprodutivo a perspectivas biologicistas e medicalizantes de controle
de natalidade, desconsiderando todos os seus aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos e
se configura como uma herança cultural de um país onde o processo de planejamento reprodutivo
passou por toda uma trajetória de moralidade, antes de ser reconhecido como um direito social no
âmbito da política de saúde
Fazendo uma breve ilustração do complexo percurso do planejamento reprodutivo no Brasil,
vale a pena destacar o Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC),
originado em 1974 em um contexto de fomento de políticas antinatalistas de agências internacionais
em países considerados periféricos, e que conta com um histórico polêmico de acusações de
esterilização feminina em massa e estudos desenvolvidos em mulheres com anticoncepcionais
contraindicados pelo Ministério da Saúde na época (ANDREA ALVES, 2014).
No período de implementação do CPAIMC, instituição filantrópica, não se pensava em
contracepção masculina, o que ajuda a explicar muitos dos resquícios de gênero atuais na concepção
e na contracepção, ainda muito centralizados na mulher. Andrea Alves (2014), ao entrevistar um dos
idealizadores da instituição, identificou discursos biomédicos, moralistas e classicistas, atribuindo a
necessidade de esterilização cirúrgica a mulheres empobrecidas como forma de melhorar sua
qualidade de vida.

503
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O planejamento reprodutivo era difundido como um meio do país alcançar o desenvolvimento
social e econômico (ANDREA ALVES, 2014), vinculado a uma imagem higienista, atribuindo às
mulheres empobrecidas uma “falta de planejamento” e responsabilizando-as não somente por sua
condição de pobreza, mas também pelo “atraso” do país em relação ao demais.
Diante disso, cabe elucidar que a Lei do Planejamento Familiar (BRASIL, 1996),
regulamentada e preconizada pelo SUS, ainda que precise avançar e encontre entraves em sua
materialidade, se configura como um grande avanço nos direitos sexuais e reprodutivos. Ao comparar
o planejamento reprodutivo que temos hoje com o modelo instituído pelo CPAIMC, cabe destaque a
prevenção das IST, visto que a antiga instituição promovia a esterilização feminina visando a queda
de natalidade, mas não dispunha de estratégias para promoção da saúde e prevenção e tratamento de
IST.
Diante do cunho moral que circunscreve a trajetória do planejamento reprodutivo no Brasil, é
possível observar que muitas produções científicas ainda costumam negar as múltiplas esferas que
permeiam a saúde sexual e reprodutiva dos sujeitos e, ao discutir gestações não planejadas como
“fracasso conceptivo” acabam por relacionar o fenômeno à pobreza e à ignorância (CRISTIANE
CABRAL, 2017, p. 1101).
Além disso, grande parte da bibliografia que discute planejamento reprodutivo, o faz
enfocando suas discussões diretamente nas mulheres, desconsiderando o público masculino nas
temáticas de gravidez, concepção e contracepção (CRISTIANE CABRAL, 2017). Essa tímida
abordagem dos homens na vida reprodutiva está atrelada à histórica naturalização da saúde
reprodutiva como esfera exclusivamente feminina, enxergando na gestação um fenômeno puramente
biológico e pertencente à mulher (CRISTIANE CABRAL, 2017; CLARICE MARCOLINO;
ELIZABETH GALASTRO, 2001).
Neste sentido, é preciso relativizar a noção de planejamento reprodutivo, uma vez que este
ainda é, muitas vezes, calcado no discurso biomédico racionalizante, que não necessariamente
corresponde ao cotidiano dos sujeitos. É necessário, ainda, reconhecer seus atravessamentos de
gênero e problematizar o envolvimento masculino com a concepção e a contracepção numa
perspectiva de não culpabilização desses sujeitos, entendendo que historicamente os homens são
afastados dos espaços de cuidado.

504
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Também cabe refletir que as instituições de saúde são tradicionalmente hierarquizadas e
construídas a partir de relações verticalizadas entre os profissionais de saúde e entre os profissionais
e os usuários dos serviços. Este ainda é um grande desafio para a vinculação dos homens a estes
espaços e para o estabelecimento de relações horizontalizadas, com linguagem acessível e
democrática, de modo que atraia este público e o enxergue como sujeito de direitos na tomada de
decisões sobre seu próprio corpo.
Conforme apontado pela literatura científica, grande parte das discussões sobre planejamento
reprodutivo ainda têm sido centralizadas na figura feminina, marginalizando a participação dos
homens neste processo. Diante disso, o presente estudo teve como objetivo descobrir se as
experiências atuais de paternidade dos homens entrevistados foram planejadas. Por experiências
atuais de paternidade entende-se o período de gravidez pelo qual estavam passando naquele momento.
No decorrer do artigo será possível analisar que o planejamento reprodutivo é um processo
complexo e que não se resume a um planejamento ou a um não planejamento, porém, entender a
materialização dessa experiência é importante para perceber como os homens a vivenciam.

METODOLOGIA
Esta é uma pesquisa de caráter qualitativo, descritivo e exploratório, que se originou de uma
dissertação de mestrado. O campo escolhido para a coleta de dados foi a Unidade de Produção Pré-
Natal do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira
(IFF/Fiocruz), referenciado nacionalmente pelo Ministério da Saúde, localizado no Rio de Janeiro.
Como critérios de inclusão, os participantes dessa pesquisa precisavam ter pelo menos 18 anos
e estar utilizando o serviço de pré-natal da referida unidade. Observando os aspectos éticos de
pesquisa com seres humanos, foram excluídos homens-pais de fetos considerados incompatíveis com
a vida, considerando os possíveis danos que a pesquisa poderia desencadear. Também foram
excluídos deste estudo homens-pais de gêmeos ou de bebês com diagnóstico suspeito ou confirmado
de malformação fetal, pois estes grupos apresentam questões específicas que implicam numa
abordagem diferenciada.
De acordo com a Resolução nº 446/2011 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP), em conformidade com a Resolução nº466/2012 do Conselho Nacional de Saúde

505
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(CNS), a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), recebendo o
Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 75566517.0.0000.5269.
O convite para participação no estudo foi feito individual e pessoalmente, considerando os
aspectos éticos em pesquisas com seres humanos. Foi explicitado que se tratava de uma participação
voluntária, não havendo obrigatoriedade e que, caso o entrevistado desejasse, poderia retirar sua
participação do estudo a qualquer momento – o que não aconteceu em nenhum dos casos. O serviço
de saúde ofereceu e garantiu declaração de comparecimento a todos os entrevistados.
Todos os homens convidados a participar do estudo foram informados sobre seus direitos e
sobre os objetivos da pesquisa, ao serem apresentados ao Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE). Ao concordarem e aceitarem participar da pesquisa, a documentação foi
devidamente assinada pelos participantes e pela pesquisadora. Antes de dar início às entrevistas, todos
os participantes concordaram que estas fossem digitalmente gravadas para fins de pesquisa.
Com o objetivo de garantir o sigilo e a confidencialidade das informações oferecidas, todos
os participantes deste estudo são referenciados por nomes fictícios e todos os seus valores sociais,
culturais, morais, religiosos e étnicos são respeitados. A escolha pela aplicação de entrevistas se
justifica pela importância de propiciar visibilidade aos discursos masculinos sobre planejamento
reprodutivo e acessar, através da fala, as visões de mundo e percepções desses sujeitos.
Diante disso, foram entrevistados dez homens, número definido pela técnica de saturação de
dados, onde os discursos expressos se repetem e a coleta deixa de produzir novas informações e, após
a realização das entrevistas, todo o material foi transcrito, constituindo o corpus da pesquisa
(BAUER; AARTS, 2008) que foi estudado por três fases através da análise de conteúdo na
modalidade temática (BARDIN, 1977).
Na primeira fase, houve uma pré-análise dos dados coletados através de uma leitura flutuante
visando contextualizar as falas. Na segunda etapa, o material foi explorado, havendo o ordenamento
de dados. Na terceira e última fase, os dados foram analisados e trabalhados para além do que foi
verbalmente exposto pelos entrevistados (BARDIN, 1977).
Posteriormente, todo o material foi sistematizado e articulado à literatura científica que versa
sobre o fenômeno estudado, cotejando os dados desta pesquisa com outros saberes, entendendo que
as discussões sobre planejamento reprodutivo não se limitam à área da saúde, se configurando
como multidimensional e interdisciplinar.

506
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Todos os participantes deste estudo estavam em um relacionamento afetivo com as gestantes
no momento das entrevistas. Este é um dado importante, pois pode impactar diretamente nas
experiências reprodutivas dos homens entrevistados.
Ao perguntar sobre o planejamento da gravidez atual, as respostas foram diversificadas. Cinco
entrevistados afirmaram que a gestação foi planejada, dois relataram que a gestação não foi planejada,
dois disseram que a gravidez foi “mais ou menos” (sic) planejada e um entrevistado relatou que no
início ele e a companheira planejaram, mas depois foram desistindo da ideia por influência de alguns
fatores que serão trabalhados posteriormente.
Nos cinco entrevistados cujas gestações foram planejadas, os relatos foram semelhantes:

Foi, foi planejada... Pedimos muito à Deus por essa bênção e chegou o momento (Augusto,
42).

Sim, foi planejada... Porque a primeira gestação, ela [a gestante] perdeu [sofreu aborto]. Aí
ela já tava se tratando para fazer... Só que aí aconteceu antes do tratamento concluir. Então,
foi planejado sim (Cesar, 26).

Sim, planejada. Já há dois anos que ela [a gestante] não toma remédio [pílula
anticoncepcional], né?! E, assim, a gente não tava tentando nesses dois anos, mas
automaticamente assim, a gente já tinha a cabeça bem esclarecida em relação a isso de: ah,
se vier, beleza, seria legal e tal... (Jorge, 28).

Sim. A gente conversou que era o momento, até mesmo pela idade... Nós [ele e a gestante]
temos a mesma idade, né?! 35 anos... (Luiz, 35).

Foi. A gente é casado [ele e a gestante] há dez anos e antes de completar dez anos, a gente
começou realmente a planejar o filho e foi isso, entendeu?! Em cerca de sete meses a gente
conseguiu conceber (Noel, 36).

Conforme mencionado anteriormente, todos os participantes deste estudo tinham um vínculo


afetivo com a gestante. Mesmo aqueles que não coabitavam, tinham uma relação de namoro e, por
conta da gravidez, estavam se organizando para morar juntos até o nascimento da criança. Com isso,
todos os participantes mencionam a figura da companheira em seus relatos ao falar sobre o
planejamento da gravidez, indicando que esta não foi uma decisão isolada.
Diversos fatores parecem influenciar no planejamento reprodutivo dessas famílias: no
caso de Augusto, o entrevistado de maior idade e de religião evangélica, percebe-se o uso do
507
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
discurso religioso para demonstrar o quanto a criança era desejada; já no caso de Cesar, que havia
passado por uma experiência de aborto, o casal estava em fase de tratamento de saúde para engravidar,
até que foi surpreendido com a notícia da gestação antes mesmo da conclusão do tratamento; para
Jorge, a gestação estava sendo planejada já que ele e a companheira não faziam uso de métodos
contraceptivos e estavam de acordo caso uma gravidez acontecesse; no caso de Luiz, a idade do casal
determinou o momento da gestação e, para Noel, o tempo de relacionamento afetivo entre o casal
definiu o planejamento da gravidez.
Pode-se afirmar que, apesar dos cinco relatos se assemelharem na resposta positiva ao
planejamento de uma gravidez e fazerem alusão à figura das respectivas gestantes, as motivações para
essa experiência são heterogêneas. Pensando no caso de Luiz, em que a faixa etária dele e da
companheira definiu a concepção, a literatura científica aponta que as opções de idade para os homens
se tornarem pais é mais diversificada do que para as mulheres se tornarem mães, o que pode se
justificar pelo fato da fertilidade masculina ser mais longa que a feminina (LAURENCE TAIN,
2005).
Contudo, a autora aponta que, por ser um fenômeno social, a discussão sobre a faixa etária na
gravidez não deve se limitar aos fatores biológicos e que, ainda assim, os homens que se tornam pais
com maior idade não parecem ser motivo de tanta preocupação para a classe médica como acontece
com as mulheres. Para Laurence Tain (2005), a discrepância nas idades-limites determinadas para
homens e mulheres conceberem vai além das questões de saúde, adentrando as relações sociais entre
estes grupos e demarcando mais um privilégio ao público masculino, que não precisam adiar a
paternidade para se inserir no mercado de trabalho e alcançar maior escolarização, fenômeno
recorrente entre as mulheres.
No presente estudo, nos dois entrevistados que afirmaram que a gestação não foi planejada,
vale a pena observar os seguintes relatos:

Não. Aconteceu que a gente [ele e a gestante] tava fazendo a prevenção como o médico
passou pra gente, as injeções dela, só que não surtiu efeito... Logo depois de uns meses, a
gente descobriu que ela tava grávida. No caso, eu aceitei, assim, com um pouco de medo por
experiência da primeira gravidez dela, que a gente passou muito sufoco, muita dificuldade...
Mas, como a gente tava tendo um pouco mais de assistência da família e tudo mais, eu não
fiquei tão nervoso. Essa gestação tá bem mais tranquila (Carlos, 28).

Não. A injeção não funcionou. (...) Ela [a gestante] sempre quis ter um filho, sempre
falou, mas só comentando de bobeira, né?! A gente nunca acreditou nisso não... É... A
508
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gente já tomou um sustozinho no começo, só que a gente não acreditou muito não. (...)
Quando realmente a gente foi fazer o teste, esse da última vez, a gente tava terminando [o
relacionamento] e aconteceu um problema, a gente descobriu e eu falei “cara, vou ter que
ficar junto com ela pra ver o que que é, porque se for isso mesmo...” Família, minha família...
Digamos que... Eles sabem que não é a boa porque ter um filho agora, eu não ganho bem
ainda, ela não trabalha, então a gente tava meio que complicado (Charles, 19).

Em ambos os casos de gestação não planejada, as mulheres faziam uso do mesmo método
contraceptivo, o injetável. Este é um dado importante de problematizar, pois ainda hoje, discursos do
senso comum como “só engravida quem quer” são facilmente encontrados. Apesar dos avanços nos
direitos sexuais e reprodutivos e das maiores possibilidades de os sujeitos exercerem controle sobre
sua reprodução, é importante lembrar que nenhum método contraceptivo tem total garantia de
eficácia.
Além disso, o método que vinha sendo utilizado pelas gestantes que não planejavam ter filhos
(injetável), apesar de em alguma medida evitar gravidez, não protege de IST. O único método que
previne IST, o preservativo, não foi mencionado por nenhum dos entrevistados. Não cabe aprofundar
essa discussão, já que os entrevistados não foram perguntados sobre isso ao longo das entrevistas,
mas vale a pena refletir se a ausência do preservativo estaria ligada ao relacionamento existente entre
eles e as gestantes, já que em relacionamentos afetivos considerados sólidos, dificilmente há a adesão
diária do preservativo, se justificando numa possível confiabilidade e fidelidade entre o casal.
Observando especificamente o caso de Carlos, percebe-se que a gravidez atual vem
acompanhada de uma memória não muito positiva, cuja gestação havia sido conturbada e o bebê
gerado nasceu prematuro na mesma unidade de saúde e, posteriormente, foi à óbito. Em diversos
momentos da entrevista, Carlos ressaltava que não se sentia preparado para passar pela experiência
da gravidez mais uma vez naquele momento, visto que para ele, o processo de luto foi pouco
espaçado, à nível temporal e emocional. Apesar disso, ele chama a atenção para o suporte familiar
que ele e a gestante recebem e a dimensão que essa assistência adquire.
O suporte familiar atua como um diferencial para o exercício da paternidade, ainda que no
período da gravidez, em que a rede de apoio intrafamiliar ou extrafamiliar (amigos, vizinhos,
profissionais) tem o potencial de melhorar a qualidade de vida dos homens-pais (e das mulheres-
mães), proporcionando experiências mais positivas para esses sujeitos. Neste sentido, a rede social
de apoio é importante para as famílias, principalmente diante do nascimento de uma criança, que

509
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
implica em diversas transformações (MARIA AUXILIADORA DESSEN; MARCELA BRAZ, 2000;
MAÍRA OLIVEIRA; MARIA AUXILIADORA DESSEN, 2012).
A rede social de apoio pode se dar de forma objetiva e material, através de auxílio financeiro
e divisão de tarefas, bem como de modo emocional, a partir do vínculo, da afeição e da preocupação
com o outro, podendo tornar as vivências das famílias mais saudáveis à nível de saúde mental, já que
o nascimento de um filho desencadeia novidades, anseios, desejos e preocupações (MARIA
AUXILIADORA DESSEN; MARCELA BRAZ, 2000; MAÍRA OLIVEIRA; MARIA
AUXILIADORA DESSEN, 2012).
Principalmente na situação de Carlos, que passou pela experiência de perda, o apoio social,
seja intrafamiliar ou extrafamiliar, assume grande magnitude. Segundo ele, suas preocupações têm
sido minimizadas graças ao suporte recebido. Zélia Biasoli-Alves, Stella Simionato-Tozo e Mirian
Sagim (2012) chamam a atenção para a importância que a família extensa vem conquistando ao longo
do tempo, atuando como rede de apoio em diversos momentos da vida familiar, inclusive no
nascimento de novos integrantes.
A realidade de Charles é um pouco diferente da situação de Carlos. Charles é o participante
mais jovem da pesquisa, integrando uma faixa etária ainda considerada como juventude, estava em
fase de conclusão do ensino médio durante a entrevista e apesar de trabalhar, se caracteriza como um
dos entrevistados de menor renda individual. Charles mantinha uma relação de namoro com a gestante
e ambos coabitavam com suas respectivas famílias de origem. O relacionamento entre eles estava
estremecido antes da descoberta da gravidez.
Observando a fala de Charles, fica explícito que o fato de ele ser jovem e ter uma remuneração
salarial considerada baixa, são fatores que ele reconhece como desvantajosos para o exercício da
paternidade. Mesmo residindo com sua família de origem e contando com seu apoio, ele reconhece
que a família pensa que este não era o momento “certo” para ele se tornar pai. O que se assemelha na
fala de Carlos e de Charles, além de ambos se tornarem pais em decorrência de falha de um mesmo
contraceptivo, é que o posicionamento de suas famílias frente a gravidez se mostra como um elemento
importante para eles: ao passo que Carlos vive a experiência com menos preocupações graças ao
apoio familiar, Charles percebe uma desaprovação advinda de sua família.
Voltando mais especificamente para a fala de Charles, não se pode deixar de abordar a
dimensão que a descoberta da gravidez adquire ao fazê-lo considerar a retomada de um

510
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relacionamento que estava em processo de desconstrução. Parece que a gestação funciona como um
indicativo de como “deve ser” a relação entre a mulher-mãe e o homem-pai. Esta é uma discussão
que também se aproxima da construção da “honra masculina”, uma vez que seu afastamento da
gestante naquele momento poderia ser socialmente interpretado como abandono, ainda que ele se
responsabilizasse pelos cuidados com a criança em todas as esferas.
À nível de ilustração, Naiana Patias e Ana Cristina Dias (2013), ao desenvolverem um estudo
com mulheres adolescentes grávidas e não-grávidas, perceberam que as gestantes iam morar com os
pais de seus filhos motivadas pela gravidez e pela possibilidade de ter relações sexuais com maior
liberdade, enquanto que as não-grávidas pretendiam coabitar com seus namorados somente quando o
relacionamento pudesse ser considerado mais sólido.
Como a sociedade ainda percebe a prática sexual adolescente com estranheza, principalmente
quando esta resulta em gravidez, muitas vezes o casamento surge como possibilidade de “reparar um
erro” e recuperar a reputação dos jovens. Apesar de Charles ter explicitado que sua família
demonstrava que aquele não era o momento “ideal” para a paternidade, ele não mencionou maiores
pressões familiares para que ele se unisse à gestante, tanto por parte de sua família quanto pela família
dela.
A seguir serão apresentadas as falas dos participantes que consideram que a gestação foi “mais
ou menos” planejada:

Mais ou menos. Porque ela [a gestante] queria, mas não queria, por causa que ela já tinha
perdido dois... (Mário, 24).

Mais ou menos (risos). Ela [a gestante] queria muito, ela sempre gostou de criança. E eu, no
momento não queria porque na época eu tava desempregado, consegui um emprego... Só que
eu tô ficando já velho, então eu pensei em ter um filho e tal... Porque eu sempre... Eu sou
filho único e sempre quis dar, tipo, continuidade pra minha família. Entendeu?! Aí eu quis
dar uma continuidade pros meus pais, uma continuidade pro nome... (risos) (Olavo, 28).

Nos relatos de Mário e Olavo, ambos deixam explícito que suas companheiras desejavam uma
gravidez. No primeiro caso, Mário faz menção às experiências de aborto pelas quais ele e a
companheira passaram, sendo essas memórias integrantes de um receio de que a experiência atual
não fosse considerada exitosa.
Já Olavo, explica que apesar da companheira desejar um bebê, ele não compartilhava
dessa vontade por conta do desemprego que estava vivenciando na época. Em seguida, ao
511
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conseguir se reinserir no mercado de trabalho, Olavo começou a se interessar pela ideia de ter um
filho, segundo ele pela sua idade, o que é curioso, já que ele não é um dos entrevistados de maior
idade nesse estudo, tendo apenas 28 anos. Outro elemento presente na fala de Olavo, apesar do clima
de descontração, é a importância atribuída à descendência familiar, principalmente pelo fato de ele
não ter irmãos.
Sobre a reinserção de Olavo no mercado de trabalho e sua ligeira mudança a respeito da
concepção, pode-se dizer que a dimensão do trabalho é muito significativa para os homens,
principalmente os desse estudo, aproximados de um modelo heteronormativo que ainda tende a
enxergar os homens como provedores do lar.
Quanto a importância atribuída à descendência familiar, é possível afirmar que a paternidade
também é vista como a oportunidade de deixar um legado, um registro para a posteridade, onde o
vínculo sanguíneo parece ter um forte peso simbólico. Há que se considerar que os laços biológicos
adquirem tanto significado social, que em casos de solicitação de comprovação, as vivências e os
aprendizados anteriores que a paternidade possa ter proporcionado são desconsiderados, ficando a
paternidade condicionada a um documento: se não há comprovações biológicas, não há paternidade.
Assim, o reconhecimento médico e jurídico da paternidade desempenha, historicamente, um
papel importante, especialmente para garantir a estabilidade dos filhos na transmissão patrimonial,
no sustento financeiro e na permissão para utilizar o nome da família (SABRINA FINAMORI, 2012).
Embora a fala de Olavo não esteja atrelada à comprovação de paternidade, a importância atribuída ao
“legado familiar” em muito se relaciona com essa concepção biologicista de paternidade, já que esse
reconhecimento é capaz de localizar os indivíduos socialmente – principalmente os filhos – e de
expressar sua cidadania.
Diferente dos casos anteriores, em que as gestações foram ou não planejadas ou, em alguns
casos, “mais ou menos” planejada, o relato do entrevistado a seguir traz a complexidade atribuída ao
percurso do planejamento reprodutivo. Ele afirma que inicialmente ele e a gestante planejavam uma
gravidez, mas após refletirem sobre o número de filhos anteriores da companheira, acrescido ao seu
filho anterior, eles desistiram da ideia de gerar um filho biológico dos dois. No entanto, quando
chegaram a essa conclusão, a gravidez já havia acontecido:

No começo a gente [ele e a gestante] planejou, só que aí depois a gente... Eu já tenho


mais três enteados, o mais velho tem 18 [idade], a menina, 15 e o mais novo tem 8. Aí
512
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a gente planejou, mas já tem... Já estão grandes, já têm uma certa idade. Aí a gente já começa
a cuidar da gente, ia ficar, no caso, só o meu [filho anterior] pequeno. Só que aí ela foi e
engravidou. A gente tava planejando, aí quando desistiu, já tinha... (Oswaldo, 29).

Apesar de o participante não mencionar diretamente o fator socioeconômico, sabe-se que este
é um ponto capaz de determinar o planejamento reprodutivo dos sujeitos, principalmente no caso de
Oswaldo, que no momento da entrevista estava desempregado. Oswaldo chama a atenção para seu
filho biológico já existente e os seus enteados, atentando para sua faixa etária e que, como os enteados
já estão relativamente crescidos, ele e a companheira começam a cuidar de si, conforme dito em sua
fala, tendo apenas uma criança de menos idade com maiores demandas, que é o seu filho biológico.
Contudo, cabe destacar que mesmo com o desemprego, com os enteados e o filho biológico
anterior, Oswaldo chegou a compartilhar com sua companheira do desejo de ter um filho biológico
dos dois, o que também pode ser interpretado como uma das formas de validar socialmente a relação
do casal ou como pura e simplesmente um desejo de passar por uma nova experiência de paternidade,
já que em alguns momentos da entrevista, Oswaldo dizia que teve pouco contato com seu filho
biológico ao nascer.
Segundo o entrevistado, ele e a mãe da criança não coabitavam e, como a criança reside com
a mãe, somente depois de um período, ele conseguiu estabelecer e fortalecer um vínculo com a
criança, quando esta já podia passar os fins de semana em sua companhia. Neste sentido, a demanda
inicial de Oswaldo em vivenciar o período da gravidez e do nascimento de um filho podem significar
uma experiência de paternidade menos limitada.
Outro elemento também chama a atenção na fala de Oswaldo: em determinado momento ele
diz “(...) só que aí ela foi e engravidou”. Pela entoação da fala do entrevistado, pode-se dizer que a
frase mais se assemelha a um modo de dizer do que a uma responsabilização da mulher intencional.
Contudo, mesmo sem a intenção direta de responsabilizá-la integralmente pela concepção, vale a pena
destacar que esse tipo de colocação ajuda a legitimar a ideia culturalmente enraizada de que a mulher
ainda se configura como a principal ou exclusiva responsável pelos processos de concepção e
contracepção.
Segundo Maria Silva Soares et al. (2014), a responsabilização feminina por esses processos
está intimamente relacionada ao frágil entrosamento dos homens com os serviços de saúde,
corroborando em seu desconhecimento sobre a Lei do Planejamento Familiar (BRASIL, 1996) e
sobre a saúde sexual e reprodutiva como um todo.
513
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nesse estudo, no caso dos homens que afirmavam que a gestação não foi planejada, a
contracepção acontecia diretamente no corpo da mulher, através do método injetável, que falhou. Em
um dos casos em que a gravidez foi planejada, o entrevistado mencionou que a companheira havia
encerrado o uso da pílula anticoncepcional. Esses relatos indicam que tanto nos casos de planejamento
quanto nos de não planejamento da gravidez, os métodos vinham sendo aplicados diretamente nas
mulheres.
Algumas autoras afirmam que, mais especificamente nos casos de contracepção, a
participação masculina tende a se ancorar em um apoio à mulher para que as intervenções (sejam elas
cirúrgicas ou não) aconteçam no corpo dela. Ou seja, os homens apoiam práticas contraceptivas nos
corpos das mulheres, em vez de adotar a contracepção em seus próprios corpos (CLARICE
MARCOLINO; ELIZABETH GALASTRO, 2001; MARIA SILVA SOARES ET AL., 2014).
Neste sentido, ao mesmo tempo que exercem um certo controle sobre os corpos das mulheres
por conta das hierarquias de gênero, os homens também acabam por se tornar “espectadores passivos
das decisões contraceptivas” (CRISTIANE CABRAL, 2017, p. 1095), já que assumem uma
participação muito limitada nesses processos.
Outro fator que colabora para o afastamento masculino da tomada de decisões conceptivas e
contraceptivas e que está intimamente ligado às relações de gênero, é a naturalização dos
comportamentos que ainda reproduz uma ideia de que, quando se trata de prática sexual, o homem é
instintivo e impulsivo (CRISTIANE CABRAL, 2017; MARIA SILVA SOARES ET AL., 2014), sem
condições de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos com racionalidade.
Algumas autoras afirmam que as iniquidades de gênero ainda não foram superadas no âmbito
do planejamento reprodutivo, indicando que as políticas públicas nessa área ainda têm se mostrado
falhas (CRISTIANE CABRAL, 2017; MARIA SILVA SOARES ET AL., 2014). Apesar dos avanços
conquistados na esfera dos direitos sexuais e reprodutivos, à exemplo da Lei do Planejamento
Familiar (BRASIL, 1996), há que se considerar que as políticas ainda tendem a ignorar as múltiplas
dimensões que circunscrevem a contracepção (e a concepção), desconsiderando a interação entre os
sujeitos e os fatores multideterminados ligados ao fenômeno (CRISTIANE CABRAL, 2017).
Neste âmbito, é necessário problematizar que o planejamento reprodutivo envolve toda uma
atuação de caráter socioeducativo, multiprofissional e interdisciplinar, não se restringindo à
dispensação de métodos contraceptivos. Mais do que o cumprimento de uma preconização do

514
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SUS, o planejamento reprodutivo impõe desafios diários aos profissionais de saúde, demandando
maiores reflexões sobre as relações assimétricas de gênero entre homens e mulheres na promoção e
prevenção de saúde e em como o contexto social, econômico, político e cultural incide diretamente
nas trajetórias reprodutivas dos sujeitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Metade dos participantes desse estudo afirmou que sua experiência de paternidade atual,
naquele momento durante a gestação, havia sido planejada. O restante dos entrevistados, cujas
gestações foram não planejadas, “mais ou menos” planejadas ou planejadas e depois não planejadas,
acolhiam a paternidade mesmo assim. Apesar de isso não ter sido diretamente perguntado aos
participantes, pode-se levantar a hipótese de que as gestações não planejadas foram acolhidas por
esses homens muito por conta do vínculo afetivo existente entre eles e as gestantes.
Todos os entrevistados cujas gestações foram planejadas mencionavam a figura da
companheira em seus relatos, indicando que as decisões contraceptivas foram compartilhadas em
alguma medida. Apesar dessa semelhança, as motivações para o planejamento da gravidez eram
heterogêneas: a gestação como uma alegria demonstrada pelo discurso religioso; a experiência como
uma surpresa antes de um tratamento de saúde ser concluído; a interrupção do método contraceptivo
para que uma gravidez pudesse acontecer; a faixa etária do casal e o tempo de relacionamento entre
o entrevistado e a gestante.
Nos dois participantes cujas gestações não foram planejadas também houve semelhança: em
ambos os casos, as gestantes usavam método contraceptivo injetável quando este falhou, sendo
surpreendidos com a notícia da gravidez. Esses casos desconstroem o mito de que hoje em dia é
impossível engravidar sem planejar, já que nenhum método contraceptivo é 100% confiável. Além
disso, cabe acrescentar que nenhum dos participantes deste estudo mencionou o uso de preservativo
em seus planejamentos, indicando que nenhum desses casais fazia a prevenção de IST até o momento
das entrevistas.
O percurso sexual e reprodutivo dos sujeitos é complexo e recebe impacto de diversas esferas
para além do campo da saúde. Assim, o planejamento reprodutivo não é um processo tecnocrático
que possa ser resumido em “planejado” ou “não planejado”, à exemplo dos entrevistados que
afirmaram que suas experiências atuais de paternidade foram “mais ou menos” planejadas ou do

515
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
entrevistado que relatou que inicialmente ele e a companheira planejaram uma gravidez, mas quando
desistiram da ideia, a gestação já estava em curso.
No caso de alguns entrevistados, a família para além da companheira pode adquirir grande
importância na experiência de paternidade, mesmo que durante a gravidez. Em uma situação
específica a família foi percebida como rede de apoio e proporcionava certa tranquilidade ao
entrevistado. Em outro caso, o participante percebia que a família não aprovava o momento de sua
vida em que ele estava se tornando pai.
Apesar do planejamento reprodutivo se configurar como um grande avanço no campo da
política de saúde e dos direitos sociais dos cidadãos, percebe-se que a figura masculina ainda assume
uma participação lateral nos processos de concepção e contracepção. Neste sentido, sugere-se que as
equipes de saúde e os serviços, especialmente os de pré-natal, atentem para as questões de gênero, e
os demais fatores sociais que influenciam na reprodução dos sujeitos, percebendo no pré-natal um
momento estratégico para oportunizar e valorizar a presença desses homens nos serviços de saúde.
Finalmente, é preciso reconhecer que este estudo trabalha com um universo de participantes
que em muito se aproxima do modelo heteronormativo de masculinidade e paternidade. Diante disso,
não foram contemplados nessa pesquisa homens-pais transexuais, homoafetivos, adotivos e/ou solos,
ainda que estes não fossem critérios de exclusão para participação no estudo. A caracterização dos
participantes já era prevista ao longo do delineamento da pesquisa, visto que os homens-pais
mencionados acima dificilmente são encontrados em serviços de pré-natal.
Diante disso, espera-se que este estudo possa contribuir para as análises já existentes e que
também possa impulsionar novos estudos, contemplando a discussão de planejamento reprodutivo a
partir dos discursos masculinos em sua diversidade.

REFERÊNCIAS

ALVES, Andrea Moraes. A trajetória do Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à


Criança (1975-1992). Revista de Ciências Sociais, v.4, n.2, p.180-216, jul./dez. 2014. Disponível
em: https://periodicos.ufsm.br/seculoxxi/article/view/17042. Acesso em 22 jul. 2020.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 225 p.

516
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BAUER, M.W.; AARTS, B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos.
In: BAUER, M.; GASKELL, G. (Orgs). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
manual prático. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 39-63.

BIASOLI-ALVES, Zélia Maria Mendes; SIMIONATO-TOZO, Stella Maria Poletti; SAGIM, Mirian
Botelho. Valores e práticas – permanências e mudanças – estudo de famílias trigeracionais. Fam.
Saúde Desenv., Curitiba, v.8, n.1, p. 26-31, jan./abr. 2006. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/refased/article/view/7995/5640. Acesso em 22 jul. 2020.

BRASIL. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa: Resolução 446, de 11/08/2011.

______. Conselho Nacional de Saúde: Resolução 466, de 12/12/2012. Disponível em:


http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html. Acesso em 22 jul.
2020.

______. Planejamento Familiar: Lei 9.263, de 12/01/1996. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9263.html. Acesso em 22 jul. 2020.

CABRAL, Cristiane Silva. Articulações entre contracepção, sexualidade e relações de gênero. Saúde
Soc., São Paulo, v.26, n.4, p. 1093-1104, 2017. Disponível em:
https://www.scielosp.org/pdf/sausoc/2017.v26n4/1093-1104/pt. Acesso em 22 jul. 2020.

DESSEN, Maria Auxiliadora; BRAZ, Marcela Pereira. Rede social de apoio durante transições
familiares decorrentes do nascimento de filhos. Psicologia: teoria e pesquisa, v.16, n.3, p. 221-231,
set-dez 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ptp/v16n3/4809.pdf. Acesso em 22 jul. 2020.

FINAMORI, Sabrina Deise. Os sentidos da paternidade: dos “pais desconhecidos” ao exame de DNA.
2012. 330p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2012. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/280378/1/Finamori_Sabrina_D.pdf. Acesso em 22
jul. 2020.

MARCOLINO, Clarice; GALASTRO, Elizabeth Perez. As visões feminina e masculina acerca da


participação de mulheres e homens no planejamento familiar. Rev. Latino-am. Enfermagem, v.9,
n.3, p.77-82, maio 2001. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rlae/article/view/1571/1616.
Acesso em 22 jul. 2020.

OLIVEIRA, Maíra Ribeiro; DESSEN, Maria Auxiliadora. Alterações na rede social de apoio durante
a gestação e o nascimento de filhos. Estudos de Psicologia, Campinas, v.29, n.1, p. 81-88, jan-mar
2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3953/395335577009.pdf. Acesso em 22 jul. 2020.

PATIAS, Naiana Dapieve; DIAS, Ana Cristina Garcia. Opiniões sobre maternidade em adolescentes
grávidas e não-grávidas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v.65, n.1, p. 88-
102, 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v65n1/v65n1a07.pdf. Acesso em
22 jul. 2020.
517
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SILVA SOARES, Maria Cidney. et al. Conhecimento masculino sobre métodos contraceptivos. Rev.
Bras. Promoç. Saúde, Fortaleza, v.27, n.2, p.232-238, abr./jun. 2014. Disponível em:
https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/view/2580/pdf. Acesso em 22 jul. 2020.

TAIN, Laurence. Um filho quando eu quiser?: o caso da França contemporânea. Estudos Feministas,
Florianópolis, v.13, n.1, p. 53-67, jan-abr. 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ref/v13n1/a04v13n1.pdf. Acesso em 22 jul. 2020.

518
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A LUTA PELO COMBATE AO CONSERVADORISMO X A VIABILIZAÇÃO DE
DIREITOS - ABORTO E SERVIÇO SOCIAL

Liandra Lima Carvalho239


Tamires Carvalho da Silva240

Resumo: O presente trabalho é fruto de um estudo acadêmico ainda em andamento sobre o olhar do Serviço Social sobre
o aborto, no Brasil , uma Monografia de Conclusão do Curso de Serviço Social, do Centro Universitário Redentor,
Unidade Paraíba do SUL/RJ. Parte-se da perspectiva de que a profissão tem como um dos princípios fundamentais a
defesa intransigente dos direitos humanos, tal comprometimento nasce do amadurecimento da profissão que possibilitou
uma visão crítica do fazer profissional contra o conservadorismo, onde a categoria firma seu compromisso com a classe
trabalhadora e consequentemente com a luta pelos direitos dos cidadãos frente a um cenário capitalista de recusa dos
mesmos. A luta intransigente pelos direitos humanos prevista pelo Serviço Social está ligada a busca pela emancipação
dos indivíduos, tratando-se da liberdade de se expressar e de fazer escolhas independente do padrão estabelecido pela
cultura do país. Dentre essas escolhas, podemos citar o ato de abortar na qual podemos observar, que o aborto e sua
criminalização no Brasil é uma problemática social pouco discutida pela categoria profissional, no entanto, o número de
abortos, sejam eles, legais ou ilegais, no país é significativo, muitas vezes tendo como resultado a mortalidade materna.
Palavras-chave: Aborto, Gênero, Serviço Social.

INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira tem suas raízes firmadas no patriarcado, um sistema de poder que
coloca o homem em posição superior ao da mulher. Por mais que estejamos no século XXI, o
patriarcado ainda está presente na sociedade e se reproduz através de ações machistas e
preconceituosas que partem do homem para com a mulher. (FREYRE, 1973). Falar de temas
relacionados às mulheres é um grande desafio, já que este não é o gênero dominante, como aponta
Bourdieu (1995).
Assim como a história do aborto se baseia no conservadorismo herdado como influência da
Igreja Católica (MARQUES et. all., 1998), o Serviço Social brasileiro também nasce em um berço
conservador, com bases na Igreja Católica, que acaba tornando a prática dos assistentes sociais de
caráter moralizador e acrítico (NETTO, 2005).
No entanto, a profissão passa por um processo de negação ao tradicionalismo , na tentativa de
romper com as práticas conservadoras e levar para a profissão um caráter mais crítico. A esse processo

239
Professora do curso de Serviço Social, do Centro Universitário Redentor, campus: Paraiba do Sul. E-mail:
liandralimacarvalho@gmail.com
240
Graduanda do curso de Serviço Social, do Centro Universitário Universitario Redentor, campus: Universitário
do Sul. E-mail: tamires.magic@gmail.com

519
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
se deu o nome de Reconceituação do Serviço Social que passou por alguns retrocessos no período da
Ditadura Militar (1964 – 1979). A categoria profissional a partir da década de 1980, fortalece-se e
assim imprime em seus Códigos de Ética, de 1986 e 1993, bem como em seu Projeto Ético Político,
seu compromisso com a classe trabahadora.
Mesmo após o avanço do Serviço Social em direção a recusa do conservadorismo, bem como
a luta pelos direitos humanos conquistados por meio do Movimento de Reconceituação, Netto aponta
houve apenas uma tentativa de ruptura com o conservadorismo, ou seja, o conservadorismo ainda é
existente na profissão (NETTO, 2005). Fica evidente assim o quanto colocar em prática o Código de
Ética Profissional e o Projeto Ético Político, significa ser contrário, a uma ordem societaria opressora,
exige esforço e compromisso com a classe subalterna. (IAMAMOTO,2007).
Partindo dessa perspectiva é que observamos o tema “aborto” dentro do Serviço Social, visto
que este ainda é presente na vida de muitas mulheres brasileiras, sendo considerado a quarta causa de
morte materna no país. (MARQUES et. all.,1998) e sua criminalização remete a recusa do direito a
liberdade de escolha e direitos reprodutivos. Criminalização essa, baseada em questões morais,
religiosas e éticas que remete o conservadorismo estrutural da sociedade brasileira (PREDEBON,
2007).

DESENVOLVIMENTO
Ao falarmos do termo “gênero”, nos remetemos a diferença sexual entre um indivíduo do sexo
masculino e outro do sexo feminino. No entanto, como diz Joan Scott (1995), as feministas
americanas começaram a usar o conceito de gênero para se referir à organização social entre os sexos
e só mais tarde passaram a usá-lo para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções
fundadas sobre sexo e rejeitar o determinismo biológico implícito nos termos "sexo" ou "diferença
sexual”
A gramática “gênero” não se limita apenas a diferenciação de sexos, mas é um elemento que
constitui as relações sociais influenciando e dando significado na divisão de poder presente na
sociedade (SCOTT, 1995).
Nesse sentido, para a autora, o gênero deve ser estudado como uma categoria analítica assim
como defende também Louise Tilly (1994), que traz um questionamento crítico sobre a forma
como a categoria gênero deve ser estudada, numa perspectiva menos descritiva sobre a trajetória

520
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
feminina e masculina e com uma visão mais ampliada e crítica dos fatos que deram origem aos
conceitos de dominação e poder relacionadas aos sexos.
As palavras de Scott (1995) e Tilly (1994) se encontram com as definições da gramática de
“gênero” apontadas por Bourdieu (1995).
Bourdieu (1995) aponta que o mundo está fundado numa concepção biológica que dá início a
divisão do trabalho e a construção de poder. Assim, nesta sociedade, o gênero masculino é tido como
o sexo dominante, isso pode ser percebido segundo o autor até mesmo nas relações sexuais onde se
foi construída a imagem do homem ativo e da mulher passiva. O autor descreve a dominação do
homem para com a mulher como algo cultural, biológico que surge do instinto humano.
Nesse cenário, Bourdieu (1995) mostra que o gênero feminino é visto como o sexo frágil,
dominável e que deve subordinação ao sexo masculino. Seria fácil explicar dessa forma, porém não
seria aceitável. Por isso há autores como Scotty (1995) e Tilly (1994) que defendem o “gênero” como
útil para uma análise histórica.
Se contrapondo a essa defesa Araújo vai dezer que a antropóloga Miryin Strathern, é contra o
estudo analítico do termo “gênero”, na qual acredita-se que a expressão nada mais é do que uma
forma de organizar a sociedade de modo a dividir as ideias e ações baseadas no sexo do indivíduo.
(ARAUJO, 2005).
Já para Araújo (2005), essa categoria também pode ser considerada como uma categoria
política para analisar a questão da diferença e igualdade. A autora traz à tona a luta feminista pela
igualdade na diferença das mulheres em relação aos homens. Nessa luta, que ocorreu por meados dos
anos 70, houve uma perda de identidade da mulher, pois as mesmas ao lutarem por igualdade, estavam
deixando de lado suas particularidades femininas e adotando formas masculinizadas de se vestir, falar,
e comportamentos que acabavam valorizando o masculino em detrimento do feminino.
Ainda na década de 1980, o movimento feminista “igualdade na diferença” foi um divisor de
águas no que tange às mudanças ocorridas nas relações de gênero, pois possibilitou a abertura da
mente dos homens e mulheres a ponto de trazer um ar de liberdade e desconstrução dos padrões e
esteriótipo estabelecidos no passado como práticas machistas e imperativo do feminino, desse modo
a forma de se relacionar e se sentir não seria determinado pelo gênero, mas ambos podem ser fortes
e sensíveis, inseguros, dependentes, independentemente se for homem ou mulher (ARAÚJO,
2005).

521
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É nessa perspectiva que se inicia o pensamento do gênero como construção social, onde se
deu a necessidade de recontrução de ambos os sexos, porém isso não significa que a relação entre os
gêneros está livre de conflitos, pelo contrário, como aponta Araújo, a relação entre o feminino e o
masculino “será sempre um espaço de luta e tensão dialética, onde estão em jogo diferentes poderes
e desejos” (2005, p. 48).
Para Oka et. All. (2018) por mais que muitos indivíduos confundam a categoria gênero com
a categoria sexo biológico, é de suma importância a compreensão de que ambas não possuem o
mesmo significado, pelo contrário, revelam a oposição entre natureza e cultura, onde o gênero
consiste na forma de como o ser humano se define na sociedade de acordo com a cultura e percepção
e o sexo biológico consiste na forma natural a qual o indivíduo nasceu.
A diferença de comportamento entre o sexo feminino e o masculino em dada sociedade
origina-se da formação cultural e social do indivíduo que assim se configura seu “gênero”. Este se
sobrepõe ao sexo biológio, como explica Araújo (2012).
Desse modo, mesmo que o significado de “gênero” e “sexo sejam o oposto, essas duas
categorias se complementam e carregam em si normas comportamentais criadas ao longo da história
da humaninadade para o sexo feminino e para o sexo masculino.Para as autoras essas normas
comportamentais têm tendência de serem ultrapassadas, porém, ainda existe na sociedade crenças
que reafirmam o esterótipo de homens e mulheres em seus papéis como indivíduos de sexos distintos.
(OKA et. All. 2018). Já na analise de Lucena, os estudos sobre “gênero” e “sexo” apenas deixou
nítido as diversas formas como as mulheres eram exploradas pelo sexo masculino.
Como forma de organização social, a relação de “gênero” não é utilizada de forma neutra a
ganrantir igualdade entre os dois sexos na sociedade, pelo contrário, a relação entre feminino e
masculino é organizada de forma hierarquica, na qual quase que de forma universal podemos dizer
que o masculino domina o feminino em uma ordem patriarcal. Essa diferenciação de tratamento e
comportamento entre os homens e as mulheres perpassam por diversas áreas, como: no trabaho, na
família, na religão e também no exercício da sexualidade. Sobre esse último, a autora vai dizer que o
exercício da sexualidade também se configura como uma forma de demonstração de poder e
dominação do homem para com a mulher. (OKA et. All., 2018).
Enquanto o “sexo” de um ser humano é definido por sua natureza biológica, na linha de
pensamento de Foucault (1986) a “sexualidade” é uma expressão criada no século XIX para

522
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
definir o ato que supre a necessidade de prazer natural do homem. No entanto, a definição de
sexualidade não é empregada igualmente para o sexo feminino e masculino, o que nos leva a pensar
a sexualidade de ambos como uma relação de diferença entre os sexos, onde o corpo masculino desde
a antiguidade, representava a anatomia perfeita enquanto que o corpo da mulher era visto como uma
versão inferiroizada e frágil que apenas era útil para complementar o homem em seus atos de prazer.
(SILVA, 2000).
Com as transformações da sociedade e a industrialização, a inserção da mulher no mercado
de trabalho foi um avanço importante no marco à autonomia feminina, na qual, exigiu também novos
arranjos e comportamentos femininos. É através dos movimentos feministas que ganharam
enfervecência em 1970 que os direitos das mulheres e sua emancipação ganharam notoriedade e
espaço.
Nesse sentido são direitos que enfatizam a autonomia feminina pelo seu corpo e vida sexual,
baseado no respeito.No entanto, mesmo que esses direitos simbolizem um avanço para as mulheres,
não podemos dizer que atos preconceituosos e de assédio sexual não aconteçam mais na sociedade
brasileira atual.
Conforme publicado pelo jornal O Globo em uma pesquisa sobre sexualidade realizada em
15 estados brasileiros e no Distrito Federal, no ano de 2012, com 1.208 jovens de 18 a 29 anos de
idade, 26% dos entrevistados disseram que mulher que se veste de forma provocante não pode
reclamar de assédio sexual. (WEBER, 2013).
Essa porcentagem mostra de forma nítida a existência do machismo e do preconceito dos
homens no que tange a forma de se vestir e se comportar das mulheres, o que representa o contrário
de respeito e a recusa dos direitos de liberdade e igualdade entre os sexos.
Dando continuidade aos dados, a pesquisa mostrou que em situações de aconselhamento
sexual, a mãe é mais procurada pelos filhos do que os pais. A pesquisa mostra o quanto a figura
feminina ainda continua sendo a imagem principal dos cuidados e aproximação dos filhos enquanto
que a figura paterna representada pelo homem é um dos últimos a serem encontrdos nessa
responsabilização.
Em suma, compreendemos que a desigualdade entre o homem e a mulher perpessa por
diversas categorias, inclusive a categoria do exercício da sexualidade que sofreu influência do
patriarcado e machismo estrutural. No entanto, não se pode desconsiderar os avanços e

523
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conquistas referentes à autonomia sexual das mulheres que colocou a dominação masculina em um
cenário de ameaças, porém de forma contraditória seria uma utopia dizer que a luta feminista alcançou
com totalidade a conquista pela emancipação das mulheres no exercício da sexualidade, ja que, ainda
existe na sociedade diferenças entre o exercício da mesma, pautadas no sexo masculino e feminino,
onde o primeiro exerce domínio sobre o segundo. (WEBER, 2013).
Para entendermos o feminismo, precisamos ter em mente que esse é um movimento que se
originou da indignação da mulher perante a forma desigual a qual era tratada em comparação aos
homens, a qual ocasionava a falta de direitos, “o menor valor” do universo feminino em contraposição
à valorização do universo masculino, podemos citar o patriarcado, como exemplificação. Tal sistema
trata-se de uma forma de organização utilizada em nossa sociedade nas áreas políticas, religiosas,
econômicas e sociais, que coloca o homem em posição de liderança e autoridade. Dessa ideia nasce
a imagem de domínio do marido para com a esposa, do pai sobre a mãe, dos homens mais velhos
sobre os mais novos. (GARCIA, 2015).
Assim, foi criada a imagem da mulher como figura inferior ao homem, uma desigualdade
baseada na crença de que o sexo feminino é o causador das desgraças humanas como exemplificado
na mitologia Grega, por Pandora e na religião, por Eva. Tais personagens cuidam de demonstrar o
quanto a figura feminina atrapalha a figura masculina, é a responsável pela expulsão do homem do
paraíso e não tem controle sobre suas emoções, o que ocasiona desgraças para o mundo. (GARCIA,
2015).
Entendendo a historicidade que envolve o feminismo, entendemos que este movimento veio
para quebrar paradigmas e remar contra os discursos do patriarcado, o que vale salientar que isso só
foi possível através da capacidade de analisar esse sistema de poder como um problema coletivo das
mulheres e não individual. (GARCIA, 2015).
A definição de feminismo é difícil de ser dada em sua exatidão, pois a luta travada por esse
movimento não se limita a apenas um tema, pelo contrário, se abrange a diversas categorias
dependendo do contexto a qual se passa a sociedade. Ou seja, os temas defendidos pelo movimento
feminista podem ser de lutas passadas ou recentes, demandas que se emergem de acordo com o
cenário econômico, social, político e cultural do país. O que sabemos de fato sobre o feminismo é
que se caracteriza pela auto organização das mulheres na luta pelos direitos do sexo feminino e

524
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
enfrentamento da desigualdade de tratamento entre homens e mulheres nas áreas políticas,
econômicas, sociais e culturais.(ALVES et. All., 2017).
Dito isto, vamos a origem do termo feminista que em seu significado expressa a palavra em
latim feminina que quer dizer “mulher”. Surgiu a princípio nos Estados Unidos, em 1911, para dar
nome aos movimentos realizados e até então chamados de “movimentos de mulheres” em prol da
liberdade feminina. Nessa perspectiva, as americanas lutavam não apenas por liberdade, mas sim pela
igualdade de tratamento em relação aos homens, buscando uma determinação política, sexual e social.
(GARCIA, 2015).
Tratando-se de um movimento coletivo de mulheres, o feminismo carrega em si linhas de
diversos pensamentos diferentes na qual representa o interesse de mulheres diversificadas e respeita
o pensamento de cada uma individualmente. Dizer isso é o mesmo que dizer que este pensamento se
baseia nas linhas de pensamentos de milhares de mulheres, por isso não há como ter um padrão de
luta e defesa de interesse estabelecido. Em consequência disso, existem várias correntes dentro desse
movimento. (BINGEMER, 1994).
Para Bingemer, esse movimento também diz respeito a luta por interesses de grupos
específicos dentro do feminismo, ou seja, de um lado precisamos entender [...]“o feminismo como
doutrina ou (ideologia) do movimento social (e seus fluxos e refluxos) e, do outro considerar as
diferenças entre as várias correntes feministas, seus pressupostos teóricos e suas práticas políticas”.
(BINGEMER,1994. p 82).
A doutrina do feminismo trata-se da busca geral do movimento pela conquista de liberdade e
igualdade entre os gêneros: feminino e masculino, o que passa disso para lutas em categorias mais
específicas como políticas, econômicas e jurídicas são denominadas “correntes” do movimento
feminista, visto que, se tratando dessas áreas, podem existir diversos pensamentos e defesas distintas
dentro do mesmo movimento. (BINGEMER, 1994).
Sobre essas correntes do feminismo, Lemos (2016), explica que no Brasil, mais precisamente
na década de 1960, quando começou a efervescência dos movimentos feministas, as mulheres brancas
e de classe alta lutavam e reivindicavam pelo direito ao voto, enquanto que as mulheres pobres e
negras ainda estavam na luta por direitos básicos.
De acordo com a fala da autora, notamos uma desigualdade dentro da própria classe
feminina o que impossibilita que o movimento feminista corra em uma só direção, em uma só

525
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
corrente. Para [...] tratar separadamente as pautas de cada grupo de mulheres, uma vez que uma
mulher negra e uma mulher branca possuem necessidades diferentes. (LEMOS, 2016).
No Brasil, a luta feminista perpassa por diversos cenários onde desde o período colonial
haviam mulheres que se rebelavam contra as condições em que estavam postas. No entanto essas
rebeliões ainda não eram chamadas de movimento feminista. (PINTO,2010)
A primeira manifestação feminina no país foi em 1910 liderada por Bertha Lutz, na qual após
viajar para o exterior trouxe para o Brasil a onda do movimento feminista que se iniciou na luta pelo
direito ao voto da mulher, na qual em 1932 foi dado como direito concedido pelo Novo Código
Eleitoral Brasileiro. (PINTO, 2010)
Seguindo a luta pelo direito ao voto das mulheres, em 1917 aconteceu o movimento das
operárias com o discurso de que as condições de trabalho das mesmas nas fábricas eram precárias.
(PINTO,2010)
Essa onda de movimentos feministas perdeu a força a partir da década de 1930 e voltou a
ganhar vida em 1960, no entanto, entre esses 30 anos o feminismo ganhou uma obra literária feita
pela autora Simone Beauvoir, intitulado “O segundo sexo” em sua primeira versão publicada em
1949. No livro a autora estabelece uma das máximas do feminismo “Não se nasce mulher, se torna
mulher”. (PINTO,2010).
Na década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa, o feminismo ganhou mais vitalidade,
nesse cenário foi lançado primeiramente nos Estados Unidos e depois na Alemanha, a pílula
anticoncepcional e também o livro de Betty Friedan: A mística feminina, considerado a bíblia do
feminismo. (PINTO, 2010).
No Brasil, a década de 1960 também iniciou-se de forma favorável para os movimentos
feministas, no entanto, em 1964 o país sofreu o golpe militar o que ocasionou o congelamento de seu
progresso no que tange aos movimentos sociais inclusive os feministas, causando um atraso
significativo em relação aos outros países que viviam tempos propícios para a manifestação de
movimentos libertários.(PINTO,2010)
Foi num cenário de limitações e repressões que o grupo do movimento feminista no Brasil
conseguiu manifestar suas primeiras lutas no contexto de ditadura militar em 1970. Em 1975,
aconteceu a I Conferência Internacional da Mulher no México, onde juntamente com a
Organização das Nações Unidas foi declarado que nos próximos 10 anos seria a década da

526
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mulher. Esse título abriu portas para que o debate sobre o papel da mulher na sociedade fosse
discutido. (PINTO, 2010)
Logo após o ressurgimento dos movimentos feministas, os mesmos ganharam efervescências
na década de 1980, onde suas lutas e manifestações passaram não só a defender o espaço da mulher
e seus direitos no trabalho, na vida pública, na educação e em casa, mas também a luta pela liberdade
e autonomia do sexo feminino em relação ao seu corpo. Ou seja, os temas defendidos pelas mulheres
no que tange a seus interesses e direitoscomeçaram a se ampliar a medida que a sociedade se
transformava.
Essa onda de efervescência dos movimentos sociais feministas trouxe temas que se
abrangeram para várias áreas de interesse das mulheres, dentre eles estão os direitos sexuais que
também dizem respeito aos direitos reprodutivos da mulher. Sobre os direitos reprodutivos e sexuais,
podemos dizer que se trata da liberdade e igualdade na escolha de como exercer sua sexualidade e
também a autonomia na decisão de querer ou não ter filhos. (ÁVILA,2003).
Tais modalidades de direitos sexuais e reprodutivos na luta feminista se relacionam
diretamente com a questão do aborto no país, tratando-se de uma temática não recente, mas que
ganhou força no final da década de 1970 e início de 1980 com a luta feminista pela alteração do
Código Penal brasileiro que criminaliza o aborto, exceto nos casos de estupro, de gravidez que ofereça
risco de vida à gestante ou de gravidez de feto acefálico. Ressaltamos que as mulheres, ainda hoje,
que se encontram numa dessas situações, sofrem preconceito e discriminação, que somadas à falta de
informação, dificulta o acesso ao direitos dessas mulheres para realizar a interrupção da gravidez de
forma segura. (LAMIR et. all., 2019).
A premissa da luta feminista pela legalização do aborto no final da década de 1970 era “Nosso
corpo nos Pertence”, na qual defenderam a ideia de que as mulheres devem ter liberdade para escolher
se querem ou não ter seus filhos, isso era o básico demonstrativo de democracia. (PIMENTEL et.
All., 2012).
A oposição à legalização do aborto ganhou também força, através dos argumentos de direito
a vida dos fetos, no entanto, como estratégia e visão crítica, o movimento passou a lutar pela
legalização do aborto não apenas como reivindicação de direito a liberdade sexual e reprodutiva, mas
também como uma questão de saúde pública. Essa perspectiva se baseava na questão de que

527
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mesmo não sendo legalizado, o aborto acontecia, e era realizado de forma clandestina na qual
colocava em risco a vida da gestante. (PIMENTEL et. All. 2012).
A clandestinidade, no processo de interrupção da gravidez é uma consequência da
criminalização do aborto no Brasil, ocasionou o aumento de mortes maternas que segundo o
Ministério da Saúde (2009), é a quarta causa que mais mata gestantes. (FARIA,2018).
Diante disso, percebemos que o aborto está inserido entre duas linhas de pensamentos
contrários, sendo elas: os que são pró vida e contra o aborto e os que são pró direitos reprodutivos da
mulher e a favor da descriminalização e legalização do aborto.
Essa duplicidade de defesas contrárias abriu espaço para debates complexos que envolvem o
tema aborto no Brasil, como exemplo, podemos citar os debates realizados no Congresso Nacional
de 2008 que traz o pensamento conservador de representantes da igreja católica como o deputado
Severino Cavalcanti que levou uma proposta de defesa da Campanha da Fraternidade da Igreja
Católica.
A proposta consistiu em fazer a alteração do artigo 5º da Constituição Federal que defende o
direito à vida, porém, encontra-se uma brecha nessa legislação à medida que para os religiosos a vida
se inicia desde a concepção e para o feminismo inicia-se a partir do nascimento, o que torna crime
contra a vida o aborto realizado em uma das perspectivas e na outra não. Desse modo o intuído de
alterar o artigo em questão, se justifica pelos representantes do pró vida como o fechamento dessa
brecha, na qual seria necessário acrescentar no mesmo, a expressão “desde a concepção” ficando
alterado para “Direito à vida desde a concepção”. No entanto, mesmo que a proposta tenha ido para
o Congresso Nacional, não houve nenhuma alteração na Constituição Federal. (ALDANA, 2008).
Enquanto a Igreja se posiciona contra a legalização do aborto, o feminismo também deixa
claro seu posicionamento a favor da legalização baseando-se nos argumentos de que o direito de
escolha da mulher está a cima de qualquer outro dentro do movimento. (ALDANA, 2008).
No entanto, como falamos anteriormente, o feminismo suporta diversos tipos de mulheres
com culturas, classe sociais e raças distintas, diante disso, pensando pela perspectiva das feministas
religiosas há um conflito de ideias entre a religião que elas seguem e o movimento a qual elas fazem
parte, visto que, a igreja condena o aborto e o movimento feminista luta para a legalização do mesmo.
Nos fica o questionamento: É possível ser feminista e ser contra o aborto?

528
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A Antropóloga Débora Diniz tem uma resposta para essa pergunta, em entrevista para a revista
Marie Claire, vai dizer que a mulher pode ser religiosa, ateia, negra, branca, mística ou astróloga,
porém, suas crenças não podem se sobrepor ou restringir à defesa principal do feminismo que são os
direitos da mulher. Por isso, não há como existir feminismo homofóbico, racista ou contra aborto.
Sendo assim, a autora complementa que pode acontecer de uma mulher não querer fazer o aborto,
mas ela como feminista precisa estar sempre pronta a acolher àquelas que optam pela prática, sem
julgamentos morais e éticos. (DINIZ, 2019).
Partindo da perspectiva de que a legalização do aborto é uma conquista para as mulheres, logo
pensamos que todas se sentem representadas por essa luta, no entanto, essa não é a realidade, pelo
contrário, nem todas são a favor do procedimento e muitas delas se declaram feministas. São as
chamadas feministas pró-vida que defendem a ideia de que a opção da mulher de não abortar é
sinônimo de força, determinação que mostra seu diferencial do sexo masculino que não tem a
capacidade humana de conceber e demonstra irresponsabilidade na criação de filhos.
Se contrapondo ao discurso de Diniz, a advogada Americana Erika Bachiochi se reconhece
como uma feminista pró-vida e diz que a concepção é um diferencial da mulher, algo único do sexo
feminino, a partir do momento que uma mulher decide interromper um processo natural com
argumentos de que o filho não foi feito apenas por ela e que se ela tiver a criança terá que cuidar
sozinha, ela não está dando uma solução para a opressão, mas está deixando claro um sintoma dessa
opressão. (BACHIOCHI, 2017).
Não se trata de recusar o direito reprodutivo das mulheres, trata-se de dar a elas uma outra
opção que ao invés de incentiva-las a abortar, as incentiva trazendo à tona e estimulando o
reconhecimento do quanto ela é forte e é capaz de ter o seu filho independente de homem.
(BACHIOCHI, 2017).
Este grupo de feministas não defendem a ilegalidade do aborto, mas lutam para que a
mentalidade das mulheres se ampliem no tocante a essa decisão a ponto de reconhecerem que são
fortes o suficientes para levar a gravidez a diante, coisa que o sexo masculino não consegue fazer.
(ALMEIDA JUNIOR, 2019).
Diante da dualidade de pensamentos pró e contra o aborto percebemos a amplitude desses
movimentos que suporta dentro de si diversas vertentes, o feminismo pró-vida é apenas mais
uma dessas correntes

529
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em sua definição, o aborto é a expulsão do feto ou embrião do útero que pode acontecer de
forma provocada ou natural também chamado de aborto espontâneo. A gramática aborto se originou
do termo em latino abortus, derivado de aboriri (parecer), ab significando distanciamento e oriri
nascer. (KOOGAN et. all, 1999). O ato de abortar foi usado por muitas mulheres até o século XIX
como método contraceptivo, porém de forma privada, ou seja, escondida, já que é um tema que gira
em torno de questões moraes, éticas, religiosas e legais, que existem até os dias atuais. (MARQUES
et. all., 1998).
O aborto não é um tema recente, pelo contrário é uma prática antiga que perpassou por
diversas culturas, onde o mesmo tema pode ter ganhado vários sentidos de acordo com cada época e
sociedade. (MARQUES et. all., 1998). Reafirmando essa fala, Pattis (2000) aponta que todos os
grupos humanos conhecidos até hoje praticaram o aborto, cada um com sua cultura, especificidade e
identidade, de formas diferenciadas.
Existem registros de que o aborto é praticado desde antes de Cristo, tendo inclusive menções
a ele no Código de Hamurabi, da civilização babilônica, no século V a.c e no Código Hitita. Em
ambos, o aborto era considerado crime. Já na Grécia antiga, a prática era realizada como forma de
controlar o crescimento da população e assim manter a sociedade estável, assim também defendiam
os pensadores Platão e Aristoteres. (GALEOTTI, 2007; SCHOR et. all., 1994). Galeotti (2007)
explica que o século XVIII foi o período que marcou a história do aborto, principalmente depois da
Revolução Francesa. Nesse período houve uma modificação na forma como o feto era visto, se antes
o mesmo era tido apenas como um ser sem alma ou um apêndice no corpo da mãe, a partir da
Revolução Francesa o feto passou a ser visto como mais um indivíduo para compor o grupo de
trabalhadores e soldados.
Já no início do século XIX, observa-se um aumento no número de abortos no Brasil, como
consequência do êxodo rural, nas regiõesnorte e nordeste. Nesse cenário, o aborto se tornou uma
ameaça para a classe dominante, já que isso significava uma redução na mão-de-obra para trabalhar
nas indústrias. (SCHOR et. all.,1994).
Nesse mesmo século, houve avanços na medicina que comprovaram que o aborto era perigoso
para a saúde da mulher, tal acontecimento, juntamente com o discurso da Igreja Católica, de que o
feto tinha alma se tornaram argumentos contundentes para a criação de legislações que
criminalizam a prática do aborto. (MARQUES et. all., 1998).

530
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em contrapartida, em 1960, alguns países como Dinamarca, Islândia, e Suécia adotaram a
legalização do aborto como influência da cultura protestante luterana, que ocasionou um modo de
pensamento mais aberto em relação a reforma sexual.Ja no Japão, o abortou foi liberado no Pós
Guerra como estratégia de controle de natalidade e redução da miséria. (REBOUCAS et. All., 2011).
Neste mesmo periodo, observa-se uma maior presença da mulher na sociedade, fruto do
movimento feminista, contribuiram para a liberação do aborto em alguns países como os Estados
Unidos (SCHOR et. all., 1994; MARQUES et. all., 1998).
Ressaltamos que a realidade que apresentamos é internacional, no Brasil, o aborto ocorre
desde a chegada dos portugueses, como aponta Freyre (1933/1981). Del Priore (1994) explica que no
período colonial era proibido as relações mestiças, ou seja, relações sexuais entre europeus, índios e
negros, bem como quaisquer outras que não pudessem ser controladas pela Igreja Católica e pela
Coroa Portuguesa. O aborto feria a condição feminina da maternidade, fenômeno que segundo Del
Priore possibilitava a mulher de se redimir dos seus pecados, ou seja, a maternidade era vista como
algo que transformava a mulher, em um ser melhor. As mulheres que escolhiam não ter seus filhos
ou que por qualquer motivo de saúde não pudesse gerar, eram vistas como anormais e não seriam
salvas (ENGEL, 2004). Em meio a um contexto de violências sexuais, condições de vida precárias,
pobreza e abandono, o aborto era uma das soluções encontradas pelas mulheres brasileiras
(VENÂNCIO, 2004).
No Brasil Colonial, as formas como as mulheres faziam o aborto eram variadas, desde chás
com ervas abortivas, levantamento de pesos, golpes na barriga e entre outras formas. "Ao tentar livrar-
se do fruto indesejado, as mães acabavam por matar-se. O consumo de chás e poções abortivas
acabava por envenená-las" (DEL PRIORE, 1993, p. 301). Em virtude do aborto ser visto pela classe
dominante e pela Igreja Católica como uma prática imoral, foi criado em 1830, o primeiro Código
Penal Brasileiro que criminalizava o aborto, no país, este punia todas as mulheres que o praticasse ou
tentasse praticar, como também os indivíduos que supostamente fossem cúmplices. Em 1890, o
Código foi minimamente alterado e passou a punir somente as mulheres que o praticassem tal ato.
Esse cenário mudou com o surgimento do Código Penal Brasileiro de 1940, nele o aborto é tratado
como um crime contra a vida, nos artigos de 124 a 127. Sendo proibido que a mulher provoque o
próprio aborto ou que outra pessoa o faça, tal crime possui a pena de três a dez anos, no primeiro
caso e de um a quatro anos, no segundo, podendo haver um aumento da pena caso a gestante

531
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sofra algum dano ou morte. Nos casos de gravidez que coloque a vida da gestante em risco ou se a
gravidez for resultante de estupro, o artigo 128 torna legal e aprova o aborto feito por médicos.
(DUTRA et. all. , 2011).
A problematização do aborto, no Brasil, enquanto um problema de saúde pública se originou
em 1970, através de estudos acadêmicos, que possibilitaram que o assunto a partir de suas condições
sociais, como pobreza e vulberabilidades vivenciadas por famílias. (MARQUES et. all., 1998).
Com o avanço da tecnologia e da medicina, nas décadas de 1970 e 1980, foi possível detectar
ao longo da gravidez, a presença de anomaias genéticas que podem colocar em risco tanto a vida da
gestante quanto a do feto, entre elas: a anencefalia, uma má formação do cérebro. Nesse contexto
iniciou-se discussões sobre a possibilidade de abortos legais nesses casos, e assim, consequentemente
uma modificação no Código Penal brasileiro no que tange ao aborto. (DINIZ et. all., 2008). Diante
disso, o Brasil considera, hoje, aborto legal somente em três situações: gravidez resultante de estupro,
gravidez que ofereça risco para a vida da gestante e gravidez de feto anencéfalo. Em todos esses
casos, o aborto só permitido com o consentimento da gestante, a não ser que a mesma se encontre em
um estado de saúde que impossibilite manifestar seu consentimento. (FARIA, 2008)
As mulheres que se enquadram no caso de gravidez por estupro e desejam fazer o
procedimento, não precisam comprovar através de exames, nem de boletim de ocorrências, basta
procurar uma unidade de saúde que realize o procedimento. Em casos de gravidez do feto anencéfalo
a gestante não precisa de permissão judicial, apenas é necessário a comprovação mediante a exames
que mostre a doença. (FARIA, 2008).
Os métodos utilizados para a realização do aborto em casos legais variam de acordo com o
tempo e tipo de gestação. Se interrupção for feita no primeiro trimestre, recomenda-se, curetagem,
indução por medicamento ou aspiração intrauterina. Ja no segundo trimestre quando a gravidez ja
está mais avançada, é recomendável que o procedimento seja realizado por método farmacológico.
(FARIA, 2018).
A partir da década de 1980, com a redemocratização do país, o movimento feminista passou
a ter mais visibilidade e colocou o aborto como uma de suas lutas, na defesa dos direitos humanos,
da liberdade de escolha, social e individual. O argumento dos indivíduos que são a favor da
legalização tem por embasamento que “a proíbição do aborto é ineficiente em impedir o aborto,
mas eficiente em matar mulheres”. O que essa frase revela é que os dados mostram que a

532
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
criminalização não impede ou exclui as chances das mulheres de realizar o procedimento tornando
as formas de abortamento arriscadas ja que as mulheres não têm atendimento especializado o que as
obriga a abortar de maneira clandestina e arriscada. Essa realidade é ainda mais constante na vida de
mulheres pobres que precisam recorrer a procedimentos baratos e perigosos que podem às levar a
morte. (FARIA,2018).
Em contrapartida os indivíduos que são contra a legalização do aborto, argumentam que deve
ser crime pois fere o princípio de direito à vida. Defendem que a vida existe desde a concepção e que
o direito do feto de viver é maior do que o direito da mulher de decidir interromper a gestação. Alguns
argumentam baseados em concepções religiosas e morais e dão como uma posspivel solução que a
gravida mantenha a gravidez e após o nascimento doe para adoção. (FARIA, 2018).
Recentemente no país esteve em discussão pelo STF, o artigo 124 que torna criminosa a
gestante que provocar seu próprio aborto, e o artigo 126 do código penal brasileiro que criminaliza
os terceiros que com o consentimento da grávida, realizou o procedimento abortivo. Essa discussão
partiu do PSOL e consiste no pedido de que os abortos realizados até a 12ª semana de gestação não
seja considerado crime. (CARAM,2017).
Para os ministros Luis Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, criminalizar o aborto
realizado nos primeiros três meses de gravidez é um equívoco que fere gravimente a contituição, além
de se tratar de um dever do Estado evitar esse procedimento através de políticas de educação sexual
e rede de proteção e acompanhamento da mulher.
A partir da eleição de 2018, que elegeu como Presidente da República Jair Messias Bolsonaro,
os direitos reprodutivos e saúde da mulher viraram alvo de retrocessos. As manifestações a favor da
legalização do aborto se encontram num cenário onde de desafios, pois o atual presidente e sua equipe
demonstram atitudes conservadoras e ja declararam publicamente que são totalmente contra a
legalização do aborto independentemente da situação. Nesse contexto, propostas contrárias a
legalização do aborto vem sendo criadas pelos componentes do legislativo a qual apoiam a postura
conservadora de Bolsonaro, entre eles podemos citar a Ministra da Mulher, Saúde e Direitos
Humanos, Damares. (SOARES, 2020).
É nesse cenário de desafios que se encontra o debate sobre a legalização do aborto atuamente,
envolto de conservadorismo e obstáculos para os movimentos feministas em prol da legalização
do aborto no país, uma luta antiga que está sofrendo retrocessos.

533
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Serviço Social brasileiro teve sua gênese e sua institucionalização nos anos de 1930 e 1940.
Seu surgimento deve ser pensado de forma contextual, onde o país passava por um período de grande
industrialização que ocasionou ao capital a emergência de uma profissão para intervir nas sequelas
da “questão social” oriundas do conflito capital x trabalho. (NETTO, 1992).
Devemos vincular o surgimento da profissão a dois processos, sendo o primeiro deles a
mudança do capital concorrencial para monopolista, que segundo Netto, no capitalismo monopolista,
o Estado faz uma ligação das suas funções econômicas com as políticas. (NETTO, 2009).
Com o processo de industrialização houve também um processo de formação da classe
operária que a cada vez mais exigia um posicionamento do Estado como diz Iamamoto.
Iamamoto (2011) aponta que os primeiros passos da profissão inscrita na divisão social do
trabalho estão relacionados ao contexto das grandes mobilizações da classe operária nas duas
primeiras décadas do século XX, pois o debate acerca da “questão social”, que atravessa a sociedade
nesse período, exige um posicionamento do Estado, das frações dominantes e da Igreja.Outra
perspectiva está ligada à busca da Igreja Católica pela recuperação da hegemonia ideológica. Com
todas as mudanças políticas ocorreridas na década de 1930, ela busca uma reaproximação do Estado
num processo de adequação para aos novos formatos da sociedade capitalista que passa a adotar
também novas faces, com medidas assistencialistas e de caridade.
Percebemos o quanto a gênese da profissão está ligada com a Igreja Católica e as mudanças
capitalistas, deixando em evidência quais foram os objetivos da criação dessa profissão: intervir junto
ao operário, na intenção de controlá-lo. Sendo assim, em sua fase inicial o Serviço Social pautava sua
atuação numa perspectiva doutrinária, moralizadora e conservadora, tendo uma visão generalista e
abstrata do indivíduo e suas expressões sociais. Isso consequentemente fez com que a estratégia de
controle da força de trabalho criada pelo capital se constituísse. (FORTI, 2009).
O Serviço Social, em suas primeiras iniciativas, mostrava-se uma profissão um caráter
moralizador e acrítico. Sendo assim, o trabalho do assistente social se limitava a executar políticas
sociais voltando suas ações para o interesse do capital, através do controle da classe trabalhadora,
sendo influenciado por teorias positivistas e funcionalistas. (NETTO, 2005).
Ao longo das decadas de 1950 e 1960, começaram a surgir oposições dentro da própria
categoria, expressa através da recusa e negação do tradicionalismo profissional. Diante desse
cenário, surge o “Movimento de Reconceituação do Serviço Social”, movimento foi marcado por

534
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contradições e divergências, pois haviam linhas de pensamentos e vertentes diferentes. No entanto,
esse conflito pode ter possibilitado a construção de novas propostas de intervenção que iam além do
conservadorismo e traziam uma aproximação com uma base crítica.
O Movimento de Reconceituação que se iniciou em 1964, teve seu ápice ao final da década
de 1970, quando o Serviço Social integrado ao sistema universitário, dá início a construção de um
novo projeto profissional. Esse novo projeto profissional do Serviço Social tem como proposta, uma
nova ordem social, voltada à equidade e à justiça social, numa perspectiva de universalização dos
acessos aos bens e serviços relativos às políticas sociais. A profissão, assim, busca firmar seu
compromisso com a classe trabalhadora e seguir um aprimoramento intelectual voltado vertentes
críticas. (NETTO, 1999). Para Iamamoto (2007), a consolidação do projeto ético-político profissional
requer remar na contra contracorrente, andar no contravento, alinhando forças que impulsionem
mudanças nas rotas dos ventos e das marés na vida em sociedade.
Um evento que contribuiu significativamente para o Projeto Ético Político do Serviço Social
foi o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, mais conhecido como Congresso da “Virada”,
ocorrido em 1979. Tal atividade trouxe a tona reflexões sobre os valores que norteavam a profissão
e serviu também como ponto de partida do Código de Ética Profissional, de 1986, o primeiro apoiado
na teoria marxista.
Embora o Projeto Ético Político tenha sido um dos principais instrumentos do Serviço Social
na tentativa de ruptura com o conservadorismo, no entanto, Netto (2007) salienta que não houve
apenas uma intenção de ruptura, visto que o conservadorismo ainda se se encontra na profissão. Um
exemplo disso, é o pragmatismo, teoricismo e tecnicismo presentes na prática profissional no que
tange a intervenção nas expressões da “questão Social”, que refere-se ao pauperismo em meados do
século XIX, através de protestos das classes subalternas, fazendo com que as instituições sociais do
contexto, se sentissem ameaçadas. Perante isso, a pobreza passou a ser vista como um problema a ser
enfrentado. Para alguns autores como Castel, na contemporaneidade estamos vivenciando uma nova
questão social, enquanto que para outros autores como Netto, a questão social permanece a mesma,
porém, com novas faces ou máscaras. (Guerra, 2005).
No entanto, o que é inquestionável é que a questão Social gira em torno de uma ampla
historicidade, a aceleração das transformações do modo de produção capitalista ocasionou

535
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
alterações na questão social e a exploração da classe trabalhadora é a base necessária que o Capital
utiliza como questão para conseguir seu desenvolvimento.
A gênese da questão social é a exploração da classe trabalhadora, que causa desigualdade e
dá lugar à suas expressões, como: violência, pobreza, fome, tráfico, morte materna, etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse contexto, os profissionais de Serviço Social têm o desafio de lutar contra a herança
conservadora oriunda da gênese do Serviço Social, exercer com clareza suas atribuições e
competências sempre tendo comos elemento norteadores o Projeto Ético Político e o atual Código
de Ética da profissão. Eles contribuirão para que o profissional se lembre de seu compromisso é com
a classe trabalhadora e não com o capital. Ressaltamos que o assistente social tem ainda o desafio de
ter um olhar crítico sobre a sociedade, a fim de estudar o contexto e não individualizar as questões.
Embora o Projeto Ético Político tenha sido um dos principais instrumentos do Serviço Social
na tentativa de ruptura com o conservadorismo, no entanto, Netto (2007) salienta que não houve
apenas uma intenção de ruptura, visto que o conservadorismo ainda se se encontra na profissão. Um
exemplo disso, é o pragmatismo, teoricismo e tecnicismo presentes na prática profissional no que
tange a intervenção nas expressões da “questão Social”. Para alguns autores como Castel, na
contemporaneidade estamos vivenciando uma nova questão social, enquanto que para outros autores
como Netto, a questão social permanece a mesma, porém, com novas faces ou máscaras. (GUERRA,
2005).
No entanto, o que é inquestionável é que a questão Social gira em torno de uma ampla
historicidade, a aceleração das transformações do modo de produção capitalista ocasionou alterações
na questão social e a exploração da classe trabalhadora é a base necessária que o Capital utiliza como
questão para conseguir seu desenvolvimento. A gênese da questão social é a exploração da classe
trabalhadora, que causa desigualdade e dá lugar à suas expressões, como: violência, pobreza, fome,
tráfico, morte materna, etc.
A mortalidade materna, em decorrência do aborto, já citada anteriormente, se consagra uma
das expressões da questão social a partir da perspectiva de que o índice dessa modalidade se altera se
comparado as regiões periféricas em detrimento das regiões centrais. Ou seja, a mortalidade
materna é influenciada pela classe social, pois o cenário social na qual se encontram as mulheres

536
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
periféricas é de más condiçoes de acesso aos serviços de saúde, fatores que influenciam diretamente
na qualidade de vida das mulheres e que demonstram a desigualdade em relação as mulheres com
potencial econômico mais alto. (CARDOSO,2010).
Segundo o Ministerio da Saúde, a mortalidade materna é a quarta causa de mortalidade
materna no Brasil. A qual atinge em sua maioria mulheres negras e pobres, pois a criminalização do
aborto no país intensifica a busca por procedimentos de interrupção da gradivez de forma clandestina,
na qual, a segurança desses procedimentos na maioria das vezes dependem do quanto a mulher pode
pagar. As mulheres pobres, não tendo condições de pagar um procedimento seguro, colocam suas
vidas mais, em risco do que a mulher que tem condições financeiras para tal. Assim, o número de
mortalidade materna causada por aborto é representado em sua maioria por mulheres negras e pobres.
(CONJUR, 2017).
Nessa perspectiva podemos visualizar a mortalidade materna causada por aborto como uma
das expressões da questão Social, logo, um campo de intervenção do Serviço Social.

REFERÊNCIAS
ABCMED. Curetagem uterina: o que é? Para que serve? Quando uma mulher deve fazer?.
Disponível em: <https://www.abc.med.br/p/exames-e-procedimentos/804884/curetagem-uterina-o-
que-e-para-que-serve-quando-uma-mulher-deve-fazer.htm>. Acesso em: 16 abr. 2020.

ARAUJO, Ana Paula de. 5 conquistas do movimento feminista para comemorarmos. Finanças
Femininas, 2020. Disponível em: https://financasfemininas.com.br/5-conquistas-do-movimento-
feminista-para-comemorarmos/ Acesso em : 16 de Mai de 2020.

ÀVILA, Maria Betânia. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para a política de saúde. Cadernos
de saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, sup. 2. p 465 - 469, 2003.

BINGEMER, Maria Clara L. Mulher e relações de gênero. 8 ed. São Paulo, Edicoes Loyola, 1994.

BOURDIEU, Pierre. Conferência do Prêmio Goffman: a dominação masculina revisitada. In: LINS,
Daniel. (Org.). A dominação masculina revisitada. Campinas: Papirus, 1998.

BRASIL. Norma Técnica: Atenção Humanizada ao Abortamento. Ministério da Saúde. Brasília,


2005.

CFESS. Dia Latino Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do


Aborto. In: CFESS Manifesta, Brasília, 2016.

537
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FARIA, Flavia. Tire suas dúvidas sobre as regras atuais do abrto no país e o que pode mudar.
Folha de São Paulo. 2018 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/tire-
suas-duvidas-sobre-as-regras-atuais-do-aborto-no-pais-e-o-que-pode-mudar.shtml. Acesso em: 19 de
abr de 2020.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio Editora. 21a ed.

GARCIA, C. C. Breve História do Feminismo. 3 ed. São Paulo, Caridade, 2018.

IAMAMOTO, Marilda Vilela et. All. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma
interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1983.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. As dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas no Serviço


Social contemporâneo. IN: MOTA, A. E. et al. (Orgs). Serviço Social e saúde: formação e trabalho
profissional. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

___________________. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

LAMIR, D. et. All. Mesmo sob amparo da lei, mulheres que abortam no Brasil sofrem
preconceito. Brasil de Fato, 2019. Disponível em:
https://www.brasildefatope.com.br/2019/11/18/mesmo-sob-amparo-da-lei-mulheres-que-abortam-
no-brasil-sofrem-preconceito Acesso em: 26 de Abril de 2020.

MARQUES, Myriam Silva e BASTOS, Marisa Antonini. Aborto provocado como objeto de estudo
em antropologia da saúde. Revista Mineira de Enfermagem. 2(2), p. 57-61, 1998.

NETTO, José Paulo. O Movimento de Reconceituação 40 anos depois. Serviço Social & Sociedade,
São Paulo, n. 84, 2005.

PEREIRA, Juliana Aparecida Cobucci. Um Resgate Sobre o significado dos princípios expressos nos
códigos de ética profissional do serviço social de 1986 e 1993. Anais do 4º Simposio Mineiro de
Assistentes Sociais. Juiz de Fora, 2015. Disponivel em:https://www.cress-mg.org.br/hotsites/4-
simposio-mineiro-de-assistentes-sociais. Data do Acesso: 26 de Abril de 2020.

PEDREBON, Luize. Aborto no Brasil: a negligência que vitimiza. Trabalho de Conclusão de Curso
em Serviço Social. Universidade Federal do Oeste do Paraná. Toledo, 2007.

PIMENTEL, Silvia e VILLELA, Wilza. Um pouco da história da luta feminista pela


descriminalização do aborto no Brasil. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 64, n. 2, p. 20-21, 2012.

PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de sociologia e política, v.
18, n. 36, p. 15-23, 2010.

538
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REBOUÇAS, Melina Séfora Souza; DUTRA, Elza Maria do Socorro .Não nascer: algumas reflexões
fenomenológico-existenciais sobre a história do aborto. Psicologia em Estudo, v. 16, n. 3, p. 419-
428, 2011.

SCHOR, Neia e ALVARENGA, Augusta T. de. O aborto: um resgate histórico e outros


dados. Revista de crescimento e desenvolvimento humano, v. 4, n. 2, p. 18-21, 1994.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2,
1995.

SOARES, Ingrid. “Enquanto eu for presidente, não haverá”. Correio Braziliense, 2020. Disponível
em:https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/23/interna_politica,847443/
enquanto-eu-for-presidente-nao-havera-diz-bolsonaro-sobre-aborto.shtml Acesso em : 24 de mai de
2020.

TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu, n. 3, p. 28-62,
1994.

WEBER, Demetrio. Pesquisa sobre sexualidade revela preconceito. O Globo. 2013. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/pesquisa-sobre-sexualidade-revela-preconceitos-
10934758 Acesso em: 25 de mai de 2020.

539
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MASCULINIDADES E NEOLIBERALISMO: POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS

Caíque Diogo de Oliveira241

Resumo: O Neoliberalismo, pós-crise de 2008, trouxe precariedade na economia e a ascensão de um


neoconservadorismo, em defesa de valores tradicionais, incidindo sobre a construção social do gênero. Busca-se
investigar as implicações do neoliberalismo na construção das masculinidades contemporâneas. Parte-se de uma pesquisa
de caráter exploratório que busca identificar aspectos constitutivos da construção social dos homens no contexto
neoliberal. Para isso recorre-se as fontes bibliográficas em autores como Michael Kimmel, Raewyn Connell, Wendy
Brown, entre outros/outras na caracterização dos conceitos e condução da investigação. Assim, quatro aspectos serão
apresentados para realizar essa investigação: (i) privilégio; (ii) senso de direito; (iii) percepção meritocrática, (iv)
ressentimento. Na dificuldade de perceber o privilégio da condição de gênero, bem como da própria dinâmica de
acentuação das desigualdades do capitalismo, grupos compostos majoritariamente por homens têm assumido uma posição
ressentida e de retorno ao passado como forma de restaurar o senso de masculinidade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Gênero; Masculinidades; Neoliberalismo; Privilégio

INTRODUÇÃO
Com a cada vez maior concentração de riquezas e, consequentemente, o aumento nas
desigualdades sociais, o neoliberalismo tem implicado uma nova forma de racionalidade ao
capitalismo contemporâneo (DARDOT; LAVAL, 2016). A lógica da redução de custos, o incremento
tecnológico nos espaços produtivos, a flutuação do capital pelos mercados globais e o desmonte da
proteção social estatal tem colocado homens e mulheres diante da necessidade de “gerir” suas vidas
com a maior eficiência possível. Logo, a precariedade tem ampliado seu lugar na trama social, de
modo que frações de classe, antes privilegiadas, passam a perder cada vez mais o status social que
possuíam em gerações anteriores.
Além da dimensão econômica, os agentes que fomentam o neoliberalismo, têm valorizado e
dado voz à discursos conservadores, evocando valores em defesa da religião, família, patriotismo e a
propriedade privada (WENDY BROWN, 2019). Assim sendo, observa-se a aparição de figuras
políticas, que são em sua maioria homens, brancos, heterossexuais, defensores de um retorno ao
passado para reestabilizar a “ordem natural dos valores”.
Ainda que os debates pós-estruturalistas concederam menor ênfase no debate sobre a
economia política e o papel do capitalismo nas mudanças da sociedade, atribuiram protagonismo para
investigar questões culturais, como gênero, raça, sexualidade e identidade. Segundo Nancy Fraser e
Rahel Jaeggi, “Um estudo crítico desses temas, de maneira que não os subordinasse à economia, era

241
Doutorando em Educação, pela Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. E-mail:
caique.diogo@outlook.com.br
540
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
extremamente necessário. No entanto, eu diria que está na hora de restabelecer o equilíbrio” e
apontam a necessidade de “uma abordagem “ambos/e” – ambos, classe e status, redistribuição e
reconhecimento” (NANCY FRASER, RAHEL JAEGGI, 2020, p.19).
Assim, o contexto atual parece reposicionar o capitalismo no debate contemporâneo. Falar de
capitalismo hoje não é só falar do regime de acumulação e concentração de poder financeiro nas mãos
de 1%, mas também, do desafio que homens e mulheres enfrentam para adquirir condições básicas
de vida (NANCY FRASER; RAHEL JAEGGI 2020). Atualmente, o desmonte dos programas de
proteção social, bem como da própria liberdade dada ao capitalismo traz essas tensões também para
a condição social das populações, à medida que as pressões do trabalho assalariado e do
endividamento estão alterando significados de masculinidades e feminilidades
A crítica feminista trouxe ao debate acadêmico a discussão teórica a partir da categoria gênero.
A reflexão a partir do gênero assegurou os avanços que a categoria mulher proporcionou com a
“inserção das mulheres na história” e apareceu como um meio para classificar as distribuições
desiguais de poder entre homens e mulheres (JOAN SCOTT, 1998, p.86). Ou também, investigar a
corporificação social da estrutura de práticas reflexivas do corpo, por meio das quais corpos sexuais
são socialmente posicionados (RAEWYN CONNELL, 2016).
A partir desse debate no qual se reflete sobre a construção social dos sexos, situa-se o debate
sobre feminilidades e masculinidades. Em relação ao segundo, pode-se inferir que se trata de um
debate recente, os principais referenciais sobre a questão escrevem na década de 1980 (OLIVEIRA,
1998, RAEWYN CONNELL; REBBECA PEARSE, 2015).
Esses debates possibilitaram compreender os que mecanismos de privilégios de gênero fazem
com que homens sejam invisíveis como homens. Em diversos espaços podemos notar a presença de
indivíduos do sexo masculino, mas dificilmente identificamos as expressões de masculinidade que
estão presentes (KIMMEL, 2008; RAEWYN CONNELL, 2015). Dado esse caráter de invisibilização
promovido pelos mecanismos de privilégios, esse estudo torna-se importante ao contribuir com o
desvelamento desses elementos produzidos na/pela performatividade masculina.
Haja vista que a efetivação das políticas neoliberais tem sido sustentada com alta
representatividade masculina, especialmente branca e heterossexual; como a construção social do
masculino pode contribuir para a compreensão da produção social desses sujeitos, e
consequentemente, das atuais políticas que combinam neoliberalismo e neoconservadorismo?

541
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Portanto, trazer aspectos do debate sobre masculinidades torna-se uma possibilidade de ampliar a
compreensão sobre a conduta política desses homens a luz dos aspectos oriundos da combinação entre
masculinidades e o contexto neoliberal.
Dados os encaminhamentos desse artigo, o objetivo é investigar implicações do
neoliberalismo na construção das masculinidades contemporâneas. Parte-se de uma pesquisa de
caráter exploratório que busca apontar aspectos do referido fenômeno. Para isso recorre-se as fontes
bibliográficas para caracterização dos conceitos e, eventualmente, relatórios do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA - para caracterização contextual.
Inferir com esse recorte contribui não somente para uma visibilidade de gênero nas
proposições já realizadas, como também, conhecer as implicações do neoliberalismo na vida social.
Portanto, considerando o caráter relacional do gênero, no qual o masculino constrói-se com o
feminino, ora se assemelhando ora se diferenciando e; diante da necessidade da formação de uma
frente ampla em defesa dos direitos da mulher da igualdade de gênero; esse estudo busca contribuir
como uma interpretação da masculinidade, isto é, do ser homem, na atualidade. E então, ao contribuir
com o campo de debate, ampliar e fomentar as reflexões sobre igualdade de gênero.

GÊNERO E MASCULINIDADES
As teorias de gênero obtiveram maior alcance e desenvolvimento a partir da crítica feminista.
O conceito de gênero aparece em apoio aos questionamentos sobre a condição da mulher face a
transição entre a segunda e a terceira onda do feminismo. Falar sobre gênero é fundamental para
pensar os espaços sociais diferenciados cedidos para homens, mulheres e não-binários, no qual
ocorrem situações de discriminação ou limitações sociais, especialmente contra as mulheres e não-
binários. Esses espaços variam a depender do período histórico e das particularidades de cada caso,
entretanto, para Adriana Piscitelli

"Toda discriminação costuma ser justificada mediante a atribuição de qualidades e traços de


temperamento diferentes a homens e mulheres, que são utilizados para delimitar seus espaços
de atuação. Com frequência, esses traços são considerados como algo inato, com o qual se
nasce, algo supostamente “natural”” (ADRIANA PISCITELLI, 2009, p.118).

Uma vez que na linguagem do dia-a-dia e também das ciências a palavra sexo fazia
menção a distinções biológicas, e inatas, carregando de significado às perspectivas baseadas em
542
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
um determinismo biológico implícito no uso dos termos "sexo" ou "diferença sexual", o termo gênero
surge como um meio de rejeitar, e até superar essas perspectivas. A categoria gênero entra nessa
discussão para descrever os aspectos relacionados as definições normativas do feminino e do
masculino.
No esforço de definir gênero, Joan Scott afirma:

"Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão
interrelacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados. O núcleo da definição
repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o
gênero é uma forma primária de dar significado as relações de poder." (JOAN SCOTT, 1995,
p.86).

Tanto Joan Scott (1995) como Linda Nicholson (2000) e Judith Butler (2004) buscaram
realizar suas investigações sobre o construcionismo social de gênero, se distinguindo de maneira
radical das percepções influenciadas pelos discursos produzidos sob bases biológicas. Situadas em
um contexto Pós-Foucault, suas contribuições representaram uma inflexão chamada "virada
linguística". As reflexões dessas autoras contribuem ao desconstruir a oposição binária - muitas vezes
permanente - entre o masculino e o feminino. A desconstrução dessa polaridade rígida entre os
sexos/gêneros significa conhecer a unidade interna de cada um.
Além do movimento feminista ter ganhado cada vez mais força na segunda metade do século
XX, o Movimento LGBT também assumiu um protagonismo maior na construção das identidades
sendo assimilado a discussão do gênero para questionar tanto os essencialismos presentes nas
categorias homem e mulher como a natureza heteronormativa que incide sobre a construção social do
gênero (JUDITH BUTLER, 2003).
Os estudos de masculinidades acompanham esse desenvolvimento do conceito de gênero
durante a década de 1980. Os chamados Men’s studies, aparecem nesse contexto como uma frente de
questionamento dos papéis sexuais e dos processos sociais pelos quais os homens tornam-se homens
(KIMMEL, 1998). Esses estudos avançaram em concepções teórico-metodológicas que tornaram
possível falar não somente em masculinidade, mas, em masculinidades. No bojo dessa pluralidade
inerente a categoria, o homem negro, o homem gay, o homem trans e o homem deficiente assumem
lugar como variações que combinam os frutos das assimetrias socialmente postas entre homens
e mulheres às desvantagens das opressões sobre esses marcadores.
543
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O gênero, portanto, opera tanto no que se refere as interações entre os sujeitos “one can be
said to “do” gender through interaction” como também o gênero compreende o âmbito da identidade
“one can be said to “have” gender, as in the sum total of socialized attitudes and traits” (BETHANY
COSTON; KIMMEL, 2012, P.98).
Com as possibilidades da modernidade, inicia-se uma busca por “reparação” da identidade.
Isso vem se tornando cada vez mais possível considerando o caráter transitório das identidades na
modernidade, bem como o suporte dado pela ampliação do debate feminista na atualidade. Assim, da
mesma forma que as mulheres buscam construir novas identidades para si, diferindo dos modelos
patriarcais até então apresentados, os homens também estão em busca de uma nova forma de ser no
mundo, às avessas do modelo de masculinidade hegemônica (NOLASCO, 1993).
O estudo de Pedro Paulo Oliveira (1998), é importante por ser um estudo brasileiro que, além
de contribuir para os estudos de construção social da masculinidade, realiza, ainda que breve, um
balanço da produção sobre o tema fora do Brasil na década de 1980 e 1990. Esse período é onde há
contribuições significativas para o campo de investigações acerca das masculinidades. O autor
investiga posições tomadas no debate acadêmico sobre o tema, na pesquisa são identificados
fundamentos de investigação dos homens como: psicologização, papéis sociais e capitalismo. Esses
fundamentos são utilizados ora com um discurso vitimário, ora com um discurso crítico.
O discurso vitimário, discorre com a utilização de termos que expressam a condição masculina
enquanto vítima de um conjunto de fatores sociais e psíquicos. Pesquisas com essa abordagem
utilizam termos como “Solidão, sofrimento, angústia, tensão premente, fragilidade, inseguranças,
problemas de identidade, opressão através do processo de socialização, inabilidade para manifestação
de sentimentos etc.” (OLIVEIRA, 1998, p.92). No olhar mais voltado a psicologia, as pesquisas
apontam como natural a ausência do pai na vida afetiva dos filhos/filhas e o distanciamento dos
meninos para com a mãe. Para que não sejam considerados “filhinhos da mamãe” eles se distanciam,
isso causa sofrimento e uma dificuldade de lidar com as relações para o resto do desenvolvimento da
juventude e da vida adulta, fazendo dos homens controladores e violentos. Já as metodologias que
buscam os papéis sociais e o capitalismo como fundamento para a tensão premente e a ausência de
demonstrações de afeto dos homens, entende o papel social assumido em uma cultura patriarcal, bem
como a alienação do trabalho, faz com que o homem não compreenda o papel de seu trabalho e
de suas companheiras mulheres, propiciando as demonstrações de poder masculinas.

544
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No discurso crítico, Oliveira (1998 ) recai uma perspectiva sobre os homens que não coloca-
os como vítimas de sua condição de gênero. Essas análises atentam-se para a dinâmica das relações
sociais promovidas pelos privilégios, bem como a estrutura na qual fundamentam-se os machismos
expressados pelos homens. A psicologia, antes era usado para entender a condição de vítima dos
homens, passa a ser utilizada para ver como homens não percebem a dependência e as violências que
promove; a crítica sobre os papéis sociais de gênero e ao capitalismo são realizados a partir da
investigação dos códigos masculinos e das masculinidades hegemônicas e subalternas. Há com essa
vertente crítica um olhar sobre as masculinidades subalternizadas, e assim, entram em cena homens
gays, negros e os homens pró-feminismo, sinalizando as mudanças em relação a estrutura patriarcal,
branca e heterossexual.
Ao tentar propor uma cultura de reconciliação entre homens e mulheres, Bell Hooks examina
como os processos nos quais meninos tornam-se homens. Segundo a autora, esse momento é
composto por situações e elementos que fomentam o uso da violência, especialmente contra tudo que
é considerado feminino, e distanciam os homens de conexões emocionais e demonstrações de afeto.
Para ela “There is only one emotion that patriarchy values when expressed by men; that emotion is
anger: Real men get mad” (BELL HOOKS, 2004, p.7). Nesse processo os homens encontram uma
glorificação na violência e um meio de distinção das mulheres. Esse processo de desconexão é
inerente ao modelo de masculinidade baseado na força, isso desencadeia dificuldade de desenvolver
a sensibilidade, de modo que

“The first act of violence that patriarchy demands of males is not violence toward women.
Instead patriarchy demands of all males that they engage in acts of psychic self-mutilation,
that they kill off the emotional parts of themselves (BELL HOOKS, 2004, p.66)”.

Assim, violência e cuidado aparecem como elementos conflitivos e conflitantes nos


enquadramentos acerca das masculinidades.

PRIVILÉGIO E DOR: MASCULINIDADES NAS TRAMAS DO NEOLIBERALISMO


Para compreender a produção de masculinidades na atualidade, é importante observar, em
meio às disputas e contradições sociais do contexto neoliberal, pós-crise de 2008, a aparição de
figuras políticas que são em sua maioria homens, brancos, heterossexuais, que gritam nos

545
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
comícios defendendo uma valorização de discursos “tradicionais”, evocando valores como a religião,
família, patriotismo e a propriedade privada.
Assim, quatro aspectos serão apresentados para realizar essa investigação: (i) privilégio; (ii)
senso de direito; (iii) percepção meritocrática, (iv) ressentimento. Ressalta-se que esses elementos
compõem também uma dimensão formativa para os homens na atualidade, sendo relevantes no
reconhecimento da perspectiva feminista sobre os desafios que o tempo histórico impõe para a
igualdade de gênero.
O primeiro aspecto que pode ser suscitado, especialmente quando o debate envolve
masculinidades, concerne ao privilégio. Para além de interpretar o privilégio como uma forma de
nomear distribuições desiguais de usufruto de direitos, parte-se aqui da premissa de que o privilégio
funciona como um mecanismo de invisibilização.
O privilégio de gênero que os homens carregam, traz não somente os ganhos e direitos
historicamente obtidos, mas, também, implica uma ausência de questionamento sobre sua condição
de gênero. Para além de considerar a dimensão que interpreta o privilégio como uma forma de nomear
distribuições desiguais de direitos, parte-se aqui da premissa de que o privilégio funciona como um
mecanismo de invisibilização. O privilégio ocasiona uma ausência de questionamento sobre sua
condição de gênero. Homens estão em diversos espaços, situações e profissões, porém dificilmente
são vistos enquanto homens. O mecanismo de privilégio tende a ocultar a masculinidade (KIMMEL,
2008; BETHANY COSTON, KIMMEL, 2012). Assim, homens podem, por exemplo, explodir
bombas no corpo em busca de virgens no paraíso sem que sejam questionados em sua dimensão de
gênero, relegando o ocorrido a motivos como fanatismo religioso ou problemas psiquiátricos
(KIMMEL, 2018b).
A medida que privilégio conduz ao não reconhecimento da condição masculina, surgem
problemas no desenvolvimento dos homens perante o coletivo, e problemas no desenvolvimento da
própria sociedade. Ambos, sociedade e individuo não reconhecem a necessidade de mudar (PEGGY
MCINTOSH, 2010) . Essa ausência de questionamento envolve também o fato de que quando sujeitos
que usufruem de determinados privilégios, ao se sentirem questionados sobre sua condição e inserção
na sociedade se sentem em risco (JOHNSON, 2010).
O privilégio não é incorporado ao sujeito de forma absoluta, de modo que todos os
homens tornam-se privilegiados da mesma maneira, sendo importante a contribuição de

546
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
perspectivas interseccionais para a compreensão dos poderes do privilégio. Dar visibilidade ao
privilégio de gênero deve ser combinado a visibilidade aos privilégios ou opressões que envolve
outros marcadores como raça, classe, sexualidade (PATRICIA HILL COLLINS, 2010).
O segundo aspecto alude aquilo que iremos referir como “senso de direito”. Ele deriva daquilo
que Michael Kimmel chama de entitlement, sendo marca historicamente constitutiva da construção
social da masculinidade. Nesse sentido, compreender o senso de direito, pode-se inferir com a
analogia feita por Michael Kimmel (2017) em Angry White Men quando aponta que o homem branco
americano atende a um perfil interessante para a compreensão desse senso de direito. O homem
branco americano contou, segundo ele, com a maior política de ações afirmativas da história: a própria
história moderna. Muitas vezes definindo-se como fundadores da américa, os homens brancos
americanos nunca foram escravizados, dispunham de terra a baixo custo e nunca tiveram suas terras
ou populações devastadas em guerras por outro Estado-nação.
Pelo senso de direito os homens esperam que as ações dizem respeito a eles, que eles possuem
um direito de participação “naturalmente” assegurado em qualquer espaço. Esse senso de direito
possibilita a formação de uma cultura do direito (KIMMEL, 2018a). Essa cultura do direito aparece
como uma recompensa por enquadrar-se nas normativas de comportamento masculino, isto é, por
trabalharem e se “sacrificarem” para ser aquilo que esperam deles.
O período pós crise de 2008, no qual ocorre um avanço do neoconservadorismo, que se
concilia aos valores neoliberais de desmonte de programas públicos de suporte aos indivíduos,
especialmente dos setores populares, para valorizar o discurso de defesa da família – entendendo-a
como heterossexual, cisgênero e calcada nos valores tradicionais. Esses discursos de defesa das
tradições familiares, além de estimularem discriminação sexual e de gênero, tiram do Estado a
necessidade de formular políticas de suporte aos indivíduos, especialmente mulheres de classe
trabalhadora (MELINDA COOPER, 2017). Fazendo a defesa da responsabilidade familiar e de
parentesco, mantém-se a isenção do Estado e do capital nos problemas, ao passo que justifica
desigualdades e situações de precariedade vividas pelos indivíduos.
Considerando que o homem branco das camadas médias e altas contou com históricos direitos
– como o trabalho, moradia, escolarização -, todavia, atualmente, por conta das políticas de cotas e
da ampliação de políticas sociais voltadas a setores desprivilegiados como negros, mulheres e
LGBTQ, esses homens brancos sentem que seu direito está sendo ofendido [aggreived

547
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
entitlement] (KIMMEL, 2016). E assim, eles responsabilizam o Estado e alguns de seus
representantes como promotores desse sentimento – no caso brasileiro com governos liderados por
um ex-metalúrgico e uma ex-guerrilheira, e no caso americano de um homem negro.
O terceiro aspecto envolve a percepção meritocrática de relações hierarquizadas. A
meritocracia aparece como um meio de organização social no contexto neoliberal, sendo parte
fundamental do processo de subjetivação e de governamentalidade neoliberal (DARDOT, LAVAL,
2016).
O mérito hoje converteu-se em uma fonte de valoração pessoal e evolução da sociedade, como
o autor pode perceber em alguns relatos. A expansão atual do mérito testemunha um aprofundamento
do individualismo (KATHYA ARAUJO, MARTUCCELLI, 2012). Isso fica patente na valorização
da ambição pessoal, da confiança no esforço próprio, e do empurrão que a gana oferece. Os setores
da classe média, segundo o autor, falam como porta-vozes do sistema.
Nesse encontro entre masculinidades e neoliberalismo pode-se relacionar a virilidade em
relação a meritocracia. Então, uma hipótese possível para esse encontro concerne em uma possível
problematização acerca da percepção de que a força, a coragem, a resignação e o enfrentamento dos
desafios produz indivíduos mais fortes. Sob essa premissa, a atitude autoconfiante torna-se mais que
uma expressão de trabalhadores no mercado no mercado de trabalho cada vez mais competitivo, mas
de homens produzindo e sendo produzidos por um mercado de trabalho competitivo (NORAH
VINCENT, 2006). O desgaste e a pressão no exercício laboral passam a ser normas, e os homens
continuam a experimentar da dor como elemento formativo.
A meritocracia como fundamento para justificar as posições sociais, não garante somente o
poder dos homens, mas, sobretudo, dos homens brancos com maior escolaridade. A partir da
perspectiva interseccional, é possível constatar que nem todos os homens usufruem de maneira
semelhante no mercado de trabalho. Embora, os homens, de maneira geral, estão economicamente
ativos, há diferenças entre homens brancos e homens negros, e entre homens mais escolarizados e
menos escolarizados. Os homens brancos, além de possuírem maior escolaridade que os homens
negros, possuem rendimentos médios mais altos (LUANA PINHEIRO et al., 2016).
Ao defender a meritocracia, os homens ocultam os frutos de seus privilégios historicamente
recebidos (RAEWYN CONNELL, 2016). Se o privilégio invisibiliza os direitos obtidos pelos
homens, a meritocracia é a legitimação das desigualdades entre os marcadores da diferença,

548
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
trazendo implicações diretas no âmbito do trabalho. O teto de vidro, as jornadas triplas de trabalho,
os enfrentamentos de assédio, ainda frequentes no cotidiano de trabalho feminino enfrentam limites
para serem reconhecidos.
Entretanto, desde o fim do século XX as mulheres vêm obtendo maior sucesso escolar em
relação aos homens e, cada vez mais, conquistam espaço em áreas antes dominadas por eles;
combinado as políticas públicas dirigidas aos setores populares no sentido de facilitar o acesso a bens
e serviços públicos; a meritocracia como fundamento para o sucesso masculino pode estar cada vez
mais ruindo. E assim, ao precisar disputar vagas de empregos ou promoções no trabalho com
aqueles/aquelas que são desfavorecidos pelos critérios e gênero, sexualidade e/ou raça, os homens,
especialmente brancos e heterossexuais, sentem que seu “senso de direito” está sendo lesado. Então,
eles abrem vazão ao quarto aspecto: o ressentimento.
Diferente da mágoa, tristeza ou indignação, o ressentimento é uma ruminação, um estado no
qual o indivíduo entra em um ciclo de retroalimentação. Esse movimento cíclico de raiva é justificado
colocando a culpa em outrem, isto é, o ressentido precisa culpar alguém pelas suas queixas (MARIA
KEHL, 2020).
O ressentimento masculino, especialmente branco e heterossexual, aparece nesse momento
em que há uma precarização da condição social dos sujeitos. Olhando para os Estados Unidos pós-
crise de 2008, Wendy Brown afirma que

Além de empobrecidos e frustrados, os cristãos brancos, rurais ou suburbanos, eram deixados


de lado e para trás, alienados e humilhados. E havia o racismo duradouro, crescente conforme
novos imigrantes transformaram bairros suburbanos e conforme políticas de “equidade e
inclusão” pareceram, ao homem branco não escolarizado, favorecer a todos, menos a ele.
Assim, as agendas políticas liberais, as agendas econômicas neoliberais e as agendas culturais
cosmopolitas geraram uma crescente experiência de abandono, traição e finalmente raiva por
toda a parte dos novos despossuídos, das populações da classe trabalhadora e da classe média
branca do Primeiro Mundo e do Segundo.” (WENDY BROWN, 2019, p.11).

O ressentimento masculino foi compartilhado por grupos de franjas racistas, alas


conservadoras da igreja católica e evangélica, até cidadãos suburbanos que viram sua condição de
classe rebaixada (WENDY BROWN, 2019). A sensação de que estão sendo esquecidos pela ação do
Estado e sofrendo com um suposto “racismo reverso” passa a ser expressões dessa reação.
Conforme apontou Nietzsche (2009, p.26) em a genealogia da moral, “A rebelião escrava
na moral começa quando o próprio ressentimento se torna o criador e gera valores: o
549
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma
vingança imaginária obtém reparação.” Ou seja, o ressentimento é produtivo. Logo, essa dimensão
produtiva do ressentimento desvaloriza os valores morais hegemônicos e criando um novo conjunto
de premissas morais. Esse ressentimento do homem branco produziu um niilismo que não rejeita o
cristianismo, mas o resignifica (WENDY BROWN, 2019).
Esses novos significados sobre o cristianismo são observados na pesquisa realizada por Arlie
Hochschild (2016). Em seu estudo realizado no estado do Louisiana – possui baixo índice de
desenvolvimento educacional e de renda, e foi um dos principais responsáveis pela eleição de Donald
Trump – a socióloga da Universidade de Berkeley descreve como eles mesmo se declarando cristãos
e frequentando a igreja sentiam-se obrigados a compaixão. Valorizavam a comunidade e
desdenhavam do Estado, pois, viam uma distância entre a ação do Estado e suas vivências cotidianas.
Há também a aparição na cena pública de grupos de extrema direita, cujo protagonismo é
majoritariamente masculino, trazem consigo valores rígidos de masculinidade: o uso da força e da
violência para a resolução de conflitos, uma secundarização da figura feminina e a abjeção de
identidades LGBTQIA (KIMMEL, 2018b). E então, chama a atenção para entender as
masculinidades no neoliberalismo, a capilarização na trama social e assimilação, em maior ou menor
grau, na educação brasileira (HERMIDA, ORSO, 2020).
Esse aparecimento de diversos homens brancos na cena pública, defendendo o militarismo, os
“bons costumes” e os valores da família tradicional expressam elementos de sua condição de gênero.
Assim, eles reclamam a masculinidade perdida como uma declaração para si, para os outros e para o
mundo (KIMMEL, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A medida que os homens, por conta dos privilégios, não questionam essas desigualdades, ou
ainda, justificam-nas sob o discurso da meritocracia, essas lógicas de desigualdade de gênero tendem
a persistir na trama social. As políticas neoliberais de desmonte do comum passam a receber apoio,
direto ou indireto, desses elementos que articulam as condutas masculinas.
Os homens, logrados pelo ressentimento, ao culpar os grupos historicamente desfavorecidos
pelas hierarquias sociais, não percebem que o capitalismo e sua dinâmica neoliberal tem maior
impacto sobre a precarização de sua condição social. Especialmente com as políticas neoliberais

550
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
cujas implicações tendem a acentuar as desigualdades entre ricos e pobres, bem como desproletarizar
os homens de classe trabalhadora e destituir diversos bens comuns aos quais ele tem acesso.
Aliado ao neoliberalismo e neoconservadorismo também traz implicações para a construção
das masculinidades. Ao trazer de volta concepções tradicionais daquilo que significa ser homem,
mantém-se injustiças de gênero contra mulheres e limites a expressividade dos homens, haja vista a
(re)afirmação de que os homens não devem demonstrar sentimentos, obter sucesso via bens e usar da
violência como meio de restaurar a respeitabilidade. Há de se ressaltar também que homens negros,
de sexualidades dissidentes e/ou deficientes tem seus direitos cerceados e se veem sem suporte
institucional para a diminuição das desigualdades que incidem sobre sua condição social.
A medida que os homens tendem a rechaçar os feminismos, especialmente a vertente que
carrega uma crítica ao capitalismo, perdem a possibilidade de posicionar-se contra as condicionantes
sociais que mantém sua situação de desvantagem. E ainda, vale ressaltar que o capitalismo integra e
fomenta desigualdades de gênero, etnia/raça, sexualidade e localização geográfica (CINZIA
ARRUAZA; TITHI BHATTACHARYA; NANCY FRASER, 2019). Logo, a luta por igualdade de
gênero possibilita a movimentação de estruturas sociais e frutos para uma multiplicidade de mulheres
e homens.
A vida dos homens é composta de silêncios. Eles não falam sobre sentimentos, sobre
fraquezas, derrotas, traumas. Contudo, é importante considerar que a condição de gênero masculina,
especialmente pelo(s) privilégio(s), promove silêncios. Silêncio para com a condição das mulheres e
silêncio para com a condição de diversos homens em situação de precariedade.

REFERÊNCIAS
ADRIANA PISCITELLI. Gênero: a história de um conceito. In: Heloisa ALMEIDA, Buarque de;
SZWAKO, José Eduardo (orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009.

ARLIE HOCHSCHILD. Strangers in their own land. New York: The New Press, 2016.

BELL HOOKS. The Will to change: mens, masculinities and love. New York: Washington Square
Press, 2004.

BETHANY COSTON; KIMMEL, Michael. Seeing Privilege Where It Isn’t: Marginalized


Masculinities and the Intersectionality of Privilege. Journal of Social Issues, v. 68, n. 1, p. 97-
111, 2012.

551
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CINZIA ARRUAZA; TITHI BHATTACHARYA; NANCY FRASER. Feminismo para os 99%:
um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.

HEREMIDA, Jorge Fernando; ORSO, Paulino José. Políticas educacionais e o avanço da nova (ou
extrema?) direita. Roteiro, Joaçaba, v. 45, p. 1-8, jan./dez. 2020.

JOAN SCOTT. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. v. 20, n. 2,
1995.

JOHSNSON, Allan. Privilege, power, difference, and us. In: KIMMEL, Michael; FERBER, Abby
(orgs). Privilege. 2ª Ed. Philadelphia: Westview Press, 2010.
JUDITH BUTLER. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeira:
Civilização Brasileira, 2003.

KATHYA ARAÚJO; MARTUCCELLI, Danilo. Desafios comunes: retratos de la sociedad chilena


y sus individuos. Neoliberalismo, democratización y lazo social. Santiago: LOM, 2012.

KIMMEL, Michael. Angry White Men. 2ª Ed. New York: Bold Type Books, 2017.

KIMMEL, Michael. Guyland: the perilous world where boys became men. New York:
HarperCollins, 2018a.

KIMMEL, Michael. Healing from hate: how young men get into-and out of-violent extremism.
Califórnia: University of California Press, 2018b.

KIMMEL, Michael. Manhood in America: a cultural history. New York: Bold Type Books, 1998.

KIMMEL, Michael; FERBER, Abby. Toward a pedagogy of the opressor. In: KIMMEL, Michael;
FERBER, Abby (orgs). Privilege. 2ª Ed. Philadelphia: Westview Press, 2010.

LINDA NICHOLSON. Interpretando gênero. Estudos Feministas. v. 8, n. 2, pp. 9-41, 2000.

LUANA PINHEIRO et al. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014. Brasília:
IPEA, 2016.

MARIA KEHL, Rita. Ressentimento. 2ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

MELINDA COOPER. Family values. New York: Zone Books, 2017.

MESSNER, Michael. Out of play: critical essas on gender and sports. Albany: SUNY Press,
2007.

552
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
NANCY FRASER; RAHEL JAEGGI. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São
Paulo: Boitempo, 2020.

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

NORAH VINCENT. Feito Homem: A jornada de uma mulher ao universo masculino. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2006.

OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a masculinidade. Revista Estudos Feministas, Rio de
Janeiro, v. 6, n.1, p. 91-112, 1998.

PATRICIA HILL COLLINS. Toward a new vision: race, class and gender as categories of analysis
and connection. In: KIMMEL, Michael; FERBER, Abby (orgs). Privilege. 2ª Ed. Philadelphia:
Westview Press, 2010.

PEGGY MCINTOSH. White privilege and male privilege. In: KIMMEL, Michael; FERBER, Abby
(orgs). Privilege. 2ª Ed. Philadelphia: Westview Press, 2010.

RAEWYN CONNELL; REBECCA PEARSE. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos,
2016.

RAEWYN CONNELL. Gênero em termos reais. São Paulo : Nversos, 2016.

WENDY BROWN. Nas ruínas do neoliberalismo: ascenção da política antidemocrática no


ocidente. São Paulo: Editora Politéia, 2019.

553
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PRODUZIR CIÊNCIA E REPRODUZIR PAPÉIS?

Vagner André Morais Pinto242

Resumo: O objetivo neste artigo consistiu em verificar aspectos da implicação do gênero na articulação cotidiana entre
atividades acadêmicas e domésticas. O universo de análise se pautou nas entrevistas feitas junto à dez pesquisadoras e
dez pesquisadores em Geografia no Paraná. A partir do material transcrito destas, foram estabelecidas categorias de
análise e redes semânticas via metodologia proposta por Silva e Silva (2016). Os resultados evidenciaram disparidades
significativas das associações discursivas entre homens e mulheres quanto a representação espacial e demandas laborais.
Enquanto o grupo masculino retratou maior conciliação, ou separação, entre família e universidade, o grupo feminino
relatou dificuldades de adequação das demandas tanto íntimas quanto profissionais. Apesar das limitações e
generalizações, o estudo resgata a problemática entre gênero, trabalho e espacialidades públicas e privadas, aspectos estes
escancarados durante a pandemia vigente.

Palavras-chave: Gênero; Produção Científica; Espaço Acadêmico; Família.

INTRODUÇÃO
Embora o desenvolvimento desta pesquisa seja anterior ao contexto de emergência da
pandemia que sobrevivemos, o rearranjo temporal e, principalmente, espacial das atividades de
pesquisa científica evidenciou, abruptamente, o peso do convívio doméstico na performance
profissional e as desigualdades sociais. Evidentemente, o fazer científico não paira sobre a sociedade
enquanto uma nuvem luminosa, retroalimentável, universal e autônoma. As ciências são feitas por
gente como a gente (na teoria), pessoas com trajetórias, possibilidades e anseios vários nas quais,
sobretudo nas Humanas, uma distinção nítida entre sujeito, objeto e as condições de produção do
conhecimento são demasiadamente complicadas. Assim, a consideração do fazer científico enquanto
um artefato humano e profundamente implicado na realidade socioespacial são premissas básicas de
discussão aqui. Abordo neste artigo as representações discursivas de um grupo de pesquisadores, em
Geografia no Paraná, a respeito das possíveis vinculações de seus desempenhos acadêmicos com suas
interações familiares. Nestes termos, o objetivo da investigação foi de identificar e relacionar as
implicações do gênero, categoria analítica fundamental, entre estes agentes (re)produtores de saberes
a partir do enfoque em suas vivências domésticas. O texto está dividido em duas seções interligadas
e complementares. Na primeira seção realizo uma breve discussão entre concepções de gênero e
produção científica. Ao passo que na segunda seção são explorados os conjuntos discursivos das
pessoas entrevistadas na relação entre as demandas científicas e familiares.

242
Doutorando em Geografia na Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: vampmorais@gmail.com
554
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FAZERES CIENTÍFICOS E GENERIFICADOS
Na Europa e em meados do século XVIII, no princípio da comumente designada Revolução
Científica, as mulheres tinham considerável participação em áreas vinculadas à Astronomia, por
exemplo, e possuíam saberes diversos a respeito de farmacologia natural, cuidados de enfermos e
temas relativos à gestação humana (AQUINO, 2006). Todavia, com o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, décadas depois, ocorreu sistemática separação entre os espaços tidos enquanto
privado e público com fins de aumento produtivo, interferindo significativamente na organização da
produção científica e tecnológica e na profissionalização dos cientistas em sistemas formais de ensino
(SCHIENBINGER, 2001). Assim, o acesso às escolas e universidades tornou-se difícil para as
mulheres, tendo estas que assumir o cuidado da casa e dos filhos.
Este modo de se fazer ciência adquiriu legitimidade se sustentando em estereótipos de longa
data que associavam características de racionalidade, competitividade, independência e objetividade
aos homens e, por conseguinte, de irracionalidade, passividade, dependência, ternura, emotividade e
subjetividade às mulheres. As implicações destas concepções amplas fizeram com que características
tidas enquanto femininas não fossem valorizadas para o desenvolvimento de uma carreira científica,
visto que as qualidades desejáveis para se fazer ciência seriam encontradas principalmente nos
homens. Dados campos científicos ainda teriam por mote identificar essas supostas diferenças nas
habilidades cognitivas entre os pares humanos por meio de estudos de condicionamento genético e
hormonal e de estruturas cerebrais, uma vez que a pretensa justificativa das desigualdades entre
homens e mulheres estaria associada à presença de padrões típicos e rígidos em cada sexo (GARCIA;
SEDEÑO, 2002).
Neste seguimento, conforme argumenta Laqueur (2001), em diferentes épocas, os discursos
falocêntricos se fizeram presentes a partir de representações a respeito das genitálias humanas - o
pênis tomado enquanto símbolo de virilidade, de calor e externalidade em contraponto com a
fragilidade, frieza e obscuridade da vagina - e incrementaram um discurso secular que definia como
homens e mulheres deveriam se portar devido a estas características anatômicas. “O espírito e o útero
da mulher são interpretados como áreas equivalentes para o princípio ativo do macho; sua pessoa está
sob o governo e a instrução racional do marido pela mesma razão que seu ventre está sob o
domínio do esperma dele” (LAQUEUR, 2011, p. 72-73). Mesmo no século XVIII, com novos
555
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estudos que demonstravam não existir um sexo único com edições ‘superiores’ e ‘inferiores’ (como
era difundido desde a Antiguidade), mas sim duas composições corpóreas distintas tanto em estrutura
quanto em função, não fizeram com que as argumentações de uma suposta superioridade masculina
desaparecessem, e sim com que fossem reformuladas sob uma nova perspectiva e necessidade
política. Será apenas no século XIX, com o aumento de inventariações e descobertas ao redor do
globo, que ocorre a modificação de várias práticas discursivas em sistemas hegemônicos do direito,
religião, medicina, arte, antropologia, pornografia e literatura de viagem, dentre outros
(FOUCAULT,1995; ORNAT, 2008). Neste contexto, surge em países como a Inglaterra, França e
Estados Unidos o que é designada como a primeira onda do movimento feminista, com mulheres
lutando por igualdade de direitos civis, políticos e educativos, outrora reservados somente aos homens
(NARVAZ; KOLLER, 2006).
A segunda onda do movimento feminista ressurge nos anos 60 e 70, com força na França e
nos Estados Unidos. As feministas americanas denunciavam a opressão masculina e buscavam a
igualdade, ao passo que as francesas reivindicavam a valorização da diferença entre homens e
mulheres, dando visibilidade às especificidades da experiência feminina. Neste período o movimento
feminista também ressalta além do aspecto político, questões epistemológicas (NARVAZ; KOLLER,
2006). A citar a proposição conceitual para o termo gênero a partir da obra O Segundo Sexo, de
Simone de Beauvoir. Este, segundo Beauvoir (1967), é dado enquanto um devir construído a partir
das relações sociais nas quais são atribuídos, desde a infância, papéis socialmente aceitáveis para
mulheres e homens, sem considerar a presença de uma sexualidade inata. As possibilidades de
compreensão advindas desta categoria possuem um caráter explicativo mais abrangente e
metodologicamente variado. Deste modo

[...] a noção de gênero nega a construção universal das diferenças sexuais e implica a análise
temporal e espacial na configuração das relações sociais, envolvendo uma perspectiva
relacional, já que as mulheres são concebidas na sua relação com os homens (SILVA, 2009,
p. 35).

Nos anos 80, o advento da crítica pós-moderna da ciência e do paradigma da incerteza do


conhecimento influenciam o desenvolvimento da terceira onda do movimento feminista, cuja
proposta tem por enfoque a alteridade e a diversidade das produções discursivas e da
subjetividade, considera outras categorias como a raça, classe e instrução, como reivindicam os
556
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
feminismos negros, por exemplo. Convém salientar que as diferentes propostas e características de
cada fase do movimento feminista não são passíveis de serem tomadas enquanto um processo linear,
uma vez que estas sempre, e ainda na contemporaneidade, coexistem (NARVAZ; KOLLER, 2006).
Após analisar um considerável volume de estudos e discussões acerca da categoria de
gênero, Scott (1995) o aborda enquanto uma categoria de análise útil, contudo, também, necessária
de ser revista no que tocaria ao seu caráter binário e fixo. “Ao insistir sempre nas diferenças fixadas
as/os feministas reforçam o tipo de pensamento que desejam combater. Ainda que insistam na
reavaliação da categoria do “feminino” eles não examinam a oposição binária em si” (SCOTT, 1995,
p. 84). A autora define o gênero a partir de duas proposições complementares e integradas: “(1) o
gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos e (2) o
gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 84).
Da primeira proposição da autora depreende-se um vínculo com o aspecto identitário dos
sujeitos, ou melhor, com o aspecto identificável destes. Neste sentido, Louro (1997) entende o gênero
(assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) como constituinte da identidade,
enquanto fazendo parte do sujeito. Assim como as diferentes instituições e práticas sociais seriam
constituintes e constitutivas pelos gêneros, dado a inerente presença de relações sociais nestas. Deste
modo busca-se compreender que “[...] a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a
política, etc. são atravessadas pelos gêneros: essas instâncias, práticas ou espaços sociais são
‘generificados’ — produzem-se, ou ‘engendram-se’, a partir das relações de gênero” (LOURO, 1997,
p. 24-25). Ao passo que também é aludida a necessidade de reflexões sobre gênero não circunscritas
apenas ao âmbito privado-doméstico, conforme Scott (1995):

Temos necessidade de uma visão mais ampla que inclua não somente o parentesco, mas
também (especialmente para as complexas sociedades modernas) o mercado de trabalho (um
mercado de trabalho sexualmente segregado faz parte do mesmo processo de construção de
gênero), a educação (as instituições de educação somente masculinas, não mistas, ou de
coeducação fazem parte do mesmo processo), o sistema político (o sufrágio universal
masculino faz parte do processo de construção do gênero) [...] O gênero é construído através
do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na
organização política, que, pelo menos em nossa sociedade, atuam atualmente de maneira
amplamente independente do parentesco (SCOTT, 1995, p. 87).

Na segunda proposição de Scott (1995), associando relações de gênero e relações de


poder, vincula-se a compreensão de que mulheres e homens constituem, por meio de diferentes
557
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
práticas sociais, negociações que resultam em avanços, recuos, revoltas, consentimentos, alianças,
entre outros. Sendo que

[...] uma interessante representação dessas práticas seja imaginá-las como semelhantes a
jogos em que os participantes estão sempre em atividade, em vez de reduzi-las, todas, a um
esquema mais ou menos fixo em que um dos contendores é por antecipação e para sempre, o
vencedor (LOURO, 1997, p. 39).

Tal concepção de relações de poder é aderente com a abordagem de Foucault (1995) que
imagina estas enquanto interações múltiplas e fluídas entre sujeitos, no qual coexistiram a resistência,
reforços, inversões e correlações de força. Para tanto, o autor aborda dois elementos fundamentais
em sua compreensão de poder: a conduta e a liberdade. A conduta é entendida tanto como o ato de
conduzir os outros, segundo mecanismo mais ou menos estritos de coerção, como enquanto o tipo de
comportamento em dado âmbito de possibilidades. Sendo que o exercício do poder se daria apenas
sobre sujeitos livres “[...] entendendo-se por isso sujeitos individuais e coletivos que têm diante de si
um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de
comportamento podem acontecer” (FOUCAULT, 1995, p. 244).
Neste sentido, as relações de poder envolvem em sua trama uma complexidade de interesses
e ações e/ou condutas desejáveis em certas conjunturas. O gênero, enquanto categoria que é também
é faceta identitária de sujeitos e estabelecido em grande parte pela diferença e nem tanto pela
semelhança entre sujeitos, estaria presente significativamente em alguns espaços disciplinadores
(forjadores de condutas). Neste aspecto, o conceito habitus utilizado por Bourdieu (2002) para
designar disposições e ações de indivíduos adquiridas no transcurso do tempo em dadas estruturas
sociais, seja de modo corpóreo, cultural e simbólico é muito pertinente. Carvalho (2010) relaciona
esta conceituação ao gênero:

Os habitus de gênero resultam do trabalho pedagógico psicossomático de nominação,


inculcação e incorporação através de variadas e constantes estratégias de diferenciação de
meninas e meninos, implícitas e explícitas nas práticas de vários agentes e instituições –
família, igreja, escola, meios de comunicação, Estado (CARVALHO, 2010, p. 242, grifo do
autor).

Ao passo que para Louro (1997) as imbricações entre gênero e poder seriam mais
amplas, visto que considera um maior quadro de possibilidades de ação entre homens e mulheres,
558
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e próximas, compreendo um processo retroalimentativo entre estas relações.

Homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos de


repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações que
instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e
posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gêneros se produzem, portanto, nas e
pelas relações de poder (LOURO, 1997, p. 41, grifo do autor).

Alinhadas às concepções desconstrucionistas em relação ao gênero e suas características


pautadas na dualidade homem-mulher que despontaram nos anos 90, as proposições de Judith Butler
são das mais pertinentes. Butler (2007) questiona a pretensa estabilidade e a associação identitária
associadas ao termo “mulher” e o vincula às distintas interseccionalidades. A noção de sexo também
é questionada, uma vez que para a autora ele é um elemento dado enquanto pré-discursivo (anterior
à cultura) adquirindo, assim, status de natural. Deste modo, visa-se assegurar a estabilidade interna
do sistema binário de sexo e, por conseguinte, a necessária coerência entre sexo, gênero e desejo.
Desta feita, o componente de gênero na investigação geográfica se faz importante para o
entendimento do próprio fazer científico nesta área, visto que ele possibilita compreender que a
organização social e territorial abarca diferenças significativas entre mulheres e homens, ao passo que
as relações entre ambos “são um elemento estruturador importante da sociedade, não devendo ser
entendido apenas nas vertentes da privacidade, da intimidade ou da afetividade” (ANDRÉ,1990, p.
4).
Um marco relacionado com o incremento de reflexões envolvendo ações de homens e
mulheres neste meio é associado à publicação do artigo “On Not Excluding Half of the Human in
Human Geography”, no periódico The Professional Geographer, de autoria de Janice Monk e Susan
Hanson em 1982. Outro nome importante neste meio, McDowell (1992), relata o isolamento delegado
às produções de geógrafas feministas sobre assuntos diversos, a citar as relações de gênero enquanto
elemento de organização social e como estratégia de manutenção de características masculinas na
Geografia, conforme aponta Silva (2009). A autora também discute, a partir de Rose (1993), que o
conhecimento geográfico encontra-se masculinizado tanto em termos de escolhas metodológicas
como nos perfis de eventos de debate e divulgação científica. É relatada também a necessidade das
mulheres adotarem posturas associadas ao modelo clássico masculino de prática científica
pautada na objetividade e racionalidade a fim de terem possibilidade de sucesso acadêmico.
559
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Neste sentido, García e Sedeño (2002) argumentam a existência de duas formas de
discriminação relacionadas ao gênero na produção científica: uma territorial e outra hierárquica. Na
primeira, seriam delegadas às mulheres atividades relacionadas ao compêndio de dados quantitativos
e taxonomia, visto que são consideradas mais adequadas a estas pelo cuidado e minúcia exigidas. A
segunda consiste em manter cientistas brilhantes em níveis inferiores no meio acadêmico, impedindo
a ascensão destas. Tal processo é derivado de mecanismos muito sutis que excluem as mulheres das
redes informais de comunicação, fundamentais para o desenvolvimento de conceitos e publicações,
tal como demonstrou Silva et al. (2009) no contexto do campo geográfico brasileiro.
Apesar do aumento da participação feminina nos diversos ramos produtivos nas últimas
décadas, não sucedeu na mesma medida “uma transferência correspondente do tempo investido pelos
homens no mercado de trabalho para a esfera privada, mantendo deste modo uma divisão sexual do
trabalho com um forte viés de gênero” (SORJ et al., 2007, p. 574). Em pesquisa efetuada pela
Fundação Perseu Abramo (2010) junto a 2.365 mulheres e 1.181 homens em 280 municípios de 25
estados, estimou-se que a jornada semanal média com atividades de reprodução familiar das
brasileiras é de 29 horas e 21 minutos, enquanto os homens utilizariam apenas 8 horas e 46 minutos
nos mesmos afazeres.
Em uma investigação de abordagem similar, sobre o uso do tempo de 6 casais heterossexuais
de docentes pesquisadores de diversas áreas na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), sob
idênticas condições de trabalho, também foram evidenciadas disparidades na organização e dispêndio
do tempo nas diversas atividades cotidianas entre os gêneros. Visando não prejudicar as atividades
acadêmicas e de reprodução familiar, as mulheres tinham seu tempo de repouso reduzido e,
contrariamente, o mesmo não sucedia com os homens, que gastavam menos tempo nestas atividades,
sobretudo em fins de semana, e dispunham de maior disponibilidade temporal para a realização de
atividades ligadas à universidade (SILVA et al., 2015). A mesma pesquisa constatou que a presença
de filhos se configurou em um agravante nesta diferença de uso do tempo entre homens e mulheres,
restringindo o desempenho acadêmico das últimas.
Tensionamentos entre a família e a profissão se mostram especialmente agudas para as
mulheres nos estágios iniciais da carreira acadêmica. A conclusão de um longo período necessário
para a formação neste meio e as constantes exigências por produtividade e mobilidade coincidem
com a fase final do período fértil e as expectativas sociais sobre o estabelecimento de uma

560
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
família. Este quadro é intensificado por constrangimentos institucionais e preceitos acadêmicos
implícitos pautados no estilo da disponibilidade total para a vida científica, contexto este que
desestimula as cientistas a se tornarem mães (EUROPE COMISSION, 2012).
Conforme argumenta Davies (2003), as relações espaciais e as exigências temporais
envolvendo o lar e o trabalho são inerentemente generificadas. O controle do tempo e do espaço, ou,
pelo menos, a capacidade de escolher livremente como os utilizar, é substancialmente influenciado
por encadeamentos entre a esfera pública e a privada e pela posição das mulheres nestes espaços.
Questões corriqueiras como quem deixa as crianças na creche, quão longe é o local de trabalho da
casa, quem faz as compras de mantimentos e quando as lojas estão abertas, implicam tangencialmente
a vivência humana. Bem como o tempo não pode ser entendido enquanto algo absoluto e passível de
ser isolado das relações humanas. Quando se discute o trabalho, por exemplo, o trabalho que não é
remunerado também deve ser considerado, visto que o labor produtivo depende,
imprescindivelmente, de atividades reprodutivas e que atendam às necessidades e dependências de
outras pessoas, sejam elas crianças, pais, cônjuges ou chefes. Assim, o tempo, sobretudo para as
mulheres, não é um recurso individual e abstrato, pois envolve um coletivo de pessoas e inúmeras
relações espaciais (DAVIES, 2003).
A divisão sexual e espacial do trabalho consiste em um modo de segmentar o trabalho
humano a partir das relações de gênero, vinculada histórica e espacialmente a cada sociedade. Kergoat
(2003) define dois princípios organizadores nesta forma de divisão: o de separação – existem
trabalhos para homens (produção) e trabalhos para mulheres (reprodução); e o de hierarquização –
trabalhos realizados por homens são mais valorizados que os desempenhados por mulheres, algo
comumente observado em práticas políticas, militares e religiosas, por exemplo. Sendo que, por um
lado,
esses princípios podem ser aplicados graças a um processo específico de legitimação, a
ideologia naturalista, que empurra o gênero para o sexo biológico, reduz as práticas sociais a
“papéis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie. No sentido oposto,
a teorização em termos de divisão sexual do trabalho afirma que as práticas sexuadas são
construções sociais, elas próprias resultado de relações sociais (KERGOAT, 2003, p. 56).

Desta feita, conforme ressalta a autora, este fenômeno no mundo do trabalho deve ser
entendido através das relações sociais, dos tensionamentos que atravessam o campo social em
decorrência do jogo instituído por grupos com interesses antagônicos, neste caso, o grupo social

561
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de homens e o grupo social de mulheres. Conjuntura esta que não é passível de ser reificada em si
própria e confundida com a dicotomia biologizante das categorias macho e fêmea (KERGOAT,
2003).

ENTRE (NAS) RELAÇÕES ACADÊMICAS E FAMILIARES

Conforme discutido na seção anterior, o gênero compõe a conformação do campo científico,


todavia, pautado em estereótipos de desvalorização das mulheres considerando-as impróprias para o
exercício de dadas funções e, muitas vezes, segregando-as para determinados nichos considerados
‘mais femininos’. Nestes termos, a incorporação da divisão sexual e espacial do trabalho também
incide sobre as atividades acadêmicas. Em tempos nebulosos de pandemia, os reflexos de tais
disparidades foram acentuados, tal como demonstrou o amplo levantamento realizado pelo
movimento Parent in Science (2020). Com dados resultantes da colaboração de mais de 15 mil
pesquisadores de todo o país, se constatou maior impacto negativo das restrições e sobreposições
laborais da pandemia sobre as mulheres, sobretudo, na intersecção raça e parentalidade.
Assim, nesta pesquisa o universo de análise foi de 20 pesquisadores (dez mulheres e dez
homens, heterossexuais em sua totalidade) integrantes dos quadros permanentes de programas de pós-
graduação em Geografia no estado do Paraná. No Quadro 1 estão contidas informações mais
detalhadas sobre estas pessoas, fornecidas durante as entrevistas. Os nomes são fictícios.

562
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUADRO 1 – DOCENTES ENTREVISTADAS(OS)

Fonte: Pinto, 2017.


O universo feminino das pessoas entrevistadas apresenta um perfil familiar predominante
com ausência de companheiro e filhos. Das 10 mulheres, 6 não possuem filhos e 6 não possuem
companheiro em co-habitação. Das 4 mulheres com companheiros, 3 deles possuem profissão de alto
nível de qualificação. No universo masculino, por outro lado, apenas um não possui companheira em
co-habitação e todos possuem filhos. Além disso, apenas duas das companheiras possui profissão
com mesmo nível de qualificação e remuneração que o companheiro entrevistado. Com relação ao
elemento da maternidade, o mesmo quadro foi verificado com pesquisadoras de universidades
europeias, nas quais se verificou que as mulheres cientistas possuem menos crianças quando
comparadas com colegas homens e mulheres com outras profissões, tendo uma taxa de fertilidade
substancialmente mais baixa em relação ao restante da sociedade. Além disso, se verificou que o
universo masculino conseguia manter relacionamentos maritais com mais facilidade (EUROPE
COMISSION, 2012).
O questionamento realizado durante as entrevistas selecionado para a operacionalização
deste trabalho foi: Considerando as implicações da esfera familiar, o que ela representa dentro

563
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
da sua profissão? O material transcrito oriundo das entrevistas foi trabalhado a partir de uma série de
operações por meio de softwares livres inspirado nas proposições de Silva e Silva (2016).
Primeiramente se estabeleceu e se organizou as categorias semânticas, via RQDA. Na sequência, via
softwares LibreOffice e Open Refine, cada trecho categorial foi alocado em uma planilha e os
fragmentos textuais foram refinados, padronizados e separados, excluindo-se os sinais gráfico e os
termos sem significação própria ou pertinência ao contexto, conhecidas como stop-words. Com a
inserção das colunas Source (fonte), Target (rótulo) e Type (tipo), o arquivo está adequado para ser
convertido em rede na próxima etapa.
Uma rede é uma relação binária caracterizada, neste caso, pela conexão entre uma ou mais
palavras (nós) através de segmentos de reta (arestas) (SILVA; SILVA, 2016). A representação gráfica
destas conexões é designada grafo. Através do software Gephi, foi estabelecida uma vinculação entre
categorias e palavras do tipo não-direcionada (‘undirected’, conforme consta na Figura 1), o que
significa uma conexão recíproca entre os termos.

FIGURA 1 - PROCESSO METODOLÓGICO INICIAL

Fonte: Pinto, 2017.

A Figura 2 corresponde ao grafo representável das articulações entre palavras e categorias


verificáveis no discurso das mulheres. O tamanho dos nós (círculos) é proporcional à ocorrência
e conexões dos respectivos termos.
564
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Figura 2 - ARTICULAÇÃO SEMÂNTICA DO DISCURSO FEMININO SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA NO DESEMPENHO DA PROFISSÃO

Fonte: Pinto, 2017.

A proeminência de termos como ‘trabalho’, ‘família’, ‘demandas’, ‘tempo’ e ‘artigos’ denota


a forte associação destas concepções nos discursos. Retomando os trechos originais das falas é
possível uma melhor compreensão deste contexto:

Porque a gente tem um planejamento na universidade, mas também tem todas as questões
que... As demandas que veem são pra ontem, normalmente, e que são demandas que não
estavam dentro do planejamento e você tem que parar pra participar de reunião, de
colegiado de graduação, de colegiado de mestrado, de pró-reitoria disto, daquilo. Então
você tem a todo o momento chegando demandas e são demandas que estão além do
planejamento, isso pra mim interfere na questão de eu cumprir as minhas metas (Morma,
Paraná, 3 de março de 2016).
Olha, a gente meio que é engolido por um turbilhão. Nós temos que fazer todas as coisas ao
mesmo tempo. Então, temos que publicar. Professor que tá na pós-graduação tem que ter
uma publicação regular. A gente também não tem tempo pra isso. Vai colocando lá no
meio, vai tocando, mas dizer assim que na minha agenda: ‘eu vou escrever um artigo
agora em abril’, nunca vou ter tempo pra escrever um artigo em abril, porque mil
565
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
urgências vão aparecer. Mas uma hora esse artigo vai sair, porque, afinal de contas, temos
que ter a regularidade da produção científica. Mas tudo isso é em prejuízo do descanso, do
sono, lazer, né (Garka, Paraná, 9 de março de 2016).

Contudo, como evidenciado anteriormente, o grupo de mulheres investigado possui


diferenças internas marcantes que trazem maior complexidade à sua estrutura discursiva. O grupo de
mulheres com filhos apresenta maior carga de conflitos entre o espaço doméstico e o acadêmico.
Cabe ressaltar aqui que permanece a ideia de espaço acadêmico enquanto igualitário em termos de
oportunidades e sem discriminação de gênero. Porém, os conflitos são relatados quando o trabalho
acadêmico adentra ao espaço doméstico, local onde é exigida uma performance feminina específica.
Os relatos dos conflitos que seguem nos trechos a seguir são evidências da tendência discursiva do
grupo:

Ah lógico. Certamente. Bom, é... Imagino que a vida dos homens seja um pouco distinta que
a das mulheres na universidade. Mas uma tentativa de conciliação da docência e da pesquisa
e da maternidade, da família... Ela inexiste (Garka, Paraná, 9 de março de 2016).
Ai, nossa... É complicadíssimo. É complicadíssimo. Porque muitas vezes você tem que
terminar um artigo e você né, é um dia que seu filho tá esperando pra você: “Mas mãe, hoje
a gente não tinha combinado de ir no cinema?”. Então muitas vezes a gente fala não. É
horrível, eu me sinto muito mal. Porque você fala não, eu queria, é tempo, é sábado, o
período que eu tinha que tá com as crianças. Mas e o artigo? Tem que entregar segunda de
manhã por exemplo. Ah, é muito difícil, eu falo assim, que desde a época do doutorado, a
gente vai sofrendo isso, porque o doutorado é uma grande pressão na vida da gente, né, rs.
Então você faz doutorado, mas assim: a sua família fica esperando: “Ai, quando você vai
terminar isso, rs?” Porque ninguém aguenta (Drytforth, Paraná, 9 de março de 2016).

Algumas mulheres deixam claro que possuem a consciência das dificuldades da maternidade
para ascensão de sua vida profissional, como argumenta Hes: ‘Pelo fato de ter muito envolvimento
com atividades da universidade optei por não ter família e nem filhos, dado que me restringiriam nas
mesmas’ (Hes, Paraná, 21 de abril de 2016). Os relatos de facilidade para conciliar família e trabalho,
são de mulheres solteiras, sem filhos, ou ainda aquelas que possuem filhos adultos que já saíram de
casa. Mesmo assim, esse último grupo relata que no passado, quando os filhos eram menores a
situação era outra:

Ah, isso depende da época. Hoje a minha filha não mora aqui, meu filho mora comigo,
mas tava passando o fim de semana fora. Então isso me permitiu ficar mais tempo
trabalhando também (Thyni, Paraná, 14 de março de 2016).

566
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A estrutura discursiva das mulheres entrevistadas apresenta tendências explícitas sobre a
forma dicotômica que pensam o espaço. Elas conseguem ver as relações de gênero marcadas no
espaço doméstico, notadamente quando a performance de gênero fica mais evidente. No espaço
acadêmico, apesar de haver reconhecimento da existência de homens que dominam os cargos de
mando na estrutura burocrática, não há, por parte delas a percepção de que este seja generificado.
Muito menos que a sua condição no espaço doméstico é um contínuo do espaço universitário e vice-
versa. Apesar da percepção dicotômica do espaço, elas delatam os conflitos, expõe as angústias que
aparecem mais relacionadas ao espaço doméstico. A falta de tempo para cumprir demandas aparece
em ambas as espacialidades, mas o conflito da condição generificada é mais perceptível no espaço
doméstico.
Na Figura 3 estão representadas as articulações entre palavras e categorias verificáveis no
discurso dos homens, sob os mesmos parâmetros estatísticos do grafo anterior.

FIGURA 3 - ARTICULAÇÃO SEMÂNTICA DO DISCURSO MASCULINO SOBRE A


REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA NO DESEMPENHO DA PROFISSÃO

Fonte: Pinto, 2017.


567
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O tempo também é uma queixa dos homens sobre o aumento do trabalho nas universidades.
A escrita de artigos científicos, também utilizado na esfera do espaço doméstico, não aparece com o
mesmo peso e angústia como para as mulheres, notadamente aquelas que possuem filhos.
Planejamento de fluxo de produção, ambição internacional, inspiração, imersão, exclusividade, são
palavras do discurso masculino que não são verificadas no discurso feminino com relação à produção
científica. Os trechos de falas dos homens com relação ao tempo e a produção científica ilustram a
tendência discursiva encontrada:

Hoje infelizmente tá tudo meio embolado, mas a gente já tem um material pra produção aí e
tá soltando. Tem já, pelo menos dois submetidos e tamos pra soltar mais dois, de maneira
que a gente tá ampliando uma rotina. Porque nós estávamos com uma rotina de um artigo
em revista internacional ou de nível internacional por ano. E agora nós pretendemos passar
pra dois artigos por ano de nível internacional. Então é essa ideia que nós estamos tentando
realizar (Beorn, Paraná, 9 de março de 2016).
Então, eu acho assim que a produção de artigos vai muito de inspiração. Então quando eu
vou preparar um artigo, assim, eu vou lendo algumas coisas um pouco pontuais, vou
preparando, vou fazendo um trabalho assim com gráficos, com figuras, eu vou me inteirando
da ideia, da história que eu quero contar e aí eu gosto de usar imersão e aí eu pego um ou
dois dias por semana, um dia todo assim, e me dedico exclusivamente àquilo; não gosto de
escrever os trabalhos muito à prestação [...] E, quando tem feriados alguma coisa que eu
não viajo eu aproveito pra acelerar essa escrita né e aí eu consigo me dedicar á outras coisas
sem precisar desviar, de trabalho. Que eu vejo assim, que pra escrever você precisa tá
totalmente focado naquilo porque você precisa tá fazendo (Shato, Paraná, 1 de março de
2016).
Não há um padrão. Conforme a inspiração não há dia, noite ou final de semana. Você vai
dormir você não consegue se as ideias estão fluindo, então neste momento há uma
concentração (Chetneth, Paraná, 3 de março de 2016).

O discurso masculino sobre a família e a relação com a profissão apresenta maior capacidade
de separação de demandas e menos conflitos. Palavras como esposa compreensiva, apoio, conciliação
fácil, separação das esferas profissional e familiar são comuns, como pode ser visto nos relatos que
seguem:

Ah, não tem muito a ver não. Conciliar você tem que conciliar, mas não tem nenhuma relação
[…] Tranquilo, eu acho que não dificulta nada. Na verdade a atividade acadêmica. Ensino,
pesquisa e extensão. É uma atividade que tem que ter a vontade, a dedicação, do profissional,
do professor (Bardcas, Paraná, 15 de março de 2016).

568
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De forma alguma, o fato de eu ter feito esta separação [entre profissão e família], na minha
opinião me faz mais produtivo, isso fica bem claro pra mim, pras pessoas que trabalham
comigo, quais os horários que eu efetivamente tô a fim de produzir. Da mesma forma que
raramente eu arrumo desculpas pessoais pra faltar aos meus compromissos de segunda a
sexta, eu também não aceito muito desculpas profissionais nos meus finais de semana. Volto
a dizer, exceções sempre existem, mas este é o padrão que eu criei, pra mim e pra minha
família (Joric, Paraná, 1 de março de 2016).

Mesmo os homens que relatam a realização de tarefas domésticas e dificuldades de


conciliação das demandas de família e profissão, há expressões de minimização do conflito como
‘pouco complicado’ ou ‘compromete um pouco’, como pode ser visto:

Bom, é uma questão assim, um pouco complicada. Porque a gente vai fazendo quase que
instintamente e não pensa sobre isso. Mas em casa como a minha esposa é professora
também, apesar de ela não estar na universidade, ela tem esse entendimento dessa
importância. Em casa a gente procura ter as atividades divididas. Então não tem papel
masculino, feminino as atividades são divididas. Eu procuro ter uma base, assim, produtiva
que não seja tão exagerada ao ponto de prejudicar outras atividades como levar a minha
filha pra piscina, fazer almoço, curtir futebol, essas coisas. Então, é assim, bem mais
tranquilo (Shato, Paraná, 1 de março de 2016).
Pelo trabalho conturbado acaba comprometendo um pouco a atenção com eles. Sobretudo
porque são filhos que não moram, alguns moram aqui, outros não. Reuni-los é difícil, mas
sempre que dá a gente reúne. Nosso ritmo acaba comprometendo um pouco a vida familiar
(Nanton, Paraná, 27 de abril de 2016).

O peso e a angústia encontrados no discurso feminino na representação da família no seu


desempenho profissional como ‘complicadíssimo’, ‘ninguém aguenta’, ‘sofrimento’, ‘pressão’ não
são comuns no discurso masculino que parece ver a família como acolhimento e apoio. As estruturas
das redes semânticas e categoriais dos discursos femininos e masculinos de docentes universitários
entrevistados apresentam semelhanças e também diferenças. Ambos relatam o espaço acadêmico
como exaustivo no consumo de tempo e energia, cada vez mais exigente no cotidiano e com demandas
variadas que dificultam o tempo de concentração na atividade de pesquisa, notadamente na escrita de
artigos científicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A implicação do gênero nas atividades acadêmicas em suas articulações com o âmbito dito
privado foi evidenciada neste texto. Além da histórica associação do saber científico com a

569
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
neutralidade corpórea e social, o impacto mais negativo na sobrecarga e simultaneidade de labor
também esteve presente no cotidiano das mulheres pesquisadoras em Geografia no Paraná.
Certamente o estudo apresenta limitações significativas: especificidade e parcialidade do universo de
análise, generalização de categorias como ‘mulher’, ‘homem’, ‘mãe’, ‘família’, assim como pouca
exploração da interseccionalidade. Todavia, anseio que os resultados desta investigação se somem
com outros vários retratos que as ciências podem e devem fazer da realidade social. E que, por estas
veredas, consigamos visibilizar e problematizar aspectos norteadores de políticas públicas com vistas
a mitigar tais assimetrias socioespaciais.

REFERÊNCIAS
AQUINO, Estela Maria Mota Lima de. Gênero e Ciência no Brasil: contribuições para pensar a ação
política na busca da equidade. In: BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Pensando gênero e ciência: Encontro Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisas. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1967.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BUTLER, Judith. El género en disputa: el feminismo y la subversión de la identidade. Barcelona:


Paidós, 2007.

CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de. O que é gênero? O que é educação? O que é ciência? In:
MACHADO, Charliton José dos Santos. Gêneros e práticas culturais: desafios históricos e saberes
interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPB, 2010.

DAVIES, Karen. Responsibility and daily life: reflections over timespace. In: MAY, Jon; THRIFT,
Nigel (Orgs.). TimeSpace: geographies of temporality. Nova York: Routledge, 2003.

EUROPEAN COMMISSION. Meta-analysis of gender and science research: synthesis report.


Luxemburgo: Publications Office of the European Union, 2012.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel
Foucault uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e


privado. Disponível em:< http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf>
Acesso em: 12/08/2014.
570
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GARCÍA, Marta González; SEDEÑO, Eulália Pérez. Ciencia, tecnologia y género. Revista
Iberoamericana de Ciencia, Tecnologia, Sociedad y Innovación, Madri, n. 2, 2002.

KERGOAT, Daniéle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: MARLI, Emilio et al
(Org). Trabalho de cidadania ativa para as mulheres. Desafios para as Políticas Públicas. São
Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2003, p. 55-64.

LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Silvia Helena. Metodologias feministas e estudos de gênero:
articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 647-654, 2006.
ORNAT, Marcio Jose. Sobre espaço e gênero, sexualidade e geografia feminista. Terr@Plural,
Ponta Grossa, v. 2, n. 2 p. 309-322, 2008.

PINTO, Vagner André Morais. Gênero e vivência cotidiana na instituição do espaço da produção
científica geográfica paranaense. 2017. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Gestão do
Território.Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2017.

PARENT IN SCIENCE. Produtividade Acadêmicas durante a pandemia: Efeitos de gênero, raça


e parentalidade Disponível em:https://327b604e-5cf4-492b-910b-
e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true.
Acesso em: 28 Ago. 2020.

SCHIENBINGER, Londa. O Feminismo Mudou a Ciência? Bauru: EDUSC, 2001.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre,
v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.

SILVA, Edson Armando; SILVA, Joseli Maria Silva. Ofício, Engenho e Arte: Inspiração e Técnica
na Análise de Dados Qualitativos. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa,
v. 7, n. 1, p. 132 –154, 2016.

SILVA, Joseli Maria: Geografias Subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidades. Ponta
Grossa: Todapalavra, 2009.

SILVA, Joseli Maria.; CESAR, Tamires Regina Aguiar de Oliveira; PINTO, Vagner André Morais.
Gênero e Geografia brasileira: uma análise sobre o tensionamento de um campo de saber. Revista da
Anpege, v. 11, n. 15, p. 185-200, 2015.

571
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SORJ, Bila; FONTES, Adriana; MACHADO, Danielle Carusi. Políticas e práticas de conciliação
entre família e trabalho no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, 2007.

572
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO E AS
CONSEQUÊNCIAS DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

Júlia Sleifer Alonso243


Deisemara Turatti Langoski244

Resumo: O artigo trata sobre a influência da moral religiosa no direito brasileiro e as consequências da criminalização
do aborto. O trabalho desenvolve uma pesquisa bibliográfica por método dedutivo, acerca do conceito de moral na
filosofia jurídica, principalmente, da moral religiosa e a sua extensão nas relações do Estado e suas leis. Tem como
objetivo principal demonstrar a influência das religiões no Estado brasileiro, especialmente, no que diz respeito aos
direitos das mulheres, em específico aborda a temática da criminalização do aborto. Nesse sentido, foi possível concluir
que são alarmantes os dados constatados sobre a problemática, em função da, ainda, criminalização da prática de
interrupção da gravidez. De tal modo, como também foi possível verificar um crescente envolvimento da igreja evangélica
na política e nas decisões do Brasil, afastando o conceito de Estado laico que, ficticiamente, permanece na Constituição
Federal de 1988.

Palavras-chave: Moral; Moral Cristã; Filosofia Feminista; Criminalização; Aborto.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa desenvolver uma pesquisa analítica, por pesquisa bibliográfica e
método dedutivo, acerca das políticas de gênero, especificamente, sobre a violência contra a mulher,
mais precisamente, a respeito da, ainda presente, criminalização do aborto na sociedade brasileira.
Objetiva mostrar o envolvimento das religiões no Direito brasileiro, igualmente as
consequências que isso está trazendo para o país. Em um primeiro momento o trabalho irá abordar a
influência da moral cristã no legislativo e judiciário brasileiro, seguindo de um paradigma sobre a
criminalização do aborto, assim como seus reais efeitos na sociedade. Para ao final, fazer uma análise
do que seria o melhor para a sociedade brasileira, tomando como ponto de partida o fato de haver a
liberdade religiosa no país, seu livre exercício e manifestação.
Assim como as autoras tomam como partido o fato de a interrupção do aborto, apesar de ter
se tornado uma tipificação criminal, é realidade no Brasil. Ou seja, as mulheres brasileiras continuam
decidindo sobre seus próprios corpos e vidas, independente da Lei a tornar crime. As mulheres
abortam, essa é uma realidade do país, e o fato de ser crime, faz com que o Estado brasileiro feche os

243
Acadêmica do 9º período do curso de Direito na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Santana
do Livramento. juliasleiferalonso@gmail.com.
244
Professora do Magistério Superior na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Santana do
Livramento. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). deisemaraturatti@unipampa.edu.br.

573
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
olhos para tal situação, na qual adotando a política de criminalização e penalização, faz com que torne
para si a responsabilidade de milhões de mulheres que perdem a vida nas clínicas clandestinas de
interrupção de gravidez. Tornando-se assim, um Estado generocida, abarcando questões de misoginia
e feminicidio.
O trabalho também irá ter como base bibliográfica a filosofia feminista, na qual Tiburi (2015,
p. 254) descreve que, além de ser uma “forma de ética”, consiste também em uma “crítica da
metafísica do patriarcado”. Neste sentido, assevera a autora que a filosofia feminista é “um projeto
que se estabelece na contramão da filosofia tradicional enquanto essa filosofia é metafísica patriarcal
ancorada em um discurso acrítico. A filosofia feminista, neste sentido, é necessariamente filosofia
crítica”. Motivo pelo qual se utiliza destes conceitos para promover uma crítica reflexiva das
estruturas ontológicas do patriarcado existente e submeter os discursos e as práticas relacionadas ao
tema em estudo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DAS MULHERES NO BRASIL


Há pouco mais de cem anos, estava em vigência a segunda Constituição brasileira, de 1891,
baseada ainda na cultura da mulher como propriedade privada do pai e após do marido, porém, é
recente a desvinculação do marido nas legislações sobre as mulheres. Foi apenas em 1962, com o
Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62), que além de outras garantias, previu não ser mais
necessário a autorização do marido para que as mulheres pudessem trabalhar, receber herança e
requerer a guarda dos filhos em caso de separação. A lei mudou mais de dez artigos no Código Civil
vigente, entre eles o artigo 6º, que previa a incapacidade feminina para alguns atos. E foi só em 1977,
com a Lei n° 6.515 que as mulheres conquistaram o direito ao divórcio.
Desde o final do século XX, com a redemocratização do Brasil, houve uma nova era no que
tange aos direitos fundamentais e à proteção dos Direitos Humanos, se consolidando com a
Constituição Federal de 1988, o direito das mulheres, com maior ênfase em face ao patriarcado até
então vigente nas normas brasileiras.
“A desigualdade de gênero é uma afronta à igualização proposta pelos Direitos Humanos
desde a sua fundação no século XVIII, os três principais documentos sobre, são um reflexo do social
e da estreiteza em relação às diferenças de gênero” (COLLING, 2015, p. 159).

574
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
E foi na mesma década de 1980, tempo de promulgação da Carta Maior (1988), que as
mulheres começaram a poder exercer maiores papéis na sociedade, do mesmo modo que seus direitos
estiveram cada vez mais assegurados e garantidos.
Com a publicação do Código Eleitoral de 1932, no governo de Getúlio Vargas, seguido da
Constituição de 1934, as mulheres conquistam os direitos políticos e foi quando as alcançaram pela
primeira vez o direito ao voto no Brasil. Porém, seguido de golpes de poder, só puderam exercer de
fato tais direitos com a redemocratização, no final do século XX. Já a “França, que criou a Declaração
dos Direitos Humanos que pretendia ser universal, foi o último país do ocidente a conceder o voto às
mulheres, sua cidadania política” (COLLING, 2015, p. 159 ).
Com o novo Código Civil de 2002, as mulheres conquistaram importantes papéis dentro do
poder familiar, assim como a capacidade civil plena e igualdade de direitos civis. Entretanto, só em
2006, após anos de luta e enfrentamento da violência contra as mulheres, que Maria da Penha, depois
de sofrer agressões do seu marido, chegando ao nível de ficar paraplégica e, tendo que recorrer à
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi aprovada no Brasil, a Lei n° 11.340, denominada
de Lei Maria da Penha, representando uma medida de pena para com o descaso do Estado brasileiro,
para com as políticas públicas relacionadas à gênero. Referida lei define e criminaliza a violência
contra a mulher, prevê mecanismos de apuração e punição, além de assinalar a necessidade de apoio
e assistência.
A Lei n° 13.104, de 2015, traz mudanças significativas no Código Penal, instituindo o crime
de feminicídio. Relevante pontuar, todavia, ser o âmbito penal, no Brasil, o mais reticente a revisões
e alterações em normas claramente sexistas, conservadoras e patriarcais.
Conforme Machado (2017, n.p.), desde 1996, o Brasil é signatário da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como
Convenção de Belém do Pará)”; também incorpora o Comitê CEDAW – Comitê para a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e assina o Protocolo Facultativo, que segue
normas da Organização Mundial de Saúde com relação ao atendimento da mulher vítima de violência
sexual e doméstica, por exemplo.
Até o ano de 1890 o Estado brasileiro se considerava Católico Romano, e foi com o Decreto
nº 119-A, de janeiro de 1890 que o Brasil deixou de ter uma religião oficial, então declarando

575
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sua separação oficial do Estado com a Igreja, se tornando um país laico, como prevê a Constituição
Federal vigente.
Pode-se conceber a definição de laicidade da seguinte forma: “Por laicismo, entenda-se a
exclusão da religião da esfera pública de forma enfática, sem qualquer penetração em ambientes
estatais” (ZYLBERSZTAJN apud MACHADO, 2017, n.p.). Porém, o conceito de laicidade não fica
muito bem definido, nem para a sociedade nem para o Estado, principalmente, quando há o crescente
envolvimento de religiões na política e sua importante influência nas decisões do Estado brasileiro.
Os números de religiosos envolvidos com a política se mostram cada vez maior, como
comprovam os dados nas eleições de 2018. Do mesmo modo, é crescente o número de parlamentares
na “Bancada Evangélica”, segundo pesquisa realizada pela Carta Capital (2018), a atual “Bancada
Evangélica” conta com 78 (setenta e oito) deputados federais, totalizando um percentual de 15%
(quinze por cento) do total da Câmara Federal.
No entanto, é junto com a era progressista de direitos fundamentais, que parte da população
brasileira vem adquirindo nos últimos anos, que as igrejas têm tentado, novamente, aproximação com
o processo político, com a gestão governamental e nas decisões estatais. De Destarte, fica evidente
seu o real envolvimento de entidades religiosas para com as políticas públicas, sobretudo, no que diz
respeito às políticas de gênero, envolvendo às de violência contra às mulheres.

INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO


Em contrapartida à era progressista, com referência aos direitos das mulheres, assim como a
já antiga separação da igreja com o Estado brasileiro, se tornando e auto definindo como um Estado
laico, nas últimas décadas, pode-se notar o crescente envolvimento de líderes religiosos na política.
Estes, no entanto, não se apresentam como pessoas com credos para governar para todos, mas, como
políticos autodeterminados, religiosos e ambiciosos em conquistar importantes e altos cargos públicos
para transcender seus dogmas religiosos nas políticas públicas e na gestão do Estado brasileiro. De
tal modo é o que se observa o caso da “Bancada Evangélica”, citada anteriormente.
Machado (2017, n.p.) afirma haver um confronto da criminalização do aborto com a laicidade
do Estado e, que o aborto como “crime e pecado” está diretamente relacionado à “família tradicional”
consagrada pela igreja, eis que estabelece um “lugar” à mulher, o qual é subordinado à
reprodução da família. Do mesmo modo, até pouco mais de um século, a mulher quando casada

576
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
era considerada incapaz e, seu marido respondia por ela; ou antes do casório, seu pai detinha a posse
e administração de sua vida. Conforme explica Tessaro (2017, p. 27):

Partindo do princípio de que o direito à vida é um dom recebido diretamente de Deus e que
os homens são apenas administradores dela, existe um consenso entre as crenças religiosas
no que diz respeito ao caráter sagrado da vida. Como sequência, proíbe-se qualquer
intervenção do homem sobre ela. Seguindo esta premissa, muitas são as religiões que
condenam a prática da interrupção voluntária da gravidez, ainda que o feto seja portador de
anomalia que incompatibiliza sua sobrevivência extra-uterina. A igreja católica é a que adota
a postura mais radical. Por muito tempo, nem mesmo a interrupção da gravidez praticada
para salvar a vida da gestante foi vista de maneira favorável pela igreja. (TESSARO, 2017,
p. 27).

A questão da criminalização do aborto está diretamente interligada com a moral religiosa


presente, de forma ativa, na sociedade brasileira, como também é a principal influenciadora nos rumos
do direito e das leis (SAMPAIO, 2015, n.p.). É possível perceber através da análise de que em 36
(trinta e seis) projetos de leis que existem no Congresso Nacional, cinco almejam que a interrupção
da gestação seja considerado crime hediondo, dados levantados no ano de 2017 (ZANOTTO, 2017,
n.p.).
Sobre o assunto, acrescenta Machado (2017, p. 1):

Os fundamentos do aborto como crime e pecado foram explicitado como sanções religiosas
e ao mesmo tempo regras morais. [...] A prévia longa duração da criminalização do aborto
durante a contínua expansão do Cristianismo no mundo ocidental, da Idade Medieval à
Moderna, se deu em contexto em que predominava a não separação entre Igreja e Estado.
Durante séculos, as legislações dos Estados se articulavam ou se complementavam com o
Direito Canônico. E era o Direito Canônico o paradigma do entendimento do aborto como
crime e pecado. Contudo, é importante sublinhar que o aborto não era considerado
condenável se ocorresse nas primeiras fases da gestação.

O termo canônico está diretamente relacionado à Igreja Católica Romana. “O Código do


Direito Canônico é o conjunto de normas (cânones) que orientam a disciplina eclesiástica, definem a
hierarquia administrativa, os direitos e deveres dos fiéis católicos, os sacramentos e possíveis sanções
por transgressão das normas (leis próprias da igreja)” (RIGUETI, 2015).
É presumível identificar que, nunca houve de fato uma separação dos ideais religiosos,
igualmente com a moral religiosa, para com o direito e por decorrência com o processo de elaboração
das leis. Neste sentido, considera-se que:

577
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A ideia de “honra familiar” presente nas Ordenações Filipinas que distribui desigualmente os
poderes, as atribuições, os deveres e os direitos de homens e mulheres, de pais, mães e
filhos/filhas, de senhores e agregados e escravos, está assentada (ou adequada) às normas
disciplinares cristãs sobre sexualidade (sendo toda a sexualidade que foge à
heterossexualidade considerada sob o signo do pecado da sodomia), diferença de sexo e
gênero (as mulheres com dever de obediência ao poder masculino e dever diferenciado de
fidelidade) e diferença e distância de status social (referente não só a classe social como ao
instituto da escravidão). Os princípios do código relacional da honra persistem no Código
Civil de 1916 e no Código Penal de 1940, e na memória social (MACHADO, 2000, 2001,
2010; CORREA, 1983 apud MACHADO, 2017, p. 1).

Para Machado (2017, n.p.), nos períodos colonial e de Império brasileiro, nunca existiu a separação da
Igreja Católica com o Estado, a ponto de fazer com que o direito absorvesse os fundamentos religiosos nos
mais variados níveis e esferas, apresentando consequências até a atualidade. Contudo, não foi sempre que a
Igreja Católica teve a mesma postura dos dias atuais em relação ao aborto; isso porque durante,
aproximadamente, 18 séculos, não houve consenso a respeito do momento que a alma é incorporada ao produto
da gestação e, durante esse período, a Igreja sustentou pontos de vistas conflitantes, assegura Tessaro (2006).
É explícito que o relativismo em relação à concepção de vida antes do nascimento é uma polêmica que
persiste por muitos séculos dentro da Igreja. No entanto, “a intolerância e a intransigência da Igreja Católica,
nessa matéria (do aborto), datam, portanto, pouco menos de cento e quarenta anos” (FRANCO apud
TESSARO, 2006, p. 28 ).
Outrossim, dispõe-se que,

O Código Criminal do Império de 1830, no Brasil independente, aderiu parcialmente à longa


duração do entendimento religioso sobre o aborto como condenável, pois somente tipifica o
crime de realizar o aborto em outrem. Não considerou crime o autoaborto. Estavam ali
presentes as porosidades e interfaces do pensamento religioso e do pensamento social da ideia
de “honra”, modalidade de argumento (em parte secularizado) que poderia, no senso comum
da época, fazer entender à elite política porque uma mulher poderia querer abortar. No
período republicano, o Código Penal de 1890, que teve vigência até 1940, criminalizou não
só quem provocasse ou auxiliasse o aborto, como a mulher que o cometesse. Em 1890, o
aborto provocado por terceiros e o infanticídio tiveram as penas aumentadas (MACHADO,
2017, n.p.).

Apesar da Igreja Católica durante maior parte de sua história ter grande relativização e
controvérsias na definição de qual momento o feto começa a ter direitos, acarretando a dicotomia às
lutas contemporâneas, em que as religiões acreditam em “vida abstrata” e as feministas
antiproibicionistas defendem a vida que já existe, de “vida vivida”. Inclusive a forma com que a Igreja
Católica conduz o debate na atualidade, é inflexível, defendem a tese da animação imediata do
zigoto, fato que não condiz com o passado de séculos em que a questão do aborto, do ponto de
578
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vista religioso, era objeto de um discurso aberto, não se tratando, ainda, de uma postura
fundamentalista (TESSARO, 2006, p. 38).
Apesar da crescente onda de laicidade dos Estados, é admissível notar que a partir do século
XVII, não foram significativas as mudanças nas legislações no que se refere à temática do aborto,
pelo contrário, estabeleceu-se tanto na sociedade quanto nas leis vigentes sua severa criminalização,
mudanças essas prejudiciais às mulheres. Tampouco o Estado teve o reconhecimento de que a sua
criminalização está baseada em fundamentos religiosos.
Como esclarece Machado (2017, n.p.), essa questão está diretamente relacionada à outras
temáticas também do direito, adjacente ao assunto dos direitos humanos, no que tange aos valores
familiares e conjugais que o direito herdou do entendimento cristão, os quais estavam centrados na
“autoridade e no poder desigual de homens e mulheres, e da sexualidade (heterossexualidade e
procriação obrigatória porque consideradas sagradas)”.
“Toda história da filosofia em relação às mulheres é ideologia patriarcal altamente misógina”
(TIBURI, 2015, p. 254). Então, é preciso compreender toda a função fundamentalista imposta pelos
ideais religiosos acerca do “ser mulher” na sociedade, designadamente, na brasileira. E, além disso,
“se podemos falar de lógicas seculares de disciplinamento das condutas sexuais e reprodutivas das
mulheres, presentes na instauração dos estados laicos, é porque já haviam sido absorvidos os
fundamentos religiosos cristãos de longa duração [...]” (MACHADO, 2017, n.p.). Acrescenta, em
seguida, a mesma autora que:

Foi somente no decorrer do século XX com a progressiva laicização e separação da Igreja e


do Estado, e com a movimentação por direitos, que, antes dos anos sessenta, alguns poucos
Estados legislam a favor da descriminalização do aborto. Antes de 1960, o primeiro país
europeu a legalizar o aborto (com restrições) foi a Suécia, em 1938, seguido pela Finlândia
(1950) e pelas repúblicas bálticas (1955) - Estônia, Lituânia e Letônia (MACHADO, 2017,
p. 1).

No Código Penal Brasileiro, de 7 de dezembro de 1940, os artigos 124, 125 e 126 consideram
crime a prática da interrupção da gestação quando praticada por uma mulher gestante, a seu pedido
ou sem o seu consentimento. Referida norma, permite o aborto em duas situações: gravidez em que
há risco de morte para a mulher e em caso de estupro.

579
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou a terceira situação na qual o aborto não é
considerado crime no Brasil: quando o feto é anencéfalo/inviável. Nestas circunstâncias, é necessária
a autorização da Justiça para realização da interrupção da gravidez.
Neste sentido, posiciona-se Machado (2017, n.p.):

Denomino retrocesso neoconservador o período que se inicia claramente ao final de 2005 e


que se agudiza a partir dos anos 2010, com o crescimento do poder político da movimentação
pró-vida no Parlamento brasileiro que reage a um processo de secularização da sociedade e
ao crescimento dos movimentos sociais por direitos humanos. Nos anos noventa e início do
milênio era legítimo o debate público e político em prol da defesa dos direitos ao aborto.
Ainda que tal objetivo não tenha sido jamais atingido, foi conseguido o atendimento no
sistema de saúde de casos decorrentes de abortos em situação clandestina, assim como se
instituíram serviços de aborto legal aos casos permitidos pela legislação brasileira.

"O aborto é uma questão de saúde pública” e, prossegue Diniz (2007, p. 7) em sua preleção
ao garantir que “enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como uma questão de
cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração moral de mulheres levianas”.
A partir de dados de internações por abortamento do Serviço de Informações Hospitalares do
Sistema Único de Saúde (SUS) do ano de 2005, estima-se que ocorreram 1.054.242 (um milhão,
cinquenta e quatro mil, duzentos e quarenta e dois) abortos induzidos naquele ano. E a Pesquisa
Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2010, retrata que no Brasil, uma em cada cinco mulheres
com até quarenta anos de idade, já realizou ao menos um aborto em sua vida.
Sobre estes dados, menciona Tessaro (2006, p. 11) que:

Percebe-se, atualmente, que o aborto é responsável por 13% das mortes maternas no mundo,
representando no Brasil a terceira causa de morte materna. Destarte, por integrar o grupo de
países que possuem uma legislação restritiva ao aborto e que na sua totalidade representam
40% dos países do mundo, estimativas sugerem a realização de 238.000 à 1.008.000 abortos,
no período de 1999 à 2002. Em escala mundial, segundo dados da Organização Mundial da
Saúde, a legislação punitiva não impede que sejam realizados anualmente entre 42 e 50
milhões de abortos, metade deles ilegais e de risco.

Além desse quadro alarmante, há ainda grandes números de abortos ilegais, em que mulheres
chegam ao óbito em função da prática ser ignorada e criminalizada pelo Estado. “É, também
importante apontar que os atos de aborto inúmeras vezes não chegam aos tribunais” (MACHADO,
2017, p.1).

580
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Entre as principais consequências do aborto clandestino e inseguro, sobressaem a perfuração
de útero, a hemorragia e a infecção (septicemia), sendo que tais situações podem ocasionar distintos
graus de prejuízos à saúde da mulher, até mesmo sua morte. Em face desse contexto, Tessaro (2006,
p. 11) alude que é urgente e necessária,

[...] uma adequação da lei penal à situação social apresentada, permitindo que o problema da
interrupção da gravidez, incluindo-se a gestação de feto com malformação grave e incurável,
seja tratado pela mulher de forma consciente e esclarecida, sendo conferido à ela o direito ao
livre exercício da maternidade, optando entre interromper ou levar a termo a gravidez. Por
conseguinte, estes dados revelam que a punição do aborto não impede que as mulheres o
realizem. A manutenção de sua criminalização significa fechar os olhos à realidade, à
discriminação, ao sofrimento e violação dos direitos fundamentais destas mulheres.

No 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado em 1999 na República


Dominicana, instituiu-se o 28 de setembro como o dia Latino-Americano e Caribenho pela
Descriminalização do Aborto, mas tão-somente dois países latino-americanos e caribenhos
apresentou efetivas mudanças e o aborto foi legalizado: Cuba e Uruguai. Em 2007, a Cidade do
México convalidou de forma legal a prática do aborto, mas nos demais estados mexicanos, escolta
sendo considerado crime (SAMPAIO 2015).
Já no Uruguai, foi sancionada a Lei nº 18.987, em outubro de 2012, devidamente
regulamentada pelo Decreto nº 375/12. A lei dispõe sobre a "Interrupción Voluntaria del Embarazo"
e o artigo 1º versa que o Estado garante o direito de procriação consciente e responsável,
reconhecendo o valor social da maternidade, promovendo o pleno exercício dos direitos sexuais e
reprodutivos de toda a população.
Após o cenário de horror como é onde vigoram legislações proibicionistas, aonde a vida das
mulheres e suas vontades próprias em relação aos seus destinos são deixadas de lado em busca de um
“bem maior” que seria defender a vida de um incapaz, o mesmo discurso acaba se tornando hipócrita,
ao não defender a vida que já existe, ou seja, a vida da mulher.
O Uruguai se torna vanguardista e inspirador para os demais países, na medida em que o
Estado toma para si a responsabilidade da saúde pública que atinge todas as mulheres, fazendo com
que o número de mortes reduza a zero, desde que a prática do aborto deixou de ser considerada como
crime.

581
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“A criminalização do aborto conflita com os direitos fundamentais, civis, políticos e sociais
das mulheres, assim como com a definição mínima de sujeito de direito, pessoa nascida tornada social
e jurídica a partir do nascimento, em uma sociedade plenamente laica” (MACHADO, 2017, p.1).
Assim como está fortemente interligada com a relação das mulheres mães solo, ou seja,
famílias constituídas sem a figura paterna, ou nesse caso, sem a presença do pai biológico da criança.
Essa cadeia feminicida criada pelo Estado brasileiro é o principal gerador do Brasil ser a terceira
maior população carcerária feminina do mundo, pois seguindo a lógica de que muitas mães criam
seus filhos sozinhas, após serem obrigadas tanto pelo Estado quanto pela moral existente na sociedade
brasileira para que sigam com a gestação, acabam optando pelo “mundo do crime” no sentido de mais
da metade da população carcerária (tanto feminina quanto masculina) responder pelo crime de tráfico
de drogas.
As mulheres, enquanto cidadãs de direitos e deveres, perante às leis brasileiras, estão sujeitas
à serem obrigadas a gerar, parir, criar, sozinhas. O Estado às obriga, mas não oferece as mínimas
condições para que venha de fato ser efetivado o bem estar dessas crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo realizado, percebe-se a influência que as concepções e doutrinas religiosas


intervêm no direito brasileiro. Fica evidente a intromissão da teoria religiosa nas leis que regem o
Brasil, as quais sempre tiveram e ainda tem na atualidade, apesar do avanço da sociedade e de tantas
mudanças, esta interferência nos entendimentos é fortemente presente no Poder Legislativo.
Somado às concepções religiosas, o Brasil enquanto país que adota a laicidade, porém
continua ainda no ano de 2020 criminalizando a interrupção da gestação, é evidente o fato de ser um
pais generocída, ou seja, genocida para com a população do sexo feminino, sexiste, misógino e
feminicida. Se tornando tal estudo, assim como somado aos demais e as demais pesquisadoras da
área, como um manifesto e denúncia contra o Estado brasileiro no qual “fecha os olhos” para a
realidade brasileira na qual é: as mulheres abortam; as mulheres seguem abortando; as mulheres são
donas de seus próprios corpos e de suas próprias vidas; são as mulheres que escolhem o que querem
para suas vidas, e ninguém, muito menos o Estado democrático de direito pode vir a obrigar a
ser mãe. Pois como demonstrado no presente estudo, o Estado obriga as mulheres a serem mães,

582
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ou melhor, desde que nascidas, são automaticamente consideradas como reprodutoras, sendo desde
crianças ensinadas a cuidar de crianças, cozinhar, limpar.
Uma moral construída por bases somente de cunho religioso, intervém na vida de toda a
população, como é o exemplo abordado no presente trabalho, e de forma geral, todas as mulheres
acabam por serem prejudicadas em seus direitos, como seres humanos e sujeitos de direitos, em razão
de uma falsa moral de defesa da vida, que a mesma política, em contrapartida, acaba por condenar à
morte mulheres já vivas.
Esse sistema patriarcal de ter posto às mulheres a condição de mães já não deu certo, e o
exemplo mais evidente dessa afirmação é a questão de milhares de mulheres já terem perdido suas
vidas em procedimentos clandestinos. Precisa-se com urgência uma mudança nas políticas públicas
relacionadas às questões de gênero no país, tanto no que se refere às mulheres que não querem ser
mães, assim como as que escolhem ser mães, e que o Estado não oferece condições necessárias para
uma criação saudável e digna.
É interessante observar que o presente estudo abre caminhos para várias abordagens sobre a
influência da moral religiosa no direito e suas consequências na criminalização do aborto, haja vista
o posicionamento do pontífice, o Papa Francisco, que manifestou-se contra a criminalização do
aborto, além de questões brasileiras de forte influência na política, como é o caso da bancada
evangélica, que exerceu forte coação social sobre o tema no pleito eleitoral do ano de 2010.
Se faz de extrema necessidade a mudança na estrutura patriarcal da sociedade brasileira,
principalmente em fazer tornar-se realidade as conquistas que já são realidade enquanto legislações,
como por exemplo a questão da democracia e laicidade do Estado.

REFERÊNCIAS
COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro (Orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados -
MS: UFGD, 2015.

DINIZ, Debora. Aborto e Saúde Pública no Brasil. Cadernos de saúde pública. Rio de Janeiro, v.
23, n. 9, set. 2007, p. 1992-1993.

DINIZ, Debora. A cada minuto uma mulher faz um aborto no Brasil. Carta capital, São Paulo,
dez. 2016. Seção sociedade. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/aborto-a-
cada-minuto-uma-mulher-faz-um-aborto-no-brasil. Acesso em: 04 jun. 2019.

583
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LOPES, Bárbara; MARTINS, Jéssika; MORENO, Tica (Orgs). Somos todas clandestinas: relatos
sobre aborto, autonomia e política. São Paulo: SOF, 2016.

MACHADO, Lia Zanotta. O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso
neoconservador. Scielo. Dossiê conservadorismo, direitos, moralidades e violência. Cadernos Pagu,
n. 50, Campinas, jul. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso em: 29 nov.
2019.

FONSECA, Alexandre Brasil. Nem a bancada evangélica resiste ao vendaval. Carta capital, São
Paulo, out. 2018. Blogs Diálogo de fé. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/nem-a-bancada-evangelica-resiste-ao-
vendaval/. Acesso em: 29 jun. 2019.

RIGUETI, Victor. Direito Canônico. Revista Jusbrasil, Salvador, 2015. Seção Artigos. Disponível
em: https://victorrigueti.jusbrasil.com.br/artigos/189140585/direito-canonico. Acesso em: 29 jun.
2019.

SAMPAIO, Paula Faustino. In: Dicionário crítico de gênero. COLLING, Ana; TEDESCHI,
Losandro (Orgs.). Dourados - MS: UFGD, 2015.

TESSARO, Anelise. Aborto, bem jurídico e direitos fundamentais. 2006. Dissertação (Mestrado
em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

TIBURI, Márcia. In: Dicionário crítico de gênero. COLLING, Ana; TEDESCHI, Losandro (Orgs.).
Dourados - MS: UFGD, 2015.

584
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A REVISTA UNIVERSITÁRIA VIA LATINA E A QUESTÃO FEMININA (1958-1962)

Pedro Miguel Jorge Réquio245


Resumo: Este artigo procura analisar a forma como a revista da Associação Académica da Universidade de Coimbra
(AAC), Via Latina, procurou levar a cabo uma reflexão acerca do papel feminino na universidade e na sociedade
portuguesa da época. Sobre a sombra da ditadura salazarista e da sua ideologia tradicionalista e ruralista, a mulher
portuguesa encontrava-se num papel de completa subalternização. Será no contexto académico que a figura feminina será
reconsiderada, levando a cabo uma série de ideias que procuram rebater as concepções e os mitos propagados pela moral
corporativista da ditadura. Ao mesmo tempo, será eleição de uma lista de esquerda para a direção da AAC, em 1960, que
procurou integrar as estudantes universitárias no movimento associativo, que funcionará como catalisador destas
transformações.

Palavras-chave: Universidade, Portugal, Mulher, Ditadura, Anos 60.

INTRODUÇÃO – O PAPEL FEMININO NA DITADURA DO ESTADO NOVO E A


CRESCENTE ESCOLARIZAÇÃO FEMININA

A crescente escolarização feminina, que se começou a afirmar com mais relevo na década de
1930, abriu as portas às estudantes para um ensino mais especializado. Segundo Irene Pimentel dois
factores chave viabilizaram a entrada da mulher no meio Universitário: A presença cada vez maior
das mulheres nos liceus246 – tornando impossível ao governo conter o acesso feminino ao ensino
superior - e o êxito escolar feminino, que em 1963 ultrapassa o masculino. (Pimentel, 2001, p. 81-
82).
O período sobre o qual este estudo se debruça (1958-1962), converge com a chegada, em larga
da escala, da mulher ao meio universitário nacional. Mas fiquemo-nos pelo caso de Coimbra, pois é
aquele que constitui o motivo de interesse do nosso estudo. Dos 40972 alunos que frequentaram a
Universidade na década de 1950 a 1960, 13664 eram mulheres. Representando assim cerca de 33,3
% do bolo Universitário (Gomes, 1987, p. 99-100).
Independentemente de as raparigas constituírem apenas pouco mais do que um quarto dos
estudantes inscritos na universidade durante as décadas de 1940 e 1950 (Gomes, 1987, p. 99-100),
regista-se um número crescente, que se desenvolve com uma urgência nunca antes registada, da
população universitária feminina comparativamente às décadas precedentes (Estanque, Bebiano,

245
Mestre em História Contemporânea e investigador júnior no projeto 25AprilPtLab, associado ao Centro de
Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra e ao Centro de Estudos Sociais (CES) da mesma
universidade”. Actualmente encontra-se a realizar o doutoramento do CES “Discursos: Cultura, História e
Sociedade”. pedrorequio@hotmail.com
246
Em 1960 já existiam mais liceus femininos do que masculinos.
585
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
2007, p.50). Em 1962, as raparigas já constituíam 39% dos estudantes da Universidade. (Gomes,
1987, p.100).
Apesar de o número de raparigas ser inferior ao de rapazes, não significa que estes
representem a maioria dos alunos inscritos em todas as faculdades. De facto, são várias as faculdades
nas quais a percentagem de estudantes é predominantemente feminina. Vejamos por exemplo dados
relativos ao ano de 1960. Na Faculdade de Letras temos 1205 mulheres para 661 homens, e na
Faculdade de Farmácia temos 84 mulheres para 11 homens. Estes valores são ilustrativos da
discrepância entre sexos existente a nível interno (faculdade) e externo (universidade em geral), e
apesar de sofrerem oscilações consoante os anos, estas não são significativas. (Gomes, 1987, p. 93-
94) (Nunes, 1968, p. 335-336).
Os números apresentados, traduzem a paulatina “feminização” do meio universitário
coimbrão, no contexto do qual os debates em torno da reconsideração do papel feminino da Via Latina
foram fundados. O comportamento da mulher na sociedade foi questionado e debatido na VL, e
nalguns casos particulares, aparentou entrar nos parâmetros mais vincadamente reivindicativos de
género. Contudo, convém ressalvar que a abordagem feita à conduta feminina foi sofrendo mutações
constantes ao longo da história da revista. Vários condicionalismos, tais como a lista que preside a
AAC, o autor do artigo em questão ou uma circunstância específica contribuíram para um vasto
mosaico de considerações acerca do carácter das mulheres e da sua relação com o meio envolvente.
Cada artigo deve assim ser estudado casuisticamente, tornando-se impossível de cristalizar a posição
geral da VL face ao papel feminino na Universidade e na sociedade portuguesa.
Sendo a VL o jornal da AAC, e assumindo-se como a “voz dos estudantes” (Namorado 2015),
torna-se passível de veicular uma vasta diversidade de opiniões. Ao mesmo tempo, sendo os
constituintes da redacção do jornal membros da lista que preside a AAC, é natural que a publicação
espelhe os valores políticos/sociais do seu grupo. Como é evidente durante a presidência de Carlos
Candal (1960-1961)247 e nas sucessivas listas de esquerda que presidiram a AAC até à crise académica
de 1962. Durante estes mandatos a importância dada às considerações sobre a conduta feminina
adquire contornos mais acentuados, para além de um papel de destaque nas páginas da publicação. É
também durante o período de Candal que se tornam frequentes, e praticamente constantes em todos
os números da revista, os artigos referentes ao papel da rapariga universitária.

247
Primeira lista de esquerda a presidir a Associaçao Academico Coimbra desde a lista de Salgado Zenha em 1945.
586
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Antes de expor a posição da VL face ao papel das mulheres na universidade e na sociedade é
primeiro necessário apresentar a conjuntura que direccionava a conduta feminina em todas as suas
vertentes: da componente social à laboral. De acordo com a ideologia preconizada pelo regime estado-
novista, a família é a pedra basilar da sociedade, e a mulher o seu fundamental alicerce. Esta visão
«naturalista» de inspiração católica e corporativista, afirmava que “a mulher casada, como o homem
casado, é uma coluna da família, base indispensável de uma obra de reconstrução moral.” A mulher
era o “chefe moral da família” (Pimentel, 2011, p. 34-35). Para Salazar, a função primordial feminina
havia sido desvirtuada pelas políticas liberais das últimas décadas, que submeteram as mulheres ao
mundo do trabalho e à lógica do mercado. Na defesa da sociedade tradicional seria, portanto
imprescindível restaurar o papel doméstico da mulher. Incutindo-lhe os valores de boa mãe e esposa.
Conforme a lógica do Estado Novo, o aparelho produtivo e o mercado de trabalho não deveriam
afastar a mulher do seu dever familiar, tornando assim a actividade laboral numa prática
tendencialmente masculina. De acordo com a moral corporativista, a mulher teria então de voltar a
ser enquadrada na ordem “natural das coisas”, sendo sujeita a uma rigorosa “política do espírito” que
visava formar as futuras esposas e mães. Esta configuração do papel feminino foi levada a cabo pelas
novas leis da constituição de 1933 e por várias organizações estaduais (Rosas, 1994, p. 308). Entre
1936 e 1937 surgem duas instituições que procuram assegurar a difusão da doutrina
tradicionalista/corporativista no seio das raparigas e das mulheres. Em 1936 é criada OMEN (Obra
das Mães pela Educação Nacional) à qual cabe «estimular a acção educativa da Família», «assegurar
a cooperação entre esta e a Escola» e «preparar melhor as gerações femininas para os seus futuros
deveres maternais, domésticos e sociais.». Já a MCF248 (Mocidade Portuguesa Feminina) foi uma
organização de raparigas que surge como contraponto feminino da Mocidade Portuguesa, criada por
influência da OMEN e de Carneiro Pacheco249, que propendia à «formação do carácter, o
desenvolvimento da capacidade física, a cultura do espírito e a devoção ao serviço social, no amor de
Deus, da Pátria e da Família» (Pimentel, 2001, p. 199).
Este afastamento da mulher da esfera pública, e do contacto masculino, foi corroborado pelo
regime de separação de sexos que se registou a nível educacional. Com as reformas educacionais

248
A criação de grupos de carácter paramilitar dá-se em particular por causa da ameaça exterior da Guerra Civil
Espanhola. A Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina não deixam no entanto de causar
desagrado à Igreja nacional.
249
Membro da União Nacional, do Conselho de Ministros e criador da Mocidade Portuguesa (1936),
587
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(1937) de Carneiro Pacheco, a escola também se incumbiu de remeter “cada um para seu lugar”. Estas
reformas efectivaram o regime de separação de sexos por escola, e instituíram a cooperação entre as
escolas e as mocidades portuguesas, masculina e feminina, respectivamente.(Pimentel, 2001,p. 77-
79).
O ideal de mulher preconizado pela ideologia vigente remete-a para um lugar geralmente
afastado da vida pública, salientando as virtudes femininas de “mãe”, “boa esposa” e “chefe moral da
família”. Tanto na esfera social, quanto jurídica, a mulher encontrava-se num papel de claro
recalcamento, ao estar vedado o seu acesso (salvo raras excepções) às principais actividades públicas
(eleições, cargos administrativos, actividades desportivas). No campo laboral, ela encontrava-se
limitada a um leque restrito de profissões que envolvem contacto social: professora primária ou
enfermeira, concisamente. É neste quadro, de verdadeira subalternidade social e intelectual, que a
mulher chega à Universidade.

A ESTUDANTE UNIVERSITÁRIA
De um modo geral, VL a propugna ideias relativas ao papel da mulher na sociedade que se
assemelham às concepções conservadoras e tradicionalistas preconizadas pelo regime (Pires, 1994,p.
47). É com a lista de Carlos Candal, que a VL altera a abordagem do papel da mulher na Universidade
e na sociedade, fazendo com que “questão feminina” adquira contornos mais complexos, ao
apresentar ideias que propõem uma reconceptualização do papel da mulher na sociedade e pretendem
desmistificar vários preconceitos inerentes à sua concepção tradicionalista. Alguns destes artigos
revelaram-se bastante controversos, ao abalarem a consciência pública universitária, da cidade e até
do país, em alguns casos particulares (Bebiano; Silva, 2004, p. 442-443).250 Esta reconsideração do
papel feminino, que foi difundida através de artigos – e conversas pessoais, nas quais os membros
dirigentes da AAC tentaram fomentar uma participação empenhada das raparigas na vida académica
- pela VL durante o período de Carlos Candal, não correspondia aos conceitos partilhados pelo
estudante universitário vulgar. A mentalidade que assolava o mesmo ia de encontro aos preceitos
defendidos pelo regime. (NAMORADO, 2015) O estereótipo dominante remetia a mulher para o lar
e para o trabalho daí decorrente, resignando-a a este “destino biológico” e alertando-a para os perigos
do intelectualismo, que, de acordo com este pensamento, seriam prejudiciais para a função

250
Refiro-me ao escândalo provocado pela Carta a uma jovem portuguesa
588
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
maternal e que poderiam até provocar uma perda de feminilidade na mulher. Sob a égide desta
mentalidade, é natural que a mulher não se sentisse compelida à discussão de determinados problemas
de índole mais complexa, e que, perante uma presença masculina, se sentisse inferiorizada. No
princípio da década de 60, em Coimbra, era frequente os estudantes após a saída das aulas,
deslocarem-se ao “curro” (entrada da FLUC), para verem as universitárias que passavam com os
olhos cravados no chão. “Deste modo, as jovens eram criadas numa atmosfera de ignorância, sob
pretexto de que não podiam ser boas esposas ou mães se se dedicassem às lides intelectuais”. (Pires,
1994, p. 48-49).
Uma grande percentagem das estudantes universitárias estava alojada em lares. Pois, sendo
boa parte destas alunas, filhas de famílias católicas, eram enviadas para estes estabelecimentos,
congregações de freiras que asseguravam um modo de vida submisso aos códigos da moral católica.”
Constituíam uma forma de as famílias se manterem despreocupadas” (Namorado, 2015). Sem
embargo, os horários dos lares ofereciam alguma flexibilidade. Após as aulas, que ocorriam durante
a manhã, as raparigas tinham a tarde toda por sua conta. Todavia, a partir da hora do jantar tinham de
comparecer obrigatoriamente no lar, e durante a noite nunca poderiam deixar a instituição, salvo em
raras excepções. Uma entrevista concedida pela Madre do Lar do Sagrado Coração de Maria (o seu
nome não é identificado) ao número 83 da VL confirmou estas regras:

“O espírito feminino é mais susceptível nestes assuntos do que o vosso. Admitam que
autorizávamos uma rapariga finalistas, por exemplo, a ir a um cinema, à noite. Nada de mais
natural… Mas que pensaria uma caloira, uma recém chegada…de um tratamento de
diferenciação face a ela? A não ser que autorizássemos indiscriminadamente essa saída (….)
E é preciso muito cuidado de certos casos.

Poderíamos, em cada caso concreto, avaliar se a rapariga tem ou não formação moral que nos
levasse a confiar nela inteiramente (….) Mas as outras não se sentiram lesadas por não
usufruírem desses mesmos direitos? E a igualdade de todas dentro desta casa é um princípio
que nunca poderemos pôr de lado….” (“VISITA”, P.6-7)

Os regimes dos lares providenciavam um sistema de horários nocturnos intransigente, tanto


para as caloiras como para as estudantes mais velhas, reflectindo a rigidez da própria educação
católica, ao assumir que as mulheres adolescentes seriam inaptas para lidar com sua condição
biológica.

589
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para além destas restrições, convém salientar que no plano lúdico as raparigas estavam
também limitadas no que toca a divertimentos. Apenas podiam passear e frequentar pastelarias, para
além das actividades culturais promovidas pelos órgãos autónomos da AAC. Uma rapariga suscitava
reprovação pela comunidade caso frequentasse bares. (Gersão, 2006: 30). A rapariga era assim
remetida para um ambiente fechado sobre ela e as suas congéneres, onde não podia usufruir do
contacto masculino com naturalidade e descontracção.

A ESTUDANTE UNIVERSITÁRIA NA VIA LATINA (1958-1960)


Como foi referido, as opiniões expressas nas páginas da publicação face à condição feminina
procuram ir ao encontro da finalidade fundamental apregoada pela moral vigente: o papel de mãe e
boa esposa. Este discurso é transversal a todos os artigos publicados no período compreendido entre
1941 e 1959. Porém, é-lhes patente um discurso adverso às concepções mais atávicas da época, que
defendiam o afastamento das mulheres do ensino superior. Estas vozes escudaram a sua opinião no
argumento de que a educação superior despojaria as mulheres das suas capacidades maternais e
familiares. Apesar de ser bastante anterior ao período sobre o qual este estudo incide, um artigo de
Maria Juliana de 1941, sintetiza estes pareceres, de acordo com os quais, as práticas intelectuais
femininas não serão prejudiciais à sua função maternal, como pelo contrário, serão uma benesse e
contribuirão para uma maior harmonia na sua função futura (Juliana, “Rapariga”, p.7)
Todos os textos procedentes assumem uma posição semelhante à apresentada. Através dos
quais se tenta proceder a uma conciliação entre a actividade intelectual e a maternal, estando a
primeira inexoravelmente subordinada à última. Ou seja, atesta-se um discurso primordialmente
conservador que compromete toda a existência feminina à sua finalidade biológica.
Veja-se ,agora, um artigo inserido na baliza cronológica que este estudo engloba. Em “A
Vocação da Mulher e da Universitária”, de Manuel Formigal, a autora encara a chegada da mulher à
Universidade como um fenómeno multidimensional, ao serem vários os condicionalismos que
compelem a rapariga a enveredar pelo ensino universitário, tais como o seu desenvolvimento
intelectual ou as suas aspirações profissionais. A complexidade com a qual a autora abordou a
questão, já muito debatida nas páginas da VL, é no entanto muito superior à anteriormente
estabelecida pelos seus pares. Manuela Formigal entabulou uma equiparação entre homem e
mulher (em termos de igualdade de oportunidades e formação), mas, salientou as assimetrias de

590
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
carácter físico e psicológico, ao entregar-se à explicação do dimorfismo sexual. No entanto, a autora
reduz o homem e a mulher ao mesmo denominador comum no âmbito intelectual:

“Se encararmos o desenvolvimento intelectual, a cultura e a realização de vida em si,


não são nem especificamente femininos, nem especificamente masculinos, porque são
neutros (…)
Toda a parte, dita intelectual, é uma actividade do espírito, ou seja, da alma, e esta
feita à imagem e semelhança de Deus. Portanto não diferencia sexos (…) No entanto, a
mulher tem algo que a torna única. O facto de ser mãe (…)
À nossa volta há uma série de círculos em que estamos inseridos e deles não
podemos nem devemos desintegrar-nos. Esses círculos são a família, a universidade, o pais,
o mundo inteiro.

Em cada um deles, a mulher tem uma papel especialíssimo a desempenhar, insubstituível.


Aqui se vê bem a coroação da sua vocação na maternidade – Mãe, em sentido físico, na
Família, e Mãe, sem sentido espiritual, que não é menos real, por este abraço do mundo
inteiro.” (Formigal, “Vocação”, p.1-2)

Independentemente de as aspirações intelectuais femininas serem apresentadas como


naturalmente legítimas, procurando deitar por terra as concepções que reprovam a ambição
escolar/académica feminina, depreende-se uma sujeição à sua finalidade maternal que encara a
mulher inelutavelmente subordinada à família. Apesar de os últimos dois artigos citados se inserirem
em espaços cronológicos bastante afastados, evidenciam a defesa do mesmo ideal. As opiniões
perfilhadas nas páginas da VL face ao papel da mulher, até aos inícios da década de 60, podem ser
encaradas como essencialmente conservadoras. Uma vez que, para além de serem bastante escassos
os artigos sobre a condição feminina, apresentam todos considerações
Poucos meses depois deste artigo de Manuela Formigal, surgiu na VL, um escrito referente a
uma conferência dada por Helena Linhares, intitulada de “Humanismo e Feminismo”, na qual a
conferencista procurou definir o valor e a responsabilidade da mulher na sociedade, apontando a
missão “própria e especifica da mulher”: a educação e a assistência. Outros temas abordados na
conferência foram: a escolha de profissão e rendimento das qualidades femininas; preparação das
universitárias vista à sua futura acção de educadoras; profissões “menos femininas” e o lugar da
mulher no seu exercício. Helena Linhares demonstra engajamento para com a moral vigente, fazendo
assim com que o conceito “feminismo” presente no título da sua conferência perca o seu genuíno
significado etimológico:

591
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“Ora bem sabemos, que por sua organização e até mesmo tradição, a Universidade se dedica
especialmente à formação intelectual, e nos nossos dias cada vez mais, a uma formação
especializante. O que mutila aquela formação integral, que em principio, é o seu fim próprio
(…) Ora no caso das raparigas, aquela mutilação de que eu falava é sentida dum modo
especial, já que elas são por natureza, mais propensas ao equilíbrio e ao desenvolvimento
harmónico, e por outro lado, têm necessidades que ultrapassam de longe, uma cultura
intelectual especializada. Em certo sentido a mulher é mais humanista, por estar mais perto
do humano e por ser mais apta para abarcar conjuntamente, vários aspectos da cultura. Numa
palavra: por estar mais perto da vida.” (Linhares, “Humanismo”, p.5-6)

Ao afirmar que as mulheres têm necessidades que “ultrapassam de longe, uma cultura
intelectual especializada”, a autora estava-se claramente a referir ao carácter geral da actividade
feminina pretendido, ou seja, as lides domésticas.

UM NOVO PAPEL PARA AS MULHERES


O período que este estudo compreende, engloba sete direcções da AAC e cinco da Via Latina.
Se até à direcção de Carlos Candal o director da VL era o mesmo da lista que então presidia a AAC,
é durante o seu mandato que a separação de cargos se efectua. Apesar de Candal continuar a presidir
a AAC, é Avelãs Nunes que fica encarregue da direcção da VL. Destas sete direcções é a de Candal
que mais destaca. Tanto por ser a primeira direcção de esquerda desde o mandato de Salgado Zenha,
em 1945, mas também pela tentativa de efectivar mais solidamente a renovação cultural e associativa
que Coimbra sofria desde o final da década de 1950. As três direcções de esquerda após o mandato
de Candal seguem o mesmo modus operandi por ele traçado (Namorado, 2015, Nunes, 2015). Dentro
destas inovações estava a missão de cativar as estudantes universitárias a compenetrarem-se com os
assuntos académicos, a participarem nas actividades promovidas pela AAC, enquanto
simultaneamente desenvolviam uma atitude crítica perante o seu papel universitário e social. Era
prática comum dos membros da lista de Carlos Candal (e do próprio, inclusive) irem fazer trabalho
de propaganda aos lares femininos:

“Os lares eram um antro de votos de direita, devido às ligações da Igreja Católica com o
regime. E uma das coisas que a malta de esquerda fazia, era ir fazer campanhas aos lares.
Simplesmente, havia uma tentativa de consciencializar as raparigas e de as empenhar na
actividade associativa. Até porque uma grande parte das raparigas iam para os lares, onde
tinham uma educação religiosa altamente conservadora. A direita ganhou muitas direcções
da AAC graças aos votos femininos. A nossa tentativa foi a de elucidar as raparigas e de as
tentar trazer para a esquerda. Daí o Carlos Candal (e outros) ir aos lares fazerem
propaganda política. Tentávamos quebrar a hegemonia que a direita tinha sobre as
raparigas universitárias.” (NAMORADO, 2015).

592
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Infere-se consequentemente, com base no depoimento de Rui Namorado, que a principal razão
que levava a direcção de Candal a se deslocar aos lares seria a de granjear a confiança e o apoio das
raparigas, e conjuntamente, quebrar a influência massiva que as listas de direita, ligadas ao regime,
tinham sobre as estudantes.
Sintomaticamente, é durante a permanência da lista de Carlos Candal na DG que a questão
feminina passou a adquirir um destaque gradual, através do qual se intentou abalar o quadro das
relações entre rapazes e raparigas e iniciar um novo paradigma na relação entre ambos. Como foi
explicitado, havia uma grande clivagem comportamental no meio estudantil. Para o homem era usual
divertir-se sem grandes preocupações, podendo passear pela madrugada fora, embebedar-se,
envolver-se em tunas ou entregar-se a outro tipo de práticas lúdicas. Em suma, o estudante
universitário de Coimbra, tinha ,e tem, uma reputação no imaginário colectivo que o retrata
essencialmente como um boémio. Este padrão era partilhado tanto pelos habitantes da cidade como
pelo resto país, inclusive pelos estudantes das outras universidades portuguesas. Correspondendo, no
entanto a uma visão excessivamente romantizada da vida universitária. (Estanque; Bebiano, 2007, p.
130-131). Já a rapariga universitária, tinha um papel muito mais comedido a nível social. Após o cair
da noite, teria de regressar ao respectivo lar, onde se albergava. Durante o dia, para além das aulas,
os únicos locais que ela frequentava eram as pastelarias ou os jardins, sempre inserida num grupo de
amigas. Esta separação dos sexos, já vinha do ensino liceal. O contacto entre rapazes e raparigas era
praticamente impossível, a não ser que se efectuasse entre familiares ou caso estivessem na presença
de adultos. “Não [havia contacto] entre rapazes e raparigas, no liceu só havia mulheres. Os rapazes
nem sequer se podiam aproximar do liceu. Uma rapariga que aparecesse com um rapaz era chamada
à reitora” (Gersão, 2001, p. 29). Esta profunda diferenciação comportamental teria obviamente
repercussões a nível social. Enquanto o estudante universitário se entregava às lides académicas e
lúdicas ao organizar-se em listas concorrentes à presidência da AAC, ao participar em assembleias
magnas e colóquios, ao integrar em grupos artísticos, a rapariga universitária encontrava-se
geralmente refreada da esfera pública. É sobre esta subalternização que a DG, durante os anos de
1960-1962 procurou intervir. Estimulando as raparigas universitárias a participarem nas mais diversas
actividades. Desde a sua integração no seio da AAC, até à produção de textos para a VL, organização
de actividades, promoção de colóquios relativamente a temas como A Mulher No Romance
Contemporâneo ou O Papel da Mulher na Sociedade. Durante esta época, como já foi referido,
593
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
era habitual os membros da lista de Carlos Candal deslocarem-se aos lares, onde realizavam sessões
de esclarecimento relativos à organização da AAC e a determinados paradigmas associativos.
Todavia, estas visitas foram empreendidas com o principal intuito de granjear a confiança das
raparigas na actual DG e de as integrar mais eficazmente na vida associativa, convencendo-as a
participarem nas votações e a darem o seu contributo nas mais variadas áreas (Namorado, 2015,
Nunes, 2015). Entretanto, o Conselho Feminino (CF) (já existente há cerca de dez anos) é potenciado,
promovendo debates, actividades e até numa ocasião um colóquio de educação sexual.
As páginas da VL, contêm vários artigos que manifestam este clima de agitação e de
redefinição do papel feminino. As polémicas em questão sustentaram-se na condição da mulher
portuguesa e nas suas privações, articuladas com a reidentificação do feminino de que o período pós-
segunda guerra mundial foi testemunha. Lembremo-nos de Simone De Beauvoir e do seu manifesto
feminista Le Deuxiéme Sexe (1949), do aparecimento da mini-saia ou da popularidade de estrelas de
cinema como Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot. A despeito de os exemplos apresentados serem
estruturalmente diferentes revelam uma rejeição da figura clássica feminina, obediente e submissa,
optando pelo amparo de uma mulher livre, consciente e completamente independente (Bebiano; Silva,
2004, p. 426-228). Um entendimento contemporâneo que foi assaz grassado pela cultura de massas.
O primeiro artigo presente na VL que evidencia reivindicações de género imbuídas de um
pendor mais contestatário intitula-se Relações Entre Rapazes e Raparigas, da autoria de Joaquim
Cantante Garcia. No entanto, apesar de ter sido publicado sob a tutela de uma lista de direita -presidida
José Manuel Cardoso da Costa - revela preocupações que condenam uma “educação tradicionalista
ultrapassada”, que se exterioriza através de três características principais: A) “Uma malévola e
decrépita sociedade que dificulta, e perturba a convivência entre rapazes e raparigas.” B) “Uma
educação tradicionalista ultrapassada, que ainda para mais esquece a educação sexual.” C) “Não se
filosofar, tranquilamente o que é o amor” (Garcia, “Relações”,p.1-9 ).
O autor ergue-se contra uma sociedade antiquada que não aceita que um rapaz e uma rapariga
possam ser simples amigos, vendo em cada relação entre pessoas do sexo oposto um potencial casal.
Depois de veemente condenar este preconceito atávico, Joaquim Garcia refere que é “necessário
fomentar o aparecimento de lugares mais sadios, de modo que os contactos entre rapazes e raparigas
universitários se multipliquem, se banalizem e daí se normalizem, já que as ruas e os jardins
estão-nos interditos, pelas razões atrás apontadas…”, e sugere que rapazes e raparigas se

594
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
encontrem livremente nas “salas de convívio, que desgraçadamente, foram omitidas nas três
faculdades já edificadas ou reconstruídas.” Para além da defesa do convívio livre entre rapazes e
raparigas, o autor defende a necessidade de uma educação sexual, dado que esta será benéfica e
saudável ao contribuir para a supressão de tabus que provocam infelicidade e um certo mal-estar
social geral. (Garcia, “Relações”,p.1-9)
No número 122 da VL, surge uma continuação do texto de Joaquim Garcia, com o título de
Ainda o Problema do Convívio entre Rapazes e Raparigas, porém, o autor do texto já não é o mesmo.
Sendo o artigo assinado por Carlos Horta (possível pseudónimo). O texto denuncia a apatia dos
estudantes face ao artigo antecedente, referindo que “é cada vez mais grave e acentuado o isolamento
e frustração do nosso homem e mulher” perdendo “boa parte das esperanças de se libertarem e serem
profundamente felizes através do amor.” Todavia, o descontentamento que perpassa pelo artigo, não
se restringe somente às relações rapaz/rapariga e envereda pelos problemas de índole económica que
subordinam a vida em casal e portanto extra-universitária. “Homem e mulher, já fragilizados pelas
actuais e prementes necessidades de sobrevivência económicas, e daí, mentalizados para uma vida
oportunista (…) não têm assim [outras possibilidades] de se conhecerem, a não ser superficialmente,
convencionalmente.” Interpretando os condicionalismos de ordem económica como um dos
principais bloqueios à felicidade conjugal, Carlos Horta conclui o artigo, afirmando que é necessário
“combater também sem medo, tenazmente, por que a mulher ganhe amplo acesso à independência
económica, que lhe empreste serenidade na escolha do companheiro único.” (Horta, “Ainda”, p.1-2)
Este artigo foi evidentemente mais impugnante que o antecedente. Enquanto Joaquim Garcia
se limitou a abordar o problema sobre o convívio universitário entre estudantes de ambos os sexos,
Carlos Horta denunciou o papel de subalternidade económico-social a que a mulher estava
condicionada pela legislação estado-novista.
Na VL nº 120, está presente um artigo da autoria de Carlos Pereira de Carvalho, apelidado A
Universitária e a Vida Associativa que convida as estudantes a participarem nas actividades
promovidas pela AAC e revela o desinteresse geral que a estudante universitária tem pelas actividades
associativas. Carlos Pereira de Carvalho atribui as causas do desinteresse da estudante a diversos
factores: “desde o instintivo temor feminino até aos moldes em que está estruturada a sociedade,
passando pela legislação de lares e pais de família, condicionalismos de vária ordem, atraso
mental de uma sociedade que não que uma rapariga [tenha vontade própria]. Afirmando que “é

595
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
preciso que a mentalidade burguesa seja ultrapassada: a mulher, no actual momento histórico, abrem-
se as mesmas perspectivas que, durante séculos se proporcionaram exclusivamente ao homem.” Por
fim, o autor procura familiarizar a estudante com a AAC, integrando a rapariga na sua composição
orgânica e afirmando que esta é parte indissociável da instituição (Carvalho, “Assembleia”, p.1-2).
Como é claro, este texto tem uma base política reivindicativa sem precedentes na VL.
Expressões como “mentalidade burguesa” revelam um cunho evidentemente de esquerda, que se
insurge contra as normas sociais vigentes.
Esta renovação de pensamento defende uma ruptura com modelo social vigorante, em
particular, com o que pontua a conduta feminina. Uma renovação que clama pelo reconhecimento da
mulher como um individuo livre, tanto no prisma social quando jurídico. Esta nova perspectiva
universitária sobre a mulher surge em convergência com a época -finais de 1950, princípios de 1960-
em que a mulher começa a ganhar uma maior exposição na vida pública, nomeadamente através da
via laboral. Em Breve Apontamento Sobre a Rapariga Universitária, Eveline Nicolau, afirma que “a
novas condições de vida, correspondem novos conceitos”, pois “assistimos a uma alteração radical
do modus vivendi da Mulher (…) De todas as mulher, as que têm uma vida inteiramente nova, sãos
as que desempenham uma profissão, sobretudo as que desempenham as chamadas “profissões
liberais.” Contudo, a autora vê na rapariga universitária, o potencial para alterar a condição social da
mulher:

“Nós, raparigas universitárias, na medida em que nos preparamos para esse futuro,
constituímos também uma novidade na História da Mulher (…) Por isso, em relação a todos
os conceitos que se opõem às nossas legitimas aspirações, às nossas legitimas necessidades
de mulher conscientes e responsáveis, a nossa atitude não deve ser de submissão, mas, pelo
contrário, de recusa, por tal forma que sejamos nós a influenciar o ambiente, e não este a
dominar-nos.” (Carvalho, “Assembleia”, p.1-2).

A autora refere que existem na Academia muitos sintomas que manifestam “preconceitos
ultrapassados” em relação à estudante universitária e à mulher em geral. Aceitando algumas das
“piadas das latadas” e certos “dichotes que alguns rapazes universitários se consideram no direito de
dizer à passagem das colegas” como “vestígios de um passado, em que o homem e a mulher eram
dois estranhos (…) para ele havia a rua, a boémia (a célebre boémia coimbrã) (…) para ela o
acolhimento do lar, a tímida admiração pela irreverência e liberdade dele.” O artigo conclui com
um apelo à actividade e impulsiona as raparigas a participarem nos eventos públicos e sociais,
596
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nas decisões do quotidiano. “À, em que nós [caminhamos] lado a lado com os rapazes, os tais
conceitos que subsistem no nosso ambiente (…) irão desaparecer, e sobre ele erguer-se-ão
definitivamente as ideias e perspectivas que hoje coincidem com aquilo que verdadeiramente somos.”
(Carvalho, “Assembleia”, p.1-2)

A POLÉMICA DE CARTA A UMA JOVEM PORTUGUESA


De todos os artigos publicados na VL relativos ao comportamento feminino o que mais se
salientou e gerou controvérsia foi Carta a Uma Jovem Portuguesa. A sua repercussão ressentiu-se na
imprensa nacional, com vários jornais académicos e/ou católicos a mencionarem a famosa Carta,
enquadrando-a como uma afronta à moral e à organização social vigente. À luz do presente, a Carta
é um texto aparentemente inocente, desprovido de conteúdo passível de suscitar reprovação no leitor
vulgar, contudo, não nos esqueçamos que a mesma foi publicada num contexto social no qual a
mulher se encontrava numa posição recalcada. A família, na qual a mulher ocupava um papel de
completa subalternidade – sendo mulher ou filha – apesar de ser considerada o “centro moral” da
organização. As principais qualidades da mulher, de acordo com os critérios da época, reduziam-se a
dois conceitos: “boa esposa” e “boa mãe”(Pimentel, 2001, p. 30-34). Em suma: “boa dona de casa.”
Uma “boa mulher” seria portanto a que se dedicasse ao seu “papel” imposto pela norma dominante e
que não procurasse sair deste quadro de subordinação. O sexo seria um mero acessório subjugado à
maternidade e o seu carácter de prática fisiológica natural era reprovado pela moral oficial. A virtude
estava na castidade.251 O debate de temáticas de carácter sexual era portanto impermeável à opinião
pública, o que talvez explique a razão pela qual “Portugal tenha sido um dos países da Europa que no
inicio dos anos 60 tenha tido uma das taxas mais elevadas de crianças nascidas fora do casamento”
(Gersão, 2015).
É justamente dentro dos problemas de carácter sexual que a Carta a Uma Jovem Portuguesa
se insere. Não sendo, contudo, estritamente dedicada a essa temática. Na senda de artigos inovadores
anteriormente publicados na VL, como A Universitária e a Vida Associativa ou Relações Entre
Rapazes e Raparigas, a Carta vai mais longe. Partindo do mesmo principio que os outros artigos –
que inferiam que a sociedade tradicionalista “arcaica” seria a razão das contradições de carácter

251
De acordo com a legislação em vigor, o matrimónio estava passível de ser anulado caso o marido descobrisse
que a esposa não era virgem
597
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sexual presentes no meio académico e na sociedade em geral – a Carta debate problemáticas de cariz
sexual, defendendo uma sexualidade espontânea: “Veio o teu impulso para mim e o meu impulso
para ti – o que interessa se eram ou não verdadeiros? Eles estavam certos pois tinham acontecido
nessa altura.” (VL, 1961, 130) Os artigos anteriores não tinham ousado discutir assuntos relativos à
intimidade sexual, referindo apenas uma ou outra vez a necessidade de uma educação sexual. A
polémica gerada pela Carta perfaz-se porque a mesma “levanta problemas de moral sexual, e na
academia os debates relativos às relações entre sexos não se encaminhavam nesse sentido. Apenas se
discutiam temas relacionados com a participação feminina no meio associativo e social.” (Gersão,
2015). O artigo assinado por um incógnito A. – que mais tarde se assumiu como Artur Marinha de
Campos – principia com uma denúncia da sociedade tradicionalista, responsável pelo fosso existente
entre rapazes e raparigas: “A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, alto e espesso,
que nem tu nem eu construímos. A nós rapazes (…) onde temos uma ordem social que em relação a
vós nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da
repressão mental. Do estatismo e da imanência.” (Campos, “Carta”, p.4-5).
Como já foi referido anteriormente, a controvérsia gerada pelo artigo foi incendiária e
imediata, tendo repercussões não só a nível académico mas também fora deste. Através de artigos de
imprensa, comunicados, panfletos a Carta ficou famosa, e não pelas melhores razões (Garrido, 1996,
p. 110-114).As organizações juvenis do regime (MP e MPF) em conjunto com outras organizações
de carácter católico (como a Juventude Católica e a Juventude Católica Feminina) questionaram o
conteúdo da carta. Para além destas organizações de maior notoriedade, muitos jornais católicos
regionais atacaram violentamente a Carta, reagindo com “nojo” e “indignação”, face a um texto que,
de acordo com a sua lógica, defendia “uma imoralidade arvorada em norma de conduta.”
Paralelamente, outros agrupamentos juvenis de extrema-direita acusavam o autor de ser um
“profissional da subversão”, estando ao serviço de “Praga e de Moscovo”.
Carta A Uma Jovem Portuguesa foi escrito por Artur Marinha de Campos, como o próprio
veio a reconhecer, sob a influência da leitura fresca da obra de Simone de Beauvoir (Bebiano; Silva,
2004, p. 442) e da escola filosófica existencialista. Na visão de Eliana Gersão o autor da Carta não
era o estudante comum, pois pertencia a uma família burguesa de grandes posses, viajava bastante, e
tinha acesso a livros que muito dificilmente se encontrariam numa livraria ou biblioteca vulgar
de Portugal (Gersão, 2001, p. 39). A Carta revela estes sintomas de distanciamento que

598
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
demarcam o autor do estudante banal. Ao falar sem tabus de uma sexualidade espontânea, o autor
chocou os leitores mais conservadores, que tomavam as concepções e identificações sociais
tradicionalistas como verdades absolutas e inquestionáveis. Contribuindo inadvertidamente para que
estes vissem na Carta uma mera apologia do amor livre. Todavia, o texto não se restringe somente
ao debate sobre a sexualidade, esta surge apenas como uma partícula que se insere na integralidade
do comportamento inter-sexual. A ideia principal que se encontra espelhada no texto é a da opressão
das mulheres em todos os aspectos da sua condição social – a sua incapacidade de acção, de amar ou
de se deixar amar. “A consequência mais importante da carta, é que serviu para demarcar campos, e
ver quem era a favor da AAC – mesmo que não concordasse com uma boa parte do conteúdo da carta
– e quem era contra, e condenava quer a carta, quer quem contribuiu para a sua publicação. Acabou
por servir também para ver quem era a favor da liberdade de imprensa e quem era contra.” (Gersão,
2015).

A ESTUDANTE E O DESPORTO UNIVERSITÁRIO


O desporto feminino é assumido como uma prática útil e saudável pela VL - excluindo algumas
opiniões particulares - desde as direcções de direita da AAC até à presidência da lista de Carlos
Candal. Atribui-se à prática desportiva uma importante utilidade na optimização das aptidões físicas
da mulher, preparando-a fisicamente para a sua principal função social, a maternidade. No entanto, a
participação feminina no âmbito desportivo consubstancia-se também com a nova dinâmica feminina
emergente. O desporto é uma das múltiplas actividades na qual a mulher se deve envolver, para
melhor se integrar na sociedade e no meio académico.
De acordo com os padrões sociais da moral vigente, a adesão da mulher às práticas desportivas
suscita nas elites do poder uma polarização de opiniões. Alguns sectores, viam na mulher desportista
um importante contributo para o “aperfeiçoamento da raça” tornando-a apta para gerar filhos fortes,
enquanto outros assumiam que uma mulher sujeita às práticas desportivas se “masculinizava”
excessivamente. (Pimentel, 2001, p. 209-211) A MPF integrou inicialmente no seu programa sobre
educação física e desporto feminino, uma cláusula que arrogava a mulher desportista como um
elemento indissociável do “aperfeiçoamento da raça” e da “regeneração da nação”, entrando assim
em concordância com os objectivos do Estado Novo provenientes da Constituição de 1933.
Todavia, a Igreja, acusou a campanha pelo desporto feminino de ser um invólucro de uma certa

599
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“cultura física depuradora, racionalmente e cientificamente errada que quer fazer da mulher, um puro
animal atlético.” O poder católico defendeu que no desporto, o papel da mulher devia ser o de
espectadora e não o de exibicionista, ao atacar as noções de equiparação e igualdade entre os dois
sexos.
Durante a década de 1950, o desporto feminino torna-se numa prática mais valorizada a nível
geral, ao ser obrigatória para as estudantes de liceu a disciplina de Educação Física. De acordo com
Eliana Gersão, as raparigas eram encorajadas a praticar desporto, e no caso de Coimbra, dispunham
de instalações que lhes permitiam praticar várias categorias desportivas, tais como a ginástica, o
voleibol e o basquetebol. (Gersão, 2015). No entanto, apesar de se registar uma maior adesão às
práticas desportivas femininas, os sectores mais conservadores continuavam a difundir ideias que se
erguiam contra estes costumes. Vejamos um artigo presente numa edição Menina e Moça (revista da
MPF, que constituía uma das leituras de eleição das jovens da época) do princípio da década de 1960:

“Tens um belo maillet de banho de seda azul claro e preferes ficar estendida na areia a molhá-
lo. És mais coquette que desportiva! Jogar ao ténis tomando atitude pretensiosa. Dás-te em
espectáculo…não jogas! Tens mais tendência para o teatro do que para o desporto.
Procura jogar a horas em que não tens espectadores.
Quando ganhas, mostras uma alegria excessiva, quando perdes, choras. É um excesso.
Talvez futilidade. Defeitos muito pouco desportivos (…) ” (“Mulher e o desporto”,p. 14).

O objectivo deste texto, parece claro, é o de desmoralizar a rapariga que ambiciona praticar
desporto. A despeito de ser impossível precisar o que a rapariga comum da época pensava
relativamente ao desporto, podemos separar as raparigas em dois grupos: as que praticavam desporto
e as que concordavam com este preconceito difundido pelos sectores mais conservadores do regime.
Sucintamente, é viável admitir que como resultado das concepções sobre o papel da mulher na família
e na sociedade, esta foi também, de certa maneira, alvo de repressão no plano desportivo.
A VL insere-se na posição que procurava democratizar o acesso da mulher às práticas
desportivas. Num texto de 1959, da autoria de Margarida Frias, campeã de natação, foram reveladas
preocupações sobre a decadência do desporto feminino. O artigo procura salvaguardar que não será
por timidez que as raparigas não se procuram entregar às práticas desportivas, mas antes por preguiça.
A autora alerta também para a recente criação de um Organismo Cultural e Desportivo recentemente
concebido pelo conselho feminino, encorajando as leitoras a praticarem desporto com “energia”
e “vontade”, pois ficarão “engrandecidas física e moralmente”. Estranhamente, a opinião

600
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
expressa parece de algum modo ressaltar as opiniões mais conservadoras, ao encarar a rapariga como
geralmente ociosa (Frias, “Mulher”, p.2).
No número 125, está presente um artigo intitulado A Mulher e o Desporto que incentiva a
rapariga universitária a pratica-lo, devidos às benesses de ordem física e psicológica. O artigo
menciona a recente criação da secção de voleibol da AAC, que só virá a entrar em real actividade no
presente ano lectivo. Por fim, a reportagem é concluída com uma entrevista à jogadora Maria Alcina
dos Anjos Dias, da equipa de Voleibol da AAC na qual a mesma refere que “o desporto é um dos
factores fundamentais para o desenvolvimento das qualidades físicas e morais da Mulher.”
Salientando que de “entre as varais modalidades, entendo que a mais completa é, precisamente o
Voleibol, não só pela facilidade com que pode ser jogado, como por não haver inconveniência de
idade e sexo à sua prática...” Maria Dias finaliza a entrevista, subordinando a prática desportiva à
maternidade:

“A Mulher necessita de fazer exercícios físicos que lhe proporcionem a robustez necessária
para bem desempenhar, no futuro, a elevada missão que lhe cabe perante Deus e o Homem –
a da maternidade! No campo desportivo, a mulher é pouco mais que uma “massa morta”!
Ora, é preciso lutar contra essa falta ideia, é preciso despertar, uma vez que o desporto dá,
precisamente, saúde, força e beleza!..” (Horta, “Mulher”, p.11-12)

Entre 1958 e 1962 a VL veicula primordialmente uma posição face ao desporto feminino: A
defesa da liberalização do desporto às participantes que neles quiserem integrar. Todavia, como é
patente, este apelo ao desporto tem sempre a mesma finalidade: o de melhorar as capacidades
orgânicas da mulher, para que cumpra a sua derradeira missão maternal.

CONSELHO FEMININO (CF)


A criação do criação do CF esteve indubitavelmente comprometida com o conceito tradicional
de mulher, tal como a VL e a DG da época. É só após a chegada de Carlos Candal à presidência da
AAC, que o CF procura compelir as estudantes a um maior compromisso para com a actividade
associativa. Através da dinamização de colóquios e da criação actividades que diferem por vezes, de
modo radical, das inicialmente promovidas pelo CF. Dentro das actividades que procuravam integrar
as raparigas na vida associativa destaca-se a pressão que o CF fez junto da DG, para que este
alterasse o horário a que normalmente se realizavam as Assembleias Magnas, pois ao ocorrerem

601
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
após a hora do jantar, tornava-se impossível a que a maioria das estudantes pudesse comparecer. Não
nos esqueçamos dos inflexíveis horários dos lares. A VL é testemunha destes ventos de mudança
dentro do CF.
No número 80 da VL um artigo intitulado Actividades Femininas propõe-se a manter os
estudantes a par das novas actividades realizadas. E colabora com a AAC, na campanha conjunta de
tentar motivar as estudantes a participarem na vida associativa “ [pedindo] à DG que as magnas se
realizem a tarde, pois de noite as estudantes não conseguem comparecer.” (“Actividades”, p.14)
Em 1961, já após a Tomada da Bastilha pela lista de Carlos Candal, o CF emite um
comunicado no qual afirma já ter em funcionamento as seguintes actividades: Curso de Ginástica,
Curso de Artes Decorativas, Colóquio de Puericultura Pré-Natal e Pós-Natal. (VL, 1961, 124). Estes
cursos inauguram um novo período no CF, que actua em pareceria com a recente lista presidida por
Candal. O curso de Ginástica é a primeira actividade de carácter desportivo a ser promovida pelo CF.
E já o Colóquio de Puericultura Pré-Natal e Pós-Natal, é na realidade um curso de educação sexual.
(Gersão, 2015).
Já em 1962, o CF organiza um colóquio relacionado com a mulher e a vida profissional,
intitulado de Carreiras Abertas À Mulher. O artigo presente na VL refere que o evento contou com
uma adesão notória e que se registou um elevando número de estudantes, que se deslocaram à
“Faculdade de Medicina para o colóquio inaugural do ciclo (…)” Como já foi referido, o colóquio
visava o debate do papel da mulher na Família e forma de como este condiciona o exercício
profissional. De seguida deu-se um debate no qual se prestaram depoimentos provenientes de
estudantes de ambos os sexos. Apesar de todas as questões não terem sido debatidas com a devida
profundidade, o CF salienta que “o que sobre eles foi exposto e discutido contribui para um maior
esclarecimento de todos, para uma visão mais lata do problema, visto que ele foi encarado sobre
vários ângulos, e deverá ainda servir de base ao estudo e meditação mais profundos que o tema
merece.” (Gersão, “Carreiras”, p.9).
O CF, surgindo como instituição que procurava integrar as raparigas dentro da AAC, esteve
sujeito às mudanças de política desta última. Ao perfilhar ideias, colóquios e actividades que se
subjaziam aos novos ideais políticos então em afloramento. Após a crise de 1962, a progressiva
feminização do ambiente académico acabou por transformar o CF num organismo anacrónico:

602
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“Com a sucessão dos acontecimentos desse ano e as transformações profundas do meio
estudantil e a própria cidade, a integração da rapariga na AAC tornou-se natural e espontânea
e, lá para o fim do ano, já se questionava se tinha sentido existir na AAC um órgão dedicado
especificamente às raparigas. Penso que a partir de então o CF perdeu relevância.” (Gersão,
2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão feminina estabeleceu-se nas páginas da VL, acima de tudo, como um leimotiv da
profusão das estudantes pelo meio universitário de Coimbra. Como uma boa parte destas provinham
de meios católicos e moravam em lares, era natural que não apresentassem um posicionamento
político contestatário. As direcções de esquerda da AAC dedicaram-se assim a tentar sensibilizar as
jovens universitárias, movendo-as para a sua esfera de influência político-associativa e compelindo-
as a participarem nas mais variadas actividades associativas (desporto, teatro, escrita, redacção da
VL). Contudo, “a questão feminina não era uma prioridade política” e a exposição dada às questões
femininas no VL não foram propositadamente deliberadas, foram artigos que simplesmente surgiram
com naturalidade e espontaneidade.” (Nunes, 2015).
O combate à submissão da mulher, era acima de tudo um combate político.
Independentemente do esforço feito pela DG e pela “elite estudantil”, os esforços não se revelaram
muito eficazes. Já que uma grande parte das raparigas permaneceu desinteressada face às actividades
da AAC. Como o provam o CF (que nunca passou das cinco raparigas, estando em períodos mais
críticos com apenas duas constituintes) e as suas actividades, mas também as escassas contribuições
femininas para as páginas da VL. A questão feminina tem no entanto que ser enquadrada num
determinado contexto espaço-temporal. Para além dos debates teóricos existentes a nível nacional, há
que evidenciar a própria reconfiguração que a persona feminina sofria no imaginário popular
colectivo. Metamorfose da qual a cultura de massas e em particular o cinema foram baluartes.

REFERÊNCIAS
BEBIANO, Rui; Silva, Alexandra. A reidentificação do feminino e a polémica sobre a “Carta a uma
Jovem Portuguesa. Revista de História das Ideias nº25, Universidade Coimbra, 2004.

ESTANQUE, Elísio; BEBIANO, Rui. Do activismo estudantil à indiferença: Movimentos Estudantis


em Coimbra. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007.

GERSÃO, Eliana. O Papel da Mulher nas Lutas Académicas Coimbrãs dos anos 60. Coimbra:
Separata da Revista Portuguesa de História das ideias volume XXXIV, 2000.
603
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GOMES, Joaquim Ferreira. A Mulher Na Universidade De Coimbra. Coimbra: Livraria Almedina,
1987.
GUIMARÃES, Eliana. Mulheres Portuguesas: Ontem e Hoje. Lisboa: Comissão da condição
feminina, 1979.

NUNES, Adérito Sedas. Análise Sociológica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2000.

PIRES, Januário. Contributo para um estudo do Via Latina. (Dissertação de mestrado em História
Contemporânea de Portugal. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade Coimbra, 1994.

PIMENTEL, Irene Flunser. História das Organizações Femininas do Estado Novo. Lisboa: Temas e
Debates, 2011.

PIMENTEL, Flunser Irene, A cada um o seu lugar. Lisboa: Temas e Debates e Círculo de Leitores,
2011.

ROSAS, Fernando, História de Portugal volume 7:O Estado-Novo 1933-1974. Coordenação de José
Mattoso, Lisboa: Círculo de Leitores 1994.

Artigos de imprensa
“Actividades Femininas”, Via Latina, 17/5/1958

“Visita ao Lar da Imaculada Conceição”, Via Latina, Coimbra, 19/1/1959

“Mulher e o desporto”, Menina e Moça, 8/1961

CAMPOS, A.J. Marinha, “Carta a uma Jovem Portuguesa”, Via Latina, 19/4/1961

CARVALHO, Carlos Pereira, “Assembleia de raparigas”, Via Latina, 5/12/1960

FORMIGAL, Maria, “Vocação da mulher e da Universitária”, Via Latina, 2/2/1959

FRIAS, Margarida, “A mulher e o desporto”, Via Latina, 19/1/1959

GARCIA, Joaquim, “Relações entre rapazes e raparigas”, Via Latina, 7/3/1960

GERSÃO, Eliana, “Carreiras abertas à mulher”, Via Latina, 28/2/1962

JULIANA, Maria, “Rapariga Estudante”, Via Latina, Coimbra, 30/4/1941

LINHARES, Helena, “Humanismo e Feminismo”, Via Latina, 1/2/1960

HORTA, Carlos, “Ainda o problema do convívio entre rapazes e raparigas”, Via Latina,
16/1/1961
604
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HORTA, Carlos “A mulher no desporto”, Via Latina, 7/2/1961

Entrevistas
Eliana Gersão (2015)

Rui Namorado (2016)

António Avelãs Nunes (2016)

605
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
INFÂNCIA E TRABALHO DOMÉSTICO: CONSTRUÇÃO SOCIAL DO FEMININO

Jéssica da Silva Garcia252


Monique Bronzoni Damascena253

Resumo: O trabalho doméstico infantil é considerado uma das piores formas de trabalho infantil classificados pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Diante disso, a discussão que versa este artigo compreende a etapa de
revisão bibliográfica da pesquisa que comporá o trabalho de conclusão da pós-graduação, da Especialização em Políticas
de Atenção a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência da Universidade Federal do Pampa, campus São Borja.
Desse modo, a pesquisa que está em andamento se propõe a apreensão do trabalho doméstico na infância, a partir das
produções do conhecimento na área da Psicologia, Direito e Serviço Social. Conforme o processo de revisão
bibliográfica, foi possível apreender sobre a relação do trabalho doméstico infantil e a naturalização de forma intrínseca
com a questão de gênero feminino, e a opressão como violência implícita.

Palavras-chave: Infância; Trabalho doméstico infantil; Opressão; Políticas públicas; Feminino.

INTRODUÇÃO
Este artigo é referente a revisão bibliográfica do projeto de pesquisa do trabalho de conclusão
da Pós-graduação, Especialização em Políticas de Atenção a Crianças e Adolescentes em Situação de
Violência da Universidade Federal do Pampa - Unipampa. Em vista disso, visa compartilhar o
processo de desenvolvimento e construção da revisão bibliográfica da pesquisa intitulada “Trabalho
Doméstico Infantil e a Construção Social do Feminino”.
O trabalho doméstico infantil é considerado uma das piores formas de trabalho pela
Organização Internacional do Trabalho - OIT (BRASIL, 2000.). Perpassa séculos e modos de
produção, e ainda se faz presente na atual conjuntura o trabalho doméstico infantil. Se antes, o
trabalho doméstico era realizado por mulheres e crianças escravas, hoje, essa realidade não se difere
muito.
O trabalho doméstico infantil, assim como o trabalho doméstico, são marcados pelas questões
que envolvem o gênero feminino e a naturalização como trabalho atribuído exclusivamente a esse
gênero. O modo de produção capitalista conserva, assim, a exploração do trabalho doméstico como
uma forma de desvalorização das atividades desempenhadas pelas mulheres.
Durante o exercício da escrita e construção da revisão bibliográfica, se fez necessário
introduzir a temática a partir do contexto histórico, social e econômico para a compreensão do

252
Pós-graduanda da Especialização em Políticas de Atenção a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência,
pela Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja. E-mail: jessicapsicologiauri@gmail.com
253
Professora do curso Especialização em Políticas de Atenção a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência,
pela Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja. E-mail: moniquedamascena@unipampa.edu.br
606
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
trabalho doméstico infantil. A relação do trabalho doméstico infantil com o gênero feminino, a partir
da análise dos diferentes modos de produção, perpassou a retomada histórica do período colonial e a
escravização das mulheres negras. Bem como, a apreensão do trabalho doméstico como uma forma
de exploração.
Também serão abordados, de forma introdutória, os aspectos das legislações brasileiras que
preveem a criança e ao adolescente o direito a proteção integral, e regulamentam o trabalho doméstico
infantil como uma forma de violação de seus direitos. A de realização trabalho doméstico infantil no
Brasil e os aspectos psicossociais da criança que vivencia o trabalho doméstico e a construção da sua
identidade.

HISTÓRIA DO TRABALHO DOMÉSTICO


A trajetória do trabalho doméstico perpassa ao longo dos anos na história do Brasil, sendo
encontrada em diversas literaturas, nos quais, os pesquisadores apresentam o trabalho doméstico
datado desde o período colonial. O trabalho doméstico infantil também coincide no mesmo período
no Brasil, desse modo, não podemos dissociar o trabalho doméstico e o trabalho doméstico infantil.
Para compreendermos a categoria trabalho doméstico, alguns autores retomam todo o
contexto histórico brasileiro, desde o período colonial que teve como abrangência entre os séculos
XVI ao XIX no Brasil. Este período corresponde desde a chegada dos primeiros portugueses em 1500,
até a independência do Brasil em 1822. O período colonial foi marcado pela escravização de povos
africanos, como mão de obra para exploração da colônia Brasil. Segundo Ramos (1999, p.19) mesmo
sendo descoberto em 1500, “suas terras começaram a ser povoadas somente em 1.530, onde as
crianças também estiveram presentes, em especial, os Grumetes e Pajens que chegaram com as
embarcações portuguesas na condição de trabalhadores”. Ramos explica (1999, p. 28) sobre o
trabalho realizado pelas crianças que estavam embarcadas nos navios, como os pajens. “As crianças
embarcadas como pajens da nobreza ficavam encarregadas de realizar os serviços menos árduos que
os prestados pelos grumetes, tais como arrumar os camarotes, servir as mesas e organizar as camas”.
Estas crianças realizava o trabalho doméstico, já os grumetes “eram crianças que realizavam as tarefas
mais perigosas e penosas, sendo submetidos a diversos castigos, bem como aos abusos sexuais de
marujos, além da péssima alimentação que lhes era imposta e dos riscos percorridos em alto mar”
(CUSTÓDIO, 2007, p. 17).
607
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A origem do trabalho doméstico no Brasil”, a atividade desenvolvida pela empregada
doméstica era “de mucamas, amas de leite, costureiras, aias, pajens, cozinheiros, também
cuidavam dos filhos dos senhores, transmitiam recados, serviam à mesa, recebiam as visitas
e etc. ( SILVA et al, apud GOMES, 2016, p.414, 2017).

O trabalho doméstico era desempenhado majoritariamente por mulheres livres, escravas,


meninas que ainda crianças, realizavam de forma quase gratuita, e por vezes, sem remuneração o
trabalho doméstico. Marcado também pela violência, castigos, escravização de povos africanos
Neste período, a metrópole portuguesa possuía grande influência na colônia Brasil,
principalmente, em relação ao trabalho feminino, devido ao pacto colonial, no qual, apenas poderia
comprar os produtos da metrópole Portugal. Fato este que também impactou não apenas no aspecto
econômico, mas também, na cultura, através do trabalho doméstico não-remunerado destinado às
mulheres livres e as escravas, pois Portugal escravizava os povos africanos e indígenas, trazendo a
cultura eurocêntrica aos povos da América.
O trabalho doméstico, portanto, é marcado pela cor, classe social, e gênero, atividade
realizada por mulheres escravas, e mesmo após a abolição da escravatura e vinda dos primeiros
imigrantes para o Brasil, o trabalho doméstico ainda era exercido pela menina, mulher, negra e pobre,
pois os serviços manuais ainda estavam atrelados a figura da mulher negra.
No período Brasil império, a partir de 1822 iniciaram-se os primeiros movimentos
abolicionistas, somente em 13 de maio de 1888 foi abolido a escravidão no Brasil. Entretanto, com a
abolição da escravatura, as mulheres escravas permaneceram nas casas dos senhores, realizando o
trabalho doméstico não-remunerado. “Após a abolição da escravidão, os trabalhos manuais
continuaram a ser realizados pela população negra e muitas mulheres filhas de escravas passaram a
exercer atividades ligadas aos serviços domésticos” (YOSHIKAI, p. 24, 2009). Os povos africanos
depois da abolição da escravatura permaneceram na casa dos seus senhores, devido a impossibilidade
de sobrevivência, e por não haver a possibilidade de um trabalho remunerado, permanecendo na casa
grande como uma forma de segurança. O lugar da mulher negra permanece nas atividades domésticas,
sendo realizadas tanto em sua casa, quanto na prestação de serviço a terceiros, o que é denominado
de empregada doméstica, estereótipo da mulher negra brasileira marcado desde o período colonial.
Silva et. al (2017) destaca que apenas em 1886 regulam o trabalho doméstico das amas de
leite. No entanto, não acontecia de forma eficiente pois, acabava beneficiando os patrões ao invés
das mulheres trabalhadoras. Para Silva et. al (2017, p. 19) “não tinha como objetivo resguardar
608
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
as empregadas domésticas contra os abusos de seus patrões, mas sim de estabelecer mecanismos que
garantem o controle dessas trabalhadoras por seus empregadores”. As mulheres ainda permaneciam
à mercê dos seus patrões, e sem garantia de direitos na realização do trabalho doméstico.
Com a instalação do regime republicano no Brasil, e a criação da primeira constituição
republicana em 1891, de princípios dos clássicos liberalismos individualistas. A constituição não
contemplava em seu texto o direito da mulher ao voto. Já na Europa, se instalava a Revolução
Industrial, e instaura-se o capitalismo, juntamente com a vinda do trabalho assalariado aliado a queda
dos trabalhos artesanais e a ascensão das primeiras máquinas (SILVA et al, 2017). Nesse período, as
mulheres já sofriam com as jornadas de trabalho, e os salários inferiores aos homens, sofriam diversas
formas de abuso sujeitando-se às diversas exigências para se manterem no mercado de trabalho.
Somente, após a primeira Guerra Mundial e o surgimento dos primeiros movimentos
feministas, em âmbito mundial, as mulheres adquiriram direitos como o direito ao voto, acesso a
educação. No entanto, o trabalho doméstico ainda é marcado pelo fator socioeconômico, delimitado
pela sua classe social e raça. “O trabalho doméstico, remunerado ou não remunerado, vai determinar
o lugar e o papel social da mulher na sociedade brasileira por um longo período do século XX”
(YOSHIKAI, p.25, 2009).
Assim, a história do trabalho doméstico está interligada a discussão sobre o gênero, pois o
trabalho doméstico determina o lugar da mulher na sociedade pela sua desvalorização frente ao
demais trabalhos, tendo caráter domesticador do gênero feminino. Por isso, da importância da
discussão de gênero nas questões ligadas ao trabalho doméstico.

A DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO, O FEMININO E O TRABALHO DOMÉSTICO


O trabalho doméstico é exercido pela mulher e perpassa os anos, séculos, atrelando o gênero
as questões dos afazeres domésticos de forma quase tão intrínseca ao “ser mulher”. Alguns autores
retomam a ideia desta domesticidade ligada desde os primeiros registros históricos sobre a figura
feminina.

A domesticidade é um componente associado à mulher e à sua história. É um componente


tão fortemente vinculado à figura feminina, por sua importância no espaço doméstico, que se
confunde e se funde num mesmo aspecto, ou seja, ao analisar a história das mulheres,
o espaço privado mostra-se como uma condição indispensável de análise (SANTANA;
DIMENSTAIN, ANDRADE, 2000, apud 2005,p. 95).

609
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para Andrade (2000), a domesticidade está tão atrelada a questão do gênero feminino, que não
se permite a possibilidade de dissociar o “ser mulher” do espaço doméstico. Fazendo-se necessário
compreendermos as questões relacionadas ao gênero feminino.
Simone de Beauvoir, no livro Segundo Sexo (1949, p. 09) refere-se sobre as questões ligadas
ao feminino, através da frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, trazendo-nos a ideia da
construção do feminino. Para a filósofa “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a
forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse
produto”. (BEAUVOIR, 1949, p. 09). Desse modo, compreendemos que o feminino é produto de
uma construção subjetiva, através das vivências e as trocas com o meio em que está inserida.
Experiências que são construídas a partir das trocas com o meio, que por vezes, são aprendizados que
produziram marcas em no seu eu subjetivo.
Em nossa sociedade ainda se fazem presentes construções, acerca do gênero feminino,
construções estas que são frutos de uma ideologia patriarcal e machista, construídas a partir da
opressão do gênero feminino. “Apreende-se que ser mulher não é apenas diferente de ser homem,
mas também que a construção do feminino e masculino é resultante de relações estabelecidas
socialmente e que implicam em desigualdades de direitos, inferioridade e opressão” (CORTES et. al,
p.290, 2011).
Quando nos referimos na construção do feminino, há uma linha tênue entre trabalho doméstico
e gênero, pois desde os primeiros registros históricos a figura feminina está relacionada ao exercício
do trabalho doméstico, fruto da opressão da mulher na família patriarcal. O trabalho doméstico não
está somente relacionado às vulnerabilidades socioeconômicas, inclusive, pelas próprias questões de
gênero que se iniciam na infância, através do brincar, e da relação com o outro, todos sustentados
pelo patriarcado. (PIEDADE; SILVA, 2015).

O patriarcado é um caso específico de relações de gênero, uma relação que, antes de ser
privada, é civil: ele dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem
restrições. O patriarcado configura um espaço hierárquico de relação que invade todos os
espaços da sociedade, pois tem base material corporifica-se e representa uma estrutura de
poder baseada tanto na ideologia como na violência (SAFFIOTI apud SILVA, 2004):

O patriarcado relaciona-se com a violência, pois a partir desta ideologia que se


reproduzem mecanismos de opressão e violência. Estes mecanismos produzem marcas no
610
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
feminino desta mulher, sendo tão presentes nos núcleos familiares de forma que vemos e é
reproduzido como algo natural.

O patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista.


Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para
efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração
diz respeito diretamente ao terreno econômico. (SAFFIOTI, 2004, p.54 apud SILVA, 2014,
p.130).

As diferenças de gênero são marcadas pelas desigualdades, ocasionadas através das


construções normativas acerca do gênero, e dos modelos ideológicos pré-estabelecidos pela
sociedade, estas formatações entrelaçadas as formas de dominação, como a opressão. Para a Saffioti
(1984, p.19), “opressão e exploração não são propriamente fenômenos distintos”, a opressão serve
como forma de veículo de exploração, é por meio dela que são utilizados mecanismos como os
preconceitos, trazendo a ideia da naturalização destes processos, como o de opressão a mulher. Nesse
sentido, é a opressão e a exploração que garantem a manutenção da reprodução do capitalismo.
O trabalho doméstico nunca foi reconhecido e legitimado na aparência, pois “os produtos do
trabalho doméstico são outro caso de valores de uso que não têm um valor de troca” (ALBARRACÍN,
1999, p.47), pois são destinados a família. No entanto, estão ligados diretamente as construções das
relações familiares patriarcais e de opressão. Não tem valor direto ao modo de produção capitalista,
mas, na sua essência, visa a manutenção das relações sociais de produção.

A opressão, mais visível nas relações de dominação-subordinação, serve à exploração na


medida em que os fenômenos naturais, irracionais, são elaborados socialmente de maneira a
poderem se apresentar como fatores de ordem racional que controlam a competição, entre os
seres humanos de modo a marginalizar grandes contingente de mulheres. (SAFFIOTI, p.18,
1984).

Saffioti (1984, p.18 ), portanto, afirma que a ideia da opressão está relacionada às relações
naturalizadas de dominação-subordinação, e complementa que “a opressão de gênero, torna mais
nítida a exploração social de gênero e classe, sendo à força de trabalho feminina a mais precarizada”.
Assim, a precarização da força de trabalho feminina se dá devido as relações de dominação-
subordinação que estão imbricadas nas relações de gênero e da construção social do feminino, que
envolvem a psique e a personalidade feminina.

611
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido
imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da
personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das
profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um
atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser
remunerado. (FEDERICI, 2019, p. 42).

O trabalho doméstico tem sido imposto desde a infância, no qual, se naturaliza nas atividades
domésticas como deveres e a afazeres do ser mulher. Esta naturalização se dá através dos elementos
que compõem o sistema capitalista e reforçado ideologicamente pelo patriarcado através da
manutenção do sistema, “[...] fazer que uma parte da produção necessária para a sociedade seja
realizada fora dos circuitos do mercado e recaia sobre as mulheres”(ALBARRACÍN, 1999, p.53).
Logo, recai sobre as mulheres de forma quase intrínseca do ser mulher, referindo-se a algo
quase inerente a natureza da mulher. Ou seja, “o trabalho doméstico é totalmente naturalizado e
sexualizado, uma vez que se torna um atributo feminino, todas nós, como mulheres, somos
caracterizadas por ele”(FEDERICI, 2019, p.46).

É importante reconhecer que, quando falamos em trabalho doméstico, não estamos tratando
de um trabalho como os outros, mas, sim, da manipulação mais disseminada e da violência
mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora.
(FEDERICI, 2019, p. 230).

Em suma, o modo de produção capitalista trata o trabalho doméstico de forma naturalizada,


de modo, que não o reconhece como trabalho. Pois, o trabalho doméstico além de naturalizado é
desvalorizado, pois a oprime e a violenta nessa relação de subordinação-dominação patriarcal. Torna-
se parte da construção social do feminino, pois aparece de forma velada, como atributo de sua psique e
de sua personalidade.
Relaciona-se com o trabalho doméstico infantil, pois ambos tem caráter domesticar a mulher
e a criança de modo que produz o adestramento, opressão esta que reflete o caráter violento do sistema
capitalista de dominação e opressão nas relações familiares.

TRABALHO DOMÉSTICO INFANTIL E A SUA BASE NORMATIVA NO BRASIL

Para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI, p.11, 2015)
o “trabalho infantil doméstico é definido pelo como toda prestação de serviços continuada,

612
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
remunerada ou não, realizada por pessoas com idade inferior a 18 anos, para terceiros ou para a sua
própria família”.
Segundo a pesquisa promovida no ano de 2012 a 2013 pelo Instituto Nacional de Prevenção
e Erradicação do Trabalho Infantil (INPETI) e Plan International Brasil apresentaram dados sobre
trabalho infantil e o trabalho doméstico infantil, a partir dos dados coletados pela Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De
acordo com a pesquisa, “as meninas são a maioria no trabalho infantil doméstico, 94,2%, inclusive
na vida adulta” (IBGE, 2012-2013). Além disso, “213,6 mil de crianças e adolescentes com idade
entre 5 e 17 anos ocupadas nos serviços domésticos, 81,2% ainda realizavam afazeres domésticos,
entre as meninas, 73,5% são negras”. (IBGE, 2012-2013). Quanto à cor/raça, o trabalho infantil
doméstico no Brasil é praticamente composto de negros, que em 2013 representava 73,4% das
crianças e adolescentes ocupados nessa atividade, somando 156.793 ante 56.820 de não negros.
(IBGE, 2012-2013)
O trabalho doméstico infantil se faz presente em nossa realidade, sendo majoritariamente, é
executado por meninas. Podemos equipar o trabalho infantil doméstico, com o trabalho doméstico,
eles exercem funções que se equiparam.

O trabalho infantil doméstico, da mesma forma que o trabalho doméstico em geral, é


uma atividade perpassada pela questão de gênero em que as pessoas do
sexo feminino preponderam, em seu desempenho, em relação às pessoas do sexo masculino
(ALBERTO et al.,2005; MENDES, 2004; MOREIRA & STENGEL, 2003; TAVARES,
2002 apud ALBERTO et al, p.58, 2009).

O trabalho doméstico infantil, assim como o trabalho doméstico, são marcados pelas questões
que envolvem o gênero feminino e a naturalização como trabalho atribuído exclusivamente a esse
gênero, exercidos em sua maioria por mulheres e meninas negras, fato este que é marcado desde o
período colonial, e no modo de produção capitalista conserva, assim, a exploração do trabalho
doméstico como uma forma de desvalorização das atividades desempenhadas pelas mulheres.
A naturalização do trabalho doméstico infantil esteve tão presente em nossa sociedade, fato
este que corrobora-se através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na primeira versão do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, artigo 248, havia brecha para a
regularização do trabalho doméstico infantil. Art. 248 “deixar de apresentar à autoridade

613
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
judiciária de seu domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de regularizar a guarda, adolescente
trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico, mesmo que autorizado pelos pais ou
responsável” (BRASIL, 1999)
Este artigo foi somente revogado em 2008 a partir do Decreto n°6481 de junho de 2008,
quando o Brasil considerou o trabalho doméstico infantil, como uma das piores formas de trabalho.
Para o Estatuto da criança e do adolescente (ECA) em seu texto define no Art.2° “Considera-
se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela
entre doze e dezoito anos de idade”. Além disso, o ECA prevê e regulamenta em seu Art. 60. sobre o
trabalho doméstico infantil e juvenil, no qual, trata da proibição do trabalho em menores de 14
anos.“É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de
aprendiz”.
O trabalho doméstico está caracterizado como umas das piores formas de trabalho, esta
classificação adotada por diversos países, a partir da convenção de número 182 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que aconteceu em Genebra em 1999. As meninas são as mais
afetadas por este trabalho, pois o trabalho doméstico possui a sua raíz no feminino, nas atividades
realizadas pelas mulheres.
Após a convenção Relativa à Interdição das Piores Formas de Trabalho das Crianças e à Ação
Imediata com Vista à sua Eliminação, o poder Legislativo aprova o Decreto Legislativo n 178, de 14 o

de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto n 3.597, de 12 de setembro de 2000.


o

Neste Decreto aprova a Lista de das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). “Art.
1 Fica aprovada a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (BRASIL, 2000)” e “Art. 2
o o
Fica
proibido o trabalho do menor de dezoito anos nas atividades descritas na Lista TIP, salvo nas
hipóteses previstas neste decreto”(BRASIL, 2000).
No entanto, mesmo com o avanço das legislações presentes, a ausência de políticas públicas
efetivas de combate ao trabalho doméstico. É perceptível que o trabalho doméstico abarca não apenas
a questão social e de gênero, mas também retrata uma dimensão ideológica do trabalho doméstico.

É comum a autores a concepção de que, no Brasil, o trabalho infantil contempla uma


dimensão ideológica: a inserção de crianças e adolescentes das classes populares no trabalho.
Essa é uma forma de disciplinamento, de adestramento, da qual fazem uso as classes
dominantes que, sob formas variadas, as conduzem ao trabalho. São formas sutis e
dispersas de relações de poder,como, por exemplo, incutir em meninos e meninas, desde

614
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
cedo, a domesticação do corpo e da mente para o trabalho, além da introjeção do trabalho
como elemento formador ou, ainda, como um antídoto para a marginalidade (ALBERTO et.
al, p. 60, 2009)

A sua invisibilidade ainda se faz presente pois o trabalho se faz necessário como uma forma
de adestramento das classes populares, pois ainda se tem a ideia que é a criança deva trabalhar, do
que estar na marginalidade, retomando as raízes históricas do trabalho doméstico infantil. “O
trabalho infantil doméstico tem um caráter de invisibilidade que o descaracteriza como um trabalho,
uma vez que o naturaliza ao universo do espaço privado do lar, escondendo suas implicações”
(MENDES, 2004; RIZZINI & FONSE, 2002; TAVARES, 2002, apud ALBERTO et al, p.59, 2009).
Este adestramento só reflete as mazelas históricas que envolvem o trabalho doméstico infantil,
como a opressão, adestramento, e a domesticidade, principalmente de mulheres e crianças negras.O
seu caráter de invisibilidade decorre tanto pelas características que constituem o trabalho doméstico
de tal forma, como pelo trabalho propriamente dito, que é realizado no espaço privado da famílias, e
que por vezes, são nomeados como afazeres domésticos, como uma forma de aprendizagem e
adestramento das classes populares.
No entanto, estas concepções ideológicas vão de encontro no que prevê o Estatuto da Criança
e Adolescente (ECA), e o direito a proteção integral à criança e ao adolescente.

“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à


pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade” (BRASIL, 1990, s/p).

O trabalho doméstico infantil fere o direito a proteção integral criança e adolescente, como
estão previstos na ECA, não permitindo um desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social
de forma saudável. Devido o caráter de invisibilidade e naturalização do trabalho doméstico, dificulta-
se a criação, execução das leis que amparem com maior efetividade a criança e adolescente que
vivencia uma rotina intensa de trabalhos domésticos. Essa dificuldade se dá também, pelo próprio
local que ocorre o trabalho doméstico, dentro do lar há mais dificuldades de se identificar se ocorre
ou não uma violação de direitos.

615
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho doméstico remonta desde o período colonial, definido pela a sua cor, sexo , com a
marca da exclusão social. Na história do Brasil, o trabalho doméstico vem sendo realizado desde o
período colonial pela mulher negra, escrava. Estando atrelado as questões econômicas, classe, cor e
de gênero, pois quem exercia estas atividades eram as mulheres negras escravizadas, marcado pela
sua inferioridade, subjugado pela sociedade.
Já contemporaneidade, não se difere muito do período colonial, pois as marcas históricas
permanecem ao longo dos séculos, pois este trabalho se mantém com formatos bem similares ao
passado histórico, ainda realizado pelas mulheres, que majoritariamente negras e pobres.
Desse modo, o artigo buscou levantar questões relativas ao gênero feminino e a forma/modo
como alguns padrões são reproduzidos em nossa sociedade, como a ideologia patriarcal de opressão
às mulheres, e forma como isso influencia na construção do feminino. A opressão apresenta-se como
sutil violência pois o trabalho doméstico é naturalizado, a partir do adestramento da mulher,
principalmente quando se trata de mulheres e crianças de classes populares.
Ainda sim, a mulher durante a infância vivencia todo o processo da construção da sua
subjetividade, quando este processo se dá a partir de meios que violentos, opressivos, poderá
desenvolver questões relacionadas a autoestima, empoderamento, as relações com as outras pessoas
e a sociedade. A opressão do gênero feminino se revela pela ideologia patriarcal e o relações de poder
e opressão acerca das diferenças entre homens e mulheres.
Como próximo passo da pesquisa, será realizado a análise de teses e dissertações através da
plataforma Sucupira da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).No
processo de levantamento de alguns dados iniciais, percebeu-se a ínfima quantidade de produções
que deem conta sobre o trabalho doméstico infantil e a construção do feminino. Diante da
impossibilidade de não tratarmos sobre trabalho doméstico e não nos referirmos ao gênero feminino,
e a violência oculta atrás da naturalização das formas de domesticidade que são oriundas desde a
infância pelas meninas, e refletem na construção da subjetiva da mulher.
De modo que, para o modo de produção capitalista o trabalho doméstico não produz mais-
valia, mas sim, produz mecanismos de exploração e opressão através do seu modelo econômico,
político e ideológico. Assim, a partir do processo de estruturação da revisão bibliográfica, e a
necessidade do entendimento destes aspectos para adentramos no campo da pesquisa

616
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
propriamente dita, servindo como base para o desenvolvimento das questões que serão pertinentes e
necessárias na coleta dos dados da pesquisa.

REFERÊNCIAS
ALBERTO, Maria de Fátima Pereira et al.Trabalho infantil doméstico: perfil bio-sócio-econômico e
configuração da atividade no município de João Pessoa, PB. Cad. psicol. soc. trab. [online]. 2009,
vol.12, n.1, pp. 57-73.

ALBARRACIN, J. O trabalho doméstico e a lei do valor, In FARIA, N.; NOBRE, M. O Trabalho


das Mulheres, São Paulo: SOF, 1999.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1949.

BRASIL. Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, DF, Presidência da República,1990.

BRASIL. Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000. Promulga a convenção 182 e a recomendação


190 da Organização Internacional do Trabalho sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil
e a ação imediata para a sua eliminação. Diário Oficial, Brasília, DF, Presidência da República,
[2000].Disponível:https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=3597&ano=2000
&ato=653ETWE1kMNpWT5daem. Acesso em:19 de set. 2020.

CUSTÓDIO VIANA, André. Trabalho infantil: a negação do ser criança e adolescente no Brasil.
Florianópolis: OAB/SC, 2007.

CORTES FERREIRA, Laura.VIEIRA BECKER Letícia. LANDERDAHL CELESTE Maria.


PADOIN MELLO Maris Stela. Construção do feminino e do masculino: compreensão de uma equipe
de enfermagem. Revista Cogitare Enfemagem.v.16, n.2, p. 289-95. 2011.

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Avaliação a partir


dos microdados da Pnad/IBGE. Brasília: IBGE, 2012-2013.

YOSHIKAI, Livia Midori Okino. Análise psicossocial da trabalhadora doméstica através das
representações socais do trabalho.2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social)-Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.Acesso em: 19 d set. 2020
RAMOS PESTANA, Fábio. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas
do século XVI. In: PRIORE, Mary Del (Org). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
1999.

SAFFIOTI, Heleieth. Mulher brasileira: opressão e exploração. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984

SANTANA, Munich; DIMENSTEIN, Magda. Trabalho doméstico de adolescentes e reprodução


das desiguais relações de gênero. Psico-USF (Impr.), Itatiba , v. 10, n. 1, p. 93-102. 2005 .

617
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SILVA, Deide F D.LORETO, Maria D D S. BIFANO, Amélia C S.Ensaio da História do Trabalho
Doméstico no Brasil: um trabalho invisível. Revista de Direito da Unimep, v. 17, n. 32, p.419. 2017.

SILVA FÁTIMA, Deide. LORETO DE SARAIVA D, Maria. BIFANO SOBRINHO C,


Amélia.Ensaio da história do trabalho doméstico no Brasil.: um trabalho invisível. Revista de Direito
Unimep. v.17, n32.p.409-438.2017

SILVA. PEREIRA, Eliane. Gênero e Violência. Revista Serviço Social e Saúde,v.13, n.1 (17) p.127-
140.2014

618
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O PAPEL DOS HOMENS NA LUTA ANTISSEXISTA

Daiane Paim Köhler254


Monique Soares Vieira255
Simone Barros de Oliveira256

Resumo: O presente artigo tem a intencionalidade de refletir sobre o lugar e o papel dos homens no movimento para por
fim à opressão sexista. Fruto de revisão bibliográfica, toma-se como principal fonte de análise as produções teóricas
feministas de bell hooks, Raewyn Connel e Nuria Varela. A retórica separista que afastava os homens da luta contra a
opressão patriarcal, não encontra mais espaço em algumas vertentes do movimento feminista. Assim como as mulheres,
os homens também sofrem com os padrões impostos pelo patriarcado moderno e pelo sexismo, ainda que desfrutem de
privilégios. Nesse sentido, a educação sexista, juntamente com o patriarcado, determina que a construção das relações
entre homens e mulheres estejam fundamentadas na dominação, opressão e em privilégios que geram desigualdades e
diversos abusos, até mesmo, justificáveis dentro dessa lógica, contra as mulheres. O fim da opressão sexista exige um
movimento articulado e integrado entre homens, mulheres e demais pessoas que se identificam para além desse binarismo
identitário, em que a educação antissexista assume papel central para ruptura da internalização passiva da ideologia sexista
e reprodução dos sistemas de dominação de mulheres e demais indivíduos que não correspondam à ideia de
heteronormatividade.

Palavras-chave: Luta Antissexista; Homens; Masculinidade Patriarcal; Feminismo.

INTRODUÇÃO
Neste artigo, objetiva-se contribuir com reflexões para o fortalecimento da participação dos
homens na luta antissexista, que visa questionar as práticas sexistas na socialização de homens e
mulheres na sociedade contemporânea.
A educação sexista ensina tanto a homens quanto a mulheres que os primeiros são os sujeitos
natos de um sistema de privilégios que lhes autoriza a usar o poder e controle sobre mulheres. A
lógica da dominação impõe papéis sexuais que servem como base para reprodução das opressões no
ambiente societal e familiar.
Nesse pressuposto, a educação feminista é considerada como uma importante catalizadora no
processo de conscientização para a erradicação das estruturas hierárquicas que são a base das relações
humanas. A cultura sexista, juntamente com o patriarcado, determina a construção de relações
baseadas em hierarquias rigidamente fundamentadas na dominação do homem sobre a mulher.

254
Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
daipkohler@gmail.com
255
Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
moniquevieira@unipampa.edu.br
256
Pós-doutora em Serviço Social. Professora Associada da Universidade Federal do Pampa (campus São Borja).
E-mail: simoneoliveira@unipampa.edu.br
619
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A educação antissexista é essencial para a destruição da normatividade heterossexista,
entendida por Lorde (2020, p.14) como a “crença na superioridade inerente a um padrão de relação
afetiva, o que implicaria seu direito à dominância”. O enfrentamento a essa normatividade que é do
homem, branco e rico para autora é fulcral para o reconhecimento e valorização genuína da
diversidade humana.
Entende-se de suma importância que o movimento feminista tenha como pauta o
fortalecimento da participação dos homens na luta antissexista, tornando clara que a oposição é contra
a opressão imposta pelo sexismo e não contra os homens. Isso significa que a luta contra o patriarcado
deve ter os homens como sujeitos ativos e de resistência, abandonando-se por completo a ideologia
separatista que enxega os homens como inimigos e não como companheiros de luta.
Para bell hooks 257(2019, p. 130)

A ideologia separista nos encoraja a acreditar que as mulheres podem fazer a revolução
feminista sozinhas – mas não podemos. Uma vez que os homens são os principais
responsáveis pela preservação do sexismo e da opressão sexista, sua erradicação só será
possível se os homens assumirem a tarefa de transformar a consciência masculina e a
consciência da sociedade como um todo.

Em uma égide de dominação, os sujeitos homens, são ensinados e incentivados a serem


dependentes dos privilégios, ainda que relativos, conforme sua localização na hierarquia social.
Muitos homens, segundo hooks (2019b), sentem suas vidas ameaçadas em qualquer sinal de que seus
privilégios possam ser retirados.
Entender a importância do lugar dos homens na luta antissexista é primordial para a
construção de novas possibilidades de socialização. Conforme hooks (2019b) é preciso que os
homens parem de oprimir, subjugar e exterminar os corpos, mentes e sexualidades que não se
encaixam na norma do cisheteropatriarcado. Por isso, a educação antissexista se faz urgente, a fim de
educar para a desconstrução de preconceitos, de que não há papéis de gênero rígidos ou mesmo
naturais, e que meninos e meninas são livres para realizarem suas escolhas e brincadeiras sem a
preocupação do que lhes cabe ou não e de que homens podem se relacionar sem manter para além do
controle e subjugação de outros indivíduos.

257
As referências ao pseudônimo bell hooks, da escritora Gloria Jean Watkins, são sempre feitas em letra minúscula
pela própria autora. De acordo com ela, o propósito dessa grafia é diminuir sua importância enquanto autora perante
o conteúdo que escreve.
620
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A partir de revisão da literatura nas produções teóricas feministas de bell hooks, Raewyn
Connel e Nuria Varela, pode-se reunir elementos reflexivos acerca do tema, que concederam um
arcabouço crítico para se pensar em caminhos para se construir uma educação antissexista que
envolva todas as pessoas, independentemente de suas identidades de gênero, sua classe, raça ou
geração. Essa proposição visa uma sociedade mais justa, equânime e verdadeiramente democrática.

A CULTURA SEXISTA E A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE PATRIARCAL


O senso comum nos aponta a diferença natural e biológica entre homens e mulheres,
definindo-os como opostos complementares. Tais diferenças versariam sobre formas de pensar,
capacidades, emoções e até mesmo a maneira de se comunicar e aprender. Contudo, a ideologia que
defende a diferença natural “causa danos à educação das crianças, aos direitos trabalhistas das
mulheres e a todas as relações emocionais dos adultos” (CONNELL, 2015, p. 86).
Parte das teóricas feministas dos anos 1970, defendia a dicotomia entre “sexo e gênero”, sendo
o primeiro relativo ao fator biológico e o segundo, um produto social. Contudo, essa perspectiva, ao
designar o gênero como uma diferença construída culturalmente, não dava conta da supervalorização
do masculino. Estudos e a própria cultura europeia do século XIX, justificavam a exclusão das
mulheres das universidades e das arenas políticas por defenderem que suas capacidades intelectuais
e decisórias eram inferiores às dos homens. Ideias amplamente refutadas por estudos posteriores nos
campos da psicologia, sociologia e ciência política, demonstrando que as capacidades mentais são
praticamente iguais entre homens e mulheres e não há diferenças significativas no campo do intelecto
de acordo com o gênero (CONNELL, 2015, p. 102).
Segundo a socióloga Heleieth Saffioti (2015), para além de uma simples categoria de análise,
gênero se constitui como uma categoria histórica, e como tal pode ser engendrada em diversas
instâncias. O maior consenso no meio teórico ainda é que “o gênero é a construção social do
masculino e do feminino” (ibidem, p. 47). Contudo, a autora chama a atenção que o conceito de
gênero não traz consigo a afirmação de desigualdades entre homens e mulheres. Ou seja, o conceito
de gênero é utilizado como uma categoria geral e o conceito de patriarcado como categoria específica
que apresenta, por um determinado período, a supremacia masculina. “Em geral, pensa-se ter havido
primazia masculina no passado remoto, o que significa (...) que as desigualdades atuais entre
homens e mulheres são resquícios de um patriarcado não mais existente ou em seus últimos

621
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estertores” (ibdem, p. 48). Enquanto sistema social, o patriarcado sofreu transformações e não existe
mais em sua forma originária, porém é possível observar seus tratados, inclusive na comparação de
Saffioti (2015, p.48): “Se na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e morte sobre sua esposa
e seus filhos, hoje tal poder não mais existe, no plano de jure. Entretanto, homens continuam matando
suas parceiras (...)”.
Para Carole Pateman (1993), o patriarcado moderno origina-se juntamente com as instituições
contratuais do século XVII. O patriarcado, moderniza-se e atualiza-se sob a estrutura do capitalismo.
O direito paterno, pater famílias, é apenas uma das dimensões que compõem o patriarcado moderno.
Se definirmos patriarcado como sinônimo de direito paterno, estaríamos considerando que é um
fenômeno presente apenas em sociedades antigas. Antes de ser pai, o homem é marido, portanto, o
patriarcado diz respeito ao poder dos homens sobre as mulheres e esse poder atravessa a história da
humanidade. Nesse sentido, Pateman (1993, p. 44) infere que:

[...] presta-se pouca atenção ao sentido político da paternidade patriarcal. A interpretação


literal está relacionada com um outro pressuposto comum por ela estimulado: que as relações
patriarcais são familiares. A concepção genérica de patriarcado também está ligada à
percepção bastante comum de que o patriarcado é uma característica universal da sociedade
humana. Nos três períodos de debate sobre o patriarcado muitos dos argumentos em conflito
levantaram diferentes histórias hipotéticas sobre sua origem social e política. A gênese da
família (patriarcal) é frequentemente entendida como sinônimo da origem da vida social
propriamente dita, e tanto a origem do patriarcado quanto a da sociedade são tratadas como
sendo o mesmo processo. A história do contrato original que cria a sociedade civil também
é demarcada pelas controvérsias a respeito das origens do liberalismo e do capitalismo. No
século XX, as histórias hipotéticas sobre origens políticas moldaram parte das discussões
sobre as relações entre capitalismo e patriarcado, embora, curiosamente, quase nunca se
mencionou a história do contrato original nas discussões socialistas-feministas em
andamento. A interpretação familial e paternal do patriarcado também é influente aqui. Se o
patriarcado é universal, ele deve preceder o capitalismo; o patriarcado pode aparecer,
portanto, como uma relíquia medieval ou um vestígio do antigo mundo do status que institui
uma esfera familial, paternal, natural, privada, distinta do mundo convencional, civil e
público do contrato e do capitalismo.

O patriarcado moderno, para hooks (2020), reestrutura-se com a finalidade de atender as


necessidades do capitalismo. Em uma sociedade capitalista, a presença de aprendizados centrados no
patriarcado, corroboram para a reprodução de relações de dominação, opressão e expropriação de
corpos e autonomia de mulheres.
Destaca-se ainda que, por muito tempo, a violência contra a mulher foi banalizada e
legitimada para a defesa da honra do homem. “Graças a muitos protestos feministas, tal tese, sem

622
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fundamento jurídico ou de qualquer outra espécie, deixou de ser utilizada. O percentual de
condenações, contudo, situa-se aquém do desejável” (SAFFIOTI, 2015, p. 48).
Porém, não raro, nota-se um baixo percentual de condenações e também de cumprimento das
penas aplicadas. De acordo com Marlene Neves Strey (2001), a maioria das (os) autoras (es) que
pesquisam sobre gênero e relações de gênero, apresentam a família e a economia como as principais
esferas de criação e manutenção da diferenciação de gênero. “Existem teorias que ressaltam, que
durante a infância, a maioria das pessoas incorpora seu gênero de uma maneira que pode ser definida
como socialmente normativa” (STREY, 2001, p. 52-53). A divisão sexual do trabalho também
reverbera essa concepção, ao designar maior responsabilidade às mulheres a criação dos filhos e
cuidados em geral de outros familiares, além dos afazeres domésticos, independentemente de ter ou
não outro trabalho. Aos homens, destinam-se atividades econômicas fora do âmbito familiar,
incluindo, assim, maior espaço na força econômica, política e social. Tais divisões históricas ainda
geram, mesmo com tantos avanços culturais, profundas desigualdades de poder e de oportunidades
entre os gêneros. “O grau de estratificação de gênero em uma sociedade, refere-se à extensão em que
as mulheres estão sistematicamente em desvantagem no acesso a esses valores em comparação aos
homens de sua própria sociedade (...)”, (ibidem, p. 53).

Assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como naturais, seu infinito
esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior da família. As tarefas
domésticas são, afinal – notamos a cama desfeita, não o chão esfregado e lustrado. Invisíveis,
repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas – esses são os adjetivos que melhor
capturam a natureza das tarefas domésticas. (DAVIS, 2016, p. 225).

Segundo Connell (2015, p. 143), o entendimento de que o âmbito familiar é uma das primeiras
instituições de opressão das mulheres é essencialmente uma visão das feministas brancas: “no
contexto de um racismo profundamente enraizado, a família pode ser um bem crucial para mulheres
negras e mulheres em comunidades recentes de imigrantes”.
O argumento de que masculinidade e feminilidade refletem substancialmente relações de
poder datam do ano de 1921, da reformista da educação, Mathilde Vaerting, uma das primeiras
mulheres indicadas à docência universitária alemã. Vaerting criticava o caráter fixo de masculino e
feminino, desenvolvendo assim, a primeira teoria social estendida do gênero, relacionando
padrões psicológicos e estrutura social. “Ela diferenciava o direito, a divisão do trabalho como

623
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ideologia e esferas da dominação de gênero e até forneceu uma incrível previsão da liberação dos
homens como sequência do feminismo” (CONNELL, 2015, p. 129).
As relações de gênero são dinâmicas, ou seja, estão sempre se alterando e sendo realizadas
cotidianamente. Mas há regimes de gênero que seguem padrões maiores e que permanecem ao longo
do tempo. Tais padrões são reproduzidos pelas cobranças diretas ou simbólicas nos termos de suas
“categorias sexuais”, consideradas como atitudes do ser homem ou do ser mulher. Como esses
padrões são duradouros e estão altamente arraigados nas mais variadas culturas e sociedades através
da história, a teoria social denomina-os de “estrutura”. Assim, os arranjos de gênero são tidos como
estrutura social. “Por exemplo, se práticas religiosas, políticas e de comunicação colocam os homens
em posição de autoridade sobre as mulheres, podemos falar em uma estrutura patriarcal das relações
de gênero” (CONNELL, 2015, p. 156).
Neste ponto, é preciso enfatizar que as estruturas de gênero estão correlacionadas a outras
estruturas sociais e, desta forma, também interligadas a outros padrões culturais de opressão. Essa
perspectiva é denominada de “interseccionalidade” pela advogada americana Kimberlé Crenshaw, ao
demonstrar as experiências de mulheres negras no mercado de trabalho, no final da década de 1980,
descreve as formas com que gênero e raça interagem.
Para quem considera a ordem social em vigência natural ou ainda resultado de uma meritocracia -
mesmo com pontos de partidas e condições altamente desiguais - pode parecer estranho falar da
existência de um patriarcado moderno. Ou ainda, diz-se que os movimentos feministas estão
superados, uma vez que as mulheres alcançaram espaços educacionais, políticos e sociais. Os avanços
nesses campos são inegáveis, porém a dominação masculina ainda é evidente e “permanecem em
ação mecanismos que produzem desigualdade que sempre operam para a desvantagem das mulheres”
(MIGUEL, 2014, p. 18).
O sexismo institucionalizado opera por meio do machismo que, por sua vez, constitui-se como
uma extensa falta de diálogo entre seres singulares, sustentada pelo autoritarismo e ideia de
inferioridade daqueles que não são marcados como homens. Os movimentos feministas alertam
justamente para o status quo desse pretenso discurso de naturalidade e verdade. “Essa verdade
patriarcal é poder de morte, violência simbólica e física contra as mulheres que, caso se contentem
em ser bem femininas e bem dóceis, podem até se salvar do espancamento e da morte” (TIBURI,
2019, p. 51).

624
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dentro desse contexto violento, a misoginia, enquanto discurso de ódio que visa construir
uma imagem negativa das mulheres, associando-as “à loucura, à histeria, à natureza - como se
houvesse uma predisposição que conferisse a elas uma inconfiabilidade natural, originária”, nutrida
por todo um sistema sócio-cultural com o intuito de continuar mantendo os “privilégios de gênero,
de sexualidade, de raça, de classe, de idade, de plasticidade” (ibidem, p. 39-40).
Mesmo com tanta informação e discussões públicas fundamentadas no senso comum e em
posturas sexistas, paira ainda uma percepção distorcida associando os feminismos a mulheres bravas
que querem ser iguais aos homens ou ainda que são anti-homens. É preciso deixar claro que os
feminismos têm a ver com direitos. “Feminismo é um movimento para acabar com
sexismo, exploração sexista e opressão” (hooks, 2019, p. 19-20). Ou seja, o problema é o sexismo e
não os homens.
hooks (2019) ressalta que tanto os homens quanto as mulheres são socializados e educados,
desde o nascimento, de forma naturalizada, a aceitar pensamentos e ações sexistas. Assim,
participamos, de certa forma inconscientes para a disseminação e perpetuação do sexismo. Essa
tomada de consciência sobre os jogos de poder envolvidos e arraigados nas relações sociais é
fundamental para se conquistar uma sociedade mais equânime, justamente a pretensão do feminismo.
Enquanto grupo, os homens são quem mais se beneficiam do sistema vigente, já que o
patriarcado moderno se utiliza de uma modelagem social naturalizada para justificar e manter o
controle, a exploração e a opressão sobre as mulheres. Contudo, manter os privilégios masculinos
implica também “ser homem”, segundo os moldes patriarcais e isso possui um alto preço. Ser refém
da representação dominante imputa aos homens a valorização da força, da violência e fixam as
emoções, intrínsecas aos seres humanos, como fraquezas.
Não raras vezes, para manter esse ideal de masculinidade, os homens assumem riscos
desnecessários no intuito de demonstrar seus atributos varonis (VARELA, 2005). Para Tiburi (2019,
p. 41), “o feminismo tende a fazer bem aos homens que desejam uma vida mais ampla e mais aberta,
uma visão de mundo expandida, menos tacanha, diferente da que foi legada a ele por seus ancestrais
comprometidos com a violência e poder de destruição da vida”.

NOVAS MASCULINIDADES: EQUIDADE DE GÊNERO TAMBÉM É UM DEBATE DE


HOMENS

625
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A masculinidade tradicional é alicerçada em crenças, valores e condutas - incluindo a
violência - para manter o poder e a autoridade coercitiva sobre os indivíduos considerados mais
vulneráveis. Segundo Varela (2015, p. 322), os mitos patriarcais operam como ideais e regem os
mandatos sociais sobre ser “um homem de verdade”: “es decir, demostrar constantemente que se es
el más viril, aparentar que no se es débil, no fallar ‘en las cosas importantes de la vida’, exhibir
indiferencia ante el dolor y el riesgo, actuar bajo la meta de la competencia”. Os padrões de
masculinidade são reafirmados na educação dos meninos, sendo estimulados para sempre ganhar:
“para ganar hay que aprender a ocultar las propias carencias y evitar la confianza, algo que a los
varones se les inculca como peligroso” (ibidem, p. 329).
Chimamanda Ngozi Adiche (2015, p. 29) afirma que a forma com que os meninos são criados
é nociva, por reprimir a humanidade deles. “Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser
fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são - porque eles têm que ser,
como se diz na Nigéria, homens duros”.

Mas o pior é que, quando os pressionamos a agir como durões, nós os deixamos com o ego
muito frágil. Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego. E
criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do
ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, dizendo-
lhes: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão
você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em
público. Senão você estará emasculando o homem”. Por que, então, não questionar essa
premissa? Por que o sucesso da mulher ameaça o homem? (ADICHE, 2015, p.30).

Essa construção global da masculinidade, atinge principalmente as mulheres, mas os homens


também sofrem com a imposição dos padrões sexistas. Na busca para se autoafirmar a todo instante,
os homens são estimulados à violência, à restrição emocional, à homofobia e à obsessão pelo controle
através do dinheiro, sexo e poder. Combater a chamada masculinidade tóxica é benéfico para a
sociedade de um modo geral, independentemente da orientação sexual. Isso não significa combater
os homens, pelo contrário, é conferir liberdade a eles.
No entanto, ainda que os encargos emocionais e as amputações de suas personalidades os
restrinjam, é muito improvável os homens se despojarem dos privilégios historicamente outorgados
que sedimentam a construção de sua autoestima, do gozo das prerrogativas e direitos vinculados
apenas pelo fato de terem nascido homens (VARELA, 2005; hooks, 2019).

626
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, a questão central é o papel social assumido pelos homens, sustentado na conjectura da
superioridade masculina e a sua visão perante à equidade de gênero como uma ameaça a sua própria
identidade e aos seus hábitos mais profundos, conforme destaca Varela (2005). Tiburi (2019, p. 48)
argumenta que, para manter a autoridade e a opressão sobre as mulheres, “os homens produziram
discursos, apagaram os textos das mulheres e se tornaram os donos do saber e das leis, inclusive sobre
as mulheres”. E foram necessárias muitas lutas para que as mulheres adquirissem o direito de
pesquisa, memória e a reconstituição de sua própria trajetória dentro da história da humanidade.
Maria Marcelita Pereira Alves (2008) defende que, ao conquistarem sua independência e se
tornarem responsáveis por seus deveres e obrigações civis que outrora eram isentas, as mulheres
reformularam, em diferentes graus, suas identidades. Por outro lado, ao serem desobrigados de
responder civil e moralmente pelas mulheres, os homens também malograram o direito de posse
delas, desconfigurando assim, sua identidade tradicional, modificando as bases que asseguravam a
dominação. “No rastro do mito primordial, as relações homem/mulher realizam o paradoxo de amor
e ódio. Ela é desejada enquanto fêmea, mas hostilizada enquanto rival no comando dos destinos
humanos” (ALVES, 2008, p. 232).
Para hooks (2019), o movimento feminista falhou de certa maneira ao não incluir um grande número
de homens e mulheres, ao não oferecer de forma eficaz o que os homens podem fazer para
desconstruir o sexismo, além de não ter proporcionado uma reflexão acerca de uma masculinidade
alternativa. “Nenhum corpus significativo de literatura feminista surgiu para dialogar com garotos,
para dizer a eles como construir uma identidade que não seja fundamentada no sexismo” (hooks,
2019, p. 107).
A feminista negra refere ainda que:

Apesar do patriarcado e do machismo, há entre os homens potencial para uma educação para
a consciência crítica, há a possibilidade de radicalização e transformação. Enquanto, a
maioria das mulheres escolher desenvolver e manter relacionamentos íntimos com homens,
a transformação desses encontros deve ser necessariamente uma preocupação essencial na
luta feminista, para que não se torne um lugar de dominação masculina e opressão das
mulheres. (hooks, 2019 c, p. 266).

Para alterar as relações de poder atuais, a autora sugere que os “homens devem criticar e
desafiar a dominação masculina sobre o planeta, sobre homens menos poderosos e sobre

627
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres e crianças”, além de terem uma visão clara sobre “masculinidade feminista” (hooks, 2019,
107).
Como sujeitos políticos, os homens possuem um importante papel na construção da equidade
de gênero. E essa participação, inicia com a reflexão crítica dos homens sobre o seu próprio agir no
mundo, seguido de interações e questionamentos a outros homens. Repensar as masculinidades e
promover novas interações sociais são processos fundamentais para atingirmos uma sociedade mais
equânime, justa e verdadeiramente democrática.
A reflexão para além da construção binária de gêneros também perpassa a desconstrução de
discursos que ratificam masculinidades tóxicas e de manutenção do sistema sexista de opressão. Os
privilégios nem sempre são de fácil reconhecimento a quem se beneficia deles, portanto, identificá-
los é um desafio e serem discutidos é uma necessidade. Portanto, o enfrentamento ao machismo em
seu cotidiano, tanto em si quanto em seus iguais, proporciona novas arenas e ambientes saudáveis de
resistência e enfrentamento ao sexismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação perpassa pela necessidade da desconstrução individual de preconceitos e
estereótipos, culminando em novas formas de reflexão e socialização. A cultura é dinâmica e fluida,
construída a partir das relações humanas. Ora, se as pessoas fazem a cultura e não o contrário, é
preciso refletir criticamente acerca da forma que estamos agindo e interagindo conosco e com os
demais.
No caso das mulheres, observar de que forma o machismo nos oprime, inclusive na interação
mulher-mulher, como a rivalidade feminina sustentada pelo sistema, ou ainda pelos padrões
construídos pelo patriarcado e retroalimentado pelo capitalismo como forma de vender uma
infinidade de produtos e ideias estabelecidas como padrões de beleza, realização e sucesso. Isso pode
ser visto nos detalhes cotidianos, inclusive. A grande maioria das bonecas até então destinadas apenas
às meninas, apresentam roupas e maquiagens sensualizadas, bem como o modelo corporal esguio, de
pele branca, olhos claros e cabelos loiros. A ideia de liberdade defendida pelo feminismo foi
absorvida e distorcida pelo patriarcado moderno ao vender uma imagem de “mulher super poderosa”
que dá conta da vida profissional, doméstica, maternal e ainda cuida de sua aparência e atende
às demandas masculinas. Essa projeção é uma forma de naturalizar e romantizar a opressão e

628
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exploração da mulher na reprodução social, além de causar consequências na subjetividade das
mulheres, por gerarem frustração, discórdia e desentendimentos em muitas relações, afetivas ou não.
No que concerne às relações masculinas, mesmo com todos os privilégios arraigados apenas
por ter nascido homem, a balança identitária também possui o seu peso negativo. Meninos
estimulados ao sucesso e ao poder, mesmo que para isso se utilizem da violência, simbólica ou não,
são estigmados a abafar sua sensibilidade e seus anseios diversos ao longo da vida. Isso é observado
na maior parte dos espaços de socialização dos homens, deficitários de problematizações masculinas
e ricos campos de perpetuação de modelos de masculinidade patriarcal. Percebe-se, a falta de diálogo
autêntico entre seus iguais e não raras vezes, a incapacidade de saber lidar dos homens com suas
próprias demandas emocionais e com a perda do seu “poder” sobre os seres vistos como inferiores.
Até mesmo a homofobia é um produto dessa construção, pois a lógica de dominação masculina impõe
que é preciso repelir, ou até mesmo exterminar, aqueles que não seguem a normativa heterossexual
que determina a superioridade do homem hétero.
Para modificar essas dinâmicas, a empatia genuína requer o reconhecimento dos privilégios
operantes em nossa cultura – e essa compreensão vale tanto para gênero quanto para classe, etnia e
qualquer outro marcador social e/ou econômico.
Pela discussão ao longo deste trabalho, entende-se que o papel do homem na luta antissexista
não pode ser a abstenção. Reconhecer seus privilégios, seus preconceitos e atitudes machistas e, por
conseguinte, fazer o mesmo com seus pares é uma forma de desconstruir comportamentos que
reafirmam masculinidades tóxicas e de manutenção do sistema sexista de opressão. Esse
enfrentamento ao machismo em seu cotidiano fortalece a luta por uma sociedade mais equilibrada e
ratifica os processos realmente democráticos.
Mais do que uma teoria, o feminismo se constitui em uma prática. Assim, enquanto estrutura
interpretativa dentro da acadêmia, o feminismo proporciona a reflexão crítica do que é imposto em
termos sociais. Mas para além, no campo da ação, as lutas feministas se forjam como maneira de agir
e de propiciar diálogos com o intuito de resolver conflitos em diferentes níveis. Nesse sentido, a
interseccionalidade, uma das vertentes do movimento feminista, é receptiva ao fomento de estratégias
de enfrentamento ao sexismo ao adentrar a vida cotidiana de homens, mulheres e demais identidades
de gênero, por meio da educação, da política e das relações de afeto, considerando que os
sentimentos e afetividades são construções sociais.

629
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Se outrora, o feminismo não abarcou discussões que pudessem alcançar o maior número de
pessoas e possibilitar o engajamento de homens, mulheres, comunidade LGBTQIA+, crianças, idosos
e a sociedade como um todo, cabe para nossa geração defender esse ideal e instigar tal reflexão que
nada mais é do que vislumbrar a justiça e a liberdade para todas as pessoas.
Deste modo, este artigo se constitui como uma maneira de elencar a reflexão de autoras e
autores que consideram que a educação antissexista possui um papel central na ruptura da
internalização passiva da ideologia sexista e da reprodução dos sistemas de dominação de mulheres
e demais indivíduos que não correspondam à ideia de heteronormatividade. Como as relações sociais
são complexas e o tema não se esgota nesta discussão, percebe-se oportunidades e caminhos
acadêmicos a percorrer, através da reflexão crítica, em trabalhos futuros.

REFERÊNCIAS

ADICHE, Chimamanda Ngozi,. Sejamos todos feministas. Trad. Christina Baum. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.

ALVES, Maria Marcelita Pereira. Vencer é preciso! Considerações sobre o universo masculino. In:
GHILARDI-LUCENA, Maria Inês; OLIVEIRA, Francisco de (orgs). Representações do
masculino: mídia, literatura e sociedade. Campinas, SP: Editora Alínea, 2008.

hooks, bell Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva,
2019b.

hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia Bocaiuva
Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019c.

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. 4ª
ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

RAEWYN CONNELL. Gênero: uma perspectiva global. Trad. e rev. Marília Moschkovich. São
Paulo: nVersos, 2015.

SAFFIOTI, Heleieth B.. Gênero patriarcado violência. 2.ed. - São Paulo: Expressão Popular:
Fundação Perseu Abramo, 2015.

630
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
STREY, Marlene Neves. Violência e gênero: um casamento que tem tudo para dar certo. In:
GROSSI, Patrícia K., Werba, Graziela C., org. Violências e gênero: coisas que a gente não gostaria
de saber. Porto Alegre/RS: EDIPUCRS, 2001.

TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. 10ª ed. – Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 2019.

VARELA, Nuria. Feminismo para principiantes. Barcelona (Espanhã): Ediciones B, S.A., 2005.

631
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER

Jacqueline Meireles Valiense258


Tânia Rocha Andrade Cunha 259

Resumo: O presente artigo é uma reflexão que desenvolvemos em nossa Dissertação de Mestrado em Memória,
Linguagem e Sociedade - UESB sobre a condição da mulher na sociedade, especialmente no que tange às desigualdades
entre os sexos. Nele enfocamos a luta das mulheres pelo reconhecimento dos seus direitos desde Olympe de Gouges
(1748-1793), que teve sua vida ceifada por lutar por direitos iguais entre homens e mulheres até os dias atuais. Assim,
pretendemos discutir e analisar os efeitos das mudanças ocorridas na vida da mulher, em uma sociedade herdeira de
valores patriarcais e marcada por relações de poder, desigualdade e violência, bem como os futuros desafios e aportes
teóricos, em termos destas desigualdades e situações de violência que ainda afetam um grande número de mulheres, seja
no Brasil e/ou em outros países.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Mulher; Reconhecimento.

INTRODUÇÃO
Este artigo, parte da nossa dissertação de Mestrado em Memória Linguagem e Sociedade, “O
homem e a violência contra as mulheres: memória, família e educação” tem como objetivo abordar a
trajetória de luta das mulheres pelo reconhecimento dos seus direitos.
Numa sociedade herdeira de valores patriarcais, as desigualdades existentes entre os sexos
perduram até hoje e nela o homem ocupa um lugar privilegiado em relação à mulher nos mais diversos
campos: econômico, social, cultural e político, condição que o faz se sentir o sexo forte, o sexo do
poder que pode exercer sobre a mulher as mais variadas formas de dominação e violência.
É necessário levar em consideração que só nas últimas décadas, a mulher passou a constituir
um campo específico de estudos das Ciências Humanas e Sociais, bem como para Ciência Jurídica,
que passaram a considerar as diferenças entre os sexos como um dado fundamental na história
ocidental. Nesse período, a emergência do movimento feminista juntamente com outros atores
colocou em xeque os paradigmas até então determinantes nas Ciências Sociais.
Escrever uma história das mulheres é um empreendimento revelador de uma profunda
transformação vinculada estreitamente a uma concepção de que as mulheres têm uma história e não
são somente destinadas à reprodução, que elas são agentes históricos e possuem uma historicidade
relativa às ações cotidianas, uma historicidade em relação aos sexos (Perrot,1995).

258
Advogada, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória: Língua e Sociedade da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. E-mail: jacqueline.meireles@hotmail.com
259
Socióloga, Doutora em Ciências Sociais pela PUC - SP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Memória,
Língua e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. E-mail: tania.rochandrade@gmail.com
632
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Até o século XIX, a presença da mulher nos estudos históricos era ainda muito tímida, fazia-
se pouca ou quase nenhuma questão de elaborar estudos que enfocassem de forma específica o papel
da mulher. A consolidação do sistema capitalista de produção no desse final do século provocou
enormes modificações na estrutura econômica mundial. Dentre essas modificações, uma trouxe
profundas alterações no comportamento das mulheres, principalmente a partir da sua incorporação ao
mercado de trabalho, fenômeno que vai alterar radicalmente o tradicional sistema que tinha até então
como natural, o enclausuramento das mulheres à esfera doméstica, que para alguns autores é chamado
de ambiente privado.
A crescente participação da mulher nas atividades públicas, e a conquista de alguns direitos
formais, a exemplo a cidadania, foram razões que desafiaram a moderna hierarquia sexual nas
sociedades contemporâneas e mais que isto, elas abalaram os fundamentos da família tradicional.
Nesse momento, a sociedade passa a ser estruturada não mais a partir da questão de classe, da questão
econômica, das relações de poder, mas também a partir do gênero.
A mulher enquanto gênero passa a ser considerada, nas décadas de 1960 e 70, um elemento
estruturador da sociedade, e torna-se tema de estudos na academia. Nesse momento surgem nas
universidades núcleos específicos de antropólogos, sociólogos e outros estudiosos preocupados com
a condição feminina. A reflexão realizada sobre a problemática feminina na academia foi motivado
pela preocupação em resgatar o papel desempenhado pelas Ciências Sociais através da alteração dos
conceitos e metodologias tradicionais e construir um projeto de libertação feminina.
A utilização do conceito de gênero tem contribuído para uma maior e melhor compreensão da
subordinação da mulher, para se buscar o lugar da diferença, da alteridade, e a partir daí, lutar pelo
reconhecimento público dessas diferenças no âmbito de um projeto maior de igualdade, cidadania e
respeito entre todos. Esse projeto só se tornará viável no momento em que todos se unirem em torno
da construção de uma democracia ampla.
Nessa perspectiva, este artigo aborda a luta das mulheres na busca dos seus direitos e as
dificuldades enfrentadas por estas no desfrute pleno das suas conquistas, pois mesmo tendo
reconhecido seus direitos legalmente as mulheres continuam sendo tratadas como o sexo fraco, como
subordinadas e sobre as quais recaem todo o tipo de preconceito, discriminação e violência.

RECURSOS METODOLÓGICOS

633
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Títulos Em termos metodológicos, o presente artigo trata-se de um estudo exploratório,
descritivo e de caráter qualitativo. De acordo com Minayo (1994, p.21) “a pesquisa qualitativa
responde a questões muito particulares. Ela se preocupa nas Ciências Sociais com um nível de
realidade que não pode ser quantificado.” Assim, pode-se levar em consideração a análise do
indivíduo construída por variáveis, tais como as já citadas acima.
Em resumo, este trabalho possui o objetivo de compreender a história das mulheres na luta
pelos seus direitos a partir de importantes autores que contribuíram sobremaneira para combater a
desigualdade entre os sexos a exemplo de Christine de Pizan, Olymphe de Gouges, Mary
Wollstonecraft, Simone de Beavoir, Rita Radl, Helleieth Saffioti, dentre outras.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
O conceito de “direito” nasce a partir da influência recebida das ideias iluministas e consolida-
se no mundo ocidental em meio ao conflito estabelecido entre o mundo da razão e o mundo da
natureza. No debate entre aqueles que defendiam o homem social e aqueles que advogavam o homem
natural, venceram os primeiros, entretanto, os segundos não foram derrotados. Foi em meio a essa
disputa que nasceu o direito moderno, repleto de ambiguidades e compromissos. Se por um lado ele
consagrou e assegurou diante do Estado, os direitos e liberdades da pessoa humana, por outro lado
ele instalou juridicamente a ordem liberal-burguesa com vistas a proteger o ser humano frente às
diversas forças naturais e patológicas dos seus semelhantes.
Como produto do direito moderno nasce os direitos humanos, que consistem em um
agrupamento de direitos considerados indispensáveis para uma vida humana pautada na liberdade,
igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis a uma vida
digna. O objetivo dos direitos humanos, em resumo, é a luta contra opressão e a busca do bem-estar
do indivíduo. Estes direitos são inerentes a todas as pessoas e são interligados, interdependentes e
indivisíveis.
A evolução histórica dos direitos humanos teve diversas fases que, ao longo da história,
auxiliaram a consolidaram o conceito e o regime jurídico desses direitos essenciais. Os referidos
direitos tiveram como marco a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.
A referida Declaração estabelece os seguintes parâmetros de análise: o indicativo do
respeito à dignidade humana e igualdade entre os seres humanos; o reconhecimento de direitos

634
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fundado na própria existência humana; o reconhecimento da superioridade normativa mesmo em face
do Poder do Estado e, finalmente, o reconhecimento de direitos voltados ao mínimo existencial.
A mulher, na qualidade de homo sapiens também teve seus direitos garantidos na Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, sendo esta Declaração à gênese dos estudos e discussões
sobre direitos humanos.
Necessário levar em consideração, que até o século XIX, ainda era muito grande o preconceito
em relação às mulheres. Até mesmo nas artes prevalecia o pensamento de que os homens eram
superiores às mulheres tanto no campo biológico quanto no campo intelectual. Vigia a ideia de os
homens eram seres mais criativos, capazes de grandes invenções, enquanto as mulheres, vistas como
mais sensíveis e detalhistas detinham apenas a capacidade de imitar ao sexo oposto.
A partir do final do século XX, a participação das mulheres no debate sobre os direitos
humanos tornou-se de importância fundamental, principalmente na medida em que os seus direitos
se tornaram parte da pauta dos direitos humanos.
Entretanto, apesar dos direitos humanos serem estendidos às mulheres, estas empreenderam
muitas lutas para esse reconhecimento a exemplo de mulheres como Christine de Pizan (1364-1430),
uma das primeiras escritoras que em 1405 contesta e exige para as mulheres o reconhecimento da sua
condição de mulher/cidadã. Esta autora rebateu com firmeza a ideia de subordinação, defendendo
uma nova concepção de mulher que merecia ser tratada com dignidade e ter os mesmos direitos que
os homens em todos os âmbitos da sociedade. Considerada uma pioneira do pensamento feminista,
ela deu início à construção de um conhecimento teórico a respeito das relações entre os gêneros no
século quinze.
Outra mulher que vai se preocupar com a condição feminina é Olymphe de Gouges (1748-
1793). Em 1791 ao contestar a desigualdade entre os sexos e em resposta à Declaração dos Direitos
dos Homens escrita no contexto da Revolução Francesa, que pouco mencionava sobre os direitos das
mulheres, ela escreve uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, reivindicando para as
mulheres os mesmos direitos atribuídos aos homens. Nesta Declaração ela conclamava as mulheres
à luta: “Ó mulheres! Mulheres, quando deixareis vós de ser cegas?”, numa alusão à situação de
desigualdade em que viviam as mulheres.

635
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Defensora dos ideais de igualdade para todos os indivíduos, ela põe em questão as relações
desiguais vigentes entre os sexos. A coragem e a ousadia desta mulher em defender a igualdade de
direitos para as mulheres lhe custaram um preço muito alto, a sua própria vida.
Na luta pelos direitos das mulheres outro nome de destaque foi Mary Wollstonecraft (1759-1797)
principal nome em defesa das mulheres no século XIX. Uma intelectual libertária, Wollstonecraft
abraçou as causas de pessoas oprimidas de seu tempo, sendo hoje reconhecida como uma importante
abolicionista e uma das precursoras do feminismo.
Em sua mais importante obra “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher” defende que as
mulheres deveriam ter os mesmos direitos à educação que os homens. Ela argumenta que as mulheres
não são, por natureza, inferiores aos homens o que lhes falta é educação e escolaridade. Homens e
mulheres são seres racionais e devem ser tratados igualmente.
Outro nome que deve destacado é o de Simone de Beavoir (1908-1986) importante mulher
que se destacou na luta pela garantia dos direitos femininos. No fim da Segunda Guerra Mundial,
entre 1946 e 1948, escreveu uma das mais influentes obras do feminismo moderno “O Segundo Sexo”
lançado em 1949. Neste livro a autora defende, com veemência, a ideia de que a mulher deve ser
independente, livre e “não dividida”, mas sim um sujeito de direitos, cuja vida e destino não estejam
atrelados à vida do outro, no caso o homem.
Ainda no século XX surgiram no cenário público mundial os primeiros movimentos pelos
direitos femininos. Estes movimentos reivindicavam direitos de acesso à educação e ao voto, com
vistas ao alcance da igualdade entre os sexos.
Segundo Radl (2010), as reivindicações das mulheres sempre estiveram voltadas para o direito
à educação. Uma educação que deveria ter como princípio a igualdade entre homens e mulheres,
respeitando as especificidades de cada sexo. Outra importante reivindicação girava em torno dos
direitos à cidadania, especialmente quanto ao voto para as mulheres, questão central na pauta
feminista, sobretudo em finais do século XI na Inglaterra, EEUU e Alemanha e, no início do século
XX, em países da Europa e da América do Sul a exemplo do Brasil.
No Brasil, país que viveu séculos de exploração colonial e domínio de Portugal a sua
organização social e econômica foi dirigida para atender ao comércio português. Herdeiro dessa
cultura predominou por muito tempo aqui, a pobreza, o analfabetismo e a dependência da mão
de obra escrava. Só em 1822 o país saiu da condição de colônia e proclamou sua independência.

636
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Desde essa época algumas mulheres se distinguiram na luta pelo reconhecimento dos direitos
femininos, dentre as quais podemos destacar as contribuições e influências de Nísia Floresta
(1810/1885) e Bertha Lutz (1894/1976) consideradas pioneiras.
A preocupação com os direitos humanos e com a democracia no Brasil possui fortes ligações
com os acontecimentos das últimas décadas do século XX, quando novos sujeitos sociais entraram
na cena política e social do país (Sader,1988) através dos movimentos sociais que lutavam e
reivindicavam o fim da recessão em que estava submetido o país. De acordo com Paoli:

O aparecimento destes movimentos na década de 70, e a partir daí sua presença constante (às
vezes triunfante, às vezes apagada, às vezes derrotada) nessa cena, estão profundamente
correlacionados ao fato de hoje podermos definir as questões relativas à constituição de um
espaço público democrático como centrais à compreensão da dinâmica política do social
(PAOLI,1989, p. 41).

Dessa forma, essa nova maneira de pensar os direitos das mulheres e a cidadania é a tentativa
de desenvolver um mundo onde os mais diversos interesses estejam representados, onde uma
cidadania coletiva seja contemplada na prática histórica dos homens.
A partir da Constituição Federal de 1988, homens e mulheres passaram ser considerados
iguais perante a lei. As mulheres são capazes de exercer as mesmas atividades desempenhadas por
homens, nada as diferenciando, em princípio, sob o ponte de vista legal, todavia, essa legalidade nem
sempre é reconhecida como legítima, permanecendo a existência de uma violência praticada pelos
homens contra suas mulheres, enraizadas nas tradições socioculturais dos povos.
Sobre a luta dos direitos das mulheres, necessário adentrarmos no estudo do movimento
feminista. O surgimento do movimento feminista no Brasil está inserido no cenário dos movimentos
sociais que ocuparam o espaço social e político na segunda metade da década de 1970. A formação
desse movimento está ligada à formulação de demandas, reivindicações ou necessidades coletivas
que passam pela construção de uma ideia de direitos, pelo reconhecimento de uma coletividade, que
já naquela época representava a outra metade da população brasileira.
Assim, apesar da legalidade e legitimidade dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988,
que inclui os direitos das mulheres, na prática estas não desfrutam dos mesmos em plenitude. A
mulher continua sendo alvo da dominação masculina referendada por uma cultura patriarcal que
insiste em se fazer presente nas relações afetivas.

637
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A luta pelo poder, principalmente quando se fala em termos de categorias sociais de gênero
masculino e feminino, está relacionada diretamente com a distribuição desigual das oportunidades
em escala social e econômica. “Gênero neste caso é a construção do masculino e do feminino,
modelos difundidos ideologicamente como opostos e, portanto, como complementares” (Saffioti e
Almeida, 1995:196).
Ademais, a relação de dominação e de exploração das mulheres, segundo afirma Saffioti
(1992), não supõe uma total destruição da mulher; ao contrário, é importante que ela seja preservada.
O fato de a mulher ser subalterna, não significa que ela não exerça qualquer forma de poder. Dessa
forma, o poder está presente nos dois polos da relação, ainda que em graus diferentes. A divisão da
sociedade em classes sociais antagônicas e com profundas diferenças quanto às oportunidades de
vencer na vida, permite aos que desfrutam de maiores privilégios - o homem - dominar o outro sexo,
ou seja, as mulheres.
O poder do macho, embora apresentando várias nuanças, está presente nas classes dominantes
e nas subalternas, nos contingentes populacionais brancos e não-brancos. Uma mulher que, em
decorrência de sua riqueza, domina muitos homens e mulheres, sujeita-se ao jugo de um homem, seja
seu pai ou seu companheiro. Assim, via de regra, a mulher é subordinada ao homem.
Nesse sentido, podemos observar que, apesar de todos esses avanços e conquistas dos direitos
das mulheres ainda persistem as desigualdades de gênero, as discriminações e violência contra as
mulheres. Nesse cenário, no qual as conquistas não se mostram suficientes para vencer o avanço da
violência, da discriminação, das desigualdades e das perdas ou ameaças aos direitos das mulheres, é
de suma importância tomar o marco dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
como a gênese de reflexão e de construção de ações de proteção a esses direitos. Necessário, ainda
não esquecer que as ameaças e o desrespeito aos direitos humanos e às conquistas das mulheres não
acontecem sem resistências e sem luta.
Desse modo, a construção social dos papéis impostos às mulheres e aos homens é uma herança
do sistema colonial que se mantém viva até os dias de hoje. Desse modo, é primordial trazer a baila
não somente a legitimidade e as conquistas dos direitos das mulheres no âmbito jurídico, mas
principalmente o pleno e efetivo gozo dessas conquistas alcançadas com tanta luta, lágrimas e sangue.
Somente assim poderemos vivenciar uma sociedade fincada sob o pálio da igualdade de gênero,
direitos e poderes.

638
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo que foi esboçado anteriormente, podemos dizer que durante milênios não se
considerou a mulher como um sujeito social capaz de contribuir para alterar as relações sociais. A
mulher era e ainda é, até hoje, um dos seres mais desrespeitados e humilhados da sociedade.
O reconhecimento público das diferenças de gênero está articulado com a ideia fundamental
da busca de direitos iguais entre homens e mulheres, luta que começou desde o século XV com
Christine de Pizan, uma das primeiras mulheres a contestar e exigir para as mulheres o
reconhecimento da sua condição de mulher/cidadã.
Ela argumentava que as qualidades que eram atribuídas apenas aos homens como inteligência,
força, valor, criatividade, tenacidade, fidelidade, prudência também poderiam ser qualidades
femininas, assim como ternura e cuidado das pessoas, vistas como inerentes à mulher e consideradas
qualidades de menor valor.
Dessa forma, diante da atual situação em que vivem as mulheres, numa sociedade que governa
sempre no masculino, o único recurso é apelar à dialética enquanto método e pensamento crítico,
capaz de desvendar a realidade, para revelar os caminhos que possibilitem a busca da identidade
feminina, que é continuamente criada e recriada num espaço onde convivem diferença, alteridade, e
transformações.
Na discussão elaborada sobre o poder e o gênero, Saffioti (1992) afirma que nas sociedades
de classes, a mulher se mantém ignorada junto a outras categorias. Nestas sociedades, nas quais
vigoram as diferenças sociais, as relações estabelecidas entre os homens são relações de poder. Esse
poder está concentrado nas mãos dos homens, e estes temem perder os privilégios que há milênios
estão garantidos pela sociedade.
Não é possível isolar a problemática feminina do contexto sociocultural, político e econômico
em que a mulher se insere, uma vez que este não se trata de um fenômeno isolado. Assim como
também não é possível analisar as relações de gênero, ignorando as relações com o capitalismo e o
racismo, isso implicaria em comprometer os resultados da investigação de forma definitiva.
Portanto, a estratégia indicada para se lutar contra as desigualdades sociais, é atacar a
associação existente entre o patriarcado-racismo-capitalismo, para que seja implantada a

639
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
democracia. A humanização deve ser estendida aos homens e às mulheres de todas as raças, credos e
etnias para que se estabeleça a igualdade entre todos os seres humanos.
O reconhecimento da mulher pela sociedade, o respeito às suas diferenças e a aquisição de
uma identidade própria, implicam no empreendimento de esforços e lutas. Entretanto, por mais
importantes e urgentes que sejam estes direitos que as mulheres precisam conquistar, de fato, não se
pode abrir mão de uma luta maior que só se resolverá através de uma ampla organização de todos em
torno de um projeto democrático: a libertação do ser humano.
Para que essa medida seja viabilizada, cabe ao Estado promover uma política de direitos
humanos que englobe direitos das mulheres, bem como àquelas categorias que se sentem
discriminadas pela sociedade, a exemplo dos negros, dos índios, dos homossexuais. O Estado deve
ainda, cuidar para que suas instituições pratiquem essas políticas de forma efetiva e a contento de
todos os que se sentem lesados nos seus direitos, ao invés de exercerem a violência ou mesmo serem
transigentes com os mesmos. Agindo assim, com toda certeza, as mulheres encontrariam mais força
para lutarem por seus próprios direitos, e se consolidarem como forças políticas.

REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960a.

______. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960b.

GOUGES, Olymphe de. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, Revista Internacional
Interdisciplinar Interthesis, 2007. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/viewFile/911/10852>. Acesso em 30 de
maio de 2018

MINAYO, Maria Cecília de S. Violência social sob a perspectiva da saúde política. Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro: v. 10, 1994.

PAOLI, Maria Célia. “Trabalhadores e Cidadania: experiência do mundo público na história do


Brasil moderno” Estudos Avançados, São Paulo: USP, 3 (7), set/dez 1989, pp40-60.

RADL, Rita M. Philipp. A modo de introduçao: aspectos epistemológicos de las investigaciones de


las mulheres y cel género. In:.PHILIPP, R.R. Investigaciones actuações de las mulheres e cel género.
Santiago de Compostela, Universidade, 2010.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo - 1970-80. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 4 Es. 2001.
640
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Rearticulando gênero e classe social. In: OLIVEIRA, Albertina;
BRUSCHINI, Cristina (orgs). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/Fundação
Carlos Chagas, 1992, p. 183-215

________.SAFFIOTI, Heleieth. I. B. e ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de Gênero: poder e


impotência.

PERROT, Michelle, Escrever uma História das Mulheres: relato de uma experiência. In: Cadernos
Pagu, n 4, Czmpinas- São Paulo, 1995.

_______.PERROT, Michele. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Trad. de Ivania Pocinho Motta.
São Paulo: Boitempo, 2016.

641
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ROMANTIZANDO DESIGUALDADES DE GÊNERO: A MÚSICA SERTANEJA
UNIVERSITÁRIA E SUAS INFLUÊNCIAS NA NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER

Cíntia Magnus Gomes260

Resumo: No presente trabalho objetiva-se analisar os discursos que naturalizam violências praticadas contra as mulheres
presentes nas letras de músicas sertanejas. As canções elencadas na pesquisa são do ciclo mais recente do estilo musical
sertanejo, o chamado Sertanejo Universitário, datado de 2010 até os dias atuais. Utilizando o gênero como categoria de
análise, busca-se perceber as relações de poder estabelecidos entre homens e mulheres nos discursos das composições e
avaliar como essas produções constroem socialmente identidades de masculinidade e feminilidade. Os papéis sociais
ligados ao sexo biológico descritos nas canções de forma sutil ou não, naturalizam desigualdades e violências de gênero.
As relações afetivo-conjugais também são perpassadas por uma discriminação simbólica, que gera nos casais
comportamentos dominantes e dominados. Uma das consequências de tal dominação é a prática da violência contra a
mulher dentro dos relacionamentos e do espaço doméstico. Para dar conta da complexidade que envolve a questão da
violência contra as mulheres, a pesquisa utiliza-se da Lei 11.340/ 2006, a Lei Maria da Penha, que é dividida em categorias
que tentam abarcar de forma mais concreta as diferentes formas deste crime como: violência física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral. A metodologia de análise do discurso foi empreendida no conteúdo das músicas por sua capacidade
de demonstrar a potência da linguagem no documento-canção e nos discursos musicais, como mecanismos que enquadram
as identidades de gênero em padrões aceitáveis socialmente.

Palavras-chave: Gênero; Discursos; Violência; Mulheres; Música.

INTRODUÇÃO
De todas as formas de violência que nos cercam diariamente, podem-se destacar as elevadas
taxas de violência que acometem as mulheres no Brasil e no mundo. As bases sociais alicerçadas no
patriarcado e no machismo explicam uma estrutura invisível que sustenta a subordinação feminina
aos homens em vários aspectos. Os estudos atinentes a essa dominação têm se intensificado nos
últimos anos no intuito de compreender as construções sociais de gênero que imprimem os papeis de
feminilidade e masculinidade para os diferentes sexos. Esta linha norteia a presente pesquisa, que
busca identificar como os discursos de predominância do homem sobre a mulher se calcificam no
cotidiano como algo natural, de tal maneira que passam despercebidos em nossas relações
socioculturais. Desta forma, o machismo também atua em pormenores do dia a dia que legitimam a
dicotomia entre homens e mulheres.

O machismo está tão profundamente arraigado nos costumes e no discurso que se tornou
quase invisível quando não exerce suas formas mais flagrantes, como a violência física ou o
abuso verbal. No entanto continua presente em quase todos os aspectos da vida cotidiana de
homens e mulheres [...] nos costumes, nos gestos e nas palavras de uso diário, na
comunicação, no amor, na família e na amizade. O machismo atual opera por trás das

260
Graduada no curso de História, pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: cintiamagnus@unesc.net
642
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
aparências, em detalhes que talvez pareçam anódinos, mas que revelam um jogo de poder
importante, pequenos detalhes que têm grandes consequências. (CATAÑEDA, 2006, p. 17).

A cultura do machismo e de uma ordem patriarcal instituída no Brasil desde a colonização


europeia mantém ainda hoje as relações de poder que permeiam a dialogia entre os sexos, na qual os
atributos de masculinidade desqualificam os de feminilidade, de modo a transformar a mulher em
objeto de subordinação, dominação ou posse. Essa hierarquia encontra-se enraizada no cotidiano dos
indivíduos como normas de convivência e comportamento esperados de ambos os sexos, afetando a
maneira de se compreender como sujeitos que desempenham papéis sociais e culturais diferentes e
acaba por ser reforçada em diferentes aspectos da vida cotidiana, inclusive sendo reproduzido pelas
próprias mulheres, que envoltas na estrutura patriarcal reproduzem de maneira quase automática as
desigualdades, como afirma o historiador Marcos Cordeiro Pires:

O machismo é uma herança cultural muito forte. Antes de ser uma reprodução de
comportamentos exclusivamente masculinos, ele é reforçado pela vida familiar, incluindo aí
a educação recebida da mãe, que inconscientemente (ou conscientemente) reafirma os seus
estereótipos. (2015, p. 286).

Assim, as mães somente reproduzem o que a sociedade impôs a elas: criar os filhos para serem
provedores, viris e protetores, enquanto às filhas cabem os ensinamentos de um comportamento
submisso, bem como atividades de cunho matrimonial, doméstico e maternal. Contudo, não se pode
responsabilizar a mulher pela dominação sofrida a partir desse pressuposto, e sim ressaltar que são
muitos os instrumentos que se prestam a construir representações de identidade feminina e masculina
e de suas funções sociais. Essa lógica se reflete de forma sutil, como, por exemplo, aos brinquedos e
brincadeiras destinadas a meninas e meninos. Existe uma ordem social invisível que expõe homens e
mulheres numa relação de poder desigual e permanente. É o que Bourdieu chama de dominação
simbólica, da qual, segundo ele, a estrutura social esta continuamente embebida:

Os atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira mágica entre os


dominantes e os dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os
dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra sua vontade, para sua própria
dominação, aceitando tacitamente os limites impostos, assumem muitas vezes a forma de
emoções corporais — vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa — ou de paixões e
de sentimentos — amor, admiração, respeito —; emoções que se mostram ainda mais
dolorosas, [...] e outras tantas maneiras de se submeter, [...] não raro com conflito
interno e clivagem do ego, a cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai às

643
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diretivas da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes às estruturas
sociais. (BOURDIEU, 2012, p. 51).

Por conseguinte, as relações afetivo-conjugais também são perpassadas por uma


discriminação simbólica que gera nos casais sentidos comportamentais dominantes e dominados.
Uma das consequências de tal dominação é a prática da violência contra a mulher dentro dos
relacionamentos e do espaço doméstico. As estatísticas de violência física, psicológica, moral e sexual
contra mulheres apontam, em sua maioria, os parceiros ou ex-parceiros como os principais agressores.
A subordinação e objetificação do corpo feminino corroboram para a incidência de agressões e
assassinatos praticados pelos namorado/cônjuge/companheiro das vítimas. Além disso, o fim dos
relacionamentos é apontado como um dos principais estopins para os crimes, nos levando a refletir
em que medida estes agressores reagem ao ser posto em xeque sua suposta posse ou o domínio sobre
as mulheres.
Conhecida como Lei “Maria da Penha”. A lei foi sancionada em agosto de 2006 e pronuncia
em seu artigo 1°:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do
§ 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006).

A referida lei sofreu alterações recentes com a Lei nº 13.505/2017 e Lei nº 13.836/2019. O
intuito é oferecer mais rapidez na aplicação da lei e efetivamente proteger as vítimas de seus
agressores, sendo importante ressaltar que de acordo com o Art. 6º, “a violência doméstica e familiar
contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.” (BRASIL, 2006).
Entretanto, os avanços legais obtidos ainda encontram diversas dificuldades nas aplicações das
mesmas e não é incomum a reincidência e a impunidade nestes casos.
Para dar conta da complexidade que envolve a questão da violência contra as mulheres a lei
“Maria da Penha” é dividida em categorias que tentam abarcar de forma mais concreta as diferentes
formas de violência, que são: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Dentre estas,
principalmente a violência psicológica e moral, constitui uma série de comportamentos que, em
certos casos, as mulheres têm dificuldade de perceber que estão sendo vítimas de uma agressão
644
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ou de identificar os namorados/cônjuges/conviventes como agressores dentro dos relacionamentos,
pelo fato de se tratar de situações mais subjetivas de coerção, utilizando discursos de dominação
comuns e corriqueiros que as coloca em condição de subalternas em relação aos homens na sociedade
como um todo.
É imprescindível a compreensão de que estes mecanismos que sobrepujam as mulheres são
construídos social e culturalmente e, com isso, cresce paralelamente as estatísticas da violência
doméstica, a demanda pela produção de conhecimento relacionado à temática, que encontra solo fértil
nas pesquisas acadêmicas, inclusive no campo da história.

Assim, é de fundamental importância sistematizar debruçar-se sobre estes estudos, pois eles
visam desconstruir a maneira como essas relações socioculturais são percebidas e
interpretadas pelos sujeitos, haja vista que podem se transfigurarem em desigualdades,
violências e invisibilidades. A categoria gênero arquiteta uma análise na qual enfatiza que as
condições biológicas não podem e não devem ser capazes de predeterminar papéis, espaços,
características e identidades dos sujeitos. O que se atribui de maneira sistemática aos sexos
como algo natural e imutável é, portanto, passível de análise histórica e social e, dessa forma,
alvo de questionamentos. (SCHNEIDER, 2019, p. 16).

Os estudos têm identificado a interligação de discursos machistas difundidos nas sociedades,


atrelados ao controle masculino exercido em diversas esferas, com a naturalização de ações violentas
dos homens contra as mulheres. Dissociar as práticas de dominantes e dominados dos padrões
traçados como apropriados à feminilidade e masculinidade, exige uma nova forma de analisar a
consciência histórica e social destes sujeitos.
As mudanças de perspectiva causadas pela chamada Nova História Cultural, “mais eclética,
tanto no plano coletivo como no individual” (BURKE, 2005, p. 68), permitiu que as pesquisas
partissem de pontos até então invisibilizados pela história, pois se desprende do estudo isolado do
fato em si para captar o processo histórico em que se deu. A tomada de uma atitude mais inquiridora
traz à baila grupos sociais marginalizados e novos objetos de estudo.
As considerações das historiadoras Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007, p. 285),
apontam que tais mudanças historiográficas e o movimento feminista crescente “a partir de fins da
década de 1960, tiveram papel decisivo no processo em que as mulheres são alçadas à condição de
objeto e sujeito da História”. O nascimento da História das Mulheres apoia a destituição da noção
de sujeito universal, que descumpria a pretensão de incluir as mulheres na história. Quando se

645
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
falava do homem, ponderava-se o sentido generalizante de humanidade, mas excluía as mulheres por
não tratar das experiências por elas vivenciadas, nem dos espaços que elas ocupavam. Entretanto,
atrelar uma historicidade diferente entre homens e mulheres dissemina o caráter antagônico de duas
categorias históricas distintas e nega o caráter relacional entre ambos.
Neste contexto de tensões e disputas, surge o gênero como categoria de análise histórica, no
intuito de compreender como a configuração binária entre homens e mulheres se dá em um conjunto
de atitudes, crenças e costumes arquétipos. Estes moldes difundem um estilo de vida social nas
instituições de qualquer nível, nas relações interpessoais em geral, na política, na economia, na
imprensa, na cultura, na arte, na literatura e na música.

HISTÓRIA, MÚSICA E ANÁLISE DO DISCURSO: UMA POSSIBILIDADE PARA A


COMPREENSÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

Utilizar o documento-canção como uma fonte nesta pesquisa visa analisar os discursos
contidos nas músicas, relacionando com a naturalização e as causalidades da violência doméstica no
Brasil.
O gênero atua como um elemento analítico capaz de problematizar as desigualdades,
demonstrando que as mesmas são resultado e efeito do próprio discurso de gênero. Assim, ao
analisarmos o conteúdo das músicas utilizaremos a metodologia da análise do discurso que por sua
capacidade de demonstrar a potência da linguagem nas desigualdades de gênero “promove
investigações textualmente orientadas, observando as interseções entre linguagem, gramática,
contexto, relações de poder, dominação, discriminação e controle.” (FREITAS, 2012, p. 2). Deste
modo, percebemos que os signos criados na linguagem a partir de feitios sociais, políticos e
ideológicos, e vice versa, são potentes componentes do processo hierarquizador da sociedade. Como
destaca Fairclougth (2001) em sua análise sobre as construções discursivas:

O objetivo geral aqui é especificar: a natureza da prática social da qual a prática discursiva é
uma parte, constituindo a base para explicar por que a prática discursiva é como é; e os efeitos
da prática discursiva sobre a prática social. (FAIRCLOUGTH, 2001, p. 289).

Fazer, ouvir e discutir a música necessita da percepção dos desdobramentos entre a fala
cotidiana e a ação social e cultural sobre as letras. Na obra intitulada A Ordem do Discurso, o

646
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
filósofo Michel Foucault (2012) discorre sobre a maneira que as fronteiras de limitação e validação
de poder são fixadas ou deslocadas socialmente pelo discurso. Ele trava uma apreciação elencando
os aspectos que se escondem em meio ao discurso, ponderando que o significado das palavras não
alcança a dimensão que a natureza diversa dos significados consolida nos receptores desse discurso:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. Nisto não há nada de espan-
toso, visto que o discurso — como a psicanálise nos mostrou — não é simplesmente aquilo
que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que
— isto a história não cessa de nos ensinar — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2012, p. 10-11).

Em síntese, nesta perspectiva, apesar de ser conceitualizado de uma linguagem repetida e


legitimada, o discurso exerce na fala sua forma mais modesta de atuação, pois, toda forma de
expressividade transmitida pode constituir o discurso, indicativo este que reforça a participação da
arte e da música na constituição social do discurso.

SERTANEJO UNIVERSITÁRIO: A NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS


MULHERES POR MEIO DAS AFETIVIDADES

A música popular brasileira é extremamente diversa, oriunda de muitas culturas, tanto quanto
a miscigenação da população do Brasil. Contudo o que se consolidou como música popular no
processo de urbanização e industrialização do país, associa sua origem no tempo e no espaço,
formulando uma apropriação musical que “tem um lugar sociogeográfico que seria tanto mais
autêntico e legítimo quando mais próximo do lugar sociogeográfico das classes populares: o ‘morro’
e, posteriormente, o ‘sertão’.” (NAPOLITANO, 2005, p. 54).
Dentre as produções culturais populares, podemos destacar o samba que representou o estilo
musical das periferias urbanas. Já a música ”caipira” ou “raiz”, cujo surgimento nas rádios é datado
na década de 1920, com um “clima modernista e ufanista [...] a produção literária, musical e cênica
inspirada no Brasil Rural vingava sem resistência em São Paulo. Afinal, aproximadamente 80% de
sua população ainda morava na roça” (NEPOMUCENO, 1999, p. 102). A principal característica da
música caipira são as letras que fazem alusão à vivência no campo com uma linguagem brejeira e
poética, apresentando em suas composições o trabalho agrário e a estrutura social das famílias,
embora tivesse caráter recreativo. Não é possível subestimar a eficácia e o alcance desta literatura
647
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
musical por seu vocabulário modesto e de pueril compreensão, pois de acordo com Berio (1981, p.
11), “quanto mais simples e unidimensional for o discurso musical, mais difusa e imediata será sua
relação com a realidade cotidiana”.
Os estudos da historiadora Jaqueline Souza Gutemberg (2011) aponta que a urbanização faz
do canto caipira uma representação saudosista da origem rural destes indivíduos e que não se pode
delimitar precisamente o ano de transição desse gênero para a “música sertaneja”, porém ela mostra
que além da inserção gradativa de novos instrumentos e compassos rítmicos empregados nas
produções entre 1950 e 1970, sistematicamente, houve uma mudança estrutural no texto das
composições. Não obstante as críticas aos arranjos e nova linguagem da “música sertaneja” ou
“sertaneja raiz”, a versão conservou a admiração do público que vinha do interior para as cidades de
médio e grande porte.
Os anos seguintes, na década de 80, a modernização, da música sertaneja perpassa pela
inserção de arranjos com instrumentos advindos do rock e novos elementos estético-discursivos.
Embora o “sertanejo raiz” já tenha feito uso de narrativas românticas, o foco central das composições
pairava sobre a relação com a vida no campo. Essa ordem se inverteu quando “músicas com letras
românticas passaram a predominar – a vida no campo passava a ficar, na melhor das hipóteses, em
um segundo plano” (CONTIERI, 2015, p.27). A produção nas décadas de 80 e 90 ganhou a
denominação de “sertanejo romântico”, com shows de superestruturas e públicos gigantescos no coro
das músicas entonadas por duplas, que alcançaram fama em todo o país.
O estilo musical sertanejo seguiu alcançando constantemente novos públicos, alternando
mudanças e permanências até a roupagem mais recente: o “sertanejo universitário”, termo designado
para as produções datadas a partir de 2010. (CONTIERI, 2015). A temática das composições musicais
nesse ciclo contemplam narrativas de grandes amores até relacionamentos sem compromisso, além
das experiências de festas e baladas em suas letras, com uma mistura de ritmos como axé, pagode e
country.

“[...] o “sertanejo universitário” caracteriza-se por um ritmo empolgante, com predominância


de instrumentos acústicos, letras de fácil memorização, que são gravadas quase sempre em
shows ao vivo em casas noturnas e que toca em bares e baladas, com uma participação ativa
do público” (FREITAS, 2012, p. 5).

648
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De todos os ciclos da música sertaneja, o último citado se vale de uma vantagem sobre os
primeiros: a propagação da ação artística na predominância da era digital. A convergência das mídias
de comunicação na atualidade contrastam os suportes utilizados nas décadas de 1980 e 1990 (LP’s,
CD’s e DVD’s) com as interfaces digitais, cuja divulgação é infinitamente mais rápida e acessível ao
público.

Em tempos de superabundância de informações, os espaços se multiplicam e nossas


identidades se fragmentam a cada signo criado, desenvolvido e absorvido. [...] Antes
produção cultural, hoje é a reprodução de valores que nos formaram ao longo da epopeia da
hominização. A web, repositório da humanidade, um conjunto articulado de espaços, sons e
imagens, tornou-se mais uma interface projetada e construída, reflexo do pensamento
idealizado que aprofunda os limites de nossa percepção. (URSSI, 2009, p 182).

O amor romântico, central nestas narrativas musicais, é um conceito que as Ciências Sociais
ainda buscam definir adequadamente, embora haja um consenso em reconhecer sua construção no
meio social. Costa (2005) procura conceituar o sentido do amor romântico como um modelo
histórico-cultural dividido em cinco dimensões, que seriam no campo das emoções, no campo das
interações sociais, como idealização, como modelo de relação e como prática cultural. O autor faz
um paralelo entre o amor romântico e a indústria cultural e de entretenimento, demonstrando como
os amantes utilizam os produtos deste mercado para formular rituais românticos e modelos de
relacionamentos: o vínculo emocional e sexual, consolidado no matrimônio e na prole.
Na disciplina histórica, atentamos para os discursos que influenciaram grande parte dessas
produções, reforçando as funções masculinas (forte, ativo, dominador, viril) e um papel feminino
(doce, delicado, submisso, dependente, passivo, fiel) e legitimam a violência dos primeiros contra as
mulheres que não cumprirem cátedras identidades a elas atribuída.

ANÁLISE DAS MÚSICAS NAS CATEGORIAS DA LEI


Para proceder a análise das músicas selecionadas para a pesquisa, o corpus foi composto por
canções do ciclo “sertanejo universitário”, do período datado a partir do ano de 2010. O critério
utilizado para selecionar as músicas passíveis de análise foi o de identificar aquelas que obtiveram
sucesso nas vozes dos intérpretes, com repercussão nas rádios e outras mídias de divulgação.
Como adiantei anteriormente, optar por este ciclo da produção da música sertaneja objetiva

649
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
perceber as permanências de discursos que naturalizam violências contra as mulheres a despeito da
Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Cabe aqui ressaltar que o trabalho foi realizado sob a
orientação do Professor Doutor Ismael Gonçalves Alves. As canções foram examinadas e divididas
de acordo com os tipos de violências que a legislação explicita como violência física, psicológica,
sexual, patrimonial e moral. Aqui trago alguns exemplos de canções analisadas nas categorias de
violência física e psicológica.
Das formas de violência doméstica ou familiar elencadas no artigo 7º da Lei 11.340/2006 a
primeira e mais facilmente perceptível é a violência física. O texto da legislação afirma que a
violência física contra a mulher é “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal” (BRASIL, 2006). A primeira música a ser analisada foi gravada por Bruninho & Davi
em 2011, no álbum Proibido para menores.

Quadro 1 - Letra da música Carabina


Bruninho e Davi
Composição: Douglas Mello / Flavinho Tinto / Nando Marx

Acordei já era tarde e a vida passando Safada, cachorra, bandida


Meus amigos, todo mundo sempre falando Dá o fora da minha vida
Eu feito um bobo não pensava, não vivia, Antes que eu pegue a Carabina
Só te amava. E te encha de tiro agora.
Para com isso, não chore em minha frente Suas coisas põe na mala
Não adianta, eu sei de tudo Não me encoste e nem me fale
Vê se assim me entende. Tô doido pra te matar
Fonte: https://www.letras.mus.br/bruninho-davi/1710927/. Acesso em 08 out. 2019.

O título da canção é Carabina, trata-se de uma arma de fogo ou de pressão, portátil, que possui
cano longo e pequeno calibre, muito utilizada em tiro desportivo e caça. Na narrativa musical um
homem fala sobre a decepção que sofreu com a companheira, sobre a qual outras pessoas o alertavam.
O refrão desfere uma série de ofensas à mulher Safada, cachorra, bandida, além da ameaça de usar
a arma caso ela não se afaste imediatamente, encerrando com a frase Tô doido pra te matar,
demonstrando o desejo de violência extrema de tirar a vida da mulher. Buscar um motivo para a
prática da violência física é outro mecanismo que a sociedade patriarcal e machista se utiliza:

Em muitos casos de violência contra a mulher, os detalhes são vistos como elementos
que servem para ocultar ou amenizar a gravidade dos crimes. A forma de vestir, andar e

650
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
falar das mulheres são exemplos desses detalhes que servem como “justificativas” das
violências que sofremos. Todas elas injustificáveis. (SANTOS, 2017, p. 63).

Dentre as formas de violência especificadas na Lei 11.340/ 2006 a de maior incidência


no corpus da pesquisa é a violência psicológica. Por tratar-se de atos que não deixam marcas visíveis
e que usa mecanismos mais subjetivos do que a violência física, as vítimas e até os agressores, por
vezes, não compreendem as ações como transgressoras. A legislação especifica que:

A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à
saúde psicológica e à autodeterminação. (BRASIL, 2006).

A exemplo disso, Ciumento eu é o título da música gravada por Henrique & Diego no Rio de Janeiro
em 2017, no álbum De Braços Abertos, a faixa conta com a participação de Matheus & Kauan.

Quadro 6 – Letra da música Ciumento Eu


Intérpretes: Henrique & Diego (part. Matheus e Kauan)
Composição:
Danilo D’Avila / Elcio de Carvalho / Gustavo / Junior Pepato / Lari Ferreira
Ciúme não E tá pra nascer
Excesso de cuidado Alguém mais cuidadoso e apaixonado do que eu
Repara não Ciumento, eu?
Se eu não sair do seu lado E o que é que eu vou fazer
Tem uma câmera no canto do seu quarto Se eu não cuidar, quem vai cuidar do que é meu?
Um gravador de som dentro do carro Ciumento, eu?
E não me leve a mal
Se eu destravar seu celular com sua digital
Eu não sei dividir o doce Melhor falar baixinho
Ninguém entende o meu descontrole Senão vão te roubar de mim
Eu sou assim não é de hoje
É tudo por amor
Fonte: https://www.letras.mus.br/henrique-diego/ciumento-eu/. Acesso em 22 out. 2019.

O ciúme e o descontrole que o narrador expressa nas frases são considerados por ele próprio
como Excesso de cuidado e legitimados em É tudo por amor. Os atos de vigilância que são relatados
na composição musical são graves e ferem o direito de liberdade e privacidade da parceira. Entretanto,
o refrão romantiza os comportamentos garantindo que não existiria uma maneira de cuidar do que é
meu para o eu lírico, que reafirma ser extremamente cuidadoso e apaixonado.

651
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A produção textual em si demonstra um homem controlador, mas o significado que ele busca
é naturalizar a dominação e posse em nome de uma personalidade protetora, uma figura quase
paternal, que cuida por entender a mulher na posição de quem precisa de tutela para viver bem. As
distorções entre o discurso propriamente dito e as interpretações possíveis a ele, percorrem
subjetividades do narrador e do leitor, imbuídos de suas concepções de significado:

Toda oração e multifuncional e, assim, toda oração é uma combinação de significados


ideacionais, interpessoais (indentitários e relacionais) e textuais. As pessoas fazem escolhas
sobre o modelo e a estrutura de suas orações que resultam em escolhas sobre o significado e
a construção de identidades sociais, relações sociais, conhecimento e crença.
(FAIRCLOUGTH, 2001, p. 104).

No caso da música estas distorções são ampliadas pelo arranjo musical, que dá entonações e
sensações ao contexto escrito, de modo que por vezes sejam cantadas sem dar sentido a narrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões da presente pesquisa não ambicionam ser conclusivas ou definitivas. A
pretensão é justamente identificar as subjetividades dos discursos e o processo em que eles se ocultam
ou emergem. Os processos históricos de formação de identidades, sejam elas de qualquer caráter, não
são lineares e estáveis. Pelo contrário, alternam permanências e transformações, de modo que não
podemos delinear exatamente onde começam e terminam.
Diante de todo o exposto, as relações de gênero, que me nortearam nas análises dos discursos
musicais, seguem a mesma coerência. Os avanços em direção à igualdade entre homens e mulheres
são perceptíveis em alguns aspectos, como os direitos individuais. Entretanto, a prática cotidiana
demonstra sutilezas que permanecem subjugando as mulheres aos homens.
Os conceitos de masculinidade e feminilidade expressos nas produções culturais, em
específico na música, colocam maioritariamente as mulheres em posição de desvantagem. Ao
masculino a força, a ação, a virilidade e o poder. Ao feminino a fragilidade, a passividade, a
delicadeza e a dependência. Por meio destas características, opostas entre si, que se estabelecem como
naturais e imutáveis ao sexo biológico subentende-se que as mulheres necessitam de proteção de um
homem e as submete a situações de violência. Aí sim mora o objetivo deste trabalho de pesquisa:
desnaturalizar essas relações binárias, compreendendo sua construção artificial, normatizada
social e culturalmente pelos indivíduos.
652
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A arte é uma forma de expressão da vida humana, portanto ela transparece informações não
especificadas em outros documentos históricos. Logo, considero a música, como uma expressão
artística e cultural, como uma fonte muito rica de subjetividades e objetividades características de um
período histórico a ser estudado. Nesse sentido, o documento-canção é constituído e constituinte de
discursos presentes na sociedade em que vive seu autor ou compositor.
Ampliam-se as possibilidades de estudo sobre o tema abordado no presente escrito, que busca
na música um elo entre os múltiplos que constituem os discursos que alocam desigualdades e uma
probabilidade de pesquisa pertinente dentre as discussões de gênero na atualidade.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 11°
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BRASIL. LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 16 jun.
2019.

CASTAÑEDA, Marina. O machismo invisível. São Paulo: A Girafa Editora, 2006.

CONTIERI, Amanda Ágata. “As mais tocadas”: uma análise de representações da mulher em
letras de canções sertanejas. Campinas: Unicamp, 2015.

BERIO, Luciano. Entrevista sobre Música. Tradução: Álvaro Lorencini e Letízia Zini Nunes.
Civilização Brasileira, 1981.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 11°


ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BURKE, Peter. O que é História Cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

COSTA, Sérgio. Amores fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia. Novos estudos -
CEBRAP , São Paulo, n. 73, nov. 2005 . Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010133002005000300008&lng=pt&nrm=
iso . Acesso em: 03 set. 2019.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em


2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2012.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Izabel Magalhães, coordenadora de


tradução, revista técnica e prefácio. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

653
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FREITAS, Lucia Gonçalves. Processo na Lei Maria da Penha e Canções Sertanejas: Discursos
de amor, gênero e violência. Anais do III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III
SIDIS): Dilemas e Desafios da Contemporaneidade. São Paulo: UNICAMP, 2012.

GUTEMBERG, Jaqueline. No limiar entre a música sertaneja e a caipira.ANPHU, 2011. Disponível


em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300892880_ARQUIVO_textoanpuh.pdf.
Acesso em 05 set. 2019.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos entre machismo e violência. Revista Ciência &
Saúde Coletiva, 2005, vol.10, n.1, p.23-26. Disponível
em:http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n1/a03cv10n1. Acesso em 25 out. 2019.

NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.

NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da Roça ao Rodeio. São Paulo, Editora 34, 1999.

PIRES, Marcos Cordeiro. A naturalização da violência contra a mulher na musica popular brasileira.
In: BRABO, Tânia S. A. Marcelino (org.). Educação, mulheres, gênero e violência. Marília: Oficina
Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. P. 283-292.

SANTOS, Glauce Souza. Contos de Amor Rasgados: Diálogos sobre violências de Gênero.
Salvador: UFBA, 2017.

SCHNEIDER, Marina da Silva. Os Discursos da Boa Mulher Araranguaense: os estereótipos de


feminilidade nos jornais Campinas (1936) e Tribuna do Sul (1955). Unesc, 2018.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SOIHET, Raquel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das
Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, 2007, v. 27, nº 54, p. 281-300.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/263/26305417.pdf. Acesso em 01 set. 2019.

URSSI, Nelson. Som cria música hoje. In: BOULAY, Marinilda Bertolete (Org.). Música: Cultura
em movimento. 1° ed. Socorro, SP: Instituto Toten Cultural, 2009.

654
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - RELAÇÕES DE GÊNERO,
DIVERSIDADE SEXUAL E
VIOLÊNCIAS: O CAMPO DA
EDUCAÇÃO EM DESTAQUE

COORDENAÇÃO
Prof. Dra. Eliane Rose Maio – UEM
Prof. Dr. Márcio de Oliveira – UFAM
Prof. Dr. Reginaldo Peixoto – UEMS

655
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RESISTIR PARA EXISTIR: PRODUÇÃO DE DISSERTAÇÕES E TESES SOBRE
ORGANIZAÇÕES DE MULHERES INDÍGENAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

Carma Maria Martini261


Eliane Rose Maio262

Resumo: Vem aumentando no Brasil, nas duas últimas décadas, a participação de mulheres indígenas em espaços
públicos de discussões políticas, como exemplo podemos citar a institucionalização de inúmeras organizações de
mulheres indígenas e a ampliação do debate sobre os direitos dessas mulheres. Nesse artigo, apresentamos os resultados
de uma pesquisa cujo objetivo foi mapear teses e dissertações no acervo da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações (BDTD) em que o objeto de estudo estivesse relacionado às organizações de mulheres indígenas no contexto
brasileiro. Trara-se de uma pesquisa bibliográfica e, ao total, foram mapeados cinco trabalhos, sendo três dissertações e
duas teses, todas desenvolvidas em Universidades públicas, no período de 2006 a 2017. Como principais resultados do
estudo, podemos destacar que as organizações de mulheres indígenas, focos das pesquisas mapeadas, surgiram em um
contexto em que houve um aumento de recursos destinados ao financiamento de projetos voltados às associações de
mulheres indígenas; as suas reivindicação têm singularidades que as diferenciam dos demais movimentos feministas, pois
além das pautas específicas (maior participação política das indígenas, combate à violência doméstica, capacitação
profissional etc.), seus pleitos estão articulados às demandas gerais dos movimentos dos povos indígenas, como: luta pelo
território, educação difenciada e saúde.

Palavras-chave: Mulheres indígenas; Organização política; Gênero.

INTRODUÇÃO
A mobilização de mulheres indígenas por meio de organização institucionalizadas é algo
relativamente recente, embora elas sempre tenham acompanhado os pais e maridos nas discussões do
movimento indígena (PAULA, 2008; ÂNGELA SACCHI, 2003; JULIANA DUTRA, CLAUDIA
MAYORGA, 2019; ISA, 2020). Na década de 1980, de acordo com Ângela Sacchi (2003), havia
apenas duas organizações de mulheres indígenas no país, a saber: Associação das Mulheres Indígenas
do Alto Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié
(AMITRUT). As demais foram institucionalizadas a partir da década de 1990, sendo a maioria delas
na Amazônia brasileira, bem como, é a partir desse período que começam a ser criados os
departamentos de mulheres dentro das entidades históricas do movimento indígena (ÂNGELA

261
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM) –
DINTER UEM/UNIR; Docente do Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia
(UNIR), campus de Ji-Paraná; integrante do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Diversidade Sexual
(NUDISEX/UEM) e do Grupo de Pesquisa em Etnoconhecimento e Pesquisa em Educação (GPEPE/UNIR). E-mail:
carmamartini@unir.br.
262
Pós Doutora e Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP/Araraquara); Professora do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado/Doutorado) junto à
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
(NUDISEX) E-mail: elianerosemaio@yahoo.com.br.
656
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SACCHI, 2003; JULIANA DUTRA, CLAUDIA MAYORGA, 2019).
Atualmente, conforme um levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA, 2020)
em fevereido do corrente ano, há oitenta e cinco organizações de mulheres indígenas e sete
organizações indígenas que possuem departamentos de mulheres, totalizando noventa e duas
organizações, distribuídas em vinte e um Estados brasileiros263. Esse quantitativo ainda é baixo, se
levarmos em conta que existem mais de sete mil localidades indígenas no país (IBGE, 2019) e mais
de mil organizações indígenas264 (ISA, 2020).
Paula (2008) explica que esse caráter recente da mobilização das mulheres indigenas,
provavelmente, se dá pela própria limitação do Estado brasileiro em dialogar e reconhecer as
organizações indígenas de um modo geral, independentemente do recorte de gênero. Outro motivo
relevante seria a resistência encontrada pelas mulheres no interior dos movimentos indígenas,
históricamente liderados por homens, por conta da divisão sexual do trabalho presente na cultura dos
povos originários – a atuação das mulheres se dá no espaço privado e, a dos homens, no público.
A formação das associações de mulheres indígenas se dá, principalmente, por meio do apoio
de entidades não governamentais da sociedade internacional. Porém, segundo Ângela Sacchi (2003,
p. 100), os modelos organizativos são adaptados às realidades dos povos indígenas, “devido à própria
capacidade indígena em forjar alianças com determinados setores da sociedade envolvente”. Para a
autora, as reivindicações do movimento das mulheres indígenas têm um forte elo com as demandas
do movimento indígena nacional, um exemplo disso é a luta pela demarcação dos territórios e a
garantia dos demais direitos dos povos indígenas previstos em lei. Todavia, existem também pautas
específicas, as quais incluem o combate à violência, o estupro e a prostituição; a valorização da
identidade étnica; a ampliação da participação política das mulheres, por meio do apoio dos homens
(lideranças e maridos/companheiros) e das entidades indigenistas; o treinamento e a capacitação
profissional, tendo em vista a gradativa alteração na divisão do trabalho como consequência do
contato; e, a captação de recursos para financiar os seus projetos.
No entanto, o antropólogo indígena Gersem Baniwa (BANIWA, 2006), vê com preocupação
o surgimento de novos espaços de poder no contexto indígena. Ele considera que a criação das

263
Ver mapa das organizações de mulheres indígenas no Brasil produzido pelo Programa de Monitoramento de
Áreas Protegidas do ISA, o qual está disponívem no link https://acervo.socioambiental.org/acervo/mapas-e-cartas-
topograficas/brasil/mapa-das-organizacoes-de-mulheres-indigenas-no-brasil.
264
De acordo com o ISA (2020), do total de organizações indígenas existente no país, apenas 9% são de mulheres.
657
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
organizações de mulheres indígenas, entre outras, é consequência do contato cada vez mais intenso e
permanente com a sociedade não indígena. Nesse contexto, são impostos aos povos indígenas novos
padrões de relacionamentos considerados mais apropriados e universais, como também, existe uma
pressão para institucionalizar, no âmbito das comunidades, categorias sociais e políticas antes não
existentes.
Baniwa (2006) reconhece que as novas configurações dos povos indígenas trouxeram avanços
políticos e a garantia de direitos, no entanto, expressa preocupação quanto aos impactos que isso
causa nos modos de vida tradicionais.

[...] percebemos que as novas associações forjadas por interesses setorizados e corporativos
acabam instituindo diferentes campos de poder sustentados por elementos de forte impacto e
sedução, como o dinheiro, o emprego, os bens materiais, o prestígio político externo, os quais
acabam se sobrepondo aos campos de poder tradicionais baseados em outros princípios e
valores sociais, morais e espirituais (BANIWA, 2006, p. 211).

Diante disso, é preciso encontrar meios de tornar compativeis as novas formas de


representação e de poder com as tradicionais, tendo bom senso para não sobrepor os interesses
individuais aos da coletividade. Na perspectiva de Baniwa (2006), o direito das mulheres indígenas
devem ser preservados, mas isso não implica necessariamente na criação de uma organização política
de gênero. O caminho mais viável seria incentivar e oportunizar espaços de participação para elas
dentro do movimento indígena e nas organizações pan-étnicas locais e regionais, em que a
participação masculina é historicamente majoritária.
No intuíto de compreender melhor as especificidades do movimento de mulheres indígenas,
desenvolvemos uma investigação como o objetivo de mapear teses e dissertações em que o objeto de
estudo esteja relacionado às organizações de mulheres indígenas no contexto brasileiro. É uma
pesquisa bibliográfica, ou seja, realizada a partir do “registro disponível, decorrente de pesquisas
anteriores” (SEVERINO, 2007, p.122). A fonte de consulta foi o banco de dados da Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD)265. A seguir, apresentamos os resultados obtidos,
evidenciando o objetivo, os procedimentos metodológicos e os principais resultados das dissertações
e teses mapeadas.

MAPEAMENTO DE TESES E DISSETAÇÕES SOBRE AS ORGANIZAÇÕES DE


MULHERES INDÍGENAS NO CONTEXTO BRASILEIRO
265
https://bdtd.ibict.br
658
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para realizar as buscas no banco de dados da BDTD, utilizamos os descritores “movimento
de mulheres indígenas”, “organização de mulheres indígenas” e “associação de mulheres indígenas”
. Tivemos como retorno cento e trinta trabalhos e, após uma triagem por meio da leitura dos resumos,
constatamos que apenas em cinco o objeto de estudo tinha relação direta com as organizações de
mulheres indígenas, sendo três dissertações e duas teses (QUDRO 1).

QUADRO 1 - DISSERTAÇÕES E TESES MAPEADAS NA BDTD SOBRE ORGANIZAÇÕES DE MULHERES


INDÍGENAS E/OU FEMINISMO INDÍGENA NO CONTEXTO BRASILEIRO
Tipo Autor/a Título Ano de Universidade Programa de Pós-
defesa graduação
Tese Ângela Célia União, luta, liberdade e 2006 UFPE Antropologia
Sacchi Monagas resistência: as organizações
de mulheres indígenas da
Amazônia brasileira
Dissertação Isabel Teresa Na Trilha das pekobaym 2013 UnB Desenvolvimento
Cristina Takane guerreiras kura-bakairi: de sustentável
mulheres árvores ao
associativismo do instituto
yukamaniru
Dissertação Vanessa Mulheres indígenas na 2015 UFAM - Saúde, Sociedade
Miranda cidade: cultura, saúde e Fundação e Endemias na
trabalho (Manaus, 1995- Oswaldo Cruz Amazônia
2014)

Tese Ivânia Maria Lugar de mulher: a 2017 UFAM Sociedade e


Carneiro Vieira participação da indígena nos Cultura na
movimentos feministas e Amazônia
indígenas do Estado do
Amazonas
Dissertação Maryelle Inacia “Mulheres Kumirãyõma”: 2017 UFAM Antropologia
Morais Ferreira uma etnografia da criação da Social
Associação de Mulheres
Yanonami
Fonte: Banco de dados das autoras (2020).

Todas as pesquisas foram desenvolvidas por mulheres e em universidades públicas, no


período de 2006 e 2017, sendo uma na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), outra na
Universidade de Brasília (UnB) e três na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). No entanto,
todas as entidades que fazem parte dos estudos estão localizadas na Amazônia Legal, muito
provavelmente por que a região concentra a maioria das organizações de mulheres indígenas
existentes no país (ÂNGELA SACCHI, 2003; ISA, 2020), como já mencionamos anteriormente.
A tese intitulada “União, luta, liberdade e resistência: as organizações de mulheres
indígenas da Amazônia brasileira”, de autoria de Ângela Célia Sacchi Monagas (2006), foi
659
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Antroplologia da UFPE, sob a orientação
do Professor Doutor Renato Monteiro Athias, e a defesa ocorreu no dia 01 de setembro de 2006, em
Recife (PE) (ÂNGELA MONAGAS, 2006). O objetivo da pesquisa foi “[...] refletir sobre o processo
constitutivo das organizações de mulheres indígenas na Amazônia Brasileira, de modo particular,
sobre o ‘movimento de mulheres indígenas de Roraima’, que culmina na criação da Organização das
Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR)” (ÂNGELA MONAGAS, 2006, p. l7266, destaque da
autora).
Trata-se de uma pesquisa etnográfica realizada em diversos contextos, tanto nas comunidades
indígenas de Roraima e na sede da OMIR, em Boa Vista (RR), quanto nos encontros regionais e
nacionais realizados em Manaus (AM) e em Brasília (DF), dos quais participaram mulheres de
diversas etnias da Amazônia e de outras regiões do país. O estudo está alinhado com a problemática
de gênero, tendo em vista que essa perspectiva e modo de análise têm circunscrito a trajetória
acadêmica da autora desde a graduação (ÂNGELA MONAGAS, 2006).
Os principais resultados da pesquisa evidenciaram que: o processo de constituição das
organizações de mulheres indígenas e a articulação entre elas é algo recente; os movimentos das
mulheres indígenas têm singularidades que os diferenciam dos demais movimentos feministas, pois
além das suas pautas específicas, estão articulados às demandas gerais dos movimentos dos povos
indígenas; as organizações reivindicam a ampliação da participação política das mulheres indígenas
e ações nas áreas de sustentabilidade, capacitação profissional, saúde, combate à violência e
garantia de direitos; o ingresso das indígenas em organizações em espaços urbanos lhes dá a
oportunidade de viver experiências fora de suas comunidades; os movimentos de mulheres indígenas
não rejeitam ou menosprezam as representações tradicionais, principalmente as relacionadas aos
papéis de gênero (ÂNGELA MONAGAS, 2006).
A dissertação elaborada por Isabel Teresa Cristina Takane (2013), com o título “Na Trilha
das pekobaym guerreiras kura-bakairi: de mulheres árvores ao associativismo do instituto
yukamaniru”; foi apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília (UnB); orientada pelo Professor Doutor Henyo Trindade Barretto Filho e
defendida em 28 de janero de 2013, em Brasília (DF). A pesquisadora é indígena, da etnia Bakairi, e

266
O arquivo do texto da tese, disponível no repositório digital da UFPE, não está paginado. Então, para facilitar a
localização, utilizamos o número de páginas sequencial, com base no aplicativo de leitura de arquivos em pdf.
660
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
seu trabalho teve como objetivo “analisar o associativismo protagonizado por um grupo de mulheres
indígenas da etnia Bakairi no Instituto Yukamaniru” (TERESA TAKANE, 2013, p. 9).
A metodologia empregada para a realização da pesquisa foi a observação participante e houve
interlocuções com as mulheres associadas ao Instituto Yukamaniru de Apoio às Mulheres Indígenas
Bakairi, bem como os dirigentes e ex-dirigentes de outras associações existentes na Terra Indígena
Bakairi. Os instrumentos utilizados para obtenção dos dados foram a observação e os registros das
participações em reuniões e atividades promovidas pelo Instituto; realização de entrevistas – formais
e informais – com as fundadoras da entidade; estudo de documentos (estatutos e relatórios), bem
como de artigos, dissertações e teses a respeito dos Bakairi e associativismo indígena no Brasil
(TERESA TAKANE, 2013).
O Instituto Yukamaniru está situado na aldeia Kuiakware, Terra Indígena Bakairi, Município
de Paranatinga (MT). Surgiu da iniciativa das próprias mulheres do Povo Bakairi (especialmene das
mulheres da família Taukane), sua criação foi oficializada juridicamente em 04 de novembro de 2008
e tem como propósito a promoção do protagonismo e da inclusão social de mulheres do Povo Bakairi
(TERESA TAKANE, 2013).
Segundo Teresa Takane (2013), as Bakairi já haviam tentado criar associações para captação
de recursos destinados ao financiamento de projetos para organizações de mulheres indígenas. O
objetivo não era se sobrepor às associações já existentes, mas ter mais liberdade e agilidade para
desenvolver projetos visando melhorar a qualidade de vida nas aldeias, tendo em vista a morosidade
do setor público. No entanto, isso não se concretizou por conta da falta de preparo das mulheres para
lidar com os trâmites burocráticos. A criação do Instituto Yukamaniru deu certo, em grande medida,
porque algumas fundadoras possuiam bons níveis de instrução e isso facilitou o processo.
A pesquisa dá destaque aos projetos desenvolvidos no âmbito do Instituto Yukamaniru, tais
como o Kâdâkêrâ267, a primeira experiência da entidade, cujo objetivo era revitalizar as roças de
algodão nativo para a confecção de redes de dormir; e, o Enren Enamado268, desenvolvido no período
de 2011 a 2012, o qual visava o reflorestamento dos buritizais na Terra Indígena Bakairi. Por meio
dos projetos, o Instituto buca criar alternativas sustentáveis para melhorar a renda das familias, além

Significa “algodão” na língua Bakairi (TERESA TAKANE, 2013).


267

Singnifica “onde cresce” ou “criadouro” na língua Bakairi (enren – buriti, emanado - onde nasce) (TERESA
268

TAKANE, 2013).
661
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de revitalizar as atividades tradicionais das Bakairi. Desta forma, Teresa Takane (2013) conclui que
a experiência com o associativismo é um caminho profícuo para fortalecer os saberes tradicionais e a
criatividade das mulheres indígenas em prol da sustentabilidade ambiental e cultural.
A dissertação de Vanessa Miranda (2015), cujo o título é “mulheres indígenas na cidade:
cultura, saúde e trabalho (Manaus, 1995-2014)”, está vinculada ao Programa de Pós-graduação em
Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia da Universidade Federal do Amazaonas (UFAM) e
Fundação Oswaldo Cruz. Foi desenvolvida sob a orientação do Professor Doutor Hideraldo Lima da
Costa e defendida em 31 de agosto de 2015, na cidade de Manaus (AM). Teve como objetivo

[...]revalorizar as experiências de participação social de mulheres indígenas, no período de


1995 a 2014, em torno da criação da AMISM, Associação de Mulheres Indígenas Sateré-
Mawé, como espaço próprio de resistência e organização pela conquista de seus direitos à
cultura, à saúde e ao trabalho na cidade de Manaus (VANESSA MIRANDA, 2015, p. 5).

De acordo com Vanessa Miranda (2015), a pesquisa foi realizada com base na experiência de
aproximação e convivência da pesquisadora com as mulheres responsáveis pela criação da
Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (AMISM), e pela consulta a fontes documentais
provenientes dos arquivos da entidade – relatórios de viagens e de encontros, cartas, atas de reuniões
e assembleias, estatuto, projetos, ofícios, anotações manuscritas, fotografias, entre outros. Também
foi realizado um levantamento de dissertações, teses, livros, artigos e relatórios científicos sobre o
tema, bem como da legislação brasileira, aprovada após a promulgação da atual Constituição Federal
(BRASIL, 1988), relacionada à garantia dos direitos sociais e à saúde dos povos indígenas.
A AMISM foi fundada no ano de 1995, na Aldeia Ponta Alegre do rio Andirá, próxima à
cidade de Barreirinha (AM), e atualmente tem sede própria em Manaus (AM), no bairro da Compensa
II. Vanessa Miranda (2015) explica que, desde a fundação, a produção de artesanato ocupou lugar de
destaque na Associação, mas com o passar do tempo ganhou outros sentidos, para além de atividade
de subsistência. Por meio desse trabalho foi possível “ampliar o espaço do movimento de luta por
direitos das mulheres indígenas que vivem na cidade de Manaus, bem como em comunidades
indígenas afastadas desse centro urbano” (VANESSA MIRANDA, 2015, p. 15).
Os dados apresentados na dissertação revelam que o movimento de mulheres da AMISM é
um sujeito político comprometido com os movimentos de resistência indígena nacionais e suas lutas
pelo direito ao território. É engajado na construção de projetos próprios em prol dos direitos das
mulheres, da educação escolar diferenciada, do desenvolvimento sustentável com a manutenção
662
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
dos modos próprios de vida e a valorização do patrimônio cultural material e imaterial (VANESSA
MIRANDA, 2015).
A tese “Lugar de mulher: a participação da indígena nos movimentos feministas e indígenas
no Estado do Amazonas”, de autoria de Ivânia Maria Carneiro Vieira (2017), foi apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM, contou com a
orientação da Professora Doutora Simone Eneida Baçal de Oliveira e a defesa ocorreu em 02 de
agosto de 2017 (IVÂNIA VIEIRA, 2017). A finalidade do estudo foi “compreender e narrar o lugar,
as condições e as formas de participação da mulher indígena nos movimentos indígenas e feministas
do Estado do Amazonas” (IVÂNIA VIEIRA, 2017, p. 10).
A autora optou por adotar uma abordagem teórico-metodológica interdisciplinar para não
engessar o acompanhamento dos movimentos das mulheres, suas percepções acerca dos feminismos,
as relações político-afetivas com os líderes indígenas do gênero masculino, os impactos dos ativismos
no cotidiano das indigenas, bem como os intrincamentos entre política e cosmologias indígenas
(IVÂNIA VIEIRA, 2017). Com base no mapeamento das líderes indígenas, realizado previamente, a
pesquisa foi realizada em cinco municípios do Amazonas, a saber: Manaus, São Gabriel da Cachoeira,
Tabatinga, Benjamin Constant e Autazes. Participaram do estudo doze mulheres, sendo todas com
idade acima de 18 anos, falantes da língua portuguesa, autoidentificadas como indígenas,
representantes de nove etnias269 e líderes de organizações e/ou ocupantes de cargos “que as fazem
representantes de outras mulheres indígenas e dos povos indígenas do Amazonas” (IVÂNIA
VIEIRA, 2017, p. 21, destaque da autora). A produção dos dados da pesquisa foi realizada por meio
de entrevista com um roteiro aberto e o acompanhamento da participação das indígenas em
manifestações e eventos promovidos pelos movimentos – mais especificamento os realizados em São
Gabriel da Cachoeira, Autazes, Benjamin Constant e em Manaus (IVÂNIA VIEIRA, 2017).
Dentre os resultados da pesquisa de Ivânia Vieria (2017), destacamos: (a) A participação
política das mulheres indígenas têm configurações singulares, a representação e os movimentos
são entendimentos elaborados em outra modalidade de tempo/espaço e carregados de valores por
vezes divergentes das mulheres não indígenas e em alguns aspectos, convergentes. (b) Existe uma
percepção comum entre as entrevistadas de que os feminismos, em suas diferentes configurações, não
alcançam as indígenas e, quando o fazem, é de forma generalizante, colocando-as no grande

269
Arapaço, Baniwa, Baré, Desana, Tariano, Tikuna, Tukano, Mura e Piratapuia.
663
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
bloco das pessoas marginalizadas, desprovidas de direitos e representadas monoliticamente. (c) Para
as mulheres indígenas dois eixos de luta se destacam: ter lugar de participação na tomada de decisões
nos movimentos indígenas, geralmente liderados pelos homens; e, a inserção efetiva das lutas das
mulheres indígenas em nível nacional e internacional, tentando aproximações com os/as outros/as
para descobrirem possibilidades de caminharem juntos/as.
A dissertação de Maryelle Inacia Morais Ferreira (2017), com o título “Mulheres
Kumirãyõma: uma etnografia da criação da Associação de Mulheres Yanonami270”, foi desenvolvida
no âmbito do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFAM. Foi orientada pela
Professora Doutora Maria Helena Ortolan Matos, coorientada pela Professora Doutora Maria Helena
Ortolan Matos e defendida em 23 de agosto de 2017, em Manaus (AM) (MARYELLE FERREIRA,
2017). Seu objetivo é

[...] produzir uma etnografia sobre a criação da AMYK, a Associação de Mulheres Yanonami
da região do Rio Cauaburis Kumirãyõma, com a preocupação analítica de entender o
processo constitutivo da associação dentro do contexto político indígena do subgrupo
linguístico Yanonami (MARYELLE FERREIRA, 2017, p. 10).

Portanto, trata-se de uma pesquisa etnográfica – desenvolvida na região do canal Maturacá,


afluente do Rio Cauaburis, na Terra Indígena Yanomani, em São Gabriel da Cachoeira (AM) – cujo
campo se configurou de forma ampla. Foram estabelecidas interlocuções com bibliografias; com
documentos; com os/as sujeitos/as da pesquisa (Yanonami e não Yanonami), além de outras formas
de comunicação envolvendo meios virtuais e chamadas telefônicas; bem como a realização de oito
entrevistas com mulheres da Associação de Mulheres Yanomami Kumirãyõma (AMYK)
(MARYELLE FERREIRA, 2017).
A referida Associação foi criada na aldeia Maturacá, em 19 de junho de 2015, em um contexto
político e financeito de incentivo às políticas de gênero relacionadas aos povos indígenas, o que
permitiu uma maior participação das mulheres nas estruturas das organizações indígenas por meio da
criação de departamentos específicos e incentivo à realização de eventos destinados às mulheres, tais
como: oficinas, encontros e assembleias. Maryelle Ferreira (2017, p. 192) explica que “as mulheres
Yanonami aproveitaram a ocasião para se articularem em torno da criação de uma associação que
conjugasse seus interesses na promoção da comercialização de seus artesanatos com anseios

270
Na dissertação foi utilizada a palavra Yanonami, com “n” ao invés de “m” e i, em respeito a autodenominação
do povo de Maturacá (AM), um subgrupo dos Yanomani.
664
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
etnopolíticos específicos às suas experiências femininas”.
A pesquisadora pontua que as mulheres Yanonami nunca foram excluídas da esfera política,
porém não se sentiam contempladas pelas pautas da Associação dos Yanomami do Rio Cauaburis e seus
Afluentes (AYRCA), de gestão prioritariamente masculina. No entanto, ao criarem sua própria
associação, não pretendiam desconsiderar a ação dos homens ou derrubar o monopólio político
exercido por eles, mas sim demarcar seus espaços de interesse para atuar em prol daquilo que
consideram importante para as mulheres, contudo “compartilhando pautas e reivindicações com os
homens quanto ao alcance do bem comum da região Maturacá” (MARYELLE FERREIRA, 2017, p.
193) .
A pesquisa aponta ainda que os papéis de gênero Yanonami não são excludentes e se
configuram a partir da diferença. Por exemplo, o fato das mulheres criticarem a ação política dos
homens e vice-versa, está relacionado à forma como as relações de gênero são tecidas e configuradas
na organização social do grupo, em que homens e mulheres têm papéis bem definidos. Maryelle
Ferreira (2017, p. 193) explica que não ocorrem “oposições entre agências masculinas e femininas,
mas sim estratégias de diferenciação”, as quais são um reflexo do modo como homens e mulheres
negociam seus posicionamentos tanto nos rituais quanto socialmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao verificar os principais resultados das dissertações e teses mapeadas, constatamos que a
criação das organizações de mulheres indígenas foi motivada, principalmente, pelo fato das demandas
específicas dessas mulheres não serem comtempladas pelo movimento indígena, tais como: maior
participação política das mulheres, o combate à violência doméstica e o investimento em formação
profissional para o público feminino das aldeias. Embora os resultados das pesquisas catalogadas não
fazem menção a pressões externas em prol da institucionalização dessas entidades, fica evidente que
o apoio financeiro das organizações da sociedade civil (especialmente as internacionais) para esse
fim foi fundamental para o aumento do número de associações de mulheres indígenas nas últimas
décadas.
Também foi possível constatar que as reivindicação das mulheres indígenas têm
singularidades que as diferenciam dos demais movimentos feministas, pois, além das pautas
específicas, seus pleitos estão articulados às demandas gerais dos movimentos dos povos

665
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
indígenas. As mulheres indígenas prezam pelos interesses da coletividade de seus povos e têm se
organizado coletivamente para lutar em prol da demarcação de seus territórios, pela geração de renda
nas comunidades, contra todo tipo de preconceito e violência, e, principalmente, pela manutenção
dos modos de vida, das culturas e dos direitos de seus povos.
Diante do exposto, consideramos que o mapeamento de teses e dissertações que versam sobre
às organizações de mulheres indígenas no contexto brasileiro, com base no acervo da BDTD,
permitiu compreender melhor a dinâmica de constituição dessas entidades e quais são suas principais
reivindicações. Consideramos que o objetivo da pesquisa foi alcançado, mas as possibilidades de
entendimentos do tema não foram esgotadas. Ponderamos a necessidade de ampliar o mapeamento
por meio de consultas a outros bancos de dados e, além disso, de analisar os resultados dessas
pesquisas catalogadas com base em autores/as que discutem questões de gênero no contexto indígena.

REFERÊNCIAS

ÂNGELA MONAGAS, Célia Sacchi. União, luta, liberdade e resistência: as organizações de


mulheres indígenas da Amazônia brasileira. Orientador: Renato Monteiro Athias. 2006. 245f. Tese
(Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, 2006.

ÂNGELA SACCHI. Mulheres indígenas e participação política: a discussão de gênero nas


organizações de mulheres indígenas. Revista AntHropológicas, ano 7, vol. 14 (1 e 2), p. 95-110,
2003.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao /constituicao.htm. Acesso em: 20
ago. 2020.

ISA. Instituto Socioambiental. Organizações de mulheres indígenas no Brasil: resistência e


protagonismo. 2020. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
socioambientais/organizacoes-de-mulheres-indigenas-no-brasil-resistencia-e-protagonismo>.
Acesso em: 08 set. 2020.

ISABEL TAKANE, Teresa Cristina. Na Trilha das pekobaym guerreiras kura-bakairi : de


mulheres árvores ao associativismo do instituto yukamaniru. Orientador: Henyo Trindade
Barretto Filho. 2013. 90f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) –
Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, 2013.
666
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IVÂNIA VIEIRA. Maria Carneiro. Lugar de mulher: a participação da indígena nos movimentos
feministas e indígenas do estado do Amazonas. Orientadora: Simone Eneida Baçal de Oliveira. 2017.
222f. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Universidade Federal do Amazonas,
Manaus, Amazonas, 2017.

JULIANA DUTRA; Cabral de Oliveira; CLAUDIA MAYORGA. Mulheres Indígenas em


Movimentos: possíveis articulações entre gênero e política. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 39, p.
113-129, 2019.

MARYELLE FERREIRA. Inacia Morais. Mulheres Kumirãyõma: uma etnografia da criação da


Associação de Mulheres Yanonami. Orientadora: Maria Helena Ortolan Matos. 2017. 2005f.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus,
Amazonas, 2017.

PAULA, Luiz Roberto de. A organização institucional do Movimento das Mulheres Indígenas no
Brasil atual: notas para começar a pensar. In: VERDUM, Ricardo (org.). Mulheres Indígenas,
direitos e políticas públicas. Brasília, DF: Inesc, 2008, p. 55-64.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007.

VANESSA MIRANDA. Mulheres indígenas na cidade: cultura, saúde e trabalho (Manaus, 1995-
2014). Orientador: Hideraldo Lima da Costa. 2015. 203f. Dissertação (Mestrado em em Saúde,
Sociedade e Endemias na Amazônia) - Universidade Federal do Amazonas - Fundação Oswaldo
Cruz, Manaus, Amazonas, 2015.

667
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER: O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Reginaldo Peixoto271
Joaquim Donizete de Matos272
Thauane Cristine Branquinho Pereira273

Resumo: O presente estudo tem o objetivo de discutir a violência contra a mulher na sociedade atual, a partir dos vínculos
sociais que se estabelecem entre os gêneros. Dessa forma, a partir das considerações de estudiosos como Montesquieu
(2007), Weber (1984), Bourdieu (2002), dentre outros, pretendemos explicitar que as relações de poder entre homens e
mulheres, além de históricas, ainda acabam por segregregar o gênero feminino, além de contribuir para uma série de
violências que assolam tais sujeitos na atualidade. Sendo assim, a violência contra a mulher observada na nossa sociedade,
pode ser combatida a partir da educação, pois consideramos o papel ímpar da instituição escolar em, além de transmitir
os conhecimentos científicos, contribuir para o entendimento de que homens e mulheres são iguais, por isso necessitam
do mesmo respeito. Ao contrário, a sociedade tente a se manter guardiã de práticas seculares de machismo, preconceito,
discriminação e tantas outras formas de violências que são noticiadas em nosso meio diariamente.

Palavras-chave: Educação, poder, violência contra a mulher, igualdade de gênero.

INTRODUÇÃO
As relações de poder são práticas humanas observadas por diversos autores, como por
exemplo como Foucault (2011), Weber (1984), Bourdieu (2002), dentre outros. Tais práticas são
responsáveis por posicionar os sujeitos sociais em diferes lugares, por isso é uma relação de
inferioridade e superioridade.
Quando tratamos de gênero, histórico e culturalmente, existe diferenças que posicionam
homens e mulheres a cumprirem diferentes papéis. As mulheres são condicionadas à papéis mais
ocultos, enquanto os homens são vislumbrados reconhecidos. Isso, inclusive, pode ser visto nas
relações familiares, onde o masculino ocupa centralidade e tem o domínio da casta, mantendo as
tradições que se perpetuam, ainda, em muitas instituições familiares.
De acordo com autores pesquisados, como exemplo de Louro (1998), falar sobre gênero, é
reconhecer as diferenças existentes entre homens e mulheres. A mulher tem sido invisibilizada e
diminuída em nossa sociedade, tanto pela sua tragetória, quanto por sua constituição. A violência

271
Professor do Curso de Pedagogia e Mestrado em Educação da UEMS – Unidade de Paranaíba. E-mail:
regi.peixoto77@gmail.com
272
Aluno do Programa de Pós-graduação, Mestrado em Educação da UEMS – Unidade de Paranáiba. E-mail:
joaquimdematos@uol.com.br
273
Aluno do Programa de Pós-graduação, Mestrado em Educação da UEMS – Unidade de Paranáiba. E-mail:
cristine_pba@hotmail.com
668
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contra a mulher, certamente, se naturaliza e se perpetua em nossa sociedade, tanto nas relações de
poder, quanto nas familiares, profissionais, etc.
A violência contra a mulher tem aumentado no Brasil e ocorre de formas diversas. Os índices
de espancamentos, estupros, abusos sexuais, homicídios e até mesmo o suicídio, têm sido alarmantes,
além de ocupar muitas páginas do notíciário nacional. Por assim, além de legislações que coibem
essas ações, como a exemplo da Lei Maria da Penha, se fazem necessárias outras ações que emanem
o respeito e a igualdade.
A escola, por seu papel social e histórico, que visa a transformação do sujeito humano a partir
do conhecimento, pode e deve ser uma grande contribuidora para a promoção da igualdade de gênero
e para a diminuição/eliminação da violência contra a mulher, por meio de ações pedagógicas que
levem seus sujeitos a refletirem acerca do prejuízo que tal temática causa.
Nesse sentido, além de uma formação adequada dos professores, é preciso um grande
movimento, para que a partir da educação, a sociedade seja mais inclusiva, mais respeitosa e
igualitária. As diferenças de gênero não podem continuar preconizando a violência que assola as
mulheres brasileiras nos diferentes lugares de convivência, por isso, a escola poderá contribuir na
formação de pessoas mais humanas e menos violentas.

O PODER E AS SUAS RELAÇÕES COM A INVISIBILIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA


DIVERSIDADE

As relações de poder que se fazem presentes na atualidade perduram desde os primórdios da


humanidade. O poder se expressa sobre outrem nas suas mais variadas formas e interpretações, de
acordo com o modo como ele é exercido e o meio em que ele se encontra.
Para entendermos como ocorrem as relações de poderes sobre os sujeitos da diversidade na
sociedade contemporânea em que vivemos, é preciso conhecer o conceito teórico e prático de poder,
nas suas mais variadas vertentes. O poder, dependendo das circunstâncias, pode ser definido como o
exercício da autoridade, da soberania, da posse de um domínio, da influência ou da força.
O poder é algo tão fascinante e ao mesmo tempo intrigante, que ao longo dos tempos tornou-
se objeto de estudos nas mais diversas áreas do conhecimento, tais como: filosofia, sociologia e
antropologia, dentre outras, que tentam racionalizar, entender e explicar a sua relação com a
humanidade.

669
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Diante do exposto, diversos estudiosos renomados, como Montesquieu (1689-1755), Max
Weber (1864-1920), Pierre Bourdieu (1930-2002) e Michel Foucault (1926-1984), dentre outros,
relataram diversas pesquisas e teorias sobre o poder nas suas mais variadas formas, como veremos a
seguir.
Em meados do século XVII, o filósofo francês Charles-Louis de Secondat, conhecido como
Montesquieu, formulou em sua mais importante obra, “Do Espírito das Leis”, a célebre separação e
distinção entre os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, os quais deveriam se autorregular.
Em suas palavras, “todo homem que tem o poder é tentado a abusar dele”, de maneira que “é preciso
que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”, evitando, assim, o despotismo.
(MONTESQUIEU, 1987, p. 198). Montesquieu afirma que, sem um princípio de contenção e
equilíbrio de poder, o mundo está constantemente em risco.
Este sistema de poder político, adotado por inúmeras nações, foi responsável pela criação e o
cumprimento de leis, que visam garantir maior segurança para coibir qualquer forma de violência e
de abuso de poder sobre o subalterno, tendo em vista, preservar a vida e a integridade física, moral e
social. Tal abuso do poder muitas vezes oprime, maltrata, segrega, marginaliza e exclui o indivíduo
da sociedade a qual pertence.
Já no século XX, o jurista e economista alemão Maximilian Karl Emil Weber, conhecido por
Max Weber, considerado um dos fundadores da Sociologia, também explicita sua definição de poder,
para ele “[...] significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social,
mesmo que contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade.”
(WEBER, 1984, p. 43).
Segundo esta concepção Weberiana, a ideia de imposição da vontade, contém em sua
formulação a intencionalidade por parte dos dominantes e dos dominados, essa relação pode ser
estreitada nas mais diversas sociedades, em qualquer parte do mundo, onde existam pessoas, embora
sabemos que cada povo possui suas práticas sociais. Tal imposição da vontade consiste na
possibilidade de afetar o comportamento de outrem da maneira desejada. O sucesso para o detentor
do poder está condicionado, portanto, ao comportamento do outro, de modo que atenda a sua
necessidade, mesmo que de forma arbitrária à sua vontade.
Também no século XX, o sociólogo francês Pierre Félix Bourdieu, escreveu em uma de
suas diversas obras, aquela denominada “A dominação masculina”, a existência de um poder

670
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
simbólico, capaz de gerar “[...] violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente do desconhecimento.” (BOURDIEU, 1999, p.7).
Tal poder, busca afirmar o sentido imediato do mundo, instituindo valores, classificações
(hierarquia) e conceitos que se apresentam aos agentes como espontâneos, naturais e desinteressados.
O poder simbólico, transforma a visão e a ação dos agentes sociais sobre o mundo e, com isso, o
próprio mundo em que vive. É um poder “[...] invisível, o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. [...]
quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)
e só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário [...]” (BOURDIEU, 1989, p.
8, p. 14).
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em sua obra “Vigiar e punir”, discute
sobre o poder disciplinar como uma ação punitiva, que transforma o que antes era uma “arte
das sensações insuportáveis”, uma referência aos suplícios e as execuções públicas, em uma
“economia dos direitos suspensos”, relativa ao nascimento e aperfeiçoamento das novas
técnicas do poder, quais sejam: a disciplina, a reclusão e a vigilância incessante. (FOUCAULT,
2011, p.16-21).
Segundo Foucault, o poder não existe enquanto coisa, ele é mais exercido do que
possuído. Vemos, portanto, um poder mais discreto, porém, onipresente, que substitui o
brilho das manifestações vultosas de poder (os grandes rituais do poder – coroação,
submissão dos súditos, ostentação das conquistas), “pelo jogo ininterrupto dos olhares
calculados”. O poder disciplinar se exerce “tornando-se invisível: em compensação impõe aos
que submete um princípio de visibilidade obrigatória”. Pois, na “disciplina, são os súditos que
têm que ser vistos” (FOUCAULT, 2011, p. 170-179).
De posse do conhecimento sobre os mais variados conceitos de poder, podemos tratar de algo
mais especifico, a violência praticada contra os sujeitos da diversidade, de forma especial, a exercida
contra a mulher. Ainda que muitas políticas tenham sido criadas em seu favor, no Brasil, a mulher
ainda é alvo de desafeto dos homens machistas, de abuso sexual, estupro, feminicídio e diversas
outras formas de violência.

671
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A Lei n. 11.340/2006 (BRASIL, 2006), recebeu o nome de Maria da Penha, devido ao fato de
a pessoa de Maria da Penha ter sofrito violência doméstica e, como consequência disso, a mesma ter
ficado com graves traumas físicos, após tentativa de homicídio por parte de seu companheiro, no
entanto, ainda que tenham se tornado mais visíveis após a aprovação dessa legislação, a violência
contra a mulher continua sendo motivos de embates na esfera pública, pois muitos mulheres sofrem
diariamente, tendo seus direitos negados, suas vidas ceifadas e seus corpos cicatrizados - por homens,
na grande maioria das vezes.

A LEI MARIA DA PENHA


O Estado, por meio de seus três poderes constituídos, criou, sancionou e promulgou diversas
leis que garantem medidas de proteção ao indivíduo. Tais leis tem o objetivo de manter a ordem e
assegurar a integridade física, psicológica, moral, social e cultural, e evitar o abuso de poderes do
indivíduo dominante sobre o dominado, com condutas e atos violentos, discriminatórios,
preconceituosos, seja por sua raça, etnia, idade, credo, cor, gênero, profissão, orientação sexual ou
por quaisquer outros motivos.
Considerada nossa Carta Magna, a Constituição Federal de 1988, em seu § 8º do Art. 226,
assegura que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. O Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”. (BRASIL, 1988, s/p.)
Neste sentido, para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
inúmeros mecanismos e medidas foram adotados, dentre elas, podemos citar a Lei nº 11.340, de 07
de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, que diz em seu Art. 2º:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura,
nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (
BRASIL, 2006, s/p.)

Para os efeitos desta Lei, em seu artigo art. 5º, configura violência doméstica e familiar contra
a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

672
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Conforme as informações obtidas no portal virtual do Instituto Maria da Penha (BRASIL,
2009), a referida lei pode ser aplicada para proteger todas as pessoas que se identificam com o gênero
feminino e que sofram violência em razão desse fato, independentemente de orientação sexual.
Inclusive, alguns tribunais de justiça já aplicam a legislação para mulheres transexuais. Quanto ao
homem, ele será colocado diante da Lei n. 11.340/2006 sempre que for considerado um agressor. Se
ele for vítima, serão aplicados os dispositivos previstos no Código Penal, e não aqueles presentes
na Lei Maria da Penha.
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio
constitucional da igualdade, perante a lei, nos seguintes termos:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988, s/p.).

De acordo com a a Carta magna, todos são iguais perante a lei, porém, de acordo com Instituto
Maria da Penha, o problema estaria no fato de que a lei teria tratado a violência doméstica e familiar
pelo viés de gênero, o que, para muitos, seria uma “discriminação” do sexo masculino, pois marcaria
uma diferenciação entre homens e mulheres e infringiria o princípio da isonomia. Esse princípio não
significa uma igualdade literal, mas prescreve que sejam tratadas igualmente as situações iguais e
desigualmente as desiguais. Ora, as mulheres enfrentam desvantagens históricas dentro do contexto
machista e patriarcal em que vivemos, as quais vão desde o trabalho, passando pela participação
política e o acesso à educação, até as relações familiares, entre outras.
Dessa forma, a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), longe de privilegiar as mulheres em
detrimento dos homens, tem uma atuação imprescindível para equilibrar as relações e proteger as
primeiras em situação de risco e violência, visando uma igualdade real, e não apenas teórica. Por fim,
vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF) também já se posicionou quanto a essa questão,
decidindo pela constitucionalidade da lei.
Ainda, conforme afirma o Instituto Maria da Penha (BRASIL, 2009), a lei será aplicada para
proteger todas as pessoas que se identificam com o gênero feminino e que sofram violência em razão
desse fato − conforme o parágrafo único do art. 5º da lei, a violência doméstica e familiar contra a
mulher pode se configurar independentemente de orientação sexual. Inclusive, alguns tribunais
de justiça já aplicam a legislação para mulheres transexuais. Quanto ao homem, ele será colocado

673
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diante da Lei n. 11.340/2006 sempre que for considerado um agressor. Se ele for vítima, serão
aplicados os dispositivos previstos no Código Penal, e não aqueles presentes na Lei Maria da Penha.
Neste sentido, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (2006),
construído pelos três poderes da República, com a colaboração e participação de organismos
internacionais, instituições de educação superior e a sociedade civil organizada, diz que:

[...] a inserção dessa discussão no currículo da Educação Básica, quando indica como uma
das Ações Programáticas previstas para a Educação Básica: fomentar a inclusão, no
currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia,
religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as
formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada
dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas.
(BRASIL/CNDH/MEC, 2006, p. 24).

Conforme Tomaz Tadeu da Silva (1993, p. 122) afirma, é preciso “ver a Educação, a
Pedagogia e o Currículo como campos de luta e conflito simbólico, como arenas contestadas na busca
da imposição de significados e da hegemonia cultural”.
Portanto, para combater os diversos tipos de violência, não basta apenas medidas punitivas ao
agressor e protetivas às vítimas de violência, é preciso maior conscientização da sociedade para evitar
qualquer tipo de agressão. O melhor caminho, para que haja esta conscientização e respeito mútuo, é
a inserção deste tema no currículo da educação básica à superior. É preciso uma formação docente
capaz abordar as temáticas sobre as sexualidades em sala de aula, de modo que desde cedo, as crianças
aprendam a respeitar as diferentes expressões e identidades sexuais. Para tal, faz-se necessário a
interferência de um currículo atento à formação escolar para a construção do sujeito social, afim de
evitar os preconceitos e atitudes discriminatórias, que geram violência na sociedade, principalmente
a violência contra a mulher, que tem demarcado grande parte desse “terreno” de poder, lutas e
sofrimentos.

A FAMÍLIA NUCLEAR E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


A família nuclear (formada por um casal heterossexual, unido pelo casamento, que cria seus
filhos biológicos em coabitação) perde considerável espaço na vida social, tanto em termos
estatísticos, quanto em termos normativos: o número de divórcios cresce no mundo todo, são
incrementadas as estatísticas sobre famílias monoparentais e as famílias formadas por casais
homossexuais começam a ter sua legitimidade reconhecida, o casamento legal parece

674
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
transformar-se mais em uma formalidade do que uma obrigação moral (VASCONCELLOS, 2013, p.
137).
A esse mesmo respeito, Oliveira (2009, p. 68), também observa os diferentes arranjos
familiares e explicita que;

Tais arranjos diversificados podem variar em combinações de diversas naturezas, seja na


composição ou também nas relações familiares estabelecidas. A composição pode variar em
uniões consensuais de parceiros separados ou divorciados; uniões de pessoas do mesmo sexo;
uniões de pessoas com filhos de outros casamentos; mães sozinhas com seus filhos, sendo
cada um de um pai diferente; pais sozinhos com seus filhos; avós com os netos; e uma infi
nidade de formas a serem defi nidas, colocando-nos diante de uma nova família, diferenciada
do clássico modelo de família nuclear.

Para a autora do excerto, a constituição da instituição família, na atualidade, se figura de uma


outra forma, diferente de algum tempo atrás, quando se pautavam em certa padronização. O modelo
que existe hoje, é fruto dos interesses e das formas de convivências que têm se estabelecido ao longo
dos tempos. Por isso, não cabe mais pensar numa família nuclear.
A pensar no contexto mundial, a tradicional família nuclear é caracterizada com enfase na
imagem masculina, sendo o homem considerado o lider (chefe), que possui mais força, que mantém
a casa e cita as ordens. Enquanto a mulher é a que possui a imagem de frágil, que se ocupa dos
afazeres domésticos, dos filhos e serve ao marido.
Essas diferenças abordadas no parágrafo anterior se constroem ao longo dos tempos e são
frutos das relações sociais. Os estudos de gênero nos ajudam a observar como que a desigualdade
entre homens e mulheres vão se acentuado na cultura e na sociedade, e como que os papéis vão sendo
definidos, inclusive, em muitas famílias atuais.
Sobre a reprodução dos papéis sociais, Bourdieu (1977, p. 103) observa que

O trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três instâncias principais,
a Família, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de
agirem sobre as estruturas inconscientes. É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal
na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência
precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida
pelo direito e inscrita na linguagem.

De acordo com o excerto, ao longo da história, a mulher foi ocupando lugares diferentes do
homem, no entanto, mudanças foram siginificativas em prol das mulheres com o passar dos anos
e, a partir de movimentos feministas, as mulheres conseguiram maior visibilidade perante a

675
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sociedade. Isso fez com que ampliasse o número de mulheres que trabalham fora para ajudar no
sustento da família, como também aumentasse a porcentagem de mulheres chefes de famílias,
principalmente aquelas que foram abandonadas por seus companheiros sendo obrigadas a sustentar e
criar seus filhos sozinhas.
Ainda que a mulher tenha passado a ter uma vida mais produtiva e, consequentemente,
contribuído mais para a economia e para as rendas familiares, nota-se bastante crescente a violência
contra ela, no entanto, muitos são os fatores que causam a permanencia da mulher ao lado do seu
agressor, como salientam Santos e Moré (2011, p. 222) quando avaliam que:

[...] o grau de instrução das mulheres agredidas é baixo, o que limita suas possibilidades de
escolha profissional, além de fazer com que optem por profissões pouco valorizadas
socialmente e de baixa remuneração, quando resta a elas ficarem relegadas ao trabalho de casa,
tornando-se completamente dependentes do marido/companheiro para sobreviver.

Segundo as autoras, a violência psicológica a que muitas mulheres são submetidas na relação
conjugal, através de xingamentos, humilhações, depreciação de seu modo de vestir e desqualificação
de seu corpo, entre outros, só faz aumentar sua insegurança e diminuir sua autoestima, tornando-a
cada vez menos capaz de enfrentar as agressões sofridas. Isso a fragiliza, inclusive, a não denunciar
o agressor.
A violência contra a mulher é causada em grande parte pelo marido, pai, imãos e
companheiros, o que demonstra ser uma violência também de gênero, causada pela disputa entre a
masculinidade e feminilidade criada culturalmente pela sociedade que vivemos.
Santos e Moré, (2011, p. 224), ressaltam “[...]a violência perpetrada contra a mulher dentro
da família, ao repercutir de tal maneira em crianças e adolescentes, pode formar um ciclo contínuo
do problema, ou o que se chama de transgeracionalidade da violência [...]”. É comum vivenciar nas
famílias que as crianças, por conviver em ambiente de conflitos e agressões, absorvam essas práticas
e as reproduzam passando de uma geração para a outra. São vários os elementos que, articulados,
caracterizam e constituem a violência contra a mulher e ajudam a perpetuá-la, bem como contribuem
para criar e alimentar a vulnerabilidade feminina. (SANTOS e MORÉ, 2011, p. 225).
A violência sofrida pela mulher, é praticada em maior porcentagem por membros da família,
sendo justificado o ato de violência pela maneira que a mulher se comporta, por suas roupas, terminos
de relacionamentos, e principalmente por ter que se diminuir perante o homem, seja pai ou

676
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
marido, que se acha no direito de controlar e manipular de maneira machista a vida da mulher uma
vez que se declaram o sexo forte, o lider da casa.

O PAPEL DA EDUCAÇÃO NA PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A


MULHER

A educação é o que transforma o ser humano desde de sua infância, é a oportunidade de


adquirir saberes para viver e sobreviver em sociedade. Logo a educação também é peça chave na
prevenção contra os mais diversos tipos de violências seja contra mulher, de raças, de crenças, etnias,
etc.
A formação continuada oferecida aos professores, é o método mais eficaz para a disseminar
sobre a prevenção da violência contra a mulher, uma vez que esna escola se encontram todos os
sujeitos, inclusive os que vislumbram violências diversas, diariamente, nos seis familiares.
Sendo assim, é importante que a escola valorize a diversidade de gênero, pois, certamente,
contribuirá para formar uma sociedade mais justa e igualitária. Por isso,

A formação continuada, hoje, encontra-se diante do desafio de ir além das questões relativas
ao treinamento e ao desenvolvimento de competências técnicas, contemplando as questões
referentes a valores, ética e política na preparação de profissionais da educação. Nessa
perspectiva, entende-se que a educação é um fenômeno social abrangente que comporta a
articulação entre as dimensões técnica, humana e político-social nos assuntos relacionados à
docência. (SILVA; SILVA, 2017, p. 88)

Por meio da citação é possivel afirmar que a formação continuada aos docentes estuda e
debate as questões de gênero, e favorece a compreensão de como são construídas as relações entre
homens e mulheres, esclarece como surge o fenômeno da violência contra a mulher em nossa cultura
e fortalece ações de enfrentamento dessa violência na perspectiva educacional e preventiva.
De acordo com Mizukami (2013), formação inicial não dá conta de habilitar o professor para
todas as temáticas que se inserem no dia a dia da escola, visto que a sociedade é mutável, assim como
também os são, os desafios que a educação pressupõe à prática docente. Em detrimento disso, é
preciso reaprender de tempo em tempo.
Em concordância com Mizukami (2013), Silva e Silva (2017, p. 90) analisam que:

O profissional de educação se depara cotidianamente com situações vindas da


comunidade escolar em que é necessário orientar, informar e encaminhar soluções de
maneira adequada. Por isso, é importante conhecer os dispositivos apresentados na

677
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
legislação que ampara os direitos das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, o
que dá maior segurança no atendimento e encaminhamento dos casos recebidos nas escolas.
O atendimento ao sujeito estudante implica trabalho profissional qualificado para ouvi-lo,
ampará-lo legalmente e fazer com que se sinta seguro e protegido na e pela instituição escola.
Nesse sentido, a preparação do profissional, para o atendimento e encaminhamento das
pessoas em situação de violência, impacta positivamente na vida do estudante e na escola como
um todo.

A importância das discussões sobre os direitos das vitímas em caso de voilência na escola
deve ser enfatizado, para que essas vitímas sejam capazes de se encorajar e denunciar as agressões
que vivem e conscientizar mulheres que não sofrem violência para possíveis acontecimentos. Isso
deve envolver a familía de modo geral, fazendo com que se consientizem de que no ambiente escolar
essas vitímas são acolhidas e ajudadas nas causas e prevenções a violência.
Para Youn (2007), a escola é responsável pela transmissão do conhecimento científico, o qual
o utor denomina de “poderoso”. Esse conhecimento é capaz de mudar atitudes, criar ideias,
estabelecer o respeito e valorizar as diferenças. A escola, enquanto instituição social, deve falar
muitos assuntos, inclusive de gênero, pois a invisibilização de alguns sujeitos e /ou identidades, é
motivo, muitas vezes de violência, segregação e preconceito.
Ao que defende Braga (2012), a esola é um espaço de convivência, onde diariamente, circulam
homens e mulheres que levam contigo suas experiências afetivas e identitárias, por isso, abordar a
temática gênero e igualdade de gênero é orientar para a expressão da sexualidade, para o respeito e
para o entendimento de que os direitos de cada pessoa devem ser respeitados. Assim, quando a escola
aborda o direito das mulheres, as relações de poder e as violências contra essas pessoas, cumpre com
seu papel social transformador.
A escola é um espaço privilegiado de discussão e debate sobre as questões do cotidiano e da
sociedade, podendo ser promotora de políticas e ações voltadas para o enfrentamento da violência
contra a mulher. Ademais, muitas situações de violência podem ser identificadas no cotidiano escolar,
no convívio entre os profissionais e os alunos e seus familiares. Também, muitas vezes, o docente se
depara com situações e fatos criminosos em suas análises acerca dos alunos, seus desempenhos
acadêmicos e seus comportamentos (SILVA; SILVA, 2017, p. 91).
Sendo assim, vale ressaltar que a escola, enquanto espaço de representação social, não pode
se silenciar, deve reconhecer as diferentes expressões humanas, valorizar as diferenças e promover
um debate de respeito entre alunos, professores e funcionários. Certamente, isso corroborará para

678
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
uma sociedade melhor, mais inclusiva e mais humanizada – quiçá a mulher deixará de ser vítima de
tanta violência, preconceito e discriminação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos as discussões desse texto sob uma reflexão do conceito de poder e como ele vem
contribuindo para a segregação de diferentes sujeitos, seja historicamente, como na atualidade. Tais
relações possuem formas arbitrárias, uma vez que sempre causa prejuízo a uma das partes.
Diante aos estudos, podemos perceber que a nossa sociedade é constituída entre posições
diferenciadas: os que mandam e os que cumprem ordens, os que violentam e suas vítimas, os que
possuem vida pública e os que possuem vida privada. O poder está no trabalho, na família e em outros
espaços de convivência social.
As relações de gêneros, admitidas nesse texto como relações de poder, podem ser
vislumbradas como uma das motivadoras da violência social que acomete diariamente, milhares de
mulheres brasileiras, seja por meio da violência física, do estupro, do abuso, do homicídio e do
suicídio. As mulheres são vítimas sociais e, muitas vezes, seus sofrimentos são causados no seio da
sua famíla, no convívio conjugal.
Sendo assim, ao discutirmos as relações de poder entre os gêneros, afirmamos a invisibilização
histórica da mulher na nossa sociedade, uma vez que os papéis que ela ocupa, nem sempre, ou na
maioria das vezes, se voltam para a inferioridade, por causa do machismo, do preconceito ou da
discriminação.
A escola, por ser uma instituição de representação social, dado o seu papel que é de
transformar os sujeitos que dela fazem parte diariamente, não pode ficar alheia ao que relatamos. É
necessário um posicionamento pedagógico, a partir de uma formação adequada, de modo que os
professores, além de discutir os tantos temas sociais, possam também falar sobre gênero, relações de
gênero, diferenças, violências contra as mulheres, etc.
Dessa forma, a partir do conhecimento, é possível contribuir para uma sociedade mais justa,
inclusiva e igualitária, onde a mulher deixe de ser tratada com diferença e passe a ser reconhecida
como sujeito de direito e com igualdade.

REFERÊNCIAS

679
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em: 26/08/2020.

__________ Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação


em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação,
Ministério da Justiça, 2006.

__________ Lei Nº 11.340, DE 7 de agosto de 2006 - Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acessado em:
26/08/2020.

__________ Instituto Maria da Penha. Fortaleza – CE, 2009. Disponível em:


https://www.institutomariadapenha.org.br/. Acessado em: 25/08/2020.

Instituto Maria da Penha. Mitos da Violência Doméstica. Disponível em:


https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/o-que-e-violencia-domestica.html.
Acessado em: 27/08/2020.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

__________.O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: Elementos para uma Teoria do


Sistema de Ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

BRAGA, Eliane Rose Maio. Gênero, Sexualidade e Educação: questões pertinentes à pedagogia. In:
CARVALHO, Elma Julia Gonçalves de; FAUSTINO, Rosangela Célia (Orgs.). Educação e
Diversidade Cultural. 2. ed. Maringá: Eduem, 2012, p. 209-222.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. 17. ed.. Vol. 1. Trad. de Maria
Thereza de Albuquerquee J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

__________ Vigiar e punir: nascimento da prisão. 39.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 2.


ed. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoleti. Escola e desenvolvimento profissional da docência. In:


GATTI, Bernadete Angelina et al (Orgs.). Por uma política nacional de formação de professores.
São Paulo: Unesp, 2013. p. 23-54.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das leis. Tradução Pedro Vieira Mota.
São Paulo: Ediouro, 1987.

680
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
OLIVEIRA, Nayara Hakime Dutra. Recomeçar: família, filhos e desafios [online]. São Paulo: Editora
UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 236 p. ISBN 978-85-7983-036-5. Available from
SciELO Books. Disponíel em: http://books.scielo.org/id/965tk/pdf/oliveira-9788579830365-03.pdf.
Acesso em 02 setembro 2020.

SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos ; FREITAS, Sandra Mara de. Relações entre os gêneros,
poder e violência: formação de professoras e professores. Disponível em:
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/sem_pedagogica/fev_2009/relacoes_gener
os_poder_violencia_seed.pdf. Acessado em: 27/08/2020.

SANTOS, A. C. W. dos; MORÉ, C. L. O. O. Impacto da violência no sistema familíar de mulheres


vítimas de agressão. PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2011, 31 (2), 220-235.

SILVA, Tomaz Tadeu “Sociologia da Educação e Pedagogia Crítica em Tempos PósModernos”. In:
_________.(org.) Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-Modernos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993.

SILVA, Ângela Anastácio; SILVA, Erisvelton Lima. O curso “Maria da Penha vai à Escola” como
importante iniciativade formação continuada dos profissionais de educação. In: Ben-Hur Viza et al
(Orgs.). Maria da Penha vai à escola: educar para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher. Brasília: TJDFT, 2017. p. 86- 96.

VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. A família, a violência e a justiça. Civitas, Porto Alegre.
v. 13, n. 1. p. 136-153. Jan.-abr. 2013

WEBER, M. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.

681
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AMBIENTE ESCOLAR E EDUCAÇÃO SEXUAL INFANTIL: DISCUSSÕES
NECESSÁRIAS

Berivalda de Jesus do Prado Sachi274


Eliane Rose Maio275

Resumo: Este artigo tem por objetivo geral apresentar estudos sobre a formação docente de professores/as do Ensino
Fundamental I e as questões do ensino da educação sexual, e como objetivo específico levantar apontamentos sobre como
essa temática poderia ser trabalhada em sala de aula. Há dois complicadores que fazem com que essa educação não
aconteça, ou aconteça de forma ineficaz, a saber: a família “tradicional”, “patriarcal” e “arcaica”, e o despreparo dos/as
educadores/as. A metodologia utilizada para desenvolvê-lo é de cunho bibliográfico, onde buscou-se a literatura
pertinente. O referencial teórico baseia-se no Materialismo-Histórico-Dialético, no conceito do/a professor/a crítico/a-
reflexivo/a, e na possibilidade de atuar com o ensino da educação sexual. A escola por ser uma instituição que tem por
finalidade educar, dever-se-ia, educar também para a sexualidade, levando em consideração que a infância passa por uma
construção histórica e social. Desse modo, conclui-se a relevância de se ensinar efetivamente a educação sexual, não
somente no espaço escolar, mas principalmente nele, pois é também nesse local que as relações sociais acontecem e que
permitem aos sujeitos se remodelarem a partir de entrelaçados da sua história de vida, da sua cultura, do conhecimento
científico e da vivência cotidiana, construindo, assim, uma sociedade mais equitativa para todos/as.

Palavras-chave: Escola; Educação Sexual; Formação do/a Professor/a.

INTRODUÇÃO
Discutir Educação Sexual na escola, mesmo no século XXI, causa, ainda, desconforto em
muitas pessoas. Há ainda, o paradigma276 de que essa educação é de responsabilidade exclusiva dos/as
pais/mães ou responsáveis e, portanto, deve acontecer no ambiente familiar.
Na maioria das vezes temos essa situação – paradigma posto à nossa frente, enquanto
educadores/as que somos, temos ainda como complicador o nosso próprio despreparo. Temos até aqui
dois complicadores que fazem com que a educação sexual não aconteça na sala de aula, ou aconteça
de forma ineficiente, a saber: a família “tradicional”, “patriarcal”, “arcaica”, “desinformada” e o
despreparo dos/as educadores/as.
Obviamente, existem outros complicadores para dificultar essa educação, entre eles, temos as
políticas públicas, a religião, a cultura etc, que nesse primeiro momento não serão os objetivos desse
estudo. Tendo em vista que focamos na formação do/a professor/a e sua forma de ensinar educação
sexual em sala de aula.

274
Mestranda em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. E-mail: berivaldaprado@gmail.com
275
Pós-doutora em Educação Escolar (UNESP/Araraquara), professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE), mestrado e doutorado.E-mail: elianerosemaio@yahoo.com.br
276
Modelo, padrão (DICIONÁRIO MINIAURÉLIO, 2001, p. 53).
682
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÂO SEXUAL, GÊNERO E SEXUALIDADE
Para iniciar este diálogo conceituamos o que é educação sexual, gênero e sexualidade,
entendendo que conceito serve, assim, como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo tempo, uma
ferramenta política. O conceito pretende se referir ao modo como as características sexuais são
compreendidas e representadas ou, então, como são “trazidas para a prática social e tornadas parte do
processo histórico” (LOURO, 1997, p. 21-22).
Figueiró (2006, p. 38) define educação sexual como “toda ação ensino-aprendizagem sobre
sexualidade humana, considerando o conhecimento de informações básicas. Discussões e reflexões
de valores, sentimentos, normas e as atitudes ligadas à vida sexual”. Sobre gênero Louro (1997, p.
24) define que se deve entendê-lo como constituinte da identidade dos sujeitos, compreendendo esses
sujeitos como tendo identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas
ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias. E a sexualidade pode ser definida como
tudo que compreenda relações e ações de pessoas entre si e consigo mesmas, enquanto seres sexuados
(USSEL, 1980).
A educação sexual deve ser ensinada às crianças com o objetivo de fazê-las percorrer um
caminho de aprendizado, onde ela atue como sujeito participativo, ou seja, construa junto com o/a
professor/a o seu conhecimento em relação à sua sexualidade.

Sexualidade é uma dimensão ontológica essencialmente humana, cujas significações e


vivências são determinadas pela natureza, pela subjetividade de cada ser humano e,
sobretudo, pela cultura, num processo histórico e dialético (FIGUEIRÓ, 2006, p. 42).

As questões relacionadas à sexualidade estão presentes no dia a dia da criança, queira o adulto
ou não, é possível percebê-la em situações de brincadeiras, de conversas informais com as demais
pessoas, nas inscrições em muros, paredes e portas da escola, em determinadas piadas, músicas
poemas etc. (LOURO, 1997,)
Mesmo a escola tendo por função social transmitir o conhecimento, há ainda em algumas
delas um silenciamento em relação ao trabalho sobre educação sexual, gênero e sexualidade. Quando
essas temáticas são desenvolvidas na escola, na maioria das vezes, não se trata de trabalhá-la de
maneira emancipatória, ou seja, o foco central está no biológico em detrimento do cultural, das
relações que são estabelecidas socialmente.

683
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AS PRIMEIRAS NUANCES DA EDUCAÇÃO SEXUAL NO BRASIL

Fazendo um recorte histórico sobre a sexualidade, no Brasil, segundo Sayão (1997), por volta
de 1920, surgem as primeiras nuances da educação sexual, porém, somente com o cunho de evitar as
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e preparar a mulher para o papel de esposa e mãe.
Ainda, segundo Sayão (1997), em 1960, na rede pública de ensino, do Estado de São Paulo,
algumas propostas sobre ensino da educação sexual permeavam a normatização de condutas morais.
Entre 1954 e 1970, alguns/mas professores/as davam informações sobre sexualidade, apenas com o
foco voltado para as questões de saúde. A partir dos meados de 1980, pós Golpe Militar, a ideologia
ainda era moralista.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)277, em meados de 1980, a sexualidade
entra como tema transversal278 e começa a preocupar os/as educadores/as, pois eles/as se viam num
campo desconhecido e complexo, portanto, sentiam-se despreparados/as para abordarem questões
relacionadas à sexualidade em sala de aula.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997, p. 300) expõem que

a Orientação Sexual oferecida pela escola aborde com as crianças e os jovens as repercussões
das mensagens transmitidas pela mídia, pela família e pelas demais instituições da sociedade.
Trata-se de preencher lacunas nas informações que a criança e o adolescente já possuem e,
principalmente, criar a possibilidade de formar opinião a respeito do que lhes é ou foi
apresentado. A escola, ao propiciar informações atualizadas do ponto de vista científico a ao
explicitar e debater os diversos valores associados à sexualidade e aos comportamentos
sexuais existentes na sociedade, possibilita ao aluno desenvolver atitudes coerentes com os
valores que ele próprio eleger como seus.

Como já citamos acima, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) incluem a educação


sexual como tema transversal, diante disso Figueiró (2006) menciona que esta é uma educação que
requer certa urgência social, e deve ser trabalhada nas diversas áreas do conhecimento.

A FORMAÇÃO DO/A PROFESSOR/A PARA O ENSINO DA EDUCAÇÃO SEXUAL

277
PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) são documentos organizados pelo MEC e ditam as diretrizes nacionais
(BRASIL, 1997).
278
Tema Transversal: Assim se batizam por representar uma perspectiva longitudinal que atravessa o currículo
escolar.
684
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por afirmarmos que a formação do/a professor/a é necessária, surge, então, a seguinte
indagação: como deve ser essa formação, o que ela deve abranger e como ela deve acontecer? Diante
de tais reflexões Figueiró (2006, p. 285-286), explana que

considero importante desenvolver trabalhos do tipo oficina, por exemplo, que permitam aos
professores repensar sua própria sexualidade, seus sentimentos, atitudes e valores. O ensino
em torno das questões ligadas à sexualidade não deve ter em vista a figura do professor
apenas como um instrumento ou um “meio” de levar educação sexual para os alunos.
Aprendizado, reflexões sobre o tema e oportunidades de reeducação sexual são também
necessidades dos profissionais, independente de atuarem ou não em educação sexual formal.

Ainda sobre a formação do/a professor/a Sachi (2018, p. 32), destaca que

o embate aqui passa pela formação inicial e continuada do/a educador/a simplesmente pelo
fato de sermos formadores/as de opiniões e de fazermos parte da vida do sujeito durante um
bom tempo ao longo de sua formação educacional. Pensando desse modo, é que enfatizo a
formação inicial do/a educador/a com ênfase nas questões relacionadas com a sexualidade
como algo intrinsecamente ligado a uma sociedade mais humana.

Por isso, a imprescindibilidade de se questionar o caráter dos padrões sociais atuais, de forma
a buscar a desconstrução de paradigmas impostos pela sociedade atual, e a busca de novas construções
sociais, em que se permita ensinar, aprender e reaprender sobre as questões relacionadas à sexualidade
na infância, pois é a partir das e nas relações sociais que o ser humano se constitui uma pessoa.
Nos dias atuais, ainda é usado o termo “proibido” para se trabalhar sobre sexualidade com
crianças, assim como se trabalhar a educação sexual fosse ensinar sexo, como se faz sexo, ou seja,
ainda acreditam que queremos sensualizar, manipular e acelerar o desenvolvimento sexual das
crianças.
Entretanto, afirmamos que, trabalhar educação sexual na infância, permitirá com que a criança
aprenda sobre seu corpo e sua sexualidade de forma saudável. Existem pessoas que infelizmente
tentam deturpar o trabalho irrefragável daqueles/as que pretendem ensinar às crianças a como se
defender de possíveis abusos sexuais, e que também querem formá-las adultos bem resolvidos das
questões ligadas à sexualidade do ser humano (SACHI, 2018).
Somos todos/as compostos/as de um todo – biológico e cultural – construído por meio das
relações sociais entre os sujeitos, e a sexualidade também faz parte desse todo, e isso é irrefutável.
Sendo assim, os adultos “proibindo” ou não, mais cedo ou mais tarde as dúvidas, as curiosidades e as
indagações surgirão, e mesmo que a criança opte pelo silêncio e o adulto opte por fingir que a
sexualidade infantil não exista, ela existe e faz parte do ser humano.
685
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A EDUCAÇÃO SEXUAL E A INSTITUIÇÃO ESCOLAR
A escola, por ser uma instituição que tem por finalidade educar, no sentido de formar o/a
cidadão/ã amplo/a em seus direitos e deveres, deve, portanto, educar também para a sexualidade. Não
há como “deixá-la” em casa, e após um determinado tempo “pegá-la”, novamente. Somos
compostos/as de um todo que inclui a sexualidade como parte da formação do ser humano. Desde
antes do nascimento, até a morte, a sexualidade permeia a nossa existência, e nos completa.
Para complementar o exposto acima, Egypto (2003, p. 13) apresenta que

a sexualidade está presente na vida de todos nós, desde que nascemos até morrermos, e a
educação sexual acontece constantemente, de uma forma ou de outra. Estamos sempre sendo
educados sexualmente, seja em casa, com a postura e as opiniões de pais e filhos, seja por
meio da mídia, assistindo a programas de televisão, lendo reportagens nas revistas e jornais,
navegando na Internet. Recebemos o tempo todo informações e uma carga de idéias e de
preconceitos a respeito da sexualidade. Sempre fomos educados sexualmente, ainda que não
pareça. E quando não falamos sobre sexo também estamos educando, estamos dizendo que
sexo é uma coisa proibida, que não se fala disso abertamente, que não é um assunto que caiba
à escola. Estamos reprimindo ou omitindo, mas, de alguma forma, estamos educando as
pessoas sexualmente. Educação sexual todos tivemos e continuamos a ter sempre.

De um modo ou de outro a sexualidade está absorvida no ambiente escolar. Sobre isso, os


PCN (BRASIL, 1997, p. 08), preconizam que

a sexualidade no espaço escolar não se inscreve apenas em portas de banheiros, muros e


paredes. Ela “invade” a escola por meio das atitudes dos alunos em sala de aula e da
convivência social entre eles. Por vezes a escola realiza o pedido, impossível de ser atendido,
de que os alunos deixem sua sexualidade fora dela. Há também a presença clara da
sexualidade dos adultos que atuam na escola. Pode-se notar, por exemplo, a grande
inquietação e curiosidade que a gravidez de uma professora desperta nos alunos menores. Os
adolescentes testam, questionam e tomam como referência a percepção que têm da
sexualidade de seus professores, por vezes desenvolvendo fantasias, em busca de seus
próprios parâmetros. Todas essas questões são expressas pelos alunos na escola. Cabe a ela
desenvolver ação crítica, reflexiva e educativa.

Por ser inegável que questões relacionadas à sexualidade devem ser trabalhadas em diversas
instituições, a começar na família e se estender também para a escola, Figueiró (2006, p. 17), explicita
que

a educação sexual deve ser realizada a fim de contribuir para o desenvolvimento integral da
personalidade do educando e, consequentemente, para sua qualidade de vida. Educação
sexual tem a ver com aumentar o grau de felicidade e de bem estar.

686
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quando lemos e principalmente quando escrevemos sobre tal temática, somos tomados/as por
sentimentos de tristeza e impotência em relação ao ato de ensinar os/as pequenos/as a como aprender
a se defender de ações abusivas, disfarçadas de carinho, principalmente, dentro do próprio ambiente
em que a criança vive e de ações cometidas, na maioria das vezes, por pessoas que deveriam cuidar,
quando, na verdade, fazem o inverso, praticam abusos, molestam, estupram, destroem sonhos e vidas.
E é justamente, para ajudar a impedir esse tipo de violência, que precisamos buscar estratégias
para fazer com que a educação sexual alcance o maior número possível de crianças, para que possam
crescer e se desenvolver em um ambiente agradável, sabendo diferenciar o que é carinho e o que é
abuso.

O BINARISMO DE GÊNERO
A questão do binário279 de gênero é uma dessas implicações, e é uma das questões mais
visíveis dentro desse ambiente em que se trata de gênero, sexualidade, educação sexual etc. Vivemos
em uma sociedade onde, ainda, está engessada em questões de macho ou fêmea, homem ou mulher,
azul ou rosa.
Hodiernamente, ainda acredita-se que o mundo gira em torno de um ou de outro, de ser ou
não ser, da heterossexualidade ou da homossexualidade, e sobre essas questões de binário, Louro
(1997, p. 34) apregoa que

[...] uma das consequências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária
reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de
masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepção dos gêneros como
se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um polo que se contrapõe a outro
(portanto uma ideia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supõe ignorar ou
negar todos os sujeitos sociais que não de “enquadram” em uma dessas formas. Romper a
dicotomia poderá abalar o enraizado caráter heterossexual que estaria na visão de muitos (as)
presente no conceito de “gênero”.

Ainda se define o que é ser homem e mulher utilizando unicamente o fator biológico. Ainda
há resistência em conceber que também é determinado pelo ambiente em que se vivem, valores
morais, religião etc.
Há a redução do cultural em relação ao biológico, que infiltrados pela discriminação sexista,
permeiam a condição de macho e fêmea por meio de uma linguagem contraditória, é comum

279
O binarismo de gênero é a classificação do sexo e do gênero em duas formas distintas, opostas e desconectadas
de masculino e feminino; homem e mulher (LOURO, 1997).
687
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ouvirmos “todos” para generalizar homens e mulheres, colocam a palavra no masculino para definir
homem e mulher. Na maioria das vezes usam o masculino para englobar todas as pessoas.
Levando em consideração que a sexualidade está presente no sujeito em todas as suas etapas
da vida, inclusive na etapa em que a criança vai para a instituição escolar, vemos, portanto, nesse
período de aprendizado escolar a necessidade de se tratar desse assunto, de forma a possibilitar com
que ela seja ensinada e aprenda sobre sua própria sexualidade. E, para que isso aconteça, é necessário
que o ambiente escolar esteja preparado com recursos físicos, e humanos para que ocorra esse ensino
de forma eficaz tanto para o/a educador/a, quanto para o/a aluno/a.

O que desejam a maioria dos/as educadores/as, senão a formação completa de seu/a


alunado/a? Daí a necessidade de estar preparado/a para exercer sua função de educador/a com
maestria, inclusive nas questões do ensino da educação sexual na escola. Essa educação deve ser
ministrada com suas especificidades, como outra disciplina qualquer, que se ensina para que o/a
aluno/a aprenda e se desenvolva. Deve-se planejá-la, porém, pode-se trabalhá-la conforme surgem as
indagações dos/as educandos/as.
Por certo, já vivenciamos situações onde sofremos ou praticamos algum tipo de preconceito,
seja ele, velado ou explícito. Culturalmente, não fomos, ou pouco fomos educados/as para a igualdade
de direitos, inclusive, sobre igualdade de gênero. Por se tratar de crianças em fase escolar, faz-se
necessário pensarmos em como a educação sexual contribuirá para que essa criança saiba como agir
e reagir em situações de conflitos de corpo, gênero e sexualidade.
Embora, o ambiente escolar esteja impregnado do que é ser menino ou menina, pois situações
escolares como: filas, diferenciação de brinquedos masculinos e femininos, competições esportivas
que separam por gênero, uniforme de menino ou menina (saia, shorts, calças etc.), é justamente no
meio dessa “impregnação” que o/a professor/a deverá atuar, possibilitando a partir dessas situações,
reflexões que levem tantos os/as alunos/as, quanto os/as educadores/as e toda a comunidade escolar
a pensar e repensar atitudes sexistas dentro e fora do ambiente escolar.
Ao tencionar reflexões sobre essa temática o/a educador/a, certamente fará com que a zona de
conforto em que ele/a e a maioria dos/as seus/suas colegas de profissão se encontram, não seja mais
um lugar de estabilidade, essas reflexões os levarão a buscar mais conhecimento para um assunto tão
importante nos currículos escolares (MAIO, 2011).

688
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A escola em si, opta por respostas prontas e acabadas, em que seu foco principal está nas
questões biológicas, reduzindo e desconsiderando completamente questões necessárias, como
caracterizadas pela curiosidade e pela imaginação das crianças, fazendo com isso que elas não
questionem e nem argumentem sobre sua própria sexualidade (LOURO, 1997).
Quando o ser humano é ignorado quanto ao seu corpo e a sua sexualidade, ele próprio, na
maioria das vezes, se retrai, e opta por ficar sem as respostas que lhe permitiriam vivenciar essa
construção social de maneira saudável e eficiente.
As desafiantes e significantes interrogações que surgem em relação à educação sexual,
chamam nossa atenção, porque de certo modo, respondem de forma educativa e eficaz as dúvidas e
curiosidades de tais crianças. É inescusável salientar que, a educação sexual não se dá somente de
forma planejada e intencional, ela pode transcorrer de forma não planejada, ou seja, no dia a dia, na
rotina desse/a aluno/a no ambiente escolar, do mesmo modo que pode ocorrer fora dele (MAIO,
2011).

SOMOS TODOS/AS EDUCADORES/AS SEXUAIS

É necessário elucidar que somos todos/as educadores/as sexuais de uma forma ou de outra,
em situações planejadas ou não. Sobre isso Figueiró (2006, p. 30) nos alerta que

é importante salientar que parto do princípio de que todos somos educadores sexuais: os pais,
os professores, os demais profissionais e a comunidade em geral, estejamos ou não
conscientes disso, uma vez que, no contato com crianças, adolescentes e jovens, acabamos
por passar informalmente, várias mensagens implícitas ou explicitas, sobre a sexualidade,
contribuindo para que os educandos construam suas ideias, seus valores e seus sentimentos
em relação a ela.

Tendo essa temática em evidência, mesmo diante de muitas indagações pais/mães,


professores/as e comunidade escolar, preferem optar pelo silêncio, pela “inexistência”. Precisamos
entender que a educação sexual deve acontecer dentro e fora do ambiente escolar, deve acontecer de
modo formal e informal.
À frente disso, os/as educadores/as dever-se-iam se beneficiar de tais oportunidades, e estando
preparados/as usufruírem dessas oportunidades, fazendo com que esses momentos, sejam momentos
de interação, aprendizado, construção de conhecimentos científicos, correlacionando informações e
conhecimentos, permeando sonhos, desejos e sentimentos, sem que esses sejam julgados como
prontos e acabados, sem juízo de valores.

689
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
EDUCAÇÃO SEXUAL OU “DESEDUCAÇÃO SEXUAL”?

Em relação a esses conhecimentos que referenciam o ensino da educação sexual com crianças
na idade escolar e no ambiente escolar, Bernardi (1985), chama a atenção para a “deseducação
sexual”, pois o que se pode notar é o inverso da educação sexual, com atitudes intimidadoras e
assustadoras, mais se deseduca do que se educa.
Nesse contexto, Maio (2011, p. 41) enfatiza que

[...] segundo a hipótese repressiva, com a qual se costuma pensar e em que se baseiam muitas
posturas frente à questão da sexualidade, a partir do século XVIII, um crescente
Puritanismo280 passa a vigorar. Esse pensamento reduz o sexo a utilitário e fecundo,
permitindo, portanto, como única manifestação possível, a sexualidade do casal
monogâmico, legítimo e procriador. Sobre as sexualidades periféricas e estéreis teria sido
imposto um silêncio geral, uma intensa repressão.

É notório que embora estejamos no século XXI, ainda temos posicionamentos como se
estivéssemos vivendo no século XVIII, as atitudes de repressão ainda permeiam a educação sexual,
mesmo de forma velada (e por vezes explícita), que por conta disso, ficam sem respostas e à mercê
de informações desencontradas e que, certamente, as deixam mais vulneráveis para a violência sexual.

O MEDO DE FALAR DA SEXUALIDADE COM CRIANÇAS

Muitas vezes o adulto demonstra medo de refletir sobre a sexualidade infantil, prefere fingir
que ela não existe que não é algo concreto, pois desse modo, não é necessário um possível embate
entre sua existência e sua própria sexualidade.
Nas palavras de Bernardi (1985, p. 21-22)

[...] o adulto tem medo da sexualidade infantil e juvenil porque estas colocam em crise a sua
sexualidade, que ele adora chamar de madura. Reconhecer de modo concreto, e não
abstratamente como se costuma fazer, a sexualidade das crianças e dos jovens, reconhecer
exigências e direitos, admitir que se trata de uma sexualidade autêntica [...] significa ter que
rever não só a conduta geral frente aos menores, mas também o próprio comportamento
sexual do adulto a começar pela postura frente ao prazer. Significa recolocar em discussão
toda a fundamentação sexofóbica do nosso sistema, e por isso mesmo o próprio sistema.

280
“Puritano significa moralista, rígido, austero. É um adjetivo empregado para designar aquela pessoa rigorosa na
aplicação dos princípios morais, nas ideias e nos costumes, especificamente quanto ao comportamento sexual”
(BENJAMIM, 1996, p. 24).
690
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Diante do exposto acima, faz-se necessário que nós educadores/as tenhamos bem definido
que a criança é um ser histórico, que seus papéis são construídos historicamente ao longo do tempo,
que ela é um ser social histórico, ativo e afetivo.
Sobre isso, Sarmento (2005, p. 373) afirma que

As culturas da infância são resultantes da convergência desigual de factores que se localizam,


numa primeira instância, nas relações sociais globalmente consideradas e, numa segunda
instância, nas relações inter e intrageracionais. Essa convergência ocorre na acção concreta
de cada criança, nas condições sociais (estruturais e simbólicas) que produzem a
possibilidade da sua constituição como sujeito e actor social. Este processo é criativo tanto
quanto reprodutivo. O que aqui se dá à visibilidade, neste processo, é que as crianças são
competentes e têm capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si
próprios, da natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e
de o usarem para lidar com tudo o que as rodeia (SARMENTO, 2005, p. 373).

É significativo refletir sobre a questão de que a infância também passa por uma construção
histórica e social. Ainda há paradigmas que necessitam ser desconstruídos e reconstruídos sobre essa
construção histórica. Para Vygotsky (1994), o indivíduo só se faz humano, a partir das relações e das
interações sociais, ele só se constrói historicamente em seu contexto social, delineado ao longo do
tempo.
Para Bujes (2002, p. 24), essas construções dependem de

[...] um conjunto de possibilidades que se conjugam em determinado momento da história,


são organizados socialmente e sustentados por discursos nem sempre homogêneos e em
perene transformação. Tais significados não resultam, como querem alguns, de um processo
de evolução, nem estão acima e à parte das divisões sociais, sexuais, raciais e étnicas [...].
São modelos no interior de relações de poder e representam interesses manifestos da Igreja,
do estado, da sociedade civil [...].

É nas relações, e por meio delas, que o ser humano se constitui biológica e socialmente, a
partir dessas relações que sua sexualidade é desenvolvida, pois faz parte de um processo histórico e
dialético, em outras palavras, o seu desenvolvimento está diretamente ligado ao momento histórico,
às crenças, a política e a cultura de um povo. E o que a algumas escolas fazem? A reduz puramente e
erroneamente às questões biológicas.
Figueiró (2006, p. 42) contempla que

a sexualidade não pode, pois, se restringir à sua dimensão biológica, nem a noção de
genitalidade, ou de instinto, ou mesmo de libido. Também não pode ser percebida como uma
“parte” do corpo. Ela é, pelo contrário, uma energia vital da subjetividade e da cultura,
que deve ser compreendida, em sua totalidade e globalidade, como uma construção
social que é condicionada pelos diferentes momentos históricos, econômicos, políticos
e sociais.
691
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quando o/a educador/a tiver em mente que a sexualidade não deve ser vista como algo
puramente biológico, quando ele/a assimilar que a sexualidade perpassa as questões biológicas e
adentra pelo campo das relações sociais com todo seu contexto histórico e social, conseguirá ministrar
esse conteúdo/temática de forma mais proveitosa possível, ou seja, levando seus/as alunos/as a
aprender e entender sobre seu próprio corpo e a sua própria sexualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É indubitável notabilizar que, entre avanços e retrocessos, há que se dizer que ainda falta
muito aprendizado, muita determinação e muito querer, para que possamos ser pessoas melhores,
melhores de convivência, melhores em respeitar a vida e as escolhas das outras pessoas.

Se a discriminação explícita ou velada, se transformasse em querer bem, respeitando as


escolhas/decisões pessoais de cada indivíduo, teríamos uma sociedade mais justa e igualitária, com
mais “gente que gosta de gente”.
Há uma fórmula pronta para fazer com que isso aconteça? A resposta é: não, não há uma
fórmula pronta. O que há são as relações sociais onde os sujeitos se remodelam a partir da sua história
de vida, da sua cultura, dos seus entrelaçados de conhecimento científico e da sua vivência do dia a
dia. Esse sim é um meio, dentre tantos outros, pelo qual podemos desconstruir e reconstruir uma
sociedade menos descaroável e pessoas menos insensíveis para com o/a próximo/a.

REFERÊNCIAS

BENJAMIM, Forcano. Nova ética sexual. Tradução de Nelson Canabarro. São Paulo: Musa, 1996.

BERNARDI, Marcello. A deseducação sexual. Tradução de Antônio Negrini. São Paulo: Summus,
1985.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: pluralidade


cultural. Orientação sexual. Secretaria de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

EGYPTO, Antonio Carlos. Orientação sexual na escola: um projeto apaixonante. São Paulo: Cortez,
2003.

692
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FIGUEIRÓ, Mary Neide Damico. Formação de educadores sexuais: adiar não é mais possível.
Campinas, SP: Mercado das Letras; Londrina: Eduel, 2006. (Coleção dimensões da sexualidade).

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

MAIO, Eliane Rose. O nome da coisa. Maringá/PR: Unicorpe, 2011.

SACHI, Berivalda Jesus do Prado. Possibilidades didáticas para o ensino da educação sexual em sala
e aula. In: MAIO, Eliane Rose. Gênero e Sexualidade – Interfaces Educativas. Curitiba: Appris,
2018, p. 23-35.

SARMENTO, M. J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da


infância. Educação e Sociedade, Campinas/SP, v. 26, n.91, p. 361-378, maio/ago. 2005.
SAYÃO, Yara. Orientação sexual na escola: os territórios possíveis e necessários. In: AQUINO, José
Groppa (Org.). Sexualidade na escola: alternativas teóricas. São Paulo: Summus, 1997, p. 107-117.

USSEL, Jos Van. Repressão sexual. Rio de Janeiro: Campus, 1980.


VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

693
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PORNOGRAFIA INFANTOJUVENIL NA INTERNET: MAPEAMENTO DAS
PRODUÇÕES TEÓRICAS

Julia Arnt Machado281


Maina Saldanha Garcia282
Paula Machado Gouvêa283
Jaina Raqueli Pedersen284

Resumo: Este artigo apresenta dados parciais da pesquisa “A pornografia infantojuvenil na internet enquanto forma de
manifestação da exploração sexual de crianças e adolescentes: desvendando suas particularidades”, que tem por objetivo
analisar os processos sociais que se articulam na constituição do fenômeno da pornografia infantojuvenil na internet, a
fim de explicitar as particularidades desta forma de violação dos direitos de crianças e adolescentes. A construção
metodológica do estudo tem por base a pesquisa exploratória com enfoque qualitativo, considerando referencial
bibliográfico e documental baseado em livros, artigos, dissertações, teses disponíveis em periódicos e bibliotecas
universitárias, levando em conta as áreas do Serviço Social, Psicologia, Direito e áreas afins. Com o mapeamento da
produção teórica realizada em periódicos do Serviço Social e nas bibliotecas universitárias delimitadas neste estudo, pode-
se perceber que as pesquisas sobre a pornografia infantojuvenil ainda são poucas, desafiando as diversas áreas a estudar
a complexidade que envolve este fenômeno.

Palavras-chave: Exploração Sexual comercial; Pornografia Infantojuvenil; Internet; Crianças e Adolescentes.

INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente se constituíram como marcos


na proteção social da criança e do adolescente e no reconhecimento dos menos enquanto sujeitos de
direito. Apesar desses mecanismos de proteção, cotidianamente crianças e adolescentes são vítimas
das mais diversas formas de violações. Conforme Relatório do Disque Direitos Humanos (Disque
100), entre as 159.063 denúncias recebidas no ano de 2019 o “grupo de Crianças e Adolescentes
representou aproximadamente 55% do total, com 86.837 denúncias” (BRASIL, 2019, p.18).

281
Graduanda do curso Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Integrante do
Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão. E-mail:
juliamachado.aluno@unipampa.edu.br
282
Graduanda do curso Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Integrante do
Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão. E-mail:
mainagarcia.aluno@unipampa.edu.br
283
Graduanda do curso de Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Integrante do
Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão. E-mail:
paulagouvea.aluno@unipampa.edu.br
284
Professora do curso Serviço Social, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Líder e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais, Questão Social e Relações de Exploração/Opressão.
Coordenadora do projeto de pesquisa “A pornografia infantojuvenil na internet enquanto forma de manifestação da
exploração sexual de crianças e adolescentes: desvendando suas particularidades” E-mail:
jainapedersen@unipampa.edu.br
694
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Entre as violações sofridas por esse grupo social estão a negligência, a violência psicológica,
a violência sexual, a violência física, violência institucional, entre outras. Essas violações em “52%
[...] ocorreram na casa da vítima, ao passo que 20% foram praticadas na casa do suspeito” (BRASIL,
2019, p. 37). Tendo como local de ocorrência em 47514 casos a casa da vítima e 17867 da casa do
suspeito pela violação (BRASIL, 2019).
Considerando este cenário de violação dos direitos de crianças e adolescentes e o objeto de
estudo na pesquisa “A pornografia infantojuvenil na internet enquanto forma de manifestação da
exploração sexual de crianças e adolescentes: desvendando suas particularidades”, que tem por
objetivo analisar os processos sociais que se articulam na constituição do fenômeno da pornografia
infantojuvenil na internet, a fim de explicitar as particularidades desta forma de violação dos direitos
de crianças e adolescentes, o texto se propõe a fazer inicialmente uma discussão sobre as categorias
violência sexual contra crianças e adolescentes e exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes, dando ênfase para a pornografia infantil e sua relação com a internet.
Na sequência será apresentado os resultados de um mapeamento das produções teóricas sobre
a temática da exploração sexual de crianças e adolescentes, mais especificamente sobre pornografia
infantojuvenil, que foi realizados junto a revistas do Serviço Social e em algumas bibliotecas
universitárias, a partir dos descritores principais de pesquisa “exploração sexual de crianças e
adolescentes”, “pornografia infantil na internet” e “pedofilia na internet. E como descritores variáveis
“exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”, “violência sexual de crianças e
adolescentes”, “pornografia infantil” e “pornografia infantojuvenil” no marco temporal de 2008 à
2019.

A PORNOGRAFIA INFANTOJUVENIL ENQUANTO MANIFESTAÇÃO DA


EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Com a regulamentação da Constituição Federal de 1988 em conjunto da implementação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, a proteção de crianças e adolescentes ganhou maior atenção.
A partir desses mecanismos, a família, sociedade e Estado tem o dever de garantir os direitos
fundamentais desses sujeitos.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
695
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão
(BRASIL, 1988, s/p).

Com o compromisso de punição a todos os atos e/ou omissões que ferem os direitos
fundamentais das crianças e dos adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um aliado
fundamental em reconhecer as formas de violência que cercam esses indivíduos, a fim de encontrar
formas de superá-las.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa


humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei
ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade (BRASIL, 1990, s/p).

Apesar de todo esse arcabouço legal representar avanços no que diz respeito à proteção
integral de crianças e adolescentes, há muitas lacunas na sua materialização e, portanto, muitos são
os desafios que se colocam para a tríade (família, Estado e sociedade) responsável pela promoção,
proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. . Cotidianamente, crianças e adolescentes
são vítimas de graves violações de seus direitos, sendo aqui destacadas as violações que decorrem
de diversas formas de violência, como apontam as denúncias do Disque Direitos Humanos (Disque
100): em 2019 houveram 62.019 casos sobre negligência, 36.304 de violência psicológica, 33.374
com violência física, 17.029 com relação a violência física e entre outras violações (BRASIL, 2019,
p.44).

a violência contra a criança e o adolescente é todo ato ou omissão cometidos por pais,
parentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico
à vítima. Implica, de um lado, numa transgressão no poder/dever de proteção do adulto e da
sociedade em geral; e de outro, numa coisificação da infância. Isto é, numa negação do direito
que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições
especiais de crescimento e desenvolvimento (MINAYO, 2001, p.92).

Infelizmente, muitas destas situações de violência ocorrem no âmbito doméstico e junto de


familiares, desconsiderando seus direitos fundamentais enquanto pessoa humana. A violência
doméstica que atinge as crianças e adolescentes pode ser de naturezas distintas, como observado
anteriormente. Segundo Minayo (2006), as expressões das violências podem ser chamadas
igualmente de abusos e maus-tratos. Quanto a violência física, esta é “o uso da força para produzir
injúrias, feridas, dor ou incapacidade em outrem”. Assim como a violência psicológica, na qual
696
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
consiste as “agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima,
restringir a liberdade ou ainda, isolá-la do convívio social”. Como também a violência sexual,
classificada “ao ato ou ao jogo sexual” em que o adulto “ visa a estimular a vítima ou utilizá-la para
obter excitação sexual e práticas eróticas, pornográficas e sexuais impostas por meio de aliciamento,
violência física ou ameaças”. Da mesma maneira a negligência denominada “ abandono inclui a
ausência, a recusa ou a deserção de cuidados necessários a alguém que deveria receber atenção e
cuidados” (MINAYO, 2006, p.82)
É importante destacar que todas estas formas de violência não podem ser consideradas na sua
imediaticidade e singularidade, pois são produto das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos e
estas são determinadas por diferentes relações de exploração/opressão que historicamente vem sendo
reproduzidas na sociedade, ou seja, as relações de classe, de gênero, de raça e geração. Portanto, são
forjadas por diversas mediações que estruturam a nossa sociedade.
Desse modo, é indispensável abordar a violência estrutural esta “ocorre sem a consciência
explícita dos sujeitos” (MINAYO, 2006, p.81), a qual ronda a vida de crianças e adolescentes
diariamente, está enraizada na sociedade de classes, no entanto, não é reconhecida como tal. Trata-se
das expressões da questão social, como a fome, miséria, não alfabetização, falta de moradia, de
saneamento, de acesso à informação e diversas outras situações que revelam as desigualdades sociais
produzidas pelo modo de produção capitalista. A violência estrutural se manifesta com as várias
violações de direitos que as pessoas sofrem todos os dias, quando o Estado, de forma frágil ou omissa,
não garante os direitos humanos fundamentais, conforme prevê o art.7º do ECA: “A criança e o
adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas
que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de
existência” (BRASIL, 1990, s/p).
Levando em consideração a complexidade das formas de violências e suas expressões,
buscou-se evidenciar a violência sexual que abrange o abuso sexual e a exploração sexual comercial,
e pode ser entendida “como todo ato, de qualquer natureza, atentatório ao direito humano ao
desenvolvimento sexual da criança e do adolescente, praticado por agente em situação de poder e de
desenvolvimento sexual desigual em relação à criança e adolescente vítimas” (BRASIL, 2013, p.22).
Em conformidade com a Lei 13.431 de 2017, o abuso sexual pode ser entendido “como
toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou

697
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual
do agente ou de terceiro”. Quanto a exploração sexual comercial entende-se como “o uso da criança
ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de
compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo
presencial ou por meio eletrônico” (BRASIL, 2017, s/p). A exploração sexual comercial pode ocorrer
no contexto da prostituição, tráfico para fins sexuais, turismo sexual e pornografia infantojuvenil.
Estas modalidades, embora tenham naturezas diferentes, ocorrem de forma articulada. Para Deslandes
e Constantino (2018, p. 31), “o turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes e o tráfico para
fins sexuais são práticas mediadoras, voltadas para produção da exploração sexual comercial,
enquanto a prostituição e/ou pornografia representam o fenômeno em si”.
A violência sexual configura-se através de particularidades, verifica-se que 45% dos casos
ocorrem dentro da casa da vítima, 40% dos sujeitos suspeitos são pais ou padrastos e 82% das vítimas
é do gênero feminino e a faixa etária que mais sofre essa violação é a de 12 a 14 anos (BRASIL,
2019). Dessa forma, observa-se que o abuso ocorre significativamente dentro do ambiente familiar,
pois estes agressores são membros da família, caracterizando assim como uma forma de violência
doméstica e intrafamiliar. Nota-se a evidência do gênero masculino entre os agressores, esse dado
representa uma afirmação histórica da masculinidade, pautada na superioridade de homens sobre
mulheres e que os menos “possuem uma sexualidade mais “animalesca”, incontrolável, de certa forma
insaciável” (FELIPE, 2006, p.221).
A visibilidade internacional sobre a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes,
ganhou evidência no início dos anos 2000, com o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança, relativo à venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil.
Conforme o protocolo, conceitua-se pornografia infantil como “qualquer representação, por qualquer
meio, de uma criança no desempenho de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer
representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais” (UNICEF,
2010, p.16).
No Brasil, o maior reconhecimento sobre o fenômeno deu-se com a Comissão Parlamentar de
Inquérito da Prostituição Infanto-Juvenil (1993-1994), “a CPI contribuiu para dar visibilidade
nacional ao tema, gerando uma significativa mobilização social. A partir de então, surgiram
vários grupos e organizações não governamentais que passaram a lutar por um enfrentamento

698
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
político do problema” (LOWENKRON, 2010, p. 21). Baseado nisso, meios de comunicação e
movimentos sociais passaram a divulgar a exploração sexual comercial como um problema social a
ser extinguido.
Tendo em vista as variadas formas de exploração sexual de crianças e adolescentes, este artigo
dá ênfase a pornografia infantojuvenil, posto que diante do avanço das novas tecnologias de
comunicação este fenômeno tem passado por transformações, progredindo igualmente nos diferentes
crimes e violações desses sujeitos. Mesmo que a pornografia infantojuvenil seja uma expressão
bastante conhecida da exploração sexual, esta tomou novas influências com o uso das redes sociais e
aplicativos.

[...] como o incremento da pornografia infantil (produção e divulgação com mais rapidez),
divulgação da deep web, aliciamento online, mercado do sexo tornando-se mais invisível
ainda, favorecidos pelos programas sexuais combinados por celulares e aplicativos, como
facebook, twitter, whatsapp, instagram, dentre outros (COIMBRA et al., 2018, p.215).

A Internet está frequentemente incorporada ao cotidiano de crianças e adolescentes, que


acessam a este espaço público onde existe uma diversidade de pessoas, com todo tipo de intenções.
Logo, este é um espaço que tem seu lado positivo mas, também, seus riscos. Tendo em vista que
muitas vezes se aprende a navegar sem nenhum tipo de orientação para uma prática segura. Além do
mais,

A verdade é que a Internet tem sido amplamente usada para a prática de diversos tipos de
delitos sexuais, em muitos casos, facilitados pela intermediação do computador. As salas de
bate-papo, os sistemas de mensagens instantâneas, os sites de relacionamento, as redes ponto
a ponto, os desenhos, os vídeos, as webcams e os programas de manipulação de imagens têm
sido palco de todo tipo de delito sexual, incluindo ameaça contra a integridade física, atentado
violento ao pudor, coação sexual, abuso sexual, assédio sexual, ato obsceno, exibicionismo,
proxenetismo, sedução, corrupção de menores, fraude e até sequestro de crianças e
adolescentes que fornecem dados pessoais e vão ao encontro de autores de violência sexual
que conheceram pela Internet (BRASIL, 2011, p.134).

As redes sociais são facilitadoras para os crimes de exploração sexual, aproximam as vítimas
com os agressores mais facilmente, sendo de maneira direta ou indireta, já que em muitas vezes o
primeiro contato com a vítima é por um intermediador nas redes de exploração, e esses casos
permanecem omissos por muito tempo já que tudo ocorre virtualmente a um anonimato com os
envolvidos, acontecendo tudo sem que alguém perceba.

699
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Neste sentido, se faz necessário que o Estado crie condições para os trabalhadores da área
social e educacional ampliarem e efetivarem a rede de proteção a crianças e adolescentes. Não se
pode permanecer limitado a uma busca por culpados, com legislações penais de cunho repressor.
Deve-se promover o uso seguro da tecnologia e, desta forma, articular uma autoproteção através da
educação. Pois,

Se o governo brasileiro tem investido, nos últimos anos, em políticas nacionais de inclusão
digital, elas não têm sido acompanhadas pelos necessários investimentos em
políticas/programas/projetos/ações de prevenção, com intuito de educar crianças e
adolescentes para práticas seguras de uso da tecnologia (BRETAN, 2012, p.7-8).

Em 2018, a Secretária dos Direitos Humanos recebeu e processou 1.986 denúncias anônimas
de Pornografia Infantil envolvendo 935 páginas (URLs) distintas (das quais 418 foram removidas)
escritas em 8 idiomas e hospedadas em 298 domínios diferentes, de 52 diferentes TLDs e conectados
à Internet através de 358 números IPs distintos, atribuídos para 24 países em 4 continentes
(SAFERNET, 2019). Demonstrando a presença ainda muito significativa da pornografia infantil em
diferentes países e a internet como grande mediadora de acesso e disseminação desses materiais.
Dessa forma, a internet assume caráter contraditório pois ao mesmo tempo em pode trazer inúmeros
benefícios, pode também servir como ferramenta para esse mercado pornográfico infanto juvenil.
O Brasil presencia um avanço significativo na legislação para esse tipo de crime resultante da
Lei nº 11.82 de 2008 e da inserção no Estatuto da Criança e do Adolescente os Artigos 241-B, 241-
C, 241-D e 241-E que tratam do compartilhamento, armazenamento e produção de material
pornográfico infantojuvenil. Apesar dessa evolução ainda há muito para se fazer no que tange a esse
crime, com os tantos avanços tecnológicos torna-se necessária a formação sempre atualizada de
diversos segmentos da segurança pública brasileira possibilitando desvendar o crime de pornografia
infantil na internet, inclusive nas camadas que não são de domínio público e que possibilitam
anonimato para os usuários dos sites e os donos dos sites que disseminam esse material, como a Dark
Web.
A pornografia infantojuvenil tem por trás um mercado perverso e lucrativo, o qual
transforma crianças e adolescentes em mercadoria com intuito de satisfazer o prazer de adultos.

700
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Esse mercado, vai desde a produção desse material até a sua venda através de sites com catálogos
desumanizados que envolvem crianças e adolescentes em contextos violentos e de diversas violações.
Esse crime tem uma rede internacional que utilizada da internet como um mecanismo de menor
exposição para o consumo desse material.

MAPEAMENTO DAS PRODUÇÕES TEÓRICAS SOBRE PORNOGRAFIA


INFANTOJUVENIL

Neste item apresenta-se os resultados parciais da pesquisa que tem por objetivo analisar os
processos sociais que se articulam na constituição do fenômeno da pornografia infantojuvenil na
internet, a fim de explicitar as particularidades desta forma de violação dos direitos de crianças e
adolescentes. Os objetivos específicos visam: problematizar as características assumidas pela
pornografia infantojuvenil a partir do uso da internet; identificar as características dos sujeitos
envolvidos com a pornografia infantojuvenil na internet; Investigar para quais fins a pornografia
infantojuvenil é produzida/disponibilizada na internet.
Trata-se de uma pesquisa exploratória com enfoque qualitativo que empregará para coleta de
dados a pesquisa bibliográfica e documental. Para composição da amostra, estão sendo considerados
as bibliografias e documentos (impressos e digitais), que versam sobre a temática em questão,
considerando o período compreendido entre os anos de 2008285 e 2019. Quanto às bibliografias estas
compreendem além de livros, artigos, dissertações e teses disponíveis em periódicos e no Catálogo
de Teses e Dissertações da CAPES, levando em conta as áreas do Serviço Social, Psicologia, Direito
e áreas afins. Sobre os documentos (escritos ou não) são utilizados, por exemplo, legislações,
relatórios de investigações policiais, reportagens veiculadas em jornais, documentários e vídeos.
Neste artigo dá-se visibilidade para o Estado da Arte sobre a temática da exploração sexual
de crianças e adolescentes, mais especificamente sobre pornografia infantojuvenil. Este levantamento
possibilitou um mapeamento das produções teóricas em revistas do Serviço Social e em algumas
bibliotecas universitárias, como será detalhado na sequência. Destaca-se que o levantamento do

285
Será considerando este ano devido aprovação da lei nº 11.829, de 25 de novembro de 2008, que visa aprimorar o
combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de
tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet.

701
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Estado da Arte junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES ainda está sendo realizado e,
portanto, não será apresentado nesta produção.
O primeiro levantamento de dados foi realizado no site das seguintes bibliotecas
universitárias: PUCRS, UFSC, PUCPR e UEL. Esta delimitação considerou como critérios, os
estados que fazem parte da Região Sul I da ABEPSS e também as universidades que ofertam mestrado
e doutorado em Serviço Social. A pesquisa abrangeu teses e dissertações publicadas no período de
2008 a 2019 e compreendeu duas grandes áreas: Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Humanas,
considerando trabalhos de Serviço Social, Direito, Turismo, Sociologia, Antropologia, Psicologia e
Educação.
Para a identificação dos trabalhos, utitizou-se descritores principais e variáveis de pesquisa,
sendo estes: Principais - “exploração sexual de crianças e adolescentes”, “pornografia infantil na
internet” e “pedofilia na internet”. Variáveis - “exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes”, “violência sexual de crianças e adolescentes”, “pornografia infantil” e “pornografia
infantojuvenil”.
Além do mais, fazia-se uma leitura prévia dos resumos, tendo em vista que alguns dos
resultados não tinham relação nenhuma com o tema de interesse deste estudo. Neste sentido, dos
trabalhos que foram selecionados o que se considerou foi que no resumo havia uma discussão sobre
pornografia infantil ou exploração/violência/abuso sexual contra crianças e adolescentes. Deste
modo, foram selecionados vinte (20) produções que passarão para a fase de coleta qualitativa de dados
como será demonstrado no quadro 01.

Quadro 01: Teses e Dissertações disponíveis nas bibliotecas da PUCRS, UFSC, PUCPR e UEL
Universidade Área Título do trabalho Ano Descritor Tese (T) ou
Utilizado Dissertação
(D)
1 UEL Análise de A capacitação de 2013 Pornografia infantil D
comportamento professores para a na internet
prevenção de
violência intrafamiliar
infantil

702
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
2 PUCRS Serviço Social O corpo como 2014 Pornografia infantil T
mercadoria: na internet
Exploração Sexual de
adolescentes e
vulnerabilidade
3 UFSC Psicologia Uma Experiência 2009 Exploração sexual D
Etnográfica de de crianças e
Fronteira: exploração adolescentes
sexual comercial de
crianças e jovens na
Tríplice Fronteira
entre Argentina,
Brasil e Paraguai
4 PUCRS Serviço Social Abuso sexual 2010 Exploração sexual D
intrafamiliar: do de crianças e
silêncio ao seu adolescentes
enfrentamento
5 PUCRS Direito Estupro contra 2011 Exploração sexual D
vulnerável – uma de crianças e
análise à luz dos adolescentes
princípios
constitucionais e do
sistema penal
6 PUCRS Direito Pedofilia um olhar 2012 Pedofilia na internet D
interdisciplinar

7 UFSC Direito As campanhas 2014 Pedofilia na internet D


institucionais do
Ministério Público de
Santa Catarina como
forma de fomento à
promoção e à
implementação de
políticas públicas
infanto adolescentes
8 UEL Análise de Capacitação aos 2014 Pornografia D
comportamento conselheiros tutelares infantojuvenil
que prestam
atendimento às
famílias vítimas de
violência
9 UEL Análise de Publicações 2017 Pornografia D
comportamento científicas brasileiras infantojuvenil
sobre pedófilo e o
agressor
10 UFSC Psicologia Jovens identificados 2008 Violência sexual D
como autores de contra crianças e
abuso sexual: sentidos adolescentes
da violência

703
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
11 UFSC Serviço social O abuso sexual numa 2008 Violência sexual D
perspectiva de gênero: contra crianças e
o processo de adolescentes
responsabilização da
menina
12 PUCRS Serviço social Tomada de 2012 Violência sexual D
depoimento especial contra crianças e
de crianças e adolescentes
adolescentes em
situação de abuso
sexual
Desafios na
intervenção
profissional do
assistente social na
perspectiva da
garantia de direitos
13 PUCRS Serviço social Enfrentamento da 2013 Violência sexual D
violência sexual contra crianças e
infanto-juvenil em adolescentes
porto alegre:
contradições e
perspectivas
14 PUCRS Educação Educação e Direitos 2014 Violência sexual T
Humanos - Trajetórias contra crianças e
de Porto Alegre no adolescentes
Enfrentamento à
Violência Sexual
contra Crianças e
Adolescentes
15 PUCRS Serviço social Rompendo o Silêncio: 2015 Violência sexual T
O Enfrentamento da contra crianças e
Violência Sexual adolescentes
Infanto-Juvenil no
âmbito dos creas
tocantinenses
16 UEL Análise de Levantamento das 2016 Violência sexual D
comportamento possíveis variáveis contra crianças e
envolvidas no adolescentes
comportamento de
abusar sexualmente de
crianças e
adolescentes
17 UFSC Psicologia Dinâmica Relacional 2016 Violência sexual D
de famílias que contra crianças e
vivenciaram abuso adolescentes
sexual infanto-juvenil:
olhas materno

704
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
18 PUCRS Serviço social Violência sexual 2017 Violência sexual D
contra crianças: a contra crianças e
proteção integral e a adolescentes
materialidade dos
crimes sexuais
19 UFSC Psicologia Os significados 2017 Violência sexual D
atríbuidos ao abuso contra crianças e
sexual infanto-juvenil adolescentes
e a tomada de decisão
dos(as) profissionais:
desafios para o
sistema de garantia de
direitos
20 PUCRS Serviço social Os desafios na 2018 Violência sexual D
materialização do contra crianças e
atendimento às adolescentes
crianças e
adolescentes vítimas
de abuso sexual, no
âmbito da política de
assistência social

Fonte: As autoras (2020).

Na PUCRS a pesquisa foi feita através da Biblioteca Central Irmão Otão, no acervo local e
apresentou três (3) resultados para o primeiro descritor, quinze (15) para o segundo, seis (6) para o
terceiro, cinquenta e seis (56) para o último e nenhum (ou algum repetido) para os outros descritores.
Após análise dez (10) arquivos foram salvos, destes sete (7) de Serviço Social; dois (2) de Direito;
um (1) Educação.
Na UFSC a pesquisa foi realizada na BU Biblioteca Universitária, que apresentou cento e
sessenta e cinco (165) resultados para o primeiro descritor, trezentos e cinquenta e seis (356) para o
segundo, noventa e nove (99) para o terceiro, mil seiscentos e sessenta e cinco (1665) para o último
e nenhum (ou algum repetido) para os outros descritores. Totalizando seis (6) arquivos salvos após
análise, destes quatro (4) de Psicología; um (1) de Serviço Social; um (1) de Direito.
Na PUCPR a pesquisa foi feita através da consulta ao acervo local, que apresentou trinta e
sete (37) resultados para o último descritor, porém todos eram de áreas que não compreendem a
amostra do estudo. Pesquisando os outros descritores não apareciam teses ou dissertações, apenas
livros, etc. Por isso, nenhum arquivo foi salvo.
Na UEL a pesquisa foi realizada na Biblioteca Digital, através do sistema Nou-Rau, que
apresentou trinta e um (31) resultados para o primeiro descritor, vinte e nove (29) para o terceiro,

705
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nove (9) para o quinto, dois (2) para o último e nenhum (ou algum repetido) para os outros descritores.
Após análise quatro (4) arquivos foram salvos de Análise de Comportamento, pois apesar desta área
não fazer parte das áreas de interesse deste estudo, as temáticas pareciam bem relevantes para o
mesmo, trazendo o debate sobre o comportamento de abusar sexualmente de crianças e adolescentes,
sobre as famílias vítimas de violência e sobre o agressor sexual infantil.
Observou-se que no marco temporal de 2008 a 2019, foram encontrados trabalhos em todos
os anos, exceto em 2019, totalizando 20 produções. Também, verificou-se que o ano que teve mais
publicações foi o ano de 2014 com quatro (4) arquivos salvos para esta pesquisa. Além disso, a
universidade que apresentou mais trabalhos foi a PUCRS com dez (10) produções, a UFSC com seis
(6), a UEL com quatro (4) e a PUCPR não apresentou trabalhos compatíveis com a temática de
interesse deste estudo. Também, constatou-se que Serviço Social foi a área que mais se destacou,
totalizando oito (8) arquivos salvos, Psicologia e Análise de Comportamento com quatro (4) cada
uma, Direito com três (3) e Educação um (1).
Quanto ao gênero dos autores e autoras das produções, notou-se predominância do gênero
feminino, sendo apenas um (1) autor do gênero masculino. Ademais, constatou-se que a maioria dos
trabalhos eram dissertações, correspondendo a dezessete (17) produções, enquanto três (3) eram teses.
Outro levantamento foi realizado com base na produção de artigos nos periódicos dos
Programas de Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Serviço Social do Brasil, considerando os mesmos
descritores de pesquisa evidenciados anteriormente. O levantamento foi feito junto a catorze (14)
Programas de Pós-Graduação na área do Serviço Social que possuem revistas e foram encontrados
treze (13) artigos a partir dos descritores de pesquisa.
Com base no descritor principal, “exploração sexual de crianças e adolescentes” foi
identificado um total de três (3) artigos. No que se refere segundo descritor principal, “pornografia
infantil na internet” e ao terceiro descritor principal, “pedofilia na internet” não foram identificados
artigos. Em relação ao descritor variável, “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”
foi encontrado um (1) artigo. Com a utilização do segundo descritor variável, “violência sexual contra
crianças e adolescentes” identificou-se nove (9) artigos. Em relação ao terceiro descritor variável,
“pornografia infantil” e ao quarto, “pornografia infantojuvenil” não se identificou artigos.
Ao comparar títulos dos artigos observou-se que dois (2) apareciam repetidamente em
descritores principais e variáveis. Dessa maneira optou-se por mantê-los apenas nos descritores

706
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
principais e retirá-los dos descritores variáveis, ficando com um total de onze (11) artigos. Analisando
o conteúdo dos artigos verificou-se que um (1) distanciava-se da temática da criança e do adolescente
e um (1) não era compatível com o assunto da violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo
assim foram descartados. Sendo assim, foram selecionados nove (9) artigos que passarão para a fase
de coleta qualitativa de dados como será demonstrado no quadro 02.
Quadro 02: Artigos publicados em periódicos vinculados aos Programas de Pós-Graduação
(Stricto Sensu) em Serviço Social

Revista Título do artigo Descritor Autor(a) Ano

1 Revista Enfrentamento da Exploração Sexual Cristiane Bonfim 2016


Argumentum violência sexual de de Crianças e Fernandez;
crianças e adolescentes Adolescentes
pelo Legislativo no Luana Ferreira Tavares
Amazonas FerreiraTavares;

Maria Joseilda da Silva


Pinheiro.

2 O Social em Entre o difuso e o Exploração Sexual Joana Garcia e Daiane 2016


Questão oculto: o enfrentamento de Crianças e Rodrigues C. Pacheco
da Exploração Sexual Adolescentes
contra Crianças e
Adolescentes no âmbito
do CREAS

3 Textos & Vitimação e Exploração Sexual Jaina Raqueli Pedersen 2009


Contextos vitimização de crianças de Crianças e
e adolescentes: Adolescentes
expressões da questão
social e objeto de
trabalho do Serviço
Social

4 O Social em A questão da violência Violência Sexual Vicente de Paula Faleiros 2008


Questão sexual contra crianças e contra crianças e
adolescentes na adolescentes
produção acadêmica

707
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
5 O Social em Paradoxos da Violência Sexual Vicente de Paula Faleiros 2016
Questão resolubilidade das contra crianças e e Patrícia Jakeliny F. S.
denúncias de violência adolescentes Moraes
sexual na perspectiva
dos conselheiros
tutelares

6 O Social em As representações Violência Sexual Monique Soares Vieira 2018


Questão sociais da violência contra crianças e
sexual infanto-juvenil adolescentes
em profissionais da
política de Assistência
Social

7 Serviço Social Sentidos do abuso Violência Sexual Juliana Hilario Maranhão; 2014
em Revista sexual intrafamiliar contra crianças e Alessandra Silva Xavier
para adolescentes do adolescentes
sexo feminino

8 Sociedade em Os desafios do CREAS Violência Sexual Monique Soares Vieira; 2013


Debate no enfrentamento das contra crianças e
expressões da violência adolescentes Patrícia Krieger Grossi;
sexual contra crianças e
adolescentes em Porto Geovana Prante
Alegre Gasparotto.

9 Sociedade em Violência Intrafamiliar Violência Sexual Maria Ignez Costa 2018


Debate e em especial a contra crianças e Moreira;
Violência Sexual adolescentes
Intrafamiliar Contra Sônia Margarida Gomes
Crianças e Sousa.
Adolescentes: do
espaço privado ao
espaço da política
pública

Fonte: As autoras (2020).

Notou-se a pouca publicação de artigos relacionados com a temática de estudo, considerando


catorze (14) Programas de Pós- Graduação em Serviço Social no Brasil com Revistas, apenas cinco
(5) periódicos possuíam artigos com os descritores. Sendo essas, a Revista Argumentum (1), a

708
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Revista O Social em Questão (4), a Revista Textos e Contextos (1), a Revista Serviço Social em
Revista (1), a Revista Sociedade em Debate (2). A região que teve mais artigos com os descritores
foi a região Sudeste com a revista Argumentum e a revista O Social em Debate com cinco (5) artigos
na região. Na região Sul tiveram quatro (4) artigos pelos periódicos, Serviço Social em Revista,
Textos & Contextos e Sociedade em Debate.
Observou-se a distância temporal entre a publicação de um artigo e outro, sendo os anos em
que mais verificou-se artigos com o assunto foram, 2008, 2009, 2013, 2014, 2016 e 2018, e desses o
teve maior número de publicações sobre o tema foi o ano de 2016 com três (3) artigos publicados,
logo em seguida o ano de 2018 com duas publicações. Os anos de 2008, 2008, 2013 e 2014 tiveram
uma publicação apenas. Desta forma, observa-se que a produção de artigos sobre a temática ainda é
baixa tendo em vista o período temporal dessa pesquisa.
No que se refere aos autores e autoras desses artigos analisados, destaca-se a relevância do
gênero feminino sendo de um total de dezessete (17) autores, quinze (15) são do gênero feminino.
Esse dado vai ao encontro ao Estudo realizado pela instituição da Organização dos Estados Ibero-
americanos (OEI) no qual trás que “72% dos textos publicados no país incluem pelo menos uma
autora brasileira. Já no caso da publicação dos trabalhos, o estudo aponta que, em 2017, o volume de
textos também tem uma diferença para mais para as mulheres (53%), comparadas com os homens
(47%)” (OEI, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Baseado no que foi até então exposto e nas discussões realizadas, é preciso destacar que todas
as formas de violência contra crianças e adolescentes fazem parte de um problema complexo e
resultante das relações sociais estabelecidas na sociabilidade capitalista. Discutir isso é um grande
desafio, visto que, o tema está atravessado por recortes de classe, de raça, de gênero, de geração e são
relações historicamente marcadas por exploração e opressão. Por isso, não se pode analisar estas
formas de violência de modo imediato, pelo contrário, deve-se buscar compreender como a dinâmica
perversa do capital permite que tudo se transforme em mercadoria, inclusive os corpos de crianças e
adolescentes.
Neste sentido, o lucrativo mercado pornográfico infantojuvenil está inserido nessa
dinâmica capitalista e tem sido beneficiado pelo avanço das novas tecnologias de comunicação

709
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e pelo uso das redes sociais e aplicativos, que tem facilitado à aproximação dos agressores com as
vítimas permitindo o anonimato e a impunidade nesses crimes. Isso evidencia a necessidade de
continuar a ampliar e efetivar a rede de proteção, problematizando e dando visibilidade ao assunto
para que se alcance maior mobilização social, tendo em vista o enfrentamento político do problema.
Além do mais, os resultados da pesquisa aqui proposta também apontam para a necessidade
de dar visibilidade ao assunto, já que se notou pouca publicação de artigos relacionados com a
temática e no que se refere aos autores e autoras desses artigos analisados, destacou-se a maioria do
gênero feminino. Assim como, a predominância de homens como autores da violência e a
predominância de meninas como vítimas. Confirmando os desdobramentos de uma sociedade
machista e desigual, que legitima esse estigma do lugar da mulher e da criança na sociedade, numa
posição inferior ao homem. E ainda, é a mulher que acaba sendo quem mais se interessa por pesquisar
sobre um problema que é causado principalmente pelos homens.
Por fim, destaca-se que este estudo pode oferecer informações para estudantes e profissionais
de diversas áreas que tenham interesse pela temática. Ressalta-se a contribuição da pesquisa no
processo de produção de conhecimento, que proporcionará discussões necessárias no processo de
formação profissional. Bem como, subsidiará intervenções profissionais e políticas que preencham
as lacunas das políticas existentes.

REFERÊNCIAS
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 17
de ago. de 2020.

______. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 17 de ago. de 2020.

______. LEI Nº 13.431, DE 4 DE ABRIL DE 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da


criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm> Acesso em: 17 de
ago. de 2020.

______. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS.


DISQUE DIREITOS HUMANOS: RELATÓRIO 2019. Disponível

710
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em:<https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/mmfdh/disque_100_relatorio_mmfdh2019.pdf>
Acesso em: 17 de ago. de 2020.

______. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.


2013. Disponível em: <http://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/08_2013_pnevsca.pdf>
Acesso em: 17 de ago. de 2020.

_______. GUIA ESCOLAR: identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e


adolescentes. Secretaria Especial dos Direitos Humanos Ministério da Educação. Brasília, 2011.

BRETAN, Maria Emilia Accioli Nobre. Violência sexual contra crianças e adolescentes mediada
pela tecnologia da informação e comunicação: elementos para prevenção vitimal. Tese.
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.

COIMBRA, Renata Maria et al. Exploração sexual: conceitos e propostas de enfrentamento na


realidade brasileira. In: DESLANDES, Suely Ferreira; CONSTANTINO, Patrícia (Org.).
Exploração sexual de crianças e adolescentes: interpretações plurais e modos de enfrentamento. -
1.ed. - São Paulo: Hucitec, 2018.

DESLANDES, Suely Ferreira; CONSTANTINO, Patrícia. Exploração sexual de crianças e


adolescentes como categoria heurística e de ação: imprecisão, ambiguidades e consensos.
DESLANDES, Suely Ferreira; CONSTANTINO, Patrícia (Org.). Exploração sexual de crianças e
adolescentes: interpretações plurais e modos de enfrentamento. - 1.ed. - São Paulo: Hucitec, 2018.

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA - UNICEF. MANUAL SOBRE O


PROTOCOLO FACULTATIVO RELATIVO À VENDA DE CRIANÇAS, PROSTITUIÇÃO
INFANTIL E PORNOGRAFIA INFANTIL. 2010. Disponível
em:<https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/unicef/optional_protocol_por.pdf> Acesso em
18 de ago. de 2020.

FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo?. Cadernos Pagu [online], n.26, pp.201-223, janeiro-
junho de 2006.

LOWENKRON, Laura. Abuso sexual infantil, exploração sexual de crianças, pedofilia: diferentes
nomes, diferentes problemas? In: Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, ISSN
1984- 6487 / n.5 - 2010 - pp.9-29

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência contra crianças e adolescentes: questão social,
questão de saúde. Rev. bras. saúde matern. infant., Recife, 1(2):91-102, maio-ago., 2001.

_______. Violência e Saúde. Maria Cecília de Souza Minayo. Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ,
2006. 132 p. (Coleção Temas em Saúde).

ORGANIZAÇÃO DE ESTADOS IBERO-AMERICANO - OEI. Estudo da OEI aponta


conquista das mulheres do meio científico no Brasil. OEI. 07/03/2019. Disponível
711
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em:<https://oei.org.br/noticia/estudo-da-oei-aponta-conquista-das-mulheres-do-meio-cientifico-no-
brasil> Acesso em: 22 de ago. de 2020.

SAFERNET. Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. 2020.


Disponível em:<http://indicadores.safernet.org.br/index.html> Acesso em: 17 de agosto de 2020.

712
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“MULHERES, PROFESSORAS E PESQUISADORAS”: VIVÊNCIAS EM TEMPOS DE
PANDEMIA

Jean Pablo Guimarães Rosssi286


Thaise Fernanda de Lima Mares 287
Eliane Rose Maio288

Resumo: Nesta pesquisa, temos por objetivo apresentar a análise das vivências de dez mulheres que atuam como docentes
e pesquisadoras, frente ao momento de pandemia atual, em função do Coronavírus/COVID-19. É certo que o isolamento
social exigiu (e tem exigido) de todas e todos nós, (re)pensarmos em novas adaptações e readequações, principalmente,
no que concerne ao âmbito acadêmico, as docentes têm sido desafiadas a refletirem sobre suas atividades nos diversos
aspectos tanto profissionais, quanto pessoais, como mulheres, pesquisadoras, mães... Desta maneira, problematizamos:
tomando por base, o contexto histórico atual, quais as questões que podem ser identificadas e analisadas, em torno das
vivências de mulheres, docentes, que estão no espaço universitário? Para esta pesquisa, buscamos 10 participantes, que
preencham como critérios principais: serem mulheres, docentes de alguma Instituição de Ensino Superior pública,
pesquisadoras que estejam inseridas em algum programa de pós-graduação Sctricto Sensu (Mestrado e Doutorado).
Outros aspectos como: maternidade, casamento, a religiosidade etc.; não foram colocados como critérios obrigatórios de
seleção das participantes, pois compreendemos as particularidades de suas vivências. Na etapa seguinte, escolhemos a
técnica Snowball (bola de neve). Esta técnica pressupõe que os sujeitos da pesquisa sejam encontrados por meio das
indicações que preencham os requisitos de seleção e, sucessivamente, irão formar uma bola de neve, constituindo, assim,
a totalidade de participantes. Em um segundo momento, propomos a aplicação de um questionário por meio da plataforma
Google Forms. O instrumental de coleta de dados foi aplicado para dez mulheres, docentes, pesquisadoras e que,
atualmente, se encontram inseridas em programas de Pós-Graduação. Os dados coletados foram analisados e,
posteriormente, dispostos em eixos de discussão, a partir da identificação temática de seus conteúdos. Teoricamente, nos
ancoramos nos Estudos Feministas e Estudos de Gênero, pertinentes para análise e discussão das nuances do “ser mulher”
e suas experiências frente às novas exigências deste momento histórico. Identificamos, portanto, nesta pesquisa, que as
demandas e responsabilidades socialmente e culturalmente alocadas sobre o “ser mulher”, mediante o isolamento social,
necessita de readequações apara o enfrentamento ao COVID-19, assim, as desigualdades de gênero sobre o “ser mulher”
podem ser ainda mais acentuadas e reforçadas. Além disso, se pensarmos nas especificidades das mulheres que são
docentes, principalmente, aquelas que estão no espaço acadêmico, temos aqui outro fator agravante, uma vez que,
enquanto pesquisadoras na Pós-Graduação, se veem em meio às pressões de manter a constante produtividade. Assim,
enquanto pesquisadoras e pesquisadores, compreendemos a plausibilidade de tencionarmos os Estudos de Gênero e
Feminismos para contribuir na compreensão dos fenômenos que se fazem presentes no contexto atual. Um dos exemplos
que evidencia o quanto as mulheres têm sido afetadas por este momento, é o aumento da violência contra a mulher durante
a pandemia. Neste sentido, foi possível identificar as desigualdades de gênero associadas às mulheres pesquisadoras, o
que nos possibilitou contribuir para pensar e repensar as questões de gênero diante do atual contexto de Pandemia
ocasionada pelo COVID-19.

Palavras-chave: Mulheres; Professoras; Gênero; Pandemia; COVID-19.

286
Psicólogo, Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: psijeanpablo@gmail.com.
287
Graduada em Serviço Social. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação, pela Universidade
Estadual de Maringá. e professora do curso Serviço Social, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus
de Toledo. E-mail: thaise.flima@gmail.com.
288
Psicóloga, Mestrado em Psicologia, Doutorado em Educação Escolar, Pós-Doutorado em Educação Escolar.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE), da Universidade Estadual de Maringá. E-mail:
elianerosemaio@yahoo.com.br.
713
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. Tradução: Denise
Bottmann. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2017.

______. Sejamos todos feministas. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.

ALVES, Zélia Maria Mendes Biasoli. Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no
século XX. Psicologia: Teoria e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.3, p. 233-239, set/dez 2000.

BALDIN, Nelma; MUNHOZ, Elzira M. Bagatin. Snowball (Bola de Neve): uma técnica
metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária. In: Anais do X Congresso
Nacional de Educação – Educere. Curitiba, 2011. p.329-341. Disponível em:
<https://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4398_2342.pdf>. Acesso em: 11 de jul. 2020.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FURLANI, Jimena. Educação Sexual na Escola: equidade de gênero, livre orientação sexual e
igualdade étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças. Florianópolis: UDESC (Fundação
Universidade do Estado de Santa Catarina); SECAD / Ministério da Educação, 2008.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6.


ed. Petrópolis/Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1997.

______. Currículo, gênero e sexualidade – O “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO,


Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre. Corpo, Gênero e Sexualidade: um
debate contemporâneo na educação. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 2013. p.43-53.

MARQUES, Emanuele Souza; MOARES, Claudia Leite de; HASSELMANN, Maria Helena;
DESLANDES, Suely Ferreira; REICHENHEIM, Michael Eduardo. A violência contra mulheres,
crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de
enfrentamento. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36 n.4, p.1-6, 2020.

MORENO, Montserrat. Como se ensina a ser menina. Tradução de Ana Venite Fuzatto. São Paulo:
Moderna, 1999.

PARENT IN SCIENCE. Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça


e parentalidade. 2020. Disponível em: < http://www.sbq.org.br/noticia/produtividade-
acad%C3%AAmica-durante-pandemia-efeitos-de-g%C3%AAnero-ra%C3%A7a-e-
parentalidade> Acesso em: 10 de jul. 2020.

714
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ROSSI, Jean Pablo Guimarães; PÁTARO, Ricardo Fernandes. Educação e Democracia: Gênero e
Sexualidade em tempos de “Escola sem Partido” Entrevista com Fernando Seffner. Revista
Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 8, n. 14, p. 7-23, jan./jun. 2019.

ROSSI, Jean Pablo Guimarães. Gênero e educação em tempos de Escola Sem Partido:
compreensões de educadoras em debate. 194f. Dissertação (Mestrado em Sociedade e
Desenvolvimento) – Universidade Estadual do Paraná/UNESPAR, 2020.

WERNECK, Guilherme Loureiro; CARVALHO, Marilia Sá. A pandemia de COVID-19 no Brasil:


crônica de uma crise sanitária anunciada. Cad. Saúde Pública, v. 26, n.5, p.1-4, 2020.

715
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIOLÊNCIA SEXUAL: UM ESTUDO DESCRITIVO DOS DADOS DO ESTADO DO
AMAZONAS

Merianne da Silva Lima289


Márcio de Oliveira290

Resumo: Não é recente que um dos problemas mais graves da saúde pública é a violência sexual, além de ferir os Direitos
Humanos, traz consigo consequências na saúde física, mental, comportamental e social da vítima. O que corrobora com
a preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS) que adverte que tais efeitos entrelaçam-se em níveis ndividual,
relacional, comunitário e social. Dessa forma, devido aos diversos impactos, que vão dos econômicos, perpassando o
social e concentrando-se nos da saúde, que a partir de 2006 todo caso de violência passa a integrar a lista de notificação
compulsória, devendo ser registrado nos centros de referências: para violências, para as IST, HIV/AIDS, nos centros
especializados, nas maternidades, dentre outros. Assim sendo, todos os tipos de violências, hoje, devem ser reportados às
autoridades a partir de todos os serviços de saúde, oficializado pela Portaria nº 104 GM/MS de 2011. E como política em
saúde o Ministério da Saúde, por meio do Sistema Unico de Saúde (SUS), implantou o Sistema de Vigilância de
Violências e Acidentes (VIVA). Espera-se que as informações aqui apresentadas contribuam para implementação de
Políticas efetivas contra a violência sexual, no contexto amazônico. Destarte com o objetivo de descrever os dados
informados de violência sexual no Estado do Amazonas, no período de janeiro de 2018 a junho de 2019, esse estudo
delineou-se por uma abordagem quantitativa, de caráter descritivo, a partir de pesquisa bibliográfica e documental. Os
resultados apontam que dos 62 municípios do Estado do Amazonas, apenas nove não tiveram casos notificados no
período. Com um total de 2.478 casos no Estado, a capital Manaus lidera com 1.563 casos, correspondendo a 56,7%,
seguida de Parintins com 131, Tefé com 105 e Manacapuru com 103 casos. Quando se analisou os dados, considerando
gênero, faixa etária e tipo de violência respectivamente, 90% dos casos ocorreram contra o gênero feminino, 59% na faixa
etária de 10 a 19 anos e 19% na faixa etária de 5 a 9 anos. E o tipo de violência mais cometida no Estado do Amazonas é
o estupro com 78% dos casos notificados. Estes percentuais sinalizam a importância de se dialogar sobre o assunto nos
mais diversos setores como na saúde, educação, justiça criminal e outros. A partir do exposto, conclui-se que os números
de violência sexual são alarmantes e precisam de políticas públicas efetivas para a sua prevenção e o seu combate, de
modo que essa violação dos Direitos Humanos deve ser erradicada, com participação de toda a sociedade, a fim de que
essa triste realidade fique nas estatíticas do passado.

Palavras-chave: Violência Sexual; Casos Notificados; Amazonas.

REFERÊNCIAS

AMAZONAS (Estado). Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas. Boletim Epidemiológico:


Violência Sexual no Estado do Amazonas. Amazonas, nº 01. 2019. Disponível em:
http://www.fvs.am.gov.br/es/publicacoes_es?page=3. Acesso em 04 Set. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 104, de 25 de janeiro de 2011. Brasília, DF, 2011.
Disponível em:
https://www.saude.mg.gov.br/index.php?option=com_gmg&controller=document&id=8141.
Acesso em 09 Set. 2020.

289
Mestranda do Curso Mestrado em Educação, pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM, campus Manaus.
E-mail: lima_parintins@hotmail.com
290
Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela Universidade Federal
do Amazonas – UFAM, campus Manaus. E-mail: profmarciooliveira@ufam.edu.br
716
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
OLIVEIRA, Nathália França de; MORAES, Claudia Leite de; JUNGER, Washington Leite;
REICHENHEIM, Michael Eduardo. Violência contra crianças e adolescentes em Manaus,
Amazonas: estudo descritivo dos casos e análise da completude das fichas de notificação, 2009-
2016. Revista Epidemiológia e Serviço de Saúde. Brasília, v. 29, n. 1, p. 1-20. 2020.

ONU - Organização das Nações Unidas. OMS aborda consequências da violência sexual para
saúde das mulheres. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-aborda-consequencias-da-
violencia-sexual-para-saude-das-mulheres/. Acesso em 09 Set. 2020.

717
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FEMINICÍDIO: UMA REFLEXÃO SOBRE A
VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO CONTEXTO AMAZÔNICO

Janiely Loyana Correia de Menezes291


Rosana Trindade de Matos292
Márcio de Oliveira293

Resumo: O presente resumo nasce de um desafio proposto aos/às autores/as quanto ao estudo das
relações de gênero e do crime de feminicídio diante de uma das muitas notícias que circulam na mídia
e expressam o machismo enraizado nos discursos conservadores que se manifestam incessantemente
contra o feminismo na tentativa de suscitar a ideia de que ele não é necessário para a vida em
sociedade. Temos como objetivo problematizar aspetos e conceitos importantes sobre gênero e
feminicídio, além de provocar uma discussão sobre a necessidade do enfrentamento contra o
feminicídio no Brasil, tendo em vista dos dados alarmantes de violência contra mulher. A matéria a
ser trabalhada foi veiculada pelo Jornal Portal em Tempo em 2020 e tem o seguinte título: “Neste
ano, mais de 12 mil mulheres sofrem violência no AM”, dentre os casos de feminicídio ocorridos na
cidade de Manaus, destacou-se a história da Miss Manicoré Kimberly Karen Mota, encontrada morta
no apartamento do ex-namorado que fugiu; e após ser encontrado confessou o crime. Este trabalho
está pautado em uma análise bibliográfica e documental, usando como suporte a Lei 13.104/15, que
alterou o artigo 121 do Código Penal Brasileiro, passando a prever o feminicídio como
circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio e, também o inseriu no rol de crimes hediondos,
da Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, além da análise dos dados da
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP/AM) que apontaram que 12.984
mulheres foram vítimas de violência doméstica e 1.697 sofreram lesão corporal de janeiro a julho do
corrente ano. Destacamos que esses números servem como base para uma análise quantitativa, no
entanto não refletem a realidade em que vivemos, sobretudo no contexto amazônico, em que muitos
casos não chegam sequer a serem registrados por diversos fatores, entre eles, o medo de denunciar
e a esperança de que o agressor mude, por isso a importância de se intensificar as ações de combate
a esse tipo de violência em todos os espaços, bem como o acompanhamento dos casos a fim de evitar
que a vítima retorne ao ciclo de violência, isso nos faz refletir sobre o importante papel da educação
e a urgência e necessidade de abordar e desmistificar as questões de gênero e sexualidade nas
escolas, com o objetivo de empoderar e desconstruir as opressões vividas pelas mulheres
cotidianamente. Diante do exposto, ressaltamos que a cultura machista, sexista e patriarcal tem
referendado os crimes contra as mulheres, de forma que o contexto social acaba por inferiorizá-las;
essa realidade precisa ser combatida com o objetivo de diminuir a violência doméstica e o
feminicídio, sobretudo no Brasil – país onde os discursos neoconservadores tem avançado e
prejudicado as políticas públicas de proteção aos grupos mais vulneráveis, a exemplo da mulheres.
291
Mestranda do curso de Pós-Graduação em Educação PPGE pela Universidade Federal do Amazonas -UFAM,
campus Manaus. E-mail: janielyloyana@gmail.com
292
Mestranda do curso de Pós-Graduação em Educação PPGE, pela Universidade Universidade Federal do
Amazonas, campus Manaus. E-mail: rosanamatos83@gmail.com
293
Professor do curso de Pós-Graduação em Educação, pela Universidade Federal do Amazonas, campusManaus.
E-mail: marcio.1808@hotmail.com

718
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim como no Brasil todo, no estado do Amazonas, os números de violações dos Direitos Humanos
em relação às mulheres, são alarmantes e precisam ser discutidos, divulgados, midiatizados e, mais
do que isso: combatidos com Educação, equidade, conhecimento e respeito.

Palavras-chave: Gênero; Violência Doméstica; Feminicidio; Educação.REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; alterao Código de Processo Penal,
o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 Set.
2020.

BRASIL. Lei 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no
rol dos crimes hediondos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 10 Set.2020.

MARTINS, Selma Alves de Freitas. Gênero e sexualidade na educação: questão de direito.In:


MAIO, Eliane Rose (Organizadora). Educação, Gênero e Feminismos: resistências bordadascom fios
de luta. Editora CRV. Curitiba – Brasil, 2017, p. 225-244.

PORTAL EM TEMPO. Neste ano, mais de 12 mil mulheres sofrem violência no AM. 2020.
Disponível em: https://d.emtempo.com.br/amazonas/218251/neste-ano-mais-de-12-mil- mulheres-
sofreram-violencia-no-am. Acesso em: 08 Set. 2020.

ROSOSTOLATO, Breno. PAYÁ, Roberta. Violência contra a mulher. In: CANOSA, Ana Cristina.
ZACHARIAS, Ronaldo. KOEHLER, Sonia Maria Ferreira. Sexualidades e Violências: Um olhar
sobre a banalização da violência no campo da sexualidade. São Paulo: Ideias & Letras, 2019,
p.279 – 290.

719
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PESSOAS TRANS E VIVÊNCIAS ESCOLARES: SILENCIAMENTO DA ESCOLA,
DESCOBRIMENTO DE SI

Flávia Regina Gonçalves Corrêa294

Resumo: A presente pesquisa é parte integrante do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Regional
de Joinville (UNIVILLE) e está em fase de conclusão. Teve por objetivo analisar como a construção do conceito de
gênero durante a infância impacta as vivências escolares de pessoas trans. Para tanto, foi realizado um aprofundamento
teórico acerca de gênero e sexualidade (BENTO, 2017; BUTLER, 1990; CORRÊA, 2013; LOURO, 2014; SCOTT, 1995),
fazendo um enlace com a área educacional e as políticas educacionais brasileiras (APPLE, 2003; BRASIL, 2017;
JUNIOR, 2018; JUNQUEIRA, 2018; MIGUEL, 2020; VIANNA, 2012; SEFFNER, 2017). O caminho metodológico se
constituiu a partir da compreensão de lugar de fala (RIBEIRO, 2019) e da necessidade de ouvir as pessoas trans a respeito
de suas vivências. Assim, foram realizadas entrevistas individuais e semi estruturadas com cinco participantes, todos
trans, sendo três homens e duas mulheres, com faixa etária entre 23 e 33 anos. Nas entrevistas foram abordadas questões
sobre a trajetória escolar des participantes, incluindo o reconhecimento de suas identidades e relações sociais. A partir
das respostas destes participantes, foram definidas três categorias de análise, utilizando-se como base teórica da teoria
histórico-cultural (AGUIAR, 2015), são estas: descobrimento de si, vivências escolares e infâncias trans. Aqui será
abordada com maior aprofundamento a categoria intitulada vivências escolares. Dentre os pontos em destaque nesta
categoria, encontram-se as práticas escolares que acabam por reforçar estereótipos de gênero, tais como aulas de educação
física, brincadeiras, datas comemorativas e a própria conduta da escola e de alguns professores diante de alunes
considerades “diferentes” do padrão de gênero heteronormativo. Por outro lado, destaca-se também as possibilidades de
reconhecimento de si propiciadas pelo ambiente escolar, onde es participantes tiveram a oportunidade de encontrar
identificação com outros alunes, fortalecer laços e ter experiências afetivas que auxiliaram no processo de reconhecimento
de suas identidades. Ainda, fez-se relevante nesta categoria o silenciamento da escola em relação à diferentes formas de
ser e expressar a sexualidade/identidade. Isto porque todos es participantes relataram nunca terem ouvido falar de
transexualidade no espaço escolar por nenhum dos agentes escolares e, menos ainda, como conteúdo integrante do
currículo. Este silenciamento acarretou, segundo os relatos, em um processo de reconhecimento de identidade transexual
tardio, realizado peles própries participantes a partir de pesquisas e relações sociais. Além disso, impactou na vivência
plena da experiência escolar para muites des participantes, que evitavam participar de atividades e eventos escolares que
reforçassem o padrão binário e heterossexual de gênero e sexualidade.Vale considerar aqui que estes participantes têm
sua trajetória escolar datada no final dos anos 90 e início dos anos 2000, um período em a informação ainda não era
acessível à todes o debate de gênero e sexualidade não se mostrava emergente no espaço escolar. Concluiu-se, a partir da
análise específica desta categoria, a urgência da ampliação do debate de gênero no espaço escolar, contrariando políticas
conversadoras que se legitimam, com o intuito de conscientizar e sensibilizar professores e agentes escolares acerca da
diversidade no contexto escolar em todas as suas práticas e diretrizes.

Palavras-chave: Transexualidade; Vivências Escolares; Identidade de Gênero; Heteronormatividade.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, Wanda Maria Junqueira. A pesquisa em Psicologia Sócio-Histórica: contribuições para
o debate metodológico. / In: BOCK, Ana; FURTADO, Odair; GONÇALVES, Maria Graça.
Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 6ª ed. São Paulo: 2015.

APPLE, Michael. Educando à direita: mercados, padrões, Deus e desigualdade. São Paulo:
Cortez: Instituto Paulo Freire, 2003.

294
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Regional de Joinville
(UNIVILLE). E-mail: flaviargcorrea@gmail.com
720
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BENTO, Berenice. O que é transexualidade/Coleção Primeiros Passos. 1ed. Ebook. Brasiliense:
São Paulo, 2017.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNC C_20dez_site.pdf. Acesso em 03 de junho de
2020. 68

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CORREA, Crishna Mirella. Educação, lei e sexualidade: a importância da discussão sobre os


padrões normativos do comportamento sexual e de gênero na escola. In: Gênero, direitos e
diversidade sexual: trajetórias escolares (online) / Eliane Maio, Crishna Mirella de Andrade Correa.
Maringá: Eduem, 2013. Disponível em: htttp://books.scielo.org Acesso em: 20 de maio de 2020.

JUNIOR, Antônio Carvalho. Aviadando o currículo: representação, gay, corpo e política pública.
In: Educação, gênero e diversidade sexual: fabricação das diferenças no espaço escolar/ Pedro Paulo
Souza Rios, Alane Martins Mendes (orgs). Curitiba: CRV, 2018.

JUNQUEIRA, Bruna Dalmaso. Possibilidades para um trabalho docente feminista: professoras


mulheres da rede municipal de ensino de Porto Alegre, feminismos e a narrativa conservadora
da “ideologia de gênero”. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/183231 . Acesso em: 01 de junho de 2020.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós estruturalista.
16ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero" - Escola Sem Partido
e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Revista 72 Direito e Práxis, vol. 7, núm. 15, 2016,
pp. 590-621 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/3509/350947688019.pdf Acesso em 14 de abril de 2020.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala/Coleção Feminismos Plurais. Ed. Pólen Livros, São Paulo: 2019.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol. 20 (2),
jul./dez. 1995.

SEFFNER, Fernando. Atravessamentos de gênero, sexualidade e educação: tempos difíceis e


novas arenas políticas. In: Educação, movimentos sociais e 73 políticas governamentais/ Maria
Andrade Torales Campos, Mônica Ribeiro da Silva (orgs). Curitiba: Appris, 2017.

VIANNA, Claudia. Gênero, sexualidade e políticas públicas de educação: um diálogo com a


produção acadêmica. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 2 (68), p. 127-143, maio/ago. 2012.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v23n2/a09v23n2.pdf Acesso em 23 de junho de
2020
721
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A DOCÊNCIA MASCULINA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PERCEPÇÕES DOS
PEDAGOGOS EGRESSOS DO CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA DA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UFAM

Marinês Viana de Souza 295


Jefferson Araújo do Nascimento 296

Resumo: O presente resumo aborda a temática da docência masculina na Educação Infantil, pesquisa que foi
desenvolvida dentro das ações do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) na Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Amazonas, de agosto de 2018 a julho de 2019. A atuação profissional de homens
na Educação Infantil, em creches ou pré-escolas é rara, aspecto atribuído à dinâmica cultural, que confere à presença
feminina no magistério um espaço de legitimidade quase que “natural” em função do que se convencionou chamar de
“essência maternal”. Inferimos que há um componente de preconceito que alimenta esta situação e que reforça os papéis
sociais de que para cuidar de crianças o homem não tem o aspecto materno que a mulher apresenta por sua “natureza”
feminina. Estima-se que no Brasil, apenas 3% dos profissionais da Educação Infantil são homens, o que não é diferente
na cidade de Manaus/AM. Neste sentido, buscamos fazer uma reflexão crítica que possa contribuir para a produção de
conhecimento na área e também com sua problematização visando diminuir preconceitos e discriminações em torno da
docência masculina nessa etapa da Educação Básica. O objetivo geral da pesquisa buscou conhecer os desafios e as
possibilidades encontradas por pedagogos egressos do curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação da
UFAM em sua inserção no campo profissional em relação à docência na Educação Infantil. Considerando a temática,
utilizamos como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, documental e de campo, de modo que pudemos
ter uma base teórica para analisarmos quais os documentos e materiais necessários para prosseguir com a pesquisa, além
de coleta de dados realizada por meio do questionário com elaboração de perguntas abertas e fechadas para os
profissionais egressos do curso de pedagogia do gênero masculino da Faculdade de Educação da UFAM. Os relatos dos
egressos direcionaram para constatarmos que ainda são grandes as dificuldades na atuação de homens na Educação
Infantil. Trata-se de um campo profissional majoritariamente dominado pelas mulheres, em um processo social que
naturaliza a profissão docente nesta etapa como sendo restrito ao campo feminino. A busca para desatrelar a ideia de que
somente as mulheres podem executar um trabalho de excelência na Educação Infantil tem sido uma batalha por parte de
alguns/algumas autores/as, já que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 não impõe nada relacionado
a gênero e o que deve ser levado em consideração na realização do trabalho é a prática profissional. Afastar os homens
da sala de aula e os inserir diretamente na gestão escolar, muitas vezes, está diretamente ligado ao preconceito de que não
poderiam fazer um bom trabalho, assim como as mulheres na visão de alguns não poderiam fazer um bom trabalho à
frente da gestão escolar, o que nos últimos anos tem mudado, a ideia de igualização tem sido um ponto a ser observado e
trabalhado para que cada vez mais isso se torne uma forma de selecionar os/as profissionais pela maneira como trabalham
e não por questões de gênero.

Palavras-chave: Docência; Educação Infantil; Gênero; Pedagogia.

REFERÊNCIAS

BARDIN. L. Análise de conteúdo. Lisboa: Editora Edições 70, 1977.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Brasília: MEC, 1996.

295
Professora do curso de Pedagogia, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, câmpus
Manaus/AM. E-mail: marinessouza@ufam.edu.br
296
Graduando do curso de Pedagogia, pela Universidade Federal do Amazonas, câmpus Manaus/AM. E-mail:
jota.nascimento.am@gmail.com
722
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas "estado da arte". Educ. Soc.,
vol.23, no. 79, p.257-272, ago. 2002.

FERREIRA, José Luiz. Homens ensinando crianças: continuidade-descontinuidade das relações de


gênero na escola rural. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de
Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa: 2008.

FARIA, Lívia Monique de Castro. Reflexões acerca das questões de gênero no curso
pedagogia: licenciatura para educação infantil: modalidade a distância. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/33encontro/app/webroot/files/file/P%C3%B4steres%20em%>. Acesso
em: 11 set. 2020.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.

ORIANI, Valeria Pall. Direitos humanos e gênero na Educação Infantil: concepções e


práticas pedagógicas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências,
UNESP – Universidade Estadual Paulista. 157f. Marília, 2010.

SAYÃO, Deborah Thomé. Relações de gênero e trabalho docente na Educação Infantil: Um


estudo de professores em creche. Florianópolis, 2005.

_______. Relações de gênero na creche: os homens no cuidado e educação das crianças pequenas.
G.T Educação das crianças de 0 a 6 anos - G.T. 07. Santa Catarina: UFSC, [s.d]. Disponíve em:
<http://pt.scribd.com/doc/6740846/O-PapelPositivo-Do-Homem-Na-Educacao-Das-Criancas>.
Acesso em: 02 set. 2020.

SILVA, Bráulio Ramos da. O trabalho docente e o sentido de ser professor no contexto da
Educação Infantil. 2015. 168 f. Disssertação (Mestrado em educação) – Programa de Pós-graduação
em Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiás. 2015.

SILVA, Bruno Leonardo Bezerra. A presença de homens docentes na Educação Infantil: lugares
(des) ocupados. 2015. 107 f. Disssertação (Mestrado em educação) – Programa de Pós-graduação em
Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2015.

SILVA, Peterson Rigato da. Não sou tio, nem pai, sou professor! A docência masculina na
educação infantil. 2014. 222 f. Disssertação (Mestrado em educação) – Programa de Pós-graduação
em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas. 2014.

SOUSA, José Edilmar. “Por um acaso existem homens professores de Educação Infantil?”: Um
estudo de casos múltiplos em representações sociais. 2011. 206 f. Disssertação (Mestrado em
educação) – Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza. 2011.
723
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SOUZA, Mara Isis de. Homem como professor de creche: sentidos e significados atribuídos pelos
diferentes atores institucionais. 2010. 249 f. Disssertação (Mestrado em educação) – Programa de
Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP,
Ribeirão Preto. 2010.

TEODORO, Luciano Gonçalves. O trabalho docente na educação infantil na perspectiva de


professores homens de um município do interior paulista. Ribeirão Preto - SP, 2015. Disponível
em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7874
>. Acesso em: 18 ago. 2020.

724
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ELA FAZ TUDO
CERTINHO!
JOVENS CONTEMPORÂNEOS E RELACIONAMENTOS AFETIVOS

Renata da Rocha Soares297


Juliana Ribeiro de Vargas298
Resumo: A partir de uma investigação maior constituída a partir das perspectivas teóricas dos Estudos Culturais em
Educação e dos Estudos de Gênero, buscamos nesse artigo visibilizar e problematizar narrativas de um grupo de jovens,
alunos do último ano do Ensino Médio de uma escola pública da região metropolitana de Porto Alegre (RS), a respeito
de seus relacionamentos afetivos. Como ferramentas metodológicas, valemo-nos de questionários e entrevistas
semiestruturadas realizadas com os estudantes, na faixa etária entre 17 e 19 anos. A partir de seus relatos percebe-se uma
reverberação de discursos machistas, os quais (de)limitam sobre as (im)possibilidades de vida de suas parceiras e de
outras mulheres e ainda, naturalizam/fomentam práticas de preconceito e violência em seus relacionamentos. Pode-se
assim depreender a importância da escola, entre outras instâncias, na apresentação de discursos outros, no íntuito da
descontrução das formas de construção dos relacionamentos afetivos dos jovens.

Palavras-chave: Estudos Culturais; Gênero; Relacionamentos afetivos; Violência; Juventudes

PRIMEIROS PALAVRAS, VELHOS PASSOS

Neste artigo, recorte de uma investigação maior, buscamos visibilizar e problematizar


narrativas de jovens sobre seus relacionamentos afetivos (RENATA SOARES, 2019). É importante
ressaltar que tais estudantes, com idades entre 17 e 19 anos, eram alunos do último ano do Ensino
Médio de uma escola pública da região metropolitana de Porto Alegre (RS).299 Para tanto, buscamos
aportes nos Estudos Culturais em Educação e nos Estudos de Gênero, em perspectiva pós-
estruturalista e dessa forma, em consonância com as perspectivas elencadas, compreendemos o
espaço escolar como um observatório que possibilita investigar e problematizar diferentes dimensões
das juventudes contemporâneas.
A escolha por realizar a investigação em uma escola dá-se, também, por compreender tal
instituição como um lugar de passagem obrigatória para jovens em razão nas normativas legais que
compreendem como função do Estado a oferta da educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro)
aos 17 (dezessete) anos de idade ou seja, da pré-escola ao Ensino Médio300. Vale ainda destacar que
as reformas nas legislações de ensino, a exemplo do “Novo Ensino Médio”, encaminham para uma

297
Mestre em Educação pela Universidade Luterana do Brasil. E-mail: renatarocha.edfisica@gmail.com
298
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: julivargas10@hotmail.com
299
Vale destacar que a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade sendo aprovada sob o número
CAAE: 87394818.2.0000.5349, em 25 de maio de 2018.
300
Ver Art. 4º da Lei 9394/96.
725
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
maior permanência diária dos/as estudantes nas escolas, mobilizando a ocorrência de ações – outrora
constituídas em outros espaços das vidas juvenis – nas instituições de ensino301. Ou seja, a vida social
dos/as jovens, que antes acontecia, em maior parte, nos parques, nas praças e em outros espaços
coletivos das cidades, também ocorrerá, em alguma medida, no interior das escolas. Sobre essa
dimensão, as palavras de Fernando Seffner (2017, p. 6) também colaboram:

Após a Constituição Federal de 1988, a frequência à escola no Brasil é obrigatória, e pelo


menos no ensino fundamental alcançou patamares de quase cem por cento. A isto se soma o
fato de que há um processo em andamento de transformar as escolas em escolas de turno
integral, onde o jovem passa todo o dia, realiza as principais refeições, interações sociais,
estudos e leituras, além de assistir a outros eventos providenciados pelo sistema escolar. Com
isso a escola passou a desempenhar no Brasil um papel relevante na gestão e diálogo com as
culturas juvenis.

Nas próximas seções discorremos sobre as ferramentas teóricas e metodológicas que pautaram
a pesquisa realizada; apresentamos as categorias analíticas constituídas, as quais evidenciam, através
das narrativas dos jovens pesquisados, a potencialidade de discursos machistas que limitam
possibilidades de vida de suas parceiras, de outras mulheres e ainda, de seus próprios
relacionamentos. Encerramos esse texto afirmando que análises sobre posicionamentos e posturas
dos estudantes em estudo, podem permitir melhor conhecê-los e inspirar a organização de práticas
pedagógicas diferenciadas, as quais visem o tensionamento de discursos naturalizados (e limítrofes)
acerca dos relacionamentos afetivos entre os jovens.

AS ESCOLHAS TEÓRICAS
Conforme apontamos anteriormente, os Estudos Culturais em Educação e os Estudos de
Gênero, em perspectiva pós-estruturalista, constituem as bases teóricas para a organização desse
estudo. A partir de tais premissas compreendemos os sujeitos não como entidades unificadas, mas
constituídos discursivamente, segundo as condições de possibilidades de distintos contextos
históricos e sociais (HALL, 2006).
Conforme afirmam Cary Nelson e demais autores (2013), os Estudos Culturais constituem-se
em um campo teórico que ultrapassa as fronteiras disciplinares. Por conseguinte, configuraram-se
como um campo teórico que tensiona tradições elitistas, as quais persistiam “exaltando uma distinção

301
Maiores informações sobre o Novo Ensino Médio disponíveis em: http://novoensinomedio.mec.gov.br/. Acesso
em 20 ago 2020.
726
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
hierárquica entre alta cultura e cultura de massas, entre cultura burguesa e cultura operária, entre
cultura erudita e cultura popular” (MARISA COSTA, ROSA SILVEIRA e SOMMER, 2003, p. 37).
Também o diferenciado entendimento sobre a linguagem e a compreensão de que não é
possível dispor de total controle acerca dos discursos, como afirma Alfredo Veiga-Neto (2002),
apresentam-se como mais uma das argumentações constituídas na perspectiva dos Estudos Culturais.
Assim, a linguagem, espaço operativo de poder, torna-se “[...] constitutiva do social e da cultura e
[...] se propõe a problematizar e explorar a indeterminação, a ambiguidade, a instabilidade, a
multiplicidade e a provisoriedade dos sentidos que ela produz.” (DAGMAR MEYER e
ROSANGELA SOARES, 2005, p. 29).
De acordo com Michel Foucault (2012), os discursos organizam, constituem os sujeitos e os
objetos aos quais se referem. Logo, não podem ser compreendidos apenas como um anúncio neutro
de palavras e significados. Os discursos, para o referido autor, são históricos, são “[...] fragmentos de
história, unidade e descontinuidade da própria história, que coloca o problema de seus próprios
limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não
do seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo.” (FOUCAULT, 2012, p.143). A
partir dessa premissa, pode-se pensar que os discursos são práticas organizadoras da realidade, a qual
se difere nos distintos tempos e grupos sociais. Sobre o referido conceito, destaca o autor (VAYNE,
2011, p. 50): “Os discursos são as lentes através das quais, a cada época, os homens perceberam todas
as coisas, pensaram e agiram.”
Vale destacar que compreendemos as narrativas dos jovens pesquisados como superfícies de
visibilidade de diferentes discursos que visibilizam verdades – constituídas historicamente - acerca
dos relacionamentos afetivos e que acabam, possivelmente, por subjetivar os estudantes em questão,
bem como suas companheiras. Logo, a noção de verdade, fundamentada em Foucault (2007) coloca-
se como profícua para pensar as narrativas dos jovens acerca dos relacionamentos afetivos, uma vez
que resulta de construções discursivas, determinadas por epistemes situadas historicamente e
imbricadas em relações de poder.
Valemo-nos da perspectiva dos Estudos de Gênero para problematizar, dentre tantas questões,
a compreensão das diferenciações entre os comportamentos de homens e mulheres como originárias
unicamente de diferenças biológicas. Como reitera Guacira Louro (2003, p. 22) o conceito gênero
“enfatiza, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características

727
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
biológicas” entre homens e mulheres e, por conseguinte, a atribuição de determinadas práticas e ações
como “naturalmente” masculinas e/ou de femininas. Sobre o tema, Carin Klein (2007, p. 182) explica:

[...] os estudos de gênero passaram a examinar mecanismos e pressupostos de gênero que


atuam no interior das diversas instituições sociais na construção do feminino e do masculino,
acentuando os processos de formação dessas representações, bem como o seu aspecto
relacional, indicando que o estudo de uma categoria pressupõe necessariamente o estudo da
outra.
É interessante destacar que a proposição de Joan Scott (1995) sobre o conceito de gênero
visa à conexão entre as seguintes ideias: a) gênero é um elemento constitutivo das relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; b) gênero é uma forma primária de dar significado
às relações de poder. Joan Scott (1995) ainda problematiza a oposição binária entre o que poderíamos
chamar de mundo masculino e mundo feminino acaba por ser problematizada pela autora, uma vez
que é no contexto histórico e social que as características/diferenças entre homens e mulheres acabam
por ser constituídas.
Também a mídia, em seus distintos canais de comunicação, como o rádio, a televisão e a
internet, corrobora para constituição de posturas percebidas como (in)adequadas, colabora para a
constituição de subjetividades, em por conseguinte, nos modos de viver as masculinidades e
feminilidades, razão dos discursos veiculados em suas produções (ROSA FISCHER, 2007). Logo, é
possível pensar que a mídia fomente a visibilidade de estilos, gostos e, também, de histórias de vida,
ações essas que contribuem para a constituição e assimilação de discursos diversos pela sociedade.
Sobre o tema, afirma Rosa Fischer (2002, p. 86):

[...] poderia dizer-se que a mídia se constitui um espaço de “visibilidade de visibilidades”;


ela e suas práticas de produção e circulação de produtos culturais constituiriam uma espécie
de reduplicação das visibilidades de nosso tempo. Da mesma forma, poderíamos dizer que a
mídia se faz um espaço de reduplicação dos discursos, dos enunciados de uma época. Mais
do que inventar ou produzir um discurso, a mídia reduplicá-lo-ia, porém, sempre a seu modo,
na sua linguagem, na sua forma de tratar aquilo que “deve” ser visto ou ouvido.

ENTRE MASCULINIDADES E JUVENTUDES


Embasado em Connel e Messerschmidt, Luciano Silva (2018) descreve que produção das
masculinidades está relacionada à constituição de cenários culturais e institucionais e ainda, que os
homens vivenciam, de diferentes modos, as masculinidades. O referido autor também problematiza
que “[...] tal forma de se exercer a masculinidade é a forma mais honrada de ser homem,
colocando as mulheres e os outros homens em posição de subordinação.” (SILVA, 2018, p. 44).
728
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No início dos anos 1990, Pierre Bourdieu apresentou um estudo aprofundado denominado
“Dominação Masculina”, em que descreve o masculino a partir de características tais como força
física, agressividade, virilidade. Além disso, Bourdieu (2012, p. 16) relaciona o corpo físico com as
vantagens de ser homem e “as representações dos pertencimentos ligados ao universo feminino e ao
masculino, descritos na sociedade”. Para essa relação Bourdieu (2012, p. 18) fala:

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição
bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento,
seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado,
reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte
masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura
do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos,
e longos períodos de gestação, femininos. (BOURDIEU, 2012, p.18).

Ruth Sabat (2001) reforça que, além dessas características, “inserem-se a competitividade e a
heterossexualidade como características dependentes da masculinidade hegemônica”. Nesse sentido,
Seffner (2013 p. 122) diz que:

[...] um atributo que se presta excepcionalmente para isso é o da atividade, tomada muitas
vezes como força, e daí derivando força física, capacidade de decisão, força moral,
responsabilidade para assumir grandes empreendimentos, coragem, ser ativo na relação
sexual, etc.

No entanto, Seffner (2013 p. 125) também fala que “[...] a partir de Connell, é possível afirmar
que diferentes masculinidades se produzem no mesmo espaço social, seja este espaço a família, a
região de moradia, o grupo cultural ou étnico [...]”. O autor ressalta que, individualmente, o homem
constrói a sua masculinidade tendo como base a masculinidade hegemônica, que socialmente é
reproduzida no seu dia a dia e completa:

[...] ao mesmo tempo com uma pluralidade de outros modos de viver a masculinidade
presentes em seu cotidiano, representados pelos tipos particulares e originais que cada
homem encontra ao produzir sua própria trajetória masculina na vida do dia a dia.
(SEFFNER, 2013 p. 126).

Ainda sobre o tema, as pesquisadoras Taina Chimieski e Raquel Quadrado (2017, p. 3) falam
que as masculinidades “[...] são como construções sociais fluídas, coletivas, provisórias,
relacionais, contraditórias e múltiplas, que podem ser reconfiguradas a qualquer momento”. No

729
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
entanto Dessa forma, podemos pensar que existem diferentes modos de viver a masculinidade,
incorporando-a a ela características tais como sensibilidade, delicadeza e vaidade. Vale dizer que, as
palavras sensibilidade, delicadeza, vaidade por muito tempo e ainda na contemporaneidade, podem
ser compreendidas como pertencentes ao universo feminino. Sobre o tema, Luciano Silva (2012) fala
que: “[...] não é difícil perceber o quanto uma forma de masculinidade que não é hegemônica é menos
valorizada na escola [...] se observa elementos de um disciplinamento, via deboche, estigma,
discriminação, brincadeiras maldosas” (SILVA, 2012, p. 29).
Ao analisar discursos visibilizados por músicas descritas por jovens como suas preferidas,
Juliana Vargas (2015) problematiza o modo como tais produtos culturais destacam como “natural” a
predileção dos homens pelo sexo, em qualquer relação de afeto. Como destaca a autora:

[...] a definição do interesse masculino unicamente por sexo acaba por caracterizar um modo
de ser homem, de exercício da masculinidade. Assim, a frase Homem é tudo igual, pode ser
entendida como um enunciado constituído por discursos diversos, tal como o discurso
biológico que diferencia homens e mulheres e aponta uma série de características comuns
aos indivíduos masculinos, a exemplo do interesse sexual maior quando comparado às
mulheres, em razão da diferenciação hormonal (VARGAS, 2015, p. 105)

Compreendemos que tensionar a construção da masculinidade possibilita pensar na forma


como a mesma está sendo (re)produzida, na contemporaneidade, através dos discursos em diferentes
instâncias da sociedade, a exemplo da família, das instituições de ensino e das mídias. Nesse sentido,
problematizamos os modos como os jovens estão conduzindo seus relacionamentos uma vez que, a
partir do entendimento da masculinidade hegemônica, a expressão de sentimentos, em especial os
relacionados ao amor e ao afeto, acaba por ser compreendidas como relacionadas ao universo
feminino.
Ainda de acordo com a perspectiva dos Estudos Culturais, o conceito de juventude remete à
ideia de categoria plural. Estudos como os de Carles Feixa (2019), Juarez Dayrell (2012), Sandra
Andrade (2008), entre outros, valem-se desta compreensão de juventude e assim, distanciam-se das
classificações etárias e descrições biológicas como modo único de contextualizar e descrever tal
categoria. Para Dayrell e demais autores (2012), a juventude pode ser considerada uma categoria
dinâmica, atravessada pelas mudanças e transformações que ocorrem ao longo da história nas diversas
sociedades. O referido autor compreende também que tal categoria é marcada pela diversidade,

730
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
expressa nas diferenças sociais e culturais que constituem as posturas dos sujeitos compreendidos
como jovens. Em suas palavras (DAYRELL, 2003, p. 42):

[...] uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar,


considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de
crescimento mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências
vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social. Significa não entender a juventude como
uma etapa com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação que
será superado com o chegar da vida adulta.

Feixa (2019) vale-se da expressão juventudes a fim de assinalar a heterogeneidade que o


termo, na contemporaneidade, acaba por assumir. A mudança na descrição – de juventude para o seu
plural - abrange também a transformação nas “formas de olhar”. Desta forma, as manifestações de
determinados grupos de sujeitos consideradas como não relevantes ou inadequadas à vida em
sociedade sob determinadas perspectivas analíticas, sejam compreendidas, a partir do conceito de
juventudes, como expressões identitárias de grupos associados à cultura juvenil.
Mesmo que na perspectiva deste estudo as juventudes não sejam relacionadas de modo direto
à idade cronológica dos sujeitos, é preciso referir que dentre os discursos legais tal marcador acaba
por ser utilizado como um delimitador que categoriza aqueles e aquelas que seriam jovens. No
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são considerados adolescentes aqueles e aquelas que
têm entre 12 anos completos e 18 anos302. Já a Organização das Nações Unidas (ONU) compreende
como jovem aquele que está entre os 15 e 24 anos. No entanto, Guita Grin Debert (2010, p. 51)
sustenta a juventude como categoria que “perde conexão com um grupo etário específico e passa a
significar um valor que deve ser conquistado e mantido em qualquer idade através da adoção de
formas de consumo de bens e serviços apropriados”. Tais bens e serviços oferecem cuidados extremos
com o corpo e a manutenção de uma aparência forte, tonificada, jovial, potencializada por uma
indústria de produtos de beleza, alimentação e de academias de ginástica. Busca-se, de todas as
formas, suprir o desejo de manter-se jovem e assim, tornam-se borradas as fronteiras que limitam um
tempo aproximado para se ‘entrar e sair’ da juventude. Sobre o tema, destaca Renato Janine Ribeiro
(2007, p. 27):

[...] a juventude atualmente constitui um certo ideal que talvez jamais termine. [...] O corpo
bem cuidado, a saúde, a liberdade até mesmo de desfazer relacionamentos, a

302
O ECA foi instituído pela Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
731
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
possibilidade de sucessivos recomeços afetivos e profissionais: tudo isso tem a ver com uma
conversão do humano em jovem.

EM BUSCA DE HARMONIA: AS FERRAMENTAS METODOLÓGICAS


O corpus empírico do presente estudo decorre da aplicação de questionários e de entrevistas
narrativas com jovens estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, de uma escola pública localizada
na região metropolitana de Porto Alegre. É preciso referir que uma das autoras realizou as entrevistas
narrativas na escola em questão, em razão desse ser seu campo de pesquisa para a investigação de
Mestrado. A turma escolhida fora indicada pela direção da escola em questão, pois “os namoros” e
as trocas de afeto entre os estudantes dessa aconteciam durante as aulas e nos intervalos,
transbordando o que era considerado pela equipe diretiva como “adequado” para o espaço escolar.
Posterior à aprovação do Comitê de Ética, apresentamos aos estudantes o tema da investigação
e lhes entregamos as documentações necessárias para a participação. O retorno das autorizações e o
desejo dos alunos foram condições para delimitar o número de participantes do estudo – dez
estudantes. Com o retorno das autorizações, aplicamos um questionário com objetivo de conhecer
melhor os jovens participantes da pesquisa e suas opiniões sobre a temática desse estudo. A partir dos
questionários, as entrevistas narrativas foram realizadas individualmente com os alunos participantes
da pesquisa no ambiente escolar, no mesmo turno de suas aulas. Vale destacar que a escolha pelos
jovens como protagonistas da pesquisa alinha nosso interesse como pesquisadoras da temática
juventudes ao número limitado de estudos realizado com “os jovens” e seus relacionamentos afetivos
e ainda, pelas estatísticas apontarem, infelizmente, o grande número de companheiros como os
responsáveis pelas agressões físicas e psíquicas de suas parceiras.
Vale referir que diversas são as formas que se configuram uma entrevista, porém, o modelo
selecionado para desenvolver essa pesquisa, trata-se da entrevista narrativa. Nesse sentido, Sandra
Jovchelovitch e Martin W. Bauer (2002, p. 91) explicam que:

Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma


sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de
acontecimentos que constroem a vida individual e social. Contar histórias implica estados
intencionais que aliviam, ou ao menos tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que
confrontam a vida cotidiana normal. (JOVCHELOVITCH & BAUER , 2002, p. 91)

732
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Também Sandra Andrade (2008, p. 51) expressa que “[as] entrevistas não permitem dizer uma
ou a verdade sobre as coisas e os fatos, mas pode-se considerá-las como a instância central que,
somada a outras, traz informações fundamentais acerca do vivido [...].” Através da entrevista
narrativa, compreendo que os jovens possam relatar suas experiências afetivas-sexuais e o que
pensam sobre os relacionamentos abusivos. Entendemos que, através das entrevistas- narrativas os
participantes sentiam-se confortáveis em falar pois ela representava um momento de maior
informalidade. Sobre narrativas Leonor Arfuch (2010, p. 111) contextualiza que:

A multiplicidade das formas que integram o espaço biográfico oferece um traço comum: elas
contam de diferentes modos, uma história ou experiência de vida. Inscrevem-se assim [...]
divisões do discurso, a narrativa e estão sujeitas, portanto, a certos procedimentos
compositivos, entre eles, e prioritariamente, os que remetem ao eixo da temporalidade.

A partir de autores como Jorge Larrosa (1994), Rosa Maria Hessel Silveira (2005) e Iara Bonin
(2007) as narrativas podem ser entendidas como formas de se atribuir sentidos e visibilidades, tanto
às experiências individuais, quanto às coletivas. Iara Bonin (2007, p. 51) fala que “[as] narrativas
produzem o que somos, produzem o mundo em que vivemos”. A autora destaca que essa possibilidade
advém dos Estudos Culturais após a virada linguística e completa “falar, escrever, ouvir são aspectos
indissociáveis dos jogos de linguagem, das práticas concretas colocadas em ação através do uso das
palavras” (BONIN, 2007, p. 51). Destacamos, a partir de agora, análises constituídas a partir das
entrevistas narrativas:

REGRAS NOS RELACIONAMENTOS SÃO PARA MULHERES

A frase que intitula a presente seção foi inspirada nas entrevistas realizadas junto aos jovens
pesquisados nesse estudo. Mesmo que não tenha sido afirmada de forma literal, os estudantes
evidenciaram narrativas que se aproximam de tal dimensão. É preciso destacar que estamos vivendo,
na atualidade, um momento de transitoriedade em muitas dimensões, a exemplo da representatividade
política e, por conseguinte, uma ascensão de ideias conservadoras sobre as questões de gênero e
sexualidade. Desta forma, pode-se depreender que além dos discursos machistas já circulantes em
diversas instâncias da sociedade, os jovens deparam-se também, no presente momento, com a
potencialização de tais discursos por aparatos oficiais, a exemplo das declarações de membros

733
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
do Governo Federal.303 Podemos pensar que estamos (infelizmente) vivendo um tempo de dúvidas
sobre as conquistas no que tange os direitos das mulheres e as práticas de igualdade de gênero, o que
poderia estar subsidiando a organização de suas narrativas sobre as questões de gênero e de
sexualidade.
As narrativas dos jovens encaminham para a seguinte organização de seus relacionamentos
afetivos: para eles tudo é permitido e para as jovens, suas namoradas, coloca-se como necessário o
cumprimento de determinadas regras, como se vê abaixo:304

Pesquisadora: As gurias podem se relacionar com outras pessoas? Melhor, a tua namorada, poderia ter outras amizades
de meninos por exemplo?
Poseidon: Depende, tem alguns que eu já disse que não quero que ela fale! Outros pode, mas eu tenho que dizer.
Pesquisadora: É mesmo? E como ela age, qual a reação dela quando tu falas com quem ela pode ou não se relacionar?
Poseidon: Nenhuma. Como ela me ama, me respeita!
Pesquisadora: E ela te diz com quem deves falar?
Poseidon: Não, né.
Pesquisadora: Por que não? Se tu dizes para ela, não foi o que tu falasses?
Poseidon: É diferente, ela confia em mim e eu não confio nos outros.
Pesquisadora: Mas se ela falar com outros meninos, o que pode acontecer, o que tu achas que é errado?
Poseidon: Os “caras” não perdoam, dão em cima da tua guria e ela pode fraquejar. Prefiro prevenir.
Pesquisadora: Entendi. E ela alguma vez, conversou contigo sobre isso?
Poseidon: Não precisa às vezes ela tenta, mas eu já digo que DR não é comigo! Risos...

Podemos perceber na narrativa acima que Poseidon se posiciona, em seu relacionamento


afetivo, como um “dominador”. É ele quem dita as regras e a sua namorada deve respeitá-las. E ainda,
se ela se recusar a cumpri-las, será um sinal de que não o ama. Tal interpretação também foi visível
em outra entrevista narrativa, como vê-se a seguir:

Hércules: Eu namoro e tenho os “contatinhos” também.


Pesquisadora: Pode me explicar?
Hércules: Aham. Namoro desde 2017 e os “contatinhos” são os rolinhos.
Pesquisadora: Ah, certo. Tens muitos “contatinhos”?

303
Desde 1º de janeiro de 2019 o Brasil é presidido por Jair Bolsonaro, candidato eleito pelo PSL e atualmente
(março de 2020) sem partido. Ancorado por uma pauta conservadora, o presidente em questão, por inúmeras vezes,
declarou embate a temas como homossexualidade, aborto, violência contra a mulher e educação para a igualdade de
gênero e para a sexualidade nos estabelecimentos de ensino. Além de declarar-se a partir de tais premissas, seu
governo compôs o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, presidido pela ministra Damares Alves,
autora de declarações polêmicas sobre as pautas do gênero, da sexualidade e da feminilidade. Uma das mais recentes
da ministra refere-se à submissão das mulheres aos homens em um casamento. Tal declaração foi realizada durante
audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres na Câmara. Ver :
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/16/damares-diz-que-em-sua-concepcao-crista-mulher-deve-ser-
submissa-ao-homem-no-casamento.ghtml. Acesso em 16 mar. 2019.
304
Os nomes dos participantes, por questões éticas, foram substituídos por nomes de Deuses da Mitologia Grega.
734
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Hércules: Até que agora, está meio parado, mas, volta e meia, vem uma querendo os meus amassos...
Pesquisadora: E tua namorada? Ela também tem os “contatinhos”?
Hércules: Claro que não sora! Senão eu termino tudo!

Analisando sobre as representações apresentadas pelos jovens em suas narrativas sobre as


(im)possibilidade de homens e de mulheres em um relacionamento afetivo, a ideia de que o homem
tudo pode e a mulher deve “podada” em seus desejos e vontades parece ainda ser representativa para
os jovens. Segundo os estudantes entrevistados os relacionamentos extraconjugais colocam-se como
uma prática “natural”; reprisada o tempo todo nos jornais, telenovelas, filmes e em suas próprias
histórias de vida.
Vale também destacar que, para os jovens pesquisados, aquela mulher que “sair da linha”
poderia ser rotulada como “uma qualquer”, como aquela com quem não se deveria assumir um
compromisso sério. Sobre o tema, destaca Guacira Louro (2010, p. 9): “As muitas formas de fazer-
se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre
sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente [...] Elas são também renovadamente, reguladas,
condenadas ou negadas.”
Jeffrey Weeks (2010, p. 41) também concorda com Guacira Louro (2010) ao pontuar: “Os
homens são os agentes sexuais ativos; as mulheres, por causa de seus corpos altamente sexualizados,
[...] eram vistas como meramente reativas, ‘despertadas para a vida’ pelos homens” Enquanto estes
são descritos – de modo direto- como agentes ativos, para aquelas é dispensado um papel passivo, o
qual apenas “entra em cena”, ao ser desperto por um homem.
As narrativas dos entrevistados visibilizam discursos que operam sobre a diferenciação de
gênero, a exemplo do discurso machista a partir do qual determinadas posturas são negadas às
mulheres e potencialmente associadas ao universo masculino. Pode-se pensar que o discurso machista
se apoie em uma ordem heteronormativa, a partir da qual determinadas posturas podem ser
entendidas, unicamente, como masculinas e/ou femininas. Cabe aqui também reiterar que, em
nenhum momento, os jovens descreveram a possibilidade de seus relacionamentos escaparem e/ou
tensionarem a heternormatividade. Todos os estudantes referiram-se, em seus relacionamentos, às
experiências com mulheres, seguindo um padrão heteronormativo de relação entre sexo biológico,
gênero e desejo sexual. Ou seja, homens devem “exercer a masculinidade” e, por conseguinte,
interessar-se, atraírem-se por mulheres.

735
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Segundo Weeks (2010), a significação do que seria normalidade e, por conseguinte, a
definição da anormalidade em relação às identidades sexuais e ao exercício da sexualidade, foram
elementos importantes para a distinção entre a homossexualidade e a heterossexualidade, ocorrida
entre os séculos XIX e XX. Logo, a constituição de uma adequada identidade sexual feminina, bem
como de um modelo de sexualidade masculino, estiveram relacionados à produção da
heterossexualidade. De acordo com Luís Henrique S. Santos (2009, p. 25), a heteronormatividade
organiza um “[...] padrão de sexualidade que tem a qualidade e força de uma norma.”, o qual é
produzido na associação entre o sexo, o gênero e a orientação sexual, estabelecendo assim posições
dicotômicas e binárias (SEFFNER, 2013).
Também sobre o tema destaca Silva (2018, p. 54) a heterossexualidade, normativa em diversas
sociedades, é (re)constituída, constantemente, por diversas instituições, em especial, pela escolar. Em
suas palavras:

[...]a escola tem sido, desde sempre, ou pelo menos a esmagadora maioria delas, a guardiã da
heterossexualidade. E é com base nessa forma da sexualidade humana, a heterossexualidade,
que a escola objetiva e explicitamente constitui sujeitos masculinos e femininos
heterossexuais. Quando se fala em família na escola, muito se tem em mente, ainda e
principalmente, o modelo tradicional de família – homem, mulher, filhos – ou seja, o modelo
marcado pela heterossexualidade compulsória e normativa.
Conforme citamos anteriormente, compreendo que escola normalize as dimensões do sexo e
do gênero, reforçando discursos naturalizados sobre as (im) possibilidades de homens e mulheres,
dos jovens e das jovens. Sobre o tema, em publicação anterior, Luciano Silva, (2012 p. 46) destaca:

As questões que envolvem a sexualidade na escola são tão naturalizadas que os próprios
alunos entram em sintonia com o que deles esperam os professores e demais integrantes do
corpo docente, mantendo e reforçando o que se considera uma heterossexualidade
compulsória. A heterossexualidade é extremamente valorizada, também, entre os alunos. E
as expectativas de gênero dos meninos e das meninas são claras, estando ligadas a toda uma
rede de poder. Tanto que, quando tais expectativas são frustradas, as sanções que se sofrem
são imediatas. Os próprios colegas muito perseguem aqueles que se distanciam dessas
expectativas.

Entendemos que a escola reforce a heteronormatividade como aponta o autor supracitado.


Juliana Vargas (2015, p. 104) também destaca que a discursividade sobre as regras nos
relacionamentos, ao descrever que as próprias colegas denominavam com adjetivos pejorativos
aquelas jovens que se relacionavam com vários homens e/ou bebiam demais em festas. Segundo
a autora, ocorre, no ambiente escolar, uma padronização acerca das questões de gênero e

736
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sexualidade: uma determinada forma é elencada como a verdadeira, como a expressividade real sobre
as constituições das masculinidades e das feminilidades. Infelizmente, as práticas de violência nos
relacionamentos afetivos também têm marcado as construções de tais dimensões de gênero, como
veremos na seção que segue

O CARA GOSTA TANTO DA GURIA E QUER ELA SÓ PARA ELE


Durante as entrevistas narrativas com os jovens participantes da pesquisa, chamou-nos a
atenção o modo como eles, de certa forma, tentaram justificar, as razões pelas quais o homem “perde
a cabeça” com o seu par em um relacionamento afetivo. Interessante, ainda, nessas narrativas, que os
sentimentos de “amor” e ciúme, de acordo com suas narrativas, acabariam por absolver quaisquer
“danos” que um homem poderia causar à sua parceira. Nas palavras dos jovens, em duas entrevistas
narrativas:

Pesquisadora: Quanto à agressão verbal, sabe que a maioria dos relacionamentos abusivos iniciam com discussões,
xingamentos, palavras de baixo calão, e isso, consideras uma ação abusiva?
Poseidon: Depende sora, as vezes a guria irrita o “cara” e ele perde a cabeça! Bater é errado, mas xingar, todo mundo
xinga...
Pesquisadora: Diga-me, já discutisse com a tua namorada?
Poseidon: Não, ela faz tudo certinho.
Pesquisadora: Se, um dia, ela te contrariar, apenas um exemplo, o que tu farias?
Poseidon: Ai... eu nem sei. Tá bom como está.
Pesquisadora: Mas tu a xingaria?
Poseidon: Pode ser que sim.

Pesquisadora: Certo. Mas falando sobre os relacionamentos abusivos, o que tu achas dos casos de agressão que as
mulheres vêm sofrendo nos últimos tempos? Os índices são alarmantes!
Hércules: Bah sora! Deve haver respeito mútuo.
Pesquisadora: Sim. Mas em que momento isso pode acontecer, ou acontece, que muitas vezes, levam as mulheres à
morte, e o responsável são os companheiros?
Hércules: O “cara” pode amar tanto que não sabe como agir e quer a guria só pra ele. Quer que ela siga o que ele diz.
Pesquisadora: E se ela contrariar e fizer o que ela tem vontade?
Hércules: Daí sora, ela pode ser agredida. Não é certo. O “cara” tem que respeitar a guria. Já tive amigo que bateu na
guria mas eles estão juntos sempre. Vai quer que ela gosta.
Pesquisadora: Acredito que não... Quem gosta de apanhar?
Hércules: As minas.

Compreendemos as falas de Poseidon e Hércules como tentativas para justificar as agressões


que homens às suas parceiras, o que nos preocupa frente ao momento em que vivemos, no qual o
número de feminicídios cresce de modo alarmante. Outro aluno também destaca sobre o tema:

737
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Pesquisadora: É, verdade, risos.... Agora, gostaria de ouvir a sua opinião a respeito de relações problemáticas, que
aprisionam e podem levar a mulher à morte, e o pior, através das mãos de seus companheiros.
Hefesto: Eu penso que são uns covardes! Se tratar a mulher bem, mais carinho se ganha, quer dizer, as vezes a mulher
pede também.
Pesquisadora: Pode explicar?
Hefesto: Se o “cara” gosta dela trata ela como uma princesa ela não dá valor, as vezes ele pode perder o controle. Não
estou dizendo que eu faria isso.
Pesquisadora: Ok, E na tua opinião, se a mulher não corresponde à altura, deve ser agredida?
Hefesto: O “cara” faz para chamar atenção. Mas eu acho errado bater em mulher. Ele deveria partir para outra.
Pesquisadora: De onde tu achas que surge essa agressividade, fazendo com que o homem desconte na companheira?
Hefesto: Pode ser por não saber se expressar, guardar coisas pra si, uma hora estoura!

Romeu Gomes (2011, p. 141-142) explica que a sociedade entende que o namoro é um espaço
distante da violência, o imaginário do amor romântico ainda faz parte desse contexto. Realmente,
ninguém começa um relacionamento com a intenção oposta ao amor, como a dor, o sofrimento físico
e mental. Tais agressões não marcam apenas o corpo, o lado psicológico fica abalado, como coloca
Gomes (2011, p. 143): “[...] a violência surge significantemente de uma forma recorrente. Ela é
simplificada por meio de situações abusivas (de ordem física, psicológica ou sexual) vividas pelos
jovens em suas relações afetivo-sexuais ou por outros adolescentes de seu conhecimento”.
Nesse contexto fica claro que a violência, infelizmente, faz parte do cotidiano dos jovens,
pois, como descreve o autor, ele pode não ter vivenciado, mas conhece quem vivenciou. Como
pesquisadoras da temática juventudes e professoras atuantes, em outros momentos, na Educação
Básica, afirmamos que a violência, em diferentes expressividades, permeia os relacionamentos
juvenis, muitas vezes. Ofensas, situações vexatórias e agressões físicas já nos foram narradas, por
alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio em outras situações. Em consonância com Gomes,
as pesquisadoras Joannie Soares, Marta Julia Marques Lopes e Kathie Njain (2013), definem, a
violência nas relações afetivas entre os jovens, como àquelas ações que são prejudiciais à saúde e ao
desenvolvimento e à saúde da(o) parceira(o)e que comprometem a integridade física, psicológica ou
sexual do par.
É importante destacar também, que muitos jovens apontaram como incompreensível e
inadmissível qualquer prática de violência contra a mulher. E que nenhum relacionamento afetivo-
sexual deve pautar-se por tais parâmetros, como pode ser percebido em suas narrativas:

Aquiles: Eu acho totalmente errado bater em mulher, ela deveria procurar ajuda. [...] tem muita gente que acha a
mulher fraca e aí se prevalece.

738
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Alfeu: Bah sora, é errado bater em mulher. Talvez o “cara” tenha se criado vendo o pai bater na mãe “daí” se criou assim
e pensa que deve bater na namorada. O “cara” bate na namorada por isso ou porque tem ciúmes dela e pensa que ela é só
dele.
Pesquisadora: Tu achas que podem ser por fatores externos, como tu citastes, que o namorado bate na namorada?
Alfeu: Ah sora, pode ser também porque a mulher é fraca, daí o “cara” bate, se fosse bater em outro “cara” ele não teria
coragem. Ela deveria buscar ajuda sora.

As diferentes narrativas apresentadas sobre as práticas de violência às mulheres, evidenciam


distintas representações de relacionamentos afetivo-sexuais. Vale problematizar de que forma, ou
ainda, quais discursos potencializam a naturalização da violência nos relacionamentos. Ressaltamos
que, nos últimos tempos, tem ocorrido um aumento nos índices referentes aos feminicídios,
triplicando dados, como ocorreu em janeiro de 2020, no Rio Grande do Sul. Segundo a Secretaria de
Segurança Pública gaúcha, somente no primeiro mês do referido ano, 10 mulheres perderam a vida
nas mãos de seus companheiros.305 Encerramos essa seção com as palavras de Selam Ferraz (2013, p. 7)

O que se esquece é que alguns dos piores machistas são precisamente os que dizem amar
apaixonadamente o sexo feminino, aqueles que, com seu discurso baboso e galanteador, enaltecem
as meras qualidades sensuais e voluptuosas das mulheres, reduzindo-as a objetos de prazer, a corpos
gostosos, vazios de alma, inteligência e vontade, portanto dóceis, submissos e passivos.

EM BUSCA DE NOVAS AÇÕES


Encerramos essa pesquisa compreendendo a potencialidade de alguns desses discursos, a exemplo
dos discursos machistas, heteronomativos, reproduzidos por muitos dos jovens em suas narrativas sobre os
relacionamentos efetivos e ainda, sobre as (im)possibilidades de homens e mulheres na sociedade.
Também nos surpreendeu a potencialidade da masculinidade hegemônica em balizar características tais
como, virilidade, força, heterossexualidade como constructos dos relacionamentos afetivos
constituídos/vivenciados pelos jovens e ainda, as representações que os mesmos têm sobre a temática.
Pretendemos deixar uma reflexão ao entorno dos discursos que envolvem a educação dos
meninos/jovens inicialmente com os familiares, estendendo-se para as instituições de ensino e espraiando-
se na sociedade. Quando deixamos, imputamos regras sobre o que pertence ao feminino e o masculino,
pode-se estar limitando as possibilidades de os sujeitos vivenciarem diferentes espaços, as dimensões do
gênero e da sexualidade. Compreendemos que o processo seja lento e que não seja fácil mudar, transformar
as práticas culturais. Porém nossas pesquisas podem, (e devem) desafiar tais práticas. Podemos, mesmo

305
Ver: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/02/10/feminicidios-no-rio-grande-do-sul-triplicam-
em-janeiro-deste-ano.ghtml. Acesso em 20 mar. 2020.
739
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
com limitações, buscar a construção de novos discursos sobre homens, mulheres e relacionamentos,
propagando mais respeito com o próximo.

REFERÊNCIAS
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução,
Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

BAUER, W. Martin; SANDRA, JOVCHELOVITCH. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e


som: manual prático. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2012.

CARIN KLEIN. Educação, maternidade e política cultural. Revista Gênero. Niterói, v. 7, n. 2, p. 175-
196, 2007. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/30981 Acesso em: 14
jan. 2020.

CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.2,
p. 185-206, jul. /dez. 1995.

DAGMAR MEYER, Estermann; ROSANGELA SOARES, Soares. Modos de ver e de se movimentar


pelos “caminhos” da pesquisa pós-estruturalista em Educação: o que podemos aprender com – e a
partir de – um filme. In: MARISA COSTA, Vorraber; MARIA BUJES, Isabel (Orgs.), Caminhos
investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, n. 24, p. 40-52, set./out./nov./dez. 2003.

DAYRELL, Juarez. CARVALHO, Levindo; GEBER, Saulo. Os jovens educadores em um contexto


de educação integral. In: JAQUELINE MOLL,. Caminhos da educação integral no Brasil - direito
a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P.157-171.

FEIXA, Carles, LARA WEISSBÖCK,Pires. Da geração @ a geração blockchain: a juventude na era


postdigital. Revista Textura, Canoas (RS), v. 21. n. 47, p. 6-31 jul/set. 2019.

FOUCAULT, Michel A Arqueologia do saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I- A vontade de saber. 18. ed. São Paulo: Graal,
2007.

GOMES, Romeu. Invisibilidade da violência nas relações afetivo-sexuais. In: MARIA CECÍLIA
MINAYO, de Souza; SIMONE ASSIS, Gonçalves; KATHIE NJAINE, (Org.). Amor e
violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de
Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011. p. 141-151.
740
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GUACIRA LOURO, Lopes .Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o
“excêntrico”. In: GUACIRA LOURO, Lopes; JANE NECKEL, Felipe; SILVANA GOELLNER,
Vilodre (orgs.): Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis:
Vozes, 2003. P. 41-52.

GUACIRA LOURO, Lopes. Pedagogias da Sexualidade. 3 ed. In: GUACIRA LOURO, Lopes (org).
O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. P. 07-34.

GUITA DEBERT, Grin. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n.34, p.49-70, jul./dez. 2010.

HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

IARA BONIN, Tatiana. E por falar em povos indígenas... Quais narrativas contam em práticas
pedagógicas? Porto Alegre: UFRGS, 2007. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Porto
Alegre, 2007.

JOAN SCOTT. Gênero: uma categoria útil de análise histórica de Joan Scott. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n. 2, jul./dez, p. 71-99. 1995.

JOANNIE SOARES, dos Santos Fachinelli. MARTA LOPES, Julia Marques; KATHIE NJAINE,
Violência nos relacionamentos afetivo-sexuais entre adolescentes de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, Brasil: busca de ajuda e rede de apoio.Cad. Saúde Pública, vol.29, n.6, pp.1121-1130.2013

JULIANA VARGAS, Ribeiro de. O que ouço me produz e me conduz? A constituição de


feminilidades contemporâneas de jovens contemporâneas no espaço escolar da periferia. Porto
Alegre: UFRGS, 2015. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação.
Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). O sujeito da
educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 35-86.

MARISA COSTA, Vorraber; ROSA SILVEIRA, Maria Hessel; SOMMER, Luís Henrique. Estudos
culturais, educação e pedagogia. Revista Brasileira de Educação. Campinas, nº 23, p. 36-61,
maio/jun./jul./ago. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a03.pdf. Acesso em:
17. Jun. 2016.

NELSON, Cary; PAULA , TREICHLER, ; GROSSBERG, Lawrence. Estudos culturais: uma


introdução. In: SILVA, Tomaz T. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais
em educação. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 7-38.

741
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RENATA SOARES. Relacionamentos afetivo-sexuais: narrativas de jovens contemporâneos.
Canoas: ULBRA, 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Luetrana do Brasil, Canoas, 2019.

RIBEIRO, Renato Janine. Política e juventude: o que fica da energia. In: REGINA NOVAES;
VANNUCHI, Paulo (Orgs.). Juventude e Sociedade. Trabalho, educação, cultura e participação.
São Paulo: Perseu Abramo e Instituto Cidadania, 2007.

ROSA FISCHER, Maria Bueno. Mídia, máquinas de imagens e práticas pedagógicas. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro (RJ), v. 12, n. 35, p. 290 -299. maio/ago. 2007.

ROSA FISCHER, Rosa Maria Bueno. Problematizações sobre o exercício de ver: mídia e pesquisa
em Educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro (RJ), v. 20, p. 83-94. 2002.

ROSA SILVEIRA, Maria Hessel. Cultura, poder e educação: um debate sobre Estudos Culturais
em Educação. Canoas (RS): Editora da ULBRA, 2005.

RUTH SABAT. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista Estudos Feministas. Volume 9,
número 1, 2º semestre, UFSC, Florianópolis, 2001.

SANDRA ANDRADE, dos Santos,. Juventudes e processos de escolarização: uma abordagem


cultural. Porto Alegre: UFRGS, 2008. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2008.

SANTOS, Luiz Henrique Sacchi dos. Heteronormatividade & Educação. In: Tá difícil de falar sobre
sexualidade na escola? SOMOS: Porto Alegre, p. 26-36. 2009.

SEFFNER, Fernando. Escola pública e função docente: pluralismo democrático, história e liberdade de
ensinar. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - contra os preconceitos: história e democracia
Disponível em:
https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1488969068_ARQUIVO_FernandoTextoHistor
iadoresDemocraciaANPUHSP.pdf. Acesso em 20. mar. 2020.

SEFFNER, Fernando. Sigam-me os bons: apuros e aflições nos enfrentamentos ao regime da


heteronormatividade no espaço escolar. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 39, n. 1, p. 145-159,
jan./mar. 2013

SELMA FERRAZ, Selma. Dicionário machista: três mil anos de frases cretinas contra as mulheres.
São Paulo: Jardim dos Livros, 2013.

SILVA, F. Luciano. Mid the Gap: processos de construção e manutenção das masculinidades e
distanciamentos no desempenho escolar de meninos e meninas. Porto Alegre: UFRGS, 2012.
Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de

742
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.

SILVA, F. Luciano. Mind the trap : construção de masculinidades juvenis e suas implicações com
o desempenho escolar. Porto Alegre: UFRGS, 2018. Tese (Doutorado em Educação). Programa de
Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2018.

TAINA CHIMIESKI, Guerra.; RAQUEL QUADRADO, Pereira. A produção de masculinidade na


campanha publicitária: para o você que existe no ogro. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero
11, Florianópolis, 2017. Mundo de Mulheres, 13. Anais Eletrônicos [...,] Florianópolis, 2017.
Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499495161_ARQUIVO_fazendo.gener
o.Taina.Chimieski.pdf. Acesso em: 12 set. 2018.

VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares... In: COSTA, Marisa Vorraber (org): Caminhos investigativos:
novos olhares na pesquisa em educação. 2. ed. Porto Alegre: Mediação, 2002. P. 23-38

WEEKS, Jeffrey. O Corpo e a Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado:
pedagogias da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 3ª ed. Autêntica: Belo Horizonte, 2010.
P. 35-82.

743
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFLEXÃO SOBRE POLÍTICA DE EDUCAÇÃO E O ATENDIMENTO À CRIANÇA E
ADOLESCENTE NO ÂMBITO ESCOLAR

Lucas Avila306
Monique Bronzoni Damascena 307

Resumo: O professor no exercer da prática pedagógica, visa incentivar uma interação social entre seus educandos,
fazendo-os refletir sobre a cultura que possuem e o contexto social em que estão inseridos. Nesse sentido sua prática
perpassa um planejamento político e pedagógico, na busca pela identificação de elementos cruciais para a formação dos
sujeitos. O presente artigo faz parte da pesquisa em andamento da Especialização em Política de Atenção à Criança e
Adolescente em situação de Violência - ECASVI sobre a base da atuação político-pedagógica do professor na relação
com crianças e adolescentes em situação de violência, nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFS) de São
Borja/RS. Na busca de informações sobre as bases legais de atendimento à criança e adolescente dentro das políticas
educacionais realizou-se uma revisão da bibliografia que é apresentada neste artigo. A partir da revisão foi possível
identificar elementos que se relacionam entre tratativas de atendimento e prevenção dentro de documentos da base
educacional em âmbito nacional, do qual estreita a exposição da política educacional, e sua legalidade na atuação docente,
como suporte para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência.

Palavras-chave: Prática Pedagógica; Crianças; Adolescentes; Violência.

INTRODUÇÃO
O professor no exercer da prática pedagógica, visa promover uma interação social entre seus
educandos, fazendo-os refletir sobre a cultura que possuem e o contexto social em que estão inseridos.
Para este artigo, será apresentado uma revisão bibliográfica. Do qual, tem como intuito, apresentar
uma reflexão introdutória sobre a compreensão da base legal e da perspectiva de atuação política e
pedagógica do docente no âmbito escolar, por meio dos Projetos Político-pedagógicos. Dessa forma,
apreender as estratégias político-pedagógicas de prevenção e acolhimento no meio escolar para
crianças e adolescentes que foram vítimas de situações de violência.
As informações que serão apresentadas fazem parte da construção da pesquisa, que está em

elaboração, para o trabalho de conclusão da pós-graduação, da Especialização em Políticas de

Atenção a Crianças e Adolescentes em Situação de Violência - ECASVI, da Universidade Federal do

Pampa - Unipampa. O projeto de pesquisa, intitula-se: “A atuação política-pedagógica do professor

na relação com crianças e adolescentes em situação de violência nas Escolas Municipais de Ensino

306
Pós-graduando na Especialização em Política de Atenção à Criança e Adolescente em situação de Violência -
ECASVI, pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. E-mail: lucasavila8449@gmail..com.
307
Docente no Curso de Serviço Social, Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. E-mail:
moniquedamascena@unipampa.edu.br.
744
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fundamental de São Borja/RS no período de 2018-2019”. Tem como objetivo apreender a base de

atuação político-pedagógica do professor no atendimento com crianças e adolescentes em situação

de violência, nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFS) de São Borja/RS; a fim de

identificar a existência de projetos e/ou ações dentro do Projeto Político-Pedagógico - PPP que

possam contribuir na atuação docente, visando: analisar a existência de bases legais que efetivem o

atendimento de crianças e adolescentes na política educacional; e, identificar a existência de ações

em âmbito municipal e escolar dentro dos documentos municipais que favoreçam a atuação

qualificada do professor com crianças e adolescentes em situação de violência.

Nesse sentido, o artigo apresenta a seguinte estrutura: no primeiro momento, direciona

introdutoriamente para a apreensão da questão da base legal para o atendimento a crianças e

adolescentes na política de educação. Após, aborda a atuação político-pedagógica do professor, no

que diz respeito a sua prática no exercício da docência, bem como a utilização de instrumentos que

possam contribuir a busca e qualificação na prática educacional. Por último, tece algumas

considerações e identifica alguns elementos para serem seguidos na pesquisa.

BASE LEGAL PARA O ATENDIMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA


POLÍTICA DE EDUCAÇÃO
As formas protetivas ou de atenção à criança e adolescente como usuárias da Política de
Educação, ou seja, para o atendimento a crianças e adolescentes a política de educação, será
apresentado a partir da ênfase de três bases legais: a Constituição Federal - CF, de 1988; o Estatuto
da Criança e do Adolescente - ECA, Lei nº 8.069 de 1990; e, a “Lei de Diretrizes e Bases” da
Educação - LDB, Lei nº 9.394 de 1996.
A CF de 1988 , prevê no art. 6º que “[...] a educação é um direito fundamental social”, e diz

no art. 205º afirma que “é direito de todos e dever do Estado e da família promover o acesso à

educação”.

A educação como direito fundamental, deve ser viabilizada pelo Estado e necessita do

apoio da sociedade para sua plena efetivação. Diante disso, crianças e adolescentes tem um
745
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
asseguramento maior em parte pela própria relação com o ECA, além de garantir a legalidade dos

direitos fundamentais, enfatiza a importância da educação na formação do cidadão. Nesse momento,

a criança e o adolescente não somente se tornam sujeitos de direitos, mas também desempenham um

papel fundamental na efetivação das políticas educacionais.

Com o propósito de analisar aspectos fundamentais para que a base da educação tenha ênfase,

onde crianças e adolescentes tenham assegurados seus direitos previstos em lei, o Estatuto da Criança

e do Adolescente - ECA é o principal documento normativo do Brasil em relação aos direitos da

criança e do adolescente, bem como a relação com a política social.

De acordo com Barros (2005, p.106) antes da criação do ECA em 1990, muitos fatores

deixaram em evidência o abuso e maus tratos com esses jovens. Exemplos como a “roda dos

enjeitados” quando recém-nascidos eram lançados sobre um mecanismo que os tiravam das ruas e os

deixavam aos cuidados de instituições de caridade, como algumas Santa Casas no Brasil, e apenas no

século XIX a criança passou a ser o centro de atenção. Constata-se que a Convenção Internacional

sobre os Direitos da Criança em 1989, foi um marco que se tornou bastante significativo, partindo

dessa a base para uma doutrina de proteção integral, resultando em medidas como a Cúpula Mundial

de Presidentes, bem como a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, pela Lei

nº 8.069/90.

Essa evolução dos direitos da criança foi um reflexo de atribuições do Código de menores de

1927, e da Constituição de 1934 que faz menção aos direitos da criança e do adolescente. Em 1937

destaca-se o Estado Novo chamando para si a responsabilidade de assegurar as garantias da infância

e da juventude e possíveis políticas que estivessem atentas às demandas da juventude. Sabe-se que o

Estatuto da Criança e do Adolescente visa assegurar que os direitos dos jovens sejam priorizados na

forma da lei, uma vez que não sejam violados na sociedade (BARROS, 2005).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB, foi criada a partir de uma necessidade da

Constituição Federal de 1988, sendo norma reguladora e servindo de base geral as várias

746
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
composições do meio educacional, sendo também a maior lei que trata das diretrizes e das bases da

educação do Brasil.

A LDB vem sendo aprimorada à medida em que vão surgindo necessidades e temas relevantes

para serem discutidos e trabalhados nos currículos escolares, como ética, saúde, orientação sexual e

assuntos relacionados à vivência social desses sujeitos. No período em que a LDB foi instituída,

considerou-se então, que ela foi uma nova maneira de se pensar a educação no Brasil. “[...] a LDB

já vem passando por alterações gradativas”, inclusive, o artigo 32 foi regulamentado por Lei Federal

(Lei n. 11.525/2007) para inclusão obrigatória de temas transversais, tais como conteúdo que trate

dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei nº 8.069, de 13 de julho de

1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, (LDB, 1996).

Desta maneira, nota-se a existência de bases legais que fundamentam a participação e

inserção de crianças e adolescentes dentro da política educacional. Vale lembrar que, no âmbito

escolar, existe uma tessitura de sujeitos que estão presentes para que se construa essa política. A

atuação do professor, a parceria da instituição que está ligado, e os elementos que são transformadores

da realidade social. Mostram, assim, a necessária capacidade do indivíduo, bem como, das reflexões

que se remetem por meio do exercício da criação de um cidadão reflexivo com a participação e

utilizando da própria inserção no ambiente escolar, como previstos nas bases da educação.

O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO COMO ESTRATÉGIA NA ATUAÇÃO DO

PROFESSOR

A formação de professores necessita diariamente de vários elementos para que se possam

completar ou direcionar o docente no meio escolar, como projetos e ações. Dentre elas está a sua

própria formação, suas áreas de habilitação e sua capacitação pedagógica. Os educadores, como

principais agentes do conhecimento nos dias atuais, desempenham um papel de muita importância na

sociedade, quando relacionados ao papel de formador de cidadãos.

747
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, por trás desta prática se estabelece uma grande diversidade de elementos

antropológicos, filosóficos, epistemológicos e psicológicos, que vão ultrapassar a grande diversidade

disciplinar existente, que em suas fundamentações buscam a organização e a apropriação dos

conhecimentos. Uma das principais evidências dentro das organizações dos componentes curriculares

é a dialética que é utilizada para a compreensão dos próprios fenômenos da realidade que estão se

interagindo entre si, não estando isolados, acrescentando-se que é possível a análise de um com os

diversos outros que existem, não se limitando a um sistema que visa ser compreendido apenas

fragmentando suas partes.

Torna-se relevante a existência de professores reflexivos no exercício da docência, que

sentem a necessidade de procurar uma melhora significativa nas especializações de suas formações.

Pois, estes acreditam que assim como as novas tecnologias, bem como a implantação de projetos

pedagógicos que visam que em sua maioria são inseridos através de organizações demandadas pelo

governo público. A atuação do professor está baseada na construção de um processo de identidade,

com grande complexidade e que engloba várias nuances que não somente se referem a ele, mas que

também fala a cada um de seus alunos como indivíduos singulares. Sendo assim, o docente tem

justamente o papel de desenvolver no aluno a evolução e a valorização de seus feitos, estando elas

pautadas no planejamento das aulas e também na prática educacional.

Diante de possíveis análises percebe-se que as mudanças na formação docente acompanham

de certa forma as mudanças na sociedade. As novas demandas sociais e suas complexidades. Com

isso torna-se relevante relacionar político-pedagógica do professor e a relação com documentos

instaurados nas escolas, bem como projetos e orientações a serem seguidas no exercício da docência.

O Projeto Político Pedagógico - PPP visto pela escola, pretende ser a proposta pedagógica da

instituição de ensino, sendo documento flexível pautados na qualidade, valorização do magistério,

formação continuada, liberdade de ensinar e aprender e por fim a igualdade tanto do ensino quanto

da estrutura escolar. Diante disso, o professor desempenha papel fundamental na formação do

748
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
aluno. Logo, se torna necessário a abordagem de temas transversais relacionados à ética, respeito e

atenção no planejamento político-pedagógico.

Com isso, o professor dentro da instituição deve perceber-se como sujeito de transformação,
ou seja, crítico em relação às incongruências epistemológicas e da prática pedagógica, bem
como, reflexivo, para desconstruir, por meio da práxis, uma ação social e intelectual voltada
para a manipulação e submissão. (HELVIG, 2015, p. 16273).

A postura de sujeição e a-criticidade reflete uma incapacidade de responder, como

educadores, aos processos de mudanças e as interfaces entre o saber e o ser, na construção de

conhecimentos que se fazem coletivos, propiciando uma nova maneira de exercer a própria docência

reflexiva.

Desta forma, busca-se apreender como o docente pode trabalhar questões voltadas a violência

e os tipos de ações estratégicas com crianças e adolescentes vítimas de violência. Nesse sentido, os

documentos, como os planos, são ferramentas para o desvelamento de possíveis projetos existentes

no município de São Borja.

O Projeto Político Pedagógico reúne propostas com ações concretas, acordadas pelo conjunto

da comunidade escolar, que é espaço de formação e exercício da cidadania . O projeto também deve

atender as necessidades pedagógicas e os planos educativos referentes ao ensino aprendizagem dos

alunos. Tal documento serve para dialogar com as ações do dia a dia da escola, tendo partes essenciais

como a missão dela, sua caracterização e seus planos de ações e projetos.

O PPP tem um papel fundamental na efetivação e funcionamento de uma instituição de ensino.

Podemos atribuir a funcionalidade do mesmo equiparado a de um manual para desenvolvimento de

ações previstas de acordo com a necessidade e a estrutura física e social da escola. Nessa direção, o

PPP, ao se colocar como espaço de construção coletiva, direciona sua constituição para consolidar a

vontade de acertar, no sentido de educar bem e de cumprir o seu papel na socialização do

conhecimento. (OLIVEIRA, 2005, p. 2).

749
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa forma, o PPP vem propor uma construção de um ambiente coletivo de ensino e

aprendizagem, sendo assim a equipe diretiva, comunidade escolar estará atenta às demandas da escola

e assim podem trabalhar os temas transversais, inclusive a questão da violência relacionada a crianças

e adolescentes. A construção, a execução e a avaliação do projeto são práticas sociais coletivas, fruto

da reflexão e da consistência de propósitos e intencionalidades. Para que a escola seja espaço e tempo

de inovação e investigação e se torne autônoma é fundamental a opção por um referencial teórico-

metodológico que permita a construção de sua identidade e exerça seu direito à diferença, à

singularidade, à transparência, à solidariedade e à participação. (VEIGA, 2009, p.165).

Uma preocupação que deve ser levada em conta, é a necessidade de se discutir temas

relacionados à prevenção, e cuidados na identificação desses sujeitos em situação de violência quando

inseridos na comunidade escolar, obtendo maneiras de reatar laços sociais e propor momentos de

reflexão a partir da prática docente. No entanto, ainda existem barreiras que impedem a efetivação do

trabalho em rede, unindo as relações fundamentais como família, educação e sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No meio educacional, mais precisamente em ambientes escolares muitos documentos fazem
parte da efetivação da escola, inseridos no meio social, prático e teórico. A pesquisa identificou a
partir da revisão bibliográfica a existência de elementos legais dentro de normativas educacionais que
contemplem a prevenção e o trabalho de temas relacionados à prevenção de situações de violência.
Diante disso, observou-se a importância de abordar elementos que compõem a base legal da
política educacional, propiciando a reflexão sobre normativas e sugestões presentes nos documentos
como LDB e ECA que visam contribuir dentro do âmbito escolar.
No meio pedagógico em suas orientações, o que é analisado são as fases do desenvolvimento

da criança e adolescente para o cuidado desses indivíduos, devendo buscar políticas de prevenção

dentro da universalidade, equidade e preservação da autonomia.

Consecutivamente, no exercício da prática docente é possível partir da necessidade de

projetos e formações que contemplem a construção de uma metodologia que favoreça o

750
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
professor, estando esta relacionada ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de

violência.

A análise em andamento nos documentos municipais, compilou dados parciais sobre a


problemática enfatizada que se tornam paralelas a revisão bibliográfica, objetivando a importância da
identificação de projetos, ações e prevenção de situações de violência dentro dos materiais analisados.
Sendo assim, as hipóteses abordadas podem ser refutadas ou confirmadas dentro da pesquisa em
andamento nas escolas municipais. Sendo possível identificar a existência ou não de componentes
inseridos em documentos oficiais do município, e como podem servir de apoio ao profissional da
educação, e identificar na abordagem bibliográfica ações que possam enfatizar importância da
atuação política e pedagógica do docente no âmbito escolar, familiar e social, valorizando a
importância dos questionamentos reconstrutivos.

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BARROS, Nívea Valença. Violência Intrafamiliar contra a criança e adolescente. Trajetória


histórica, políticas, sociais, práticas e proteção social. 2005.248 f. Tese (Doutorado em Psicologia
Forense). Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro,2005.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL, 1 Lei nº 8.069, de 13 de 1990. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-


conteudo/crianca-e-adolescente/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf. Acesso em
18 de Setembro de 2020.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB. 9394/1996. São Paulo: Saraiva,
1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em 18 de
Setembro de 2020.

BRASIL, Ministério da Saúde. ¨Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças,
adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais
de saúde / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas. – Brasília : Ministério da Saúde, 2010.¨

751
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CARVALHO, Danielle Evelyn de. TOBIAS, Fernanda de Lourdes. MOREIRA, Larissa. REIS,
Marcos Paulo de Oliveira. Amostragem Intencional: Definição e aplicações na pesquisa
econômica. Universidade Federal de São João Del-Rei. São João Del-Rei, 2014, p. 1-11.

DE OLIVEIRA, Thalissa Corrêa. Evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente com
ênfase no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Interdisciplinar de Direito, [S.l.], v. 10, n. 2,
out. 2017. ISSN 2447-4290. Disponível em:
<http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/view/173>. Acesso em: 01 maio 2019.

FERREIRA, Luis Antonio Miguel. O Estatuto da criança e do adolescente e o professor: reflexos


na sua formação e atuação. 2004. 223 f. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia - Universidade Estadual Paulista, Presidente
Prudente, 2004.

Métodos de pesquisa / [organizado por] Tatiana Engel Gerhardt e Denise Tolfo Silveira ; coordenado
pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação Tecnológica –
Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2009.

HELVIG, Carlos Henrique Martins Torra. O Projeto Político Pedagógico como elemento
integrador da formação continuada de professores da educação básica. EDUCERE- XII
Congresso Nacional de Educação. Curitiba,PR. 2015.

LIBANÊO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e
profissão docente./ José Carlos Libanêo.-13. ed.-São Paulo: Cortez,2011.-(Coleção questões da
nossa época; v.2)

OLIVEIRA, João F.. A construção coletiva do Projeto político-pedagógico da escola. Salto para o
futuro, Brasilia, v. 1, n.1, p. 1-3, 2005.

PEDROSO, Leyberson. ECA 25 anos: confira a linha do tempo sobre os direitos da criança e do
adolescente. Disponível em http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/07/eca-25-anos-linha-do-
tempo-direitos-criancas-e-adolescentes>Acesso em 09 de abril de 2019.

TONET, Ivo. Para além dos direitos humanos. Ed. Novos Rumos. Ano 17, nº 37, 2002.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Projeto Político-Pedagógico e gestão democrática. Novos


marcos para a educação de qualidade. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 3, n. 4, p. 163-171,
jan./jun. 2009. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> Acesso em 24 de Julho de 2020.

VERGARA, Sylvia Constant. Métodos de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas,1997.

VIGHI, Csb. “ Formação docente e o papel do professor como sujeito que aprende”.
Artigo,2000.

752
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“ESCOLA SEM PARTIDO”, “IDEOLOGIA DE GÊNERO” E OUTRAS FALÁCIAS

Matteus Bronzoni308
Ewerton da Silva Ferreira309
Eduardo Lima310
Jaqueline Carvalho Quadrado311

Resumo: Na última década os debates em solo brasileiro foram ampliados referente a questões outrora não debatidas,
como gênero, sexualidade, identidade de gênero e sexualidade. Na contramão desse debate, surgiram alguns movimentos,
influenciados por uma onda neoliberal conservadora que se espalha mundialmente, como o movimento Escola Sem
Partido que, em outras palavras, visa coibir os debates sobre as questões apresentadas no começo desse resumo no
ambiente escolar. Um movimento que se prega libertário, mas em verdade quer apenas restringir diretos de uma parcela
social de ser quem são. Com o intuito de resistir a essa onda conservadora, nasce o movimento Escola Sem Mordaça,
antagônico aos Escola Sem Partido, visando garantir a liberdade dos educadores, liberdade essa prevista na Constituição
Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O presente artigo aborda diferentes olhares sobre tal tema, usando de
aspectos legais, análises teóricas, para demonstrar a importância de não se aprovar o projeto Escola Sem Partido, bem
como os perigos e retrocesso implícitos a proposta de tal projeto. Retirar temas como gênero, sexualidade, identidade de
gênero do ambiente escolar, que por si só é um ambiente democrático e de diversidade, é reforçar o preconceito e violar
os direitos intrínsecos a dignidade pessoa humana.

Palavras chave: Escola Sem Partido, Escola Sem Mordaça, Gênero, Sexualidade.

PARA COMEÇAR O DIÁLOGO


Nos últimos anos o debate sobre o papel da escola na formação dos seus educandos têm
ganhado visibilidade, especialmente pela abordagem ou não temas considerados tabus, dentre eles
destaca-se gênero, sexualidade, identidade de gênero e diversidades. No ano de 2015, durante os
debates dos planos municipais, estaduais e nacional de educação houve uma divisão de parte da
sociedade em dois grupos. De um lado, os que compreendem e consideram importante abordagem de
tais temas no ambiente escolar, uma vez potencializa o respeito à diversidade e múltiplas formas de
ser e existir. Do outro, um grupo formado por conservadores, em sua maioria ligados à igrejas
evangélicas e católica que destacam que é papel da família essa abordagem e acusam os docentes de
praticar uma suposta “ideologia de gênero” e “doutrinação dos alunos”.

308
Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pampa. Membro do Grupo de Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política da Unipampa, Campus São Borja. Bolsista de Apoio a Grupo de Pesquisa –
AGP/PROPPI – Unipampa. E-mail: matteusnb@gmail.com
309
Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pampa. Membro do Grupo de Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política da Unipampa, Campus São Borja. E-mail: ewertonferreira266@gmail.com
310
Acadêmico do curso de Serviço Social na Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa
em Gênero, Ética, Educação e Política da Unipampa, Campus São Borja. E-mail: elima2929@gmail.com
311
Professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa. Líder do
Grupo de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política da Unipampa, Campus São Borja. E-mail:
jaquelinequadrado@unipampa.edu.br
753
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Essa movimentação ampliou os discursos defendidos pelo movimento “Escola sem Partido”
que acusa educadores brasileiros dos distintos níveis escolares de praticarem uma doutrinação
“esquerdista” e “marxista” nos alunos. Soma-se a essa ideia o movimento “Contra Ideologia de
gênero” que acusa os educadores de tentarem mudar a orientação sexual e/ou identidade de gênero
dos alunos. Na contramão, nasceu o projeto "Escola sem Mordaça" que defende a liberdade de ensinar
e aprender dos alunos e docentes e, especialmente, justifica-se pela compreensão que a escola assim
como a sociedade é um espaço plural, diverso e deve respeitar todas as manifestações culturais,
sociais e políticas.
O presente artigo tem como objetivo central realizar uma análise do percurso do movimento
"Escola sem Partido" no Brasil e a sua ameaça à liberdade docente e discente. As reflexões aqui
elencadas emergiram das inquietações dos pesquisadores através do desenvolvimento da pesquisa “O
que a escola nos diz? Apontamentos etnográficos sobre gênero, sexualidade e currículo 312”. Isso em
virtude da preocupação de alguns docentes com o foco da pesquisa, pois temiam ter incômodos com
os pais e/ou órgãos mantenedores em virtude do movimento “Escola sem Partido”.
O texto utiliza-se do método bibliográfico, com cunho qualitativo, de caráter exploratório e
documental. Onde analisa os principais documentos e legislações que abordam a temática e seus
impactos na liberdade de ensinar e aprender disposta na Constituição Federal de 1988 e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1988, 1996).

ALGUNS ASPECTOS LEGAIS

O movimento “Escola sem Partido” foi criado em 2004, e transformado em associação no ano
de 2015. Tendo como fundador Miguel Nagib, um procurador do estado de São Paulo que defende
que alguns métodos educacionais extrapolariam o limite da pedagogia, da liberdade de cátedra, das
reflexões necessárias ao processo de ensino-aprendizagem e entrariam na esfera da doutrinação, haja
vista que alguns professores se aproveitariam da condição para impor suas ideologias, sejam elas
políticas, sociais, etc.
Dentre os argumentos utilizados pelos defensores e precursores do projeto “Escola sem
Partido”, existe a bandeira da legalidade, ou melhor, constitucionalidade do referido projeto. A

312
Projeto Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Rio Grande do Sul e pela Pró-reitoria de Pesquisa,
Pós-graduação e Inovação da Universidade Federal do Pampa.
754
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exemplo disso, Orley José da Silva313, um dos grandes militantes da causa, algumas vezes já referiu
textos constitucionais para defender o movimento.
Em um de seus textos, publicado no “Blog de Olho no livro didático” no ano de 2016, invocou
o conhecido artigo 226 da Constituição Federal Brasileira de 1988, o qual destaca-se: Art. 226. A
família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (BRASIL, 1988, s/p). Esse é um dos
artigos mais defendidos pelos militantes do movimento escola sem partido, pois nele é trazido a
proteção à família. Sendo assim, os militantes da causa defendem que a escola não poderia apresentar
as diversas formas de família existentes no território nacional, pois isso afrontaria o exposto na Carta
Magna. Tal ideia não faz o menor sentido, uma vez que os próprios militantes do referido movimento,
ao excluir as demais entidades familiares, estariam, de certa forma, inserindo a sua ideologia como a
correta e o pior, como se fosse a única correta.
E é isso que se pode perceber na leitura de um dos projetos de Lei oriundo do movimento, que
é a PLS 193/2016, apresentada no Senado Federal pelo Senador Magano Malta, a qual traz em seu
artigo terceiro o seguinte:

Art. 3º. As instituições de educação básica afixarão nas salas de aula e nas salas dos
professores cartazes com o conteúdo previsto no anexo desta Lei, com, no mínimo, 90
centímetros de altura por 70 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as
dimensões adotadas (BRASIL, 2016).

Segundo o senador, os cartazes os quais refere o artigo supra, conteriam frases com os deveres
dos professores e demonstrariam aos alunos o direito dos mesmos em não serem doutrinados. O que
seria mais doutrinador que o uso de cartazes para impor regras? Ao ler o projeto lei do “Escola Sem
Partido” é possível perceber que o que os autores querem é impedir a reflexão sobre outros temas e
não ampliar o debate, se fosse para ampliar o debate, qual a necessidade de colocar cartazes em salas
de aula para coibir certos temas?

313
Orley José da Silva, é um militante do movimento Escola Sem Partido, um dos coordenadores do Blog “De olho
no livro didático, se apresenta como Doutorando em Ciências da Religião, pela Pontifícia Universidade Católica de
Goiás (PUC Goiás); Mestre em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com análise
linguística e discursiva de redações de alunos do ensino fundamental; Mestrando em Estudos Teológicos, pelo
Seminário Presbiteriano Renovado Brasil Central (SPRBC) e Especialista em Leitura e Produção de Textos, pela
Universidade Federal de Goiás (UFG), com análise linguística e discursiva de textos jornalísticos. No ano de 2019
ocupou de assessor parlamentar no Ministério da Educação, sendo exonerado pelo então Ministro Abraham
Weintraub no mesmo ano.
755
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sob essa lógica, se a ideia é limitar o debate, o projeto não passa de um forma de intitular um
único pensamento como o ideal? Nesse sentido, existe a importância da reflexão do título do presente
estudo “ESCOLA SEM PARTIDO”, “IDEOLOGIA DE GÊNERO” E OUTRAS FALÁCIAS por
qual razão limitar o debate sobre algumas questões como a intitulada pelos conservadores como
“ideologia de gênero”?
A doutrinação não está em apresentar o novo – que de novo não tem nada, pois as questões
de gênero estão presentes na sociedade desde que mundo é mundo, mas em limitar as ideias. Nessa
perspectiva, concordamos com Hannah Arendt (1972) considera que a escola é a instituição pela qual
interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer que seja possível a transição,
de alguma forma, da família para o mundo. Trata-se, pois, da instituição responsável por introduzir
as novas gerações na cultura historicamente construída.
Neste viés, o movimento “Escola sem Partido” apropria-se da leitura do parágrafo terceiro do
artigo 226 da constituição, que aduz: “§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”.
Tal paragrafo estabelece que para efeitos da proteção estatal a união estável entre o homem e
a mulher é reconhecida como entidade familiar. Em razão disso, muitos militantes do movimento
usam de tal interpretação para referir a família só poderia se originar da união de um homem e uma
mulher, o que sabemos não ser verdade.
É sabido que o movimento “Escola sem Partido” é pautado na onda de conservadorismo que
vem ganhando expressão em solo brasileiro e na América Latina nos últimos anos. Talvez, seja por
isso, que autores como o supra se apeguem a partes de textos legais os quais não compreendem de
forma hermenêutica para tentarem legitimar seus preconceitos.
A constituição brasileira representou um grande avanço social, não à toa que é conhecida
como a constituição cidadã. Seus avanços não foram só nos campos sociais, mas o direito de família
foi diretamente afetado pela mesma. Ela trouxe em seu artigo 226 diversas diretrizes importantes,
equiparando os direitos de homens e mulheres no matrimônio, por exemplo. Por isso é importante,
ao se fazer a leitura de um texto de Lei, ter em mente uma leitura hermenêutica e social do texto. O
artigo 226 da constituição brasileira, não tem um aspecto conservador como defensores do
“Escola sem Partido” querem pregar, na verdade tem uma ideia muito mais avança levando em

756
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
consideração a época na qual foi legislada, que é de meados dos anos 80, momento em que o país
saía de um período de grande supressão de direitos.
Por óbvio, infelizmente, no momento não houve uma definição e implementação de alguns
temas como: questões de gênero, diversas orientações sexuais, identidades de gênero e outras
identidades consideradas dissidentes era mais comum manter-se “no armário”. Assim, as uniões
homoafetivas ficaram de fora do texto legal de forma explícita, mas isso não quer dizer que tal artigo
é um limitador de direitos ou ultrapassado, em verdade é justamente o contrário, tal artigo abrange
tais uniões de forma implícita.
O artigo 226 da constituição brasileira institui três tipos de família brasileira: a primeira é
aquela que decorre do casamento, a segunda formada pela união estável e a terceira que seria a
entidade familiar monoparental. Ou seja, a constituição federal deixa claro que o casamento não é a
única forma de formação familiar, dando uma atenção maior a formação da família como uma forma
de afirmação da dignidade de cada partícipe, inteligência do parágrafo sétimo do mesmo artigo, o
qual refere:

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável,


o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva
por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).

Ou seja, o planejamento familiar é fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, tendo


como norte a livre decisão dos indivíduos. Se um casal resolve constituir uma união homoafetiva,
cumpre ao Estado propiciar, inclusive, recursos educacionais e científicos para o exercício desse
direito. Em outras palavras, não pode o Estado coibir ou limitar a escolha de planejamento familiar
de cada indivíduo, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
E é isso que na prática acontece, o judiciário já atribuiu o reconhecimento do casamento e a
adoção homoafetiva, por exemplo. Logo, se na prática o judiciário já garante os direitos – e não podia
ser diferente – não existe lógica para que se use um texto legal, mal interpretado, como fato impeditivo
ao exercício do direito desses cidadãos. No ano de 2011, ao julgar ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.277, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, aduziu:

757
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. Como
salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se
genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem
de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem
destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida
afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação
patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento
do regime familiar. Caso contrário, conforme alerta Daniel Sarmento3, estar-se-á a transmitir
a mensagem de que o afeto entre elas é reprovável e não merece o respeito da sociedade,
tampouco a tutela do Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas, que apenas buscam o
amor, a felicidade, a realização (BRASIL, 2014).

O que os defensores do “Escola sem Partido” e movimento contra “Ideologia de Gênero”


pregam não tem nada de legalidade ou constitucionalidade, mas apenas um preconceito velado em
forma de “juridiques”. Não nega-se que a Lei é maior fonte de garantia de direito nacional e que a
constituição é a mãe delas, o que nega-se é a tentativa, através de uma interpretação errônea, de tornar
invisível os direitos humanos de uma parcela social.
Da mesma forma que a constituição aduz que família é a união entre um homem e uma mulher,
ela também refere que todos são iguais perante a Lei, e ainda garante a defesa intransponível do
princípio da dignidade da pessoa humana, esse jamais podendo ser violado.
Nesse viés, tentar colocar uma “mordaça” nos educadores brasileiros, a fim de banir assuntos
ligados ao gênero do ambiente escolar, viola totalmente o princípio da dignidade da pessoa humana.
É o mesmo que dizer que essas pessoas não fazem parte do contexto social brasileiro, que são uma
aberração. Não existe base legal que autorize tal analogia. A exclusão não é e nunca foi um preceito
constitucional da Constituição Brasileira. Embora os conservadores queiram, a constituição não
obriga ninguém a voltar para o armário.

ESCOLA SEM PARTIDO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEMA

O movimento “Escola sem Partido” ganha força em um momento em que o Brasil passa por
algumas rupturas institucionais e o pânico moral criado a partir do tema gênero, sexualidade e
identidades dissidentes que ganham um notoriedade nos debates nacionais. Sob esse ângulo, alguns
pesquisadores e pesquisadoras se debruçaram a pensar os aspectos que permeiam essa lógica e defesa
do movimento e sua ideologia.

758
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Cabe destacar que a defesa do tema em tela tornou-se uma plataforma política criada a partir
da falácia instituída pela direita brasileira e que se potencializou ao longo do Golpe de 2016. Desse
modo, a criação do imaginário da sociedade e atacar sob alegação do instituição no comunismo no
Brasil, aquele mesmo discurso usado para o Golpe Militar de 1964. Agora o que assume como alvo
a educação, é por esse motivo que concordamos com Maria Ciavatta (2017) que afirma

É o ato de educar, como mediação complexa da formação humana, que é alvo do


conservadorismo das elites empresariais e de grupos político-religiosos por intermédio de
seus intelectuais e parlamentares comprometidos com o atraso em termos inquisitoriais
(MARIA CIAVATTA, 2017, p. 8).

A escola aos poucos ou pelo menos na tentativa desses atores conservadores vai rompendo
com o ato de ensinar e despertar o senso crítico para “estimular os alunos e seus pais a se tornarem
delatores” (MARIA CIAVATTA, 2017, p. 8). Ao mesmo tempo que é investido na escola a tentativa
de romper com seu papel constitucional de despertar o senso crítico nos educandos, os púlpitos de
igrejas ganham a função de instigar os seus fiéis a não deixarem que essa ideologia “comunista”,
“esquerdista”, “gayzista” e “contra a família” cheguem aos seus filhos.
O ESP é perigoso, pois além dos ataques diretos a liberdade de cátedra aos professores que na
visão dos alunos ou pais assumam um posicionamento partidários, “ainda disponibiliza uma
notificação extrajudicial que ameaça processar professores que abordarem sexualidade e diversidade
de gênero” (SAKAMOTO, 2016, p. 13). A partir do aspecto apontado acima é possível notar que
além da clara perseguição ao pensar diferente, a pluralidade de ideias e, especialmente, ao
conhecimento que a escola tem obrigatoriedade de produzir pelos documentos que a regulam, há
também, uma espécie de “caça às bruxas” ao termo gênero e sexualidade na escola.
Ainda pensando sobre a ideologia do ESP concordamos como Cleomar Manhas (2016, p. 18)
ao afirmar que “não existe neutralidade, quando defendem a “não ideologização” também estão
impregnados de ideologia baseada nas visões de mundo”. Ou seja, quando é tentado excluir um
determinado pensamento do ambiente escolar por ser contra ao que penso, pratico ou tenho como
“verdade” é uma determinação da minha concepção de verdade sobre ou outro. Em suma, estou
realizando aquilo que alego está sofrendo, mas os teóricos de tal movimento não enxergam os direitos
como de todos, mas utilizam da Constituição Federal de 1988 para defender única e
exclusivamente seus interesses. Segundo Cleomar Manhas (2016, p. 18).
759
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Os teóricos do Escola Sem Partido advogam a neutralidade e se dizem não partidários.
No entanto, suas intenções são claras: a retroação dos avanços que tivemos nos
últimos tempos, especialmente com relação aos direitos humanos.

A “saída do armário” de alguns grupos marginalizados e a visibilidade que as identidades


dissidentes tem ganhado em território nacional os incomodam, pois a normatividade e as relações de
opressões que são naturalizadas estão sendo questionadas, ainda que de modo lento. Assim, a escola
assume um papel fundamental para debater, pensar e repensar os papéis que são atribuídos
socialmente os diversos indivíduos e identidades, uma vez que é no ambiente escolar que encontramos
com o novo, o diverso, o plural, as diversas formas de ser e existir.
Nessa perspectiva, Seffner afirma que a escola pública ao longo dos anos acabou excluindo
uma parcela que não pertencia aos grupos hegemônicos, portanto precisamos repensar a sua prática e
compreender que ela é um espaço público e, consequentemente, deve ser diverso. Pensar na
abordagem de temas como gênero, sexualidade e outros marcadores sociais da diferença nos permite
uma busca pela redução das desigualdades presentes na escola. Ademais, também repensar no papel
da escola na organização social de ampliar as desigualdades sociais e os privilégios dos grupos
hegemônicos.

A escola pública brasileira, tradicionalmente, atuou também como um dispositivo que


contribuía para manter e até mesmo acentuar a desigualdade, promovendo a expulsão (muitas
vezes chamadas de evasão) dos indivíduos de grupos sociais e hierarquicamente inferiores,
tais como: os não brancos, os indígenas, as mulheres, os homossexuais, os moradores das
regiões rurais e da periferia, os pobres em geral, aqueles oriundos de famílias
“desestruturadas”, etc. Desta forma, os melhores índices escolares (e por consequência as
melhores oportunidades na vida) ficavam com os indivíduos brancos, urbanos, homens, de
classe média, heterossexuais, de pertencimento católico (praticante ou não), não portadores
de deficiência, entre outras marcas positivas (SEFFNER, 2011, p. 105).

Sob essa perspectiva, o projeto de lei do “Escola sem Partido” PL 867/2015 apresentado
deputado Izalci (PSDB/DF) que sugere diversas modificações na Lei de Diretrizes e Bases de
Educação Nacional e propõem a seguinte redação ao ar “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a
prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de
atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou
responsáveis pelos estudantes”.

760
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No projeto apresentado a escola perde seu papel formador do preparo para convívio em
sociedade, sua função de despertar a criticidade dos alunos, mas principalmente perde seu ambiente
democrático, pois ela assume um papel de apenas produzir uma educação bancária como nos alerta
Paulo Freire, e ligada aos interesses da família, mas especialmente ao modelo tradicional familiar
“branco, cis-gênero, heterossexual, classe média, cristão (praticante ou não” que não abre espaço ao
pensamento diferente do seu.
Segundo Daniel Cara o ESP é baseado em iniciativas internacionais e apontam para três
objetivos básicos, sendo eles:

A “descontaminação e ‘desmonopolização’ política e ideológica das escolas”; o “respeito à


integridade intelectual e moral dos estudantes”; e o “respeito ao direito dos pais de dar aos
seus filhos uma educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (CARA,
2016, p. 45).

A definição desses objetivos centrais alinha-se aos movimentos de censura perseguição aos
docentes que não sigam os ideais conservadores apontados pelo movimento. Em outras palavras,
pensar diferente é praticar doutrinação e ir contra os princípios estabelecidos pelo ESP. As escolas
passam de um ambiente plural e das diferentes concepções pedagógicas a um verdadeiro tribunal
ideológico, pautado por valores morais e ideologias conservadoras. Dessa forma, assumem um
característica de um ambiente “ambiente arbitrário, acusatório, completamente contraproducente ao
aprendizado” (CARA, 2016, p. 45).
Nessa lógica, não está apenas no foco as disciplinas da área das Ciências Humanas, mas todas
as disciplinas que ouse debater uma tema que seja diferente do proposto por eles. Nas aulas de
Biologia, por exemplo, não é possível pensar no processo de evolucionismo, pois é contra a
concepção dos pais e alunos que acreditam no criacionismo. Na Educação Física, não podemos
mencionar o direito das mulheres na prática de qualquer esporte, visto que alguns podem acreditar
que mulheres tem papel definido e fechado na sociedade. Ou ainda, nas aulas de Matemática quando
estamos aprendendo a somar, subtrair, dividir e multiplicar devemos cuidar com as situações
problemas, já que alegar que João foi ao mercado pode ser entendido como uma tentativa de atribuir
a ele uma identidade de gênero diferente da definida no nascimento.
A aprovação do “Escola sem Partido” pode ser considerado uma terreno perigoso a
liberdade docente, discente e do papel da instituição escolar, dado o fato que não é possível
761
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
dimensionar o que pode ser considerado “ideologia” ou “doutrinação” pelos responsáveis ou alunos
que frequentam as salas de aula brasileira.

“MAMADEIRA DE PIROCA, KIT GAY E OUTRAS FALÁCIAS...”

A Constituição Federal de 1988, aponta que no Estado Democrático de Direito está garantido
aos estudantes e professores a liberdade de aprender e ensinar, ou seja, a diversidade de pensamento
dentro do ambiente escolar. Tal concepção permitiu aos documentos escritos posteriores a 1988
diversas possibilidades de ensino e de estruturação do currículo escolar, inclusive considerando as
realidades regionais/sociais/econômicas/históricas que os estudantes estejam inseridos. Ou seja, um
espaço onde a instituição possa escolher sua concepção pedagógica e preparar seu currículo de acordo
com a realidade dos educandos (FERREIRA, 2018).
Essa liberdade vai ser corroborada na Lei de Diretrizes e Bases - LDB promulgada em 1996,
que estabelece as normas para educação pública e privada, em todos os níveis, no território nacional.
A LDB ainda apresenta alguns aspectos importantes que são mencionados no Estatuto da Criança e
do Adolescente promulgado em 1990, visto que nele estão as orientações para a necessidade desse
grupo permanecer na escola e assegura assim os documentos supracitado a obrigatoriedade de sua
presença na escola durante a educação básica necessária aos brasileiros.
Como apresentado no começo do texto o ESP ganhou força ao longo do Golpe de 2016, e
junto com o polarização política a democratização das mídias alguns setores aproveitaram-se do
momento para disseminar notícias falsas, as famosas “fake news”. Algumas dessas notícias teve
como protagonistas personagens que ganharam destaques no cenário nacional pelas repetidas vezes
que as anunciaram e, ainda, auxiliaram na polarização política brasileira.
Na eleição de 2018, o então Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro e pré-candidato à
presidência em uma entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, apresentou o livro
intitulado “Aparelho Sexual e Cia” em rede nacional e acusou os governos do Partido dos
Trabalhadores (PT) de distribuir a obra nas escolas como uma forma de estimular os estudantes a vida
sexual.

762
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 01: Jair Bolsonaro no Jornal Nacional.

Fonte: Rede Globo (2018).


Embora o Ministério da Educação – MEC tenha desmentido o presidenciável sobre a compra
do livro o caso teve repercussão nacional e ganhou os holofordes e foi pautado por líderes religiosos,
especialmente católicos e protestantes, como uma afronta a família e os seus valores. Com essa
abrangência da notícia o ESP pautou novamente a necessidade de não utilizar a sala de aula como
“espaço ideológico” e acusou tanto o MEC quanto os professores de estarem atuando de maneira
significativa na implantação da “ideologia de gênero” nas escolas públicas brasileiras.
Outro fato que ganhou espaço na mídia foi a divulgação de outra fake news acusando escolas
municipais de São Paulo de realizar a distribuição de uma dita “mamadeira de piroca” seria entregue
aos alunos da educação infantil. O vídeo postado em uma rede social afirmava que o objeto havia
sido distribuído para seu filho na escola.
763
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 2 – A MAMADEIRA COM O BICO EM FORMATO DE PÊNIS.

Fonte: Reprodução do Twiiter (2018).

As falas tinham um objetivo político explícito, pois tentava atacar diretamente o então
candidato a presidência Fernando Haddad (PT). A informação foi desmentida publicamente e
Secretaria Municipal de Educação São Paulo emitiu nota dizendo que jamais houve qualquer
aquisição ou distribuição do objeto nas escolas municipais. O jornal Estadão apurou os fatos e
verificou que na realidade as fotos apresentadas tratavam-se de produtos vendidos em sexy-shop e
pertencentes a fantasias sexuais, porém após as repercussão nacional ainda há pessoas que acreditam
em tal fato.

764
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 03 – POST COM FALA MENTIROSA ATRIBUÍDA À FERNANDO HADDAD.

Fonte: Facebook (2018).

A terceira imagem apresenta uma fake news espalhada durante a campanha a presidencial de
2018, que atribui ao então presidenciável Fernando Haddad uma fala “que caberia ao Estado definir
sua identidade de gênero” a fala foi amplamente divulgada nas redes socais e, especialmente, pelos
membros do movimento contra a “ideologia de gênero” alegando os partidos de esquerda queriam
destruir com a ingenuidade das crianças e realizar uma doutrinação “gayzista”.
Em suma, o que acaba entrando em cheque através dos discursos de ódio e das informações
falsas divulgadas nas redes socais é a democracia, pois acaba fortalecendo lados antagônicos através
da disseminação de mentiras. Ao realizarem tal afirmação os indivíduos demonstram desconhecer o
Estatuto da Criança e Adolescentes que evoca:

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,


discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (BRASIL, 1990,
s/p, grifo nosso).

765
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Estado brasileiro já assegura em legislação a proibição de qualquer ato seja violência ou
exploração, dessa forma torna-se crime a qualquer gestor a aplicação de conteúdos de cunho sexual
sem está apropriado a sua faixa etária, série e ano escolar. Além do mais a forma com que vinculam
a imagem da criança e do adolescente faz com que se esqueça, que embora sejam pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento, são sujeitos de direito.
As crianças e adolescentes não podem ser objeto de Fake News, justamente por terem seus
direitos totalmente resguardados pela Constituição Federal, e pelo ECA. Ser considerado sujeito de
direito é afirmar que esses indivíduos são capazes que evocar seus direitos sem a necessidade de que
alguém faça isso por eles.
Em tais notícias é possível perceber a vinculação da imagem da criança como propriedade de
alguém ou de algo(Estado), fato que como sujeitos de direitos jamais poderia ser verdade. Como já
referido, somente quem não conhece as legislações vigentes de proteção à crianças e adolescentes
poderia afirmar tais atrocidades. Além do mais, tais notícias violam o ECA ao usar crianças e
adolescentes como objetos sexuais, algo expressamente vedado, conforme:

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e


moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da
autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.(BRASIL, 1990, s.p)

Ou seja, veicular notícias, mesmo que falsas, aliás, ainda pior sendo falsas, com cunho sexual,
viola o artigo 17 do ECA, o qual versa sobre a proteção do direito à liberdade, ao respeito e à
dignidade. Todos esses direitos são invioláveis, não sendo possível que se use a imagem da criança e
do adolescente de forma irresponsável como usado nas Fake News abordadas aqui, principalmente
quando se trata de usar crianças e adolescentes como objetos sexuais.
Quando o indivíduo cria (des)informações como essas, as quais sexualizam crianças e
adolescentes, mesmo que esse indivíduo vise a proteção dos direitos da criança e do adolescente, ele
está sim infringindo as diretrizes legais que proíbem a utilização da imagem dos mesmos relacionadas
a conteúdos sexuais. Pois, ao criar informações como essas, que jamais existiram, quem está
vinculando a imagem da criança e do adolescente a conteúdo inapropriado e os tratando, de certa
forma, como objetos sexuais, é o próprio criador da notícia, independentemente de qual seja seu
objetivo com isso, seja político, social, moral, é errado.

766
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PARA SEGUIR PENSANDO, LUTANDO E RESISTINDO
A escola pública brasileira congrega um potencial muito grande para pensar a diversidade nos
seus espaços escolares, uma vez que ela é formada por alunos e alunas dos mais diversos marcadores
sociais da diferença, sejam eles de classe, raça, orientação sexual, identidade de gênero,
masculinidades, feminilidades, religiões, concepções políticas entre outros aspectos. No entanto, os
projetos “Escola sem Partido” e o movimento “Contra Ideologia de Gênero” vem ameaçando essa
estrutura plural, democrática e diversa. Uma vez que quando a escola é proibida de pensar sobre as
diversas concepções teóricas, de mundo, de formas de ser e existir, temos a censura adentrando as
suas portas.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A Crise da Cultura. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São
Paulo: Perspectiva, 1972.

BRASIL. Lei 8.069, 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul 1990.

BRASIL. Lei n. 9.394, 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez 1996.

CARA, Daniel. O programa “escola sem partido” quer uma escola sem educação. In. Ação Educativa
Assessoria, Pesquisa e Informação (org). A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20
autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016.

CLEOMAR MANHAS. Nada mais ideológico que “escola sem partido”. In. Ação Educativa
Assessoria, Pesquisa e Informação (org). A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20
autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016.

MARIA CHIVATTA. Resistindo aos dogmas do autoritarismo. In. FRIGOTTO, Gaudêncio (org).
Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ,
LPP, 2017.

SAKAMOTO, Leonardo. “Escola sem partido”: doutrinação comunista, coelho da páscoa e papai
noel. In. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (org). A ideologia do movimento Escola
Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016.

767
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SEFFNER, Fernando. Escola para todos: mesmo para aqueles que manifestam diferenças em sexo e
gênero. In. SILVA, Fabiane Ferreira da; MELLO, Elena Maria Billig. Corpos, gêneros,
sexualidades e relações étnico-raciais na educação. Uruguaiana - RS: UNIPAMPA, 2011.

768
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - SEGURANÇA PÚBLICA
E SISTEMA PRISIONAL:
UM DIÁLOGO
NECESSÁRIO!
COORDENAÇÃO
Profa. Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado – UNIPAMPA
Mestranda Daniele Bonapace dos Santos Lencina – UNIPAMPA
Me. Edison Ouriques – DAS/Maçambara

769
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUESTÃO PENITENCIÁRIA EM CONTEXTOS DE FRONTEIRA: UM ESTUDO
EXPLORATÓRIO

Luiz Antônio Bogo Chies314


Otávio Luís Siqueira Couto315

Resumo: Dimensionar questões que envolvem a relação “fronteiras e encarceramento” no Brasil; mapear e analisar
instrumentos normativos e políticas que com essa relação se vinculam. Estes são os objetivos deste estudo, como etapa
exploratória de uma pesquisa mais ampla, a qual, focada na perspectiva de uma sociedade civilizada, pergunta: Em termos
de execução penal – de encarceramentos e segregações prisionais – quais são os conteúdos da dignidade e da cidadania
que as fronteiras nacionais não devem obstruir? Minimizar a importância da questão dos presos estrangeiros porque tal
grupo raramente supera a taxa de 0,5% da população encarcerada nas configurações prisionais dos estados brasileiros se
trata de um equívoco civilizatório e humanitário. A dignidade humana não se exclui por tais critérios e o ritmo do
encarceramento no Brasil não faz deste número um índice insignificante de pessoas.

Palavras-chave: Cidadania; Estrangeiros; Fronteira; Questão Penitenciária; Serviços Penais.

INTRODUÇÃO
Em termos de execução penal – de encarceramentos e segregações prisionais – quais são os
conteúdos da dignidade e da cidadania que as fronteiras nacionais não devem obstruir, num mundo
(e em relações internacionais) que se propõe civilizado? Como o Brasil lida com esta questão, sendo
um país de extensas fronteiras com uma dezena de outros Estados Nacionais? Estes são os problemas
centrais da pesquisa à qual se vincula o presente artigo (etapa exploratória de um projeto mais amplo).
Nossa primeira premissa é a de que a “fronteira geográfica é uma demarcação necessária ao
Estado, de espaços contingentes, rígidos, mas que produzem dinâmicas sociais envolvendo
conjunturas políticas e econômicas para além das limitações cartográficas” (ALMEIDA, 2016, p.
127).
Também a perspectiva da cidadania se apresenta como uma premissa. É ela, como forma de
identidade e vínculo sociopolítico (HEATER, 2007) – seja em relação ao nacional, seja em relação
ao estrangeiro (cidadão de outro Estado nacional) – que autoriza e exige o tratamento do prisioneiro
não como inimigo, mas como sujeito de direitos, ainda que sentenciado a uma punição prevista em
lei.

314
Doutor em Sociologia / professor do curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da
Universidade Católica de Pelotas (UCPel). E-mail: luiz.chies@ucpel.edu.br
315
Mestre e Doutorando em Política Social e Direitos Humanos /professor assistente do Departamento de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Colegiado do Curso de Direito do Campus
Binacional do Oiapoque. E-mail: otaviolscouto@gmail.com
770
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É, portanto, uma terceira premissa a posição jurídica do preso como sujeito de direitos
(RODRIGUES, 1999), a qual, em relação às normativas internacionais, pode-se considerar
consolidada a partir das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, elaboradas e adotadas
pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes,
realizado no ano de 1955 em Genebra, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU
através da sua Resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957.
Com base em tais premissas, apresentaremos neste texto os primeiros resultados da pesquisa
que nos subsidia, focalizando aspectos referentes ao dimensionamento das questões que envolvem a
relação “fronteiras e encarceramento” no Brasil; ao mapeamento e análise dos instrumentos
normativos e das políticas que com essa relação se vinculam, sobretudo no caso dos estrangeiros
presos em solo nacional; e, por fim, problematizando aspectos referentes à necessidade de uma mais
proativa política de serviços penais em contextos de fronteira.
A natureza do nosso objeto de estudo – sua invisibilidade marginal, que aqui assume diferentes
sentidos metafóricos e concretos – impõe que nossa pesquisa se revista, até o momento, de caráter
exploratório de um subcampo da questão penitenciária. Tal caráter acaba por repercutir neste artigo,
o qual talvez se consolide mais como um inventário de ausências, omissões e negligências, as quais,
entretanto, têm muito a dizer sobre essa dimensão de um mundo pretensamente civilizado.

AS FRONTEIRAS BRASILEIRAS E OS DADOS DO ENCARCERAMENTO


Totalizando 16.885,7 quilômetros de extensão, as fronteiras brasileiras envolvem 11 unidades
da federação e dez Estados do subcontinente América do Sul. Na faixa de fronteira – 150 quilômetros
de largura a partir da linha de fronteira – estão 588 municípios, que abrangem 27% do território
nacional. Tal conjunto está dividido em três grandes arcos: Norte (Acre, Amapá, Amazonas, Pará e
Roraima); Central (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia); e, Sul (Paraná, Rio Grande do
Sul e Santa Catarina) (PÊGO, 2017, pp. 9-10).
Nesta perspectiva, o Quadro 1 detalha as Unidades da Federação e os respectivos países com
os quais fazem fronteira, bem como o número de municípios fronteiriços, ou seja, aqueles cujo
território alcança a linha de fronteira.

771
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUADRO 1 – UNIDADES DA FEDERAÇÃO E PAÍSES COM OS QUAIS FAZEM
FRONTEIRA / NÚMERO DE MUNICÍPIOS FRONTEIRIÇOS
Número de municípios
Estado Países com fronteira
fronteiriços
Acre Bolívia / Peru 17
Amapá Guiana Francesa (França) 2
Amazonas Peru / Colômbia / Venezuela 8
Mato Grosso Bolívia 4
Mato Grosso do Sul Paraguai / Bolívia 12
Pará Suriname 3
Paraná Argentina / Paraguai 17
Rio Grande do Sul Uruguai / Argentina 28
Rondônia Bolívia 9
Roraima Venezuela / Guiana 9
Santa Catarina Argentina 10
Fonte: ALMEIDA, 2016; CNM, 2008; organizado pelos Autores.

Já o Quadro 2, elaborado a partir de dados do Infopen, Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias (DEPEN, 2019), apresenta dados relacionados com a população de presos estrangeiros
nos respectivos estados brasileiros, em junho de 2017316

QUADRO 2 – DADOS REFERENTES A ESTRANGEIROS PRESOS NOS ESTADOS


BRASILEIROS – JUNHO DE 2017
Arco Estado América Demais Total de % de Dentre os
continentes estrangeiros estrangeiros no estrangeiros %
sistema de Americanos
prisional
AC 20 1 21 0,3 95,2
AM 34 3 37 0,4 91,9
Norte
Estados fronteiriços

AP 0 0 0 0,0 -
PA 6 8 14 0,1 42,8
RR 37 2 39 1,5 94,9
RO 7 0 7 0,1 100
Central

MT 15 1 16 0,1 93,7
MS 134 9 143 0,8 93,7
PR 130 6 136 0,3 95,6
Sul

RS 73 5 78 0,2 93,6

316
Existe levantamento mais recente, referente ao ano de 2018, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
através do Cadastro Nacional de Presos e do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP). Optamos,
entretanto, por utilizar os dados do Infopen haja vista que o próprio BNMP registra “que quando da elaboração do
presente relatório dois tribunais estaduais (SP e RS) não haviam finalizado a alimentação do cadastro” (CNJ, 2018,
p.28), situação que poderia distorcer as análises aqui pretendidas.
772
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SC 44 4 48 0,2 91,7

AL 0 0 0 0,0 -
BA 1 10 11 0,1 9,1
CE 18 27 45 0,2 40
DF 10 4 14 0,1 71,4
ES 6 4 10 0,0 60
Estados não fronteiriços

GO 2 5 7 0,0 28,6
MA 0 0 0 0,0 -
MG 9 3 12 0,0 75
PB 1 0 1 0,0 100
PE 0 1 1 0,0 0
PI 0 2 2 0,0 0
RJ 41 50 91 0,2 45
RN 3 0 3 0,0 100
SE 3 1 4 0,1 75
SP 621 800 1.421 0,6 43,7
TO 0 0 0 0,0 -
Totais 1.215 946 2.161 0,3 56,2
Fonte: DEPEN, 2019.

Dos dados do Quadro 2, combinados com os Gráficos 1 e 2 (abaixo) podemos destacar


algumas considerações:
a) o estado de São Paulo, por sua importância no contexto nacional, e sobretudo por ser a porta
de entrada e saída nas rotas aéreas internacionais, é o que se destaca em termos de números
absolutos de presos estrangeiros;
b) enquanto São Paulo detém 66% dos presos estrangeiros, os estados fronteiriços agrupados
somam 25%. Já em termos da taxa de ocupação média de presos estrangeiros no sistema
prisional – que é de 0,3% para o Brasil – cinco estados fronteiriços se encontram deste patamar
para mais, enquanto em relação aos não fronteiriços apenas São Paulo se situa acima da média;
c) os estrangeiros de origem no continente americano representam 56,2% na média nacional. Em
nove dos estados fronteiriços esta taxa é superior a 90%;
d) os quatro estados mais ao sul se destacam em termos de números absolutos de estrangeiros
presos: Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul;

773
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e) também estes quatro estados, concentram a maior parte dos municípios em faixa de fronteira
e cidades-gêmeas, 462 e 21 respectivamente, enquanto os demais estados somam 126
municípios na faixa e nove cidades-gêmeas.

GRÁFICO 1 – NÚMERO E PERCENTUAL DE ESTRANGEIROS PRESOS NOS ESTADOS


FRONTEIRIÇOS, NÃO FRONTEIRIÇOS E SÃO PAULO – JUNHO DE 2017

201;
9%

539; 25%
Estados fronteiriços
São Paulo
Estados não fronteiriços
1421; 66%

Fonte: DEPEN, 2019. Elaborado pelos Autores.

GRÁFICO 2 – NÚMERO E PERCENTUAL DE ESTRANGEIROS PRESOS NOS ESTADOS DE


MATO GROSSO DO SUL, PARANÁ, RIO GRANDE DO SUL E SANTA CATARINA
(SOMADOS) E DEMAIS ESTADOS FRONTEIRIÇOS – JUNHO DE 2017

774
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
134; 25%
MS / PR / SC / RS

Demais estados
fronteiriços
405; 75%

Fonte: DEPEN, 2019. Elaborado pelos Autores.

Por fim, a partir de uma comparação entre os dois últimos dados apresentados pelos
levantamentos nacionais de informações penitenciárias (DEPEN, 2017; 2019), verifica-se – com
algumas variações não muito significativas em relação aos tópicos já destacados – a manutenção da
configuração da participação dos estrangeiros no contexto do encarceramento no Brasil.

QUADRO 3 – COMPARATIVO DE DADOS REFERENTES A ESTRANGEIROS PRESOS NO


BRASIL – JUNHO DE 2016 / JUNHO DE 2017
Oriundos Oriundos Total de % de Dentre os
do dos demais estrangeiros estrangeiros estrangeiros
continente continentes no sistema % de
americano prisional Americanos
Junho 1.456 1.150 2.606 0,4 56
2016
Junho 1.215 946 2.161 0,3 56,2
2017
Fonte: DEPEN, 2017; 2019. Elaborado pelos Autores.

Quanto aos brasileiros presos em países estrangeiros o acompanhamento se dá em nível de


Governo Federal, através do Ministério das Relações Exteriores. Dados disponíveis on-line,
referentes aos anos de 2014 e 2015, permitem-nos apresentar os seguintes quadros:

775
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUADRO 4 – BRASILEIROS PRESOS SEGUNDO CONTINENTE OU SUBCONTINENTE E
PERCENTUAL EM RELAÇÃO AO TOTAL – 2015-2014
Continente Nº absoluto % Nº absoluto %
ou Subcontinente em 2015 do total em 31/12/2014 do total
Europa 1.064 39,3 1.050 37,6
América do Sul 723 26,7 823 29,5
América do Norte 537 19,8 423 15,2
Ásia 279 10,3 409 14,7
África 27 1 28 1
Oriente Médio 27 1 19 0,7
Oceania 27 1 24 0,8
América Central e Caribe 23 0,9 15 0,5
Totais 2.707 100 2.791 100
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019. Elaborado pelos Autores.

QUADRO 5 – BRASILEIROS PRESOS EM PAÍSES DO SUBCONTINENTE DA AMÉRICA


DO SUL E PERCENTUAL EM RELAÇÃO AO TOTAL - 2015
País Nº absoluto em 2015 % em relação ao Subcontinente
Paraguai 225 31
Guiana Francesa 91 12
Argentina 89 12
Bolívia 71 10
Uruguai 70 10
Venezuela 62 9
Suriname 44 6
Peru 33 5
Chile 21 3
Colômbia 15 2
Equador 2 0
Totais 723 100
Fonte: MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019. Elaborado pelos Autores.

Também em relação a essa realidade ganham destaque os quantitativos decorrentes dos países
do subcontinente América do Sul, bem como aqueles fronteiriços com o Brasil.
Os dados apresentados não devem causar surpresa, pois são coerentes com as permeabilidades
dos fluxos fronteiriços tanto para as mobilidades como para os mercados e atividades legais e
ilegais.

776
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Não obstante, tornam visível uma dimensão da questão penitenciária que pouca atenção tem
recebido tanto por parte das gestões públicas, como por parte dos estudos científicos: o
encarceramento de estrangeiros como um tema pertinente e peculiar às regiões de fronteira, suas
especificidades como parte da questão social e como foco de políticas de serviços penais compatíveis
com as promessas modernas de sistemas punitivos humano-dignificantes e sustentados em garantias
legais de Estados de Direito.

O TRATAMENTO JURÍDICO DO ESTRANGEIRO PRESO PELO ORDENAMENTO


BRASILEIRO

O tratamento jurídico brasileiro em relação às execuções penais e à questão penitenciária


sempre foi caracterizado pelos paradoxos não só entre discursos e práticas, mas, também, pela
invisibilidade de aspectos peculiares de grupos específicos (mulheres, idosos, populações LGBTI,
indígenas, estrangeiros, etc...). Invisibilidades que atualmente têm sido tensionadas.
Trata-se de uma questão histórica. A adesão a uma modernidade punitiva quando da
independência, em 1822, constituiu-se mais como estratégia simbólica de “Ser moderno, ou ao menos
oferecer a aparência de sê-lo” (AGUIRRE, 2009, p. 36), do que um efetivo projeto civilizador num
país escravocrata. Regina Célia Pedroso (1997), analisando a história e a violência das prisões
brasileiras até as primeiras décadas da República, refere-se às leis e projetos de lei como formadores
de “utopias penitenciárias”. Recorrendo-se a Gizlene Neder teremos a percepção de um traço da
cultura jurídico-penal nacional: “leis muito bem feitas, para não serem cumpridas, ou serem burladas”
(2000, p. 134).
A vigente Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), por sua vez, representa a adesão tardia
do Brasil ao correcionalismo punitivo (TEIXEIRA, 2009), ou mesmo às perspectivas do
previdenciarismo penal, como proposto por David Garland (2008). Nova etapa para o Direito
Penitenciário brasileiro sem, contudo, alterações nos paradoxos e invisibilidades históricas.

Soft Law e invisibilidade


Em relação ao estrangeiro preso no Brasil, e não obstante o disposto no caput do Artigo
5º da Constituição de 1988 quando trata da igualdade perante a lei (com a ressalva de que

777
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
menciona apenas “estrangeiros residentes no país”)317, deve-se considerar que o tratamento jurídico
nacional está mais vinculado à baixa visibilidade e a regras de natureza soft law, soft norms, através
da adesão a documentos jurídicos de relações internacionais.

Essas normas não têm o mesmo grau de atribuição de capacidades nem são tão
importantes quanto as normas restritivas, mas os Estados comprometem-se a cooperar e
a respeitar os acordos realizados, sem submeter-se, no entanto, a obrigações jurídicas.
Consideramos que essa modalidade de comprometimento representa uma atribuição de
capacidade, sendo que o Estado permite à comunidade internacional garantir
primeiramente um controle moral sobre as disposições dos acordos e, depois, porque
esses acordos servem como base à realização de futuros acordos restritivos. Por isso,
constituem uma etapa intermediária da atribuição de capacidade, já portadora de
consequências concretas. (VARELLA, 2012, p. 82)

Nesse sentido, o tratamento jurídico nacional ao estrangeiro preso se encontra vinculado tanto
às Regras de Mandela (que em 2015 atualizaram as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos da
ONU), como a outras regras internacionais; as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de
Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para as Mulheres Infratoras (Regras de
Bangkok), por exemplo.
Em relação às Regras de Mandela se pode dar destaque a dispositivos como o presente na
Regra 61.2 (“Nos casos em que os presos não falam o idioma local, a administração prisional deve
facilitar o acesso aos serviços de um intérprete competente e independente.”), bem como à Regra 62:

Regra 62
1. Presos estrangeiros devem ter acesso a recursos razoáveis para se comunicarem com os
representantes diplomáticos e consulares do Estado ao qual pertencem.
2. Presos originários de Estados sem representação diplomática ou consular no país e
refugiados ou apátridas devem ter acesso a recursos similares para se comunicarem com os
representantes diplomáticos do Estado encarregados de seus interesses ou com qualquer
autoridade nacional ou internacional que tenha como tarefa proteger tais indivíduos. (CNJ,
2016, p.32)

Ainda no plano das normas internacionais é de se salientar o artigo 36 da Convenção de Viena


sobre Relações Consulares (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 61.078/1967):
ARTIGO 36º
Comunicação com os nacionais do Estado que envia

317
Constituição Federal de 1988, Artigo 5º: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade”.
778
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
1. A fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado que
envia:
(...)(...)
b) se o interessado lhes solicitar, as autoridades competentes do Estado receptor deverão, sem
tardar, informar à repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um nacional do
Estado que envia fôr preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer
outra maneira.
Qualquer comunicação endereçada à repartição consular pela pessoa detida, encarcerada ou
presa preventivamente deve igualmente ser transmitida sem tardar pelas referidas
autoridades. Estas deverão imediatamente informar o interessado de seus direitos nos têrmos
do presente subparágrafo;
c) os funcionários consulares terão direito de visitar o nacional do Estado que envia, o qual
estiver detido, encarcerado ou preso preventivamente, conversar e corresponder-se com êle,
e providenciar sua defesa perante os tribunais. Terão igualmente o direito de visitar qualquer
nacional do Estado que envia encarcerado, preso ou detido em sua jurisdição em virtude de
execução de uma sentença, todavia, os funcionário consulares deverão abster-se de intervir
em favor de um nacional encarcerado, preso ou detido preventivamente, sempre que o
interessado a isso se opuser expressamente.
(...)(...).

Tais determinações – sem demora notificar à repartição consular estrangeira a prisão ou


detenção de indivíduo de nacionalidade desta última, a pedido do indivíduo; informar o estrangeiro
preso ou detido do direito acima mencionado; e permitir visitas dos funcionários consulares ao preso
ou detido – têm repercutido em resoluções de diferentes níveis no Brasil: Resolução nº 162 de 13 de
novembro de 2012, do Conselho Nacional de Justiça; a Recomendação nº 47, de 21 de novembro de
2016, do Conselho Nacional do Ministério Público; a Portaria nº 67, de 14 de janeiro de 2017, do
Ministério da Justiça e Cidadania.
Tratam-se dos mais visibilizados direitos do preso estrangeiro no tratamento jurídico do Brasil
pois, no mais, a Lei de Execução Penal não faz menção aos estrangeiros presos, tampouco as Regras
Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil (Resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária [CNPCP]). Também os dois últimos Planos
Nacionais de Política Criminal e Penitenciária, respectivamente de 2011 e 2015, reservam cada
somente um único dispositivo que incide diretamente sobre a população estrangeira encarcerada: a
Medida 5, em 2011, e a Medida 7, em 2015, referindo-se ambas genericamente em relação à criação
de um sistema de acompanhamento de estrangeiros presos no Brasil e implantação de políticas de
atendimento adequadas, além de unidades específicas para estrangeiros, se for o caso, garantindo
assim o cumprimento das leis e dos tratados e acordos internacionais de que o Brasil faz parte.
Tratamentos jurídicos mais detalhados atinentes aos estrangeiros presos só se encontram
nos principais mecanismos de cooperação internacional em relação à questão: a extradição e a
779
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
transferência de presos entre países. Ainda existem normas que se relacionam com o assunto no
âmbito da Lei de Migração, ou seja: expulsão, deportação e repatriação.
Na perspectiva dessa pesquisa, em sua etapa atual, os acordos que versam sobre a transferência
de pessoas condenadas merecem atenção mais detalhada.

Acordos de Transferência
Através da Resolução nº 04, de 30 de maio de 1995, o CNPCP recomendou ao Governo
brasileiro que analisasse a conveniência de serem intensificadas negociações já iniciadas com outros
Países, visando possibilitar a transferência de presos. Desde então o país celebrou 18 acordos
bilaterais e três multilaterais em relação à matéria.

QUADRO 6 – ACORDOS BILATERAIS E MULTILATERAIS, CELEBRADOS PELO BRASIL,


QUE VERSAM SOBRE A TRANSFERÊNCIA DE PESSOAS CONDENADAS
Tipo de País / âmbito geopolítico Normativa
Acordo
Angola Decreto nº 8.316, de 24.09.2014
Argentina Decreto nº 3.875, de 23.07.2001
Bélgica Decreto nº 9.239, de 15.12.2017
Bolívia Decreto nº 6.128, de 20.06.2007
Canadá Decreto nº 2.547, de 14.04.1998
Chile Decreto nº 3.002, de 26.03.1999
Espanha Decreto nº 2.576, de 30.04.1998
Japão Decreto nº 8.718, de 25.04.2016
Bilateral

Panamá Decreto nº 8.050, de 11.07.2013


Paraguai Decreto nº 4.443, de 28.10.2002
Peru Decreto nº 5.931, de 13.10.2006
Polônia Decreto nº 9.749, de 10.04.2019
Portugal Decreto nº 5.767, de 02.05.2006
Reino dos países baixos Decreto nº 7.906 de 04.02.2013
Reino Unido da Grã-Bretanha Decreto nº 4.107, de 28.01.2002
e Irlanda do Norte
Suriname Decreto nº 8.813, de 18.07.2016
Turquia Decreto nº 9.752, de 10.04.2019
Ucrânia Decreto nº 9.153, de 06.09.2017
Convenção Interamericana Decreto nº 6.128, de 20.06.2007
latera
Multi

sobre o Cumprimento de
l

Sentenças Penais no Exterior

780
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Convenção sobre a Decreto nº 8.049, de 11.07.2013
Transferência de Pessoas
Condenadas entre os Estados
Membros da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa
(CPLP)
Acordo sobre Transferência de Decreto nº 8.315, de 24.09.2014
Pessoas Condenadas entre os
Estados Partes do Mercosul
Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2019.

Dentre as considerações que fundamentam a recomendação destacam-se:


(...) que a Organização das Nações Unidas tem insistido quanto à imprescindibilidade de tal
cooperação, dirigindo esforços no sentido de difundir a proposta da Transferência de Presos
como método moderno de reeducação para fortalecer o alicerce de reconstrução pessoal do
preso diante da perspectiva de futura vida livre no convívio social;
(...)(...)
que, no ordenamento jurídico brasileiro, os Institutos da Extradição e da Expulsão não se
mostram suficientes para satisfazer a consciência dos direitos humanos e a moderna noção
de pena que, sendo por sua natureza, retributiva do fato e punitiva do autor, inclui, entre as
suas funções-finalidades, o propósito de sólida reintegração do condenado na sociedade e na
família; (CNPCP, 1995)

A transferência de pessoas condenadas trata-se, pois, de:

(...) um novo instituto que visa o cumprimento de pena no país de origem do condenado, onde
o mesmo tem uma maior proximidade com a sua família e seu ambiente social e cultural,
tendo assim um cunho humanitário onde é perceptível que o mesmo poderá ter um melhor
apoio psicológico e emocional que possibilite a sua ressocialização após o cumprimento da
pena. Como o nome diz por si próprio, a transferência de presos é a modificação do local de
cumprimento da pena de um país para outro, sendo o último o seu país de origem (JALES,
2014).

Em relação ao conteúdo dos acordos, os principais aspectos daqueles realizados com os países
com os quais o Brasil possui fronteira (com pequenas variações), podem ser sintetizados a partir do
seguinte quadro318:

318
Para a elaboração do Quadro 7 foram analisados: Decreto nº 3.002, de 26 de março de 1999, que promulga o
Tratado celebrado com a República do Chile; Decreto nº 3.875, de 23 de julho de 2001, que promulga o Tratado
celebrado com a República Argentina; Decreto nº 4.443, de 28 de outubro de 2002, que promulga o Tratado
celebrado com a República do Paraguai; Decreto nº 5.931, de 13 de outubro de 2006, que promulga o Tratado
celebrado com a República do Peru; Decreto nº 6.128, de 20 de junho de 2007, que promulga o Acordo celebrado
com a República da Bolívia; Decreto nº 8.315, de 24 de setembro de 2014, que promulga o Acordo sobre
Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Partes do Mercosul; Decreto nº 8.813, de 18 de julho de
2016, que promulga o Tratado celebrado com a República do Suriname.
781
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUADRO 7 - PRINCIPAIS ASPECTOS DOS ACORDOS DE TRANSFERÊNCIA DE PESSOAS
CONDENADAS REALIZADOS PELO BRASIL COM OS PAÍSES COM OS QUAIS POSSUI
FRONTEIRA

a) promover a cooperação mútua em matéria de justiça penal;


b) de acordo com modernas concepções, um dos objetivos da
Justificativas política criminal é a reinserção social das pessoas condenadas;
c) dar aos nacionais privados de sua liberdade no estrangeiro,
como resultado de prática de um delito, a possibilidade de
cumprir a pena em seu país de origem e em sua sociedade.
Abrangência em
pessoa que estiver, por força de sentença condenatória, cumprindo
termos de situação
pena de privação de liberdade em estabelecimento penitenciário ou
processual penal
que estiver submetida a regime de liberdade condicional.

a) a sentença deverá ser definitiva e transitada em julgado;


b) a condenação não poderá ser à pena de morte, a menos que esta
tenha sido comutada;
Condições para c) a pena que estiver sendo cumprida pelo preso deverá ter
aplicação do acordo duração determinada na sentença condenatória ou ter sido
estabelecida posteriormente por autoridade competente;
d) o remanescente da pena a ser cumprida deverá ser de no
mínimo um ano quando da apresentação da solicitação;
e) que o preso tenha reparado os danos causados, na medida em
que isso lhe tenha sido possível.
Dever de informar
presos sobre Sim
existência do acordo

a) o preso transferido não poderá ser novamente julgado no Estado


recebedor pelo delito que motivou a condenação imposta pelo Estado
Direitos do remetente;
transferido e b) a execução da sentença será regida pelas leis do Estado
cumprimento da recebedor;
sentença c) nenhuma sentença de prisão será executada pelo Estado
recebedor de modo a prolongar a duração da privação de
liberdade além da pena imposta pela sentença do tribunal do
Estado remetente.
Fonte: Elaborado pelos Autores.

782
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em 14 de fevereiro de 2018 o Ministério da Justiça e Segurança Pública editou a Portaria nº
89, na qual estabelece “os procedimentos a serem adotados em relação à tramitação dos pedidos ativos
e passivos de transferência de pessoas condenadas”, dispondo, no Artigo 2º, que: “Compete ao
Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional
de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública receber, analisar os requisitos de
admissibilidade, instruir e encaminhar os pedidos ativos e passivos de transferência de pessoas
condenadas”.
Uma análise da efetividade destes acordos é questão a ser aprofundada através de pesquisas e
se encontra na pauta do projeto ao qual se vincula o presente artigo, ainda que, no momento, extrapole
o foco da questão penitenciária em contextos de fronteira.

POLÍTICAS BRASILEIRAS EM RELAÇÃO AO ESTRANGEIRO PRESO EM


CONTEXTOS DE FRONTEIRA

Como já mencionado, os dois últimos Planos Nacionais de Política Criminal e Penitenciária,


respectivamente de 2011 e 2015, registram, ainda que de forma ampla e genérica, as diretrizes de:

Criar sistema de acompanhamento de estrangeiros presos no Brasil e implantar políticas de


atendimento adequadas, e unidades específicas para estrangeiros (quando necessário),
garantindo o cumprimento das leis e dos tratados e acordos internacionais de que o Brasil é
signatário; (CNPCP, 2011, p. 6; CNPCP, 2015, p. 30).

No sistema de governança da questão penitenciária as gestões das configurações prisionais


das Unidades da Federação cabem aos governos estaduais. O Governo Federal, entretanto, pode não
só organizar e implementar sistemas de acompanhamento e monitoramento em nível nacional como,
também, induzir e fomentar políticas públicas. Um mapeamento de tais iniciativas requer, portanto,
a busca de informações em ambos os níveis dos entes federativos.
Quanto aos sistemas de registro da população de presos estrangeiros é possível se mencionar
tanto os dados recolhidos através do Infopen, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias,
gerido pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), como o Cadastro Nacional de Presos
Estrangeiros, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual alimenta o Banco Nacional de
Monitoramento de Prisões (BNMP).

783
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mencionam-se estas iniciativas como sistemas de registro, haja vista que atualmente
repercutem efeitos mais nessa ordem do que nas de acompanhamento e monitoramento.
Já no nível dos estados, na perspectiva de mapear as políticas desenvolvidas em relação aos
estrangeiros presos, sobretudo nos contextos de fronteira, entramos em contato com os órgãos de
gestão penitenciária dos 11 estados que possuem fronteiras internacionais.
No quadro abaixo se pode verificar que cinco deles não responderam efetivamente à demanda
de informações; quatro enviaram dados referentes a estrangeiros presos mas não em relação ao
desenvolvimento de políticas específicas para este grupo; e, somente dois foram explícitos em
fornecer informações neste sentido, ambas negativas quanto ao desenvolvimento de tais políticas,
ainda que no caso de Mato Grosso tenha sido registrado que são atendidos conforme legislação
vigente no país.

QUADRO 8 – RESULTADO DO MAPEAMENTO DE POLÍTICAS ESPECÍFICAS PARA


ESTRANGEIROS PRESOS NOS ESTADOS BRASILEIROS COM FRONTEIRAS
INTERNACIONAIS
Estado Desenvolve políticas específicas para estrangeiros presos?
Acre Sem resposta efetiva ao contato.
Amapá Não enviou dados nesse sentido.
Amazonas Não enviou dados nesse sentido.
Mato Grosso Não há política específica para presos estrangeiros. Eles são atendidos
conforme a legislação vigente no país e seguem os procedimentos
internos estabelecidos pela administração penitenciária.
Mato Grosso do Sul Sem resposta efetiva ao contato.
Pará Sem resposta efetiva ao contato.
Paraná Sem resposta efetiva ao contato.
Rio Grande do Sul Sem resposta efetiva ao contato.
Rondônia Não enviou dados nesse sentido.
Roraima Não desenvolve, no presente momento, projeto destinado
exclusivamente aos detentos estrangeiros. Todavia, os detentos
oriundos da Venezuela se beneficiaram da aplicação de vacinas e
administração de medicamentos indisponíveis em seu país de origem.
Santa Catarina Não enviou dados nesse sentido.
Fonte: Pesquisa direta, 2019.

O quadro apresentado sugere, em especial no contexto pesquisado, inexistência de políticas


públicas, no âmbito prisional dos serviços penais, aos estrangeiros presos.

784
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Diante da percepção das condições de superlotação e carências de recursos materiais e
humanos que registram a maioria (senão a totalidade) dos sistemas penitenciários estaduais, tende a
se consolidar um descaso para com um grupo que raramente perfaz, quantitativamente, percentual
significativo das populações encarceradas.
Em nosso mapeamento também realizamos contato com o DEPEN, na expectativa de localizar
ao menos programas de fomento às políticas estaduais. Também neste nível o contato não resultou
resposta efetiva do órgão.
No mais, entidades como a OAB do estado de São Paulo, ou mesmo o Ministério Público
Federal (MPF), têm lançado Cartilhas específicas na temática dos estrangeiros presos. O CNJ, por
sua vez, lançou Cartilha da Pessoa Presa também em versões na língua espanhola e inglesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O panorama que os dados desta etapa de nossa pesquisa nos permitem elaborar em relação à
questão penitenciária em contextos de fronteira possui características que – repetimos – não causam
surpresa, já que coerentes com as permeabilidades dos fluxos fronteiriços, mas que, acaso não sejam
visibilizados por estudos dessa ordem, permanecerão negligenciados no âmbito das políticas públicas
e sociais que se relacionam com os serviços penais.
Nesse sentido, os estados fronteiriços são os que maior número de estrangeiros encarceram;
também os Estados Nacionais fronteiriços com o Brasil são aqueles em relação aos quais
significativos contingentes de seus cidadãos estão encarcerados em solo brasileiro.
Em relação ao tratamento jurídico do preso estrangeiro, no âmbito da celebração de acordos
e tratados de transferência de pessoas condenadas o Brasil tem sido, ao menos no plano formal,
eficiente em promover a institucionalização de um método e estratégias que visam satisfazer tanto a
consciência dos direitos humanos como modernas concepções de política criminal, ou seja, a
perspectiva de reinserção social das pessoas condenadas em sua própria sociedade, incluindo a
preservação de seus vínculos sociais e familiares.
Não obstante esse avanço, permanecem os estrangeiros presos invisibilizados no nível do
ordenamento jurídico nacional de execução penal, situação que se repercute na omissão e negligência
quanto à implantação de políticas de atendimento e serviços penais adequados às populações

785
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estrangeiras presas. Em tal esfera, o Brasil se limita ao quase só registro quantitativo desse peculiar
grupo prisional.
E se trata de um equívoco civilizatório e humanitário se minimizar a importância de questão
dos presos estrangeiros, e em especial destes nos contextos de fronteira, haja vista serem uma parcela
que no mais dos estados não supera a taxa de 0,5% da população encarcerada. A dignidade humana
não se exclui por tais critérios e o ritmo do encarceramento no Brasil não faz deste número um índice
insignificante de pessoas.
Existem diferentes questões a serem enfrentadas em relação aos contextos aqui expostos
apenas no nível panorâmico. Retomamos nossa primeira premissa: as fronteiras geográficas, ainda
que demarcações necessárias aos Estados Nacionais, produzem dinâmicas sociais e fluxos humanos
que vão além das limitações cartográficas (ALMEIDA, 2016, p. 127). São estas dinâmicas sociais e
fluxos humanos, também sob a perspectiva da questão penitenciária, que devemos fazer emergir da
invisibilidade característica das configurações prisionais.
Por fim, acaso este artigo – etapa exploratória de uma pesquisa mais ampla – tenha realmente
se consolidado mais como um inventário de ausências, omissões e negligências, serve-nos, entretanto,
para reforçar a pergunta central de nossa agenda de pesquisa: Em termos de execução penal – de
encarceramentos e segregações prisionais – quais são os conteúdos da dignidade e da cidadania que
as fronteiras nacionais não devem obstruir, num mundo (e em relações internacionais) que se propõe
civilizado?

REFERÊNCIAS
AGUIRRE, Carlos. O cárcere na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, Clarissa Nunes; NETO,
Flávio de Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz (Orgs.). História das prisões no Brasil –
volume 1. Rio de Janeiro, Rocco, 2009. p. 35-77.

ALMEIDA, Letícia Núñez. O estado e os ilegalismos nas margens do Brasil e do Uruguai: um


estudo de caso sobre a fronteira de Sant’ana do Livramento (BR) e Rivera (UY). Porto Alegre: Fi,
2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 23 jul. 2019.

BRASIL. Decreto nº 3.002, de 26 de março de 1999. Promulga o Tratado sobre Transferência de


Presos Condenados, celebrado entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo

786
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
da República do Chile. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3002.htm.
Acesso em 23 jul. 2019.

BRASIL. Decreto nº 3.875, de 23 de julho de 2001. Promulga o Tratado sobre a Transferência de


Presos, entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, celebrado em Buenos Aires,
em 11 de setembro de 1998. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3875.htm . Acesso em 23 jul. 2019.

BRASIL. Decreto nº 4.443, de 28 de outubro de 2002. Promulga o Tratado sobre Transferência de


Pessoas Condenadas e de Menores sob Tratamento Especial entre o Governo da República Federativa
do Brasil e o Governo da República do Paraguai, celebrado em Brasília, em 10 de fevereiro de 2000.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4443.htm. Acesso em 23 jul.
2019.

BRASIL. Decreto nº 5.931, de 13 de outubro de 2006. Promulga o Tratado sobre Transferência de


Presos entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Peru,
celebrado em Lima, em 25 de agosto de 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5931.htm. Acesso em 23 jul.
2019.

BRASIL. Decreto nº 6.128, de 20 de junho de 2007. Promulga o Acordo entre o Governo da


República Federativa do Brasil e o Governo da República da Bolívia sobre a Transferência de
Nacionais Condenados, celebrado em La Paz, em 26 de julho de 1999. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6128.htm . Acesso em 23 jul.
2019.

BRASIL. Decreto nº 61.078, de 26 de julho de 1967. Promulga a Convenção de Viena sôbre Relações
Consulares. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D61078.htm . Acesso em
23 jul. 2019.

BRASIL. Decreto nº 8.315, de 24 de setembro de 2014. Promulga o Acordo sobre Transferência de


Pessoas Condenadas entre os Estados Partes do Mercosul, firmado pela República Federativa do
Brasil, em Belo Horizonte, em 16 de dezembro de 2004. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8315.htm. Acesso em 23
jul. 2019.

BRASIL. Decreto nº 8.813, de 18 de julho de 2016. Promulga o Tratado sobre Transferência de


Pessoas Condenadas entre a República Federativa do Brasil e a República do Suriname, firmado em
Paramaribo, em 16 de fevereiro de 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8813.htm. Acesso em 23 jul.
2019.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210compilado.htm . Acesso em 23 jul. 2019.

787
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0:
Cadastro Nacional de Presos. Brasília: CNJ, 2018.

CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Regras de Mandela. Regras Mínimas das Nações Unidas para
o Tratamento de Presos (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos). Brasília: CNJ,
2016.

CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Resolução nº 162 de 13 de novembro de 2012. Dispõe sobre a
comunicação de prisão estrangeiro à missão diplomática de seu respectivo Estado de origem.
Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_162_13112012_161120121548
21.pdf. Acesso em 23 jul. 2019.

CNM (Confederação Nacional de Municípios). A visão dos municípios sobre a questão fronteiriça.
Relatório Final I Encontro dos Municípios de Fronteira. Brasília: CNM, 2008.

CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Recomendação nº 47, de 21 de novembro de


2016. Dispõe sobre a notificação consular, resultante da aplicação do artigo 36 da Convenção de
Viena sobre Relações Consulares, de 1963, que impõe que as autoridades brasileiras cientifiquem
o cônsul do País a que pertence o estrangeiro, sempre que este for preso. Disponível em:
http://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas/norma/4642/. Acesso em 23 jul. 2019.

CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). Plano Nacional de Política


Criminal e Penitenciária – 2015. Disponível em:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/plano_nacional-
1/PlanoNacionaldePolticaCriminalePenitenciria2015.pdf. Acesso em 23 jul. 2019.

CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). Plano Nacional de Política


Criminal e Penitenciária – 2011. Disponível em:
http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/3231852/plano-politica-criminal-penitenciaria-2011.pdf. .
Acesso em 23 jul. 2019.

CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). Resolução nº 14, de 11 de


novembro de 1994. Estabelece as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Disponível
em:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/resolucoes/1994/resolucaono14de11denovembrode1994.p
df. Acesso em 23 jul. 2019.

CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). Resolução nº 04, de 30 de maio de


1995. Estabelece orientação sobre Transferência de Presos envolvendo Tratados com outros Países.
Disponível em:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/resolucoes/1995/resolucaono04de30demaiode1995.pdf.
Acesso em 23 jul. 2019.

788
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias Atualização - Junho de 2017. Disponível em:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-
12072019-0721.pdf. Acesso em 23 jul. 2019.

DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias Atualização - Junho de 2016. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-
1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-
2016/relatorio_2016_22111.pdf. Acesso em 23 jul. 2019.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: Revan, 2008.

HEATER, Derek. Ciudadanía. Madrid: Alianza, 2007.

JALES, Lycia Cibely Porto. Transferência de presos em cooperação jurídica internacional.


Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-125/transferencia-de-presos-em-
cooperacao-juridica-internacional/. Postado em: 01 jun 2014. Acesso em 23 jul. 2019

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA. Portaria nº 67, de 14 de janeiro de 2017. Dispõe sobre


a notificação consular em casode prisão de estrangeiro. Disponível em:
http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/20584853/do1-2017-
01-18-portaria-n-67-de-14-de-janeiro-de-2017-20584837. Acesso em 23 jul. 2019.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Acordos de Transferência de Pessoas


Condenadas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/cooperacao-
internacional/transferencia-de-pessoas-condenadas/acordos-de-transferencia-de-pessoas-
condenadas. Acesso em 23 jul. 2019.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Detenção no exterior. Disponível em:


http://www.portalconsular.itamaraty.gov.br/no-exterior/detencao-no-exterior. Acesso em 23 jul.
2019.

NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de


Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias, projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil.
Revista de História (USP), São Paulo, n. 136, 1997, pp. 121-137.

PÊGO, Bolívar et al. (org.). Fronteiras do Brasil: diagnóstico e agenda de pesquisa para política
pública, volume 2. Brasília: Ipea, 2017.

RODRIGUES, Anabela Miranda. A posição jurídica do recluso na execução da pena


privativa de liberdade: seu fundamento e âmbito. São Paulo: IBCCrim, 1999.

789
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
TEIXEIRA, Alessandra. Prisões da exceção: política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo.
Curitiba: Juruá, 2009.

VARELLA, Marcelo D. Direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 2012.

790
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O ENCARCERAMENTO EM MASSA DE MULHERES NO BRASIL: ENTRE
REALIDADES INVISÍVEIS E VIOLAÇÕES CONCRETAS

Monique Soares Vieira319


Âmela Silveira da Silveira320
Simone Barros de Oliveira321

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar como a política de encarceramento em massa imposta pelo Estado
Penal vem repercutindo na vida de mulheres racializadas no Brasil. Fruto de pesquisa bibliográfica e documental, as
reflexões trazidas nesse trabalho, buscam lançar questões sobre a construção ideológica do aumento da criminalidade
como premissa balizadora para a ampliação das políticas de segurança pública e de aprisionamento no Brasil.
Interseccionadas pela classe, raça e gênero as mulheres encarceradas têm nas prisões uma extensão do braço violador do
Estado em suas vidas. Cerceadas não apenas da liberdade, o encarceramento feminino no Brasil, se caracteriza como uma
miríade de violações aos direitos fundamentais dessa população. Refletir e ampliar o debate sobre o aumento expressivo
de mulheres no cárcere é uma necessidade analítica, mas sobretudo um compromisso ético e social para a edificação de
estratégias que garantam a visibilidade pública do cotidiano de sofrimento e privações, a que esta população encontra-se
exposta, diante de prisões degradadas e da ineficácia de políticas para a reinserção social.

Palavras-chave: Encarceramento em Massa; Encarceramento Feminino; Estado Penal.

INTRODUÇÃO
As desigualdades sociais constituem-se uma característica ontológica da formação brasileira.
A estratificação social no Brasil é baseada na raça e no gênero, e contribui para que uma grande parte
da população, seja classificada como cidadãs de segunda classe, expostas a exploração, dominação e
marginalização de suas identidades.
Em sociedades capitalistas, as experiências de mulheres negras estão interseccionadas pela
classe social, gênero e raça, onde acrescentam-se as interconexões com a sexualidade e geração, como
determinações que irão balizar as condições objetivas e simbólicas de suas vidas.
No que se refere à condição das mulheres negras no Brasil, constata-se a partir da pesquisa de
Carneiro (2011), que elas ganham menos que todos os outros três grupos que compõem a hierarquia
social brasileira (1º homens brancos, 2º mulheres brancas, 3º homens negros e 4º mulheres negras).
Além disso, de acordo com uma pesquisa realizada em 2016, pelo Instituto de Pesquisa Aplicada

319
Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). E-mail:
moniquevieira@unipampa.edu.br
320
Estudante de Serviço Social na Universidade Federal do Pampa (campus São Borja). Bolsista do Grupo de
Pesquisa Interseccionalidade, Direitos Humanos e Fronteira. E-mail: amelasilveira.aluno@unipampa.edu.br
321
Pós Doutora em Serviço Social. Professora Associada na Universidade Federal do Pampa (campus São Borja).
E-mail:simoneoliveira@unipampa.edu.br
791
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(IPEA) as mulheres negras eram o maior grupamento de pessoas desempregadas e/ou empregadas no
trabalho doméstico no país.
O encarceramento em massa, enquanto política de segregação social e racial constitui-se na
transformação do subproletariado em criminosos. A miséria de grande parte da população brasileira,
desprezada pelo Estado acaba por desaguar nos “campos de concentração para pobres”, como afirma
Wacquant (2001). O racismo é o elemento que integra e articula a dinâmica social, econômica e
judiciária no Brasil, impondo uma estratificação racial que é naturalizada pela sociedade e pelos
aparelhos do Estado.
Para Borges (2019, p. 57-58):

O Estado no Brasil é o que formula, corrobora e aplica um discurso e políticas de que negros
são indivíduos pelos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos a repressão. A sociedade,
imbuída de medo por esse discurso e pano de fundo ideológico, corrobora e incentiva a
violência, a tortura, as prisões e o genocídio. [...] Esse poder sobre os corpos negros é
exercido em diversas esferas. Seja na total ausência de políticas cidadãs e de direitos, como
falta de saneamento básico, saúde integral e empregos dignos; seja pelo caráter simbólico de
representação do negro na sociedade como violento, lascivo e agressivo, alimentando medo
e desconfiança e culminando em mortes simbólicas, pela aculturação, pela assimilação e pelo
epistemicídio, até as mortes físicas, que se estabelecem por violência, torturas,
encarceramentos e mortes.

O racismo, ao tornar a população negra supérflua e perigosa, lhes avilta a dignidade, a vida e
a própria humanidade, não há respeito, pois o “outro” é o inferior, é animalizado, parafraseando Fanon
(2005) é uma espécie de quintessência do mal, onde justifica-se o desprezo pela sua existência.
A dimensão assistencial e punitiva do Estado Penal terá repercussões severas na vida das
mulheres racializadas no Brasil. A ausência de oportunidades sociais e de direitos básicos para uma
vida digna, a superexploração do trabalho, as múltiplas expressões de violência que assolam
cotidianamente as mulheres racializadas, somadas a guerras às drogas, vem legitimando o
encarceramento em massa feminino, materializado pela dominação de corpos e mentes negras.

A POLÍTICA DE ENCARCERAMENTO EM MASSA NO BRASIL


A política de encarceramento em massa no Brasil toma corpus de genocídio da população
pobre e negra. A posição subordinada de homens e mulheres negras na estrutura das relações sociais
e econômicas no Brasil, impele esses sujeitos não somente a empregos precarizados, mas também
em alvo da violência policial.

792
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O 10° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), revela que a polícia brasileira
encontra-se entre as polícias com maior taxa de letalidade no mundo, em síntese, a polícia que mais
mata é aquela que tem mais policiais mortos. Somente em 2018, 343 policiais civis e militares foram
assassinados, em contraponto, as mortes decorrentes de intervenções policiais assumem a cifra de
mais de 6 mil vidas ceifadas em 2018, ou seja, 11 a cada 100 mortes violentas intencionais, foram
provocadas pelas polícias.
Com um número de aproximadamente 17 pessoas mortas por dia em 2018, no Brasil “o uso
rotineiro da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil
[...], as execuções sumárias e os desaparecimentos inexplicados geram um clima de terror entre as
classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado” (WACQUANT,
2001, p. 09).
O avanço do Estado Penal apresenta uma paradoxalidade, para Wacquant (2001) ao passo que
se pretender “remediar” com mais Estado Policial e Penitenciário, o menos Estado Econômico e
Social é a propria causa-efeito da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva.
Cabe salientar, que o Estado Penal não é sinônimo de simples aumento de encarceramento
como substituição das políticas sociais em sua totalidade, mas de uma política estatal de
criminalização da pobreza, ou gestão da miséria. A análise de Loic Wacquant (2015) sobre a nova
gesta da segurança aponta para dois componentes que são centrais para a estruturação do Estado
Penal: 1º transformação das políticas assistenciais em políticas de vigilância/punição e o 2º
encarceramento em massa.
O primeiro componente, para Wacquant (2015) consiste na transformação das políticas
assistenciais, destinadas ao provimento das necessidades sociais em instrumentos de controle e
vigilância das “classes perigosas”, que são compostas por trabalhadores subempregados,
desempregados, precarizados que dependem da atenção do Estado e de suas políticas para a
manutenção de sua força de trabalho e sustento da família.
Tais políticas assumem o papel de garantir que trabalhadores/as se submetam as condições
mais adversas de trabalho, não importando as condições para sua execução ou o valor da
renumeração. Essa política de workfare visa apenas garantir que esse público acesse cada vez menos
os serviços sociais do Estado. O controle da vida das “classes perigosas” acontece por meio da
criação de condicionalidades, tais como a frequência escolar das crianças, a obrigatoriedade de

793
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
formação técnica de jovens e adultos, voltada para um mercado de trabalho que nem sempre apresenta
reais possibilidades de inserção (learnfare).
O segundo componente do Estado Penal, consiste na política de encarceramento em massa,
para a contenção das “classes perigosas”. Essa política tem como objetivo estabelecer uma nova
forma de segregação social e racial, uma vez que o aprisionamento atinge prioritariamente jovens,
negros e pobres. O “enquadramento dos pobres” como refere Wacquant (2015), tem como premissa
a “guerra às drogas” sob o manto de combate intensivo ao tráfico de drogas, a política de
encarceramento tem multiplicado nos últimos anos os índices de aprisionamento do subproletariado.

A penalização serve aqui como uma técnica para a invisibilização dos “problemas” sociais
que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode ou não se
preocupa mais em tratar de forma profunda, e a prisão serve de lata de lixo judiciária em que
são lançados os dejetos humanos da sociedade de mercado. (WACQUANT, 2015, p. 21).

A redefinição do Estado na nova doxa punitiva suprime o Estado Econômico, enfraquece o


Estado Social e glorifica o Estado Penal (WACQUANT, 2001). O novo senso comum, visa
criminalizar a miséria e normatizar o trabalho precarizado, responsabilizando os sujeitos pela sua
condição de miserabilidade, situando-os na encruzilhada entre o emprego precário e as medidas
vexátorias e vigilantes das políticas assistenciais.
No Brasil, o neoliberalismo assume uma dimensão avassaladora ao combinar capitalismo
periférico, racismo estrutural, colonialismo e a ausência de experiência de um Estado Social. A
neutralização dos “dejetos humanos” é brutal, incindindo em práticas de extermínio da população
negra e residente das “áreas sensíveis” (bairros pobres e degradados) dos centros urbanos.
Para Alexander (2017), as sociedades após o fim das políticas segregacionistas como as do
Jim Crow322 nos Estados Unidos, passam a construir novos mecanismos para discriminar, excluir e
desprezar as pessoas racializadas. Para autora estadunidense, o sistema de justiça criminal começa a
ser utilizado como principal forma para criação de rótulos e estereótipos que transformam as pessoas
não brancas, em especial, as negras em criminosas e estupradores.

322
São chamadas leis de Jim Crow, as leis que oficializaram o sistema de segregação racial nos estados do Sul dos
Estados Unidos entre os anos de 1876 a 1965, no entanto, ressalta-se que mesmo que os estados do Norte não
tenham promulgado oficialmente as leis segregacionaistas, as práticas de segregação perpassavam todo o corpo
social (ALMEIDA, 2017).
794
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para Davis (2016), o mito do estuprador negro consubstancia-se na elaboração de leis que
foram elaboradas para a proteção de mulheres (filhas e esposas) dos homens das classes altas da
sociedade estadunidense. A autora revela, que entre 1930 a 1967, dos 455 homens executados
condenados por crimes sexuais, 405 eram negros.
Na história dos Estados Unidos, segundo Davis (2016, p.178) “a acusação fraudulenta de
estupro se destaca como um dos artifícios mais impiedosos criados pelo racismo. O mito do
estuprador negro tem sido invocado sistematicamente sempre que as recorrentes ondas de violência
e terror contra a comunidade negra exigem justificativas convincentes”.
Nessa esteira analítica, Alexander (2017, p. 36) considera:

Uma vez que você tenha sido rotulado de deliquente, as velhas formas de discriminação – no
momento de conseguir um emprego ou moradia, no momento de supressão do direito de voto,
na restrição de oportunidades educacionais, na exclusão do programa de vale-alimentação e
de outros benefícios públicos ou na exclusão de participação de júris – tornam-se subitamente
normais. Na condição de criminoso, você praticamente não tem mais direitos, e
possivelmente terá menos respeito do que um homem negro vivendo no Alabama na época
do Jim Crow. Nós não acabamos com as castas raciais nos Estados Unidos; nós apenas as
remodelamos.

O aprisionamento é uma política central do Estado no contexto contemporâneo,


fundamentando uma estrutura de criminalização da pobreza, segregação social e racial de uma
população que Wacquant (2015) classifica como duplamente penalizada, material e simbolicamente.
No Estado Penal, ambas as políticas penal e assistencial assumem um caráter punitivo, onde
a política assistencial passa a ser responsável em diminuir os riscos que são colocados pela classe
trabalhadora, incindindo para seu aceite em trabalhos precários, retomando a velha lógica dos pobres
merecedores e dos pobres indolentes.
Nesse sentido, é possível asseverar que as políticas assistenciais organizam-se para a efetiva
ação de vigiar e punir, ou seja, esse “enquadramento” cria condições não somente de expropriação,
mas de apropriações de subjetividades, pois os sujeitos e suas famílias devem atender ao “padrão
comportamental” imposto pela política, enquanto condição de acesso ao benefício.
Importa ressaltar, que as políticas de segurança não tem seu surgimento no aumento da
criminalidade. Wacquant (2015) adverte que a mudança no olhar da sociedade e do Estado em relação
as populações economicamente despossuídas e socialmente degradadas, são a gênese do aumento
no investimento de políticas criminalizatórias.

795
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em sociedades periféricas como a brasileira, a dominação simbólica é uma estratégia perversa
com profundos impactos psicossociais nas populações pobres que não raras vezes acabam
internalizando valores de autodesvalorização e culpabilidade pelas violências, desigualdades e
opressões vivenciadas. O aprisionamento dos corpos negros é uma das faces perversas do Estado
Penal em sua vidas.

A REALIDADE DO SISTEMA PRISIONAL FEMININO NO BRASIL


O aumento nos números de aprisionamento feminino no Brasil é alarmante, segundo o
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2012), entre os anos de 2000 a 2012 o índice elevou-
se em 256%, levantando questionamentos acerca da realidade que essas mulheres enfrentam no dia-
a-dia dentro das instituições penais do país.

O elevado crescimento da população feminina no sistema prisional e a alta taxa de ocupação,


em detrimento da capacidade estrutural e condições inadequadas no cárcere, favorecem a
vulnerabilidade das pessoas em situação de privação de liberdade e tanto sustenta quanto
agrava a não preservação ou a violação dos direitos humanos. (OLIVEIRA, 2013 apud
SOUSA et al., 2019, p. 02).

Quando se trata de encarceramento feminino é preciso compreender para além do marcador


de gênero, para que dessa forma seja possível vislumbrar de maneira mais abrangente a real situação
dessas mulheres em cárcere. O encarceramento em massa feminino, oriundo, principalmente pelo
tráfico de drogas, vem trazendo à tona as facetas mais profundas da desigualdade social, racial e de
gênero, de modo a tornar a vida das mesmas uma grande fonte de injustiças.
Um fator importante, a ser elencado na discussão sobre a desigualdade de gênero no sistema
prisional é a presença de uma dupla punição a essas mulheres, que Carvalho e Mayorga (2019, p. 02)
apontam de forma concisa no trecho a seguir:

[...] observamos que, sobre as mulheres que ousam cometer práticas tipificadas como
criminosas, recai uma dupla punição: as sanções penais previstas nas leis e nos códigos, mas,
também, os imperativos das normativas de gênero, com as suas definições e prescrições do
que é - ou deveria ser - a Mulher.

A dupla punição efetuada pelo aparelho estatal e societário para Maestro (2019), expressa-se
no direito de mulheres que são mães de cumprir sua prisão em regime aberto (Lei n°
13.256/2016). Entre os principais argumentos para a negativa do recurso estão os “juízos
796
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
morais”, sobre a competência da maternidade de mães encarceradas pelo tráfico e, sua presença na
vida dos filhos é benéfica ou não.
É de suma importância, salientar que de acordo com os dados do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2018) a percentagem de mulheres presas grávidas ou com
filhos é de 74% e o de prisão por tráfico é nada menos que 60%. Logo, a realidade apresentada por
Maestro (2019), mostra que o machismo estrutural tem efeitos nefastos sobre as mulheres, em
especial, as encarceradas.
Os responsáveis legais encarregados em julgar o trâmite dos pedidos de habeas corpus dessas
mulheres, usam da moral e do seu poder para manter de forma ilegítima as mesmas no poderio do
Estado, não levando em consideração os direitos das mães, nem mesmo no direito da criança em ter
o vínculo familiar mantido.
Um ponto importante de ser verbalizado é a de que muitas vezes, a guarda de seus filhos vem
a ser retirada sem qualquer aviso prévio, acarretando em mais sofrimento para essas mulheres que
encontram-se anuladas pelo sistema prisional brasileiro. A defensora pública Maíra Diniz (2019, on-
line) refere que “[...] há casos em que as mulheres nem mesmo são avisadas de que perderam a guarda
dos filhos, ou que o Estado considera seu desaparecimento ou abandono sem procurar saber se estão
presas ou não”.
No meio da guerra às drogas, as desigualdades também estão presentes, as mulheres são
vistas como um “elo fraco”, pois atuam na parte mais baixa da cadeia do tráfico, muitas vezes para
ter condições de manutenção da própria casa (CASTRO, 2017). Dessa forma, podemos compreender
que o machismo estrutural, acomete o tipo de tarefas que essas mulheres são designadas a se submeter,
no caso tarefas consideradas descartáveis, como mulas (CASTRO, 2017).
O número de presas por tráfico tem índices exorbitantemente altos, visto que quanto mais
baixo o nível do sujeito na hierarquia, mais facilmente são efetuadas as prisões. O tráfico trás a
chamada “tripla sentença”, que são outras diferenças entre homens e mulheres, a mesma se constitui,
primeiramente na discrepância do poder hierárquico, seguida da violência de policiais do sexo
masculino na obtenção de propinas sexuais e ofensas às mulheres e por último, mas não menos
importante, a situação de precariedade do encarceramento que as mesmas enfrentam, não tendo seus
direitos básicos garantidos, como informa Castro (2017).

797
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quando analisado mais cuidadosamente, os dados do Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (INFOPEN, 2018), revelam que as opressões de gênero, raça e classe estão
interseccionadas, constituindo desse modo os alicerces do aprisionamento e do envolvimento de
mulheres na criminalidade. Exemplo disso, é que 62% das presas são de cor não branca (negra,
amarela, indígena, outras) e 66% sequer chegou a completar o ensino médio.
Com a percepção crítica dos dados elencados acima, pode-se compreender que as mulheres
até então privadas de liberdade, tiveram privações de direitos muito antes dos crimes cometidos.
Afinal, a Constituição Federal atual, promulgada em 1988, traz em seu corpo, os direitos individuais
e coletivos e também os direitos sociais (Art. 5º e 6º, respectivamente). Dessa forma, as estatísticas
apresentadas vão de encontro com as pregorrativas desses direitos constitucionais, deixando
escancaradas as desigualdades sociais e raciais não só no sistema prisional, mas no país como um
todo.
No momento, em que essas mulheres têm seus direitos constitucionais negligenciados ou até
mesmo, negados, verifica-se as diferentes faces da desigualdade, com o aumento exponencial do
encarceramento seletivo de pessoas no Brasil. A nova segregação, aniquila a possibilidade desses
sujeitos construírem novos projetos de vida e romperem com o ciclo da pobreza e exclusão social.
As ondas cíclicas de desemprego que perpassam o país, também afetam em uma proporção
sumariamente maior as pessoas negras. Em dados estatísticos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2017) e desenvolvidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (PNAD Contínua, 2017), apontam que 14,5% dos negros e 13, 6% das pessoas
pardas se encontram em situação de desemprego, enquanto brancos somatizam apenas 9,5% na
mesma situação.
Nesse sentido, é possível vislumbrar que as oportunidades para empregos lícitos entre pessoas
brancas e negras são discrepantes, rompendo assim, o direito constitucional desses sujeitos de terem
empregos dignos. Essa realidade impactará profundamente as mulheres negras que já sofrem
cotidianamente com o machismo e racismo estrutural.
As mulheres negras são a maioria dentro do sistema prisional no Brasil, a respeito do óbice
das mesmas em conseguir empregos que não sejam considerados ilícitos, a pesquisa “A Cara do
Cinema Nacional” efetuada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), revelou que

798
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
os filmes brasileiros de maiores bilheterias entre os anos 2002 e 2012, nenhuma mulher negra se
encontrava com o cargo de diretora.
A baixíssima representatividade de mulheres negras em ambientes de desenvolvimento
cultural como o cinema, fomenta não obstante a desigualdade de gênero, como a de raça, que leva
essas mulheres a submeterem-se a empregos que podem acarretar em seu encarceramento. A falta de
oportunidades, além de ser um fator presente no pós-prisão, também está presente aos motivos para
a reclusão de liberdade.
O encarceramento em massa de pessoas do gênero feminino mostra que a desigualdade social
e de gênero afetam também a forma como a sociedade enxerga essas mulheres. Desse modo, Cunha
(2010, p. 02) reflete que “[...] o grau de submissão, de sujeição e inferioridade que as mulheres
vivenciaram durante séculos esteve também amparado no conhecimento divulgado sobre estas,
constantemente associadas às categorias desviantes e inferiores”.
Importante salientar, a perversidade do sistema prisional feminino no que tange a omissão na
questão da saúde mental e alimentação das mulheres que estão em reclusão de liberdade. Embora, o
direito à alimentação seja um direito universal desde 1948 com a Declaração dos Direitos Humanos
e mais, especificamente, no Brasil com a emenda nº 64 em 2010, esse direito universal não está sendo
validado na vida das mulheres em cárcere.

A ONU estabelece regras mínimas para o tratamento de reclusos, adotadas também pelo Brasil
e conhecidas como regras de Nelson Mandela. Estas norteiam princípios básicos para o
comprometimento do Estado com a dignidade da pessoa em situação de cárcere e, no que
compete à alimentação, orienta que “a administração deve fornecer a cada recluso, a horas
determinadas, alimentação de valor nutritivo adequado à saúde e à robustez física, de qualidade
e bem preparada e servida. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, on-line.)

No entanto, a realidade não condiz com as premissas desses órgãos nacionais e internacionais
no tratamento das encarceradas no país. Dunk (2018) aponta que a fome seria um instrumento de
penalização nos presídios que viria a remeter aos cenários de misérias ligados à história do Brasil,
lembrando o modelo colonial.
Para Rudnick e Passos (2012), nas instituições femininas há registros de que muitos
estabelecimentos não garantem as mínimas condições de uma alimentação adequada, e a população
carcerária reclama da qualidade das refeições, relatando que, não raras vezes, são servidas azedas
e estragadas ou com aspecto de podre.
799
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quando se trata da situação da saúde mental das encarceradas, enquanto, um problema de
saúde pública e até mesmo de segurança, a situação não está muito longe da realidade das condições
alimentícias dentro do sistema, visto que ambas as questões vem a ter uma defasagem, no que diz
respeito aos direitos das detentas enquanto sujeitos de direito no Brasil.
Considerando as orientações da cartilha do Ministério da Saúde de 2014 denominada como
“Plano Nacional da Saúde no Sistema Penitenciário”, as condições de confinamento são
determinantes para o processo saúde-doença. Ressalta-se, que dada à precariedade do sistema
prisional, podem surgir inúmeros transtornos de saúde que se acrescentam aos pré-existentes,
agravando-os, causando prejuízos maiores aos modos de vida dessa pessoa. (SANTOS et al.,2012).
A saúde psíquica dessas mulheres não está atrelada a um conjunto de fatores como pode-se
constatar nas reflexões de Santos et al., (2017, p. 03) “a necessidade de observar o ser humano do
ponto de vista de uma totalidade torna difícil desvincular saúde física de saúde psíquica ou mental”.
Assim sendo, a saúde mental dentro do sistema prisional fica a mercê da superlotação que
torna o ambiente insalubre para a vivência das mesmas, assim como da qualidade de alimentação que
é ofertada, a ruptura forçada dos laços maternos, as negações de direitos fundamentais que afetam
suas subjetividades e vidas. Além disso, não se pode desvincular os impactos das privações e
condições de vida que as levaram ao ambiente e a experiência prisional como um todo.
De um modo geral, ao se abordar a realidade do sistema penitenciário feminino no Brasil,
considerando os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias ( 2018) e
informações com diversas/os autoras/es de áreas de estudos diferentes, vê-se uma realidade sofrida,
com diversas privações que tornam a vida dessas mulheres tão esquecidas pelo sistema judicial e pela
sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se nesse artigo, refletir sobre a atuação punitivista do Estado sobre as mulheres
racializadas no Brasil que sofrem com as agruras do encarceramento. A constituição do Estado Penal
à brasileira acaba por agravar as históricas e profundas desigualdades sociais, raciais que se
entrecruzam com a desigualdade de gênero.
A política do encarceramento feminino em massa, tem se evidenciado como uma
estratégia eficaz para a segregação racial das populações mais desfavorecidas na sociedade. O

800
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
racismo estrutural, elemento essencial, para a constituição do Estado Penal tem se expressado não
somente na precarização dos empregos e ausência de possibilidades de reinserção das mulheres que
saem do cárcere, mas sobretudo, na truculência das intervenções policiais, que violam os corpos e a
dignidade das mulheres racializadas no Brasil.
O aumento expressivo do aprisionamento carrega consigo a necessidade de se compreender o
que impele as mulheres a ultrapassarem a linha tênue entre atos lícitos e ilícitos. A população feminina
que se encontra em cárcere tem raça e classe bem definidos, trazendo à tona as desigualdades
cotidianas que se transmutam para o espaço da prisão, aprofundando em diversas outras formas de
violação de direitos.
Há urgência que os debates e estudos sobre o encarceramento feminino sejam transformados
em ações e estratégias que visem enfrentar e destruir todo um sistema que atua para a segregação
social e racial de parte da população brasileira. As condições desumanizantes das prisões brasileiras
revelam não apenas o descaso do Estado, mas a conformação de uma política punitivista para o
encarceramento de indivíduos que são considerados dejetos humanos.
São necessárias estratégias mais abrangentes, que consigam permear e perpassar as lacunas
mais profundas que as diversas faces das desigualdades deixam na vida dessas mulheres, para que
dessa forma a dignidade desses indivíduos possa ser restaurada, ou ao menos que seu sofrimento seja
minimizado.

REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro
Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017.

ALMEIDA, Silvio; DAVOGLIO, Pedro. Nota sobre a tradução. IN: ALEXANDER, Michelle. A
nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo,
2017.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019.

BRASIL. Constituição. República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado


Federal, 1988. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-
5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 16 de setembro de 2020.

801
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. 1ª edição. 2004.
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.pdf. Acesso em: 12 de
setembro de 2020.

Brasil. Câmara dos Deputados; Senado Federal. Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro
de 2010. Brasília, 2010. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm. Acesso em: 18 de
setembro de 2020.

CARCERÓPOLIS. Unidades Prisionais. São Paulo, 2020. Disponível em:


https://carceropolis.org.br/dados/. Acesso em: 13 de setembro de 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

CARVALHO, Daniela Tiffany Prado de; MAYORGA, Claudia. Contribuições feministas para os
estudos acerca do aprisionamento de mulheres. Revista Estudos Feministas, vol.25 n.1.
Florianópolis, 2017. Disponível
em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2017000100099&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 15 setembro de 2020.

CASTRO, Helena Salim de. Mulher: o elo mais fraco da “guerra às drogas”. Terra em Transe. 24
abril, 2017. Disponível em: https://outraspalavras.net/terraemtranse/2017/04/24/o-elo-mais-fraco-da-
guerra-as-drogas/. Acesso em: 15 setembro de 2020.

CUNHA, Elizangela Lelis da. Ressocialização: o desafio da educação no sistema prisional feminino.
Cad. CEDES vol.30 no.81. Campinas, 2010. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622010000200003. Acesso em:
14 de setembro de 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DOLCE, Julia. SILANO, Ana Karoline. FONSECA, Bruno. Duplamente punidas. Agência Pública.
25 abril, 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/04/duplamente-punidas/. Acesso em: 15
setembro de 2020.

DUNCK, José Agusto Magni. Alimentação, prisão e pena a manutenção de vidas à custa da
própria substância do indivíduo. Dissertação para o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. 2018. Disponível em:
https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/8977/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-
%20Jos%C3%A9%20Augusto%20Magni%20Dunck%20-%202018.pdf. Acesso em: 14 de setembro
de 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores IBGE. Pesquisa


Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Quarto Trimestre de 2017. Disponível em:

802
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2017_4tri.pdf. Acesso em: 18 de
setembro de 2020.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF,2005.

FARIELLO, Leticia. Conselho publica tradução das Regras de Mandela para o tratamento de
presos. Agencia CNJ. Brasilia, DF, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-publica-
traducao-das-regras-de-mandela-para-o-tratamento-de-presos/. Acesso em: 18 set. 2020.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública.


Ano 13. 2019.

INSTITUTO AVANTE BRASIL. O sistema penitenciário brasileiro em 2012. 2014, 68 slides.


Disponível em:
http://www.depen.pr.gov.br/arquivos/File/transparencia_carceraria/LEVANTAMENTO_SISTEMA
_PENITENCIARIO_2012.pdf. Acesso em: 17 de setembro de 2020.

INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. ITTC Analisa: Infopen Mulheres 2016 e


marcadores sociais da diferença. Disponível em: http://ittc.org.br/infopen-mulheres-2016-e-
marcadores-sociais-da-diferenca/. Acesso em: 15 setembro de 2020.

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias Infopen Mulheres. 2ª ed. Brasília, DF, 2018. Disponível em:
https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf.
Acesso em: 15 de setembro de 2020.

SANTOS, Márcia Vieira dos; et al., Saúde mental de mulheres encarceradas em um presídio do estado
do Rio de Janeiro. Texto contexto - enferm. vol.26 no.2. Florianópolis, 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072017000200314&script=sci_arttext&tlng=pt.
Acesso em: 13 de setembro de 2010.

SOUSA, Luciana Maria Pereira de. et al., Regime de escassez: a alimentação no sistema
penitenciário femino. Scielo, 2019. Disponível em:
https://www.scielosp.org/article/csc/2020.v25n5/1667-1676/pt/. Acesso em: 16 de setembro de 2020.

TOSTE, Verônia; CANDIDO, Marcia Rangel. O Brasil das telas de cinema é um país branco.
Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, UERJ. Rio de Janeiro. Disponível em:
http://gemaa.iesp.uerj.br/infografico/infografico1/. Acesso em: 15 de setembro de 2020.

WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda
punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

WACQUANT. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 2001.

803
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CÁRCERE, GÊNERO E LITERATURA: A MULHER PRESA FRENTE ÀS
PERSPECTIVAS DE UMA SOCIEDADE OCIDENTAL PATRIARCAL

Alana dos Santos Noia323


Resumo: O presente estudo tem como objetivo perceber as contigências de gênero e cárcere a partir de um olhar ante o
realismo machadiano/casmurriano. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, nutrida, majoritariamente, por
instrumentos documentais tais quais, destacamos, os produzidos por Assis (1899), Schwarz (1997) e Espinoza (2004). As
compreensões advindas de um conto que mais se reverbera, comumente, por uma (in)fidelidade feminina ressaltam a
(re)produção, através de marcadores de gênero, de um “ser mulher”. Em compasso, as prisões femininas revelam-se
dispositivos gendrificados que à mulher presa empreendem de modo institucional um processo de aprisionamentos
informais pelos quais passamos outrora e hodiernamente. Por fim, algumas das experiências hostis e desumanas a que são
submetidas, especialmente, as mulheres-mães presas no sistema de que falamos expõem de que modo agem diretamente
os artificios patriarcais nesse espaço.

Palavras-chave: Cárcere; Gênero; Mulheres; Literatura machadiana.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho surge da inquitação de percebermos a mulher presa como objeto constante
de mais do que uma sentença penal condenatória e tem como pretensão compreender de que modo
marcadores de gênero, nos ambientes prisionais femininos, veem-se potencializados e se fazem de
explicações àquele extrapolar punitivo que está, pensamos, por exemplo, no forte descaso e abandono
perpetrados tanto pelo família, quanto pelo Estado.
Assim sendo, primeiro a partir de comprensões no entorno de um processo de constituição de
um “sujeito feminino” e, após, pensando de que modo este faz e perfaz a mulher presa e todo o seu
entorno, colocamo-nos a estudar, porque àqueles marcadores vemos elucidar, a incidência persistente
das estratégias de dominação misóginas e machistas sobre nossos corpos, estejam eles “atrás das
grades” ou não, sobre nossos movimentos e espaços possíveis de estarmos.
Desse modo, buscando pensar certas dinâmicas que percorrem o aprisionamento de mulheres
em nosso país e entendendo encontrarmos delas demonstrações nas formas mais plurais de
conhecimento, tais quais são os escritos realistas oitocentistas de Machado de Assis, é que buscamos
compreender: Sob as perspectivas de gênero, quais as intersecções entre a vivência do cárcere e a
literatura machadiana/casmurriana?

323
Graduanda do curso de Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco (UniRios). E-mail:
alananoiadir@gmail.com
804
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para isso, determina-se objetivo geral compreender as perspectivas de gênero e cárcere, a
partir de um olhar frente à literatura machadiana/casmurriana, ao passo que instituem-se específicos:
I) Analisar práticas socioculturais, sob uma perspectiva machadiana, frente às questões de gênero, II)
Estudar as perspectivas carcerárias e o lugar da mulher presa, a partir da compreensão de Dom
Casmurro e III) Compreender aspectos de gênero e cárcere a partir de um olhar frente à literatura
machadiana/casmurriana.
O presente estudo, à academia (conservadora e, ainda, relutante ao cárcere sob a ótica da
categoria sexo/gênero) nos referindo, justifica-se porque discutir a vivência da mulher presa por
delinquir, mas, para além disso, submetida à “moralidade”, permite-nos o aprofundamento na
temática e possibilita-nos pensar novos modos, quais sejam tanto humanos quanto sensíveis, de
“guiar” esse ius puniendi.
Assim, ao tempo em que, pessoalmente, o trabalho também ocorre porque pensamos
necessária a constante revisitação dos espaços que ocupa quem historicamente vítima de
subaltenização é, tais como o são as de corpos ainda inseridos numa categoria mulher, socialmente,
justifica-se por demonstrar a realidade do feminino (sempre) encarcerado através do sexismo e
machismo, instrumentalizados pelas relações de poder e opressão patriarcais.
A citar os trajetos metodológicos pelos quais percorreu a pesquisa, desenvolve-se ela pelo
método dedutivo, por meio de pesquisas exploratória, descritiva e bibliográfica, logo, com o uso de
instrumentos preponderantemente documentais, sendo a abordagem a qualitativa e, ainda, a análise
de conteúdo a técnica de análise de dados a nos contemplar. Além disso, ressaltamos, utilizamos-nos,
com a inserção das palavras-chaves aqui elencadas e o critério do idioma (português), das bibliotecas
virtuais Scielo e Google Scholar.
Assim sendo, voltamo-nos, então, a compreender de que maneira age no sistema prisional
feminino um patriarcado que ainda a tudo ordena, lugares determina e hierarquias busca manter,
porque também e, em especial, a mulheres (sentenciadas ou não) continua a reger; e, por isso, a
também pensar de que modo é elucidada a responsabilidade daquele na solidão, sofrimento,
invisilibização, esquecimento e condições de sobrevivência tão precárias na qual se vê a mulher que
ocupa espaços prisionais.

GÊNERO, SOCIEDADE E CULTURA NO CONTEXTO


MACHADIANO/CASMURRIANO
805
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tomando por base a sociedade europeia e o processo de colonização que, a priori, vivemos,
bem como considerando alguns de nossos interesses na manutenção de uma ordem patriarcal como
geratriz das relações de gênero, a presente seção busca elucidar parte da trajetória da inserção dos
corpos de uma ainda categoria mulher e, portanto, o existir desse grupo no que pensamos ser um
(não)lugar.
Nesse sentido, pensando o lirismo casmurriano com o qual também nos ligamos, partimos de
uma espécie de ficcção do tribunal por onde, num embate moral-político, percorrem Capitu, Bento
Santiago e o leitor, novo “personagem” que, porque vemos numa persistente simplificação de um
romance em uma (in)fidelidade feminina, recebe pouco mais de nossa atenção (BAPTISTA 2003
apud Franchetti, 2009; SCHWARZ, 1997).
Assim, compreendo quem esse legente é e/ou de que modo nos construímos no exercício da
leitura, se o realismo, como o de Machado, exprime o desejo de representar a natureza da sociedade
da qual tratamos e se, por isso, é que podemos perceber ainda mais, como o fazemos, a década de
1870 como grande influenciadora do autor, torna-se caminho inconteste a compreensão sobre qual
sociedade brasileira e, portanto, de quais viventes, antes de leitores, estamos a discorrer (GLEDSON,
1991; CHALHOUB (2003).
Com efeito, ao tempo da exploração colonial, sabemos que foi o Brasil espaço de relações
atravessadas e verticalizadas pelo poder ainda mecanizado, principalmente, por valores cristãos
inseridos na família e, com esta, pelas formulações do “ser” que, nas múltiplas hierarquias, normas
de convivência, padrões comportamentais, tornaram-se intrínsecos ao contexto mulher/homem.
Dessa forma, quando da análise de alguns desses vínculos, tínhamos, à época, por exemplo,
no que chamou Schwarz (1997) de molécula social que, para além das relações de favor, das relações
escravagistas e todos os seus periféricos, era ainda a figura da parentela, a qual pode ser traduzida,
simploriamente, na relação entre uma determinada autoridade (central) paternal, normalmente,
exercida pela figura masculina e os que a esse ente deviam um chamado respeito filial.
Nesse sentido, compreendendo, conforme Freyre (1936) quando de suas reflexões sobre a
persistência da grande família rural da Colônia em condições de cidade e europeização oitocentista,
no contexto casmurriano, por ocasião primeira da viuvez, mas “por agir” para Deus-Padre-Pai-
Homem, localizava-se aquela em D. Glória e em seus periféricos, José Dias que, por morada,

806
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
prestava serviços; os parentes, por proteção; os escravizados; e até Bento, filho e por ela com vida
traçada-prometida.
Desse modo, reconhecemos nós que a hierarquia havia ainda que na “família”, e a isso
podemos pensar, pois, como o fez Schwarz (1997), ao que nos impelia o sistema escravista ao qual
há pouco ainda pertencíamos, em que poder e ausência da dissociação sobre o que é meu e o que ao
outro pertence (a liberdade, por exemplo), para além da relação senhor-escravizado, convergiam-se e
davam espaços a outras verticalidades, a citar esta no entorno de um poder-paterno que abarcava
esposa e filhos, especialmente.
Pensando nesta forma última de relação, com o dela nascedouro, para Gledson (2000), o
casamento, numa concepção burguesa e masculina, já era corolário de diversos jogos sociais, nos
quais homem e mulher, transitando do amor-livre à instituição cristã, percorriam e acabavam por
resumir o sentimento que os envolvia: indo dele (atribuído à figura feminina) a uma mera
formalização (masculina) da relação, a um título de propriedade, a um rígido e são “amor”.
Assim, nesse processo, ao tempo em que era ideia que deixasse de existir um como o era e
que se tornasse o outro marcha a dar continuidade ao “negócio” entre as duas pessoas e ao que delas
advinha, era essa oposição de personas, para a lógica matrimonial, ponto fundamental dessa espécie
de pacto e, como veremos, para o próprio “funcionamento” da sociedade no que corresponde à
continuação das outras relações como o eram e a centralidade do poder.
Buscando, pois, localizarmos os dois eixos primários desse vínculo, no que chamou Gledson
(1991) de noção precária da própria identidade, já era real e imediato, com o casamento, o translado
entre o ser filho e o ser marido-proprietário de terras, de homens e de uma esposa; entre o ser
dependente e o tornar-se detentor de autoridade patriarcal, sendo esta acompanhada por uma série de
questões “intrinsecamente masculinas”, a exemplo do controle, do ciúme, do ser a quem se devia
obediência e do poder de imposição.
Por sua vez, sendo o “macho castrado”, ao feminino era compreendido o eixo da ausência de
movimentos, tais quais o de pensar por si, o de falar por si, o de ter objetivos fora do ambiente
parental, o de dar passos maiores que os que lhe eram permitidos ou mesmo, num compasso com a
natureza do matrimônio, o de ser mais que um bem acessório da relação, sendo, portanto, a inércia,
paradoxalmente, seu campo de atuação (SCHWARZ, 1997).

807
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Desse modo, quando buscamos refletir qual ou quais são as alçadas dramáticas da narrativa
com a qual dialogamos e a sociedade atual que buscamos pensar, percebemos que, antes de um
(masculino) sentimento de posse ou de um problema na exteriorização de qualquer emoção, estamos,
na verdade, diante de questões muito mais abrangentes e, em nosso pensar, mais complexas, tais quais
são as de organização e crise na ordem paternalista e senhorial (GLEDSON, 1991).
Nesse contexto, é que percebemos os cortornos maiores desses nossos períodos enviesados e
pautados por uma espécie de mitologização contínua no entorno do que se pinta ser um movimento
anarquista sexual, por exemplo, ainda hoje tão presente quanto (a exemplo de outros micromíticos
como a ideologia de gênero), mas sendo mesmo externalizado, inicialmente, pelas novas figuras da
“desordem dos gêneros”, uma delas a pessoa da nova mulher, de “novas Capitus”.
A isso compreendendo, conforme Gledson (1991), com certo pânico moral, num momento de
percepção de “novas identidades”, passaram a ser postas estas como ameaças ao casamento, à família
burguesa e, principalmente (já que nem mesmo as solteiras e crianças do sexo feminino a esse modelo
de vivência escapavam/escapam), às fronteiras entre os sexos (gêneros) e suas posições
hierarquizadas que demarcam toda uma ordem social, econômica e, mesmo, simbólica.
Sendo assim, desde a gênese desse processo de desnaturalização da dominação, do
aprisionamento, dos silenciamentos e, por conseguinte, do (re)pensar as liberdades, eram rebeldes os
que àqueles questionavam e a esse questionamento incorporavam, tais quais quem, com as fugas,
buscava mais que as senzalas; como o eram, e são, insubordinadas e carentes de “ajustes” as mulheres
associadas à força, objetividade, humor, poder e, mais importante, ao ir de encontro a um (não)estar
(SCHWARZ, 1997).
Desse modo, então, compreendemos em quais passos iam a formação de “medidas
preventivas” a um “caos social”, a exemplo da educação, tida como meio emancipatório, que às
mulheres relacionou-se por muito a somente o necessário ao exercício da maternidade e ao ser esposa;
e em quais estavam a repressão, quando os lugares de inferiorização da mulher (como o de
“desquitada”, o de prostituta, o de adúltera) passaram a ser pensandos, orquestadros, mas também
repensados e reoquestrados.
Assim, nessa tentativa persistente de preservação de uma estrutura eurocêntrica em que se
mantém no cume a imagem referência do homem-mor “médio” (o branco, proprietário,
conservador, burguês) e na qual ainda nos encontramos, perceberemos de que forma essa relação

808
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
última, controle-castigo, vai sendo reinventada e vai estabelecendo novas formas de pensar as
trajetórias femininas, novos padrões de subalternização.

A PRISÃO É MECANISMO DE PODER QUE CONTRIBUI NA REPRODUÇÃO DE PAPÉIS


SOCIALMENTE IMPOSTOS

Nesta seção, discutiremos de que modo as desigualdades de gênero, tais quais as diferenças
(imposições) hierárquico-comportamentais das quais tratamos, no cárcere e antes, são operadas na
punição feminina, sendo esse gerir, em nossa premissa, justificativa do lugar ou papel que a mulher
assume na situação de grades.
Desse modo, a começar, distante de ser lócus de “saídas” subsidiárias ou excepcionais ao
crime (BRASIL, 1988), o sistema prisional brasileiro há tempos vem abarcando um projeto ainda
colonial que, por meio de um “mar” de dispositivos legais, processos, procedimentos e penas os quais
o fazem e perfazem, promove a inoquização de individuas/os certas/os, delimitadas/os, as/os
invisibiliza, as/os marginaliza e, portanto, materializa as mais diversas inconstitucionalidades.
Essa compreensão fática se relaciona, por exemplo e ao que percebemos, com o que pensou
Foucault (1999) sobre atuaram as prisões como parábolas da sociedade, as quais apenas reproduzem,
de modo acentuado, todos os mecanismos encontrados no corpo social, sendo como um quartel
estrito, como uma escola sem indulgência ou, ainda, sendo como a junção dessas diversas oficinas
sombrias e meticulosamente organizadas que produzem sujeições, violências e fatos que não se
vinculam, nem passam perto, por exemplo, da ressocialização.
Nesse contexto e em especial à nossa discussão porque protagonizam nas prisões a única
categoria legitimada para diferenciar pessoas presas na condição de tuteladas pelo Estado
(ESPINOZA, 2004), qual seja a do sexo (gênero), são as mulheres quem percebemos estarem mais a
sucumbir como meros objetos da instrumentalização da pobreza, do racismo, do classismo e, antes
deles, nessa nossa discussão, e os alimentando e a outras tantas estruturas, do discurso patriarcal.
Nesse sentido, tomando por base que o encarceramento (estatal) feminino vem sofrendo
grandes mudanças e elucidando parte do que até o presente pautamos, Varella (2017) nos esclarece
que, no passado, a presença feminina no ambiente prisional ficava restrita a furtos, repentes
passionais, um ou outro assalto e que a participação em quadrilhas era rara.

809
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Com o crescimento das cidades e o desenvolvimento econômico das últimas décadas, esse
quadro mudou, porque a estrutura familiar se tornou mais dispersa e os benefícios e direitos
que as mulheres impuseram ao modelo patriarcal da sociedade brasileira não se firmaram
tampouco se distribuíram de forma homogênea (VARELLA, 2017, p. 181).

Pensando nisso é que compreendemos que as discussões acerca da vivência nas popularmente
chamadas cadeias femininas, sendo estas, como pensamos, novos mediadores do estigma de punição,
requerem que saibamos que o que aqui temos por subverter é, na realidade, uma sistemática histórica
de aprisionamentos que, com as mais diversas instituições, segundo Varella (2017), buscam
(re)enquadrar socialmente mulheres aos paradigmas sociais.
Desse modo, não buscando narrar de maneira exaustiva e cronológica o processo de
criminalização dos nossos corpos, os ditos femininos, então almejando demonstrar como a construção
dos estereótipos de gênero àquele elucidam, é que visualizamos como mesmo um esboço geral das
imputações criminais às mulheres nos informa, sobretudo, um modo de “dever ser” ao passo que de
um “não ser”.
Compreendendo, quando das primeiras formas de punição ao grupo direcionadas, conforme
Angotti (2012, p. 107), estavam inseridas nelas as mulheres que “desfaziam os arranjos esperados de
esposas devotas, boas mães e bons exemplos sociais: prostitutas, mães solteiras, mulheres
masculinizadas, mulheres escandalosas, boêmias, histéricas” e a elas eram creditadas as
descontinuidades do feminino e, logo, certas rupturas sociais.
Assim, ainda no medievo, por exemplo, em que qualquer forma de “governo” se confundia
com a igreja, conforme Espinoza (2004), eram estas de que falamos postas em conventos, em
manicômios ou, ainda, como fora a caça às bruxas, eram punidas com a morte por cuidarem
minimamente de seus processos reprodutivos ou eram estupradas (com anuência de
descriminalização) em prol de um período almejado, “moderno”, capitalista.
Noutros momentos, já com as prisões pouco mais semelhantes estruturalmente ao que
conhecemos e buscando a transformação de pecadoras em “mulheres dóceis, obedientes às regras da
prisão, assexuadas e trabalhadeiras” (SOARES E ILGENFRITZ, 2002, p. 57), seguíamos situando-
nos como solo de mulheres que, quando encontradas nas ruas e distante de “seus homens”, eram
qualificadas, achincalhadas e, sem sequer aval legislativo, presas como vadias e desocupadas.
Também, com relação ao adultério que, inclusive, deixou, definitivamente, de ser crime
no Brasil, e a isso muito destacamos, há apenas 15 anos, quando antes a muitas fez reféns;

810
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
oriundos e atravessados pelos efeitos de normatização que atuam e segregam binariamente os corpos
também nos desejos e práticas (ESPINOZA, 2004), havia forte diferença entre o feminino e o
masculino, sendo aquele, numa traição, sujeito mais que imperdoável, por isso que criminalizado; e
este, o comum e aceitável.
O que percebemos, então, é que a prisão (física ou mesmo a imaterial), para as mulheres,
construiu-se como um espaço que se manifesta em discriminação e opressão, que se apresenta nos
contextos familiares, religiosos e é, ainda, na concepção que a sociedade atribui ao “desvio”, estigma
muito mais a elas que a eles, fato que fica ainda mais evidente quando buscamos qual o sentido das
instituições carcerárias às mulheres presas.
Conforme Costa (2008, apud Marques 2019), revelam elas que, a partir dos processos
pedagógicos intramuros, passam a compreender a dinâmica do ser mulher quando do papel de mães
e esposas, por exemplo; ou seja, apontam-nos para o que percebemos ser um mecanismo de ensino
que se volta a localizá-las no mundo, não em prol da redução da criminalidade e/ou segurança, mas,
com o desenho de um espaço delimitado, almejando proporcionar uma espécie de “reencontro”.
Nessa perspectiva, segundo Marques (2019), ao passo que essas compreensões materializam
1) a impossibilidade de todas nós, ainda que fora do ambiente prisional, dizermo-nos em totalidade
livres, 2) às mulheres presas, por consequência do item 1, se mostram na prescrição, metaforicamente,
de uma sequência de cadeados que reverberam o que preexiste, inclusive, ao nosso nascimento: a
docilidade, a fragilidade, a domesticidade e, por não a isso ter “correspondido”, o sentimento de culpa.
Nesse sentido, uma das principais queixas destas sobre quem falamos, por exemplo e mesmo
sendo as maiores vítimas de abandono, relaciona-se, segundo Espinoza (2004), com a angústia que
permeia o desejo de bem-estar e cuidado de suas respectivas mães, filhos, irmãos e, por vezes, de
esposos.
Assim, compreendemos que, além de lidar com a sentença penal condenatória e todos os ônus
que dela nascem, pela impossibilidade de cumprir certo mandato de gênero, convive a mulher presa
sendo, para si mesma, porque institucionalmente e socialmente fora isso o aprendido, como agente
maior de uma ruptura familiar, a quem se atribui, por exemplo, qualquer “descaminho” que venha a
tomar seus filhos, se os tiver, ou seja, como dupla trangressora.
Dessas formas, vemos que tanto o controle formal quanto o informal direcionados à vida
da mulher operam na e fazem da mulher presa objeto do somatório de todas as experiências a

811
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que somos submetidas, sendo, portanto, o “ser prisioneira” espécie de condição ad eternum que, como
veremos no próximo item, revela-se num sistema prisional feminino, dos muros às vivências práticas,
complexo em violências e violações aos Direitos Humanos das mulheres.

A SUBTALNERDIDADE DA MULHER PRESA NUM SISTEMA PRISIONAL-


GENDRIFICADO
Compreendidas as relações entre os gêneros como relações de poder as quais legitimam a
dominação do homem sobre a mulher, nesta seção, pela vivência das mulheres no sistema prisional,
estudaremos como práticas e dinâmicas carcerárias são orientadas por lógicas patriarcais e misóginas
que informam a prisão e fazem dela um espaço masculino, masculinizante e hostil.
A prosseguirmos, consoante Espinoza (2004), o crime se configura um fenômeno complexo
e resultado de vários fatores que envolvem aspectos morais, religiosos, econômicos, políticos,
jurídicos, culturais e históricos. Assim, sendo essa junção de construções sociais, pressupomos suas
mudanças de acordo com o tempo e o espaço à medida que se modificam os sistemas políticos, sociais
e jurídicos de uma comunidade.
Abordamos isso, inicialmente, porque, pensando as políticas penais junto ao “feminino”,
temos primeiro que, mesmo com a paulatina inserção da mulher no espaço público, por exemplo, ou
com as mudanças na formação e sustento das famílias atravessados com o agravamento das
desigualdades sociais, foi a criminalidade feminina (a para além dos atos contrários à família,
internamente falando; às vontades de um esposo) normatizada, conforme Marques (2019), como um
fato estranho, irrelevante.
Desse modo, buscando compreender de que modo essa estranheza se volta às violências
percebidas no sistema prisional feminino, percebemos que ela não ao acaso é quando vemos, por
exemplo, que essas experiências de que falaremos advêm também de como somos nós invisíveis em
nossas dores, porque, antes, somos, conforme Porchat (2015), abjetas ou, por isso, aquilo o qual,
corpos-marionetes, não significa para além de ser resposta ao poder masculino.
Essas compreensões, vez então que pensamos que a subalternidade da mulher presa começa
com a ausência da identidade da que “livre” é (porque reduzida à maternidade, ao ser esposa, ao ser
moça à espera dessas situações, sendo todas acompanhadas de quietude, de inércia), como um
dia aquela também o fora (ESPINOZA, 2004), encontram-se ratificadas quando percebemos, por

812
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exemplo, que mesmo respondendo às perfomances de gênero, quiçá, então, quando delas
“desviamos”, não efetivamente existimos no e para o mundo.
Exemplo disso, do feminino que está para um sujeito-mulher ideal e que, ainda assim, vê-se
tomado por desintenficação e indiferença, podemos perceber na “mãe de Brás Cubas”, e aqui
referimo-nos a Memórias Póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 1998), também machadiana a evidenciar
essas trajetórias com as quais dialogamos, porque por todo o conto assim o retratada é, sem nome,
sem um “eu”, sem sentires e quereres, apenas associada à certa produção uterina.
Assim é que vemos que, não de outro modo, seria representada Eva, por exemplo, aquela que
não se contentou em somente estar com Adão, senão como a responsável por decair o paraíso e ao
homem levar o descaminho; ou que não seria Capitu, porque mininimamente para além da família
oitocentista buscava se localizar, porque demonstrava emoção enlutada pela partida de um alguém-
homem próximo, quem ficaria distante de julgamentos contínuos.
Nessas perspectivas, aos espaços prisionais, entendemos que essas compreensões se somam
ao fato de ter sido a humanidade, no sentido de ser humano, de ter falhas compreendidas, por exemplo,
reservada ao homem e à mulher ter restado o ser fêmea que, quando “humanamente” age, errando,
por exemplo, é acusada de imitar aquele e, por isso, é objeto de correção ou de punição como se igual
fosse (BEAUVOIR, 2014).
Dessa forma, em todos esses sentidos, pensamos que são mesmo muitos os óbices ao
funcionamento digno do sistema prisional feminino, mas também masculino, porém que são as
mulheres as mais afetadas: evidências encontramos em dados múltiplos que nos dizem desde as
condições de sáude da mulher presa aos, como veremos, caóticos espaços que não atendem as
demandas dos corpos neles inseridos e, com isso, servem a evidenciar muitos outros problemas.
Nessas perspectivas, é que vemos Marques (2019) pontuar as ocasiões de fundação dos
primeiros espaços prisionais “femininos”, quando, em 1937, num prédio já existente e que fora apenas
“adaptado”, e a isso destacamos, inaugurou-se pela Igreja Católica o Reformatório de Mulheres
criminosas no estado do Rio Grande do Sul e quando, em 1941, numa seção pertencente ao Complexo
Carandiru, uma das maiores expressões nacionais do aprisionamento masculino, deu-se início ao
Presídio de Mulheres em São Paulo.
É nesse contexto que pensando, agora, em especial, a maternidade encarcerada como um
emaranhado de práticas e discursos que disputam as definições da “mãe criminosa” e visam

813
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
responder às chamadas demandas de gênero em relação ao sistema de justiça criminal, vemos Braga
(2015) refletir, por exemplo, de que modo essas arquiteturas prisionais geram à mulher-mãe presa,
em especial e através de um processo de institucionalização da vida de crianças, incremento punitivo.
Importante ressaltarmos que essas nossas últimas reflexões compreendemos nós
corresponderem com o que pensamos ser estratégia patriarcal o uso dos filhos na direção das dores
maternas, tal qual, por exemplo, Ezequiel que, por Casmurro, ao momento ápíce de seu “ser-vítima”,
então também como um modo de punição à descrita com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, quase
fora morto envenenado (ASSIS, 1899).
Nessas razões é que, nas cadeias femininas, percebemos funcionar, por exemplo, a ausência
de creches e berçários como materializadora às mães de sentimentos os mais diversos quanto
possíveis os quais, nesses espaços, atravessam certa “normalidade” (pela noção de comuns à
maternidade) quando à mulher-mãe presa chega que nem de pouco conforto pode sua criança usufruir
e que a vexação, por aí, não se encerra (BRAGA, 2015).
Então, além disso, é que também pode ser inserido, por exemplo, o que Angotti e Braga (2012,
2015) entendem por hipermaternidade o exercício superdimensionado do “ser mãe” que ocorre na
medida em que, geralmente, é essa a única atividade que podem essas mulheres desenvolverem e a
fazem, como castigo, as 24 horas do dia, sem se vincularemn então, a outro labor, aos estudos e,
mesmo, dignamente pensando, ao descanso.
Esse movimento de maternidade assídua à mulher presa, pensamos, também responde, porém
com marcadores do cárcere (maior intensidade, maior violência), ao que, pelo paternalismo, pelo
homem que em tese é um natural não cuidador (apenas auxiliar), pela sociedade patriarcal que além
de apontar mulheres como naturais mães, aponta as que, pouco, estão para si próprias, vive a mulher-
mãe “do lado de fora”: solidão, exaustão, sobrecarga.
De forma diametralmente oposta, ocorre a hipomaternidade quando, em no mínimo 6 meses,
com a separação de mães e filhos, normalmente de maneira tão brusca, porque acordam elas todos os
dias temerosas e deixam prontas todos os dias as malas de suas filhas e filhos, e enfatizadora dessa
maternidade que, pelo cárcere, sentimos, perde qualquer autonomia, essa maratona de dedicação
exclusiva chega ao fim (BRAGA, 2015).
Como vamos percebendo, a subalternidade, exclusão e violência que permeiam os
espaços prisionais femininos, elucidadas nas violências físicas (tais quais essas no entorno da

814
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
dimensão cubícula e despreparada de convivência) potencializadas pelas dores psicológicas, segundo
Saffioti (2004), tratadas mais dificultosamente inclusive, à mulher presa se mostram perspicazes,
irrestritas e crueis agentes também dos campos da alma.
Assim, compreendemos que a precariedade dessas experiências, a exemplo relevante das
maternas, vê-se confirmando todo um sistema que nos cria sujeições, a começar por quem (não)somos
no mundo, e nos cerca de modos que àquelas ratificam, sendo o Estado o reprodutor a viabilizar
vivências marcadas profundamente por expectativas que a nós, sem aval, obrigadas ao silêncio, pelo
homem no centro do mundo, dos discursos, foram impelidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho, pensando as condições e reflexos de sujeições e violências no entorno da mulher


presa consoante a constituição de um tipo de sujeito feminino evidenciado, sobretudo,
casmurrianamente, foi construído a partir das buscas pelos pontos comuns advindos dos saberes
gênero, cárcere e literatura, de modo que se partiu do seguinte problema: Sob as perspectivas de
gênero, quais as intersecções entre a vivência do cárcere e a literatura machadiana/casmurriana?
Na primeira seção, constatamos como a leitura de Dom Casmurro, mas, especificamente, a
inversão da lógica comum interpretativa que privilegia o falocentrismo, ou seja, o homem no centro
e detentor do discurso, contribue-nos a nos colocar cotidianamente em reflexão sobre como, ainda,
vez também que a Capitu vemos cotidianamente atingir, são nossas vidas simplificadas ou postas
num (não)lugar ao bel prazer masculino.
A isso, vemos usados o que ainda nossa sociedade produz e reproduz, tais quais os padrões
comportamentais, também chamados de papeis de gênero, que averiguamos contribuirem para a
manutenção de estruturais de poder, mesmo às de épocas colonias, as quais ressaltam e resguardam
quem, por exemplo, à imagem eurocentrada corresponde, tal qual o é o homem-branco-conservador-
endinheirado Bento Santiago.
Posteriormente, na segunda seção deste estudo, verificamos que a prisão se evidencia, para
além de um ambiente de confinação, à mulher presa no sistema prisional como sendo um mecanismo
conformador, ou seja, um instrumento que replica, institucionaliza e estrutura para si, na verdade,
normas já existentes, gendrificadas, as quais percorrem toda a sociedade e atuam na regulação
das vidas entendidas e ditas femininas que nela se inserem.

815
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nesse sentido é que, por não corresponder em totalidade às expectativas do ser naturalmente
dócil, silente, passivo, materno, doméstico, constatamos a mulher presa ocupante de um lugar de
aprendiz dessas normas morais, um lugar que visa confirmar como “bom”, de diversos modos, o
feminino que ao masculino se submete, um feminino que deve, dentro ou fora da prisão, manter-se
inerte.
Chegando às últimas compreensões, na terceira seção, constatamos que as experiências da
mulher presa, em especial, da mulher-mãe no cárcere corroboram sim com o que pensamos ser a
prisão feminina espaço a engendrar, além de pena advinda de sentença penal, punições fundadas em
questões e performances (ou no extropolar delas) gendrificadas, fazendo daquela duplamente
vitimada, física e psicologicamente, e do Estado agente criminoso.

REFERÊNCIAS

ANGOTTI, Bruna. Entre as leis da ciência, do estado e de Deus: o surgimento dos presídios
femininos no Brasil. São Paulo: Ibccrim, 2012.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Editora Garnier: Rio de Janeiro, 1899.

ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Ateliê Editorial, 1998.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado, 1988.

BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Entre a soberania da lei e o chão da prisão: a maternidade
encarcerada. In: Revista Direito GV, n. 11, São Paulo, p. 523-546, jul.-dez./2015.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2014.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais, 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão (R. Ramalhete, Trad.). Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999.

FRANCHETTI, Paulo. No banco dos réus. Notas sobre a fortuna crítica recente de Dom
Casmurro. In: Revista Estudos Avançados, n. 23. São Paulo: IEA/USP, p. 289-298, 2009.

816
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano. São Paulo: Global, 2006.

GLEDSON, J. Machado de Assis: impostura e realismo – uma reinterpretação de Dom Casmurro.


São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

MARQUES, Aline Fernandes. Têm mulheres na prisão, tem prisão nas mulheres: uma análise das
atividades laborais e educacionais desempenhadas por mulheres presas em estabelecimentos
prisionais mistos de Santa Catarina. 2019, 187 f. (Dissertação) Mestrado em Direito, Universidade
do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2019.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação
Perseu. Abramo, 2004.

SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. In: Duas meninas. São Paulo: Cia
das Letras, 1997.

SOARES, Barbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades.
Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. Editora Companhia das Letras, 2017.

PORCHAT, Patrícia. Um corpo para Judith Butler. In: Periodicus, v.1, n. 3, p. 31-51, mai.-out./2015.

817
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - INTERSEXUALIDADE
COMO DESAFIO DE
GÊNERO

COORDENAÇÃO
Doutorando Amiel Modesto Vieira – UFRJ/FIOCRUZ
Dra. Andréa Santana Leone de Souza – UFOB
Doutor Carlos Antônio Braga de Souza - - UFPA

818
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“DRAG QUEEN NÃO TEM GÊNERO, SEXO E NEM RAÇA”: OS PROCESSOS DE
SUBJETIVAÇÃO DAS ARTISTAS DRAGS EM CAMPO GRANDE NA PERSPECTIVA
DOS MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA

Winny Gabriela Pereira de Santana324


Guilherme Rodrigues Passamani325

Resumo: Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior em desenvolvimento no programa de pós
graduação de antropologia social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que tem por
objetivo analisar as rupturas e permanências da arte drag queen na cidade de Campo Grande a partir
da Geração Bistrô (início dos anos 2000) e Geração atual (2019-2020). Para a apresentação em
questão vou focar em minha análise de como diferentes categorias articuladas como: raça, classe,
gênero, sexualidade e geração, ajudam a compor a identidade drag queen e produzem regimes de
visibilidade. Assim, apresentarei a identidade dessas artistas, de forma mais detalhada, e refletirei
sobre a importância delas para a construção dos processos de subjetivação. Do ponto de vista teórico-
metodológico, foi realizado um levantamento bibliográfico com autores que abordam temáticas como
geração, arte drag queen, trajetória e memória. O campo foi desenvolvido a partir de etnografias em
locais que atualmente abrigam a arte drag na cidade, tais como: Parada LGBT, boates, concursos drag
queen e concurso Miss Gay. A partir desse campo, foi estabelecida uma rede para entrevistas
semiestruturadas com artistas de ambas as gerações. Foi possível concluir que mesmo as artistas de
ambas as gerações negando a existência das categorias de diferenciação para compor a sua identidade
drag, no processo de criação de suas performances o regime de visibilidade de determinadas
categorias perante ao público orienta a escolha dos elementos da performance.

Palavras-chaves: Drag queen; Performance; Geração; Marcadores sociais da diferença.

REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da realidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.

HENNING, Carlos Eduardo. As Diferenças na Diferença: hierarquia e interseções de geração, gênero,


classe, raça e corporalidade em bares e boates GLS de Florianópolis, SC. Dissertação de mestrado.
UFSC, 2008.

JAYME, Juliana Gonzaga. Travestis, Transformistas, Drag-queens, Transexuais: personagens e


máscaras no Cotidiano de Belo Horizonte e Lisboa. Tese de doutorado. Universidade Estadual de
Campinas, 2001.

324
Mestranda do curso de Antropologia Social, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Campo
Grande. E-mail: winnysantana82@gmail.com
325
Professor doutor (orientador) do curso de Antropologia Social, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
campus Campo Grande. E-mail: grpassamani@gmail.com
819
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VENCATO, Anna Paula. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens
em territórios gays na Ilha de Santa Catarina. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Santa
Catarina, 2002.

ZAMBONI, Marcio. Marcadores Sociais da Diferença. Sociologia: grandes temas do conhecimento


(Especial Desigualdades), São Paulo, v. 1, 01 ago. 2014, p. 14 – 18.

820
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONTO DA AIA: GÊNERO, CORPO TERRITÓRIO E PATRIARCALISMO

Sinara Ferreira das Neves 326


Camila de Freitas Moraes327
Paula Mello Costa328
Cristine Jaques Ribeiro329

Resumo: O dado trabalho tem por objetivo trazer reflexões acerca do romance distópico: o conto
da Aia, da autora Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985. A distopia é
ambientalizada em uma teocracia totalitária, cujo a fertilidade humana está comprometida e o governo
vigente passa a criar castas para as mulheres, de modo a visar apenas a reprodução feminina. Dessa
maneira, as questões de gênero são pensadas a partir da noção de território que se apresenta enquanto
fronteira frente ao corpo feminino e masculino, demarcando lugares de submissão às mulheres e de
altivez para os homens sobretudo, na construção da cidade de Gileard. Isto é, a partir do patriarcalismo
e do machismo, esses operam no corpo feminino pela via da violação dos direitos fundamentais das
mulheres, que perpassam desde o não acesso à educação até ao aprisionamento das aias, cuja a
responsabilidade são a de gerarem crianças para as famílias ricas de Gileard; já as mulheres inférteis
são postas enquanto educadoras ou empregadas domésticas até aquelas que são forçadas a
trabalharem em zonas tidas enquanto tóxicas. Desse modo, a partir da narrativa do conto da Aia o
objeto de análise se dará no sentindo de pensar o Estado brasileiro patriarcal como aquele que se
apresenta pela via do necropoder que atravessa o corpo feminino. Portanto, trata-se de uma revisão
bibliográfica, enquanto ao método se classifica numa pesquisa indutiva, cuja abordagem é qualitativa
e com base nos materiais ficcionais, iniciou-se a pesquisa bibliográfica, referenciada em livros e
artigos científicos selecionados através de busca no banco de dados do Scielo e do Google Acadêmico
que versem sobre as questões de gênero como autoras Luciana Ballestrin, Simone de Beauvoir dentre
outras, e bem como, da noção de necropoder de Achille Mbembe e de seus comentadores. Contudo,
o dado trabalho alude-se na crítica as classificações e normatizações do corpo feminino que
continuamente se vêem oprimidos, bem como, do Estado brasileiro que pela via do necropoder
autoriza a mortificação e a objetificação de uns corpos, em detrimento de outros. Ou seja, o direito
sob o corpo feminino é roubado pelo Estado pratriacal vigente, uma vez que, não considera esse
corpo como sujeito, mas, enquanto objeto.

Palavras-chave: Conto da Aia; Gênero; Estado brasileiro; Necropoder.

326
Graduanda do curso de Psicologia, pela Universidade Católica de Pelotas, campus I. E-mail:
synaraneves@gmail.com
327
Mestranda em Política Social e Direitos Humanos, pela Universidade Católica de Pelotas, campus I. E-mail:
camilapsi.moraes@yahoo.com.br
328
Graduanda de Serviço Social,pela Universidade Católica de Pelotas, campus I. E-mail:
paula_mello_costa@hotmail.com.
329
Professora e Doutora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos, pela Universidade
Católica de Pelotas, campus I. E-mail: cristinejrib@gmail.com.
821
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS
ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
ATWOOD, Margaret. In Other Worlds: SF and the Human Imagination. Ed. First Paperback
Edition. Estados Unidos: Anchor, 2012.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de Ciências


Políticas. Brasília, v.1, n.11, p.88-117, 9.mar.2013.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida, volume 2. 3. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2016.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.301.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato


Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARLOTO, Cássia. Maria. (2001). O conceito de gênero e sua importância para a análise das
relações sociais. Serviço Social em Revista, Londrina, v. 3, n. 2, p. 201-213.

CORREIA. Carol. Cinco violências no Conto de Aia que foram inspirados em violências contra
mulheres na vida real. Disponível em: https://janelapower.wordpress.com/2018/01/15/the-
handmaids-tale-serie/. Acesso em: 20 de julho de 2020.

MBEMBE, Achille. (2016). Necropolítica. Arte e ensaios, n.32, p. 123-152, Rio de Janeiro: UFRJ,
dez., 2016.

________________. Políticas da Inimizade. Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona Editores. 1º


edição, julho de 2017.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 8. ed. São
Paulo: Atlas, 2011.

822
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
INVISIBILIDADE INTERSEXO –DO RECONHECIMENTO DO TERCEIRO SEXO À
LUZ DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Jamille Bernardes da Silveira Oliveira dos Santos330


Valéria Silva Galdino Cardin331

Resumo: A intersexualidade é entendida como uma condição físico-biológica onde a pessoa nasce com características
relacionadas tanto ao sexo feminino quanto masculino. Diversas são as nuances intersexo, entretanto, a pesquisa buscou
dar destaque aos casos conhecidos como genitália ambígua. Isso porque, nesses casos, a abordagem médica padrão, impõe
que o recém-nascido intersexo com genitália ambígua deverá passar por exames médicos, acompanhado de equipe
multidisciplinar, a fim de designar o seu sexo predominante e, posteriormente, ser encaminhado para uma cirurgia de
correção do genital. Diante disso, por meio de pesquisa bibliográfica, tem-se por objetivo demonstrar a necessidade e
possibilidade de reconhecimento do terceiro sexo como medida de proteção dos direitos da personalidade das pessoas
intersexo.

Palavras-chaves: Intersexualidade; Terceiro Sexo; Direitos da Personalidade.

INTRODUÇÃO
A intersexualidade é caracterizada por corpos que possuem características relacionadas tanto
ao sexo feminino quanto masculino e, pode ser percebida em diferentes nuances, sendo a mais comum
os casos em que se verifica a presença do genital ambíguo, inclusive, foco dessa pesquisa.
Por não poderem ser enquadrados nem como femininos nem como masculinos, os corpos
intersexos são entendidos como patológicos e passíveis de correção, isso porque, vigora a ideia de
que apenas podem existir pessoas que se enquadrem como pertencentes à um dos dois sexos supra.
No âmbito jurídico, em especial à luz dos direitos da personalidade, questiona-se a atual
abordagem médica no trato dispensado aos recém-nascidos com genitália ambígua, porquanto, para
medicina, esses devem ser submetidos à uma cirurgia de “correção” do genital, de modo que seu
corpo seja adequado aos padrões sociais.
Essa prática médica encontra respaldo jurídico na medida em que inexiste, no ordenamento
jurídico brasileiro, qualquer dispositivo legal que trate sobre o reconhecimento dessas pessoas. Além
do fato de que, social e juridicamente, aceita-se apenas as opções feminino e masculino para fins de

330
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade de Maringá – UNICESUMAR (Bolsa Capes/Prosup).
Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Paranaense – UNIPAR. Graduada em Direito pela
mesma instituição (Bolsa ProUni). Membro do grupo de pesquisa “Reconhecimento e garantia dos direitos da
personalidade”. Advogada no Paraná. E-mail: jamillebernardes@gmail.com
331
Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente da Universidade Estadual de Maringá e no Programa de
Pós-Graduação de Doutorado e Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade do Cesumar. Pesquisadora e
Bolsista Produtividade ICETI. Advogada no Paraná. E-mail: valeria@galdino.adv.br
823
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
assentamento do registro civil, o que favorece para que as pessoas intersexos continuem invisíveis e
sejam tratadas como doentes.
Por esse motivo, a pesquisa se justifica como essencial ao debate acerca da intersexualidade
(ainda um assunto de domínio da seara médica), bem como para garantir visibilidade e
reconhecimento das pessoas intersexos. Para isso, o presente artigo possui por objetivo demonstrar a
necessidade do reconhecimento do terceiro sexo – intersexo- à luz dos direitos da personalidade,
como medida de proteção à dignidade humana e ao livre e pleno desenvolvimento.
Por fim, foi utilizado o método teórico que consiste na consulta de obras, artigos de periódicos,
documentos eletrônicos, bem como da legislação pertinente do assunto.

DA INTERSEXUALLIDADE

A intersexualidade, mais conhecida no meio médico por ‘Anomalia da Diferenciação Sexual’


(ADS), é uma condição físico-biológica em que a pessoa nasce com características relacionados tanto
ao sexo feminino quanto masculino (ROBERTA FRASER; ISABEL MARIA LIMA, 2012).
Nesse sentido, as nuances intersexo podem ser percebidas a partir dos caracteres genotípicos,
os que variam para além da combinação cromossômica 46, XX e 46, XY, bem como pelas variações
fenotípicas divergentes do padrão feminino e masculino amplamente aceito, com manifestações
visíveis ou não. (GORISCH, 2019), sendo os casos mais comuns os conhecidos como genitália
ambígua.
Desse modo, tem-se que, “definindo de forma bastante global, dizemos que uma ADS é a
situação em que não há acordo entre os vários sexos do indivíduo, ou seja, o sexo genético, retratado
pela sua constituição cariotípica 46,XX ou 46,XY, o sexo gonadal/hormonal, e o sexo fenotípico.”
(DAMIANI; GUERRA-JÚNIOR, 2007, p. 1014).
Esclarece-se que a denominação “Intersex [em português, Intersexo]é um termo de origem
médica que foi incorporado pelos ativistas para designar as pessoas que nascem com corpos que não
se encaixam naquilo que entendemos por corpos masculinos ou femininos. ” (PINO, 2007, p. 153).
O termo não é mais usado pela seara médica, a qual prefere os termos ADS e/ou DDS (Distúrbios da
Diferenciação do Sexo).
Tais nomenclaturas foram propostas em 2005, pelo Consenso de Chicago, com o fito de
eliminar quaisquer terminologias que pudessem ter alguma conotação pejorativa, incluindo a
824
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exclusão do uso do termo ‘intersexo’, porquanto, esse foi considerado como de caráter “dúbio” por
representar um terceiro sexo, não reconhecido, preferindo-se, assim, a adoção das nomenclaturas
ADS ou DDS. (DAMIANI; GUERRA-JÚNIOR, 2007).
De acordo com a Resolução n. 1664/2003, do CFM, serão considerados casos de ADS “as
situações clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambigüidade genital,
intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia
gonadal, sexo reverso, entre outras” (BRASIL, 2003).
Em que pese seja comum, principalmente por conta das representações artísticas e
mitológicas, que a intersexualidade seja atrelada à imagem do ‘hermafrodita’, nota-se que o corpo
intersexo não se limita apenas à presença do genital ambíguo (CABRAL; BENZUR, 2005), muito
embora, sejam esses os casos que provocam mais embates no âmbito jurídico.
A razão disso é que a orientação médica proposta pela Resolução n.º 1.664/2003 discorre que,
uma vez verificado que a criança nasceu com a genitália ambígua, essa deverá passar por uma bateria
de exames, acompanhada por equipe multidisciplinar, a fim de designar qual o seu ‘sexo
predominante’ e, assim, ser submetida à uma cirurgia de ‘correção do genital’. (BRASIL, 2003).
Nesse sentido, o “genital é ambíguo quando sua aparência impõe dificuldade, ou mesmo
impossibilidade, de designar a criança como menino ou menina” razão pela qual, faz-se necessário
“a criança seja acompanhada por equipe interdisciplinar, composta por pediatra, endocrinologista,
cirurgião, psicólogo, além de equipe especializada no apoio diagnóstico”. (ANA AMÉLIA PAULA;
MÁRCIA MARIAVIEIRA, 2015, p. 71)
Para a equipe envolvida “na avaliação de um indivíduo com um distúrbio da diferenciação do
sexo (DDS), seja um recém-nascido, um adolescente ou adulto, o primeiro objetivo é chegar ao
diagnóstico sindrômico e, sempre que possível, a um diagnóstico etiológico preciso. ” (ANDRÉA
MACIEL-GUERRA, 2019, p. 13).
O argumento médico pela ‘correção’ precoce dos genitais está ligado à concepção de que essa
conduta poderá “amenizar” ou até mesmo “eliminar” os problemas de ordem psicossocial
ocasionados pela intersexualidade. Por isso, a ‘construção’ de um genital com aparência ‘normal’,
bem como “sexualmente funcional” é defendido pela medicina como benéfico ao desenvolvimento
da pessoa intersexo. (LEE et al, 2006).

825
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Persiste, ao longo dos anos, o entendimento de que “para permitir à criança com ambiguidade
genital o desenvolvimento de uma identidade de gênero estável e, consequentemente, ser
mentalmente saudável e feliz, seria necessário “corrigir” a aparência do seu genital. ” (GUERRA-
JÚNIOR et al, 2019, p. 213). Desse modo, os corpos intersexos são lidos, medicamente, como doentes
e, portanto, carentes de correção.
Em contrapartida, a American Psychological Association (2006 apud CYSNEIROS;
GARBELOTTO, 2019) defende que, na maioria dos casos, não é necessária a imediata realização da
cirurgia de adequação/correção da genitália ambígua. Inclusive, a opção por esse tipo de abordagem
médica, quando inexistentes riscos à vida do menor, além de dispensável, pode ser interpretado como
de caráter mutilatório, porquanto, possui por finalidade tão somente adequar o corpo do recém-
nascido às expetativas sociais de sexo e gênero.
No mesmo sentido, Paula Sandrine Machado (2005, p. 70), pontua que no tocante às cirurgias
de adequação e/ou correção sexual, “a principal preocupação é com o resultado ‘estético’ ou
‘cosmético’ dos genitais construídos. As técnicas cirúrgicas são empregadas no sentido de tornar a
genitália da criança ‘o mais próximo possível do normal’[...]”.
A orientação e escolha médica pelos procedimentos cirúrgicos de caráter invasivo, além de
serem questionáveis quanto a sua necessidade, também devem ser considerados o aspecto de
irreversibilidade desses procedimentos, pois, a “parece razoável imaginar que tal incerteza de critério
diagnóstico pode resultar consequências físicas e psíquicas inimagináveis e indesejáveis para os
sujeitos em questão. (GUIMARÃES; HELOÍSA HELENA BARBOZA, 2014, p. 2180).
Diante dos “procedimentos médicos dispensados aos intersex, podemos perceber os
significados sociais e culturais atribuídos ao corpo, assim como as relações políticas que constroem
nossos corpos. ” (NÁDIA PINO, 2007, p. 152). A condição intersexo e, a forma como essa é tratada,
reflete o controle biopolítico que a sociedade exerce sobre todxs, principalmente, por meio dos
conceitos de sexo e gênero.

DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


Os direitos da personalidade são uma categoria de direito que surge após os eventos ocorridos
durante a Segunda Mundial, onde, a partir de toda a barbárie vivenciada, viu-se a necessidade de
criar mecanismos legais, em especial de cunho internacional, capazes de oferecer proteção à

826
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pessoa humana e aos seus atributos, razão pela qual, surge, em 1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH). Esse documento legal serviu de inspiração para a elaboração de diversas
constituições, inclusive a do Brasil – Constituição Federal de 1988 (em vigência). (PATRÍCIA
VERÔNICA SOUZA; FACHIN, 2019).
Desse modo, “a dignidade humana tem sido o valor-guia de um processo de releitura dos
variados setores do direito, que vão abandonando o liberalismo e o materialismo de outrora em favor
da recuperação de uma abordagem mais humanista e mais solidária das relações jurídicas.”
(SCHREIBER, , 2011, p. 7).
Acerca dos direitos da personalidade, Adriano De Cupis (2008, p. 24), discorre que “são certos
direitos sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada,
privada de todo o valor concreto”. Para Perlingieri (2002, p. 19), estes direitos “consistem na proteção
dos atributos da personalidade humana”.
Por sua vez, para Orlando Gomes (1974, p. 168), os direitos da personalidade são aqueles
“considerados essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza
e disciplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam a resguardar a eminente
dignidade da pessoa humana.”
No concernente à dignidade humana, Immanuel Kant (2005) discorre que essa é uma
característica exclusiva do ser humano enquanto ser dotado de razão e capaz de possuir um fim em si
mesmo, diferente das demais coisas que são, consideradas pelo autor, como substituíveis, o ser
humano não.
Diante disso, a promoção da dignidade humana como epicentro do ordenamento jurídico
brasileiro “promove uma despatrimonialização e uma repersonalização do Direito Civil, com ênfase
em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos
da personalidade.” (BARROSO, 2008, p. 259-260).
A noção jurídica de personalidade surgiu no direito romano clássico como qualidade daquele
que reunisse em si três características: “status libertatis, status civitatis e o status familiae”. (SOUSA,
1995, p. 47). Ou seja, a personalidade era atributo daquele que fosse reconhecido como livre, capaz
de exercer atos na sociedade civil. (TEPEDINO, 2004).
A‘personalidade’, “no significado técnico da psicologia contemporânea é a organização
que a pessoa imprime à multiplicidade de relações que a constituem. ” (ABBAGNAMO, 2007.

827
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
P. 758). É ela, portanto, “uma estrutura dinâmica integrativa e integrante, que assegura uma unidade
relativa e a continuidade no tempo do conjunto dos sistemas que explicam”, bem como “as
particularidades próprias de um indivíduo, de sua maneira de sentir, de pensar, de agir e de reagir em
situações concretas”. (SIMONE VALLADON, 1988, p. 1).
Juridicamente, o atual entendimento é de que“[...] a personalidade se resume no conjunto de
caracteres do próprio indivíduo: consiste na parte intrínseca da pessoa humana [...]. Através da
personalidade, a pessoa poderá adquirir e defender os demais bens. ” (SZANIAVISKI, 2005, p. 70).
É a personalidade, portanto, o meio pelo qual todos os demais direitos ganham expressão, de
maneira que os direitos da personalidade correspondem à “[...] garantia de uma proteção mínima à
personalidade é fruto da preocupação afirmada pelo avanço cultural do ser humano que, atualmente,
repele toda e qualquer ideia que possa comprometer sua plena integridade” (FARIAS;
ROSENVALD, 2014, p.171).
Por sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, tem-se que os direitos da
personalidade são, ainda, “direitos extrapatrimoniais porque não encontram, puramente, estimativa
em pecúnia — senão quando lesionados e para efeito compensatório ou por motivo de cessão das
potencialidades econômicas, que com o direito em si não se confunde [...]. ” (JABUR, 2020, p. 439-
440).
Ao abordar os “direitos de personalidade, não estamos identificando aí a personalidade como
a capacidade de ter direitos e obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato
natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição humana” (DANTAS apud TEPEDINO,
1999, p. 26).
Adriano de Cupis (2008, p. 24), por conseguinte, afirma que “são certos direitos sem os quais
a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor
concreto”.
Desse modo, para as Ciências Jurídicas, a personalidade pode ser compreendida como a
“faculdade, assegurada a qualquer pessoa, de que sua personalidade possa se desenvolver em seus
aspectos físicos, psíquicos e morais, de forma plena e com a mais ampla liberdade possível”.
(BARRETO; LUCIANY SANTOS, 2006, p. 475). Não é, portanto, a personalidade um direito em si
mesma, mas sim o meio pelo qual todos os demais institutos jurídicos encontram expressão.

828
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Os direitos da personalidade podem ser vislumbrados sob duas correntes, uma geral e outra
fragmentada/específica. Para a primeira, em virtude de sua direta relação com princípio basilar da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88), os direitos da personalidade devem
salvaguardar todos os elementos essenciais à manutenção desse princípio, bem como ao livre e pleno
desenvolvimento humano. (GRACIA, 2007).
Para segunda teoria, no entanto, essa visão abrangente implicaria em banalização do princípio
da dignidade humana e causaria um estado de insegurança jurídica, porquanto, restaria ao poder
judiciário, por meio de casos concretos, a responsabilidade de afirmar quais aspectos poderiam se
beneficiar ou não da proteção dos direitos da personalidade, motivo pelo qual, para essa corrente, só
podem ser considerados como direitos da personalidade os expressamente assim previstos na lei.
(ASCENSÃO, 1999).
Em conformidade com o posicionamento do jurista Eliminar Szaniawski (2005, p. 140-141),
tem-se que “o princípio da dignidade humana se constitui em verdadeiro em um verdadeiro
supraprincípio, a chave de leitura e da interpretação dos demais princípios fundamentais e de todos
os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição”, razão pela qual, deve ser interpretado
como cláusula geral dos direitos da personalidade.
Com base na teoria geral dos direitos da personalidade, afirma-se que, toda conduta que atente
contra esses direitos, também afronta ca própria dignidade daquela pessoa e, portanto, atingi-lhe e/ou
restringe-lhe a sua existência.

DO RECONHECIMENTO DO TERCEIRO SEXO – REGISTRO CIVIL


O discurso acerca da intersexualidade, conforme exposto até aqui, ultrapassa o campo das
ciências biológicas e se impõe como uma importante reflexão acerca dos “paradoxos identitários
quase invisíveis, propiciando uma análise da construção do corpo sexuado, seus significados sociais
e políticos, assim como sobre o processo de normalização e controle social não apenas dos intersex,
mas também de todos os corpos.” (PINO, 2007, p. 152). É uma dialogo sobre quem possui o direito
de existir e de que maneira se pode existir.
Destaca-se que “a intersexualidade é um fenômeno social, contudo, poucas são as pesquisas
que abordam esta questão, principalmente na seara do direito, fato que dificulta o reconhecimento

829
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
das pessoas com esta condição física perante a sociedade e acaba por renegá-los à invisibilidade.”
(JAMILLE SANTOS; VALÉRIA CARDIN, 2019, p. 96).
Paula Gaudenzi expõe que:

A condição intersexual interpela o sentido de normalidade, fragiliza o discurso científico


biologizante, evidencia a complexidade de significar o corpo sexuado e ameaça a
corporalidade comum que mantém a previsibilidade e a ordem tão desejadas em uma
sociedade em que a tecnologia de poder é centrada na gestão da vida. (PAULA GAUDENZI,
2018, p. 4).

Ana Karina Cangaçu-Campinho, Ana Cecília de Sousa Bittencourt Bastos e, Isabel Maria
Sampaio Oliveira Lima (2009, p. 1154), discorrem que a visão da intersexualidade “como
enfermidade ou desvio é marcada pela visão cultural da sociedade moderna ocidental, que estigmatiza
o corpo que não segue os padrões ditos masculinos ou femininos, como um corpo distorcido, anormal,
estranho”.
E para as autoras, “nesta tradição, existe uma suposição de que pessoas na condição de
intersexualidade não poderiam se desenvolver plenamente, nem ser totalmente satisfeitas”.
Nesse viés, a atual abordagem médica acerca do trato dispensado às pessoas intersexo é,
juridicamente, reforçada pela falta de legislação especifica que trate sobre a situação desses, em
específico, sobre o assentamento do registro civil quando não for possível designar o recém-nascido
como sendo pertencente ao sexo feminino ou masculino.
A condição intersexo, diante da redação dada pela Lei de Registros Públicos, se posiciona
como um obstáculo ainda não superado pelo direito no concernente à lavratura da certidão de
nascimento, porquanto, ante a impossibilidade de afirmar o sexo da criança no tempo exigido por lei
impede, essa fica sem acesso à certidão de nascimento, ou é registrada segundo um sexo escolhido
pelos seus genitores no ato de realização do documento. (ROBERTA FRASER; ISABEL MARIA
LIMA, 2012).
Esclarece-se que, a Lei de Registro Civil de Pessoas Naturais (Lei n.º 6.015/73) apenas
menciona que no momento do assentamento civil será necessário que os genitores indiquem o nome
e sexo do menor332, no entanto, essa não determina qual/quais sexos podem ser apontados como tal.

332
Lei 6.015/1973, Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: [...] 2º) o sexo do registrando; [...] 4º) o nome
e o prenome, que forem postos à criança;[...]. (BRASIL, 1973).
830
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A visão de que apenas existem corpos femininos e/ou masculinos decorre do determinismo social
popular e, reverbera como uma verdade irrefutável, inclusive, para fins legais, posto a impossibilidade
de constar a opção intersexo na certidão de nascimento.
Rogério de Oliveira Souza (2008, p. 132) afirma que “a certidão de nascimento seria como
um verdadeiro “passaporte” da pessoa que provém do mundo dos fatos (‘nascimento com vida’) e
ingressa no mundo jurídico (‘pessoa natural’)” (2008, p. 132). Desse modo, sem a possibilidade da
certidão de nascimento ser lavrada com a indicação “intersexo”, vê-se também que é negado à pessoa
intersexo a sua qualidade de sujeito de direito, uma vez que, essa inexiste para o mundo jurídico.
Lamentavelmente, em alguns casos, a condição intersexo serve, até mesmo de escusa para que
hospitais se neguem a emitir a certidão de nascido vivo, documento indispensável para a emissão do
registro civil, reforçando-se, desse modo, a concepção de que a cirurgia de ‘correção sexual’ é etapa
crucial no processo de reconhecimento dos indivíduos intersexos. (ANA CARLA MATOS;
ANDRESSA REGINA SANTOS, 2019).
Atualmente, há países que reconhecem, legalmente, uma terceira categoria de gênero como
solução para amparar as pessoas intersexos e, evitar que essas sejam expostas à procedimentos
cirúrgicos invasivos e irreversíveis quando a intersexualidade não se configurar em nenhum risco
para a vida daquele indivíduo.
Na Alemanha, por exemplo, desde 2018, é possível constar no registro a opção “diverso” ao
invés de “feminino/masculino”. (WELLE, 20118). De igual modo, no Canadá, desde 2017, admite-
se que as pessoas indiquem um ‘X’ no campo destinado á informação “feminino/masculino” (ARPEN
BRASIL, 2017).
Por sua vez, o país de Malta é o considerado o mais avançado no tocante à proteção das
pessoas intersexos. Vigora neste país uma legislação específica de proteção à “Identidade de Gênero,
Expressão de Gênero e Características Sexuais”, por meio da qual, a indicação do gênero/sexo no ato
do assentamento civil pode ser adiada até que o menor tenha condições de manifestar por si mesmo
e, além disso, são proibidas a realização de cirurgias ‘corretivas’ em recém-nascidos intersexos.
(ARPEN BRASIL, 2017).
No Brasil, consta em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) n.º 5255/2016,
de autoria da Deputada Federal Laura Carneiro, o qual visa alterar a Lei de Registros Públicos,
de modo a acrescentar ao art. 54, o § 4º a seguinte redação:

831
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O sexo do recém-nascido será registrado como indefinido ou intersexo quando, mediante
laudo elaborado por equipe multidisciplinar, for atestado que as características físicas,
hormonais e genéticas não permitem, até o momento do registro, a definição do sexo do
registrando como masculino ou feminino. (BRASIL, 2016, grifo nosso).

Em que pese o PL um avanço no sentido de reconhecer as pessoas intersexos, vê-se que esse
a trata como algo transitório, patológico e passível de correção e não como uma terceira opção de
sexo definitiva. Ainda, a terminologia escolhida pelo PL – “Indefinido” – possui cunho pejorativo,
pois faz parecer que, até que a pessoa possa ser definida como feminina ou masculina, essa permanece
como mero corpo inteligível333.
Outra conceituação essencial no que concerne ao reconhecimento jurídico das pessoas
intersexos por meio do assentamento do registro civil implica na necessária distinção entre os
conceitos de “sexo” e “gênero”, isso porque, é comum que ao se pesquisar acerca da temática
proposta, a pessoa se depare com a afirmação de que a intersexualidade se configura como um terceiro
gênero, inclusive, nos países supracitados, em que existe o reconhecimento da intersexualidade, essa
é firmada sobre essa ideia de terceiro gênero.
Sabe-se que o termo “sexo” está relacionado com às características biológicas e físicas de cada
indivíduo, em virtude disso, tem-se que o corpo, sexualmente, masculino possui “testículos,
epidídimo, ducto deferente, vesículas seminais, próstata, glândulas bulbouretrais, escroto e pênis
(...)enquanto as mulheres possuem um aparelho reprodutor dotado de ovários, tubas uterinas, útero,
vagina e vulva. ” (FLAVIANE LIMA et al, 2017, p. 35).
Enquanto que o conceito de “gênero não inclui apenas um estado biológico, como homem e
mulher, mas também remete à questão do reconhecimento íntimo, à atribuição social, ou legal”(ANA
AMELIA PAULA; MÁRCIA MARIA VIEIRA, 2015, p. 73)
Diante dessa diferenciação entre os conceitos de sexo e gênero, parece evidente que a
intersexualidade se amolda como um terceiro sexo, uma vez que, diz respeito à condições físicas e
biológicas pré-determinadas, razão pela qual, milita-se pelo reconhecimento da intersexualidade
enquanto um terceiro sexo e, inclusive, chama-se a atenção do legislador brasileiro para a necessidade

333
Para Susan Bordo (1997, p. 33), a noção de um corpo inteligível “abrange nossas representações científicas,
filosóficas e estéticas sobre o corpo – nossa concepção cultural de corpo, que inclui normas de beleza, modelos de
saúde e assim por diante. ” Desse modo, por não corresponderem, socialmente, às expectativas impostas sobre o
corpo humano, as pessoas intersexos são vistas como “anormais” e carentes de correção.
832
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de padronizar a certidão de nascimento para constar o campo “sexo” e não “gênero”.
Para alguns autores, como Daniel Borrillo (2015, P. 65), o correto não seria o reconhecimento
da intersexualidade como um terceiro sexo, mas sim, a exclusão dos indicativos “sexo/gênero” das
certidões de nascimento, assim, o sexo deixaria de ser uma categoria jurídica válida e regulatória e
passaria a “ser considerado como uma simples informação pessoal de natureza privada.”
Se de um lado a proposta defendida por Daniel Borillo o acesso, por pessoas negadas em razão
de seu sexo e/ou gênero, à direitos antes inacessíveis, de outro, seria necessário refletir acerca das
consequências dessa modificação a partir da ótica daqueles grupos que tiveram direitos assegurados
justamente em decorrência do seu sexo e gênero, como por exemplo, as mulheres, assim, “Essa
posição, em algum sentido, parece ao mesmo tempo trazer potencialidades, mas guardar riscos que
não podem ser ignorados.” (ANA KARLA MATOS; ANDRESSA REGINA SANTOS, 2019, p. 98-
99).
A falta de reconhecimento expõe as pessoas intersexos à inúmeras violações de seus “direitos
humanos fundamentais. Essas violações incluem cirurgias medicamente desnecessárias e
irreversíveis e outros procedimentos invasivos em bebês e crianças intersexuais. ” (PATRÍCIA
GORISCH, 2019, p. 228). Por esse motivo e, pela impossibilidade de determinar os riscos advindos
de uma retira completa dos termos sexo e gênero dos registros civis é que se insiste no
reconhecimento, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da intersexualidade como um terceiro sexo
definitivo e não transitório como propõe o projeto de lei em andamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intersexualidade, mais que uma condição físico-biológica, se porta como uma afronta aos
ditames sociais acerca de gênero e sexo e, rompe com as expectativas sobre o corpo sexuado. O corpo
intersexo põe em chegue a noção de que só existem corpos femininos e masculinos – homens e
mulheres.
A prática médica atual, ao optar pelos procedimentos cirúrgicos invasivos e irreversíveis,
quando não verificado que a intersexualidade representa algum risco de vida para o recém-nascido,
configura-se em prática atentatória aos direitos da personalidade e à dignidade humana dessas pessoas
que, antes mesmo de poderem manifestar seus interesses, têm seus corpos modificados por
terceiros apenas para atender à uma expectativa social.

833
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao (re)designar o corpo intersexo, a equipe médica, ainda que com a melhor das intenções,
termina por ferir a dignidade, a integridade física e psíquica daquela pessoa, bem como, retira-lhe o
direito ao livre e pleno desenvolvimento, ao impedir que essa exerça o seu direito de identidade e
aqui, reconhece-se a identidade sexual e de gênero como decorrentes daquela. Nota-se, portanto, que
a conduta médica elegida como a mais viável, configura-se, na verdade, como uma afronta aos direitos
da personalidade da pessoa intersexo.
Diante disso, conclui-se que, o reconhecimento do terceiro sexo e a possibilidade do registro
civil constar essa opção, configuram-se como medidas essenciais à proteção das pessoas intersexos à
luz dos direitos da personalidade.
Reforça-se que, não há o entendimento, até o presente momento, de que a melhor forma de
reconhecer as pessoas intersexos seria mediante a exclusão da informação sexo das certidões de
nascimento, isso porque, na prática, poderia continuar a existir uma negativa acerca do
reconhecimento desses corpos e pessoas.
Ressalta-se que, o problema não é o indicativo “sexo” nos documentos, mas o fato de que, ao
se falar que tal pessoa pertence a tal sexo, cresce sobre ela a expectativa de que deverá corresponder
à determinado papel social.
Não permitir que os documentos contêm com a opção “intersexo”, ou ainda, permitir que
conste a opção “indefinido”, seria o mesmo que borrar as identidades e aceitar que as pessoas
intersexos continuem sendo marginalizadas no contexto social e jurídico.

REFERÊNCIAS

ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ANA AMÉLIA PAULA, Oliveira Reis de; MÁRCIA MARIA VIEIRA, Rosa. Intersexualidade: uma
clínica da singularidade. Revista Bioética, [s.l.], v. 23, n. 1, p.70-79, abr. 2015. FapUNIFESP
(SciELO). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
80422015000100070&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 03 dez. 2019.

ANA CARLA MATOS, Harmatiuk.; ANDRESSA REGINA SANTOS, Regina Bissolatti dos. O
direito à existência civil de pessoas intersexuais: um questionamento do estatuto jurídico do gênero.
In: DIAS, Maria Berenice. Intersexo: aspectos jurídicos, internacionais, trabalhistas, registrais,
médicos, psicológicos, sociais, culturais. São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018.p.p. 81-104.

834
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ANA KARINA CANGUÇU-CAMPINHO; ANA CECÍLIA BASTOS, Sousa; ISABEL MARIA
LIMA, Sampaio Oliveira. O discurso biomédico e o da construção social na pesquisa sobre
intersexualidade. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1145-1164 2009. Disponível em:
https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0103-73312009000400013&script=sci_arttext&tlng=pt.
Acesso em: 14 ago. 2019.

ANDRÉA MACIEL-GUERRA, Trevas. Avaliação Clínica. In:ANDRÉ MACIEL-GUERRA,


Trevas.; GUERRA-JÚNIOR, Gil. Menina ou Menino? Os distúrbios da diferenciação de sexo. v.
2, ed. 3, Curitiba: Appris, 2019, p. 13-20.

ASCENSÃO, José de Oliveira. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Almedina, 1999.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS (ARPEN


BRASIL). Clipping – Jornal Deutsche Welle (Alemanha) - Onde o terceiro gênero é reconhecido
no mundo. Disponível em: http://arpenbrasil.org.br/noticia/6024. Acesso em: 20 jun. 2019.

BARRETO, Wanderlei de Paula; LUCIANY SANTOS, Michelli Pereira dos, Santos.. O conceito
aberto de desdobramento da personalidade e os seus elementos constitutivos nas situações de
mobbing ou assédio moral. Revista Jurídica Cesumar - Mestrado, Maringá, v. 6, n. 1, p. 473-487,
dez. 2006. Disponível em: https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/a
rticle/view/322/181. Acesso em: 20 jan. 2020.

BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e o Direito Civil. In: TEPEDINO,


Gustavo (org.). Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional.
São Paulo: Atlas, 2008.

BORRILLO, Daniel. Uma perspectiva crítica das políticas sexuais e de gênero no mundo latino. In:
SEFFNER, Fernando; CAETANO, Marcio (Orgs.). Cenas latino-americanas da diversidade
sexual e de gênero: práticas, pedagogias, e políticas públicas. Rio Grande: Ed. Da Furg, 2015. p. 45-
80.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n º 5255 de 23 de maio de 2016. Acrescenta § 4º
ao art. 54 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que “dispõe sobre os registros públicos, e dá
outras providências”, a fim de disciplinar o registro civil do recém-nascido sob o estado de intersexo.
Deputada Federal Laura Carneiro. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1456906. Acesso em: 20
jun. 2019.

BRASIL. Conselho Federal De Medicina (CFM). Resolução n.º 1.664 de 13 de maio de 2003. 2003.
Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de
diferenciação sexual. 2003. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2003/1664_2003.htm. Acesso em: 24 nov. 2019.

835
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada
em 05 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 jan. 2020.

BRASIL. Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm.
Acesso em: 15 ago. 2019.

CABRAL, Mauro.; BENZUR, Gabriel. Cuando digo intersex. Um dialogo introductorio a la


intersexualidad. Cadernos Pagu, n. 24, p. 283-304, jan./jun. 2005.Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332005000100013. Acesso em:
16 ago. 2020.

CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Afonso Celso Furtado Rezende (trad.). São
Paulo: Quorum, 2008.

CYSNEIROS, Adriano Barreto; GARBELOTTO, Filipe de Campos. A necessária despatologização


da intersexualidade. In: TEREZA VIEIRA, Rodrigues (Org.). Transgêneros. 1. ed. Brasília:
Zakarewicz, 2019, p. 97-110.

DAMIANI, Durval.; GUERRA-JÚNIOR, Gil. As novas definições e classificações dos estados


intersexuais: O que o consenso de Chicago contribui para o estado da arte? Arquivos Brasileiros de
Endrocrinologia & Metabologia, São Paulo, v. 51, n. 6, p. 1013-1017, ago. 2007. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-
27302007000600018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 12 ago. 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 12. Ed. Salvador:
JusPodivm, 2014.

FLAVIANE LIMA, Izidro Alves de. et al. A influência da construção de papeis sociais de gênero na
escolha profissional. Revista brasileira de psicologia e educação, Araraquara, SP, v.19, n.1, p. 33-
50, jan./jun. 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/doxa/article/view/10818. Acesso
em: 31 maio 2020.

GARCIA, Enéas Costa. Direito geral da personalidade no sistema jurídico brasileiro. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2007.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974.

GUIMARÃES, Anibal; HELOÍZA HELENA BARBOZA. Designação Sexual em crianças intersexo:


uma breve análise dos casos de “genitália ambígua”. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, p.p.
2177-2786, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n10/0102-311X-csp-30-10-
2177.pdf. Acesso em 14 ago. 2019.

836
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
JABUR, Gilberto Haddad. Os direitos da personalidade no Código Civil brasileiro. Revista Jurídica,
Curitiba, PR, v. 01, n. 58, p. 434-488, jan./mar. 2020. Disponível em:
http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/3844/371372184. Acesso em: 11
maio 2020.

JAMILLE SANTOS, Bernardes da Silveira Oliveira dos.; VALÉRIA CARDIN, Silva Galdino. O
reconhecimento do terceiro gênero: uma releitura do Princípio da dignidade da pessoa humana como
cláusula geral do direito da personalidade. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, Belém, PA,
v. 5, n. 2, p. 92-115, jun./dez. 2019. Disponível em:
https://indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/6115/pdf. Acesso em: 02 maio 2020.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). Tradução Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70, 2005.

LEE, Peter A.; HOUK, Christopher P.; AHMED, Faisal.; HUGHES, Ieuan A.. Consensus Statement
on Management of Intersex Disorders. Pediatrics, [S.L.], v. 118, n. 2, p. 488-500, 1 ago. 2006.
American Academy of Pediatrics (AAP). Disponível em:
https://pediatrics.aappublications.org/content/118/2/e488/tab-article-info. Acesso em: 21 ago. 2020.

NÁDIA PINO, Perez. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos.
Revista Cadernos Pagu, p. 149-174, jan./jun. 2007. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332007000100008&script=sci_arttext&tlng=pt.
Acesso em: 12 ago. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Acesso em: 23 de jan.
2020.

PATRÍCIA GORISCH. Os IRights: uma anáise internacional dos direitos dad pessoas intersexo. In:
MARIA BERENICE DIAS. Intersexo: aspectos jurídicos, internacionais, trabalhistas, registrais,
médicos, psicológicos, sociais, culturais. São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 225-244.

PATRÍCIA VERÔNICA SOUZA, Nunes Sobral de; FACHIN, Zulmar. O princípio da dignidade
humana como fundamento para o Estado Contemporâneo: um olhar sob o viés dos direitos da
personalidade. Revista de Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), v. 7, n. 3, p. 311-
340, 2019. Disponível em: www . unifafibe . com . br / revista / index . php / direitos - sociais -
politicas - pub / index. Acesso em: 24 jan. 2020.

PAULA GAUDENZI. Intersexualidade: entre saberes e intervenções. Cadernos de Saúde Pública,


[s.l.], v. 34, n. 1, p.1-11, 5 fev. 2018. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2018000105007&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acesso em: 04 dez. 2019.

PAULA MACHADO, Sandrine. “Quimeras” da ciência: estudo antropológico sobre as


representações de profissionais da saúde acionadas em casos de genitália ambígua. Revista
837
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 50, p. 67-80, out. 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092005000300005&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acesso em: 16 ago. 2020.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Maria Cristina de Cicco (trad). 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.

ROBETA FRASER, Tourinho Dantas; ISABEL MARIA LIMA, Sampaio Oliveira. Intersexualidade
e direito à identidade: uma discussão sobre o assentamento civil de crianças intersexuadas. Journal
of Human Growth and Development, v. 22, n. 3, p. 1-7, 2012. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v22n3/pt_12.pdf. Acesso em: 13 out. 2019.

SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011.

SIMONE VALLADON, Clapier. As teorias da personalidade. São Paulo: Martins Fontes,1988.

SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra:
Coimbra Editora, 1995.

SOUZA, Rogerio de Oliveira. Certidão de Nascimento e segurança jurídica. Revista da EMERJ,


Rio de Janeiro, v. 11; n. 43, p. 132-136, jul./ago./set. 2008. Disponível em:
http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista43/Revista43_132.pdf . Acesso em:
24 jul. 2019.

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.

TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional


brasileiro. Temas de direito civil, v. 3, 1999.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

WELLE, Deutsche. Parlamento alemão aprova ‘terceiro gênero em certidões de nascimento’. G1.
Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/14/parlamento-alemao-aprova-
terceiro-genero-em-certidoes-de-nascimento.ghtml. Acesso em/. 20 nov. 2019.

838
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DIÁLOGOS SOBRE A COLONIALIDADE DO SER: DESCOLONIZANDO O FEMININO
E FEMINISMO

Carolina Cruz Rodolfo Martins334

Resumo: A presente pesquisa objetiva estudar as percepções acerca da mulher-moderna que


resultaram na constituição do feminismo hegemônico de primeira onda, bem como vislumbrar a
interseccionalidade como mecanismo de observância à descolonização do feminino e do feminismo.
Esse estudo se faz através do método dedutivo, com abordagem de pesquisa qualitativa, sendo os
tipos de pesquisa bibliográfico, descritivo e exploratório, e quanto à técnica de análise de dados,
utiliza-se a análise de conteúdo. Tem embasamento nos estudos de hooks (2000), Davis (1981) e
Butler (2002). A primeira onda do feminismo ganhou destaque ao revelar grupos organizacionais
formados por mulheres, no fim do séc. XIX e início do séc. XX, que objetivavam lutar contra o
sexismo em um período de ascensão industrial e clacissista; e embora de grande notoriedade, não
escondeu que vieram muitas outras mulheres anteriores a esse período dispostas a questionar o
patriarcado. Essa primeira onda, que imergia na ideia de que a (re)produção do sexismo figurava na
masculinidade, caracterizou-se pela luta do direito ao voto e libertação da supremacia masculina no
mercado de trabalho. No entanto, teve como protagonistas mulheres brancas, apoiadas por homens
brancos e endeusadas pela mídia, uma vez que estes as viam como reprodutoras da raça; dessa forma,
a expansão da minimização das desegualdades sexistas aflorava pois existia uma camada mais baixa
na sociedade, formada por mulheres negras que eram exploradas tanto pelos homens, quanto por
mulheres brancas, que não mais se sujeitavam a trabalhos depreciativos. As políticas feministas
criadas por/para mulheres brancas relativizavam a sororidade e reproduziam a ótica colonial de que
fêmeas negras não eram mulheres, e, portanto, não eram sujeitas de direitos. A inobservância às
necessidades de mulheres fora do espectro dominante, este caracterizado por preceitos
heteronormativos/esbranquiçados/classicistas, resultou em um feminismo hegemônico que
reproduzia as práticas sexistas através do discurso feminino, vez que este
hierarquizava/marginalizava mulheres negras e não-heterossexuais. A minimização das lutas de
mulheres negras que, ao terem seus corpos pertencentes a homens e à sociedade ocidental, tentavam
pôr fim ao regime escravocrata e, por conseguinte, evidenciar que a violência contra elas extrapolava
a condição do gênero e derivava conjuntamente do racismo e clacissimo, desencadeou o feminismo
de 2ª onda. Nos anos 1970, a articulação de gênero/raça/classe como formadores de opressão, em que
mulheres negras e não-heterossexuais ocupavam/ocupam o seio dessa interseção, tomou notoriedade
através do manifesto Combahee River Collective, em Boston, que denunciava as desigualdades
sociais oriundas do racismo, heteronormativismo e clacissismo. Nos anos 1980 surgiram debates
sobre o femismo negro e sobre a interseccionalidade, realizados por ativistas negras que
problemativizavam a condição hegemônica da categoria feminina e do feminismo. A percepção
sensível das realidades vivenciadas por mulheres afastadas dos locais epistêmicos privilegiados
começou a fazer parte da pauta feminista e a pluralidade do feminismo pôde ser almejada. Ao serem
observadas as especificidades e ônus de cada local de fala ocupado por mulheres, a luta feminista
buscou/busca inserir pautas heterogêneas nas lutas pelos direitos femininos equitativos, a fim de
combater as práticas sexistas e patriarcalistas reproduzidas por quaisquer pessoas.

334
Graduanda do curso Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário do Rio São Francisco (UniRios). E-mail:
carolinacrm@outlook.com
839
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Feminismo; Sexismo; Heteronormativismo; Interseccionalidade.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Editora Civilização Brasileira, 2002.

DAVIS, Angela. Women, Race & Class. New York: Random House, 1981.

HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As contribuições históricas


e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença.
Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, jul-dez, p.97-128, 2015.

HOOKS, bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Cambridge, MA: South End Press,
2000.

840
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“QUEM EU ERA? QUEM ERA EU?”: (RE)PENSANDO A LESBIANIDADE NO CONTO
ISALTINA CAMPO BELO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Chirley do Socorro Xavier Muniz335

Resumo: A construção da literatura canônica se encontra edificada, primordialmente, por uma escrita
branca, masculina e cis-heterossexual, logo as vivências divergentes dessa norma ganharam pouco
ou nenhum espaço nas obras literárias. É válido enfatizar que, as representações sociais na literatura
também seguem a ordem dominante, por conseguinte o discurso e o corpo negro não estão nos textos
canônicos como imagem composta de dignidade, suas raras aparições nas prosas são através de
personagens com características animalescas, seres inferiores e a retratação de corpas negras seus
traços são suavizados para ter assimilação a estética branca. Nesse sentido, o presente texto possui
três objetivos: a) Compreender como a escrita de Conceição Evaristo rompe com a literatura
canônica; b) evidenciar as marcas de violência causadas pela heterossexualidade compulsória e pelo
estupro corretivo no processo de reconhecimento da identidade lésbica e c) ressaltar a potencialidade
amor entre duas mulheres negras lésbicas como ato de resistência. Para alcançar tal finalidade, a
delimitação metodológica parte de uma linha de pesquisa e de pensamento alicerçada na compressão
de que, a legitimação da produção do conhecimento e de seu acesso perpassa por critérios de gênero,
classe e raça, portanto o estudo bibliográfico é, preferencialmente, das obras de pensadoras negras,
isto é, a análise do conto “Isaltina Campo Belo” - o mesmo compõe com mais doze prosa o livro
“Insubmissas lágrimas de mulheres” (2016), da escritora mineira Conceição Evaristo - detém do
arcabouço teórico das intelectuais: Audre Lorde (2019), Lélia Gozalez (1984), Conceição Evaristo
(2009), Gloria Anzaldúa (2000), Cheryl Clarke (1988), Neusa Souza (1983), Sandra Marcelino
(2012), Adrienne Rich (2010) e bell hooks (2010). Para as (in)conclusões se elenca que, a
lesbianidade se configura no sistema heterossexual uma desordem, já que a lésbica dispensa o falo,
não nutre desejos/afetos pelos homens. Assim, a não submissão da lésbica ao sistema é deslegitimada
por meio da violência - por exemplo o estupro corretivo, viveciando por Campo Belo - veladas ou
explícitas. Ao pensar sexualidade é necessário ter consciência do corpo como uma mensagem
ambulante e algumas corpas negras lésbicas falam antes da sua própria emissora, tornam-se alvos
mais vulneráveis as violações de ser e existir no mundo. Ademais, historicamente, as corpas negras
não são vista como merecedoras de afeto/amor, a sociedade escravista as desumanizou, reduziu sua
capacidade as tarefas domésticas e a satisfação sexual dos senhores de engenhos, suas corpas foram
esvaziadas de beleza e suas histórias apagadas. Dessa forma, (re)constituir a afetividade negra
amando uma semelhante é ir contra o discurso escravista, é verbalizar no afeto a aceitação e o
reconhecimento - ambos sentimentos buscados por Campos Belo e encontrados nos braços de sua
amada Miríades, sua semelhante -, sendo assim um ato de resistência. A literatura afro-brasileira de
Conceição Evaristo delineada pela prática do ouvir e do (con)fundir narrativas rompe com saberes
hegemônicos, refaz os passos da história única relatada pelo colonizador para escurecer que, as
mulheres negras – lésbicas ou não – estão (re)escrevendo suas próprias histórias e construindo suas
próprias referências, pontua entre lágrimas e acalentos vivências outras.

Palavras-chave: Lesbianidade; Literatura afro-brasileira; Mulheres negras, Negritude.

335
Graduanda do curso Licenciatura Plena em Ciências Sociais, pela Universidade do Estado do Pará, campus
Igarapé-Açu. E-mail: chirleymunizx@gmail.com
841
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

ANZALDÚA, Gloria. Falando em língua: uma carta para as mulheres escritas do terceiro mundo.
Estudos Feministas. Florianópolis – SC v. 8, n. 1, p.229-236, 2000.

CLARKE, Cheryl. O Lesbianismo: um ato de resistência. In: MORAGA, Cherrie; CASTILO. Esta
puente mi espalda: voces de las tercermundista en los Estados Unidos. Ism press, São Francisco-
USA,1988.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. SCRIPTA, Belo
Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31. 2009.

EVARISTO, Conceição. Insubmissass lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Malê, 2016.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, p.
223-244. 1984.

HOOKS, Bell. Vivendo de Amor. Tradução: Maísa Mendonça. 2010. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em: 04 abr. 2019.

LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

MARCELINO, Sandra Regina de Souza. Trajetórias de Mulheres Negras Lésbicas: a fala rompeu o
seu contrato e o silêncio se desfez. In: FONSECA, D. R.; LIMA, T. M. O. (Orgs). Outras mulheres:
mulheres negras brasileiras ao final da primeira década do século XXI. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
p.161-178. 2012.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas - Estudos gays:


gêneros e sexualidades. Natal-RN, v. 4, n. 05, 27 nov. p.17-44, 2010.disponivel em:
https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309/1742 . Acesso em: 25 de nov.2019.

SOUZA, Neusa, Santos. Torna-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em


ascensão social. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

842
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A JUVENTUDE NA SUA FORMAÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE: UMA ANÁLISE
NO MUNICÍPIO DE SALINÓPOLIS/PA

Luana Nery Fonseca336


Hellen Rafaela Pinheiro Figueiredo337

Resumo: O estudo objetiva discutir os contornos da construção do gênero e sexualidade nos corpos
de homens e mulheres, na construção de papeis sociais na perspectiva das juventudes, considerando
o processo histórico, social e cultural dos sujeitos e verificando os fatores sociais que se configuram
na sua formação de gênero com base em dicotomias e binaridades. Metodologicamente a pesquisa
consiste no levantamento bibliográfico, pesquisa de campo no município de Salinopólis/PA, no bairro
São Tomé, com base na abordagem qualitativa e entrevista semi-estrutura, realizada com sete jovens
entre homens e mulheres de 18 a 25 anos, com auxílio de gravador. Nesse sentido, os resultados
evidenciam que esses jovens passaram por construções de gênero e sexualidade desde a sua infância,
que determinavam as diferenciações referente ao papel que a menina ou o menino podem
desempenhar, a posterior, homem e mulher, na qual mesmo os interlocutores em tempos diferentes,
estavam enraizados em concepções machistas e de um patriarcado.

Palavras-chave: Relações de Gênero; Sexualidade; Juventudes.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Digital Source. 1999.

GUACIRA LOURO Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v.


19, n. 2 (56) - maio/ago. 2008.

GUACIRA LOURO, Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


Ed, VOZES. Petrópolis, RJ, 1997.

JENNEFER SALLES, Portela. As flores que falam sobre sexualidade e afetividade. Ed, Staff.
Belém, PA, 2012.

NOVAES, R. Juventude e sociedade: jogos de espelhos, sentimentos, percepções e demandas por


direitos e políticas públicas. Revista Sociologia Especial: ciência e vida, São Paulo, 2007.

MONISE SERPA, G. Perspectivas sobre papeis de gênero masculino e feminino: um relato de


experiência com mães de meninas vitimizadas. Psicologia e Sociedade. 2010, p. 14-22

336
Graduanda do curso de Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará, campus X.
Luananerys3@hotmail.com
337
Graduanda do curso de Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará, campus X
hellenfigueiredo18@gmail.com
843
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT – CORPOS
SILENCIADOS EM
(RE)XISTÊNCIAS:
DESVENDANDO-SE
EM/PELA/COM ARTE
COORDENAÇÃO
Profa. Dra. Nara Salles – UFPEL/UFRN
Doutorando Tiago Herculano da Silva – UDESC

844
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
OS SETE SERES DA QUARENTENA

Maria Angélica Carneiro Costa Van Drunen338

RESUMO: O trabalho tem por intuito, nesse tempo de pandemia, redefinir o processo artístico e
construir narrativas sobre as mulheres. Procura através da fotografia, dar visibilidade a seres
convertidos em desejos ou qualidades consideradas femininas. Adaptar o ambiente familiar na
criação de cenários artísticos. Nos quais, as histórias visuais são elaboradas a partir da
indumentária, objetos e movimentos performados pela artista. Como fio de Ariadne o caminho
performativo iniciou com a escolha dos objetos, cores utilizadas para cada ser, e a partir de
movimentos sugeridos pelas cores e ambientação o Ser ia sendo nomeado. Após cada
experimentação, um novo elemento era acrescentado. Muita produção foi intuitiva, outras foram
sendo compostas a partir de experimentos com a iluminação, do sol e de luzes como velas,
lâmpadas e abajur. A criação de um sujeito ficcional é na verdade uma recriação de nós mesmos. É
um atuar-se, como diz Renato Cohen. Já Deleuze vai dizer que um criador só faz aquilo de que tem
absoluta necessidade, problemas de vida. Assim, os Sete Seres fazem referência ao que necessito:
Resistência, Luta, Emoção, Equilíbrio, Mistério, Intuição e Tempo.

Palavras-chave: Mulher; Processo de criação; Transformação.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. O que é filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.

Disponível em: HISoUR Arte Cultura Exposição. https://www.hisour.com/pt/ecofeminism-


49376/. Acesso em: 5 jul. 2020.

ZÁPHAS, Ronaldo. Treinamento Performativo como modo de Existência. RASCUNHOS,


Uberlândia, v. 4, n. 1, p. 92-104, jan./jun. 2017.

338
Especialista em ensino da História das Artes e das Religiões. Especialista em Dança-Educação:Pensamento e
Práticas do Corpo. Email: costa.angelica30@gmail.com
845
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DO CLASSILINE AO BATE-PAPO UOL, PIONEIRISMO NAS REDES SOCIAIS NO
BRASIL: ENTRE DINÂMICAS AMOROSAS E SEXUAIS

Emili Sabrina Ribeiro Silva339

Resumo: O presente trabalho se propõe a apresentar o pioneiro modelo de redes sociais no Brasil, o Classiline, que se
apresentou na imprensa nacional através de empreendimento do grupo Folha de São Paulo. Ao apresentá-lo pretendo
também analisar alguns anúncios desse classificado pessoal interativo, observando seus aspectos de construções de
feminilidades e masculinidades e consequentemente questões culturais, sociais, econômicas, amorosas e sexuais,
presentes nos perfis divulgados no ano de 1994.

Palavras-chave: Classiline. Folha de São Paulo. Feminilidades. Masculinidades.

INTRODUÇÃO

Os interesses nessa pesquisa surgiram há aproximadamente dois anos quando ao perceber


empiricamente in loco a forte presença de um discurso sexual no ambiente do Bate-Papo UOL. Ao
longo dos anos que frequentei o chat identifiquei essa seara e isso me causou grande inquietação
como pessoa e futuramente como pesquisadora. Decidi que essa seria minha fonte e os usuários meus
objetos de investigação para o trabalho de conclusão de curso. Foi quando decidi aprofundar mais a
pesquisa, buscando fontes históricas impressas sobre o lançamento do portal UOL no Brasil, através
do banco de dados do Acervo Folha.
“Navegando” pelos jornais e revistas impressos do Grupo Folha de São Paulo - agora
digitalizados e disponíveis na internet - me deparei com uma matéria que divulgava o futuro
lançamento do Universo Online340, datada de 21 de abril de 1996. Continuei examinando as matérias
daquele dia, quando encontrei na Revista da Folha o denominado Classiline. A semelhança do
classificado em sua distribuição de categorias e formas de apresentação daqueles pseudônimos que
se anunciavam me fez lembrar imediatamente o Bate-Papo UOL. Havia encontrado o pioneiro
modelo de rede social do Brasil, que com o advento do chat fez com que seus usuários transferissem
para o universo virtual as formas de discurso, expressão, saberes e poderes, ali apresentados.
A partir desse novo achado minha pesquisa se redirecionou e passei a usar o Classiline
também como fonte. Agora minha intenção era analisar numa perspectiva de gênero e sexualidade os
classificados pessoais interativos. Sendo assim, o jornal e revista impressos tornaram-se meus

339
Graduanda em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina. E-mail:
emilisabrina_2012@hotmail.com.
340
Universo Online (UOL) é um empreendimento de serviços, conteúdos e produtos, criado pelo grupo Folha de
São Paulo, sendo considerado um dos pioneiros sites de comunicação nacional, via internet.
846
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
materiais de estudo. Uma mudança drástica ocorreu. Sai do universo virtual e retornei
cronologicamente ao pioneiro modelo de redes socais do Brasil, na mídia impressa.

A IMPRENSA COMO PODEROSA FERRAMENTA DE COMUNICAÇÃO


Desde que Gutenberg criou seu sistema mecânico de impressão em massa, que deu início à
Revolução da Imprensa, o modo de se comunicar não foi mais o mesmo. Contemporâneo de um
período que atualmente é interpretado como fundador da globalização (GRUZINSKI, 2015), ele
acabou construindo com engenhosidade o marco para a popularização da comunicação e da
informação. Ambos os acontecimentos foram determinantes para expandir as formas de
relacionamentos vividas até então.
A partir desse período as invenções não cessaram jamais, convivemos com transformações na
forma de nos comunicar, desde então. Para não perder a oportunidade conveniente, discorrerei sobre
a imprensa, ferramenta essa que graças a Gutenberg veio se expandindo. No Brasil, durante séculos
o jornal impresso representou um meio de comunicação e divulgação muito importante, desde o
período colonial usamos esse veículo comunicador, que hoje vem perdendo espaço graças ao mundo
digital da internet.
O jornal impresso não serviu apenas como precursor de notícias políticas, de saúde, economia,
negócios, cenário internacional, etc. ele também funcionou como dispositivo de relacionamentos. No
cenário do século XX, com diversas reinvindicações sociais, com o avanço do feminismo, do
movimento hippie, do rock e pop, dos movimentos estudantis, de contracultura, da Revolução Sexual,
em um cenário pós-guerras mundiais, tudo acabou se flexibilizando. Os jornais e revistas passaram a
atender as demandas da sociedade de então, que começou a caminhar para rumos mais libertários.
Um exemplo notável dessas mudanças ocorreu no jornal Folha de São Paulo na década de
1990, um classificado pessoal que foi lançado como serviço inédito no país, como sugere uma matéria
do dia 1 de setembro de 1994341. O serviço era chamado de Classiline, divulgado quase um mês antes
da data de lançamento, trazia na publicação o subtítulo “serviço vai aproximar paulistanos em busca

341
Classificado pessoal estréia hoje. Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12533&anchor=4962379&origem=busca&_mather=47bf8617f6fcd0
85&pd=137606c61f50cc084db9b447fd4e12d2. Acesso em: 25 de setembro de 2019.
847
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de companhia; sistema telefônico garante anonimato para quem anuncia” 342. Inspirados no modelo
americano do Los Angeles Times, eles acreditavam que o classificado faria sucesso porque “esse é o
tipo de serviço com demanda latente nas grandes cidades” 343.

IMAGEM 1: SEÇÃO CLASSILINE NO JORNAL FOLHA DE S. PAULO.

Fonte: Captura de tela do jornal Folha de S. Paulo.

Quase dois anos depois do lançamento o serviço foi estendido para a Revista da Folha e
passou a ser divulgado aos domingos. A primeira edição no novo meio de comunicação foi datada
em 4 de fevereiro de 1996. Ele seguiu o mesmo modelo de organização do Classiline do jornal e teve
as mesmas categorias de divulgação e procura, sendo que a categoria “interesses mútuos” foi
substituída pelas categorias “viagens/hobbies/fetiches” e “transa teen”. Serão os anúncios presentes
nesses classificados pessoais, que ao atender demandas sociais das pessoas solitárias, fetichistas,
cheias de fantasias sexuais, curiosas etc. que darão fôlego para as discussões de gênero e sexualidade
que me proponho aqui.

342
Folha lança 1º classificado pessoal interativo. Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12522&anchor-
4955217=&origem=busca&_mather=47bf8617f6fcd085&pd=06b741a6ed6e02672eb6dd695dabdcf6&anchor=495
5217. Acesso em: 25 de setembro de 2019.
343
Idem.
848
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SOLITÁRIOS/AS, FETICHISTAS, IDEALIZADORES/AS DE PORNOTOPIAS,
CURIOSOS/AS E MUITO MAIS: A BUSCA AFETIVO-ROMÂNTICO-SEXUAL

Por natureza, somos seres sociais. Nossa função essencial, como animais que somos, por
muito tempo foi definida em torno da máxima “nascer, crescer, reproduzir e morrer”. Entretanto,
temos a peculiaridade de deter a razão, função essa que nos difere do restante dos animais. Somos
seres sociais e políticos. Nossa condição racional criou mitos geracionais de todas as espécies, sendo
que a crença que nos rege em maioria, no Ocidente e no Brasil, até hoje é o mito da criação judaico-
cristã.
Dentro dessa narrativa, em que Deus ou Jeová criou todas as coisas, os animais pareceram
desde o início terem sido criados para se relacionar. Somente Adão foi um ser singular de sua espécie,
que em breve acabou recebendo uma companheira.

Todos os animais foram feitos em pares macho e fêmea, pensados na forma de um casal no
instante da criação. Também entrariam dois a dois na futura arca de Noé. Existir no mundo
bíblico, é ser em dupla. Apenas Adão surgiu solitário, sem ninguém da sua espécie. Ele se
tornou o primeiro recall da criação, o primeiro ser que, após existir, foi redefinido [...] Foi
necessário um arranjo, aparentemente não previsto. O primeiro homem caiu em sono
profundo e teve sua costela transformada em Eva. (KARNAL, 2018, p. 17-18, grifo do autor)

Desde então os animais racionais e irracionais constituíram relações de todas as formas,


gerando normalmente ao final dessa convivência, uma família. Pensar na vida animal é pensar em
relações. Fomos condicionados desde o início de nossa existência a formar laços, seja de amizades,
amorosos, familiares ou de inimizades. O ser humano é gregário. Nada mais trágico e triste do que
uma pessoa que vive sozinha - é isso que aprendemos desde crianças. Nossa sociedade criou
mecanismos punitivos baseados nessa ideia. A pessoa que peca, que erra, que pratica crimes e delitos,
é privada de sua liberdade e dos relacionamentos com as pessoas próximas.
Criamos as celas, que segundo Michele Perrot (2011) funcionam como chave de todas as
terapias, moral, religiosa, higiênica, penal, e que servem como uma tríplice função: punir, defender
socialmente e corrigir. A punição mais rígida conhecida atualmente é a cela solitária, rodeada por
estigmas pesados, que acabam gerando sequelas graves naqueles que são submetidos a ela:

849
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A solitária é a cela nua, reduzida a quatro paredes, outrora a um colchão de palha, hoje a uma
cama baixa, com regime alimentar mínimo e, sobretudo, a solidão absoluta na noite glacial.
Geradora de perturbações psíquicas e físicas, responsável por inúmeros suicídios, a solitária,
sempre denunciada, continua a existir, porque é a expressão de uma administração
penitenciária ciosa de sua autoridade. (MICHELE PERROT, 2011, p. 307)

Isolamos e castigamos os outros seres humanos através da solidão, porque sabemos quão
dolorido é sentir-se só. E para fugirmos dessa sensação de solidão que nos rodeia desde sempre,
buscamos companhia. Companhia essa que não precisa necessariamente ser física ou ser de outro ser
humano. Buscamos ler para nos sentir acalentados, escrevemos livros, cartas, e-mails, mensagens.
Adotamos ou compramos um animal de estimação, nos prendemos a companhia de filmes ou
programas de televisão, escutamos música, as compomos ou tocamos. Procuramos de todas as formas
fugir de nossa própria companhia, que nos causa solidão. A companhia que ainda não é solitude,
apenas solidão.
Para além de nos sentirmos sós, construímos demandas pessoais de interações. Depois de
crescidos, com a sexualidade se definindo ou já bem aflorada, desejamos parceiros para relações
afetivo-romântico-sexuais – não necessariamente na mesma ordem ou com os três sentidos juntos.
Nos direcionamos ao sexo oposto em relações heterossexuais, ou ao mesmo sexo em relações
homossexuais, expandimos nossos afetos e desejos ao nível da bissexualidade, até a hoje denominada
intersexualidade. Apuramos nossos gostos e ambições ao nível dos fetiches, fantasias e
pornotopias344.
Essas demandas diversas eram expressas nas páginas do Classiline e foram divididas em
categorias, para melhor organizar as buscas específicas dos anunciantes. As mesmas demandas
faziam os(as) leitores(as)/anunciantes da Folha de S. Paulo ansiar por ver seus anúncios publicados
e em seguida, por receber respostas de futuros ou futuras pretendentes. Essas esperas poderiam
demorar bastante ou a resposta poderia nem chegar e isso gerava novas formas de sentir e desejar.
Eram estímulos também para novos tipos de ambições e curiosidades, antes desconhecidas. Ali a
sexualidade “reprimida” poderia expressar suas intenções sob o confortante anonimato de um
pseudônimo. Surgia assim a fuga dos padrões normativos de relacionamentos e sexualidade.

344
Podemos compreender pornotopia como uma fantasia erótica ou do universo sexual, que atua como estimulante
imaginativo gerando idealizações eróticas específicas. De acordo com Beatriz Preciado (2010, p. 120) “Lo que
caracteriza a la pornotopía es su capacidad de establecer relaciones singulares entre espacio, sexualidad, placer y
tecnología (audiovisual, bioquímica, etc.), alterando las convenciones sexuales o de género y produciendo la
subjetividad sexual como un derivado de sus operaciones espaciales”.
850
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AS FEMINILIDADES E MASCULINIDADES NO CLASSIFICADO: QUESTÕES SEXUAIS,
AMOROSAS, CULTURAIS, SOCIAIS E ECONÔMICAS
Mostrando-se uma ferramenta promissora para o grupo Folha de S. Paulo, Classiline tem em
sua primeira edição 169 participações, sendo sua maioria masculina, como a matéria citada do ano de
1994 sugere. Publicados a partir de então durante todas as quintas-feiras, a matéria ressalta que das
participações recebidas, “as mulheres preferiram se apresentar ressaltando características físicas. São
loiras, morenas, mulatas, jovens [...] muitas entraram em detalhes na descrição do companheiro
procurado” 345
. Já os homens optaram por falar a profissão, sendo eles advogados, arquitetos,
engenheiros, empresários, executivos e publicitários.
Ao se apresentarem dessa forma, mulheres e homens refletem a construção histórica e social
das identidades de gênero. Em Construcción Psicosocial de los Modelos de Género: subjetividad y
nuevas formas de sexismo (2005), Isabel Benlloch discute como essas formas de representação de
gênero são importantes para a permanência de certas relações sociais e de poder, ela afirma como
esse conjunto de ideias em diversas culturas determina o que é próprio dos homens e o que é próprio
das mulheres:

Esta doble dimensión de nuestra experiencia pone de manifiesto que tanto el género como la
diferencia sexual están a la base de nuestra construcción subjetiva, pues la identidad psico-
social es el resultado de nuestra construcción en sistemas de significado y representaciones
culturales que están inscritos en jerarquías de poder.
Como afirma Marta Lamas (2000) el cuerpo es campo tanto de la interpretación cultural, de
la identidad de género producto del lenguaje y las prácticas y representaciones simbólicas
que operan en cada contexto social, como de la simbolización derivada de los procesos
intrapsíquicos vinculados a la vivencia de la diferencia sexual, por lo que las categorías
masculinidad/feminidad y la manera en que cada sujeto asume su condición sexuada es
fundamental en la estructuración psíquica del deseo y en su identidad social. (ISABEL
BENLLOCH, 2005, p. 106)

Ao criar essas categorias do que é próprio de cada gênero, a sociedade definiu os lugares que
cada um/uma pode e deve ocupar, - e nessa jornada, o papel das mulheres foi destinado à submissão,
ao lar, as atividades domésticas, ao decoro, à maternidade. Além disso, as mulheres deviam ser

345
Classificado pessoal estréia hoje. Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12533&anchor=4962379&origem=busca&_mather=47bf8617f6fcd0
85&pd=137606c61f50cc084db9b447fd4e12d2. Acesso em: 25 de setembro de 2019.
851
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lembradas por sua beleza e delicadeza, seus modos deviam ser cuidadosamente leves e gentis, que
remetessem a elas sempre uma imagem angelical:

Os conselhos de beleza destinados aos “brotos” realçavam a necessidade de manter-se


delicada e graciosa, ao passo que muitos contos e fotonovelas ainda chamavam as moças de
“pequenas”. Assim, uma pequena era um “brotinho” cujo encanto estava nas linhas de seu
delicado corpo, na cútis acetinada, na voz aveludada, nos pés mimosos. Mas havia rigores a
aceitar e a vigiar: era preciso saber andar, se sentar, dançar, descer as escadas, sair de um
automóvel e ainda conversar, usar os talheres e sorrir. (DENISE SANT’ANNA, 2014, p. 92)

A elas, portanto, sempre cabia investigação alheia, seu comportamento refletia diretamente
nos relacionamentos, podendo relegar uma mulher a completa solidão e ao estereótipo de
“encalhada”. Os atrativos físicos sempre foram realçados, já que por séculos a ideia de que natureza
feminina não era apta ao desenvolvimento de suas faculdades mentais, deixou a elas o lugar da
inferioridade e “aos homens, o espaço público, político, onde centraliza-se o poder; à mulher o
privado e seu coração, o santuário do lar. Fora do lar, as mulheres são perigosas para a ordem pública”
(ANA MARIA COLLING, 2014, p. 24). Isabel Benlloch (2005) trata do mito da feminilidade, detalha
a ideia de que a vida das mulheres só é significada em sua relação direta com os homens, que sua
função é transmitir aos filhos e filhas a visão de mundo dos homens, que seu papel sexual é de
reprodutora e fonte de prazer masculino, ao fim da explanação a autora lamenta que essa reprodução
subjetiva do espaço feminino ainda sobreviva. Ela sobrevive de tal forma que as próprias mulheres
incorporaram essas identidades na construção de si, de forma que ao anunciarem no Classiline
ressaltam apenas suas características físicas.
O contrário também é refletido nos anúncios. Já que as mulheres foram destinadas à
inferioridade, coube aos homens, durante séculos o papel de superioridade, de autoridade e de
provedor. Desta maneira, em seus classificados ressaltam suas profissões. Para Isabel Benlloch
(2005), eles se transformaram na classe dominante, que os distribuiu em modelos de masculinidade,
sendo eles: brancos, heterossexuais, proprietários, saudáveis e urbanos. A autora ainda acrescenta que
essas construções tem início na infância, quando o menino é ensinado a se privar de certos
sentimentos e comportamentos, que são vistos como femininos:

Aunque sea someramente quiero señalar que el proceso por el que los varones
internalizan la construcción social de la masculinidad es similar al descrito. Desde el
poder patriarcal se construye un modelo ideal y por tanto inalcanzable de masculinidad.
852
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Como plantea Kimmel (1997) la definición hegemónica de la masculinidad es la de um
hombre en el poder, un hombre con poder y un hombre de poder. Si la masculinidad es un
indicativo de poder debe demostrarse constantemente con manifestaciones que lo confirme.
Por ello, los hombres deben esforzarse para demostrar que no son mujeres, que son
verdaderos hombres y para ello reafirmarse en que deben ser varoniles; activos frente a la
pasividad; fuertes frente a la debilidad; enérgicos frente a lo pusilámine; dominantes frente a
la sumisión; independientes frente a la dependencia; con criterio y argumentos frente a la
obediencia; mantener el honor frente al deshonor y la razón frente a la emoción. (ISABEL
BENLLOCH, 2005, p. 125)

Dito isto, concebeu-se a ideia de que a imagem masculina sempre deveria refletir
comportamentos sérios, que reforçam sua força, sua segurança. Já suas características físicas
deveriam evidenciar sua brutalidade natural, sua postura firme, sua sobriedade, etc. Suas relações
deveriam ser baseadas no paternalismo, sendo eles sempre responsáveis pelo zelo dos outros, sejam
filhos e filhas ou esposa. Sua integridade deveria ser revigorada diariamente, mostrando seu poder de
mando em casa, no trabalho e também na política. A eles, sempre a figura de equilíbrio e honra.
Qualquer desvio dessas características da identidade masculina realçariam sua proximidade das
mulheres, sendo estereotipados como “frangote”, “mariquinha”, “baitola”, “bixinha”, “viado” ou
“mulherzinha”:

Com ou sem modismos, havia uma tendência em considerar os traços faciais harmoniosos
como qualidades mais femininas do que masculinas. Em várias regiões do país, concordava-
se que a beleza com algum aspecto feroz ou mesmo brutal cabia muito bem aos homens.
Aliás, segundo boa parte da propaganda, as mulheres tinham rostos ou faces, mas os homens
possuíam caras, e sobre estas, no lugar de deslizar um creme hidratante, o mais indicado era
passar a navalha de barbear. (DENISE SANT’ANNA, 2014, p. 28-29)

A virilidade, contudo, não deixou de ser um importante símbolo da masculinidade, além de


demostrar força e autoridade no trabalho e no lar, os homens continuariam devendo mostrar toda sua
potência sexual na cama, reforçando seu perfil dominador e por vezes, violento:

Encarnando a imagem de “lutadores”, ainda tinham que ser sexualmente ativos e sustentar
financeiramente a família, exercendo a autoridade e poder – quando não a força e a violência
física – no meio familiar e no trabalho. Marcas corpóreas como cicatrizes, cortes, arranhões,
tatuagens, mutilações comprovavam o desempenho do homem em sua trajetória de heroísmo;
eram provas de uma história exibida com orgulho, impondo respeito. Eram as demonstrações
concretas de valentia e da luta, base da cumplicidade entre machos e contraste com os corpos
de pederastas e “missexuais”. A questão da virilidade associada às lutas físicas ou
morais expandia-se nas metáforas linguísticas utilizadas constantemente nos conflitos:
“mostrar o pau”, “meter o pau”, “botar o pau na mesa”. O órgão masculino era

853
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
comumente definido como “pau”, “porrete”, “pistola”, “canhão”, “espada”. (MARY DEL
PRIORE, 2014b, p. 158)

Esses “nomes” dados ao órgão genital masculino expressam a cultura do falocentrismo,


demonstrando a prevalência da dominação masculina nas relações, especificamente nas relações
sexuais. Essa cultura em que a relação centraliza-se no falo torna a mulher mera receptora da
penetração, ou seja, dominada fisicamente por ele, submetendo-se passividade no ato sexual, mas
também nas interações para além dele. Nessa lógica, os anúncios presentes no Classiline conseguem
demonstrar o funcionamento dessas relações de gênero baseadas no poder dele e na subordinação
dela.
Além desses detalhes, quase todos os homens colocaram em seus anúncios a idade e descrição
da mulher ideal para eles e ainda prometem “grandes emoções, linda e eterna amizade, devaneios e
uma boa conversa para curar insônia” 346
. À vista disso, tanto eles como elas demonstram interesse
no relacionamento heteronormativo, imposto histórico, social e culturalmente como o ideal e natural
do ser humano. A busca por relacionamentos que reforçam esses estereótipos elencados acima,
(re)afirmam a intenção de enquadrar-se no padrão social esperado pela sociedade, o da formação de
um casal heterossexual e monogâmico.
Com objetivo de “aproximar paulistanos solitários ou que tenham dificuldades para encontrar
parceiros para interesses específicos (jogos, esportes, coleções)” 347
, o classificado foi dividido em
categorias. Essas categorias são: interesses mútuos, pessoas de mais de 50 procuram pessoas de mais
de 50, homem procura mulher, mulher procura homem, mulher procura mulher, homem procura
homem, casal procura casal. Os anúncios contam com criatividade, pessoas e desejos dos mais
variados. Entre eles:

GATA - se você tem entre 18 e 25 a e está proc uma amizade p/ curtir bons momentos me
ligue CP 1323.
MORENO CLARO - Charmoso, proc mulheres de bom nível sócio-econômico e cultural CP
1315.
RAPAZ - solteiro, 39a., nível univers., situação financ definida, procura rapazes p/ amizade.
CP 1034.
PROFESSORA - cas., 32a, gordinha Proc. Amigas na mesma situação p/ troca de idéias CP
1321.

346
Idem.
347
Classificado pessoal estréia hoje. Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12533&anchor=4962379&origem=busca&_mather=47bf8617f6fcd0
85&pd=137606c61f50cc084db9b447fd4e12d2. Acesso em: 25 de setembro de 2019.
854
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CASAL - 40/23a. proc casal sem preconceitos estéticos temos bom humor CP 1353.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, Classiline, 1 de setembro de 1994.

Afim de continuar trabalhando com as construções históricas e sociais das identidades, recorro
a Michel Foucault, que em seu História da Sexualidade 1: a vontade de saber (2015), demonstra
como ao longo dos séculos foi construído um discurso sobre o sexo no Ocidente. Nessa obra o autor
disserta sobre as relações de poder-saber-prazer (p. 16) que sustentou um discurso sobre a sexualidade
humana e definiu sobre os corpos permissões e privações, e rotulou, baseado na moralidade e religião,
os considerados maus hábitos sexuais. Desta maneira, a sociedade inseriu uma “economia do prazer”
(p. 78), no sentido de determinar quem poderia saber mais e quem deveria saber menos:

Consideremos a hipótese geral do trabalho. A sociedade que se desenvolve no século XVIII


– chame-se burguesa, capitalista ou industrial – não reagiu ao sexo com uma recusa em
reconhecê-lo. Ao contrário, instaurou todo um aparelho para produzir discursos verdadeiros
sobre ele. (FOUCAULT, 2015, p. 78)

Levando em conta esse ponto de vista, devemos entender que para além da sexualidade, essa
sociedade produziu “verdades” sobre os corpos, o gênero, os papéis sociais, as raças, etc. É nesse
caminho que vamos interpretar esses classificados. Nessas buscas interativas pessoais, no Classiline,
ficam evidentes expressões das mais diversas, sobre o que é permitido e proibido, bonito e feio,
aceitável e inaceitável. Neles, os anunciantes reproduziram os discursos dominantes, que determinam
nessa “economia do saber” – atualizando a expressão usada por Foucault (2015), para melhor servir
essa explanação – o que é desejável para a sociedade. Reproduzem os discursos produzidos pelo topo
dessa economia - religião, Estado, medicina, mídia - que incorporou na base - família, escola,
amizades, etc. - esses estereótipos, que são perpetuados pelas relações de poder presentes em todas
as instâncias sociais.
Dois classificados citados acima direcionam suas procuras para a estética, não de forma
exigente, mas que nos fazem refletir sobre alguns pontos. “PROFESSORA” e “CASAL”, falam sobre
estética corporal. Ela quer encontrar uma amiga na mesma situação – gordinha – e o casal, assume
não ter preconceitos estéticos. Aqui, vemos dois anúncios que denunciam indiretamente os padrões
de estética corporal vigentes, que vinham evidenciando a necessidade de ser belo e jovem.
No início dos anos 1960 e 1970, no Brasil, passou-se a valorizar a beleza de ambos os
sexos, é quando o peso corporal e principalmente a barriga passa a ganhar destaque importante

855
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
para enquadrar-se nos padrões de beleza. O excesso de gordura era criticado e a moda passou a ditar
uma cultura da magreza.

Na mesma época, a moda das calças saint-tropez soltava a cintura e apertava os quadris,
valorizando barrigas magras e nádegas femininas que começavam a empinar. A cintura solta
não bastava ser fina, “de pilão”, conforme se dizia. O cós baixo das calças, assim como o uso
do biquíni, demandava que toda a barriga fosse magra, firme e bronzeada. Passou a ser feio
ostentar alguma saliência ou flacidez logo abaixo do umbigo. (DENISE SANT’ANNA, 2014,
p. 128, grifo da autora)

A urgência de ser magro destinou o mercado a investir em propagandas de remédios e chás


para o emagrecimento, o açúcar tornou-se vilão da alimentação, as cirurgias plásticas e procedimentos
estéticos ganharam sucesso, além do amplo crescimento e divulgação das academias de ginástica e
musculação. A ditadura da magreza estava posta:

Jovens, muito jovens: altas, magras, ombros largos, pernas longas e uma pele de cetim. A
voga esportiva desenvolveu-se ao sabor de um ideal de beleza com mulheres medindo 1,70m
de altura e com ombros retos, muito diversos dos ombros das misses e vedetes dos anos 1950
[...] o charme das baixinhas, roliças, do tipo mignon parecia definitivamente esquecido. O
mesmo já acontecia com as “rechonchudas” e os “gorduchos”. (DENISE SANT’ANNA,
2014, p. 162, grifo da autora)

Ao evidenciar em seu anúncio a ausência de preconceitos estéticos, o casal assume a existência


dos mesmos, e ainda garante com esse comportamento atingir maior público que possa ter interesse
em fazer troca de casal com eles. Já a professora, ao usar o diminutivo “gordinha” tenta de certa
maneira amenizar o excesso de peso, demonstrando claramente a exigência de um perfil esbelto
presente na sociedade:

Envelhecer começava a ser associado à perda de prestígio e ao afastamento do convívio


social. Identificava-se gordura à velhice; era a emergência da lipofobia. Não se associava
mais o redondo das formas – as “cheinhas” – à saúde, ao prazer, à pacífica prosperidade
burguesa que lhes permitia comer muito, do bom e do melhor. A obesidade tornou-se critério
determinante de feiura, representando o universo do vulgar, em oposição ao elegante, fino e
raro. (MARY DEL PRIORE, 2014a, p. 224)

Nos anúncios “GATA” e “RAPAZ” percebemos o comportamento inverso dos citados acima,
a valorização da juventude. Ela deixa de forma escancarada e bem delimitada que procura jovens
entre 18 e 25 anos, já ele é mais sutil em sua descrição e aponta para o interesse em “rapazes”. A
856
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
valorização da beleza passa então pela estética corporal, desde o peso até a viçosidade da pele.
Envelhecer torna-se algo temido e o mercado dos cosméticos, das cirurgias plásticas, estética e pílulas
antienvelhecimento passaram a garantir amplo espaço nas mídias. A sociedade moderna exige corpos
sadios e jovens. A ditadura da magreza encontra consistência ao lado da ditadura da juventude:

É evidente, também, que o otimismo diante da cirurgia plástica é proporcional ao medo de


envelhecer. Essa é outra razão geral e inegável que explica o sucesso do recurso ao bisturi.
Aliás, os conselhos de beleza posteriores à década de 1960 tendem a referir-se à velhice como
se esta devesse ser um estado passageiro – daí a ideia de que se está velho, e não de que se é
velho -, uma indecência passível de ser revertida, curada ou pelo menos grandemente
amenizada graças às cirurgias. Em numerosos anúncios para cosméticos e vitaminas,
envelhecer sem ser velho deixou de ser uma contradição em termos. Rejuvenescer tornou-se
uma necessidade cada vez menos discutível para garantir emprego, cônjuge e aceitação
social. (DENISE SANT’ANNA, 2014, p. 166, grifo da autora)

Para além das questões estéticas, nossa sociedade relegou aos/as velhos/as a solidão, os asilos,
o isolamento, os hospitais, o cemitério. Leandro Karnal (2018) nos sugere que direcionamos a eles/as
a “solitária social” (p. 159). Segundo ele, a modernidade e com ela o aumento da expectativa de vida,
transformou a velhice em um monstro temido e evitado por todos nós:
Juventude, ilusão de imortalidade e vigor infinito, individualização criaram em nós a ideia
(não necessariamente natural) de que a experiência da morte seria um estágio final de um
processo natural ordenado, no qual a velhice pode ser postergada, evitada, até. Logo, alguém
velho é um espelho do que não quero encarar, de finitude, da morte. Não é à toa a solidão
que se impõe aos idosos em asilos, casas de repouso, suas próprias casas. Sua perda de
performance, sua falta de ligação com o mundo como ele é são naturalizadas e alimentadas.
O idoso torna-se aquilo que não quero de forma alguma: o indício de seu próprio fim.
(KARNAL, 2018, p. 163)

Mais adiante percebemos outros aspectos valorizados pelos anunciantes, o nível social,
cultural e econômico que também foi evidenciado nos anúncios de “MORENO CLARO” e
“RAPAZ”. O primeiro deles diz ter preferência por mulheres com “bom nível sócio-econômico e
cultural” e o segundo manifesta seu nível universitário e situação econômica bem definida.
Filhos de um momento de oscilações brasileiras, frutos da Ditadura Militar e a sucessiva
redemocratização, os brasileiros que viviam ativamente esse período no país sentiram por diversas
vezes as oscilações econômicas nacionais. Daí, talvez, venha à preocupação diante do nível social de
futuros/as parceiros/as, expressa nos anúncios. O Brasil que passara por “anos de ouro”, enfrentava
ainda os vestígios da grave inflação que assolou os anos 1970 e 1980, e agora invadia os anos
1990.

857
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A historiadora brasileira Mary Del Priore (2019, p. 122 e 135), especialista no cenário
nacional, relata em seu Histórias da gente brasileira, volume 4: República – Testemunhos (1951-
2000) esse período de indecisões enfrentado no país. Passando pelo momento em que “o fechamento
político ocorreu paralelamente à prosperidade econômica” e em seguida sofrendo quedas econômicas,
que no período de transição “entre 1981 e 1983, o país perdia cerca de 7% do PIB, e a inflação era da
ordem de 95%”, o que apenas mostrava o começo de uma temporada de escuridão na economia
nacional.
O aumento da inflação tornou-se característica dos anos 1970, 1980 e 1990 uma vez que anos
antes desses anúncios nos classificados interativos, a situação do Brasil com implantação do Plano
Real mostrou o fracasso do projeto de Itamar Franco onde “a inflação atingiu a barra de 1.100% em
1992, alcançando 2.708,55% no ano seguinte – a maior da história do Brasil” (MARY DEL PRIORE,
2019, p. 175). Diante disso, não é de se espantar que a preocupação dos anunciantes seja válida,
contudo, também aponta para valorização de outros elementos que só podem ser acessados em uma
classe social elevada.
Contudo, apesar de se apresentar como um serviço inédito no país, anos antes outras revistas
já praticavam esse serviço de comunicação por aqui, mas não da maneira organizada e amplamente
divulgada como o classificado pessoal interativo. Podemos encontrar, por exemplo, na pesquisa de
mestrado de Antonio Fontoura Junior (2015) uma gama de revistas e jornais que divulgavam anúncios
e experiências sexuais de casais praticantes de swing, mas que não tinham uma seção específica para
anúncios de pessoas:

Situação inexistente para os casais no final dos anos 60 que, animados pelo crescente
questionamento dos tabus ligados à sexualidade, e incentivados a participar de uma revolução
sexual que acreditavam presenciar, apelavam para a seção “Diversos” dos classificados dos
jornais, ou aguardavam até seis meses para lerem seu anúncio publicado nas revistas mais
populares. (JUNIOR, 2015, p. 23-24)

Além desse exemplo de pesquisa a respeito de anúncios sexuais nos jornais e revistas, tivemos
a exibição da revista Fiesta no primeiro filme de sexo explícito do Brasil, Coisas Eróticas (1981).
Em sua pesquisa jornalística Denise Godinho e Hugo Moura dedicam alguns trechos de seu livro para

858
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
falar dessa experiência do anúncio também de swing e sua aparição nessa obra tão marcante do cinema
da “Boca do Lixo”348:

Era 15 de outubro de 1981, uma quinta-feira. A reunião estava marcada para as quatro horas
da tarde, no escritório da Empresa Cinematográfica Rossi. Laerte organizava os rascunhos
escritos durante a noite anterior em uma pasta. Pelos seus cálculos, aquele enredo duraria
cerca de quarenta minutos. Era a história de dois casais que se conheciam por um anúncio de
jornal para amantes de swing. [...] Andrev sentou-se no canto do sofá e Marília no braço do
móvel, dedicando suas mãos aos carinhos na nuca daquele que era seu companheiro de cena.
Com o jornal na mão, ele lê um anúncio: São Paulo, 10 de maio de 1981. Queridos amigos,
lemos o seu anúncio na revista Fiesta e, depois de analisarmos vários outros anúncios,
resolvemos optar pelo vosso. E, como não temos nenhuma experiência na prática do swing,
gostaríamos de conhecê-los... Segue a nossa foto para apreciação. (DENISE GODINHO;
MOURA, 2012, p. 20 e 65, grifo deles)

Esse período, no entanto, foi marcado por uma grande dualidade social. O governo civil-
militar que chefiava o país tratava de censurar as possíveis aberturas morais no campo da sexualidade,
temendo pelas influências internacionais do movimento feminista, entre outros. O presidente
Figueiredo declarou abertamente sua guerra direta contra o afrouxamento dos “bons costumes” do
país e criticava tanto o cinema brasileiro das pornochanchadas349 até as revistas e jornais:

Em março de 1982, o presidente Figueiredo, em rede nacional e horário nobre, fez um


pronunciamento sobre a “escalada do obsceno e pornográfico no país” [...] Foram, aliás, duas
edições desse tipo, os números de carnaval da revista Fiesta e do jornal nanico Repórter, que
inspiraram a mensagem do presidente Figueiredo. As publicações, assim como os números
especiais sobre o recém-passado carnaval, exibiam fotos escandalosas do que se passava nos
bailes, mostrando, inclusive, sexo explícito [...] Segundo estudiosos, na mesma época eram
recorrentes as relações sexuais entre homens e travestis, geralmente passivos. A
bissexualidade feminina também aparecia e o gênero revelava sem retoques ou hipocrisia, a
fauna sexual do mundo real [...] As fitas sofriam censura. Não política, mas a moral. Diversas
exigências em nome dos bons costumes tornavam as histórias tão mutiladas pelos censores
que ficavam ininteligíveis. Seios nus, por exemplo, só podiam ser mostrados um a cada vez.
A ousadia maior era exibi-los juntos, assim como mostrar as nádegas dos atores. Pelos
pubianos eram raros. O nu frontal masculino não ocorria. O mesmo palavrão só podia ser
repetido duas vezes. Três, era demais. (MARY DEL PRIORE, 2014b, p. 188-189 e 191, grifo
da autora)

Contudo os anseios sociais eram grandes e esses filmes, revistas e jornais expressavam apenas
as demandas nacionais que necessitavam ser supridas. A Revolução Sexual já havia começado. A

348
Boca do lixo é uma região no centro de São Paulo que se tornou famosa por seu polo cinematográfico instalado
nos anos 1920 e 1930. Posteriormente se tornou região do cinema independente sem receber incentivos
governamentais, entre os anos 1960 e 1980. Um de seus cineastas mais importantes foi José Mojica Marins,
conhecido popularmente como Zé do Caixão.
349
Pornochanchada é um gênero brasileiro de filme, consolidado na década de 1970 que trazia em seus enredos uma
mistura entre comédia e erotismo.
859
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pílula anticoncepcional, o DIU (dispositivo intrauterino), as cirurgias íntimas, etc. caminhavam para
a suposta libertação sexual dos corpos.

A versão brasileira da revista norte-americana Cosmopolitan começou a ser publicada no em


1973 pela Editora Abril. Ela propunha a liberação dos prazeres de maneira muito mais
explícita e assumida do que as demais revistas. Nela, as propagandas e reportagens tenderam
a substituir os termos “marido”, “noivo” e “namorado” pela palavra “homem”. Tratava-se de
“ter um homem” ou de conquista-lo, o que não especificava a situação conjugal [...] As
mulheres eram, portanto, sedutoramente convidadas a passar ao ataque, mas sob a condição
de conhecerem o próprio corpo e, em particular, o desejo sexual [...] No lugar da negação do
desejo, tratava-se agora de saber descobri-lo, conseguir manuseá-lo em benefício próprio,
calculá-lo, dominá-lo. O que implicava torná-lo um material objetivamente concreto.
(DENISE SANT’ANNA, 2014, p. 153)

Dentro das mídias de comunicação a música sempre teve um papel fundamental na exposição
de comportamentos e ideais sociais do período em que fora produzida e veiculada. Aqui não foi
diferente. Entre as músicas que embalaram a década de 1980, Amante Profissional (1985) da banda
Herva Doce, narrava exatamente um anúncio sexual do estilo dos classificados interativos. Uma
mulher telefona para um homem que supostamente havia conhecido em um anúncio. Ele então atende
e se descreve com tamanha precisão:

Moreno alto, bonito e sensual


Talvez eu seja a solução
Do seu problema
Carinhoso, bom nível social
Inteligente e à disposição
Pra um relacionamento
Íntimo e discreto
Realize seu sonho sexual
Pra qualquer tipo de transação
Sem compromisso emocional
Só financeiro
E o endereço pra comunicação
Da caixa postal
Do amante profissional
Amor sem preconceito
Sigilo total!
Sexo total!
Amante profissional
Fonte: Site Letras 350.

A música “explodiu” em nível nacional no período como uma espécie de sátira social. Se a
situação exposta na canção fosse oposta, um homem ligando para a mulher que se apresenta no

350
Disponível em: https://www.letras.mus.br/herva-doce/172221/. Acesso em: 22 de junho de 2020.
860
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
anúncio como produto, provavelmente não seria tão aceita pelo público, por se tratar de prostituição,
um tabu social presente até os nossos dias. O próprio uso do termo “amante profissional” tenta, de
certa maneira, suavizar a condição de alguém que procura uma relação sexual baseada no interesse
exclusivamente financeiro, realçando mais uma vez a tentativa de aceitação do público, ao tabu do
aluguel do corpo ou do sexo, no Brasil.

A REVOLUÇÃO DE 28 DE ABRIL: O ADVENTO DO UNIVERSO ONLINE


Durante esse período o grupo Folha de S. Paulo apresentou também outra inovação. O diretor-
executivo do projeto disse que “o grupo Folha está investindo no futuro da comunicação" 351. Focados
em acompanhar o crescimento exponencial da internet – como a própria matéria sugere – eles criam
uma ferramenta digital, o Universo Online, mais tarde ficando conhecido apenas como o portal UOL.
A proposta da nova ferramenta era integrar todos os serviços e produtos do grupo Folha de S. Paulo,
criando as versões digitais dos seus jornais e revistas, além das edições em português de jornais
internacionais. O banco de dados do site possibilitava a busca por palavras específicas dentro dos
textos.
O entusiasmo diante da nova empreitada foi grande, de tal forma que no dia 28 de abril de
1996, data da estreia da nova ferramenta, o empreendimento teve dois pequenos espaços dedicados a
ele na capa no jornal e algumas outras páginas ficaram carregadas de informações a respeito do
serviço. Mas três delas em especial despertaram meu interesse.

351
Grupo Folha lança serviço na Internet. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/4/21/brasil/34.html. Acesso em: 4 de janeiro de 2020.
861
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 2: REVOLUÇÃO DE 28 DE ABRIL

Fonte: Captura de tela do jornal Folha de S. Paulo.

A primeira ilustração trazia um texto com a seguinte informação: “Em 1958, Assis
Chateaubriand352 revolucionou as comunicações no Brasil ao inaugurar a primeira televisão” 353
,
segue dizendo que mais uma revolução como essa acaba de chegar, com o Universo Online. A
Revolução de 28 de abril, que futuramente seria estudada. Como um vislumbre o grupo Folha de S.
Paulo acreditou imensamente no sucesso que o UOL seria. E realmente, trouxe resultados muito
positivos. De modo que uma matéria de 2010 da própria Folha, expressa o sucesso da ferramenta em
seu título “Folha e UOL passam de 4 milhões de cliques com transmissão” 354. E o êxito se manifestou

352
Assis Chateaubriand foi uma importante figura da Comunicação no Brasil, fundador de vários jornais nacionais,
ele também foi pioneiro na comunicação televisiva nacional com a criação da TV Tupi em 1950, sendo esta a
primeira emissora de televisão da América Latina. Considerado o pai da televisão no Brasil, ele foi retratado
recentemente no terceiro episódio da série Hebe: a estrela do Brasil (2019) na TV Globo, que relata a chegada da
televisão no Brasil, onde o mesmo aparece como figura influente do meio, mostrando grande entusiasmo diante de
tamanha empreitada.
353
Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?anchor=538801&pd=18ac726b5e11225a9c8132f2657d062d. Acesso em: 4 de
janeiro de 2020.
354
Folha e UOL passam de 4 milhões de cliques com transmissão. Disponível em:
http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=18464&anchor=5553368&origem=busca&_mather=47bf8617f6fcd0
85&pd=ec1b2b57b969e94b3f6f5fe43af90f68. Acesso em: 28 de setembro de 2019.
862
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
também com a Amazon 355 que fez uma pesquisa sobre os sites mais acessados do Brasil e do mundo
no ano de 2017, e na categoria brasileira o uol.com.br ficou no sexto lugar do ranking 356.
Dentro dessa popularidade toda do UOL, o serviço específico do site que nos interessa é o
bate-papo. Uma semana antes da data da estreia uma matéria do jornal é bem objetiva quando fala
sobre a ferramenta, “na seção ‘Bate-papo’, o usuário poderá dialogar com outros usuários em tempo
real, pela tela do computador. Haverá ‘salas de bate-papo’ sobre assuntos diversos, de cinema a
computadores” 357. De maneira que na data da estreia o jornal publicou a organização do site e suas
funcionalidades, onde uma das setas informava diretamente onde acessar o chat.
358
De acordo com o site de assinatura do bate-papo esse serviço do UOL atualmente conta
com mais de 4500 salas e 226.500 lugares. A plataforma é dividida em seções base das salas com as
seguintes temáticas: amizade, idades, namoro, papo-sério, sexo, cidades e regiões e criadas por
assinantes. A utilização é gratuita e também conta com aplicativo para celulares, lançado em 2014 e
que tem um novo recurso denominado “perto daqui”, onde pessoas podem se comunicar com outros
usuários que estão a poucos quilômetros de distância. O/a usuário/a ainda conta com a possibilidade
de buscar por uma sala ou participante específico/a. O chat foi também responsável pela maior
audiência do site UOL, chegando a deter 50% do total de acessos (VIEIRA, 2003, p. 70).
O acesso ao chat é simples, de forma que o/a usuário/a deve entrar com um nickname 359 ou
apelido e precisa confirmar um código de segurança. Depois de entrar na sala ele/a tem a oportunidade
de teclar “com usuários de diversas idades, gêneros, etnias, brasileiros e estrangeiros de diversas
regiões do globo terrestre” (EMILI SILVA, 2019, p. 12). O Bate-Papo UOL foi uma das plataformas
de relacionamentos pioneiras no Brasil e mantém sucesso até hoje. O/a usuário/a pode apenas teclar
com as outras pessoas que encontra ali ou pode gravar áudios, mandar imagens e fazer chamada de
vídeo e voz ao vivo.

355
Amazon.com, Inc. (nome fantasia: Amazon; NASDAQ: AMZN) é uma empresa transnacional de tecnologia dos
Estados Unidos que foca em comércio electrónico, computação em nuvem, streaming digital e inteligência artificial.
Foi fundada por Jeff Bezos em julho de 1994, e sua sede localiza-se em Seattle, estado de Washington. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Amazon . Acesso em 22 de junho de 2020.
356
Os 50 sites mais acessados do Brasil e do mundo. Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/os-50-
sites-mais-acessados-do-brasil-e-do-mundo/. Acesso em: 22 de dezembro de 2019.
357
Grupo Folha lança serviço na Internet. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/4/21/brasil/34.html. Acesso em: 4 de janeiro de 2020.
358
Disponível em: https://assine.uol.com.br/batepapo#rmcl. Acesso em: 22 de dezembro de 2019.
359
Apelido. Usado para identificação de usuários na internet, em programas de bate-papo ou mensagem instantânea.
Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/nickname/. Acesso em: 22 de dezembro de 2019.
863
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As semelhanças entre os discursos, pseudônimos e organização do chat com o Classiline não
podem ser entendidas meramente como coincidências, mas sim como fruto de um processo de
deslocamento dos/as usuários/as, de saberes, fazeres, práticas e discursos de um empreendimento para
outro, onde o anonimato, ambiente de mistério, descobertas e confissões, fazem as relações de gênero
e a sexualidade aflorarem.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Classiline apresentou-se no Brasil como pioneiro nas redes sociais por conta de sua
estrutura organizada exclusivamente para receber anúncios pessoais interativos, que contou com
ampla divulgação e circulação no estado de São Paulo e seus arredores. Ali, podemos observar
identidades das mais diversas, que transitam entre o feminino e masculino, amplas orientações
sexuais, diversos interesses, mas especialmente amorosos e sexuais. Dentro desses anúncios
percebemos discursos construídos ao longo de toda história social e cultural humana, que se fizeram
perpetuar até aquele momento no Brasil e que infelizmente continuam a transmitir estereótipos até os
dias atuais.
Recorrer ao passado na tentativa de entender de onde e com quais influencias surgiram as
relações dos brasileiros com as redes sociais me fez chegar até esse pioneiro modelo de interação. Foi
através da criação desse empreendimento do grupo Folha de São Paulo, que inspirado nos
classificados do Los Angeles Times chegou até o Brasil essa inovação, que transmitiu suas formas de
usos, saberes e fazeres para o até hoje conhecido e amplamente utilizado Bate-Papo UOL, entre outras
redes sociais. Nosso comportamento diante dos interesses com as pessoas não se desviaram muito ao
longo das décadas que se passaram desde o Classiline, chegando a se aperfeiçoar ao nível do Tinder
360
, que se apresenta como um catálogo pessoal em nível de proximidade geográfica real, atendendo
às demandas de nosso mundo digital e virtual, que outrora foram atendidas pela imprensa através do
classificado pessoal interativo.
Levando em conta a quantidade de empreendimentos de comunicação visando ampliar as
relações humanas, podemos perceber que o esforço em transformar a solidão em convivência e

360
Tinder é uma aplicação multiplataforma de localização de pessoas para serviços de relacionamentos online,
cruzando informações do Facebook e do Spotify, localizando as pessoas geograficamente próximas. Esta aplicação
está disponível para os sistemas Android e iOS. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tinder . Acesso em:
22 de junho de 2020.
864
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
garantir múltiplas opções de companhia tem sido tarefa incansável nas últimas décadas. Nesse
sentido, para atender as demandas coletivas e garantir o sucesso das redes sociais as tecnologias são
(re)inventadas constantemente. Encontros, bate-papos, trocas de confidências, companhia em tempo
real, satisfação de prazeres dos mais diversos, acalento de presença humana ou de um companheiro
ou uma companheira. As buscas são amplas e o mercado da comunicação mantém um esforço
contínuo em suprir a necessidade humana de manter distante a solidão alcançando relacionamentos.

REFERÊNCIAS

BENLLOCH, Isabel Martínez. Construcción Psicosocial de los Modelos de Género: subjetividad y


nuevas formas de sexismo. IN: CASTILLO-MARTÍN, Márcia; OLIVEIRA, Sueli (orgs.). Marcadas
a Ferro: violência contra a Mulher, uma visão multidisciplinar. Brasília: Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres, 2005.

COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na
história. Dourados: Ed. UFGD, 2014.

DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher: amor, sexo, casamento e trabalho em mais de
200 anos de história. São Paulo: Planeta, 2014.

DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo:
Planeta, 2014.

DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira, volume 4: República, Testemunhos (1951-2000).
São Paulo: Le Ya, 2019.

GODINHO, Denise; MOURA, Hugo. Coisas eróticas: A história jamais contada da primeira vez do
cinema nacional. São Paulo: Panda Books, 2012.

GRUZINSKI, Serge. A águia e o dragão: ambições europeias e mundialização no século XVI. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.

JUNIOR, Antonio Fontoura. Pornotopias Conjugais: subjetividades e sexualidades no surgimento


do swing no Brasil. Curitiba, 2015.

KARNAL, Leandro. O dilema do porco-espinho: como encarar a solidão. São Paulo: Planeta do
Brasil, 2018.

PERROT, Michelle. História dos quartos. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

PRECIADO, Beatriz. Pornotopía: arquitectura y sexualidad en Playboy durante la Guerra Fría.


Barcelona: Editorial Anagrama, 2010.
865
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

SILVA, Emili Sabrina Ribeiro. Os opostos não se atraem: um estudo de caso sobre o Bate-Papo UOL.
IN: REIS, Aparecido Francisco dos; SILVA, Vivian da Veiga (orgs.). IV Simpósio de Gênero e
Sexualidade - Gêneros, Sexualidades e Conservadorismos: a Política dos Corpos, os Sujeitos e a
Disputa pela Hegemonia dos Sentidos Culturais – Artigos Apresentados nos Grupos de Trabalho.
Campo Grande: Life Editora, 2019.

VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da Internet no Brasil. Barueri, SP: Manole, 2003.

866
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AS DIVERSAS FACES DE JESUS NO DESFILE DA ESTAÇÃO PRIMEIRA DE
MANGUEIRA NO CARNAVAL 2020

Tiago Herculano da Silva361

Resumo: As escolas de samba se tornaram palco para comunidades do Rio de Janeiro buscarem visibilidade para suas
necessidades e, lutarem contra opressões sofridas pelo sistema político-social. Dessa forma, as agremiações podem se
apresentar como um Lugar de Fala, um lugar de representatividade e de luta da comunidade carente em que essas escolas
estão inseridas. A proposta deste artigo é analisar as diversas faces de Jesus no desfile da Estação Primeira de Mangueira
no carnaval de 2020 cujo enredo, A verdade vos fará livre, desenvolvido pelo carnavalesco Leandro Vieira, aproxima a
figura de Jesus daqueles que são oprimidos pelo sistema social da atualidade. Ao olharmos para os corpos crucificados
tentamos traçar a hipótese que os corpos dos foliões nas cruzes provocam indagações sobre como o sistema social subjuga
as minorias do nosso país e como dão voz as lutas e representatividade da mulher, do negro e pobre que estão à margem
dessa sociedade. Essa visibilidade termina por incomodar aqueles que detém o poder de fala do sistema, dessa forma, eles
tentam descredenciar tanto o carnaval como também o discurso apresentados pelas comunidades. Contudo, o discurso
sobrevive no corpo fluido do folião que carnavaliza as suas dores, sonhos e desejos.

Palavras-chave: Carnaval; Mangueira; Jesus; Representatividade.

INTRODUÇÃO
No carnaval de 2020 o carnavalesco Leandro Vieira da escola de samba Estação Primeira de
Mangueira realizou o enredo intitulado A verdade vos fará livre em que desenvolve a possibilidade
do retorno de Jesus nos dias atuais, porém esse Jesus não nasce em volta da pompa barroca religiosa
e sim na favela como um integrante de comunidade carente dando voz as pessoas dessa comunidade.
Se Cristo nascesse hoje em uma comunidade pobre, ele não seria igual a todos que daquele
lugar fazem parte? Ele não jogaria uma pelada com os amigos aos domingos? Ele não usaria celular
e tiraria suas selfies para postar em suas redes sociais? Ele não iria para uma quadra de escola de
samba? Será mesmo que Cristo nascido num atual universo de um morro seria um ser de luz imune
as influências e opresões sociais do atual sistema politico e social do nosso país, e nunca andaria com
os pobres da favela pelos becos e vielas estando presente apenas nos luxuosos templos evangelicos
ou nos altares católicos? A imagem e semelhança desse Jesus seria a nossa ou seria aquela esculpida
e ornamentada nos altares religiosos? Que corpo tem esse Jesus e por que sua face negra e pobre
incomodou tanto os detentores do poder? São questões que o enredo me provocou assim que tive
conhecimento da proposta e compartilho com todos nesta escrita.

361
Doutorando do curso de Teatro, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, campus I. E-mail:
txchyagoserectus@hotmail.com
867
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Começo a trilhar um longo processo de pesquisa acadêmica de doutorado em que estudo esse
desfile. Pesquisa desenvolvida no programa de pós-graduação da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC) sobre orientação da professora doutora Fátima Costa de Lima. A pesquisa
encontra-se em andamento e muitas questões que permeiam esse artigo ainda estão sendo
respondidas. Peço ao leitor que debruce-se comigo nas provocações feitas por este artigo, mas entenda
que não trago respostas definitivas. Trago questionamentos que norteiam nossa pesquisa e que tentam
encontrar espaços de diálogos no campo acadêmico. Visamos provocar uma reflexão sobre o tema e
estimular ao diálogo tentando trazer o entendimento das escolas de samba como um produto artístico
e significante da linguagem poética do artista.
Neste artigo, vamos realizar uma breve análise das diversas faces de Jesus e suas variadas
formas corporais qual foi representado no desfile da Mangueira. Tentaremos entender como a imagem
deste Jesus nascido no morro da Mangueira relaciona com o corpo do folião possibilitando questionar
o sistema social e político de nossa sociedade atual, bem como gerar um possível lugar de
representatividade e de luta da comunidade carente em que essas escolas estão inseridas.

DESENVOLVIMENTO
O primeiro ponto que usamos para entender o desenvolvimento do enredo, a criação das faces
de Jesus e a repercussão do desfile foi o motivo que, possivelmente, tenha levado o carnavalesco
Leandro Vieira a realizar a ideia de um retorno de Cristo nos tempos atuais e utilizando das feições
das minorias das comunidades brasileira. Em entrevista para o canal do youtube da Rádio
Arquibancada, Leandro fala sobre a proposta desse enredo para 2020 que tem como origem as
inquietações encontradas por ele no morro da Mangueira:

[...] o que me cerca, o que me serve de contorno, influencia diretamente aquilo que eu
proponho para o carnaval que eu quero apresentar. Por exemplo: essa ideia de levar o Cristo
para o carnaval de 2020 ela tem intimidade profunda com o morro da Mangueira petencostal.
O morro da Mangueira evangélico. O cresciemnto dessa mentalidade evangélica. De pessoas
que, eu acho que de alguma forma na minha cabeça, é preciso dialogar porque eu convivo no
morro da Mangueira; eu convivo com pessoas de lá. E bem próximo a quadra da Mangueira,
bem proximo a entrada da Mangueira, têm igrajas envangélicas que dialogam naquele
universo. [...] disputa espaço, disputa narrativa [...] A informação, por exemplo, de que
escolas de samba estão perdendo baianas porquê baianas estão virando evangélicas, pra mim,
é uma informação importante que desperta uma centelha e essa centelha quer levar ao
debate e esse debate, na minha cabeça, pode virar carnaval. [...] Isso gera na minha
produção artistica uma inquietação [...] a inquietação tem sido uma espécie de norte

868
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
para o meu trabalho plástico e de discurso de mensagem artística (VIEIRA apud
CONVERSA FRANCA, 2020, 41:46).

Possivelmente esse fato de baianas estarem sendo perdidas para igrejas evangélicas tem como
base o argumento que o samba é pecado, de que no samba e na escola não existe Deus. Pensando em
uma resposta para esse acontecimento e buscando dialogar com o pensamento petencostal, de que
Deus não habita nos locais que não sejam locais de fé como templos e igrejas, Leandro desenvolve o
enredo da Mangueira de 2020 com essa possibilidade do retorno de Cristo nos dias de hoje nascendo
no morro da Mangueira. Para entendermos melhor a proposta do enredo voltamos os olhos para sua
sinopse:

Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais popular. Sem
posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao lado daqueles que a sociedade
virou as costas oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. [...]
Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome, para o mal dito
“de bem” – e com rígido contorno de moralidade – muito já foi realizado de forma estanque
ao sentido mais completo do AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e
ágape. Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser um, exclui
os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive daqueles que a escolha pelo
modelo “oficial” quis esconder. Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas
branca e masculina. Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que
a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada
e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele
lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram
ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu
corpo. [...] Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades,
chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas
ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi
entendida. Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas
mesmas ideias. Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira,
saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui
fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada. [...] Fitando
o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte. Sorri, como se pego em
meio a brincadeira e se soubesse humano também. Entendendo que ali ele é rebento e que
todos, sem exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para
garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto
canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE (VIEIRA, 2020, p. 119-120).

A proposta do carnavalesco é falar de um Jesus que represente as minorias oprimidas. Em


declaração no canal do Youtube do jornal Estadão carnavalesco declara que “Meu Jesus tem a cara

869
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
do oprimido do Brasil de hoje”362. Com essa proposta as feições de Jesus se tornam a imagem e
semelhança, seja das minorias do atual Brasil. Se o desfile fala de um Jesus que nasce na favela e
representa as minorias, ele não teria como ter olhos azuis e feições de um Deus europeu, assim como
é a representação mais vigente da figura de Jesus para muitas pessoas em nossa sociedade machista
e patriarcal. Dessa forma, esse Jesus não é a representatividade do branco com cabelo liso, olhos azuis
e heteronormativo. Assim como nas escrituras sagradas esse Jesus também nasce em um lugar pobre,
porém a proposta de fazê-lo nascer em uma favela é criar, ao nosso entender, um signo de
representatividade com os traços e hábitos das pessoas dessa localidade. Muitas vezes a imagem de
um Deus branco de olhos claros e cabelos lisos – criada pelo cristianismo – é colocada como algo
distante daqueles que não possuem as mesmas caracteristicas, ou seja, aqueles que não possuem
semelhança como o negro, pobre e favelado. É retirado dessa parcela da sociedade seu
reconhecimento por sua imagem e semelhança.

O fato é que, historicamente, o embranquecimento de uma figura de protagonismo no que


diz respeito à difusão de valores, contribuiu para que cristãos alimentassem uma afeição
profunda pelos homens cujos traços aproximavam-se do Jesus do retrato, e nenhuma empatia
para aqueles que se diferenciam. (VIEIRA, 2020, p. 121).

Quando esse Jesus nasce no morro da Mangueira ele nasce com os traços e feições das pessoas
desta localidade, com a mesma cor de pele, de olho, com o mesmo cabelo, mesma linguagem e hábitos
e isso resulta e provoca um processo de reconhecimento nas comunidades, no qual oportuniza se
verem naquela figura de Deus. Um Deus próximo a imagem dessa população estaria também em sua
cultura, seus costumes e festividades, assim, Deus também estaria no carnaval. Em entrevista
atribuída para Ruan Rocha no site Carnavalizados o carnavalesco Leandro Vieira faz a seguinte
colocação sobre a criação da imagem do Deus como branco e sobre a importância de representá-lo
com uma imagem negra:

Na produção iconográfica do cristianismo, Maria e José foram apresentados como uma


mulher branca e um homem branco. Representá-los na figura de Nelson Sargento e Alcione,
um homem negro e uma mulher negra, é falar de representatividade. Representatividade é
uma questão política. Apresentar um Jesus não normativo desperta o entendimento de que

362
'MEU JESUS TEM A CARA DO OPRIMIDO DO BRASIL DE HOJE', diz carnavalesco da Mangueira. [S. l.:
s. n.], 2020. 1 VÍDEO (3min 13seg), son., color. Publicado pelo canal Estadão. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=hsO8nVMa6js>. Acesso em: 15 set 2020.
870
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ele não era branco. Se não falarmos as pessoas não sabem que esse Jesus foi inventado pela
Europa, pelos renascentistas, pelos pintores espanhóis (VIEIRA apud ROCHA, 2020, s/p).

Nelson Sargento, compositor e cantor, é o atual presidente de honra da Mangueira e Alcione,


cantora, fundadora da escola mirim da agremiação, Mangueira do Amanhã, ambos integrantes da
comunidade e fortes figuras do carnaval mangueirense.
Nessa proposta de realizar uma releitura da figura de Jesus aproximando-a a imagem e
semelhança do negro, favelado e pobre das comunidades carentes, entendemos que esse ato retira da
igreja e da alta sociedade o poder perante essa figura. Os pais de Jesus serem negros e de trazer figuras
relevantes dentro de uma comunidade carente fornece a essa comunidade uma visibilidade que
incomoda aqueles que não querem que a figura de Jesus seja desvinculada da europeia e aqueles que
não querem o pobre tenha representatividade social.
Para entendermos um pouco sobre a construção dessa imagem, artisticamente falando,
buscamos na pesquisa de Patrícia Trindade (2017) a maneira como o corpo foi moldado na
antiguidade pela beleza idealista grega em oposição a purificação do espirito cristão. Sua pesquisa
aponta para o corpo grego construído “[...] como objeto de perfeição e equilíbrio das formas,
encarnando os valores culturais e supremos” (PATRÍCIA TRINDADE, 2017, p. 26). Enquanto o
corpo da representação cristã se divide em duas figuras o Adão e o Cristo:

[...] Adão, para nos lembrar da inocência perdida, e Cristo, que, nu, redime o pecado e
conquista a morte; ambos eram apresentados como símbolos de crença, mártires e
sacrificados pelos outros homens. [...] as concepções estéticas [...] tinham como função
auxiliar o desenvolvimento da teologia cristã; a beleza era entendida como um reflexo dos
valores morais – uma substância da alma e não do corpo – uma emanação de divindade
(PATRÍCIA TRINDADE, 2017, p. 31).

Dessa forma, o corpo de Cristo foi representado como a vitória do espírito perante a carne. O
mártir é o símbolo dessa jornada que resulta na crucificação, ressurreição e na vitória. A imagem na
cruz é a imagem daquele que deixou de ser humano para se aproximar do divino. A arte cristã tratou
o corpo com muita cautela em suas representações artísticas, pintaram Jesus branco de olhos azuis
representando a imagem e semelhança com os europeus. A imagem e semelhança daqueles que foram
os colonizadores, opressores e que escravizaram tantos outros em seu nome. Em todo caso, houve
uma construção da imagem pelos dogmas e interesses da igreja em apresentar os colonizadores
como seus representantes e explorar as terras para enriquecer suas posses.
871
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao colocar o corpo de Jesus na dita festa da carne estaria retirando da imagem divina os
preceitos apontados por Patrícia Trindade (2017) em que o corpo de Jesus na cruz é a vitória do
espírito perante a carne. A vitória espiritual tornaria aquela imagem divina. Contudo, colocá-la no
cortejo carnavalesco é, talvez, fazer o processo inverso, ou seja, devolver dá a vitória a carne. Em
nosso entendimento isso não retira da imagem o seu caráter divino ou seu status de Deus e sim tornaria
ela um signo em que Deus não é algo privilegiado para uns e distante para outros; que ele seria a
imagem e semelhança de todos não importando com qual feição ele se apresente e onde quer que ele
esteja. O problema na verdade está no entendimento de que carnaval é pecado, é a festa do corpo, da
carne e etc. embora não desenvolvemos com profundidade neste artigo essa construção.
O carnaval também constrói imagens que expressam aquilo que o enredo aborda em sua
proposta. Essas imagens são construídas pela plástica – fantasias, alegorias e adereços – usada pelos
carnavalescos na confecção dos desfiles. A imagem de Cristo já foi expressa no carnaval, nas escolas
de samba. O carnavalesco Joãozinho Trinta apresentou em 1989, na Beija-Flor, o enredo Ratos e
Urubus, Larguem Minha Fantasia em que falava sobre as mazelas sociais e políticas do Brasil
daquela década. O discurso presente no desfile que apontava para um Brasil de contraste entre o pobre
e o mendigo sem oportunidade e a burguesia esnobando poder e riqueza à custa do necessitado.
Em nossa ideia de que o carnaval ao colocar a imagem de Cristo em uma alegoria, como no
caso da Beija-flor em 1989, em uma festa considerada como pecaminosa, “retira” de Deus a sua
divindade colocando-o como igual aquele folião da pista. O deslocamento da imagem do Cristo
coberto de ouro das igrejas, do corpo que vence o pecado, para a representação daquele que se veste
como pobre em seu estado mais mizeravel, que é o mendigo, provoca espanto para a igreja. O Cristo
do João estava vestido de mendigo na festa dos pecadores e de braços abertos acolhendo seus filhos
que clamavam por ajuda em um sistema social em que eles eram abandonados. Essa imagem do Cristo
que se asemelha ao pobre foi censurada pela igreja e, devido essa censura, a imagem do carnaval se
tornou um ícone imagético da festa, uma referência de um Deus dos pobre, dos mendigos.
Esse novo significado da imagem do Cristo Mendigo é abordado pela pesquisadora Fátima
Costa de Lima. Observemos:

[...] por entregar sua própria figuração de Jesus ao coletivo do carnaval do qual se ausentam
ostensivamente o deus cristão [...] a arte do Cristo Mendigo afrontou Igreja e
autoridades civis e, em consequência, foi condenada por profanar os costumes cristãos.
A Igreja, suspeitando o mau uso de seu panteão imagético no ambiente carnavalesco,

872
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
abusou do poder institucional de representante terreno de Deus: esqueceu-se de que toda
instituição é necessariamente humana, nunca divina. Nesse esquecimento, contudo, se revela
seu caráter humano. Sem a compaixão que Deus dispensaria a um pecador cristão, a Cúria
carioca censurou a alegoria e o resultado traduz o profundo sentido aristotélico da forma da
arte que preenche o interior de seu invólucro material: o interdito não é o monte de isopor,
resina e ferro da estátua do Cristo Mendigo, mas a contrariedade que sua forma instala no
imaginário cristão. [...] Ao cobrir a alegoria ao invés de retirá-la do desfile, produziu uma
obra com o qual se pode fazer história, se por história se entende oferecer o poder que se
supunha divino ao humano (FÁTIMA LIMA, 2011, p. 112).

A pesquisadora coloca que a igreja como co-autora da imagem do Cristo Mendigo e a imagem
virou assim um signo dentro e fora do carnaval. Para entendermos um pouco melhor como esses
signos estrapolam o meio do carnaval e provocam ingadações sobre o sistema social em que estão
inseridos, propomos agora uma análise das faces de Jesus que foram apresentadas no desfile da
Mangueira de 2020 e como suas imagens repercutiram. Ao analisarmos as três faces de Jesus – a face
feminina, a homossexual e a negra – tentamos entender esse processo de construção da imagem pelo
carnaval e como isso pode provocar um lugar de representatividade das parcelas sociais que estão
representadas nessas faces.

POR QUE NÃO UM JESUS MULHER?


Um dos elementos que mais chamaram a atenção no desfile da Mangueira neste carnaval de
2020 foi a rainha de bateria Evelyn Bastos representando a face feminina de Cristo, ou seja, um Jesus
com corpo de mulher. Por meio dela, vamos tentar entender o lugar cristalizado da mulher na frente
da bateria entendendo a representação da Evelyn como uma desconstrução de ideais aplicados ao
cargo de Rainha de Bateria e tentar compreender como o corpo da mulher é construído perante os
anseios de uma sociedade machista que acarreta em altos índices de feminicídio no país.

873
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 1 – RAINHA DE BATERIA DA MANGUEIRA 2020

Fonte: Reportagem do site Head Topics sobre a rainha de bateria363.

Para entendêmos melhor a proposta da agremiação com essa representação voltamos o olhar
para a sua descrição no texto do enredo:

À frente da bateria que se apresenta como o exército romano – foram os soldados romanos
que torturaram e escarneceram de Jesus – a Rainha se despe da tradicional nudez e da
exuberância emplumada atribuída ao visual das musas localizadas à frente dos ritmistas para
vestir o robe púrpura – dado pelos romanos como zombaria ao título de “Rei dos Judeus” –
e a indefectível coroa de espinhos. Mais do que vestir pedras e plumas, EVELYN BASTOS
veste o conceito do enredo e a postura daquele que esteve do lado dos oprimidos e é o tema
do desfile apresentado. Conceitualmente, um corpo feminino como a extensão da
representação de Jesus visa levantar reflexões sobre a desvalorização da figura feminina em
nome da submissão e sobre a manutação de ideias machistas que são a matriz dos crimes que
colocam o Brasil em posição de destaque nos índices de feminicídios no cenário mundial
(LIESA, 2020, p. 3).

Dois pontos importantes podem ser inicialmente analisados nesta representação, primeiro a
desconstrução da imagem da rainha de bateria e segundo o impacto deste corpo feminino como

363
Disponivel em: <https://headtopics.com/br/evelyn-bastos-e-face-mulher-de-cristo-na-mangueira-um-jesus-
mulher-tapado-e-que-n-o-samba-11498263> Acesso em: 15 set. 2020.
874
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
símbolo que provoca questionamentos perante a figura da mulher em nossa sociedade. Referente a
imagem da rainha de bateria, cargo que é ocupado por mulheres da comunidade até modelos e atrizes
famosas, entende-se que este local de destaque já se cristalizou como um local de luxo, pedrarias,
plumas, muito glamour e de corpos seminus, sensualizados e sexualizados. Ao apresentar uma rainha
de bateria que rompe com essa imagem cristalizada – construída por anos de desfiles e pela mídia
como um todo – a escola provoca um deslocamento do signo de rainha de bateria colocando em
questão a função desta personagem perante o enredo.
Não é inédito o ato de algumas agremiações modificarem nos postos que ficam à frente da ala
de bateria, seja na rainha, princesas e madrinhas, colocando pessoas relevantes da comunidade que
não correspondem ao padrão estético cristalizado para tais postos, um exemplo pode ser encontrado
no desfile de 2004 da Portela364 em que Dona Dodô – famosa porta-bandeira da agremiação até a
década de 50 e integrante da velha guarda na época – se apresentou como madrinha da bateria da
escola. Uma senhora idosa no posto de madrinha da bateria é, ao nosso entender, algo que contribui
para provocar um rompimento com valores estéticos cristalizados aplicado aos corpos das mulheres
que ocupam esse posto.
A antropóloga Mirian Goldenberg aborda como o corpo é aprisionado em valores sociais
comportamentais, de beleza e estética. Ao analisar o corpo do carioca, ela aponta que o corpo é
estimulado a se adequa aos padrões sociais e comportamentais de uma sociedade que visa o consumo:

[...] Corpos bem-construídos, com proporções equilibradas, devem ser obtidos por meio de
muito esforço. Cada vez mais, há interesse pelas mediações que contemplam o consumo
exacerbado da preparação do corpo na tentativa de retardar o envelhecimento corporal com
cirurgias plásticas, implantes de silicones, tratamentos estéticos para pele, cabelos, além de
exercícios em parques e academias de ginásticas e musculação (MIRIAN GOLDENBERG,
2007, p. 5).

Nesse processo de construção do corpo pela sociedade de consumo a corporeidade é


aprisionada aos “valores” da beleza, por exemplo, dessa forma, as corporeidades, apontadas pela
autora, terminam visando refletir o ideal de Cidade Maravilhosa ao serem também maravilhosos. O

364
DONA DODÔ MADRINHA DA BATERIA NA PORTELA 2004. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (18seg), son.,
color. Publicado pelo canal Mimdiz Samba. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wUe3UtnJ_vA.
Acesso em: 15 set 2020.
875
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
carnaval não está imune a esses ideias sociais e os corpos femininos terminam tendo uma acentuação
na valorização de suas formas para a exploração das mesmas.
É possível perceber nas transmissões dos desfiles da década de 90 que a câmera avança de tal
forma sobre o corpo da mulher que quase faz um exame ginecológico na foliã. Soa como vulgar fazer
uma afirmação como esta, mas é uma realidade facilmente percebida nos registros dos desfiles dessa
década que visavam a exploração do corpo feminino como meio de aumentar e manter a audiência
das transmissões dos desfiles.
É necessário olhar para esses fatos para entendermos que a sociedade contruiu o corpo
feminino subjugado aos fetiches do homem e esses espaços – rainhas, madrinhas e princesas de
baterias – foram explorados pela mídia e por meio desta mídia muitas modelos e atrizes tentavam
alçar fama e sucesso, como é apontado na pesquisa de Selma Felerico:

O desfile de beldades contou ainda com Juliana Paes, a rainha de bateria da Viradouro,
eternizada como “Boa”, ícone da campanha publicitária da cerveja Antártica, desde os anos
2000. Vale ressaltar que modelos, atrizes e apresentadoras de televisão, desde a década de
1980, ganham cada vez mais espaço na mídia, roubando a cena dos foliões, dos sambistas e
dos passistas na Avenida Marques de Sapucaí. Várias celebridades fizeram sua fama a partir
do carnaval, como Luma de Oliveira, Monique Evans, Valéria Valenssa, Viviane Araújo,
Nani Venâncio, entre outras. [...] Vários artigos informam que todo o sacrifício das modelos
e atrizes tem, muitas vezes, como objetivo serem reconhecidas pela mídia e assim
conseguirem bons papéis na televisão, fechar contratos publicitários vantajosos ou posarem
para a revista Playboy (SELMA FELERICO, 2008, p. 8-9).

Contudo, entendendo o posto de rainha de bateria como algo cristalizado – o lugar do corpo
exuberante, da celebridade, do aparecer e ser visto, da pedraria e do luxo – que percebemos que ao
abdicar de sambar durante o cortejo para interpretar o corpo do Jesus Mulher a rainha de bateria da
Mangueira provoca uma desconstrução dessa figura na escola. Como descrito no texto do enredo
“mais do que vestir pedras e plumas” a rainha da Mangueira provoca o questionamento do corpo
feminino perante os conceitos sociais que estão presente também no carnaval.
A imagem da Evelyn incomodou aqueles que não conseguem perceber o seu corpo sem os
referenciais masculinos, ou seja, a imagem do corpo da mulher é construída socialemnte com base na
imagem masculina e seus anceios e ao apresentar um corpo de Jesus mulher a escola também quer
colocar em indagação o fato do corpo feminino não precisar dos referenciais masculinos para a sua
criação. A imagem e semelhança de uma mulher não é um homem. O corpo da mulher não deve

876
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ser construído com base na imagem do homem. O Jesus que representa essa imagem e semelhança
das mulhers é um Jesus mulher, de corpo feminino.
Mas em nossa sociedade patriarcal e machista não é difícil encontrar altos índices de
feminicídios no cenário brasileiro e, caro leitor, não é culpa do carnaval esses índices, contudo o
carnaval não está insento da exploração do corpo feminino feito pela mídia que, provavelmente, seja
o maior criador e incentivador da exploração desses corpos. Assim como toda festividade que sofre
com a espetacularização e exploração dos corpos pela mídia, o carnaval se torna o local em que o
corpo da mulher é explorado. Contudo, existe trabalhos artisticos que provocam questionamentos
perante essa exploração. É válido salientar que entendemos essa exploração do corpo como uma
forma de violência também e colocar uma rainha de bateria vestida de robe representando Jesus
mulher também seria uma forma de apontar para essa violência e questioná-la.
Levantar a questão de como esse corpo feminino foi construido em nossa sociedade e como
podemos lutar contra as opressões sofridas por essas corporeidades. Quem são aqueles que colocam
esse corpo na cruz? Quem são os algozes que torturam o corpo da mulher e o crucificam, se não o
sistema social machista e patriarcal que construiu e constrói ao longo dos anos essas explorações
desse corpo subjugando-o aos fetiches do homem.
O corpo do Jesus no desfile da Mangueira 2020 é a imagem e semelhança das minorias
oprimidas pelo sistema politico e social do Brasil atual. Esse corpo de mulher também é representado
na cruz na alegoria número quatro da escola: O Calvário.

877
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 2 – DESTAQUE DE COMPOSIÇÃO DO CARRO O CALVÁRIO: JESUS
MULHER

Fonte: Reportagem do site O Globo sobre o desfile365.

CORPO ANDRÓGINO QUE TE CAUSA ESTRANHEZA


O folião que se fantasia e apresenta nesse desfile se torna, assim, uma representação desse
Jesus proposto, uma extensão do seu corpo, da sua imagem e semelhança. Portanto, entendemos que
cada corpo na avenida pode ser uma extensão desse Jesus que existe em cada pessoa desde a ialorixá
até naquele corpo representado por uma transexual na cruz que ainda causa estranheza.
Durante o processo de divulgação das alas a serem comercializadas, a agremiação divulgou
algumas fantasias para esse desfile e entre elas uma intitulada de Maria Madalena Ano 2000. Na foto
a fantasia é vestida por um homem e seu manto é a bandeira do arco-íris, símbolo da bandeira LGBTT,
o componente traz um adereço de mão com a pergunta: “Irmão, vai tacar pedra?”.

365
Disponivel em: <https://oglobo.globo.com/rio/carnaval/jesus-da-gente-mangueira-mostra-negro-indio-mulher-
lgbt-crucificados-em-alegoria-na-sapucai-24268520> Acesso em: 15 set. 2020.
878
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 3 – FANTASIA: MARIA MADALENA ANO 2000.

Fonte: Site oficial da Estação Primeira de Mangueira366.

O carnavalesco em postagem em suas redes sociais defendeu a fantasia afirmando que o Brasil
é o país que mais mata LGBTTs (Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis),
principalmente as transexuais e travestis, e que a política e a religião terminam por coibirem esses
acontecimentos. O Jesus proposto pelo enredo conviveria com pessoas LGBTTs, estenderia a mão
para elas e seus ensinamentos não as oprimiriam. Em nossa sociedade atual em que o meio político
se veste do discurso petencostal se torna muito comum percebermos as narrativas cristãs que oprimem
a parcela social dos LGBTTs e seus discursos são legitimadas pelo poder político do país. Marcelo
Natividade e Leandro de Oliveira escreveram um artigo chamado Sexualidades ameaçadoras:
religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores (2009) em que versam sobre os

366
Disponivel em: < http://mangueira-
api.g2w.com.br/storage/mangueira/multimidia/2020_02/15808417641580841764153.jpeg> Acesso em: 15 set.
2020.
879
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
discursos de discriminações que circulam na esfera pública feito por cristões conservadores que visam
a construção do personagem homossexual como um indivíduo perigoso.
Dessa forma, o corpo LGBTT é colocado no desfile como um dos corpos que são crucificados
pela nossa sociedade. Vejamos o texto do enredo referente a fantasia da ala Maria Madalena Ano
2000:

Sobre o visual geral do figurino que compõe a ala, convém destacar que, no imaginário
popular, Maria Madalena está associada ao pecado. Sua figura histórica é a da mulher
oprimida que foi defendida por um Jesus que, diante da possibilidade do apedrejamento
diante do entendimento de que a personagem cometia um suposto desvio de conduta,
pronunciou: “quem não tem pecado que atire a primeira pedra”. Dito isso, ao dar à figura
histórica de Maria Madalena contornos estéticos associados à estética LGBTQI+367 – a
predominância do figurino das cores do arco-íris adotada como símbolo da causa deixa isso
evidente – a intenção é potencializar a partir do discurso carnavalesco a conscientização sobre
os crimes de ódio contra uma população que sofre com a violência dos mecanismos
ideológicos e repressivos, muitos inclusive, justificados a partir de um pré-conceito de raízes
religiosas. Aqui, assim como em outros momentos do desfile, a escolha de uma proposta
artística quer incentivar o debate dos direitos das minorias e discussões importantes no que
diz respeito ao fato de que o país que mais mata homossexuais no mundo é o mesmo país que
se declara como sendo 90% cristão (VIEIRA, 2020, p. 159).

Percebemos que a fantasia veste de signos – como as cores da bandeira do arco-íris e o


estandarte com a frase “Irmão, vai tacar pedra?” – para provocar questionamento sobre como a
religião e a sociedade tratam o corpo LGBTT. Um corpo que é apedrejado pelo discurso opressor
cristão, mas que no desfile é esse corpo quem anuncia a volta de Jesus. A escola sofreu bastante
represália daqueles que entenderam a proposta da fantasia como uma blasfêmia. Ora, Maria Madalena
é uma personagem bíblica que surge acusada de adultério e outros pecados pela sociedade, mas
termina sendo acolhida e perdoada por Jesus. Para o enredo da escola, Madalena é a representação
dos LGBTTs que a cada dia sofrem com as pedradas dos “irmãos” cristãos. A ala não é apenas um
palco de cores e formas que exaltam o grupo LGBTT, mas uma tentativa de provocar um
questionamento sobre o discurso religioso para essa parcela social.
A narrativa dessa fantasia é potencializada quando lembramos que não muito distante a
performance de Renata Carvalho, uma atriz trans que faz um Jesus Trans na obra O Evangelho
Segundo Jesus, Rainha do Céu foi censurada e proibida. A representação de Renata pregada na cruz

367
É válido salientar que alguns autores ao abordarem sobre sexualidade utilizam a sigla LGBTQI+ para designar
novas categorias. Essa sigla significa: “Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Interssexuais e mais”.
Contudo para este artigo preferimos usar a sigla LGBTT.
880
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
causou muito impacto por onde passou. Assim como Jesus transgrediu e desafiou a lei romana de seu
tempo, o corpo da atriz trans aponta para a transgressão a cisnormatização do nosso tempo. A atriz
chegou a ser perseguida pelas redes sociais e ameaçada. Outro caso de bastante repercussão da
representação de um corpo de Jesus trans foi na parada do orgulho LGBTT em São Paulo onde a
modelo trans Viviany Beleboni fez um protesto perante o discurso cristão ser conivente as opressões
e mortes de LGBTTs:

IMAGEM 4 – O JESUS TRANS DE VIVIANY BELEBONI.

Fonte: Blog do Piero Barbacovi368.

Ao analisar essa performance Piero Barbacovi aponta que:

Obviamente o episódio ocorrido na parada gay em SP foi uma metáfora, e muito bem-feita,
por sinal, para mostrar, artística e pacificamente, que os representantes LGBTT são
rechaçados e perseguidos, assim como Jesus o fora. É uma forma de dizer que não conseguem
entrar num banheiro masculino sem serem ridicularizados ou num feminino sem serem
hostilizados; de declarar que não conseguem emprego; de afirmar que são mortos
homossexuais a praticamente cada dia. É um modo de dizer que não são entendidos, que, por
algum motivo (meu Deus, qual é?!), não merecem os mesmos direitos que o resto da
população “normal”. Acho que Jesus daria um grito com tal representação: “Isso! Acabem

368
Disponivel em: < https://pierobarbacovi.wordpress.com/2015/06/09/sobre-o-jesus-trans/> Acesso em: 15 set.
2020.
881
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
com proselitismos! Quem vê um sofrido e oprimido ao meu rosto enxerga”. (BARBACOVI,
2015, S/P).

Houve o caso do apresentardor de televisão Sikêra Junior, da RedeTV, que foi condenado a
pagar R$ 30 mil de indenização para a modelo por ter usado a imagem da modelo em seu programa
chamando-a de raça desgraçada369.
O corpo que veste essa fantasia da Maria Madalena Ano 2000 está carnavalizando o discurso
de luta contra a opressão aos LGBTTs e transforma o desfile em um possivel Lugar de Fala para
todos aqueles que sofrem com isso e buscam respeito. Ao abordar o discurso dos desfiles das escolas
de samba por meio desses corpos estamos, também, tentando problematizar sobre por quem esse
discurso fala, por qual o local o carnaval ganha voz, assim como, sua repercussão social. A face da
Madalena com signos LGBTTs e o corpo do Jesus homoafetivo crucificado em uma das cruzes do
carro O Calvário no desfile da Mangueira é, em nosso entendimento, uma forma de fornecer um
Lugar de Fala para causas LGBTT; fornece voz as pautas que envolvem a forma como o corpo é
castigado socialmente, as mortes e as opressões sofridas por essa parcela social.
Lugar de Fala é um conceito estudado por Djamila Ribeiro (2017); a pesquisadora aponta
para uma sociedade patriarcal, branca e heteronormativa detentora do poder de voz social e político
daqueles que lhe representam como grupo social, dessa forma, todos os que estão fora desse grupo
como negros, mulheres, homossexuais, favelados e pobres estão sujeitos a não possuírem Lugar de
Fala nesse sistema.
Contudo a autora aborda o lugar em que cada indivíduo está inserido no sistema de poder
social e como este pode ser usado para falar sobre suas questões. A escola de samba como local de
representatividade de uma comunidade negra, favelada e pobre se torna o Lugar de Fala daqueles
que dela fazem parte. A comunidade se veste de fantasias que representam uma ideia, cantam seu
samba que expressa uma narrativa sobre o tema abordado pela agremiação e desfilam em alegorias
que expressam um discurso que pode ser percebido como um lugar de fala daqueles que estão à
margem da sociedade e lutam por um sistema em que suas necessidades sejam percebidas.

369
Para mais informações sobre esse caso recomendamos o site:
<https://www.bnews.com.br/noticias/jusnews/justica/277175,apresentador-e-condenado-apos-chamar-modelo-
trans-de-raca-desgracada.html>.
882
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
JESUS DA GENTE
Nenhum corpo chamou mais a atenção do que a grande escultura do Jesus negro no centro do
carro O Calvário. As pessoas olham encantadas e chocadas para a imagem do Cristo negro
crucificado e cravejado de balas, com cabelo platinado e tatuagem. A imagem e semelhança do Jesus
como a figura do pobre, negro e favelado das diversas comunidades carentes no país. Talvez o mais
chocante da imagem seja as marcas de bala que denunciam a dura realidade do negro nas comunidades
carentes e a negligência do sistema social.

IMAGEM 5 – ESCULTURA CARRO O CALVÁRIO: JESUS NEGRO

Fonte: Imagem da transmissão do desfile da Mangueira pela Rede Globo370.

O corpo negro que é marginalizado em uma sociedade branca que ainda entende o negro como
escravo, como bandido e que merece ser perseguido. Recentemente temos o caso do jovem Luiz
Carlos da Costa Justino, violoncelista negro que foi preso porque uma vítima potencialista teria o
reconhecido como seu repressor/agressor por uma foto, contudo o jovem não tinha nenhum
antecendente criminal371.
O nosso sistema social e politico da atualidade estimula a perseguição, as acusações sem base
e prisões de corpos que estão a margem da sociedade. O racismo que estrutura essa sociedade legitima

370
Disponivel em: <https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/carnaval/portela-e-unidos-do-viradouro-
levantam-plateia-na-1%C2%AA-noite-de-desfiles-no-rio-1.401361> Acesso em: 15 set. 2020.
371
Para mais informações sobre esse caso recomendamos o site:
<https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/09/policia-rio-foto-jovem-negro-roubo/>.
883
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a ideia desses corpos serem corpos matáveis. Podemos analisar esses corpos, suas relações e seus
discursos pelo conceito de Corpos Matáveis. Agamben (2002) aponta para o termo Homo Sacer, ou
seja, quando na Roma antiga um sujeito pratica um delito grave ele é condenado a não prestar
honrarias aos deuses, contudo, se algum outro indivíduo assassinar esse sujeito o criminoso não seria
julgado por homicídio. Homo Sacer é uma vida que pode ser matável sem penalidade ao assassino.
Visualizamos essa ideia em várias esferas da sociedade como os corpos das mulheres que compõem
os altos índices de feminícidios, os corpos trans que a cada dia são mortos pelos discursos opressores.
Segundo a descrição desta alegoria no livro abre-alas:

Na cruz em destaque, ele é a face e o corpo de um jovem negro. A ideia é levantar uma
reflexão sobre a mortalidade negra expressa nos índices de violência letal resultados de uma
sociedade fundada no racismo e em políticas de segurança discriminatórias. De cada 100
pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os negros – especialmente os homens jovens
negros, tal qual a face do Cristo que apresentamos aqui – são o perfil mais frequente do
homicídio no Brasil, sendo muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros
(VIEIRA, 2020, p. 137).

Quantos corpos negros são mortos, acusados e presos à cada dia? Muitos desses corpos negros
foram mortos por policiais, por exemplo, e seus agressores nunca foram à julgamento. Esses corpos
são entendidos como corpos não úteis ao sistema, devido a se rebelarem e/ou serem transgressores de
suas regras, aqueles que os matam estão ajudando o sistema social a se manter, portanto, não são
julgados.
Recentemente em um curso promovido pela Revista Caju, Curso Bastidores da Criação:
Enredo, Figurino e Alegoria, o carnavalesco Leandro Viera, carnavalesco deste desfile da Mangueira,
falou sobre a imagem desse Cristo – como não tivemos acesso a gravações das aulas tomei a liberdade
de parafrasear a fala do Leandro: “Essa imagem desse meu carnaval não foi inventada por mim e sim
pelo sistema social. Essa imagem do Cristo baleado é uma imagem que vejo toda hora; já vi várias
vezes na capa dos jornais; nas ruas do morro. Esse corpo negro baleado é facilmente visível em nossa
sociedade”.
Sabemos o quanto o negro é marginalizado pela sociedade e o quanto esse corpo baleado é
facilmente visto em noticiários. O quanto esse corpo é marginalizado e perseguido. Também
percebemos que esse sistema social facilita a morte desses corpos e não pune seus algozes. Em
pesquisa sobre a repercussão deste desfile, principalmente desta imagem, encontramos uma

884
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
postagem do carnavalesco em sua rede social que abordava sobre uma publicação de Vanessa
Navarro, assessora do deputado estadual Anderson Moraes (PSL-RJ), em que ela posta a foto da
alegoria O Calvário com a seguinte frase: Absurdo! Mangueira homenageia bandido e o coloca no
lugar de Jesus Cristo.
Por que o corpo negro é relacionado à um bandido? Se fosse um corpo branco na cruz ele seria
um bandido? É em discursos assim que percebemos o quanto o racismo estrutural está presente no
discurso social e político e como esses discursos visam, cada vez mais, a perseguição e
marginalização dos corpos negros. É válido salientar que a Vanessa está sendo investigada no
inquérito do STF sobre fake news; ela criava diversos perfis falsos para propagar ideologias do atual
presidente do país372.

IMAGEM 6 – POSTAGEM DE VANESSA NAVARRO

Fonte: Imagem salva pelo autor no dia da publicação373.

372
Para mais informações sobre esse caso recomendamos o site: <https://coletivobereia.com.br/conheca-a-ligacao-
religiosa-de-bolsonaristas-com-contas-banidas-pelo-facebook/>.
373
Infelizmente não é possivel encontrar mais a fonte desta imagem devido a investigação do inquérito do STF sobre
fake news que resultou nas redes sociais da Vanessa apagadas. Porém em busca simples no site Google.com.br
colocando “Vanessa Navarro sobre jesus da Mangueira” é possível encontrar vestigios desta publicação, mas ao
885
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para muitos a imagem do Cristo negro crucificado incomoda devido eles terem como
referência a imagem do Cristo branco de olhos azuis, como já supracitado, seria uma distorção a
imagem sagrada. Para outros o terror dessa imagem está no poder de discurso dela, de denúncia a
esse sistema social de racismo, a forma como o negro é marginalizado e tratado em nossa sociedade.
Para Roberto DaMatta (1997) a burguesia social tolera o fato do pobre no carnaval representar os
burgueses, se passar por integrantes da alta sociedade, mas quando essa teatralização carnavalesca
expressa uma crítica ou um discurso de luta social em que o pobre questiona aqueles que estão no
poder existe uma pretensão desses indivíduos burgueses em provocar rejeição a festa, ao samba,
consequentemente, uma tentativa de desmoralizar o desfile e tudo aquilo que é usado como discurso
carnavalesco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa imagem do Cristo se torna um símbolo de um povo favelado e negro que busca na fé
uma ajuda. Um Cristo com esses valores não estaria nos luxuosos templos cristãos, mas nas ruas
lutando contra a opressão social. Para o branco cristão, perder essa imagem de Jesus é como perder
uma mina de ouro, é como perder a ligitimidade de seus discurso de opressor machista, homofóbico,
misógino e racista. Tanto o Cristo Mendigo quanto o Jesus da Gente, cada uma a sua maneira, devolve
ao pobre, negro e favelado o Deus que lhe foi negado ao longo de todo o cristianismo.
Os corpos não úteis ao sistema politico e os corpos transgressores às regras do sistema social
ganhando um local de voz no desfile da Mangueira incomodou bastante aqueles detentores da imagem
de Jesus e aqueles que não queriam que o carnaval da escola fosse realizado. Aqueles que detém o
poder vão propagar uma rejeição e tentando deslegitimar o discurso do enredo da agremiação. Eles
tentam difamar e distorcer a proposta da escola para conquistar a opinião pública e, com isso, tentar
interferir no desfile. Contudo, acreditamos que a arte pode dar voz a esses corpos silenciados pelo
sistema político e social do nosso país. A arte contemporânea, enquanto força de expressão das
corporeidades, pode proporcionar um lugar de quebra desse silêncio, um lugar em que os corpos

acessar o link a página a mesma apresenta-se desativada. O mesmo é válido para pesquisa de imagens com essa
busca e, por ela, encontramos esse link que contém a imagem, mas não é possivel acessar o site: <https://encrypted-
tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcTfdQCnIvahxYaH6a76x_tuf16B7UXYOr9d7A&usqp=CA>.
886
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
podem ter protagonismo, força e voz. Corpos que encontram na arte a fala e lugar de
representatividade.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.

BARBACOVI, Piero. Sobre o Jesus Trans. 2015. Disponível em:


https://pierobarbacovi.wordpress.com/2015/06/09/sobre-o-jesus-trans/ Acesso em: 15 set. 2020.

CONVERSA FRANCA - Leandro Vieira. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (57 min 57seg), son., color.
Publicado pelo canal Rádio Arquibancada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=LWnh5-jJuck. Acesso em: 15 set 2020.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DJAMILA RIBEIRO. O que é lugar de fala? São Paulo: Letramento, 2017.

FÁTIMA LIMA, Costa de. Alegoria benjaminiana e alegorias proibidas no sambódromo carioca:
o Cristo Mendigo e a carnavalíssima trindade. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em
História, CFH-UFSC, 2011 (Tese de Doutorado). Disponível em:
https://issuu.com/marcelooreilly/docs/0264-fatimacostadelima.

LIESA. Errata livro Abre-alas 2020: Mangueira. Rio de Janeiro, p. 1-6. 2020. Disponível em:
https://liesa.globo.com/carnaval/livro-abre-alas.html. Acesso em: 15 set. 2020.

MIRIAN GOLDENBERG (org). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca.
2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e


homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Revista Latinoamericana, n.2, p. 121-161.
2009. Disponível: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/32/445 Acesso em: 15 set de
2020.

PATRÍCIA TRINDADE. O nu enquanto pretexto. Porto: Programa de Pós-Graduação em Pintura,


Faculdade de Belas Artes, 2017. (Dissertação de Mestrado) em Pintura).

ROCHA, Ruan. Série Barracões: Com um vasto vocabulário artístico, Leandro Vieira aposta nas
múltiplas faces de Cristo para retratar o Jesus que não está no retrato. 2020. Disponível em:
http://carnavalizados.com.br/grupo-especial/serie-barracoes-leandro-vieira-revela-relacao-
entre-enredo-da-mangueira-e-os-discursos-do-entao-deputado-jair-
887
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
bolsonaro/?fbclid=IwAR3U4cEbbnyOe0VDl8hP7srDjxPJm30LjozhSzaTMQ7thJ7XXEA97XwhgJ
M. Acesso em: 10 fev. 2020.

SELMA FELERICO. Compram-se corpos ultramedidos. Representações do corpo feminino na mídia


impressa no carnaval brasileiro. In: VI Congresso Nacional de História de Mídia, 2008, Rio de
Janeiro, RJ. Anais (on-line). Rio de Janeiro, 2008. Disponível: https://docplayer.com.br/33310269-
Compram-se-corpos-ultramedidos-representacoes-do-corpo-feminino-na-midia-impressa-no-
carnaval-brasileiro-1.html Acesso em 15 set de 2020.

VIEIRA, Leandro. A verdade vos fará livre. In: LIESA. Livro Abre-alas 2020: domingo. Rio de
Janeiro, p. 113-176. 2020. Disponível em: https://liesa.globo.com/carnaval/livro-abre-alas.html.
Acesso em: 15 set. 2020.

888
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ARTE CONTEMPORÂNEA: POÉTICAS CORPORAIS PARA (RE)EXISTIR EM
CONFINAMENTOS

Lucas Bezerra Furtado374


Nara Salles375

Resumo: Versamos sobre o papel das poéticas corporais como instrumento de (re)existências. A pesquisa é realizada na
Universidade Federal de Pelotas, situada no Grupo de Pesquisas “Processos de Criação: Arte e Loucura”
especificamente no projeto “Arte contemporânea, Processos de Criação e Psicanálise: Sagrado, Afetos e Segredos em
Encontros Poéticos Existenciais”; aberto a comunidade em geral. Vislumbramos pedagogias de vivências poéticas,
reminiscências importantes e significativas; provocando leituras, fotografias, desenhos, pinturas e partituras corporais em
metodologias em que a criação e a poética estejam presentes, podendo assim transitar nas questões pertinentes à existência
humana, pois o caminho da individuação se dinamiza na coletividade, e esse processo é de extrema importância ao
exercício da cidadania, elemento imprescindível para manter a sanidade mental no atual cenário pandêmico. Propomos
ações que contemplem e promovam a (re)existência e a constante movimentação de conteúdos tangíveis às subjetividades.
A investigação tem abordagem qualitativa acerca da saúde mental e processos de criação em arte contemporânea,
aplicados nesse grupo enfocando a arte em suas variadas expressões e as possíveis relações com a psicanálise em uma
perspectiva terapêutica artística e poética da existência, construindo um espaço de acolhimento e troca, fazendo reinsurgir
nos corpos desejos de mudanças.

Palavras-chave: Arte Contemporânea; Psicanálise; Saúde Mental; Terapia; Instauração Cênica.

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte de um processo investigativo da pesquisa “Arte Contemporânea,


Processos de Criação e Psicanálise: Sagrado, Afetos e Segredos em Encontros Poéticos Existenciais”
cadastrada no grupo de pesquisas “Processos de Criação: Arte e Loucura”, participante do Diretório
de Grupos de Pesquisas do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), aprovado e certificado pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com participação de bolsista de Iniciação Científica da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul/FAPERGS.
A seguir identificaremos nossa pesquisa, e as ações nela desenvolvidas como instrumento
de resistência e expressão aos seus participantes atuando com pontencial de desmanche da
Necropolítica.

374
Graduando do curso de Teatro (Licenciatura), pela Universidade Federal de Pelotas, campus Centro de Artes.
Bolsista-Pesquisador pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). E-mail:
lucasbfurtado.lb@gmail.com
375
Professora do curso de Teatro (Licenciatura), pela Universidade Federal de Pelotas, campus Centro de Artes.
Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Mestrado Profissional em Artes
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: narasalles@gmail.com
889
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IDENTIFICAÇÃO

Tomamos como ponto de partida, e concordamos que é de extrema importância a


identificação do trabalho realizado. Trata-se de um coletivo de pessoas, alunos, alunas ou não da
Universidade Federal de Pelotas, no qual trabalhamos prestando assistência e atenção à saúde mental
dos mesmos e para tanto investindo em processos colaborativos de criações artísticas e técnicas da
psicanálise.
Aplicam-se dinâmicas internas e atividades artísticas transdisciplinares e multidisciplinares
na ambição de permitir a livre expressão da subjetividade oprimida de cada pessoa que ali reside,
uma vez por semana; às sextas-feiras, durante as tardes; e cotidianamente em conversas no grupo de
WhatsApp. A arte aqui, é introduzida como terapêutica, porque como nas modalidades de clínica
ampliada, entendemos que ela faz parte da construção e compreesão da psique, e que pode amenizar
o sofrimento e a dor diária num processo de sublimação.
Vejamos abaixo o conceito de sublimação que é explicado por Christian Dunker376:

(A sublimação) é um destino mais otimista para a pulsão. Seria uma forma de transformar
aquilo que é da ordem da sexualidade em algo que é não-sexual. [...] Em segundo lugar, a
sublimação tornaria o que é para um neurótico, como a sua fantasia neurótico, um sintoma,
[...] num objeto estético, ou científico.

Sumblimação então seria a transformação de uma pulsão, nesse caso, em algo estético e
científico: neste caso a arte. Cabe ressaltar que de acordo com (LAPLACHE; PONTALIS, 2001, p.
494) “[...] Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a
investigação intelectual”, ambos presentes no cotidiano e processos de trabalho de nosso projeto de
pesquisa.
Instauramos também, no intuito de proporcionar um escuta qualificada dos relatos
inicialmente confusos e sem solução dos participantes, uma roda de conversa sem restrições, para
assim, possibilitar e reorganização do pensamento como em (FREUD, 1996), recordando o ocorrido,
a incerteza ou as afetações, repetindo-as em forma de discurso, e elaborando uma resolução-produto
de uma equação já conhecida mas antes não entendida por quem a introduz na conversa.

376
COMO é a sublimação para a psicanálise hoje? Christian Dunker. [S. 1.: s. n.], 2017. 1 vídeo (8 min).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nZxdDXUkyqQ. Acesso em: 02 set. 2020.
890
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Salientamos que parte de nossas ações foram diretamente afetadas pelo estado de pandemia
gerada pelo novo coronavírus, causador da doença COVID-19, a partir do mês de março de 2020, e
que por ser esse grupo e essa pesquisa estar voltada às intersecções entre a arte contemporânea e à
psicanálise, julgamos essencial discorrer a respeito, uma vez que impacta não só na saúde mental dos
participantes do grupo, mas também na de cidadãos das mais diversas localidades do mundo, como
em outras epidemias e pandemias. Observemos,

Estudos de revisão publicados recentemente permitem perceber os efeitos da quarentena


(Brooks et al., 2020). Tomando-se 24 estudos que envolveram mais de 11 mil residentes ou
pessoal médico de áreas afetadas por Middle East Respiratory Syndrome(MERS, Síndrome
Respiratória do Oriente Médio), SevereAcute Respiratory Syndrome (SARS, Síndrome
Respiratória Aguda Grave), Gripe Suína (H1N1) ou Ébola, observa-se que a maioria deles
aponta para efeitos psicológicos negativos, principalmente em termos de confusão, raiva e
até estresse pós-traumático. Alguns desses efeitos mantiveram-se num período de tempo mais
alargado. Dentre os principais fatores de estresse identificados, sobressaem o efeito da
duração do período de quarentena, os receios em relação ao vírus ou à infeção, a frustração,
a diminuição de rendimentos, a informação inadequada e o estigma (BERTA MAIA; DIAS,
2020. p. 2).

Este trecho faz parte do artigo nomeado “Ansiedade, Depressão e Estresse em estudantes
universitários: o impacto da COVID-19” e traz além destes dados uma pesquisa realizada em
comparação de duas amostras, sendo uma anterior à pandemia (2018-2019) e a outra durante oito dias
do mês de março, e indica “um aumento significativo de perturbação psicológica (ansiedade,
depressão e estresse) entre estudantes universitários no período pandêmico comparativamente a
períodos normais.” (BERTA MAIA; DIAS, 2020, p. 6).
Assim, pensando na necessidade e demanda de nossas ações nesse momento, decidimos ser
inviável a descontinuidade de nossos encontros, e imprescindível suas realizações, mesmo que
remotamente. Criamos então uma sala fechada para os participantes do grupo no aplicativo
Facebook/Messenger. Pontuo aqui que a sala é fechada porque os participantes expõem sua vida
pessoal em segredo, sendo isso um comum acordo com os outros, mas não privamos outras pessoas
da participação; basta uma solicitação e a sala é aberta para quem deseja, pois é um projeto aberto.
Desses encontros virtuais, surgiram propostas de ações a serem realizadas durante esse
período. Propostas essas que estimulam e provocam a subjetividade de cada um, e sua relação com a
fase pandêmica. Basicamente, movimentamos e permitimos sempre em nossas atividades a afloração
das subjetividades, que nada mais é do que:

891
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme vamos nos
desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos
identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida que os elementos
que a constituem são experiências no campo comum da objetividade social. Esta síntese – a
subjetividade – é o mundo de ideias, significados e emoções construídas internamente pelo
sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é,
também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais (BOCK, 2002, p.23 apud
PIRES; NARA SALLES; 2019, p.197).

Nessa perspectiva, criamos as seguintes ações:

AFETOS E AFETAMENTOS
A primeira delas foi a criação da hashtag “#afetoseafetamentos”, com o intuito de registrar
no formato de fotografia, os momentos, situações e no geral, o que nos afeta, para expressarmo-nos
e podermos discutir essas questões no grupo de atenção à saúde mental e posteriormente a partir
dessas imagens criarmos instaurações cênicas.
Essas capturas são compartilhadas internamente no grupo do WhatsApp, com todos os
participantes, e também são publicadas externamente, no Instagram na página do projeto intitulada
@psicanartese, acompanhado pela hashtag citada, tornando o acesso possível a qualquer pessoa, e
viabilizando diferentes afetamentos, pois cada pessoa é única, e cada uma apreende diferentes afetos
de cada contexto, tendo a possibilidade de a partir da imagem repensar suas questões internas. E neste
sentido é importante mencionar que o viés que conceitua o que pode ser arte em nosso ponto de vista
e a proposição de Jorge Coli “arte, são certas manifestações da atividade humana diante das quais
nosso sentimento é admirativo” (COLI, 1995, p.8).
Nota-se que esse tal sentimento admirativo, aqui, não diz respeito a gostos, ou identificações,
mas sim àquilo que nos provoca algum tipo de reação. A Arte Contemporânea, em sua essência,
abrange o caráter provocativo e incentivador, com propostas não exclusivamente expositivas, mas
também questionadoras. Portanto, esse “sentimento admirativo” do qual Coli faz menção, será
acrescido de outros adjetivos, mas todos presentes na palavra afeto, essencial na nossa pesquisa e
conceito que nos move em nosso processo criativo e investigativo na construção de uma poética
corporal.
Dessa maneira podemos ampliar o horizonte do pensamento do autor e estabelecermos que:
Arte pode ser considerado tudo aquilo que nos afeta e nos faz pensar, neste caso a partir das

892
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
imagens provocamos novas possibilidades de ser e estar no mundo. Compreendendo o significado
dessa frase, é possível compreender grande parte do que fazemos no projeto de pesquisa.

PLÚMBEO
Seguindo essa linha de pensamento, surgiu nossa segunda ação, a qual denominamos
Plúmbeo. Esta foi estabelecida a partir da proposição da leitura do primeiro capítulo do livro “Um
antropólogo em Marte – Sete Histórias Paradoxais”, escrito por Oliver Sacks. No capítulo em tela
nomeado como “O Caso do Pintor Daltônico”, no decorrer da recuperação de uma operação no ombro
direto do personagem apresentado, com tema central no “paradoxo da doença, seu potencial
‘criativo’”, ocorreu a possibilidade ao autor deste artigo a implementação de um novo procedimento
criativo artístico ao grupo de pesquisa, acolhimento e atenção à saúde mental, que será narrado mais
à frente.
O texto conta a história de Jonathan I., um pintor de 65 anos, que após um acidente de carro,
desenvolveu acromatopsia cerebral (daltonismo total) quase imediata. Notou de início uma
dificuldade de distinção das cores, mas a percepção subjetiva de alteração delas só ocorreu no dia
seguinte (SACKS, 1995). Acompanhado dessa situação, observou-se caráter fumante no paciente,
além de amnésia passageira, alexia377 temporária (por cinco dias) e outras dificuldades relatadas pelo
mesmo.
O mais interessante, é que vivenciando a situação pandêmica imposta pela doença COVID-
19 causada pelo Coronavírus e o necessário isolamento social, associado ao desfalque de produção
artística presencial coletiva cênica por nossa parte e à crescente determinação a realiza-la,
propusemos então a criação de uma Instauração Cênica virtual na modalidade Vídeo Arte. Em virtude
do momento, e possuindo total ciência e preocupação quanto à quarentena, optamos por adaptar a
produção nos conformes dos meios de comunicação disponíveis, preservando assim, a integridade
física e mental dos participantes e propondo novas formas de interações artísticas.
A citação a seguir faz parte significativa no processo de entendimento do procedimento
criativo metodológico Instauração Cênica acima mencionado:

377
“É a perda, de origem neurológica, da capacidade previamente adquirida para a leitura. Dá-se associada às
afasias e às agrafias.” (DALGALARRONDO, Paulo, 2008, p. 236)
893
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] Vejamos, instauração é um termo usado pela curadora LisetteLagnado. Segundo ela, é
um dos conceitos fundamentais para a arte contemporânea atual e futura. Para Lagnado foi o
artista plástico Tunga quem promoveu o uso do termo instauração, com a obra “Xipófagas
Capilares”, em 1981, uma obra na qual duas adolescentes se movimentavam unidas por seus
cabelos.
O conceito, para Lagnado é cunhado a partir dos termos performance e instalação,
significando um híbrido destas categorias. A instauração traz e guarda dois momentos: um
dinâmico e um estático. De acordo com Lagnado, a acepção de instauração supera a
característica efêmera da performance, a instauração deixa resíduos, avançando no sentido
de perpetuar a memória de uma ação, o que lhe tira o caráter de ser somente uma instalação.
Nesta,existe um ambiente montado para determinado acontecimento que pode ser destruído
durante o decorrer da ação no ambiente. A instauração não é destruída no decorrer da ação,
podendo acontecer uma transformação do ambiente a partir de uma estrutura estabelecida,
havendo inclusive uma construção no espaço, interferindo na paisagem... Por este motivo
opto por utilizar o termo instauração seguido pelo termo cênica, para indicar que naquele
local são instauradas ações cênicas e a ambientação não será destruída, mas alterada. Embora
utilize para o princípio da montagem no processo criativo, os conceitos de performance, não
denomino a encenação como performance, porque no meu entendimento, o termo instauração
é mais abrangente e a ultrapassa (NARA SALLES, 2007, p. 3-4).

Salientamos que esse termo, foi criado pela autora desse artigo em sua tese de doutoramento
intitulada “Sentidos: Uma instauração cênica – Processos Criativos a Partir da Poética de Antonin
Artaud” no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia,
defendida e aprovada no ano de 2004.
Foram destacados alguns estímulos do que discorreu Sacks, e elencados em encontro
virtual que ocorreu na sexta-feira, dia três de julho de 2020, são eles:
• Vídeo 1 – Movimento, Vitalidade e Sensualidade
• Vídeo 2 – Forma, Contorno, Movimento e Profundidade
• Vídeo 3 – Sujar o branco
• Vídeo 4 – Nascer do sol como uma explosão nuclear
• Vídeo 5 – Cores e Nomes (usaremos apenas o áudio)
• Vídeo 6 – Mundo inconstante (“um mundo onde sombras flutuavam conforme o comprimento de
ondas da iluminação”)
• Vídeo 7 – “Na mesma coisa” (usaremos apenas o áudio)
• Vídeo 8 – “A ilusão de óptica é a verdade óptica! (...) A ilusão visual é uma verdade neurológica”
• Vídeo 9 – Visão primitiva: movimento, profundidade e percepção da forma
• Vídeo 10 – Cor e memória (“a cor se funde com a memória, com expectativas, associações e
desejos de criar um mundo com repercussão e sentido para cada um de nós”)

894
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
• Vídeo 11 – Visão, Imaginação e sensibilidade
• Vídeo 12 – “’mapeia’ a imagem corporal”
• Vídeo 13 – Afastamento e aproximação
Neste dia estavam presentes sete dos participantes do grupo de pesquisa, sendo dois deles os
autores desse escrito, os outros participantes foram aos poucos se engajando.
Desses estímulos, os participantes da proposta, que ainda se encontra em produção,
constroem vídeos que determinem o que os representa em sua perspectiva pessoal, para cada um
desses estímulos, levando em conta suas reminiscências importantes e significativas, bem como seus
afetamentos no presente instante.
Finalizaremos esse processo criativo com a publicação em mídias digitais de uma Vídeo
Arte em preto e branco, como na visão de Jonathan I., que possa exteriorizar e conectar o que cada
um passou durante o isolamento social, no “mundo sem cor”, e registrar a memória de um momento
excepcional. Observemos o relato de uma das integrantes:

Ler o pintor daltônico fez com que eu observasse e prestasse atenção nas coisas a minha volta
de maneira diferente, e isso se estendeu para a proposta que foi sugerida após a leitura. As
inspirações para cada tema foram diferentes e muito naturais. Tinha vezes que eu até
idealizava como queria e no final acabava mudando. No primeiro tema (Movimento,
Vitalidade e Sensualidade) foi o mais natural. Vi o vento balançar as folhas da planta e senti
que pra mim a vitalidade estava ali na minha frente. O segundo (Forma, Contorno,
Movimento e Profundidade) fez com que eu observasse os elementos da minha casa de outra
maneira, e percebo que ao menos pra mim o projeto todo nesse momento atual é sobre isso,
trabalhar com o que temos, e no meu caso pra esse tema foi a porta da frente da minha casa.
E o último tema que eu gravei até o momento (Sujar o Branco) foi o mais esperado e
divertido; senti como se eu voltasse à infância sujando as mãos de tinta e desenhando com
ela coisas que “não fazem sentido” (BRENDA SANTOS, 2020).

POESIAS
Outra forma de conectar nossas vivências e resistências foi a partir de terceira ação, que foi
inspirado nos ideais poéticos de André Breton e no movimento surrealista.
Como nos aponta Tania Rivera, os primeiros anos dessa vanguarda seriam repletos da
criação de jogos que mesclassem o acaso à potência criadora do inconsciente, como por exemplo o
cadavre exquis, que consiste no acoplamento ao acaso, de pedaços de frases escritos por pessoas
diferentes, de forma independente e secreta, como aponta a seguir:

[...] Dos encontros mancos, descombinados, às vezes claramente nonsense entre


palavras ou imagens, gerados pelos procedimentos surrealistas, Breton via nascer a
895
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
poesia, capaz de mudar o mundo e transformar a realidade, ao reconciliá-la com o sonho em
uma espécie de realidade absoluta, de surrealidade, como ele declara em seu primeiro
manifesto (TANIA RIVERA, 2005, p. 13).

Em nossa proposição esses encontros de palavras e imagens gerados pelos procedimentos


surrealistas não careciam de sentido; pois já são sentidos em si mesmo. Seguindo o pensamento de
Freud, podemos dizer que os processos mentais não acontecem ao acaso e que, portanto, não existe
descontinuidade na vida psíquica.
Assim, podemos compreender que a forma com que o autor ou a autora da poesia, em nosso
projeto, associou as diferentes palavras dos diferentes integrantes do grupo, corresponde a maneira
com o(a) mesmo(a) apreendeu de cada conceito, em sua infinitude de significados.
Para que seja de total entendimento, explicaremos o funcionamento dessa ação dentro do
grupo.
Durante um dia determinado, cada um dos membros do grupo deveria resumir suas vivências
em uma palavra. Então uma pessoa do grupo, iniciando pela coordenadora da pesquisa e autora deste
artigo, escrevia cada palavra em um pedaço de papel separado, que posteriormente foram dobrados e
colocados em recipiente qualquer, e então retirados um a um aleatoriamente, para fazer uma
composição (Imagens 1 e 2). A orientação foi para que no dia em que publicassem suas escritas,
escolhessem outra pessoa para dar continuidade ao processo.

IMAGEM 1 - COMPOSIÇÃO CRIADA PELO AUTOR DESTE ARTIGO

Fonte: Acervo dos autores, 2020.


IMAGEM 2 - COMPOSIÇÃO CRIADA POR ALLISON LOURENÇO DOS SANTOS,
INTEGRANTE DO GRUPO
896
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fonte: Acervo pessoal de Allison Lourenço dos Santos, 2020.

Notamos que a descrição do dia, geralmente demonstrava o cansaço e anseio de que esse
momento de isolamento imprime. Assim como nas outras ações, norteamos o trabalho no sentido de
ressignificar tal situação, e de possibilitar o entendimento de que a arte é espaço de expressão e troca,
que viabiliza o diálogo e a elaboração para as mais diferentes necessidades, além de atribuir a fala e
a construção de pensamento crítico nos participantes, que são elementos fundamentais no exercício
da cidadania e consequentemente no desmanche da necr[opolítica através da construção de corpos
poéticos em (re)existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizamos esclarecendo que esta pesquisa se encontra em andamento, e que por esse
motivo, estabelecemos apenas (in)conclusões transitórias e mutáveis, mas que podem desde já indicar
caminhos possíveis para efetivar nossas propostas. Pois,

A fantasia inconsciente sustenta e colore todas as nossas atividades, por mais realistas que
estas sejam. No entanto certos fenômenos e atividades visam mais diretamente a expressão,
à elaboração e à simbolização de fantasias inconscientes. Não só os sonhos, mas também os
devaneios, o brincar e a arte incluem-se nessa categoria. Eles têm muitos elementos em
comum (HANNA SEGAL, 1993, p. 110).

REFERÊNCIAS

897
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BERTA MAIA, Rodrigues; DIAS, Paulo César. Ansiedade, depressão e estresse em estudantes
universitários: o impacto da COVID-19. Estudos de Psicologia, v. 37, n. ?, p. 1-8. 2020.

BRENDA SANTOS. Depoimento sobre o processo criativo de Plúmbeo. WhatsApp: Gupo “Arte
& Psicanálise 2020”. 17 set. 2020. 12:34. 1 mensagem de WhatsApp.

COLI, Jorge. O que é Arte. 15 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.

COMO é a sublimação para a psicanálise hoje? Christian Dunker. [S. 1.: s. n.], 2017. 1 vídeo (8 min).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nZxdDXUkyqQ. Acesso em: 02 set. 2020.

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. 2 ed. Porto


Alegre: Artmed, 2008.

FÁTIMA LIMA. Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe. Arquivos
Brasileiros de Psicologia, v. 70, n. ?, p. 20-33. 2018.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

FREUD, S. Recordar, Repetir e Elaborar: novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II. In:
Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), Rio de
Janeiro: Imago, vol XII. 1996. P. 163-171.

HANNA SEGAL. Sonho, Fantasia e Arte. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1993.

LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3 ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

NARA SALLES. “Em Branco”: a violência no cotidiano urbano. In: IV Reunião Científica de
Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2007, Campinas, SP. Anais (on-line). Campinas,
2007. Disponível em:
https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/issue/view/74/showToc. Acesso em: 02
set. 2020.

NARA SALLES. Sentidos: Uma Instauração Cênica. Processos criativos a partir da poética de
Antonin Artaud. 2004 Tese (Doutorado em Artes Cênicas) Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2004.0.

PIRES, Josadaque; NARA SALLES. CORPOS EM (RE)EXISTÊNCIA: a residência artística no


Hospital Psiquiátrico. In: FRANCISCA MARIA NETA; PEIXOTO, José Adelson Lopes (Orgs.).
Dinâmicas da Resistência: fronteiras, estratégias e mobilizações. Goiânia: Editora Phillos,
2019. p. 187 – 205.

898
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte: sete Histórias Paradoxais. São Paulo: Editora Schwarcz
Ltda, 1995.

TANIA RIVERA. Arte e Psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

899
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFLEXOS DO REALITY SHOW RUPAUL’S DRAG RACE NAS DRAG QUEENS
BRASILIERAS

Crystian dos Santos Oliveira378


Felipe Ziembowicz Schreiner379
Roger Dalcin Pereira380
Fernanda Sagrilo Andres381

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo promover uma análise semiótica do vídeo "Queens brasileiras
respondem Drags da Rupaul", veiculado pelo canal “Põe na Roda”, na plataforma Youtube, buscando observar os
reflexos que o reality show Rupaul’s Drag Race traz para a realidade das drag queens brasileiras, na percepção, padrão
estético e comportamentos. Para tanto, o estudo se baseia numa revisão conceitual sobre arte drag e teoria queer, a partir
da teoria de performatividade de gênero de Judith Butler (2003), e nos estudos de Amanajás (2014) e Bragança (2019)
em relação a história desta arte no Brasil e no mundo. Através desta pesquisa, identificou-se que a centralização do reality
show, em um espaço considerado superior por estar em um local privilegiado norte-americano, coloca a arte drag
estadunidense como referência, inferiorizando e desvalorizando a narrativa e a construção das drag queens brasileiras.

Palavras-chave: Drag Queen; Reality Show; Rupaul’s Drag Race; Drag Queens Brasileiras.

INTRODUÇÃO
No universo artístico, permeado por diferentes tipos de expressões e movimentos,
características diversas que expressam a rotina, sentimentos e realidades, constroem e significam a
vida. É na arte também que o movimento LGBTQIA+382 encontra a possibilidade de construir a sua
identidade e ainda manifestar as suas pautas.
Neste cenário se constroem as drag queens, constituídas por indivíduos, na sua maioria
LGBTQIA+, que, a partir de elementos extravagantes de caracterização, sejam eles padronizados
culturalmente como masculinos ou femininos, constroem em seu corpo uma persona artística,
performatizando em espaços culturais através de dança, música, costura, teatro, etc.
Dado que trata-se de sujeitos que constituem um personagem de acordo com os padrões
hegemônicos de masculinidade e feminilidade, a construção da drag queen na arte é

378
Graduando do curso de Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja/RS. E-mail:
crystiansoli@gmail.com
379
Graduando do curso de Relações Públicas pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja/RS. E-mail:
felipeschreiner.aluno@unipampa.edu.br
380
Graduando do curso de Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja/RS. E-mail:
rogerdalcin05@gmail.com
381
Professora da Universidade Federal do Pampa. Doutora em Comunicação. E-mail:
fernandaandres@unipampa.edu.br
382
Neste trabalho consideramos LGBTQIA+ como sigla que representa Lésbicas, Gays, Transsexuais, Travestis,
Transgêneros, Queer, Interssexuais, Assexuais e outras possibilidades de orientação sexual e identidades de gênero.
900
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
significativamente posta em discussões relacionadas a performatividade de gênero (BUTLER, 2003).
Assim dizendo, coloca-se em prova, no meio LGBTQIA+, questões relativas a estética da drag queen
e as performatividades das quais ela se utiliza e reproduz.
Neste panorama, o reality show estadunidense “Rupaul's Drag Race” surge enquanto um
espaço para divulgação e promoção da arte drag e recebe alcance de audiência em escala mundial.
Sobretudo, o programa também acaba reproduzindo um comportamento e objetificando um padrão
"ideal" de drag queen.
A repercussão do reality show permitiu também que outros produtos comunicacionais fossem
criados, não só a respeito da cultura drag, como também sobre o próprio programa. Esse é o caso do
vídeo “Queens do Brasil respondem drags da Rupaul” do canal brasileiro “Põe na Roda”, que discute
questões LGBTQIA+ no YouTube. O vídeo trata-se de uma roda de conversa onde quatro drag queens
brasileiras, convidadas pelos idealizadores do canal, comentam sobre as críticas que receberam por
outras drag queens estadunidenses, em sua maioria ex-participantes de RuPaul’s Drag Race, em um
vídeo anteriormente postado neste mesmo meio.
Portanto, neste trabalho buscamos a compreensão de como o programa “Rupaul’s Drag Race”
idealiza um padrão de drag queen a partir da análise semiótica do vídeo “Queens do Brasil respondem
drags da Rupaul” do canal brasileiro “Põe na Roda”, e como esse fator repercute nas drag queens
brasileiras. Para a compreensão do universo da pesquisa, utilizaremos conceitos de gênero e
performatividade, para contextualizar o que é e quais as origens das drag queens no cenário
LGBTQIA+.

O QUE É DRAG QUEEN?


Diversos artistas drag vêm ganhando evidência no cenário cultural e midiático brasileiro.
Nomes como Pabllo Vittar383, Gloria Groove384, Aretuza Lovi385 são bastante comentados nas mídias

383
Pabllo Vittar é uma cantora drag queen brasileira que possui 3 álbuns musicais, são eles: Não para não, Vai passar
mal e o 111. Segundo a Jovem Pan, atualmente, Pabllo Vittar possui o título de drag queen mais escutada do Spotify,
chegando a marca 4,3 milhões de ouvintes mensais. No seu perfil no Instagram, a artista chega a marca de 10 milhões
de seguidores.
384
Gloria Groove é uma rapper drag queen brasileira que possui quase 2 milhões de seguidores no Instagram. Ao
longo de sua carreira musical, Gloria Groove já lançou singles solos e com diversos artistas, como: Aretuza Lovi,
Léo Santana e Lexa.
385
Com meio milhão de seguidores no Instagram, Aretuza Lovi é uma cantora drag queen brasileira que possui 1
álbum musical, chamado Mercadinho.
901
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sociais digitais devido seus lançamentos e apresentações. A partir dessa observação, a temática se
tornou interessante para nossa compreensão. Por isso, neste item iremos tratar sobre as concepções
do que são drag queens.
Os estudos culturais abriram portas para debates que ainda não eram levados em conta. Uma
dessas propostas é a ideia de sujeitos multifacetados, que para Hall (2006) não são ancorados no
mundo social, processo derivado das “transformações associadas à modernidade” que “libertaram o
indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas culturas” (HALL, 2006, p. 25). Ou seja, se perde
a ideia de uma estrutura divinamente imposta que limitava transformações no sujeito.
Neste sentido, podemos começar a inserir as ideias da Teoria Queer, que problematiza e reflete
as estruturas de gênero e sexualidade na conjuntura social. Os estudos da Teoria Queer começaram
ainda na década de 80, buscando a problematização da hegemonia heterossexual. Segundo Milskolci
(2014, p. 8-9), “é possível afirmar que a Teoria Queer é um rótulo que busca abarcar um conjunto
amplo e relativamente disperso de reflexões sobre a heterossexualidade como um regime político-
social que regula nossas vidas”.
Uma das mais reconhecidas pensadoras da Teoria Queer é Judith Butler que, em seus estudos
e obras, trouxe à tona debates sobre a construção de gênero. Para Butler, o termo “Queer adquire todo
o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e
insultos” (BUTLER, 2002, p. 58), ou seja, há neste sentido uma ressignificação do termo que tem
operado como prática pejorativa, com objetivo de degradar sujeitos desviantes da
heteronormatividade.
Um dos mais importantes alcances dos estudos de Butler foi o que ela denominou como teoria
da performatividade, considerando que

o gênero é performativo, pois é o efeito de um regime que regula as diferenças de gênero.


Neste regime, os gêneros se dividem e se classificam de forma coercitiva. Regras sociais,
tabus, proibições e ameaças punitivas atuam por meio da repetição ritualizada das normas.
Essa repetição constitui o cenário temporário de construção e desestabilização do gênero.
Não há sujeito que anteceda e execute essa repetição das regras (BUTLER, 2002, p. 64).

A partir dessa concepção de Butler, pode-se dizer que os gêneros são performativos, de forma
ritualizada e repetida. Ou seja, busca compreender como são constituídos os sujeitos que são
resultados dessas repetições das normas. Logo, quem tiver comportamentos diferentes das

902
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
normas, fugindo dos ideais construídos sobre masculinidade e feminilidade, na vivência
heteronormativa acaba sofrendo diversas “punições”.
Sendo assim, a partir dos processos históricos de uma sociedade de natureza patriarcal temos
que homens devem ser viris, não demonstrar emoções, serem másculos, etc, e mulheres, em
contrapartida, serem mais sensíveis e delicadas. Recebemos essas caixas, que levam em consideração
o binarismo de gênero e a heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003), que ignora as demais
configurações de gênero.
Neste contexto, drag queens são, geralmente homens, que se travestem artisticamente de
mulheres de forma caricata, exagerada, mas não debochada. Eles buscam, através de
comportamentos, acessórios e vestimentas, se parecer o máximo possível com mulheres, entretanto
não objetivando serem mulheres. Se esses homens estão utilizando de ferramentas para tal, estão
também performatizando outro gênero. Butler afirma que “o travestismo altera por completo a
distinção entre os espaços psíquicos interno e externo zombando do modelo do gênero e da ideia de
uma verdadeira identidade de gênero" (2003, p. 195).
Por isso, para Butler (2003), drag também é uma performance pois estes elementos são
performativos e a identidade ou essência que desejam expressar são fabricadas e/ou sustentadas por
signos corpóreos e outros meios discursivos.
Essa construção da identidade é realizada através de diversos processos ao longo do tempo. A
performatividade de gênero para Butler (2003) é uma releitura da realidade, uma repetição e, para
Hall (2006), a partir da “crise da identidade”, não haveria uma identidade sólida, mas sim
fragmentada, possibilitando uma diversidade de identidades.

HISTÓRIA DO MOVIMENTO DRAG NO BRASIL


É possível identificar manifestações drag desde os tempos antigos, onde esses personagens
cresceram alinhados às apresentações teatrais. Na Grécia Antiga, por exemplo, onde o teatro era
produzido exclusivamente por homens, os mesmos utilizavam-se de máscaras, adereços e
comportamentos extravagantes para interpretar as personagens femininas, inclusive em encenações
sacras da Igreja (AMANAJÁS, 2014). Posteriormente à isso, houve outras séries de reaparições da
figura drag em distintos contextos históricos e culturais, os quais possibilitaram vários padrões,
estéticas e fórmulas para estes artistas se manifestarem inseridos nessa lógica. Nos Estados

903
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Unidos, especialmente nas últimas décadas, a drag queen passou a ganhar mais notoriedade a partir
do famoso documentário “Paris is Burning” (1990)386, que mostrava a cultura dos BallRooms387 em
Nova York, e mais tarde, com a popularização do reality show RuPaul’s Drag Race, estreado em
2009.
Já no cenário brasileiro, ocorreram diversos reavivamentos da cultura drag durante o século
XX, obtendo seu ápice nos anos 1990 com o memorável show de transformistas do programa Silvio
Santos e a constante presença destes artistas em eventos sociais. No entanto, há registro de
performances transformistas (como era chamada a arte drag no Brasil durante esse período) desde os
anos 1920, como aponta Trevisan (2000) em uma passagem de seu estudo sobre a história da
homossexualidade no solo brasileiro. A partir disso, muitas manifestações deste tipo se firmaram no
país, principalmente no teatro (como as Divinas Divas, grupo de artistas travestis que fez história no
Teatro Rival do Rio de Janeiro) e nas casas noturnas, que reuniam não só o público LGBTQIA+ como
o heterossexual também, e utilizavam dessas performances artísticas como um atrativo fundamental
para a noite (BRAGANÇA, 2019). Por volta dos anos 1970, no Brasil, os espaços culturais
encontravam-se rodeados por tais artistas, e nomes como Dzi Croquettes, grupo de teatro que
mesclava padrões de gênero em suas performances, e os músicos da banda Secos e Molhadas, que
também exibiam essa estética andrógina, marcaram e contribuíram para o reconhecimento social da
cena transformista.
Porém, em meados de 1980, a epidemia de HIV/AIDS obteve um efeito negativo dentro do
contexto transformista brasileiro, dado que amplificaram-se os estigmas sociais destinados a
comunidade LGBTQIA+ e, em especial, a todos que fugiam dos padrões heteronormativos no âmbito
social.

Como maneira de se afastar da imagem estereotipada do gay afeminado de ‘comportamento


promíscuo’, grande parte da comunidade LGBT passou a viver cada vez mais de acordo com
os padrões heterossexistas de sociedade. As características masculinas passaram a ser cada
vez mais enaltecidas, enquanto as femininas, rechaçadas. A AIDS, então, acabou tendo forte
impacto na cena transformista. A partir desse momento não era mais cool frequentar
ambientes com homossexuais. Os shows, assim, perderam seu público, e a cena foi se
desestruturando. (BRAGANÇA, 2019, p. 12)

386
Documentário dirigido por Jennie Livingston e gravado em 1980, acompanhando a cena LGBTQIA+ periférica
na cidade de Nova York.
387
Bailes promovidos em bairros periféricos de Nova York, onde Houses - casas onde grupos de jovens LGBTQIA+
que eram expulsos de casa encontravam abrigo - competiam em modalidades de dança e figurino.
904
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa forma, a drag queen brasileira necessita de uma renovação para dar a continuidade em
seu trabalho, então, a partir de influências midiáticas norte-americanas e dos novos paradigmas
musicais eletrônicos que começavam a surgir, encontra sua sobrevivência não só em suas
performances, mas também enquanto DJ, visto a considerável demanda destes profissionais pelas
casas noturnas. Essa nova tendência passa a se sustentar na realidade drag brasileira conjuntamente
de uma modalidade de apresentação drag chamada “bate-cabelo”388, criada pela drag queen Marcia
Pantera, que ganha espaço nas baladas eletrônicas pela maneira como atrai a atenção do público. No
entanto, é só a partir de 2009 que a cultura drag ganha força novamente, estimulada pelo lançamento
do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race, e seu suscetível sucesso de audiência, que por
conta da globalização, conquistou muita adesão e celebrização em solo brasileiro.

METODOLOGIA
O presente estudo busca através da análise do produto audiovisual “Queens do Brasil
respondem drags da Rupaul - Põe na Roda” (veiculado no canal de YouTube “Põe na Roda”) a
compreensão de como o programa “Rupaul’s Drag Race” idealiza um padrão de drag queen.
Optamos, assim, pelo percurso analítico da semiótica de Algirdas Greimas (também conhecida como
semiótica francesa/europeia) enquanto ferramenta metodológica, dado nosso entendimento do vídeo
enquanto produtor de sentidos ao espectador sobre o universo drag.
Os estudos teórico-metodológicos da semiótica Greimasiana tem como objetivo buscar o
sentido de algum material a partir da análise do mesmo enquanto um texto. Greimas (1998) entende
o texto enquanto uma unidade de sentido que para ser interpretado ou ter seu sentido construído
necessita seguir um percurso, que se dá do mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto.
Assim, considerando todo produto comunicacional passível de ser lido como um texto, o autor propõe
três níveis de construção que se interligam na intenção de expressar o sentido do que foi apresentado
no texto, são eles: fundamental, narrativo e discursivo.
Compreendendo, então, o vídeo criado pelo canal “Põe na Roda” como um texto produtor de
sentido, o mesmo será analisado a partir de sua inserção na lógica das etapas metodológicas da

388
“Nele, as drags, embaladas no ritmo frenético das músicas eletrônicas, giram o cabelo em uma velocidade
impressionante objetivando levar o público ao delírio.” (BRAGANÇA, 2019, 12).
905
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
semiótica. É importante apontar que esse percurso inclui a existência de uma textualidade, que é
associada ao texto do processo comunicativo, ou seja, tem como suporte o contexto ao qual este se
insere.
Isto posto, para tornar possível o objetivo da presente pesquisa, serão utilizadas duas
articulações inseridas nas categorias analíticas desenvolvidas por Duarte e Castro (2007), a
paratextual e a intratextual.
O nível paratextual corresponde às relações - históricas, culturais, sociais, econômicas,
políticas e tecnológicas - que o texto mantém com seu entorno comunicacional, pressupondo,
especialmente, a situação concreta em que acontece a enunciação do produto audiovisual.
Já o nível intratextual se dá na forma e o espaço os quais os enunciadores manifestaram suas
narrativas, ou seja, está conectada com a noção de “como” foi dito, as circunstâncias e a maneira que
se deu os discursos dos indivíduos ali presentes. Logo, para alcançar uma combinação de ordem
semântica e sintática, são convocadas operações de seleção do material. Esse processo também
possibilita a criação de um universo fictício, que por sua vez, requer investimentos semânticos,
complexos e particulares com o intuito de definir uma construção temática e figurativa, sendo capaz
de projetar atores, espaços, tempos e tons que compõem esse universo e surgem no texto em questão.
Portanto, para a realização de uma investigação coerente com os objetivos propostos nesta pesquisa,
será analisado, nesta etapa, diretamente o vídeo “Queens do Brasil respondem drags da Rupaul - Põe
na Roda”, nosso objeto.
Assim sendo, visamos analisar o produto comunicacional em dois níveis: paratextual
(contexto geral) e intratextual (discursividade: tematização, actorialização, figurativização,
espacialização, temporalização, tonalização). Tratando-se da discursividade, não iremos utilizar os
aspectos de temporalização, espacialização e figurativização por não serem contemplativos em nossa
pesquisa.

ANÁLISE
O objeto de análise desta pesquisa é o vídeo intitulado “Queens do Brasil respondem Drags
da Rupaul”, do canal do YouTube Põe na Roda.

I - Nível paratextual:

906
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a) Configuração geral:
Para compreender o cenário no qual a análise que este trabalho se propõe a fazer, é necessário
entender a ascensão das drag queens na mídia e no show business e quais os motivos que levaram o
canal do youtube “Põe na Roda” a produção dos vídeos com as queens.
Construídas no meio artístico, as drag queens sempre performaram através da arte, contudo,
Rupaul Charles, um artista estadunidense que criou uma drag queen com o mesmo nome - Rupaul -,
conquistou a fama através da atuação no cinema, participando de mais de 50 filmes. Ele estendeu seu
portfólio como artista interpretando músicas, com 11 álbuns solo, além da participação em programas
televisivos de variedade, talk shows, reality shows e contratos como modelo para publicidade,
consagrando a sua popularidade no show business estadunidense. Neste cenário onde o artista Rupaul
Charles conquista sua fama, ao mesmo tempo desenvolve sua drag queen Rupaul, que também passa
a ser reconhecida, consolidando a sua carreira e se tornando uma das queens pioneiras no show
business no mundo.
Com a carreira consolidada enquanto drag queen, Rupaul desenvolve então um reality show
para drag queens, o “Rupaul’s Drag Race”, que estreou com a primeira temporada em 2009. Neste
reality show, as drag queens são desafiadas semanalmente com diferentes manifestações artísticas
como atuação, dança, música, humor, moda e costura. Em cada episódio, o reality elimina a drag
queen que menos se destacar na prova e a ganhadora final em cada temporada é coroada como a
“próxima estrela drag americana”389.
Atualmente, o reality show possui três séries: 1) o Rupaul’s Drag Race, com doze temporadas,
que estreiam drag queens anônimas; 2) o Rupaul’s Drag Race All Stars, com seis temporadas, onde
participam drags que já estrelaram no primeiro programa e retornam para novos desafios; e 3) o
Rupaul’s Drag Race Celebrity, com uma temporada, que convida artistas famosos que não são drag
queens para vivenciar a experiência orientados por drag queens veteranas no programa. Além dessas,
a franquia ainda possui uma edição especial de natal, exibida em 2018, com apenas um episódio.
Os alcances do reality show fizeram com que a produção expandisse o “Drag Race” para
outros países além dos Estados Unidos, estreando na Tailândia - exibido em 2018, Reino Unido -
exibido em 2019 e Canadá - exibido em 2020.

389
Tradução livre.
907
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O programa também serviu de apoio para desenvolver outros produtos artísticos para drag
queens, como o Werq The World, que é um show performático itinerante com as drag queens ex-
participantes do reality, e o “We’re Here”, série produzida com algumas drag queens ex-participantes
do programa que ajudam pessoas a buscar sua autoestima e resolver problemas familiares com
problemáticas LGBTQIA+.
É importante destacar que cada drag queen possui um estilo diferente - e como estamos
falando sobre arte, o estilo é uma construção individual e que são representadas no estilo, postura e
performance - sobretudo, as drag queens participantes do programa, em sua maioria, procuram
construir a drag com roupas luxuosas, extravagantes e caras, muitas vezes, desenvolvidas apenas para
a participação no reality. Sobre essa questão Gadelha (2009), em seu estudo sobre a performance drag
na cidade de Fortaleza, aponta um massivo interesse das drag queens em consumir e incorporar no
estilo de suas personagens, itens de luxo e de alto custo, embora muitas vezes estes estejam fora de
seu alcance financeiro. Para ele, essa busca pela estética cara está profundamente interligada à
associação causada socialmente da ideia de “bom gosto” atrelado ao padrão de consumo de classes
dominantes.
Essa busca por um estilo luxuoso também se torna mais evidente com a busca pela fama e
pelo alcance mundial do programa, onde as queens apelam pelo impacto da comunicação visual da
sua estética, fator importante para cativar fãs de diferentes locais, inclusive no Brasil.
O reality show, no Brasil, movimenta muitos fãs em torno de todos os produtos do programa,
além de acompanhar de perto a vida pessoal e performances das queens. Muitos ainda utilizam de
mídias digitais para trocar informações e compartilhar opiniões e discussões sobre o programa.
Porém, esta repercussão do “Rupaul’s Drag Race” atinge também as drag queens brasileiras, que são
julgadas através do padrão norte-americano de drag queen.
Essa objetificação interfere no comportamento, estilo, arte e outras características sobre a
construção de drag queens de outras nacionalidades, através da hegemonia do reality show
estadunidense e também se torna tema de debate entre as queens brasileiras, como mostra um vídeo
do canal do youtube “põe na roda”.
O canal põe na roda, criado em 2014, tem como propósito promover a informação, discussão
e debate na, sobre e para comunidade LGBTQIA+, conversando com diversas pessoas
LGBTQIA+ e suas vivências para desmistificar preconceitos e socializar problemáticas. Em um

908
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
dos seus vídeos, convida três queens ex-participantes do programa Rupaul’s Drag Race, Gia Gun,
Katya, Laganja e, Bible, que não participou do programa, mas acompanha as outras três. No vídeo as
quatro drag queens são convidadas a julgar as drag queens brasileiras através de um jargão do reality
show “shantay you stay” para as queens que performam em uma perspectiva considerada boa e
“sashay away” para apresentações que não considerarem boas. A repercussão do vídeo, através dos
comentários no youtube, trouxeram reflexões que fez com que os idealizadores do canal convidasse
as drag queens brasileiras Gloria Groove, Alma Negrot, Duda Dello Russo e Penelopy Jean, para
rebater os comentários das Drag Queens norte-americanas.

II - Nível intratextual:
a) Descrição do vídeo
O material de 23 de dezembro de 2015 possui 23 minutos e 26 segundos. O vídeo tem como
objetivo mostrar as respostas das Drags Queens brasileiras convidadas (Gloria Groove, Penelopy
Jean, Alma Negrot e Duda Dello Russo) às críticas e reações das Drags Queens estadunidenses sobre
as performances brasileiras. Ou seja, há um outro produto midiático que é referenciado neste vídeo,
mas que não entramos em questão por não se tratar do objetivo da produção.
O produto é gravado num cenário fechado, com poucos adereços. Há apenas um sofá de dois
lugares com uma parede branca, que serve de fundo para a produção. Neste sofá, as quatro
personagens do vídeo ficam assim dispostas: Gloria Groove, Alma Negrot, Duda Dello Russo e
Penelopy Jean (da esquerda para a direita). Gloria e Penelopy estão sentadas nos braços do sofá.
Ao longo do vídeo, a produção apresenta o outro material midiático no canto inferior direito
do vídeo, ocupando, aproximadamente ¼ da tela. Este vídeo é em inglês, idioma oficial dos Estados
Unidos, por isso, apresenta legenda em português.
Após a visualização do vídeo, a imagem retorna para o primeiro cenário contendo apenas as
quatro personagens principais. O vídeo também apresenta diálogos das drag queens brasileiras com
a equipe de produção do canal Põe na Roda, que estão por trás das câmeras.

b) Dispositivos discursivos:
Referente à tematização, as drag queens brasileiras são convidadas pelos produtores do
canal “Põe na Roda” para reagirem a um vídeo anterior postado neste mesmo meio, onde queens

909
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estadunidenses (em sua maioria ex participantes do reality RuPaul’s Drag Race) julgam a
performance, o estilo e a estética das artistas drag brasileiras utilizando dos jargões utilizados no
reality, onde na prova de eliminação a competidora que recebe mais uma chance escuta “shantay you
stay” e a eliminada “sashay away”.
Referente à actorialização, no início do vídeo há três produtores do canal Põe na Roda,
Nelson, Pedro e Felipe. Mas a encenação do vídeo remete para a centralização de apenas quatro
personagens que são logo apresentadas. As drag queens brasileiras que assumem a apresentação do
vídeo e comentam suas vivências enquanto artistas na realidade brasileira são Gloria Groove, Alma
Negrot, Duda Dello Russo e Penelopy Jean.
Gloria Groove está posicionada no canto esquerdo do vídeo, sentada no braço do sofá, ela usa
um vestido rosa com bojo, um salto alto e sua maquiagem é clássica, utilizando dos traços e trejeitos
femininos para compor seu visual e seu comportamento.
Alma Negrot está sentada no sofá ao lado de Glória Groove e Duda Dello Russo, ela usa um
vestido preto com alguns pigmentos coloridos espalhados pela parte superior da roupa, que alcançam
também a pele de seu pescoço e sua peruca. Sua maquiagem usufrui de muitas cores pintadas sob o
rosto e adereços exóticos colocados em sua testa, sua orelha e seu septo. Suas pernas não estão
depiladas e seus pés estão descalços, optando por um estética excêntrica e agressiva, contrariando o
padrão dominante feminino e delicado.
Duda Dello Russo está sentada no sofá ao lado de Alma e Penelopy, ela usa um vestido
dourado com uma coroa da mesma cor posicionada em sua cabeça, sua maquiagem chama a atenção
pela predominância da cor azul, que cobre todo seu rosto. Seu estilo mescla padrões considerados
femininos com uma estética voltada para a excentricidade e o inusitado.
Já Penelopy está posicionada no canto direito do vídeo, sentada no braço do sofá, assim como
Gloria, ela está usando uma camisa regata branca amarrada, um short com estampa que remete à pele
de onça e uma meia calça arrastão acompanhada de um salto alto. Sua aparência, seu comportamento
e sua maneira de se expressar denotam um estilo de feminilidade hegemônica.
Logo, já podemos observar que existem diversos padrões de expressão artística, no sentido de
não haver regras e normas, mas a liberdade de utilizar adereços e vestimentas como a personagem
preferir.

910
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Referente à tonalização, percebemos a existência de dois tons conforme o andamento do
vídeo: um primeiro momento com tom crítico e um segundo momento em tom reflexivo. Esses
momentos são perceptíveis no vídeo onde, no primeiro momento as Queens rebatem e recebem as
críticas das Queens estadunidenses e no segundo momento, onde elas refletem sobre as pautas
debatidas na primeira parte. Diante disso, nos dedicamos a separar este tópico em duas divisões para
melhor compreensão, utilizando certos fragmentos de diálogos para ilustrá-los.
No primeiro momento, o tom do vídeo é crítico, desenvolvido através da recepção dos
comentários das drags queens do reality show. A partir da apresentação dos comentários pela equipe
de produção do canal Põe na Roda, as personas aqui tratadas como drag queens brasileiras comentam
e respondem às avaliações das drags estadunidenses sobre suas performances. Nesse momento, as
drag queens começam a responder os comentários de forma discordante às narrativas avaliativas de
suas apresentações. A drag queen Penelopy Jean traz um comentário que confirma o tom de
desaprovação “elas nem deveriam estar dando sashay ou shantay pra gente, acho que só Deus pode
falar isso a.k.a RuPaul”390, observando e questionando qual posição as drags estadunidenses possuem
para realizarem tais comentários. Nesse mesmo trecho, há um processo de endeusamento e/ou
reconhecimento do papel que a persona Rupaul possui dentro do movimento artístico, demonstrando
ainda uma crítica subordinada à cultura do reality ou apenas à cultura drag estadunidense.
Outro aspecto observado no tom crítico são as opiniões adversas sobre as referências de
identidade que as drags brasileiras possuem. Durante vários momentos as drags estadunidenses
utilizam de nomes de participantes do reality para comparar às vestimentas, maquiagens, posturas e
acessórios usados pelas drags brasileiras, invisibilizando as referências locais, que fazem parte da
cultura brasileira. Nesse sentido, há uma exaltação do reality como se só houvesse drag queen a partir
do programa, sem uma perspectiva além. Em um trecho da conversa, Duda Dello Russo afirma que
“a Trixie não inventou o laço… As pessoas tem essa coisa de ‘ai a sobrancelha da Pearl, o côncavo
da Trixie…’” e Alma Negrot encerra dizendo “as referências parecem que tem que ser sempre delas,
como se a gente vivesse para copiar elas”.
Apesar desta tonalização crítica inicial do produto, a qual procura desconstruir os padrões
hegemônicos de feminilidade e os paradigmas da própria arte drag vivenciados e ditados pelo
programa e pelas participantes, é perceptível a inserção involuntária das artistas brasileiras nesta

390
“Também conhecido como” - tradução nossa.
911
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lógica subordinada. Um exemplo disso são os discursos protagonizados por Penelopy no momento
em que as Ru-Girls (outra denominação às drags que participaram do reality show) iniciam a assistir
sua performance: “(...) foi a primeira vez que eu fiz esse show, foi a primeira roupa que eu fiz (...) eu
odeio esse show, odeio, odeio, odeio, foi a primeira vez que eu usei essa peruca que ela pesa quase
1kg, então assim, eu não estava acostumada, eu não tinha ensaiado com a peruca, ela ficou pronta no
dia que eu viajei (...)”, se colocando numa posição inferior em relação a padronização do belo dentro
da arte. Nesse mesmo sentido, Gloria Groove também tece observações relacionadas aos comentários
das ex-participantes do reality sobre suas mãos: “(...) Eu acho minhas mãos muito masculinas mesmo”
ao passo que Duda, em uma crítica à este padrão, interrompe “Porque você é um homem (risos)”,
entretanto, Gloria segue “(...) e nesse dia eu não pus unha, fiquei com preguiça, me montei as nove
da manhã”.
No tom reflexivo, as queens brasileiras trazem para a discussão pautas que estavam debatendo
no primeiro momento do vídeo, contudo, abrem a discussão para a realidade brasileira do cenário
drag. Logo no início, Duda Dello Russo comenta que “A gente ainda tem que ralar muito mais, porque
a gente recebe muito menos que elas aqui, porque a gente é muito desvalorizada (...) A gente tem que
esperar três meses pra chegar uma peruca.” e Penelopy Jean continua “A gente gasta muito mais (...)
E eu acho que as brasileiras são umas das melhores, não só drags, mas artistas do mundo, porque a
gente faz muito com muito pouco, é muito pouco reconhecimento que a gente tem né. (...) E depois
de fazer muito com pouco, mesmo com toda a criatividade, que a gente trabalha forte, tudo, a gente
não é valorizada né, porque às vezes o pessoal paga aí, sei lá, trezentos reais pra ver uma drag de fora
e vem pedir vip da boate pra gente pra ver nosso show”. Assim, podemos observar a relação de
visibilidade, facilidade e reconhecimento que o cenário estadunidense dá aos artistas, podendo ser em
razão do reality, enquanto os brasileiros não possuem tal cenário.
Gloria Groove continua falando sobre a montação “E não existem regras pra se maquiar por
exemplo, não existe maquiagem boa e maquiagem ruim, existe maquiagem, você tem que saber usar,
a gente usa desde coisas que a gente fez questão de comprar porque quis muito na mac, até coisas que
a gente compra porque a gente sempre usou e sempre vai usar o pó da Vult.” Deixando evidente
também que a caracterização também é de uma relação íntima com o acesso aos produtos, e a
caracterização que o artista deseja dar a sua drag. Então as queens entram em uma discussão
sobre a arte drag e celebrização das mesmas, no qual Alma Negrot comenta “É bem isso, a galera,

912
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
acho, que gosta de celebridade, gosta de RuPaul’s Drag Race, não gosta de drag necessariamente,
porque a empatia é muito menor com as outras drags (...) em várias dessas apresentações de drags
internacionais, eu cansei de ver, as melhores são das brasileiras, nossa, a gente tomba com elas.”
Mostrando a desvalorização das artistas brasileiras em relação as norte-americanas.
Alma também continua falando sobre a construção da drag “E eu vejo que existem nichos,
assim é a galera clubber, club kid391, um monte de montagem estranha que me identifico mais, tem
se reunido em cidades, eu vejo isso bastante em SP, no Rio também, onde moro. Existem nichos que
vão crescendo e se começou com Rupaul's Drag Race esse novo “boom”, agora a galera já ta pensando
outras coisas, tipo já tem drag mulher, muito mais drag mulher, tem muito mais drag estranha, muito
mais gente só fazendo maquiagem diferente” e Penelopy acrescenta “é uma arte, não tem regras,
então assim, por isso não acho legal elas virem cagar regra pra gente que não pode usar front lace,
que o cabelo dela tá seco, você não conhece nossa realidade.” mostrando diversidade na construção
das drag queens e que a montação parte da forma como o/a artista pretende se expressar, fator que
também é ligado a realidade e o espaço que a drag ocupa.
Os produtores do canal Põe na Roda ainda questionam como mudar essa realidade e, neste
sentido, as drags relatam que partem da comunidade LGBTQIA+. Alma Negrot, então comenta “acho
que é uma forma de machismo, assim, que tá muito dentro da nossa cultura que é de tentar imitar
estereótipo feminino e transformar isso em competição, porque mulheres não podem ser amigas, uma
tem que ser melhor que outra e no drag elas reproduzem a mesma coisa, quando que os homens não
fazem isso? é uma estereotipação.” evidenciando também que a caracterização da drag também está
ligada aos processos sociais do espaço em que ocupam enquanto interpretam feminilidades através
da arte drag.
O vídeo então se direciona para o fim, onde as drag queens reforçam a centralidade que as
queens norte-americanas ocupam, marcado pelo depoimento de Alma Negrot “é que é circunstância,
realmente, mesmo que não tenha tido essa função, elas têm essa posição privilegiada por estarem nos
EUA, por terem esse foco nelas, e a maioria das gays que assistem Rupaul's pagam mais pau pra ela
que pra gente, então acho que acaba corroborando com essa ideia.”

391
Movimento que promovia festas de grande sucesso em grandes casas noturnas repletas de celebridades e
pessoas da ‘alta sociedade’ que utilizavam roupas ultrajantes, alegóricas e inusitadas.
913
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da revisão teórica sobre gênero e expressão artística drag queen somados à análise
semiótica do vídeo selecionado, é possível perceber, a partir da influência midiática de RuPaul’s Drag
Race, certa reverberação nos grupos sociais diversos que a série atinge, mostrando um ideal sobre
certo e errado dentro da arte drag. Isso acontece tanto porque o reality show é líder de audiência nos
EUA, país de hegemonia social, cultural e política, reconhecido por gerar tendências de estilo e
comportamento pelo mundo, como também pela transformação das drags participantes em
celebridades, e consequentemente, ícones de representação da arte drag.
Essa construção de celebridades promovida dentro da narrativa do programa surge com a
ascensão do mercado homossexual e a demanda por produtos que abarquem identidades diversas para
além dos padrões heteronormativos. Assim, as drags se tornaram celebridades a partir do programa,
dentro de uma lógica mercadológica que prevê a visibilidade, e subsequente representatividade,
através do consumo, que acaba direcionando a construção e objetificação de um padrão de drag queen
“ideal” moldado pelas características norte-americanas.
Através do potencial midiático que o programa assume, em consequência da hegemonia
estadunidense em vários aspectos sociais, existe uma construção do padrão ideal para a expressão
artística que é levado em conta até para o funcionamento do reality show, nas eliminações e
considerações. Consequentemente, há uma celebração à feminilidade hegemônica, no sentido de
colocar em degrau elevado drag queens que utilizam dos acessórios, vestimentas e comportamentos
que os tornem mais parecidas com essa feminilidade “ideal”.
O objeto de análise se propõe à isso, problematizar as construções destas identidades de drags
e evidenciar que não existe um padrão a ser seguido na expressão artística, porque depende do sentido
que o artista quer trazer em sua performance. Por isso, os sentidos impressos no vídeo “Queens do
Brasil respondem drags da Rupaul” que observamos vão ao encontro do questionamento sobre de
onde vem esse padrão e o porquê da existência do mesmo. Há, neste sentido, um entendimento sobre
o espaço social que o programa ocupa e, por isso, a posição de superioridade que as drags
estadunidenses têm em relação às brasileiras. As avaliações vindas das drag queens estadunidenses
não demonstram os recortes sociais necessários, como espaço político em que estão inseridas as drag
queens brasileiras, seus poderes aquisitivos e o cenário cultural brasileiro.

914
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim sendo, as drag queens brasileiras, neste espaço artístico, se sentem desvalorizadas, fato
que é reflexo do cenário e posição do Brasil no mundo e também do enaltecimento das queens
estadunidenses pelo público LGBTQIA+ brasileiro. Essa desvalorização atinge as queens brasileiras
na sua arte, no seu estilo e no trabalho como um todo, pois também reflete na condição monetária de
construção da drag, das performances e do cachê de shows.

REFERÊNCIAS
AMANAJÁS, Igor. Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas. Rev Belas
Artes (online). 2014 set-dez. Disponível em:
<http://www.belasartes.br/revistabelasartes/downloads/artigos/16/drag-queen-um-percurso-
historico-pela-artedos-atores-transformistas.pdf.> Acesso em 4 de set de 2020.

BRAGANÇA, Lucas. Fragmentos da babadeira história drag brasileira. Reciis – Rev Eletron Comun
Inf Inov Saúde. 2019 jul-set. Disponível em:
<https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1703.> Acesso em 4 de setembro de
2020.

BUTLER, Judith. Críticamente subversiva. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades


transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 55 a 81.

______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro, 2003,


civilização brasileira.

CHIDIAC, Maria Teresa Vargas; OTRAMARI, Leandro Castro. Ser e estar drag queen: um estudo
sobre a configuração da identidade queer. Estud. psicol. vol.9 no.3 Natal Sep/Dec. 2004. Disponível
em: < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2004000300009#end>
Acesso em 15 de set de 2020.

DUARTE, Elizabeth Bastos; CASTRO, Maria Lília Dias de (orgs). Comunicação audiovisual:
gêneros e formatos. Porto Alegre: Sulina, 2007.

GADELHA, José Juliano Barbosa. Masculinos em mutação: a performance drag em Fortaleza.


Fortaleza, 2009. Disponível em: <
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/1480/1/2009_Dis_JJBG.pdf>. Acesso em 12 de set de
2020.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LANG , Patrícia; FILIPPO, Marina; GASPARI, Guinevere; CATRINCK, Matheuz; CANEDO,


Júlia; LEAL, Tatiane. A Construção de Celebridades Drags a Partir de RuPaul’s Drag Race: Uma
Virada do Imaginário Queer. Intercom Anais (online): Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <

915
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
https://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-3777-1.pdf>. Acesso em 27 de ago de
2020.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica editora, 2018.

MISKOLCI, Richard. Estranhando as ciências sociais: notas introdutórias sobre teoria queer. Ano 1
(2014) n.2. Disponível em: <
http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/62/pdf_23>. Acesso em 5 de
set de 2020.

916
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - MULHERES
QUILOMBOLAS:
RESISTÊNCIAS E LUTAS
PELOS DIREITOS DE
CIDADANIA
COORDENAÇÃO
Profa. Dra. Simone Barros de Oliveira – UNIPAMPA
Profa. Dra. Patrícia Krieger Grossi – PUC/RS

917
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A IMPORTÂNCIA DA CULTURA AFRO - BRASILEIRA NO CURRÍCULO DA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Marco Aurélio de Almeida Soares 392

Resumo: Este estudo busca analisar a inclusão da história da cultura africana no currículo escolar como possibilidade de
incentivar o respeito à diversidade cultural e combate ao racismo e dessa forma sensibilizar os professores para a
importância da inclusão da temática afro-brasileira nas disciplinas de forma interdisciplinar. Para a realização deste estudo
foi utilizado à pesquisa bibliográfica exploratória, sendo utilizado como instrumento de pesquisa, livros, revista digitais,
sites e trabalhos acadêmico relacionados ao tema. Este estudo é de grande importância para melhorar os resultados na
formação das crianças que saem dos anos iniciais do ensino fundamental, e certamente contribuirá no meio acadêmico
para diminuir os índices do preconceito no Brasil.

Palavras-chave: Ensino; Cultura Afro-Brasileira; Currículo; Formação Docente..

INTRODUÇÃO

Este artigo busca desconstruir rótulos pejorativos a respeito dos afrodescendentes, e também
busca responder ao seguinte questionamento: “Em que medida a inclusão da história e da cultura afro-
brasileira, na educação básica, pode contribuir para o reconhecimento dos valores culturais africano
no Brasil? ”.
Diante disso, é possível estimular o interesse dos alunos pelo assunto e levá-los a prática nas
salas de aula, possibilitando ampliar interações e intervir no processo de formação e percepção crítica,
buscando evitar que estas se tornem preconceituosas, contribuindo, assim, para uma relação de
respeito e aceitação das diferenças.
É importante destacar que desde a chegada dos africanos no Brasil, os mesmos passaram a
contribuir para a história do país, suas culturas complementavam com a do povo que já habitava aqui,
transformando num país multicultural.
Diante disso, este estudo busca analisar a inclusão da história e da cultura africana no currículo
da educação básica como possibilidade de incentivar o respeito à diversidade cultural e de combate
ao racismo e dessa forma, sensibilizar os professores para a importância da inclusão da temática afro-
brasileira no currículo escolar; apresentar as principais questões relacionadas a esta temática e
fornecer algumas possibilidades para trabalhar de forma interdisciplinar.

392
Mestre em Educação, pela Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: halllymarco@gmail.com
918
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A escolha desse tema deve-se à relevância do estudo sobre a história dos afro-brasileiros e das
culturas trazidas pelos africanos, com ela pode-se ampliar os conhecimentos e obter informações
sobre a formação da cultura brasileira, da história e concepção das identidades raciais. Possibilitando
instigar os professores a trabalhar com acultura afro-brasileira nas salas de aula contribuído para os
valores e respeito às diferenças.
Este estudo ainda se constitui em um instrumento para melhorar os resultados na formação
das crianças que saem dos anos iniciais do ensino fundamental, o que certamente contribuirá no meio
acadêmico para diminuir os índices do preconceito no Brasil.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

É indiscutível que a diversidade cultural no Brasil é de grande relevância social e educacional,


para Santos (1987, p. 20-21) cultura é “(...) tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo
ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade”.
Diante de tantas passagens históricas, pensamentos, estilos de vida enfim tantas diversidades
no país podemos afirmar nas palavras de Santos (1987, p. 16):

é importante considerar a diversidade cultural interna à nossa sociedade; isso é de fato


essencial para compreendermos melhor o país em que vivemos. Mesmo porque essa
diversidade não é só feita de ideias; ela está também relacionada com as maneiras de atuar
na vida social, é um elemento que faz parte das relações sociais no país. A diversidade
também se constitui de maneiras diferentes de viver, cujas razões podem ser estudadas,
contribuindo dessa forma para eliminar preconceitos e perseguições de que são vítimas
grupos e categorias de pessoas.

Em 1951 foi reconhecida a existência de discriminação étnico-racial no Brasil, por meio da


Lei Afonso Arinos, aprovada sob o número 1.390/51, na defesa da igualdade de tratamentos e direitos
comuns independentemente da cor e/ou raça. A partir deste momento, todos que discriminam, por
motivo da cor da pele, estará sujeito as penalizações legais.
Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição Federal, quando a prática deste
preconceito foi transformada em crime. No artigo 5, da mesma Constituição, onde diz que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo se (...) a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, mais precisamente no inciso VI, o
qual defende a inviolabilidade das manifestações culturais, mudando, assim o quadro que havia

919
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nas Constituições anteriores, onde as manifestações da cultura negra era considerado um atentado a
“ordem pública” e tirando todo seu valor cultural.
Na lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) na Lei 9.394 de 20 de dezembro de
1996, diz que a história da África, sua cultura, a luta do seu povo, no Brasil e tudo mais que está
relacionado às contribuições dadas pelos africanos à nossa sociedade, deve ser incluída no currículo
escolar, principalmente nas disciplinas Educação Artística, História do Brasil e Literatura, com o
objetivo de promover o conhecimento e o respeito pela cultura afro-brasileira aos estudantes das
escolas brasileiras, portanto, estas Leis se tornaram um avanço importantíssimo para a redução dos
casos de crimes relacionados ao racismo no Brasil.
Nesse contexto, a atuação dos professores se apresenta como uma importante tarefa, pois
apesar de ser uma lei nem todas as escolas brasileiras praticam esta temática em seus currículos.
As manifestações de cultura afro-brasileira podem ser compreendidas por meio de diversas
maneiras, por exemplo: estudo de sua história (desde a vinda dos africanos para o Brasil até a pós-
abolição da escravatura), da arte (luta, danças, música), da culinária, dos contos, das brincadeiras. Em
suma:
(...) a condição inicialmente escrava dos primeiros (os negros) e as consequências sócio
históricas a ela vinculadas contribuíram para acentuar a diferença que fundamenta a
discriminação, mas o complexo processo de miscigenação aqui efetivado teceu o véu que
pretende disfarçar o preconceito e que precisa ser permanentemente denunciado (...)
(PROENÇA FILHO, 1975, p.79 apud FONSECA, 2001, p. 101).

Na LDB vemos no artigo 3, inciso II que alguns dos princípios do ensino no Brasil são a
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber” e no
inciso IV que traz o “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, corroborando com a importância do
pluralismo de ideias e o respeito as diferenças dentro do âmbito escolar.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (Parecer nº 04 CNE/ CEB/ 98) contêm os princípios,
fundamentos e procedimentos a serem exercidos na Educação Básica, determinados pela Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação a qual orienta as escolas no Brasil quanto a
organização, propostas pedagógicas etc. Uma das diretrizes traz a questão do “reconhecimento da
identidade pessoal de alunos, professores e outros profissionais e a identidade de cada unidade escolar
e de seus respectivos sistemas de ensino”, evidenciando a importância do reconhecimento das
diversidades no ambiente escolar.

920
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Também, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/ 90, no artigo 58 existe
um texto que defende o respeito aos “valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto
social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes
de cultura”. Em 2003, esta temática ganha um importante avanço, graças a uma inovação da LDB na
Lei de n° 10.639, a qual “altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’”, no artigo 26 diz que “nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino
sobre História e Cultura Afro-Brasileira”, o parágrafo 1° discorre que “O conteúdo programático a
que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando
a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil”,
e o parágrafo 2° conclui que “Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras”.
Em 10 de março de 2004 foram estabelecidas as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana”, por meio da Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, visando instituir tais diretrizes. No
Art. 2 desta Resolução vê-se que estas Diretrizes trazem:

(...) orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da


Educação, e têm por meta, promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio
da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas
(...).

Dessa forma, pelo respaldo legal, foi possível ampliar ou garantir as possibilidades de se trabalhar
em sala de aula, especialmente com as crianças, as questões referentes à diversidade cultural.

METODOLOGIA

921
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Inicialmente foram realizados vários estudos em trabalhos acadêmicos que constituía-se na
temática de currículos com estudos e projetos voltados para cultura afro descendente, após reunir tais
informações e dados que foram utilizados como base para a construção da investigação proposta foi
realizado o desenvolvimento do estudo com base na pesquisa bibliográfica exploratória,
possibilitando consultar sites, artigos, livros, revistas e trabalhos na área para assim recuperar o
conhecimento científico sobre o problema de forma descritiva. Este estudo ainda se constitui em um
instrumento para melhorar os resultados na formação das crianças que saem dos anos iniciais do
ensino fundamental, o que certamente contribuirá no meio acadêmico para diminuir os índices do
preconceito no Brasil.

CULTURA AFRICANA: A CONQUISTA POR DIREITOS

A sociedade encontra-se em um processo difuso de valores, resultado da diversidade cultural


da história do Brasil. Foi a partir desta diversidade de etnias que se formou o povo brasileiro. Partindo
desta concepção, é importante manter no currículo das escolas brasileiras as contribuições trazidas
pelos africanos.
Por meio das pressões exercidas pelos movimentos negros pôde haver a inclusão de
disciplinas que abordam a História dos Negros no Brasil e a História do Continente Africano em todos
os níveis de ensino do país, devendo ser garantido a todos os alunos. Em 1970, passou-se praticar
atividades voltadas para a valorização da cultura africana, a partir de iniciativas de entidades culturais.
Devido às aos Movimentos Negros juntamente a intelectuais ligados à Universidade, os quais
discutiam a necessidade de se realizar uma reforma no currículo.
Em 10 de março de 2004 foram estabelecidas as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana”, por meio da Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, visando instituir tais diretrizes. No
Art. 2 desta Resolução vê-se que estas Diretrizes trazem:

(...) orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da


Educação, e têm por meta, promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio
da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas
(...)

922
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa forma, graças ao respaldo legal, foi possível ampliar ou garantir as possibilidades de se
trabalhar em sala de aula, especialmente com as crianças, as questões referentes à nossa diversidade
cultural.

A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NO AMBIENTE ESCOLAR


As escolas que trabalham questões raciais e da cultura afro-brasileira estão "desconstruindo
um rótulo pejorativo, entretanto é preciso também focar na construção do conhecimento do professor
com a gestão.

[...] não tem incorporado a preocupação com a dimensão cultural da prática pedagógica.
Estudos de especial interesse vêm sendo desenvolvidos por vários autores na perspectiva do
reconhecimento da importância de se trabalhar no âmbito educativo questões relativas à
diversidade cultural, étnica, às questões de gênero. Esta temática hoje é praticamente
ignorada na formação continuada de professores (CANDAU, 1997, p. 67).

Nesse sentido, a qualificação dos professores torna-se urgente e necessária, haja vista que se
constituem agentes responsáveis pelas discussões para combater, no ambiente escolar, o preconceito
e toda a forma de discriminação social que têm sofrido as pessoas que se encontram à margem da
sociedade. Esses ideais estão sendo amplamente divulgados visto que “[...] ao longo de nossa história,
têm existido preconceitos, relações de discriminação e exclusão social que impedem muitos
brasileiros de ter uma vivência plena de sua cidadania” (BRASIL, 1997, p. 15).
Para tanto, toda a comunidade escolar deve estar envolvida no processo que estimule os
valores construídos e reconstruídos pelos diversos povos, entre eles os afrodescendentes, o que torna
necessário práticas educativas condizentes com o contexto histórico. O professor deverá adotar uma
postura reflexiva sobre as questões raciais e, assim, desenvolver estratégias de ensino que possibilitem
a compreensão da diversidade de raças que formam o povo brasileiro com o intuito de minimizar os
preconceitos que porventura perpassam as relações sociais entre as diferentes comunidades.
Vale lembrar aceitação de Silva, (2002, p. 34):

Para Bourdieu e Passeron, a dinâmica da reprodução está centrada no processo de reprodução


cultural. É através da reprodução cultural dominante que a reprodução mais ampla da
sociedade fica garantida. A cultura que tem prestígio e valor social é justamente a cultura das
classes dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, seus hábitos, seus modos
de se comportar e agir. Na medida em que essa cultura tem valor em termos sociais; na
medida em que ela vale alguma coisa; na medida em que ela faz com que a pessoa que

923
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a possui obtenha vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como capital cultural. [...].
Finalmente, o capital cultural manifesta-se de forma incorporada, introjetada, internalizada.

O Brasil é um país multicultural, e desta forma se evidencia a necessidade de se trabalhar


todas as culturas que contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro nas escolas brasileiras.
Assim, pode-se afirmar que se houver práticas de exclusão de certas culturas ou um tratamento
diferenciado de um aluno oriundo de alguma cultura, as crianças tomaram as mesmas atitudes,
prevalecendo um ambiente de exclusão. Por estes e outros motivos torna-se necessário trabalhar a
multiculturalidade na sala de aula, especialmente na educação básica.

(...) A multiculturalidade não se constitui na justaposição de culturas, muito menos no poder


exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito assegurado de
mover-se cada cultura no respeito uma da outra, correndo risco livremente de ser diferente,
sem medo de ser diferente, de ser cada um “para si”, somente como se faz possível crescerem
juntas e não na experiência da tensão permanente, provocada pelo todo-poderosíssimo de
uma sobre as demais, proibidas de ser (FREIRE, 1992, p. 156).

Um ambiente multicultural empenha-se em proporcionar, às pessoas que nele convivem,


novos conhecimentos e valores, contribuindo no combate as ações discriminatórias, e para isto requer-
se uma nova ética respaldada no respeito às diferenças.
Partindo disso, Candau afirma que “(...) O que precisa ser mudado não é a cultura do aluno,
mas a cultura da escola, que é construída a partir de um único modelo cultural, o hegemônico,
apresentando um caráter monocultural” (CANDAU, 2002, p. 85).
Só um ambiente que vise uma cultura ao alcance de todos, será capaz de evitar que as
diferenças existentes entre os indivíduos gerem desigualdades, pois a divisão em raças intensifica a
prática do racismo, negligenciando as diversidades culturais que apresentam muitas riquezas, além
de repercutir em alguns grupos culturais se sentirem melhores superiores à outros.
Deve-se mostrar para as crianças que todos são diferentes em vários sentidos, seja nas
características físicas, no modo de pensar, na personalidade, nos gostos entre outros, no entanto,
perante as leis do país, e da condição a de ser humano, deve-se ter os mesmos direitos,
independentemente da cor ou condição social.
A escola, quando comtempla diversas culturas, principalmente aquelas que formam a raiz
cultural do país, estimulam as crianças a aprender a conviver, mostrando a elas que vivem num país
diversificado, construído a partir de várias culturas, que é preciso respeitar as diferenças.
Segundo Braslavsky (2002, p. 14)
924
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Conviver é chegar a viver juntos entre distintos sem os riscos da violência e com a expectativa
de aproveitar de maneira fértil nossas diferenças. O desafio da convivência é basicamente o
desafio da tolerância à diversidade e esta encontra sua manifestação mais clara na ausência
de violência.

Consequentemente para diminuirmos o índice de preconceito e mudar a mente da sociedade


é necessário desenvolver um trabalho intenso no que se refere à diversidade cultural tenha o efeito
positivo é necessário que as crianças brasileiras conheçam sobre história dos seus ancestrais desde
sua vida na África a sua trajetória no Brasil, sua luta, conquistas até os dias atuais assim como a
herança cultural atribuída ao nosso país.
Todas essas manifestações, se levada ao conhecimento das crianças, podem aguçar seu
interesse pela história de seu país, pelos esportes, pela música, pelas artes e outros, educando-as a fim
de torná-las cidadãos de boa índole, que respeitam as diversidades encontradas na sociedade.
A escola é um ambiente onde se encontram pessoas dos mais variados fenótipos. Muitas
dessas pessoas sofrem discriminação, e um dos motivos é a sua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante o exposto podemos compreender que um dos maiores desafios da escola atualmente, é
o de desenvolver um Projeto Político Pedagógico que estabeleça uma visão real em relação a
diversidade cultural para a mobilização das competências dos alunos. Cumpre ainda ressaltar, quando
a escola tem um projeto pedagógico que não atende às diferenças individuais, não é possível mudar
essa visão de preconceito da sociedade.
Devemos pensar na diversidade brasileira como traço fundamental na construção de uma
identidade nacional, onde a divisão da sociedade em raças não pode acontecer, pois todos são seres
humanos com os mesmos direitos e deveres, portanto as práticas de racismo devem ser abolidas, de
forma que as diferenças externas deixem de ser um fator determinante de superioridade ou
inferioridade entre as pessoas.
Não podemos deixar que perpetuem pelas próximas gerações a ideia de que as diferenças
étnicas e culturais sejam sinônimas de desigualdades dentro do nosso país, já que os brasileiros vivem
em meio a esta multiculturalidade, onde uma cultura pode estar intercalada a outra, por isso a escola
deve ser uma das responsáveis a incentivar o respeito pelas diferenças, além de proporcionar e

925
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estimular a construção de conhecimentos relacionados à história da formação do povo brasileiro e as
culturas que aqui circulam, principalmente a afro-brasileira.
Através de noções da diversidade cultural existente no país em que ela vive. Sabe-se que as
crianças podem ser influenciadas moralmente, considerando que o “respeito” pelo próximo é a
questão mais explorada pelo educador que trabalha com esta temática.
Tudo isto já está previsto na legislação brasileira, porém nem todas as escolas proporcionam
oportunidades para o educando reconhecer-se como um sujeito social digno e capaz, que faz parte da
história do Brasil, dando-lhes a oportunidade de tomar consciência da importância de sua atuação no
contexto em que vive, promovendo respeito pelas diversas etnias, é o papel que a escola deve assumir
na sociedade.
Os africanos, seus descendentes, sua história, luta pela liberdade, e posteriormente pela
conquista de direitos iguais aos demais brasileiros e respeito as suas crenças, costumes e ideais devem
ser de conhecimento de todo brasileiro. A escola pode ser alicerce para a disseminação destes
conhecimentos exaltando sua importância e incentivando o respeito entre os sujeitos. É mais do que
possível trazer para a sala de aula, de forma lúdica e prática, a importância da cultura africana e a
influência que esta exerce em nossas vidas. Através de: música, jogos, alimentação, lendas, contos,
dramatizações, poesia, fabricação e manuseio de instrumentos musicais e estudos da história e da
cultura afro-brasileira, se tem a oportunidade de aprender mais sobre o assunto, reafirmando a
possibilidade e a importância da abordagem deste em sala de aula.
Com estas práticas, o professor propicia aos alunos uma vivência especial e inesquecível, pois através
de um momento de experimentação, interação, descontração e construção de conhecimentos, fazendo
que a aula se torne mais produtiva e interessante.
Os contos são muito importantes, pois através deles a criança aprende de forma lúdica e clara
os conteúdos que o professor pretende abordar. Por meio dos contos africanos as crianças têm a
oportunidade de conhecer um pouco da influência que a cultura africana trouxe para o Brasil: a
história, a culinária, a religião, a dança, a música, o vocabulário, os instrumentos musicais entre outras
coisas. Também é muito importante introduzir nas escolas contos que tenham como enredo temas
contra a prática do racismo, além do autoconhecimento da cultura a qual pertence.
Algumas soluções para diminuir barreiras para a implementação da Lei 10.639/2003 de forma
mais eficiente nas escolas pode ser o esclarecimento junto aos pais ou responsáveis quanto aos

926
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
objetivos e a importância dos projetos que contemplam os estudos sobre a história e a cultura africana
e afro-brasileira para as crianças por meio do diálogo com professores e dirigentes das escolas.
Outro recurso são cursos para aperfeiçoamento que ofereçam aos docentes e gestores ideias práticas
relacionadas à temática. Enfim, é satisfatório ver que mesmo a passos lentos a inserção da Lei está
sendo cumprida no âmbito escolar das crianças brasileiras, mesmo tendo ainda um longo caminho a
percorrer e obstáculos a serem superados.

REFERÊNCIAS
ABRAMOWIZ, A. et al. Trabalhando a diferença na educação infantil: propostas de atividade.
São Paulo: Moderna, 2006.

BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BRASIL. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Previdência da República, Casa Civil, Subchefia
para assuntos jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm.
Acesso em:08 de jan. 2019.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmera dos Deputados, Lei no 8.069, de 13 de
julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.

BRASLAVSKY, Cecília (org). Aprender a viver juntos: educação para a integração na


diversidade. Educação do trabalhador, n° 3. Unesco, IBC, SESI, UnB. Brasília: 2002.

CANDAU, V. M. (org.). Sociedade, educação e cultura (s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes,
2002.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio Janeiro:


Paz e Terra, 1992.

LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e pedagogos, para quê? 6ªed. São Paulo: Cortez, 2002.

LUZ, Marco Aurélio. Praguuçú-caramuru: diversidade e conflitos de civilização. Sementes:


cadernos de pesquisa, Salvador, v. 5, n. 7, p. 15-28, jan./dez. 2004.

PORTELA, A.L. et al. Educação e os afro-brasileiros: trajetória, identidades e alternativas.


Salvador: Novos Toques, 1997.

SANTOS. José Luiz dos. O que é cultura. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Prática do racismo e formação de professores. In:


DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. 2.ed. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2001.p.168-178.
927
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COM SAMBA NO PÉ: CORPO, GÊNERO E A CULTURA CORPORAL DAS PASSISTAS
DO CARNAVAL DE URUGUAIANA

Loise Patricia Vidal da Nova393


Alinne de Lima Bonetti394

Resumo: Evento de suma relevância no Brasil, o carnaval se configura como uma das principais marcas da identidade
nacional (FRY, 1982). Em Uruguaiana, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul com a Argentina e de forte
cultura tradicionalista gaúcha, não é diferente. O carnaval é estruturado em torno das escolas de samba e conta com a
apaixonada participação popular. Neste contexto, chama a atenção a marcante presença das musas das escolas de samba,
com a exposição de seus corpos e de seu “samba no pé” na representação das cores e do pavilhão de suas agremiações.
Levando-se em consideração este conjunto de elementos, perguntamo-nos se haveria a constituição de uma cultura
corporal (DAOLIO, 2010) específica, informada por convenções de gênero (BONETTI, 2011) particulares, a marcar a
experiência das passistas. Neste texto apresentaremos os resultados de uma pesquisa etnográfica realizada no âmbito da
Educação Física sobre a cultura corporal e as convenções de gênero das passistas do carnaval de Uruguaiana. Para tanto,
tomou-se como universo de interlocução as passistas das escolas de samba do grupo especial da cidade e de contexto
para a observação participante os eventos do pré-carnaval das escolas de samba de Uruguaiana, nos meses de setembro
e outubro de 2018. Por meio da etnografia foi possível perceber que a estrutura das escolas de samba é marcada pela
distribuição desigual de prestígio e privilégios a partir da combinatória particular dos marcadores sociais da diferença
de gênero, raça e classe social, relegando a população negra às posições artísticas ou a atividades subalternas. As
passistas interlocutoras desta pesquisa constituem um grupo de jovens mulheres, não brancas, solteiras e, em sua maioria,
têm uma relação com o universo do carnaval a partir de uma tradição familiar. Elas ocupam lugares de destaque nas
suas agremiações como rainhas das escolas de samba, madrinhas e rainhas da bateria, além de terem sido as princesas
da corte do carnaval 2019. Podemos apontar que a cultura corporal das passistas é constituída pela sensualização dos
seus corpos, assemelhando-se ao que é descrito por Sônia Giacomini (1994) como a "mulata exportação": a mulher
sensualizada, com coxas e nádegas grandes, barriga malhada, moldadas por meio de técnicas corporais (MAUSS, 2003)
específicas. A prática da dança, para aprimoramento do seu sambar, e a prática da musculação, técnicas corporais
próprias destas passistas, revelam traços da “cultura da malhação” (GOLDENBERG e RAMOS, 2007), o que acaba por
segregar, selecionar e impor às mulheres a busca de um corpo perfeito, que acompanhado de atitudes como simpatia,
humildade e carisma, constituiria uma "passista perfeita” aos moldes de uma feminilidade domesticada e submissa.

Palavras-chave: Cultura corporal, Gênero, Carnaval, Educação Física.

INTRODUÇÃO
Evento de suma relevância nacional, o carnaval se configura como uma das principais
marcas da identidade nacional (FRY, 1982). A origem deste movimento se dá na Grécia e Roma
Antiga, onde surgiu o termo carnelevamen, que segundo José Luiz de Oliveira (2012):

significa “adeus à carne”, em uma alusão à terça-feira gorda, o último dia do calendário
cristão em que é permitido comer carne. Segundo o dicionário Aurélio “seriam os três dias
imediatamente anteriores à quarta-feira de cinzas, dedicados a diferentes sortes de diversões,
folias e folguedos populares. (....) com disfarces e máscaras saíam desfiles com pessoas
mascaradas e um formidável carro, parecido com um barco, puxado por cavalos enfeitados,

393
Graduanda de Licenciatura em Educação Física e pesquisadora do grupo de pesquisa Tuna – gênero, educação
e diferença da Universidade Federal do Pampa - Campus Uruguaiana.
394
Antropóloga e Doutora em Ciências Sociais/Unicamp. Professora adjunta e líder do Grupo de Pesquisa Tuna –
gênero, educação e diferença, da Universidade Federal do Pampa - Campus Uruguaiana.
928
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
transportando mulheres nuas e homens que cantavam canções obscenas. Era o Carrus novalis,
um carro carregando um imenso barril que servia vinho ao povo. Eram, portanto, festas
populares conhecidas como dionisíacas (Grécia), saturnais, lupercais (Roma) onde a alegria
desabrida, a eliminação da censura e da repressão, possibilitava uma liberdade de atitudes
críticas e eróticas (IDEM, p.63-64). A partir disto, o carnaval começou a acontecer em vários
países da Europa em formato de bailes de máscaras até chegar ao Brasil com a vinda dos
portugueses e no início do século XX ganhou o formato que conhecemos atualmente. Mais
precisamente, em 1932 “os sambistas do bloco “Deixa Falar” se reuniam e, como se
consideravam “Mestre do Samba”, passaram a denominar o bloco de Escola de Samba Deixa
Falar” (IBIDEM, p. 72).

Em Uruguaiana, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, a quase 700 quilômetros
de distância da capital gaúcha, esta festividade ganha contornos particulares. Segundo o censo
2010 (IBGE, 2018), Uruguaiana tem uma população em torno de 125 mil habitantes, dentre os
quais 51,36% são mulheres. Em relação à distribuição étnico-racial, tem 75% de pessoas
autodeclaradas brancas e 25% negras. No que tange à religião, 58,6% da população residente é
católica, 26,6% evangélica, 3,48% espírita e 2,37% umbandista e candomblecista.
Cidade de forte cultura tradicionalista gaúcha, exemplificado no festival Califórnia da
Canção Nativa, Uruguaiana tem também uma forte tradição carnavalesca, desde, pelo menos, a
década de 1950. Foi

a partir da chegada de um grande contingente de fuzileiros navais vindos de várias partes


do Brasil, mas sediados em quartéis do Rio de Janeiro, que o samba e o carnaval de
Uruguaiana teriam adquirido algumas das características que os distinguem de quaisquer
outros do estado. (PAVÃO, 2011, p. 107).

Desde meados dos anos 2000, em função de questões judiciais envolvendo uma das 12
escolas de samba locais, o carnaval de Uruguaiana começou a acontecer fora do período
tradicional, passando a ser conhecido como carnaval fora de época, geralmente ocorrendo no mês
de março. Neste contexto, importa destacar a presença das passistas das escolas de samba.
Personagens centrais e de grande popularidade, elas são destaques nos desfiles, revelando seus
corpos trabalhados e seu gingado.
Em pesquisa etnográfica sobre a constituição da identidade da mulata profissional,
realizada entre fins da década de 1980 e início de 1990 no Rio de Janeiro, Sônia Giacomini (2006)
demonstra de que forma essa identidade se constitui, a partir de um

imaginário presente na sociedade brasileira. A mulata bonita, de corpo violão, boa


sambista, de bundinha arrebitada, sensual, sedutora é produzida segundo um

929
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
determinado modelo. O segredo da operação consiste em apresentar o resultado desse
meticuloso processo de seleção e produção – que é a mulata profissional – em exemplar,
típico, representativo. Dessa forma, o show de mulata é como que uma prova de que a
mulata brasileira é tudo o que dela se diz e imagina: encontram-se aí, no palco, para
quem quiser ver, as mulatas brasileiras autênticas. Mas esse imaginário não produz
apenas uma representação estética da mulata brasileira; ele também implica, talvez
principalmente, uma representação moral e sexual da mulata (GIACOMINI, 2006, P.89-90,
grifos no original).

O imaginário em torno do samba e do carnaval criou um estereótipo da passista, associado


a uma “figura mítica, a mulata é puro corpo, ou sexo, não "engendrado" socialmente” (CORRÊA,
1996, p.40). A mulher que samba, a rainha, a musa, a componente que traz a dança como forma
de expressão dentro desta cultura, de beleza e voluptuosa perfeição das formas, de contagiante
energia e sensualidade, com maestria no "samba no pé". Assim, a passista/mulata é a expressão
mais completa e perfeita do carnaval e do autêntico Brasil. A autêntica mulata que dança o
autêntico samba é o símbolo perfeito do autêntico Brasil.
Neste contexto, em que a mulata é este símbolo, é fundamental resgatar os conceitos de
gênero e raça como ferramentas teóricas cruciais para a sua problematização. Junto a eles, importa
também resgatar o conceito de convenções sociais de gênero, que contribuirá para a compreensão
da maneira como a mulher é significada no contexto de Uruguaiana de maneira geral, quanto no
carnaval em particular. Gênero deve ser entendido como “uma categoria analítica, relacional e que
remete à produção simbólica, no plano dos valores, das convenções de feminilidade e
masculinidades oriundas de determinadas configurações sócio-históricas” (BONETTI,
FONTOURA, 2009, p.67), permeadas por relações de poder (SCOTT, 1990). Já o conceito de
convenções de gênero diz respeito ao

conjunto de valores e ideais relativos ao imaginário sexual disponíveis na cultura e


compartilhados, a partir dos quais os seres sociais pautam as suas ações e concepções de
mundo, reproduzem e recriam estas mesmas convenções e as suas práticas o conjunto de
valores e ideais relativos ao imaginário sexual disponíveis na cultura e compartilhados, a
partir dos quais os seres sociais pautam as suas ações e concepções de mundo, reproduzem
e recriam estas mesmas convenções e as suas práticas. No mundo ocidental, tais
convenções são informadas pela matriz falocêntrica, a centralidade do masculino como
parâmetro positivo do qual se origina a assimetria de gênero, e pela “matriz heterossexual
compulsória (BONETTI, 2011, on line).

Segundo Lilia Moritz Schwartz (2009), ao destacar o racismo à brasileira, devemos


perceber que

930
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vivemos em uma sociedade pautada por muita ambiguidade, sobretudo no que se refere às
relações raciais. Se um lado, oficialmente, impera um modelo que exalta uma sociabilidade
racial ímpar; de outro lado, apontam o contrário: persiste uma evidente segregação que se
afirma no trabalho, nos índices de nascimento e morte, na divisão geográfica, nas
oportunidades de êxito social e até de prazer (p. 72).

Assim, ao estudarmos as passistas do carnaval de Uruguaiana, há que se considerar estas


imagens estereotipadas das mulatas/passistas. A partir disto, surgem alguns questionamentos
quando nos deparamos com a especificidade do carnaval uruguaianense, imerso num contexto
cultural marcado pelo tradicionalismo. Como as passistas das escolas de samba de Uruguaiana se
percebem diante destes estereótipos? Como se dá a seu processo de preparo corporal para o
carnaval? Estas questões, por sua vez, remetem-nos às concepções sobre cultura e Educação Física.
Segundo Jocimar Daolio (2010), cultura

é o principal conceito para a educação física, porque todas as manifestações corporais


humanas são geradas na dinâmica cultural, desde os primórdios da evolução até hoje,
expressando-se diversificadamente e com significados próprios no contexto de grupos
culturais específicos (p. 02).

Assim trabalhar o corpo a partir da lógica cultural, que “era visto como um conjunto de
ossos e músculos e não como expressão da cultura” (IDEM, 2004, p.02), nos mostra um avanço
da Educação Física, haja vista que estudos relacionados ao ser humano na sua complexidade, e
não somente ao corpo, estão se expandindo, buscando novos significados. Disto decorre o conceito
de cultura corporal.
Levando em consideração que o movimento humano é objeto de estudo da Educação
Física, as manifestações corporais das passistas do carnaval uruguaianense nos possibilitam
ampliar nosso escopo de análise em direção ao que Mirian Goldenberg e Marcelo Ramos (2002)
definem como cultura corporal. Ao refletirem sobre o que são os corpos e significados que estes
assumem para os sujeitos sociais, eles apontam que o corpo é um valor, pois cria identidade entre
determinado grupo e, por consequência, distinção com outros, e também é um símbolo, na medida
em que consagra e dá visibilidade a essas diferenças. Neste sentido, o corpo é um fenômeno
sociocultural e a sua construção se dá em “conformidade a um estilo de vida e a um conjunto de
normas de conduta” (ibid., p. 38).
Por sua vez, a concepção de cultura corporal ganha vida associada ao conceito de
técnicas corporais de Marcel Mauss (2003). Conceito clássico da Antropologia do Corpo e da

931
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Saúde, as técnicas corporais são atos tradicionais eficazes, ou seja, as diferentes formas pelas quais
os seres humanos utilizam seus corpos de maneira a refletirem a cultura de que fazem parte. Os
corpos são, nesta perspectiva, os primeiros e mais naturais instrumentos de que os seres humanos
dispõem para a vida em sociedade. Isto posto, “só é possível discutir especificidades de uso do
corpo a partir da consideração de que ele expressa determinados valores a um dado grupo”
(MAUSS, 2003 apud DAOLIO, 2010, p.5).
Diante disso, começamos a nos aproximar da construção do objeto desta investigação, a
partir dos seguintes questionamentos: de que forma se constitui a cultura corporal das passistas do
carnaval de Uruguaiana? Em que se aproxima da cultura corporal das “mulatas profissionais”, em
que se distanciam? Como se dá a sua relação com a cultura corporal feminina da fronteira oeste
gaúcha?
Ao falarmos de Uruguaiana, para qualquer indivíduo que nasceu no Rio Grande do Sul, é
provável que venha à mente um tipo social imaginado, o seguinte estereótipo clássico: um gaúcho
pilchado, com fortes traços regionais da lida do campo e da rudeza histórica da vida na fronteira,
submetida a guerras e disputas territoriais com a Coroa Espanhola (DUARTE, 2011). Desta
perspectiva sobre os e as uruguaianenses, estudar a cultura corporal feminina que destoa deste
estereótipo instiga novas maneiras de ver a pluralidade cultural desta região. Fábio Pavão (2011)
aponta que o carnaval uruguaianense seria especial, pois além dos aspectos nacionais e regionais,
seria possível perceber influências transnacionais típicas de qualquer região fronteiriça.
Ulisses Corrêa Duarte (2011), que produziu uma pesquisa etnográfica sobre o simbolismo
do espetáculo das escolas de samba uruguaianenses, aponta que ao chegarmos à Uruguaiana no
período do seu carnaval se percebe a consolidação do pertencimento aos símbolos nacionais através
da imensa participação e envolvimento com as Escolas de Samba locais. A ligação da sociedade
uruguaianense com essas duas culturas fortemente reconhecidas como parte da identidade cultural
da cidade, nos traz a importância de estudar esse movimento popular nesta região e identifica a
singularidade na cultura de Uruguaiana.
A principal motivação para a realização desta pesquisa se deu pela escassez de estudos
voltados para a compreensão da relação entre a cultura e o corpo feminino na Educação Física, um
universo em que se estuda com mais frequência as implicações do universo desportivo e o corpo
pelo ponto de vista biológico, conforme Jocimar Daolio (2010):

932
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Depois do predomínio das ciências biológicas nas explicações sobre o corpo, atividade
física e o esporte por parte da educação física, essa tarefa hoje parece estar dividida com os
conhecimentos provindos de outras áreas, tais como a antropologia social, a sociologia, a
história, a ciência política e outras. Os currículos dos cursos de graduação em educação
física somente há poucos anos vêm incluindo disciplinas próprias das ciências humanas, e
isso parece estar sendo útil para a ampliação da discussão cultural na área [...] Enfim não
causa mais polêmica afirmar que a educação física lida com conteúdos culturais (p. 1)

Outro fator relevante é o fato de ser uma cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul,
onde a manifestação corporal é constituída por códigos rígidos relativos a mulheres e homens, fruto
da cultura tradicional gaúcha. No samba, em que os corpos são expostos em fantasias e a dança é a
representação da liberdade de ser quem esta passista quer ser, a relevância deste estudo é a de mostrar
essa integração de culturas através do corpo feminino.

DESENVOLVIMENTO
Os dados que embasam esta análise foram coletados a partir de uma pesquisa de caráter
qualitativo, pois “o interesse foi ter acesso a experiências, interações e documentos em seu contexto
natural, de forma que dê espaço às suas particularidades e aos materiais nos quais são estudados”
(ANGROSINO, 2009, p. 09), a partir de uma pesquisa etnográfica (CICOUREL, 1990).
Como técnicas de pesquisa qualitativa, foram utilizadas entrevistas semiestruturada
(QUEIROZ, 1991), bem como a observação participante, que segundo Michael Angrosino (2009)
“pode ser caracterizada como um modo de pesquisar que coloca a pesquisadora e o pesquisador no
meio da comunidade em que ele está estudando” (p.17), com registros em Diários de Campo
detalhados e sistematizados.
O universo desta pesquisa é composto por oito mulheres: a Rainha e Rainha da bateria da
escola de samba S.R.C Os Rouxinóis, Rainha e Madrinha da bateria da Unidos da Cova da Onça,
Rainha da bateria dos Bambas da Alegria. Além destas, foram entrevistadas as passistas da corte do
carnaval de Uruguaiana de 2019: a segunda princesa, pertencente à escola de samba Unidos da Cova
da Onça; a primeira princesa, da escola de samba Bambas da Alegria e a rainha do carnaval, da Deu
Chucha na Zebra.
As observações da pesquisa presente foram realizadas nos lançamentos de enredo das escolas
de samba do grupo especial de Uruguaiana. De maneira a tentar agregar todas as passistas do
carnaval, foram incluídas as entrevistas do concurso da escolha da corte do carnaval de
933
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Uruguaiana para o ano de 2019, observando as entrevistas de avaliação das candidatas ao título de
rainha do carnaval de Uruguaiana. Com isto, buscou-se interagir com todos os segmentos das escolas
de samba do universo do carnaval de Uruguaiana. Por meio das observações, foi possível
compreender como se dá a contextualização das escolas de samba, assim como os corpos que
compõem este universo, as interações presentes neles e quais os elementos que caracterizam as
escolas de samba como parte do mundo do carnaval.
Logo após as observações, foram realizadas as entrevistas. Devido ao período desta
investigação, setembro e outubro de 2018, muitos cargos dentro das agremiações estavam sem
passistas, assim como houve algumas desistências de cargos já ocupados. Em consequência da
dificuldade de comunicação com os componentes da escola Imperadores do Sol, suas passistas não
foram incluídas na pesquisa. As entrevistas tematizaram as percepções que as passistas das escolas
de samba do grupo especial de Uruguaiana têm em relação à sua identidade social, sua relação com
o carnaval como história, influência e lugar que ocupam dentro das escolas de samba; sua percepção
da forma como se constitui a cultura corporal delas mesmas e a relação com o contexto e as suas
práticas corporais dentro e fora do mundo do samba.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO UNIVERSO DO SAMBA


Através das observações feitas, pode-se observar que o universo do carnaval de Uruguaiana
é organizado em torno das Escolas de Samba, que exaltam suas cores e seu pavilhão395. Os locais de
realização dos eventos foram dois: as suas quadras das escolas de samba e em clubes sociais da
cidade.
Mesmo sendo festas populares, as festas de lançamento do enredo tinham um aspecto mais
sofisticado e, em algumas ocasiões, segregatório, pois era possível perceber a divisão de público por
meio do valor dos ingressos para ocupar locais diferentes, separação recorrente nas festas
observadas. Vejamos um exemplo. Para ocupar mesas de quatro lugares e assistir ao espetáculo de
maneira confortável e bem posicionada, as pessoas pagavam valores entre 80 a 150 reais396, o que

395
É o símbolo maior das agremiações, juntamente com o modelo atual de desfile das escolas de samba entre 1920
e 1930 sendo “copiado toda sua estrutura de desfiles dos Ranchos, isto é, as alas, o termo pastora, as alegorias, o
abre alas, o mestre-sala e a porta-estandarte, que passou a ser denominada porta-bandeira etc.” (OLIVEIRA 2012,
p. 73).
396
Valores relativos a setembro e outubro de 2018.
934
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lhes facultavam jantares ou aperitivos e proximidade ao palco. Havia, também, ingressos avulsos a
valores entre 5 a 10 reais para assistir ao show em pé, em uma área reservada atrás das mesas. A
demarcação desses espaços era feita por cordas ou tecidos, de maneira a impedir o trânsito entre os
mesmos.
A separação espacial, no entanto, não parecia seguir apenas o critério econômico. A idade e
a cor da pele também eram diferentes e demarcavam fronteiras. Entre as pessoas que estavam
posicionadas nas mesas, encontravam-se pessoas mais velhas, homens brancos já com cabelos
grisalhos, de abdomens salientes, vestidos de maneira mais sóbria e formal com calças e casacos
pretos; acompanhados por mulheres brancas, vestidas com roupas escuras, com cabelos loiros
alisados e fortes maquiagens nos olhos. Parte deste público compunha a direção das escolas. Atrás
das cordas se encontravam pessoas com tons de pele mais escuros, com perfil mais jovem, vestidas
com roupas mais despojadas como calça jeans e tênis; algumas mulheres usavam salto e cabelos
soltos escorridos, com pouca maquiagem, conversavam animadamente em um tom mais alto e
consumiam bebidas alcoólicas durante os espetáculos.
Além disto, importa destacar outra regularidade nessa distribuição de posições nos ambientes
das festas das escolas observadas. De maneira mais predominante, homens, mais jovens e de pele
mais escura ocupavam lugares de destaque nas áreas artísticas das escolas, seja como carnavalescos,
seja como componentes da bateria, seja como mestres-salas, seguidos por mulheres de pele mais
escura e jovens. Outro espaço ocupado pelas pessoas de pele mais escura, era o de serviços: garçons,
garçonetes e limpeza.
Para compreender de que maneira este universo social se estrutura, utilizamos o conceito de
interseccionalidade, na perspectiva de Avtar Brah (2006). Para a autora, os marcadores sociais da
diferença, tais como gênero, classe, raça, etnia, sexualidade entre outros, se articulam de maneira
particular de acordo com cada configuração sócio-histórica, produzindo estruturas sociais desiguais,
das quais derivam discriminações, exclusões e preconceitos. Para ela, cada categoria produtora de
desigualdade está “(...) inscrita dentro da outra, é constituída pela outra e é constitutiva dela”
(BRAH, 2006, p.351). E segue exemplificando:

Eu diria que o racismo não é nem redutível à classe social ou ao gênero, nem inteiramente
autônomo. Racismos têm origem histórica diversa, mas se articulam com estruturas
patriarcais de classe de maneiras específicas, em condições históricas dadas. (BRAH,
2006, p.352).

935
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por meio das observações foi possível perceber que a estrutura das escolas de samba é
marcada pela distribuição desigual de prestígio e privilégios a partir da combinatória particular dos
marcadores sociais da diferença de gênero, raça e classe social. E qual o lugar destinado às passistas
neste contexto? Sabemos que no carnaval local as passistas são consideradas as musas das escolas e
se apresentam como o grupo show das agremiações. Como se percebem e se situam neste contexto?
Quais suas concepções e práticas sobre a sua identidade de passista?

PERFIL SOCIOBIOGRÁFICO DAS PASSISTAS E RELAÇÃO COM O CARNAVAL


Por meio das observações e entrevistas, moldar um perfil sociobiográfico das passistas é
complexo, pois se trata de um grupo bem diverso. Contudo, há duas regularidades: todas são
cismulheres397 e grande parte das entrevistadas se declarou parda ou negra. Apenas uma das musas
se autodeclarou branca, aquela que coincidentemente ocupa o cargo mais alto entre as musas: a
rainha do carnaval.
Quanto à faixa etária, elas apresentam uma grande diferença de idade entre si, sendo a mais
nova de 16 e a mais velha de 27 anos; sendo esta última a única que tem um filho. Sobre a
conjugalidade, temos três solteiras, quatro em relacionamentos e uma casada. Sobre a escolaridade
e formação profissional, a grande maioria completou o Ensino Médio, havendo apenas uma com ele
incompleto.
Em relação à religiosidade das passistas, temos uma umbandista, três que se declararam
laicas398, duas musas da mesma escola que se declararam católicas, e duas da mesma escola que se
declararam evangélicas.
Um dado biográfico que chama a atenção, diz respeito à inserção dessas musas no universo
do carnaval de Uruguaiana, que está muito atrelada à sua tradição familiar, cujos integrantes estão
inseridos nas bases das escolas de samba, em distintos setores. Essa relação histórica e cultural

397
A utilização do prefixo cis para qualificar o substantivo mulher surge em contexto da problematização das
identidades de gênero, oriunda da crescente visibilidade das pessoas transgênero. Assim, o prefixo cis, que em latim
significado do “mesmo lado”, neste contexto diz respeito às pessoas cujo sexo designado ao nascer está alinhado
com a sua identificação subjetiva de gênero. No caso, cismulheres são aquelas cuja anatomia designada ao nascer
como feminina está alinhada com a sua identificação subjetiva feminina.
398
O adjetivo laico refere-se a quem ou o que não tem relação com qualquer ordem religiosa. Um Estado laico, por
exemplo, é aquele que “se fundamenta numa concepção secular e não sagrada do poder político, encarado como
atividade autônoma no que diz respeito às confissões religiosas”. (ZANONE, 2004, p. 670).
936
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
familiar se percebe nas entrevistas em que as musas citam como se dá a trajetória de suas vidas no
carnaval.
Todas as entrevistadas relataram a sua iniciação no universo das escolas de samba em sua
tenra infância - entre três e cinco anos, idade na qual relatam terem aprendido a sambar - e por
influência de sua família. Seus pais, avós, tios e tias participavam ativamente das escolas de samba
como passistas, diretores de ala, diretores de carnaval e colaboradores das escolas. Contudo, desfilar
pelas agremiações foi mais próximo dos oito anos de idade.
Diante dos dados coletados, podemos traçar um perfil para estas musas do carnaval de
Uruguaiana com as seguintes características predominantes: trata-se de um grupo jovem de mulheres
não brancas, solteiras e, em sua maioria, cuja relação com o universo do carnaval segue uma tradição
familiar. Desta maneira, costumes e pensamentos são formados por esta comunidade e passados
adiante em forma de uma tradição. Vejamos como percebem a cultura corporal das passistas em
Uruguaiana.

CULTURAL CORPORAL DAS PASSISTAS, PRÁTICAS E TÉCNICAS CORPORAIS


Um primeiro elemento que se destaca no que podemos caracterizar como a cultura corporal
das passistas do carnaval uruguaianense diz respeito à recorrente menção ao modelo ideal de passista
oriundo do carnaval carioca. Esta influência não parece ser gratuita. Antes, está relacionada com um
dado histórico relevante do carnaval local. Na sua etnografia sobre o carnaval de Uruguaiana, Ulisses
Duarte (2016) registra que em função de uma “contenda judicial” em 2005, o carnaval passou a ser
realizado fora da época do feriado nacional, tornando-se regra desde então. Esta mudança
possibilitou que personalidades do carnaval carioca viessem para a festa local. A atuação se deu em
diferentes âmbitos: como mestre-salas e porta-bandeiras, como rainhas e madrinhas da bateria das
escolas do grupo especial, além da importação de fantasias, esculturas, sambas-enredo, de forma a
qualificar as escolas de samba de Uruguaiana, julgadas por jurados, também, oriundos do Rio de
Janeiro. Tais elementos, portanto, atuam no imaginário das passistas, associando-os ao seu modelo
ideal.
Tal modelo ideal parece ser à primeira vista, relativizado em seus discursos. Quando
perguntado a elas quais os atributos estéticos necessários para uma passista, a grande maioria das
entrevistadas respondeu com convicção de que não haveria mais uma padronização estética dadas

937
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
as mudanças sociais e de costumes pelos quais o mundo tem passado; mesmo assim, parece haver
uma autocobrança em “estar bem”, como menciona a passista Tainá rainha do carnaval de
Uruguaiana, mulher branca, laica, representante da escola de samba Deu Chucha na Zebra, que tem
20 anos de idade, com ensino médio completo e formação técnica em Administração. Esta
concepção constitutiva da cultura corporal pode ser compreendida à luz do que Mirian Goldenberg
e Marcelo Ramos (2002) apontam em etnografia realizada sobre o culto ao corpo carioca:

Nota-se, nos entrevistados, um discurso que procura enfatizar a necessidade de "estar em


paz com o corpo", de "gostar do próprio corpo", mostrando que o problema (ou pudor),
quando existe, não é tanto em relação à nudez, mas à aparência física, isto é, à sua
inadequação aos padrões estéticos considerados ótimos (p. 27).

Este “estar bem” pode ser elucidado pelas colocações de Tayná e Kamilla, passistas das
escolas Os Rouxinóis e Cova da Onça, com 16 e 18 anos, cuja descrição do que seria o corpo
esperado de uma passista aproxima-se das discussões em torno do modelo “mulata exportação”
descrito por Sonia Giacomini como “a mulata é definida por atributos de que são dotadas apenas
algumas, individualmente, dentre as mulheres que têm a cor negra ou mulata” (2006, p.88). Segundo
minha interlocutora Tayná, rainha da bateria da S.R.C Os Rouxinóis:

a mulher dentro do carnaval em si, a passista, é sempre vista como a passista negra e vem
já de muito tempo atrás a sexualização da mulher negra. Então sempre viram a mulher
negra como a bunda do carnaval. O corpo do carnaval é a bunda, a bunda brasileira, como
todo mundo vê e fala. Então, isso é uma coisa que influencia muito dentro do carnaval. Não
só para as negras, mas para as outras etnias, para as outras mulheres que estão dentro
dele, então eu acho que esse é o corpo do carnaval, é a mulher que tem uma bunda grande
e uma coxa grande que é mais ou menos do estereótipo negro, da mulher negra magra, no
caso.

Além disto, elas relatam uma cobrança do público local em forma de crítica acerca do que
seria o “corpo perfeito” para as passistas: aquele sem celulites, sem estrias e com “barriga chapada”.
Como reflete Angélica rainha de bateria da escola Bambas da Alegria, mulher parda, casada,
evangélica, com 27 anos, mãe de um filho, cursando Educação Física:

Vejo que as pessoas gostam muito de falar sobre o corpo de uma ou de outra
durante o ano inteiro, estão sempre procurando o corpo perfeito. A reação do
público dá muito o que falar, pois adoram comentar sobre o corpo das passistas e
sempre fazendo comparações do corpo de uma e outra.

938
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É importante ressaltar que, mesmo demonstrando certa relativização acerca da padronização
corporal da passista, do ponto de vista das pesquisadoras, podemos dizer que existe entre elas uma
padronização corporal: todas são magras de acordo com suas formas corporais. Assim,

as anatomias mostradas parecem confirmar a ideia de que vivemos um período de


afrouxamento moral nunca visto antes. No entanto, um olhar mais cuidadoso sobre essa
"redescoberta" do corpo permite que se enxerguem não apenas os indícios de um
arrefecimento dos códigos da obscenidade e da decência, mas, antes, os signos de uma nova
moralidade, que, sob a aparente libertação física e sexual, prega a conformidade a
determinado padrão estético, convencionalmente chamado de "boa forma".
(GOLDENBERG; RAMOS, 2007, p. 25).

E como estes corpos são cuidados? Quais as técnicas corporais que constituem a cultura
corporal das passistas? Por meio das entrevistas foi possível perceber duas práticas corporais
recorrentes na cultura corporal presente na vida destas passistas: a musculação e a dança. Grande
parte das passistas tem uma relação com a dança por meio de companhias de dança da cidade, seja
como estagiárias, professoras e ou bailarinas, o que ajuda na forma na qual se apresentam e na
manutenção estética de seus corpos.
A musculação é outro componente bem presente, pois quando lhes é perguntado como se dá
a padronização do corpo feminino, elas citam um “corpo sarado e perfeito” oriundo da musculação.
A interlocutora Tayná relata que faz academia e o lugar onde eu faço academia é um lugar onde
tem muitas meninas do carnaval que também fazem e todas elas procuram esse mesmo tipo de corpo
que é uma perna bem definida, que é o resultado do exercício da musculação.
Dentre elas o cuidado com a alimentação não é presente em forma de dieta durante o ano,
porém perto do carnaval elas tentam se regrar mais e conciliar com exercícios físicos durante o ano
para manter o corpo no padrão que elas desejam.
Estes dados nos remetem a uma forte presença da “cultura da malhação” que “classifica,
hierarquiza e julga a partir da forma física, não basta não ser gordo(a) — é preciso construir um
corpo firme, musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento ou de moleza”
(Lipovetsky, 2000 apud GOLDENBERG e RAMOS, 2007 p. 31).
Outro aspecto significativo da cultura corporal das passistas diz respeito à centralidade do
“saber sambar”. Algumas interlocutoras enfatizaram a relevância do saber sambar, exemplificando
que têm um envolvimento mais profundo com a dança, fazendo parte de companhias de dança
da cidade, como mencionado, ou trabalhando com esse segmento da cultura corporal do
939
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
movimento. A maneira pela qual elas fazem seu aprimoramento da habilidade do samba é em aulas
de samba e ensaios em casa, utilizando o espelho para fazerem a autocorreção, tentando melhorar
os seus movimentos, como conta Angélica, rainha de bateria da escola Bambas da Alegria: minha
estratégia é ensaiar muito, estou sempre procurando aprender passos novos olhando vídeos no
youtube e muito treino.
O samba, assim, seria o principal fator diferencial destas passistas para o restante do público
em geral. Kamilla, Helena e Paula, todas participantes da mesma agremiação, reiteram que as
passistas são o foco do espetáculo, pois a bateria e a harmonia tocam para que elas se apresentem; o
que também pode ser observado nas festas de pré-carnaval, em que houve um grande tempo
destinado a apresentação delas em todas as festas observadas.
A única opinião dissonante em relação ao samba foi a de Vitória, primeira princesa do
carnaval de Uruguaiana da escola de samba Bambas da Alegria, mulher parda de 24 anos,
evangélica, cursando Fisioterapia. Para ela, os atributos devem ser principalmente elegância e
simpatia porque acho que é o que caracteriza as passistas em todos os aspectos; às vezes as pessoas
não percebem o quanto tu samba, mas a elegância e simpatia com certeza é o que uma passista
deve ter.
Os atributos como simpatia e elegância em detrimento da expertise no samba, constituem
outro conjunto de características consideradas importantes como parte da personalidade das
passistas, também destacadas por outras interlocutoras. Contudo, na formulação de Vitória, estas
qualidades apontam para um dado importante, que na falta de caracterização melhor, podemos
chamar provisoriamente de “passista-objeto”. Vejamos o que ela menciona: ser passista te coloca
em um lugar de uma mulher elegante e de tentar tirar o estereótipo de vulgaridade do carnaval, é
isso que a gente tenta passar.
Ideia semelhante pode ser encontrada nas formulações sobre os atributos necessários a uma
passista de Tayná, passista da Escola Os Rouxinóis:

Acho que requer muito... a passista e a titulada principalmente, requer muito do corpo
porque querendo ou não, a gente é o que vende a escola. Quando o pessoal vem para dentro
da escola, o pessoal quer ver principalmente as mulheres que estão dentro dela, então eu
acho que por ter isso, a gente precisa estar bem aos olhos dos outros, estar no padrão que
os outros impõem que é meio cruel, mas que é o que o carnaval requer.

940
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A tensão presente no que se chamou de passista-objeto aqui, entre não ser vulgar e ao mesmo
tempo ser o corpo que vende a escola, parece demonstrar o encontro entre atributos de gênero
oriundos de convenções de feminilidade contrastantes: de um lado, os valores tradicionalistas de
uma feminilidade recatada e, portanto, não vulgar e, de outro, os valores de uma feminilidade
carnavalesca, mais próxima da “mulata exportação” descrita por Sônia Giacomini (1994), que
“atualiza o estereótipo da mulher sensual, sedutora, disponível” (1994, p. 223).
Assim, não é espantoso que todas as passistas convirjam no que tange ao preparo emocional
necessário para estes cargos. Todas relataram a pressão que é ser uma mulher inserida no carnaval
uruguaianense, em que as críticas são muitas vezes cruéis e que as magoam ou ainda de não se
deixarem cair nas armadilhas da vaidade.
Esta tensão é, portanto, reveladora de uma forma de domesticação de gênero, em que padrões
de docilidade são impostos de maneira a conter as possibilidades de feminilidade dentro de uma
cultura corporal em que a liberdade de expressão por meio do corpo, da dança e da música são os
princípios. Aí parece estar a base das convenções de gênero que conforma o modelo de feminilidade
vigente no universo das passistas do carnaval de Uruguaiana.
Assim, de maneira sintética, podemos dizer que a cultura corporal das passistas do carnaval
de Uruguaiana no contexto investigado é constituído por diferentes elementos. Em primeiro lugar,
encontramos uma inspiração relativa do modelo ideal da passista carioca, com a exigência de um
corpo perfeito. Este corpo pode ser é traduzido na autocobrança por “estar bem” e por estar próximo
do que se chamou do “corpo do carnaval”, ou seja, um corpo com bunda e coxas grandes, sem
celulite, sem estrias e com barriga malhada. Corpo, este, cultivado por meio da prática constante da
dança e da musculação, o que pode ser entendido como algo próximo de uma cultura da malhação.
Além disto, há o requisito de se ter samba no pé, habilidade que é alimentada desde a mais tenra
idade e aprimorada constantemente com muito treino.
Há, ainda, um conjunto de atributos éticos, como carisma, humildade, simpatia, elegância,
amor ao samba e à escola que remetem às convenções de gênero constitutivas da feminilidade das
passistas, marcada por uma tensão entre atributos de gênero tradicionalistas e atributos de gênero
carnavalescos, apontando para um modelo de feminilidade marcado pela contenção em torno da
docilidade.

941
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Títulos das seções: os títulos das seções do trabalho devem ser posicionados à esquerda, em
negrito e maiúsculo. Deve-se utilizar texto com fonte Times, tamanho 12, em negrito, em maiúsculas
a primeira palavra dos títulos. Não colocar ponto final nos títulos nem números.
Nesta parte do trabalho são realizadas descrições dos passos dados e dos
procedimentos/recursos que foram utilizados no desenvolvimento de resultantes de pesquisa
teórica (bibliográfica ou documental), de pesquisa de natureza empírica e relatos de experiência.
Devem debater ou fazer indicações para o aprofundamento e reflexão de questões relacionadas ao
Seminário.
Assim, na categoria pesquisa, devem ser mostrados, de forma detalhada, os instrumentos,
procedimentos e ferramentas dos caminhos para se atingir o objetivo da pesquisa, definindo ainda o
tipo de pesquisa, a população (universo da pesquisa), a amostragem (parte da população ou do
universo, selecionada de acordo com uma regra), os instrumentos de coleta de dados e a forma como
os dados foram tabulados e analisados.
As questões éticas referentes às publicações de pesquisa com seres humanos são de inteira
responsabilidade dos autores e devem estar em conformidade com os princípios contidos na
Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial (1964, reformulada em 1975,1983, 1989,
1989, 1996 e 2000) e na Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde.
Observar os procedimentos éticos em relação a fotografias: fotos com pessoas, devem vir
acompanhadas da permissão dos fotografados; fotos com crianças ou adolescentes, devem respeitar
a legislação vigente. Se as ilustrações enviadas já tiverem sido publicadas, devem-se mencionar o
título, a fonte e o crédito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A verdadeira liberdade da mulher negra estará assegurada, talvez, somente quando e onde
sua condição de raça e gênero não estejam subsumidas nem a uma sensualidade imposta
que a reifica, nem a um pacto fundado na adoção de modelos que reiteram a subordinação
feminina (GIACOMINI, 1994, p. 226)

Este excerto de Sonia Giacomini, retirado de sua análise sobre a constituição da mulata
exportação é inspirador para a finalização desta análise, por trazer a necessidade de atentarmos
para os contextos mais amplos em que nossas análises se situam. Deste modo, esta pesquisa
sobre a cultura corporal das passistas do carnaval de Uruguaiana levaram-nos a buscar
942
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
compreender o contexto mais amplo em que esta experiência emerge como fenômeno social. Por
meio das observações e interações com o universo investigado, um universo que é muito familiar
à autora, passou a ser olhado de outra perspectiva e, com isto, ela pode perceber elementos da sua
constituição que até então não tinham sido percebidos.
A cultura corporal das passistas está situada na cultura do samba em Uruguaiana. Pode-se
concluir que a cultura do samba em Uruguaiana, cujas raízes estão assentadas nas matrizes
africanas, foi apropriada pela classe social dominante branca, que ocupa o lugar de comando das
escolas de samba e o povo negro foi relegado, por um lado, ao lugar das produções artísticas, como
produtores das músicas, da dança, do samba – do entretenimento de maneira geral e, por outro,
aos bastidores para o trabalho invisível que sustenta o espetáculo, o que remete à percepção de que
há uma apropriação da cultura negra, convertida em símbolo nacional domesticado, ocultando uma
dominação racial (GIACOMINNI, 1994).
Disto decorre a cultural corporal das passistas, que formam um grupo de jovens mulheres
não brancas, solteiras e, em sua maioria, cuja relação com o universo do carnaval segue uma
tradição familiar, ocupando lugares de destaque nas suas agremiações, como rainhas das escolas
de samba, madrinhas e rainhas da bateria e as princesas da corte do carnaval 2019. Chama a
atenção que curiosamente, a Rainha eleita para o Carnaval de Uruguaiana de 2019, símbolo
máximo das musas do Carnaval, é a única autodeclarada branca. Parte desta cultura corporal é a
concepção de passista, muito próxima do que Sônia Giacomini descreveu como a mulata
exportação: a mulher sensualizada, com coxas e nádegas grandes, barriga malhada, cujo corpo é
moldado e trabalho por técnicas corporais específicas, como a prática da dança e da musculação,
incorporando traços da “cultura da malhação” (GOLDENBERG e RAMOS, 2007).
Há, ainda, a maior das técnicas corporais, a habilidade do saber sambar, que é aprimorada
constantemente. Além destes atributos estéticos, há um conjunto deles que dizem respeito a
atributos éticos, como simpatia, humildade, elegância, amor ao samba, que apontam para a
compreensão das convenções de gênero constitutivas destas feminilidades, marcada pela tensão
entre as perspectivas tradicionalistas de gênero e àquelas associadas ao carnaval e à sensualização
dos corpos das passistas, que age como docilização dos corpos femininos à mostra.
Deste modo, podemos observar aspectos de uma “integração subordinada” (FRY, 1982)
presentes no carnaval de Uruguaiana, “onde os produtores originais deste item cultural foram,

943
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em certa medida, desapropriados de seu papel de liderança e relegados a sua posição de “extras”
adicionais” ( p. 51). Podemos perceber elementos desta integração subordinada seja na
estruturação da cultura do samba uruguaianense, seja na ocupação do posto mais prestigioso das
passistas, seja na própria cultura corporal das musas, seja nas convenções de gênero que
conformam feminilidades e corpos docilizados.
Assim, a cultura corporal das passistas aqui apresentada segrega, seleciona e impõe às
mulheres um corpo perfeito, que acompanhado de atitudes como simpatia, humildade e carisma
constitui uma passista perfeita e a mulher que a sociedade patriarcal tem como ideal, a domesticada
e submissa.

REFERÊNCIAS
ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed, 2009.

BONETTI, Alinne de Lima, Gênero, poder e feminismos: as arapiracas pernambucanas e os


sentidos de gênero da política feminista. In labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2011 - janvier / juin 2012 julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012.

BONETTI, Alinne de Lima e FONTOURA, Natália. Convenções de gênero em transição no


Brasil? Uma análise sobre os dados da PNAD 2007. In CASTRO, J. A. e RIBEIRO, J.A. (orgs).
Situação social brasileira: 2007. Brasília: IPEA, 2009. p. 65-80.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), janeiro-junho de 2006:
p.329-376. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf. Acessado em 15 de ago.
2018.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidade Uruguaiana. 2010.


Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=432240>. Acesso em 07 fev.
2017.

CICOUREL, Aaron. Teoria e Método em Pesquisa de Campo. In GUIMARÃES, Alba Zaluar (org).
Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1990 (3a.
edição).p.87-121.

CORRÊA, Mariza. A invenção da mulata. cadernos pagu (6-7) 1996: pp.35-50.

DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura Campinas, SP: Autores Associados,
2010.

944
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DUARTE, Ulisses Corrêa. O carnaval espetáculo no sul do Brasil – uma etnografia da cultura
carnavalesca nas construções das identidades e nas transformações da festa em Porto Alegre e
Uruguaiana. Dissertação (mestrado em antropologia social). Porto Alegre: UFRGS, 2011.

DUARTE, Ulisses Corrêa. Carnavais além das fronteiras: circuitos carnavalescos e relações
interculturais em escolas de samba no Rio de Janeiro, nos pampas e em Londres. Tese
(Doutorado em Antropologia Social). Porto Alegre: UFRGS, 2016.

FRY, Peter. Para Inglês ver identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro. Zahar
editores, 1982.

GIACOMINI, Sonia. Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação. Estudos Feministas,


Florianópolis, 14(1): 85-101, janeiro-abril/2006.

___________. Beleza Mulata e Beleza Negra. Estudos Feministas, Florianópolis, 1994.

GOLDENBERG, Mirian e RAMOS, Marcelo. A civilização das formas: o corpo como valor. In
GOLDENBERG, Mirian (org). Nu & Vestido - Dez antropólogos revelam a cultura do corpo
carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007.

MAUSS, Marcel. As técnicas corporais In MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo:


Cosac Naify, 2003.

OLIVEIRA, José Luiz de. Pequena história do carnaval carioca: de suas origens aos dias atuais.
Departamento de história do colégio Pedro II – Rio de Janeiro, 2012.

PAVÃO, Fábio. O carnaval de Uruguaiana – o samba da fronteira pede passagem! Textos


escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, vol 8, n°2, p101-114, nov 2011.
Disponível em <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/10387/8184>.
Acesso em 01 de jun 2018.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Variações sobre a Técnica de Gravador no registro da
Informação Viva. São Paulo: T.A Queiroz, 1991.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Sociedade, Porto
Alegre, nº 16, vol. 2, jul/dez 1990, pp.5-22.

945
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FEMINISMO AGROECOLÓGICO: COMPROMISSO SOCIAL E DECOLONIALIDADE
EM COMUNIDADES INDÍGENAS E QUILOMBOLAS NO INTERIOR PAULISTA

Paula Simone Busko399


Resumo: O tema proposto por esta pesquisa busca tratar as origens do feminismo agroecológico, em que momento esse
feminismo se constrói e de como aquelas populações vivem suas culturas e suas lutas sociais e políticas por meio de
escrevivências. Por meio de escrevivências, uma escrita literária embasada na literatura negra, mulheres contam as
histórias da vida cotidiana, seus modos de dizer e fazer que as tornam ser, num movimento de decolonização em que a
pesquisadora também torna-se parte deste processo. Metodologicamente, a pesquisa apresentada por meio desta
comunicação propõe uma metodologia decolonial, em que se envolvem pesquisador e pesquisado, num movimento a
decolonizar o pensamento, considerar outras teses, novos modos de fazer, dizer e ser, ou seja, valorizar o local e as
histórias da gente. o feminismo é mais que um posicionamento político, é um compromisso social contra o patriarcado, a
violência de gênero, de corpos, da promoção de mais direitos sociais, políticos e coletivos, e nisto estão mulheres e
homens, brancos, indígenas, ribeirinhos, pessoas das periferias, de pessoas LGBT e negros. Portanto, a pauta feminista
acaba sendo a mesma sob diferentes aspectos e interseccionalidades. O feminismo negro acaba por abarcar todos os outros
feminismos porque ele é completo e aponta a necessidade de mudanças estruturais em nossa sociedade. A produção de
um audiovisual para apresentação desta pesquisa tem o intuito de associar lembranças umas às outras, colcha de retalhos,
misturando as histórias do passado com as narrativas do presente. Serão as escrevivências de vidas que não começam
nem acabam, mas que procuram vincular os saberes do passado a saberes outros, que emergem pela figura de novos
personagens que em rede podem revelar suas intenções, diante das experiências de mulheres que emergem para exporem
suas experiências. Para concluir, essa voz feminina presente em todo o texto revela inúmeras características do é ser
mulher em espaços de subalternidade: na casa, na escola, no trabalho e em todas as suas relações sociais. Por meio das
escrevivências, percebem-se avanços, lentos, mas que caminham em direção a uma subversão de modelos socioculturais
e simbólicos expostos que sempre relegam a mulher negra a uma posição subalterna. Porém, a escrita promove
metamorfoses interessantes e ao evidenciar a fala destes sujeitos pelo resgate de suas memórias/recordações, o passado
se presentifica, mesmo que de maneira fragmentada e incompleta.

Palavras-chave: Feminismo Agroecológico; Decolonialidade; Escrevivências; Vale do Ribeira (SP).

INTRODUÇÃO
Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutoramento em Educação Científica e
Tecnológica que tem como tema o feminismo agroecológico sob o título: Escrevivências decoloniais:
uma análise do feminismo agroecológico no Vale do Ribeira (SP). O tema proposto por esta pesquisa
busca tratar as origens do feminismo agroecológico, em que momento esse feminismo se constrói e
de como aquelas populações vivem suas culturas e suas lutas sociais e políticas por meio de
escrevivências. O termo escrevivências surge da ideia do escreviver que tem como base as obras de
Conceição Evaristo e que será apresentado nesta comunicação mais adiante.
Na região do Vale os territórios são constituídos em sua maioria por comunidades quilombolas
e indígenas, além de ribeirinhos e caiçaras que viabilizam e visibilizam suas lutas por meio de
lideranças femininas. Por meio de escrevivências, uma escrita literária embasada na literatura negra,

399
Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) da Universidade Federal de Santa Catarina,
Campus Trindade. E-mail: paulabusko@gmail.com.
946
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres contam as histórias da vida cotidiana, seus modos de dizer e fazer que as tornem ser, num
movimento de decolonização em que a pesquisadora também se torna parte deste processo.
O tema do feminismo agroecológico faz menção aos conflitos existentes naqueles territórios
e este é o ponto de encontro entre agroecologia e feminismo: o conflito. O conflito da terra e da
violência existente nestes territórios. Daí que o feminismo torna-se caminho de luta porque quando
se fala em quilombolas e indígenas se fala em terra. Terra é território, campo de luta. E o feminismo
agroecológico no Vale se constitui não só por uma luta de mulheres negras, mas também de mulheres
brancas, indígenas, caiçaras e ribeirinhas. E de homens também. Este movimento coletivo que traz
em seu bojo estas experiências agroecológicas se estabelece num processo histórico e político que
são, sem dúvida, decoloniais. A decolonialidade propõe uma refundação de uma sociedade antes
colonizada em uma nova maneira de fazer, dizer e ser, experiências que são evidenciadas por meio
da fala de mulheres, na constituição de uma linguagem e de um discurso que existe num lugar e que
demonstra um desejo e uma dinâmica de visibilizar a fala da mulher que é considerada oprimida, que
é negra, que é indígena, que é minoria, trabalhadora rural.
As escrevivências apresentadas neste texto tem o objetivo de ecoar uma denúncia contra a
permanência histórica de um privilégio da pronúncia de palavras como: subalterno, outro, império,
colonial, e assim transformá-las em palavras como: memória, igualdade, escolha, coletivo,
ancestralidade e liberdade. É importante dizer que escrevivências são uma escolha e uma forma de
dizer. Esta forma de dizer que é decolonial está presente na vida e nas vozes de mulheres que por
muito tempo se calaram, mas que agora tomam coragem e manifestam seus desejos numa nova
maneira de viver seu dia-a-dia, privilegiando “o fragmento sobre a totalidade”. Escreviver é dar vez
“às versões mínimas, fragmentárias de vidas comuns, nem heroicas nem exemplares, de pequenas
vidas de personagens em cujos percursos se conjugam derrotas advindas de sua condição social, racial
e gênero” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 187).
A escrita da experiência destas mulheres do Vale são consideradas decoloniais porque
considera o processo histórico que as envolve, não somente econômicos ou sociais, de acordo com as
premissas de Grosfoguel (2016), no argumento de que o processo decolonial aponta para uma
sociedade mais justa, por uma sociedade que em sua refundação seria mais igualitária. É preciso ter
em mente que as relações coloniais se transformaram, mas continuam. Ainda está presente uma
dominação epistemológica em nossas sociedades muito forte, onde a modernidade tem sido

947
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
destrutiva para o planeta em nome de um projeto civilizatório. O que se constata é que o capitalismo
representa o aspecto econômico da modernidade e, portanto, “este capitalismo é histórico –
ecologicida, racista, feminicida e eurocêntrico” (GROSFOGUEL, 2016, n.p.).
Como o movimento do feminismo agroecológico está pautado nos estudos decoloniais
latinoamericanos, a lógica que procura classificar e hierarquizar racial e sexualmente as pessoas,
povos e cosmologias e que está presente nos sujeitos daqueles territórios, traz a importância de se
refletir sobre a relação colonialidade-modernidade que se instaurou juntamente com a formação dos
povos caiçaras, quilombolas e indígenas no Vale do Ribeira.
Viabiliza-se a habilidade que as comunidades têm para a formação de redes que interagem
entre si e de outros espaços, num campo que se abre para novas perspectivas sobre a importância da
agroecologia e da participação política das mulheres nestes espaços de interação, ao buscarem novas
técnicas e parcerias, com a possível divulgação dos resultados destes debates para expansão dos
conhecimentos adquiridos. Somada a estas tratativas investigar a agroecologia enquanto
conhecimento científico, além de visibilizar os estudos desta temática é partir do princípio que a
agroecologia é uma ciência. E esta ciência procura orientar a adoção de práticas agroecológicas com
o uso de novas ferramentas tecnológicas dentro de determinados sistemas de produção. Assim, ela
procura seguir os passos da própria natureza que a orienta num “modo outro” de trabalho com a terra,
numa junção homem-natureza, trazendo a estabilidade dos ecossistemas naturais (MACHADO e
MACHADO FILHO, 2014).
Metodologicamente, a pesquisa apresentada por meio desta comunicação propõe uma
metodologia decolonial, em que se envolvem pesquisador e pesquisado, num movimento a
decolonizar o pensamento, considerar outras teses, novos modos de fazer, dizer e ser, ou seja,
valorizar o local e as histórias da gente. Um dos propósitos desta metodologia, de acordo com Ocaña
et al. (2018), é valorizar a histórias locais solapadas pelo processo colonial; reconhecer a diversidade
como um processo emancipatório; decolonizar e ouvir a voz das identidades fraccionadas
(fragmentadas). Esta metodologia será apresentada mais adiante nesta comunicação. Portanto, esta
pesquisa evidencia um feminismo particular que propõem uma nova lógica civilizatória ao evidenciar
a colonialidade ainda presente nestes espaços e que precisa ser transformado. Constata-se que não só
há comente um problema econômico existente nestes espaços, em que os sistemas econômicos
locais procuram capitalizar tudo que está sob e sobre aquelas terras, mas sim, há um problema

948
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mais profundo que está na constituição histórica, social e cultural daquelas populações d Vale do
Ribeira.

FEMINISMO AGROECOLÓGICO E FEMINISMO NEGRO: APROXIMAÇÕES.


Afirma-se que a questão setorial do feminismo agroecológico tem suas origens no feminismo
negro porque “suas pautas são universais”. Mesmo com a presença das diversas teorias feministas
existentes considerando o feminismo plural, pode-se dizer que o feminismo é singular em suas
reinvindicações. Ora, o feminismo é mais que um posicionamento político, é um compromisso social
contra o patriarcado, a violência de gênero, de corpos, da promoção de mais direitos sociais, políticos
e coletivos, e nisto estão mulheres e homens, brancos, indígenas, ribeirinhos, pessoas das periferias,
de pessoas LGBT e negros. Portanto, a pauta feminista acaba sendo a mesma em diferentes aspectos
e interseccionalidades. O feminismo negro acaba por abarcar todos os outros feminismos porque ele
é completo e aponta a necessidade de mudanças estruturais em nossa sociedade.
Considera-se que esta luta é um processo decolonial, na concepção de Grosfoguel (2016), e já
existia há muito tempo, mesmo com outras denominações ou nomes, e apontava para outros aspectos
além dos processos econômicos envolvidos. A dominação cultural, social e epistemológica são
aspectos muitos fortes que caracterizam a colonialidade do ser e do fazer. É mais profundo porque
domina o pensamento, a fala e a ação. O patriarcado cristão e a estética (visual e linguística –
literatura, por exemplo) corrobora para esta dominação. Isso deve ficar claro para que se possa
trabalhar saídas para decolonizar nossa sociedade.
Quanto ao feminismo, Bell Hoocks (2018) argumenta que enquanto as mulheres brancas
lutavam por direito ao voto e a equiparação salarial com as mulheres negras eram empregadas
domésticas em suas casas. Quando surge o feminismo negro combatendo o racismo estrutural e todos
os sentidos sociais acabam por abarcar também a luta das mulheres brancas. Por isso a autora defende
a universalidade do feminismo negro que perpassa por todas as lutas sociais. Daí tem-se o encontro
das teorias feministas em sua particularidade.
Para Almeida (2019) o racismo estrutural tem sua origem na origem do capitalismo e por isso
não se pode ser antirracista sem ser anticapitalista. Por isso, os debates quanto ao racismo estrutural
devem trazer à tona teorias e práticas revolucionárias que abarcam a heterogeneidade de grupos
e movimentos sociais que apontam para estas questões. Já Nayana Menezes (2020) da Rede

949
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Emancipa* em um curso online que ministrou sobre Racismo Estrutural (UFMG) vai mais além e
argumenta que por ser uma luta coletiva, tanto mulheres brancas quanto mulheres negras podem
universalizar as questões do feminismo negro: “Esse negócio de um movimento só ter legitimidade
se tiver uma preta para falar está fora das premissas do feminismo negro. Ali todos devem ter seu
lugar de fala porque mesmo um continente como o latinoamericano ter várias realidades distintas a
premissa é uma só”.
Nesse sentido, o feminismo agroecológico é um compromisso com a luta de mulheres,
homens, ribeirinhos, caiçaras, indígenas e negros. Esse feminismo é agroecológico tem suas origens
no feminismo negro porque a agroecologia têm sido amplamente debatida, sobretudo nos meios
acadêmicos, porque beneficia toda uma cadeia de produção e consumo em espaços onde encontramos
populações com falta de recursos sociais e econômicos. Somando-se a estas questões, o trabalho da
mulher no meio rural desperta interesse, uma vez que novas perspectivas despontam num momento
em que as minorias precisam se fazer ouvir e se fazer respeitar enquanto seres que buscam igualdade
de direitos.
Ao se fazerem ouvir por meio de escrevivências estas mulheres evidenciam muitos exemplos
de uma prática social que formam um coletivo de luta e resistência. Muitas vezes, sem perceber, a
mulher vai concebendo uma nova forma de pensar abrindo espaço para um feminismo que vem de
práticas agroecológicas que não existiriam se não fossem por elas. Nesse sentido, o feminismo negro
está presente em todos estes espaços de luta em defesa dos territórios do Vale e reverbera o
posicionamento e a luta de vários grupos sociais ali existentes. Ou seja, o feminismo negro está nos
espaços de luta em defesa dos territórios.
O caminho para a formação de lideranças se faz presente porque ao trazer ao debate formas
de barrar o latifúndio e a exploração de terras em suas mais variadas formas (agronegócio, água,
barragens, turismo, por exemplo) visibiliza a criticidade, a conscientização política e a emancipação
que, sem dúvida, é coletiva. A centralidade de demandas ressalta as especificidades locais em respeito
à diversidade existente e o incentivo aos processos de defesa dos bens ecológicos e da vida
sustentável. No fim das contas, como dizia Fanon (2008) a luta é contra a exploração do homem pelo
homem. Faz-se urgente descolonizar as nações, mas também os seres humanos: “Descolonizar é criar
homens novos, modificar fundamentalmente o ser, transformar espectadores em atores da
história” (FANON, 2008, p. 52). A obra de Fanon citada anteriormente possui uma visão

950
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
humanista e universalista e, desse modo, defende a universalidade das lutas contra todas as formas de
opressão que tem em comum a humanidade como objeto.
Dando continuidade a estas questões são contempladas algumas linhas do pensamento
feminista em ação que corroboram para esta pesquisa. Uma delas está sob as considerações de Ochy
Curriel, que trata o feminismo como uma vertente do pensamento crítico que deve ter lugar nos
movimentos sociais em várias esferas e espaços sociais. Para a autora, a prática deste feminismo deve
ultrapassar as barreiras de gênero e deve estar articulada com os problemas raciais, de classe e de
sexualidade. A outra linha de pensamento está em Silvia Federici, que relaciona a produção capitalista
ao trabalho das mulheres.
Ochy Curriel (2019), ativista, professora e compositora aponta que em sua trajetória militante
percebeu que os movimentos sociais são o lugar ideal para as lutas e a arte como ferramenta para a
transformação, capaz de transpassar as fronteiras da colonialidade do saber (OCHY CURRIEL,
2019). Isto busca “imbricar todas as lutas”, não somente das mulheres porque há homens interessados
em participar dos direitos das mulheres em todos os espaços possíveis. Outro elemento importante
que a autora considera sobre o feminismo é que ele deve ser uma luta antirracista porque a colonização
e a colonialidade impõe uma fragmentação das diferenças, ou seja, indígenas, negros, mulheres,
trabalhadores. Em realidade, a luta não deve ser segmentada porque é uma luta de todos.
Segundo Ochy Curriel (2019), o “feminismo decolonial está planteado e todas as opressões
como o racismo, o sexismo, a violência, estão imbricadas. Não se pode pensar o racismo sem as
políticas neoliberais e não se pode pensar isso sem os feminicídios e vice versa”. Por isso, de acordo
com a autora, a luta deve ser articulada entre os movimentos e não separada como se cada luta fosse
diferente ou distante uma da outra.
Ao tomar como base este pensamento e associá-lo a vida das mulheres que compõem este
trabalho, não está fora de questão a imbricação que se dá entre o ser mulher e seu trabalho e como ela
se move em seu dia-a-dia como a sua participação nos movimentos sociais que lutam contra o
latifúndio, as barragens e a espoliação de direitos sobre a terra e território.
O homem não está descartado desta luta nas comunidades e por isso existe um tipo de
feminismo negro e decolonial em que o homem é participante. De acordo com Ochy Curriel (2019)
isso não deve ser desconsiderado porque o homem, mesmo sendo “machista”, não está apartado
dos movimentos de luta por direitos, por acesso e pela terra. Nesse sentido, pode-se dizer que

951
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nestes espaços há uma luta de homens e mulheres contra o patriarcado. E segundo a autora uma coisa
é o machismo em suas raízes e outra é o patriarcado. Ou seja, há uma luta contra certos sistemas de
dominação:

Dizem que o patriarcado é um sistema de dominação que tem afetado fundamentalmente as


mulheres ao longo da história, a meninos, meninas, etc; que está centrado em um tipo, o
patriarca, que tem meios de produção, por exemplo, a terra, a escola ou instituições como a
igreja. Isso é patriarcado. O problema é que aqui se confunde a lógica do patriarcado com o
machismo, é dizer, relações impessoais e isso é outra coisa. (OCHY CURRIEL, 2019, n.p.)

A autora cita que participou de muitos movimentos sociais indígenas e afros e que suas
companheiras de luta diziam que não pensavam em assumir um papel separista que lhes exigiam as
feministas urbanas e brancas, que dizem que elas tinham que separar-se dos homens. Nos territórios
elas estavam na luta junto aos homens que se somavam a muitos movimentos sociais.

Estamos em uma política de morte onde não somente estão matando as mulheres, estão
matando aos indígenas, a gente afro, os campesinos, a gente que luta pela terra, então, qual é
a proposta feminista diante disso? Esse é o grande desafio do feminismo, implica uma política
mais radical que considere o racismo, as políticas neoliberais, o militarismo, a geopolítica e
não somente os temas de gênero. (OCHY CURRIEL, 2019, n.p.)

Outro ponto importante é que embora certas populações pertençam a um sistema como o
agroecológico no Vale do Ribeira não se trata de um grupo homogêneo, mas sim heterogêneo. Vale
lembrar que “homogeneidade” é uma determinação do Estado que tenta enquadrar a todos em uma
mesma categoria: “o Estado que procura unificar, tornar idêntico por todos os meios. O Estado teme
as diferenças e, em consequência, só quer ver uma face das coisas” (RAFFESTIN, 1993, p. 28).
Portanto, o feminismo agroecológico pode estar relacionado aos espaços geográficos que defendem
seus territórios, mesmo heterogêneos.
Outro embasamento teórico que coaduna com a prática parte de Silvia Federici em seu artigo
“O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva” (SOF, 2014) que
apresenta uma perspectiva feminista sobre os comuns, noção que ganha relevância para a luta
anticapitalista a partir das resistências de mulheres e homens à expansão das fronteiras do capital
sobre os territórios. Federici dá um exemplo do trabalho da mulher em meios rurais: ela trabalha, mas
quem ganha o dinheiro com a venda dos produtos que a terra produz é o marido. Torna-se
extremamente atual a reflexão de Silvia Federici (2017) de que a acumulação primitiva, na
primeira fase do desenvolvimento capitalista, combinou a reorganização e o controle do território
952
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
e do trabalho com a reorganização da reprodução e do controle sobre o corpo das mulheres. O trabalho
é compartilhado, mas não seus ganhos. Também há uma correlação entre o que a autora fala sobre o
trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres no sistema capitalista e que não deixa de ser um tipo
de violência pública, em que as mulheres produzem no campo e reproduzem novos trabalhadores para
aquele espaço de trabalho sem a valorização ou ganho devido.
Ora, o racismo estrutural está presente nestas práticas, porque se o racismo nasce juntamente
com o capitalismo, quem é antirracista também é (ou pelo menos deveria ser) anticapitalista. Para
Silvia Federici (2017, n.p.) “tem-se que compreender de onde vem esta violência [de exploração do
trabalho, dos corpos e das mentes], quais são suas raízes e quais são os processos sociais, políticos e
econômicos que a mantém para compreender que mudança social é necessária”.
Por existir este modelo de “acumulação primitiva” em que a mulher é duplamente explorada,
pelo trabalho e pela reprodução, existe a violência econômica, doméstica e pública, e todos os tipos
estão conectados. Infelizmente, muitas mulheres não percebem este tipo de violência e
constantemente se ouve frases como “a missão da mulher no mundo”, “o amor de mãe supera todas
as dificuldades”, “doação à família”, “a força da mulher enquanto mãe e trabalhadora”. Por isso,
segundo a autora: “Necessitamos um programa de criação de uma nova sociedade” (SILVIA
FEDERICI, 2017, n.p.). O caminho para a construção de um “novo modelo social” deveria partir das
próprias mulheres por meio de uma conscientização, como explica Silvia Federici (2017), em que
diferentes movimentos sociais poderiam ajudar nesta empreitada. A formação de espaços de luta e
suas formas de organização em que surgem novas leis a favor das mulheres contra a opressão, a
precariedade do trabalho, sobretudo o trabalho no lar e a inviabilização das mulheres na cultura e na
história deve partir das próprias mulheres.
Escreviver as histórias dessas mulheres não coaduna somente com a alteridade já vista nas
teorias de Enrique Dussel, mas com um processo decolonial em curso. No Vale do Ribeira, os
movimentos sociais e políticos em defesa dos territórios apontam para uma luta histórica e um
processo de “refundação social, política e econômica” (GROSFOGUEL, 2016) daquele meio,
portanto, decolonial. Para Grosfoguel (2016) a decolonialidade já existia há muito tempo, mesmo
com outras denominações ou nomes, e apontava para outros aspectos além dos processos econômicos
envolvidos. A dominação cultural, social e epistemológica são aspectos muitos fortes que
caracterizam a colonialidade do ser e do fazer. É mais profundo porque domina o pensamento, a

953
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fala e a ação. O patriarcado cristão e a estética (visual e linguística – literatura, por exemplo) corrobora
para esta dominação. Isso deve ficar claro para que se possa trabalhar saídas para decolonizar nossa
sociedade. Por isso, não são as escrevivências em seu termo conceitual puro, enquanto gênero literário
imbricado à literatura negra e de acordo com Conceição Evaristo (2017) que são decoloniais. Mas
elas se tornam decoloniais na medida em que a pesquisa avança e traz a tona os processos de
decolonização daquelas populações.
Por isso torna-se clara a relação intrínseca entre o feminismo agroecológico, o feminismo
negro - que abarca todas as proposições acerca da luta de mulheres e homens quanto à exploração e
a violência de corpos e mentes - e a decolonialidade em territórios onde estes movimentos sociais se
evidenciam num processo de emancipação e luta social.

METODOLOGIA DECOLONIAL
Para Ocaña et al. (2018) a metodologia decolonial envolve pesquisador e pesquisado. E
significa que poderá ocorrer uma mudança de postura por parte do pesquisador, ou seja, ele deixa de
ser somente o sujeito observador e crítico e passa a ser o sujeito participante, compreensivo e
decolonial. É um processo em que o pesquisador passa por uma autodecolonialidade. Nesse sentido,
sempre há espaço para novas formas de pesquisar, mas o ponto principal é o envolvimento com o
grupo de interação. Não se fala mais “grupo pesquisado” e sim “grupo de interação”. Há esta
necessidade de transitar (Interagir): “Estabelecer a relação entre autodecolonialidade e o conversar
alterativo (alteridade, reconhecer-se no outro)” (OCAÑA et al., 2018, p. 177). Leva-se em conta que
interagir é também desenvolver ações e participar de modo ativo e alterativo com o grupo da pesquisa.
Na pesquisa que está sendo realizada, a partir de experiências de imersão na vida dos
quilombos e aldeias indígenas e de suas narrativas e dos processos educativos propostos pelas redes
poderão ser descritos os modos como se dão suas experiências decoloniais. Nesse caso, não se pode
definir um “paradigma novo” e nem um “paradigma emergente” e sim um “paradigma outro”,
conforme Mignolo citado por Ocaña et al. (2018, p. 178). Importante salientar que os paradigmas não
se superam uns aos outros, nenhum outro paradigma tem a intenção de superar o anterior, apenas se
estabelecer de outro modo, ou seja, não se pode substituir um método universal por outro método
igualmente universal.

954
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na proposição desta metodologia, deve-se ter em mente que há histórias particulares
(experiências individuais). E quanto mais fragmentadas as histórias mais proximidade se tem com os
sujeitos envolvidos e mais decolonial é sua pesquisa. Valorização da biopráxis humana. Mas o que
ela representa?

As biopráxis humanas representam as atividades, ações e operações mais concretas que


desenvolve uma pessoa em seu cotidiano (fragmentos do viver humano), de forma
espontânea. “Os instantes que configuram a vida diária da pessoa”. (OCAÑA et. al, 2018, p.
179)

Portanto, Ocaña et al. (2018) faz uma crítica aos pesquisadores que apenas refletem
teoricamente sobre um processo decolonial. Para o autor, isso não é metodologia, é reflexão. Traçar
uma metodologia decolonial é mover-se junto ao grupo de interação, é participar não apontar, é
reconhecer-se nos sujeitos e não julgá-los, é um processo dialógico e não monológico, é saber que
mesmo sendo um processo decolonizante, é político: “Todo processo decolonizante é político e
ideológico” (OCAÑA et al., 2018, p. 182).
Diante dessas considerações, a metodologia decolonial consiste em criticar a ciência clássica,
moderna e seus métodos utilizados em pesquisa. Criticar seus modos de investigação, do fazer
pesquisa colonial, das práticas impostas. Tentativas de se impor ao outro, de apontar, de disputar de
forma antiética, enfim, não respeitar o outro. Para ser decolonial em pesquisa é necessário ser:
“democrático, procurar ser justo, compartilhar e solidarizar-se” (OCAÑA et al., 2018, p. 183).

ESCREVIVER
Escreviver é um compromisso e uma responsabilidade: com a literatura negra e com as populações
negras envolvidas em seus espaços de luta. O comportamento das pessoas envolvidas nas histórias,
assim como a manifestação de seus sentimentos reflete uma posição crítica pautada nesta escrita que
por vezes revela a relação do indivíduo que, uma vez colonizado, aceita sua posição de subalternidade.
Fanon (2008) destaca que

Enquanto não compreendermos esta proposição, estaremos condenados a falar em vão do


“problema negro”. O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as
profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; e, do outro lado: o olhar claro
da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca. Uma magnífica criança
loura, quanta paz nessa expressão, quanta alegria e, principalmente, quanta esperança!

955
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nada de comparável com uma magnífica criança negra, algo absolutamente insólito.
(FANON, 2008, p.160).

Portanto, escreviver é dar uma (entre outras) possibilidade para que estas mulheres ganhem
visibilidade. Um processo de redefinição em que muitas se tornam agentes da sociedade
desconstruindo regras já estabelecidas. Salienta-se que seja um tipo de literatura negra que ultrapassa
a tonalidade da pele, num apanhado de histórias, de diálogos, de temas que configuram todo um perfil
próprio de quem a cria. O escritor Luiz Cuti (2009) argumenta que:

[...] não é só uma questão de pele, é uma questão de mergulhar em determinados sentimentos
de nacionalidade, enraizados na própria história do africano no Brasil e sua descendência,
trazendo um lado do Brasil que é camuflado. (CUTI, 2009, p.1)

O trabalho de escreviver, com base nos trabalhos de Conceição Evaristo, é um exemplo de


literatura negra e um exemplo de uma cultura diversa, em que a natureza está presente em sua forma
mais viva, quando se fala dos rios, das matas, da terra, é a natureza presente na recordação de seus
protagonistas. A narrativa contada por meio de escrevivências dá visibilidade a seres emudecidos
socialmente, mas que não poderá ser mais silenciada.
Escrevivências decoloniais vêm para tirar do esquecimento histórias de vida que estão
mergulhadas e que estão à superfície para que o escritor, enquanto sujeito participante assuma o narrar
destas histórias que, ao final do percurso, também farão parte dele. Aqui, quem narrar sai de um estado
meramente contemplativo e segue participante de uma atitude política que se concretiza na maneira
como a escrita deverá vasculhar as emoções vividas dos que lutam por “sobreviver em condições
intensamente desfavoráveis” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 192).

De repente tudo ficou quieto. O que seria? As religiosas da pastoral estavam ali e tinham preparado
até um café com bolo para comemorar o encontro. Não havia sido fácil reunir muitas delas porque
trabalhavam no roçado e era tempo da colheita do milho. Seus maridos tinham autorizado que fossem
ao encontro e tudo parecia que caminharia bem. Mas fecharam a cara. Cruzaram os braços. Até que
uma delas respondeu com força e como a se defender de uma agressão: “Num cantamo memo, não!
Lá na nossa terra, muié que canta é puta e nóis não qué cantá pur causa disso!” Entre o espanto das
religiosas e a cara fechada das lavradoras pela tentativa de fazê-las cantar e o café com bolo que
todos esperávamos ansiosos, muita conversa se gastou. Algumas choravam. Olha, há muitas
956
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
formas de cantar. Tudo na natureza canta: os pássaros, as águas que correm pelos rios, o vento, a
chuva. No fim, decoraram algumas músicas folclóricas: “O cravo brigou com a rosa...” Elas tinham
muito ritmo! (autora)

Ao observar a vida de pessoas mais velhas nesses espaços, manifesta-se o vínculo da pesquisa
com o passado ancestral daquelas populações, do que foi e do que permanece ainda vivo na memória,
na história e no cotidiano. Personificar um passado não é tarefa fácil e ao enfatizar uma narração como
prática, a pesquisa procura unir o passado que é, ao mesmo tempo, um presente. Particularmente, nas
escrevivências apresentadas revela um sentido de solidariedade e de coletividade que podem ser
considerados comportamentos típicos de sociedades pautadas pela oralidade. Zuleide Duarte (2009)
lembra muito bem este traço característico das sociedades tradicionais africanas quando manifesta que:

Nas sociedades tradicionais africanas as narrativas orais configuram os pilares onde se


apoiam os valores e as crenças transmitidas pela tradição e, simultaneamente, previnem as
inversões éticas e o desrespeito ao legado ancestral da cultura. (ZULEIDE DUARTE, 2009,
p. 182)

Ao dialogar com as tradições orais as escrevivências vão tomando forma e atualizam


conhecimentos e, assim como Conceição Evaristo, há uma crítica em relação aos padrões culto-
literários da língua portuguesa, de um modelo eurocêntrico estabelecido e é isso que dá visibilidade a
uma narrativa que remete à diversidade das culturas ancestrais, negras e indígenas, pela oralidade de
seus povos. A autora acima citada se pauta em alguns teóricos para justificar as escrevivências
enquanto relatos de memórias: Michel Pollak e Walter Benjamin (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017,
p. 191). A ousadia de estabelecer para este trabalho um sentido decolonial reverbera que as
escrevivências, conforme Pollak e citado por Evaristo destaca a “importância das memórias
subterrâneas” que constrói

um trabalho de subversão mesmo delegadas ao silêncio, podem provocar, ao aflorarem,


intensos ruídos na transmissão oficial dos fatos ou na forma como o social é construído a
partir do represamento da experiência de pessoas que ocupam lugares periféricos ao plano
arquitetônico dos grandes centros. (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 191)

Pollak (1989) ao citar as memórias subterrâneas, citadas por Conceição Evaristo (2017,
p. 191), argumenta que tais memórias ao emergirem para os espaços onde está a escrita de poder,
957
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
acabam por rasurar “a cena dos grandes feitos” e permite a constituição de novas histórias, quebrando
o silêncio dos marginalizados, dos que vivem vidas tão pequenas ou esquecidas e que se perdem no
cotidiano. Nesse sentido, a autora destaca a importância do escreviver “Uma história de superação
vinda dos antepassados, a partir de uma perspectiva identificada com a visão do mundo e com os
valores do Atlântico Negro” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 185). Escreviver é trazer à luz um
movimento que caracteriza o afloramento de memórias confinadas ao silêncio, mas também de
experiências, de sentimentos, de sujeição de corpos que instigam as vozes interiores que emanam de
quem foi espoliado, esquecido e acossado por uma pobreza que deve ser lembrada para não repetida.
No Brasil, as crônicas e os contos expressam de forma mais contundente esta expressão do
dizer e sempre há algo de real e imaginário que se mistura a estas expressões literárias. O termo
“narrar” vem do latim “narratio” e está relacionado ao próprio ato de narrar algo seja real ou fictício.
Hoje, há muitas divisões de vários gêneros literários dentro do estilo narrativo: o romance, a novela,
o conto, a crônica, a fábula. De acordo com Roland Barthes (2011, p. 45) a “narrativa está presente
em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades e começa com a própria história da
humanidade [...] é fruto do gênio do narrador ou possui em comum com outras narrativas uma
estrutura acessível à análise".
Mas escreviver vai mais além do que somente narrar um fato ou uma fala. É “escrita e vida,
ou, melhor dizendo, escrita e vivência” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 9) porque, ao
estabelecer escrevivências como um ato que “recupera as experiências de pessoas expostas à dura
pobreza” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017, p. 193), aponta a fala de Walter Benjamin que sugeriu
a escrita como uma atitude política que procura vasculhar as vidas dos que lutam por sobreviver em
duras condições, esquecidos muitas vezes pela sociedade. Breves histórias de vida, múltiplos
personagens, histórias da gente comum que privilegia o fragmento sobre a totalidade. Outro ponto a
destacar é que escreviver é um compromisso e uma responsabilidade: com a literatura negra e com
as populações negras envolvidas em seus espaços de luta. Escreviver é dar uma (entre outras)
possibilidade para que estas mulheres ganhem visibilidade. Um processo de redefinição em que
muitas se tornam agentes da sociedade desconstruindo regras já estabelecidas.

ESCREVIVÊNCIAS AUDIOVISUAIS

958
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A produção de um audiovisual para apresentação desta pesquisa tem o intuito de associar
lembranças umas às outras, colcha de retalhos, misturando as histórias do passado com as narrativas
do presente. Serão as escrevivências de vidas que não começam nem acabam, mas que procuram
vincular saberes do passado a saberes outros, que emergem pela figura de novos personagens que em
rede podem revelar suas intenções, diante das experiências de mulheres que emergem para exporem
suas experiências.
Desde o princípio a imagem foi um meio de expressão, de comunicação, de iniciação e de
encantamento. Martín-Barbero e Rey (1999, p. 9) destacam que “mais orgânica que a linguagem, a
imaginação procede de outro elemento cósmico cuja mesma alteridade é fascinante”. É dizer que a
imagem está associada ao campo da arte, mas também à manipulação enquanto persuasão religiosa,
ideológica, engodo, trama ou malefício. O sentido estético da imagem, associado frequentemente a
“resíduos mágicos” ou “vestimentas políticas ou mercantis”, corrobora para caracterizar um sistema
social como lugar de “batalha cultural” (MARTÍN-BARBERO e REY, 1999).
Na América Latina, por exemplo, conforme Martín-Barbero e Rey (1999, p. 11), manifesta-
se o direito dos “povos do sul em contar as decisões que os afetam, pelo direito a contar suas histórias,
e des-cobrir, recriar nelas – nos relatos que a fazem local e mundialmente reconhecidas – sua
identidade plural”. Por isso, há que se reconfigurar o padrão tantas vezes difundido e buscar novas
histórias, particulares, de movimentos que trazem o que por muito tempo esteve “escondido”, longe
dos olhos daqueles que não tem ou nunca tiveram interesse nos modos de vida de certas populações.
É, também, uma denúncia, uma forma de apontar o desinteresse do poder público diante de certas
questões, do descaso, do abandono.
Ao estabelecer uma união entre as escrevivências e o audiovisual enquanto aparato midiático
para concepção de certas produções de sentido é indispensável os fundamentos das teorias das mídias
audiovisuais. Nesse caso, dois autores clássicos podem articular tais proposições, suscitando
elementos de uma comunicação interativa, móvel e particular (espaços próprios de interação), mas
que permeiam a temática da mídia por meio de uma construção coletiva e cooperativa. São eles:
Theodor Adorno, que ao estabelecer o termo indústria cultural, evidencia a ideia de uma sociedade
passiva e dócil, assim defende um modelo de comunicação fragmentada, local. A comunicação de
massa para este autor perpassa as crises econômicas e padroniza os sentidos, refutando a cultura

959
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
popular e suas manifestações artísticas particulares. Nesse sentido, Adorno traz a ideia do ensaio
enquanto comunicação ativa fragmentada em espaços de denúncia social.
Já Manuel Castells aponta a relação entre a comunicação, cultura, educação e o
estabelecimento de redes de interação em um determinado espaço. Este último destaca a importância
que a imagem corrobora para o conhecimento e o entendimento dos movimentos sociais em pauta.
Passando por diversas transformações ao longo das décadas, a imagem não é a única coisa que se
transformou. Em realidade, as condições de produção e de circulação entre o imaginário individual e
o imaginário coletivo, além da estética empregada confirma a relação entre o efeito das representações
que são veiculadas em determinado espaço às tecnologias empregadas. Isso pode trazer os efeitos de
sentido carregados pela imagem e pelo discurso, configurando - independente dos objetivos a que se
propõe - um imaginário que deverá ser percebido e reconhecido além das fronteiras espaciais e
temporais em que foram criados.
Cada indivíduo ou grupo social faz sua leitura sobre uma imagem de acordo com seu processo
histórico e cultural. Compreender o que está sendo visualizado depende de um conhecimento prévio
que une um entendimento do processo de verbalização da palavra para representar uma dada
realidade. Desse modo, as imagens produzem símbolos e sentidos. Tais sentidos representam, sem
dúvida, padrões culturais e ideologias e tornam realidades naturalizadas. Não que tudo esteja
premeditado, mas estes sistemas de valores, símbolos e estereótipos estão condicionados a quem
produz o visual, mesmo porque também pertence a um mesmo contexto social que é por ele
influenciado.
Adorno e Horkheimer (1985, p. 9), sempre críticos a uma sociedade capitalista que propaga
imagens mediadas pelo aparato tecnológico apontam o fortalecimento da racionalidade técnica e
instrumental, dado que “a racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o
caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena”. A imagem serve à indústria, ao consumo e ao
capital, por isso, a imagem deve ser trabalhada num sentido poético ou conceitual e ser entendida
dentro de um contexto revelando um mundo escondido em que o autor desejaria viver.
Castells (2016), por exemplo, destacou que o mundo, a partir da década de 1970, passou a
experimentar uma nova forma de sociabilidade, de comunicação e integração política, social e
econômica, o que foi denominado pelo autor de "sociedade em rede". O sociólogo observou que,
no bojo das transformações tecnológicas que deram amplitude à globalização, como o uso das

960
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mídias que possibilitou um ciberativismo e as redes sociais, ocorreu o surgimento de novas
manifestações e movimentos sociais no cenário político internacional. Isto exigiu mudanças no
discurso político e o uso de novas ferramentas midiáticas diversas. Grande parte desses movimentos
buscou incorporar, em seus discursos políticos, a valorização das identidades e suas singularidades,
sobretudo as minoritárias, do direito à expressão de novas ou diferentes formas de ver e estar no
mundo e de uma política de tolerância às diferenças.
Conceição Evaristo (2017) argumenta que as escrevivências estão diretamente ligadas à
condição do afrodescendente, das minorias e daqueles que são esquecidos, de alguma forma, pelo
poder público. Por isso a escolha por escrevivências audiovisuais não deixa de ser uma forma de
denunciar este esquecimento e pautar estas questões ao debate. Um audiovisual de histórias
fragmentadas, locais, das minorias, imprimem rupturas, traduz experiências e permite continuidades,
ou seja, algo que não se acaba em si mesmo.
Tentar adivinhar o que o outro está pensando, escolher a melhor tática para convencer alguém e
responder conforme o esperado pelo outro, todas essas são formas de imaginar, isto é, produzir imagens
do outro, de sua relação com o outro, de você mesmo e dos assuntos envolvidos. Pêcheux denominou
essas imagens como formações imaginárias, um dos componentes principais das condições de produção
em sentido mais estrito. Pêcheux (2010) indica outro modo de olhar para a relação dos interlocutores:
já não se trata de uma relação direta com o outro, mas uma relação atravessada por formações
imaginárias, tornando mais complexas as trocas simbólicas. Ou seja, o imaginário social é um conjunto
complexo de imagens que a sociedade tem sobre os objetos, os sujeitos, as práticas, em suma, sobre
tudo aquilo que é passível de alguma simbolização. Segundo Pêcheux (2010, p. 85), as diversas
formações imaginárias resultam, elas mesmas, “de processos discursivos anteriores (provenientes de
outras condições de produção) que deixaram de funcionar, mas que deram nascimento a ‘tomadas de
posição’ implícitas que asseguram a possibilidade do processo discursivo em foco”. O já dito, o já
ouvido, o já visto, isto é, aquilo que já faz sentido é a matéria-prima das formações imaginárias,
atravessando o que é possível para os locutores.

REFLEXÕES INICIAIS
Há uma disposição por mudanças mais profundas e uma urgência na constituição de
novos movimentos sociais no campo que incluem as mulheres trabalhadoras rurais. Um amplo

961
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
espaço de investigação sugere que uma participação consciente nas práticas sociais e discursivas e “o
modo” como são “instituídos” tais movimentos, apoiados num contexto decolonial, poderão produzir
mais segurança a estas populações – alimentar e com garantias de direitos sobre os espaços de cultivo,
por exemplo – e prosperidade.
Por meio das escrevivências o movimento do feminismo agroecológico é evidenciado em seus
modos de ser, dizer e fazer que configure a proposta deste trabalho, onde os lugares das narrativas se
misturam às memórias subterrâneas na formação de elos de cooperação e resistência. Os movimentos
sociais ali constituídos tanto por mulheres como por homens traz em evidência questões políticas,
culturais e históricas. Portanto, resgatar a história do Vale por meio de escrevivências implica em
questionar a colonialidade ainda presente nas comunidades e trazê-los para um “modo outro” do fazer
cotidiano. Ao afirmar os valores das minorias a fala de Freire (2005, p. 173) está presente: “numa
sociedade dependente” e “na dominação de uma classe sobre a outra”, o caminho para a formação de
uma percepção crítica da realidade recai numa nova postura, de reconstrução e reformulação que
parte em busca de se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis. Por isso, esta pesquisa
destaca a importância da agroecologia a partir do feminino. Questionando-o como uma nova ciência
ou como um método, tem o intuito de trazer ao palco dos debates sua práxis, fruto da reflexão e ação
humana.
Para concluir, essa voz feminina presente em todo o texto revela inúmeras características do
é ser mulher em espaços de subalternidade: na casa, na escola, no trabalho e em todas as suas relações
sociais. Por meio das escrevivências, percebem-se avanços, lentos, mas que caminham em direção a
uma subversão de modelos socioculturais e simbólicos expostos que sempre relegam a mulher negra
a uma posição subalterna. Porém, a escrita promove metamorfoses interessantes e ao evidenciar a fala
destes sujeitos pelo resgate de suas memórias/recordações, o passado se presentifica, mesmo que de
maneira fragmentada e incompleta.

Dona Lurdes queria participar de uma padaria comunitária que estava sendo formada por algumas
mulheres em seu bairro. Elas queriam se juntar para fazer pão e vender para ter um dinheiro a mais
no fim do mês. Estavam animadas. Podiam trabalhar em conjunto e podiam se apoiar umas às outras.
Mas Seu Antônio, marido de dona Lurdes, achou a ideia uma bobagem: “Fazer pão para comer
em casa tudo bem, isto você sabe e deve. Mas não vai conseguir fazer pão para vender. Quem
962
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vai comprar? Imagina só! Vai ser um fracasso!” Mesmo assim, armando-se de coragem e agarrando
aos sonhos de uma vida melhor, dona Lurdes e suas amigas se reuniram e planejaram como fazer.
Onde comprar a farinha e onde vender. Tiveram sucesso. Hoje a padaria do bairro é comunitária e
funciona muito bem. Fazem até bolo de casamento e doces para as festividades da igreja. Agora, Seu
Antônio se convenceu e respeita o trabalho da mulher. Ali, seu palpite não tem vez. Com o tempo,
Dona Lurdes e outras mulheres venceram o medo e as críticas. Conquistaram novos espaços do
fazer. (autora)

Todo o conjunto das escrevivências corrobora para que a história de um indivíduo seja a
história de muitos, desse modo, há um destaque para os modos de viver de toda uma comunidade,
traduzindo anseios e problemas de uma época. Nota-se, em muitas passagens, que a história do
indivíduo está carregada das representações sociais em que o negro é representado. A mulher negra
desta pesquisa está reconstruindo sua própria história pela história de seus antepassados (memória
ancestral) e se constrói a partir de suas próprias experiências enquanto protagonista de seu dizer. A
partir do conhecimento local e numa perspectiva decolonial, há a necessidade de investigar os saberes
de fronteira e identificar em que medida os saberes que por ali circulam oferecem possibilidades para
um “fazer diferente” propondo relações de alteridade e ruptura com um passado historicamente
colonialista.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor Wiesengrund. O ensaio como forma. In. MARIA COHN, Glória. Theodor W.
Adorno - Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.

BARTHES, Roland et al. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In. Análise Estrutural da
Narrativa. Petrópolis: Editora Vozes, 7a. ed., 2011, p. 19-69.

BELL HOOKS. O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo
Rouanet. Prefácio Jeanne Macie Gagnebrir. 7a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

____. A Sociedade em Rede. 17ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
963
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONCEIÇÃO EVARISTO. Becos da memória. Florianópolis: Mulheres, 2013.

____. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

____. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v.
13, n. 25, p. 17-31, 2o sem. 2009. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365 Acesso em: 29 de jul. de 2020.

CUTI, Luiz. Literatura negro-brasileira: consciência em debate. São Paulo: Selo negro, 2010.

DUSSEL. Enrique. Filosofia da Libertação: Crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus,
1995.

FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidad del poder. Ruta pedagógica. 7 dez. 2016. Disponível:
https://www.youtube.com/watch?v=2_dkACDYuO0&list=FLYGeQ8GaDvEBcmdC9PaHagw
Acesso em 21 de mar. de 2020.

MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro; MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro. A dialética da
agroecologia – Contribuição para um mundo com alimentos sem veneno. São Paulo: Expressão
Popular, 2014.

MARTÍN-BARBERO, Jesús.; REY, Gérman. Los ejercicio del ver. Hegemonía audiovisual y
ficción televisiva. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999.

OCAÑA, Alexander Ortiz (ORG); MARIA ISABEL ARIAS, Lopes; ZAIRA PEDROSO, Conedo.
Metodología ‘otra’ en la investigación social, humana y educativa. El hacer decolonial como proceso
decolonizante. Revista FAIA. v. 7, n. 30, 2018, p. 172-200. Disponível em:
http://editorialabiertafaia.com/pifilojs/index.php/FAIA/article/view/146 Acesso em: 21 de jun. 2020.

OCHY CURRIEL, O. Por um feminismo decolonial antirracista y popular: uma charla com Ochy
Curriel. Cartel Urbano (vídeo). Disponível em: https://cartelurbano.com/libreydiverso/por-un-
feminismo-decolonial-antirracista-y-popular-una-charla-con-ochy-curiel Acesso em: 21 de jun. de
2020.

PÊCHEUX, Michael. Análise automática do discurso. In: FRANÇOISE GADET; HAK, Tony. Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. ed. Campinas:
Unicamp, 2010.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2. n. 3. Rio de


Janeiro, 1989.
964
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Trad. Maria Cecília França. São Paulo: Editora Ática
S.A, 1993.

SILVIA FEDERICI. O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva. In:
Feminismo, Economia e Política: Debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres.
Renata Moreno (Org.). São Paulo: Sempreviva Organização Feminista (SOF), 2014. Disponível em:
http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Economia-e-poli%CC%81tica-web.pdf Acesso
em: 30 de jul. de 2020.

ZULEIDE DUARTE. A tradição oral na África. Estudos sociológicos. Pernambuco, v.15, n2, p. 181-
189, 2009.

965
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(F)ATOS E (RE)EXISTÊNCIAS FEMININAS EM SANTA CATARINA: AS
ESTRATÉGIAS DE LUTA DAS MULHERES ESCRAVIZADAS E O PESO DO SEXISMO
NO FINAL DO SÉCULO XIX

Cíntia Magnus Gomes400


Marina da Silva Schneider401

Resumo: A sociedade brasileira atual é fruto de uma colonização de exploração, que além de ter nos deixado como
herança a mestiçagem da população entre europeus, indígenas e negros, permitiu que resquícios do sistema escravocrata
e patriarcal aqui implantado, respingassem sobre os remanescentes da escravidão sob a forma de preconceito racial e
desigualdade social ainda tão presentes. E se considerarmos a condição de escravo no Brasil colonial difícil, o sexismo e
as desigualdades de gênero pesavam ainda mais para a condição da mulher escrava. O presente artigo buscou compreender
esta dominação sobre as mulheres escravas sob um viés dos estudos de gênero na intersecção com raça, tentando definir
o papel delas como sujeitos históricos e suas formas de resistência dentro de um sistema que as oprimia duplamente, por
serem escravas e por serem mulheres. Utilizando-se de uma bibliografia de estudos já realizados sobre o tema,
objetivamos dar visibilidade a essas mulheres escravas e tentamos explanar aqui aspectos da vida cotidiana e estratégias
estabelecidas por elas em busca de melhores condições de vida ou por sua liberdade no Brasil, mas de forma mais
específica, no Sul de Santa Catarina.

Palavras-chave: Gênero; Mulheres; Escravidão; Resistência.

INTRODUÇÃO

Como estratégia teórica, alicerçamos nossa análise no campo da história das mulheres e das
relações de gênero, levando em conta que essa discussão se faz necessária para alargar a compreensão
sobre as relações humanas entre homens e mulheres, bem como as desigualdades presentes nessas
relações sociais em diferentes tempos e espaço da história. Mais especificamente nesse caso, tentamos
compreender essas relações de mulheres escravizadas sob um viés de gênero.
Para Joan Scott (1995), o gênero é uma categoria relacional e pode ser entendido como uma
parte que constituiu as relações culturais que são baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e
nas relações de poder. Em outras palavras:

Os estudos de gênero consideram que a vida social e os vetores que organizam como, por
exemplo, tempo, espaço ou a diferença entre os sexos, são desenvolvidos e estabelecidos
socialmente através de um sistema de representações. (KUAMOTO; LOSNAK, 2015, p. 08).

400
Graduada no curso de História, pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: cintiamagnus@unesc.net
401
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Sócioeconômico, pela Universidade do Extremo
Sul Catarinense. E-mail: msshis@outlook.com
966
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Desse modo, esses estudos visam repensar as formas como as relações são construídas e
interpretadas pelos sujeitos, uma vez que, em grande medida, se transformam em desigualdades,
violências e invisibilidades contra as mulheres. Podemos interpretar a partir da análise de Scott
(1995), que as relações históricas entre homens e mulheres se construíram marcadas pelas
desigualdades de gênero a partir de uma hierarquia existente que criava normatividades impostas as
pessoas. Para Margareth Rago (1998), apenas as questões econômicas e políticas não são suficientes
para explicar as desigualdades entre homens e mulheres no interior da cultura. É preciso analisar
como essa sociedade constrói e interpreta seus sentidos.
Scott (1995) apresenta quatro importantes estruturas que atuam no processo da construção do
gênero e na naturalização das diferenças entre homens e mulheres em diferentes tempos e espaço.
Para a teórica, essas interações humanas não são naturais, mas sim, fazem parte de um processo que
se estrutura a partir de discursos, normas, instituições e subjetividade. Os discursos seriam um tipo
de representação que produz efeitos sobre as interpretações das pessoas diante do gênero, como por
exemplo, Eva e Maria, sendo culturalmente símbolos indicativos sobre o que é ser mulher. Desse
modo, o sujeito busca se reconhecer em algumas dessas possibilidades de mulheres. Na segunda
etapa, esses discursos se tornam normas a naturalizadas para serem seguidas, onde as pessoas
internalizam o que é considerado normal. A partir disso, diversas instituições propagam esses
discursos, símbolos e normas, como igreja, Estado, escolas, mídia e os sistemas, político, econômico
e de trabalho, Ao fim desse processo, o sujeito se reconhece como esse homem ou mulher e reproduz
esses significados. Para Scott, essa é a última etapa e é quando o sujeito se subjetivou dentro das
normas e as enxerga como naturais.
No campo da História, devido às desigualdades de gênero, as mulheres estiveram apagadas
por muito tempo dentro de uma noção de sujeito universal, tendo sua voz e sua história silenciada por
uma ciência que era sim, excludente. É nesse sentido que a história e, em grande medida, a história
sobre a escravidão no Brasil remonta majoritariamente mais sobre uma história masculinista, onde as
mulheres não tem protagonismo. Para Rago (1998), “as experiências das mulheres na história se
diferenciavam muito das dos homens, assim [...] as mulheres trazem uma experiência histórica e
cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente” (RAGO, 1998, p. 03). Por isso, uma
abordagem feminista e de gênero é necessária para romper com a normatividade na história do

967
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
homem ocidental, branco e heterossexual em uma dimensão eurocêntrica do conhecimento e nesse
caso, na história da escravidão e das mulheres escravizadas no Brasil.
Para a socióloga Anna Bárbara Araújo, é preciso interseccionar gênero também com raça e
ainda com classe, pois para a autora eles estão no centro das desigualdades. Desse modo, gênero,
classe e raça, como categorias analíticas e com suas especificidades, estão imbricados, uma vez que
as desigualdades estão relacionadas e são sentidas de modos diferentes pelas mulheres a partir desses
três fatores (ARAUJO, 2018).
Nesse sentido, a partir de uma análise de gênero e raça, buscaremos dar conta de trazer
visibilidade às experiências das mulheres escravizadas participantes da história, entendendo seus
protagonismos e formas que construíram para resistir ao sistema escravista e em suma, ao machismo
que ainda precisaram enfrentar.

ESCRAVIDÃO NO SUL DE SANTA CATARINA: UMA HISTÓRIA DE SUJEITOS


ESQUECIDOS E DE MULHERES INVISIBILIZADAS

A liberdade, na contemporaneidade é um direito bastante discutido e defendido nos mais


variados aspectos que perpassam a vida humana. Ela é um principio combinado a regras jurídicas e
de convívio social que garantem ao indivíduo o direito de ir e vir, se expressar e fazer uso de seu
potencial intelectual e de trabalho como melhor lhe convier, autonomia de compra e venda, com
ausência de qualquer tipo de dominação, sem vir a ferir a mesma liberdade de seus pares. Estes fatores
garantem a igualdade de todos perante a lei, entretanto, a desigualdade social e as disparidades de
acesso aos direitos, por exemplo, interfere na plena liberdade individual na vida cotidiana, como é o
caso das mulheres e em grande medida, das mulheres negras.
É necessário frisar que a liberdade relaciona-se com a forma de organização da sociedade em
questão, em sua temporalidade, em sua definição de homem espiritual e físico, em caráter individual
ou coletivo, constituindo também um conceito filosófico e abstrato. Esta noção de liberdade, que nos
parece tão natural, sofreu mudanças na medida em que as sociedades humanas foram adaptando-se a
novos mecanismos e estruturas sociais, filosóficas e politicas, sendo uma construção histórica de seu
tempo. Contudo, o maior antagonismo à liberdade dos indivíduos que se pode citar perante tantas
diversidades já mencionadas é a escravidão (SILVA; SILVA, 2012).

968
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tanto quanto na definição de liberdade, o conceito de escravidão também sofreu modificações
de acordo com a realidade da sociedade na qual esteve ou está inserida. Têm-se notícias de escravidão
desde as primeiras civilizações, entretanto, a condição de escravidão está atrelada a relações com
especificidades que vão além da cor da pele, que é a mais conhecida pelo Ocidente. Faz-se importante
lembrar que acima de tudo, o escravo é uma propriedade, ele não possui poder jurídico sobre sua
vida, e nesse sentido justifica-se a dominação de alguns sujeitos sobre outros no viés do poder
econômico. A definição mais aplicada à escravidão é um sistema que beneficia uma classe dominante
com a exploração da força de trabalho de uma classe subordinada, que se renova de acordo com as
necessidades, seja por perpetuação natural ou comércio. Ainda para Silva e Silva (2012), para
entender a escravidão em seu contexto e em suas especificidades, é preciso entender as relações
sociais, as resistências dos/as escravos/as, assim como, os conflitos que permeavam essas relações
nessa instituição.
No Brasil, a escravidão tem inicio paralelamente a colonização dos portugueses em nosso
território e se estendeu por quase três séculos. Com a carência de mão de obra para a exploração das
riquezas aqui encontradas, os colonizadores fizeram primeiro uso dos indígenas nessa condição, e,
posteriormente, houve uma inserção dos povos africanos escravizados que foram trazidos para cá,
suprindo a necessidade crescente de trabalhadores nas lavouras de cana de açúcar no Nordeste,
também na mineração e produção cafeeira no Sudeste em períodos seguintes, entre outras inúmeras
atividades em que o trabalho escravo foi utilizado. Tais afirmações são bem conhecidas na história
nacional, no que tange as regiões de ocupação mais antigas. Existe, porém, uma falsa ideia de que o
sul do país não contou com a mão de obra escrava. Este equívoco se deve ao fato de que o processo
de colonização e ocupação da nossa região ter se estabelecido em moldes distintos das regiões acima
citadas.
O censo datado de 1872 na Província de Santa Catarina indicava 14.984 escravos/as de origem
africana, o que correspondia a 9,37% da população (PEDRO, 1988), dados que demonstram que,
longe de ser desprezível, a existência de escravos/as era bem significativa, levando em consideração
a precariedade das fontes disponíveis para se chegar a este percentual, ou seja, este contingente
populacional negro pode ser bem mais amplo do que se tem conhecimento oficial.

969
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Diante dessa problemática se debruçou o historiador Antônio Cézar Sprícigo em seu livro
“Sujeitos esquecidos, sujeitos lembrados: Escravidão na Freguesia do Araranguá no século XIX”
fruto de um estudo pioneiro numa documentação até então inexplorada na Freguesia Nossa Senhora
Mãe dos Homens do Araranguá, no final do século XIX. A Freguesia que fora doada como sesmaria,
se estendia territorialmente no sul do estado de Santa Catarina, desde o Rio Urussanga ao norte, limite
do município de Tubarão, até o Rio Mampituba, na fronteira com o Rio Grande do Sul.
O autor analisou desde processos criminais, registros de batismos, casamentos e óbitos e 133
inventários post-mortem registrados entre 1840 e 1900, que continham aproximadamente 430
propriedades utilizadas nas atividades pecuária, agrícola e extração de madeira, dentre outras. Destes
documentos, encontrou a posse de escravos em 31% dos casos. Dados populacionais encontrados de
1866, também apontam que 25% das pessoas que aqui viviam na Freguesia do Araranguá eram
escravas. De acordo com Sprícigo:

A presença de imigrantes europeus (principalmente alemães e italianos) foi de certa forma


responsável, juntamente com o discurso historiográfico produzido, pela constante afirmação
da quase total ausência de escravos negros no Sul do Estado de Santa Catarina. Afirmar que
a presença negra em Santa Catarina ocorreu desde o inicio de seu povoamento é muito
diferente do que se afirmar que na Bahia a presença negra data dos primórdios da
colonização. Essa ideia gera desconfiança, pois o Estado de Santa Catarina é marcadamente
reconhecido como terra de alemães e italianos. Além disso, o discurso produzido em terras
catarinenses sempre foi de origem branca que vende a imagem de ‘mini Europa brasileira’.
(SPRÍCIGO, 2007, p. 113).

Portanto, não se justifica com números a maior ou menor participação do nosso estado no
sistema de exploração da mão de obra escrava. Todavia, as características que mais contribuíram para
diferenciar Santa Catarina dos demais estados no quesito numérico são o fato de as propriedades
serem menores, onde os donos, em alguns casos, até trabalhavam juntamente com os escravos que
possuíam em suas atividades, bem como as habitações de pouco valor, e geralmente, a única da
família inventariada, que sustentam a tese de não existência de senzalas no estilo pavilhão na
Freguesia do Araranguá, habitações estas facilmente encontradas em alguns estados do nordeste e
sudeste. A média de cinco escravos por propriedade na Freguesia era verdadeiramente menor se
comparada a outras regiões, contudo, os inventários citam, por exemplo, Marcelino Teixeira de
Souza, que tinha posse de 31 escravos. Mais que uma mera exceção à regra, este caso demonstra a
instituição do sistema escravagista no estado, não podendo de forma alguma cair às margens da
insignificância, mesmo que tenha ocorrido com menor intensidade.
970
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É importante ressaltar que a invisibilidade desses sujeitos escravizados e em grande medida
das mulheres nessa situação na história catarinense não dá a eles e a elas os créditos de participação
efetiva na formação de Santa Catarina, tanto econômica e socialmente, quanto na miscigenação da
população e na cultura local, reforçando o discurso de que o catarinense tem sua identidade arrimada
na colonização europeia. Caracterizar o contingente populacional do estado de forma tão homogênea
torna-se bastante excludente se considerarmos a diversidade de povos que já habitavam a região e
outras populações que aqui se instalaram além dos alemães e italianos.
Se à população negra em geral é dada pouca visibilidade, as mulheres nesse contexto tem sua
existência ainda mais encoberta e invisibilizada. Conforme Bell Hooks (2019) que analisa o caso da
escravidão estadunidense, “o sexismo era parte integrante da ordem social e política trazida de terras
europeias por colonizadores brancos” (HOOKS, 2019, p. 37), pois para a mulher escravizada havia
ainda esse forte peso do sexismo, que reforçava seu status de mulher e escrava em um sistema
escravista e patriarcal.

Em análise retrospectiva da experiência da mulher negra escravizada, sexismo revela-se tão


forte quanto o racismo como força opressiva na vida das mulheres negras, sexismo
institucionalizado – ou seja, patriarcado [...] (HOOKS, 2019, p. 37).

Conforme a análise da autora, o fato de serem escravas mulheres, com frequência as delegava
a um lugar ainda mais subalterno nesse sistema já tão violento, como “um lembrete de sua
vulnerabilidade sexual, o estupro era um método comum de tortura usado pelos escravizadores”
(HOOKS, 2019, p. 41) o que demonstra um forte sexismo alinhado a diversas formas de violência
baseadas no gênero.
No sistema de trabalho escravo, preferencialmente, os homens eram utilizados nos trabalhos
de lavoura, pois as tarefas eram mais árduas e exigiam maior força física, mas isso não limitava as
mulheres exclusivamente ao serviço doméstico, o que para Hooks (2019) demonstra outras diversas
formas de exploração do trabalho escravizado feminino.

A área que com mais clareza revela a diferença entre o status do homem escravizado e o da
mulher escravizada é o trabalho. O homem negro escravizado foi primordialmente explorado
como trabalhador do campo; a mulher negra foi explorada como trabalhadora do campo, em
atividades domésticas, como reprodutora e como objeto para o assédio sexual perpetrado pelo
homem branco. (HOOKS, 2019, p. 47).

971
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mesmo o tráfico negreiro sendo em maior quantidade de homens, com o passar do tempo, a
reprodução natural e a inserção do trabalho feminino em toda e qualquer função, foi igualando
numericamente a população e os preços para a obtenção de escravos de ambos os sexos no Brasil. No
caso catarinense, as mulheres trabalharam na exploração baleeira e no comercio em geral na região
da ilha, porém na Freguesia, não havendo comércio na época, as atividades eram mais localizadas no
âmbito rural.
Nas fontes examinadas por Sprícigo (2007), a mão de obra feminina era empregada como
lavadeiras, cozinheiras e também roceiras, como no registro de 1873, entre os bens inventariados de
Manoel Pereira da Rocha, a presença de cinco escravos, destes três homens e duas mulheres, todos
atribuídos ao trabalho de lavradores. Já nos registros de Ludovina Roza de Jesus, em 1880, havia oito
escravos, seis homens como lavradores e duas mulheres como costureiras. Outro fator que fez o
trabalho das mulheres nivelar-se em importância ao dos homens eram os ofícios por elas
desempenhados, como costureiras e tecedeiras, habilidades de grande valia aos proprietários, já que
não se fazia indispensável importar tecidos e vestuário para os escravos e seus senhores, além dos
objetos de palha para o uso doméstico e na lida das lavouras, fabricados artesanalmente. A compra
de tais produtos era descomedidamente cara, pela demanda e pelo transporte necessário para chegar
ao consumidor.
Desta feita, Sprícigo (2007) expõe a existência de uma escrava por nome Bibiana e sua filha
Engrácia, que pertenceram a Manoel Pereira Mello, que residiu nos Conventos. Relata-se dela muita
aptidão, e além da filha ser sua auxiliar (e provavelmente sucessora no trabalho), o filho Brígido
também tinha o ofício de sapateiro, o que lhe permitiu comprar sua liberdade aos 17 anos de idade,
por 800 mil réis. Vê-se nas entrelinhas deste caso a probabilidade de haver existido certa hierarquia
entre os escravos devido a funções especificas, que poderiam dar-lhes certos privilégios, por assim
dizer.
A autora Maria Lúcia de Barros Mott em sua obra ”Submissão e Resistência: A mulher na luta
contra a escravidão” tem como cenário o Brasil colonial e busca demonstrar a participação feminina
na história brasileira, expondo ocorrências relacionadas às mulheres que foram silenciadas pela
historiografia tradicional, nas mais variadas posições sociais e temporais, desde mulheres
administradoras de capitanias hereditárias, participando das expedições bandeirantes (quer
acompanhando os maridos, quer sendo lideres de tais), até as formas mais sutis ou violentas de

972
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
resistência das escravas na luta por sobrevivência e liberdade, sobre o que ainda falaremos mais
adiante. Ela traz a tona essa questão, afirmando que as escravas domésticas apesar de serem mais
vigiadas e suscetíveis a sofrer violência sexual, tinham uma mais elevada qualidade de vida,
comparadas aos demais escravos.

Os privilégios usufruídos pelas escravas domésticas nas casas ricas foram mencionados por
vários autores: desfrutavam de melhor moradia [...], tinham acesso a uma alimentação
diferenciada, vestiam-se melhor (menos pela necessidade da escrava do que pelo reflexo do
status do seu senhor), aprendiam mais facilmente um ofício e até mesmo a ler e escrever (o
que era proibido). Tinham ainda chances de saber o que estava acontecendo fora dos limites
da casa, do engenho ou da fazenda, devido ao fato de ouvirem as conversas de seus senhores
e servirem os hóspedes e os visitantes, obtendo assim informações nada desprezíveis na hora
de comprar a alforria. (MOTT, 1988, p. 22).

No enfoque de Santa Catarina, o livro “História diversa: Africanos e afrodescendentes na ilha


de Santa Catarina”, alguns episódios reafirmam as relações diferenciadas para alguns escravos junto
aos seus senhores. A obra conta em seu primeiro capítulo de autoria de Beatriz Gallotti Mamigonian
e Vítor Hugo Bastos Cardoso a trajetória de Antonio e Joaquina, de origem atribuída a “Guiné”, que
foram os primeiros escravos comprados por Manuel Fernandes Lessa e sua esposa Maria Madalena,
por volta de 1790, em Desterro. O casal teve cinco filhos, nascidos a partir de 1794, três meninas por
nome Benedita, Genoveva e Maria, e dois meninos que receberam o nome de Francisco (pela ocasião
da morte de um deles, provavelmente ainda bebê) que nasceram em condição escrava, porém que
receberam a liberdade sendo ainda crianças, em 1805. Não se sabe ao certo sob que condições, tendo
em vista que os padrinhos de todas as crianças eram homens livres, que costumavam na época auxiliar
os pais na árdua tarefa de alforriar os afilhados, quando seus proprietários estipulavam um valor a
liberdade. Consta nos registros de batismo que a próxima filha do casal, Francisca, foi liberta no
recebimento do sacramento católico, em 1807, desta vez, pela vontade dos senhores. Os autores
expõem ainda que, em 1810, o casal Antonio e Joaquina exercia certa liderança sobre os 10 cativos
adultos que foram incorporados à propriedade de Lessa, organizando os trabalhos que caberiam para
cada qual, porém, só receberam a liberdade das mãos da viúva Maria Madalena da Silva, em 1811.
O capítulo sete da mesma obra, de autoria de Fabiane Poponigis, apresenta uma escrava
chamada Maria Mina, que teve seu registro de alforria concedido em 1860 por Luis de Santa Anna
Carpes, por oitocentos mil réis. Maria era quitandeira, consta que possuía habilidade em suas
negociações comerciais e trabalhava em um vão alugado na Praça do Mercado de Desterro. Cerca

973
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de 20 anos depois, Maria compra a liberdade de um sobrinho, Manoel, de 24 anos, por novecentos
mil réis, num acordo que estabelecia parcelas a serem quitadas posteriormente. Não sendo cumprido
o pagamento, cogitou-se não haver parentesco entre os dois e revelou a prática de ex-escravos
comprarem escravos para ensinarem seus ofícios, numa relação não muito clara, mas que mantém
uma dependência entre as partes. Os dois casos dão-nos um parecer favorável a uma mobilidade social
cerceada e difícil para os escravos e escravas, mas não impossível.
Embora a maciça maioria da população escravizada em Santa Catarina tenha passado a vida
toda nesta condição, não significa que pequenos ou grandes atos de resistência não tenha havido na
esfera da vida cotidiana. Desde a lentidão no trabalho, as fugas e até mesmo o suicídio eram armas
utilizadas para dar prejuízos aos senhores. No plantel do senhor de escravos Marcelino Teixeira de
Souza, domiciliado em Urussanga Velha, Sprícigo (2007) fez um levantamento de um total de 31
escravos. Nada de tão anormal a não ser pelo fato de que apenas 7 escravas deram a luz a 25 escravos,
dentre elas Quitéria, com 6 filhos, e Infância, que teve 10, dos quais 4 já haviam sido libertos em
1879, quando, em um processo judicial contra seu proprietário, tenta comprar sua liberdade por 400
mil réis. Uma das alegações defendidas pela escrava Infância é que havia dado muitos frutos de seu
trabalho e vida para seu proprietário, o que atribuía à maternidade das negras uma forma de lucro ao
seu dono. No caso das mulheres, os filhos poderiam ser peça de barganha, tanto quanto o aborto e o
infanticídio poderiam ser atos de rebeldia contra o sistema escravocrata.
Chamou a atenção do autor que, opostamente, a resistência de Marcelino em conceder a
liberdade a sua escrava Infância, o testamento de dona Joaquina Rosa de Jesus, especificou 4 mil réis
de herança para a preta Maria Conga. Também declara ter deixado em liberdade a escrava Simiana,
bem como um tear, uma panela de ferro e terras. O registro de casos tão diferenciados caracteriza o
sistema escravocrata mais flexível do que se imagina. As relações humanas entre escravas e seus
donos eram variantes e distinguiam-se entre si.

A conquista da liberdade era o objetivo maior a ser alcançado durante a vida. Requeria dos
escravos a elaboração de boas estratégias que resultassem nesse fim. Anos de cativeiro com
o auxílio a sua senhora, presença constante na ausência de familiares, lida ao trabalho
doméstico e da roça. Estratégias que lhe renderam a liberdade e a possibilidade de planejar o
momento certo de ter seus filhos, terra para começar a vida como pessoas livres, um tear e
uma panela. (SPRÍCIGO, 2007, p. 161).

A análise das fontes sobre o assunto aponta para dois caminhos inversamente opostos na
luta que estas mulheres se propunham pela liberdade. O primeiro, a tática de bons serviços
974
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
prestados, especialização através dos ofícios tão úteis aos proprietários, uma forma de aproximação
que poderia resultar em ganhos em dinheiro para as cativas e permitir assim a compra de sua alforria
ou um relacionamento mais favorável para sua libertação consentida. Maria Lúcia Mott afirma que
algumas cativas valiam-se inclusive da sexualidade. A sedução do senhor teria sido utilizada na luta
particular entre a senhora e a escrava, assim como para obter benefícios imediatos (MOTT, 1988).
O segundo caminho pra tal empreitada está no bojo da resistência não velada, aversão ao
cativeiro, à exploração sexual e ao trabalho forçado. A luta declarada pela liberdade que lhes fora
retirada, neste caso, se fazia de todas as maneiras que se possa imaginar. As mulheres cativas
praticavam o aborto e infanticídio frequentemente. Podemos elencar algumas razões: a gravidez
poderia ser consequência de um estupro; o risco que envolvia uma gravidez e parto na época; o
prejuízo que dariam ao senhor, não acrescentando uma peça ao seu plantel, principalmente após a Lei
Euzébio de Queiroz, de 1850, que proibia o tráfico negreiro, fazendo da reprodução dos escravos uma
alternativa para obter mais trabalhadores para suas propriedades; a questão da maternidade sem a
sustentação social, ou seja, trazer ao mundo uma criança que viveria nas mesmas condições que ela
não parecia apropriada, pelo contrário, poderia sentir que não permitiu a outro ser humano viver em
situação tão deplorável como a sua.
No mesmo viés, o suicídio se enquadra. A ideia de causar danos ao patrimônio de seu dono
aliada ao desejo de sair do cativeiro, fazia do ato de tirar a própria vida bastante tentador, ao ponto de
muitos o terem feito. Como também não eram raras as fugas, mesmo com o risco de serem capturadas
e castigadas se não obtivessem sucesso, não fazer o serviço doméstico de forma correta e até a
tentativa de envenenamento dos proprietários podem ser apontados como estratégias de resistência
ao sistema escravocrata que as explorava.
Outra especificidade que chama a atenção nos estudos de Sprícigo (2007) é o surgimento de
uma nova modalidade de resistência na Freguesia como uma forma de se livrar da situação e do status
de escravo ou escrava:

Quando encontrei alguns processos de arbitramento, que determinavam o valor a ser pago
pelo escravo pela compra de sua liberdade, me dei conta de que já era possível trazer do
passado os escravos, não apenas como números e elementos estatísticos, mas como agentes
históricos, que trabalhavam, sofriam, lutavam, resistiam e morriam, desfazendo a ideia de
que, pela menor quantidade de escravos, esses acontecimentos não fossem comuns a
Freguesia do Araranguá, ocorrendo apenas nas grandes áreas de escravidão no Brasil.
(SPRÍCIGO, 2007, p. 181).

975
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Como a lei de 1871 permite ao cativo comprar sua liberdade a despeito do interesse ou não de
seu senhor, os processos judiciais nesse desígnio aparecem. O autor cita vários personagens usando
de argumentos, suas relações sociais e os recursos financeiros angariados em toda uma vida de
trabalho buscando serem livres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode generalizar a situação de negras e negros cativos no Brasil, em Santa Catarina e
em específico na Freguesia do Araranguá como estática e uniforme. Ao contrário, cabe ao/a
historiador/a contextualizar com elementos de cunho social, cultural e econômico que cabiam à
condição escrava em cada uma destas esferas. E não se pode prestar menor importância aos feitios
de resistência a que estes sujeitos aderiram tentando conquistar nem que fossem pequenas liberdades,
porque embora o sistema escravocrata tenha seu conceito instituído como dominação de uns sobre
outros, as relações interpessoais entre estes sujeitos pode ter variações que jamais alcançaremos
somente com as fontes que temos a nossa disposição, sendo que toda a plenitude que rege a vida
cotidiana de sociedades do passado foge aos documentos oficiais. Contudo, a liberdade conferida
aos/as escravos/as pela Lei Áurea, em 1888, não impediu que reverberassem todas as privações dessa
população escravizada no Brasil no contorno de preconceito racial tão presente na
contemporaneidade.
Por essa razão, este trabalho buscou dar visibilidade e nomes a estas personagens, que
subordinadas a toda opressão, incluindo o peso do sexismo para as mulheres, inauguraram essa luta.
As medidas institucionais exercitadas no Brasil durante quase 300 anos de escravidão, podem ser
vistas na discriminação e violência de gênero, vivenciadas por mulheres negras nos dias atuais, pois
elas são a representação do “outro” perante a branquitude e a masculinidade, que se colocam em
posição superior e privilegiada diante delas. Para Hooks, em suma, a escravidão representou para as
mulheres vivências diferentes e com um peso de sofrimento ainda maior.

Apesar de isso de maneira alguma diminuir o sofrimento de homens negros escravizados e a


opressão contra eles, é óbvio que as duas forças, sexismo e racismo, intensificaram e
aumentaram os sofrimentos das mulheres negras e a opressão contra elas. (HOOKS, 2019, p.
47).

A dupla discriminação imposta decorre, inclusive, uma ideia da incapacidade intelectual,


haja vista que surpreende uma mulher ocupar cargos de liderança e destaque, porém, se esta

976
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulher for negra, essa atribuição é tida como ainda mais extraordinária. Aí se encontra mais força
para que estas mulheres saiam das sombras de uma sociedade machista, patriarcal e racista. As
estratégias podem se modificar, mas a resistência para que haja igualdade entre brancos, negros,
brancas e negras, precisa continuar até ser alcançada efetivamente na sociedade brasileira e
catarinense.

REFERÊNCIAS
ARAUJO, Anna B. Da Ética do Cuidado à Interseccionalidade: Caminhos e Desafios para a
Compreensão do Trabalho de Cuidado. In Dossiê Gênero Cuidado e Famílias. Mediações,
Londrina, V. 23 N. 3, P.43-69, DEZ. 2018.

HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? : mulheres negras e feminismo / bell hooks ; tradução
Bhuvi Libanio. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

KUAMOTO, F.; LOSNAK, C.J. A mulher retratada pelo Jornal Folha da Manhã – 1925-30. In
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Rio de Janeiro,
2015.

MAESTRI FILHO, Mário. A servidão negra. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti; VIDAL, Joseane Zimmermann (Orgs.). História Diversa:


Africanos e Afrodescendentes na ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2013.

MOTT, Maria Lucia de Barros. Submissão e Resistência: a mulher na luta contra a escravidão.
São Paulo: Contexto, 1988.

PEDRO, Joana Maria (Org.). Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa
Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In. Pedro, Joana, Grossi, Miriam
(orgs) – Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre, v.
20, 2, p. 71-99, jul/dez, 1995.

SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos / Kalina Vanderlei Silva, Maciel
Henrique Silva. – 2. Ed. – São Paulo: Contexto, 2006.

SPRÍCIGO, Antônio Cézar. Sujeitos Esquecidos, Sujeitos Lembrados: Entre fatos e números, a
escravidão registrada na Freguesia do Araranguá no século XIX. Caxias do Sul: Murialdo, 2007.

977
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A PANDEMIA DA COVID-19 TEM GÊNERO!

Jaqueline Carvalho Quadrado402


Bárbara Dutra Fonseca403
Eduardo Lima404
Ewerton da Silva Ferreira405

Resumo: Neste artigo empreende-se uma discussão sobre a violência contra as mulheres no Brasil, mormente, nos
primeiros meses do ano de 2020, a partir da pesquisa bibliográfica e documental, com o objetivo de destrinchar a situação
das mulheres em situação de violência no contexto pandêmico em curso. As determinações são rastreadas através de
dados estatísticos, relatórios e levantamentos divulgados por diversas agências: organismos internacionais, organizações
e movimentos e meios de comunicação. Apesar de se ter confirmado a multiplicação dos crimes em diversos pontos do
país, formalizar denúncia às autoridades policiais tem sido um obstáculo para as vítimas, em virtude das medidas de
quarentena ou isolamento social. Evidencia-se que violência contra a mulher não se resolve com o fim do isolamento,
mas com desconstrução da ‘masculinidade clássica’ e da desigualdade de gênero, além de políticas públicas sociais e de
renda.

Palavras chave: Violência doméstica; Pandemia; Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

A experiência de outros países tem mostrado que em tempos de isolamento social, os casos
de violência doméstica têm aumentado. Assim, para além dos riscos advindos da Covid-19, o Estado
brasileiro precisa estar preparado para mais este desafio que coloca em risco a vida das mulheres.
Segundo a ONU Mulheres o aumento dos riscos da violência doméstica, em contextos como
o atual, acontece devido ao aumento das tensões dentro de casa, já que mulheres em relacionamentos
abusivos e violentos em isolamento social ficam expostas ao seu abusador por longos períodos de
tempo, o que dificulta ligações telefônicas para disque-denúncias ou para a polícia, uma vez que o
abusador está sempre por perto.

402
Doutora em Sociologia. Docente no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, e nos Cursos de
Graduação em Ciências Sociais- Ciência Política e Serviço Social, na Universidade Federal do Pampa, Campus São
Borja/RS. Líder e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política/CNPq.
Jaquelinequadrado@unipampa.edu.br
403
Acadêmica do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa. Membra do GEEP- Grupo de
Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política/CNPq. Bolsista de iniciação científica do CNPq.
barbaradutraf@outlook.com
404
Acadêmico do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do GEEP – Grupo
de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política/CNPq. E-mail: elima2929@gmail.com
405
Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja/RS. Membro do GEEP
– Grupo de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política/CNPq. E-mail: ewertonferreira266@gmail.com

978
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A pandemia trouxe um cenário inédito para o mundo com o isolamento social, aumentando
os níveis de estresse e instabilidade econômica. Isso acabou se tornando gatilho para a violência, pois
os homens tendem a descontar suas frustrações nas companheiras e nas crianças. Assim, as mulheres
e as crianças vítimas de violência acabaram ficando confinadas com seus agressores em tempo
integral, o que caracterizou em um aumento da violência em todo o mundo.
Tempos recentes da política nacional ameaçam o esforço de diferentes estados e municípios
brasileiros, como a Emenda Constitucional no 95/2016 que, ao congelar os gastos públicos, colocou
em risco as políticas mais recentes, com orçamentos reduzidos e, por isso mesmo, ainda frágeis em
termos de organização e resultados efetivos.
Nesse cenário de fragilidade, materializam-se os efeitos da Covid-19, por exemplo, quando
optamos pelo isolamento social em casa. Opção que vem revelando desafios, sobretudo para as
mulheres e que tem pressionado as políticas públicas envolvidas no enfrentamento à violência contra
as mulheres. Além da violência que aumenta com a quarentena, o fato das pessoas estarem em casa
escancara a desigual economia do cuidado, em que a responsabilidade e sobrecarga do trabalho
doméstico e dos cuidados com doentes, criança e idosos são das mulheres. Nos momentos de
precariedade econômica e instabilidade social, a violência de gênero no ambiente doméstico ganha
contornos ainda mais dramáticos. A convivência forçada com agressores, por um lado, e a dificuldade
de acessar os serviços de resposta oficial, por outro, impulsionam o aumento da violência, em
especial, na sua face mais nefasta que é a violência física e sexual.
O reflexo disso está nos dados arrasadores que o Fórum Nacional de Segurança Pública
(FBSP) lançou em sua Nota Técnica: entre março de 2019 e março de 2020, no estado de São Paulo,
houve um aumento de 44,9% nas ligações para a política militar para denúncias de violência
doméstica. Os números de feminicídio também aumentaram: 100% no Acre, 400% no Mato Grosso,
300% no Rio Grande do Norte e 46,2% em São Paulo, quando comparados os dados de março de
2019 e março de 2020. Além disso, o Ligue 180, serviço para atendimento à vítima de violência
doméstica, teve aumento de 35,9% no atendimento em abril de 2020 em comparação com abril de
2019.
As epidemias da história sempre nos mostraram que existem impactos diferentes e também
pontos fortes em relação às mulheres. O grande aprendizado do que se viveu com o Ebola, entre
2014 e 2016, ou a Zika, entre 2015 e 2016, é que desde o início as respostas às epidemias

979
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
precisam incluir uma abordagem de gênero. Isto porque os impactos das epidemias acentuam as
desigualdades de gênero e o risco de violência aumenta em espaços de isolamento.
É preciso assegurar que o isolamento, ou a convivência domiciliar, não são a causa dessa
violência. Evidencia-se que violência contra a mulher não se resolve com o fim do isolamento, mas
com desconstrução da ‘masculinidade clássica’ e da desigualdade de gênero, além de políticas sociais
e de renda.
Neste contexto de pandemia da covid-19, grande parte dos países adotou medidas de
isolamento social com o intuito de diminuir a transmissão do vírus. Esse isolamento gerou um
aumento nos casos de violência existentes em nosso país, embora os dados sobre a violência ainda
sejam preliminares pois possuem pouco tempo de análise, não há dúvidas de que o número de casos
de violência aumentou, visto que os fatores de risco aumentaram.
Dado o exposto, o objetivo do presente estudo é contribuir para a compreensão da violência
doméstica em contexto pandêmico da covid-19, e questiona-se: em que medida a violência doméstica
contra as mulheres se acirrou no contexto pandêmico da covid-19, no ano de 2020? Para isso, o
referido estudo apresentará abordagem qualitativa e se utilizará de pesquisa bibliográfica a respeito
da violência doméstica contra as mulheres e das políticas públicas de proteção aos direitos das
mulheres, com base em pesquisas anteriores, e pesquisa documental decorrente da Nota Técnica do
FBSB que apresenta dados e análises sobre o tema.

O artigo está dividido em duas seções. Numa primeira seção, centra-se a discussão nos dados
estatísticos, a partir da Nota Técnica do FBSP (2020) sobre a violência doméstica durante a pandemia
covid-19. Na segunda seção, discorre-se sobre as “políticas públicas” para mulheres em 2020 no
contexto pandêmico da covid-19. Por fim, as considerações finais.

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA COVID-19

A ideia de que a nossa casa será sempre um lugar seguro e acolhedor não se aplica para todas
as mulheres brasileiras, pois muitas delas são obrigadas a viver durante anos no mesmo ambiente que
seu agressor, além de lidar com filhos, trabalho doméstico e emprego, elas também acabam sendo
forçadas a conviver com o medo e a insegurança que as tornam vulneráveis e acabam ocultando
sua voz.

980
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com o FBSP (2020), o número de denúncias de violência doméstica já era
preocupante no ano anterior, mas com a pandemia da covid-19 e as medidas adotadas de isolamento
social e apesar de ser a forma mais eficiente para combater o vírus, as vítimas de violência doméstica
se depararam com uma maior dificuldade em denunciar seus agressores.
Tal contexto vem se tornando realidade de muitas mulheres, devido à maior permanência ao
lado do seu agressor, em decorrência das medidas protetivas de isolamento. Como consequência em
estar obrigatoriamente no mesmo ambiente que seu agressor, torna-se um verdadeiro desafio prestar
queixa sem levantar suspeitas, fazendo com que os números de registros de março e abril deste ano
(2020) fossem 25,5% menor que o ano passado, o baixo número de denúncias não coincide com a
redução da violência doméstica, muitas mulheres continuam sendo vítimas de violências dentre suas
diversas expressões, porém segundo dados da polícia civil entre 2018 e 2020, um total de 252.373
mulheres foram vítimas de maus tratos domésticos e/ou familiares, sendo essas mulheres silenciadas.
As denúncias telefônicas aumentaram 27% em relação ao ano anterior, sendo na maioria das vezes a
única alternativa para pedir ajuda pois muitas delas se encontram em situações que não conseguem
sair de casa. Nesta pandemia, em relação ao ano anterior, o número de feminicídio teve um
crescimento de 22,2% (FBSP, 2020).
De acordo com a Nota Técnica do FBSP (2020) os registros de boletins de ocorrência
apresentaram queda nos primeiros dias de isolamento nos crimes que, em geral, exigem a presença
das vítimas. Vejamos, uma comparação entre março de 2019 e março de 2020, dos boletins de
ocorrência (BOs) de agressão decorrente de violência doméstica, em alguns estados brasileiros: CE
29,1%; MT 21,9 %; AC 28,6%; PA 13,2%; RS 9,4%.
Na tabela 1, abaixo, temos uma comparação dos feminicídios entre março de 2019 e março
de 2020, em alguns estados brasileiros:
Mar. 2019 Mar. 2020
AC 1 2 100%
MT 2 10 400%
RN 1 4 300%
SP 13 19 46,2%
Fonte: adaptado pelas autoras da Nota Técnica do FBSP, 2020.

O FBSP (2020) fez um comparativo entre os registros oficiais (delegacias de polícia,


Ministério Público) com o universo digital, e comprovou que: houve um aumento de 431% nos

981
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relatos de brigas entre vizinhos no Twitter entre fevereiro e abril de 2020; e constatou um universo
de 52 mil menções, contendo algum indicativo de briga entre casais vizinhos, realizadas entre
fevereiro e abril.
Também, a pesquisa do FBSP (2020) realizou uma filtragem com foco apenas nas mensagens
que indicavam a ocorrência de violência doméstica. Constatou que: 5.583 menções 25% do total
foram de relatos de brigas de casal, e que foram feitos às sextas-feiras; 53% dos relatos foram
publicados à noite ou na madrugada, entre 20h e 3h; 67% dos relatos foram de mulheres.
Para se ter uma ideia de quando os governos estaduais começaram a agir, o FBSP (2020) fez
o levantamento, e constatou que: no Acre a quarentena foi decretada em 16 de março de 2020; em
São Paulo a quarentena foi decretada pelo Governo do Estado no dia 24 de março, embora muitas
empresas tenham iniciado a suspensão de serviços presenciais e iniciado o trabalho remoto uma
semana antes, no dia 16; em Mato Grosso, foi iniciada no dia 23 de março, no Rio Grande do Sul em
24 de março; no Pará em 27 de março; e no Rio Grande do Norte o decreto é de 1º de abril.
Entre as inovações trazidas pela Lei 11.340 de 2016, mais conhecida como Lei Maria da Penha
lei, destaca-se a criação das medidas protetivas de urgência, isto é, tutelas de urgência autônomas que
podem ser concedidas por um juiz, independentemente da existência de inquérito policial ou processo
cível, para garantir a proteção física, psicológica, moral e sexual da vítima contra o seu agressor.

De acordo com os dados disponibilizados pelos Tribunais de Justiça de cada estado, o número
de solicitações e concessões de medidas protetivas de urgência apresentaram queda de,
respectivamente, 3,7% e 8,8% durante o mês de março no estado do Acre quando comparado
ao mesmo período do ano passado. Já em São Paulo, houve aumento de 2,1 % de solicitações
e de 31% de concessões das medidas, assim como no estado do Pará, que registrou aumento
de 8,9% de concessões (FBSP, 2020, p. 1).

Se observarmos, no entanto, os dados de abril, quando o regime de quarentena já está mais


consolidado nos três estados, verificamos que o número de MPUs concedidas cai substancialmente
em todos os territórios, assim como será verificado com os registros de boletim de ocorrência que
dependem da presença física das vítimas. Isto significa que as mulheres em situação de violência
estão com dificuldade de acessar os equipamentos públicos para registro das denúncias (FBSP, 2020).

Tabela 2: Registros de lesão corporal dolosa, decorrente de violência doméstica.


UF Março de 2019 Março de 2020 Variação (%)
Rio Grande do Sul 1.925 1.744 -9,4

982
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Rio Grande do Norte 287 385 34,1
Pará 607 527 -13,2
Mato Grosso 953 744 -21,9
Ceará 1.924 1.364 -29,1
Acre 14 10 -28,6

Fonte: adaptado pelas autoras da Nota Técnica do FBSP, 2020.

Os registros de ameaça a mulheres também apresentaram redução em três dos quatro estados
com dados disponíveis na comparação entre março de 2019 e março de 2020. O Pará foi o estado que
apresentou maior redução: 27,9%. No Mato Grosso e no Rio Grande do Sul a redução foi de 21,3%
e 22,5%, respectivamente. No Rio Grande do Norte, estado que apresentou crescimento em todos os
registros de violência contra a mulher, os registros de ameaça não foram exceção: aumentaram 54,3%.
Refletindo a partir destes dados, é sempre necessário ratificar que o problema das violências
contra mulheres não pode ser ignorado ou deixado em segundo plano em nenhum momento da
história, sobretudo agora, que vivemos em isolamento social por causa dessa pandemia mundial.
Assim como a covid-19, as violências contra mulheres no Brasil configuram-se como grave
problema social e de saúde pública. As Ciências Sociais e Humanas têm há muito chamado atenção
para o fato de que esse debate precisa ultrapassar sempre as fronteiras do biológico e do político. É
mais do que urgente continuarmos produzindo conhecimento, apontando com dados as interfaces dos
problemas sociais e afetando os cenários que estão postos para a humanidade.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES EM 2020 NO CONTEXTO PANDÊMICO


DA COVID-19

A indagação inicial desta seção, é como o Brasil vem tratando a violência doméstica contra
as mulheres, no contexto pandêmico do covid-19, em 2020?
O governo brasileiro começou a se preparar para o enfrentamento do crescimento da violência
doméstica, quando os casos já estavam preocupantes e exigiam uma resposta imediata. A Ministra
Damares anunciou no dia 02.04.2020 o lançamento de novos canais de atendimento onde as
denúncias de violência doméstica, e também de outras violações de direitos humanos podem ser
realizadas, o novo aplicativo foi intitulado Direitos Humanos BR e se encontra disponível
segundo o site do Ministério, para os sistemas Android e IOS. Além disso, foi realizado
983
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
investimento público para reforço de pessoal e ampliação do horário de atendimento dos telefones
emergenciais. Foram lançadas linhas de atendimento por WhatsApp para assessoria e proteção da
mulher 24 horas por dia e sete dias por semana.
O Ministério ainda recomendou que os Organismos de Políticas para as Mulheres não
paralisassem os atendimentos. Foi enviado a todos os Organismos Governamentais de Políticas para
Mulheres no dia 26 de março de 2020, o OFÍCIO-CIRCULAR Nº 1/2020/DEV/SNPM/MMFDH, o
qual recomenda, dentre outras medidas, a implementação de comitês de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres no contexto da COVID-19 e a realização de campanhas sobre a importância da
denúncia nos casos de violência doméstica.
Diferente dos países vizinhos – Uruguai, Chile, Colômbia Argentina, que decretaram o serviço
de atendimento à mulher como serviço essencial para que não ocorresse paralisação ou redução dos
serviços, o Brasil demorou a decretar como serviço essencial. A recomendação por meio de ofício e
os serviços de telefonia pode ter pouco efeito frente ao desafio que se coloca, em distintos contextos
e particularidades.
Por outro lado, o que se observou é que os governos locais agiram antecipadamente e por
iniciativa própria às recomendações do governo federal brasileiro. Outros canais se anteciparam,
como a imprensa que vem noticiando iniciativas importantes dos Organismos de Políticas para as
Mulheres estaduais e municipais, e também de Polícias, Tribunais de Justiça, Defensorias e Ministério
Público para o enfrentamento do aumento de violência doméstica durante a pandemia do Coronavírus.
A Secretaria da Mulher do Distrito Federal lançou no final de março a campanha “Mulher,
você não está só”. Durante a quarentena os casos que já vinham sendo atendidos de agressão
continuarão a ser acompanhados por meio de teleatendimentos, foram disponibilizados números de
telefone para denúncias e atendimentos, e para os casos mais graves, continuará havendo atendimento
presencial nos Centros Especializados de Atendimento às Mulheres, mas em horário reduzido.
Segundo site da Secretaria de Segurança Pública do DF, a PM/DF segue com o serviço de
atendimento às demandas de mulheres vítimas de violência doméstica por meio do Policiamento de
Prevenção Orientada à Violência Doméstica Familiar (Provid). Foram adotadas algumas alterações
para prevenir o contágio do coronavírus, agora os policiais são orientados a fazer um contato
telefônico inicial e, caso o atendimento presencial seja necessário, é realizado, preferencialmente,
na parte de fora das residências.

984
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na Bahia, o Tribunal de Justiça criou a campanha “Quarentena Sim! Violência Não”
informando sobre a violência contra as mulheres e os canais de atendimento disponíveis O Ministério
Público de Pernambuco, por meio do Núcleo de Apoio à Mulher lançou a ação “Mulher, você não
está sozinha” que atua na veiculação de peças nas redes sociais e na imprensa informando sobre os
canais de denúncia. Já em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública ampliou o serviço online por
conta da pandemia e passou a registrar por meio eletrônico casos de violência doméstica.
Em Recife, a prefeitura lançou a campanha “Mulher, ficar em casa não quer dizer ficar calada”
que também divulga os canais de recebimento de denúncias nos casos de violência doméstica e os
serviços de apoio às vítimas seguem funcionando normalmente.
O recorrente desmonte institucional e corte orçamentário que o órgão federal responsável pela
articulação das políticas para as mulheres vem sofrendo desde 2015 dificulta as respostas necessárias
para enfrentar a agudização dos casos de violência contra as mulheres no Brasil no contexto da
pandemia de Covid-19.
Diante dessa escalada da violência, as parlamentares da Bancada Feminina se mobilizaram
para apresentar uma redação que conseguisse trazer importantes instrumentos enfrentamento à
violência contra a mulher, neste período de pandemia, resultando na Lei 14.022/2020. A nova lei
estabelece que os serviços de atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar,
a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência são considerados como
serviços públicos e atividades essenciais, fator que impacta diretamente na continuidade desta
prestação mesmo em períodos de isolamento social determinado pelos gestores. A lei ainda estabelece
que não haverá suspensão para prazos processuais, assim como serão mantidas a decisão acerca das
matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas que tenham relação com atos
de violência doméstica e familiar cometidos contra mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas
e pessoas com deficiência.
Outro impacto direto desta nova lei é a prorrogação automática das medidas protetivas
decretadas, possibilitando à vítima, em período de pandemia e com atendimento dos órgãos públicos
muitas vezes não presencial, a garantia da sua segurança, haja vista que o descumprimento da medida
protetiva por parte do agressor constitui crime específico, no caso de violência contra a
mulher - artigo 24-A, da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (LEI MARIA DA PENHA), ou
descumprimento de ordem judicial, para os demais casos. Essa prorrogação da medida protetiva

985
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em vigência perdurará durante a vigência da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, ou da declaração
de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional.
Outro aspecto importante e inovador é sobre as medidas protetivas. O documento apresenta
a possibilidade da solicitação e de deferimento, que poderão ser feitos de forma remota (online),
garantindo à vítima a rapidez necessária para enfrentar a violência doméstica e familiar e também
observando os cuidados em evitar a circulação durante o período de isolamento. Assim para o registro
de ocorrência, é permitido que ele seja feito online. Ademais, o próprio deferimento de medida
protetiva pode se dar antes do registro da ocorrência, alterando a sistemática que consta na Lei Maria
da Penha, mas assegurando que as mulheres sejam atendidas com agilidade que o período e a situação
pedem.
Para mais, a lei obriga também o poder público a manter o atendimento presencial para as
vítimas de violência em diversos crimes, como feminicídio, estupro, lesão corporal de natureza grave
e gravíssima, entre outros, além dos órgãos de segurança pública disponibilizarem canais de
comunicação que garantam interação simultânea, inclusive com possibilidade de compartilhamento
de documentos, desde que gratuitos e passíveis de utilização em dispositivos eletrônicos. Isso porque,
por mais que saibamos da importância em se manter o isolamento social, sabemos também da
importância em ouvir a vítima e que nem todas conseguem fazer a denúncia estando em casa, ao lado
do agressor, pois encontram-se em constante vigilância. Além disso, antes sem prazo para tratamento
de denúncias recebidas, hoje o Ligue 180 terá o prazo máximo de 48 horas para envio aos órgãos
competentes, salvo impedimento técnico.
As medidas adotadas pelo governo, via documental, são importantes, mas por outro lado, não
se pode esquecer que para a efetivação dessas leis, ofícios, portarias, decretos a rede de atendimento
tem que estar funcionando adequadamente, com recursos financeiros e humanos. A rede de
atendimento está prejudicada não apenas em São Paulo, mas em todo o país, tal como avaliou a
Articulação de Mulheres Brasileiras, AMB, destacando a importância dessas redes:

Para a efetiva aplicação da lei Maria da Penha e proteção das mulheres é preciso existir uma
rede de serviços ampla, articulada, bem equipada, com profissionais qualificados e que
tenham compreensão de que a violência de gênero tem características e aspectos muito
particulares, que requerem uma intervenção especializada. Mas o que temos visto são
serviços sucateados, com profissionais atuando em situação de precariedade, sem
estrutura e sem suporte para uma intervenção que gere acolhimento e dignidade às
mulheres.

986
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No último ano, a Rede de Serviços de Atendimento à Mulheres em Situação de Violência
diminuiu em todo o país, concentrando-se cada vez mais nas capitais e nos serviços da
Segurança Pública e da Justiça. Delegacias e Juizados não irão, sozinhos, modificar os
padrões de relacionamento entre homens e mulheres. Desde o golpe, constatamos que cada
vez mais são reduzidos os recursos destinados aos programas nacionais e aos repasses aos
governos estaduais e prefeituras. É preciso reafirmar e reforçar a importância dos Centros
Especializados de Atendimento às Mulheres como espaços de referência para o trabalho
continuado junto às mulheres, em paralelo às intervenções na área de Saúde, Justiça e
Segurança (ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS, 2017, p. 1).

É fato que, as Casas da Mulher Brasileira estão funcionando pela metade, como no caso de
Campo Grande, ou totalmente paralisadas, ou mesmo nunca inauguradas, tal qual a de São Paulo.
Além disso, outros serviços de fundamental importância para os programas de enfrentamento da
violência contra mulheres no país encontram-se sucateados (ZURUTUZA E LEITE, 2016). Esse é o
caso do Ligue180. Apesar da imensa demanda por esse serviço um aumento de 52% de atendimentos
de 2015 para 2016 a Central de Atendimento à Mulher teve seu orçamento cortado em 2017 e nenhum
recurso destinado para 2018, ficando apenas com restos a pagar (MENEZES, 2018).

É o caso, também nas Unidades Móveis, constituídas por ônibus e barcos para atendimento a
mulheres em situação de violência no campo e na floresta, estão paradas, enferrujando, os centros de
referência e as casas abrigo fechando, os serviços de atendimento a mulheres nas fronteiras secas
sendo desativados, isto é, o Programa Mulher Viver Sem Violência está sendo amplamente
prejudicado. Conforme explicitou Joana Chagas, Gerente de Projetos da ONU Mulheres no Brasil,
por ocasião de sua participação em evento sobre Violência de Gênero realizado em Campo Grande
pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul: O Brasil de 2018 enfrenta a insuficiência de
investimentos financeiros para a implementação de leis e políticas substantivas de enfrentamento à
violência contra as mulheres (AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO, 2018).
Há de se destacar, que além do descaso, opera no sucateamento e abandono de diferentes
agências e órgãos da rede de atendimento, uma visão policialesca e conservadora de como se deve
lidar com a questão da violência de gênero contra mulheres. A exemplo, foi anunciado um plano
federal de combate à violência que prevê [...] o pagamento de diárias a PMs e policiais da Força
Nacional de Segurança que atuem, em dias de folga, em regiões com altos índices de violência
doméstica (MELO, 2016).

987
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
E para completar a visão do Governo Federal de que o enfrentamento da violência de gênero
é um caso de polícia, junta-se a do Judiciário de que a Lei Maria da Penha tem por objetivo defender
a família, ao invés das mulheres. A exemplo da determinação da Ministra Carmen Lúcia do Supremo
Tribunal Federal, que transformou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres,
instituídos pela Lei Maria da Penha, em Juizados da Paz em Casa. Como ressalta a AMB:

Essa tentativa pode parecer interessante numa visão inicial, mas ao analisarmos o projeto
constatamos que é mais uma tentativa de silenciaras mulheres, justamente quando tentamos
nomear e dar voz às nossas dores e sofrimentos. Enquanto estivermos sofrendo violência
doméstica e familiar, não teremos paz em casa e nem nas ruas (ARTICULAÇÃO DE
MULHERES BRASILEIRAS, 2017, p.1).

Espera-se que diante um cenário de duplo risco à vida das mulheres, o Governo Federal lidere
os esforços de enfrentamento à violência contra as mulheres e apresente não somente ações efetivas
e de rápida implementação para o momento como também um plano de abordagem integral com
ações de prevenção, previstas da Lei Maria da Penha.

Conclui-se a seção com outra indagação: cadê as políticas públicas, duramente conquistadas
pelos movimentos de mulheres e movimentos feministas? Foram solapadas por cortes em
investimentos públicos, por práticas de um governo misógino, sexista, conservador, familista,
religioso e tantas outras aberrações que não cabem em um estado democrático de direito. O que se
percebe atualmente, é que não se tem políticas públicas de fato, e sim um amontoado de medidas,
decretos, que tem prazo de validade: enquanto durar a pandemia da covid-19!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, resta patente que é necessário adotarmos um olhar de gênero para
as respostas à pandemia da covid-19, não apenas individual, mas também institucional. Sinalizamos
algumas ações no plano do agora para que possamos, de modo imediato: Levantar dados com este
recorte que nos permitam conhecer a realidade das mulheres nos contextos de risco; assegurar atenção
das necessidades imediatas das mulheres que trabalham no setor médico-sanitário; ter em conta a
diversidade e abordar as necessidades das mulheres nas diferentes funções; assegurar a continuidade
dos serviços essenciais para responder à violência contra mulheres e meninas.

988
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Além disto, no plano futuro, de modo mediato, importante pensar no legado que fica refletindo
estratégias específicas de desenvolvimento e recuperação econômica das mulheres, considerando
programas de transferência financeira; além da retomada integral das políticas públicas para
mulheres, duramente conquistadas.
Todos os Estados devem direcionar esforços para conter a ameaça da Covid-19, mas não se
deve esquecer as mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. A fim de proteger o direito a
uma vida livre de violência, os governos devem encontrar soluções de políticas públicas para apoiar
mulheres e crianças nesse momento de extraordinária tensão social.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. ONU diz que falta investimento para implementar leis contra
violência de gênero no Brasil, 2018.

ARDAILLON, D. E GRIN DEBERT, G.. Quando a vítima é mulher: análise de julgamentos de


crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasil. Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
Brasília, 1987.

ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS (AMB). Livres e Vivas nós Queremos - Não


à Paz que nos oprime! 2017.

BRASIL. Ministério da Mulher, família e Direitos Humanos. Disponível em:


https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres Acesso em 18/09/2020.
BANDEIRA, Lourdes Maria e de Almeida, Tânia Mara. Vinte anos da Convenção de Belém do Pará
e a Lei Maria da Penha. Estudos Feministas, 2015, 23(2), p. 501-517.

BARSTED, Leila Linhares. O Feminismo e o enfrentamento da violência contra as mulheres no


Brasil. In: Sardenberg, C. e Tavares, M., editores. Violência de Gênero Contra Mulheres: suas
diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento, p.17-40. EDUFBA, Salvador
de Bahia, 2016.

BARSTED, Leila Linhares. O avanço legislativo no enfrentamento da violência contra as mulheres.


In Libardoni, M., editor, Voicing Demands Feminist Activism in Transitional Contexts. AGENDE,
Brasília, 2006.

BARSTED, Leila Linhares. O Feminismo e o enfrentamento da violência contra as mulheres no


Brasil. In Sardenberg, C. e Tavares, M., editores, Violência de Gênero Contra Mulheres: suas
diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento, p. 17-40. EDUFBA,
Salvador de Bahia, 2016.

989
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BLAY, Eva. (2003). Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos avançados, 2003,
17(49), p.87-98.

BLAY, Eva. Assassinato de mulheres e direitos humanos. Editora 34, São Paulo, 2008.

BONETTI, Aline, Pinheiro, Luana, e Ferreira, Pedro. Segurança pública no atendimento às mulheres:
uma análise a partir do Ligue 180. In: Sardenberg, C. e Tavares, M., editores, Violência de Gênero
Contra Mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento, p.145-
185. EDUFBA, Salvador de Bahia, 2016.

BRASIL. Câmara dos Deputados (2003). Constituição federal de 1988. http://www2.camara.


leg.br/legin/fed/lei/2003. Acesso em 13/08/2020.

DE CAMPOS, Carmen Hein. (2015). A CPMI da Violência contra a Mulher e a implementação da


Lei Maria da Penha. Estudos Feministas, 23(2), p.519-531, 2015.

DOS SANTOS, Ebe Campinha e Medeiros, Luciene. Lei Maria da Penha: onze anos de conquista e
muitos desafios. In: Stevens, C., Silva, E., Oliveira, S., e Zanello, V., editores, Relatos, Análises e
Ações no Enfrentamento da Violência Contra Mulheres. Technopolitik, Brasília, 2017.

FALCÃO, Virginia. Política de abrigamento - a casa abrigo na Bahia: história de um difícil


processo. Tesis doctoral, Universidade Federal da Bahia, 2008.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Nota Técnica: Violência


Doméstica durante a pandemia de covid-19. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-
19/ Acesso em 18/09/2020.

GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a
prática feminista. Paz e Terra, Rio de Janeiro,1993.
GROSSI, Maria Pillar. De Ângela Diniz a Daniela Perez: a trajetória da impunidade. Estudos
Feministas, 1(1), p,11-168, 1993.

LANA, Cecília. Lugar de Fala, Enquadramento e Valores no Caso Ângela Diniz. Anagrama, 3(4),
p.1-12, 2010.

MELO, D. (2016). No governo Temer, secretaria das mulheres ganha viés policial. Carta Capital,
2016.

BRASIL. Presidência da República. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
SAFFIOTI, H. I. B. (1994). Violência de gênero no brasil atual. Revista Estudos Feministas,
(Número Especial), p.443-460, 1994.

ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. Casas-abrigo: no enfrentamento da violência de


gênero. Veras, São Paulo, 2007.
990
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SANTOS, Cecília MacDowell. Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à
violência contra mulheres em São Paulo. Estudos Feministas, 23(2), p. 577-600, 2015.

SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da violência simbólica de gênero à violência sexual contra
mulheres: a lei anti-baixaria e o caso da Banda New Hit. In: Castro, A. M. e Machado, R. d. C. F.,
editores, Estudos feministas - mulheres e educação popular, p. 135-156. Liber Ars, São Paulo,
2018.

TAVARES, Márcia Santana. Roda de conversa entre mulheres: denúncias sobre a Lei Maria da
Penha e descrença na justiça. Estudos Feministas, 23(2), p.547-559, 2015.

991
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - PRÁTICAS
EDUCACIONAIS NA
CONTEMPORANEIDADE:
ALTERIDADES E SUAS
INTERSECCIONALIDADES
COORDENAÇÃO

Dra. Alinne de Lima Bonetti – UFSC


Dra. Fabiane Ferreira da Silva – UNIPAMPA
Suzana Cavalheiro de Jesus – UNIPAMPA

992
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PARA ALÉM DA TEORIA: EXPERIÊNCIAS EXTENSIONISTAS SOBRE GÊNERO E
ALTERIDADES
Marina dos Reis Marty406
Alinne de Lima Bonetti407
Fabiane Ferreira da Silva408

Resumo: Esta análise refletirá sobre um conjunto de atividades extensionistas produzidas e


desenvolvidas pelo Grupo Tuna: Gênero, Educação e Diferença, da Universidade Federal do Pampa
– UNIPAMPA, voltadas à divulgação científica das temáticas de gênero, a sua interseccionalidade
com marcadores sociais da diferença na produção de alteridades complexas e direitos sociais a partir
de uma perspectiva epistemológica feminista. As atividades foram realizadas em Uruguaiana-RS em
escolas, eventos científicos, praças, sendo elas “Trilhando os caminhos das mulheres brasileiras”, que
se trata de um jogo de tabuleiro com questões relativas ao tema gênero e suas interseccionalidades;
“Direitos das Mulheres: onde procurar ajuda?” que consiste em uma maquete que representa a rede
de serviços em Uruguaiana para apoio a mulheres em situação de violação de direitos, em que as
pessoas jogadoras devem associar serviço e função a partir da descrição apresentada no tabuleiro e
“Varal das Mulheres Superpoderosas”, criado com imagens de 10 mulheres, cujas trajetórias de vida
são de grande relevância nacional e regional. As pessoas participantes desta atividade devem
relacionar as imagens às suas biografias, conhecendo o “superpoder” de transformação de cada uma
delas. Entre os resultados obtidos com a aplicação das três atividades em diferentes cenários,
percebemos algumas recorrências de relatos de violação de direitos, desinformação sobre os mesmos,
bem como de impactos de padrões estéticos estigmatizantes, da vivência de violências de gênero e de
desigualdades. Frente aos resultados destacados, concluiu-se que as atividades extensionistas,
articuladas com as atividades de pesquisa e de ensino, revelaram-se de grande importância para o
contexto local, na medida em que devolveu à sociedade o conhecimento produzido na universidade,
contribuindo para a sua transformação e o seu desenvolvimento, a despeito dos renitentes padrões
religiosos e as convenções tradicionais de gênero produtores de desigualdades no contexto analisado.

Palavras-chave: Gênero; Direitos das Mulheres; Epistemologia feminista; Extensão.

REFERÊNCIAS
ALINNE BONETTI, de Lima, Gênero, poder e feminismos: as arapiracas pernambucanas e os
sentidos de gênero da política feminista. labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2011 - janvier / juin 2012 julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012. Disponível
em <https://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/aline.htm>.Acessado em 01 de dez. 2019.

406
Graduanda do curso de Licenciatura em Educação Física, pela Universidade Federal do Pampa, campus
Uruguaiana. E-mail: mreismarty@gmail.com
407
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, campus Florianópolis. E-mail: alinne.bonetti@gmail.com
408
Professora do curso de Licenciatura em Ciências da Natureza, pela Universidade Federal do Pampa, campus
Uruguaiana. E-mail: fabianeunipampa@gmail.com
993
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ALINNE BONETTI, de Lima e NATÁLIA FONTOURA. Convenções de gênero em transição no
Brasil? Uma análise sobre os dados da PNAD 2007. In CASTRO, J. A. e RIBEIRO, J.A. (orgs).
Situação social brasileira: 2007. Brasília: IPEA, 2009. p. 65-80. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livro_SituacaoSocialBrasileira_2007.pdf
>. Acessado em 01 de dez. 2019.

AVTAR BRAH. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), janeiro- junho de 2006:
p.329-376. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf. Acessado em 01 de dez.
2019.

HENRIETTA MOORE. A passion for difference - essays in anthropology and gender. Indiana:
Indiana University Press, 1994.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Disponível em:
<https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/uruguaiana/pesquisa/23/27652?detalhes=true>. Acesso em: set.
2018.

JOAN SCOTT. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Sociedade, Porto
Alegre, no 16, vol. 2, jul/dez 1990, pp.5-22.

NEUSA FIALHO, Nogueira. Jogos no Ensino de Química e Biologia. Curitiba: IBPEX, 2007.

VALÉRIA SILVA. Ensino, pesquisa e extensão: Uma análise das atividades desenvolvidas no
GPAM e suas contribuições para a formação acadêmica. Vitória, novembro de 2011. Disponível em:
<https://docplayer.com.br/74229431-Ensino-pesquisa-e-extensao-uma-analise-das-atividades-
desenvolvidas-no-gpam-e-suas-contribuicoes-para-a-formacao-academica.html>. Acesso em
28/11/2019.

994
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“PARA UMA EDUCAÇÃO AFETIVO-SEXUAL”: ANÁLISE DA PROPOSTA DE
EDUCAÇÃO SEXUAL DO VATICANO409

Assis Felipe Menin410

Resumo: O presente trabalho procura analisar, em três momentos distintos, o entendimento de Educação Sexual da Igreja
Católica. Primeiramente, o entendimento do Vaticano por Educação Sexual como sendo prioritário da família, portanto,
normalizante; em segundo, o que denominam de “Ideologia de Gênero”, envolvendo Estudos de Gênero e Direitos
Sexuais e reprodutivos; e, por fim, a sua proposta de Educação Afetiva Sexual, lançada pelo Pontifício Conselho para a
Família em 2016. Com o avanço das pautas de gênero, diversidade sexual e direitos humanos nas escolas, em nível global,
e com o fantasma criado pela própria Igreja Católica denominado de “Ideologia de Gênero”, foi lançada uma proposta
para pais, professores(as) e catequistas destinada aos(às) adolescentes, sobre Educação Afetivo-Sexual. O curso é formado
por várias unidades explicativas tanto para educadores(as) quanto para jovens, são seis no total, sendo que cada início de
unidade possui uma breve explicação do tema que será tratado no módulo. O objetivo do curso do Vaticano é sobretudo
pautar e procurar definir a identidade sexual a partir do sexo biológico, de um binarismo naturalizado de gênero e
explicitando que a Educação Sexual é um dever primário da família e que foi reafirmado ao longo do final do século XX
e, sobretudo, deste século XXI, como procuraremos demonstrar. A categoria afetividade é utilizada como um método na
construção de uma complementaridade entre homens e mulheres, logo possui o casamento e a heterossexualidade como
ideais, ao mesmo tempo em que procura descrever sentimentos e reações próprios de cada gênero como sendo naturais,
essenciais do masculino e feminino.

Palavras-Chave: sexualidade; complementaridade; educação; heterossexualidade; Vaticano.

“HOMEM E MULHER OS CRIOU”.


Congregação para a Educação Católica (2019).

INTRODUÇÃO
A citação acima é título principal do documento elaborado pelo Vaticano, no ano de 2019,
para se abordar as questões de Educação Sexual e Sexualidade na Educação Básica. Intitulado
“Homem e Mulher os Criou”: para uma via de diálogo sobre a questão de gender na Educação411,
tal documento defende a visão cristã da Educação e mais especificamente da sexualidade. Preocupado
com o avanço das pautas de Gênero e Sexualidade nas escolas, o Vaticano levanta sua bandeira para
uma educação baseada na antropologia cristã, reafirmando os pressupostos naturais que constituem a
família, constituída pelo homem e pela mulher para a reprodução da espécie humana. Essa concepção
de família também pode ser lida no texto a partir de uma metáfora ecológica, ou seja, a verdadeira

409
O texto apresentado é parte da análise que desenvolvo na pesquisa de doutorado.
410
Doutorando em Ciências Humanas na área de Estudos de Gênero pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). E-mail: a.f.menin@gmail.com
411
O documento pode ser acessado na íntegra no seguinte endereço:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccatheduc/documents/rc_con_ccatheduc_doc_20190202_ma
schio-e-femmina_po.pdf. Acesso em: 9 ago. 2020.
995
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
natureza humana precisa ser ‘restaurada’. Essa ecologia humana, em alusão a meio ambiente, só pode
ser preservada quando a complementaridade entre homem e mulher se estabelece, povoando a terra e
as ‘florestas’.
O documento estabelece ainda maneiras, formas e diálogos possíveis de se desenvolver essa
questão nas escolas e com os profissionais que nelas trabalham, alertando para duas concepções de
gender412. A primeira é aquela que classifica o gênero como ideológico, quase como doutrinário, que
impõe à inocência das crianças sua visão nebulosa e duvidosa da sexualidade, uma visão diabólica
(CHARLOT, 2018). A segunda concepção de gender é aquela que o Vaticano procura defender, que,
diríamos, é a concepção de gênero do Vaticano, ou seja, aquela pautada na biologia, na concepção do
masculino e do feminino como naturais, o sexo e a biologia como definição de indivíduos. A
sexualidade, portanto, possui um caráter quase que exclusivamente reprodutivo. A ciência, que em
outros contextos e períodos históricos foi o calcanhar de Aquiles da Igreja Católica, agora passa a ser
a principal defesa de causas ‘antinaturais’ como a “Ideologia de Gênero”.
Procuraremos, neste texto, fazer uma breve genealogia da Educação Sexual da Igreja Católica,
a partir de uma descrição qualitativa das ideias gerais e centrais nos discursos presentes e documentos
emitidos pelo Vaticano, sobre Educação Sexual, do final do século XX até a construção do sintagma
da “Ideologia de Gênero” no início do século XXI. Pontua-se que não se efetuou uma análise
minuciosa de todos os documentos, mas daqueles em que os descritores “Educação Sexual” ou
“Educação Afetivo-Sexual” apareceram nos documentos. Por fim, focaremos na proposta de
“Educação Afetiva Sexual”, lançada pelo Pontifício Conselho para a Família do Vaticano em 2016,
que busca uma aceitação, também, dentro de escolas não confessionais.
Todos os documentos analisados estão disponíveis on-line no site oficial do Vaticano413, já a
proposta de curso para uma “Educação Afetivo-Sexual”414 encontra-se disponível no site Dicastério
para os Leigos, a Família e a Vida, este vinculado ao Vaticano.

412
O uso da palavra Gender pelo Vaticano se deve ao fato de que essa palavra é estrangeira, vem de fora, assim
como no processo de colonização, é o de fora, é o outro. A palavra foi descrita pela primeira vez por um psiquiatra
norte-americano, Robert Stoller (1968), que pensava que a identidade de Gênero era algo construído desde muito
cedo, porém, era limitado, pois um indivíduo poderia possuir múltiplas identidades de gênero que fugiam ao seu
sexo biológico. Para Stoller o gênero é múltiplo e plural e não unitário ou binarista.
413
O site pode ser consultado no link: http://www.vatican.va/content/vatican/pt.html. Acesso em: 4 ago. 2020.
414
Lançado pelo Pontifício Conselho para a Família e hospedado no site Dicastério para os Leigos, a Família e a
Vida, o projeto pode ser consultado nesse link: http://www.educazioneaffettiva.org/?lang=pt-pt. Acesso em: 4 ago.
2020.
996
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
VATICANO: DA EDUCAÇÃO SEXUAL À “IDEOLOGIA DE GÊNERO”

[...] A educação sexual, direito e dever fundamental dos pais, deve atuar-se sempre sob a sua
solícita guia, quer em casa quer nos centros educativos escolhidos e controlados por eles.
Neste sentido a Igreja reafirma a lei da subsidiariedade, que a escola deve observar quando
coopera na educação sexual, ao imbuir-se do mesmo espírito que anima os pais. Neste
contexto é absolutamente irrenunciável a educação para a castidade como virtude que
desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar e promover o
«significado nupcial» do corpo. Melhor, os pais cristãos reservarão uma particular atenção e
cuidado, discernindo os sinais da chamada de Deus, para a educação para a virgindade como
forma suprema daquele dom de si que constitui o sentido próprio da sexualidade humana.
[...] (Familiaris Consortis, Vaticano, Papa João Paulo II, 22 de nov. de 1981)415.

A citação acima faz parte da exortação apostólica anunciada em 1981 pelo papa João Paulo
II. Grande parte das preocupações que hoje se fazem presentes na Igreja Católica bem como temas
tratados nos cursos de Educação Afetivo-Sexual em escolas católicas e instituições particulares
estavam presentes nessa exortação. Assuntos como Educação para o autocontrole, castidade,
abstinência, aborto, bem como a ênfase da educação sexual prioritária dos pais, eram anunciados pelo
papa polonês. Porém, antes mesmo desse importante documento que redirecionou o pensamento da
Igreja Católica no mundo sobre o assunto, outros documentos já haviam sido publicados apresentando
sua preocupação com a Educação Sexual. Em 1965, o papa Paulo VI publicou o documento intitulado
“Gravissimum Educationis: Sobre a Educação Cristã”416, onde enfatiza, dentro da perspectiva da
Educação Cristã, que pais devem ser os primeiros a educar crianças e jovens em se tratando de
Educação Sexual, bem como sua obrigação em fazê-lo. Paulo VI ainda enfatiza que “Sejam formados
numa educação sexual positiva e prudente, à medida que vão crescendo”417.
Outro documento que reforça essa visão é o documento intitulado “Persona Humana:
Sobre alguns pontos de ética sexual”418 de 1975, que alertava sobre a homossexualidade e sobre a
educação sexual como sendo prioritária dos pais em primeiro lugar. As ideias do Vaticano sobre

415
Familiaris Consortio (s.d., on-line). Disponível em: https://w2.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_19811122_familiaris-consortio.html. Acesso em: 2 set. 2020.
416
Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_decl_19651028_gravissimum-educationis_po.html. Acesso em: 19 ago. 2020.
417
Idem.
418
Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19751229_persona-
humana_po.html. Acesso em: 12 ago. 2020.
997
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
homossexualidade ainda estavam muito pautadas nos preconceitos da época que ainda percebiam a
homossexualidade como desvio sexual. Para a Igreja Católica a homossexualidade era vista como
uma: “tendência [que] provém de uma educação falseada, de uma falta de evolução sexual
normal”419.
É no ano de 1983, no documento intitulado “Orientações Educativas sobre o amor humano:
linhas gerais para uma educação sexual”420, que a Educação Sexual aparece de forma enfática em
todo o texto. Nesse documento, além da preocupação com a homossexualidade, a apreensão da Igreja
Católica é para com temáticas caras presentes em sua história, como: masturbação, autoerotismo,
abstinência sexual. Nesse documento de 1983, a ciência é complementária à Educação Cristã, quando
pensada a Educação Sexual, segundo o documento “Uma educação sexual completa não pode ficar
só na informação científica”421. Como veremos, já neste século XXI, a ciência será uma aliada nos
discursos contra o que denominam de “Ideologia de Gênero”.
Em 1995, surge um termo novo para a Igreja Católica e que se tornará a palavra a ser
combatida neste século XXI: o termo ‘gênero’. Bem como haverá o combate ao que ele está
vinculado: Feministas e as sexualidades dissidentes. Em cima dessa palavra e de seus significados é
que o termo “Ideologia de Gênero” vai ser construído e ao mesmo tempo demonizado dentro dos
círculos católicos.
Podemos afirmar que na segunda metade do século XX uma nova preocupação da teologia
educacional cristã esteve presente para erradicar todos os ‘desregramentos’ e ações consideradas
‘anormais’ pela Igreja Católica. Atualmente, percebemos que a escola é um importante espaço de
disputa por parte da Igreja Católica, que no passado, sobretudo no início do século XX, possuía uma
considerável influência na educação escolar, especialmente na América Latina.

“IDEOLOGIA DE GÊNERO”: DO VATICANO PARA O MUNDO

419
Idem, grifo nosso.
420
Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccatheduc/documents/rc_con_ccatheduc_doc_19831101_sex
ual-education_po.html. Acesso em: 24 ago. 2020.
421
Idem.
998
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tanto Miskolci (2007) quanto Rubin (2003) nos mostram que em diferentes períodos da
história o pânico moral sexual foi utilizado para causar medo em relação às mudanças que ameaçavam
os valores da comunidade. Isso se deu com leis que proibiam desde a masturbação até o casamento
gay. Também nos mostra Cohen (1972) que o pânico moral pode provocar uma luta política, basta
vermos o macarthismo nos Estados Unidos ou até mesmo a “Ideologia de Gênero” no Brasil. O pânico
moral sexual criminaliza o gênero e sexualidades dissidentes.
As pautas de ação mais comuns dos criadores do pânico moral em torno da “Ideologia de
Gênero” é a educação. Na esteira desses autores, entendo o pânico moral sexual como um conjunto
de ações, políticas ou não, que incorporado a gênero e sexualidade pode apresentar uma ameaça
múltipla à manutenção da sociedade conservadora, bem como sua visão de mundo, à família e à
ordem das coisas.
Um número considerável de autores(as) — entre alguns(as) destes(as), Corrêa (2018),
Garbagnoli (2014), Guimarães (2020), Junqueira (2018) e Miskolci (2017; 2018) — tem feito a
genealogia da “ideologia do gênero”. Esses(as) autores(as) apontam três momentos desse estopim da
perseguição ao gênero: a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento no Rio de Janeiro em 1992, que se consolida com a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento do Cairo em 1994, mas de fato é na IV Conferência Mundial sobre a
Mulher de Pequim em 1995 (IV CMM) que se demarca essa conspiração em nível
global/transnacional e local contra a categoria gênero.
Trata-se de um contradiscurso criado para desafiar mobilizações internacionais em políticas
de gênero e sexualidade, promovido por uma variedade de setores que incluem Igrejas, políticos e
partidos conservadores e/ou de direita, extrema-direita, grupos nacionalistas, entre outros. As reações
às políticas que reconhecem as diferenças de gênero e de sexualidade dissidentes se iniciam com o
então Cardeal Joseph Ratzinger, em 1997, que critica o feminismo, especificamente aquele dos
direitos sexuais e reprodutivos, denominando-os de “radicais”.
Embora o termo “Ideologia de Gênero” tenha sido expressado explicitamente em 2007, os
significados da “Ideologia de Gênero” do Vaticano já estavam presentes nas linhas de documentos
anteriores, mais especificamente de 2004. Esse documento, do primeiro quinquênio deste século,

999
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
intitulado “Sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no Mundo”422, foi escrito pelo
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o então cardeal Joseph Ratzinger, e destinado aos
bispos da igreja. No texto, Ratzinger alerta para os perigos do gênero que em seu entendimento
pretende apagar as diferenças sexuais entre homens e mulheres e que:

Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher,
libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de facto por inspirar ideologias que
promovem, por exemplo, o questionamento da família, por sua índole natural biparental, ou
seja, composta de pai e de mãe, a equiparação da homossexualidade à heterossexualidade,
um novo modelo de sexualidade polimórfica.423

Como vimos, os ataques ao termo gênero já estavam presentes nos discursos e documentos
do vaticano desde pelo menos a Conferência do Cairo, em 1994. O que entra em ação agora é uma
tentativa de construir um léxico contraproducente, associando ideologia mais gênero como algo
negativo e que desconstruiria os pilares da humanidade, que é diretamente associado ao ideal de
família heterossexual e patriarcal. Qualificam os Estudos de Gênero como anticientíficos424, que não
podem ser comprovados na sociedade e que são, altamente, ideológicos!
Essas ideias aparecem, também, não em um documento, mas em um livro lançado pelo
Vaticano com apoio do Pontifício Conselho para a Família, em 2003, denominado “Lexicon: Termos
ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas”. Livro prefaciado pelo Cardeal Alfonso
López Truijillo, possui capítulos de livros escritos não apenas por lideranças da Igreja Católica, mas
também por professores, médicos, políticos, teólogos, entre outros. Destina-se a integrantes
religiosos(as) de todo o mundo católico e de leigos, pela linguagem simples em que é escrito.
Essa agenda antifeminismo e antigênero iniciada pela Igreja Católica será o ponto de partida
para que grupos não vinculados diretamente às Igrejas, mas igualmente conservadores, criem alianças
político-ideológicas contra o que irão denominar de “ideologia de gênero”. Essa visão antigênero,
criada por teólogos conservadores, jornalistas e políticos, cria um novo feminismo, voltado para a
natureza e condição materna da mulher, ainda, segundo os autores, ao criar uma cultura antigênero,

422
Disponível em:
https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collaboratio
n_po.html. Acesso em: 22 ago. 2020.
423
Ratzinger (2004, on-line). Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collaboratio
n_en.html. Acesso em: 2 set. 2020.
424
Dorlin (2016).
1000
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reforçam-se binarismos: amor versus ódio, humano versus trans-humano, vida versus morte, ciência
versus ideologia. A educação de crianças e a escola, portanto, são essenciais para barrar o que
denominam de “Ideologia de Gênero”.

A PROPOSTA DE EDUCAÇÃO SEXUAL DO VATICANO

È difficile pensare l’educazione sessuale in un’epoca in cui si tende a banalizzare e


impoverire la sessualità. Si potrebbe intenderla solo nel quadro di una educazione all’amore,
alla reciproca donazione425.

É com essa afirmação do Papa Francisco de 2016, que o site do Pontifício Conselho para a
Família do Vaticano apresenta o curso nesse mesmo ano426. A ideia de banalização não é recente, nos
discursos da Igreja Católica a associação de sexualidade e banalização esteve presente em um
documento de 1981, o Familiaris Consortio, nas palavras do Papa João Paulo II.
Como dito anteriormente, o curso “Educação Afetivo-Sexual” do Vaticano é destinado à
formação de professores(as) de Escolas confessionais católicas, mas também a catequistas, padres,
religiosos(as), pais e leigos(as) em geral. Porém, a proposta do Vaticano é que o curso chegue a um
público mais amplo e que não fique restrito às escolas confessionais e possa ser apresentado para
escolas laicas, sobretudo para adolescentes – a faixa etária para apresentação das aulas não é sugerida
na proposta do curso. Logo na primeira página do curso, em seu site, deixa claro que é papel dos pais
a educação sexual dos filhos. Composto por seis unidades, dentro dessas unidades, possui entre quatro
e cinco módulos para serem trabalhados por encontro. O curso também possui uma espécie de cartilha
que orienta o(a) educador(a)427 sobre como trabalhar determinado assunto, conceito ou filme, sendo
que essa cartilha deve ser estudada anteriormente às aulas, de preferência em encontros com
orientação de uma liderança católica. As palavras, afetivo e sexual, que estão no título do curso, têm

425
“É difícil pensar a educação sexual em uma época onde existe uma tendência a banalizar e empobrecer a
sexualidade. Só é possivel compreendê-la no contexto de uma educação no amor, na entrega mútua”. (PAPA
FRANCISCO, 2018, on-line, tradução nossa). Disponível em: http://www.educazioneaffettiva.org/?lang=pt-pt.
426
Embora o curso já estivesse sendo utilizado dentro das escolas Católicas Europeias desde pelo menos o ano 2010,
é somente em 2018 que o curso é apresentado na Jornada Mundial da Juventude e traduzido para cinco idiomas:
francês, inglês, espanhol, português, além do italiano.
427
O(a) educador(a) possui um papel diferenciado na visão da Igreja Católica, sobretudo, quanto à Educação Sexual
Afetiva. Enquanto o(a) professor(a) teria como papel a formação intelectual ou ainda aquele(a) que ensina, o(a)
educador(a) é responsável pela formação, no sentido de sua origem, aquele(a) que nutre.
1001
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
os seguintes significados; sexual para representar o corpo, a dimensão física do(a) estudante;
enquanto afetivo está relacionado aos sentimentos.
A primeira unidade, intitulada A tenda, tanto no conteúdo para educadores quanto estudantes,
marca bem o seu proposito, que é justamente definir o corpo ao seu destino ou, usando uma metáfora
de Laqueur (2001), “anatomia é destino”, ou seja, masculino e feminino como homem e mulher
inscritos em seus corpos, na carne. Essa visão é fortemente ancorada a partir do discurso bíblico
descrito em Gênesis, onde Deus, masculino, faz mulher e homem à sua semelhança. O curso evidencia
que o(a) educador(a) deve estar presente, auxiliando nos assuntos do corpo. E essa ‘descoberta’ de
sua identidade inscrita em seu corpo será um caminho de aceitação da ‘natureza’ e de amor não apenas
a si mas ao próximo. Esse corpo é autêntico e é preciso distingui-lo das questões falsas ou daquilo
que é falso.
A segunda unidade, intitulada As Hastes e Varas, procura reforçar a dualidade do masculino
e do feminino, mas essa dualidade é pautada na construção da complementaridade do homem e da
mulher no casamento. Essa ideia fica explicita na cartilha aos(às) professores(as), onde direciona para
a seguinte informação:

É importante diferenciar os conceitos de sexo e sexualidade. O sexo faz referência à condição


orgânica do homem e a mulher (genitalidade). A sexualidade é uma dimensão específica do
ser humano, e faz referência a toda a pessoa. A sexualidade nos fala de
complementariedade.428

Se formos analisar os documentos produzidos pelo Vaticano e que contenham a expressão


Educação Sexual, todos eles se referem a uma sexualidade complementária heterossexual e ao mesmo
tempo patriarcal. Além disso, nessa segunda unidade, a feminilidade e a masculinidade são
indissociáveis da pessoa, do corpo que o ‘criador nos deu’. Na unidade para educadores(as) é proposto
uma atividade, onde se discuta com os(as) alunos(as) e estes percebam as diferenças ‘naturais’ do
masculino e feminino. No caso da unidade dois, a atividade (Imagem 1) é para afirmar essas
diferenças de masculinidade e feminilidade como naturalizadas e essencializadas da condição de cada
sexo:

428
Pontifício Conselho para a Família (2016).
1002
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 1: UNIDADE DOIS (2) DO CURSO PARA EDUCADORES/AS

Fonte: Curso Educação Afetivo-Sexual do Vaticano.429


Para além dos estereótipos de gênero, os discursos construídos neles emitem valores
contrários de movimentos sociais e das próprias políticas públicas de enfrentamento às violências que
são produzidas e reforçadas a partir desses mesmos estereótipos.
Essa diferenciação entre os sexos é uma constante presente em toda a unidade dois, onde se
procura não apenas diferenciar os gêneros a partir de suas condições externas, mas também em níveis
sociais, políticos e culturais. Abaixo, um longo trecho dessas diferenças pensadas na proposta do
curso, que embora extenso, ajuda-nos a entender as concepções essencialistas presentes nas
representações de homens e mulheres:

• FÍSICA: Os corpos são diferentes. Complexão. Os hormônios sexuais atuam de diferentes


maneiras. A mulher tem uma ação hormonal cíclica. O homem se mantém mais constante, só
o corpo da mulher é chamado à maternidade.
• INTELECTUAL: Distinto desenvolvimento dos hemisférios e distinta conexão neural. O
homem é mais analítico e com maior capacidade de análise. Existem vídeos na internet sobre
o cérebro masculino e feminino que falam das diferenças em um tom divertido.

429
Disponível em: http://educazioneaffettiva.wpglauco01.glauco.it/wp-
content/uploads/2016/07/Encontro_Ficha2.1_Educadores.pdf. Acesso em: 22 ago. 2020.
1003
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
• AFETIVA: A resposta afetiva na mulher é global, desempenham um papel importante os
sentimentos e sua exteriorização. Dão valor à palavra. No homem a resposta se baseia mais
na ação e no corporal. Parcializam mais os afetos e os interiorizam.
• SOCIAL: A mulher, ao exteriorizar mais seus aspectos, necessita mais de contato com
amizades e família, é mais completa em suas relações interpessoais. O homem se relaciona
de forma mais linear.
• ESPIRITUAL: A mulher tende mais ao transcendente. O homem é mais pragmático. Para
finalizar pode se colocar anúncios publicitários que reflitam as diferenças entre homens e
mulheres e proporcionar um momento descontraído juntos.430

Após essa apresentação das diferenças - as quais, como percebemos, para a Igreja Católica
são diferenças naturais que se complementam para uma união do homem e da mulher – a atividade
cinco, para educadores(as), busca despertar nos(as) alunos(as) um olhar de contestação da sociedade
atual e das lutas de movimentos sociais, podemos inferir um deles como sendo contra o feminismo:

ATIVIDADE 5: Através de dois anúncios se finaliza a sessão dando sentido à diferença entre
homem e mulher. Em um dos anúncios se observa como, nesse empenho de igualdade sexual
que busca a sociedade atual, se produz uma guerra de sexos. Uma competência entre ambos
para chegar primeiro, para ser melhor que o outro. Em vez de ser uma ajuda de um para o
outro.431

Para encerar a unidade dois, existe a proposta da sessão filmes, como em todas as outras
unidades, um dos filmes recomendados aos(às) educadores(as) é o norte-americano “A Costela de
Adão” (1949). Justamente por ser a unidade que trabalha com as diferenças entre homens e mulheres,
o filme entraria como um exemplo dessas diferenças. Embora o filme não trate de diferenças
biológicas, mas sim culturais entre gêneros432, sua recomendação se justifica para os(as)
educadores(as) da seguinte maneira:

É verdade que somos iguais em dignidade, mas há diferenças entre homens e mulheres. Por
pequena que sejam essas diferenças, nos configuram como pessoas. Hoje sabemos que

430
UNIDADE 2: AS VARETAS E OS PAUS (2016, p. 4). Disponível em:
http://educazioneaffettiva.wpglauco01.glauco.it/wp-
content/uploads/2016/07/Encontro_Ficha2.1_Educadores.pdf. Acesso em: 24 ago. 2020.
431
Idem, p. 7.
432
O filme não trata de diferença sexual biológica, mas sim de diferenças culturais muito presentes à época, e
também atualmente, sobre o machismo da sociedade. O filme, de1949, não é sobre diferenças sexuais, mas,
sobretudo, sobre como a sociedade da época percebia e se posicionava quanto a crimes cometidos por mulheres e
homens, revelando sua moral ambígua. No filme a atriz Katherine Hepburn interpreta uma advogada que questiona
os valores de sua época, ao defender uma mulher que cometeu a tentativa de assassinato contra o marido, que batia
nela e a traía, provocando comoção geral e o pedido de julgamento da acusada. O que o filme tenta retratar é que
o mesmo não teria acontecido se fosse ao contrário. Portanto, não é sobre corpos biologicamente diferentes, mas
desigualdades culturais construídas sobre o gênero, diferenças essas que desqualificam um gênero em detrimento
de outro.
1004
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
homens e mulheres são iguais biologicamente em 97%, e isso se produz em cada uma de
nossa células. É dizer que somos praticamente iguais e, ao mesmo tempo, distintos no todo.
Como disse Adam, e viva a diferença!433.

A terceira unidade, denominada Piquete, tem uma conotação de retidão diante do criador, ou
seja, eu somente posso exercer minha liberdade a partir dos “desígnios do Deus Criador”. Nessa
unidade é reforçado de forma binária o desejo bom e o desejo mau. O bom seria aquele para desfrutar
dos sentimentos mais verdadeiros, enquanto o mau desejo é aquele que não pode satisfazer o bem da
moral. Outro ponto que é bastante discutido é o pecado, esse sentimento e os seus atos de iniquidade
podem levar a falsas liberdades, e é ancorado fortemente na moral cristã.
Para ilustrar essa falsa liberdade da sociedade atual bem como a verdade do corpo que Deus
dá a cada um de nós, a unidade, para jovens e adolescentes, utiliza-se da figura fílmica e ambígua de
Pinóquio.

IMAGEM 2: UNIDADE DOIS PARA JOVENS, INTITULADA “DESEJO DA HUMANIDADE”

Fonte: Curso Educação Afetivo-Sexual do Vaticano 434.

433
ONDE PONHO A MINHA TENDA? COM QUEM? FILMES (2016, p. 2). Disponível em:
http://educazioneaffettiva.wpglauco01.glauco.it/wp-content/uploads/2016/07/Filmes2.0_Educadores.pdf. Acesso
em: 23 ago. 2020.
434
NA CONSTRUÇÃO DO AMOR - 3: PONHO EM JOGO MINHA LIBERDADE: DESEJO DE HUMANIDADE
(2016). Disponível em: http://www.educazioneaffettiva.org/wp-
content/uploads/2016/07/Encontro_Ficha3.1_Jovem.pdf. Acesso em: 23 ago. 2020.
1005
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nas entrelinhas da proposta, para além da falsa liberdade, as atividades propõem reflexionar
sobre a “falsa sexualidade”, ou ainda, a transexualidade. Nesse sentido Pinóquio “não é um menino
de verdade”, falta-lhe uma “verdade”435. Esse corpo ‘precisa’, à luz da moral cristã, permanecer fiel
ao seu criador.
Superando a falsa liberdade, que para a Igreja Católica é uma consequência da permissividade
da sociedade atual, a unidade quatro tem como título “Os tirantes”, peça que sustenta uma estrutura,
nesse caso a imagem de uma barraca. As virtudes em superar o pecado da liberdade pecaminosa e
encontrar a verdadeira luz são essenciais para evitar outros males, tais como a masturbação, o
autoerotismo e a falta de pudor, e encaminhando os(as) jovens para/na castidade. Sendo assim, a
unidade tem como foco a virgindade e a castidade/abstinência sexual436 como meio de alcançar o
bem. Toda a unidade é pautada na dualidade: bom versus mau, pecado versus virtude, luz versus
escuridão.
A atividade na figura a seguir (Imagem 3) é apenas um exemplo da dualidade construída
durante toda a formação, tanto de educadores(as) quanto de alunos(as).

435
Foucalt (1987).
436
Esse curso não é a única ação no campo da Educação Sexual da Igreja Católica. No mês de setembro de 2020
ocorre o I Congresso On-line Teen Star Brasil, destinado à formação de educadores(as), e em uma das aulas de
Educação Sexual um religioso foi responsável pela exposição. A instituição Teen Star foi fundada na Croácia pelo
católico, músico e deputado do partido conservador Ladislav Ilčić e hoje se encontra em diferentes partes do
mundo. A Teen Star tem como principal motivação uma educação moral da sexualidade, que vai ao encontro do
pensamento do cristianismo e, que dentre outras ações, valoriza a abstinencia sexual e a virgindade entre os(as)
jovens.
1006
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 3: FORMAÇÃO PARA EDUCADORES(AS) E O USO DE DUALIDADES NA
UNIDADE QUATRO (4)

Fonte: Curso Educação Afetivo-Sexual do Vaticano. 437


A unidade cinco tem como símbolo a estrutura da barraca, da cabana ou da casa, que é
denominada de Rainfly, e é referência durante toda a unidade, tendo como principais significados a
família e a moral cristã.
Na sessão filmes, a proposta, entre outras possibilidades, é que os(as) educadores(as)
apresentem o curta-metragem Gnus438, uma animação que busca, justamente, comprovar a realidade
ou pensar essa realidade a partir da ciência. A proposta de apresentação do curta para os(as)
educandos(as) é que questionem a opinião “majoritária” sobre determinados temas, que são caros à
Igreja Católica. A proposta sugere que os(as) educadores(as) questionem as afirmações:

O uso do preservativo é necessário porque reduz o contágio de ETS (as estatísticas


demonstram o contrário).

437
Disponível em: http://www.educazioneaffettiva.org/wp-
content/uploads/2016/07/Encontro_Ficha4.2_Educadores.pdf. Acesso em: 23 ago. 2020.
438
Na rede está disponível também pelo nome “Não discuta com idiotas”, encontra-se no link:
https://www.youtube.com/watch?v=puuQiLbh-VA. Acesso em: 13 ago. 2020.
1007
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No aborto o que importa é a liberdade da mulher e em todo caso não se mata a nenhuma
pessoa porque o feto não o é (a ciência nos diz que há um ser humano novo desde o momento
da concepção).439

Por fim, a unidade seis encerra o curso apresentando como simbologia a casa ou a barraca.
Denominada “A porta e a charneira”, refere-se ao abrigo do corpo, da sexualidade e do espírito que
se fundamenta no amor. Esse sentimento que se fundamenta na família, no casamento e na procriação
é um chamado divino que é antecedido pela castidade e virgindade anterior ao casamento, portanto,
ainda no noivado. Toda essa concepção de amor e família para a Igreja Católica está protegida na cis-
heterossexualidade, como deixa claro o módulo para educadores(as) desta unidade.

A EDUCAÇÃO AFETIVO-SEXUAL DO VATICANO: REFAZENDO FRONTEIRAS


Os Estudos de Gênero, nas últimas décadas, têm trabalhado nas análises culturais hierárquicas
e de dominação de um gênero sobre o outro e de sexualidades dissidentes ou performatividades não
hegemônicas. Busca, portanto, entre outras pautas, desfazer fronteiras que excluem, provocam
violências e naturalizam opressões. Por outro lado, temos uma situação nova de reafirmação de
identidade ou de afirmações de identidades essencializadas que por algum motivo se sentem
ameaçadas.
Vimos que a construção da “Ideologia de Gênero” pelo Vaticano e a sua proposta de Educação
Afetivo-Sexual buscam justamente o contrário quando o assunto é direitos reprodutivos, direitos
sexuais e pautas caras ao movimento das mulheres e das sexualidades dissidentes.
Foucault (1988; 2001) também nos mostra como a construção de verdades sobre o sexo teve
importante participação do cristianismo. Para além disso, a Igreja Católica foi responsável pelo
imaginário social e cultural de que o sexo e demonstração desse é algo intrinsecamente mau. Ao
procurar estabelecer exemplos do dualismo de bom versus mau, a Igreja Católica reforça a ideia de
inversão de valores de uma sociedade condenada ao pecado e à corrupção dos mais jovens que são a
continuação da vida e da família heterossexual.
A Educação Afetivo-Sexual proposta pela Igreja Católica é, portanto, uma tentativa de
oferecer uma educação que vai na contramão daquilo que denominam de “Ideologia de Gênero”. Essa

439
ONDE PONHO A MINHA TENDA? COM QUEM? FILMES (Unidade 5) (2016, p. 2). Disponível em:
http://www.educazioneaffettiva.org/wp-content/uploads/2016/07/Filmes5.0_Educadores.pdf. Acesso em: 13 ago.
2020.
1008
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Educação Afetivo-Sexual, já em curso em escolas católicas e particulares da Europa, procura
estabelecer fronteiras bem demarcadas de gênero, do masculino e do feminino, bem como das
masculinidades e feminilidades dos e das jovens. É também uma Educação que não admite, ou parece
não reconhecer as sexualidades dissidentes. Não há, em todas as unidades do curso apresentado,
qualquer menção ou referência explícita à homossexualidade, a não ser nas entrelinhas. Na esteira
dessas entrelinhas, então, pontua-se ainda que a Educação Sexual cristã é uma reação aos Direitos
Sexuais e Reprodutivos de Mulheres e população LGBTQIA+, ao casamento igualitário e aos debates
sobre o aborto. Em oposição a esses direitos conquistados por essas minorias, o curso se propõe a
uma educação sexual que se limita ao ensino privado e como mentores preferenciais os pais, como
vimos anteriormente, com técnicas de adestramento dos corpos e dos desejos, através da abstinência
e do pudor.
Esse pavor do gênero e de uma educação sexual emancipadora, por parte de cristãos
conservadores e também não cristãos, pode ser exemplificado nas palavras de Guacira Lopes Louro:
“A homofobia [o gênero e a educação sexual], o medo voltado contra os(as) homossexuais, pode se
expressar ainda numa espécie de terror em relação à perda do gênero, ou seja, no terror de não ser
considerado como um homem ou uma mulher ‘reais’ ou ‘autênticos’”440.
Destaca-se, também, uma atenção maior sobre o gênero feminino no curso e, sobretudo, a
questão da importância da maternidade, que como demonstra Gauthier (2017) é na figura feminina
que é depositada a esperança da salvaguarda da família na educação cristã. Na unidade quatro do
curso a mulher é vista como diferente do homem, uma diferença que o complementa, uma diferença
que essencializa essa mulher como natureza, como mãe, como reprodutora. Esse entendimento se liga
diretamente com a visão da unidade dois onde se enfatiza que somente a mulher é ‘chamada à
maternidade’. Que por sua vez está diretamente ligada à unidade cinco, onde se combate o aborto e a
‘cultura da morte’.
Os discursos se repetem como bem demonstra Michelle Perrot (2013, p. 45): “A igreja que a
consagra [mulher = maternidade] como virtude suprema, celebra o modelo de Maria, virgem e mãe”.
Essa cultura da morte pode ser lida de dois modos. A primeira em referência aos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, especificamente na questão do aborto. A segunda pode ser

440
Louro (2014, p. 32).
1009
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
entendida como oposição aos novos modelos de família não heterossexuais e modelos de maternidade
e paternidade que não aqueles formados pelo padrão heterossexual.
Para a mulher resta-lhe a essência da maternidade, a partir da análise da unidade dois,
enquanto o homem é analítico em sua intelectualidade, a mulher não é citada, apenas ‘que existem
vídeos da internet’ que falam dessas supostas diferenças de forma ‘divertida’. Se o homem é
adjetivado como analítico, qual seria então o adjetivo feminino, pensando nessas diferenças sempre
ressaltadas? Segundo Raewyn Connell e Rebecca Pearce (2015), as diferenças sexuais e psicológicas
entre homens e mulheres que procuram ser asseguradas hoje por grupos e instituições antigênero não
passam de mitos e de fundamentação cultural, que auxiliam na estruturação desigual, patriarcal e cis-
heterossexista da sociedade.
Em todas as unidades do curso é destacado o amor, o amor para com o próximo. Bem como
o corpo como dignidade. Esse amor e essa dignidade somente podem ser vividos e experienciados
seguindo uma moral cristã. Recheado de provérbios e discursos bíblicos e imagens que ajudam a
construir visões estereotipadas, como Pinóquio e sua falsa liberdade e verdade, o curso que se destina
a jovens não problematiza o Outro. Quem seria esse outro, para além das ‘certezas’ binárias da Igreja
Católica? Outros corpos, outras formas de existência, outras masculinidades e feminilidades têm sua
existência negada - embora eles(as) estejam na escola. Há um cuidado em reforçar maniqueísmos,
tais como, falso versus verdadeiro, certo versus errado, bom versus mau, entre outros.
Esse entendimento é pautado na visão de que a sociedade, corrompida por falsas ‘ideologias’,
precisa ‘resgatar’ seus valores441. Para isso, além da construção de pânicos morais sexuais, é
necessário que a família tome as rédeas na Educação Sexual. Como bem demonstrou Foucault (2001)
a família tem sido, historicamente para a Igreja Católica, a instituição privilegiada que corrige o
anômalo442. Para além da família como corretora de desregramentos, a pedagogia cristã procura
demarcar bem os aspectos negativos de uma educação permissiva, muito próxima com a figura do
diabo, como bem demonstra Charlot (2018), sendo efeito da sociedade que educa para o mau
caminho. A família para a Igreja Católica e a sua pedagogia cristã moralizante possui a função,

441
Case (2016).
442
Foucault (2001, p. 322).
1010
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
portanto, de produzir cuidado, de observar esse(a) filho(a), esse(a) educando(a), num constante vigiar
e punir celestial e terreno, no sentido de um modelo panóptico443 que tudo olha e que tudo vê.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto apresentado não procurou fazer uma análise profunda da Educação Afetivo-Sexual
proposta pela Igreja Católica e as questões da “Ideologia de Gênero”, mas sim evidenciar como em
diferentes momentos da história da Igreja Católica, focando o final do século XX e início do século
XXI, esses assuntos estiveram presentes em seus discursos e ações. A Educação Afetivo-Sexual do
Vaticano bem como a preocupação da Educação Sexual dos(as) jovens como prioridade dos pais, da
família como detentora desses corpos, tem tido uma nova configuração nas últimas décadas. Essa
preocupação procura demarcar uma ‘normalização’ de corpos e desejos, que não são de forma alguma
neutros ou assexuados, que são essencializados a partir do binarismo de gênero de uma moral cis-
heterossexual cristã que busca a salvação.
Se no passado o anticomunismo era e continua sendo em certas circunstâncias um mal a ser
combatido pela Igreja Católica, atualmente emerge outro inimigo tão ou mais preocupante que o diabo
vermelho: o gênero. Desse modo, a “Ideologia de Gênero” construída pela Igreja Católica teria o
poder de destruir a humanidade, pois eliminaria a diferença sexual entre homens e mulheres e a
constituição da família natural. Uma forma de barrar a ascensão de direitos sexuais e reprodutivos,
que está dentro da palavra fractal gênero, seria a Educação Afetivo-Sexual, que pode conter os
avanços do gênero, o qual parece assombrar a Igreja Católica.

REFERÊNCIAS

CASE, Mary Anne. O papel dos papas na invenção da complementaridade e a anatematização de


gênero do Vaticano. Religião e Gênero 6.2: 155-172. Disponível em:
https://doi.org/10.18352/rg.10124 Web. Acesso em 22 de ago. de 2020.

CHARLOT, Bernard. As figuras do diabo no discurso pedagógico. Revista Educação em Questão,


v. 56, n. 48, 17 jul. 2018. Acesso em 11 de ago. de 2020.

CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero uma perspectiva global. 3. ed. São Paulo:
Nversos, 2015. 325 p.

443
Foucault (1987).
1011
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CORREA, Sonia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Pagu , Campinas, n. 53,
e185301, 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332018000200401&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 22 de agosto de 2020.

Dorlin, Elsa. "Irreal: Ideologia Católica como Guerra Epistemológica". Religion and Gender. 6.2
(2016): 264-267. Disponível em:https://doi.org/10.18352/rg.10176. Acesso em 22 de ago. de 2020.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. Rio de janeiro: Graal,
1988.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

GARBAGNOLI, Sara. L’ideologia del genere»: l’irresistibile ascesa di un’invenzione retorica


vaticana contro la denaturalizzazione dell’ordine sessuale. AG About Gender - Rivista
internazionale di studi di genere, [S.l.], v. 3, n. 6, nov. 2014. ISSN 2279-5057. Disponibile
all'indirizzo: https://riviste.unige.it/aboutgender/article/view/224/160. Acesso: 22 de ago. 2020.

GARBAGNOLI, Sara. Contra a heresia da imanência: o 'gênero' do Vaticano como um novo


dispositivo retórico contra a desnaturalização da ordem sexual. Religião e Gênero 6.2: 187-204,
2016. Disponível em: https://doi.org/10.18352/rg.10156 Web. Acesso em 22 de ago. de 2020.

GAUTHIER, Fradois. De la cure des âmes à l’évangélisation des corps. Le CLER Amour et Famille:
classes dominantes et morale sexuelle. Paris, Genre, sexualité & société [online], 18 | Automne 2017,
mis en ligne le 01 décembre 2017.

GUIMARÃES, Géssica. Teoria de gênero e ideologia de gênero: cenário de uma disputa nos 25 anos
da IV Conferência Mundial das Mulheres. Revista Tempo e Argumento, [S.l.], v. 12, n. 29, p. e0107,
abr. 2020. ISSN 2175-1803. Disponível em:
http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312292020e0107. Acesso em: 22 ago.
2020.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da "ideologia de gênero": a emergência de um cenário


político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Rev. psicol. polít., São
Paulo, v. 18, n. 43, p. 449-502, dez. 2018 . Acesso em 11 de ago. de 2020.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da "ideologia de gênero": a emergência de um cenário


político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Rev. psicol. polít., São
Paulo, v. 18, n. 43, p. 449-502, dez. 2018 .

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: Corpo e gênero dos gregos a Freud. Tra. Vera
Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

1012
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista.
Petrópolis: vozes, 2014.

MISKOLCI, Richard & CAMPANA, Maximiliano Campana. “Ideologia de gênero”: notas para a
genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado – Volume 32, Número
3, Setembro/Dezembro 2017. p.725-744.

MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de


gênero”. Cad. Pagu, Campinas , n. 53, e185302, 2018 . Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332018000200402&lng=pt&nrm=
isoAcesso em 19 ago. 2020.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013.

PONTÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA. Vaticano (org.). Educação Afetivo Sexual. 2016.
Disponível em: http://www.educazioneaffettiva.org/2a-unidade/?lang=pt-pt. Acesso em: 10 ago.
2020.

RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade,
[1984]. 2003 Tradução de Felipe Fernandes e Miriam Grossi, [Florianópolis] Repositório da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1229/rubin_pensando_o_sexo.pdf. Acesso
em. 19 de ago. de 2020.

1013
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A PESQUISA COM CRIANÇAS PEQUENININHAS: CONSTRUINDO METODOLOGIAS
DESCOLONIZADORAS

Vivian Colella Esteves444

Resumo: Este trabalho apresenta uma pesquisa de mestrado em andamento do programa de pós-graduação da Faculdade
de Educação da UNICAMP. A motivação para construção da pesquisa surgiu segundo uma experiência enquanto
professora de educação infantil no município de Ilhabela (litoral norte paulista), no período de 2016 a 2018. A partir dessa
vivência, levanto algumas questões para entender como se dá a construção das culturas infantis entre as crianças de 1 e 2
anos de idade, utilizando a interseccionalidade como ferramenta de análise, buscando compreender como os marcadores
sociais da diferença como gênero, classe social, raça e idade, impactam nessas relações em uma creche litorânea.
Amparada pelos pressupostos da Sociologia da Infância, da Pedagogia da Infância e dos estudos de gênero, a etnografia
realizada no primeiro semestre de 2020, constitui-se como método potente para realizar pesquisa com crianças e não
apenas sobre elas. Análises preliminares demonstram que as relações de poder presentes na educação infantil impactam
diretamente nas experiências das crianças, por isso, se faz necessário pensar criticamente nos espaços das infâncias, além
disso, com a pandemia novas questões foram levantadas, buscando compreender como essas infâncias estão sendo
vivenciadas neste novo contexto.

Palavras-chave: Crianças Pequenininhas; Infâncias; Culturas Infantis; Pedagogias Descolonizadoras; Creche.

INTRODUÇÃO
A pesquisa de mestrado em andamento conta com o financiamento da CAPES/DS e é
vinculada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP, junto ao Grupo
de Estudos e Pesquisas em Diferenciação Sociocultural GEPEDISC – Linha Culturas Infantis.
Algumas inquietações suscitadas enquanto professora de educação infantil na rede municipal
de Ilhabela (litoral norte paulista), constituíram a motivação para o desenvolvimento do projeto de
mestrado. Enquanto mulher cis, branca, professora, lésbica, feminista e diversos outros
atravessamentos da minha identidade e subjetividade, vivenciei, junto às crianças, momentos em que
as questões de gênero gritavam e impactavam nas práticas pedagógicas desenvolvidas na creche. Fui
percebendo também o quanto essas questões não estavam isoladas de outros marcadores sociais como
a classe social, a raça e a idade. Neste sentido, a pesquisa busca compreender como os marcadores
sociais impactam nas relações estabelecidas entre as crianças de 1 e 2 anos de idade em uma creche
litorânea, como esses corpos se relacionam entre si, com os espaços, materiais e tempos, e com as
pessoas adultas.
Na experiência enquanto docente da educação infantil temos a oportunidade de acompanhar
um coletivo de crianças pequenas por um período denso e extenso. Essa relação, por mais planejada

444
Mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail:
viviancolella92@gmail.com
1014
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que seja, não pode ser neutra e não se abstrai das hierarquias presentes na sociedade, ou seja, por mais
que tenhamos uma forte aproximação das crianças, ainda as observamos e interagimos pela lógica
adultocêntrica.
A pesquisa direcionada à primeira infância também passa por essa responsabilidade, de
desnudar-se do olhar adulto para investigar as culturas infantis produzidas pelas crianças e para tornar
a relação criança-adulta/o o mais horizontal possível. Esse movimento de desconstrução do olhar faz
parte do processo de descolonização que engloba várias questões, não só do olhar, mas do fazer, das
práticas, da interação, do corpo todo.
O contexto da cidade inclui-se também como fator analítico, ao passo que possuímos como
imaginário do senso comum a cidade litorânea como um lugar desprovido de pudor, por conta das
altas temperaturas, pelos corpos expostos sem o abafamento da moral, dos lugares paradisíacos, das
práticas e formas de condutas peculiares da região litorânea, que podemos chamar de uma cultura de
praia:

Em todos os pontos do globo durante períodos de condições climáticas favoráveis


desenvolve-se a cultura de praia. Formas de conduta à beira-mar, práticas esportivas,
maneiras de vestir-se, de pensar, de agir, de morar e de consumir. As sociedades das praias
possuem suas próprias normas e formas (RAMOS, 2009. p. 13).

A partir desse primeiro contato com as crianças na creche e na expectativa de vivenciar essa
experiência numa creche litorânea, algumas questões levantadas foram: Como se dá a produção das
culturas infantis pelas crianças pequenininhas numa creche litorânea? Qual o impacto do contexto
litorâneo nessa produção? Como os marcadores sociais da diferença (gênero, raça, classe social e
idade) impactam na produção das culturais infantis? Como esses marcadores impactam nas relações
dentro da creche?
Para responder essas perguntas, a pesquisa se baseia nos pressupostos da sociologia da
infância (DANIELA FINCO e ANA FARIA, 2011; QVORTRUP, 2011) da pedagogia da educação
infantil (ELOISA ROCHA, 1999; ANA FARIA, 2012) e dos estudos de gênero (JUDITH BUTLER,
2003; DANIELA FINCO, 2004). A perspectiva interseccional traz os marcadores sociais da diferença
(gênero, classe social, raça e idade) como componentes imprescindíveis na análise das relações
sociais dentro da creche, portanto, a interseccionalidade (KIMBERLÉ CRENSHAW, 2002;

1015
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CARLA AKOTIRENE, 2018) na pesquisa configura-se como uma ferramenta teórico-metodológica.

METODOLOGIA DE PESQUISA COM CRIANÇAS


Para realizar pesquisas com crianças e para ser professora de crianças, devemos nos atentar
para a “[...] necessidade de não reduzir a capacidade de expressão das crianças somente à fala, mas
de se estar atento aos gestos, movimentos, emoções, sorrisos, choros, silêncios, olhares, linguagens
sonoras e outras linguagens” (PATRÍCIA PRADO, 1999, p. 111). Nesse sentido, precisamos “[...]
tomar posse novamente de nossa dimensão brincalhona” (PATRIZIA GHEDINI, 1998).
O desafio da pesquisa com crianças reside não só na comunicação, mas no limite dos espaços,
no acesso às brincadeiras (CORSARO, 2005) e na intenção de um retorno reflexivo e positivo, pois
a pesquisa justifica-se ao apontar aspectos positivos para as crianças, visando melhorar a qualidade
de vida e considerando os aspectos éticos que as envolvem (MARIA BARBOSA, 2014).
A etnografia possibilita esse contato próximo de fazer pesquisa com crianças, num exercício do olhar
sensível (GEERTZ, 1989), considerando que “a observação etnográfica sustenta-se sobre o
encadeamento destas três técnicas fortemente entrelaçadas: perceber, memorizar, anotar”
(STÉPHANE BEAUD e FLORENCE WEBER, 2007, p. 97).
Utilizando das três técnicas da observação etnográfica, com o suporte de um diário de campo
para anotar todas as situações vivenciadas, considerando que a etnografia é uma tradução do que
vemos, ouvimos e vivemos em campo (CARMEM MATTOS, 2011), essa metodologia se resume no
acompanhamento de uma turma de crianças pequenininhas (entre 1 e 2 anos de idade) de uma creche
litorânea durante o primeiro semestre de 2020.
Antes do ingresso ao campo, construí um roteiro de observação para que conseguisse
direcionar o olhar ao ingressar na creche, para me distanciar do que era familiar e me aproximar do
que era novo (VELHO, 1978). Neste sentido, a leitura de “Palomar na Praia – Leitura de uma Onda”
(CALVINO, 1994), trouxe a inspiração da perspectiva do telescópio invertido, no qual Palomar se
utiliza para observar minuciosamente as coisas próximas, do cotidiano.
Sendo assim, o roteiro de observação foi dividido em três partes: 1) nas relações entre as
crianças, objetivando compreender como brincam juntas, como interagem nas brincadeiras, quais são
e como resolvem os conflitos, como interagem com os espaços, materiais e tempos, como se
relacionam com o próprio corpo, como se relacionam com as pessoas adultas, entre outras

1016
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
questões; 2) nas relações entre as crianças e as pessoas adultas, observando como interagem, como e
se brincam juntas, como se comunicam, como esses corpos se relacionam e como as crianças se
relacionam comigo; 3) nas relações estabelecidas entre as pessoas adultas, para compreender como
essas impactam nas construção das culturas infantis, pensando nas condições que são dadas às
crianças e o que as adultas trazem e propõem.
O fato de ter sido professora da rede municipal constituiu uma pesquisa construída em um
espaço de “interconhecimento” (STÉPHANE BEAUD e FLORENCE WEBER, 2007, p. 31), ou seja,
já havia uma experiência anterior e relações interpessoais construídas. Essa aproximação trouxe
pontos favoráveis para a pesquisa, por exemplo pela resposta positiva da creche em aceitar a pesquisa,
auxiliando também na obtenção e análise dos dados referentes à cidade e ao bairro em que foi
realizada.
Essa preparação incide também no exercício de despir-me de posturas adultocêntricas para
que consiga interagir com as crianças de forma mais horizontal. Os processos de colonização que
impactam em nossos corpos, nossas experiências e vivências, impactam também na forma como
interagimos com as crianças. Como aponta Patrícia Prado (1999), a pessoa adulta também é vista
como colonizadora, ao passo que interage com as crianças considerando-as sujeitos meramente
passivos, como adultos em miniatura. Sendo assim, repensar as posturas para nos distanciarmos de
práticas adultocêntricas (FÚLVIA ROSEMBERG, 1976) também constitui um procedimento
metodológico da pesquisa com crianças.
As observações precederam a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisas em Ciências
Humanas (CEP-CHS) da Unicamp (Número do CAAE: 20635119.9.0000.8142), a partir da
assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo um próprio para as pessoas
responsáveis pelas crianças e outro para as pessoas adultas envolvidas na observação, como as
Auxiliares da Primeira Infância (API) e a professora da turma.
Para além disso, a aceitação das crianças na pesquisa foi fundamental e pode ser confirmada
a partir das vivências coletivas durante as observações. A interação entre nós se deu de forma
espontânea, cada criança vinha interagir comigo no seu tempo e modo. Elas me pediam colo, ajuda
para pegar brinquedos, ajuda para colocar os calçados, traziam brinquedos, entre outras ações que
foram demonstrando que elas aceitavam minha presença ali.

1017
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Esse percurso de preparação para as observações e os cuidados tomados em campo são
fundamentais na pesquisa com crianças pequenininhas. Além de respeitar o espaço e tempos delas,
também foi essencial o acolhimento das pessoas adultas, desde a gestão da creche, as auxiliares e
professora da turma.

PEDAGOGIAS DESCOLONIZADORAS, CULTURAS INFANTIS E


INTERSECCIONALIDADE
As crianças, interagindo entre elas e em suas brincadeiras, reproduzem e ressignificam a
cultura do mundo adulto, ou seja, constroem as culturas infantis, um “[...] conjunto de relações em
que as crianças têm oportunidade de manter contatos pessoais e de interagirem socialmente com
outras crianças” (FERNANDES, 2004, p. 207).
Estudos como de Corsaro (2002), demonstram que as crianças constroem um processo de
apropriação criativa, ou seja, não são simples imitadoras das práticas adultas, mas as recriam,
transformam e vão atribuindo outros significados, denominado pelo autor de reprodução
interpretativa.
Muitos espaços de educação infantil ainda possuem uma visão da criança como sujeito
passivo, desconsiderando a multiplicidade das infâncias, mantendo a hierarquia onde a pessoa adulta
está no topo, limitando as práticas das crianças e disciplinando seus corpos desde pequeninhas,
reproduzindo assim as marcas da colonização.
Essas marcas podem ser percebidas também em outros âmbitos, ao chegar numa cidade
litorânea havia como imaginário social um lugar que teria uma relação com o corpo de forma mais
livre, com outras maneiras de vivenciar e enxergar as diversas práticas corporais. Porém, houve um
choque de realidade ao encarar o conservadorismo da cidade impactando em todos os sentidos, desde
ser uma professora lésbica de crianças pequenininhas até a estrutura das creches que não contemplam
a cultura caiçara e a natureza que as cercam.
Neste sentido, vejo como as práticas de colonização impactam nas estruturas da cidade como
um todo, por exemplo com um modelo de creche que poderia ser encontrado em qualquer unidade
educacional de cidade 100% urbana. Quando cheguei na creche em Ilhabela fiquei me perguntando:
cadê o mar? Cadê a areia? Cadê a água da cachoeira? Cadê as árvores? Pois o que encontrei foi
um espaço com piso frio e paredes brancas, muitas vezes adaptado em estruturas que eram

1018
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
residências, que além de não contemplar as especificidades das crianças pequenininhas, não refletem
o que estava da porta para fora: a vivência com a natureza exuberante.
Partindo dessas indagações, inicialmente levantadas enquanto professora de educação infantil
e posteriormente aprofundadas enquanto pesquisadora no mestrado, vejo a importância da
interlocução da teoria e da prática na busca de pedagogias descolonizadoras.

Quando nossa experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada a processos de


autorrecuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática. Com
efeito, o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas – um processo que, em
última análise, é recíproco, onde uma capacita a outra. A teoria não é intrinsecamente
curativa, libertadora e revolucionária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça
e dirigimos nossa teorização para esse fim (bell hooks, 2013, p. 85-86).

Considerando esse elo entre teoria e prática, a autora valoriza as experiências e defende uma
pedagogia engajada. Na educação infantil também compete a indissociabilidade da teoria e da prática
e o compromisso com uma educação emancipadora, fazendo a crítica aos espaços infantis
hierarquizados que não dão ouvidos as crianças pequenininhas e acabam oprimindo a construção das
culturas infantis e disciplinando seus corpos. Entender as crianças enquanto sujeitos ativos
socialmente e produtoras da história e da cultura é uma pauta da educação infantil enquanto instância
da sociedade civil que luta por uma educação libertadora e por pedagogias descolonizadoras.
Os estudos e pesquisas da primeira infância precisam levar em conta outras categorias de
análise, numa perspectiva interseccional (KIMBERLÉ CRENSHAW, 2002) que considera gênero,
classe social, raça e idade, pois a criança é um sujeito histórico, político, social e cultural que carrega
uma identidade múltipla de uma infância plural.
O termo interseccionalidade é usado de diferentes formas dependendo do contexto, pode ser
considerado como uma ferramenta de diagnóstico dos sistemas de dominação presentes na creche e
como uma ferramenta analítica que ajuda a entender melhor as relações que acontecem entre as
pessoas ali, no qual vários eixos influenciam entre si.
A perspectiva interseccional nos atenta para a “análise da questão do poder contido nas
relações que permeiam os processos de socialização, na qual o corpo e a corporeidade das crianças
pequenas ocupam um lugar central” (ANA FARIA, 2011, p. 9).
Pesquisas que alinham o estudo das infâncias com uma abordagem interseccional
(SANTIAGO, 2019), demonstram a importância dos processos de descolonização dos sujeitos,
1019
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sendo que “a descolonização é, na verdade, a produção de espaços para os/as novos/as protagonistas
sociais subalternizados/as pela colonização” (ANA FARIA et al., 2015, p. 13). Analisar as relações
sociais, levando em conta as categorias gênero, classe social, raça e idade, é essencial para entender
a dinâmica do convívio dentro de um sistema em que as diferenças se transformam em desigualdades.

Ao conversar, ao falar, ao tocar uma criança, carregamos preconceitos e discriminações,


ainda que inconscientes, e os bebês não falam, mas sentem e se comunicam. Temos que estar
atentas/os para não educar para a submissão (MARIA TELES, 2018, p. 26).
Pensar as infâncias a partir das pedagogias descolonizadoras é entrar num processo de
construção de um olhar crítico, que envolve desde a desconstrução de práticas machistas, racistas e
sexistas, de repensar as estruturas de poder que permeiam a socialização, até a problematização dos
materiais, espaços e tempos disponíveis para as crianças. Considerando que não existe uma infância
única e universal, devemos assegurar a multiplicidade e a heterogeneidade dos contextos infantis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como afirma Daniela Finco (2010, p. 35), “olhar para o corpo das crianças, buscando seus
significados, seus movimentos e desejos, torna-se um recurso fundamental para a compreensão da
infância”. Para olhar para esse corpo, na pesquisa com crianças, devemos nos distanciar o máximo
do nosso olhar de adultas/os, estar atenta/o ao choro, grito, riso, todas as formas de expressão, pois o
corpo infantil mesmo “escolarizado, classificado e hierarquizado, também encontra formas de ser um
corpo livre e transgressor” (DANIELA FINCO, 2010, p. 35). A partir de uma análise interseccional,
observar as culturas infantis em creche nos mostra que as crianças encontram formas de transgredir
às regras impostas (SANTIAGO, 2019).
Entender as crianças enquanto protagonistas dos espaços educativos, numa tentativa de
inverter as hierarquias, faz parte do processo de descolonização.

Esse processo é um movimento de desconstrução contínuo de verdades impostas como únicas


e de reinvenção de si e do mundo, de modo a estabelecer meios de relações com os sujeitos,
e de ser e viver em sociedade. O papel central desse fazer pedagógico é viabilizar as
diferenças, tornando a Educação da Infância um espaço privilegiado de encontros de culturas,
saberes e sujeitos (SOLANGE SANTOS et al., 2018, p. 17).

1020
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Neste sentido, tanto o papel de professora quanto de pesquisadora precisa assumir e posicionar
como algo que não é neutro, mas sim carregado de significados e representações que impactam
diretamente na interação com as crianças, seja pela prática docente, seja pela pesquisa. Ao nos
colocarmos num processo contínuo de descolonização, entendendo de onde surgem os privilégios e
as desigualdades, podemos assim construir práticas descolonizadoras.
Ao considerar as crianças sujeitos ativos na construção da sociedade, desconsiderando a ideia
de um vir-a-ser passivo, podemos lançar olhares para pesquisas com crianças e não apenas sobre elas.
A partir desta compreensão, entendendo as crianças enquanto produtoras de culturas infantis, nesse
contexto de pandemia elas resistem e tranformam suas casas em lugares para viver suas infâncias.
A pesquisa de mestrado em andamento passa agora por uma readequação dos olhares que
antes estavam em campo junto às crianças, mas que agora, por conta da pandemia ocasionada pela
COVID-19 (doença provocada pelo Coronavírus SARS-CoV-2), faz um tipo de trabalho de campo
virtual, ressignificando o olhar para as relações que antes eram estabelecidas presencialmente na
creche e agora são realizadas virtualmente.
A interrupção do trabalho de campo levou a pesquisa a novas indagações, pensando em como
essas crianças estão vivendo suas infâncias e produzindo as culturas infantis nesse contexto de
pandemia e quarentena. Como esses corpos infantis estão se relacionando no espaço doméstico da
casa com suas famílias? Como incorporar a educação infantil no “ensino remoto”? Além disso, a
interseccionalidade como ferramenta de análise nos leva a incorporar as questões de gênero, raça,
classe social e idade para indagar: que condições as famílias possuem para acessar as propostas que
são enviadas para casa? Como será o espaço e ambiente da casa dessas crianças? Como a pandemia
impactou as famílias e as crianças? Quem se responsabiliza pelos cuidados das crianças? Entre outras
questões.
Essas recentes indagações levam a pesquisa a navegar em novos mares, a inspiração de
Palomar (CALVINO, 1994) e a vivência no litoral fazem com que a pesquisa seja considerada como
um navegar de barco, no qual os procedimentos metodológicos são o itinerário da viagem, com os
imprevistos do tempo e da maré que leva a rumos inesperados. Ao deixar que as inquietações do
campo sejam como a correnteza, faz com que a pesquisa seja ressignificada a cada momento, esse
deixar fluir também é uma prática descolonizadora que desafia os moldes conservadores da

1021
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
academia, propondo novos tempos, maneiras e jeitos de pesquisar, transgredindo o tempo e ficando
alerta para avistar mais questões a serem incorporadas ao debate.

REFERÊNCIAS
ANA FARIA, Lúcia Goulart. Apresentação. In: DANIELA FINCO; ANA FARIA, Lúcia Goulart
(Orgs.). Sociologia da infância no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.

ANA FARIA, Lúcia Goulart. Sons sem palavras e grafismos sem letras: linguagens, leituras e
pedagogia na educação infantil. In: ANA FARIA, Lúcia Goulart; SUELY MELLO, Amaral. (Orgs.).
O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.

ANA FARIA, Lúcia Goulart; SOLANGE SANTOS, Estanislau dos; SANTIAGO, Flavio,
BARREIRO, Alex. (Orgs.). Infâncias e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias
descolonizadoras. 1. ed. Campinas: Edições Leitura Crítica e ALB, 2015.

bell hooks. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2013.

CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CARLA AKOTIRENE. O que é interseccionalidade?. Belo Horizonte (MG):


Letramento/Justificando, 2018.

CARMEM MATTOS, Lúcia Guimarães. A abordagem etnográfica na investigação científica. In:


CARMEM MATTOS, Lúcia Guimarães; PAULA CASTRO, Almeida de. (Orgs.). Etnografia e
educação: conceitos e usos. Campina Grande: EDUEPB, 2011.

CORSARO, William. A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos


etnográficos com crianças pequenas. Educação e. Sociedade. Campinas, v. 26, n. 91, p. 443-464,
maio/ago. 2005.

CORSARO, William. A Reprodução Interpretativa no brincar ao “faz de conta” das crianças.


Educação, Sociedade e Cultura, n. 17, p. 113-134, 2002.

DANIELA FINCO. Faca sem ponta, galinha sem pé, homem com homem, mulher com mulher:
relações de gênero nas relações de meninos e meninas na pré-escola. Dissertação (Mestrado) —
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

DANIELA FINCO. Educação infantil, espaço de confronto e convívio com as diferenças: Análise
das interações entre professoras e meninas e meninos que transgridem as fronteiras de gênero. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

1022
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DANIELA FINCO; ANA FARIA, Lúcia Goulart. (Orgs.). Sociologia da infância no Brasil.
Campinas, SP: Autores Associados, 2011.

ELOISA ROCHA, Acires Candal. A pesquisa em educação infantil no Brasil: trajetória recente e
perspectiva de consolidação de uma Pedagogia da Educação Infantil. UFSC, Centro de Ciências da
Educação: Núcleo de Publicações, Florianópolis, 1999.

FERNANDES, Florestan. As Trocinhas do Bom Retiro: contribuições ao estudo folclórico e


sociológico da cultura e dos grupos infantis. Pro-Posições. v. 15, n. 1 (43), jan./abr. 2004.

FÚLVIA ROSEMBERG. Educação: para quem? Ciência e Cultura, n. 28, v. 12, p. 1467-1471, 1976.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

JUDITH BUTLER. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

KIMBERLÉ CRENSHAW. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da


discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.

MARIA BARBOSA, Carmen Silveira. A ética na pesquisa etnográfica com crianças: primeiras
problematizações. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 9, n. 1, p. 235-245, jan./jun. 2014.
MARIA TELES, Amélia de Almeida. Apresentação. In: MARIA TELES, Amélia; SANTIAGO,
Flavio.; ANA FARIA, Lúcia Goulart. Por que a creche é uma luta das mulheres? Inquietações
femininas já demonstram que as crianças pequenas são de responsabilidade de toda a sociedade. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2018.

PATRÍCIA PRADO. As crianças pequenininhas produzem cultura? Considerações sobre educação e


cultura infantil em creche. Pro-Posições, v. 10, n.1 (28), p. 110-118, 1999.

PATRIZIA GHEDINI, Orsola. Entre a experiência e os novos projetos: a situação da creche na Itália.
Tradução de Maria Malta Campos. In: FÚLVIA ROSEMBERG; MARIA CAMPOS, Malta. (Orgs.).
Creches e Pré-Escolas no Hemisfério Norte. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998.

QVORTRUP, Jens. Apresentação Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-
Posições, v. 22, n. 1 (64), p. 199-211, jan./abr. 2011.

RAMOS, Daniel Rocha. A invenção da praia e a produção do espaço: dinâmicas de uso e


ocupação do litoral do ES. 2009. 189 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2009.

SANTIAGO, Flávio. Eu quero ser o sol! (re)interpretações das intersecções entre as relações
raciais e de gênero nas culturas infantis entre as crianças de 0-3 anos em creche. 2019. 115 f.
Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.

1023
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SOLANGE SANTOS, Estanislau dos; SANTIAGO, Flávio; BARREIRO, Alex; ELINA MACEDO,
Elias; ANA FARIA, Lúcia Goulart de. (Orgs.) Pedagogias descolonizadoras e infâncias: por uma
educação emancipatória desde o nascimento. Maceió: Edufal, 2018.

STÉPHANE BEAUD; FLORENCE WEBER. Guia para a pesquisa de campo: Produzir e


analisar dados etnográficos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: Nunes, Edson Oliveira (org.). A Aventura
Sociológica. Objetividade, Paixão, Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.

1024
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O CASAMENTO DE CRIANÇAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DO
SUJEITO COLETIVO

Vitória Brito Santos445

Resumo: O artigo versa sobre uma etapa de uma pesquisa maior, com foco no Casamento de Crianças no Brasil, na qual
o objetivo princial era “Compreender como os futuros comunicadores entendem e têm aprendido sobre a temática do
Casamento de Crianças no Brasil, bem como analisar seus discursos acerca da temática e dos conceitos de Gênero,
Mídias e Direitos Humanos voltados à infância”. Deste modo, o presente texto trata da segunda etapa exploratória na
qual foi empregado o uso da Análise do Sujeito Coletivo nos discursos de estudantes do curso de comunicação de uma
universidade, a fim de problematizar a temática abordada e seus demais vieses conceituais. Todo o processo desenvolvido
no estágio docência, o qual serviu como lócus da pesquisa com os sujeitos/as, mostra que o ensino de Direitos Humanos
e o entendimento sobre uma leitura crítica dos meios pode vir a fazer muita diferença na formação de um profissional de
comunicação.

Palavras-chave: Casamento de crianças no Brasil; Prática Docente; Análise do Discurso do Sujeito Coletivo;
Comunicação.

INTRODUÇÃO
O presente texto é um recorte da pesquisa de Mestrado da autora, intitulada “Ela se juntou
com um cara! Um estudo sobre o Casamento de Crianças no Brasil, Comunicação e Direitos
Humanos”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social,
da Universidade Feevale. Para este artigo, o foco centra-se nas discussões realizadas na segunda etapa
exploratória da pesquisa a qual foi realizada com estudantes de comunicação através de pratica
docente, a fim de alcançar o objetivo geral da pesquisa que foi “Compreender como os futuros
comunicadores entendem e têm aprendido sobre a temática do Casamento de Crianças no Brasil,
bem como analisar seus discursos acerca da temática e dos conceitos de Gênero, Mídias e Direitos
Humanos voltados à infância”.
O Brasil é o 4º país no mundo em número absoluto de Casamento de Crianças. Os dados
apontam algo como 1,3 milhão de crianças casadas com menos de 18 anos, sendo que 78 mil são
casamentos de meninos e meninas entre 10 e 14 anos. O uso da palavra casamento não se refere
somente ao ato de unir duas pessoas perante a lei, ou perante uma religião, aqui falamos da união
entre duas pessoas, sejam elas do mesmo sexo ou de sexo diferente, independente de comprovação
legal, pois temos que ter isso claro quando falamos de Casamento de Crianças, já que no Brasil ele
não se dá perante juízes – ou a “lei do homem”, como é conhecida essa prática, ou perante um

445
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pelotas, Mestra e Doutoranda em Diversidade Cultural e
Inclusão Social pela Universidade Feevale. E-mail: vita.saochico@gmail.com
1025
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
representante religioso –, uma vez que está previsto na nossa lei que só poderão se casar pessoas
maiores de 16 anos e perante autorizações judiciais.

De acordo com os dados de Mulheres, Empresas e o Direito, a idade legal para as meninas
se casarem é inferior a 18 anos em 12 economias, em comparação com somente 5 no caso
dos meninos. E 17 economias possuem idades de casamento diferentes para meninos e
meninas. Nesses casos, as meninas podem se casar mais cedo. (BANCO MUNDIAL, 2017,
p. 2).

Sendo assim, o que faz o Brasil, que é um país laico, com legislações firmes sobre a proteção
da infância, estar em uma posição tão elevada nesse ranking? Então, a maior motivação está ligada à
questão social. Os casamentos ocorrem principalmente para conseguir que alguém sustente a família,
ter melhores condições de vida ou se livrar dos maus tratos.
Assim, a maioria das crianças, principalmente meninas, se casa em busca de uma vida melhor,
mas isso nem sempre acontece. Há casamentos de meninos menores de idade, no entanto, o Brasil
ainda está arraigado aos pensamentos sobre o local de cada sujeito na sociedade, sendo assim,
“meninas foram feitas para casar e cuidar da casa”. E quando não se tem nenhuma perspectiva de
melhoria da condição de vida na sua família primária, elas se voltam àquilo que aprenderam nos
discursos de gênero, de que deveriam ter um marido.

Falar em gênero ao invés de falar em sexo indica que a condição das mulheres não está
determinada pela biologia ou pelo sexo, mas é invenção de uma engenharia social e política.
Ser homem/ser mulher é uma construção simbólica que faz parte do regime de emergência
dos discursos que configuram sujeitos. (ANA COLLING, 2004, p. 29).

Os discursos de gênero são construções sociais. A história do sujeito feminino desde a infância
é resultado de interpretações e representações que têm como base fundante as relações de poder.
(DAGMAR MEYER, 2003). As formas como as meninas sempre foram tratadas e o casamento com
homens mais velhos estão arraigadas na forma como a sociedade se estruturou. De forma que a
representação do “Eu” feminino e a construção identitária desses sujeitos desde a mais tenra idade
está simbolicamente relacionada à diferença imposta entre os sexos, “[...] a mãe, a esposa dedicada,
a ‘rainha do lar’, digna de ser louvada e santificada, uma mulher sublimada; [...] Aos homens o espaço
público, político, onde centraliza-se o poder; à mulher o privado e seu coração, o santuário do

1026
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lar” (ANA COLLING, 2004, p. 15), esses são alguns dos discursos perpetuados até hoje e que fazem
com que o Casamento de Crianças (meninas) seja maioria no país.
O Brasil, além de ocupar o 4º lugar no mundo em números absolutos de mulheres casadas até
a idade de 15 anos, com 877 mil mulheres com idades entre 20 e 24 anos que se casaram até os 15
anos (11%), é também o quarto país em números absolutos de meninas casadas com idade inferior a
18: cerca de três milhões de mulheres com idades entre 20 e 24 anos casaram antes de completarem
18 anos (36% do total de mulheres casadas nessa mesma faixa etária). Vale ressaltar aqui que o
Código Penal Brasileiro (BRASIL, 2009) traz em sua redação que qualquer ato sexual praticado com
uma criança menor de 14 anos com ou sem o consentimento da vítima é estupro de vulnerável.
As formas como esses discursos são construídos e a incorporação dessa prática na sociedade
moderna alicerçada pela pobreza do país nos faz perceber que uma infância nem tão colorida e
mágica, como as mídias têm retratado ultimamente, é o que temos no Brasil. Podemos pensar: por
que as mídias não falam nessa cultura do Casamento de Crianças ou em tantos outros problemas
“culturais” envolvendo a infância no Brasil? Aonde foi que perdemos a sensibilidade para com o
problema do Outro? A exploração de vulnerável ainda é presente em todos os estados brasileiros,
atingindo em maior proporção as classes menos favorecidas economicamente.

A PRÁTICA DOCENTE
Foram ao todo 20 aulas em uma turma com 36 alunos dos cursos de Jornalismo, Publicidade
e Propaganda (PP), Relações Públicas (RP) e Comércio Exterior (COMEX). O foco da disciplina no
semestre foi baseado na ideia de que Mídia e Cultura podem ser promovedoras de Direitos Humanos
e de Cidadania.
A ideia principal em trabalhar com os estudantes de comunicação era de que os futuros
comunicadores pensassem no seu papel social enquanto educadores não formais e trabalhassem com
a perspectiva de criação de um material que tivesse como base os conceitos de Gênero, Mídia e
Direitos Humanos apresentados a eles durante as aulas da graduação e nos debates sobre a temática,
já que temos nos estudantes de Comunicação uma forma de mudar alguns comportamentos com
relação à maneira como estão sendo produzidos os materiais comunicacionais, como as histórias
sociais têm sido contadas atualmente e, principalmente, sobre a invisibilidade de assuntos
referentes aos direitos infantis na mídia.

1027
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A pesquisa de Mestrado foi, então, dividida em etapas. Aqui são narradas a segunda etapa
exploratória e sua posterior análise. A investigação com os estudantes teve dois momentos distintos:
primeiramente, a proposta da construção de um material446 que auxiliasse na “prevenção”447 da
prática do Casamento de Crianças no Brasil, como resultado dos debates em sala de aula; e, depois,
a aplicação de um questionário sobre as experiências e entendimentos dos estudantes.
O estágio docência fez parte da segunda etapa da exploratória, que ocorreu já com uma parte
de sistematização dos dados coletados na construção teórica da pesquisa. As aulas foram registradas
em diário de campo (instrumento que auxiliou a pesquisadora no estudo e reflexão sobre o que
observava de forma que a revisitação constante do material deu novas pistas e constatações acerca do
fenômeno estudado), e as últimas duas aulas, nas quais os alunos apresentaram seus projetos finais
da disciplina, tinham relação com o tema da dissertação e foram gravadas em áudio para posterior
transcrição e análise, tendo como base a Análise do Discurso do Sujeito Coletivo (ADSC).
Os trabalhos finais foram realizados pelos alunos durante 4 aulas específicas – onde puderam
desenvolver os projetos com o apoio da autora e o da Professora Saraí (titular da disciplina) durante
o período de aula –, os projetos partiram dos estudos feitos em aula e do material bibliográfico e
visual disponibilizado para eles. Todas as campanhas trabalharam com o enfoque do “Casamento de
Crianças”.
Como a autora acompanhou todo o procedimento de elaboração das campanhas, obteve um
material significativo para o diário de campo que foi utilizado para dar sentido à forma de estruturação
dos Discursos Coletivos. Vale destacar que o diário de campo é um instrumento para registro de
atividades, o que permite realizar novas interpretações através de sucessíveis releituras, auxiliando o
crescimento da pesquisadora ao acompanhar esse aprendizado diário e possibilitando que os atos
sejam constantemente reavaliados. Segundo Bachelard (1971), é necessária uma constante reflexão
sobre os próprios atos, técnicas utilizadas e aproximação e/ou revisitação do fenômeno (no caso,
temática) estudada.

METODOLOGIA

446
Esse material poderia ser uma campanha publicitária, um vídeo, um cartaz, um livro etc.
447
Os materiais produzidos pelos alunos acerca da temática investigada também fizeram parte do corpus de análise
da segunda fase da exploratória.
1028
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Conforme já descrito no item anterior, a Dissertação teve algumas etapas, a saber: pesquisa
da pesquisa, pesquisa teórica e conceitual, pesquisa sistemática, pesquisa quantitativa e qualitativa
divididas em duas etapas exploratórias (uma para cada) com suas respectivas análises. O recorte
trazido no presente artigo é o da segunda etapa exploratória que se deu pelo viés teórico-metodológico
da Análise do Discurso do Sujeito Coletivo. A Análise do Discurso do Sujeito Coletivo proposta
pelos teóricos Lefevrè e Ana Maria C. Lefevrè (2000) é uma metodologia qualitativa baseada em
quatro figuras metodológicas que auxiliam na análise e na tabulação dos depoimentos dos sujeitos,
são elas:
• Ancoragem (A) = todo o discurso está ancorado de alguma forma em pressupostos, conceitos,
hipóteses e teoria, sendo assim, a ancoragem é o suporte que o sujeito usa para construir suas
marcas linguísticas;
• Ideia Central (IC) = a afirmação que permitirá compreender o sentido essencial do discurso
do sujeito em seu depoimento;
• Expressões-Chave (EC) = aqui tem-se a transcrição literal de partes dos depoimentos dos
sujeitos, de forma a validar a ideia central, tendo em vista que ao compararmos a expressão-
chave com o discurso da ancoragem conseguimos comprovar empiricamente o local de fala
do sujeito. Será com essas expressões que construiremos o Discurso do Sujeito Coletivo;
• Discurso do Sujeito Coletivo = é a busca por resgatar o discurso como um signo,
compreendendo que não podemos reduzi-lo a categorias unificadoras. A ideia é reconstruir as
falas como num grande quebra-cabeça onde juntamos os discursos individuais através das
figuras anteriores, buscando criar um discurso que expresse os signos sobre um determinado
fenômeno.
Apesar de dividida em três partes – na dissertação – e subcapítulos, a análise é um processo
de atravessamentos, pois cada uma das etapas tem relação direta com as outras. Afinal, estamos
falando de trabalhos e discursos produzidos por sujeitos que carregam suas bagagens culturais, suas
vivências e suas intepretações de mundo e, principalmente, as formas como eles concebem a
representação social.

Um modo legitimo – não por certo, o único – de conceber as Representações Sociais consiste
em entende-las como a expressão do que pensa ou acha determinada população sobre
determinado tema. Este pensar, por sua vez pode se manifestar, dentre outros modos, através
do conjunto de discursos verbais emitidos por pessoas dessa população. (LEFEVRÈ; ANA
MARIA C. LEFEVRÈ, 2000, p. 13).

1029
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Baseando-se nessa ideia, todos os áudios foram transcritos de forma literal conforme pede a
metodologia da ADSC, resultando em mais de 11 mil palavras transcritas em 31 páginas de Word. A
partir das transcrições, encontrou-se as quatro figuras metodológicas propostas por Lefevrè e Ana
Maria C. Lefevrè (2000), com as quais foram montadas tabelas no Excel. Cada grupo tornou-se uma
tabela (a turma foi dividida em 10 grupos para o desenvolvimento da atividade final), onde foram
colocadas primeiramente as Ancoragens encontradas durante a leitura e escuta dos áudios dos
estudantes, foram 7 ancoragens. Com base nessas Ancoragens, foram encontradas as Ideias Centrais
para os DSC sobre cada uma dessas ancoragens nas quais os alunos fundamentaram seus discursos.
Após, foram transcritos para as tabelas os trechos literais do discurso onde eles fundamentavam essas
ideias, as expressões chaves, e por último construiu-se os discursos coletivos.
Esse processo de ADSC auxiliou na compreensão de como os alunos criaram as campanhas,
pois o discurso é uma defesa do material elaborado por eles,

[...] pesquisas qualitativas apoiadas em pressupostos sociológicos, trabalham num espaço


denominado “campo”, o que faz com que se deva entender as pessoas, objetos destas
pesquisas, como um conjunto de indivíduos que, situadas numa dada posição no campo, são
identificáveis como uma categoria na medida em que, segundo Bourdieu, detém habitus e
representações semelhantes, que se traduzem em determinadas práticas sociais e modalidades
de discursos que as expressam. (LEFEVRÈ; ANA MARIA C. LEFEVRÈ, 2000, p. 15, grifo
do autor).

O que buscou-se foi a união dos materiais coletados de modo a cruzar os dados obtidos através
da análise individual de cada um, porém, usando como base o próprio discurso dos alunos, tendo
como sustentação aquilo que foi trabalhado em aula “no nível interpretativo podemos obter respostas
melhores ou piores – dependendo de vários fatores, tais como adequação do referencial teórico,
imaginação/inteligência [...]”. (LEFEVRÈ; ANA MARIA C. LEFEVRÈ, 2000, p. 14).

ANÁLISE DO DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO


Esta parte do processo de Análise na dissertação foi dividida em 2 tópicos: “Dos discursos
sociais” e “Botando a mão na massa”. No primeiro tópico fez-se uso da ADSC448, utilizando todos os

448
Os termos metodológicos utilizados nessa etapa da pesquisa são os utilizados pelos teóricos que desenvolveram
a metodologia. “Ideia Central”, “Impressões” etc. não são as melhores terminologias na área das Ciências Sociais
e Humanas quando defendemos uma ideia de construção coletiva, de processo inacabado, de ideias nunca prontas,
1030
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
procedimentos metodológicos propostos por Lefevrè e Ana Maria C. Lefevrè (2000) com o intuito de
compreender a Representação Social dos alunos frente às temáticas estudadas, assim como refletir
sobre o sentido de coletividade expresso em um trabalho realizado em grupo com a temática dos
Direitos Humanos, tendo em vista que o assunto demanda uma reflexão pautada na lógica social. No
segundo tópico foi apresentado o resultado de todo o processo de trabalho dos alunos e, de forma
mais concreta, como eles deram sentido aos seus discursos através das campanhas, as quais não
compõem esse artigo por delimitação de espaço. Salienta-se que as campanhas não foram analisadas
semioticamente, elas compuseram a Dissertação com o intuito de mostrar como os alunos realizaram
os seus trabalhos a partir dos seus entendimentos da temática.
O processo de aproximação com o material empírico foi cansativo e trabalhoso. Transcrever
áudios é uma tarefa minuciosa que requer muita atenção e dedicação. Foram utilizados dois softwares
de computador para dar conta da transcrição dos discursos dos 10 grupos. Conforme proposto pelos
teóricos Lefèvre e Ana Maria C. Lefèvre (2000), a transcrição dos áudios precisa ser literal e
completa. Após a transcrição completa, as falas foram relidas mais de uma vez para que se pudesse
encontrar as Ancoragens principais expressas e assim dar início ao processo de tabulação das demais
informações seguindo as etapas do DSC.

A proposta do Discursos do Sujeito Coletivo, como forma de conhecimento ou redução da


variabilidade discursiva empírica, implica um radical rompimento com esta lógica
quantitativo-classificatória, na medida em que se busca resgatar o discurso como signo de
conhecimentos dos próprios discursos. (LEFÈVRE; ANA MARIA C. LEFÈVRE, 2000, p.
19, grifo do autor).

Ao todo, foram elencadas as sete Ancoragens que apareceram com mais frequência nos
discursos individuais dos alunos, “[...] um discurso está ancorado quando é possível encontrar nele
traços linguísticos explícitos de teorias, hipóteses, conceitos, ideologias existentes na sociedade e na
cultura e que estes estejam internalizados no indivíduo”. (LEFÈVRE; ANA MARIA C. LEFÈVRE,
2000, p. 17, grifo do autor). Foi com base nessas Ancoragens que eles construíram a argumentação
utilizada na apresentação do trabalho, a confecção das campanhas, a escolha dos materiais e os
veículos onde elas poderiam ser divulgadas. As Ancoragens são:

finalizadas ou únicas. Porém, para seguir a lógica argumentativa estruturada pelos autores (LEFÈVRE; ANA
MARIA C. LEFÈVRE, 2000), utilizar esses termos se faz necessário.
1031
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
1. Casamento de Crianças em outras partes do mundo: A temática Casamento de Crianças
aparece em toda as falas, afinal fazia parte do briefing do projeto dos alunos, além disso, eles
precisaram partir de uma noção global para entender o local.
2. Casamento de Crianças: Foi com base no material estudado sobre esse assunto que eles
construíram as campanhas, deste modo, todos os trabalhos trazem o tema como central, de
formas diferentes, porém, fazendo referência ao processo de Casamento de Crianças no
Brasil.
3. Falta de Notícias: Ao procurarem materiais diversificados dos que haviam sido apresentados,
os estudantes se deram conta, assim como a autora durante a pesquisa, de que não havia quase
nada sobre a temática. E que o que tinha de mais relevante já tinha sido socializado com eles
em aula. Ficava a dúvida, por que não tem mais informações?
4. Contexto Social: Nunca se pode dissociar os trabalhos do local onde eles são produzidos. O
que são? E para quem são? Nos discursos, os alunos frisam a importância do contexto social
do nosso país para os casos de casamento: um exemplo é a falta de investimento em saúde e
educação.
5. Pobreza: Da mesa forma que a autora descobriu durante a leitura das notícias, os estudantes
também encontraram a pobreza como um fator determinante da prática no país. A miséria tem
sido forte protagonista de muitos dos processos de enfrentamentos sociais pelos quais a
infância tem passado, não só no Brasil.
6. Cultura do Machismo: Nos discursos, fica nítido que os alunos compreenderam que não são
quaisquer crianças, que são meninas as principais afetadas e que isso está atrelado à forma
como construímos a nossa sociedade. Que o problema do casamento é um problema de gênero
devido à estrutura inicialmente patriarcal do nosso país. E que hoje, ainda, é reforçada nas
lógicas do machismo – de “ter uma novinha para criar”.
7. Jovens – Cabeça aberta: Os estudantes enxergam na juventude (eles e as gerações seguintes)
as formas de mudar a sociedade. Eles creem que a maioria dos jovens tem a cabeça aberta e
não estão completamente formados por padrões sociais impostos às pessoas, que ainda haveria
forma de mudar os comportamentos dessa geração a fim de contribuir com a formação das
gerações futuras.

1032
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Fazer pesquisa é uma constante experimentação. O procedimento de análise dos dados
coletados se mostra cansativo, trabalhoso e muitas vezes conflitante. A escolha das Ancoragens
perpassa as ideias da pesquisadora enquanto sujeito e principalmente suas correntes de pensamento,
pois o caminho percorrido aqui é o de reflexão sobre o discurso. E sendo a cientista um ser humano,
integrante da sociedade, as ideias se confundem muitas vezes com as dos sujeitos pesquisados, afinal,
o método não é um caminho pré-definido, ele se constrói na pesquisa e vai se refletindo na prática.
Não há objetivação da pesquisa, há sim muita subjetividade no desenvolvimento de uma
investigação. A escrita da pesquisa foi feita em primeira449 pessoa e isso é um posicionamento, é a
manifestação da subjetividade da pesquisadora. Logicamente que o subjetivo é posto de forma a não
interferir no pensamento dos sujeitos investigados, mas em confluência com eles, para ajudar na
reflexão sobre o modo de ver as coisas. Lembrando que é sempre preciso manter um distanciamento,
praticar a vigilância epistemológica. (BACHELARD, 1971).
Segundo os critérios dos teóricos utilizados para a organização metodológica da pesquisa, os
Discursos Coletivos são estruturados unicamente com as falas transcritas dos sujeitos, nesse caso dos
estudantes – aqui identificadas como as Expressões-Chave retiradas de cada discurso individual.
Apenas conectivos e adequação linguística foram utilizados para dar sentido à narrativa. Construir o
Discurso do Sujeito Coletivo com as informações obtidas com os alunos já é um processo de análise,
afinal, ao ler, interpretar e refletir sobre cada discurso individual, buscando uni-lo a outro e assim
formar uma ideia coletiva, já é uma forma de representação social, possibilitando que se tenha
crenças, valores, e pensamentos de uma coletividade de forma natural, sem reduzir isso a números.
(LEFRÈVE; ANA MARIA C. LEFRÈVE, 2000).
Após a identificação das Ancoragens, partiu-se para a definição das Ideias Centrais as quais
foram respondidas com a construção dos Discursos Coletivos. As Ideias Centrais foram organizadas
a partir dos discursos transcritos, todos em relação com as Ancoragens citadas acima. A Análise do
Discurso do Sujeito Coletivo não é uma metodologia usual nas áreas das Ciências Humanas e Sociais,
porém, apostamos que o pesquisador constrói o método, as formas de fazer pesquisa e de dialogar
com o conhecimento.

449
Aqui o texto foi adequado por constar no modelo de submissão que preferencialmente se buscasse ser em
terceira pessoa ou impessoal.
1033
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Importante esclarecer que foram percorridas diferentes etapas até encontrar o resultado de
Discurso Coletivo que será apresentado a seguir. Devido a se tratar de um artigo, serão colocadas
somente três das sete Ancoragens. Após transcrever os áudios, foi criada uma tabela no Excel para
cada um dos grupos que participaram da atividade na turma de Mídia e Cultura. A tabela foi dívida
em 7 partes, uma para cada Ancoragem. As Expressões-Chave (de forma literal), conforme haviam
sido obtidas na transcrição, foram colocadas nas Ancoragens que tinham relação com o discurso.

Busca-se aqui o resgate da literalidade do depoimento. Este resgate é fundamental na medida


em que, através dele, o leitor é capaz – comparando um trecho de selecionada do depoimento
com a integralidade do discurso e com as afirmativas reconstruídas sob forma de idéias (sic)
centrais e ancoragens – de julgar a pertinência ou não da seleção e da tradução dos
depoimentos. Portanto, as expressões-chave são uma espécie de “prova discursivo-empírica”
da “verdade” das ideias centrais e das ancoragens e vice-versa. (LEFÈVRE; ANA MARIA
C. LEFÈVRE, 2000, p. 18).

Dentro de cada box está a Ancoragem, numeradas a 1, a 2, a 3 e a 7. Abaixo de cada


Ancoragem está sua Ideia Central. Após, o Discurso do Sujeito Coletivo. E, por fim, após os
Discursos do Sujeito Coletivo de cada Ancoragem, as Impressões da pesquisadora.

1 - Casamento de Crianças em outras partes do mundo

Ideia central 1:
A prática do Casamento de Crianças é global, os números são muito altos e as estimativas
revelam um cenário assustador.
Discurso do Sujeito Coletivo 1:
A intenção tem que ser a de mostrar que isso acontece não só aqui para nós no Brasil, mas em
todos os lugares do mundo. São mais de 700 milhões de crianças menores de 18 casadas no mundo
todo, 17% só na África, e isso representa mais de 125 milhões. No Brasil são mais de 1,3 milhão de
meninas casadas. Entre 13 e 14 anos de idade são 88 mil e com idade de até 15 anos são 877 mil
meninas casadas no Brasil. Um dado do Fundo de População das Nações Unidas e do Fundo na ONU
para a infância diz que em 2030 o número de mulheres e meninas que terão casado durante a infância
pode chegar a 1 bilhão.
Ideia central 2:

1034
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As meninas são porta-vozes de sua própria história.
Discurso do Sujeito Coletivo 2:
Ano passado uma menina ficou muito conhecida, Sarita, ela gravou um videoclipe que diz
tipo assim: “não vendam as noivas”, “não vendam as meninas, não façam elas se tornarem noivas”.
Por que isso aconteceu com ela? Tem um relato de que a mãe dela ia vender ela, os pais dela iam
vender ela. Ela diz: “quando a minha mãe me disse que queria me vender, senti como se estivesse
morrendo. Tive medo de perder o meu futuro e não conseguia entender o que ela via nisso”. Ela não
entendia porque a mãe dela não estava nem aí para o futuro dela. E isso acontece com um monte de
meninas.

2 - O Casamento de Crianças

Ideia Central 1:
O número de casamentos é muito grande, a colocação em que estamos no ranking é
extremamente preocupante.

Discurso do Sujeito Coletivo 1:


O Brasil está em quarto no mundo no ranking dos países com o maior número de Casamentos
Infantis, segundo as pesquisas feitas pela Universidade Federal do Pará. Mais de 1 milhão de mulheres
se casaram antes dos 18, há casos, porém, de uniões envolvendo crianças de 10 anos. Casadas até os
15 anos são 877 mil, entre 10 e 14 mais de 88 mil meninas e meninos vivem em uniões formais ou
informais. O Casamento Infantil, ele é definido como união formal e informal antes dos 18 anos e ele
é uma realidade para ambos os sexos, embora as meninas sejam proporcionalmente as mais afetadas.
Estima-se que 100 milhões de meninas poderão ser vítimas de casamentos forçados durante a próxima
década. O Casamento Infantil é um tema não muito conhecido ainda, mas a gente quer mostrar que
ele é presente também no Brasil. Muita gente acha que o Casamento Infantil ocorre mais na África,
na Ásia, Oriente Médio e quando fala no Brasil eles pensam que é só Nordeste, exclusividade do
Nordeste e do Norte, daquelas regiões.
Entre as principais razões do casamento estão a gravidez indesejada, controle dos pais
sobre a sexualidade das filhas e a pobreza da família. Muitas são as consequências que isso pode

1035
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
causar na vida das jovens e das adolescentes. São centenas de crianças que sofrem abusos de seus
parceiros, Casamento Infantil é crime. Todos os anos milhões de meninos e meninas têm se obrigado
a fazer parte desses dados. Parece meio obvio a gente concluir isso. Porque todo mundo acho que
concluiu isso também, sobre os dados. Mas a gente conseguiu ver uma realidade. Que ela existe
mesmo.
Ideia Central 2:
A fala das pessoas demonstra um desconhecimento sobre o tema, e uma ideia equivocada
sobre o que é casamento.
Discurso do Sujeito Coletivo 2:
O pessoal não sabe. Todas as pessoas com quem comentamos, ninguém conhece, ninguém
sabia de Casamento Infantil. Sabem que caras mais velhos saem com meninas mais novas, se
relacionam com meninas mais novas, só que eles não sabem que isso no Brasil não é permitido. O
casamento, a moradia, a relação sexual entre essas pessoas é proibida no Brasil. A gente explicou
para eles que não é o papel que faz o casamento, a guria de 14 anos que limpa a casa, passa roupa e
alimenta o marido, isso é um casamento, eles ficaram “nossa, como assim?”. Teve uma menina 16
anos que se mudou com um cara de 40, moravam juntos, ela continuou estudando, ela estava no
primeiro ano do Ensino Médio.

Ideia Central 3:
Não podemos tratar o tema com descaso, ou como algo menos relevante.
Discurso do Sujeito Coletivo 3:
A prática é comum no Brasil e é usada por meninas para se defender da violência doméstica.
O que que vai ser da vida delas agora, daqui para a frente? Porque não vai ser uma opção, o casamento
não pode ser levado como brincadeira. Quando isso acontece é como se colocassem um preço na
infância, é como se a criança estivesse sendo vendida, afinal, o lugar de criança é com os pais, não
com marido.

3 – Falta de notícias

Ideia Central 1:

1036
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Casamento Infantil no mundo todo não é abordado pela mídia, principalmente o que ocorre
no Brasil.
Discurso do Sujeito Coletivo 1:
São poucas as notícias que têm sobre o Casamento Infantil no Brasil, não tem muito na mídia
dessa questão do casamento. É um assunto que ainda é pouco conhecido pela grande mídia, não é tão
falado ou não é exposto da maneira correta, isso porque hoje em dia a gente tem uma certa dificuldade
de atingir as pessoas com conteúdo real. Entende-se que é um assunto muito difícil de ser tratado pela
pouca visibilidade que ele tem e a forma como é colocado, tanto a gente, como as pessoas em geral
que são leigas no assunto não consegue entender qual é a dimensão dele dentro do contexto que a
gente vive. Precisamos chamar a atenção do pessoal para esse assunto que não é tão divulgado,
não é tão difundido. No Brasil, 90% das pessoas não sabem disso. As conclusões que a gente tirou
desse trabalho, apesar de estar fora do foco da grande mídia, é que chama para realidade, é ver o
quanto no Brasil isso existe.
Antes de a gente falar sobre isso em aula nós até sabíamos que existia, mas a maioria de nós
nunca tinha visto dados, nem notícia e nem mais nada. A gente quase não vê notícias disso. A gente
encontra poucas informações porque o que a gente encontra bastante são casos de estupro de
vulnerável, de abusos e de violência, que também é algo muito preocupante, mas o caso do Casamento
Infantil quando a família está de acordo a gente não vê, o noticiário não divulga, a gente não vê em
TV aberta. São poucos os casos que a gente vê em canais pagos, em que eles estão falando do
Casamento Infantil. E isso gera aquele questionamento, por que é que não tem?
Fica esse questionamento. Por que que eles não divulgam? Será que não é interessante? Não
gera lucros às emissoras, ou a família da criança está de acordo e está todo mundo de acordo então
não vamos falar disso para que que a gente vai mexer? Então, a gente fica ainda com esse
questionamento. A gente vê que os números, são números enormes, o impacto na vida dessas crianças
não deve ser positivo porque elas ainda são menores de idade e estão se conhecendo.
Isso é uma coisa também que não é muito divulgada, se não é falado tanto em Casamento
Infantil, quem dirá nas coisas que acontecem no Casamento Infantil. Tipo, parece aquele lance de
brincar de casinha né. O pessoal não está querendo ver isso daí, porque se for, quem quer ver isso daí
enxerga Casamento Infantil, assim como todo mundo aqui não estava vendo. E como não tem

1037
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
muita informação sobre isso, então fica bem mais difícil de querer, de conseguir enxergar mesmo
querendo.

7 – Jovens: Cabeça aberta

Ideia Central 1:
Os jovens ainda estão em formação, deste modo, conversar com eles faz com que a
informação possa ser disseminada de forma mais fácil.
Discurso do Sujeito Coletivo 1
A ideia dos nossos trabalhos foi de atingir os nossos amigos primeiramente. Acho que esse é
o objetivo, chamar a atenção para esse fato. A gente quis começar da parte menor, então a gente quis
falar com os adolescentes que é o que aborda o tema, passar para eles sobre o assunto. A gente
escolheu eles porque pensamos: “nossa, são aquelas pessoas ali que vão fazer o futuro”. A gente
pensou em engajar as pessoas menores, os adolescentes que estão naquela formação e geralmente têm
a mente mais aberta, geralmente né, então a gente focou neles. Somos jovens, vivemos em um mundo
livre, e não imaginamos tudo que acontece ao nosso redor. É uma questão universitária também.
Impressões
O DSC está firmado em uma ideia de Representação Social, essa que passa pelos conceitos
trabalhados na Dissertação: Direitos Humanos e Cidadania; Identidade Infantil; e Pobreza. Bem
como, as temáticas tratadas em aula, que foram ampliadas para além dos conceitos teóricos principais,
tal como: Gênero; Mídia; Cultura e Educação. Os discursos acima perpassam todos esses temas, e na
maioria das vezes se complementam. Muitos dos pontos levantados pelos alunos e descritos em cada
uma das Ideias Centrais são formas de visualizar essa Representação Social.

Através do modo discurso é possível visualizar melhor a representação social, na medida em


que ela aparece, não sob uma forma (artificial de quadros, tabelas ou categorias, mas sob uma
forma (mais viva) de um discurso que é como, assinalou, o modo como os indivíduos reais,
concretos pensam. (LEFÈVRE; ANA MARIA C. LEFÈVRE, 2000, p. 20).

Os dados trazidos pelos alunos no discurso da primeira Ancoragem são dados trabalhados
com eles em aula, através do texto escrito pela autora juntamente com a professora Saraí para um
congresso. A apropriação que eles fazem disso, de forma a legitimar aquilo que estavam
1038
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
apresentando é muito importante. Principalmente porque eles buscam a fonte original e releem as
matérias, inclusive, trazendo novos cases. Esse procedimento de checagem de informações e
ampliação de dados é extremamente importante em épocas de pós-verdade, onde no campo da
comunicação não se busca mais a checagem de fatos, e se propagam informações após a leitura de
manchetes.
Bauman (2011) coloca que olhar para o Outro, da forma como eles fazem através de falas
como “isso acontece em todos os lugares do mundo”, demostra um olhar plural, um entendimento de
que os direitos da infância em todo o mundo são falhos. Isso é um problema global. Enxergar o local
primeiro faz toda a diferença na forma como se vai olhar o macro. (SANTOS, 2008). Perceber que o
micro tem um número exorbitante de casamentos, e que em estimativas mundiais isso deve aumentar
exponencialmente nos próximos anos, revela um engajamento na tentativa de mudança e que pode
ser observado no resultado desse discurso (material visual) produzido por eles.
Aquilo que eles denominaram como a realidade que a gente não quer ver é demonstrar estar
aberto a compreender que países com menor grau de desenvolvimento podem ter melhores formas de
ver e tratar os assuntos sociais do que países em desenvolvimento. É, conforme Japiassu (2005), um
entendimento de que o mundo é maior que o ocidente e que tem-se muitos problemas por aqui
também. A narração do fato acontecido com a menina Sarita – que tomou-se conhecimento em aula,
através dos alunos – é um exemplo de um interesse real sobre o assunto debatido na disciplina, pois
é um fato novo, não mostrado pela autora.

As representações sociais se apresentam como uma maneira de interpretar e pensar a


realidade cotidiana, uma forma de conhecimento da atividade mental desenvolvida pelos
indivíduos e pelos grupos para fixar suas posições em relação a situações, eventos, objetivos
e comunicações que lhes concernem. (SÊGA, 2000, p. 128).

Nossos conhecimentos socializados se tornam uma forma mais fácil de aprender a aprender.
Ver os alunos “comprando” a ideia foi muito bom, e ao trabalhar com a construção dos discursos isso
se solidifica através da possibilidade que tem-se de reler o que por eles foi dito e a forma como se
apropriaram dos conceitos e da ideia dos Direitos Humanos.
Viola (2006) lembra que falar de Direitos Humanos é colocar em dúvida tudo aquilo que se
pressupõe saber. Ao termos Direitos Humanos em paralelo à Diversidade Cultural, isso se torna
mais primordial. Como é colocado ao longo da Dissertação, falar de Casamento de Crianças é
1039
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
falar de Direitos Humanos. Isso foi debatido em muitos momentos do estágio docência com os alunos,
principalemente a ideia de sair do senso comum sobre o que é afinal Direitos Humanos.
(COMPARATO, 2015).
A Ancoragem 2 é uma explanação sobre o dados do Casamento de Crianças no Brasil e o
choque, que é coletivo, pelo posicionamento que se ocupa no ranking mundial. Mas o mais importante
é que, ao trazer os dados, os alunos se referem às razões do casamento, e nesse momento deixam bem
frisadas a questão de que estamos falando de meninas (gênero), de uma regulação social dos corpos
jovens, de a culpa de uma gravidez não planejada ser sempre das mulheres.
A frase “Casamento Infantil é crime” é um posicionamento político e social por parte dos
estudantes. É a demostração de que as leis precisam ser revistas e que as estimativas globais do que
poderá acontecer se não falarmos sobre o assunto são assustadoras, “[...] direitos e cidadania são um
campo de disputa social na qual diferentes significados estão sendo definidos [...]”. (VIOLA, 2006,
p. 124). Quando os estudantes tomam consciência de que esse fenômeno existe, não porque foi falado
em aula, mas porque eles pesquisaram, eles conseguem ver a realidade e passam a figurar nesse campo
de disputa social, uma disputa em busca de uma nova forma de olhar o Outro.
Esse olhar o Outro, que não é visto por eles no que cabe a essa temática, fica explícito no DSC
2 da segunda Ancoragem, no qual mais de uma vez eles repetem: “as pessoas não sabem”; “com
quem comentamos ninguém sabia”. Esse não saber fica mais evidente quando eles falam sobre a falta
de notícias na Ancoragem 3, porém, o que eles trazem nesse momento é aquilo definido como
apagamento social. Como se meninas com 14 anos vivendo com um homem mais velho, cuidando da
casa e tendo relações sexuais não fosse um casamento. Uma ideia que parte do pressuposto do local
social da mulher ser em casa. (ANA COLLING, 2004).
Sabe-se que até o final do ano de 2016 a temática quase não figurava nas pautas sociais e tinha
recentemente começado a ser estudada pela UFPA, a Instituição Promundo e a Plan International, ou
seja, ainda não era a “bandeira principal” de grandes instituições ou coletivos de militantes. Isso fica
explícito nas reportagens analisadas para a pesquisa, “os pesquisadores alertam para a falta de
discussão sobre o tema no Brasil e a necessidade de mudanças na legislação”. (FERNANDA
ESCOSSIA, 2015, s.p.).
O debate com os alunos é uma forma de fazer o tema circular. A reflexão que os
estudantes propõem acerca do descaso com o qual o tema vem sendo tratado e a pouca

1040
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
importância que se dá à temática é definida por eles “como se a infância tivesse um preço” e “pudesse
ser vendida”, ou seja, um Não Olhar para a infância e para a forma como se pode fazer isso parar.
Esse processo pode ser definido, conforme Santos (2008), como um exemplo de sistemas de
desigualdades acoplados a sistemas de exclusão. E o que pode vir a mudar isso é uma socialização de
informações, uma militância pelo tema.
Quando o material coletado na primeira etapa da exploratória foi mostrado para os alunos, as
14 reportagens e,ou notícias sobre o assunto, debatemos a questão de serem tão poucas. Ao fazer o
trabalho final eles acabaram por comprovar que realmente elas eram inexistentes. Fato esse que eles
já haviam levantado, pois como receptores de produtos midiáticos, poucos tinham algum
conhecimento sobre a temática.
A mídia é um elemento fundamental na proteção e consolidação dos Direitos Humanos. As
instâncias da cidadania comunicativa, proporcionadas pela sua propagação de informações,
programas, veículos e formas de tornar visíveis as histórias e as vidas dos sujeitos se fazem de extrema
importância quando pensamos em lógicas de equidade. (MARIA CRISTINA MATA, 2006). Quando
os alunos abordam a questão da dificuldade em se atingir o público com conteúdo real, isso tem
vinculação direta com as informações do primeiro DSC, a onda de Fake News, no que tange as áreas
sociais, presta um desserviço muito grande à proteção integral da infância.
Enxergar no jovem a possibilidade de mudança sempre esteve presente na sociedade vigente.
A 7ª Ancoragem vai tratar justamente sobre quem são as pessoas que podem fazer algo para mudar
toda essa realidade vista até aqui. O “futuro da sociedade” está nas mãos das “novas cabeças
pensantes”. Mostrar para o jovem o mundo que o cerca, as coisas que estão para além dos muros da
sua casa, da sua escola, da sua universidade. Essa era a proposta dos próprios estudantes ao utilizarem
como foco da maioria de suas campanhas os jovens. Por acreditarem que eles têm a capacidade de
mudar o mundo, de mudar a forma de se olhar para esse Outro.
Quando os estudantes socializam o que apenderam em aula com outros jovens, assim como
eles, mostram que acreditam no potencial da geração que aqui está. Chama muito a atenção a ressalva
que a maioria trouxe no seu discurso, de que “os jovens deveriam ter a cabeça aberta”. Para eles, se
espera que uma pessoa mais velha tenha problemas em tratar a homossexualidade, por exemplo, mas
não estudantes com idades semelhantes às deles e que crescem em uma sociedade cercada de
pessoas diferentes umas das outras e aprendendo a conviver com as diferenças, respeitá-las e

1041
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
jamais anulá-las, já que ser diferente não é um problema, o problema é quando as diferenças geram
desigualdade.
Segundo Santos (2008, p. 19), “a luta pelo princípio da igualdade deve ser conduzida de par
com a luta pelo princípio do reconhecimento da diferença”, e nisso reside o discurso dessa última
Ancoragem, a ideia de que é através desses jovens que a temática trabalhada na Dissertação e
representada em cada um desses discursos coletivos dos estudantes se fortifica. Uma ideia de que
cada um e cada uma que participou da disciplina iria tentar deixar o mundo mais igual, mas lutando
por um reconhecimento de que somos diferentes e que precisamos olhar para essas diferenças. Que o
entorno é importante, que nos educamos para as mídias e não por elas, que precisam entender os
contextos, os nossos lugares de fala e que principalmente precisam levar isso adiante.
Quando eles falam no final do Discurso que vivem em um mundo livre, porém não imaginam
que coisas como o Casamento de Crianças ocorrem, eles estão demostrando que possivelmente vai
ser daquele momento em diante que da parte deles isso vai mudar, atitudes que eles sinalizaram em
vários dos discursos ao longo dessas Ancoragens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da elaboração da Dissertação a proposta inicial era, além de refletir como e por que
ocorre o Casamento de Crianças no Brasil, entender principalmente como os futuros comunicadores
compreendem esse assunto e os demais temas abordados na pesquisa e que se relacionam com os
Direitos Humanos.
Os estudantes, a partir de suas visões de mundo, com base no material disponibilizado e
socializado com eles em aula, foram provocados a realizar campanhas sobre a temática. Eles trazem,
no material por eles produzido, esses tópicos relacionados acima aos fatores sociais, tais como: a
pobreza, o machismo, a falta de políticas públicas para a infância e a falta de entendimento sobre os
Direitos Humanos. Mas mostram, principalmente, um Não-Olhar. Eles problematizam, por meio das
imagens utilizadas, das frases e das hashtags escolhidas, o discurso da novinha; o discurso do “tá
tudo bem” se tem alguém cuidando dela; o discurso de ela escolheu; e mostram que não é bem assim.
Não é uma escolha. Como diz um dos trabalhos: “para algumas é a única opção”.
Quando eles enxergam esse Outro e conseguem se colocar minimamente no lugar desses
sujeitos, eles mostram que se os estudantes forem sensibilizados a pensar sobre essas temáticas

1042
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a potencialidade em se criar campanhas viáveis, alternativas, mesmo com pouco recurso é possível.
Eles mostram, principalmente, que falta ainda dentro do curso de Comunicação um olhar para os
Direitos Humanos, a Infância, o Gênero e suas conexões com a Mídia.
Desde o primeiro dia de aula, deixamos muito claro, que não existe certo e errado, bem e mal.
A vida é um pêndulo. Existe o respeito e que eles nunca poderiam confundir opinião com discurso de
ódio. Ao organizar os Discursos do Sujeito Coletivo observamos o amadurecimento nos debates, pois
mesmo que os pensamentos não sejam iguais, que haja discordância em alguns pontos, eles
conseguiram fazer isso com argumentos sólidos. Eles entenderam que não precisavam concordar com
os discursos, mas eles precisam respeitar quando esse discurso não é uma forma de preconceito, no
caso não sendo um desrespeito ao Outro. Todos os discursos contêm em si marcas próprias do sujeito
que o emite. (CHARAUDEAU, 2008). As atividades foram desenvolvidas com 36 alunos (15 do sexo
feminino e 21 do sexo masculino), vindos de lugares diferentes, de cursos diferentes e que divergiram
muito em alguns momentos e pensamentos.
A proposta de buscar por um Discurso Coletivo foi a de compreender se os estudantes de
Comunicação, ao serem sensibilizados sobre temáticas como Gênero, Mídia e Direitos Humanos,
conseguiam refletir sobre o assunto de forma a enxergar o Outro como ser social. Buscou-se isso uma
vez que as atividades desenvolvidas durante o estágio docência buscavam conscientizar os alunos
sobre seu lugar de fala enquanto educadores não formais e mostrar como eles têm potencialidades
para tornar a mídia um local mais democrático quando se refere às minorias. Penso no Discurso
Coletivo como um mecanismo para verificar se o problema encontrado durante a Dissertação – falta
de material jornalístico sobre a temática e repetição de discurso (no sentido de as mesmas informações
noticiosas) – é resultado de uma falta de preparo ainda na graduação sobre o entendimento do Outro.
Todo o processo desenvolvido no estágio docência mostra que o ensino de Direitos Humanos
e o entendimento sobre uma leitura crítica dos meios podem vir a fazer muita diferença na formação
de um profissional de comunicação. E isso impactaria diretamente na forma que se produz
comunicação sobre e para as minorias atualmente. “Ter a coragem de emitir nossas opiniões significa
ter a coragem de pensarmos por nós mesmos e formamos nosso próprio juízo [...].” (JAPIASSU,
2005, p. 8). Os estudantes têm potencialidades para olhar o Outro, para se sensibilizar sobre as
temáticas dos Direitos Humanos e para iniciarem as mudanças na forma de se produzir conteúdo,
tudo isso fica claro nos seus discursos.

1043
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Lisboa: Edições 70, 1971

BANCO MUNDIAL. Fechando a Brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher contra a


Violência. Washington, 2017.
BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2011.

BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-
Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho
de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5º da Constituição
Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1º de julho de 1954, que trata de corrupção de menores.

CHARAUDEAU, Patrick. Problemas de abordagem na análise do discurso. In: ______. Linguagem


e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

ANA COLLING. A construção histórica do masculino e do feminino. In: MARLENE STREY;


SONIA CABEDA, SONIA PRHEN, T. Lisboa (Org.). Gênero e Cultura: questões contemporâneas.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 13-38.

COMPARATO, Bruno Konder. Especialização em Educação em Direitos Humanos. São Paulo:


USP, 2015.

FERNADA ESCOSSIA. Pobreza e abusos estimulam casamentos infantis no Brasil. BBC Brasil,
Rio de Janeiro, 9 set. 2015.

JAPIASSU, Hilton. A origem humana do poder e da opinião pública. Em debate – PUC Rio, Rio de
Janeiro, p. 1-8, 2005.

LEFEVRÈ, Fernando; ANA MARIA LEFEVRÈ. Os novos instrumentos no contexto da pesquisa


qualitativa. In: LEFEVRÈ, Fernando; ANA MARIA LEFEVRÈ; TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira. O
discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do
Sul: EDUCS, 2000. p. 11-36.

MADOLNADO, Alberto Efendy. A perspectiva transmetodológica na conjuntura de mudança


civilizadora em inícios do século XXI. In: MALDONADO, Alberto Efendy; JIANI ADRIANA
BONIN; NÍSIA ROSÁRIO, Martins do. (Org.). Perspectivas metodológicas em comunicação:
novos desafios na prática investigativa. Salamanca: Comunicación Social, 2013. p. 31-54

MARIA CRISTINA MATA. Comunicación y ciudadanía: problemas teóricos: políticos de su


articulación. Fronteiras – Estudos Midiáticos, São Leopoldo, v. 8, n. 1, p. 5-15, jan./abr. 2006.

1044
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DAGMAR MEYER, Estermann. Gênero e Educação: teoria e política. In: GUACIRA LOURO,
Lopes; JANE NECKEL; SILVNA GOELLNER, Vilodre (Org). Corpo, gênero e sexualidade: um
debate contemporâneo na Educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 2003. p. 9-27.

SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2008.

SÊGA, Rafael Augustus. O conceito de Representação Social nas obras de Denise Jodelet e Serge
Moscovici. Anos 90, Porto Alegre, n. 13, p. 128-133, 2000.

VIOLA, Solon Eduardo Annes. Direitos humanos no Brasil: abrindo portas sob neblina. In:
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-
metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2006.

1045
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
APRENDENDO A APRENDER COM ARTEFATOS CULTURAIS: MÍDIAS,
MASCULINIDADES E RELACIONAMENTOS MAIS QUE ABUSIVOS

Vinicius de abreu Bolina450


Fabiane Ferreira da Silva451

Resumo: Como um relato de experiência este texto visa mostrar os conteúdos vistos por um licenciando em Sociologia
da Universidade Federal de Santa Maria em uma disciplina do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências:
Química da Vida e Saúde da Universidade Federal do Pampa e os aprendizados desenvolvidos a partir daí, principalmente
no tocante as pedagogias culturais em artefatos midiáticos. Objetivou-se problematizar, a partir de autoras e autores dos
Estudos Culturais referenciadas/referenciados na disciplina de “Corpo, gênero, sexualidade e relações étnico-raciais” do
PPG, a série “You” da empresa de streaming Netflix e as formas como este artefato educa. Foram escolhidas as duas
primeiras temporadas do audiovisual e o enfoque da análise foi nos exemplos de relações de gênero, masculinidades,
poder e relacionamentos ali apresentados. Para isso utiliza-se exemplos de padrões hollywoodianos nos audiovisuais e a
recepção do artefato por uma determinada parte do público feminino. Percebeu-se a problemática patologização dos
comportamentos do personagem principal por parte do público, a romantização das ações do mesmo e as formas como as
produções audiovisuais desenvolvem isso a partir de determinados artifícios. Isso remonta, segundo autoras, a específicas
configurações de comportamentos e relacionamentos que passamos a aceitar e normatizar com o passar dos anos.

Palavras-chave: Sociologia; Estudos Culturais; Educação; Gênero; Masculinidades.

INTRODUÇÃO
O presente relato discorre sobre a experiência de um licenciando em Sociologia pela
Universidade Federal de Santa Maria como aluno especial em uma disciplina do Programa de Pós-
graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde da Universidade Federal do Pampa,
campus Uuruguaiana e os aportes teóricos e práticos que esta disciplina acrescentou na formação
acadêmica do primeiro autor do texto, mais especificamente nas descobertas sobre as possibilidades
de problematizações de artefatos culturais e suas intersecções com os marcadores sociais da diferença.
O componente curricular cursado foi o de “Corpo, gênero, sexualidade e relações étnico-raciais”,
ofertado no primeiro semestre de 2020, na modalidade ensino remoto via Google Meet. Em ocasião
do contexto da pandemia de Covid-19 a disciplina foi cursada excepcionalmente nesta modalidade
de ensino entre os meses de julho e agosto de 2020.
O PPG em Educação em Ciências da Unipampa apresenta quatro linhas de pesquisa, sendo
uma delas nomeada “Implicações das práticas científicas na constituição dos sujeitos” que investiga

450
Graduando do curso de Licenciatura em Sociologia, pela Universidade Federal de Santa Maria. Integrante do
grupo de pesquisa Tuna: gênero, educação e diferença da Universidade Federal do Pampa, campus Uruguaiana. E-
mail: viniciusmadebre@gmail.com
451
Professora do curso de Licenciatura em Ciências da Natureza, pela Universidade Federal do Pampa, campus
Uruguaiana. E-mail: fabianeunipampa@gmail.com

1046
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
os efeitos das práticas sociais processadas em diferentes instâncias – laboratório, salas de aula, na
universidade e na escola, mídia, entre outras, visando compreender como os discursos e as práticas
atuam na produção de “verdades” e de sujeitos. Fazendo uso de autoras e autores vinculados ao campo
dos Estudos Culturais e Estudos Culturais em Ciências, nas suas vertentes pós-estruturalistas. Em
consonância com essa linha a componente curricular cursada problematiza, conforme sua ementa, as
implicações das práticas sociais e de diferentes artefatos culturais na constituição dos sujeitos.
O objetivo deste relato é apresentar a análise de um artefato cultural, atividade final da
disciplina. Primeiramente será construído um esboço da componente curricular com as temáticas e os
conceitos abordados e, logo em seguida, a análise do artefato escolhido para a atender a avaliação da
mesma. Artefatos culturais podem ser brinquedos, músicas, produções audiovisuais, programas de
rádio, entre outros. Após a escolha do artefato cada aluna/aluno deveria desenvolver um texto com
suas impressões sobre determinada obra e com os aportes teóricos da disciplina e outros pertinentes
a mesma.

OS SABERES POSSÍVEIS A PARTIR DO COMPONENTE


Tão caro à Sociologia (MISKOLCI, 2009) e à Educação (LOURO, GUACIRA LOPES,
2000), o gênero sob o olhar pós-estruturalista dos Estudos Culturais deu o pontapé inicial ao
componente curricular. Numa perspectiva interdisciplinar a temática passou pelas clássicas
contribuições de Joan Scott (1995) com a conceituação do gênero como uma categoria de constituição
do social através das diferenças percebidas entre sexos; até o contemporâneo pânico moral da
“ideologia de gênero”, divulgado pelo ativismo reacionário religioso (JUNQUEIRA, 2017). Nessa
empreitada ideológica – a única real ideologia de gênero – setores conservadores objetivam “além de
recuperar espaço à Igreja em sociedades envolvidas em distintos processos de secularização”
(JUNQUEIRA, 2017, p. 26), frear o desenvolvimento dos direitos humanos dos “discidentes” da
ordem sexual e de gênero. Esta ordem é masculina e heteronormativa, é colonizadora e intransigente.
Em seguida foram apresentadas as ondas do movimento feminista, desde seu princípio até
suas perspectivas mais recentes e plurais, interseccionais. Daí, a objetificação do corpo feminino, a
maternidade compulsória, as agências de performatividades de gênero e a cultura do estupro surgiram
como diálogos a partir de uma perspectiva biopolítica, onde inclusive as “preferências” mais
cotidianas das mulheres estão submetidas às condições que a perpassam como sujeito. Assim, é

1047
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
necessário ver na adesão dessas decisões as conjunturas que produziram essas escolhas (HAMPE,
FERNANDA, 2016).
No decorrer do semestre letivo foram abordadas questões de raça, cor, etnia e racismo; a
situação nacional e lationoamericana frente às peculiaridades da violência colonial “estruturada na
invisibilidade e silenciamento da população negra e na política de eugenia do governo brasileiro nos
anos de 1930” (SOARES, CRISTIANE BARBOSA; da SILVA, FABIANE FERREIRA, 2019); a
necessidade do enegrecimento do movimento feminista brasileiro e seus importantes nomes como
Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro; a presença de mulheres negras e homens negros na ciência e na
própria Unipampa em número reduzido se comparado a homens brancos e mulheres brancas
(SOARES, CRISTIANE BARBOSA; da SILVA, FABIANE FERREIRA, 2019, p. 41); e o mito da
democracia racial.
Sempre articulando os temas das aulas com artefatos culturais pertinentes a cada assunto,
também foi tratado sobre família (suas representações predominantemente heteronormativas nas
mídias; seu papel como instrumento de controle e governo das populações (BIROLI, FLAVIA, 2018)
(FOUCAULT, 1989); casamento e maternidade (mãe como figura central na gestão da vida do
cotidiano familiar e promoção da mulher como cuidadora); famílias e violências (incluindo a
necessidade do debate de gênero nas escolas) visto que grande parte das lesões corporais e violências
sexuais contra crianças e adolescentes acontecem nesses núcleos. “Na violência sexual contra
adolescentes 92,4% o agressor era do sexo masculino e 38,4% tinham vínculo intrafamiliar”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018). Esse agravante também é gritante no que se trata sobre violência
doméstica e feminicídio (em maior parte de mulheres negras), principalmente em tempos de
isolamento social. “Os crimes de estupro, assassinato de mulheres e feminicídio são a expressão mais
cruel dessa desigualdade, uma ferida aberta e exposta em nosso cotidiano social” (MUNIZ, DIVA
DO COUTO GONTIJO, 2017, p. 37) construído por uma lógica sexista que naturaliza uma
superioridade masculina inventada.
A sexualidade, direitos sexuais, direitos reprodutivos e aborto foram dialogados a partir das
perspectivas de Silvia Frederici, Michel Foucault, Debora Diniz e Flavia Biroli, começando com o
resgate histórico de Frederici sobre a caça às bruxas na Idade Média (importante artifício capitalista
para a formação de terror contra as mulheres e domínio sobre o proletariado moderno)
(FREDERICI, SILVIA, 2017); passando pela concepção foucaultiana da sexualidade como um

1048
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
dispositivo histórico (FOUCAULT, 2003); chegando à negligência política do Estado brasileiro sobre
o tema, que o trata através de moralismos e artifícios religiosos conservadores (DINIZ, DEBORA et
al., 2017); até a conclusão de que toda a trajetória de vida das mulheres ficam comprometidas, visto
não terem “direito a controlar sua capacidade reprodutiva” (BIROLI, FLAVIA 2018, p. 133).
Na temática da sexualidade, heteronormatividade e homofobia pensou-se em como a
heteronormatividade é naturalizada, instituída e legitimada como a única tríade sexo-gênero-
sexualidade possível (WARNER, 1993 apud JUNQUEIRA, 2011; BUTLER, JUDITH, 2003).
Assim, a homofobia se configura como um fenômeno social ligado a preconceitos, discriminação,
violência, uso da pedagogia do insulto (constrangimentos, ameaças, piadas, ridicularizações), atuando
como processos heteronormalizadores de “vigilância, controle, classificação, correção, ajustamento
e marginalização” do que fuja da “norma” (JUNQUEIRA, 2011). Falando sobre corpo, concebeu-se
este como uma produção social, histórica e cultural (GONÇALVES, JAQUELINE; SILVA,
ELENITA, 2017).
Por fim, a discussão sobre masculinidades possíveis se torna necessária a partir das
perspectivas dos estudos feministas, de sexualidade e de gênero. Mesmo que não seja um tema novo
às Ciências Humanas, nos últimos anos vem sendo problematizada mais frequentemente, desde “a
masculinidade hegemônica pensada por Connell no final dos anos 1980 às leituras mais recentes
sobre masculinidade tóxica, transmasculinidades e masculinidades negras” (THÜRLER;
MEDRADO, 2020, p. 2) visto a necessidade da reinvenção do masculino para a promoção de uma
sociedade menos desigual e injusta. Enquanto alguns textos falam sobre a masculinidade tóxica,
outros autores comparavam “a ideia de ‘masculinidade saudável’ à ideia de ‘câncer saudável’. A
masculinidade seria uma identidade produzida inteiramente sobre a opressão de terceiros”
(VENTUROZA, ISABELA, 2019, s.n.).
O interesse do primeiro autor desse relato sobre a pesquisa em masculinidades surge a partir
da participação como estudante do grupo de pesquisa Tuna: gênero, educação e diferença, do campus
Uruguaiana, corroborado pelas políticas públicas, principalmente voltadas à Lei Maria da Penha (nº
11.340/2006) e os “resultados positivos de ações que incorporam a abordagem de gênero e
masculinidades a homens” nos grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher
(PRATES, PAULA; ANDRADE, 2013, p. 2). Participando de grupos de conversa com homens
sobre masculinidades o primeiro autor desse relato percebe a baixa adesão em rodas onde a

1049
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
presença não é obrigatória. Os homens que participam objetivam, a partir das discussões, repensar
suas vidas, suas construções históricas e culturais fruto dos processos de socialização
majoritariamente patriarcais e heteronormativos. Obviamente estes processos não os tornam vítimas,
mas geram mal-estar, mesmo que em graus bem diferentes se comparados com o mal-estar incidido
sobre outrem.

Os homens não estão sendo convidados ou se sentindo instigados a refletirem porque caiu
uma maçã na cabeça deles e eles entenderam que é hora de mudar. Não. Houve uma mudança
na sociedade e isso gerou dificuldades pros homens. Essas novas masculinidades estão se
produzindo e sendo empurradas pelos movimentos das mulheres (O SILÊNCIO, 2019, 20
min).

Com a fala da escritora Antonia Pelegrino (acima) podemos pensar que uma das possibilidades
de refletir sobre as masculinidades postas e mais difundidas socialmente é através da análise de
produtos audiovisuais. De fato a análise de propagandas, filmes, séries e músicas também está
presente em grupos de discussão que pretendem questionar o que aprendemos com masculinidades
por meio desses produtos.

MASCULINIDADES, MÍDIAS E RELACIONAMENTOS MAIS QUE ABUSIVOS


Como artefato cultural que abrangesse um pouco de cada um dos amplos temas da disciplina
e que interseccionasse as temáticas do corpo, do gênero, da sexualidade e das relações étnico-raciais,
foram escolhidas para análise as duas primeiras temporadas da série “You” disponível
permanentemente no catálogo da empresa de streaming Netflix. A série é uma produção da Warner
Horizon Television em conjunto com a A&E Studios e a Alloy Entertainment e estreou em 2018 no
canal Lifetime. É baseada no livro de mesmo nome de Caroline Kepnes. A faixa indicativa é de 16
anos e no catálogo da plataforma aparece o seguinte release: “Obsessivo e perigosamente charmoso,
ele vai ao extremo para entrar na vida de quem o fascina. Você pode acabar fisgada sem nem perceber.
Aí, pode ser tarde demais”. Basicamente a série trata de um homem (Joe) que é obcecado por
determinadas mulheres que conhece (primeiro – seguindo a ordem cronológica da história – Candace,
Beck e Love). A primeira delas, ex-namorada do personagem, foi enterrada viva após terminar o
relacionamento com ele. Durante a primeira temporada, suas aparições dão a entender que ela
estaria morta (Temporada 1 Episódio 9). A segunda namorada, Beck, é a personagem pela qual

1050
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Joe se torna obcecado desde a primeira cena. Após procurar um livro na livraria onde ele trabalha,
Beck acaba sendo seguida por este, que em poucos dias já sabe onde ela mora, estuda, trabalha, suas
rotinas diárias e nas redes sociais. Beck acaba morta ao final da primeira temporada após descobrir
que Joe matara seu ex-namorado Benji e sua amiga Peach. A terceira, Love (T2), só não é morta ao
anunciar que está grávida (T2E10). Além disso, Love mata Candance e Delilah e salva Joe de
qualquer punição judicial. Destaque para a personagem de Delilah (T2) – mulher latina com quem
Joe tem uma relação sexual (T2E6) – e Karen (T1) – mulher negra com quem Joe namora por um
tempo (T1E7). Por nenhuma das duas ele se torna obcecado. Cabe ressaltar que as três primeiras
atrizes mencionadas são mulheres brancas.
Para pensar este audiovisual como artefato cultural pedagógico buscamos em Luciana
Rodrigues de Oliveira e Joanalira Corpes Magalhães (2017) a ideia de que produções como essa não
são neutras, ensinam formas, condutas, produzem “conhecimentos, modos de ser e estar no mundo”
(p. 101). Artefatos assim atuam como pedagogias culturais “ensinando e posicionando sujeitos” e nos
propiciando entender, a partir de um olhar dos Estudos Culturais “como a política cultural se exerce
e os arranjos sociais se engendram” (de ANDRADE, PAULA DEPORTE; COSTA, MARISA
VORRABER, 2017, p. 10). Para Paula Deporte de Andrade e Marisa Vorraber Costa (2017, p. 7),
quando assistimos a um produto do audiovisual, por exemplo, “corpo e mente entram em sintonia
com o que está sendo visualizado, escutado e sentido”, resultando em aprendizagens.
Então, quais aprendizagens podemos ter a partir de “You”? De forma que seja possível
desenvolver determinadas considerações sobre o que pode ser aprendido pela série, precisamos
entender que: a) somos atravessados por relações de poder desde antes de nascermos e que essas
relações operam de diferentes formas para cada um dos diversos gêneros possíveis; e b) a realidade
social é construída, também, historicamente. Por essa última assertiva somos gratos a Albuquerque
Júnior (2017 apud ANDRADE, PAULA DEPORTE; COSTA, MARISA VORRABER, 2017) e a sua
percepção sobre o termo invenção. Para ele a “realidade social é construída e, logo em seguida,
apreendida por variados campos de conhecimento” no decorrer do percurso histórico (ANDRADE,
PAULA DEPORTE; COSTA, MARISA VORRABER, 2017, p. 3).

PODER, GÊNERO E RECEPÇÃO

1051
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para Saionara Almeida e Raquel Quadrado (2017) as pedagogias culturais “produzem valores
e saberes”; (re)produzem “identidades e representações”; e “constituem certas relações de poder e
ensinam modos de ser mulher e de ser homem, formas de feminilidade e de masculinidade” (p. 147).
Com a ajuda de Balieiro (2017) e sua leitura de Miriam Adelman (2009), vemos “a importância do
consumo de cultura de massas na redefinição das divisões de gênero que fizeram parte de grandes
mudanças ocorridas no decorrer do século XX” (BALIEIRO, 2017, p. 272).
Por isso, as percepções e aprendizados possíveis a partir de um artefato cultural podem ser
diferentes por cada pessoa. Tratando-se de um artefato cultural em que o narrador e personagem
principal é um homem branco que se relaciona obsessivamente com mulheres brancas (que são
enganadas, perseguidas e/ou mortas no decorrer de duas temporadas) consideramos útil a recepção
do artefato por mulheres. Somos corroborados por Balieiro (2017) em sua leitura de Pamela
Robertson (1996). Para ele devemos focalizar o consumo de um produto cultural considerando “as
distintas formas de leitura dos filmes e representações do feminino, com ênfase nas recepções
femininas” em detrimento do “olhar masculino voyeurístico” (2017, p. 272). Para isso, usaremos
comentários de usuárias da plataforma Youtube nos vídeos postados com críticas sobre a série.

CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E MATERIAIS FÍLMICOS


Trabalhando com a cultura pop, Jonathan McIntosh, proprietário do canal do Youtube Pop
Culture Detective analisa os clichês que historicamente estão presentes em materiais fílmicos. Desses,
alguns deles referem-se a homens e masculinidades. Para esta análise trabalharemos com dois destes
padrões presentes na série “You”: Perseguição por amor e Rapto romântico. A perseguição “por
amor” é um padrão muito comum nos filmes hollywoodianos. Para McIntosh (STALKING, 2018, 6
min) “perseguir engloba uma ampla variedade de comportamentos” como seguir a pessoa no trabalho,
escola ou até em casa; aparecer nestes lugares sem ser convidado; estabelecer comunicações
indesejáveis; espiar e monitorar tanto online quanto offline. Para ele, a cultura pop frequentemente
coloca cada um desses comportamentos como algo romântico e não nos faltam outros exemplos para
tratar disso.“Um padrão onde a confiança masculina é frequentemente construída às custas da falta
de liberdade e da falta de autonomia feminina. É um gesto que prova tanto o ‘amor’ do homem como
a sua masculinidade” (STALKING, 2018, 16 min).

1052
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Já o rapto romântico é quando um homem sequestra ou mantêm presa uma mulher e então ela
se apaixona por ele. “Com pouquíssimas exceções esses sequestradores são homens brancos. O
público comum ocidental tende a dar aos brancos violentos o benefício da dúvida” (ABDUCTION,
2018, 5 min). Por se tratar de um crime, o sequestro precisa ser de alguma forma acobertado pelos
roteiristas, o que acontece quando o personagem apresenta algum momento de “decência humana
básica”, como dar ao seu refém algo para comer e beber, ou não agredir a vítima sexualmente. Essa
“decência humana” nos é apresentada diversas vezes durante “You”. Pode-se citar: a cena em que Joe
oferece sua janta para seu vizinho Paco, que passa fome pois sua mãe e seu padrasto estão brigando
dentro de casa e ele não quer entrar (T1E1); quando Joe, para o mesmo Paco, fala sobre cavalheirismo,
quando este o questiona sobre: “(Cavalheirismo é) Respeitar as pessoas. Principalmente as mulheres.
É como deve ser” (T1E1); quando Joe tenta ajudar Delilah a denunciar os abusos que sofreu e impede
que Ellie seja abusada por Hendersen (T2E4). Para McIntosh (ABDUCTION, 2018, 15 min),
“independentemente das intenções dos escritores, essas narrativas acabam tanto desculpando quanto
romantizando o comportamento violento de homens abusivos”. É o que acontece com “You”, na
perspectiva do primeiro autor do presente ensaio. Joe é mostrado em alguns momentos como um
personagem “nem tão mal assim”, pois ajuda crianças (Paco na temporada 1 e Ellie na temporada 2),
idosos (T1E1), é ‘romântico e cuidadoso’, perdoa quando é traído (T1E9) e é apresentado como
vítima de abuso na infância e na adolescência.
Para uma perspectiva do público feminino, selecionamos os três primeiros comentários mais
positivados em dois vídeos da vlogueira Bel Rodrigues, no Youtube, obedecendo três critérios: 1)
Comentários que mencionassem o nome “Joe”; 2) Comentários que discorressem sobre o personagem
e suas condutas ou formas de se “relacionar”; 3) Comentários feitos por usuárias da plataforma. No
vídeo: “Vamos conversar sobre VOCÊ (You) | Livro vs. Série” foram selecionados os seguintes
comentários:

“Juliana Ferreira - Mas gente..... o unico casal q eu torci nessa série foi o Joe e a prisão”; “B_Potassio -
a série faz um bom trabalho em mostrar como o joe justifica os horrores que ele faz, tanto q tem momentos
que você se pega torcendo ou concordando com ele e precisa dar um passo pra trás e ir "PERA AÍ, NÃO!"”;
“Luna Silva - Joe é doente. Não romantizei nem um segundo”.

1053
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No vídeo: A segunda temporada de VOCÊ (You) | Livro vs. Série os comentários
escolhidos foram os citados a seguir:

“Alanis - o mais legal da série é que não tem ninguém que odeie mais o Joe do que o Penn Badgley”;
“Bianca Faveta - Acho que foi extremamente perigoso eles colocarem a Love de psicopata, porque meio
que normalizou a situação, aliviando o Joe ser um.”;
“ Vitoria Oliveira - Acho que prolongar essa série é um erro, ele é um criminoso, e deixou muitos rastros,
não dá pra ele se safar sempre e pular pra outra temporada, sinceramente o fim da Candance foi horrível,
tinha a promessa de fazer da vida dele um inferno e foi tão decepcionante, ela não tinha um plano, fazia
erros grotescos, o Joe é perigoso, ela sabe disso, mas ela se expõe, esperava que ela fosse mais esperta,
no fim ela não foi ameaça nenhuma, ela tinha muito potencial pra se reduzida a ex maluca”.

Alguns comentários sobre a romantização do personagem circularam na internet


(MEDEIROS, NATALIA, 2019), ao ponto do próprio ator e a empresa de streaming se posicionarem
contra essa romantização (YOU WITHOUT, 2019; CILADA, 2019; SILVA, CLAUDIA
CARVALHO, 2019). Isso pode ter uma resposta segundo a perspectiva de Carolina Amaral (2020).
Para ela, a narrativa se assemelha a uma comédia romântica (intencionalmente pelos roteiristas), tanto
pela fotografia quanto pelos diálogos e, em alguns momentos, o duplo foco narrativo (AMARAL,
CAROLINA, 2020). Outra problemática é a psicologização dos comportamentos violentos do
personagem, que em várias resenhas é chamado de ‘psicopata’.
Finalmente, “You” ensina sobre masculinidades, sobre relacionamentos mais que abusivos,
sobre relações de violência de gênero, de dominação masculina, de relações étnico-raciais, mas abre
margem para a possibilidade de que algumas pessoas aprendam com este artefato que tudo pode ser
justificável se feito por “amor”. Isso remonta a diversas problemáticas, desde a naturalização e
banalização da violência, passando pela objetificação do corpo feminino, chegando aos clichês
hollywoodianos de que um homem pode deixar de ser violento e de cometer todos os males que
comete apenas sendo “amado” da maneira “correta” (ABDUCTION, 2018). Lendo novamente em
Amaral (2020), a romantização do personagem de Joe nos mostra o absurdo “das convenções
românticas que aprendemos a reagir empaticamente ao longo dos anos” (p. 200).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
1054
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Se as vozes de Adorno e Horkheimer foram importantes para criticar as formas ideológicas
da cultura da mídia no pós-guerra elas atualmente são insuficientes para analisarmos as complexas e
inúmeras variantes dos audiovisuais, principalmente pela unilateralidade que a teoria crítica
frankfurtiana deu à Sociologia. Assim, os Estudos Culturais ampliam as perspectivas do/da
licenciando/licencianda em quaisquer das Ciências Sociais e Humanas visto sua possível aplicação a
todos os produtos de mídia, sem fazer distinções entre “alta” ou “baixa” cultura.
Aliando isso ao imprescindível olhar sobre o gênero, a sexualidade e as relações étnico-raciais
transitamos em eventos que, de diferentes maneiras educam, ensinam, formam sujeitos. Então, como
esses sujeitos estão sendo produzidos? Sob quais lógicas? Como licenciando em Sociologia percebo
um longo caminho a percorrer e muitos fatores a observar antes de tentar responder a essas perguntas,
mas aprender a analisar artefatos culturais e trazer a tona as possíveis problematizações que daqui
surgem podem trazer interessantes respostas. Aprender, reaprender, ensinar e aprender novamente,
numa construção professor/aluno/aluna até que discussões surjam, que horizontes se ampliem, que
(des)construções de saberes sejam possíveis.

REFERÊNCIAS
A SEGUNDA temporada de VOCÊ (You) | Livro vs. Série, 2020. 1 vídeo (22 min). Publicado
pelo canal Bel Rodrigues. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-DUIlfiryi8. Acesso
em 29 ago. 2020.

ABDUCTION As Romance, 2018. 1 vídeo (22 min). Publicado pelo canal Pop Culture Detective.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=t8xL7w1POZ0. Acesso em 24 jul. 2020.

BALIEIRO, Fernando Figueiredo. Consumindo Carmen Miranda: deslocamentos e dissonâncias nas


recepções de um ícone. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 269-290. 2017.

CAROLINA AMARAL. A narração em segunda pessoa e “Você”. In: XXIII Encontro SOCINE -
Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, 2019, Porto Alegre, RS. Anais de
Textos Completos (recurso eletrônico), São Paulo, SP, 2020. Disponível em:
https://www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2019(XXIII).pdf.
Acesso em 8 set. 2020.

CILADA by Beck - Você | Netflix, 2019. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Netflix Brasil.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=_XW2u15ml6Q&feature=emb_logo.
Acesso em 1 set. 2020.

1055
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CLAUDIA SILVA, Carvalho. You, uma segunda obsessão para desconstruir ideias tóxicas sobre
relações amorosas. Público. 2019. Disponível em:
https://www.publico.pt/2019/12/28/culturaipsilon/noticia/you-segunda-obsessao-desconstruir-
ideias-toxicas-relacoes-amorosas-1898557. Acesso em 4 set. 2020.

CRISTIANE SOARES, Barbosa; FABIANE DA SILVA, Ferreira. Raça e Gênero no corpo docente
da Universidade Federal do Pampa. Cadernos de Gênero e Diversidade. v. 5, n. 1., p. 30-52. 2019.
Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv/article/view/33787. Acesso em 3
jul. 2020.

DEBORA DINIZ, et al. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2,
p. 653-660. 2017.

DIVA MUNIZ, do Couto Gontijo. As feridas abertas da violência contra as mulheres no Brasil:
estupro, assassinato e feminicídio. In. CRISTINA STEVENS et al. Mulheres e violências:
interseccionalidades. Brasília: Technopolitik, 2017.

FERNANDA HAMPE. Sejamos tod@s feministas: interseccionalidade, educação e direitos


humanos. In. FABIANE DA SILVA, Ferreira; ALINNE BONETTI, de Lima. (orgs.). Gênero,
interseccionalidades e feminismos: desafios contemporâneos para a educação. São Leopoldo, RS:
Oikos, 2016.

FLÁVIA BIROLI. Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo:


Boitempo, 2018.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUACIRA LOURO, Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma perspectiva pós-estruturalista.


Porto: Porto Editora, 2000.

ISABELA VENTUROZA. Masculinidade Tóxica - O que há para além dela? Coletivo Feminista de
Sexualidade e Saúde. 4 nov. 2019. Disponível em: https://www.mulheres.org.br/masculinidade-
toxica-o-que-ha-para-alem-dela/. Acesso em 28 ago. 2020.

JAQUELINE GONÇALVES, Nascimento; ELENITA SILVA, Pinheiro de Queiroz. Automutilação,


gênero, sexualidade e escola. In. PAULA REGINA RIBEIRO, Costa; JOANALIRA MAGALHÃES,
Corpes (orgs.). Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande, RS:
ed. da FURG, 2017.

JOAN SCOTT, Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v.
20, n. 2, p.71-99. 1995.

JUDITH BUTLER. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.


1056
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária
– ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In. PAULA
REGINA RIBEIRO, Costa; JOANALIRA MAGALHÃES, Corpes (orgs.). Debates
contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande, RS: ed. da FURG, 2017.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano escolar: a


pedagogia do armário. In. FABIANE DA SILVA, Ferreira; ELENA MARIA MELLO, Billig (orgs.).
Corpos, gêneros, sexualidades e relações étnico-raciais na educação. Uruguaiana, RS: Unipampa,
2011.

LUCIANA OLIVEIRA, Rodrigues; JOANALIRA MAGALHÃES, Corpes. Esse é o Show da Luna:


investigando gênero, ensino de ciências e pedagogias culturais. Domínios da imagem, v. 11, n. 20,
p. 95-118. 2017.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e


adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. Boletim Epidemiológico. v. 49, n. 27. 2018.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.


Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 150-182. 2009.

NATALIA MEDEIROS. O que há por trás da romantização do Joe, na série You. Superela. 2019.
Disponível em: https://superela.com/romantizacao-do-joe-na-serie-you. Acesso em 9 set. 2020.
O SILÊNCIO dos homens | Documentário completo, 2019. 1 vídeo (60 min). Publicado pelo canal
PapodeHomem. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE&vl=pt.
Acesso em 4 set. 2020.

PAULA DE ANDRADE, Deporte; MARISA COSTA, Vorraber. Nos rastros do conceito de


pedagogias culturais: invenção, disseminação e usos. Educação em Revista, v. 33, e157950, p. 01-
23. 2017.

PAULA PRATES, Licursi; ANDRADE, Leandro Feitosa. Grupos reflexivos como medida judicial
para homens autores de violência contra a mulher: o contexto sócio-histórico. In: Seminário
Internacional Fazendo Gênero 10, 2013, Florianópolis, SC. (Anais eletrônicos). Florianópolis,
2013. Disponível:
https://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373299497_ARQUIV
O_PrateseAndradeFazendoGenero10.pdf. Acesso em 2 set. 2020.

SAIONARA VITÓRIA DE ALMEIDA; RAQUEL QUADRADO, Pereira. Pedagogias culturais na


revista Todateen: produzindo modos de ser feminina. Momento - Diálogos em Educação, v. 26, n.
2, p. 146-163. 2017.

SILVIA FEDERICI. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Editora Elefante, 2017.

1057
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
STALKING for love, 2018. 1 vídeo (23 min). Publicado pelo canal Pop Culture Detective. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=rZ1MPc5HG_I. Acesso em 26 jul. 2020.
TÜHRLER, Djalma; MEDRADO, Benedito. Masculinidades contemporâneas em disputa.
Periódicus, v.1, n. 13, p. 01-08. 2020.

VAMOS conversar sobre VOCÊ (You) | Livro vs. Série, 2019. 1 vídeo (19 min). Publicado pelo
canal Bel Rodrigues. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kKzvNR8b7q4. Acesso
em 28 ago. 2020.

YOU WITHOUT Joe's Voiceover | No Narration | Netflix, 2019. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo
canal Netflix. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JXms7GM6qaY. Acesso em: 7
set. 2020.

1058
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O IMPORTANTE É TER CUNHADAS: RELENDO A ANTROPOLOGIA CLÁSSICA POR
INTERMÉDIO DE UMA ANTROPÓLOGA KAINGANG

Suzana Cavalheiro de Jesus452

Resumo: Este texto configura-se em um exercício de leitura de teoria antropológica, interseccionado por dimensões
étnicas e de gênero. A partir da pesquisa de mestrado da antropóloga Joziléia Daniza Jagso Kaingang, recupera-se
dimensões do estruturalismo antropológico, revisitando conceitos clássicos e tecendo observações sobre o chavão “o
importante é ter cunhados”, que surge a partir da teoria da aliança, inaugurada, em certa medida, por Claude Lévi-Strauss.
O antropólogo Francês, que vem ao Brasil como professor, desenvolve pesquisas entre os Bororo, Kadiweu e Nambiquara
– produzindo importantes escritos sobre o dualismo Jê. Embora não tenha pesquisado entre os Jê meridionais (categoria
que abarca os povos Kaingang), sua produção influencia sobremaneira as percepções mais estruturais sobre esses povos.
Assim, busca-se situar essas construções em espaços de parlamento antropológico, a partir das reflexões de Segato (2012),
de modo a refletir sobre o lugar das mulheres na construção teórica sobre aliança.

Palavras-chave: antropologia; Kaingang; mulheres; aliança.

INTRODUÇÃO
Este paper configura-se em uma aproximação teórica, feita em processo de estudos de teoria
antropológica. O elemento propulsor deste exercício foi a leitura da dissertação de mestrado de
Joziléia Daniza Jagso Kaingang, antropóloga kaingang e uma das lideranças mulheres com grande
projeção em “espaços de parlamento”, nos anos recentes.
Tendo a sublinhar os espaços de parlamento, inspirada nas reflexões de Rita Segato (2012),
sobre os mecanismos colonialistas que conferiram aos homens indígenas, um lugar atualizado de
acesso ao poder, justamente pela função ancestral que desempenhavam:

Deliberar no terreno comum da aldeia; ausentar-se em expedições de caça e para contatos


com as aldeias vizinhas ou distantes, do mesmo povo ou de outros povos; parlamentar ou
guerrear com as mesmas foi, ancestralmente, tarefa dos homens. É por isso que, da
perspectiva da aldeia, as agências das administrações coloniais que se sucederam entram
nesse registro em relação a com quem se parlamenta, com que se guerreia, com quem se
negocia, com quem se pactua e, em épocas recentes, de quem se obtêm os recursos e direitos
(como recursos) que se reivindicam em tempos de política de identidade. A posição
masculina ancestral, portanto, se vê agora transformada por este papel relacional com as
poderosas agências produtoras e reprodutoras da colonialidade. É com os homens que os
colonizadores guerrearam e negociaram, e é com os homens que o Estado da colonial
/modernidade também o faz. (SEGATO, 2012, texto html, parágrafo 38)

452
Doutora em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professora Adjunta da
Universidade Federal do Pampa, Campus Dom Pedrito. E-mail: suzanajesus@unipampa.edu.br
1059
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Acrescentaria que foram as perspectivas destes homens que o Estado, os viajantes, os
Missionários e os antropólogos, dedicaram-se a registrar e documentar. Uma parcela importante da
teoria antropológica clássica é fortemente marcada pelos desdobramentos de políticas colonialistas,
que deram aos homens o protagonismo da vida social e da cultura. Quando pesquisas como a de
Kaingang (2016), surgem no âmbito das ciências sociais, mostrando o lugar das mulheres em
processos políticos, historicamente descritos como protagonizados por homens, é inevitável o
exercício de reler os clássicos que anularam ou negligenciaram mulheres e crianças, em seus registros.
Kaingang (2016), pontua a presença de Odila Kysã, Andila Nivygsãnh e Ângela Norfa ao
longo do processo de retomada de território Kaingang, no Rio Grande do Sul, mais especificamente,
da Terra Indígena Serrinha. Conforme a autora:

Contam os antigos que a Terra Indígena Serrinha foi desmembrada da Terra Indígena Nonoai.
Em 1911, quando ambas foram demarcadas como Toldos pelo governo republicano. Em
pesquisas da década de 1970 do século passado, encontramos relatos sobre nosso povo, os
kaingang, e os incursos dos colonizadores sobre nossos territórios (KAINGANG, 2016, p.
33).

A pesquisadora mostra que a constituição de aldeamentos, tinha estabelecido, nos idos de


1880, os toldos de Nonoai, Inhacorá, Guarita, Pinheiro Ralo e Campo do meio, sob jurisdição do
Coronel Tibúrcio Alves de Siqueira Fortes. Também haviam os toldos Pontal, Caseros e Campos de
José Bueno, a cargo de David Antônio de Oliveira. Destaca ainda que

No período anterior ao ano de 1900, toda a área de Nonoai e Serrinha era uma aldeia só. No
final do século XIX, os imigrantes italianos e alemães começam a sair da Serra Gaúcha e do
Vale do Rio dos Sinos (locais chamados de “colônia velha”) em busca de mais terras onde
pudessem assentar com suas famílias. Nesta busca e expansão, logo chegaram ao norte
gaúcho, onde já havia a presença de caboclos junto aos indígenas, que ali se estabeleceram
quando vieram com os tropeiros e na construção das linhas telegráficas (KAINGANG, 2016,
p. 34).

A posterior intensificação de conflitos com imigrantes e a necessidade de definições mais


eficazes da política indigenista da época, leva à criação do SPI (Serviço de proteção ao Índio), em
1910. Nos anos seguintes, os diálogos deste órgão com o estado do Rio Grande do Sul, conduz à
ampliação do número de toldos, dentre estes o da Serrinha, cujo amparo legal esteve na Lei nº

1060
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
28 de 05 de outubro de 1899, que decreta e promulga a Lei sobre terras públicas no Rio Grande do
Sul.(Ibid.)
Neste contexto, Kaingang (2016) mostra que o toldo Serrinha foi demarcado em 1911 com
uma área de 11.950 hectares. Contudo,

Em 1941, a administração dos territórios indígenas passou a ser feita exclusivamente pela
União. Naquele período, o Brasil vivia o Estado Novo, sendo o Rio Grande do Sul governado
por Osvaldo Cordeiro de Farias, denominado Interventor Federal. Este, antes de entregar à
União os toldos, reduziu-os, levando em consideração o Regulamento de Terras, onde cada
família indígena teria direito a 75 hectares de terra e cada índio solteiro maior de 18 anos
teria direito a 25 hectares de terra. Todo o restante seria transformado em Reservas Florestais,
reduzindo assim os territórios demarcados em 1911 e 1918. Os atos cometidos por esse
governo foram ainda oficializados pelo governo posterior, o então Governador do Estado
Walter Jobim (mandato de 1947 a 1951), que efetivamente criou a Reserva Florestal da
Serrinha, em 1949. (KAINGANG, 2016, p. 38)

Esse processo, conforme mostra a autora, reduz o tamanho do toldo Serrinha para 4.724
hectares. Ao mesmo tempo a área passa a atrair posseiros e ser alvo de disputas com colonos. O
esbulho leva ao abandono da terra e à expulsão dos que ficaram, dos quais muitos são levados de
caminhão para Nonoai (KAINGANG, 2016).

Foto: Assis Hoffman, 1978. Kaingang contra colonos em Nonoai. In


https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang

1061
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O desejo de retomada de seus territórios esteve sempre presente, porém, os meios para torná-
lo realidade são efetivamente alcançados após 1988, com a garantia aos povos indígenas de viverem
em terras tradicionalmente ocupadas. Foi então que os Kaingang pediram auxílio a órgãos
indigenistas como ANAI, CIMI e à Drª. Ligia Simonian (Nota) para iniciar a concretização de
retornarem ao território que lhes era de direito (KAINGANG, 2016).
É no bojo da narrativa desta retomada, que Kaingang (2016) inspira o título deste paper. A
autora destaca o papel das mulheres indígenas na articulação política e processo de luta pela terra,
mencionando o diálogo que estabelecem:

Na retomada da Terra Indígena Serrinha, as minhas interlocutoras tiveram participação ativa.


Odila estava ao lado do Cacique Antonio Mig Claudino, seu marido, apoiando e participando
da concepção e estratégias da retomada. Andila, como ainda era funcionária da Funai, apoiou
principalmente nas questões burocráticas e logísticas, junto com a Iraci, Arcelinda e a Ângela,
que também colaboravam recebendo em suas casas os articuladores do movimento: Antonio
Mig Claudino, Vanderlei Nascimento, Amantino Portela, Ilírio Portela, Ibrail Vergueiro e
João Isaías. A articulação da segunda tentativa de retomada foi iniciada no velório da vó
Joana, na aldeia Ligeiro, em dezembro de 1994, quando as irmãs (Iraci, Arcelinda, Andila,
Odila, Ângela e Azelinda) conversaram com o cunhado Antonio Mig Claudino (marido da
Odila) sobre a terra indígena em que já tinha havido uma iniciativa de retomada.
(KAINGANG, 2016, p. 65)

Kaingang (2016) dedica-se a falar sobre as redes de mulheres, a reciprocidade fundante das
relações, o cuidado compartilhado de crianças e a garantia de solidez do território. A rede de
lideranças homens, ocupando espaços de parlamento, mostra-se sustentada por uma rede de mulheres.
Inevitável (re)ler Lévi-Strauss e Leach, especialmente no que tange às formulações sobre a teoria da
aliança e a conhecida máxima de que “o importante é ter cunhados”.

PARENTESCO, MITO E CLASSIFICAÇÕES


De acordo com Leach (1970), a obra de Lévi-Strauss pode ser entendida como uma estrela de
três pontas: teoria do parentesco; lógica do mito e teoria da classificação primitiva. Assim, é nesta
imagem que irei concentrar-me, a fim de realizar uma breve explanação acerca das ideias desse
pesquisador, considerado o expoente do Estruturalismo Antropológico.
As formulações, contidas em As Estruturas Elementares do Parentesco, procuram mostrar
como o parentesco organiza a sociedade. Mais tarde, os estudiosos de Lévi-Strauss irão formular,
a partir dessas reflexões, a ideia de teoria da aliança. Esta perspectiva, o autor diz que é pelo
1062
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
parentesco que se produz o tabu, ou seja, a classificação de com quem se pode ou não se pode casar,
bem como a questão da troca de mulheres, a qual Lévi-Strauss afirma ser a troca mais antiga entre as
sociedades.
Para pensar estas questões, Lévi-Strauss (1974) também se utiliza da idéia de dom, de sistemas
de reciprocidade, formulada por Marcel Mauss. Ao mesmo tempo em que escreve sobre as estruturas
do parentesco, escreve também o prefácio à Mauss na obra Ensaio sobre a Dádiva. E esta questão da
troca de mulheres é uma das principais críticas que o autor vai receber dos estudos feministas, pois
trata-se de uma análise biologizante, a qual afirma a necessidade universal de acasalamento, de
garantir a manutenção do grupo, pensando o parentesco a partir de relações heterossexuais.
Cabe sublinhar que para Lévi-Strauss aliança é diferente de consanguinidade. A questão do
incesto indica, no ponto de vista do autor, que cada sociedade vai definir as regras que proíbem o
casamento, não necessariamente pela consanguinidade. Somado a isto, é preciso pensarmos também
na categoria casa, ou seja, a estrutura territorial, social e material onde se produz o parentesco.
Para pensar a lógica do mito, Leach (1970) vai se referir às Mitológicas, destacando a idéia
levisstrauniana de que o mito atuaria como máquina para supressão do tempo. Reside aqui outra
grande crítica do autor na clássica divisão entre sociedades frias e sociedades quentes. Foi um tema
que lhe ocupou muito tempo para explicar o que realmente estava querendo dizer ao afirmar que as
sociedades primitivas (frias) seriam sociedades sem história. Na realidade, sua tese não nega a
história, mas a concebe como congelada no mito.
Retomando a análise de Leach, destaca-se aqui o aspecto defendido por Lévi-Strauss de que
todo o ser humano pensante vive a experiência recordada contemporaneamente, do mesmo modo que
no mito, colocando todos os eventos em uma totalidade sincrônica. Logo, o estudo diacrônico da
história e o estudo transcultural, mas sincrônico, da antropologia, podem ser compreendidos como
métodos alternativos de fazer a mesma coisa.
Adentrando um pouco mais na “lógica do mito”, é necessário dizer que Lévi-Strauss entende
o mito como uma bricolagem intelectual. Para o autor, a lógica que parece faltar às imagens da
mitologia e aos materiais do bricoleur no momento do novo uso, já estavam ali em outro momento,
quando faziam parte de outros conjuntos, aparentemente mais coerentes. Nesse sentido, os termos da
linguagem (no mito) ou o sistema tecnológico (no bricoleur) são expressões condensadas de

1063
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relações necessárias, cujos limites repercutirão de diferentes maneiras sobre cada um de seus níveis
de utilização.
Essa lógica trabalha à maneira do caleidoscópio – imagem advinda das sobras e pedaços, por
meio dos quais se realizam arranjos estruturais neste instrumento. Tais arranjos engendrados pelo
encontro de fatos contingentes (o giro do caleidoscópio) e de uma lei (anterior ao caleidoscópio),
projetam modelos de inteligibilidade, de algum modo provisórios, pois cada arranjo se exprime sob
a forma de relações rigorosas entre as suas partes (LÉVI-STRAUSS, 2007).
Ao formular sua teoria sobre classificações primitivas, Lévi-Strauss recupera algumas ideias
de Mauss e de Durkheim, mas critica a concepção de classificações totais, devido a suas informações
fragmentadas. Para o autor, as classificações indígenas são metódicas e baseadas em um saber teórico
solidamente construído, aproximando-se também daquelas que a zoologia e a botânica costumariam
utilizar. Sublinha que para interpretar corretamente os mitos e os ritos, e mesmo para interpretá-los
de um ponto de vista estrutural, é indispensável a identificação precisa das plantas e dos animais de
que se faz menção ou que são diretamente utilizados sob a forma de fragmentos ou despojos.
Nesse sistema, segundo Lévi-Strauss (1976; 2007), os termos nunca possuem significações
intrínsecas, mas uma significação de posição. De um lado está a função da história e do contexto
cultural, e de outro, a estrutura do sistema em que são chamados a figurar. Essas reflexões encontram-
se com maior ênfase nas obras O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem. Embora dedique-se a
compreender as classificações totêmicas, o autor pontua que o classificar atua sobre vários eixos, os
quais podem variar em número, natureza e qualidade, de acordo com a cultura.
Em suma, nas sociedades primitivas, os sistemas de classificações e as operações rituais
referem-se a objetos, geralmente naturais, mas manifestam operações mentais, que se aproximam do
pensamento científico.

DUALISMO, MULHERES E POLÍTICA

O dualismo Kaingang é descrito como um sistema de classificação que organiza o parentesco,


as plantas, os animais e objetos. Nas palavras de Kaingang:

A ideia de percepção dual do universo coincide com o cotidiano nas aldeias, quando
falamos dos astros – sol e lua – sol kamé, e lua kanhru, quando falamos de plantas e
1064
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
animais. Nosso sistema de liderança também é contemplado pelas duas metades. Assim, nós,
kaingang, estamos divididos em duas partes, que são metades simbolizadas por marcas,
normalmente observadas nas pinturas corporais utilizadas nas cerimonias, rituais, festas e,
principalmente, nos artesanatos. Ouvi muitas referências sobre essas metades da minha mãe
e da minha avó. Também ouvi dos Kófa, com quem vivi e convivo na aldeia, a história dos
gêmeos que saíram da montanha e que deram origem ao nosso povo. Cada um saiu por um
lado: Kanhru saiu primeiro e o lado por onde ele desceu até a planície não era acidentado; já
Kamé saiu pelo lado acidentado e pedregoso. Os lugares por onde saíram influenciou suas
características físicas. Todas as coisas, animais, objetos e plantas, pertencem a um ou a outro.
Os kamé são simbolizados pelas marcas riscadas e compridas, e os kanhru, pelas marcas
circulares e fechadas. Então, tudo no universo, de acordo com a concepção kaingang,
pertence a uma dessas metades (KAINGANG, 2016, p. 79)

A literatura antropológica é povoada por estudos, junto aos povos Kaingang, que enfatizam a
oposição e a complementaridade das metades, de um ponto de vista estrutural. Neste âmbito, ocupa
lugar de destaque a relação entre cunhados, que funda boas relações de liderança. Silva (2002),
registrou atualizações de mitos, através das quais afirma que um dos princípios fundantes dos
kaingang, está

baseado na complementaridade entre as metades, na medida em que estas atualizações


enfatizam, a todo o momento, as relações simétricas entre iambré (cunhados reais ou
potenciais). Pertencentes a lados opostos, distintos, com características precisas, bipolares,
para o conjunto dos membros de cada metade, os iambré kamé e kainru-kré desempenham
papéis ideais de amizade, ajuda mútua, cooperação e complementaridade (SILVA, 2002, p.
193)

Kaingang (2016) aborda os desdobramentos da estrutura dual, no cotidiano:

Com relação às metades, como dito anteriormente há a necessidade de ter tanto kamé quanto
kanhru na liderança, porque um complementa o outro nas decisões, nas propostas e um
argumenta com o outro sobre as escolhas a serem feitas na aldeia.
Andila me explicou que uma das razões seria também porque quando um Kanhgág é levado
para liderança por ter feito algo errado, quem vai argumentar a seu favor será o seu jamré
(genro, primo) e não o seu régre (irmão), porque as metades são complementares e um
defende o outro.
Quando tratamos deste assunto, Pã’i mág e pã’i si, Odila fala que os regré, os que são da
mesma marca, não aceitam os conselhos um do outro. Kamé não aceita conselho de kamé,
portanto, se a liderança for kamé e aconselhar um da sua marca, este não lhe dá a devida
importância, mas se for um kanhru que aconselhe um kamé, este vai obedecer seu jamré,
porque respeita o outro.
Esta questão do respeito com o oposto, kamé com kanhru e ao contrário, é observada nas
relações cotidianas também. Entre homens e mulheres. Nas residências, há pessoas das
metades opostas vivendo juntas. Entre as mulheres em uma mesma residência, as irmãs
e a mãe se estremecem com facilidade. Muitas vezes, as mulheres kaingang que tem um
temperamento difícil em casa, com as suas parentas consanguíneas, se comportam de
modo amistoso com as cunhadas e a sogra. Entre os homens, nas relações de parentesco
1065
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
também há esse respeito. Normalmente o genro escuta, apoia e concorda com o sogro e os
cunhados, o que muitas vezes não acontece com irmãos (KAINGANG, 2016, p. 84)

Há de se destacar que toda regra tem sua excessão, de modo que é comum, nos dias atuais,
casamentos fora das metades. Se compreendermos que a cultura não é uma esfera inerte, podemos
afirmar que existem possibilidades de agenciamento, dentro da estrutura e que, nestes casos, haverá,
igualmente um sistema de definições a partir do qual segue-se determinando com quem se pode ou
com quem não se pode casar.
Retornando às análises de Kaingang (2016), é possível perceber o parentesco fundando o
social e as relações políticas se fortalecendo entre cunhados. Mas mais ainda, é possível perceber as
redes de mulheres e a atuação política das mesmas. A “troca de mulheres” descrita por Lévi-Strauss
e objeto de crítica de Gayle Rubin (1993)453, a partir da ideia de “tráfico”, tende a ser atualizada com
os escritos de mulheres indígenas, que apontam para as trocas entre essas mulheres:

Essas trocas entre as mulheres não acontecem só entre mães, filhas e avós, mas ocorre com
as outras mulheres da família também. Muitas alianças políticas se dão através de
casamentos, e as sogras e noras passam a contribuir por meio da reciprocidade no poder que
a família terá dentro da comunidade com essa aliança. As relações entre irmãs, tias, sobrinhas,
primas e cunhadas também são intensas.
Não é incomum uma avó criar uma criança que não é seu neto sanguíneo. Nesta circunstância,
muitas vezes a criança é sobrinho de 3º grau e essa vó kaingang o considera e o trata como
sendo seu neto. Constroem uma relação afetiva com a mãe dessa criança, sendo que, nas
relações de parentesco nas sociedades não indígenas, estas mulheres seriam parentes
distantes. (KAINGANG, 2016, p. 89)

Kaingang (2016) também cita o trabalho de Gibran (2012) que atribui destaque para as
relações de reciprocidade entre as mulheres Kaingang. Não pode ser descrita como coincidência, a
análise de ambas, junto ao universo feminino. No colonialismo fundante da ciência, tanto o Estado,
quanto os viajantes, Missionários e Antropólogos também deram às mulheres não indígenas
(inclusive as antropólogas) o lugar do não parlamento. Isso possibilitou a todas nós, ler, reler e fazer
antropologia a partir do doméstico, do privado e mesmo dos temas não privilegiados. Logo, não

453
Se para Lévi-Strauss o casamento cria o parentesco, para Rubin (1993), o parentesco cria o gênero, tendo como
base o casamento. Na medida em que os sistemas de parentesco transformam um indivíduo do sexo masculino em
“homem” e um indivíduo do sexo feminino em “mulher”, sendo que ambos são incompletos e necessitam do outro
para viver, tem-se que homens e mulheres são naturalmente diferentes. Assim, o gênero é um produto das relações
sociais de sexualidade, de uma divisão entre homens e mulheres, imposta socialmente.
1066
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
surpreende que a reciprocidade feminina esteja descrita com mais detalhes, em pesquisas de
antropólogas mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisas como as de Kaingang (2016) ajudam-nos a estudar antropologia com outras


percepções. É simbólico pensar que Lévi-Strauss teve uma importante trajetória de pesquisa nos
trópicos e que foi um dos primeiros a falar sobre o dualismo Jê. Com todo seu olhar de europeu
encantado pelos nativos destas terras e com certa fixação em encontrar os traços comuns de diferentes
sociedades, não lhe era relevante a reciprocidade feminina, tampouco fora inspirador pensar
agenciamentos e hierarquias - refiro-me aqui às hierarquias entre mulheres ou redes de cunhadas, bem
como às disputas de prestígio no interior de uma comunidade. Um tema que sequer vou conseguir
adentrar neste ensaio, mas que merece uma atenção das etnografias do cotidiano.
Destaco por fim, que o exercício de atentar para os lugares que ocupamos em campo e no
desenvolvimento da teoria antropológica, é um exercício interseccional. Daí a necessidade de
percebermos o fazer antropológico enquanto um conjunto de tensionamentos, hierarquias e disputas
de força e prestígio. A leitura das antropólogas indígenas é um convite para revisitar velhas verdades,
colocar em cena a produção acadêmica destas pesquisadoras, aprender e ensinar antropologia de
forma plural, denunciando e ocupando espaços de parlamento.

REFERÊNCIAS
GIBRAN, Paola. Política, Parentesco e outras Histórias kaingang: uma etnografia em Penhkár.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

KAINGANG, Josélia Daniza Jagso. Mulheres Kaingang, seus caminhos, políticas e redes na TI
Serrinha. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016

LEACH, Edmund. As ideias de Lévi-Strauss. São Paulo: Editora Cultrix, 1970.

LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes. 1976.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Totemismo Hoje. Petrópolis: Vozes. 1986.

1067
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 7.ed. Campinas,
SP: Papirus, 2007.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Prefácio. In MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. Tradução de Mauro


W. B. de Almeida. Volume 2. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda; Editora da
Universidade de São Paulo, 1974.

RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a Economia Política do sexo. Recife: SOS Corpo,
1993.

SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário


estratégico descolonial. e-cadernos ces, 18, Dezembro de 2012 - Epistemologias feministas: ao
encontro da crítica radical, 106-131, 2012.

SILVA, Sérgio Baptista da. Dualismo e cosmologia Kaingang: o xamã e o domínio da floresta. In
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 189-209, dezembro de 2002.

1068
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - PRÁTICAS EDUCATIVAS
PARA O ENFRENTAMENTO DA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO,
HOMOFOBIA E LGBTFOBIA
COORDENAÇÃO
Dra. Léia Teixeira Lacerda – UEMS
Me. Roselaine Dias da Silva – SMED Porto Alegre – RS
Me. Cristiane Pereira Lima – SEMED Campo Grande – MS

1069
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LITERATURA INFANTIL: UM RECURSO POTENTE PARA ABORDAGEM DAS
RELAÇÕES DE GÊNERO EM SALA DE AULA

Cristiane Pereira Lima454


Léia Teixeira Lacerda455

Resumo: Este trabalho tece considerações sobre as representações construídas pelos/as estudantes
sobre as relações de gêneros com a finalidade de serem debatidas no contexto escolar, apresentando
a literatura infantil como um recurso pedagógico que contribui para desconstruir “padrões”
preestabelecido histórico e socialmente. Propomos que o espaço escolar, enquanto local das práticas
pedagógicas reinvente suas práticas, a fim de criar e recriar maneiras outras das crianças viverem as
suas identidades de meninos e meninas. Assim, inserir o debate sobre as relações de gênero no fazer
pedagógico com os/as estudantes, sobretudo, considerando o princípio de que as representações de
gênero que possuímos são construídas pela/na cultura que vivemos.

Palavras-chave: literatura infantil; relações de gênero; sexualidade; sala de aula.

INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade divulgar as discussões obtidas a partir de uma pesquisa
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Educação –
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no âmbito da linha de pesquisa Formação de
Professores e Diversidade, em 2019. O título deste estudo foi “As relações de gênero nos anos iniciais
do Ensino Fundamental: práticas pedagógicas e vivências no cotidiano escolar”, nas vozes de crianças
de uma escola estadual de Campo Grande, MS. (LIMA, 2019).
A necessidade de utilizar a literatura infantil para compreender – por meio de um recurso
pedagógico utilizado nas escolas pelos/as professores/as – e desmitificar as relações de gênero ou
mais especificamente o que é atribuído às identidades de meninos e meninas. Para tanto, a
investigação busca ampliar as possibilidades do trabalho pedagógico na perspectiva da educação para
as relações de gênero. Optamos por fazer uso da literatura infantil com o objetivo de desmitificar as
marcas de gênero historicamente construídas e reforçadas no ambiente escolar, muitas vezes de
maneira negativa. Esperamos, dessa maneira, possibilitar aos/às professores/as e às crianças uma
educação que contribua para a cultura da paz no se refere às relações de gênero. Assim, faz-se

454
Mestre em educação e graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS.
Atualmente professora da rede municipal de educação de Campo Grande – MS.
455
Atualmente é Coordenadora do Centro de Pesquisa, Ensino e Extensão Educação, Linguagem, Memória e
Identidade/CELMI e professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no Curso de Pedagogia e
no Programa de Mestrado Profissional em Educação.
1070
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
necessário pontuar o percurso, as mudanças e os limites que a literatura infantil proporciona na prática
pedagógica.
Neste artigo, apresentamos um recorte do conjunto dos dados produzidos nas sete oficinas
realizadas na pesquisa, a fim de descrever e analisar os dados das atividades executadas em uma delas,
com trinta crianças do 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede estadual de ensino de
Campo Grande - MS.

LITERATURA INFANTIL E SEUS DESDOBRAMENTOS


Os primeiros livros destinados ao público infantil foram escritos no final do século XVII, com
uma proposta moralista e educativa, como os contos dos irmãos Grimm no século XIX e as histórias
de Charles Perrault no século XVIII na França. Antes desse período não existia literatura para
crianças. De acordo com Cunha (1999, p. 22):

A história da literatura infantil tem poucos capítulos. Começa relativamente a delinear- se no


início do século XVII, quando a criança pelo que deveria passa ser considerada um ser
diferente do adulto com necessidades e características que deveria distanciar-se da vida dos
mais velhos e receber uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta.

Dessa maneira, surge a literatura infantil por meio de contos, fábulas e histórias.
Anteriormente ao século XVII, a criança participava da vida social do adulto, como também de sua
literatura, com o passar do tempo e a ressignificação da cultura pela e na sociedade, ocorrem
modificações, criando-se assim uma literatura destinada às crianças.
Nesse momento, a literatura refletia todas as principais tendências da Europa; o nacionalismo
tinha como ênfase a vida rural, utilizava as fábulas como instrumento moralista e religioso de controle
para com as crianças, baseando-se nos padrões europeus. Com Monteiro Lobato, podemos dizer que
se inicia outra fase da literatura. Na palavra de Cademartori (1987): “sob a égide de um dos nossos
mais destacados intelectuais: Monteiro Lobato.

[...] rompendo com os padrões prefixados do gênero, seus livros infantis criam um mundo
que não se constitui, num reflexo do real, mas na antecipação de uma realidade que supera
os conceitos e os preconceitos da situação histórica em que é produzido. (CADEMARTORI,
1987, p. 43-50).

1071
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Portanto, Monteiro Lobato em suas histórias retratou o Brasil de sua época, o sistema social
vigente, seus valores, comportamentos, organização política e funções e rompeu com um tipo de
literatura ideológica até então consumida por uma minoria das crianças brasileiras, visto que a maioria
estava privada do acesso aos livros. Com o surgimento de Monteiro Lobato na literatura para crianças
e sua proposta inovadora, “a criança passa a ter voz, ainda que uma voz vinda da boca de uma boneca
de pano, Emília” (GREGORIN FILHO, 2009, p. 28).
Segundo Coelho (2000), a escola é hoje, o espaço privilegiado, em que:

Deverão ser lançadas às bases para formação do indivíduo. E, nesse espaço, privilegiamos os
estudos literários, pois, de maneira mais abrangente do que quaisquer outros, eles estimulam
significados, a consciência do eu em relação ao outro, a leitura do mundo em seus vários
níveis e, principalmente, dinamizam o estudo e o conhecimento da língua, da expressão
verbal significativa e consciente (COELHO, 2000, p. 15-16).

Como resultado desse processo histórico, uma das funções da literatura é a renovação da
linguagem, de modo que as crianças possam se identificar com a história e expandir seus olhares e
horizontes. Buscaremos possibilitar, por meio da literatura infantil, novas perspectivas de lidar e
compreender o que é ser menino e menina no convívio das relações de gênero, garantindo o respeito
às identidades e diferenças. Podemos resumir essa trajetória da literatura voltada às crianças no Brasil,
no quadro elaborado por Gregorin Filho (2009).

QUADRO 1 – CONSTRUÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL


Precursores (Brasil – Colônia até a década de Monteiro Lobato (década de 1920 a
1920) meados da década de 1980)
- A literatura reflete todas as principais tendências da - Era Getuliana e esforço para a reconstrução;
Europa; - Expansão da literatura em quadrinhos;
- Literatura de cunho humanista dramático; - Tradição em conflito com o Modernismo;
- Literatura como instrumento pedagógico (também - Antagonismo entre Realismo e Fantasia;
reflexo de padrões europeus); - Formação do Teatro Infantil (1950);

1072
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
- Fábulas, contos de fada maravilhosos, novelas de - Expansão dos meios de comunicação de
aventura e de cavalaria; massa (1960);
- Nacionalismo com ênfase na vida rural; - LDB (Lei nº 4.024, de 20/12/1961);
- Culto de inteligência; - Ato Institucional nº 5;
- Moralismo e religiosidade; - Abertura do governo Figueiredo;
Exemplaridade e Doutrinação. Relativismo de Valores.
Pós-Lobato (meados de 1980 a meados da década de Contemporâneo (meados de 1990 até a
1990) atualidade)
- Influências da abertura política na concepção de - Lei de Diretrizes e bases da Educação
educação; Nacional (LDB) (Lei nº 9.394, de
- Literatura inquieta e questionadora; 20/12/1996);
- Questões cotidianas e mais realistas; - Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN);
- Apelo à curiosidade do leitor; - Temas transversais são inseridos nas
- Dialogismo está mais presente nos textos para propostas curriculares;
crianças e jovens; - Movimentos sociais e de minorias como
- Computador passa a tomar seu lugar nas casas e no reação a estereótipos preconceituosos e
cotidiano das pessoas; negativos;
- Apelo à visualidade; - Lei nº 11.645/2008;
Experimentalismo. - Tecnologia e múltiplas linguagens;
- Hipertextualidade;
Moral Relativa e Diálogos com o Leitor.
Fonte: Gregorin Filho (2009).

Com esse quadro elaborado por Gregorin Filho (2009) é possível identificar os
desdobramentos da Literatura no Brasil no período histórico de 1920 a 1990 e os avanços que
possibilitaram as elaborações de documentos legais, juntamente com as reinvindicações dos
movimentos sociais que continuam lutando e garantindo maneiras outras de compreender as
diversidades existentes na sociedade, por meio de um vocabulário riquíssimo, lúdico com diversos
temas. Para tanto, daremos ênfase nos que concebem as relações de gênero especificamente por ser a
preocupação desta pesquisa, tendo em vista que com as obras de literatura infantil podemos

1073
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
garantir aprendizagens significativas proporcionando a valorização do Outro e relações de gênero
igualitária, a partir do princípio da equidade.
O período de 1920 a 1996, paralelamente com a LDB, naturaliza ao meio educacional
brasileiro a ideia de que o termo “sexo” era sinônimo de “gênero”, no entanto somente com a
divulgação e implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997), que é oficialmente
uma política pública para a Educação no Brasil, foi mencionado os Estudos das Relações de Gênero,
diferenciando o conceito de sexo e gênero para ser também considerado nos processos de
escolarização de crianças e adolescentes. O documento conceitua a categoria gênero no volume que
trata da Orientação Sexual, afirmando que:

[...] o conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações sociais e culturais
construídas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto o sexo diz respeito ao atributo
anatômico, no conceito de gênero toma-se o desenvolvimento das noções de “masculino” e
“feminino” como construção social. O uso desse conceito permite abandonar a explicação da
natureza como a responsável pela grande diferença existente entre os comportamentos
(BRASIL, 1997, p. 321).

Essa orientação apresentada nos PCN (1997) nos possibilita desmitificar a ideia de que a
maneira de ser menino e menina não é algo natural ao ser humano, mas suas identidades se constituem
a partir de uma construção e dinâmica social. Dessa perspectiva, essa nova abordagem permite
expressões de potencialidades que cada ser humano possui em sua trajetória, que muitas vezes são
incompreendidos pelas representações de gênero estabelecidas socialmente em um único padrão.
Para tanto, este artigo trata de ampliar as possibilidades do fazer pedagógico para serem
desenvolvidas com estudantes com idades entre 3 a 11 anos, tendo como principal recurso pedagógico
as obras de literatura infantil. A utilização das obras de literatura infantil como um recurso pedagógico
possibilita que professores/as possam desconstruir as concepções historicamente construídas no meio
social aos quais as crianças estão inseridas.
Espera-se que, ao trazer essa discussão para o âmbito escolar, possamos auxiliar os/as
professores/as para a construção de uma educação menos desigual entre meninas e meninos.
Compreende-se que estes processos permitirão que meninas e meninos vivam e se expressem de
forma plena, sem que tenham que seguir padrões impositivos de normas e regras as maneira ser
menino e menina.

1074
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS COM A LITERATURA INFANTIL
Realizamos a seleção das literaturas infantis com base em pesquisas realizadas em site de
busca456, com as palavras chave “literatura infantil” e “relações de gênero” e “sexualidade”, que
resultou no encontro de 26 obras literárias infantis, que podem ser visualizados no quadro abaixo:
QUADRO 2 – LITERATURA INFANTIL ENCONTRADA

Obra Autor Ano Editora


A princesa sabichona Babette Colle 1986 Ática
Antonio Hugo Monteiro 2012 Escrita fina
Ferreira
Cabelinhos nuns lugares engraçados. Babette Colle 2001 Ática
Ceci e o vestido do Max Thierry Lenain 2013 Companhia das letrinhas
Ceci quer um bebê Thierry Lenain 2004 Companhia das letrinhas
Ceci tem pipi? Thierry Lenain 2004 Companhia das letrinhas
Chapeuzinho Vermelho: uma Lynn Roberts 2011 Zastras
aventura borbulhante
Como mamãe e papai se Katharina 2007 Scipione
apaixonaram. Grossmann-Hensel
Dois de cada Babette Colle 1998 Ática
Gogô de onde vem os bebês? Caroline Arcari 2019 Caqui
Ilhas das lágrimas Rodrigo Romão 2020 Caqui
Xavier
Leleco Rodrigo Romão 2020 Caqui
Xavier e Caroline
Arcari
Mamãe botou um ovo Babette Colle 1996 Ática
Mamãe nunca me contou Babette Colle 2003 Ática
Menino Brinca de boneca? Marcos Ribeiro 2011 Moderna
Meus dois pais Walcyr Carrasco 2010 Ática
Não me toca seu boboca Andrea Viviana 2017 Aletria
Taubman, Rosana
Mont'Alverne e
Thais Linhares
O príncipe Cinderelo Babette Colle 1987 Ática
O Urso que queria ser pai Wolf Erlbruch 1996 Companhia das letrinhas
Os beijinhos de Ceci Thierry Lenain 2010 Companhia das letrinhas
Pipo e Fifi – prevenção de violência Caroline Arcari 2018 Caqui
sexual na infância

456
www.google.com.br, no site da amazon.com, das editoras: Ática, Scipione, Moderna, Martins fontes, caqui,
companhia das letrinhas, Aletria, Paulus, Leya e Brinque-book.
1075
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Quem disse? Caroline Arcari 2020 Caqui
Sementinhas de fazer bebês Thierry Lenain 2003 Companhia das letrinhas
Um novo bebê está chegando! Menendez 2006 Paulus
Menina não entra Telma Guimaraes 2007 Brasil
Castro Andrade
Feminino de menina, masculino de Márcia leite 2011 Leya
menino
Até as princesas soltam pum 2017 Brinque-book
Ilan Brenman
Fonte: elaborado pelas autoras (2020).

Ao término do levantamento as obras literárias, foram realizadas as leituras para evidenciar


quais livros problematizam as relações de gênero e sexualidade para as faixa etária de 3 à 11 anos de
idade. Assim, selecionamos 10 livros: A princesa sabichona (1986), O príncipe cinderelo (1987), Ceci
tem pipi? (2004), Menina não entra (2007), Quem disse? (2020), Leleco (2020), Ilhas das lágrimas
(2020), Menino brinca de boneca? (2011), Feminino de menina, Masculino de menino (2011) e Até
as princesas soltam pum (2017).
É importante considerar que somente a leitura das obras literárias elencadas não garante a
reflexão das relações de gênero propostas para os/as estudantes, é necessário, sobretudo, que
professores/as formulem perguntas reflexivas com a finalidade de contrapor o contexto social
vivenciado pelos estudantes, e também relacionar com a intencionalidade e as questões colocadas
pelos autores de cada obra.
Além disso, dependendo da percepção do profissional sobre a necessidade da turma, sugere-
se, então, que, após uma contação de histórias, realize-se o levantamento de questões como: O que é
ser menino? O que é ser menina? Para a finalização e o registro das atividades realizadas a partir da
leitura e problematização da obra literária escolhida pelo/a professor/a, podem ser utilizados
desenhos, jogos, pintura, modelagem, textos e painéis ou outras formas.

UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA COM A OBRA INFANTIL “O PRÍNCIPE


CINDERELO” DE BABETTE COLLE

A atividade proposta que descrevemos abaixo segue a mesma metodologia aplicada na


contação da história anterior. Para tanto, realizamos a leitura da obra infantil “O Príncipe
Cinderelo”, também escrita e ilustrada pela autora Babette Cole (1987), da editora Penguine com

1076
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
conteúdo que explora, de modo lúdico e contraditório, a visão do conto clássico Cinderela com um
enredo muito similar ao conto clássico.
Nesse conto encontramos como personagem um jovem príncipe com um aspecto de pouca
nobreza, sendo explorado por três irmãos cabeludos. Também assistimos à intervenção de uma fada,
bastante inexperiente cuja magia resulta sempre em absurdos. Seu conteúdo buscou desmistificar o
que é ser menino, com o objetivo de desnaturalizar a representação atribuída aos homens.
Os encaminhamentos metodológicos dessa leitura possibilitaram abordar a construção de
gênero, tendo como preocupação o gênero masculino. No primeiro momento, iniciamos uma conversa
com as crianças relembrando a história ouvida na aula anterior. Em seguida, com o objetivo de
auxiliar nesta atividade fizemos perguntas como: “vocês se lembram da princesa sabichona? Como
era a princesa sabichona?”. Para o segundo momento, as crianças foram convidadas a continuarem a
perceber pessoas diferentes, ouvindo a história do Livro “Príncipe Cinderelo”.

FIGURA 1 - CAPA DO LIVRO “PRÍNCIPE CINDERELO”.

Fonte: Imagem de capa disponibilizada na plataforma de compras Amazon 457.

No terceiro momento, realizamos uma roda de conversa com as crianças sobre a história,
procurando esclarecer os pontos sobre os quais manifestaram dúvidas, a fim de fomentar a reflexão
sobre o tema abordado na história. Nessa roda de conversa, fizemos alguns questionamentos para

457
Disponível em: https://www.amazon.com.br/Principe-Cinderelo-1-Babette-Cole/dp/8533612923.
1077
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
as crianças: o que esse príncipe tinha de diferente dos outros? Quais eram suas atividades? Como ele
se comportava? O que ele queria fazer? Esse príncipe é parecido com a princesa sabichona? Vocês
acham que pessoas assim existem?
Também procuramos problematizar a naturalização dos comportamentos considerados como
tipicamente masculinos, como a força, a coragem e inabilidade para tarefas domésticas. Mais uma
vez, compreendemos quão importante é promover a reflexão com as crianças no sentido de
possibilitar-lhes entender podem escolher e descobrir do que gostam de fazer e como querem viver,
mediante a experimentação.
No quarto momento, solicitamos às crianças que realizassem outro desenho, desta vez, de um
príncipe diferente, que tivesse características e comportamentos diferentes dos príncipes comuns.
Para isso, foram entregues folhas sulfite, lápis, borracha e lápis de cor. No quinto momento: reunimos
os desenhos do príncipe diferente e da princesa diferente e confeccionamos um mural, expondo os
desenhos das crianças em um local onde outras crianças pudessem vê-los. Com isso, promovemos a
valorização do trabalho das crianças, bem como estimulamos a reflexão sobre os papéis de meninos
e meninas no âmbito escolar.

FIGURA 2- CRIANÇA L – ROMPENDO REPRESENTAÇÕES.

Fonte: Acervo da professora (2018).

1078
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Com base na figura 2 podemos observar o desenho de como seria um príncipe diferente por
meio do olhar de um menino com 7 anos de idade denominado de Criança L. Assim, buscando
compreender sua representação a partir das perguntas:

Pesquisadora: Olá, por que você desenhou o príncipe assim?


Criança L: Prof, fiz um príncipe diferente dos que aparecem nos filmes.
Pesquisadora: Por que o seu é diferente?
Criança L: Porque o meu usa bermuda e tênis.
Pesquisadora: Hum, ok! (CRIANÇA L, 2018).

Na narrativa da criança L, observamos uma tentativa de fugir do padrão dos príncipes que
aparecem em filmes, especificamente em filmes da Disney. Assim, essa criança tenta romper com as
fronteiras do que se espera ser um príncipe, colocando que seu príncipe usaria bermuda e tênis. Se
buscarmos em nossa memória conseguiremos relembrar que os príncipes de filmes normalmente
usam terno ou roupa de gala e jamais o traje que L representa em seu desenho.
Em relação a isso, Guerra (2012) enfatiza que “a produção da sexualidade do sujeito infantil
seja efetivada de uma maneira ou de outra, é preciso que seja estabelecido um caráter normativo, que
vai orientar a forma como a criança deve se perceber e se ver como menino e menina” (GUERRA,
2012, p. 232). Assim, evidenciamos que as fronteiras de gênero são reconstruídas diariamente, por
meio dos códigos da cultura, proporcionando um dinamismo que colabora nesse caso para uma
educação sexual, que valoriza o ser, vinculado ao seu contexto histórico, distanciando-se do figurino
e adereços clássicos dos príncipes.

FIGURA 3 - CRIANÇA M – ROMPENDO REPRESENTAÇÕES.

Fonte: Acervo da professora (2018).

1079
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na figura 3, observamos o desenho realizado por uma menina de 7 anos de idade, denominada
de criança M, que representa a sua concepção de como é um príncipe diferente. Para saber mais sobre
as suas percepções realizamos alguns questionamentos durante nossa conversa com ela:

Pesquisadora: Olá, por que você desenhou o príncipe assim?


Criança M: Oi, professora! Fiz o desenho de um príncipe diferente que tem seu castelo na
praia e usa roupas apertadas e curtas.
Pesquisadora: Por que você desenhou ele com roupas curtas e apertadas?
Criança M: Então, professora ia desenhar ele de sunga, mas fiquei com medo das outras
crianças rirem de mim.
Pesquisadora: Você poderia ter feito ele de sunga, sem problemas nenhum.
Criança M: Então professora, deixa quieto já fiz ele de roupas agora não dá mais, e evito de
rirem de mim.
Pesquisadora: Por que as crianças iriam rir de você?
Criança M: Por que príncipes usam essas roupas chiques e bem bonitas.
Pesquisadora: Saiba que o desenho é seu e pode desenhar da maneira que achar melhor.
(CRIANÇA M, 2018).

Nesse relato é possível constatar a dificuldade que a criança M teve em representar o príncipe
da maneira que queria, mesmo com toda a orientação dada de que tinham liberdade para fazer seus
desenhos do jeito que preferissem. Compreendemos que os padrões esperados de meninos “príncipes”
foram velados por meio do desenho pois a real ideia que a criança M desejava fazer não foi
concretizada.
Dessa forma, ela apenas se aproxima do que desejava representar por meio do desenho, por
ter medo de ser ridicularizada pelos colegas de turma, evidenciando assim as relações de poder que
as tornam, muitas vezes, subordinadas no trato com o outro por medo da exclusão do seu grupo de
convívio, abrindo mão do seu direito de se expressar para que possa ser aceito. Larrosa (2000) afirma
que: “a infância como um outro não se reduz ao que já fomos capazes de submeter à lógica cada vez
mais redefinida de nossas práticas e de nossas instituições, mas tampouco pode se confundir com o
que ainda não pudemos submeter. Aquilo que ainda nos resiste justifica nosso poder e de forma
alguma o questiona” (LARROSA, 2000, p. 185).
Portanto, a criança M demonstra que é objeto da vontade dos outros, seja de um adulto ou
outra criança. Dessa maneira, renuncia sua vontade de saber e poder, não tendo possibilidade de
defender um conhecimento apropriado à criança, pois a normatização que lhe é imposta acaba
silenciando seus desejos e sentimentos. Dessa perspectiva, refletir sobre o tema desta pesquisa e
1080
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
considerar as experiências por ela proporcionadas, possibilita-nos compreender a necessidade de
oportunizar aos meninos e às meninas, o acesso às mesmas brincadeiras e atividades, tanto no pátio
quanto em sala de aula.
Além disso, é preciso respeitar as escolhas e as singularidades de cada criança; problematizar
junto com elas a imposição de regras e normas instituídas para cada gênero; repensar as práticas
pedagógicas e desenvolver metodologias problematizadoras de forma constante. Essas são algumas
das possibilidades para uma educação que busca a igualdade de direitos e de oportunidades entre
meninos e meninas.
Por esta experiência, também depreendemos que logo no início da formação das crianças, a
escola estabelece regras demonstrando como meninos e meninas devem se comportar, a partir da
educação infantil, enfatizando os papéis sociais considerados “normais”. Dessa forma, a escola que
possui o papel de incluir, é a primeira a excluir e a impor um comportamento como se fosse natural
ao indivíduo, desconsiderando em suas propostas pedagógicas que os educandos são sujeitos
culturalmente diferentes.
De acordo com Finco (2008, p. 267),

A escola acaba orientando e reforçando habilidades distintas para meninos e meninas,


transmitindo expectativas quanto ao tipo de desempenho intelectual considerado “mais
adequado” para cada sexo, manipulando recompensas e sanções sempre que tais expectativas
são ou não satisfeitas. Meninos e meninas recebem educação muito diferente, embora mesmo
estando sentados na mesma sala, lendo os mesmos livros, ouvindo a mesma professora.

A escola limita os espaços e os brinquedos com que se pode brincar, criando distinções entre
meninos e meninas e legitimando uma educação sexista, ou seja, meninas para um lado e meninos
para o outro. “Essa ‘naturalidade’ tão fortemente construída talvez nos impeça de notar que, no
interior das atuais escolas, onde convivem meninos e meninas, rapazes e moças, eles e elas se
movimentam, circulam e se agrupam de formas distintas” (LOURO, 1997, p. 56).
Essas normas são fixadas em nossa cultura como se fosse um caminho padronizando que
devemos seguir, o que é ser masculino e o que é ser feminino, constituindo então a identidade de
gênero que será construída ao longo de nossas práticas educativas e de nossas vidas, a partir de valores
e regras que a sociedade tem. Dessa perspectiva, “qualquer possibilidade de rompimento das
fronteiras de gênero aponta para uma classificação no campo da patologia, da anormalidade”
(FELIPE, 2000, p. 123).
1081
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao relacionar essas constatações com a contação das histórias é evidente que ocorra um
estranhamento por parte das crianças, em relação às representações atribuídas aos personagens
principais das histórias, pois fogem do padrão social que é imposto pela sociedade e considerado
como o correto. Assim, as crianças tiveram que sair de sua zona de conforto para refletirem e
compreenderem que tanto meninos como meninas podem fazer aquilo que gostam
independentemente do gênero ao qual pertencem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, chamamos a atenção dos/as professores/as sobre a necessidade de tecer estratégias
para trabalhar as relações de gênero com estudantes na escola, sugerindo alguns livros de literatura
infantil, com conteúdos que possibilite maneiras outras de ser menino e ser menina, pois a literatura
infantil possibilita abordagens de temáticas que frequentemente são permeadas de medos,
preconceitos e tabus, mas que partindo de situações que envolvem o imaginário infantil, facilita o
fazer docente ao oportunizar uma melhor compreensão sobre as relações de gênero.
Nessa perspectiva, os/as professores/as podem a partir das obras de literatura infantil colocar
em prática as discussões sobre as relações de gênero existentes entre meninas e meninos, dialogando
sobre o que os/as estudantes pensam e concebem sobre essas relações. Para tanto, é possível inserir
questionamentos sobre a necessidade de seguir padrões, costumes, nas relações afetivas e nas
expressões de sentimentos.

REFERÊNCIAS
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Moderna, 2000.

COLE, Babette. Príncipe Cinderelo. São Paulo: Penguin, 1987.

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: Teoria e Prática. 18 ed. São Paulo: Ática,
2003.

FELIPE, Jane. Infância, Gênero e Sexualidade. Educação e Realidade. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, v. 25, n. 1, p. 54-87, 2000.

1082
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FINCO, Daniela. Socialização de Gênero na Educação Infantil. Ciências & Letras (Fapa Impresso),
v. 43, p. 85-115, 2008.

GREGORIN FILHO, Jose Nicolau. Literatura Infantil: Múltiplas linguagens na formação de leitores.
São Paulo: Melhoramentos, 2009.

GUERRA, Judite. Identidades de gênero e sexual na infância. In: XAVIER FILHA, Constantina
(Org.). Sexualidades, gênero e diferenças na educação das infâncias. Campo Grande: Editora da
UFMS, p. 117-129, 2012.

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e máscaras. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2010.

LIMA, Cristiane Pereira. As relações de gênero nos anos iniciais do Ensino Fundamental: práticas
pedagógicas e vivências no cotidiano escolar. 2019. 124f. Dissertação (mestrado) - Universidade
Estadual de Mato Grosso Sul, Campo Grande, MS.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis: Vozes, 1997.

1083
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
INVESTIMENTOS CONTEMPORÂNEOS EM MASCULINIDADES PLURAIS

Alison dos Santo458


Carin Klein459

Resumo: Este artigo, norteado pelos campos teóricos dos Estudos Culturais e de Gênero, em aproximação com a
perspectiva pós-estruturalista, investiga a produção de pedagogias de masculinidades, no âmbito de anúncios publicitários
de uma grande empresa, voltada exclusivamente para o vestuário masculino brasileiro, a Reserva. Para cumprir este
próprosito, tomamos a mídia enquanto instância pedagógica e examinamos o documentário denominado “O silêncio dos
Homens”, cuja produção obteve o apoio da referida empresa, nos questionando: que investimentos atuam na construção
de pedagogias de masculinidades nesse artefato? A partir desse exame, argumentamos que por meio da publicidade da
marca, provoca-se nas redes sociais uma proliferação de adesões, afinidades, simpatias e por que não consumo, ao mesmo
tempo em que ocorrem rejeições, e até discursos de ódio. Evidenciamos o caráter constitutivo e plural das construções de
gênero e masculidades, principalmente, ao desassociá-las de uma matriz hegemônica e relacionada às violências.

Palavras-chave: masculinidades; gênero; pedagogias culturais.

INTRODUÇÃO
O Brasil é um dos países que mais perpetua violências relacionadas às dimensões de gênero,
ou seja, cometidas principalmente contra mulheres e pessoas LGBT’s. Segundo dados divulgados
pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, somente no incício da pandemia do
coronavírus, o número de denúncias de violências cometidas contra a mulher, no Brasil, cresceu cerca
de 40% em abril, em comparação ao mesmo período do ano de 2019 (VIOLÊNCIA, 2020). Já o
Relatório da Comissão Especial para Análise da Violência Contra a População LGBT, denuncia que
o país, apenas em 2018, registrou 420 mortes de pessoas LGBTs - entre 320 homicídios e 100
suicídios. O estudo indica que mata-se muito mais homossexuais, transexuais e bissexuais no Brasil,
do que nos 13 países da África e da Ásia, onde existe pena de morte contra esta população (RIO
GRANDE DO SUL, 2019).
Partimos desse contexto, a fim de argumentarmos acerca de proposições e investimentos
contemporâneos que demonstram ir à contramão das violências de gênero, indicando que há
investimentos em masculinidades plurais, associadas à publicidade de grandes marcas. Nesse sentido,
inscrevemos este trabalho na perspectiva dos Estudos Culturais e de Gênero, em aproximação com a
crítica pós-estruturalista, permitindo-nos elencar algumas compreensões importantes. A primeira

458
Graduando em História pela universidade Luterana do Brasil, campus Canoas. Bolsista voluntário de iniciação à
pesquisa no PPGEDU/ULBRA: alison.historia@hotmail.com
459
Doutora em Educação pela UFRGS, professora no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da
Universidade Luterana do Brasil, campus Canoas. E-mail: carink@terra.com.br
1084
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
refere-se ao conceito de cultura, tomada enquanto um campo de disputas, na qual se investem
constantemente na produção, negociação, contestação e ressignificação de sentidos em torno das
relações e práticas sociais (HALL, 1997). Devido ao caráter constitutivo da cultura, investigar as
masculinidades em diferentes espaços da vida social ganha relevância e centralidade, uma vez que é
nela que circulam os processos discursivos e simbólicos que atuam no que se entende por masculino
e/ou feminino.
No âmbito da cultura, a mídia detém um lugar central, norteador e regulador dentro das
sociedades contemporâneas, assumindo uma função preponderante na circulação e produção de
representações de masculinidades. Argumentamos que as posições de sujeito que ocupamos na
atualidade são predominantemente delimitadas pela cultura, fundamentalmente, por meio das
instituições sociais, entre elas, as mídias. Compreendemos que os processos de constituição dos
sujeitos estão, irremediavelmente, atravessados pelos processos educativos que não são mais
exclusividades das instituições tradicionais de ensino, e que outras instâncias pedagógicas emergem
na contemporaneidade, veiculando, valorando e instituindo representações de masculinidades, na
qual se torna possível os sujeitos se identificarem (ou não). (BALISCEI; CALSA; JORDÃO, 2016).
Conforme Hall (2002), o sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa, estável ou
essencial, antes, podemos dizer que as identidades são constantemente negociadas e cambiadas por
meio de processos culturais marcados pela fluidez e dinamicidade. A partir dessa abordagem, as
masculinidades tornam-se intensamente disputadas, reiteradas e modificadas, tornando-se produtivo
o exame dessas representações na mídia, principalmente, no período histórico em que vivemos, ou
seja, da emergência de tantos movimentos conservadores e reacionários460.
Os argumentos entorno da violência de gênero, em sua grande parte, aliam-se a uma
masculidade hegemônica, reconhecida usualmente por características como o uso da força, virilidade,
valentia, violência, assim como, de uma suposta hierarquia sobre as feminilidades e as
masculinidades, tomadas como inferiores/desviantes (KLEIN e SANTOS, 2020). Investem, e

460
No cenário brasileiro atual, podemos argumentar que existe em curso uma disputa travada, principalmente, por
conservadores, reacionários, fundamentalistas e religiosos, que visam coibir qualquer discussão relacionada aos
temas que envolvem gênero e/ou sexualidade, tanto nas políticas públicas educacionais, como no ambiente escolar,
por exemplo. Os efeitos dessas disputas podem ser percebidos pela ascensão de movimentos como o “Escola Sem
Partido” e diversos projetos de lei que emergem das alas políticas neoconservadoras brasileiras com este propósito,
se tornando até mesmo um assunto de mobilização política na conjuntura brasileira. Para saber mais ver:
JUNQUEIRA, 2018; SARAIVA e VARGAS, 2017.
1085
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
re/constroem uma posição de sujeito masculina, considerada por eles como um ideal e/ou norma
capaz de corrigir e desviar aqueles/aquelas que não se encontram na mesma condição. Diante disso,
iniciamos a investigação do documentário denominado “O silêncio dos Homens” levando em conta
a seguinte questão: Que investimentos atuam na construção de pedagogias de masculinidades nesse
artefato?
Para o desenvolvimento dessa pesquisa cabe indicarmos que, tanto o gênero quanto a
sexualidade são tomados enquanto construtos da cultura. Compreendemos que os processos que
distinguem homens de mulheres não podem ser explicados e/ou justificados pela biologia. Sendo
assim, entendemos que a cultura, suas normas, regras sociais e os processos linguísticos a qual nos
encontramos inseridos, desde a infância, nos ensinam modos e formas de viver ou experienciar o que
se entende por feminino ou masculino (MEYER, 2004, p. 15). Para Butler (2003, p. 18) não são
apenas estas situações que legitimam o caráter constitutivo das masculinidades e feminilidades, mas
também as instituições sociais, as leis, os símbolos, os códigos, assim como as políticas públicas
atuariam, fortemente, na construção, produção, manutenção ou ressignificação das representações do
masculino e feminino em uma determinada sociedade.
Nessa perspectiva, compreendemos que as masculinidades e as feminilidades não são um a
priori, tampouco fruto de uma suposta natureza intríseca aos corpos biológicos de homens e mulheres.
Assumimos a premissa de que masculinidades e feminilidades são fenômenos discursivos, implicados
em processos de produção e significação, sujeitos à negociação e a disputa de sentidos.
Parece-nos senso comum afirmar que os homens e o universo de produção das masculinidades
vêm se alterando significativamente nas últimas décadas. Podemos inferir que esta alteração ocorreu
de modo mais acelerado, a partir das décadas de 60 e 70, em decorrência dos tensionamentos
produzidos pela ascensão dos movimentos homossexuais e feministas, respectivamente (RIBEIRO,
RUSSO e ROHDEN, 2013).
Desde então, o próprio conceito de masculinidade hegemônica, elaborado por Connell (1995)
na década de 90, muito utilizado como ferramenta de análise teórico-metodológica neste campo de
investigação, necessitou ser repensado, uma vez que já não dava conta das análises acerca da
pluridade das masculinidades, atravessadas também por marcadores sociais como sexualidade, raça,
geração, por exemplo. Diante de outros estudos elaborados desde este período, o conceito de
masculinidade hegemônica, antes compreendida enquanto um conjunto de normas e práticas

1086
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estáveis de gênero que legitimavam uma posição dominante de um grupo restrito de homens na
sociedade, mas que acabavam atuando como regulador das demais masculinidades foi sendo
reformulado em quatro grandes áreas: a natureza das hierarquias de gênero, o peso do social no
processo de incorporação da masculinidade, a geografia das configurações de masculinidade e a
dinâmica das masculinidades. Sendo assim, a respeito da nova dinâmica do conceito, Connel e
Messerschmidt (2013), acrescentam:

Tais práticas não podem ser lidas simplesmente como expressando uma masculinidade
unitária. Elas podem, por exemplo, representar formações comprometidas por desejos
contraditórios ou emoções, ou por resultados de cálculos incertos sobre os custos e os
benefícios de diferentes estratégias de gênero. Masculinidades são configurações da prática
que são construídas, reveladas e transformadas ao longo do tempo. [...] As transformações ao
longo do tempo, na medida em que são certamente moldadas por contradições no seio das
masculinidades, também podem ser intencionais. (CONNEL e MESSERSCHMIDT, 2013,
p. 271).

CONTEXTUALIZANDO O ARTEFATO DE PESQUISA E OS CAMINHOS DA


INVESTIGAÇÃO
Iniciamos nossa investigação através das mensagens do Instagram, postadas pela empresa
Reserva. A Reserva é um grife de roupas, que obtém sucesso entre homens de classe média alta,
fundada em 2004, por Rony Meisler e Fernando Sigal, empresários cariocas. Desde sua fundação, a
empresa se desdobrou em uma plataforma tecnológica e cinco marcas, que emprega, entre 1,5 mil
funcionários e, segundo estimativas, somente no ano de 2019, devem ter faturado algo em torno de
R$ 400 milhões (MOURA, 2019).
O motivo de esta empresa nos chamar a atenção se deve as polêmicas que a mesma se
envolveu desde a sua fundação. Durante o lançamento de sua campanha do dia dos namorados, no
ano de 2018, a grife foi acusada de machista, pelo próprio público consumidor masculino. Em vídeos
e stories postados em seu perfil oficial461 no Instagram, que conta com mais de 931 mil seguidores,
a marca fez uma “brincadeira” usando o áudio popular que estava circulando no período, conhecido
como “Gemidão do Zap”. Em 2017, repercurtiu um vídeo que foi encaminhado via WhatsApp, onde
o áudio exibia um alto gemido feminino, com conotação sexual, que fazia o seu receptor passar por
constrangimento em público. Após as publicações utilizando este “áudio”, seguidores da marca

461
Disponível em: https://www.instagram.com/reserva/?utm_source=ig_embed. Acesso: 30 jul. 2020.
1087
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
escreveram comentários, afirmando que a ação desrespeitava as mulheres e exaltava a pornografia.
Diante deste contexto, a empresa pediu desculpas, publicamente, nesta mesma rede social (imagem
1), e apagou os posts relacionados. Em anos anteriores, a marca já havia sido acusada de racismo
(CATRACA LIVRE, 2018).

Imagem 1 – Pedida público de desculpa no instagram oficial da marca Reserva

Fonte: Imagens capturadas pelo(a) autor/a, diretamente do Instagram da marca Reserva, 2020.

Em virtude desta polêmica, Roney Mesleyr resolveu como forma de correção da postura da
marca, considerada machista, investir na produção de um documentário produzido pelo grupo Papo
de Homem (PdH). Em suas palavras, por meio de um vídeo publicado no canal do Youtube PdH462,
alega assumir a responsabilidade pelo erro cometido pela marca e assim, trata agora de disponibilizar

462
Disponível em: https://www.youtube.com/user/papodehomem Acesso: 30. jul. 2020.
1088
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sua infraestrutura digital e off-line para fazer circular a discussão sobre a problemática do machismo,
entendendo que esta medida teria potencial na transformação da compreensão coletiva acerca das
masculinidades. Ele próprio argumenta no início do vídeo, que a paternidade já havia despertado nele
muito interesse em compreender melhor o assunto que envolve as masculinidades (HOMEM, 2019).
O PdH é uma rede exploratória do espaço masculino, que conta com site próprio, bastante presente
em todas as mídias sociais e também no YouTube:

Formado por um grupo de homens de todo o Brasil, o site Papo de Homem, de acordo com
dados disponibilizados pelo próprio site para apresentar dados de audiência e perfil de
usuários para anunciantes, conta com 1.540.000 visitas únicas por mês, 71% do público leitor
constituído por homens e 66% dos leitores, na faixa de 21 a 34 anos, cuja maior parte tem
um alto poder aquisitivo, composto pelas classes média-alta e alta. O Papo de Homem ou
PdH como é comumente chamado pelos editores e usuários, foi criado em 2006, pelo
publicitário Guilherme Nascimento Valadares e se ampliou para além de um site, realizando
workshops para empresas e palestras sobre comportamento masculino. De modo geral, trata-
se de um espaço exploratório do masculino, oferecendo ‘conteúdo que cataliza
transformações positivas, ou seja, melhora a qualidade de vida, a sensação de propósito e
sentido’ e principalmente, que procura através de sua abordagem ‘sem frescuras’ não apenas
captar o novo homem que surgiu com a sociedade contemporânea, como também ajudar a
formá-lo.. (PRADO, 2013, p. 3-4).

Nesta mesma direção, a marca Reserva, após a reprovação virtual que recebeu de seus
seguidores e consumidores, mudou seu posicionamento na rede social, abrindo espaço para
divulgações que tomassem as masculidades enquanto construtos culturais, aliando-se ao grupo PdH,
nas redes sociais. Como exemplo disso, conforme (imagem 2) as publicações de imagens e textos que
objetivam atualmente produzir o respeito em relação às masculinidades homossexuais, infógraficos
ensinando ações para modificar a postura machista, a publicação de vídeos no canal IGTV do
Instagram, trazendo fortemente, divulgações e discussões acerca das paternidades ativas, negras,
gays, etc.

1089
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Imagem 2 – Publicações que evidenciam a alteração do discurso da empresa em relação às
masculinidades

Fonte: Imagens capturadas pelo(a) autor(a) diretamente do Instagram da Reserva, 2020.

Tendo apresentado o tema e a relevância do estudo, seguimos para a discussão de algumas


cenas extraídas do material empirico, evidenciando o que ali se busca ensinar em relação às
possibilidades de viver as masculinidades. Como anunciamos, o material empírico examinado neste
trabalho é o documentário produzido pelo PdH, com investimento e patrocínio da marca Reserva,
intitulado “O silêncio dos homens”. Primeiro, assistimos ao filme, para em um segundo momento,
transcrevermos as falas e as principais impressões sobre os investimentos realizados acerca das
masculinidades, para finalmente realizarmos algumas análises, levando em conta a indagação já

1090
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
anunciada: quais são as pedagogias de masculinidades veiculadas e produzidas por meio deste artefato
cultural?

O FILME “O SILÊNCIO DOS HOMENS”

O filme conta com mais de um milhão de visualizações no canal do Youtube e possui uma
hora de duração. Foi um projeto, patrocinado não somente pela Reserva, mas também pela marca
Natura Homem. Segundo a descrição do filme, o projeto que culminou na produção do documentário
“ouviu mais de 40 mil pessoas em questões a respeito das masculinidades e desembocou num [...]
livro-ferramenta baseado nesse estudo com dados públicos por meio de um convênio com o
Consórcio de Informações Sociais (CIS) da USP” (HOMEM², 2019). Nas palavras do criador do Papo
de Homem:

Um total de 32 pessoas envolvidas diretamente por quase um ano. Considerando as pessoas


que passaram pelo projeto brevemente, são mais de 50. Esse é um projeto feito para furar
bolhas e dialogar com todos e todas. Não à toa, também surge do ventre de uma imensa rede
de coletivos, com pessoas negras, brancas, hetero, não hetero, trans, progressistas,
conservadoras, jovens, adultas, velhas, de norte a sul do país. Queremos contribuir para que
o tema masculinidade seja pautado de modo construtivo. Não podemos falar apenas do que
falta e falha nos homens, é essencial sonharmos outras masculinidades possíveis, saudáveis.
(VALADARES, 2019).

O filme (HOMEM², 2019) inicia apresentando histórias de vidas, de sujeitos não identificados,
falando a respeito dos efeitos nocivos que a incorporação de determinados ensinamentos de
masculinidade causaram em suas vidas. Apresenta um sujeito negro que fala sobre os malefícios da
incessante busca em ser um "macho, viril, provedor".
Após, algumas narrativas, os homens começam a assumir lembranças, posicionamentos e
identidades. O sujeito negro se chama Ismael dos Anjos, jornalista e pesquisador de masculinidades.
Ele argumenta o seguinte:

Eu acho que ser capaz de identificar poucos sentimentos, não ser capaz de nomear o que se
sente, é um dos motivos que levam vários homens a usar a violência como linguagem. Essa
linguagem vai perpassar a relação com ele, mas com outros homens, com mulheres,
com filhos. Talvez não seja a coisa mais urgente, mas talvez seja a coisa que mais atinja
várias das coisas urgentes que a gente precisa endereçar.

1091
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No vídeo, apresentam-se vários dados estatísticos, evidenciados de forma bastante atraente e
dinâmica, em formato de infográfico (imagem 3):

83% das mortes por homicídios e acidentes no Brasil têm homens como vítimas. Eles vivem
7 anos a menos que as mulheres e se suicidam quase 4 vezes mais. 17% deles lida com algum
nível de dependência alcoólica. Quando sofrem um abuso sexual, demoram em média 20
anos até contarem isso pra alguém. Cerca de 30% enfrentam hoje ejaculação precoce ou
disfunção erétil. Homens são 95% da população prisional no Brasil, sendo que a maior parte
dos encarcerados são jovens, periféricos e com ausência de figura paterna. Negros e LGBTs
sentem muito mais boa parte disso. Mesmo diante desse cenário, apenas 3 em cada 10 homens
possuem o hábito de conversar sobre os seus maiores medos e dúvidas com os seus amigos.
Os homens sofrem, mas sofrem calados e sozinhos.

Imagem 3 – Imagens do documentário “O silêncio dos homens”

Fonte: Imagens capturadas pelo(a) autor(a) diretamente do Youtube da PdH, 2020.

1092
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em seguida, acompanhamos no filme, a fala de um psicólogo, Fred Mattos e também
Guilherme Valadares, criador do PdH, dando suas explicações (e significações) acerca do silêncio
masculino, ao mesmo tempo em que instigam os ouvintes homens a falarem sobre seus problemas,
pois isto não os fará de modo algum parecer menos homens. Observamos um jogo discursivo que
trata de ampliar no âmbito da cultura os sentidos sobre as masculinidades, no que tange a tornarem-
se mais ou menos homem.
Chama-nos a atenção a narrativa de Raquel Franzin, Coordenadora de Educação, ao falar
sobre como educamos meninos e meninas, desde a infância, ou seja, relembra ensinamentos que
reforçam e naturalizam atitudes e comportamentos, como se esses fossem próprios da natureza
feminina ou masculina:

Um exemplo que eu gosto de dar, até por ter sido professora de creche, é que a gente aceita
os meninos sujos, com o nariz escorrendo, com uma troca de fralda demorada. O que com as
meninas a gente tem uma tolerância menor. Mas com os meninos a gente vai deixando. E
com os bebês e meninos negros, a gente deixa eles ainda pro final da fila. Eles são os últimos
a serem cuidados. E quando essas expressões partem dos meninos, quando os meninos, por
exemplo, tem essa iniciativa de abraçar, a gente ensina rapidamente eles a dar a mão, bater
no ombro, não à toa dos meninos é esperado que eles sejam ativos, dominadores,
controladores, em detrimento de uma vida interior cada vez mais sob controle e diminuída.

Nessa perspectiva, consentimos em ver um menino negro (na escola) mais para o final da fila,
talvez mais sujo e, até mesmo, mais agressivo. Ensinamos eles a tornarem-se mais reservados, menos
afetivos e cuidadosos. A partir dos corpos, instituímos pedagogias que dão lugar a um binarismo de
gênero e sexualidade, atravessados por outros marcadores sociais, em que todos/as devem seguir
caminhos esperados e supostamente naturais. Esse parece ser um percurso que o documentário
pretende desconstruir, indicando possibilidades para o caráter plural, disputado e negociado das
masculinidades.
O documentário dá visibilidade a projetos educacionais e workshops relacionados à uma
educação a favor da produção de masculinidades, no plural, além de articular a discussão com os
prejuízos provocados pelo machismo, sexismo e excessivo consumo de pornografia. Apresenta uma
roda de conversa com homens, realizada após o evento "Homens Possíveis", na qual se discute a
partir da seguinte questão: existe ou não um movimento de transformação dos homens acontecendo
hoje? Para dar conta dessa pergunta, apresenta-se à pesquisa realizada, com mais de 40 mil
homens e mulheres, de diversas iniciativas no Brasil, a fim de dar algum direcionamento ao tema.
1093
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Os vários projetos apresentados então no documentário e servem de provocação para que os homens
possam expor seus sentimentos, perceber comportamentos inadequados para corrigi-los. Durante o
documentário, abre-se ainda a discussão sobre o silêncio vivido pelo homem negro, ao expor a
realidade da perifiria e das formas de viver as masculinidades negras. O filme também dá voz às
masculinidades homossexuais e transsexuais. Lam Matos, um homem trans argumenta o seguinte:

As pessoas trans morrem não por causa de outras pessoas trans, as pessoas trans morrem
porque essa norma do ser homem, do ser mulher, mata a gente. Essa raiva, esse ódio que mata
as pessoas trans. Que violenta os gays, que violenta as lésbicas, que violenta as mulheres, é
isso tudo que violenta a sociedade. Quando eu me coloco como um homem dentro da
sociedade, a sociedade me cobra uma postura de homem. É cobrado "você não pode chorar"
e aí é uma coisa muito recorrente entre homens trans que quando começam a assumir os
papéis masculinos dentro da sociedade, eles falam: uma coisa que eu notei que eu parei de
fazer quando eu cheguei nessa masculinidade foi, eu parei de chorar. Eu me vejo obrigado a
seguir um padrão para ser aceito como homem.

Ao iniciarmos a investigação, expusemos dados alarmantes a respeito da violência relacionada


com as dimensões de gênero. Neste sentido, o projeto Tempo de Despertar, divulgado no
documentário, nos chamou bastante a atenção, pois é composto por grupos reflexivos de homens,
ex/autores de violência que atualmente discutem as construções sociais, as relações entre homens,
homens e mulheres, a fim de que possam refletir sobre o que aprenderam enquanto homens, como
aprenderam, assim como os efeitos que essas aprendizagens trouxeram para suas vidas, suas famílias,
suas relações como pais, esposos, filhos/as, ou seja, o que eles podem fazer ao ressignificar um
modelo hegemônico de masculidade, que traz como um de seus efeitos, a violência.
Alguns dados da pesquisa já citada e que serve como mote para embasar a construção das
ações educativas e o investimento em masculinidades enquanto um projeto viável, saudável e
oportuno são os seguintes:

50% das mulheres concordam, em algum nível, que os homens estão agindo de modo menos
machista nos últimos anos. E 65% delas afirmam que os homens que são pais estão
participando cada vez mais. Entretanto, 54% acreditam que eles ainda não entenderam
completamente que elas merecem as mesmas oportunidades e direitos. E somente 28% das
mulheres acham que os homens estão assediando menos. E 65% delas afirmam que os
homens que são pais estão participando cada vez mais. Entretanto, 54% acreditam que eles
ainda não entenderam completamente que elas merecem as mesmas oportunidades e direitos.
E somente 28% das mulheres acham que os homens estão assediando menos.

1094
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A reflexão acerca do nosso objeto de pesquisa, através da perspectiva teórica por nós adotada,
permite-nos trazer alguns argumentos que consideramos relevantes. Em primeiro lugar, embora
sejamos um dos países que mais perpetua violências relacionadas às dimensões de gênero, podemos
inferir que existem em curso investimentos importantes a respeito da produção de novas pedagogias
de masculinidades, porém levando em conta que ainda é restrito e atravessado por marcadores de
classe social, como pode ser evidenciado através dos seguidores e consumidores da própria marca
Reserva, que obtém maiores consumidores entre as classe média e alta, bem como diversos produtos
culturais463 que são disponibilizados pelo PdH neste sentido, como palestras e workshops, que
possuem participação mediante pagamento.
Em segundo lugar, este estudo explicita, denuncia e evidencia o caráter disputado da cultura,
demonstrando que as representações de masculinidades no âmbito brasileiro estão em processo de
debate e ressignificação, ou seja, as características da representação da masculinidade hegemônica,
aliadas a sexualização e objetificação da mulher, foram desprezadas pelo público da Reserva,
seguidores e consumidores. Isso demonstra que ao menos no âmbito das mídias sociais, a publicidade
masculina voltada para a classe média e alta pode ser rejeitada e repudiada publicamente, caso haja
uma mensagem considerada explicitamente “machista”.
Se antes o discurso acerca da transformação das masculinidades era estritamente acadêmico,
agora podemos afirmar que as fronteiras das universidades e dos estudos acadêmicos ampliam-se e
disseminam-se na cultura. Através deste estudo podemos visibilizar que existem empresas que
reconhecem a nocividade que a masculinidade hegemônica causa aos homens, assim como para toda
a sociedade. Elas começam a associar suas marcas, a determinados conteúdos relacionados aos
grandes temas e lutas de grupos ainda considerados minoritários464, provocando nas redes sociais uma
proliferação de adesões, afinidades, simpatias e por que não consumo, ao mesmo tempo em que sofre
rejeições, por meio dos discursos de ódio465.

463
Como exemplo, citamos o evento virtual produzido pelo PdH, que ocorre em agosto de 2020, intitulado:
EVENTO PAI 2020 (online): Os desafios das paternidades atuais, cujo valor para participar é de R$ 50,00. Para
saber mais: https://www.sympla.com.br/evento-pai-2020-online-os-desafios-das-paternidades-atuais__934680.
Acesso 20 agos 2020.
464
Minoritários em relação a acessos e distribuição do poder, não numericamente.
465
Nesse sentido, citamos como um caso emblemático, a campanha de dia dos pais da marca Natura de 2020,
divulgada através das redes sociais. O ator transexual Thammy Miranda, pai de um filho de apenas seis meses
chamado Bento Ferreira de Miranda, foi convidado para participar da ação da marca, postando em suas redes sociais
um vídeo, demonstrando sua paternidade e utilizando a hashtag criada pela Natura, #meupaipresente. A ação
provocou grande repercussão nas redes sociais, obtendo forte adesão e defesa da paternidade trans, como também
1095
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por último, resta-nos explorar o caráter pedadógico de nosso objeto de investigação. O filme
aqui analisado investe na produção de uma compreensão de masculinidade enquanto construto. Mais
do que isto, investe em pedagogias que disseminam formas plurais de experienciar as masculinidades,
demonstrando a existência de diferentes masculinidades, já coexistindo e se relacionando no
cotidiano. O filme, até o momento desta pesquisa, já contava com mais de 3,9 mil comentários, nesta
seção do Youtube. Diversos comentários, de homens e mulheres, convergem com o que estamos
demonstrando: são pessoas que dizem identificar-se com o material, reconhecendo que a sociedade
precisa se modificar e aprender acerca das masculinidades. Nesse sentido, observamos um empresário
que pretende reproduzir o que aprendeu, criando grupos de conversa, em sua própria empresa
(imagem 4).

Imagem 4 – Comentários sobre o documentário O silêncio dos homens, no Youtube.

Fonte: Imagens capturadas pelo(a) autor(a) diretamente do Youtube da PdH, 2020.

muita rejeição e reprovação, por grupos conservadores e lideranças religiosas que subiram no Twitter a hashtag de
boicote à marca #NaturaNão. Para saber mais ver: MOURA², 2020.
1096
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao finalizarmos o estudo, chamamos a atenção para o caráter constitutivo das coisas, pessoas,
sentimentos, comportamentos e ações, assim como da função educativa que a mídia promove e
veicula. Iniciamos o texto destacando situações concretas relacionadas às violências de gênero e
intencionamos agora, indicar iniciativas, ligadas ao mercado, ao consumo, mas também as práticas e
debates cotidianos. Indicamos o caráter constituidor e contestador que a educação pode trazer sobre
as masculinidades, cujos efeitos podem se concretizar na diminuição das violências, cometidas contra
mulheres e/ou LGBT’s e em experiências mais positivas dos homens consigo mesmo e com seu
próprio núcleo familiar.
Sendo assim, apresentamos movimentos de ruptura da representação hegemônica de
masculinidade, contudo, acreditamos que este investimento tem alcançado com maior vigor as classes
média e alta de nossa sociedade. Homens que talvez já possuam formação acadêmica e acesso ao
pensar de forma mais crítica. Portanto, este trabalho traz vigor para continuar pesquisando acerca das
formas e meios de fazer circular as discussões a respeito das masculinidades, visibilizando o poder
de mudança que isto representa. Encerramos este trabalho com uma indagação: de que maneira
podemos fazer circular o potencial educativo e contestador desta discussão em todos os níveis de
nossa sociedade?

REFERÊNCIAS

BALISCEI, João Paulo, CALSA, Geiva Carolina e JORDÃO, Victor Hugo. O Homem Malbec e a
construção visual da masculinidade. Textura (Canoas), v. 18, p. 69-89, 2016.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato


Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CATRACA LIVRE. Marca erra feio mais uma vez e campanha é acusada de machismo. São
Paulo, 2018. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/grife-campanha-acusada-
machismo/. Acesso: 30 jul. 2020.

CONNELL, Robert e MESSERSCHMIDT, James. Masculinidade hegemônica: repensando o


conceito. Rev. Estud. Fem., vol. 21, n.1, p. 241-282, 2013.

CONNELL, Robert. Políticas da Masculinidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20,
n. 2, p. 185-206, 1995.

1097
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez. 1997. Disponível em:
http://www.gpef.fe.usp.br/teses/agenda_2011_02.pdf. Acesso em: 14 mar. 2020.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

HOMEM, Papo de. Envolvimento da Reserva no Projeto | O Silêncio dos Homens. Youtube, 2019.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8esNj2fiywM. Acesso: 30 jul. 2020.

HOMEM², Papo de. O silêncio dos homens | Documentário completo. Youtube, 2019. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE&t=194s. Acesso: 30 jul. 2020.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da 'ideologia de gênero': a emergência de um cenário


político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Revista de Psicologia
Política, v. 18, p. 449-502, 2018.
KLEIN, Carin; SANTOS, Alison dos. Orgulho de ser Hetero?
Disputas em torno das masculinidades em uma página do Facebook. Aceito na Revista Teias. No
Prelo.

MEYER, Dagmar Estermann. Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais.
Rev. Bras. Enferm., [online], v. 57, n. 1, p. 13-18, 2004.

MOURA, Marcelo. Como Rony Meisler transformou a Reserva em um laboratório de inovação.


Revista PENG. São Paulo, 2019. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/Banco-de-
ideias/Moda/noticia/2019/08/como-rony-meisler-transformou-reserva-em-um-laboratorio-de-
inovacao.html. Acesso: 30, jul. 2020.

MOURA², Julia. Ações da Natura disparam enquanto comercial com Thammy causa polêmica. Folha
de São Paulo. São Paulo, 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/acoes-da-natura-disparam-enquanto-comercial-
com-tammy-causa-polemica.shtml. Acesso: 30 jul. 2020.

PRADO, Juliana. Fortalecimento do masculino e redes de sociabilidade nos usos terapêuticos das
mídias digitais. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2013. Disponível:
http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373315763_ARQUIVO_tra
balhocompletoFazendoGenero2013JulianadoPrado.pdf. Acesso: 30 jul. 2020.

RIBEIRO, Cláudia Regina, RUSSO, Jane Araújo e ROHDEN, Fabíola . Uma nova pedagogia da
sexualidade para homens: discursos midiáticos e suas reverberações. Revista Physis, v. 23, p. 461-
488, 2013.

RIO GRANDE DO SUL. Comissão Especial para Análise da Violência Contra a População
LGBT, 2019. Disponível em:
1098
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
http://www.al.rs.gov.br/FileRepository/repdcp_m505/ComEspLGBT/Relat%C3%B3rio%20final%
20Comiss%C3%A3o%20Especial%20LGBT.pdf. Acesso em 30 jul. 2020.

SARAIVA, Karla e VARGAS, Juliana Ribeiro. Os perigos da escola sem partido. Teias (Rio de
Janeiro) , v. 18, p. 68-84, 2017.

VALADARES, Guilherme Nascimento. Assistam nosso documentário "O silêncio dos homens", na
íntegra. Papo de Homem, 2019. Disponível em: papodehomem.com.br/o-silencio-dos-homens-
documentario-completo/. Acesso: 30 de jul. 2020.

VIOLÊNCIA contra a mulher aumenta em meio à pandemia; denúncias ao 180 sobem 40%. Isto é
dinheiro. Edição nº 1179 10.07 Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/violencia-contra-
a-mulher-aumenta-em-meio-a-pandemia-denuncias-ao-180-sobem-40/ Acesso em: 14/07/2020.

1099
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SINTONIA: PEDAGOGIAS DA JUVENTUDE EM UMA SÉRIE BRASILEIRA DO
NETFLIX

Alison dos Santos466


Carin Klein467

Resumo: Este artigo, inscrito no campo teórico dos Estudos Culturais e de Gênero, em aproximação com a vertente crítica
pós-estruturalista, objetiva investigar a produção de pedagogias da juventude em uma série brasileira produzida pela
Netflix, denominada “Sintonia”. Esta série é uma produção de Kondzilla, empresário e publicitário paulista de grande
influência na popularização do estilo musical que ficou conhecido internacionalmente como “Funk Ostentação”, e dono
do sexto maior canal do Youtube mundial. A série se tornou a mais popular do Netflix Brasil do ano de 2019. Partimos
da compreensão que este artefato cultural opera enquanto uma instância educativa contemporânea e tomamos conceitos
como Pedagogias Culturais, Cultura e Gênero como potentes ferramentas teóricas e metodológicas de análise que nos
permitem colocar sob suspeita determinados comportamentos produzidos a partir deste artefato cultural. O exame do
nosso material empírico evidenciou que este artefato opera pedagogias e ensinamentos que reforçam, nomeiam e
reatualizam noções essencialistas e já consolidadas no âmbito da cultura, acerca de marcadores de raça, classe social, bem
como do fortalecimento de representações de masculinidades e feminilidades já estigmatizadas no âmbito das mídias.

Palavras-chave: sintonia; netflix; pedagogias culturais; gênero.

INTRODUÇÃO
Funk ostentação468, uma igreja pentecostal469 e o tráfico de drogas da periferia apresentam-se
enquanto instâncias culturais importantes, na série da Netflix Sintonia. À primeira vista, se
apresentam três cenários totalmente distintos e desconexos. No entanto, esses locais da cultura
atravessam e atuam, configurando a existência de muitos/as jovens das periferias urbanas brasileiras,
fato este que pretendemos discutir e problematizar no transcorrer desta investigação.
Nos aliamos aos campos teóricos dos Estudos Culturais em Educação, pois se constituem de
forma interdisciplinar a fim de explorar os mecanismos de produção, circulação e recepção dos mais

466
Graduando em História pela Universidade Luterana do Brasil, bolsista voluntário de iniciação à pesquisa no
Programa de Pós-Graduação em Educação da ULBRA. E-mail: alison.historia@hotmail.com
467
Doutora em Educação. Professora no PPGEDU da ULBRA. E-mail: carink@terra.com.br
468
Funk Ostentação é uma vertente musical nascida do funk carioca, porém que se desenvolveu na cultura periférica
de São Paulo. Diferentemente do gênero conhecido como “Funk Proibidão”, que possui como característica a
exaltação da criminalidade, uma realidade das favelas cariocas, o Funk Ostentação possui como particularidade a
adoção intensa e constante da temática das marcas e do consumo. Outra característica marcante neste gênero é que
seus intérpretes, geralmente, são muito jovens e há todo um mercado audiovisual que o cerca de bastante alcance e
lucratividade. Para saber mais, ver: PEREIRA, 2014.
469
Pentecostalismo refere-se à emergência do segundo movimento de igrejas de matriz protestante, que se inicia nos
Estados Unidos no século XIX e chega ao Brasil em início do século XX. Uma das principais igrejas expoentes
deste movimento no Brasil é a Assembleia de Deus. A crença em milagres, dons espirituais, profecias, a teoria da
prosperidade e também a regulação do modo de vestir dos seus frequentadores são uma das características marcantes
deste movimento. Para saber mais, ver: MOURA, 2010.
1100
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diversos artefatos culturais nas sociedades atuais. Através da interlocução dos Estudos Culturais e a
Educação torna-se possível investigar como os sentidos produzidos e veiculados, em torno deste
artefato midiático, prolifera ensinamentos e pedagogias que atuam na constituição dos sujeitos jovens
contemporâneos.
Outro campo teórico importante para a realização desse estudo refere-se aos Estudos de
Gênero, que se aproximam da crítica pós-estruturalista, permitindo-nos acionar algumas
compreensões que consideramos relevantes: a primeira diz respeito ao conceito de Pedagogias
Culturais. A ampliação acerca do entendimento das pedagogias as inserem dentro de uma complexa
rede de sentidos, que não se limitam exclusivamente ao âmbito escolar, mas se disseminam,
fortemente, através dos processos educativos que ocorrem no âmbito da cultura, aliados as disputas
de sentidos e de poder. Nesta perspectiva, a utilização deste conceito como ferramenta teórica e
política possibilita a reflexão e o debate acerca dos artefatos culturais, bem como das relações sociais
que estes propiciam e estabelecem, por meio dos inúmeros processos educativos ao qual se encontram
imersos (ANDRADE; COSTA, 2015). Nesta mesma direção, autoras como Steinberg e Kincheloe
(2004) atuam na formulação do conceito que:

[...] enquadra a educação numa variedade de áreas sociais, incluindo mas não se limitando à
escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido,
incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,
videogames, livros, esportes, etc. (STEINBERG; KINCHELOE, 2004, p. 14).

Outra compreensão importante refere-se ao conceito de cultura tomado aqui enquanto um


campo de produção, disputas, contestações, negociações e ressiginifações em torno dos sentidos que
envolvem a constituição das relações sociais (HALL, 1997). Argumentamos, que devido à este caráter
constitutivo da cultura, investigar a produção de diferentes pedagogias no âmbito das mídias ganha
relevância e centralidade, pois entendemos que é através delas que ocorrem os processos simbólicos
e discursivos que atuam na constituição das subjetividades juvenis contemporâneas.
Nos apoiamos em Fischer (2002, p. 153) para enfatizar a dimensão educativa da mídia, que
opera, justamente, no sentido de constituição de subjetividades e sujeitos, na medida em que ela faz
circular não apenas imagens, mas significações e saberes que se inscrevem nos sujeitos orientando e
difundindo formas de ser e estar na cultura em que participam.

1101
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nesta direção, objetivamos neste trabalho, investigar a produção de pedagogias culturais e de
gênero em um seriado produzido pela Netflix, denominado Sintonia. Tomamos este artefato cultural
enquanto uma instância educativa e a examinamos, a partir das seguinte indagação: Que pedagogias
de gênero se inscrevem nos sujeitos através deste artefato?
Para desenvolvimento deste trabalho, cabe ressaltar ainda, que tanto o gênero quanto a
sexualidade não como um a priori, ou uma sequência natural correspondente da biologia dos corpos.
Antes, consideramos estes conceitos como construtos, diferentes e relacionados, uma vez que as
formas de vivermos os gêneros incidem sobre as formas de vivermos os prazeres e as sexualidades.
Desse modo, tomamo-os enquanto construtos da cultura, fluidos, provisórios, contingentes,
negociados, pois são atravessados por diversos discursos que circulam não apenas no contexto das
mídias, mas também pelas próprias instituições sociais, por meio de suas normas, símbolos,
definições e leis (MEYER et al., 2014).
Para cumprir o propósito desta investigação, organizamos este texto da seguinte forma: a) a
relevância do artefato e as ferramentas de análise; b) evidenciamos o caráter constituidor das mídias
no âmbito da cultura; c) apresentação do material empírico e d) realização do exercício analítico que
coloca sob suspeita determinados comportamentos produzidos a partir do artefato cultural.

“SINTONIZANDO” COM O ARTEFATO DE PESQUISA


O material empírico examinado neste trabalho é o seriado “Sintonia”(SINTONIA², 2019).
Inicialmente, assistimos à primeira temporada do seriado, para em segundo momento transcrevermos
as falas e as principais impressões a acerca dos ensinamentos que este artefato veicula e que
consideramos relevantes. Então, vamos a descrição do objeto de pesquisa:
Uma produção original Netflix, a série (imagem 1) é produzida pelo “fenômeno” Kondzilla470
em parceria com Guilherme Quintella e Felipe Braga e possui 6 episódios que tem em média 40-50
minutos de duração cada. O elenco principal é composto por MC Jotappê, Christian Malheiros e
Bruna Mascarenhas. A produção se tornou a mais popular da Netflix Brasil de 2019, e devido ao

470
Kondzilla, nome artístico de Konrad Dantas, é um empresário e produtor brasileiro de São Paulo. Reconhecido
devido a sua influência na popularização do gênero musical conhecido como “funk ostentação”, é chamado de
“fenômeno” por hoje ser o dono do sexto maior canal do Youtube Mundial, com mais de 60 milhões de inscritos na
plataforma. Para saber mais, ver: SOARES, 2017; KONDZILLA, 2020.
1102
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
grande sucesso, foi confirmada uma segunda temporada, com previsão de lançamento ainda em 2020
(MARÇAL, 2020).
A série narra a história de três amigos de infância, que possuem distintas personalidades, mas
um objetivo em comum: a busca da sua própria realização pessoal e também da ascensão social diante
da realidade de uma periferia fictícia da cidade de São Paulo. Mesmo trilhando caminhos diferentes,
diante dos momentos difíceis que enfrentarão, é na construção dessa amizade que encontrarão algum
refúgio e apoio.
Doni é um jovem branco, o mais privilegiado dentre os três, pois seus pais são comerciantes
evangélicos e donos de uma mercearia na periferia. É um jovem criativo e sonha em ser um astro do
funk ostentação, indo na contra mão dos anseios de sua família, que deseja que o mesmo foque nos
estudos para se tornar alguém na vida. Porém, ele não consegue largar seu lado artístico de compositor
de músicas de funk ostentação, até que um dia, ao ir com seus amigos no baile, ele ouve sua música
tocando na voz de uma artista já conhecida, MC Dondoka, o que o incomoda muito. Este personagem,
então, irá trazer para o enredo da história toda a representatividade desta cultura periférica, o que
certamente é um dos pilares da trama, tendo como produtor o Kondzilla. Sendo assim, ele vai
apresentar os bastidores da indústria audiovisual deste estilo musical, as dificuldades e negociações
que ele irá enfrentar para alcançar o "sucesso" almejado.
Nando, por sua vez, é um jovem negro, pai de família, envolvido com o tráfico de drogas e
que ambiciona, como sucesso profissional, o seu crescimento na estrutura do tráfico da periferia. Este
personagem, então, irá explorar todas as nuances e tensionamentos provocados por sua ambição, ao
mesmo tempo atravessando este protagonista com diversos marcadores de raça. Como exemplo, já
no segundo episódio, o mesmo passa por uma abordagem policial, e somente por falar em voz alta
com o agente, é levado preso para uma delegacia.
Já a protagonista Rita, traz à narrativa uma outra realidade, mais introspectiva. Ela é uma
jovem que enfrenta inúmeras dificuldades, tanto no âmbito financeiro como interpessoal. Sua amiga,
por exemplo, é presa injustamente. Rita acaba encontrando refúgio e conforto em uma igreja
evangélica pentecostal, onde a pastora desta denominação religiosa, chamada Sueli, era amiga de sua
mãe. Esta personagem nos parece buscar uma redenção, a sensação de pertencimento à um grupo
social. Sua relação com a pastora dessa igreja evangélica, denominada na série de Igreja
Pentecostal Ministério da Graça e Adoração, passa a se estreitar de tal modo que a mesma começa

1103
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a desejar ajudar esta líder religiosa, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento dessa igreja
da periferia. Ao mesmo tempo em que, suas visitas à sede desta instituição acabam a expondo aos
processos de mercantilização da fé.
.
IMAGEM 1 – PERSONAGENS PRINCIPAIS DA SÉRIE

Fonte: Pôster de divulgação da Netflix, 2019.

O enredo desta produção, tenta realizar então uma interconexão entre estes três universos
paralelos em que os personagens vivem: a música, o tráfico e a igreja. Segundo o próprio
idealizador da série, Kondzzila, que antes de alcançar seu sucesso profissional, cresceu em uma
1104
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
favela, este contraste entre criminalidade e a fé foi uma realidade presente em sua própria história de
vida. Sendo assim, intencionou através desta série, apresentar um produto em que seu próprio público
se visse representado e, desta forma, pudesse se identificar (KONDZILLA², 2019).
Somos levados, durante o desenvolvimento da série, a conhecer melhor essas distintas
realidades dos protagonistas. Doni e Nando tentam negociar junto à MC Dondoka e seu empresário
os direitos autorais que o mesmo possui sobre a música. Eles concordam em colocá-lo como
compositor, no entanto, ele aceita apenas com uma condição: que a MC Dondoka grave uma outra
música com ele. Doni apresenta a sua música chamada “Te Amo Sem Compromisso”, que se torna
uma música central no entretenimento da trama (imagem 2) e que possui a seguinte composição:

Não adianta tu se declarar, romance e compromisso comigo não rola. Te avisei pra não se
apegar. Tá gamada gatona, e agora? Tá provando do próprio veneno, o mundo deu voltas e a
vida é assim. Ontem eu falei que te amava, Mas hoje eu já te esqueci Tô nem aí. Tô nem aí.
Não era você que gostava de brincar de iludir? Tô nem aí. Tô nem aí. (KONDZILLA, 2019).

IMAGEM 2 – PERSONAGEM DONI (MC JOTTAPÊ)

Fonte: capturada pelos(as) autores(as) diretamente do perfil oficial da série no Instagram471, 2020.

471
Para saber mais ver: SINTONIA, 2020.
1105
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Mc Dondoka acaba se atraindo pela melodia da música e então aceita gravar a mesma em
parceria com Doni . Porém, Doni passa a idealizar a gravação de um videoclipe com a artista, no
entanto, o empresário dela informa a ele que ela não intenciona dividir os “holofotes” com ninguém.
E assim, passa a se desenvolver essa história, demonstrando as lutas que o mesmo enfrenta até
alcançar a sonhada“fama”.
Pereira (2014), que realizou uma incursão etnográfica em casas noturnas paulistas e analisou
diversos videoclipes na Internet, objetivando compreender as configurações desse novo movimento
musical, nos traz algumas considerações que consideramos importantes destacar a respeito do funk
ostentação.
Em primeiro lugar, a adoção intensa e constante da temática das marcas e do consumo possui
uma função elementar. Portanto, as letras deste ritmo tendem a exaltar as marcas, grifes, modelos de
automóveis de luxo e também o consumo de bebidas alcóolicas de alto valor (PEREIRA, 2014, p. 5-
6). Em seguida, a associação da música com a composição do ambiente e as tecnologias da
informação e comunicação, possuem a característica de produzir naqueles que estão imersos nesta
cultura a fantasia e a imaginação:

Nesse caso, o imaginar-se não implica apenas o estar em outro lugar ou país, mas o imaginar-
se em outra classe social, em outro contexto sociocultural, em outra realidade material, em
outro mundo do consumo. [...] imaginação e fantasia, estão presentes de forma bastante
associada nas práticas e relações que os protagonistas do funk ostentação estabelecem. Na
cena funk – nos videoclipes, nas músicas, no circuito das casas noturnas e dos produtores –
percebe-se, ao mesmo tempo, uma dimensão mais atrelada ao consumo e ao hedonismo e
outra ligada a um projeto de vida, de ascensão social e mesmo de reversão de estigmas ou de
afirmação de orgulho por pertencer a certa condição periférica ou marginal. A relação com a
origem social pobre, por exemplo, é constantemente destacada pelos jovens (PEREIRA,
2014, p. 8-9).

Já o enredo de Rita, que procura demonstrar a religiosidade que existe nas favelas, por vezes
se entrecruza com o do Nando, pois nos momentos em que o mesmo corre perigo de vida, ouvimos a
voz de seus pensamentos recitando orações, ou seja, fica subentendido que mesmo na criminalidade
ele possui uma determinada fé. O cenário que dá ênfase às questões religiosas é retratado de maneira
muito real na série, demonstrando como essa cultura se desenvolve, através da música, da publicidade
e da fé. Por fim, Rita encontra sua redenção na igreja, se batizando na instituição e Nando ascende
no tráfico de drogas, se tornando um homem de respeito dentro da criminalidade.
1106
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Cunha (2008), que realizou entrevistas com moradores e traficantes e também etnografias em
favelas do Rio de Janeiro, argumenta que o pentecostalismo é um movimento religioso que,
historicamente, tem se desenvolvido e fortalecido, grandemente, em lugares onde há abundância de
precariedade política, econômica e social. Segundo a autora, o "fenômeno" dos traficantes
evangélicos é uma realidade já conhecida das periferias, onde a apropriação de códigos, símbolos e
até a linguagem religiosa pentecostal é reconhecida pelos criminosos, criando até mesmo um espaço
legal de violências contra praticantes de outras matrizes religiosas. A autora ainda elenca algumas
circunstâncias que propiciam a adesão à esta corrente religiosa nas periferias:

Num espaço social como o das favelas, no qual a insegurança é tão presente no cotidiano,
onde o sentimento de desrespeito e de baixa confiança em si mesmo e nas instituições é muito
intenso, a rede dos evangélicos e os laços de afeto e confiança gerados e nas (e/ou
fortalecidos) a partir de tal pertencimento religioso têm uma dimensão fundamental na rotina,
não só dos que se filiam a esta religião e participam de suas atividades litúrgicas, mas também
para os que vivem próximos a esta realidade e percebem neste meio uma possibilidade de
buscar “acolhimento” em momentos de necessidade. É como se a percepção da existência de
um lugar ou grupo no qual é possível obter proteção material, emocional e espiritual já fizesse
o indivíduo dispor de alguma sensação de segurança (CUNHA, 2008, p. 27-8).

“SINTONIZANDO” A REFLEXÃO ACERCA DO NOSSO MATERIAL EMPÍRICO


Acreditamos que este artefato cultural opera três pedagogias que, devido sua relevância,
merecem serem destacadas, pois vão na direção contrária do senso comum ou da crítica que foi
divulgada nos meios de comunicação472 a respeito desta série. Então vamos a elas:
A primeira diz respeito aos marcadores e estereótipos de raça que a série perpetua. Os
caminhos trilhados pelos protagonistas Doni e Nando, que embora sejam amigos de infância, levam
rumos totalmente diferentes, ensinam por exemplo, que Nando, o personagem que representa os
jovens negro das favelas, não lhe resta outra alternativa a não ser buscar a realização e ascensão
econômica e social dentro da criminalidade. Enquanto isso, o personagem Doni, que é branco, alcança
o sucesso profissional no meio artístico, se colocando em evidência na mídia, sendo rodeado de festas,
luxos e se tornando até mesmo uma espécie de "símbolo sexual" para outros jovens.

472
Os meios de comunicação da Internet, procuraram enfatizar que a série procurou se distanciar de alguns clichês
e estereótipos que, geralmente, os produtos culturais que buscam abordar a favela reiteram, através da perspectiva
de alguém que encherga a realidade das periferias não de dentro dela, mas de fora, dando ênfase para temas como a
violência exacerbada, como visto no filme "Cidade de Deus". Sendo assim, a série obteve boas avaliações, pois os
veículos que o analisaram procuraram engrandecer a humanização e menor estigmatização dos personagens, por
exemplo. Para saber mais: DUARTE, 2020; MARQUES, 2019.
1107
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em seguida, destacamos as representações de gênero e sexualidade que este artefato nomeia
e reforça. O jovem Nando, reatualiza e reafirma noções essencialistas ligadas à construção de uma
masculinidade onde atributos ligados ao uso da força, da violência, da grosseria e da virilidade,
contribuiriam para alcançar algum respeito e admiração perante o grupo social ao qual ele se encontra
inserido. Enquanto isso, o personagem de Doni atua na reiteração de um outro tipo de masculinidade
a ser alcançada entre os jovens, para alcançar sucesso pessoal, social e profissional. Ele é o jovem
criativo, descolado, esperto que vê na fama e no dinheiro a possibilidade de se colocar em evidência
perante as outras masculinidades e feminilidades, ganhando para si atenção, sucesso, mulheres e
admiração. A própria letra da sua música “Te Amo Sem Compromisso”, reforça o entendimento que
o homem jovem deve ser mulherengo e desprovido de sentimentalidade e afetividade. Já nossa
personagem feminina, Rita, reitera, nomeia e reforça atributos que ligam sua feminilidade à
delicadeza, à uma suposta confusão interior que cria nela um sentimento de busca por algo exterior e
imaterial, que possa preencher essa lacuna existencial. Durante a série, ela tem alguns envolvimentos
amorosos e até sexuais, mas conforme vai se fortalecendo no caminho da religião, escolhe viver uma
vida sem sexualidade, ou seja, reforça ensinamentos que a mulher deve ser mais comedida, recatada
e controlada em sua sexualidade.
Por último, ressaltamos o caráter constituidor e disputador que a série demonstra e evidencia
que a cultura opera sob as identidades discentes juvenis contemporâneas. Vemos três jovens amigos,
que cresceram e viveram juntos, na mesma favela, porém que foram atravessados, disputados e
negociados pelos discursos de três culturas diferentes: a do funk ostentação, a da igreja pentecostal e
a da criminalidade. Por consequência, se produziram três identidades distintas e com interesses
distintos. Mas fica aqui um questionamento: será que os jovens das favelas e periferias brasileiras
teriam apenas estas três opções a serem representadas nas mídias, para alcançar a própria realização
pessoal e ascensão social? Será que nestes ambientes, realmente não há outros caminhos a serem
trilhadas, desejos e anseios a serem traçados e a suas existências estão condicionadas a procurarem o
seu crescimento apenas na religião, na música ou no crime?

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Paula Deporte de; COSTA, Marisa Vorraber. Usos e possibilidades do conceito de
pedagogias culturais nas pesquisas em estudos culturais em educação. Textura, Canoas v.17
n.34 p.48-63 mai./ago. 2015.
1108
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CUNHA, Cristina Vital. “Traficantes evangélicos”: novas formas de experimentação do sagrado em
favelas cariocas. Plural, Revista de Sociologia, v. 15, p. 13-46, 1 dez. 2008. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/75226/78991. Acesso: 04 set 2020.

DUARTE, Pedro. Resenha da série Sintonia. Médium. 2020. Disponível em:


https://medium.com/pedro-a-duarte/resenha-da-s%C3%A9rie-sintonia-1c39da876b22. Acesso: 04
set 2020.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela)
TV. Educação e Pesquisa (USP) , São Paulo (SP), v. 28, n.1, p. 151-162, 2002.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez. 1997. Disponível em:
http://www.gpef.fe.usp.br/teses/agenda_2011_02.pdf. Acesso em: 14 mar. 2020.

KONDZILLA, Canal. Youtube, 2020. Disponível em:


https://www.youtube.com/c/KondZilla/featured. Acesso: 02 set 2020.
KONDZILLA² conta sua história em nova série da Netflix, "Sintonia". GaúchaZH, Porto Alegre,
2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/tv/noticia/2019/08/kondzilla-
conta-sua-historia-em-nova-serie-da-netflix-sintonia-cjz4an998010d01pa39at8to8.html. Acesso: 02
set 2020.

KONDZILLA³, Canal. MC Doni - Te Amo Sem Compromisso (kondzilla.com) | Sintonia


Soundtrack. Youtube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zEE77Flhr9Y
Acesso: 04 set 2020.

MARÇAL, Gabriela. Netflix anuncia que 2ª temporada de 'Sintonia' estreia em 2020. Estadão. São
Paulo, 2020. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,netflix-anuncia-que-2-
temporada-de-sintonia-estreia-em-2020,70003172872. Acesso: 04 set 2020.

MARQUES, João Felipe. Sintonia | Crítica – 1ª Temporada. Observatório do Cinema, São Paulo,
2019. Disponível em: https://observatoriodocinema.uol.com.br/criticas/criticas-de-
series/2019/08/sintonia-critica-1a-temporada. Acesso: 04 set 2020.

MEYER, Dagmar Estermann ; KLEIN, Carin ; DAL'IGNA, Maria Cáudia ; ALVARENGA, Luiz
Fernando . Vulnerabilidade, gênero e políticas sociais: a feminização da inclusão social. Revista
Estudos Feministas (UFSC. Impresso) , v. 22, p. 885-904, 2014.

MOURA, Luana Cristina Baracho. Igreja Pentecostal Assembléia de Deus: uma apreciação de sua
espacialidade no Brasil. Espaço e Cultura (UERJ) , v. 28, p. 35-44, 2010.

PEREIRA, Alexandre Barbosa. Funk Ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas
tecnologias da informação e da comunicação. Revista de Estudos Culturais, v. 1, p. 1-18, 2014.

1109
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Disponívem em: https://www.revistas.usp.br/revistaec/article/view/98367/97104 Acesso: 03 set
2020.

SINTONIA. Instagram, 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/sintonia/?hl=pt-br.


Acesso: 02 set 2020.

SINTONIA². Produção de Kondzilla, Guilherme Quintella e Felipe Braga. Intérpretes: Christian


Malheiros, Jottapê e Bruna Mascarenhas. Netflix. 1 temp. 2019. Disponível em:
https://www.netflix.com/br/title/80217315. Acesso: 02 set 2020.

SOARES, Ana Carolina. KondZilla fatura mais de 1 milhão de reais por mês. VEJA, São Paulo.
2017. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/kondzilla-perfil-astro-funk/. Acesso:
02 set 2020.

STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe (Org.). (2001). Cultura Infantil: a construção


corporativa da infância. Tradução de George Eduardo Japiassú Brício. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.

1110
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A CULPA É MINHA?
FALAS DE JOVENS ALUNAS SOBRE SER MULHER

Diessica Rodrigues473
Juliana Vargas474

Resumo: No presente trabalho, decorrente de uma investigação maior, buscamos problematizar falas de jovens alunas,
estudantes do 8°ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Sapucaia do Sul (RS), com idades entre 14 a 16
anos, sobre as formas de controle de seus corpos e, por conseguinte, de sua sexualidade. Como aportes teóricos-
metodológicos buscamos apoio nos Estudos Culturais, nos Estudos de Gênero em vertente pós-estruturalista, das
teorizações de Michel Foucault e na organização de grupos de discussão. A partir das respostas das estudantes, foi possível
perceber que as jovens sentem-se reprimidas, uma vez que ao andar na rua sofrem assédio e se veem submetidas a
discursos historicamente construídos acerca do controle sobre às mulheres. Notamos ainda que a escola é perpetuadoras
desses discursos, modulando o exercício da feminilidade a partir de difenciações nos modos de verstir considerados como
(in)adequados aos alunos e às alunas Dessa forma, entendemos que ainda hoje, na contramão das práticas de
empoderamento feminino, a escola continua a reproduzir ideários de preconceito, responsabilizando as jovens pelas
atitudes errôneas de seus colegas.

Palavras-chave: Estudos Culturais; Estudos de Gênero; Sexualidade; Juventudes;

PARA UM COMEÇO DE CONVERSA - CONTORNOS DO ESTUDO


No presente trabalho buscamos problematizar falas de jovens alunas, estudantes de duas
turmas de 8°ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Sapucaia do Sul, região
metropolitana de Porto Alegre (RS), com idades entre 14 a 16 anos, sobre as formas de controle de
seus corpos e, por conseguinte, de sua sexualidade. É importante destacar que esse trabalho decorre
da pesquisa “Juventudes contemporâneas de periferia e a sala de aula: discursos, tensionamentos e
possibilidades”, financiada pelo CNPq e coordenada pela Dra. Juliana Ribeiro de Vargas.475 Nas
próximas seções apresentamos as perspectivas teóricas metodológicas do estudos, bem como as
análises que decorrem das falas das estudantes. Encerramos o presente texto compreendo que as
jovens sentem-se reprimidas, uma vez que ao andar na rua sofrem assédio e se veem submetidas a
discursos historicamente construídos acerca do controle sobre às mulheres em muitas e variadas
situações, inclusive no ambiente escolar.

473
Graduanda de história, pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), campus Canoas (RS). Bolsista CNPq.
E-mail: diessica.g.rodrigues@gmail.com
474
Pesquisadora e Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA), campus Canoas. E-mail: julivargas10@hotmail.com
475
A referente pesquisa foi aprovada pelo Edital Universal 2016/1, do CNPq, sob o número 428136/2016-8 e
também foi aprovada pelo Comitê de Ética da ULBRA- CAAE: 91676618.7.0000.5349.
1111
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DE ONDE FALAMOS?
Os campos teóricos dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero, em vertente pós-
estruturalista, e também as teorizações de Michel Foucault, permitem o aprofundamento da temática
em questão. Em consonância com tais campos, compreendemos os sujeitos como constituídos e
diferenciados discursivamente, segundo as condições de possibilidades de distintos contextos
históricos e sociais. Logo, as jovens contemporâneas estudadas estariam sendo subjetivadas de
distintos modos em suas (im) possibilidades de vida e, dessa forma, constituiriam suas feminilidades
de acordo com os diferentes discursos. Entendemos que os processos de constituição das
subjetividades das alunas jovens estão implicados nas formas como estas vivenciam a sexualidade e
a feminilidade na contemporaneidade, uma vez que “os modos de subjetivação, são, precisamente, as
práticas de constituição dos sujeitos” (CASTRO, INGRID XAVIER, 2009, p. 408).
De acordo com Michel Foucault (2012), os discursos organizam, constituem os sujeitos e os
objetos aos quais se referem. Logo, não podem ser compreendidos apenas, como é evidenciado na
epígrafe, como um anúncio neutro de palavras e significados. Os discursos, para o referido autor, são
históricos, são “[...] fragmentos de história, unidade e descontinuidade da própria história, que coloca
o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos
de sua temporalidade, e não do seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo.”
(FOUCAULT, 2012, p.143). A partir dessa premissa, pode-se pensar que os discursos são práticas
organizadoras da realidade, a qual se difere nos distintos tempos e grupos sociais. Sobre o referido
conceito, destaca o autor (VAYNE, 2011, p. 50): “Os discursos são as lentes através das quais, a cada
época, os homens perceberam todas as coisas, pensaram e agiram.”
Autoras que problematizam a história das mulheres, tais como Mary Del Priore (2009),
Gucaira Louro (2003), Dagmar Meyer (2003), entre outras, demonstram, através de seus estudos, que
a doação plena, o amor incondicional, a paciência constante, entre tantas outras, foram características
estimuladas, ao longo dos tempos, nas sociedades ocidentais, a fim de naturalizar alguns
comportamentos como formas adequadas do ser mulher. Exemplo dessa afirmação pode ser
reconhecido na associação dos comportamentos femininos à história de personagens bíblicas como
Eva (a pecadora) e Maria (a submissa), as quais subsidiaram formas entendidas como adequadas e
inadequadas para a conduta das mulheres (MARY DEL PRIORE, 2009). É preciso destacar que
a naturalização de comportamentos femininos a partir de determinadas características, as

1112
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reduzidas possibilidades de participação social à disposição das mulheres ao longo dos tempos, e,
também, a submissão das mulheres frente aos ordenamentos masculinos foram e são questões
problematizadas pelos Estudos Feministas e, posteriormente, pelas contribuições dos Estudos de
Gênero.
Segundo Foucault (2009, p. 10) o termo sexualidade surge como discurso no início do século
XIX relacionado, entre outros fenômenos, ao desenvolvimento de áreas de conhecimentos diversas
que “[...] cobriram tanto os mecanismos biológicos da reprodução como variantes individuais ou
sociais do comportamento [...]”. É possível perceber também que a difusão, principalmente nas
sociedades ocidentais de determinadas regras e normas sobre as quais instituições como igrejas,
hospitais e escolas passam a apoiar suas ações, parece estar relacionada às mudanças nas significações
que os indivíduos relacionam aos seus deveres e prazeres, também como fenômenos relacionados ao
discurso da sexualidade.
Para o referido autor, a sexualidade também pode ser compreendida como um dispositivo
histórico articulado por estratégias de saber-poder as quais regulam corpos, prazeres, discurso,
controles e resistências (FOUCAULT, 2007). A própria conceituação do sexo constitui um elemento
do dispositivo da sexualidade, o qual está intimamente relacionado às relações de poder estabelecidas
em uma sociedade, como esclarece Judith Butler (2008). Assim, as tecnologias do sexo podem ser
entendidas, a partir dessa premissa, como estratégias de funcionamento do dispositivo da sexualidade,
materializadas em operações políticas, intervenções econômicas, em processo de moralização e
responsabilização da conduta dos indivíduos nas sociedades, tal como afirma Foucault (2007, p. 159):
“De um polo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma serie de táticas diversas que
combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e da regulação das populações.”
É importante retomar que, em consonância com a perspectiva dos Estudos Culturais,
compreendemos a juventude como uma categoria plural. Segundo Mario Margulis e Marcelo Urresti
(1996) distintos modos de ser jovem constituem-se em relação a categorias outras, tais como idade,
classe social, gênero e, desta forma, a juventude não poderia, como conceito, resumir-se em apenas
uma palavra. De modo semelhante, estudos como os de Carles Feixa (1999), Elisabete Garbin (2009),
Juarez Dayrell (2012), entre outros/as, distanciam-se das classificações etárias e descrições biológicas
na contextualização da categoria juventude. Contudo, na atualidade, certas características tais
como beleza, espontaneidade, vitalidade e versatilidade acabam por ser naturalmente associadas

1113
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
à condição juvenil e são exaltadas por diversos discursos circulantes em nossa sociedade, a exemplo
do discurso midiático e do discurso médico.
Conforme como bem destaca Beatriz Sarlo (2004, p.36). “a juventude não é uma idade, e
sim uma estética da vida cotidiana” Logo, na atualidade, podemos encontrar em nossa sociedade,
jovens de doze, vinte ou quarenta anos de idade. Para Dayrell e demais autores (2012), a juventude
pode ser considerada uma categoria dinâmica, atravessada pelas mudanças e transformações que
ocorrem ao longo da história nas diversas sociedades. O referido autor compreende também que tal
categoria é marcada pela diversidade, expressa nas diferenças sociais e culturais que constituem as
posturas dos sujeitos compreendidos como jovens. Desta forma, compreende-se a “não mais presa a
critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha
contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto
social” (DAYRELL, 2003, p. 42)

SABER OUVIR, PARA “FAZER FALAR”: A METODOLOGIA


Tal como afirmam Dagmar Meyer e Marlucy Paraíso (2012), compreendemos que a
organização das metodologias de pesquisa delineiam os caminhos pelos quais o/a investigador/a
dirige e conduz o seu estudo, demarcando assim, determinados modos de produção do mesmo, os
quais estão relacionados às perspectivas teóricas que o autor se filia. A partir dessa premissa, valemo-
nos dos grupos de discussão, organizados com alunas de duas turmas de oitavo ano de uma escola
pública da Rede Municipal de Ensino de Sapucaia do Sul, município da região metropolitana de Porto
Alegre (RS). É importante destacar que a temática desse artigo surgiu em decorrência de falas das
alunas em encontros realizados com a turma inteira (alunos e alunas), sobre a constituição de suas
culturas juvenis, previstos na organização da pesquisa “Juventudes contemporâneas de periferia e a
sala de aula: discursos, tensionamentos e possibilidades”, anteriormnete citada. Uma vez que as
alunas demonstraram interesse em narrar sistuações de assédio e controle de seus corpos vivenciadas
dentro e fora do ambiente escolar, organizamos um encontro com cada turma, apenas com as alunas,
para que as mesmas relatassem as situações vivenciadas. Neste encontro as conversas realizadas
foram gravadas em áudio e posteriormente degravadas.
Compartilhamos com Carla Beatriz Meinerz (2011, p. 486) o entendimento de que a
metodologia do grupo de discussão abre a possibilidade de escuta sensível, que não se

1114
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fundamenta apenas em rigores teóricos para sua realização, uma vez que tal escuta é dependente da
postura “política, afetiva e ética do pesquisador”. Vivian Weller (2013) refere ainda, como uma
característica vantajosa dos grupos de discussão, a possibilidade dos participantes sentirem-se mais à
vontade, fato que contribui para que emerjam detalhes acerca das formas de convívio dos
participantes, por exemplo. Assim, organizamos um encontro com cada turma, na própria escola,
apenas com as alunas. Nosso intuito, mas do que fazê-las falar, era dispor de sensibilidade e
acolhimento para ouví-las.

A CULPA É MINHA? O QUE DIZEM AS MENINAS

Não conto pra minha mãe porque ela fala que a culpa é minha
por sair com roupa inadequada, que fico me fresqueando para
os outros. É sempre a mesma coisa. (A. 15 anos)476

“A culpa é minha” – expressão título desse texto e dessa seção – foi narrada por uma das
alunas da escola em questão no momento em que as jovens descreviam casos de importunação e
assédio sofridos por elas em situações do cotidiano e nas proximidades da escola. Vale destacar que
em todas as situações as estudantes ocorreram no turno diurno e em espaços de grande movimentos
de populares – a exemplo de um hipermercado.
Chamou-nos a atenção de sobremaneira que todas as jovens pesquisadas (eram 25 alunas)
relataram que já foram alvo de importunação/assédio em espaços de grande circulação ou ainda nas
redes sociais.477 Muitas delas foram incomodadas/assediadas por homens muito mais velhos, em
ambos espaços. No entanto, não contaram nem para seus pais, tampouco para outras pessoas, por
medo de levarem a culpa pela situação. Sentem-se desconfortáveis em falar, como no excerto que
abre essa seção. Sobre o tema, as jovens ainda relatam:

M.(14 anos): Alguma menina já estava saindo de algum lugar e levou uma “passada de mão”, assovio ou
escutou alguma coisa? Todas!

476
Em respeito às questões éticas da pesquisa, os nomes das jovens são preservados. Vale referir que todas as
participantes e seus responsáveis responderam aos termos de assentimentos e consentimento da investigação.
477
Vale referir que os excertos escolhidos para o presente artigo se referem às falas de algumas das jovens, em razão
do espaço disponível para a discussão/apresentação do texto.
1115
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
C. (14 anos): “Nós temos medo de andar na rua, sempre ando com uma chave na mão com a ponta para fora.
Quando vou buscar pão sempre ando de uma uma forma para tacar o pão na cara da pessoa.”

F. (16 anos): “Quando tu vai entrar numa esquina cheia de guris, tu fica se cagando porque tá cheio de guri e
tu é só uma. Eu saí da casa da N., estava eu a E. e passamos na esquina cheio de guri e eles ficaram cuidando,
a gente largou na perna. A E. tapou o rosto.”

E. (15 anos): “Nesse tipo de situação, eu dou meia volta e não passo perto, troco de rua, atravesso. E ainda
passo de cabeça baixa.”

M. (14 anos): “Já fui assediada, quando estava voltando para casa. Passa os carros buzinando, acontece todo
dia. “Os jeitos” que as pessoas te olham dá nojo, dá vergonha.”

K. (15 anos): “Acontece em lugares mais cheios de alguém te tocar. No Atacadão (hipermercado) isso já
aconteceu comigo...”
Pesquisadora: E os seguranças?
K. (15 anos): “ São os próprios funcionários que fazem isso com a gente... Não adianta reclamar!”

V.(14 anos): “Eu estava no Facebook e do nada um cara, que nem era meu amigo, me chamou, perguntando
se eu queria mil reais e perguntei ‘Pra que?’ Ele respondeu: ‘para sair comigo’. Eu disse que não e perguntei
se tinha cara de prostituta. Falou que não era o que eu estava pensando e era só um convite pra sair. Depois
perguntou minha idade e falei 14! Ele disse que tinha 38 e [que] não era tão velho pra mim. Perguntou se eu
era virgem, não falei nada e daqui a pouco falou que se eu quisesse perder era só chamar ele, que me buscava
e me trazia de volta. Me dava os mil reais ou um celular. Não contei para ninguém... só peguei e apaguei a
conversa.”

Em suas falas, as jovens relatam situações de medo e constrangimento... Não sentem-se


encorajadas em denunciar seus algozes, uma vez que escutam, muitas vezes de suas prórpias famílias,
que “a culpa é delas”. Muita vezes, também no ambiente escolar, essa discursividade repete-se...
Na escola em questão, em um dos encontros com a turma inteira, a supervisora da escola
interropeu a atividade do grupo. Batendo na porta, exigiu a presença de duas alunas da turma que,
naquele dia, estavam usando uma blusa modelo “cropped”, vestimenta de deixa parte da barriga de
fora.478 Vale destacar que as jovens estavam desrespeitando a indicação escolar que leva alunos e
alunas a vestirem uniforme para assistirem as aulas. No entanto, uma vez que a escola é pública, essa
é uma indicação e não uma normativa. O que mais chamou nossa atenção (muito mais do que a
exposta barriga das estudantes) fora o discurso da supervisora escolar, afirmando que as alunas
estavam vestidas de “modo indecente e provocativo”. A seguir, destacamos situações vivenciadas no

478
O crooped é um modelo mais curto, “cortado” de blusa feminina. Ver exemplos em:
https://capricho.abril.com.br/moda/polemica-fashion-blusa-cropped-voce-usaria/ . Acesso em 18. set. 2020.
1116
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
espaço escolar que aproximam-se desse entendimento: de que as próprias mulheres (independente de
todas as estudantes terem menos de dezoito anos) seriam as responsáveis pela importunação e assédio
que sofrem.

P. (14 anos): A gente nunca pode usar crooped por que dizem que a gente provoca os guris. Que eles ficam
de cabeça virada com as nossas barrigas e não prestam atenção na aula!

A. (16 anos): Mas, e quando os meninos vêm com uma bermuda que mostra mais a cueca do que outra coisa?
Algum menino escutou julgamentos? A supervisão não fala nada... nenhum professor fala nada!

B. (16 anos): E os shorts? Nenhuma guria pode vir de short para escola... só de leggin mais curtinha ou calça
comprida! Dizem pra gente que a escola não é desfile de moda!

R. (15 anos)Tipo, um calorão e não podemos usar tal roupa por causa dos guris. Todo mundo já escutou em
casa que tinha que trocar uma camisa, bermuda ou vestido porque tinha que se dar ao respeito. Cuidar o que
anda na rua por causa dos homens... Já os meninos não escutam que precisam trocar de roupa porque alguém
vai passar a mão neles ou que uma mulher vai estuprar!

A partir de suas falas, podemos depreender que a escola perpetua discursos machistas de
(des)controle da sexualidade masculina ao proibir que as meninas usem determinadas roupas,como
shorts, blusas mostrando a barriga e calças muito rasgadas. Já os meninos com com calças baixas não
são repreendidos com a mesma ênfase. Jeffrey Weeks (2010, p.41) nos auxilia a compreender que:
“Os homens são os agentes sexuais ativos; as mulheres, por causa de seus corpos altamente
sexualizados, [...] eram vistas como meramente reativas”.
A partir das palavras do referido autor, é possível pensar que o exercício da sexualidade ocorra
de modo distinto entre mulheres e homens. Enquanto estes são descritos – de modo direto- como
agentes ativos, para aquelas depreende-se a ideia de hipersexualidade, que advém de seus corpos
“naturalmente” mais sedutores que os masculinos. Podemos pensar que tais afirmações – tanto do
autor, como as destacadas pelas jovens pesquisadas - estariam ligadas a discursos pautados nos
campos da biologia e da psicologia, entre outros, os quais defininem o lugar das mulheres como
naturalmente “encantadoras” e “sedutoras”. É importante pensar tais discursos como um
“investimento cultural, no qual a sociedade busca, intencionalmente, através de múltiplas estratégias
e táticas, ‘fixar’ uma identidade masculina ou feminina ‘normal’ e duradoura” (GUACIRA LOURO,
2010, p. 25). Vale retomar aqui o conceito de gênero, uma vez que ele se refere ao modo como
as características daquilo que é compreendido como masculino e feminino são instituídas e
1117
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
representadas. Como reitera Guacira Louro (2003, p. 22) o referido conceito “enfatiza,
deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” entre
homens e mulheres. Logo, frente ao entendimento do gênero como uma construção social torna-se
possível a problematização desta construção e, por conseguinte, dos discursos que a instituem.
Os ideais burgueses e positivistas presentes na sociedade brasileira, ao final do século XIX,
potencializam a figura da mulher como esposa e mãe dedicada, responsável pelo desenvolvimento
pleno dos filhos e pela harmonia no lar. A mulher “estaria voltada inteiramente aos afazeres do lar,
espaço feminino por natureza” (JOAN SCOTT, 2012 p. 17). Apesar de tais ideais não se
estabelecerem de igual maneira nas diferentes classes sociais, já que nas classes populares as mulheres
se viam, pelas necessidades primárias de vida, obrigadas a buscarem ocupações no mercado de
trabalho, a restrição da mulher ao espaço doméstico era pautada pela legislação, fato que auxilia a
compreensão da permanência de discursos acerca da diferenciação entre a mulher dona de casa e a
“mulher da rua”.479
Também é válido lembrar que, segundo Foucault (2007), ao longo dos últimos três séculos, a
sexualidade e o sexo nunca foram tão falados, provocando o que o autor denomina, desde o século
XVIII, “de erotismo discursivo generalizado” (FOUCAULT, 2007, p. 39). Apesar de reiterados
intensamente, segundo o mesmo autor, tais discursos ainda circulam, em determinadas situações, a
miúde, em tom baixo, muitas vezes sob o aspecto de uma confissão. Conforme afirma o autor (2007,
p. 42), uma das características das sociedades modernas é a caracterização do sexo como assunto a
ser sempre retomado, falado, porém “valorizando-o como um segredo”.
Ainda é importante ressaltar que a sexualidade acaba por ser descrita como uma dimensão
incontrolável, difícil de ser dominada e, portanto, pode ser entendida como algo que não tem
vergonha, tampouco juízo. E exatamente pela “insanidade” que a circunda, a qual também é
produzida discursivamente, que a sexualidade dos indivíduos precisa ser regulada pelos discursos
religiosos, médicos, jurídicos, no intuito de organizar “uma sexualidade economicamente útil e
politicamente conservadora (FOUCAULT, 2007, p. 44). É importante referir que Foucault (2007, p.

479
Segundo Ana Silvia Scott (2012, p. 23) [...] foi somente no ano de 1943 que a legislação brasileira concedeu
permissão para a mulher casada trabalhar fora de casa sem a ‘autorização expressa do marido’. A situação de
dependência e subordinação das esposas em relação aos maridos estava reconhecida por lei desde o Código Civil de
1916. Neste código, o status civil da mulher casada era equiparado ao ‘dos menores, dos silvícolas e dos alienados’,
ou seja, ‘civilmente incapaz’
1118
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
116) elabora sobre a construção discursiva da sexualidade o conceito de dispositivo, que “funciona
de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder”. Como dispositivo da
sexualidade, o autor compreende uma “grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a
intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos
controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de
poder” (FOUCAULT, 2007, p. 117).
A produção discursiva sobre o sexo e, por conseguinte, a produção acerca da sexualidade, é
múltipla e visível em distintas materialidades, como apresenta Foucault (2007) ao destacar a
“explosão discursiva” ocorrida nos últimos três séculos sobre o tema. A própria emergência da
“sexualidade” como termo ocorre, segundo ao autor, em relação ao desenvolvimento de
diversificadas áreas de conhecimento, no início do século XIX, que produziram “mudanças também
na maneira como os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, aos seus deveres, aos
seus prazeres, aos seus sentimentos e sensações” (FOUCAULT, 2010 p. 193). De acordo com o autor,
as instituições religiosas, judiciárias, médicas e pedagógicas fomentaram tais mudanças, produzindo
saberes em diversas instâncias e também acerca da sexualidade dos indivíduos. Nos tempos atuais,
pode-se depreender que também a mídia e o próprio governo federal (no cenário atual) incite uma
produção discursiva sobre a sexualidade que, por vezes, reverbera os saberes filiados às instituições
acima citadas.480
Novamente Jeffrey Weeks (2010), valendo-se dos estudos do sexólogo inglês Havelock Ellis,
destaca que a linguagem utilizada para descrever a sexualidade parece ser “avassaladoramente
masculina” (WEEKS, 2010 p.41). É possível pensar que as colocações dos autores supracitados
possam inferir na diferenciação discursiva que constitui as (im)possibilidades de homens e mulheres
vivenciarem sua sexualidade.

É PRECISO ESCUTAR (E FALAR) MAIS!

480
Desde janeiro de 2019, o Brasil é governado por Jair Messias Bolsonaro, candidato que se elegeu sob uma pauta
que destacada, entre inúmeros temas, o conservadorismo no que tange às possibilidades de vida de homens e
mulheres. Destaca-se em seu governo, pelas afirmações polêmicas sobre gênero e sexualidade, a titular do Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Para mesma, uma menina de 10 anos, grávida ao
sofrer abuso sexual “deveria ter levado a gravidez adiante e feito uma cesárea”. Ver:
https://catracalivre.com.br/cidadania/damares-diz-que-menina-de-10-anos-estuprada-deveria-ter-feito-cesarea/ .
Acesso em 19. set. 2020.
1119
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se
acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos
como parte de seu próprio sangue (JUDITH BUTLER, 2002, p.
163)

As palavras de Judith Butler (2002) são profícuas para pensar como os diferentes discursos, a
exemplo daqueles elencados neste estudo, acabam por constituir distintos modos de ser jovem aluna
na contemporaneidade. O próprio conceito de juventude remete à ideia de categoria plural, fato que
a afasta de um modo único para descrevê-la e contextualizá-la. Contudo, na atualidade, certas
características, como beleza, espontaneidade, vitalidade e versatilidade, acabam por ser naturalmente
associadas à condição juvenil, exaltadas por diversos discursos circulantes em nossa sociedade, a
exemplo do discurso midiático e do discurso médico.
Mensagens que exprimem ideias como sentar direito, andar devagar, brincar de casinha e
sonhar com o príncipe encantado são exemplos de discursos que afirmam e reforçam comportamentos
considerados, por diferentes grupos sociais, como naturalmente “atitudes de menina”. Da mesma
forma, é possível entender que a escola, através de discursos visibilizados nos currículos e nas
práticas pedagógicas, acabe por produzir uma forma adequada de compreensão acerca das questões
de gênero e sexualidade. Quanto ao tema, esclarece Guacira Louro (2003, p. 43):

Uma noção singular de gênero e sexualidade vem sustentando currículos e práticas de nossas
escolas. Mesmo que se admita que existam muitas formas de viver os gêneros e a sexualidade,
é consenso que a instituição escolar tem obrigação de nortear suas ações por um padrão:
haveria apenas um modo adequado, legítimo, normal de masculinidade e de feminilidade.

Segundo a autora, ocorre, no ambiente escolar, uma padronização acerca das questões de
gênero e sexualidade: uma determinada forma é elencada como a verdadeira, como a expressividade
real sobre as constituições das masculinidades e das feminilidades. No entanto, como mulheres (em
diferentes idades), pesquisadoras e atuantes no espaço escolar, entristece-nos perceber que essa
expressividade acabe por cercear a voz das jovens, muitas vezes... Nos assustou encontrar um grupo
de mais de vinte estudantes relatar situações de constrangimento e tristeza semelhantes, pelas quais
todas já haviam passado. Nos incomoda ainda mais, a escola não “ouví-las” em nenhum
momento!

1120
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A partir dos relatos das jovens podemos depreender que o corpo femino é controlado e
objetificado. Elas sentem-se oprimidas e vivem com medo, pois quando estão na rua sofrem assédio.
O medo é parte do cotidiano das mulheres que ao andarem na rua já imaginam que o que podem usar
para defenderem-se caso sejam atacadas. O medo também pertuba, inibe o comportamento de uma
joven que abaixa a cabeça quando passa por um grupo de homens... tentando não chamar atenção.
Obviamente que a violência assusta a todos, no entanto (infelizmente) as mulheres (de todas
as idades) parecem saber que além dos bens materiais, seu corpo pode ser o alvo. Essas estudantes
citam algumas de suas estratégias e conselhos que recebem ao sair na rua: evitar sair sozinha; trocar
o caminho quando avistar um grupo de homens na rua que iria passar; atravessar a rua se ver um
homem com o carro estacionado.
O discurso é sempre o mesmo, culpar a vítima pelo assédio. Usa-se a biologia para naturalizar
comportamentos, a menina deve se cobrir quando seu corpo vai se desenvolvendo - apelando a ideia
do corpo provocador que deve ser coberto - já que o menino por ser menino tem uma tendência a
“descontrolar-se”. Todavia, isso são construções históricas e culturais já que os meninos não são
ensinados a se comportarem perto do sexo oposto, porque quem deve ser ensiada a ter postura é a
mulher.
Saibamos nós professorxs e pesquisadorxs, apoiados nas teorizações produzidas e na nossa
sensibilidade, produzir nas instituições escolares práticas educativas que se aproximem das
juventudes contemporâneas, compreendendo-as em sua singularidade e potencialidade, educando
também para equidade de gênero e de sexualidade.

REFERÊNCIAS

ANA SCOTT,Silva. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: CARLA PINSKY, Bassanezi ;
JOANA PEDRO, MARIA (Org). Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p.15 -42

BEATRIZ SARLO. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio
de Janeiro: Editora UFRGS, 2004.

CARLA MEINERZ, Beatriz. Grupos de Discussão: uma opção metodológica na pesquisa em


educação. Educação e Realidade, v. 36, p. 485-504, 2011.

CASTRO, Edgardo, INGRID XAVIER, Muller.Vocabulário de Foucault: um percurso pelos


seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
1121
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DAGMAR MEYER, Elisabeth Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: GUACIRA
LOURO, Lopes. JANE NECKEL,Felipe; SILVANA GOELLNER, Vilodre (orgs). Corpo, gênero e
sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. P. 9- 27.

DAGMAR MEYER, Elisabeth Estermann; MARLUCY PARAÍSO. Metodologias de pesquisa pós-


críticas ou Sobre como fazemos nossas investigações. In: DAGMAR MEYER, Elisabeth Estermann;
MARLUCY PARAÍSO (Orgs.). Metodologias de pesquisa pós-críticas em educação. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2012. P.15-22.

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação. Rio de
Janeiro.(RJ) n. 24, p. 40-52. set/out/nov/dez. 2003

DAYRELL, Juarez.; CARVALHO, Levindo; GEBER, Saulo. Os jovens educadores em um contexto


de educação integral. In: JAQUELINE MOLL. Caminhos da educação integral no Brasil - direito
a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012. P.157-171.

ELISABETE GARBIN, Maria. Conectados por um fio: alguns apontamentos sobre internet, culturas
juvenis contemporâneas e escola. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação a
Distância. Juventude e escolarização: os sentidos do Ensino Médio. Brasília: TV Escola, 2009.
Coleção Salto para o Futuro, Ano XIX, Boletim 18. p. 30-40.

FEIXA, Carles. De jóvenes, banda y tribos: antropologia de la juventude. Barcelona: Ariel, 1999.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade e Política 2.ed. Trad. Elisa Monteiro e
Inês Barbosa. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I- A vontade de saber. 18. ed. São Paulo: Graal,
2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II- O uso dos prazeres. 13 ed. São Paulo: Graal,
2009.

GUACIRA LOURO, Lopes .Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o


“excêntrico”. In: GUACIRA LOURO, Lopes; JANE NECKEL, Felipe; SILVANA GOELLNER,
Vilodre (orgs.): Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis:
Vozes, 2003. P. 41-52.

GUACIRA LOURO, Lopes. Pedagogias da Sexualidade. 3 ed. In: GUACIRA LOURO, Lopes (org).
O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. P. 07-34.

JUDITH BUTLER. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed.


Tradução de: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
1122
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MARGULIS, Mario e URRESTI, Marcelo: La juventud es más que una palavra. In: MARGULIS, Mario
(ed): La juventud es más que una palabra, Ed. Biblos, Buenos Aires, 1996, p. 13 – 30

MARY DEL PRIORE. História das mulheres no Brasil. 9.ed. São Paulo: Contexto, 2009.

VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

WEEKS, Jeffrey. O Corpo e a Sexualidade. In: LOURO, G.L (org.). O Corpo Educado: pedagogias
da sexualidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva. 3ª ed. Autêntica: Belo Horizonte, 2010. p. 35-82.

WIVIAN WELLER. Grupos de discussão: aportes teóricos e metodológicos. In: WIVIAN WELLER;
NICOLE PFAFF. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013. P 54-66.

1123
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DIVERSIDADE E SEXUALIDADE NA SALA DE AULA

Marcio Gomes dos Reis481

Resumo: Este trabalho busca argumentar sobre como educadores podem tratar de assuntos relacionados a pauta LGBTQ+
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais ou Transgêneros, Queer) nas escolas. Nunca se comentou tanto como
hoje a respeito das relações gênero e sexualidade. No entanto, os obstáculos são inúmeros, e a falta de informação
contribui para uma mentalidade intolerante, principalmente quando os pais não dialogam com seus filhos. Em razão disto,
o objetivo do estudo é discutir com os alunos a respeito de diversidade sexual e gênero, visando fomentar o interesse do
corpo discente e assim despertar nele o senso de tolerância, diminuindo a violência e bullying. A metodologia baseia-se
em duas aulas de quarenta minutos cada, com turmas do ensino médio, as quais o professor fará perguntas relacionadas
ao tema, enquanto discute com os alunos por meio da exibição de fotos e videos. Esta pesquisa baseia-se nos escritos
teóricos de Bortoline (2008), a respeito da diversidade sexual na escola, Hall (1997), em relação ao respeito de identidade
e Reis (2019), acerca da posição do professor e da escola diante deste assunto. Como resultado, a atividade apresentou
respostas positivas e favoráveis no que diz respeito a educação e discussão de sexualidade e gênero.

Palavras-chave: Educação; Sexualidade; Escola; Diversidade.

INTRODUÇÃO
Este trabalho busca fazer uma discussão a respeito de como o debate em relação a diversidade
sexual e de gênero nas escolas do Brasil pode ser útil ao combate contra a LGBTQfobia e promover
o respeito, por meio de atividades em sala de aula. Atualmente, a discussão acerca deste tema desperta
o interesse da mídia, que utiliza seus veículos de comunicação como forma de tratar deste assunto,
mas muitas vezes sem informações abrangentes, fazendo com que muitos jovens acumulem dúvidas.
O diálogo em casa também é escasso, pois, muitas vezes, por questões religiosas, alguns pais
decidem não comentar temáticas relacionadas a sexualidade e gênero, deixando o aluno alienado, o
que muitas vezes resulta em casos de bullying no ambiente escolar, formando problemas para
conviver com as diferenças, algo que provavelmente venha a se reproduzir por toda a vida.
Segundo (SPTIZNER, 2005, p.11), os comportamentos dos jovens são refletidos por diversos
valores, como no caso da família distante do discurso de sexualidade em razão de um pensamento
conservador e religioso.
(BORTOLINE, 2008, p. 32) comenta que muitos homossexuais no ambiente escolar possuem
as suas identidades reprimidas e que por esta razão eles acabam sendo aceitos, pois expressar quem
eles realmente são seria uma atitude repreendida pelo corpo escolar, tanto por alunos quanto até

481
Professor de Espanhol, pela Universidade Federal do Pará. E.E.E.M. Ruth Guimarães. E-mail:
marciogore@hotmail.com
1124
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mesmo por professores, o que pode vir a ocasionar a permanêrncia da heteronormatividade nestes
espaços.
Em razão disso, este trabalho surge como uma alternativa na tentativa de formar um diálogo
saudável e produtivo, com o objetivo principal de conduzir os alunos a uma discussão a respeito do
tema por meio de uma atividade em classe, buscando assim, compreender o assunto, esclarecer
dúvidas e motivar uma convivência harmoniosa na escola, e futuramente fora dela.
(DINIS, ARACI ASINELLI, 2007, p. 3) afirmam que o mode de ser homem ou mulher, de
ser adulto percorre os espaços das escolas e mídias, e que por sinal, a última possui uma influência a
mais no jovem, uma construção cultural, o que acasiona na construção na elaboração da sua opinião.
Sendo assim, diante destes comentários, a abordagem a respeito de diversidade sexual na
escola motiva o aluno a refletir acerca das diferenças ao seu redor? Além do mais, a escola pode
auxiliar neste processo e desempenhar um “sinal verde” para que haja mais classes com o mesmo
tema?

DESENVOLVIMENTO
Em relação a sexualidade e a violência produzida em razão deste conteúdo, o vínculo
educação/diversidade se torna urgente devido aos inúmeros casos de agressões físicas, verbais e
psicológicas sofridas por diversos jovens nas escolas públicas e particulares pelo país, mais conhecido
como bullying, palavra originária de outra da língua inglesa, bully, que quer dizer “valentão”, alguém
com o hábito de cometer atos violentos.
Em relação a diversidade em sala de aula, (MIORANZA; ROËSCH, 2010) comentam:

Pretende-se trabalhar esse conceito para mostrar que a instituição escolar, tem papel
fundamental no combate ao preconceito e a discriminação, porque participa na elaboração de
atitudes e valores essenciais a formação da cidadania de nossos educandos. Não bastarão
Leis, se não houver a transformação de mentalidades e práticas. Precisamos de ações que
promovam a discussão desses temas que motivem a reflexão individual, coletiva e
contribuam para a superação e eliminação de qualquer tratamento preconceituoso
(MIORANZA; ROËSCH, 2010, p.2).

Assim, compreende-se que a importância de discutir temas diversos em classe é necessária


para que os alunos se coloquem como seres pensantes capazes de refletir sobre seu meio,

1125
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
buscando desta maneira uma formação de cidadão apta a respeitar e conviver com as enormes
diferenças.
Desta forma, para a realização da discussão sobre diversidade e sexualidade na escola, é
necessário o planejamento desta aula, a organização dos materiais que serão utilizados, além do
professor avisar antes os alunos, para que a turma esteja com o máximo possivel de estudantes, para
que as chances de participação sejam maiores e que diversos pontos de vista sejam apresentados à
todos.
Além do mais, é comum que muitas pessoas pensem que falar de gênero e sexualidade se
limite apenas as aulas de biologia ou ciências, o que não necessariamente pode ocorrer, pois é claro
que o educador deve estar apto a tratar destas questões, e assim, apresentar uma atividade que abrange
de forma clara este tema.
Desta maneira, a atividade, de pesquisa qualitativa, foi realizada com uma turma do segundo
ano do ensino médio, de aproximadamente 40 alunos, de ambos os sexos, com idades entre 16 a 18
anos, em uma escola pública no município de Benevides, Pará.

METODOLOGIA
Para a realização desta atividade, o professor se preferir, pode avisar uma semana antes para
a turma que haverá uma aula a qual eles deverão participar ativamente. Claro que o docente deve
conhecer bem seus alunos, ao ponto de saber se um pré aviso desta maneira poderá “assustar” seus
alunos e ocasionar a falta de alguns. A atividade irá ocorrer em dois momentos distintos.
A atividade ocorreu em duas aulas de aproximadamente quarenta minutos cada. O professor
pode iniciar o trabalho perguntando a turma qual o significado da palavra “respeito”. É comum que
muitos alunos ficarem em silêncio e podendo se manifestar ao longo que seus outros colegas
demonstrem interesse e opinião em relação ao respeito a diversidade sexual e de gênero.
Logo após os comentários feitos à primeira pergunta, o docente continua, apresentando outra
palavra: diversidade, questionando da mesma forma aos alunos o seu significado. Possivelmente,
ocorrerá o mesmo: haverá alguns alunos afirmando o que entendem de diversidade, seu significado,
onde ocorre, comentado não apenas da diversidade sexual, mas outras formas, como culturais.
Novamente é importante o docente permitir que os estudantes participem de forma livre
e expressem suas opiniões, podendo conduzi-los ao ramo da sexualidade apartir do momento em

1126
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que vão surgindo comentários relacionados a este termo, se por acaso, o aluno falar de qualquer outra
forma de respeito.
Um fator curioso neste trabalho, que merece ser observado é o de que grande parte dos
participantes ativos na aula são do sexo feminino. Isso possivelmente ocorre em razão do machismo,
da falta de diálogo e de interesse do sexo masculino em falar sobre o assunto, talvez com receio das
“brincadeiras” ou comenttários que serão feitos por outros colegas:

Existe uma narrativa convencional sobre como as masculinidades são construídas. Nessa
narrativa, toda cultura tem uma definição da conduta e dos sentimentos apropriados para os
homens. Os rapazes são pressionados a agir e a sentir dessa forma e a se distanciar do
comportamento das mulheres, das garotas e da feminilidade, compreendidas como o oposto.
A pressão em favor da conformidade vem das famílias, das escolas, dos grupos de colegas,
da mídia e, finalmente, dos empregadores. A maior parte dos rapazes internaliza essa norma
social e adota maneiras e interesses masculinos, tendo como custo, freqüentemente, a
repressão de seus sentimentos (CONNELL, 1995 p. 189-190).

A respeito do pensamento de autor acima, entende-se que a imagem da masculinidade


sustentada pela sociedade prejudica os indivíduos do sexo masculino no caso se expressarem ou
defenderem algum ponto de vista contrário ao que o meio social em geral exije, como por exemplo,
o de que o homem não deve chorar, não pode ser fraco, tem que ser forte, não deve se emocionar, etc.
O professor pode utilizar estas participações como uma avaliação extra, como forma mesmo
de incentivar os estudantes a participarem da discussão sobre suas ideais a respeito destas palavras.
Logo após a discussão, o professor pede aos alunos que escrevam essas perguntas, e as
respondam com suas próprias palavras, sem a utilização de algum texto ou livro. Por isso, a
importância do primeiro momento: a discussão, pois por mais que alguns não falem em classe, eles
poderão escutar seus colegas, para assim terem um ponto a seguir.
A atividade consiste em responder duas pertuntas:
1) O que você pensa do respeito?
2) O que você pensa sobre diversidade?
Os alunos deverão levar para a casa e trazer na outra aula, digitado ou apenas em uma folha
de caderno, a critério do professor. Esta atividade pode ser avaliativa, o que é interesante, pois se trata
de uma aula, e neste segundo momento, o docente poderá avaliar as opiniões e pensamentos a cerca
de tudo o que foi dito em classe, uma forma de despertar no aluno o senso crítico.

1127
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para a realização deste trabalho, o professor pode se valer de ferramentas tecnológicas
disponíveis, como um projetor, e utilizar fotos, cartazes, documentários, músicas, videos e
propagandas, como uma forma de despertar o interesse do estudante, pois estes recursos audiovisuais
muitas das vezes estimulam a mémoria do aluno a se lembrar de algo relacionado ao assunto debatido,
uma experiência e/ou simplesmente podem motivá-los a discutir e buscar respostas para suas dúvidas.
E por falar em experiência, também é comum que alguns alunos, ao longo da discussão e
exposição de ideias, expressem suas próprias experiências, seja na escola, em casa, ou outro local,
relatando sobre algum amigo, conhecido ou parente que sofreu LGBTfobia, ou até mesmo ele próprio.
A respeito disto, o ambiente escolar se torna um espaço propício a estas discussões e relatos,
pois os alunos tendem a falar sobre isto:

Assim, a questão da sexualidade deve ser tratada com muita seriedade no meio escolar, pois
ao educador compete o desafio de encontrar um meio justo de transmitir as
contradições existentes de maneira honesta e significativa. Ao se propor a realizar
a tarefa educativa, o professor inicialmente precisa conhecer a si próprio, conhecer a história
dos homens e das sociedades através dos tempos (SPTIZNER, 2005, p.12).

Assim, entende-se na visão da autora que o tema que envolve a sexualidade precisa ser
argumentado na escola e que o educador tem o objetivo de informar acerca deste tema, mas que
primeiramente, ele deve ter conhecimentos a respeito da sociedade, para assim conduzir outro tema
à seus alunos.
Neste momento, é importante que o professor permita que o estudante narre suas vivências,
pois assim poderá influenciar outros alunos a fazerem o mesmo, narrando fatos de suas identidades,
pois o objetivo desta aula é tratar deste tema enquanto buscamos formar de diminuir a intolerância
no ambiente escolar e promover o respeito à diversidade, ou seja, para que os próprios alunos possuem
conviver de forma saudável entre eles!
A respeito da identidade, muitos aprendizes possuem dúvidas e recorrem à buscas sem
fundamentos, sem compreender quem são:

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo


que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até amorte é apenas porque construímos uma
cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu"(HALL, 2006
p.13)

1128
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, entende-se que o autor explana a “crise de identidade”, algo que pode ser relacionado
as descobertas sexuais do aluno. No entanto, é importante ressaltar que a aplicação das questões
relacionadas a sexualidade não tem como objetivo expor o aluno, mas sim, tentar orienta-lo se por
ventura ele se “identificar” com alguma das siglas LGBTQ.
Vale ressaltar também que o professor pode inserir conteúdos de sua disciplina, e vice versa,
nesta atividade. Esta no caso foi realizada em uma aula de espanhol, o que até mesmo contribuiu para
o aprendizado da língua.
(FERREIRA, 2010, p.421) afirma que o professor pode mapear e para tentar compreender
estratégias lúdicas-pedagógicas para sanar dúvidas dos estudantes, como por exemplo, utilizar
elementos da língua espanhola na realização da discussão e da atividade escrita.
Já para (CABO, 2010, p.14) é necessário que novas estratégias sejam aplicadas no aprendiz
para que de forma mais ou menos consciente ele alcance os objetivos. Ou seja, sendo a disciplina ou
o “novo” tem de gênero e diversidade sexual, é importante que a estratégia de aprendizado seja
processada para que o estudante receba essas novas informações para solucionar os problemas das
atividades.
Desta forma, compreende-se que a metodologia utilizada pelo educador em sala de aula,
independente da disciplina, contribui para um aprendizado eficaz do conteúdo apresentado à turma,
o qual o aluno irá demonstrar o que entendeu e expressar de forma coerente em, por exemplo, uma
avaliação.

RESULTADOS
Os resultados foram diversos em relação ao preconceito, respeito às diferenças e ao bullying.
A turma inteira se manteve a favor do respeito e da tolerância ao próximo, apontando outras formas
de preconceito também, como machismo e racismo, o que foi interessante de ver, pois assim temos a
impressão de que o aluno do ensino médio observa os problemas sociais ao seu redor.
Na semana seguinte, a qual foi combinado junto com toda a turma, de que os alunos deveriam
levar para a casa a atividade e trazer para a escola na próxima aula, muitos comentaram a respeito da
LGBTfobia de forma produtiva, apontando preconceitos e problemas sociais que este público enfrenta
e além de expor suas ideias de amparo e solidariedade a esta causa.

1129
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Alguns poucos comentaram, por questões religiosas, que os LGBTQ+, embora merecem
respeito, se afastam do chamado comportamento cristão, o que não os impede de terem seus direitos
guardados.
Exemplos:
Aluno número 1: “Tenho muitos amigos gays e respeito eles, acho que todos devem ser
felizes”.

Aluno número 2: ”Eu respeito os LGBTs, mas não concordo, porque acredito que Deus fez o
homem para a mulher”.
Apesar de algumas respostas ainda ligadas a ideias conservadoras, religiosas, os alunos
expressaram a importância do respeito e necessidade de saber lidar com as diferênças que estão
incluídas entre eles mesmos.
O primeiro aluno foi bem claro em falar do seu contato com homossexuais e sobre o respeito
que eles merecem. Já o segundo, também concorda na forma que os LGBTs devem ser respeitados,
mas também possui um discurso religioso e o usa pra justificar a sua não aceitação de algumas atitudes
tomas por esse público.
É interessante observar que alguns estudantes voltam a falar de suas experiências e problemas
relacionados a sua própria sexualidade, na escola e em seus lares.
Vale ressaltar também o papel que o professor desempenha neste processo, pois ele é um
agente importante na realização desta tarefa, assim como a própria escola que tem o direito de acolher
esta ideia:

Desta forma, vemos que a escola possui a função de gerar seres que possam refletir, que
pensem e discutem a respeito do seu meio, tanto escolar quanto social, desenvolvendo valores
e atitudes para uma convivência pacífica entre todos, pois infelizmente muitos pais, amigos
e conhecidos não possuem conhecimentos suficientes a respeito destas questões e terminam
conduzindo ideias erradas sobre temas que tratam de sexualidade, pensando que a aula irá
falar sobre sexo, o que no caso, trata apenas de comportamentos (REIS, 2019, p.8)

A respeito do docente, (REIS, 2019, p.8) também defende que o professor deve apresentar um
comportamento que respeite as decisões do aluno, pois o mesmo estará lidando com uma pluralidade
de ideias que provavelmente serão distintas.
É sempre importante lembrar que a maioria, se não forem todos, dos estudantes não tem
contato com essas questões e que essa atividade em classe poderá ser a primeira de suas vidas.
1130
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sendo assim, a abordagem a ela, o respeito às opiniões e a escolhas de materiais e execução de
estratégias em classe deverão ser bem escolhidas e respeitadas pelo professor e escola, afim de
alcançar resultados construtivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste trabalho, percebemos que a abordagem acerca da sexualidade e gênero em salas
de aula das escolas brasileiras pode servir como uma possibilidade ao enfrentamento da LGBTfobia
nas escolas, e consequentemente, a um comportamento mais tolerante do aluno, pois no futuro, ele
será um ator social e suas atitudes e consequências no meio social serão resultados da educação
ofertada a ele.
Sendo assim, aprendemos que esta discussão a respeito de diversidade e sexualidade em classe
pode motivar o aluno a discutir, pois muitos jovens possuem dúvidas e veem em um diálogo uma
forma de aprender mais sobre alguns temas não debatidos entre amigos e familiares.
Outro problema a ser encarado é o caso do bullying nas escolas em razão de muitos alunso
não respeitarem as diferenças entre eles mesmos, o que pode trazer consequências para o meio social
o qual vive.
Vimos também que a escola possui um papel fundamental para o desenvolvimento desses
temas e que seria importante cada vez mais a sua participação em tratar de assuntos relacionados a
temas transversais.
Devemos apontar também que os professores e/ou educadores interessados neste tema podem
alterar alguns métodos e utilizar novas estratégias de acordo com a sua disciplina, turmas, materiais
disponíveis ou situação escolar a qual está inserido, buscando assim outras formas de abordar esse
assunto em sala de aula.
Por fim, os resultados nos mostraram que o campo da educação está aberto a todas estas
questões relacionadas a gênero, sexualidade e violência, porém, a sua escassez de trabalhos e. muitas
vezes. resistências por parte da comunidade escolar e por pais, poem estas atividades em posições de
rara execução, mas que aos poucos pode conquistar espaço nas escolas do Brasil e se tornar referência
para uma educação tolerante e convivência saudável dentro e fora da escola.

REFERÊNCIAS

1131
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BORTOLINI, Alexandre. Diversidade sexual na escola. Brasil: UFRJ, 2008

CABO, Isabel Lurdes Pereira do. Metodologia do Ensino do Espanhol como Língua Estrangeira:
Recursos e Actividades Didácticas. Portugal: UBI, 2010.

CAMPS, Anna. Hablar en clase, aprender lengua. Disponível em:


https://www.researchgate.net/publication/39150532_Hablar_en_clase_aprender_lengua. Acesso em:
15 set. 2020.

CONNELL, Robert W.. Políticas de Masculinidade. Disponível em:


https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71725/40671. Acesso em: 16 set,
2020.

DINIS, Nilson; ARACI ASINELLI, Luz. Educação sexual na perspectiva histórico cultural.
Brasil: SciELO, 2007.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2006.

FERREIRA, Cláudia Cristina. Superação das dificuldades em espanhol. Língua estrangeira


mediada pelas múltiplas inteligências e estratégias de aprendizagem. Disponível
em:http://www.uel.br/portal/index.php?pagina=404&urlProcurada=www.uel.br/eventos/sepech/sum
arios/temas/superacao_das_dificuldades_em_es. Acesso em: 10 set, 2020.

MIORANZA, Angela Josefina; ROËSCH, Isabel Cristina Corrêa. A diversidade cultural no cotidiano
da sala de aula. In: Simpósio Nacional de Educação, 2010, Cascavel, PR. Disponível:
https://docplayer.com.br/8715685-A-diversidade-cultural-no-cotidiano-da-sala-de-aula.html.
Acesso 16 set, 2020.

Reis, Marcio Gomes dos. O debate sobre diversidade de gênero e sexual: uma proposta para a sala de
aula. In: II Seminário Discurso e Relações de Poder, 2019, Abaetetuba, PA. Anais (on-line).
Abaetetuba, 2019. Disponível: https://www.even3.com.br/anais/sedire/118457-o-debate-sobre-
diversidade-de-genero-e-sexual--uma-proposta-para-a-sala-de-aula/. Acesso: 17 set 2020.

SPITZNER, Regina Henriqueta Lago. Sexualidade e adolescência: reflexões acerca da educação


sexual na escola. Brasil: UEM, 2005.

1132
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - MULHERES SEM
FRONTEIRAS: (DES)
FAZENDO SABERES E (RE)
EXISTINDO!
COORDENAÇÃO

Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado – UNIPAMPA


Mestranda Jucléia Velasque do Amaral – UNIPAMPA
Mestrando Ewerton da Silva Ferreira – CEEINTER

1133
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MULHERES NEGRAS FRENTE À PANDEMIA DA COVID-19

Marianna Mendes da Costa482


Daniel Luiz Pitz483

Resumo: A atual crise sanitária mundial gerada pela Covid-19 e as medidas tomadas para a sua prevenção, como o
isolamento social, têm provocado inúmeros impactos na sociedade brasileira. Este artigo tem por objetivo refletir sobre a
desigualdade de gênero e raça reafirmadas nesse momento em que vivenciamos. Para a realização dessa pesquisa é
utilizado a técnica bibliográfica e a sua natureza é a qualitativa. O resultado da pesquisa nos trouxe a conclusão de que os
grupos populacionais que historicamente sempre foram negligenciados são os mais atingidos pela pandemia,
especialmente com maior risco de óbito. Portanto, as mulheres negras foram desproporcionalmente mais afetadas em
comparação a homens brancos, devendo as desigualdades de gênero e raça serem reconhecidas para alcançarmos outro
patamar de desenvolvimento social que supere essas estruturas sociais produzidas pela desigualdade de gênero, pela
desigualdade econômica e pelo racismo.

Palavras-chave: Gênero; Raça; Pandemia; Covid-19.

INTRODUÇÃO
A pandemia da COVID-19 tem apresentado diversos impactos na sociedade brasileira, o que
acentua as desigualdades pré-existentes no país e atinge especialmente aqueles grupos que são
criminalizados e alvos de violência. Essas dificuldades realçadas hoje para essa população têm
ligação direta com questões históricas herdeiras do período escravocrata colonial, com o contexto
político e econômico, ao qual são propagadas com base no gênero, raça e classe social.
Sabe-se que a garantia dos direitos humanos e fundamentais dentro da sociedade capitalista,
é baseada nas relações entre Estado e sociedade, entre políticas públicas e o capital. O que requer, por
sua vez, uma atuação estatal efetiva para minimizar tais diferenças.
Dessa forma, este trabalho tem por objetivo refletir sobre a desigualdade de gênero e raça
reafirmada no atual contexto de pandemia da COVID-19. Demonstrar-se-á a base dessa estrutura
social e a necessidade de políticas públicas para o combate aos efeitos nocivos do atual período de
pandemia e de isolamento social gerado para as mulheres negras no Brasil.
Dados iniciais indicam que a violência contra mulheres no atual período de pandemia no
Brasil tem aumentado progressivamente, contudo, eles não podem ser tratados como uma relação
direta de causalidade, sendo necessário considerar toda perspectiva histórica e social que envolve a

482
Mestranda em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
mariannamendesdacosta@hotmail.com
483
Mestrando em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
danielpitzz@gmail.com
1134
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
violência de gênero e raça em nosso país. Além disso, é importante destacar a situação das mulheres
negras no mundo do trabalho, a se ter em vista a posição subalterna ocupada por essas mulheres, que
fazem parte em sua maioria da classe trabalhadora (ALMEIDA, 2020).
Com base no exposto, a pesquisa propõe-se a responder o seguinte problema: Quais são os
desafios encontrados por mulheres negras no atual período de pandemia da COVID-19?
Partimos da hipótese de que as mulheres negras têm se deparado com uma atuação de um
Estado racista e inserido na lógica patriarcal, onde o enfrentamento das diferenças de gênero e raça
foi realçado nesse período de pandemia no Brasil. Portanto, é fundamental consolidar práticas em
diferentes frentes, no âmbito dos três poderes do Estado e também de iniciativas civis e privadas, uma
vez que a política neoliberal tem liquidado fortemente com os serviços públicos e reforçado as marcas
das formas de desigualdades que atingem diretamente às populações historicamente discriminadas.
Nesse momento desafiador, faz-se necessário a reflexão sobre as disparidades de gênero e raça
existentes na sociedade brasileira, a fim de entender a necessidade das políticas públicas e de medidas
que entendam a realidade concreta e a totalidade de vida dessas mulheres.
A metodologia aplicada a este trabalho foi a pesquisa bibliográfica e técnica de abordagem
qualitativa, busca-se compreender como o quadro atual de pandemia evidencia a perversidade do
caráter estrutural do racismo.

DESENVOLVIMENTO
No Brasil, diferente de diversos outros países, o governo aderiu apenas inicialmente o
distanciamento social para o enfretamento da COVID-19, passou em seguida a ignorar as
recomendações da Organização Mundial de Saúde e propagar o discurso pelos interesses econômicos
e do capital.
É importante entender, então, que o Brasil se constitui como um país de capitalismo
dependente com raízes escravocratas, que reflete na realidade de vida das pessoas negras e indígenas,
principalmente na vida das mulheres. A pandemia não trouxe o surgimento de formas de violência e
tampouco do racismo, mas sim evidenciou a perversidade de como o racismo no Brasil se caracteriza
como um elemento estrutural e estruturante (NASCIMENTO, 2016).
Nessa linha, é fundamental a compreensão da luta enfrentada pelas mulheres negras em
busca do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que o maior índice de óbitos

1135
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
no Brasil encontra-se na população mais pauperizada, que tem também o marco da questão étnico-
racial. Portanto, a negligência da saúde física e mental das mulheres negras é uma realidade histórica
já que nunca foram consideradas como sujeitos de direito à humanidade (BELL HOOKS, 2010).
Nesse sentido, é possível perceber como as mulheres negras são as maiores usuárias e
beneficiárias das políticas públicas, o que aponta a perpetuação de uma lógica racista e machista,
onde a mulher negra ainda é responsável pelo cuidado dos outros e, concomitantemente, é a mais
afetada no âmbito profissional, emocional e social (ANGELA DAVIS, 2016).
A pandemia ocorre em um período histórico de grandes retrocessos no que tange os direitos
trabalhistas, onde o neoliberalismo acentua as contradições do capitalismo e tenta frear a todo custo
qualquer mobilização ou resistência da classe trabalhadora. Portanto, há uma imensa disparidade de
salários na comparação entre a mulher negra e o homem branco, ocupando a mulher negra o último
lugar na pirâmide social e o homem branco uma posição de privilégio. Nessa linha, é fundamental
construir uma articulação interseccional (ANGELA DAVIS, 2016).
Diante da flexibilização do trabalho propagada pelo neoliberalismo, o número de empregos
informais cresce a cada ano, trazendo o índice de desemprego e de informalidade a marca do racismo
e da desigualdade de gênero, já que as mulheres negras representam uma grande parte desse número
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2020).
A realidade das mulheres negras é ainda mais dura durante o isolamento social, visto que são
as que ganham salários ínfimos e estão inseridas em ocupações subalternizadas e sem vínculo
empregatício. Diante dessa dura realidade, a atuação do Estado e sua forma omissiva agridem ainda
mais a vida delas, já que o auxílio emergencial não garante, por vezes, o mínimo para que possam
sobreviver (MARCIA SANTOS et al., 2020).
Com isso, as mulheres negras buscam se organizar de maneira independente e sem apoio
estatal, a fim de se fortalecerem e combaterem o alto índice de violência doméstica. Em bairros pobres
do Rio de Janeiro, por exemplo, mulheres negras se utilizam do whatsapp para se ajudarem nesse
período, esclarecendo dúvidas sobre o auxílio emergencial, elucidando as formas de se manter a
higiene e evitar infecções, bem como servindo como um canal de denúncia para qualquer tipo de
violência sofrida (ALINE MAIA; ELAINE BARBOSA; THAIS GOMES, 2020).

1136
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Conforme expõe Almeida (2019, p. 24) é fundamental percebermos como a pandemia do
coronavírus acentua o racismo estrutural e como essa estrutura racista afeta todos os âmbitos da vida:

O racismo, que se materializa como discriminação racial, é definido por seu caráter sistêmico.
Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos,
mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem
entre grupos raciais, se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações
cotidianas.

O racismo atravessa a vidas das mulheres negras em sua totalidade, sendo potencializando em
tempos de pandemia, devendo-se alertar para um enfrentamento que precisa ser feito não só no Brasil,
mas no mundo todo: o antirracismo. Afinal, não basta não ser racista, é preciso lutar contra essa
estrutura racista, uma vez que o racismo serve como grande pilar para a estrutura do capitalismo,
devendo a luta antirracista andar de mãos dadas também com a luta anticapitalista (ANGELA DAVIS,
2016).
É necessária uma luta que tenha por objetivo uma ruptura com a estrutura de desigualdade
racial, de classe e de gênero. Nessa linha, são de suma importância os movimentos de mulheres
negras, que tem por finalidade romper com a lógica atual e construir a liberdade real, pois são essas
mulheres que no contexto de isolamento social são as mais atingidas com a estrutura de opressão,
carregando consigo a perpetuação de uma realidade que ainda não rompeu com a lógica de dominação
(ANGELA DAVIS, 2016).
Perceber que o Estado é também um reprodutor dessas opressões é importante para que se
pense em uma construção de luta por parte das mulheres da classe trabalhadora, a fim de
reivindicarem mais direitos. Dessa forma a luta das mulheres negras é fundamental para mover as
estruturas societárias e para apontar a necessidade de uma mudança substancial na realidade de vida
dessas mulheres (ANGELA DAVIS, 2016).
Em tempos de pandemia mundial, essa realidade se mostra ainda mais difícil para a população
negra. O estudo do Centro Técnico Científico da PUC/RJ (2020) demonstra que pretos e pardos têm
o maior índice de letalidade pela COVID-19, o que aponta como a disparidade entre a população
branca e negra é real. Esses números não são mera coincidência, mas sim a constatação de que as
vidas negras são preteridas em função de vidas brancas, uma vez que a população negra é a que
mais utiliza o SUS e depende diretamente dele para sua saúde física e mental (ALMEIDA, 2020).

1137
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Com o objetivo de garantir minimamente o acesso às informações para evitar o contágio por
COVID-19, documentos como “Orientações para favelas e periferias” foram criados visando atender
as demandas desses espaços, já que são locais ainda criminalizados, invisibilizados e se compõe em
sua maioria pela população negra. Além disso, o índice de violência contra jovens negros só cresce,
demonstrando como a estratégia de genocídio da população negra é real e perversa (GT DE SAÚDE
DA POPULAÇÃO NEGRA DA SBMFC, 2020).
Fica nítido que a negligência do Estado brasileiro é uma forma de manifestação dentro da
ordem capitalista visando atender os interesses da classe dominante, sendo o racismo fundamental
para a manutenção dessa ordem. É preciso então perceber que esses fatores não são ocasionais, mas
sim propositais, pois fazem partem de um projeto de genocídio da população negra, com o extermínio
não somente de seus corpos, mas da subjetividade e intelectualidade negra (ALMEIDA, 2020).
É nesse sentido que se coloca como fundamental a percepção de que a pandemia da COVID-
19 evidencia como a manutenção da desigualdade racial é um pilar estrutural, pois atravessa a
sociedade brasileira desde seu processo de formação. As mulheres negras são atingidas por todo esse
cenário de crise do capital dentro de um contexto de pandemia em um país que apresenta um enorme
índice de desemprego e empregos informais, expondo SILVA (2020, p. 67) que:

[...] os trabalhadores informais são os mais vulneráveis aos efeitos das crises e também a
situações que afetam individualmente as pessoas, mesmo em situação de crescimento
econômico, como acidentes, doenças e outros problemas de ordem pessoal. São milhões de
pessoas que trabalham como autônomos, como motoristas, motociclistas e até ciclistas
de aplicativos de transporte e entrega, trabalhadores do setor privado que trabalham sem
carteira, empregadas domésticas mensalistas e diaristas também sem carteira, pessoas jovens
e mulheres, principalmente que trabalham como auxiliar em pequenos negócios familiares
e ainda empreendedores sem CNPJ e que também contratam auxiliares como
ambulantes, pedreiros, pintores, etc. O trabalho informal no Brasil historicamente sempre foi
alto. Desde a promulgação da CLT, passamos a maior parte do tempo tendo mais
trabalhadores informais do que trabalhadores protegidos pela legislação, aqueles com carteira
assinada.

Diante desse cenário, é possível perceber como a classe trabalhadora atravessa esse momento
e quando acrescentamos os fatores de gênero e étnico-racial, o cenário é ainda mais degradante. A
luta precisa ser uma transformação que vise uma emancipação não só política, mas também humana,
por isso, é preciso articular a luta da classe trabalhadora com a luta pelo fim da desigualdade

1138
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
racial. É preciso pensar as mulheres negras como sujeitos históricos e revolucionários (MARX, 2010).
A apreensão e debate do processo de formação social e consequentemente do racismo como
fator que estrutura a sociedade brasileira é imprescindível também para o fortalecimento de um
projeto de sociedade que vise erradicar qualquer forma de opressão ou exploração. Dessa forma, é
importante destacar o protagonismo e a luta das mulheres negras na construção de possibilidades que
tenham como objetivo fim a busca pela emancipação (ANGELA DAVIS, 2016).
É essencial a compreensão de que essa emancipação configure a direção política da construção
de outra sociabilidade, já que a emancipação humana segue o caminho contrário de qualquer opressão
e discriminação, seja de raça, classe ou gênero dentro da sociedade. É necessário vislumbrar uma
ordem que não seja essa do capitalismo, onde a barbárie e a desigualdade são fatores fundamentais
para a manutenção dessa hegemonia (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2016).
É fundamental a construção de uma agenda que paute a luta antirracista dentro da sociedade
brasileira e fora dela. Compreender a historicidade da formação social brasileira é de suma
importância para a análise da totalidade de um país de capitalismo dependente como o Brasil, no qual
as mulheres negras são parte importantíssima da historicidade, memória, luta e resistência desde o
período de escravidão e também em tempos de capitalismo monopolista (CONSELHO FEDERAL
DE SERVIÇO SOCIAL, 2016).
É preciso que haja um rompimento não somente das práticas racistas, mas da ideologia racista,
que atravessa o imaginário social da história brasileira e não se rompeu, mas pelo contrário, é ainda
fortalecido de diversas formas. Perceber que o racismo se perpetua também na subjetividade é
importante para pensar em como o racismo é enraizado no cotidiano da sociedade brasileira em
diversos âmbitos e se manifesta de diversas formas (MOURA, 2014).
Perceber a totalidade nas quais estão inseridas essas mulheres é fundamental para perceber
que essas mulheres ainda lutam pela sobrevivência e pelo fim da invisibilidade e apagamento
histórico, mas também cultural, social e econômico, pois suas vidas são criminalizadas, preteridas e
não debatidas, tampouco suas sexualidades, suas expressões de sentimentos e suas dores (MOURA,
2014).
As mulheres, em especial as mulheres negras que tem sexualidades distintas da
heterossexualidade, que se dá de maneira compulsória e violenta, são ainda mais afetadas e suas
lutas são importante para perceber como o patriarcado, o sexismo e o machismo têm grande

1139
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
influência na estrutural social da dinâmca da sociedade capitalista, principalmente em países de
capitalismo periférico, como é o caso do Brasil (ANGELA DAVIS, 2016).
Pensar, por exemplo, as mulheres negras e lésbicas diante de um quadro de pandemia global,
é entender como a saúde não só fisíca, mas mental dessas mulheres têm sido duramente afetadas.
Mulheres essas que, muitas vezes, são mãe e não possuem rede de apoio e ainda são criminalizadas
por suas orientações sexuais, por seus corpos, por sua classe e também por sua cor (AUDRE LORDE,
2019).
Como coloca Audre Lorde (2019, p.141):

Como uma lésbica negra, feminista e socialista de 49 anos, mãe de dois, icluindo um menino,
e integrante de um casal interracial, eu geralmente me percebo como parte de um grupo
definido como outro, desviante, inferior ou simplesmente errado. É tradição, na sociedade
americana, esperar que os membros dos grupos oprimidos e objetificados se desdobrem para
superar as distâncias entre as realidades da nossa vida e a consciência do nosso opressor.

Essa declaração dada por Audre Lord (2019) mostra como esse processo estrutural atravessa
a dinâmica de vida das mulheres negras e lésbicas norte-americanas, mas facilmente poderia
representar a realidade de uma mulher negra lésbica do Brasil. O Brasil apresenta suas especificidades
no processo de formação social, mas é possível perceber como o racismo, a LBGTfobia, o sexismo
precisam ser combatidos mundialmente, pois compõe uam estrutura de domínio e perversidade.
Dentro de uma sociedade com altos indíces de desiguldade e de opressão, ser mulher negra
no Brasil é enfrentar diversos desafios, pois a cultura sexista, patriarcal e racista está inserida nas
raízes do processo histórico e cultural do Brasil, por isso é importante a interseção entre elas, para
que possam existir maneiras de erradicar tais opressões (LÉLIA GONZALES, 1984).
Em tempos de Covid-19, é importante dialogar com essas mulheres, com suas vivências, suas
histórias e opiniões para entender a demanda da luta e percebê-las como sujeitos históricos
importantíssimos para que possa mover as estruturas sociais, porque quando mulheres negras se
movimentam, toda a estrutura social se move com elas (ANGELA DAVIS, 2016).
Mulheres negras LGBTs sofrem altos índices de ataques e ainda lutam contra o silenciamento
que apaga toda a luta e a história que foram construídas e conquistadas. O Brasil é um país com altos
indíces de LGBTfobia, que aponta como a heteronorma é uma vávula de opressão e de

1140
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
criminalização de pessoas com outras orientações sexuais e outras sexualidades (AUDRE LORDE,
2019).
O somatório de um processo histórico perverso que traz em suas raízes o racismo estrutural,
o patriarcado, o sexismo, o machismo e a heteronormatividade compulsória apresenta como
consequência uma sociedade altamente violenta e com verdadeiras táticas de extermínios para as
vidas, os corpos e vozes que fujam desse padrão criado, do homem branco heterossexual e burguês
(ANGELA DAVIS, 2016).
Ser uma mulher negra LGBT em um país como o Brasil é ser resistência na sua vivência
diária, é ser luta no seu corpo, na sua voz, no seu trabalho, pois essas mulheres são as que recebem
os menores salários, possuem as condições mais precárias e precisam se esforçar sempre mais para
conseguir garantir, minimamente o direito à sobrevivência, o direito ao amor, ao afeto (GRAYCE
ALBUQUERQUE et al, 2013).
As diversas formas de violências contra essas mulheres mostram como o discurso de ódio, a
opressão, a violência física e a violência simbólica são fundamentais para a manutenção da lógica
capitalista e essencial para a manutenção da hegemonia burguesa, que é a classe dominante
(GRAYCE ALBUQUERQUE et al, 2013).
É importante entender que a população LGBT sofre diversas formas de violação, que por
vezes são simbólicas e muito mais difícieis de serem detectadas, entendidas e denunciadas, o que faz
com que os danos causados nos campos psicológico e emocional são de difíceis reversão (GRAYCE
ALBUQUERQUE et al, 2013).
Como aponta dados da Secretaria de Direitos Humanos (2012, p.7):

(...) apontam a violência psicológica como a principal manifestação de violência cometida


contra LGBT. Ademais, esse tipo de agravo costitui a forma mais difícil de ser visibilizada,
uma vez que se apoia em mecanismos simbólicos de poder que estrutural a sociedade,
fazendo com que as vítimas não a percebam como violências, pois preconceito e LGBTfobia
são caracterizados como condições naturalizadas na sociedade brasileira.

Com isso, é importantíssimo o entendimento de que não basta não ser reproduzir as opressões
e violências, é preciso combatê-las, é preciso assumir uma luta de radicalidade, que mexa nas
estruturas sociais e não que sirvam apenas de métodos paleativos para o problema real, mas é

1141
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fundamental garantir o acesso às políticas públicas, à saúde que são de suma importância (GRAYCE
ALBUQUERQUE et al, 2013).
É importante fortalecer as polítcas públicas existentes, pois são importantes para a diminuição
das desigualdades, principalmente em tempos de covid-19, que afeta muto a vida e a saúde das
mulheres negras e as mulheres negras LGBTs também. O auxílo emergencial, por exemplo, não supre
toda a necessidade e tampouco erradica qualquer desigualdade, mas serve como possibilidade de
sobrevivência.
Mulheres negras têm grande potencial de pensar a emancipação e suas lutas e formas de
resistência mostram como são revolucionárias, mesmo em tempos de pandemia e de isolamento
social. São importantítissimas para possibilidades de outras formas de ser, se relacionar e estar no
mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do presente estudo é possível compreender que a luta das mulheres negras é uma
fortaleza para pensar o antirracismo, o anticapitalismo. A história dessas mulheres ainda é
invisibilizada, mas suas formas de resistência, desde abortos para evitar que seus filhos fossem
também escravizados até a criação de redes de apoio em tempos de Covid-19 mostra a importância
de entendê-las como protagonistas que trazem uma construção de sofrimento e violência, mas
também de memória e possibilidades.
O conhecimento sobre as narrativas e a historicidade de mulheres negras no Brasil aponta em
como ainda são mulheres secundarizadas e suas demandas não são ouvidas. Mulheres negras querem
ser entendidas como pessoas porque essa humanidade lhes foi a todo tempo e a toda história negada,
então é necessário enxergar suas totalidades a fim de perceber que não buscam ocupar espaços apenas
em debates sobre racismo, mas também em cultura, educação e política.
Diante dessa pandemia atual, essa realidade também se mostrou, pois a luta pela sobrevivência
é a realidade de muitas famílias chefiadas por mulheres negras, que estão inseridas em uma situação
informal de trabalho ou até mesmo de desemprego. O isolamento social tornou esse quadro ainda
mais dramático, além das consequências na saúde física e mental dessas mulheres.
A saúde é um fator importante e relevante da vida, mas para as mulheres negras esse
acesso é ainda mais difícil, tanto pela cultura de que elas sempre serviram e cuidaram das

1142
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres brancas e de seus filhos, quanto pela dinâmica de vida da sociedade capitalista, que impede
que essas mulheres possam ser acolhidas, cuidadas e também amadas.
Quando se fala da resistência e da luta das mulheres negras, de feminismo negro, é importante
perceber que abrange uma totalidade de reivindicações e também de sentimentos. As conquistas da
população negra sempre foram por meio de luta e essa luta também busca a humanização da vida
para essa população, para essas mulheres que ainda têm seus corpos, sentimentos, vidas, histórias e
narrativas criminalizadas e objetificadas. Mulheres negras são humanas e não objetos.
Mulheres que estão a construir um verdadeiro rompimento com a colonização dos saberes, da
política, da cultura e da própria vida. Pensar a questão étnico-racial, de gênero e de classe perpassa
pensar em como essa interseção se concretiza na vida material dessas mulheres, que historicamente
construíram um legado importantíssimo para a criação de possibilidades futuras.
A construção de novos horizontes, para além do capitalismo, precisa ser pensado pelos
sujeitos da classe trabalhadora, onde majoritariamente se encontram as mulheres negras. Pensar
mulheres negras como possíveis protagonistas dessa ruptura é essencial para a compreensão de que
não são apenas um recorte, mas parte integrante da sociedade, com potencialidades, possibilidades e
construções para uma nova ordem social.

REFERÊNCIAS
GRAYCE ALBUQUERQUE, Alencar et al. Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para
as políticas públicas de saúde no Brasil. Sáude em Debate, Rio de janeiro, v.37, n.98, p. 516-524,
jul./set. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
11042013000300015. Acesso em: 15 ago. 2020.

ALMEIDA, Silvio de. 1 vídeo (55min). Quem o coronavírus mais mata? Publicado pelo canal The
Intercept Brasil, 2020. Disponível em: https://youtu.be/6wcpTLr5c1w. Acesso em: 04 ago. 2020.

ALMEIDA, Silvio de. Racismo estrutural. 1. ed. São Paulo: Pólén Livros, 2019.

ALINE MAIA; ELAINE BARBOSA; THAIS GOMES. Rompendo silêncios: o que raça e gênero
têm a nos dizer sobre a pandemia? Observatório de Favelas, 2020. Disponível em:
https://of.org.br/noticias-analises/rompendo-silencios-o-que-raca-e-genero-tem-a-nos-dizer-sobre-a-
pandemia/. Acesso em: 13 ago. 2020.

ANGELA DAVIS. Mulher, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2016.

1143
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BELL HOOKS. Vivendo de Amor. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-
amor/. Acesso em: 10 ago. 2020.

CENTRO TÉCNICO CIENTÍFICO PUC/RJ. Diferenças sociais: pretos e pardos morrem mais de
COVI-19 do que brancos. Rio de Janeiro, RJ, 2020. Disponível em: http://www.ctc.puc-
rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-
brancos-segundo-nt11-do-nois/. Acesso em: 08 ago. 2020.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Assistente social no combate ao preconceito:


racismo. Brasília, caderno 3, p.1-16, 2016. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-
Caderno03-Racismo-Site.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020.

LÉLIA GONZALES. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. São
Paulo, p.223-244, 1984.

GT DE SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA DA SBMFC. Orientações para favelas e periferias


sobre o COVID-19. 2. ed. 2020. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wp-
content/uploads/2020/07/orientacoes-para-favelas-e-periferias_2-edicao.pdf. Acesso em: 08 ago.
2020.

AUDRE LORD. Irmã Outsider. 1. Ed, Autêntica Editora, Belo Horizonte, 2019.

MARCIA SANTOS, Pereira Alves et al. População negra e COVID-19: reflexões sobre racismo e
saúde. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 34 n. 99, p. 225-243. 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806-9592-ea-34-99-225.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020.

MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.

MOURA, Clóvis. O racismo como arma ideológica de dominação. Revista princípios, São Paulo, n.
34, p. 28-43. 1994.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 3.


ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho doméstico. Disponível em:


https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang--pt/index.htm. Acesso em: 08 ago. 2020.

SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano


de 2012. Brasília, DF, 2013. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-
violencia-homofobica-2011-1. Acesso em 18 ago. 2020.

SILVA, Pedro Henrique Isaac. O mundo do trabalho e a pandemia de COVID-19: um olhar sobre o
setor informal. Revista Caderno de Administração. Maringá, v. 28, p. 66-70. 2020. Disponível
em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CadAdm/article/view/53586/751375150138. Acesso
em: 11 ago. 2020.
1144
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MULHERES DIRETORAS DE CINEMA: NOTAS SOBRE O RIO GRANDE DO SUL

Priscila Rigoni484

Resumo: Este artigo apresenta um recorte da dissertação Sobre as (in)visibilidades e os silêncios: as mulheres nos
processos criativos de produção cinematográfica no Rio Grande do Sul Rigoni (2020). Neste texto é abordada a presença
das mulheres na direção de filmes lançados comercialmente em salas de exibição entre 1995 e 2017, em produções ou
coproduções com o estado do Rio Grande do Sul. Os dados apontam para uma pequena participação das mulheres (13,5%)
na direção de filmes, em comparação aos homens (86,5%), de maneira que elas têm atuado mais na produção de
documentários. Estes dados são apresentados em diálogo com autoras que abordam sobre feminismos e processos de
produção do cinema como Kuhn (1991), Marcela Lagarde y de los Ríos (2012) e Santos; Tedesco (2017).

Palavras-chave: Feminismos; Cinema feito por mulheres; Diretoras de cinema; Processos criativos de produção; Rio
Grande do Sul.

INTRODUÇÃO

Ainda que as mulheres tenham tido importantes conquistas nas mais diferentes áreas de
atuação, as diferenças entre os gêneros ainda é um fator bastante presente. O mito patriarcal faz uso
de argumentos equivocados sobre a lei natural para explicar as diferenças sexuais e psicossociais que
perpassam os homens e as mulheres. Na perspectiva do mito, a referência à natureza leva a pensar
sobre supostos instintos biológicos que influenciam os comportamentos das mulheres e dos homens,
por isso, é comum que muitas pessoas pensem que as mulheres devem se dedicar à procriação, à
maternidade e ao trabalho doméstico (não remunerado), enquanto os homens são considerados mais
aptos ao trabalho externo (remunerado), ao pensamento, à produção, à política, enfim, à vida pública
(RÍOS, 2012).
A trajetória da inserção das mulheres no espaço público se deu de uma forma distinta, e tardia,
se comparada à trajetória dos homens. Conforme Perrot (2007), somente com o regime assalariado e
em especial com a industrialização, que a partir dos séculos XVIII-XIX no ocidente, que surge a pauta
sobre o trabalho das mulheres, e sua remuneração.
Para Ríos (2012), a invisibilidade do trabalho das mulheres é um mecanismo ideológico de
expropriação e de exploração. Assim, a autora ressalta que uma alternativa para acabar com a
misoginia e com as diferenças de gênero consiste na condução da humanização das mulheres por

484
Publicitária e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. E-mail: priscila.rigoni@acad.pucrs.br
1145
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
meio da sua visibilidade e da sua historicidade, enaltecendo de maneira positiva seus feitos, a isso, é
necessário acrescentar a valorização econômica e social de seu trabalho.
Portanto, devido a este processo histórico que engloba a divisão sexual do trabalho, a inserção
de mulheres em atividades empregatícias se deu lentamente, e foi/é embasada em diversas
discriminações e formas de violência, principalmente em atividades consideradas “masculinas”, de
visibilidade ou bem remuneradas. Em relação às mulheres cineastas, o documentário E a mulher criou
Hollywood485 (Clara Kuperberg; Julia Kuperberg, 2016) narra que quando o cinema estadunidense
passou a ser uma atividade rentável, bem como de prestígio, o trabalho das mulheres passou a ficar à
margem, sendo que elas foram desaparecendo aos poucos das equipes dos processos criativos de
produção, e passaram a ganhar visibilidade como atrizes.
Tendo em vista que o cinema é uma forma de expressão cultural e de comunicação, o qual
desempenha um importante papel na produção de significados e na (des)construção de estereótipos
de gênero, faz-se imprescindível refletir sobre as mulheres atuantes neste espaço.
Nesse sentido, este texto apresenta um recorte da dissertação intitulada Sobre as
(in)visibilidades e os silêncios : as mulheres nos processos criativos de produção cinematográfica
no Rio Grande do Sul486, a qual foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Escola de Comunicação Artes e Design, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, sob orientação do professor Dr. João Guilherme Barone Reis e Silva. Assim, o objetivo principal
deste artigo é se é debruçar sobre dados referentes à participação das mulheres na direção de filmes
lançados comercialmente em salas de exibição, que tenham sido produzidos ou co-produzidos no Rio
Grande do Sul, entre 1995 e 2017.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A abordagem metodológica desta pesquisa foi inspirada em outras três investigações as quais
se utilizam de dados quantitativos e qualitativos para analisar os processos de produção do cinema,
são elas: (i) Participação feminina na produção audiovisual brasileira, desenvolvida pela ANCINE,

485
E a mulher criou Hollywood. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1a99vUxFefQ. Acesso em
19/08/2020.
486
Sobre as (in)visibilidades e os silêncios : as mulheres nos processos criativos de produção cinematográfica no
Rio Grande do Sul. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9195. Acesso em 16/08/2020
1146
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(ii) dissertação de Karla Holanda Documentário nordestino: história, mapeamento e análise (1994-
2003) e (iii) a pesquisa Exploring the barriers and opportunities for independent women filmmakers:
Phase I and II, desenvolvida pela Annenberg School of Communication and Journalism sob
orientação da professora Stacy Smith, da University of Southern California. Portanto, tendo esta base,
foi desenvolvido o seguinte instrumento de coleta de dados:

QUADRO 1 - INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS

Categoria Natureza dos dados

1 Título Título da obra

2 Gênero (ficção, documentário, animação)

3 Ano de lançamento Ano em que o título foi lançado

4 Público Quantidade de pessoas que assistiram à


obra.

5 Renda Renda obtida com a venda de ingressos

6 Máx. de salas Número de salas de cinema onde a obra foi


exibida

7 Direção Nome da(o) profissional responsável pela


direção

8 Gênero Mulher/Homem
Fonte: elaboração da autora, 2020.

Os dados foram coletados a partir de uma tabela desenvolvida pela Agência Nacional do
Cinema - ANCINE, a qual apresenta uma lista de filmes lançados comercialmente em salas de
exibição no Brasil entre 1995 e 2017487. Destes filmes, foram selecionados somente os que foram
produzidos ou coproduzidos no Rio Grande do Sul.

487
Listagem de Filmes brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição. Disponível em:
https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/repositorio/pdf/2102_0.pdf. Acesso em 16/08/2020.
1147
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As informações referentes à ficha catalográfica foram coletadas a partir do acervo digital
disponibilizado pela Cinemateca Brasileira488, todavia alguns dados estavam incompletos nesta base
de dados, portanto, fez-se necessário preencher estas lacunas buscando informações nas páginas web
das produtoras, assim como nas fichas catalográficas de trailers e de cartazes dos filmes.
Na pesquisa de mestrado, foram analisadas as funções referentes aos processos criativos de
produção do cinema (direção, direção de produção roteiro, direção de fotografia, direção de arte e
montagem), contudo neste texto, será discutida somente a função de direção, que conforme o anexo
da Lei Nº 6.533/78; Dec. 82.385/7816, de 05 de outubro de 1978, intitulado Títulos e descrições das
funções em que se desdobram as atividades de artistas e técnicos em espetáculos de diversões489,
diretor cinematográfico:

Cria, a obra cinematográfica, supervisionando e dirigindo sua execução, utilizando recursos


humanos, técnicos e artísticos; dirige artisticamente e tecnicamente a equipe e o elenco;
analisa e interpreta o roteiro do filme, adequando-o à realização cinematográfica sob o ponto
de vista técnico e artístico; escolhe a equipe técnica e o elenco; supervisiona a preparação da
produção; escolhe locações, cenários, figurinos, cenografias e equipamentos; dirige e/ou
supervisiona a montagem, dublagem, confecção da trilha musical e sonora, e todo
processamento do filme até a cópia final; acompanha a confecção do “trailer”, do “avant-
trailer” (Brasília, 1978, art. 81).

Com isto, no subcapítulo seguinte serão apresentados os dados coletados, em diálogo com
teóricas que discorrem sobre as perspectivas feministas dos processos criativos de produção do
cinema.

MULHERES DIRETORAS DE CINEMA NO RIO GRANDE DO SUL

De acordo com Kuhn (1991), existem diversos fatores técnicos como a iluminação, os
movimentos de câmera e os enquadramentos que influenciam na maneira como as personagens
recebem significados em uma narrativa audiovisual, e, comumente esses significados inferem
estereótipos de gênero. Contudo, a autora destaca que atrelada às questões técnicas, está a

488
Acervo filmografia brasileira. Disponível em: http://cinemateca.org.br/filmografia-brasileira/. Acesso em
16/08/2020.
489
Títulos e descrições das funções em que se desdobram as atividades de artistas e técnicos em espetáculos de
diversões. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-
1979/D82385.htm#:~:text=Regulamenta%20a%20Lei%20n%C2%BA%206.533,que%20lhe%20confere%20o%2
0art. Acesso em 17/08/2020.
1148
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
predominância de homens ocupando cargos de chefia como a direção, tornando-os responsáveis pela
criação das imagens e das representações das mulheres. A autora afirma que aumentar a quantidade
de mulheres nestes cargos de chefia do cinema, não significa que automaticamente as representações
das mulheres se tornarão menos estereotipadas, tampouco se pode falar em um aumento na produção
títulos que abordam a temática feminista, uma vez que as mulheres também podem reproduzir
estereótipos de gênero e machismos, assim como nem todas as mulheres possuem a intenção de fazer
filmes de cunho político-feminista.
Porém, em uma análise de 900 filmes desenvolvida por Cerridwen; Simonton (2009)
verificou-se que mulheres cineastas representam personagens meninas e mulheres com maior
regularidade que os homens cineastas. Também foi observado que filmes com mais mulheres
produtoras, diretoras, roteiristas ou atrizes refletem diretamente na construção das narrativas fílmicas,
uma vez que cenas com violência, com armas e com sangue são menos propensas de aparecer, porém,
assuntos de crítica social ou que abordem questões sobre relações familiares têm mais probabilidade
de serem abordados.
Para Kuhn (1991), a principal meta ao se desenvolver uma análise feminista do cinema está
no ato de tornar visível o invisível, sendo este um exercício analítico o qual pode se desdobrar a partir
da análise de (i) texto ou de (ii) contexto. O primeiro se preocupa em desenvolver uma análise do
conteúdo do texto das narrativas cinematográficas, e o contexto, o qual é o foco desta pesquisa, estuda
os entornos sociais e históricos nos quais determinadas narrativas são produzidas, buscando entender
os tipos de relações sociais, e quais os vínculos existentes entre os modos de produção, de formação
de estruturas e de mecanismos textuais existentes.
Portanto, no Rio Grande do Sul, entre 1995 e 2017, somou-se um total de 96 profissionais
atuantes na direção de filmes que foram lançados comercialmente em salas de exibição. É válido
lembrar que um título pode ter mais que uma pessoa na direção, nesse sentido, deste total, somente
13,5% são mulheres, e 86,5% representa a parcela de homens, conforme aponta a Figura 1.
Para Kuhn (1991) as mulheres sempre tiveram menos oportunidades que os homens na
indústria cinematográfica, e quando se tratam de filmes feitos com o intuito de serem lançados
comercialmente, o espaço para elas se reduz ainda mais. Assim, de acordo com a autora, quando
existem mulheres atuando no cinema, geralmente elas ocupam posições de menos prestígio e
gratificação.

1149
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FIGURA 1

Fonte: Filmes do Rio Grande do Sul lançados comercialmente em salas de exibição entre 1996 e 2017 (2020).

Em uma entrevista490 a diretora Anna Muylaert conta que o preconceito contra mulheres no
audiovisual se manifesta de uma maneira bastante sutil, e ela relata que curta-metragens contam mais
com a participação das mulheres do que produções de orçamento mais alto, porque quando se trata
de aporte monetário elevado, existe menos abertura para as mulheres, sem mencionar que os salários
delas são mais baixo que o de homens. Nesse sentido, estas pequenas atitudes fazem com que as
mulheres fiquem estagnadas em funções de menos reconhecimento no cinema e no audiovisual.
Ao levantar os dados referentes aos filmes lançados comercialmente em salas de exibição
entre 1995 e 2017 no Rio Grande do Sul, somou-se um total de 77 títulos, deste total, somente 13
possuem mulheres diretoras, como aponta o Quadro 2. Logo, percebe-se que dentre esses 13 títulos,
5 foram co-dirigidos com homens. Assim pode-se dizer que Monica Schmiedt dirigiu 2 filmes
documentários: Extremo Sul e Doce Brasil Holandês. Ana Luiza Azevedo dirigiu um longa-metragem
de ficção: Antes que o mundo acabe, e um documentário: Quem é Primavera das Neves. Entretanto,
as outras 9 mulheres (Rejane Zilles, Cintia Langie, Mirella Kruel. Luzimar Batista Stricher, Virginia
Curiá, Tatiana Sager, Melissa Dullius, Cristiane Oliveira e Marilaine Castro da Costa) dirigiram
somente um título cada uma.
Destes 13 filmes, Extremo Sul (Monica Schmiedt; Sylvestre Campe, 2005), foi exibido em 5
salas, teve um público de 13.571 pessoas e obteve uma renda de R$92.149,00. Antes que o mundo
acabe (Ana Luiza Azevedo, 2010), foi exibido em 13 salas, para um público de 32.297 pessoas, e

490
A sociedade e o machismo. Texto da entrevista com Anna Muylaert. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=TjuPBSa4Twk. Acesso em 03/02/2019. Acesso em 21/08/2020.
1150
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
gerou uma renda de R$218.162,12. Doce Brasil holandês (Monica Schmiedt, 2010) foi exibido em 1
sala, para um público de 2.115 pessoas e gerou uma renda de R$10.253,00. Walachai (Rejane Zilles,
2011) foi exibido em 8 salas, para um público de 1.262 pessoas e gerou uma renda de R$11.903,08.
O liberdade (Cintia Langie; Rafael Andreazza, 2012), foi exibido em 1 sala, para um público de 527
pessoas e gerou uma renda de R$3.009,00. O último poema (Mirela Kruel, 2015), foi exibido em 6
salas, para um público de 1.626 pessoas e gerou uma renda de R$15.423,68. Arminda Lopes – A
estética além da dor (Luzimar Batista Stricher, 2016) foi exibido em 1 sala, para um público de 61
pessoas e gerou uma renda de R$568,00. Bruxarias (Virginia Curiá, 2017) foi exibido em 14 salas,
para um público de 699 pessoas e gerou uma renda de R$5.998,23. Central (Cátia Muller, 2017) foi
exibido em 10 salas, para um público de 16.408 pessoas, e obteve renda de R$ 240.713,27. Muito
Romântico, (Melissa Dullius; Gustavo Jahn, 2017) foi exibido em 24 salas, para um público de 1.327
pessoas, e obteve uma renda de R$ 8.875,72. Mulher do pai (Cristiane Oliveira, 2017) foi exibido em
26 salas, para um público de 6.660 pessoas e gerou uma renda de R$80.240,87. Quem é primavera
das neves, (Ana Luiza Azevedo; Jorge Furtado, 2017) foi exibido em 5 salas, para um público de 959
pessoas, e gerou renda de R$ 11.635,26. Todos (Luiz Alberto Cassol; Marilaine Castro da Silva,
2017), foi exibido em 1 sala, para um público de 93 pessoas, e gerou renda de R$ 665,00.

QUADRO 2 – FILMES COM MULHERES DIRETORAS


Ano Título do Filme Gênero Diretora Codireção
1 2005 Extremo Sul Documentário Monica Schmiedt Sylvestre Campe
2 2010 Antes que o mundo acabe Ficção Ana Luiza Azevedo
3 2010 Doce Brasil Holandês Documentário Mônica Schmiedt
4 2011 Walachai Documentário Rejane Zilles
5 2012 O Liberdade Documentário Cintia Langie Rafael Andreazza
6 2015 O último poema Documentário Mirella Kruel
Arminda Lopes: A estética além-
7 2016 Documentário Luzimar Batista Stricher
dor
8 2017 Bruxarias Animação Virginia Curiá
9 2017 Central - o filme Documentário Tatiana Sager

1151
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
10 2017 Muito Romântico Ficção Melissa Dullius Gustavo Jahn
11 2017 Mulher do pai Ficção Cristiane Oliveira
12 2017 Quem é Primavera das Neves Documentário Ana Luiza Azevedo Jorge Furtado
13 2017 Todos Documentário Marilaine Castro da Costa Luiz Alberto Cassol
Fonte: Ancine (2018). Elaboração da Autora (2019)

Em relação ao gênero destes 13 filmes, 7,7% são de animação, 69,2% são documentários e
23,1% são de ficção, conforme aponta a Figura 2. Assim, percebe-se que existem mais mulheres
dirigindo documentários, do que filmes de ficção, e parte-se do pressuposto de que isso ocorre devido
ao fato de as mulheres terem menos acesso ao dinheiro de editais para produzir filmes. Portanto, os
documentários possuem orçamentos mais baixos em comparação com filmes de ficção, tornando-os
mais acessíveis para a inserção de mulheres neste gênero fílmico.

FIGURA 2

Fonte: Filmes do Rio Grande do Sul lançados comercialmente em salas de exibição entre 1996 e 2017 (2020).

Sobre a quantidade de filmes com mulheres diretoras por ano, conforme a Figura 3, nos anos
de 2005, 2010, 2011, 2012, 2015 e 2016 a incidência de filmes com diretoras mantém-se padronizado,
de forma que foram lançados de um a dois títulos cada ano. Em 2017 é quando ocorre o ápice no
lançamento de filmes com mulheres diretoras, totalizando 6 obras, e isso pode ter ocorrido por causa
de ações de mulheres do audiovisual, as quais passaram a reivindicar seus direitos.
É possível observar diversas iniciativas independentes no audiovisual brasileiro
contemporâneo, com o intuito de combater o machismo nesta área. Assim, em 2016 as pautas
feministas estavam em voga, sendo que acabaram interseccionadas com o cinema, tanto que

1152
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
incentivaram o surgimento de cineclubes, coletivos, e festivais com foco nas mulheres do audiovisual
brasileiro (SANTOS; TEDESCO, 2017). Também, a internet viabilizou a organização política das
mulheres, que criaram grupos do Facebook como o Mulheres do Audiovisual Brasil491, e o Mulheres
no Audiovisual Rio Grande do Sul492.

FIGURA 3

Fonte: Filmes do Rio Grande do Sul lançados comercialmente em salas de exibição entre 1996 e 2017 (2020).

Nessa perspectiva, se o ritmo deste gráfico se mantiver pelos próximos anos, é plausível que
a quantidade de mulheres atuantes na direção de filmes que visam lançamento comercial em salas de
exibição siga crescendo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os dados coletados, de um total de 77 títulos lançados comercialmente em


salas de exibição, que foram produzidos ou coproduzidos no Rio Grande do Sul, somente 13 deles
possuem mulheres na direção. Assim, verifica-se que a presença das mulheres é muito baixa em
comparação com os homens, sendo que a porcentagem correspondente é de 13,5% diretoras para
86,5% diretores. Ainda, a atuação das mulheres se dá em grande parte nos filmes documentários
(69,2%), seguido pela ficção (23,1%) e animação (7,7%). No período de estudo desta pesquisa,

491
Grupo do Facebook. Mulheres do Audiovisual Brasil. Disponível em:
https://www.facebook.com/groups/918407701567133. Acesso em 21/08/2020
492
Grupo do Facebook Mulheres do Audiovisual no Rio Grande do Sul. Disponível em:
https://www.facebook.com/groups/mulheresaudiovisual. Acesso em 21/08/2020
1153
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
verifica-se um aumento de mulheres diretoras somente em 2017, sendo este ano um marco importante
para as mulheres do cinema.
Ainda, desta pesquisa, emergiram pontos que interseccionam as mulheres e o cinema no Rio
Grande do Sul que ainda não foram explorados, e isto se evidenciou, sobretudo, durante a busca por
referencial teórico, uma vez que existe uma densa discussão sobre mulheres diretoras, porém, ao
enfocar o olhar para mulheres atuantes em outras áreas do cinema, encontrou-se pouca referência.
Além do que, é extremamente necessário desenvolver pesquisas sobre mulheres no cinema e no
audiovisual as quais abordam questões como raça, etnia, classe social, orientação sexual, trajetória
profissional e escolaridade.
Por fim, conforme Perrot (2007) a história das mulheres têm sido contada em sua maioria por
homens, todavia, elas precisam se firmar como sujeitos ativos de suas narrativas, nesta perspectiva,
este artigo tem como grande propósito dar protagonismo para as mulheres, a fim de reivindicar seu
aporte como sujeitos criativos da produção cultural.

REFERÊNCIAS

KUHN Annette. Cine de mujeres: feminismo y cine. Madrid: Ediciones Cátedra, 1991.

PERROT Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

RIGONI Priscila. Sobre as (in)visibilidades e os silêncios : as mulheres nos processos criativos de


produção cinematográfica no Rio Grande do Sul. Dissertação (mestrado). Escola de Comunicação,
Artes e Design, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Porto Alegre: 2020. Disponível em:
http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9195. Acesso em 16/08/2020

RÍOS LAGARDE, Marcela. El feminismo en mi vida: hitos, claves y topias. Ciudad de Mexico:
Instituto de las mujeres de la Ciudad de México, 2012.

SANTOS, R. Érica; TEDESCO, C. Marina. Iniciativas e ações feministas no audiovisual brasileiro


contemporâneo. Estudos feministas, Florianópolis, 25(3): 530, setembro-dezembro/2017

Sites consultados

ANCINE. Listagem de Filmes brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição.


Disponível em: https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/repositorio/pdf/2102_0.pdf. Acesso
em: 16/08/2020.

1154
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BRASIL. Títulos e descrições das funções em que se desdobram as atividades de artistas e
técnicos em espetáculos de diversões. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-
1979/D82385.htm#:~:text=Regulamenta%20a%20Lei%20n%C2%BA%206.533,que%20lhe%20co
nfere%20o%20art. Acesso em: 17/08/2020.

CINEMATECA. Acervo filmografia brasileira. Disponível em:


http://cinemateca.org.br/filmografia-brasileira/. Acesso em: 16/08/2020.
FACEBOOK. Grupo do Facebook Mulheres do Audiovisual no Rio Grande do Sul. Disponível
em: https://www.facebook.com/groups/mulheresaudiovisual. Acesso em 21/08/2020.

FACEBOOK. Grupo do Facebook. Mulheres do Audiovisual Brasil. Disponível em:


https://www.facebook.com/groups/918407701567133. Acesso em 21/08/2020.

YOUTUBE. A sociedade e o machismo. Texto da entrevista com Anna Muylaert. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=TjuPBSa4Twk. Acesso em 03/02/2019. Acesso em 21/08/2020.
YOUTUBE. E a mulher criou Hollywood. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1a99vUxFefQ. Acesso em: 19/08/2020.

1155
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
“MEUS CACHOS FALAM”: VOZES NEGRAS ENTRE AS MULHERES DA EDUCAÇÃO
DO CAMPO

Aline Cristine dos Santos493


Renata da Silva Nóbrega494
Samilo Takara495

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a inserção de mulheres negras e camponesas no Ensino Superior, a
partir das narrativas das educandas da primeira turma de 2015 de Ciências Humanas e Sociais da Licenciatura em
Educação do Campo (LEdoC) da Universidade Federal de Rondônia, campus Rolim de Moura (UNIR). Ele é resultado
de uma pesquisa-ação que envolveu as estudantes da LEdoC na UNIR por meio de rodas de conversa e outras atividades.
Memoriais autobiográficos de autoria destas estudantes consistiram em importante fonte para a pesquisa. Os relatos
compartilhados por elas indicam que a inserção na LEdoC impactou de maneira positiva a vida dessas mulheres,
fortalecendo e desencadeando processos de emancipação e de descoberta e afirmação de identidades negligenciadas,
como a própria condição de camponesas. Entre as mulheres negras, constatou-se uma intensa ressignificação da negritude,
com os diversos processos de transição capilar e valorização da identidade negra. Por fim, conclui-se que a Educação,
compreendida de forma ampla, emancipa, rompendo relações de dominação, inferiorização e subordinação dessas
mulheres.

Palavras-chave: Educação do Campo; Mulheres; Negritude.

INTRODUÇÃO
A vida é uma roda que rodopia e gira em sentidos contrário e em espiral. Propor uma roda de
conversa é não ter o controle daquilo que nascerá ou se manifestará das trocas de experiências. E
assim se sucedeu. Eu tinha uma remota ideia e intenção do que queria quando fiz o convite para as
colegas de curso participarem de um momento comigo para socializar minhas ideias para a pesquisa
de TCC, ou seja, dizer a elas que após leituras de artigos, vídeos no YouTube, imagens fotográficas
e do meu próprio olhar para as mudanças nos visuais delas mesmas, do meu próprio e de outras
pessoas com as quais tenho convivência, o meu interesse em compreender essa transformação foi
automático e instigante. Minha intenção, a priori, era que elas falassem da transição capilar, mas as
conversas tomaram rumos mais íntimos. Para falar do cabelo, elas contaram muito de suas trajetórias

493
Graduada do curso de Licenciatura em Educação do Campo – Ciências Humanas e Sociais, pela Universidade
Federal de Rondônia, campus de Rolim de Moura(UNIR). Cursita da Especialização de Gênero e Diversidade na
Escola (GDE) pela UNIR. E-mail: alinecsantos11@gmail.com
494
Professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal de Rondônia, campus de
Rolim de Moura (2016). Mestre (2006) e Doutora (2016) em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Bacharel (2005) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail:
renatanobrega@unir.br
495
Professor do Departamento de Educação e da Especialização de Gênero e Diversidade na Escola no Campus
Rolim de Moura e no Mestrado Acadêmico em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação no Campus
José Ribeiro Filho da Universidade Federal de Rondônia. Pós-Doutor em Comunicação, pela Universidade Estadual
de Londrina. Doutor em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: samilo@unir.br
1156
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de vida. O convite foi feito pra todas. Porém nem todas participaram desta primeira roda. Dia 12 de
setembro de 2018, uma quarta-feira, às 18h20min. Roda formada, iniciamos a conversa. Comecei
agradecendo por ficarem após o dia todo de aula e terem ainda resistência para ouvirem, falarem
sobre suas expectativas, renúncias, sonhos, negociações, família, perdas e ganhos ao ingressarem no
nosso curso.
De uma forma espontânea, as meninas começaram a compartilhar suas vidas e trajetórias até
o ingresso na Educação do Campo. Falar da gente causa uma sensibilidade em quem fala e em quem
escuta. E isso foi notório e solidário, pois a cada depoimento ia surgindo risos e lágrimas, íamos nos
identificando nas falas e por várias vezes eram muito nítidas as expressões de como, no 7° período
do curso, ainda somos estranhas/ desconhecidas e, por vezes, alheias às histórias pessoais de cada
uma de nós. O que mais foi dito no término da roda de conversa foi o fato de como essa experiência
proporcionou uma interação, serviu de aula, e que já era para a gente ter realizado inúmeras outras
vezes esse tipo de experiência.
Como pesquisadora, fiquei satisfeita com essa primeira proposta concretizada. Como
acadêmica do mesmo curso e pertencente ao grupo, também me senti e me vi representada nas
dificuldades enfrentadas pelas demais colegas. (DIÁRIO DE CAMPO, 13 de setembro de 2018). Este
relato é um registro de como fui afetada pela primeira roda de conversa que realizei com colegas do
curso de Licenciatura em Educação do Campo, realizada no dia 12 de setembro de 2018, em nossa
sala de aula, após o término das atividades naquela quarta-feira.
No convívio com as colegas da primeira turma de Ciências Humanas e Sociais Licenciatura
em Educação do Campo (LEdoC) da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), não pude
deixar de notar que alguma coisa mudava. Cabelos antes alisados por meio de química, agora se
destacavam pelo volume, pelos cachos e pela liberdade. Turbantes e fitas passaram a colorir nossas
aulas. Seus visuais, cada vez mais naturais, os diversos penteados feitos em suas cabeças, o liso
forçado cedendo lugar às madeixas originais... Cabeças renovadas e encrespadas, literalmente. Vi
outras mulheres, inclusive, eu mesma.
Este sentimento me fez repensar o tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Inicialmente, minha proposta de pesquisa era voltada para a educação e questões raciais, com o
interesse despertado pela disciplina de Estudos Étnico Raciais, cursada no segundo semestre da
LEdoC, em 2016. Meu objetivo era fazer leituras e analisar como as escolas fazem as

1157
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
interpelações quanto à questão racial no seu plano de ensino e, posteriormente, em sala de aula e nos
outros espaços da escola. Para aquele momento específico no qual me encontrava, era o que movia e
aguçava minha primeira proposta de pesquisa.
Fui tentando esboçar a pesquisa, porém somos seres dinâmicxs496, isto fez com que, em outro
movimento de construção pessoal e acadêmica, fosse despertado em mim outro interesse. A
reviravolta veio quando, navegando na internet, deparei-me com um vídeo que trazia no comentário
um trecho da música “Olhos coloridos497”, consagrada na voz de Sandra de Sá: “meu cabelo enrolado
todos querem imitar”. Curiosa que sou, dei um clique e fui gradativamente caindo em mim, com a
mistura complexa de sentimentos... emocionada pela maneira como, sem nunca termos nos
encontrado, as pessoas daquelas imagens e sons falavam comigo com uma amabilidade fraterna
descomunal. Fui arrebatada pelo poder de pertencimento que surgira do encontro do outro com meu
eu, alheio talvez a mim mesma. Algo estava mudando.
Ainda confusa, me perguntava: “Como? Por onde? Vou dar conta?”. Com outras tantas
interrogações nascendo, me peguei chorando, arrepiada. Por fim, senti que era isso: o processo de
transição capilar que é resistência, identidade, representatividade e emancipação da pessoa negrx,
redirecionou meu olhar enquanto pesquisadora. O novo recorte me levou a realizar uma reflexão
sobre a inserção de mulheres negras e camponesas no Ensino Superior, a partir das narrativas das
educandas da primeira turma de Ciências Humanas e Sociais da LEdoC UNIR. Minha suspeita era
de que a inserção no curso e o contato com a concepção de Educação do Campo que defendemos,
pautada por uma perspectiva emancipatória, de alguma forma impactava o processo de
autorreconhecimento e fortalecimento da identidade negra entre nós.

496
Faço a opção de escrever com x ou @ as palavras que se referem tanto a mulheres como a homens, por sentir a
necessidade de que não prevaleça a padronização da língua escrita e falada que sempre está em gênero masculino.
497
A música “Olhos Coloridos”, cantada há décadas por negros e brancos e com uma mensagem sempre atual, já
carrega em si um ato político e expõe em letras e melodia o racismo vivenciado pelos negrxs. Por isso considero
importante trazer um breve contexto sobre ela. Música consagrada na voz esplêndida de Sandra de Sá, foi composta
por Macau, na década de 1970, após ser preso injustamente pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em uma exposição
de escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa. A canção é considerada um símbolo do orgulho negro no Brasil.
O compositor, Osvaldo Rui da Costa, apelidado de Macau por seu amigo Paulo Bagunça, diz que essa canção nasceu
como desabafo pela situação vexatória pela qual passou ao ser visto como bandido tão somente por ser negro e de
bairro pobre. Para saber mais acesse: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/autor-de-olhos-coloridos-
conta-que-musica-surgiu-de-caso-de-racismo.html>. Consultado em 20 de novembro de 2018.

1158
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na construção do itinerário de pesquisa, conheci os desafios das mulheres negras e
camponesas para ingresso e permanência na LEdoC da UNIR. Para isso, mapear o contexto das
políticas afirmativas voltada à população negra e aos povos do campo, que resultaram na criação do
curso de Educação do Campo, tornou-se um passo fundamental. Reformulei, então, meu projeto de
pesquisa como um pressuposto da pesquisa participante, nos termos abordados por Carlos Rodrigues
Brandão (1982), para quem a participação:
[...] não envolve uma atitude do cientista para conhecer melhor a cultura que pesquisa. Ela
determina um compromisso que subordina o próprio projeto científico de pesquisa ao projeto
político dos grupos populares cuja situação de classe, cultura ou história sequer conhecer
porque sequer agir (BRANDÃO, 1982, p. 12).

Identificar, Pertencer. Verbos que melhor exemplificam minha inserção nesta pesquisa, como
já venho afirmando ao longo do texto. A opção pela Pesquisa Ação (THIOLLENT, 1992) se justifica
pela intencionalidade em produzir ações e reações em torno das vivências das mulheres/mulheres
negras no curso de Licenciatura em Educação do Campo.
Para isso, a caminhada metodológica foi a realização de rodas de conversas, em que fui
anotando minhas impressões em um Diário de Campo, adotando a postura de uma pesquisadora
“conversadora no cotidiano”, tal qual a proposta de Peter Spink (2008), juntando pedaços e
fragmentos de conversas com as quais iremos construir as formas de contar essas histórias e,
posteriormente, ampliar as narrativas das sujeitas sociais negras plurais, que advém de uma resistência
permanente pela busca do seu lugar de fala e de sobrevivência. Optei, portanto, em transcrever as
falas de educandas que abordaram seus inúmeros processos ocorridos no acesso ao ensino superior,
sobretudo, os perpassados na transição capilar.
Para construir o perfil das educandas, conheci as suas histórias de vida com o acesso permitido
por elas aos seus memoriais autobiográficos, elaborados no primeiro semestre de 2019 na disciplina
de Fundamentos e Práticas da Educação em Ciências Sociais, em que aprendi sobre as singularidades
de cada uma delas. Foi mantido o anonimato de todas as participantes, logo, os nomes utilizados são
fictícios e fiz a opção de usar nomes de origem africana498.

498
Os nomes utilizados para representar as sujeitas desta pesquisa são de origem africanas. Cada nome tem
significado que, ao meu ver, simbolizam a personalidade de cada uma delas. Para saber seus significados bem como
conhecer outros nomes, acesse: <https://www.geledes.org.br/significados-dos-nomes-proprios-
africanos/?gclid=CjwKCAjwg-DpBRBbEiwAEV1_-L3bPrMDPswD-vx7ccZ3ByXJ57oSPXZ1etaC6cgqc
MBt7iy8nsATyBoCK5IQAvD_BwE>. Acessado dia 23 de junho de 2019.
1159
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Também estabeleci diálogos compartilhados em leituras de livros, artigos, teses, revistas,
números, documentos, jornais, juntamente com fotografias, poemas, músicas, cartas, filmes, partilhas
recorrentes com amigas e conversas realizadas em outros espaços de socialização como grupo de
reflexão, movimento sindical do qual sou militante, enfim, discussões e reflexões em todos os locais
de interação social que pude estar e fazer provocações sobre o assunto.

“MEUS CACHOS FALAM” OU “POR QUE ESCREVO?”


Anteriormente, na apresentação do projeto de pesquisa para o TCC, em novembro de 2018,
meu título propunha uma suspeita possível “se meus cachos falassem...”, no entanto, professorxs da
banca enfatizaram “seus cachos falam!”. A sensação foi visceral e impactante. Chamo por Gayatri C.
Spiva, “Pode um subalterno falar”?, e reconfiguro problematizando, “pode uma subalterna negra ser
ouvida”? De acordo com Gloria Anzaldúa, sim, mesmo porque:

Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que
os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre
você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-
me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca
ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para
dizer não é um monte de merda. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas
tenho um medo maior de não escrever (ANZALDÚA, 1981, p. 232).

Para Spivak (1985, p. 82), “a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser de criar espaços por
meio dos quais os sujeitos subalternos possa falar para que, quando ele ou ela o faça possa ser ouvido
(a)”. Mesmo porque “o que nos valida como seres humanos nos valida como escritoras” e, assim
sendo, “nenhum assunto é trivial” (ANZALDÚA, 1981, p. 233), nem mesmo os cabelos.
No referente ao poder da escrita, incorporo em minhas premissas de mulher negra as
afirmações de Glória Anzaldúa (1981, p. 234): “escrever é perigoso porque temos medo do que a
escrita revela. Porém, neste ato, reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem
poder. E uma mulher com poder é temida”. Dessa forma, o texto de Lélia Gonzalez , intelectual negra
e feminista, rompe e descumpri com a lógica de dominação que nos coloca, negrxs, “na lata de lixo
da sociedade brasileira”, ao afirmar a voz em primeira pessoa:

E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente
porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a

1160
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1983, p.
225).

Nós negrxs, silenciadxs pelo processo histórico, econômico, social e cultural que nos foi
imposto, estamos nos reafirmando enquanto agentes que produzimos conhecimentos e, assim, vamos
construindo narrativas e afirmativas que se contrapõem à lógica de dominação posta pela branquitude
(BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2014,).
A disputa do espaço sociopolítico e de representatividade é o foco de debate e discussões das
novas personagens negras como eu, jovens intelectuais499 que expõem e propõem reflexões, rupturas
e desconstrução do modelo embranquecido com o qual somos maquiadxs. É deste “lugar de fala”,
como discute Djamila Ribeiro (2018), em que me situei e me propus a desenvolver esta pesquisa,
estabelecendo um olhar pautado a partir das vivências comuns que contribuem com a reflexão, a
crítica e a construção de saberes, do lugar onde se está inseridx x sujeitx que fala, sugere, analisa, faz
questionamentos, propõe, descumpri, mas, que, sobretudo, é quem constrói e ressignifica a sua
própria narrativa, o seu próprio discurso.
Como quem nos afaga os sentidos e restitui as forças, na voz de Anzaldúa (1981, p. 232) “o
ato de escrever é um ato de criar alma, é alquimia”. É a busca de um eu, do centro do eu, o qual nós
mulheres de cor somos levadas a pensar como “outro” — o escuro, o feminino. Não começamos a
escrever para reconciliar este outro dentro de nós?” Sim! Reafirmo em êxtase, começamos.

UM OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRESSUPOSTOS DE


EMANCIPAÇÃO
A década de 2000 é um marco no avanço das pautas dos movimentos sociais que pleiteavam
a adoção de ações afirmativas para a superação de desigualdades sociais e históricas que estruturam
as hierarquias sociais no Brasil. O interesse público foi despertado pela polêmica envolvendo a
proposta de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras. As ações afirmativas são políticas de
direito acerca das desigualdades de uma sociedade que é extremamente diversa e, também,

499
“A geração de intelectuais negros que as políticas afirmativas ajudaram a formar”. Matéria de Helena Borges,
publicada no Jornal O Globo, em 10 de novembro de 2018. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/a-
geracao-de-intelectuais-negros-que-as-politicas-afirmativas-ajudaram-formar-23225192>, consultado em 18 de
novembro de 2018.
1161
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
extremamente desigual. As ações afirmativas têm por objetivo igualar o acesso de grupos sociais
discriminados a certas oportunidades sociais. Os estudos de Pinto (1994), Gomes (1999), Silvério
(2002), Passos (2004) e Gomes (2006b) revelam que os Movimentos Negros, no Brasil, enquanto
sujeitos políticos coletivos, têm sido os principais responsáveis pelo reconhecimento do direito à
educação para a população negra.
Neste contexto propício ao acolhimento de propostas que visavam combater desigualdades
estruturais ao acesso à educação, começam a ganhar corpo os primeiros cursos de Licenciatura em
Educação do Campo como uma política pública voltada para o ingresso de camponeses e camponesas
no Ensino Superior. O curso de Licenciatura em Educação do Campo é uma modalidade com perfil
diferenciado das outras licenciaturas. Trata-se de uma ação afirmativa voltada para romper e divergir
com desigualdades históricas que privaram os sujeitxs do campo à Educação, fruto de uma construção
colaborativa com os movimentos sociais:

Importa destacar aqui que essas Licenciaturas têm uma marca constitutiva fundamental, que
é o fato de já terem sido projetadas assumindo uma posição de classe, rompendo tradicionais
paradigmas que afirmam a possibilidade da neutralidade da produção do conhecimento
científico e das políticas educacionais (MOLINA, 2017, p. 590).

A consolidação dos cursos, que somam mais de quarenta em todo país, é fruto de um longo
processo histórico vinculado às lutas dos movimentos sociais do campo em defesa da educação dos
povos do campo. Este acúmulo de forças resultou na concepção de Educação do Campo, que tem
suas bases históricas estreitamente associadas com as experiências de educação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outros movimentos do campo.
O caráter emancipatório da Educação do Campo a que venho me referindo neste artigo
dialoga com o protagonismo dos movimentos sociais do campo na construção da proposta de uma
política educacional voltada para a demanda da Reforma Agrária (FERNANDES, 2012, p. 28).
Portanto, a Educação do Campo vai além de uma proposição de políticas públicas específicas e se
pauta por uma ação intencional de formação humana emancipatória, fundamentada na construção das
práticas educativas alternativas.
Para Edgar Kolling, Nery e Molina (1999), do MST, a Educação do Campo “deve ser
educação no sentido amplo de processo de formação humana que constrói referências culturais
e políticas para a intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade, visando a uma
1162
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
humanidade mais plena e feliz” (KOLLING; NERY E MOLINA, 1999, p. 23). Kolling, Nery e
Molina (1999, p. 23) prossegue, atribuindo à Educação do Campo a tarefa de produzir “focos de
resistência e de recriação da cultura do campo”, dentre as quais se destaca o reconhecimento do
campesinato negro e das mulheres camponesas.
A Educação do Campo tem também como base a perspectiva da Educação Popular, que pauta
o trabalho educativo, tanto na escola, quanto nos espaços não formais, visando formar sujeitos que
interfiram para transformar a realidade (PALUDO, 2012), que se constrói na busca de uma educação
que se relacione diretamente com os contextos históricos dos camponeses e camponesas, nossos
modos de produção, vida e cultura. Influenciada por estes princípios, a Educação do Campo é uma
proposta territorializada na vida cotidiana dos sujeitos do campo.
Inspirados nessas reflexões, os cursos de Licenciatura em Educação do Campo possuem uma
proposta curricular alternativa, com formação por grandes áreas e componentes curriculares
integrados, baseada na Pedagogia da Alternância, tendo por objetivo “superar a fragmentação
tradicional que dá centralidade à forma disciplinar e incidir no modo de produção do conhecimento
na universidade e na escola do campo, tendo em vista a compreensão da totalidade e da complexidade
dos processos encontrados na realidade” (MOLINA; HAGE, 2016, p. 806).
Orientada por estas perspectivas, a proposta da LEdoC, enquanto curso, oferece e viabiliza a
nós, estudantes, oportunidade de conhecer leituras que nos levam a refletir, construir e reconstruir
outras percepções de como nos enxergamos enquanto sujeitxs históricxs e sociais nos espaços que
estamos inseridxs e participantes. Mais do que a leitura de livros, durante a pesquisa, noto que a
vivência na Universidade nos proporcionou a possibilidade de elaborar a leitura de mundo de que fala
Paulo Freire (2008) “ler o mundo é apreender a linguagem do mundo”.
Para além dos conhecimentos que tivemos acesso, ao longo de nossa caminhada no curso,
chamo a atenção para as intensas trocas de experiências, dentro e fora da sala de aula e para além da
universidade.
Pessoas com trajetórias distintas e incrivelmente semelhantes que se encontraram, nesses
últimos quatro anos de curso, e cultivaram gostosas memórias. As conversas, que são realizadas nos
debates acirrados das socializações em sala de aula, não divergem das conversas realizadas nas noites
culturais ou nas mesas de bar do “tiozinho”, ou seja, “são conversas de conversas” (SPINK,
2008), que construíram os afetos recíprocos e os unilaterais. Ser solidário a quem soube tocar o

1163
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
coração através do “além do próprio gesto”, dar “salgados” com sabor de “permaneçam aqui, realizem
seus sonhos” (DIÁRIO DE CAMPO, junho de 2019).
Nossa primeira viagem se deu exatamente em um encontro que propunha manter a memória
acesa. Distrito de Nazaré se encarregou de tecer um vínculo com o pertencimento de causa, “sou da
beira eu sou”. Corre o chapéu aqui e acolá, pois têm bebês gestando e o presente da turma é garantido.
Realmente, o sangue somente nos acusa pertencer à mesma linhagem genética, mas o que nos tornam
familiares são as lutas e resistências que nos agregam numa mesma fraternidade. E, assim, amizades
foram feitas, desfeitas e refeitas, caminhando em simbiose, ao longo dos semestres. Foram intensas
reciprocidades de experiências proporcionadas pelo encontro no curso e que, a meu ver, todos esses
momentos que compartilhamos juntxs contribuíram para a construção do que bell hooks chama de
“comunidade pedagógica” (HOOKS, 2013).

EDUCANDAS DA LEDOC DA UNIR-RO


A turma 2015 de Ciências Humanas e Sociais da LEdoC UNIR encerrou o oitavo período
sendo composta por nove homens e vinte e sete mulheres. Muitas desistiram do curso, ao longo dos
semestres, devido às dificuldades financeiras, acúmulos de responsabilidades familiares, pressões
matrimoniais e no local de trabalho, entre outras sobrecargas ditas femininas.
As mulheres da nossa turma se reafirmam como protagonistas de suas realidades e, ao
ingressarem no ensino superior, trazem suas marcas na pele e possuem “a estranha mania de ter fé na
vida”, como canta Milton Nascimento. É mãe que estuda com a filha e filha que deixa sua filha com
os tios e avó para estudar também. Tem quem foi expulsa de sua casa pela barragem. Mulheres que
eram casadas e que no decorrer do curso, descobriram traições, que se identificaram em
relacionamentos abusivos, que sequestravam suas subjetividades, as roubando delas mesmas.
Mulheres que criaram filhxs sozinhas e que, agora depois de idade avançada, conseguem dedicar-se
aos estudos. Mulheres filhas, mães, avós… Mulheres de fibra e ancas fortes! Mulheres que ousaram
cruzar as fronteiras excludentes e se propuseram percorrer o caminho, nitidamente branco e
masculino, do conhecimento epistemológico.
Temos em comum trajetórias familiares que são marcadas pela luta de conquista de terra de
diferentes formas. São vidas de sem-terra, meeiras, comodatárias que vieram, neste fluxo
migratório oriundo, majoritariamente, do sul e sudeste do país para a região amazônica,

1164
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
almejando um pedaço de terra e buscando vida digna. Mudaram-se de seus estados de origens e
vieram tentar a sorte em Rondônia com seus familiares. Outras que nascemos aqui, com famílias que
conseguiram terra.
Teve quem passou fome quando era criança.

Vivíamos uma vida abaixo da linha da miséria. Sem perspectivas nenhuma de vida. Não via
em momento algum a felicidade nos olhos de minha mãe, pois, como sempre, é a mulher quem
mais sofre em ver os filhos passando por necessidades, ainda mais a comida que não tinha em
abundância, tinha dia que a gente olhava para minha mãe, queria dizer, quero mais comida,
mas os seus olhos logo diziam que não tinha mais comida na panela, a gente só corria os olhos
no fogão e guardava o prato em uma gamela de madeira (AISHA, 2019).

Algumas passaram anos em acampamentos, antes de serem assentadas: “Para irmos acampar
ficamos acampado mais ou menos uns três anos e fomos para o município primeiro para pré-
assentamento e logo passamos para assentamento” (FAIZAH, 2019). Outras nasceram em
acampamentos ou passaram a infância em barracos de lona preta, com a família e, adultas, voltaram
a acampar:

Não lembro muito de quanto tempo ficamos lá. Lembro de brincar muito com meus primos,
meus irmãos, de catar frutas... e lembro que, de repente, estávamos no acampamento, de um
dia acordar cercada de ‘estranhos’. No acampamento, conheci muitas pessoas que já nem
lembro o nome. Outras que ainda hoje mantemos contato e amizade. Das brincadeiras, as
mais marcantes eram amarelinha, pedrinha, carrinho… Agora adulta, sigo acampada”
(GZIFA, 2019).

Para muitas delas, a luta pela terra se confundiu com a luta pela vida. Antes de qualquer coisa,
foi uma luta por sobrevivência:

Além da pobreza e a fome que atingia a família, o descontrole do meu pai pelos seus ridículos
ciúmes era insuportável e já havia esmurrado a minha mãe com teoria e prática da violência
doméstica. Assim, quando minha mãe se viu na terceira gestação, que já era eu, passando
por todo aquele segmento do patriarcado que conviveu nas mãos de meu avô, se sentiu na
liberdade da pressão psicológica de não querer filhos naquele momento, quando tomou
remédios abortivos naturais, mas parece que meu destino já estava selado! Três meses se
passaram e minha mãe foi me carregando e se acostumando com a ideia de ser novamente
comprometida com mais um filho (ESHE, 2019).

Teve quem descobriu o racismo na infância:

1165
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Sofria na infância sobre ser quem eu era, uma criança negra. Não me senti à vontade para
conversar com meus pais sobre isso, porque é difícil para uma criança preta lidar com a
exclusão dos amigos, mesmo os amigos também sendo preto. De como é difícil para uma
criança perceber que a opção de amizade que tinha era sempre os de pele clara e que sofria
muito a falta de representatividade (GZIFA, 2019).

Teve quem se casou cedo para fugir da opressão familiar. Outras que apanharam de seus
maridos ou saíram de uma relação abusiva e se depararam, de novo, em mais um ciclo de violência.
Para todas nós, estar na Universidade não foi fácil. Batalhamos muito para continuar no curso.
Conciliar estudos, infortúnios familiares, pressão no trabalho e nos relacionamentos, militância nos
movimentos, precariedades financeiras, enfim, “a força de uma mulher sobre a opressão tripla ou
quádrupla” (ANZALDÚA, 1981, p. 234). Tornaram-se nitidamente perceptíveis nas caixas de
remédios fármacos, ou nos florais homeopáticos, a fragilidade e debilitação da saúde física,
emocional, psicológica.
O que pode levar uma camponesa a enxergar no ingresso do curso possibilidades e
perspectivas de melhoria na vida? De identificação? De luta de classes? De ampliar visões de mundo?
Segundo as falas da roda de conversa, “é saber que este espaço (universidade) é meu espaço. Eu
sempre quis estudar, isso pra mim é mais que um sonho. Uma realização pessoal. É mais realização
pessoal do que profissional, porque uma coisa que eu sempre quis foi estudar” (FAIZAH, 2019).
Se o sistema que está posto delimita as vozes de nós mulheres, negras e camponesas e de
algumas militantes de movimentos sociais do campo, dificulta o nosso acesso aos espaços de
discussões e de poder, encaramos os desafios que a graduação trouxe e ousamos romper com a saga
da interdição à escola que marca nossas histórias familiares.
Como afirma uma de nós em seu memorial: “éramos todxs analfabetxs, por achar que aquela
vida era natural, e que a miséria era prometida por Deus” (ASHIA, Memorial Autobiográfico, 2019).
Suas vozes podem e devem ecoar seus dilemas:

Em 2015, surgiu a oportunidade de fazer a Licenciatura em Educação do Campo e eu


consegui ingressar na primeira turma. O caminho cheio de percalços, momentos em que
pensei seriamente que não ia conseguir, que era melhor desistir... mas meus motivos para
continuar sempre foram maiores e mais fortes que aqueles pensamentos que insistiam para
eu desistir. Minha filha foi a grande responsável, admito (GZIFA, Memorial Autobiográfico,
2019).

1166
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O acesso ao curso instiga em nós o compromisso com a geração seguinte, o apoio entre
mulheres diante do sentimento constante de desistir pelas dificuldades, mesmo que essa mulher seja
apenas uma criança. Muitas de nós fomos não apenas as primeiras mulheres da família a estudar, mas
também as primeiras de nossas famílias a cursar a universidade, e, mais ainda, a universidade pública:

Bom! Eu sinceramente não tinha ideia de entrar na universidade. Isso não passava pela minha
cabeça, porque eu achava que estava muito tempo fora da sala de aula. Eis que um dos meus
irmãos, que é professor, falou que ia ter um vestibular aí disse: “tenta para ver se você
consegue”. Eu fiz na esperança de que eu poderia ingressar. Depois de tanto tempo fora da
sala de aula eu não tinha esperança de conseguir passar no vestibular, aí até que eu fiquei
sabendo que eu tinha passado através do meu irmão também. Porque eu não tinha acesso à
internet, o único acesso que eu tinha estava sendo a televisão. E agora? Como vou fazer para
começar? Parecia que eu estava entrando no primário. Começando do zero de novo
(ASHANTI, Memorial Autobiográfico, 2019).

No relevante, das mulheres casadas ocupando espaços públicos, as desconfianças descabidas


e arbitrárias, o controle dos corpos e da sexualidade por aversão à liberdade de quando estão fora do
domínio masculino, de seu olhar controlador, coloca-nos mais uma vez em papéis sociais
naturalizados, ou seja, o de ser esposa, mãe, do lar, apenas. Fugir a isto é ser carimbada com os
estigmas reprovativos e depreciativos.
Entretanto, tem mulheres que estão, como ensina hooks (2013), “transgredindo” os conceitos
interpostos, rompendo amarras e fazendo de seus relacionamentos o lugar propício para novas formas
de viver o casamento, e, assim, vão recebendo apoio do marido, apesar de toda pressão social em
cima do casal. “Somos casados há quatro anos, tentando a todo momento em conjunto quebrar em
nossa casa as regras impostas pelo patriarcado, mas não é algo fácil nem para ele e nem para mim,
mas estamos sempre desconstruindo e reconstruindo os nossos costumes” (IRUWA, 2019).
Todas as dificuldades presentes nos percursos da vida das camponesas da LEdoC UNIR se
relacionam a imposições sociais, como o patriarcado, e inferiorização da pessoa negra, que marcam
a cultura e sobrevivência no campo. Inspirados em Paulo Freire (1981), Farias e Faleiros discutiram
como a presença das mulheres camponesas na LEdoC está promovendo o rompimento do
silenciamento e o estabelecimento de uma relação dialógica, que faz com que o sujeito se reconheça
com agente de ação, capaz de uma reflexão crítica sobre si mesmo, percebendo-se como está sendo
inserido no mundo. Para os autores, “a educação é um processo de recriação e a inserção na

1167
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
universidade mostra-se fundamental para instaurar novas relações, que tencionam esse silenciamento
e as colocam em um movimento dialógico” (FARIAS; FALEIRO, 2017, p. 841).
Construído o relato geral, apresento agora algumas reflexões a partir das narrativas de nós,
mulheres negras da turma, que entoamos vozes nos corredores da Universidade e nas estradas da vida.

HISTÓRIAS DE HISTÓRIAS QUE ULTRAPASSAM AS FRONTEIRAS E SE


RESSIGNIFICAM
A presença dxs negrxs na universidade ainda causa um desconforto aos olhos de quem a
considera lugar seleto e naturalmente de ricxs e brancxs. Deste modo, segundo bell hooks (2013, p.
181) “a mulher negra tem aguda consciência da presença de seu corpo nesses ambientes que, em certo
sentido, está em conflito com a estrutura existente por ser uma mulher negra, quer professora, quer
aluna”. Por conseguinte, hooks reforça que “se você quiser permanecer ali, precisa, em certo sentido,
lembrar de si mesma - porque lembrar - é sempre ver a si mesma como corpo num sistema que não
se acostumou com a sua presença ou com sua dimensão física”( HOOKS, 2013, p. 181) . Não se
acostumaram mesmo.
Na UNIR, das 27 mulheres que estão concluindo o curso de Educação do Campo, 21 de nós
nos reconhecemos como mulheres negras. Para Angela Davis (2016, p. 232), “as mulheres negras
dificilmente poderiam lutar por fraqueza; elas tiveram de se tornar fortes, porque sua família e sua
comunidade precisavam de suas forças para sobreviver”. Somos corpos incomodantes. “Bizarras”,
como diz uma colega. Cabelos e cabeças rebeldes, transgressores. Somos corpos que fazem uma
epifania de provocações ao andar, falar, fazer.
A partir dessas expressões corporais, a transição capilar é um dos elementos mais
perceptíveis, é linguagem visual que extrapola as revoluções ocorridas em nosso íntimo. “Essa mulher
negra que assume o seu cabelo natural sai da situação de dependência e assume definitivamente o seu
papel de negra, mostrando a sua negritude em seu corpo, fazendo do cabelo a parte de seu corpo que
transpira negritude” (CARVALHO, 2015, p. 32).
“O que se pensa dentro da cabeça é mais importante do que se passa fora? Dar voz aos cabelos
é uma bobagem?” Não, até porque, de acordo com Djaimilia Pereira de Almeida (2017, p. 143),
“escrever parece-se com pentear uma cabeleira em descanso”. Admite-se que o trabalho teórico
feminista é considerado academicamente legítimo.

1168
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em maior número que em outra época, as acadêmicas negras têm feito trabalhos e, aos poucos,
mais negras se dedicam à produção acadêmica feminista (HOOKS, 2013). É notório a ocupação do
“lugar de fala” que surgiu: “ao entrar no curso de Licenciatura em Educação do Campo, me tornei
uma pessoa mais política em debater com outras pessoas, caso eu não concordo com a ideia, coisa
que eu não fazia antes de entrar no curso” (CHIOMA, Memorial bibliográfico, 2019).
Percebi, com o tempo partilhado, que nós, mulheres negras, não somos tímidas, mas que nos
sentimos inibidas de falar. Na trajetória de constituição da mulher enquanto sujeita, há uma
construção de inferiorização das mesmas, fundado pelo sistema de relações pautado na hierarquização
e em relações de poder que, nos colocam, mulheres negras, historicamente, como subalternas.
Para hooks (2005), “dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que
surge o costume entre xs negrxs de alisarmos os nossos cabelos” é entendido como uma negação do
ser negrx. De acordo com ela, “essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco
dominante e, com frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser
somado a uma baixa autoestima” (HOOKS, 2005, s.p.).
Dialogando com essa perspectiva de autoestima associada às relações, discutindo a educação
emancipadora, Freire (1987) defende que “é preciso primeiro que os que se encontram negados no
direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto
desumanizante continue”. Depois de termos possibilidades de acessar pensadores e personalidades
negrxs, seja pelas mídias sociais ou por leituras propostas pela graduação, ocorreu a ressignificação
de como nos enxergávamos anteriormente:

[...] gosto de dizer que sempre gosto de ser “bizarra”, diferentes dos outros, agora depois de
estar na LEdoC percebo que falo isso, pois nunca tive dentro do padrão que a sociedade nos
impõe, com meus traços de menina e agora mulher “preta” sempre tive em lugares que não
tinha outras pessoas para servir de espelho para mim[...] as pessoas ainda têm dificuldade de
afirmar que você é negrx, sempre fica tentando te embranquecer com frases do tipo “você
não é tão morena assim, você é morena clara” , como se isso existe (GINA, 2019).

A situação de nós, mulheres negras, na atualidade, manifesta um prolongamento da sua


realidade vivida no período de escravização com poucas mudanças, pois ela continua em último lugar
na escala social e é aquela que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e racista do país
(CARVALHO, 2015, p. 21 apud SILVA, 2003). Ser mulher na sociedade brasileira tem um peso;
ser mulher negra na sociedade brasileira tem um peso redobrado.
1169
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com Carvalho (2015), assumir o cabelo crespo é contrapor uma quebra ao
preconceito quanto ao cabelo, mas “requer estar preparada para luta”, haja visto que “ao assumir o
cabelo crespo, a mulher negra também enfrenta as penalidades do racismo presente em nossa
sociedade. O cabelo crespo para a sociedade brasileira ainda é sinônimo de feiura, essa ideia calcada
na dominação de uma estética branca” (CARVALHO, 2015, p. 32-33). Entender que aqueles apelidos
ofensivos, por exemplo, cabelo de “bombril”, “fuá”, e outros, não eram apenas brincadeira, mas uma
forma que a sociedade encontra para repreender o que somos. “Vivemos numa sociedade padronizada
onde mulheres bonitas têm que ter o cabelo liso” (CHIOMA, Memorial Autobiográfico, 2019).
O cabelo crespo da mulher negra, após ultrapassar as fronteiras e romper com o lugar de
subalternidade, permite que ela adentre o universo de empoderamento pessoal e de coletividade,
mesmo porque “se o discurso do subalterno é obliterado, a mulher subalterna se encontra numa
posição ainda mais periférica. Ou seja, “se o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o
sujeito subalterno feminino está mais profundamente na obscuridade” (SPIVAK, 1985, p. 28).

Meu cabelo até os 18 anos nunca viu química e sempre foi cortado curto e eu gostava disso,
por mais que nunca estive dentro dos padrões de beleza da sociedade, pois sou negra e ainda
gordinha (excesso de gostosura kkkk) na escola nunca fui considerada a menina mais bonita
da turma.Com dezoito anos resolvi fazer relaxamentos no meu cabelo, nem tanto porque eu
queria, mas porque as pessoas me falavam para mudar meus cabelos, como eu nunca gostei
de cabelos alisados, resolvi fazer relaxamento para soltar os cachos, então a mulher do salão
me recomendou a selagem sem química, se é que isso existe. Achava isso uma tortura aquele
secador e chapinhas quente, acho que eu fiz apenas umas três vezes, então deixei o meu
cabelo volta às suas raízes, como não fiquei nem um ano colocando química neles ele voltou
muito rápido, pois até hoje tem pessoas que nem se lembra de que eu já coloquei química nos
cabelos (GINA, Memorial bibliográfico, 2019).

Assim sendo, “o cabelo torna-se identidade, referencial cultural, resistência, por isso nós
mulheres negras ao conservarem seus cabelos crespos estão definindo a sua pertença, estão
referenciando a que grupo social pertencem” (CARVALHO, 2015 p. 33). Essa foi a maneira que nós,
negrxs, encontramos para dar suporte à luta por nossos direitos enquanto sujeitxs plenxs de uma
ancestralidade cultural, como ratifica uma de nós “isso me faz ter mais força de afirmar sou mulher
negra e isso não me faz ser inferior a ninguém” (GINA, Memorial Autobiográfico, 2019).
Teve colega que afirmou a mudança que tem sentido desde que entrou no curso. Uma estranha
em sua própria casa. Um casamento desfeito. Uma outra mulher nascendo: “Eu tô em casa e ao

1170
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mesmo tempo me sentindo que estou fora. Eu fiquei um pouco fora de si, mas aos pouquinhos fui me
reencontrando me valorizando” (ASHANTI, 2019).

A representatividade era o que me faltava para eu entender que não precisamos seguir padrão
para ser linda, precisamos apenas nos sentir identificada com o nosso interior, não devemos
ficar pensando se as pessoas a nossa volta vai gostar, e sim se estamos gostando, eu estou
gostando cada dia mais deste novo eu (CHIOMA, 2019).

Diante dessas narrativas, considero que nossa inserção na LEdoC tem contribuído, de
diferentes formas e níveis, para o processo de autoafirmação das identidades de nós, mulheres negras
e camponesas que estudamos ali. Esse processo que é pessoal, íntimo e ao mesmo tempo coletivo,
tem nos impactado, assim como temos sido impactantes na Universidade a ponto de ressignificar não
apenas as relações raciais e o racismo que experimentamos, mas que nos coloca em “lugar de fala”,
de confronto de ideias, reformulando a lógica de que nós subalternxs não podemos falar. Agora
falamos e, sobretudo, sem pedir licença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo o campo como espaço que está em pleno movimento epistemológico, ontológico e
educativo (CALDART, 2008; 2009), pois nós, somos sujeitxs que possuímos uma cor de pele, textura
de cabelo, traços fenótipos que marcam suas relações cotidianas e sociais. A inserção na LEdoC,
possibilitou que nós, mulheres negras e camponesas, ocupássemos, outros papéis sociais e
começássemos a ressignificar nosso lugar como sujeitas, a partir da valorização dos nossos saberes e
de nossas realidades, agregando criticidade, emancipação, que rompe relações de subordinação,
dominação e inferiorização de nós mulheres, principalmente a mulher negra no específico do
estereótipo do cabelo.
Estou me referindo a nós enquanto sujeitxs negrxs do campo, que dentro desses espaços
elaboram “[...] formas específicas de ser e existir enquanto camponês e negro” (FARIAS; FALEIRO,
2017 apud GUSMÃO, 1990, p.26). Desta forma, ratifico que estamos construindo e reconstruindo
sujeitxs que possuímos vivências, historicidade, ancestralidade e cultura marcada pelas questões de
ser camponês e camponesa e ser negrx, haja vista que essa dupla identidade transpassam nossas
relações com o mundo e estruturam nossas vidas cotidianas.

1171
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A Educação do Campo, enquanto curso de Educação Superior com o compromisso social e
político de formar educadoras do campo com a capacidade de atuar a partir de uma consciência e em
prol da classe trabalhadora do campo (MOLINA, 2015), também caminha em direção da apropriação
de conhecimento, “do lugar de fala” e superação de desigualdades sociais, possibilitando concretizar
desejos e sonhos. Assim, a partir das narrativas acima citadas, nota-se que a luta social de resistência
por acesso à educação produz e reproduz em nós, sujeitas camponesas, um movimento de ruptura
maior do que nós mesmas, com uma dinâmica que pressupõe e projeta dimensões relacionadas às
realidades pessoais, animando nossos valores, reformulando nossas posturas, visões de mundo,
tradições, costumes.
Portanto, tratar as questões das relações étnico-raciais e as desigualdades raciais são
fundamentais para consolidar uma Educação do Campo potente, para realizar movimentos contra-
hegemônicos nas relações de desigualdade e para consolidar uma Educação Libertadora, intercultural,
transformadora das relações de opressão (FREIRE,1975).
Comecei querendo saber do impacto do curso, ou seja, do acesso à Universidade na vida de
nós mulheres camponesas e negras. Mas o que percebi, gestei e pari foram as reações de incômodo e
desconforto que estão nítidos nas expressões e falas do corpo técnico e administrativo, do
professorado dos outros departamentos e do nosso, das pessoas que, ao visitarem o campus, se
deparam com bonés e bandeiras de movimentos sociais, com frases e rostos de personalidades
revolucionárias comunistas em nossas roupas, com os nossos pés descalços pelos corredores, com
nossas vozes e gargalhadas altas. Nós provocamos o desassossego, deixamos inquietas as demais
turmas que compõem o campus, principalmente as turmas de ciências agrárias. É visível que, para
elxs, nosso lugar não é ali.
Estamos ali rompendo com a lógica e normatização de produção de conhecimento, quebrando
as cercas do latifúndio do saber. Sendo corpos que perturbam as paredes higienizadas da Universidade
como nosso jeito de falar, de comer, andar, ou seja, nosso jeito de ser camponês e camponesas,
beradeirxs, negrxs, pobres neste espaço privilegiado de construção de conhecimento. Isso faz com
que recebamos desqualificações de professerxs, que dizem que não sabemos escrever, ler, falar. Que
nos ridicularizam como “jeca tatu”.
Nossa presença inseriu uma fratura na rotina normal da Universidade, das epistemologias
postas de modo que houve um empoderamento e autoconhecimento a partir de duas vias: o

1172
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
reconhecimento cultural e do saber do campo, do qual nós mulheres fazemos parte, e o rompimento
das lógicas opressoras que estão incorporadas nessa cultura de que camponesas e camponeses, pobres
e negrxs, não podem ocupar a universidade. Esta normativa estrutura da Universidade teve que nos
engolir. Como diz a canção popular “viemos pra incomodar”.

REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Gloria. "Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro
Mundo" (trad. Édna de Marco). Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000
.
ARROYO, Miguel. O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In MOLL, Jaqueline et al.
Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto
Alegre: Penso, 2012

BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002.

BRANDÃO, Carlos (org.). Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense, 1981.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Primeiros
Passos).

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Plano


Nacional de Educação PNE 2014-2024: linha de base. Brasília, DF: INEP, 2015.

BRASIL. Decreto nº 7.352 de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de educação do


campo e Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Diário Oficial da União
- Seção 1 - 5/11/2010, Página 1 . Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2010/decreto-7352-4-novembro-2010-609343-
publicacaooriginal-130614-pe.html. Acesso em: agosto de mai. 2019.

BRASIL. Secretaria de Ensino Superior (SESu). Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica


(Setec). Secretaria de Educação Continuada Alfabetização Diversidade eEducação em Revista|Belo
Horizonte|v.32|n.04|p. 147-174 |Outubro-Dezembro 2016.

Inclusão (Secadi). Edital n. 2, de 31 de agosto de 2012. Chamada Pública para seleção de


Instituições Federais de Educação Superior – IFES e de Institutos Federais de Educação, Ciência
e Tecnologia – IFET, para criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo, na modalidade
presencial. Brasília, 2012.

CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de


uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS;

1173
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
TAKANO CIDADANIA (orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003.

CALDART. R. S. Sobre Educação do Campo. In: SANTOS, C. A. (org.) Por uma educação do
campo: Campo – políticas públicas – Educação. 7. Ed. Brasília: NEAD especial, 2008, p.
67-86.

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo: Notas para uma análise de percurso. Trab. Educ.
Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n.1, p.35-64, mar./jun. 2009.

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo. In: Dicionário da Educação do Campo.


CALDART, Roseli Salete, PEREIRA, Isabel Brasil, ALENTEJANO, Paulo, FRIGOTTO,
Gaudêncio. (Orgs). São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 257- 265.

CARVALHO, Eliane Paula de. A Identidade da mulher negra através do cabelo. 2015. 58 f.
Monografia (para a obtenção do título de Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais)
- apresentada à Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015, p. 32-32, 56.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo,
2016.

DIÁRIO DE CAMPO. Produzido por Aline Cristine dos Santos. Universidade Federal de Rondônia,
Câmpus Rolim de Moura, 2018-2019.

FARIAS, M. N.; FALEIRO, W. Educação do Campo e as Relações Étnico-Raciais: olhares para o


campesinato negro. Revista de geografia agrária, v.12,n.26, p.289-312, abr., 2017.

FARIAS, M. N.; FALEIRO, W. Inclusão de mulheres camponesas na universidade: entre sonhos,


desafios e lutas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 43, n. 3, p. 833-846, jul./set., 2017.

FERNANDES, Bernardo. M. Reforma Agrária e educação do campo no governo Lula. Revista


Campo Território, v.7, n.14, p. 1-23, agosto de 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. RJ: Paz e Terra, 1975.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. SP: Paz e
Terra, 1997.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 49ª ed. São Paulo:
Cortez, 2008.

GOMES, Nilma Lino. Movimento negro, saberes e a construção de um projeto educativo


emancipatório. Coimbra, 2006b. Mimeo.

1174
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: SILVA, L. A. et al. Movimentos
sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p. 223-
244, 1983.

GUSMÃO, Neusa Maria Mendes. A dimensão política da cultura negra no campo: uma luta,
muitas lutas. Revista Resgate, 1990. FANON, Franz, Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Renato
da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

hooks, bell. Alisando nosso cabelo. Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y artista de Cuba,
jan-fev. 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.

__________ Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade/ bell hooks:


Tradução de Marcelo Brandão Cipolla - São Paulo. Editora WMF Martins Fontes,2013.

KOLLING, E.; NERY, Ir.; MOLINA, M..(orgs). Por Uma Educação Básica do Campo. Cad. 1,
Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1999.

MELO, Lígia Albuquerque. Relações de gênero na agricultura familiar: o caso do PRONAF em


Afogados da Ingazera, PE, 2003. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Recife, 2003.

MOLINA, M. C. Educação do Campo e Pesquisa: questões para reflexão. Brasília:


Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.

______. Análises de práticas contra-hegemônicas na formação de educadores: reflexões a partir


do Curso de Licenciatura em Educação do Campo. In: SOUZA, J.V. (Org.). O método dialético
na pesquisa em educação. Campinas: Autores Associados, 2014.

______. Expansão das Licenciaturas em Educação do Campo: desafios e potencialidades. Educar


em Revista, Curitiba, v. 55, p. 145-166, 2015.

_________. Contribuições das licenciaturas em educação do campo para as políticas de formação de


educadores. Educ. Soc., Campinas , v. 38, n. 140, p. 587-609, July 2017 .

MOLINA, M.C.; HAGE, S. M. Política de formação de educadores do campo no contexto da


expansão da educação superior. Educação em Questão, Natal, v. 51, n. 37, p. 121-146, jan./abr.
2015.

MOLINA, M.C.; HAGE, S. M. Riscos e potencialidades na expansão dos cursos de Licenciatura em


Educação do Campo. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 32, n. 3, p.
805-828, set./dez. 2016.

MOLINA, M.C.; MONTENEGRO, J.L.A.; OLIVEIRA, L.L.N.A. Das desigualdades aos


direitos: a exigência de políticas afirmativas para a promoção da equidade educacional no campo.
Raízes, Campina Grande, v. 28, ns. 1 e 2, jan.-dez. 2009; v. 29, n. 1, p. 174-190, jan.-jun. 2010.
1175
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MOLINA, M.C.; SÁ, L.M. A Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília:
estratégias político-pedagógicas na formação de educadores do campo. In:
MOLINA, M.C.; SÁ, L.M. (Orgs.). Registros e reflexões a partir das experiências-piloto (UFMG,
UnB, UFBA e UFS). Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 35-62.

OLIVEIRA, F. S.; ARAÚJO, L. M.; SILVA, L. L.; CRISPIM, Z. M.; LUCINDO, V. B. D. B.;
OLIVEIRA, L. N. Violência doméstica e sexual contra a mulher: revisão integrativa.
HOLOS. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article
/download/1903/pdf. Acesso em: agosto de 2019.

PALUDO, Conceição. Educação Popular. In: CALDART, Roseli S.; et al (Orgs.). Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 280-285.

PASSOS, Joana Célia dos. As práticas educativas do Movimento Negro e a Educação


de Jovens e Adultos. Revista de Educação de Jovens e Adultos, São Paulo, n. 18,
set. 2004, p. 19-28. Alfabetização e cidadania.

PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. 1994.

Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento; Justificando, 2017.
112p.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude
paulistana. Psicologia Social [online]. 2014, vol.26, n.1, pp.83-94. ISSN 1807-0310.Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000100010.>

SILVA. Ana Célia da. Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático. Salvador:
EDUFBA, 2003.

SILVÉRIO, Valter Roberto. Ação afirmativa e o combate do racismo institucional no


Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 219-246, nov. 2002.
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: As vicissitudes da Identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: v.4, Ed. Graal, 1983.

SPINK, Peter Kevin. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicol. Soc. [online]. 2008, vol.20,
n.spe, pp.70-77. ISSN 1807-0310. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
71822008000400010. Acesso: agosto de 2019.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2010.
THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo, Cortez, 1992.
1176
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A MENSTRUAÇÃO SOB O OLHAR MÉDICO OITOCENTISTA

Jéssica Rodrigues Vieira500

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as representações da menstruação no discurso médico oitocentista. A
ressignificação e valorização da mulher – enquanto mãe e esposa – ocorreu em um contexto de institucionalização da
medicina científica, a qual esteve preocupada em garantir o progresso do país através da saúde da população. O olhar
médico direcionado ao “corpo menstruante” contribuiu para a construção de uma concepção de mulher associada à
maternidade, de modo que qualquer comportamento que viesse a desestabilizar este padrão era interpretado como
patológico. Através da problematização das categorias de “sexo” e “corpo”, bem como de uma perspectiva crítica do
conhecimento científico, buscaremos demonstrar a contribuição dos estudos feministas e de gênero no que se refere à
superação de dicotomias naturalizadas socialmente. Para tanto, nos debruçaremos sobre três teses apresentadas à
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Discurso médico; Menstruação; Gênero.

INTRODUÇÃO
A ideia de que homens e mulheres são eminentemente diferentes remete ao final do século
XVIII, de acordo com Thomas Laqueur (2001). Predominou no Ocidente uma homologia sexual
originada dos estudos de Aristóteles e Galeno, responsável por classificar homens e mulheres a partir
de seu “nível de perfeição metafísica” e não pelo sexo biológico. Dito de outro modo, prevaleceu, até
o Iluminismo, o modelo de sexo único – e não uma diferença incomensurável –, baseado em uma
lógica hierárquica que tinha como parâmetro o calor vital dos seres: os homens eram considerados
mais perfeitos que as mulheres, tendo em vista sua natureza quente e seca, em contraste com a
natureza feminina caracterizada como fria e úmida. Haveria uma única carne, portanto os órgãos
sexuais das mulheres eram interpretados como a inversão dos órgãos dos homens. Entretanto, eram
os papeis sociais e a inscrição de gênero que definiam o “real” e não o corpo, com seus caracteres
anatômicos e fisiológicos.
Foi ao final do setecentos, concomitantemente às mudanças epistemológicas que tiveram
como resultado interpretações binárias do mundo em contraste com a teoria da “grande cadeia do
ser”, e às questões políticas – a ideia de igualdade a partir da Revolução Francesa, bem como os
debates sobre os direitos civis das mulheres – que o modelo do sexo único começou a dar lugar a um
dimorfismo sexual, e as dessemelhanças entre os sexos passaram a ser interpretadas como
disparidades físicas, naturais e imutáveis. Com efeito, o princípio da igualdade e a emergência dos

500
Mestranda do curso de História, pela Universidade Federal do Espírito Santo, campus Vitória. E-mail:
jessicavieira.his@gmail.com
1177
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
direitos universais responsáveis por marcar fortemente todo o século XVIII não se sustentava no
paradigma da homologia sexual. Ou seja, a despeito dos avanços científicos decorrentes do
desenvolvimento da anatomia na Renascença, a interpretação da diferença sexual só passou a ser
enfatizada a partir do momento em que encontrou um contexto social propício a essas alterações
(LAQUEUR, 2001).
A partir deste modelo de sexo dual, a medicina passou a ressaltar as diferenças dos corpos de
homens e mulheres, determinadas não apenas pelos órgãos da geração, mas envolvendo “cada fibra
do corpo”, segundo Londa Schienbinger (2001). Para esta autora, em consonância com Laqueur,
embora a ciência propusesse a neutralidade, empenhando-se na busca de fenômenos “naturais”, suas
proposições foram moldadas pelas demandas sociais e políticas. As primeiras representações de um
esqueleto com elementos próprios da mulher, por exemplo, demonstraram a inferioridade do crânio
feminino considerando o seu tamanho em relação ao masculino, e a supremacia da pelve das fêmeas,
de modo a preconizar a capacidade intelectual superior do homem e o “destino da mulher”: a
maternidade.
Fabíola Rohden em Uma ciência da diferença buscou compreender os elementos que
permitiram a diferenciação entre homens e mulheres em meio às transformações oitocentistas. A
medicina do século XIX e do início do século seguinte, associou a mulher à maternidade, ao discorrer
de maneira assimétrica sobre as questões referentes à sexualidade e à reprodução. Assim, as
diferenças “naturais” observadas pelos cientistas, foram responsáveis por justificar as diferenças entre
os sexos e os seus respectivos papeis sociais. Afinal, um aspecto característico da medicina
oitocentista foi a proposta de decodificar aquilo que a natureza teria sido capaz de criar (FABIOLA
ROHDEN, 2001).
Enfim, partindo da ideia de que o “sexo”, bem como o “corpo” não são a-históricos e muito
menos dados naturais imutáveis, objetivamos problematizar o discurso médico no Brasil oitocentista
ao analisar as representações acerca da menstruação. A ressignificação e valorização da “mulher” –
enquanto mãe e esposa – ocorreu em um contexto de institucionalização da medicina científica, a
qual esteve preocupada em garantir o progresso do país através da saúde da população. Este processo
se deu por meio de duas vertentes, que pressupõe ambiguidades: através do olhar médico direcionado
ao corpo que menstrua e é capaz de gerar uma criança, impelindo-a à maternidade; e como uma
condição patológica que seria intrínseca a este corpo.

1178
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ademais, pretendemos apontar a imprescindibilidade das discussões de gênero e dos estudos
feministas na crítica às dicotomias equivocadamente compreendidas como naturais e estáveis. Para
tanto, analisaremos teses de doutoramento apresentadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
que versam sobre a menstruação.

A MENSTRUAÇÃO NA PERCEPÇÃO MÉDICA


Ao apresentar sua tese à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no ano de 1840, intitulada
Sobre a menstruação, José Joaquim Firmino Junior teceu algumas palavras, de maneira introdutória,
a fim de angariar a benevolência dos leitores e, sobretudo, de seus avaliadores. Afinal, com a
transformação dos cursos médico-cirúrgicos do Rio de Janeiro e da Bahia em Faculdades de
Medicina, a tese de doutoramento, escrita no sexto ano do curso, veio a ser requisito obrigatório para
garantir o título de doutor no Brasil, funcionando também como um instrumento para revalidar
diplomas de instituições estrangeiras ou ainda para os concursos da instituição. Estes trabalhos
versaram sobre pontos teóricos debatidos na medicina, propondo reflexões e intervenções sociais
significativas para o contexto do país. Foi justamente a partir da importância da menstruação – não
só para as mulheres, mas para a humanidade – que o autor justificou o assunto sobre o qual decidiu
dissertar:

Devendo por tanto appresentar uma dissertação com o nosso nome em frente, nada nos
restava, senão desenterrar do centro das vastissimas sciencias medicas um ponto, que,
preenchendo a nossa obrigação, não deixasse de ser util ao genero humano. Fitamos nossas
vistas sobre a menstruação. E que melhor ponto achariamos nós para executarmos o nosso
desejo? Essa funcção, que admoesta á mulher de sua aptidão para a execução de um trabalho
tão nobre, qual o da propagação da especie, não nos deveria attrahir todo o nosso cuidado?
Taes proposições parecem estar fóra de duvida, e portanto não insistiremos sobre ellas
(FIRMINO JUNIOR, 1840, s/p.).

Segundo Firmino Junior (1840), a importância da menstruação residia no fato de ser ela
responsável por habilitar a mulher a exercer sua função enquanto reprodutora da espécie. Até a
puberdade, a mulher pertencia apenas a si mesma, porém, a chegada desta fase, “a mais gloriosa de
sua vida”, anunciava o desenvolvimento de seus órgãos reprodutivos e ela passava a não viver “mais
para si, ella é de sua especie, é da posteridade, e não do presente”, dado que é chamada a efetivar o
cargo ao qual foi destinada. Por conseguinte, toda a organização corpórea da mulher, o seu modo

1179
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de andar e os seus hábitos indicariam a regularidade deste processo (FIRMINO JUNIOR, 1840, p. 7).
Além de inaugurar o fluxo menstrual, a puberdade também evidenciaria as diferenças, para
além dos órgãos genitais, entre homens e mulheres. Ao tecer “breves considerações sobre a mulher”,
Firmino Junior (1840, p. 1-9) ressaltou que a partir desta fase os sexos se diferenciariam em tudo.
Para perceber isso, bastaria que observássemos a voz, os ossos, o sistema nervoso, a digestão, a
circulação, enfim, o autor mencionou uma série de características anatômicas e fisiológicas
responsáveis por salientar as características díspares entre homens e mulheres. Sobre estas distinções,
afirmou:

[...] póde-se dizer que a vida no homem afflúe para a extremidade superior do tronco, na
mulher para a inferior; um vive para usar de seu extremo mais elevado; no outro parece que
tudo é sacrificado ao livre exercicio da funcção da reproducção; a natureza indica áquelle o
poder do raciocinio, o emprego das forças physicas; e á esta a quietação, e repouso: mesmo
uma razão puramente mecanica esteia esta ordem natural; porque sendo o corpo do homem
mais longo que o da mulher, e estando o centro de gravidade delle mais elevado que o della,
deve ella procurar conservar-se estacionaria, e elle entregar-se aos trabalhos [...] (FIRMINO
JUNIOR, 1840, p. 2).

Todavia, se estas assimetrias orgânicas apenas tornavam-se evidentes após a puberdade, era
possível encontrar indícios da diferença na infância:

Em quanto na primeira infancia o menino procura divertir-se com brinquedos, que demandão
forte contracções musculares, que exigem grandes movimentos, e ensaião mesmo as
faculdades varonís já na luta, já dispostos em fórma de soldados, guerreando uns contra os
outros; a menina sentada ao lado de suas bonecas, suas doceis e innocentes amigas, cuida de
atavia-las com aquelles adornos, que a sua limitada imaginação lhe sugere; determina um dia
para um casamento d’entre aquellas, á que sua afecção é mais ligada [...] preparando-se
sempre para o alto emprego, que a aguarda em épocas mais remotas, e mostrando desde já
qual deve ser o seu destino, e quaes as suas attribuições (FIRMINO JUNIOR, 1840, p. 6).

As palavras do autor demonstram a ideia de que homens e mulheres são definidos por uma
discrepância que transpõe os sexos biológicos. As características físicas e morais, bem como o
funcionamento do organismo se diferenciavam e, por conseguinte, o comportamento social esperado
para cada qual também deveria estar associado ao sexo anatômico, de modo a respeitar esta
disposição, concebida pela medicina como imanente. No que se refere às mulheres, como foi dito
pelo autor, “tudo é sacrificado ao livre exercicio da funcção da reproducção” (FIRMINO JUNIOR,
1840, p. 6). Ou seja, as mulheres foram consideras mais dóceis e seus corpos mais frágeis, mas
esta inferioridade em relação ao sexo oposto ganhava um aspecto positivo no discurso médico,
1180
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
posto que toda a sua organização biológica estaria designada à procriação. Em contrapartida,
considerado mais forte e mais racional, o lugar do homem na sociedade estaria associado à vida
pública.
Firmino Junior construiu uma definição de mulher não apenas oposta ao homem, mas também
como seu complemento. O sistema nervoso feminino, “envolvido de maior quantidade de tecido
cellular”, era responsável por delegar à mulher maior sensibilidade, inconstância, volubilidade etc.
Atribuídas aos homens, tais características não o “honrarião muito”, mas acumuladas nas mulheres
“fazem nella o seu maior ornamento”, visto que contribuem para a função de esposa, ao possibilitar
a ela sentir as angústias e aflições do seu consorte e “tomar uma parte tão activa nas tristezas de seu
companheiro quanto elle mesmo” (FIRMINO JUNIOR, 1840, p. 5). Por outro lado, ainda segundo o
autor, o que a constrangia a se deter exclusivamente aos trabalhos domésticos era sua diminuta
habilidade para a meditação e a reflexão. Assim, as marcas físicas foram utilizadas para justificar o
comportamento social esperado para as mulheres, como esposas atenciosas e mães eficientes para os
filhos da nação.
Esta preocupação com as leis da natureza pode ser percebida em uma sessão específica da
dissertação de Firmino Junior (1840, p. 19), na qual considerou importante responder à seguinte
pergunta: “a menstruação é uma instituição natural, ou uma necessidade facticia contrahida no estado
social?”. Ao discorrer sobre este debate, o autor não endossou a teoria do francês Pierre Roussel e de
outros autores, responsável por interpretar a menstruação como um resultado da civilização. Roussel,
em Du système physique et moral de la femme (1775), propôs que o fluxo catamenial significava a
eliminação de nutrientes desnecessários, consumidos em excesso. Assim, conjecturava que a
menstruação não teria sido vivenciada pelas mulheres das sociedades primitivas, inclusive pelas
indígenas do Brasil. Portanto, resultante de novos hábitos alimentares, “as regras” significariam um
processo cultural. Firmino Junior, porém, asseverou que não poderia abraçar tal concepção, pois o
ciclo menstrual é por ele considerado natural e diz ter razões muito preponderantes para assim pensar.
Dentre os argumentos utilizados pelo autor para afirmar a naturalidade do catamênio, destacamos:

[...] se a menstruação não fosse uma funcção inherente á organisação da mulher; se ella fosse
simplesmente uma necessidade facticia contrahida no estado social; se o luxo da meza, a
alegria dos festins, e os prazeres da sociedade fossem a causa motora de tal phenomeno,
seria ella senão impassivel, ao menos pouco sensivel á amenia: mas é justamente o
contrario que nós todos os dias vemos. E onde buscar a razão porque, existindo falta de

1181
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
regras, o ser não desenvolve-se, a belleza em embrião fica estacionaria, o vigor da alma some-
se, os movimentos vitaes desarranjão-se, e a mesma organisação definha, e perece sem ter
chegado ao fim do seu destino? (FIRMINO JUNIOR, 1840, p. 20-21).

Essa assertiva acerca do caráter natural da menstruação demonstrou, mais uma vez, a sua
importância para que a mulher cumprisse a missão de gerar filhos, enfatizando a ideia de que a
maternidade e a reprodução eram fatores próprios à “natureza feminina”. As colocações de Firmino
Junior (1840, p. 4) são elucidativas a este respeito: “dai o temperamento musculo-sanguineo á uma
mulher; ve-la-heis logo perder todas as suas graças, buscar as occupações do sexo oposto; tendo antes
pejo, vergonha, pudor de parecer forte, torna-se de repente uma amazona furiosa”. Ao transpor os
limites definidos pelo seu sexo, a mulher acabava por “esquecer-se dos carinhos, que distinguem uma
verdadeira mãe de familia”. Segundo Rohden (2001), embora a diferença fosse apresentada nos textos
médicos como imanente, é possível perceber uma preocupação com as instabilidades. Aquelas
mulheres que buscassem exercer papeis que não estivessem em consonância com a sua predisposição
à reprodução poderiam adquirir características masculinas. Mesmo sendo considerada um fato
imutável, a diferença sexual poderia sofrer interferências externas, daí a necessidade de estabelecer
limites.
A representação da menstruação enquanto símbolo da feminilidade ficou evidente na tese de
João de Oliveira Fausto, apresentada pelo autor à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no dia 17
de dezembro de 1846. Ao dissertar Acerca da menstruação, definiu a puberdade como a época da
“primavera” das mulheres, posto que indicaria o início da fecundidade, enquanto a menopausa – ou
“idade de retorno”– seria o “inverno” feminino. O lirismo com que ele descreveu o aparecimento do
fluxo catamenial demonstra a relevância deste fenômeno e sua centralidade, dentre as diferentes
“fases”, sempre relacionadas à reprodução, que conduzem a vida da mulher. Este processo de
“florescimento” ao qual está submetida, além de propiciar a ela cumprir seu destino social também
traz consigo a definição do bello sexo: a beleza, haja vista lhe possibilitará atrair a atenção do sexo
oposto. Fazendo referência ao médico e naturalista Julien Joseph Virey (1775 - 1846), o autor
mencionou que “seus labios, de um vivo escarlate aprezentam o brilho de uma roza”, já o seu aspecto
elegante “torna seu andar mais majestoso”; enfim, a mulher possui “todos os brilhantes attributos que
contituem essa disposição physica indefinivel, a que chamamos beleza” (FAUSTO, 1846, p. 4).

1182
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Entretanto, se a puberdade e o aparecimento das regras anunciariam a graciosidade feminina,
o crepúsculo da fecundidade demarcaria o momento de sua decadência. Nas palavras de Fausto (1846,
p. 16):

Nesta épocha critica da vida das mulheres, ellas sentem-se tormentadas de peso de cabeça,
tinidos dos ouvidos, palpitações, suffocações, e torpôr nos membros. Seu appetite diminue,
a nutrição se faz mal, as digestões se desarranjam, os lábios decoram, as faces se enrugam,
as mammas abatem; desapparece a nitidez de sua lisa pelle, e sua voz soffre alterações; seus
olhos perdem a vivacidade, e se escondem nas orbitas, emfim toda a sua belleza desapparece,
como por encanto, e ellas cessam de apresentar os caracteres physicos e moraes do seu sexo:
tudo annuncia uma marcha rapida para a velhice, e para a decrepitude!

Como apontado, diferenciando-a do homem, a menstruação foi considerada uma característica


eminentemente feminina e de grande importância para a mulher, visto que instauraria a beleza e torná-
la-ia mãe de família. Ao decretar o fim dos mênstruos, a menopausa ganhou um sentido inverso.
Impossibilitada de exercer sua função, até a sua beleza de esvai e a sexualidade feminina fica
comprometida, a ponto de praticamente deixar de ser mulher. Destarte, a vida da mulher nos textos
médicos parece ser tematizada a partir da sua capacidade reprodutiva.
Fator “inherente á organisação da mulher”, a menstruação – ou catamênio, regras, meses, luas,
épocas –, é para Fausto uma lei natural diretamente relacionada à fecundidade: concordou com
Moreau no sentido de que quanto mais regulada, mais fecunda. Como Firmino Junior (1840), deixou
clara sua discordância em relação às conclusões de Roussel sobre o caráter social do fenômeno e
defendeu a ideia de que o fluxo menstrual é um fenômeno natural, a qual todas as mulheres estão
sujeitas, caracterizando a sua ausência como um “estado de aberração ou de moléstia” (FAUSTO,
1846, p. 1).
Diferentemente da infância, onde “todas as propriedades vitaes tendem a se dirigir igualmente
sobre todos os órgãos”, na puberdade os esforços se concentram nas “partes sexuais”, segundo Fausto
(1846, p. 17). Nesse sentido, as energias do corpo feminino durante este período deveriam ser
direcionadas para o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos e qualquer tipo de excitabilidade
poderia influir no processo. Ademais, as excitações externas seriam capazes de retardar ou antecipar
o primeiro fluxo catamenial, consoante uma série de fatores, como o clima, a alimentação, o
temperamento e até mesmo do desenvolvimento intelectual. O autor citou o consumo de chá, café,
vinho, licores, frutos ácidos, carnes muito condimentadas – situação comum na alimentação das
moças ricas –, como fatores responsáveis pela precocidade menstrual dessas mulheres, por serem
1183
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
consideradas substâncias excitantes. O mesmo acontece com as moças que vivem nas cidades, já que
estão mais suscetíveis à ociosidade, leitura de romances, promiscuidade, cenas e imagens
“voluptuosas”, quando comparadas à simplicidade da vida no campo. Estas circunstâncias
funcionariam, ainda de acordo com o autor, como uma influência aterradora sobre o moral das moças,
visto que estimulavam o sistema nervoso. A dança, a pintura, o som sedutor da música também
deveriam ser evitados, bem como os vestidos apertados, pois dificultam o desenvolvimento da bacia,
do peito e do pescoço. Já em relação às moças que vivenciavam a puberdade e ainda assim
encontravam-se apáticas, frias e indiferentes, o tratamento deveria ser o oposto: a excitação talvez
não fosse tão prejudicial, pelo contrário, poderia ser o incentivo ideal para iniciar o ciclo catamenial.
Após garantir o estímulo necessário para o desenvolvimento das capacidades reprodutivas,
hábitos cautelosos ainda se faziam necessários. Afinal, a “mulher reclama cuidados particulares e
deve ser objeto de continuas precauções” (FAUSTO, 1846, p. 16), foi o que afirmou o autor no tópico
intitulado Regras hygienicas relativas as mulheres menstruadas, destinando um papel preponderante
da mãe na instrução das filhas. Destacou duas funções principais a serem desenvolvidas pelas mães,
quais sejam, moderar as excitações e perturbações do sistema circulatório, e “dirigir os esforços da
natureza” para garantir sua ação sobre os órgãos genitais. O primeiro ponto ao qual dedicou sua
atenção consistiu na importância de a púbere entender a inevitabilidade do fenômeno ao qual estava
prestes a vivenciar. De acordo com o médico, em decorrência de um instinto de pudor, o aparecimento
do corrimento sanguíneo acabava por ser dissimulado pelas moças, portanto seria dever da “may
prudente, zelosa da saude sua filha”, informá-la da revolução pela qual estão sujeitas, de modo a
assegurar que este evento fosse vivenciado de maneira ordinária. A ignorância a respeito das regras
deveria ser evitada, a fim de que as moças não contrariassem os esforços da natureza, afinal, ao citar
o médico Colombat de L’Isere (1797-1851), o autor afirmou ser perigoso que elas saibam muito, mas
ser ainda pior que tudo ignorem (FAUSTO, 1846, p. 17).
A função das mães, entretanto, não se restringiria aos esclarecimentos a respeito do
aparecimento do fluxo catamenial, uma vez que sua vigilância deveria ser constante. Até mesmo os
colégios foram preteridos pelo autor, a fim de que a diligência materna pudesse ser minuciosa. Para
o doutorando, eles eram ambientes potencialmente “estimulantes”, sobretudo por facilitarem a prática
de atos considerados prejudiciais à saúde, como a masturbação.

1184
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Estes agentes poderosos de excitação e de ligações muito intimas, formadas nos collegios,
rasgam o véu do pudor, e fazem desapparecer a seductora innocencia que é o mais bello
ornato das moças! Os desejos de felicidade e de amor se transformam nella em uma chamma
devoradora, e logo o onanismo, esse mal execravel e terrivel, decompõe seus traços, altera
sua saude, e a conduz quasi sempre a uma morte prematura! Semelhante a uma planta
delicada, que os raios de um sol mui ardente seccam, ella murcha e morre (FAUSTO, 1846,
p. 18).

Como foi possível observar, considerada a fase em que as dissemelhanças entre homens e
mulheres de fato se evidenciariam, a puberdade foi interpretada como um momento importante, mas
sobretudo perigoso. Afinal, era este o período de desenvolvimento da função reprodutiva, quando
uma série de mudanças entravam em curso, principalmente para as mulheres. Segundo Adriana de
Carvalho Luz (1996), esta preocupação com a puberdade e a adolescência foi comum entre os
doutorandos da Faculdade de Medicina da Bahia, ao final do século XIX e início do XX, porém
apenas quando fazia referência à mulher. A atração dos médicos por esse momento de transição, de
acordo com a autora, sugere a tentativa de um controle da vida sexual e reprodutiva das mulheres, o
que não acontece em relação aos homens. Demarcada a “diferença”, é a partir da menstruação,
portanto, que o discurso se propõe a definir a natureza feminina e a regular a reprodução e a
sexualidade das mulheres.
Fabíola Rohden (2001) observou que o período de predominância dos textos médicos sobre
puberdade e catamênio foi de 1840 até o início da década de 1860. Mas a partir da década de 1890,
ao serem revisitados, estes temas foram marcados pela associação da menstruação com as
“desordens” mentais. É este o caso de Vicente José da Maia (1897) que desenvolveu um vultuoso
estudo sobre A menstruação na etiologia das nevroses e psychoses, como expressa o título dado ao
seu trabalho. Aprovada com distinção, sua tese teve como tema a reciprocidade entre a menstruação,
enquanto elemento do aparelho genital feminino, e o cérebro. Os mênstruos, para este autor, poderiam
influir – e serem influenciados – sobre a histeria, a epilepsia e a clorose. Além disso, várias
“desordens” (como mania, melancolia, cleptomania, dipsomania, ninfomania, delírio religioso,
impulsões ao suicídio e homicídio) poderiam ser acirradas em função do catamênio.

O preparo de uma futura espoza, o cultivo da esculptura, da pintura, da musica, emfim, de


todas as bellas artes, adaptaveis á sublime delicadeza de seu sexo, representam hoje um
circulo limitadissimo de sua instrucção. O re quinte desta, na actualidade, está no cultivo de
sciencias e artes que jamais poderão ser-lhe confiadas: a mulher-medica, a mulher-
naturalista, a mulher-politica, a mulher-juridica constituem o luxo do seculo presente.
D’ahi novos deveres, novas excitações implantadas em um organismo, cuja resistencia

1185
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
há de fatalmente baquear, denunciando-se por um desequilibrio dos centros nervosos e de
todas as funcções d’elles tributarias (MAIA, 1897, p. 11).

Em decorrência da relação entre os “centros nevro-psychicos” e o “territorio utero-ovariano”,


as mulheres foram consideradas portadoras de uma sensibilidade excessiva, o que explicaria a crítica
do autor às mulheres que buscavam incumbir-se de tarefas que nada tinham em comum com a
maternidade, por exemplo, o desenvolvimento intelectual (MAIA, 1897). Este argumento médico de
que os atributos morais e as faculdades intelectivas das mulheres estariam condicionadas às
propriedades físicas foi acionado para justificar e manter um lugar social específico a elas, além de
disciplinar suas condutas através da vigilância (SILVIA NUNES, 1991).
Maia argumentou ser tamanha a importância da educação que “ou encaminha a joven,
tornando-a o receptaculo de sãs virtudes, preparando-a ao sacrosanto dever de uma mãe exemplar ou
transforma-a em um ente desprezivel barateado, no mercado da prostituição” (MAIA, 1897, p. 9). A
higiene física e espiritual, decorrentes dos cuidados maternos, foram consideradas salutares na
constituição das moças, já que, no momento do aparecimento das “regras”, elas vivenciavam um
desequilíbrio orgânico, que podia ser passageiro ou facilmente convertido em um estado duradouro.
Além da necessidade de “administrar” os eventos naturais, ao passo em que garante a formação dos
“órgãos da maternidade”, os costumes higiênicos eram necessários para regular o sistema nervoso
feminino e sua capacidade de impressionar-se. Ainda que a menstruação marcasse o início da vida
reprodutiva, simbolizando o desenvolvimento da mulher, também foi considerada um fenômeno
mórbido de seu aparelho sexual, responsável por evidenciar sua “natureza patológica” (FABIOLA
ROHDEN, 2001; ELISABETH VIEIRA, 2002).
Esta assertiva pode ser exemplificada pelas informações coletadas pelo doutorando durante o
período em que foi interno da Casa de Saúde Dr. Eiras. As primeiras manifestações histéricas e
epiléticas vivenciadas por uma mulher, “M. J.”, branca, vinte e nove anos, casada e com filhos,
coincidiram, segundo o doutorando, com o princípio de sua menstruação. Seu fluxo menstrual,
iniciado aos quatorze anos, era intenso e seguido de “grande excitação”. Após contrair matrimônio e
se dedicar ao marido, o que ocorreu aos vinte e um anos, apresentou sensíveis melhoras. Porém,
acabou por abandonar o lar e a “entregar-se” a três homens de “baixa classe”. Tais infidelidades
teriam acontecido justamente dias antes do fluxo menstrual. Mais interessantes ainda são as
conclusões do autor que, “meditando sobre os dados colecionados”, mencionou ter ficado clara

1186
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a “coincidencia palpável” existente entre o fluxo menstrual e a manifestação de seu estado histérico-
epilético, afinal, concluiu o autor: “em um terreno sufficientemente predisposto” – posto que a reclusa
era uma mulher muito instruída, falava com fluência quatro idiomas e cultivava com “entusiasmo” a
literatura, além de ser uma exímia pianista – “logo prenuncia as tempestades nevropathicas futuras”
(MAIA, 1897, p. 94-96). Ou seja, o desenvolvimento intelectivo das mulheres, sobretudo na
puberdade, em razão do caráter mórbido do ciclo menstrual, foi interpretado como um potencializador
de desordens físicas e mentais. A “vivacidade precoce” da mulher observada e sua instrução foram
consideradas determinantes para o desenvolvimento da histeria e da epilepsia, por caracterizar
atitudes incompatíveis com as funções de mãe e esposa.
De acordo com Magali Engel (2004), a construção da diferença entre os sexos, a partir da
associação da mulher à natureza e, em contrapartida, do homem à cultura, remete a uma prerrogativa
liberal que teve como foco negar a cidadania às mulheres, consideradas mais frágeis e sensíveis,
portanto incompatíveis com a vida pública. Tais argumentos, corroborados pelos saberes médicos e
biológicos, contribuíram para a associação da mulher ao papel social da maternidade, bem como a
uma essência “desviante” que lhes seriam naturais. Assim, sobretudo com o desenvolvimento da
psiquiatria ao final do oitocentos, aquelas mulheres que não correspondiam ao ideal normativo de
esposa e mãe foram consideradas doentes mentais. A loucura estava relacionada à própria sexualidade
feminina, de modo a lhe ser intrínseca.
Não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de que, para além de todas as condições
historicamente imputadas ao “ser mulher” – possuir um corpo menstruante, ser heterossexual e mãe
–, a referência de classe e raça são notáveis, posto que são às mulheres instruídas, brancas, que
encontravam alguma possibilidade de exercer uma profissão, e às suas demandas que este discurso
se direcionou.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao invocar os preceitos da natureza e a suposta neutralidade do corpo, o modelo de sexo dual,
preconizado pelo discurso “médico-científico”, construiu – ao mesmo tempo em que foi constituído
por – uma representação da feminilidade discriminadamente associada à capacidade reprodutiva. A
menstruação foi acionada como signo da diferença. Em razão de sua aptidão à geração as
mulheres teriam, como demonstrado pelas teses e pela bibliografia, um compromisso com a

1187
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
própria espécie, portanto deveriam exercer um papel social específico. Dito de outro modo, a
anatomia e a fisiologia “feminina” determinariam a maternidade e a domesticidade para a mulheres,
e as características masculinas, por sua vez, a vida pública para os homens. Entretanto, o aparecimento
do fluxo catamenial também representou um período crítico, por demandar atenção constante, afinal,
em função de sua sensibilidade, todo o funcionamento do corpo da mulher estaria condicionado ao
desenvolvimento dos órgãos reprodutivos, o que Michel Foucault (2015) denominou como
“histerização” deste corpo. Destarte, as representações da menstruação, ao final do oitocentos, foram
responsáveis por relegar às mulheres uma imagem paradoxal: mãe e nervosa.
Frente às atuais investidas negacionistas da ciência, consideramos sobremaneira importante
salientar que não objetivamos aqui desclassificar a prática científica, pelo contrário, buscamos
demonstrar seu caráter social, além de substancializar sua significação enquanto construção de
subjetividades. Acreditamos que a crítica proposta pelos estudos feministas e de gênero são
fundamentais para que possamos construir um mundo disposto a ressoar e não limitar ou estigmatizar
as “diversas vidas”, “formas de existir” e “cores” possíveis.

REFERÊNCIAS
FAUSTO, João de Oliveira. Acerca da menstruação, seguida de regras hygienicas relativas as
mulheres menstruadas. Tese, Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1846.

FIRMINO JUNIOR, José Joaquim. Sobre a menstruação, precedida de breves considerações


sobre a mulher. Tese, Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1840.

MAIA, Vicente José da. A menstruação na etiologia das nevroses e psychoses. Tese, Rio de
Janeiro: Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1897.

BIBLIOGRAFIA

ADRIANA LUZ, Carvalho. Mulheres e doutores: discursos sobre o corpo feminino. Salvador,
1890-1930. 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador,
1996.

ELISABETH VIEIRA, Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora


FIOCRUZ, 2002.

FABÍOLA RODHEN. Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 2ª ed.
Rio de Janeiro, 2001.

1188
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
2015.

LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.

LONDA SCHIENBINGER. O feminismo mudou a ciência? Trad. Raul Fiker. Bauru, SP: EDUSC,
2001.

MAGALI ENGEL, Gouveia. Psiquiatria e feminilidade. In: História das Mulheres no Brasil. 7. ed.
São Paulo: Contexto, 2004.

SILVIA NUNES, Alexim. A medicina social e a questão feminina. Physis. Rio de Janeiro. vol.1, n.1,
p. 49-76, 1991.

1189
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO FEMININO EM CORDÉIS: UM ESTUDO EM
LINGUÍSTICA QUEER

Luana Rafaela dos Santos de Souza501

Resumo: Nesse estudo nós buscamos questionar a suposta naturalidade em que o(s) corpo(s), comportamento(s) e
discurso(s) são construídos na nossa sociedade, considerando que ser homem ou ser mulher para o imaginário social
perpassa pela noção de sistema de gênero inteligível, que consiste em uma concepção binária e heteronormativa, na qual
a heterossexualidade funciona como uma norma. Na concepção do imaginário social, é como se cada corpo tivesse uma
essência, uma morfologia que a ela está atrelada o papel de sexo. Abordar a ideia de performatividade é considerar que
ao longo do tempo o sujeito realização uma adoção ou conformação a um dado estilo e que esse vai sendo reiterado
sempre, por isso, o processo de performatividade é algo constante em que não se pode determinar nem a origem nem
mesmo o fim. Este estudo objetivou compreender que visão de mulher impera em folhetos de cordel do século XIX, na
tentativa de entender o binarismo cultural que é forjado acerca do universo masculino e feminino nos folhetos de Leandro
Gomes de Barros, quais sejam, “Os Martírios de Genoveva”, de 1974, “O testamento da Cigana Esmeralda”, de 1974, e
“História da Donzela Teodora”, de 1975. Nessa discussão, o movimento feminista questiona a visão estereotipada sobre
a(s) mulher(es) que foi construída, pois era como se a mulher tivesse que seguir um “projeto de vida” já estabelecido. A
pesquisa se situa como um estudo em Linguística Queer, área que discute uma proposta analítica da normalização no jogo
de identidades. O viés metodológico se realiza através de uma etnolinguística da fala viva, em perspectiva de estudos
enunciativo-discursivos.
Palavras-chave: Heteronormatividade; Cordel; Linguística queer.

INTRODUÇÃO
A desigualdade entre homens e mulheres é algo visível, pois é uma questão que vem desde o
surgimento da sociedade. De acordo com Turci (2015), a inferiorização da(s) mulher(es) se
desenvolveu com a própria sociedade, a partir do momento em que se teve a divisão do trabalho entre
função de homens e função de mulheres. Destarte, começa a se consolidar uma existência quase
natural, em que a mulher, por ser frágil, por não ter um aspecto físico ágil não poderia caçar, lutar.
Então, ocupava o espaço doméstico.
Em nosso contexto macrossocial, vivemos uma cultura heterormativa, entendida como uma
cultura de recusas e de preconceitos contra as sexualidades e os gêneros dissidentes e também contra
os heterossexuais que se desviam do padrão. Essa cultura exige que todos os indivíduos sigam a
coerência (suposta) entre a genitália (sexo) e gênero, pois insiste em não reconhecer e a aprender com
as diferenças.
Nesse escopo que questões, objetivamos nesse estudo analisar como a(s) mulher(es) são
construída pelos folhetos de cordel de Leandro Gomes de Barros (Pombal, 19 de novembro de 1865

501
Mestra em Dinâmicas Territoriais e Cultura, pela Universidade Estadual de Alagoas, campus I. E-mail:
analupoesia@gmail.com
1190
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
– Recife, 4 de março de 1918) a partir da problematização entre sujeito, linguagem, significado e
identidade, na perspectiva da performatividade, de modo que possamos entender noção do gênero
feminino que é forjada pela literatura popular, através da Linguística Queer, que se constrói na teia
da linguagem, gênero e sexualidade, refletindo sobre a linguagem na vida dos indivíduos, bem como
sua interação no meio social.

O QUE É QUEER? MOVIMENTOS E ESTUDOS

Se nos perguntamos o que seria o sujeito queer, encontramos a dificuldade de tradução do


termo para outras línguas. O termo queer vem da raiz torquere, que significa torcer. Na língua inglesa,
significa estranho, esquisto, anormal. Ao consultar o dicionário online Michaelis, vemos que a palavra
queer possui duas acepções, que são adjetivo e verbo. De acordo com Miguez (2014) apud Spargo:

“Queer” pode funcionar como substantivo, adjetivo ou verbo, mas em qualquer caso se define
contra o ‘normal’ ou normalizador. A teoria queer não é um quadro de referência singular,
conceitual ou sistemático, mas sim uma coleção de compromissos intelectuais com as
relações entre sexo, gênero e desejo sexual (SPARGO, 2006, p. 8).

Como adjetivo, o termo queer pode significar estranho, suspeito, esquisito, ridículo,
extraordinário; como verbo é estragar, prejudicar (SANTOS FILHO, 2015, p. 3). Diante dessas
acepções, não conhecemos a palavra queer no sentido de injúria, agressão, ofensa. Mas, como explica
Santos Filho (2015c), a palavra queer foi usada inicialmente como uma forma de insulto aos
homossexuais, no século XX. Logo, um termo ofensivo e agressivo. E ainda o termo queer não é algo
recente na nossa sociedade, e, de acordo com a colunista Helena Vieira, citada por Santos Filho
(2015), há registro em que a palavra queer é usada há mais de 400 anos. Para ela, na Inglaterra havia
uma “Queer Street”, em que viviam os vagabundos, as prostitutas, os pervertidos e os devassos. Logo,
ser um sujeito queer era/é estar às margens da sociedade (SANTOS FILHO, 2015).
Santos Filho (2015b) pontua que a Linguística queer está conectada com o ato performativo
queer, seja dos movimentos sociais e/ou dos estudos queer, em seu caráter de subversão. A
incorporação do ato performativo à linguística queer se opõe à superficialidade dos estudos antes
realizados acerca da relação língua(gem), gênero e sexualidade, problematizando essa tríade.

1191
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
POR UMA LINGUÍSTICA QUEER
Esse estudo está situado no campo da Linguística Queer, área que aborda uma proposta
analítica da normalização vigente em nossa sociedade. Essa normalização é fruto de uma cultura
hetenormativa que molda e/ou de(forma) para que o indivíduo possa ser visto como normal, logo
aceitável. Na visão de Santos Filho (2015a), vivemos uma cultura de recusas e preconceitos contra as
sexualidades e os gêneros dissidentes e também contra os heterossexuais que se desviam da
normalização. Nessa compreensão, a identidade deve ser um objeto de reflexão, o qual passa a ser
visto em uma concepção pós-identitária, assumindo a noção de performatividade.
Distanciamos-nos da visão tradicional da linguagem que postula que falar é descrever ou
representar as coisas do mundo. Santos Filho (2015) citando Butler (2003, 2009, 2011, 2015a) explica
que a língua(gem) falha ao representar. Assim, os supostos “projetos de representação” são
entendidos como atividades performativas, que buscam autorizar sujeitos e sentidos. Adotamos o
pensamento de Austin (1962) em que dizer significa fazer, porque os atos de fala são organizados,
mantidos e configurados pela linguagem. Desse modo, a linguagem não nos representa, mas nos
constrói. Nessa perspectiva, Santos Filho (2015) argumenta que são os atos de fala que organizam o
gênero e a sexualidade. Na concepção de performatividade, podemos entender que a cultura
influencia, mas que esses não determinam a morfologia de corpos, no sentido de instituir um sujeito
já-lá.

MULHERES DO SERTÃO NORDESTINO


Na sequência tratamos da mulher nordestina, trazendo o pensamento de Falci (2004) e a
perspectiva queer na análise de outdoors do pesquisador Santos Filho (2015a), e argumentamos como
esses estudos dialogam com o nosso corpus. Miridan Knox Falci (2004) enxerga a literatura de cordel
como um testemunho da vida da mulher nordestina, sobretudo aquelas de poucas condições
econômicas, que não tiveram oportunidades de frequentar a escola. Falci (2004) postula que o
feminino ultrapassa a categoria do social, pois não importa se são “mulheres ricas, mulheres pobres;
cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas do sertão” (FALCI, 2004, p.241). A autora diz que
as mulheres do sertão nordestino ao nascerem são chamadas de “mininu fêmea”, e que nelas foram
moldados determinados comportamentos, atitudes, pensamentos e posturas.

1192
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
As mulheres que Falci (2004) faz referenciação são aquelas que viveram no século XIX, que
habitaram as províncias de Piauí e Ceará, e que aparecem (são construídas) pela literatura de cordel,
em testamentos, inventários ou livros de memórias. As mulheres ricas ou as que integram a elite
intelectual aparecem nas páginas de inventários, em livros, com suas joias, posse de terras e escravos
(FALCI, 2004). Assim, existe a dificuldade em conhecer a vida das mulheres pobres livres, as
lavadeiras, as doceiras, as costureiras e rendeiras – tão conhecidas nas cantigas de cordel do Nordeste,
as apanhadeiras de água nos riachos, as quebradeiras de coco e parteiras. Sobre todas essas, temos
mais dificuldade em conhecer, porque nenhum legado deixaram, era em grande parte analfabetas.
Para refletimos acerca da questão da mulher e do gênero na nossa sociedade, Santos Filho (2015a)
frisa algumas questões que são pertinentes para a nossa pesquisa, como: i) o que é ser mulher?; ii) o
que é ser homem?; iii) qual a condição do feminino? e iv) qual a condição do masculino?. Assim,
devemos olhar para o(s) script(s), olhar para os meandros da cultura, seus fundamentos políticos,
sociais e históricos, pensando sobre sua configuração via discursos.
Na compreensão de Falci (2004) existia uma organização social no Nordeste que gerou uma
sociedade fundamentada no patriarcalismo, marcada pela estratificação existente entre homens e
mulheres, entre ricos e pobres, entre escravos e senhores, entre “brancos” e “caboclos”. Ela observa
que existia um grande número de casamentos inter-raciais, pois os homens formavam famílias com
pardas e caboclas. Falci (2004) salienta que havia no Nordeste hierarquias rígidas, que colocava a
figura do homem no centro das questões.

Hierarquias rígidas, gradações reconhecidas: em primeiro lugar e acima de tudo, o homem,


o fazendeiro, o político local ou provincial, o “culto” pelo grau de doutor, anel e passagem
pelo curso jurídico de Olinda ou Universidade de Coimbra, ou mesmo o vaqueiro (FALCI,
2004, p. 242).

Na concepção de Falci (2004), o reconhecimento social era marcado pelo status econômico e
também por uma questão racial. Segundo ela, havia um ideal de mulher no sertão, que era ser filha
de fazendeiro, ter a pele branca, ser herdeira de escravos, gados e terras. Também o tipo físico das
mulheres do Nordeste se caracterizava por serem gordas, pois era o padrão de beleza da época, fato
que acontecia cedo porque a maioria delas possuía uma vida sedentária.
Como vivia a mulher que habitava o sertão nordestino no século XIX? De acordo com
essa pesquisadora, as mulheres do sertão não tinham muitas atividades fora do lar, pois eram
1193
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
educadas desde cedo a aprenderem o papel de mãe e as “prendas domésticas”, tais como orientar os
filhos, costurar, bordar, cozinhar. Algumas mulheres mais humildes ou de elite empobrecida, faziam
doces, arranjos de flores, bordados, davam aulas de piano, atividades que ajudavam no sustento da
família. Falci (2004) ressalta que essas atividades desenvolvidas por mulheres não eram aceitas, nem
bem vistas pela sociedade, porque julgavam a incapacidade do homem da casa. As mulheres pobres
não tinham outros meios de sobrevivência, por isso, eram costureiras e rendeiras, lavadeiras, fiadeiras
ou roceiras – “estas últimas, na enxada, ao lado de irmãos, pais ou companheiros, faziam todo o
trabalho considerado masculino como torar paus, carregar feixes de lenha, cavoucar, semear, limpar
a roça do mato e colher” (FALCI, 2004, p. 250).
Diante do que foi exposto nesse estudo, torna-se necessário abordar o gênero, porque, assim,
é necessário entender que nos deparamos com diversos enunciados como os jornais, as revistas, os
telejornais e o próprio objeto de pesquisa desse trabalho, os folhetos de cordéis, nos quais há
diferenças gritantes entre homens e mulheres.

A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO FEMININO EM CORDÉIS: UM ESTUDO EM


LINGUÍSTICA QUEER

O pensamento de Preciado (2014) ajuda-nos a entender que estamos inseridos em uma


sociedade que tem o sistema de gênero inteligível (SANTOS FILHO, 2012; 2015a; 2015b; 2015c)
rotulando modos de ser homem e de ser mulher heterossexual presentes nos mais diversos enunciados.
Percebemos no trecho do folheto “Os Martírios de Genoveva” que há a reprodução de um projeto
conservador, rotulando modos de ser mulher na sociedade.

[...] além dessas qualidades


em tudo era preciosa
modéstia e trabalhadora
cortês e religiosa
graças a educação
de sua mãe extremada
(BARROS, 1974, p. 2).

Nossa filiação à linguística queer nos faz olhar para o enunciado do cordel e questionar: por
que esse perfil de mulher era adotado e não outro e qual analogia ou relação de intertextualidade

1194
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
é reiterado nesse folheto? No folheto “O testamento da Cigana Esmeralda”, podemos ver essa
reiteração do discurso religioso cristão:

O menino sonhador
José, filho de Jacó
foi quem decifrou os sonhos
do grande rei Faraó
nos sete anos de seca
quem havia de queimar pó
(BARROS, 1974, p. 4).

No livro Gênesis, capítulo 41, versículo 14 e 15, diz-se:

14
Então, Faraó mandou chamar a José, e o fizeram sair à pressa da masmorra; ele se barbeou,
mudou de roupa e foi apresentar-se a Faraó.
15
Este lhe disse: Tive um sonho, e não há quem o interprete. Ouvi dizer, porém, a teu respeito
que, quando ouves um sonho, podes interpretá-lo.

No cordel, “História da Donzela Teodora”, a jovem é quem determina o que é a formosura da


mulher, vista como um padrão, referenciado pelos três sinais presentes no corpo:

Então a donzela disse:


para a mulher ser formosa
terá dezoito sinais
não tendo, é defeituosa (...)
(BARROS, 1975, p. 16-17).

Teodora continua a discussão sobre a mulher, sobre a idade e sobre os aspectos físicos.
Leandro Gomes de Barros ressignifica essa história do século XIII, construindo Teodora como a
donzela, a cristã e sábia e através dessa personagem dar ensinamentos sobre o que é ser mulher e
formosa. Nas estrofes seguintes, Teodora faz uma descrição de como é o ideal de mulher formosa.
Há um trecho em que ela diz que a mulher formosa tem três partes, quais sejam, nariz, boca e pé que
se compara à Virgem de Nazaré:

- Terá três partes pequenas


o nariz, a boca e o pé
largas as cadeiras e ombros
ninguém dirá que não é;
cujos sinais teve-os todos

1195
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
uma Virgem de Nazaré
(BARROS, 1975, p. 17).

No enfretamento com o terceiro sábio, por propor-lhe uma aposta é que podemos considera
Teodora como uma mulher também ousada. Além disso, os gregos afirmaram há milênios que o belo
consiste na simetria. Assim, no cordel a donzela faz referenciação aos dezoito sinais que a mulher
formosa necessita ter.

Há de ter 3 partes negras


de côres bem reluzentes
sobrancelhas, olhos, cabelos
de negras côres ardentes
branco o lacrimal dos olhos
ter branca a face e os dentes
(BARROS, 1975, p. 17).

Teodora constrói o comportamento de alguém muito preocupada com a beleza. A(s)


mulher(es) nordestinas/sertanejas que dialogavam com esse gênero literário certamente poderiam
pensar que possuir tais características era um ideal de mulher na época. Abordando a concepção de
uma matemática da beleza, podemos salientar que o foco do verso acima é sobre o rosto, visto como
um dos aspectos mais importantes do corpo humano, porque tem espaço e ocupa peso. A donzela
constrói um olhar clínico para a beleza feminina, pois é capaz de apontar todos os detalhes.
- Será comprida em 3 partes
a que tiver formosura
comprido os dedos das mãos
o pescoço e a cintura
rosadas cútis e gengivas
lábios côr de rosa pura
(BARROS, 1975, p. 17).

Não só aponta os detalhes como também postula sua dimensão/comprimento. Logo a donzela
mostra uma solidariedade total entre o discurso quem vem desde a Antiguidade Clássica, em que o
belo estava ligado à simetria e harmonia das partes do corpo. Também pensemos no contexto
contemporâneo em que a simetria do corpo é alcançada pelos procedimentos realizados através do
bisturi. Um grande exemplo é o procedimento que consiste na retirada de gordura das bochechas,
conhecido como “Bola de Bichat”, no qual permite que a mulher mude o aspecto do rosto, como
foi o caso da atriz Angelina Jolie e da modelo Kim Kardashian.
1196
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Vejamos as indagações do terceiro sábio com relação à velhice?

- Donzela, o que é a velhice?


respondeu com brevidade:
a velhice de dores
é a mãe da mocidade
- O que mais aborrecemos
Respondeu: é a idade
(BARROS, 1975, p. 22).

A velhice é rotulada no cordel como um sinônimo de sofrimento e dores, notamos que a


posição de Teodora, jovem, é uma aversão a essa passagem do tempo, pois para a personagem a idade
é um aborrecimento. Goldenberg (2013) argumenta com relação a esse fato que a velhice não precisa
ser um beco sem saída, mas um recomeço impulsionado pela criatividade em investir em si mesmo,
em projetos de vidas. Assim, na época de Barros o discurso da velhice já existia, pois parece que os
sentidos forjados acerca de pessoas mais velhas é uma concepção forjada no senso comum dominante,
e que, de certa forma, permanece até hoje, mas não com a mesma carga que existia na época do poeta.
Esse discurso provavelmente chegou para leitores/ouvintes/cantadores do contexto de Barros e para
os do final do século XX, tendo em vista que a última republicação desse folheto data de 1970.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na leitura dos folhetos escolhidos, notamos a recorrência de um projeto conservador, no qual
tanto o masculino, quanto o feminino são ancorados por barreiras rígidas, de modo que as mulheres
seriam educadas para se tornarem futuras mães, donas de casas e educadoras dos filhos/filhas, como
dissemos com base em Falci (2004). As noções de mulher nesses cordéis reproduzem um discurso
conservador, que consistem em “citações” repetidas para manter a mulher na condição de “mãe”,
“justa”, “educadora”, “religiosa”, “protetora” e “submissa”, pois esse é o perfil de mulher autorizado
nos folhetos.
Há nessas narrativas um ideal de mulher cristã, e, consequentemente evangelizadora da
sociedade. Essa questão se baseia nos comportamentos adotados pelas personagens e inspirados por
elas. No folheto “Os martírios de Genoveva”, o “eu” enunciativo faz referenciação a personificação
da mulher como santa e como anjo. Nessas reflexões, há o predomínio de uma mulher marial.

1197
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em relação ao ato performativo é necessário notar que cada folheto se constitui como um ato
performativo e o conjunto deles arquiteta uma grande ação de validar os sentidos sobre a mulher,
concebida como feminina, nos moldes do senso comum dominante. Frisamos que o ato performativo
não é um evento singular, por isso, estamos analisamos mais de um cordel. Através deles podemos
mostrar como se constrói um ato performativo que não é singular, uma vez que se configura como
um grande ato performativo de autorização de sentidos. É a historicidade acumulada que nos auxilia
a construir o ato performativo, entendendo também o agenciamento de normas que são realizados
com o objetivo de manter uma boa moral ou uma boa conduta, principalmente, sobre a figura
feminina.

REFERÊNCIAS
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizeréfazer. Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1990.

Anhanguera Educacional. Entrevista com Elex Neriz Turi. 43 '18. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=JcUC_7MvoaA>. Acesso em: 09 Mar. 2016.

BARROS, Leandro Gomes de. O testamento da cigana Esmeralda. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=5450
> . Acesso: 09 Fev. 2014.

BARROS, Leandro Gomes de. História da Donzela Teodora. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=5394
> . Acesso em: 09 Fev. 2014.

BARROS, Leandro Gomes de. Os Martírios de Genoveva. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=5428
> . Acesso em: 09 Fev. 2014.

FALCI, Miridan Brito Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: História das Mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2004.

GOLDENBERG, Mirian. A bela velhice. Instituto CPFL. Café Filosófico. ‘51”48. Disponível
em:<https://vimeo.com/102667295>. Acesso em: 31 Mai. 2016.

LÍVIA, Anna; HALL, Kiria. “É uma menina!”: a volta da performativdade à linguística. In. Anna
Christina Osterman e Beatriz Fontana (Org.). Linguagem, gênero e sexualidade – clássicos
traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p. 109 – 127.

1198
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MÍGUEZ, Antón Castro. Quuerizando o ensino de línguas estrangeiras: potencialidades do cinema
queer no trabalho com questões de gênero e sexualidades. Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo, 2014.

PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. Fundamentos da Linguística II. Universidade Aberta do Brasil.
Maceió, 2012.

SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. A construção discursiva de masculinidades bissexuais: um


estudo em linguística queer. Tese (doutorado). Programa de Pós-graduação em Letras. Universidade
Federal de Pernambuco.

SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. Preâmbulo para uma linguística queer – gêneros,
sexualidades e desejos na cultura heteronormativa e aspectos linguístico-discursivos. In.
Seminário de Pesquisa: Introdução à Linguística Queer. Programa de Pós-Graduação em Letras.
Maringá: UEM, 2015a.

SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. Da emergência da Linguística Queer. In. Seminário de
Pesquisa: Introdução à Linguística Queer. Programa de Pós-Graduação em Letras. Maringá: UEM,
2015b.

SANTOS FILHO, Ismar Inácio dos. Linguística queer – para além da língua(gem) como
expressão do lugar do falante. In. Escrit@s sobre gênero e sexualidade. São Paulo: Scortecci, 2015c.

1199
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMPORTÂNCIA DO PROTAGONISMO FEMININO DAS SUPER-HEROÍNAS: ESTUDO
DE RECEPÇÃO DOS FILMES CAPITÃ MARVEL E MULHER MARAVILHA

Caroline Kuviatkoski de Barros502


Valquíria Michela John503

Resumo: As editoras Marvel e DC Comics popularizaram as histórias em quadrinhos sobre super-heróis. Atualmente, tais
empresas possuem alcance mundial por meio do audiovisual. Nestes produtos midiáticos, frequentemente as mulheres
são invisibilizadas ou estereotipadas. Porém, há personagens femininas que rompem esse padrão em alguma medida,
como Mulher Maravilha (2017) e Capitã Marvel (2019). Neste artigo, intenta-se discutir a percepção das mulheres acerca
da importância da representação e do protagonismo feminino nos filmes de super-heroínas, tendo como objeto as obras
Capitã Marvel e Mulher Maravilha. Será abordada a relação estabelecida entre as personagens e as produções de sentidos
das mulheres que assistiram aos filmes, a partir da perspectiva teórica das representações (pelo viés dos Estudos
Culturais), com conceitos como representação social, representatividade, identidade e identificação.O estudo consiste em
uma pesquisa exploratória quantitativa e qualitativa, com coleta de dados via questionário online (divulgado em grupos
de fãs de super-heroínas no Facebook), e dois grupos focais (um com participantes consideradas fãs e outro com
participantes com menor familiaridade com as personagens). Os resultados indicam que as participantes percebem a
importância das representações analisadas, por dos estereótipos associados às mulheres no universo de super-heróis,
apesar de ainda reforçarem um padrão de beleza específico.

Palavras-chave: Super-heroínas; Representação social; Representatividade; Capitã Marvel; Mulher Maravilha.

INTRODUÇÃO
Nos produtos culturais sobre super-heróis, a figura feminina é frequentemente estereotipada,
sendo representada, por exemplo, de forma hipersexualizada ou extremamente frágil e indefesa. Uma
das primeiras formas de rompimento desse cenário nas histórias em quadrinhos (HQs) de super-heróis
foi o papel de protagonismo da Mulher-Maravilha, em 1940, após a popularização do movimento
feminista nos EUA.
Recentemente, HQs, séries e filmes do gênero de super-heróis estão apresentando mais super-
heroínas que, em alguma medida, rompem com os padrões tradicionais de gênero504. Por exemplo,

502
Mestranda do curso Comunicação e Formações Socioculturais, pela Universidade Federal do Paraná, campus
Juvevê. Pesquisadora do grupo Nefics (PPGCOM/UFPR) e da Rede Obitel Brasil. E-mail:
carol.kbarros@hotmail.com
503
Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora
permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-
UFPR), e dos cursos de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Pesquisadora do grupo Nefics (PPGCOM/UFPR) e da Rede Obitel Brasil. E-mail: vmichela@gmail.com
504
Gênero é aqui entendido na perspectiva de Joan Scott que estabelece que o caráter relacional das diferenças
socialmente construídas entre homens e mulheres. Nas palavras da autora: “O termo ‘gênero’ torna-se, antes, uma
maneira de indicar ‘construções culturais’ - a criação inteiramente social de idéias sobre papéis adequados aos
homens e às mulheres”. Ainda segundo Scott, "Gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta
sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, "gênero" tornou-se uma palavra
1200
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
no cinema há Viúva Negra e Feiticeira Escarlate, integrantes do grupo Os Vingadores; Gamora, de
Os Guardiões da Galáxia; e Mística de X-Men. Já na ficção seriada, Supergirl, Sky, Agente Carter e
Jessica Jones são protagonistas. Ainda, os filmes solo da Mulher Maravilha, em 2017, e da Capitã
Marvel, em 2019, são casos de protagonismo feminino e sucesso de bilheteria505.
As HQs de super-heróis se popularizaram nos EUA na década de 1930, por meio das editoras
Marvel Comics506 e DC Comics507. Hoje, além de produzirem esse formato, as duas empresas
possuem uma atuação forte na indústria audiovisual, seja a partir de filmes e séries produzidos em
seus próprios estúdios, ou com obras licenciadas para outros estúdios. Segundo a jornalista Natalia
Engler (2019), especializada em gênero, feminismo e cultura: os estúdios Marvel transformaram os
filmes de super-heróis no nicho mais rentável do cinema. Ainda, uma pesquisa de mercado baseada
em dados do Facebook mostrou que metade dos leitores de HQs são mulheres (PRISCILA BELLINI,
2016). Assim, vale frisar que conferir visibilidade às mulheres pode ampliar a fatia de mercado de
empresas como Marvel e DC.
Nesse sentido, por muito tempo, houve uma falta de investimento em narrativas sobre
personagens mulheres nesse meio. O fracasso de bilheteria de Mulher-Gato (2004) e Elektra (2005)508
são um indicativo disso. Ambos os filmes não receberam orçamentos multimilionários como aqueles
que normalmente são destinados às produções do gênero protagonizadas por homens. Dessa maneira,
mesmo para personagens já consagradas entre os fãs de quadrinhos, é raro ter um filme próprio em
que a super-heroína não é coadjuvante. É o caso de Mulher Maravilha, cujo filme solo estreou apenas
em 2017.
Dado o exposto, o objetivo do artigo é discutir a percepção das mulheres acerca da
importância da representação e do protagonismo feminino nas narrativas cinematográficas de super-
heroínas, tendo como objeto os filmes Capitã Marvel (2019) e Mulher Maravilha (2017). Será
abordada a relação estabelecida entre as personagens dessas obras e as produções de sentidos das

particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres
e aos homens (SCOTT, 1990, p. 75)
505
Disponível em http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-147073/. Acesso em 01 nov, 2019.
506
A Marvel Comics é uma editora norte-americana e mídias relacionadas. É considerada a maior editora de histórias
em quadrinhos do mundo.
507
DC Comics é uma editora norte-americana de histórias em quadrinhos e mídias relacionadas, subsidiária da
companhia Time Warner. Disponível em https://www.omelete.com.br/dc-comics. Acesso em 10 nov, 2019.
508
Disponível em http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/09/lista-reune-filmes-de-super-herois-que-
decepcionaram-os-fas.html. Acesso em 01 nov, 2019.
1201
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres que assistiram aos filmes, a partir da perspectiva teórica das representações (pelo viés dos
Estudos Culturais), com conceitos como representação social, representatividade, identidade e
identificação.
A ampla gama de meios de comunicação de massa ocupa um papel central na organização e
construção da realidade social (BERGER; LUCKMANN, 2004). Diante disso, a ficção não constitui
uma esfera isolada da realidade, mas um âmbito em constante relação com a vida social. Logo,
discutir como as representações das super-heroínas são percebidas, significadas e até mesmo
contestadas por mulheres que consomem tais filmes pode contribuir para refletir sobre como essas
narrativas circulam, são apropriadas e os processos de produção de sentido que desencadeiam.

METODOLOGIA
O presente artigo é resultado de uma pesquisa exploratória qualitativa, com análise ancorada
na perspectiva dos Estudos de Recepção (JACKS; ESCOSTEGUY, 2005). As técnicas de coleta de
dados utilizadas foram questionário online (elaborado no aplicativo Google Forms, que agrupa os
resultados em uma planilha e na forma de gráficos) e grupo focal.
O questionário continha 56 perguntas, sendo 53 de múltipla escolha e três abertas, a saber:
“Qual super-heroína você prefere? Por quê?”; “Qual a importância de mulheres serem protagonistas
histórias como essas?”; e uma questão perguntando a disponibilidade para participar do grupo focal,
solicitando telefone e e-mail da participante. O questionário também foi dividido em quatro seções:
dados gerais da respondente; questões sobre Mulher Maravilha; questões sobre Capitã Marvel; e um
comparativo das duas personagens.
Ele foi divulgado em cerca de 40 grupos de fãs das personagens no Facebook, e no feed
comum da pesquisadora na rede social, para obtenção de respostas de um público mais amplo, com
menor afeição e familiaridade com os filmes. Foram obtidas 726 respostas no período de 25 de abril
a 09 de maio de 2019. Posteriormente, foram realizados dois grupos focais. O primeiro ocorreu em
29 de agosto de 2019, com quatro participantes consideradas fãs. O segundo foi realizado em 3 de
setembro de 2019, também com quatro participantes, porém com menor grau de familiaridade com
as narrativas509.

509
Ambos foram realizados no Laboratório de Opinião Pública da Universidade Federal do Paraná, com média de
duas horas de duração
1202
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para selecionar as participantes, foram identificadas as residentes de Curitiba dentre as
respondentes do questionário online. Após, foi elaborado um critério baseado no grau de
envolvimento com os filmes. A pesquisadora selecionou perguntas-chave do questionário e
estabeleceu uma escala de pontuação para as respectivas respostas. Os pontos foram somados e as
respondentes mais próximas dos extremos foram convidadas para os grupos focais. Quanto mais
pontos, eram consideradas fãs, e quanto menos pontos, eram consideradas “não fãs”.
Neste artigo, o foco se deu na análise das falas dos grupos focais e nas respostas dissertativas
da pergunta “Qual a importância de mulheres serem protagonistas histórias como essas?”. Para tanto,
foram definidas unidades temáticas, seguindo a proposição da Análise de Conteúdo (LAURENCE
BARDIN, 2011), que estabelece a possibilidade de não estabelecer categorias a priori e sim permitir
que estas sejam desencadeadas pela exploração do material. Desse modo, as categorias surgem a
partir do exame dos padrões recorrentes nos textos e sua pertinência.
Esse processo foi viabilizado pelo software NVivo, pelo qual foram identificadas as palavras
mais citadas pelas respondentes. Porém, salienta-se que alguns termos identificados foram excluídos,
devido a sua baixa relevância (por exemplo: preposições e conectivos). A análise foi feita e
organizada com base nas cinco palavras mais recorrentes, selecionando-se as respostas mais longas e
mais curtas referentes a cada termo, a fim de conter tanto percepções mais elaboradas, geralmente de
fãs, quanto mais objetivas, normalmente de mulheres que não são fãs das super-heroínas.

PERFIL DAS PARTICIPANTES DA PESQUISA


Antes de adentrar a análise da recepção no que tange à percepção das participantes sobre a
importância do protagonismo feminino nos filmes do gênero de super-heróis, é necessário apresentar
o perfil das respondentes. A maioria das participantes era da região Sul, totalizando quase 50%. Com
cerca de 40%, apareceu a região Sudeste. Em seguida, houve um menor número de respondentes das
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ainda, houve uma respondente de Portugal e uma do
Paraguai.
Dentre todas as 726 respostas, 695 (95,7%) foram de pessoas do gênero feminino. Ainda,
houve uma pessoa (0,1%) não-binária e uma pessoa trans não-binária. Um total de 27 (3,7%) pessoas
do gênero masculino também responderam à pesquisa. E, duas respostas foram registradas como
“abafa” e “megazord”, as quais foram desconsideradas. A maior parte das respondentes (51,9%)

1203
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
são jovens adultas, possuindo entre 18 e 25 anos. Em seguida, 27,4% têm de 26 a 35 anos; 9,9% são
adolescentes de 13 a 17 anos; 5,4% possuem de 40 a 49 anos; 4,4% estão na faixa de 36 a 40 anos; e,
por fim, somente 0,8% possuem 50 anos ou mais. Além disso, a maioria (65,4%) identificou-se como
branca. Em seguida, 24,1% responderam que são pardas; 8,8% identificaram-se como negras; 1,2%
respondeu ser amarela; e 0,4% se identificou como indígena.
A maior parcela das respondentes (64,6%) é heterossexual. Em seguida, aparece a orientação
bissexual, com 23,1%. Em terceiro lugar, apareceu a orientação homossexual (6,7%). Após, 2,6% das
respondentes se identificou como pansexual; 2,1% como assexual; e 0,4% demissexual. Por fim, as
respostas sapiosexual, veganosexual e “ainda estou me descobrindo” contaram com apenas uma
respondente (0,1%) cada uma.

PERCEPÇÃO DA IMPORTÂNCIA DO PROTAGONISMO FEMININO NOS FILMES


Nas respostas dissertativas à pergunta “Qual a importância de mulheres serem protagonistas
histórias como essas (Capitã Marvel e Mulher Maravilha)?”, as seguintes palavras-chave tiveram o
maior número de menções: mulheres - 412 menções; representatividade - 152 menções; ser - 144
menções; mostrar - 116 menções; homens - 108 menções; podem - 84 menções; filmes - 77 menções;
importante - 76 menções; fortes - 73 menções. Abaixo, é possível observar uma nuvem de palavras,
que demonstra de forma visual quais foram os termos mais apresentados pelas respondentes.

IMAGEM 1 – NUVEM DE PALAVRAS SOBRE A PERCEPÇÃO DA IMPORTÂNCIA DO


PROTAGONISMO FEMININO NOS FILMES CAPITÃ MARVEL E MULHER MARAVILHA

1204
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FONTE: elaborado pela autora (2019). Imagem elaborada com o software NVivo.

INSPIRAÇÃO E A RELAÇÃO DA FICÇÃO COM A REALIDADE


A palavra-chave mais recorrente foi “mulher/mulheres”, que reforça a importância do gênero
como categoria primordial dessa análise. O foco de tais respostas foi a percepção das mulheres sobre
a importância dos filmes para proporcionar visibilidade às mulheres, bem como inspirar o público
feminino, sobretudo as jovens.
Essa perspectiva contribui para explicitar a relevância das narrativas ficcionais para a
realidade, principalmente associadas à visibilização e à possível ruptura de estereótipos acerca de
minorias, como as mulheres. Isso porque as representações sociais não são apenas opiniões sobre
algo, mas verdadeiras “teorias coletivas sobre o real” , que “determinam o campo das comunicações
possíveis, dos valores ou das ideias compartilhadas pelos grupos e regem, subsequentemente, as
condutas desejáveis ou admitidas” (MOSCOVICI, 1978, p. 23). Nessa lógica, apesar de atuar como
mantenedora de relações de desigualdade e poder, a mídia detém também a possibilidade de
renovação desse cenário. As representações sociais carregam o peso da história e da tradição,

1205
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mas também apresentam mudanças constantes relativamente à flexibilidade da realidade
contemporânea (ALEXANDRE, 2001, p. 123).
É relevante enfatizar aqui que o conceito de minoria não faz alusão a parâmetros quantitativos,
haja vista que uma maioria é um grupo de indivíduos que detêm a maior parte do status e do poder
(ADRIANE ROSO; et al, 2002). Ainda, segundo Moscovici (2000) “a maioria é definida em termos
de minorias e minorias em termos de maioria. Eles são termos mutuamente interdependentes.” (apud
ADRIANE ROSO; et al, 2002).
Nesse sentido, o protagonismo das mulheres nos filmes é visto como extremamente
importante pela maioria das respondentes. A resposta abaixo, por exemplo, destaca que Capitã Marvel
e Mulher Maravilha mostram para meninas que não existe uma forma certa de ser mulher, mas que
elas podem assumir diferentes papéis.

No cinema, é imensurável. Eu considero esses filmes um passo a mais no caminho por


representatividade. [...] Quando mostramos mulheres em posições “diferentes” das que
costumávamos mostrar, a mensagem que passamos é [...] que não há apenas um caminho
para uma mulher seguir, que os caminhos e as oportunidades são infinitas! (Participante
anônima nº 16).

Assim, os tensionamentos entre ficção/representação social e “vida real” são constantemente


mencionados. Por exemplo, são estabelecidos paralelos entre as heroínas do cinema e personalidades
políticas que são vistas como heroínas, conforme a resposta abaixo:

É indispensável. Parece uma comparação sem fundamento, mas compartilho das mesmas
sensações nessas duas situações: 1) política 2) cinema. [...] Quando vejo heroínas como Diana
Prince, Carol Danvers, Manuela D'ávila e Marielle Franco, meu coração se enche de
esperança. Nós continuamos lutando para ouvir nossa voz ecoar e criar espaço em todos os
meios. Espaço para que mais mulheres possam falar ao nosso lado. Mulheres superpoderosas
são muito importantes num mundo acostumado demais a ver homens poderosos (Participante
anônima nº 42).

Abaixo, mais um exemplo no qual o paralelo entre vida real e ficção é estabelecido. A
respondente aponta que as meninas vão poder ser protagonistas de filmes e, mais do que isso, de suas
próprias vidas.

É igualdade. Se os homens podem ser super heróis, porque as mulheres não podem ter papeis
similares a eles? [...] Eu amo filmes de heróis e sempre me imaginei quando criança como a
heroína que metia a porrada nos vilões, não no par romântico do herói bonitão. [...] Se vendo
esses filmes naturalmente desenvolvidos para um público masculino eu me imaginava
ali, imagine as crianças crescendo vendo filmes protagonizados por mulheres? Imagine
o que teremos de meninas criando histórias onde elas são mais que personagens
1206
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
secundárias e pares românticas e donas de suas narrativas? Tanto no imaginário como na
vida.(Participante Barbara Herdy)

Em tal sentido, a partir do trecho acima e dos demais já citados, é possível citar que, embora
o social e o simbólico sejam processos distintos, ambos são necessários para a construção,
manutenção e ruptura das identidades. A marcação simbólica permite dar sentido às práticas e
relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. Essas classificações e
diferenciações simbólicas são vividas nas relações sociais (KATHERYNE WOODWARD, 2000,
p.13). Trata-se de uma espécie de relação entre imaginário e vida, conforme mencionado pela
participante Barbara Herdy.
O exemplo abaixo também evidencia a relação entre as representações na mídia e o cotidiano
do público, que ocorre, para a participante, sobretudo por meio da inspiração510. Ainda, a frase: “a
arte sempre ajuda nas revoluções” faz uma alusão ao potencial de renovação das representações
sociais (ALEXANDRE, 2001). Além disso, menciona-se a importância da presença de representações
de mais grupos minoritários, além das mulheres, no gênero de super-heróis:

Tirando pela minha própria história vejo elas como uma fonte de inspiração. Os heróis não
só servem para nos entreter nas telas e sim para realmente nos inspirar a sermos pessoas
melhores. E é muito mais fácil e forte ter alguém como nós como fonte de inspiração. Pantera
Negra foi um filme que me ajudou demais a deixar de odiar o fato de ser negro, pois descobri
que não odiava a mim e sim o racismo ao meu redor. Assim como mulher maravilha e capitã
marvel tanto nos quadrinhos quanto nas delas me ajudaram demais a parar de odiar tudo o
que era dito feminino perto de mim. [...] A arte sempre ajuda nas revoluções. (Participante
anônima nº 304).

As respostas mais curtas abrangeram temas semelhantes aos já abordados, ressaltando a


importância do protagonismo para dar voz às mulheres, inspirar as pessoas, e romper com padrões de
gênero estabelecidos. Foi possível notar o estabelecimento de embates do tipo feminino versus
masculino, que evidenciam as relações de poder que residem em tais binarismos (SILVA, 2000).
Desse modo, segundo Stuart Hall (2000), identidade e diferença estão intrinsecamente ligadas e, além
disso, associam-se a estruturas discursivas e narrativas. Isto é, a lógica da diferença e das oposições
dualistas decorre da própria constituição da linguagem.

510
As respostas a outras perguntas do questionário veiculado reforçam a importância da inspiração ocasionada pelas
super-heroínas para a maioria das respondentes. Na pergunta “Você se sente inspirada pela personagem Mulher
Maravilha?”, 69,3% das mulheres respondeu “sim”. Referente à Capitã Marvel, esse número foi de 65,8%.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/67634/TCC%20-
%20CAROLINE%20DE%20BARROS.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 10 set. 2020.
1207
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ainda, Derrida (apud KATHERYNE WOODWARD, 2000) argumenta que a relação entre os
dois componentes de uma oposição envolve um desequilíbrio de poder. Em suma, todas as práticas
de significação abrangem relações de poder, visto que as formas simbólicas portam ideologias e
“ideologia é sentido a serviço do poder” (ADRIANE ROSO; et al, 2002, p.81). Algumas respostas
obtidas que podem ilustrar essa perspectiva são: “É preciso quebrar o padrão que as mulheres são
colocadas como ‘enfeites’ nos filmes”; “Para inspirar mulheres”; “Mostrar para as mulheres que elas
podem tanto quanto os homens”; “Mostrar que elas são tão capazes quanto eles”.

REPRESENTATIVIDADE FEMININA NOS FILMES


A segunda palavra-chave mais citada foi “representatividade”. Aliás, muitas participantes
responderam à pergunta sobre a importância das super-heroínas somente com a palavra
representatividade. A representatividade é um conceito da Teoria Política (BOBBIO, 1993), que está
associado à ideia de ocupar espaços e representar grupos sendo, portanto, entendida aqui como
sinônimo de presença, de visibilidade (sobretudo numérica) nas narrativas, enquanto representação,
seguindo a perspectiva da Hall (2006) é aqui compreendida enquanto o modo como os sujeitos são
narrados nos dispositivos midiáticos.
Haja vista que a identidade está ligada a sistemas de representação e possui estreitas conexões
com relações de poder, é fundamental destacar o conceito de representação, dado que ele se vincula
à produção, manutenção, contestação e negociação dos significados e das identidades. As
representações são sistemas simbólicos, como textos ou imagens, como os que são veiculados em
campanhas publicitárias, filmes ou revistas, por exemplo. Ainda, segundo Stuart Hall (2016),
representações sociais são maneiras de exprimir, traduzir, significar ou simbolizar as coisas – sejam
elas reais ou fictícias, concretas ou abstratas. Todo esse processo ocorre por via dos signos, que podem
ser imagens, palavras ou sons os quais proporcionem sentido, abarcando convenções culturais e
linguísticas segundo as quais esse sentido é concebido.
Em relação à menção da palavra representatividade, para as respondentes, as personagens
atuam como inspirações para o público, e o protagonismo reforça a ideia de que as mulheres têm a
capacidade para fazer o que quiserem. Ou seja, houve respostas com ênfase nas relações de poder e
nos papéis cristalizados entre maioria e minoria, no caso, homem e mulher:

1208
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É muito importante! Para que as meninas/mulheres tenham uma inspiração positiva, vejam e
sintam que elas são capazes de ser e fazer o que elas quiserem. Representatividade é
essencial! Muda a maneira de se ver no mundo, dos papéis que podemos exercer. Mulheres
não foram feitas para serem salvas, por exemplo. Eu cresci querendo ser o Batman, porque
não via nenhuma mulher protagonista com grandes produções ou merchandising. Quando
fizeram o filme da MM, fui 2x no cinema e chorei feito criança (Participante Paula
Rodrigues).

Aspectos como força e coragem são geralmente atribuídos a super-heróis e aos homens na
sociedade, assim como outras características que conferem a ideia de poder, mas os filmes analisados
invertem, em certa medida, essa lógica511, como evidenciado no trecho: “Representatividade. Cansada
de ver sempre ELES salvando o mundo” (participante anônima). Também é possível observar uma
ideia semelhante, relativa aos binarismos e aos papéis e padrões de gênero atribuídos aos homens e
às mulheres na resposta abaixo:

Representatividade. Quando eu era criança e queria uma camiseta do Superman, meu pai não
deixava porque isso era coisa de menino, isso me deixava muito triste, mas hoje eu me sinto
muito melhor porque eu vejo nelas que meu pai estava errado (Participante 152, Olívia
Guimarães).

Na percepção de muitas respondentes, os filmes também funcionam para popularizar o


feminismo, ultrapassando o âmbito de entretenimento das narrativas. Dessa maneira, mais uma vez
as participantes apontam a relação entre ficção e realidade e entre representações sociais e construção
das identidades:

Mulheres fortes e independentes como protagonistas são de extrema importância para a


sociedade atual pois além de trazerem inspiração para outras mulheres, são uma enorme fonte
de representatividade e de propagação do feminismo. [...] a representatividade feminina
positiva presente em filmes como Capitã Marvel e Mulher Maravilha não só entretém como
tem a função de mostrar para o público que mulheres são capazes de qualquer coisa, o que já
é um grande passo para a igualdade de gênero não apenas no mundo cinematográfico mas
também na sociedade em geral (Participante 321, anônima).

No entanto, apesar da predominância de uma visão otimista acerca dos filmes no que tange à
representatividade, as participantes também apresentaram considerações e críticas relevantes sobre a

511
Uma das perguntas objetivas do questionário foi “assinale com quais características da personagem você se
identifica”. Dentre as características que as respondentes mais se identificam com a personagem Capitã Marvel
estão: determinação (66,3%); feminismo (65,8%); empoderamento (63,7%); independência (60,5%); e coragem
(56,4%). Dentre as características que as respondentes mais se identificam com a Mulher Maravilha, as mais
populares foram: feminismo (72,1%), determinação (71%), independência (68,8%), empoderamento (67%), e
inteligência (60,9%). Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/67634/TCC%20-
%20CAROLINE%20DE%20BARROS.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 10 set. 2020.
1209
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
aparência física das personagens. Por exemplo, um aspecto bastante criticado foi a magreza de ambas
as super-heroínas. Uma respondente anônima do questionário online ressaltou que espera maior
representatividade de tipos de corpo entre as super-heroínas: “espero maior representatividade [...],
pois apesar de ter mulheres fortes aparecendo no cinema, ainda não consigo me ver (fisicamente)
nelas”. Contudo, algumas mulheres elogiaram a presença de heroínas magras, visto que, sobretudo
nos quadrinhos, seus corpos são hipersexualizados com proporções irreais.
Em suma, ficou evidente que as participantes esperam mais representatividade nas super-
heroínas, por exemplo, em relação à raça, à sexualidade e ao corpo. Além disso estar presente nas
respostas dissertativas da questão sobre a importância de mulheres serem protagonistas nos filmes de
super-heroínas, tal argumento é reforçado pelo resultados de outras perguntas do questionário.
conforme os gráficos abaixo:

IMAGEM 2 – GRÁFICO SOBRE A IDENTIFICAÇÃO COM A APARÊNCIA DA MULHER MARAVILHA

FONTE: elaborado pela autora (2019). Imagem elaborada com aplicativo Google Forms..

1210
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 3 – GRÁFICO SOBRE A IDENTIFICAÇÃO COM A APARÊNCIA DA CAPITÃ MARVEL

FONTE: elaborado pela autora (2019). Imagem elaborada com aplicativo Google Forms..

De acordo com os gráficos acima, a maioria das mulheres não se sente representada pela
aparência física das personagens, evidenciando que tais representações ainda estão circunscritas a um
estereótipo de padrão de beleza excludente - branco e magro.

IMAGEM 4 – GRÁFICO SOBRE A IDENTIFICAÇÃO COM A PERSONALIDADE E AS ATITUDES DA


MULHER MARAVILHA

FONTE: elaborado pela autora (2019). Imagem elaborada com aplicativo Google Forms..

1211
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 5 – GRÁFICO SOBRE A IDENTIFICAÇÃO COM A PERSONALIDADE E AS ATITUDES DA CAPITÃ
MARVEL

FONTE: elaborado pela autora (2019). Imagem elaborada com aplicativo Google Forms..

Já nos gráficos acima a situação é praticamente oposta. A maioria das respondentes se


identifica com a personalidade e as atitudes das personagens, seja parcial ou totalmente.

ROMPIMENTO DE ESTEREÓTIPOS E IDENTIFICAÇÃO COM AS SUPER-HEROÍNAS


O terceiro termo mais mencionado nas respostas foi “ser”. Muitas respondentes usaram tal
palavra relacionada ao fato de que as mulheres devem ser representadas de forma a terem a liberdade
de ser quem quiserem. Assim, as respostas associam-se aos rompimentos de estereótipos promovidos
pelos dois filmes estudados. Para Moscovici (1978), o estereótipo visa empreender a domesticação
daquilo que é estranho. Ainda, são generalizações as quais desconsideram diferenças internas
(BILLIGIMEIER, 1990). Nessa perspectiva, “na maior parte das vezes, não vemos primeiro para
depois definir, mas primeiro definimos e depois vemos” (LIPPMANN, 2008, p.151).
Pelas respostas do questionário, evidencia-se que no contexto dos produtos midiáticos do
universo de super-heróis, as personagens femininas são geralmente estereotipadas. Isso se dá por
meio, por exemplo, da hipersexualização; da representação enquanto sidekick ou ajudante do herói;
ou enquanto uma vítima frágil e indefesa, que precisa ser resgatada pelo homem e ser seu interesse
romântico:

1212
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em histórias de heróis as mulheres, geralmente, eram secundárias, sendo a mocinha a ser
salva, o par romântico no máximo uma sidekick, mas sempre usadas para o fortalecimento
da historio do herói. O aumento do protagonismo feminino nas histórias inspiram as meninas
que virão de que não servimos apenas como alavanca para os homens, e que sim, temos nosso
própria história, podemos ser nossa própria heroína e de quem estiver ao nosso lado
(Participante Deborah Mudin).

No entanto, para as respondentes, nos filmes Capitã Marvel e Mulher Maravilha as mulheres
são retratadas como fortes, empoderadas e independentes. Essa informação é reforçada por outro
dado, relativo à lista de palavras mais mencionadas nas respostas desta questão. Nela aparecem
termos como: “podem”, “fortes” e “capazes”, extremamente relacionados à ideia do empoderamento
feminino e igualdade de gênero nas representações midiáticas. Em tal lógica, podem ser citados
trechos escritos por participantes anônimas como: “Mostram para as garotas que elas podem ser o
que elas quiserem” e “É importante pra mostrar que a mulher não precisa ser delicada, que ela pode
ser forte, ser o que quiser até uma super heroína”.
Segundo as respostas, o principal estereótipo rompido pelas duas super-heroínas é das
personagens femininas precisarem ser constantemente salvas pelos personagens homens. Para as
participantes, Capitã Marvel e Mulher Maravilha são filmes que ressignificam isso, e permitem a
desconstrução de paradigmas no imaginário de homens e mulheres, conforme o exemplo: “mostrar
que não são apenas homens que podem ser poderosos, mulheres também, sem serem necessariamente
par romântico de alguém” (Participante anônima). O trecho abaixo apresenta uma ideia similar,
inclusive citando que os filmes podem contribuir para inibir pensamentos machistas:

Em um meio predominante masculino, no qual antes era comum tratarem a mulher como
"aquela a ser salva", ver mulheres exercendo papéis de destaques, fugindo do estereótipo
machista empregado na sociedade, dá representatividade para mulheres e principalmente
jovens. [...] E para os meninos, um contato com produções assim poderia ajudá-los a
desconstruir preceitos machistas que, ainda, são naturalizados: "mulher é a mais fraca"
(Participante 136, anônima).

A partir do trecho acima, é possível aludir ao argumento de que a mídia lida com a criação,
reprodução e difusão de representações sociais. Estas, por sua vez, contribuem para basear a
autoimagem, isto é, a forma como os grupos sociais entendem a si mesmos, e também a visão social,
ou seja, a compreensão do outro (ALEXANDRE, 2001).
Também nota-se a que o protagonismo feminino nas narrativas possibilita processos de

1213
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
identificação512 com as personagens, o qual é evidenciado no trecho a seguir, e reforça mais uma vez
a ideia de que as representações cinematográficas ajudam a construir o espectro de identidades
possíveis para as mulheres reais.

As representações têm influência na forma como construímos nossa própria identidade no


mundo. Claro que não dependemos somente disso, mas é importante atentar para as formas
disponíveis de "ser", que nos são apresentadas tanto por instituições (como família, escola,
religião...) quanto por mídias diversas (novelas, jogos, animações, filmes...) [...] Estas
representações trazem novas inspirações e oportunidades de identificação para pessoas que
não se viam representadas antes [...] (Participante 191 Mariana Fabris)

Nos Estudos Culturais, para o entendimento das dinâmicas pelas quais são construídas e
negociadas essas identidades e representações, a noção de identificação tem sido um conceito central.
Para Nixon (1997), “a ênfase na representação e o papel-chave da cultura na produção dos
significados que permeiam todas as relações sociais levam, assim, a uma preocupação com a
identificação” (apud KATHERYNE WOODWARD, p. 17). Tal concepção vem sendo utilizada
principalmente nas Teorias do Cinema, com o objetivo de elucidar como os sujeitos se identificam,
se colocam no lugar dos personagens e, mais do que isso, veem a eles mesmos em alguma imagem
ou personagem apresentado.
O conceito de identificação é originário da psicanálise, fundamental para a compreensão que
a criança adquire na fase edipiana acerca de sua visão de si mesmo como sujeito sexuado. Várias
delas coexistem no supereu (superego) de forma diversa, conflituosa e desordenada. A identificação
caracteriza o processo pelo qual há a ativação de desejos inconscientes relativamente a pessoas ou a
imagens, de modo que o sujeito se identifica com outros. Isso acontece tanto em decorrência da
ausência de uma consciência da diferença ou da separação, ou como resultado de supostas
similaridades (KATHERYNE WOODWARD, 2000).
Em vista disso, a identificação sugere uma fantasia de incorporação, marcada pela ideia
ilusória da união completa entre o “eu” e o “outro”. Tal ilusão fica evidente ao analisarmos o conceito

512
A identificação foi o foco da pesquisa de TCC que originou este artigo, de forma que foram analisados os modos
de identificação das consumidoras com as personagens, os quais estão associados às características pessoais, ao
tempo e grau de familiaridade com a narrativa, à relação de fã prévia pelas marcas Marvel ou DC e à representação
da feminilidade em cada super-heroína, por exemplo. A identificação mostrou-se um aspecto relevante para as
mulheres consumirem tais filmes e até definirem sua preferência por determinada personagem. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/67634/TCC%20-
%20CAROLINE%20DE%20BARROS.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 10 set. 2020.
1214
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de identificação enquanto um processo de articulação, suturação ou sobredeterminação, em vez de
uma subsunção. Ou seja, há sempre uma sobra ou uma falta, “demasiado” ou “pouco” e nunca um
ajuste pleno. A identificação “está fundada na fantasia, na projeção e na idealização” (HALL, 2000,
p. 107). Também é importante destacar a natureza dúbia da identificação: ao mesmo tempo que ela
impulsiona o eu para fora de si mesmo, realiza também um transporte do eu ao seu próprio
inconsciente.

VISIBILIZAÇÃO E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PELAS MULHERES


“Mostrar” foi o quarto termo mais mencionado nas respostas à questão “qual a importância
de mulheres serem protagonistas histórias como essas?”. Por meio da análise das respostas, percebe-
se que a palavra significa divulgar, tornar popular/rotineiro, tornar conhecido, naturalizar a
multiplicidade de identidades femininas e, sobretudo, a ocupação de diferentes espaços pela mulher.
Essa visão corrobora a tese do cinema como “um dos mais importantes espaços de produções
discursivas sobre a mulher” (MIRIAM ADELMAN, 2005), no sentido foucaultiano, da produção de
formas de pensar, de corporalidades e subjetividades. A importância dos filmes na construção do
imaginário social, na produção de identidades possíveis e na transformação de paradigmas associados
a certos grupos é explicitada na citação abaixo.

[...] a mídia, claramente, tem uma influência grande em como a sociedade se comporta, e
mostrar a força feminina, ainda mais porque são filmes que também atraem um público mais
jovem, é de extrema importância para naturalizar a força feminina (Participante 313,
anônima).

Há ainda respostas que tratam da ocupação feminina de espaços tradicionalmente


considerados masculinos (geralmente o âmbito público associado aos homens, e a esfera do
privado/do “lar” às mulheres), como forma de subversão dos atuais papéis de gênero. Algumas
respostas inclusive apontam a estratégia como solução para cessar o machismo e o patriarcado, como
expresso nos seguintes trechos de participantes anônimas: “Mostrar para as mulheres que elas podem
ocupar espaços masculinos, que elas são fortes e podem ser o que quiserem”; “mostrar o poder
feminino, mostrar que somos capazes de fazer qualquer coisa e que nosso lugar é onde quisermos e
não só dentro de casa”; e “acabar com o machismo e mostrar que somos fortes e capazes”.
Ainda sobre a ocupação de espaços tradicionalmente masculinos, parece ter uma

1215
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relevância significativa a representação da mulher como super-heroína. Esse tipo de protagonismo
demonstra a capacidade da mulher de proteger-se e não depender de um homem para garantir a sua
própria segurança. Ainda, declara que, mais do que isso, uma mulher pode proteger os outros à sua
volta.
Outro aspecto de destaque nas respostas com o uso do termo “mostrar” refere-se ao
protagonismo feminino em sua essência, como modo de garantir voz à mulher, em contraste com sua
habitual invizibilização no cinema. Sob esta ótica, destaca-se um aspecto fundamental a da teoria
feminista do cinema, a qual enfatiza que o filme é “uma estrutura dominada pelo olhar masculino”
(KAPLAN, 1995 apud MIRIAM ADELMAN, 2005, p.223). Segundo Teresa de Lauretis (1984, p.4
apud MIRIAM ADELMAN, 2005, p. 224) a narrativa do cinema é a expressão mais complexa e de
maior circulação da representação da mulher como espetáculo, no qual o feminino é um objeto, um
corpo a ser observado, para despertar o desejo sexual masculino. Ou seja, os filmes produzem olhares
sobre o mundo e, para Mulvey (1975 apud MIRIAM ADELMAN, 2005), o homem é,
tradicionalmente, portador ativo do olhar. Ao mesmo tempo, a mulher é objeto de desejo,
configuração conceituada como “the male gaze” (o olhar masculino), a qual fundamenta o prazer
visual no cinema. Segundo uma respondente anônima, Capitã Marvel e Mulher Maravilha subvertem
esse olhar “simplesmente pelo fato de mostrar que nós não somos invisíveis como muitos homens
acham e querem que sejamos. Não somos um objeto mas um sujeito”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo discutir a percepção das mulheres acerca da importância
da representação e do protagonismo feminino nas narrativas cinematográficas de super-heroínas,
tendo como objeto os filmes Capitã Marvel (2019) e Mulher Maravilha (2017). Dessa maneira pela
perspectiva teórica das representações sociais (pelo viés dos Estudos Culturais), abordou-se os
conceitos de representação, representatividade, identidade e identificação, bem como seus
atravessamentos na vida social.
Tanto as respostas do questionário quanto as discussões dos grupos focais permitiram discutir
que: mais do que gostar das personagens, as mulheres reconhecem que elas são marcos emblemáticos
e relevantes, no que se refere a protagonizarem filmes solo e de grande bilheteria do gênero
super-heróis e a romperem com estereótipos em suas representações. Desse modo, as

1216
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
respondentes notam a importância da representatividade feminina nos filmes abordados, além de
muitas se sentirem representadas na tela, o que contribui para a identificação. Todavia, há percepções
que, problematizam a aparência das personagens, por reproduzir um padrão de beleza branco e magro.
Ficou evidente, portanto, que a maioria das mulheres se identifica com a personalidade e valores das
personagens, mas não com a sua aparência física.
Relativamente à relação entre as narrativas e o cotidiano, a percepção das mulheres é que,
embora o objeto sejam super-heroínas, a representação das personagens e a realidade estão
intimamente relacionadas. Ou seja, a representação não é vista como algo isolado da vida social, mas
como uma forma de ver a si mesma na tela, romper estereótipos, mudar paradigmas e inspirar atitudes,
principalmente de oposição ao machismo. Dessa forma, para elas, a ficção contribui com o
rompimento de estereótipos e comportamentos muito presentes na vida real, no campo das
identidades e condutas esperadas e admitidas para as minorias, no caso as mulheres. Nessa lógica, a
maioria das participantes se sente inspirada pelas personagens, especialmente por aspectos
imbricados ao poder, feminismo, determinação, independência e liberdade.
Uma das limitações da pesquisa, que pode ser aprofundada em trabalhos futuros com
diferentes recortes, é um foco maior na interseccionalidade presente no tema. Assim, poderia haver
uma busca por um maior número de respondentes mulheres negras, gordas e LGBTQIA+, por
exemplo, a fim de problematizar como as interseccionalidades se relacionam com a visão do
protagonismo feminino nos filmes e se há identificação com as personagens. Ainda, é possível
realizar estudos com foco na questão da cultura de fã, discutindo como a afeição prévia pela narrativa
e a inserção em espaços de fãs se relaciona com as percepções sobre as personagens.

REFERÊNCIAS
ADRIANE, Roso et al. Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais de gênero.
Psicologia &amp; Sociedade, Florianópolis, v. 14, n. 2, 2002.

ALEXANDRE, Marcos. O papel da mídia na difusão de representações sociais. Comum, Rio de


Janeiro, v. 6, n. 1, p. 111-125, jul./dez. 2001.

BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de


sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.

BILLIGMEIER, R., Social Discrimination, The Encyclopedia of Human Development and

1217
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Education - Theory, Research and Studies, M. Thomas (Ed.), New York, Pergamon Press, 1990.

CAROLINE, Kuviatkoski de Barros. Representação das super-heroínas no cinema e


identificação feminina: um estudo de recepção dos filmes Capitã Marvel e Mulher Maravilha.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/67634/TCC%20-
%20CAROLINE%20DE%20BARROS.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 10 set. 2020.

BOBBIO, Norberto. Política. In BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO,


Gianfranco (Editores). Dicionário de Política. 5ªEdição. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1993.

DC Comics. Omelete, s.d. Disponível em https://www.omelete.com.br/dc-comics. Acesso em 10


nov. 2019.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomás Tadeu da Silva,


Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In T. T. Silva (Org.), Identidade e diferença. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2000.

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio: Apicuri, 2016.

JACKS, Nilda; ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Comunicação e recepção. São Paulo: Hacker,
2005

KATHERYNE, Woodward. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In T.


T. Silva (Org.), Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000 p. 73-102.

LAURENCE, Bardin. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

LIPPMANN, Walter. Opinião Pública. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MIRIAM, Adelman. Vozes, olhares e o gênero do cinema. In: FUNCK, Susana Bornéo e
WIDHOLZER, N. R. Gênero em discursos da mídia. Florianópolis/Santa Cruz do Sul, Editora
Mulheres/Edunisc, 2005, pp.223-244.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis:


vozes, 2010.

MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Tradução de Cabral. Rio de Janeiro:


Zahar, 1978.

NATALIA, Engler. Larson vibra, Marvel vende, mas qual é o real feminismo de "Capitã
Marvel"?. UOL TAB, 2019. Disponível em:

1218
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/08/larson-e-marvel-empolgam-mas-de-qual-
feminismo-capita-marvel-fala-mesmo.htm. Acesso em: 20 de nov. 2019.

PRISCILA, Bellini. Por que precisamos de mais super heroínas? SUPER INTERESSANTE,
2015. Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/por-que-precisamos-de-mais-super-
heroinas. Acesso em 10 de jun. 2018.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In T. T. Silva (Org),
Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.

1219
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SILENCIAMENTO DAS ATIVIDADES LABORAIS FEMININAS: ESPAÇOS DE
ATUAÇÃO E INVISIBILIDADE DO TRABALHO NA REGIÃO CARBONÍFERA DE
SANTA CATARINA

Cíntia Magnus Gomes513

Resumo: O presente trabalho trata da realização da disciplina de Estágio IV, realizado na sétima fase do curso de
Licenciatura em História. Este estágio obrigatório diferencia-se por inserir os espaços não formais de educação, no caso
do curso de História são eles os museus, memoriais, arquivos e centros de documentação. A escrita percorre as temáticas
que instituem os museus catarinenses e as relações do patrimônio com a identidade histórica da população. A atuação no
estágio contou com a montagem de uma exposição do acervo do Museu, contendo os objetos que foram utilizados pelas
mulheres. Com a finalidade de desnaturalizar o ambiente doméstico como feminino e problematizar a invisibilidade
feminina na história local. A mediação da exposição levantou discussões sobre o cerceamento do espaço de atuação delas,
suas funções e importância para as famílias e para que os homens exercessem o trabalho remunerado nas minas
carboníferas da cidade e região. Bem como, o rendimento proveniente do trabalho feminino ser considerado ajuda
financeira, mesmo que em valor igual ou superior ao salário dos homens.

Palavras-chave: Mulheres; História; Trabalho; Museu.

INTRODUÇÃO
O processo formativo de graduação no curso de História da Universidade do Extremo Sul
Catarinense - UNESC de Criciúma, Santa Catarina, inclui o Estágio IV. Trata-se da disciplina que
nos leva a desempenhar nossos conhecimentos prévios nos museus, memoriais, arquivos e centros
de documentação, os chamados espaços não formais de educação. A atuação nestes espaços torna-
se imprescindível para nossa formação como historiadores, haja vista que abrangem nosso campo
de atuação como profissionais da História, principalmente despertando interesse por especializações
nesta área, como, por exemplo, nos dando a noção da função do museólogo ou arquivista.
Culturalmente, os museus são pouco conhecidos e frequentados pela população em geral no
Brasil. Há desinteresse do público pelas instituições e um senso comum de que se trata de um local
de armazenamento de coisas antigas. Por outro lado, os objetos e documentos possuem certa
sacralização quando estão expostos nestes acervos, de modo que uma exposição pode durar anos, o
que se torna outro problema. Em nossas discussões e experiências escolares, percebemos que após
uma visita a um museu com a turma escolar, os alunos não se identificam nos objetos e não
compreendem claramente a relação destes com sua realidade. Desta forma, estes visitantes não veem
necessidade de uma segunda visita, em primeiro lugar pelo fato de já ter visto a exposição, que ali
permanece, na maioria dos casos, por muito tempo imutável.

513
Graduada no curso de História, pela Universidade do Extremo Sul Catarinense.. E-mail: cintiamagnus@unesc.net
1220
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Em sua maioria, os museus e arquivos de Santa Catarina são cunhados na imigração
europeia, passíveis de problematizações em diversos aspectos, principalmente no que tange a
identidade do estado dividida e generalizada em etnias. Outro movimento que inspira os acervos
museológicos e arquivistas da região sul de Santa Catarina se insere no bojo das atividades
carboníferas. Devido movimento migratório que causou a oferta de trabalho aos homens nas minas
de extração do carvão, muitas cidades compreendem sua formação extremamente ligada à
mineração, daí a origem de tantos museus com essa temática histórica. A historiadora Janice
Gonçalves em seus estudos acerca do patrimônio cultural ressalta que a construção determinadora
de patrimônio cultural vigente pode representar uma memória histórica excludente. Ou seja, o
patrimônio cultural homogêneo definido a uma região provavelmente representa uma parte da
população e, embora possa ser a maioria, não contempla as representações de outros grupos sociais
que ali viveram.
O museu ao qual realizei o presente projeto de estágio, não se enquadra nos moldes acima
expostos. Seu acervo é constituído por objetos diversos, aleatórias em suas datações de origem ou
funções em que eram empregados, de modo que não se limita a uma temática norteadora. A dita
organização de acervo que reforça o censo comum de que o museu nada mais é do que o local de
artefatos de tempos antigos, que não possuem relevância para estudos atuais. Simplesmente são
exibidos em nível de curiosidade do público. Possui de igual maneira um caráter excludente, ao
passo que a presente pesquisa tem a finalidade de trazer à tona as vivências femininas, utilizando-
se de uma ação educativa que problematiza sua invisibilidade histórica.

Nesse sentido, em muitas ações educativas, sem que se abandonasse o patrimônio cultural
formalmente constituído, foram superados os seus limites quando houve o reconhecimento
de outros sujeitos produtores de bens culturais e oferecido, a eles, apoio para que definissem
seus próprios acervos patrimoniais. (GONÇALVES, 2014, p. 89).

De acordo com a autora, não necessitamos tirar os méritos das representações de patrimônio
cultural, nem hierarquizar como mais ou menos relevantes. Basta suscitar a reflexão acerca das
múltiplas participações processuais que constituíram a história. Assim sendo, este estágio buscou
refletir sobre a enorme contribuição das mulheres e de suas atividades no cotidiano carbonífero de
Santa Catarina em geral, enquanto sua representação histórica situa-se nas sombras do homem,
o trabalhador mineiro.

1221
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
JUSTIFICATIV
Para o Estágio IV, de espaços não formais de educação, minha intenção foi atuar na cidade de
Içara, onde resido, a fim de compreender como o município se desenvolveu no contexto da extração
do carvão. O museu é formado pelo acervo da antiga Casa da Cultura Padre Bernardes Junkes e
encontra-se em anexo a Biblioteca Municipal Cruz e Souza, localizada514¹ no pavilhão da Fundação
Assistencial de Içara (FAI), desde o dia 3 de maio de 2017. O acervo histórico do município esteve
guardado desde 2014, devido à devolução da Casa da Cultura Padre Bernardo Junkes para a Paróquia
São Donato. O acervo é constituído por diversos objetos, tais como: móveis, equipamentos de rádio
e som, máquinas fotográficas e de escrever, instrumentos musicais, máquinas de costura, ferros de
passar, enceradeira e objetos domésticos em geral, sendo que nem todas as peças do acervo possuem
identificação de data e nome do doador.
Dentre eles, os objetos de uso feminino e doméstico me chamaram a atenção pelo maior
número e me fizeram pensar a respeito do contexto em que foram utilizados. Desta feita, meu projeto
pretende abordar o trabalho feminino, como ele foi invisibilizado no contexto do trabalho
empenhado na exploração carbonífera e o quanto a administração das mulheres, restrita a esfera
familiar ou não, contribuiu para o trabalho dos homens nas minas da cidade de Içara e região, bem
como para os sustentos de suas famílias. De forma geral, o intuito da atuação no Museu foi analisar,
a partir dos objetos do acervo do museu, a invisibilidade do trabalho feminino no âmbito doméstico
e sua relevância para os mundos do trabalho.
Historicamente o trabalho doméstico é naturalizado, caracterizado com menor importância.
Sabe-se que a divisão entre espaços de atuação da humanidade por gênero vem sendo construídos
desde a antiguidade. Sobre o Egito Antigo a historiadora Margaret Bakos, baseando seus estudos
em contos egípcios, afirma a existência de normativas cujo objetivo era definir o papel feminino
relacionado ao lar e criação dos filhos. Na Europa do século XIX, mais especificamente em Paris, a
análise de Michele Perrot sobre a classe operária enfatiza os jugos sociais que tentam mais uma vez
reforçar o discurso determinista de responsáveis por suas casas às mulheres e aos homens o contorno
do público. Entretanto, a necessidade de melhorar o orçamento doméstico as encoraja a empreender

514
No momento do estágio a Biblioteca e Museu localizavam-se no pavilhão da FAI. Em dezembro de 2018 houve
a mudança de endereço das instituições para O Terminal Rodoviário de Içara.
1222
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
outras funções fora de seus lares, e assim, a autora relata a circulação das mulheres em inúmeros
espaços, embora sempre balizados de alguma forma pela tutela masculina.

Trabalhadora ou ociosa, doente, manifestante, a mulher é observada e descrita pelo homem.


Militante, ela tem dificuldade de se fazer ouvir pelos seus camaradas masculinos, que
consideram normal serem seus porta-vozes. A carência de fontes diretas, ligada a essa
mediação perpétua e indiscreta, constitui um tremendo meio de ocultamento.(PERROT,
1988, p. 186)

Aqui podemos perceber também a culpabilidade do silêncio das mulheres na história devido
a sua escrita ter sido feita por homens, o que, em suma, remete mais uma vez aos recintos
determinados ao masculino e feminino, baseados no impedimento ao letramento das mulheres e a
participação delas na construção de conhecimento intelectual, durante muito tempo. Contudo, o
historiador Carlos Renato Carola em sua análise das relações de trabalho na região sul catarinense
no período de 1937 a 1964, evidencia a função feminina no contexto carbonífero local. Embora os
registros administrativos demonstrem a presença majoritária dos homens nas frentes de trabalho das
minas, o estudioso faz menção às esposas e mães e em que medida os papeis por elas desempenhados
contribuíram para o sucesso do mineiro em sua rotina. Desta forma, as atividades laborais da “dona-
de-casa” asseguram que os homens se apresentem aos seus postos de trabalho sem percalços. Em
outras palavras, o mineiro tinha sua roupa lavada e passada; na hora certa havia alimentação,
compatíveis com os ganhos familiares; os cuidados com os filhos eram atribuições femininas, dando
ao homem um momento de descanso ou sociabilidade dentro das vilas operárias. Formava uma rede
de ações que permitia que a força de trabalho masculina se desenvolvesse mais efetivamente
possível, além dos rendimentos econômicos que poderiam trazer.

Além de cuidar das crianças, da alimentação, limpar a casa, lavar a roupa, buscar água, buscar
e cortar tenha, elas ainda encontravam tempo para costurar, tecer, fazer doces, pães para
vender, etc. Atividades estas que propiciavam ganhos extras e que, em alguns casos,
garantiam o sustento da família. Embora consideradas como um “não trabalho”, tais
atividades nada tinham de complementares. E mesmo que algumas delas não propiciassem
rendimentos em moeda, possibilitavam o trabalho dos homens nas minas. (CAROLA, 1997,
p.121).

O discurso de que as funções femininas se limitam ao caráter privado é percebido quando se


fala da região carbonífera. Não incluir no contexto histórico as diversas tarefas atribuídas às
mulheres no domínio doméstico ou público, as torna sujeitos invisíveis na história local, como

1223
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
se somente a mão de obra masculina tivesse valor. Mesmo quando se admite certa monetarização
dos serviços por elas prestados, confere-se como valores auxiliares na economia dos lares operários.
Diante desta hierarquia social, a instância de destaque imbuída ao homem se justifica na sua
autoridade dentro da conjuntura familiar, mesmo que a certa altura, todo o governo do lar era
realizado pela mulher, que inclusive contaram com o apoio das empresas carboníferas neste sentido,
quando passaram a ter acesso direto aos salários de seus maridos, sob a justificativa de melhor
direcionarem os gastos, evitando desperdícios com jogatinas e bebedeiras nos bares ou prostíbulos,
o que além de prejudicar o sustento familiar, era visto como fator de risco a produtividade do
trabalhador.

Em relação ao controle do orçamento familiar, parece que o status de “rainha do lar”


conferido às mulheres mineiras da região carbonífera catarinense possibilitou-lhes o direito
de se apropriar dos salários de seus maridos e exigir “certas condutas” visando o bem-estar e
a sobrevivência da família. (CAROLA, 1997, p. 111).

A administração das compras do mês e das necessidades gerais da família, comumente


numerosa, a obrigatoriedade dos afazeres domésticos e as funções que lhes produzissem algum
rendimento monetário (como tecer e costurar, por exemplo) formava a cadeia de atividades que
exigia da mulher gerir o tempo diário e dividi-lo de modo a dar conta de tudo. As duplas jornadas
não eram raras, designando a dona de casa o comprometimento de trabalhar depois que todos já
haviam se recolhido, ainda que seu dever exigisse dela estar de pé antes do marido sair para
trabalhar.
O universo feminino encarcerado nos entraves de tantas obrigações abre algumas brechas de
sociabilidade justamente na realização de tais atividades, que exigem certa mobilidade das mulheres
dentro das comunidades. Entretanto, a circulação é restrita aos lugares onde a presença da dona-de-
casa fosse necessária para o bom andamento de seu cotidiano doméstico e tinha o intuito de fazer a
conduta da mulher adequada aos preceitos morais e sociais que lhe cabiam, como afirma o
historiador, estudioso das relações de gênero Ismael Gonçalves Alves.

Ao invés de serem admiradas como os homens, por serem trabalhadoras, elas precisavam
constantemente defender sua reputação como boas donas-de-casa, esposas e mães, pois, ao
escapar da esfera do privado, inscrevia-se nelas o estigma da culpa, do abandono do lar,
dos filhos carentes e do marido exausto em função das longas jornadas de trabalho.
(ALVES, 2010, p. 26).

1224
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ainda de acordo com o autor, a naturalização do trabalho doméstico aplicado às mulheres
foi reforçada na região sul do estado catarinense, quando as empresas carboníferas, aliadas ao
discurso sanitarista vigente na época, instituíram uma serie de ações sociais voltadas ás famílias
operárias mineiras. Justificadas na tentativa de trazer qualidade de vida e saúde ao público alvo
aumentavam ainda mais a distancia que separava os espaços femininos e masculinos na sociedade,
pois alinhavam “as identidades de gênero a um modelo totalizante e socialmente aceito, no qual as
mulheres eram as responsáveis pela administração da casa e da família.” (ALVES, p. 25). Os
cuidados com o lar são perpassados com a noção de caráter médico, sanitário e moral, no
comportamento que se espera das mulheres, no asseio das casas, das roupas e do preparo dos
alimentos.
Estas mulheres imersas a este discurso consideram natural criar as filhas para encontrarem
sua realização pessoal no matrimônio, no marido e na sua prole, enquanto educam os filhos para o
trabalho remunerado, pois a sua condição biológica “os qualificavam como homens fortes, corajosos
e provedores da família.” (CAROLA, 1997, p. 214), a fim de exercer socialmente sua autoridade
masculina e paternal frente à família que este indivíduo posteriormente constituir.
Sendo assim, a nossa sociedade traça conceitos binários em relação ao trabalho de acordo
com a condição biológica de gênero, e salvo algumas rupturas essa estrutura ainda alicerça o dia a
dia na atualidade. Meu projeto de atuação no Estágio IV no Museu Padre Bernardo Junkes tem como
finalidade problematizar estas relações de trabalho vinculadas aos objetos do acervo, procurando
desconstruir a naturalização dos afazeres domésticos como sendo femininos, bem como
compreender a realidade das mulheres invisibilizadas no processo histórico em questão pela
construção de diversos aspectos culturais. Há o ambicioso intento de retirar dos ombros femininos
o estigma de ajudadoras, auxiliadoras ou meras coadjuvantes diante do protagonismo do homem
trabalhador da mineração e as intitular como peças importantes, sem as quais, muito provavelmente,
não haveria sido possível fazer girar a engrenagem da exploração do carvão mineral na nossa região.

METODOLOGIA
Mediante de um levantamento dos objetos ligados ao trabalho feminino, houve a
montagem de uma exposição temporária no Museu Padre Bernardes Junkes.
1225
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O roteiro contou com três módulos. Cada um deles com uma breve descrição de agrupamento
e uma problematização que possibilitará que o público visitante consiga compreender o viés da
exposição mesmo sem a explicação de um mediador do museu.
Estabelecendo relações e problematizações relacionadas a cada módulo da exposição, o
objetivo foi promover a participação dos alunos ou do público visitante acerca das reflexões
levantadas, o que possibilitou utilizar a metodologia expositiva /dialogada na mediação.
No primeiro, escolhi expor peças relacionadas ao trabalho doméstico. Constituído por panelas,
chaleiras, tachos, pilões, balaios, gamelas, enceradeira. Perceber a construção da ideia de trabalho
doméstico como atribuições femininas de forma que tais objetos remetem as mulheres quando os
vemos. E o quanto a naturalização do espaço privado como responsabilidade feminina as retira do
cenário histórico local.
O segundo grupo de objetos reuniu artefatos que são normalmente relacionados aos homens
na lida rural, como enxada, foice, serrote, semeadeiras, bomba d’água e afins. Na conjuntura da época
eram ferramentas utilizadas também pelas mulheres, que eram encarregadas de conseguir a lenha para
o uso diário, por exemplo, mas também para a manutenção de algum tipo de lavoura para consumo
da família ou para a venda. Questionei junto ao público a respeito deste censo comum errôneo de que
serviços pesados eram exclusivamente direcionados aos homens.
O terceiro módulo foi constituído por objetos que transcorrem o público e o privado: ferro de
passar, tear, máquinas de costura e máquina registradora. As funções destes objetos no cotidiano das
mulheres traziam as obrigações de manter o vestuário da família em boas condições. Porém, produzir
o tecido, as vestimentas, lavar e passar roupas “para fora” e até atender nos pequenos comércios da
família eram atividades que conciliavam rendimentos para as mulheres sem as tirar do ambiente
doméstico. Assim promove-se uma discussão acerca das restrições à circulação feminina fora de suas
casas.
Para encerrar busquei estabelecer um diálogo com os alunos, alunas e público visitante,
indicando as permanências e rupturas nesse modelo estrutural de sociedade dicotômica entre homens
e mulheres, no que diz respeito às relações trabalhistas e sociais em geral.

1226
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
AÇÃO EDUCATIVA
Montada a exposição foi nomeada como: “Trabalho feminino invisível na História”. Tive total
liberdade para utilizar o espaço e o acervo, bem como tomar a iniciativa de convidar o grupo por
conta própria, já que o museu não obteve sucesso ao contatar escolas para confirmar uma segunda
turma para realizar a mediação.
Chegado o momento da atuação e a primeira turma que fez a visita ao museu, no dia 26 de
junho de 2018, foi o terceiro ano do Ensino Médio da Escola Estadual Professora Salete Scott dos
Santos, de Içara. De acordo com a direção da escola, a turma tem cerca de 20 alunos, e veio
acompanhada pela professora Denise, de Português. Iniciei a ação educativa mostrando o primeiro
módulo e respondendo ao meu questionamento sobre de quem eles lembravam ao ver os objetos
domésticos a resposta dos alunos foi à figura das avós. Explanei que o acervo do museu é formado
por abjetos que datam de 1900 até 1960 em sua maioria, e que neste contexto a cidade de Içara
instituiu-se como força de trabalho nas mineradoras de carvão da nossa região, bem como sobre o
discurso predominante que relaciona os afazeres domésticos às mulheres. No segundo módulo, a
resposta foi de que remetiam aos avós, como era de se esperar. Então, relatei o quanto estas atividades
eram praticas femininas também, e como era importante compreender a estrutura que os homens
tinham no trabalho das mulheres em suas casas para melhor desempenhar sua função nas minas.
Passando ao terceiro grupo de objetos, falamos sobre o trabalho remunerado das mulheres e somente
com questionamento da professora sobre a possibilidade de mulheres trabalharem nas empresas
mineradoras, convidei os alunos a explorarem os objetos e tirarem as dúvidas que surgissem. Os
adolescentes observaram os objetos, alguns lhes chamaram atenção, mas logo dispersaram e foram
ao espaço da biblioteca olhar os livros. Encerrei a mediação frisando a participação feminina no
trabalho da época em questão e o quanto devemos questionar o fato de sua invisibilidade na História
que estudamos.
A segunda turma foi o grupo EFIAS, Entidade Feminina Içarense de Assistência Social. É um
grupo de 20 a 30 mulheres em média, maioritariamente idosas, que se reúnem todas as segundas feiras
à tarde para conversar, dançar, jogar bingo, e assistir apresentações culturais que organizam para elas,
etc. Então, no dia 02 de julho de 2018 atenderam ao meu convite e foram ao museu Padre Bernardo
Junkes.

1227
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Grande foi minha surpresa ao vê-las chegar e já se dirigirem aos objetos com entusiasmo,
reconhecendo-os como tão familiares. A empolgação foi tamanha que foi preciso alterar a voz para
ser ouvida por elas e começar a mediação da exposição. Após me apresentar iniciei no primeiro
módulo e as respostas em coro quanto a quem remete os utensílios domésticos: “a nós!”, disseram
elas. Ao perguntar por que, o silencio foi quebrado por uma afirmação: “porque sempre fomos nós,
as mulheres, que fizemos estas coisas!”. Meu segundo por que não obteve resposta. Desta feita, falei
sobre o discurso construído historicamente que busca limitar a circulação feminina no âmbito
doméstico, delegando a elas a criação dos filhos e cuidados com a casa.
Contextualizando com a exploração do carvão, elas foram se dizendo filhas, irmãs e mulheres
de mineiros. Novos relatos de muito trabalho em seus cotidianos foram surgindo quando passamos
ao segundo agrupamento, o das ferramentas. Questionei de quem eram estas peças e algumas já
afirmaram que, embora fossem do pai ou do marido, elas que exerciam as funções de cuidar do
quintal, da horta ou de alguma plantação para consumo da família, bem como buscar água e lenha,
posta a ausência de água encanada e de gás. Manusearam os objetos com saudosismo e brincadeiras,
entretanto, lembraram-se de uma época de trabalho árduo, da qual sofrem a consequência em
problemas de saúde nos dias atuais.
Quanto aos artefatos relacionados ao trabalho remunerado, não foi diferente. Algumas eram
costureiras aposentadas e queixaram-se de ter hoje problemas de visão devido a costurar a noite, com
pouca iluminação, mas segundo elas, era o tempo que tinham, pois o restante do dia consumia-se em
outras atividades. Outras lembraram que tinham “quatro lavações”, ou “sete lavações”. Isto significa
que além de lavar e passar as roupas de sua família eram responsáveis por deixar limpas e passadas
as vestimentas de mais quatro ou sete famílias, as mais abastadas, que tinham possibilidade de pagar
pelo serviço. Não obstante, suas memórias da infância continham as responsabilidades das quais
eram imbuídas, quando ainda meninas precisavam trabalhar o algodão e fiar pra que suas mães
utilizassem nos teares, ou até mesmo a necessidade de ajudar nas lavouras dos pais.
Não se limitaram a falar de suas obrigações, mas relataram a condição social que fazia dos
mineiros pretendentes adequados para o casamento por terem salário fixo e não dependerem da
agricultura, que disseram ser muito inconstante em seus rendimentos financeiros. Relataram também
que os filhos em certa idade se tornavam a mão de obra que aliviava a carga de trabalho das mães
no cotidiano e quão numerosas eram as famílias.

1228
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Caminhando para o fim da mediação, levantei a reflexão de como os rendimentos que elas
obtinham eram equivalentes inúmeras vezes aos dos homens, contudo, persistia o caráter de ajuda
feminina nas finanças da família. Concordaram e reforçaram que o trabalho masculino nas minas era
verdadeiramente arriscado, mas o dia a dia das mulheres era igualmente cansativo. Compartilharam
experiências relacionadas a alguns objetos do acervo e viram-se representadas na exposição.
Posso afirmar que este foi o momento mais gratificante do meu estágio. Ouvir daquelas
mulheres a alegria de se ver na história da cidade por meio da exposição que montei. Afirmaram que
irão convidar os filhos e netos para visitar o museu, para que eles compreendam a importância das
atividades desempenhadas pelas mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realmente, nossas discussões sobre educação para o patrimônio fizeram todo sentido
para mim. Os alunos não se identificaram tanto com o acervo, pareceu-lhes indiferente, uma realidade
distante. As senhoras viram-se como sujeitos da história, como se elas próprias estivessem presentes
nos objetos que representavam a ação delas em outra época.
Desta feita, conhecemos o que cada indivíduo ou comunidade entende como seu patrimônio
histórico. As duas gerações convivem na mesma cidade, nos mesmos espaços, nas mesmas famílias
e, de certa forma, compreendem sua identidade cultural distintamente, formada por outros discursos.
Não tenho convicção de ter alcançado todos os objetivos a que se pretendia meu projeto de
estágio, entretanto, fica a expectativa de ter semeado alguma curiosidade na turma de alunos quanto
à realidade dos avós, por exemplo, pois foi a estes que relacionaram as peças do museu. Entre o grupo
EFIAS fiquei mais confiante de que elas assimilaram a finalidade da ação educativa, pelos diálogos
e pelas relações que foram estabelecendo do acervo que viram exposto com suas vivências pessoais.

REFERÊNCIAS
ALVES, Ismael Gonçalves. Divisão sexual dos espaços: práticas e sociabilidades femininas e
masculinas nas vilas operárias do sul de Santa Catarina (Brasil 1930-1960). Nuevo Mundo-
Mundos Nuevos, v. 01, p. 01-13, 2010.

ALVES, Ismael Gonçalves. Famílias operárias mineiras e relações de gênero: a construção do


feminino através de cursos populares na região carbonífera catarinense (1950-1960). Revista
Tempo e Argumento, Florianópolis, v.2, n. 2, p. 21- 43, jul./ dez. 2010.

1229
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CAROLA, Carlos Renato. Dos subterrâneos da História: as trabalhadoras das minas de carvão de
Santa Catarina (1937-1964). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis.

BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

GONÇALVES. Janice. Da educação do público à participação cidadã: sobre ações educativas e


patrimônio cultural. Revista Unila salle, Canoas, n. 18, p. 83- 97, dez. 2014.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1988.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade. Porto
Alegre, v. 20, 2, p. 71-99, jul./dez, 1995.

1230
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - AFETOS E DESEJOS
EM TEMPOS DE RISCO: AS
LESBIANIDADES NA
PANDEMIA
COORDENAÇÃO

Dra. Rafaela Vasconcelos – UFRGS


Mestranda Raquel Basilone Ribeiro de Ávila – UFRGS

1231
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO COMO CATEGORIA PARA PENSAR O
SOFRIMENTO DE LGBT+ E SUAS FAMÍLIAS DE ORIGEM

Carolina Stéphanie Rodrigues Gonçalves515

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de identificar as relações existentes entre o capítulo "O sofrimento ético-político
como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão", de Bader Sawaia (2008), do livro As artimanhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social, de organização da mesma autora, com o projeto de pesquisa por mim
desenvolvido enquanto mestranda em Psicologia. Meu projeto assume como problema o de saber como mães
heterossexuais, informadas sobre a homossexualidade de seus/suas filhos(as), administram a informação referente a esse
aspecto da vida dele(s). Por meio dele, busco abrir espaços de escuta ao sofrimento frequentemente vivido por mães de
pessoas gays/lésbicas quando da tomada de conhecimento da orientação afetivo-sexual homossexual de seus/suas
filhos(as), por ser esta uma orientação sexual tida como indesejável socialmente - sofrimento, portanto, como podemos
concluir, que possui, obviamente, uma gênese social radicada no preconceito contra pessoas LGBT+ e no heterossexismo.
Estou considerando, portanto, que o sofrimento vivenciado por LGBT+ e, por exemplo, por suas "famílias de origem" é
um dramático exemplo de sofrimento ético-político, por ser um sofrimento perversamente imposto pelas normas
disciplinadoras da sexualidade e do gênero, provindas do processo de exclusão social hétero e cisnormativo, quando não
também por outras normas excludentes.

Palavras-chave: Lgbt's; Sofrimento ético-político; Famílias de origem.

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem o objetivo geral de identificar as relações existentes entre o capítulo "O
sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão", de Bader Burihan
Sawaia (2008), do livro As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade
social, de organização da mesma autora, com o projeto de pesquisa por mim desenvolvido enquanto
mestranda em Psicologia do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade
Federal de São João del-Rei (UFSJ).
Meu projeto de pesquisa enquanto mestranda assume como problema de pesquisa o de saber
como mães heterossexuais e cisgêneras, informadas sobre a homossexualidade de sua(s) filha(s) e/ou
de seu(s) filho(s), administram a informação social referente a esse aspecto da vida dele(s). Para
construí-lo, recorri e continuo a recorrer a algumas de minhas emoções proscritas, emoções estas
descritas por Alison M. Jaggar (1997) como sendo aquelas emoções convencionalmente inaceitáveis
experimentadas por algumas pessoas em função de sua situação social subordinada. No meu caso,
não experimento emoções convencionalmente aceitáveis em relação à atração afetivo-sexual por
outras pessoas, uma vez que me identifico enquanto lésbica, bem como me revolto contra as maneiras

515
Mestranda do curso Psicologia, pela Universidade São João del-Rei, campus Dom Bosco. E-mail:
crln.stephanie@gmail.com
1232
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
socialmente sancionadas de tratar pessoas LGBT+, maneiras estas heterossexistas. O heterossexismo
pode ser descrito como

[...] a discriminação e a opressão baseadas em uma distinção feita a propósito da orientação


sexual. O heterossexismo é a promoção incessante, pelas instituições e/ou indivíduos, da
superioridade da heterossexualidade e da subordinação simulada da homossexualidade. O
heterossexismo toma como dado que todo mundo é heterossexual, salvo opinião em
contrário (WELZER-LANG, 2001, p. 467-468)

Reconheço aqui, portanto, que minhas emoções proscritas foram e são necessárias para o
desenvolvimento de meu projeto, na medida em que, mais evidentemente, proporcionaram uma
motivação política à minha investigação bem como me ajudaram a determinar a seleção de meu
problema de pesquisa e o método516 pelo qual ele é investigado.

DESENVOLVIMENTO
Mas demos um passo atrás e voltemo-nos para o que nos diz uma de nossas interlocutoras,
Alison Jaggar (1997), no capítulo "Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista", do
livro Gênero, corpo e conhecimento, de editoria da mesma autora e Susan R. Bordo.
A autora no texto em questão se propõe a contestar o suposto hiato que existiria entre emoção
e conhecimento. Sua proposta vai na direção da construção de uma ponte sobre esse hiato, na medida
em que sugere que as emoções, ao invés de serem perniciosas ao conhecimento, poderiam ser, em
verdade, úteis e mesmo necessárias a ele. Rompendo assim com uma tradição filosófica ocidental de
caráter positivista517, pela qual, de modo geral, as emoções são consideradas como potencial ou de

516
De acordo com Gibson Burrell e Gareth Morgan (1979), a metodologia diz respeito à maneira como se tenta
proceder às investigações e obter conhecimento a respeito do mundo social. Em linhas gerais, há duas posições a
este respeito: por um lado, há posições que tratam o mundo social como sendo uma realidade concreta e objetiva, e
que, por isso, buscarão por regularidades que sejam explicativas de seus elementos constituintes, tal como o fazem
as metodologias nomotéticas; e há aquelas posições que tratam o mundo social como sendo possuidor de uma
qualidade mais subjetiva e maleável. Estas metodologias, as idiográficas, buscam menos o geral e o universal e mais,
ao contrário, compreender a natureza relativa do mundo social e os entendimentos únicos e particulares dos
indivíduos que o compõem. Em nosso projeto de pesquisa, nossos pressupostos metodológicos serão idiográficos.
517
Quanto aos pressupostos epistemológicos, também de acordo com Burrell e Morgan (1979), eles diriam respeito
às bases do conhecimento, isto é, à forma como o conhecimento pode ser obtido, como o "verdadeiro" e o "falso"
podem ser identificados e como se daria a transmissão de conhecimento, por exemplo. As posições extremas que
rivalizariam quanto aos pressupostos epistemológicos seriam as dos positivistas e as dos antipositivistas. Tomado
enquanto um conceito descritivo que é, o positivismo é compreendido pelos autores como "um tipo particular de
epistemologia" que se refere àquela postura que busca explicar e predizer os acontecimentos do mundo social por
meio da busca pelo de que regular há nele e pelas relações de causalidade de seus elementos constituintes. Já a outra
1233
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
fato prejudiciais ao conhecimento, e postas em contraste com a razão, julgada a faculdade
indispensável ao conhecimento, Alison Jaggar (1997) argumenta que nossas atitudes emocionais
influenciam nossa avaliação e nossa observação, inclusive científicas, direcionando-as e moldando-
as em alguma medida. De acordo com Alison Jaggar (1997),

[A] experiência individual da emoção focaliza a atenção seletivamente, direcionando,


moldando e até definindo em parte nossas observações, exatamente como nossas
observações direcionam, moldam e definem em parte nossas emoções" (ALISON
JAGGAR, 1997, p. 167-168).

Para a autora, haveria dois tipos de emoções, como, em certa medida, já antecipamos: emoções
convencionalmente aceitáveis e emoções convencionalmente inaceitáveis, chamadas pela autora,
como já dissemos, de emoções proscritas. Para Alison Jaggar (1997), as pessoas nem sempre
experimentariam apenas emoções do primeiro tipo, isso em função de sua situação social
subordinada. "A situação social dessas pessoas torna-as incapazes de experimentar as emoções
convencionamente prescritas [...]" (ALISON JAGGAR, 1997, p. 174). A autora mobiliza dois
exemplos que nos ajudam a melhor compreender seu argumento. Para ela, seria mais provável, por
exemplo, que pessoas negras se incomodassem ao ouvirem piadas racistas, ao invés de acharem graça
desse ato, assim como seria mais provável que mulheres se incomodassem ao serem alvos de
importunações machistas. Para a autora, continuando seu argumento, emoções como essas, que se
tornam feministas, por exemplo, quando incorporam percepções e valores feministas, e que se tornam
anti-racistas quando incorporam percepções e valores anti-racistas, forneceriam as bases para o
surgimento de percepções, normas e valores opostos aos predominantes e, assim, poderiam "[...] se
tornar subversivas tanto política como epistemologicamente" (ALISON JAGGAR, 1997, p. 174).
Segundo Alison Jaggar (1997), as visões subversivas que muitas mulheres já possuem,
inclusive as visões de cunho teórico-crítico, como a feminista, por exemplo, seriam devedoras de suas
próprias emoções proscritas, emoções estas que, para Alison Jaggar (1997), seriam "[...] elas mesmas

postura que com esta rivaliza, a epistemologia do antipositivismo, embora possa assumir várias roupagens, se
caracteriza precisamente por não acreditar haver muito sentido na busca por leis, regularidades e causalidades no
mundo social. "Para os antipositivistas, o mundo social é essencialmente relativista e pode somente ser entendido
do ponto de vista dos indivíduos que estão diretamente envolvidos nas atividades que estão sendo estudadas"
(BURRELL; MORGAN, 1979, p. 5). Em nosso projeto de pesquisa, nossos pressupostos epistemológicos serão
antipositivistas.
1234
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
respostas apropriadas a suas situações subordinadas" (ALISON JAGGAR, 1997, p. 179). O que a
autora está afirmando é que

Assim como motivam a pesquisa crítica, as emoções proscritas podem nos tornar capazes de
perceber o mundo de modo diferente daquele retratado nas descrições convencionais. Podem
proporcionar as primeiras indicações de que algo está errado com a maneira pela qual os
supostos fatos foram construídos, com as compreensões aceitas de como as coisas são.
Emoções convencionalmente imprevistas ou inadequadas podem preceder nosso
reconhecimento consciente de que as descrições e justificações aceitas, frequentemente, tanto
escondem como revelam sobre o predominante estado de coisas. Somente quando refletimos
sobre nossa inicialmente confusa irritabilidade, revolta, raiva ou medo, podemos trazer à
consciência nossa percepção mais profunda de que estamos numa situação de coerção,
crueldade, injustiça ou perigo (Jaggar, 1997, p. 175).

Assim, a partir de um exercício auto-reflexivo, que focalizou "[...] não só o mundo exterior,
mas também nós mesmas(os) e nossa relação com o mundo [...]" (ALISON JAGGAR, 1997, p. 179),
reflito, aqui, neste trabalho, sobre meus próprios sofrimentos enquanto mulher lésbica, e como eles
foram responsáveis por trazer a minha consciência o reconhecimento de que pessoas LGBT+ são
vítimas dessa mesma situação de coerção, crueldade, injustiça e perigo, descrita por Alison Jaggar
(1997).
Nossa outra interlocutora, Bader Sawaia (2008), também opera com a mesma estratégia de
Alison Jaggar (1997). Como a primeira mesmo nos diz nas páginas iniciais do capítulo "O sofrimento
ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão", sua estratégia no referido
capítulo é de "[...] recuperar conceitos discriminados pelas ciências nas análises das questões sociais,
e de recuperar por que eles foram excluídos ou classificados no rol do patológico e da desordem"
(BADER SAWAIA, 2008, p. 98).
Como afirmado por Fátima M. A. Bertini (2014), o estudo das emoções tornou-se, para Bader
Sawaia, um eixo epistemológico fundamental, e isso porque a autora não se limita a introduzir a
emoção como tema de pesquisa e de reflexão, como ela mesmo nos adverte, mas porque ela dá um
passo além ao mudar a própria perspectiva analítica desse conceito, concebendo, pois, a

[...] emoção positivamente, como constitutiva do pensamento e da ação, coletivos ou


individuais, bons ou ruins, e como processo imanente que se constitui e se atualiza com os
ingredientes fornecidos pelas diferentes manifestações históricas. Portanto, um fenômeno
objetivo e subjetivo, que constitui a matéria-prima básica à condição humana (BADER
SAWAIA, 2008, p. 100).

1235
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Como a própria Bader Sawaia (2008) colocará logo no início de seu texto, trata-se de uma
opção, dentro do estudo das emoções, pelo conceito de afetividade e, em especial, pelo conceito de
sofrimento para estudar a exclusão, que, mais adiante em sua argumentação, será qualificado como
um sofrimento do tipo ético-político e será adotado como uma categoria analítica da dialética
exclusão/inclusão.
Como argumentado por Bader Sawaia (2008), via de regra, ora a afetividade é absolutamente
desconsiderada ora é encarada como algo negativo, obscurecido, desordeiro, como um empecilho,
como algo incontrolável e depreciado moralmente. Na contramão dessa perspectiva prevalecente no
quadro histórico também das Ciências Humanas, o que a autora propõe é que a afetividade passe a
ser olhada positivamente e não como coadjuvante ou má. A afetividade é entendida por ela como
sendo a

[...] tonalidade e a cor emocional que impregna a existência do ser humano e se apresenta
como: l) sentimento: reações moderadas de prazer e desprazer, que não se refere a objetos
específicos. 2) Emoção, fenômeno afetivo intenso, breve e centrado em fenômenos que
interrompem o fluxo normal da conduta (BADER SAWAIA, 2008, p. 98).

Ao ser assim vista, a afetividade negaria aquelas perspectivas assentadas no mito da


investigação imparcial, sem perder jamais o rigor teórico-metodológico, e com o benefício de manter
viva, segundo a autora, a capacidade do(a) analista de se indignar diante das mazelas sociais. Além
disso, para a autora, os sofrimentos seriam vivenciados pelo indivíduo, mas não possuiriam sua
gênese nele, "[...] e sim em intersubjetividades delineadas socialmente" (BADER SAWAIA, 2008, p.
99). Assim, para a autora, os sofrimentos seriam socialmente construídos em vários níveis e seriam
oriundos de questões sociais dominantes em uma dada época. Essa compreensão do significado social
do sofrimento vai ao encontro do que Chiara Pussetti e Micol Brazzabeni (2011) denominam como
sofrimento social. Para estes autores:

O sofrimento social [...] resulta de uma violência cometida pela própria estrutura social e não
por um indivíduo ou grupo que dela faz parte: o conceito refere-se aos efeitos nocivos das
relações desiguais de poder que caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo,
a uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas
fraturas devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana.
O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, econômico e
institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de poder podem
influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento social é o resultado, em
outras palavras, da limitação da capacidade de ação dos sujeitos e é através da análise
1236
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
das biografias dos sujeitos que podemos compreender o impacto da violência estrutural no
âmbito da experiência quotidiana (CHIARA PUSSETTI; Brazzabeni, 2011, p. 469).

Bader Sawaia (2008), assim como Chiara Pussetti e Brazzabeni (2011), propõe que o
sofrimento que mutila cotidianamente o cotidiano, a autonomia e a subjetividade das pessoas seja
trazido à tona também pelas ciências. Seria papel, especialmente, da Psicologia Social colaborar nessa
tarefa, pois essa seria sua área de competência. E nesse aspecto reside uma forte proximidade do texto
de Bader Sawaia (2008) com meu projeto de pesquisa, pois busco, por meio de meu projeto, abrir
espaços de escuta, no caso especificamente de minha investigação, ao sofrimento frequentemente
vivido por mães de pessoas homossexuais quando da tomada de conhecimento da orientação afetivo-
sexual homossexual de seus filhos e/ou filhas, por ser esta uma orientação afetivo-sexual tida como
indesejável socialmente - sofrimento, portanto, como podemos concluir, que possui, obviamente, uma
gênese social radicada no preconceito contra pessoas LGBT+ e no heterossexismo, já tratado
anteriormente. Ademais, compartilho do entendimento de Bader Sawaia (2008) de que a exclusão
pode e deve ser discutida a partir da afetividade e também acredito poder qualificá-la de "ético-
política", assim como feito por essa autora.
Ao serem qualificadas como ético-políticas, as emoções passam a incorporar o corpo do
sujeito, outrora desencarnado e tido como abstrato nas análises que não o fazem. Neste momento do
texto, a autora afirma que o "[c]orpo é matéria biológica, emocional e social, tanto que sua morte não
é só biológica, falência dos órgãos, mas social e ética. Morre-se de vergonha, o que significa morrer
por decreto da comunidade" (BADER SAWAIA, 2008, p. 101). Esse entendimento do corpo como
uma confluência biológica, emocional e social, daí a possibilidade, por exemplo, de morte não apenas
em um sentido biológico, mas também social e ética, converge com uma discussão feita por Edith L.
Modesto (2010), uma das interlocutoras mais importantes em meu projeto de pesquisa.
Edith Modesto (2010), no caminho de compreender o percurso da rejeição/aceitação das mães
face à tomada de conhecimento da homossexualidade de seus filhos e/ou filhas, à luz dos principais
efeitos passionais que disso se precipitarão, aponta a "vergonha" como uma das paixões negativas
mais importantes, por sua recorrência nos depoimentos por ela colhidos, em meio há muitas outras
que perdurarão durante todo esse percurso, e que, em muitos dos casos, jamais desaparecerão.
Conforme analisado por Edith Modesto (2010), a vergonha diria respeito ao saber que o outro

1237
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sabe. Ainda sobre esta paixão relacionada ao saber, precisamos nos aproximar de uma primeira
questão levantada por Edith Modesto (2010):

[...] [A] pessoa homossexual, sujeito destinatário que se encontra num estado de não ser
aprovado pelo destinador, é o filho. [No entanto] [p]or que os pais teriam vergonha? A
autossanção negativa implica em culpa. E por que encampar a sanção de outro que não foi
dirigida a ela? Mais uma vez encontramos essa ambiguidade subjetiva: mãe e filho, atores,
se confundem como um só actante narrativo a ser sancionado negativamente por um
arquidestinador-julgador. De acordo com o saber e crença comuns: se o filho for
homossexual, a culpa é da mãe, a vergonha é da mãe. A mãe sanciona negativamente o filho;
a sociedade sanciona negativamente os dois (EDITH MODESTO, 2010, p. 190).

A passagem supracitada aponta para algo fundamental: não só os(as) filhos(as) homossexuais
(destinatários(as)) podem se sentir, em algum momento, envergonhados(as), por se julgarem
negativamente quanto a sua orientação sexual, mas, as mães desses(as) filhos(as), destinadoras-
julgadoras, como um também produto das circunstâncias nas quais estão imersas, também, muito
frequentemente, sancionar-se-ão, a si mesmas, de mesmo modo (o que pode, no caso das mães,
apontar hipoteticamente para uma culpa, como afirma Edith Modesto (2010)). Deste modo, "[n]ão é
só 'vergonhoso ser apontado como ladrão, como corrupto, como sonegador, etc.'; também é
vergonhoso ser apontado como gay e como mãe de gay" (EDITH MODESTO, 2010, p. 184). Para
esta autora,

[...] a "vergonha" está na confluência de uma paixão identitária (a imagem virtual que tenho
de mim; e a avaliação que faço dessa imagem) e uma paixão coletivizante, (a imagem que eu
consigo projetar socialmente e a avaliação da sociedade que me influencia como pessoa).
(1993:201-202). Assim, podemos dizer que a "vergonha" é uma paixão cognitiva,
estreitamente relacionada a julgamentos intersubjetivos e sociais, isto é, à moralização. A
vergonha é um sentimento que se relaciona à honra. Ter um filho diferente da maioria,
principalmente quando a diferença é relacionada à sexualidade, é desonroso, na nossa cultura
(EDITH MODESTO, 2010, p. 185-186, grifos da autora).

Para efeito de nossa leitura de Edith Modesto (2010), precisamos reter, ainda, dois aspectos:
como a vergonha se formaria, e como ela se manifestaria no sujeito. Quanto ao primeiro, vemos que
a vergonha consiste no encontro de duas outras configurações: a inferioridade e a exposição. O que
significa esse encontro? Significa que dois sentimentos se encontrariam para produzir a vergonha: o
sentimento de inferioridade pelo fato de o sujeito não ter conseguido alcançar sua imagem-fim,
aquela projetada socialmente e avaliada positivamente pelos seus pares; e o sentimento de estar

1238
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
exposto, isto é, o receio de o sujeito expor-se e ser ridicularizado pelo universo socioletal que o
circunda. Quanto à divisão interna que a vergonha estabeleceria no sujeito seu depositário, o que
vemos é que a vergonha se realiza a partir da seguinte divisão:

a) Ele realiza uma autossanção negativa;


b) Ele está sob a sanção do outro e a encampa.
O sujeito fica envergonhado, porque crê no modelo construído do que ele deve ser (uma
imagem-fim), mas percebe que não consegue atingir aquela imagem virtual. Além do
autojulgamento, ele “elege o juízo do outro como legítimo para julgar, negativamente, a
imagem de si que consegue projetar" (ELIZABETH DE-LA-TAILLE, 1999, p. 25 apud
EDITH MODESTO, 2010, p. 189, grifos da autora).

Assim, no caso do presente trabalho, o que nos importa quando levamos em conta Edith
Modesto (2010), é que há um momento de forte afinidade entre seu raciocínio e o desenvolvido por
Bader Sawaia (2008), pois ambas as autoras consideram que as emoções são, também elas, fenômenos
sociais, e, por isso, históricos e ideológicos, que podem ser usados, a depender da priorização
efetivada por cada momento histórico, "[...] como estratégia de controle e coerção social" (BADER
SAWAIA, 2008, p. 102). Especificamente, ambas consideram, portanto, que "[a] vergonha [é um]
sentimento mora[l] generativo e ideologizado com a função de manter a ordem social excludente, de
forma que a vergonha das pessoas e a exploração social constituem as duas faces de uma mesma
questão" (BADER SAWAIA, 2008, p. 102). Ou seja, também os sentimentos, o caráter dos afetos e
as emoções possuem significados (intersubjetivos e, portanto, sociais e históricos) enraizados no viver
cotidiano, significados esses que, de acordo com Bader Sawaia (2008), ao trabalhar com as
afirmações de Vigotsky, "[...] afetam nosso sistema psicológico pela mediação das
intersubjetividades" (BADER SAWAIA, 2008, p. 103).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No limite, estou considerando aqui, portanto, que o sofrimento vivenciado por LGBT+ e, por
exemplo, por suas "famílias de origem" é um dramático exemplo de sofrimento ético-político, por ser
um sofrimento perversamente imposto pelas normas disciplinadoras da sexualidade e do gênero,
provindas do processo de exclusão social hétero e cisnormativa, quando não também por "[...] outras
mediações legitimadoras da desigualdade social como a classe e a raça" (BADER SAWAIA,
2008, p. 104). Trata-se, portanto, de uma lógica excludente que opera no plano do sujeito:

1239
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[e]m síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma
que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato
o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade
são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a
vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente
a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor,
apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da
desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-
se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público
e de expressar desejo e afeto (BADER SAWAIA, 1995 apud BADER SAWAIA, 2008, p.
104-105).

Bader Sawaia (2008) chama ainda nossa atenção para não nos tornamos insensíveis ao
sofrimento do outro. Os sofrimentos devem adquirir um caráter público, devem fazer com que as
pessoas se voltem para a ação social e em torno de um projeto social de combate às desigualdades
sociais, às injustiças e às explorações, isto é, devem ser potencializados em direção às questões
públicas. Visto como ético-político, o sofrimento torna-se "[...] um potencial inexplorado de
possibilidades sociais não realizadas (VARIKAS, 1997, p. 63 apud BADER SAWAIA, 2008, p. 107).
A humanidade é tida pela autora como o princípio por excelência para se agir na direção da
minimização dos efeitos gerados pelas desigualdades sociais, pelas injustiças e pelas explorações de
diversas ordens, e, por conseguinte, para se caminhar na direção da emancipação, emancipação esta
que permite "[...] o direito que cada indivíduo tem de ser, de se afirmar e de se expandir (Espinosa
1988), cujo desenvolvimento é condição para se atingir a liberdade" (BADER SAWAIA, 2008, p.
111). Isso concerniria ao poder público, mas, especialmente, a cada um de nós.

REFERÊNCIAS

ALISON JAGGAR, Mary. Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista. In. ALISON
JAGGAR, Mary; SUSAN BORDO. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1997.

BADER SAWAIA, Burihan. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética


exclusão/inclusão. In. BADER SAWAIA, Burihan. As artimanhas da exclusão: análise
psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BURRELL, Gibson; MORGAN, Gareth. Sociological paradigms and organisational analysis:


elements of the sociology of corporate life. UK: Heinemann Educational Books, 1979.

1240
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CHIARA PUSSETTI; BRAZZABENI, Micol. Sofrimento social: idiomas da exclusão e políticas do
assistencialismo. Etnográfica, v. 15, n. 3, p. 467-478. 2011.

EDITH MODESTO, Lopes. Homossexualidade, preconceito e intolerância: análise semiótica de


depoimentos. 2010. 288f.. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.

FÁTIMA BERTINI, Maria Araújo. Sofrimento ético-político: uma análise do estado da arte.
Psicologia & Sociedade, v. 26, n. spe. 2, p. 60-69. 2014

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Rev.


Estud. Fem. [online], v.9, n. 2, p. 460-482. 2001.

1241
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(LESBO)518FEMINISMO DECOLONIAL: QUESTÕES-CHAVE E O SISTEMA
MODERNO/COLONIAL DE GÊNERO

Hariagi Borba Nunes519

Resumo: Este trabalho versa sobre os conceitos de feminismo decolonial - sistematizado em cinco linhas gerais - e sistema
moderno/colonial de gênero a partir das teóricas decoloniais lesbofeministas Yuderkys Espinosa Miñoso, Maria Lugones
e Ochy Curiel. Em ambos conceitos as autoras visibilizam o colonialismo como base fundante das subjugações de gênero,
raça, classe, sexualidade, e denunciam a lógica eurocêntrica das produções teóricas do norte global em relação ao sul
global.
Palavras-chave: Feminismo decolonial, gênero, sexualidade, decolonialidade

INTRODUÇÃO
Aqui apresento um pequeno recorte do capítulo “‘UMA OUTRA GALERA JÁ FALOU
SOBRE ISSO!’: Feminismos descolonizadores” que compõem a dissertação de mestrado defendida
em 2019 no PPGEdu-UFRGS520. Especificamente, como ideia central, iremos nos debruçar sobre os
conceitos de feminismo decolonial (Ochy Curiel, Yuderkys Espinosa e Maria Lugones) e Sistema
moderno/colonial de gênero (Maria Lugones).
A (1) primeira parte baseia-se em uma sistematização cuidadosa do movimento enquanto ação
política e teoria do conhecimento, as autoras e suas origens; a (2) segunda traça, a partir de Yuderkys
Espinosa Miñoso, 5 linhas gerais do que seria o feminismo decolonial e sua agenda política; a (3)
terceira analisa o conceito de sistema moderno/colonial de gênero a partir das teorizações de Maria
Lugones; e a (4) quarta e última apresenta o pensamento de Ochy Curiel e as críticas à
heterossexualdiade compulsória e ao silenciamento de produções intelectuais negras no mundo.

DESENVOLVIMENTO

518
Importante frisar que das inúmeras teóricas que compõe a vertente do feminismo decolonial escolhi aliar-me com
as que dialogam vivências de lesbianidades.
519
Doutoranda em História (PPGH-UFRGS), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, campus do Vale,
hariagibn@gmail.com
520
Ver completo em: NUNES, Hariagi Borba. “AQUI NA ESCOLA É BOM PORQUE TEM GENTE DE TUDO
QUE É TIPO: AS SAPATA, OS VIADO, AS BIXA!": Narrativas ficcionais sobre existir e resistir no espaço-tempo
recreio a partir de uma perspectiva feminista decolonial dos saberes. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do
título de mestra em Educação. Linha de Pesquisa: Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Orientador: Dr.
Fernando Seffner. Porto Alegre, 2019.

1242
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O feminismo decolonial é um movimento teórico-metodológico de ação política, contra-
hegemônico, abrangente, ramificado e em plena formação, amadurecimento e crescimento. Composto
por pensadoras da América Sul e Caribe, ou preferencialmente, de Abya Yala521, propõe-se
antirracista e descolonizador. Aqui conduzido pelas lesbofeministas, intelectuais negras e caribenhas
Ochy Curiel e Yuderkys Espinosa Miñoso, e teórica argentina, denominada feminista de color, Maria
Lugones, então criadora dos termos feminismo decolonial e sistema moderno/colonial de gênero.
As propostas centrais do feminismo decolonial baseiam-se em: revisitar, problematizar e
expandir teorizações e propostas políticas feministas hegemônicas, inseridas dentro do pressuposto
universal branco, burguês, heterossexual, norte-global, a partir da emergência do legado intelectual
das feministas negras, chicanas e sul-mundistas; visibilizar os processos de
colonialidade/modernidade (econômica, social, subjetiva, racial, de gênero, sexual) e o
epistemicídio522, imposto desde o norte, sobre os conhecimentos, saberes e práticas do sul-global,
expandindo conceitos chave das teorias da decolonialidade produzidas anteriormente; e
principalmente, visibilizar e produzir outras linguagens, epistemologias e ontologias feministas sobre
os sujeitos e suas práticas a partir de corporalidades sulificadas, evidenciando que as racializações e
generificações são parte intrínseca da formação do projeto colonial, ou colonialidade/modernidade
(NUNES, 2019).
Teórica e metodologicamente este movimento consolida-se em duas perspectivas, sendo uma
delas de (1) resgate referencial às importantes produções do Black Feminism e o Feminismo de color
norte-americanos e das feministas tercermundistas, constantemente invisibilizadas das rotas de
citações e publicações do feminismo clássico, e de algumas teorias materialistas e pós-estruturalistas
franceses, como por exemplo, as produções sobre sistema heterossexual. E outra (2) auxiliada aos
estudos da decolonialidade, evidenciando a colonialidade/modernidade ou projeto colonial - de
Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Mignolo. Estudos estes que denunciam a permanência da
dominação branca, cristã, e europeia/norte americana sobre as corporalidades, subjetividades,
desejos, práticas e geografias derivadas das históricas intervenções coloniais.

521
Nomenclatura originária para referir-se a América Latina, ou Terra Viva.
522
Ação epistemológica e ontológica de roubar e/ou assassinar saberes em detrimento de outros em posição de
dominação.
1243
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O feminismo decolonial, pelas percepções de Espinosa - no texto De por qué es necesario un
feminismo descolonial: diferenciación, dominación co-constitutiva de la modernidad occidental y el
fin de la política de identidad - exerceria a função dupla teórico-política de resgate à pensadoras
negras e indígenas de Abya Yala, revisitando teorias feministas - principalmente ao que tange a
categoria “mulher” e os processos de racialização, sexualização e subalternização:
(...) entendemos que o feminismo decolonial recolhe, revisa e dialoga com o pensamento e
as produções que desenvolveram pensadoras, intelectuais, ativistas e lutadoras, feministas ou
não, de descendência africana, indígena, mestiça popular, camponesa, imigrantes
racializadas, assim como acadêmicas brancas comprometidas com a subalternidade em Abya
Yala e no mundo. (ESPINOSA, 2012, p. 151)

E de denúncia e expansão da colonialidade, criando mecanismos para a inserção na disputa acadêmica


de publicação e citação, mas também fora dela. Inventando e reconfigurando metodologias,
conhecimentos, saberes, epistemologias descolonizadoras e antirracistas. Estrategicamente criando
alianças de sobrevivência com comunidades de mulheres fora da rede dos saberes legítimos:

a necessidade de um feminismo que se nutra dos aportes teóricos da análise da colonialidade


e do racismo - não como fenômeno, mas como episteme intrínseca à modernidade e seus
projetos libertadores. Um feminismo, então que seja cúmplice e alimente-se dos movimentos
de comunidades autônomas que no continente efetivam processos de descolonização e
restituição de genealogias perdidas, que apontam a possibilidade de outros significados da
vida em comunidade e reorganizam os horizontes já conhecidos e estabelecidos
universalmente. (ESPINOSA, 2012, p. 146)

Nesse mesmo trabalho, Espinosa, classifica e categoriza cinco linhas gerais que o feminismo
decolonial pretende seguir como projeto de ação política e epistêmica, deixando transparecer que a
sistematização é estratégica e organizativa, e não estabelece limites e muito menos regularidades
sobre as produções e epistemologias decoloniais.
A primeira linha, FEMINISMO DECOLONIAL HERDEIRO DO FEMINISMO NEGRO E
TERCERMUNDISTA. Como havia citado anteriormente, o presente feminismo reivindica-se
herdeiro e revisitador dos feminismos negros norte-americanos, chicanos e indígenas de Abya Yala,
encabeçados por Angela Davis, bell hooks, Patricia Hills Collins, Audre Lorde, Gloria Andaluza,
Cherrie Moraga, Silvia Rivera Cusicanqui, entre outras. Compreendendo o lugar de importância que
ocupam estas autoras em relação aos dilatamentos produzidos sobre/desde o feminismo, tensionando
categorias de mulher, gênero, lesbianidade, introduzindo percepções mais amplas e complexas

1244
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sobre raça e racialização. Vozes soterradas, como as de Sojourner Truth523, que em contínuos
processos de silenciamento, encabeçados pelo feminismo hegemônico, tiveram suas práticas e ações
apagadas da história e genealogia do movimento, enquadrado e organizado em “Ondas”, trajetórias
e conquistas emancipatórias de um exemplo universalizante de mulher:

a branca, burguesa, heterossexual. Recuperar o legado crítico das mulheres e feministas


afrodescendentes e indígenas que desde a América Latina tem exposto o problema da sua
invisibilidade e inferiorização dentro dos movimentos e dentro do próprio feminismo,
iniciando um trabalho de revisão do papel e da importância que tiveram na realização e
resistência de suas comunidades. (ESPINOSA, 2012, p 151)

A segunda linha, O FEMINISMO DECOLONIAL DENUNCIA A VIOLÊNCIA


EPISTÊMICA. Situado por teorizações do sul-global, o feminismo decolonial tem como pretensão
essencial a luta e a denúncia do epistemicídio da colonialidade/modernidade realizado desde o
feminismo norte-global. Ancorado no eurocentrismo, na legitimação científica dos saberes - e no caso
específico das teorias feminista, na hegemonização da categoria “mulher” -, o epistemicídio assassina
a circulação e movimentação, de maneira ampla e democrática, de epistemologias oriundas de
corporalidades contra-hegemônicas. A rede epistemicida guetiza as produções do sul em relação ao
norte, mas ela também funciona de forma ramificada, exercendo mecanismos de branqueamento,
higienização e validação dos
saberes e conhecimentos dentro do próprio eixo sul-sul, desta forma, reconfigurando práticas
do colonialismo interno de sabres.
A terceira linha, FEMINISMO DECOLONIAL CONTEMPLA A CRÍTICA DAS
MULHERES AUTÔNOMAS LATINOAMERICANAS À DEPENDÊNCIA ECONÔMICA E AS
RELAÇÕES NEOLIBERAIS. Esta parte do feminismo decolonial estabelece importância para os
movimentos autônomos, iniciados institucionalmente na década de noventa, de mulheres em Abya
Yala que lutam a partir de comunidades indígenas, camponesas, quilombolas, pela diminuição das

523
“Sojouner Truth nasceu escrava em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797, foi tornada
livre em 1787, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravidão nos Territórios do Norte dos Estados
Unidos (ao norte do rio Ohio). A escravidão nos Estados Unidos, entretanto, só foi abolida nacionalmente em 1865,
após a sangrenta guerra entre os estados do Norte e do Sul, conhecida como Guerra da Secessão. Sojourner viveu
alguns anos com um família Quaker, onde recebeu alguma educação formal. Tornou-se uma pregadora pentecostal,
ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Em 1843 mudou seu nome para Sojourner Truth (Peregrina
da Verdade). Na ocasião do discurso já era uma pessoa notória e tinha 54 anos”. Acesso em:
https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/.
1245
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
intervenções empresariais multinacionais sob seus territórios/corpos. Comprometidas com o fim do
capitalismo global e práticas neoliberais econômicas, as feministas autônomas, como por exemplo
Julieta Paredes524, criam mecanismos e ferramentas de luta comunitárias através das concepções do
feminismo. Denunciam a exploração, dominação do agro-capitalismo e ruralismo sob suas
corporalidades, terras e decisões. O feminismo decolonial contempla a crítica dos feminismos
autônomos a uma agenda feminista neoliberal, onde os recursos de empresas ditas comprometidas
com a questão da mulher, são depositados em programas intervencionistas e neoliberais financiadores
de disciplinamentos e controles sob as corporalidades não-urbanas do sul global:
Como terceira linha genealógica, proponho pensar a corrente feminista autônoma
latinoamericana (...) e suas denúncias a dependência política e econômica que introduzem as
políticas de desenvolvimento nos países do terceiro mundo, assim como o processo de
institucionalização e tecnocratização dos movimentos sociais que impõem uma agenda
global de utilidade em relação aos interesses neocoloniais. (ESPINOSA, 2012, p. 151)

A quarta linha, FEMINISMO DECOLONIAL E A POSSIBILIDADE DE ABSORVER


TEORIAS DO NORTE-GLOBAL COMPREENDENDO-AS COMO IMPORTANTES A PARTIR
DO FILTRO GEOPOLÍTICO E SITUACIONAL. Imprevisível frisar que as teorias da
decolonialidade assim como o feminismo decolonial não negam ou rechaçam as produções do norte-
global, ao contrário, estabelecem diálogos proveitosos na utilização de ferramentas para pensar
conceitos, métodos, técnicas e saberes. Segundo Espinosa, as recentes produções do feminismo
decolonial tecem sobre corporalidades lésbicas e lesbianidade, e apoiam-se nas conceitualizações da
lesbofeminista francesa Monique Wittig e da feminista lésbica norte americana Adrienne Rich, sobre
sistema heterossexual enquanto regime político e sua compulsoriedade. Também retifica o uso
relevante sobre as teorias decoloniais, das formulações desnaturalizadoras e desessencializantes do
pós-estruturalismo francês; além das produções sobre tecnologia e performatividade de gênero, assim
como “a crítica do feminismo pós-estruturalista ao essencialismo das categorias mulher e a política
de identidade, seguem tendo certo nível de influência neste campo” (ESPINOSA, 2012, p. 152).
A quinta e última linha, FEMINISMO DECOLONIAL E A POSSIBILIDADE DE REVISÃO
DAS PRÓPRIAS PRODUÇÕES TEÓRICAS LATINOAMERICANAS. Neste último tópico,
Espinosa trabalha com a ideia de crítica às produções feitas no Sul ou por sujeitos do sul no Norte.
Refere-se especificamente às teorias da decolonialidade e a crítica que Maria Lugones e Silvia

524
PAREDES, Julieta, Comunidad Mujeres Creando. Hilando fino desde el feminismo comunitario. La Paz, Janeiro
de 2012.
1246
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Cusicanqui iniciaram à tríade da decolonialidade, Quijano, Dussel e Mignolo. Além das
problematizações referentes às pesquisas da decolonialidade sob a suposta vanguarda desses três
teóricos, as inquietações propostas por Lugones e as feministas decoloniais também referem-se ao
lugar de poder - homem, branco, heterossexual - que ocupam nos centros de produção de
conhecimentos do norte-global onde trabalham525. Espinosa também introduz a este tópico a
continuidade de produções e conceitos que visam manter o aspecto histórico-colonizador, como a
nomenclatura América Latina e a ideia de Descobrimento, e as derivações binárias de Europa e
América, Metrópole e Colônia, sem historicizá-las ou quebrar a lógica de oprimido-opressor, desta
forma, categorizando enquanto agentes e sujeitos históricos heróis ocidentalizados e europeizados:
Criticar esses aportes permite uma revisão das categorias de classificação social (raça, sexo,
natureza-cultura, Europa-América, civilização-barbárie) como operação específica por meio
da qual se produz e impõe modos de violência de um sistema de diferenças que justifica e
naturaliza o sistema capitalista, heteropatriarcalista e racista que ergue a Europa como centro
da civilização (ESPINOSA, 2012, p. 152)

Para Yuderkys Espinosa Miñoso, estes seriam - em linhas gerais - tópicos importantes para a
sistematização da ação político-teórica do feminismo decolonial, compreendendo que este conceito
abarca múltiplos entendimentos e disputas dentro de Abya Yala. Porém creio ser importante, para a
compreensão do feminismo decolonial, adentramos mais na formulação e concepção do conceito de
sistema moderno/colonial de gênero, encabeçados por Maria Lugones, inaugurando críticas à
colonialidade de poder de Quijano e expandindo-a com a introdução das percepções de generificação
da raça e racialização do gênero dentro da
colonialidade/modernidade sob corporalidades não-brancas.
Maria Lugones nas suas produções sobre gênero, sexualidade e decolonialidade, formula o
conceito de sistema colonial/moderno de gênero. Segundo a autora, este conceito deriva dos estudos
da colonialidade de poder, organizado por Aníbal Quijano, e das produções feministas sobre gênero,
desta forma, visibilizando os processos onde o gênero, heterossexualidade e a raça constituem-se
junto a formação colonial, seja em corpos femininos racializados, ou em corpos masculinos
racializados, ambos considerados não-humanos.
Aníbal Quijano sistematiza o conceito de colonialidade de poder, que vai dar base as
produções sobre colonialidade de saber e do ser, pensadas por Enrique Dussel, Walter Mignolo,

525
Exercem suas funções de docentes e pesquisadores em universidades do norte-global, exceto Dussel, que após o
exílio político durante a ditadura militar argentina, mora e leciona no México.
1247
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Nelson Maldonado-Torres. Segundo Lugones, Quijano defende que a colonialidade ou modernidade
de poder são heranças dos processos econômicos, sociais, escravistas colonialistas, e permanecem
atualmente enquanto um sistema estrutural que organiza e mantém o capitalismo global, o
eurocentrismo e a ocidentalização. As relações do sistema da colonialidade/modernidade, se
estabeleceram por meio de contínuas dominações, explorações, e disputas dos sujeitos sociais que
compõem - o que Quijano denomina segundo Lugones - os quatro âmbitos básicos da existência
humana: “sexo, trabalho, autoridade coletiva e subjetividade/intersubjetividade, seus recursos e
produtos” (QUIJANO, 2001-2002 IN LUGONES, 2008, p. 58). Quijano, introduz como base
imprescindível para compreender as relações na colonialidade, a ideia de raça e sujeito racializado.
Para o autor, os preceitos cientificistas impostos para justificar a escravização e dominação dos povos
racializados sob domínio do sujeito-europeu-civilizado, criam e reconfiguram as relações de
subalternização exercidas na atualidade das temporalidades na colonialidade de poder, dos não-
racializados sob os racializados.
Nas teorizações de Quijano, a modernidade, consolidada enquanto sistema histórico-político
na Europa, está em uma relação de alteridade dialética com a colonialidade, uma não existe sem a
outra, ou melhor, uma sendo possível em relação a outra, como também nos interpela Dussel: “a
modernidade é, em efeito, um fenômeno europeu, mas constituído em uma relação dialética com uma
alteridade não-europeia que finalmente é seu conteúdo” (Dussel 2001 IN: LUGONES, 2008, p. 59).
Para os autores, a fixação da modernidade, cidadania, democracia realizadas nos nortes do
mundo, só foram possibilitadas pelos processos violentos e genocidas da colonialidade. Ou seja, as
multiplicidades de sujeitos e democratizações econômicas, sociais, políticas orquestradas do Norte
para benefício do norte, só foram efetivadas a partir da desumanização, escravização e transformação
dos sujeitos da colonialidade no “Outro” da civilidade e da racionalidade.
As teias principais de sustentação do sistema colonialidade/modernidade, seriam o
capitalismo global e o eurocentrismo, ambos classificando as corporalidades passíveis de agência e
reconhecimento. O autor estabelece que a divisão trabalhista e base salarial do capitalismo mundial
realizada nos países europeus sob corporalidades operárias brancas e, na sua maioria, masculinas, só
foram possíveis através dos processos de escravização de sujeitos racializados nas colônias, que
propiciaram o que Marx já denominara “acumulação de capital”. Ou seja, a acumulação do
capitalismo global e o trabalho assalariado correlacionam-se intrinsecamente aos processos de

1248
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
escravização e colonialidade. Para o autor, em continuidades e rupturas, estas relações ainda dão base
a organização de trabalhos subalternizados e precários sob corporalidades subjugadas e racializadas
dentro do capitalismo global, inclusive denunciando, o acesso precário que estas corporalidades
historicamente exercem, muitas vezes, tendo seus reconhecimentos enquanto sujeitos e cidadãos
negados.
O eurocentrismo baseia-se na produção, circulação e universalização de conhecimentos,
verdades, conceitos legitimados pela lógica colonialista e capitalista de poder, saber e ser.
Organizados por meio do cientificismo, binarismo biologizante e os aparatos epistemológicos de
poder, introduz-se a ideia essencialista de humanidade, e a partir dela divide-se os humanos e não
humanos; o eu e o outro; “superior e inferior, racional e irracional, primitivo e civilizado, tradicional
e moderno” (LUGONES, 2008, p. 61).
Para o autor, este processo de legitimação científica sob os corpos oriundos da colonização
ainda permanece na colonialidade/modernidade, separando binariamente o sujeito do conhecimento
do sujeito analisado, estudado. Criando lógicas eurocentristas de produção e circulação de
conhecimento, onde vê o norte-global enquanto racional, criador de teorias e metodologias e o Sul-
global enquanto campo de estudos e seus sujeitos objetos.
Para Maria Lugones, as contribuições de Quijano, Dussel, Mignolo e Maldonado Torres são
imprescindíveis para pensar o sistema colonial/moderno e suas implicações sobre as relações sociais,
políticas e econômicas sobre os corpos. Porém, a autora tensiona partes importantes das teorizações
acima, inserindo críticas a maneira rasa, generalizada e essencialista que os conceitos de mulher,
gênero e raça são utilizados. Desta forma, dialogando aspectos das teorias da interseccionalidade para
uma possível compreensão mais ramificada, complexa e politizada destas categorizações, e os lugares
que elas ocupam dentro da colonialidade/modernidade:

As feministas de cor têm movimentado conceitualmente uma análise que enfatiza a


intersecção das categorias de raça e gênero, porque as categorias invisibilizam a nós que
somos dominadas e vitimizadas pela categoria universalizante de “mulher” e pelas categorias
raciais. Apesar que na modernidade eurocêntrica capitalista, todos/as somos racializados e
asignados a um gênero, não são todos/as dominados ou vitimizados por esses processos.
(LUGONES, 2008, p. 61)

Lugones adverte que o uso da categoria de gênero/sexo nas teorizações de Quijano são
universalizadas e pouco problematizadas em relação ao que já viera sendo trabalhado nas

1249
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
produções feministas. Para a autora, Quijano fala de gênero como mais uma das particularidades dos
corpos da colonialidade, mas não aprofunda suas ramificações entrelaçadas com raça e sexualidade.
Lugones intercepta Quijano para fato de que a nomenclatura “mulher”, utilizada por ele, faz
referência a uma categoria universal, pressupondo que mulheres eram as brancas, heterossexuais,
burguesas e cristãs, inseridas dentro da lógica escravista e branqueadora nas colônias, desta forma,
invisibilizando e neutralizando processos violentos e desumanizadores sob os corpos de mulheres
negras e indígenas:

Isto implica que o termo “mulher” em si, sem especificação, não tem sentido ou tem um
sentido racista, já que a lógica categorial historicamente selecionou somente o grupo
dominante, as mulheres burguesas brancas heterossexuais e assim escondendo/esconde a
brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero implica (LUGONES,
2008, p. 61)

Para maior compreensão e dimensão dos argumentos apresentados, Lugones propõe que o
sistema moderno/colonial de gênero se apresenta em duas facetas, uma visível e a outra invisível. A
parte visível organizaria as verdades científico-biológicas relacionadas ao dimorfismo sexual,
originando os homens (machos) e as mulheres (fêmeas) brancos/burgueses intrinsecamente
heterossexuais. Segundo a autora, o dimorfismo não deu-se de forma igual nem equânime nas
corporalidades da colonialidade de gênero, sendo este, o lado invisível, pois a desumanização e a
bestialização de indivíduos racializados não constituíram sujeitos generificados, como adverte sobre
as mulheres não-brancas: “As fêmeas não brancas eram consideradas animais no sentido profundo
de ser seres ‘sem gênero’, marcadas sexualmente como fêmeas mas sem as características da
feminilidade” (LUGONES, 2008, p. 67).
Lugones comunica que para os europeus, os não-brancos não participavam da ordem
sexo/gênero heterossexual, sendo assim, afirma que “É importante considerar as mudanças que a
colonização trouxe para entender o alcance das organizações do sexo e do gênero em relação ao
colonialismo e no interior do capitalismo global e eurocêntrico”(LUGONES, 2008, p. 63).
Desta forma, a autora nos apresenta dois estudos oriundos dos feminismos contra
hegemônicos não-ocidentais que elucidam suas hipóteses sobre os processos de generificação dos
corpos não-brancos em conjunção com a implantação e institucionalização da
colonialidade/modernidade. Refere-se às produções da nigeriana Oyéronké Oyewùmi sobre
ausência da categorização gênero nas populações yorubá e como esta categoria foi introduzida
1250
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
nas tribos nigerianas após a colonização, antes apenas anunciada pelas variantes não-binárias de obin
e okun (anafêmeas e anamachos, não-respectivamente). Para Oyewùmi, com os processos de
intervenção e invasão colonial, essas nomenclaturas foram criando lugares fixos e binários, e os
muitos postos de poder-estatal religiosos e políticos que as anafêmeas ocupavam, foram gradualmente
destinados aos anamachos, em conjunto com os homens brancos, desta forma, construindo uma dupla
inferiorização pela raça e pelo gênero:

Para as mulheres, a colonização foi um processo dual de inferiorização racial e subordinação


de gênero. Uma das primeiras conquistas do Estado colonial foi a criação de “mulheres”
como categoria. Por um lado, não é surpreendente que para o governo colonial seja
inimaginável reconhecer as fêmeas como líderes entre as pessoas que colonizaram, incluindo
os Yorubás… De certa forma, a transformação de poder do Estado no poder masculino
aconteceu excluindo as mulheres das estruturas estatais. Isto permaneceu sob um profundo
contraste com as organizações do Estado Yorubá, as quais o poder não estava determinado
pelo gênero. (OYEWÙMI, 1997 IN: LUGONES, 2008, p. 63)

Já os estudos da indígena norte-americana Paula Gunn Allen, também estabelece vínculos


para a compreensão desta dupla inferiorização sob a raça e o gênero no sistema colonial/moderno.
Referentes aos povos indígenas norte-americanos e a cosmovisão espiritual como organizadora das
relações entre os sujeitos. A autora expõe que os sujeitos femininos, por incorporarem espíritos
importantes para esta ordem, exerciam papéis sociais e políticos centrais, que em contrapartida, foram
ocupados pelos sujeitos masculinos não-brancos em aliança com os homens brancos. Gunn Allen,
também compartilha da pressuposição de que esta ordem fora reconfigurada após as invasões
colonizadoras, inaugurando a divisão dos gêneros como poder colonizador sobre os corpos e as
estruturas organizacionais, destituindo corporalidades dos espaços importantes que ocupavam
anteriormente. Como descreve Lugones:

Allan está interessada na colaboração entre os homens indígenas e os homens brancos para
debilitar o poder das mulheres. [...] Allen explica as transformações das ginecracias Cherokee
e Iroquês e o papel dos homens indígenas na passagem para o patriarcado. Os britânicos
levaram os homens indígenas a Inglaterra e os educaram a maneira britânica.(LUGONES,
2008, p. 67)

Ambos os estudos também trilham pelos pressupostos da heterossexualidade, visibilizando


que ela faz parte relacional do sistema colonial/moderno de gênero sobre os corpos não-brancos,
atingindo, desta forma mulheres indígenas e negras como não-humanas, animalizadas,

1251
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
brutalmente violentadas e estupradas, e as mulheres brancas burguesas, como chave essencial para a
reprodução e permanência da raça branca:

Neste sentido, o capitalismo eurocêntrico global é heterossexual. Acredito que seja


importante vislumbrarmos, enquanto tentamos entender a profundidade e a força da violência
na produção tanto do lado invisível como do lado visível do sistema gênero
moderno/colonial, que esta heterossexualidade tem sido imposta e duramente perversa,
violenta, degradante, e convertendo pessoas não brancas em animais e a mulheres brancas
em reprodutoras da “Da Raça” (branca) e “Da Classe” (burguesa). (LUGONES, 2008, p. 67)

Lugones acredita, ao problematizar as teorizações decoloniais referente às categorias de


gênero, sexualidade e raça, ampliar a compreensão que temos destes conceitos sob uma perspectiva
decolonial. A autora também adverte que o resgate sobre as teorizações de gênero nas sociedades pré-
colonização, não tem teor essencialista de busca originária onde as “contaminações” colonizadoras
ainda não haviam materializado-se e as relações eram igualitárias e não-hierárquicas. Ao contrário, a
ideia seria historicizar e visibilizar que as relações mantidas pré-colonização abarcavam mecanismos
e simbolismos de validação outros, e que após as invasões, as categorias de gênero, sexualidade e
raça efetivaram-se de maneira institucionalizada enquanto verdades de dominação e violência sob os
corpos.
O que a autora defende, é que as relações sociais através da divisão sexual ou de gênero
possivelmente não organizavam os âmbitos da vida humana antes da colonização - ou pelo menos os
quatro referenciados por Quijano - enquanto sistema de dominação e organização social. Esse
processo é inerente à institucionalização da colonização, compreendendo que as fronteiras entre a
construção do gênero/raça pela colonialidade ou da colonialidade pelo gênero/raça, são tênues e
pouco demarcadas. Tanto a generificação da raça, quando a racialização do gênero, fazem-se presente
sob a lógica da colonialidade/modernidade. Por este motivo é importante visibilizar que o sistema
moderno/colonial de gênero expande as teorizações feministas, transparecendo que a categoria de
gênero faz parte da reconfiguração mundial inaugurada pelos processos de colonização e permanece
presente na colonialidade/modernidade de poder/saber/ser.
Para finalizarmos a introdução sobre feminismo decolonial, anseio em pequenas linhas expor
as importantes contribuições e dilatamentos feitos por Ochy Curiel sobre feminismo antirracista e
lesbofeminismo decolonial. Para Curiel faz-se necessário visibilizar os processos de
silenciamentos sob grandes teóricos que denunciavam, desde os anos trinta e quarenta, o

1252
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
colonialismo desde de África, como Frantz Fanon e Aimé Césaire, que por questões “desconhecidas”,
não foram usados como referência nas produções da colonialidade/modernidade. Segundo Curiel, as
produções referentes a descolonização, violência colonial e racismo, intrínseca nos escritos e
corporalidades desses autores da africanidade, contribuem na reformulação e criação de
epistemologias e ontologias antirracistas em Abya Yala e América Latina.
Assim como os aportes teóricos das feministas negras e chicanas norte-americanas aqui
citadas, Curiel afirma a relevância das produções de feministas negras de Abya Yala, como as
brasileiras, Lélia Gonzalez, Luiza Barrios, Jurema Werneck e Sueli Carneiro, que denunciam o mito
da democracia racial e a política de branqueamento. Além de apresentar as feministas indígenas, suas
cosmovisões e as lutas comunitárias, como Julieta Paredes e Silvia Cusicanqui. A autora também
destaca os processos de revisitação feitos por estas feministas dentro das suas organizações de luta,
enegrecendo/indígenizando o feminismo, e feminilizando os movimentos indígenas e negros.
Outra questão chave para Curiel parte de sua corporalidade atravessada pela lesbianidade,
introduzindo no feminismo decolonial e na lógica sistemática colonial/moderna de gênero a
heterossexualidade enquanto regime compulsório. Usando os pressupostos teóricos das
lesbofeministas Monique Wittig e Adrienne Rich, alarga a percepção de que “a lésbica não é uma
mulher”, demonstrando que conjuntamente com inauguração de gênero, a visão da
colonialidade/modernidade, não concedeu sexualidade as corporalidades não-humanas, desta forma,
amenizando as brutais relações de violência as mulheres estupradas e agredidas pela
heterossexualidade dos homens brancos, pois eram classificadas enquanto objetos, seres sem
vida/alma. Concluindo, que além dos processos de racialização, generificação, a
colonialidade/modernidade, inaugurou a heterossexualidade como regime de dominação dos corpos,
desejos e decisões das mulheres brancas, burguesas, e das não-mulheres racializadas.
A autora cria, como metodologia potente feminista decolonial, o conceito de antropologia da
dominação, onde evidencia a norma enquanto objeto a ser pesquisado, invertendo a lógica sujeito x
objeto. No seu livro, A Nação Heterossexual, Curiel inaugura a metodologia de análise antropológica
da dominação embasada na ideia de produção da uma etnografia da Constitución Política Colombiana
de 1991, onde tem por objetivo evidenciar os aparatos jurídicos-constitucionais que mantém a
heterossexualidade enquanto regime beneficiário dos direitos e deveres da cidadania política e
social.

1253
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONCLUSÃO:
O feminismo decolonial, enquanto movimento abrangente, ramificado e de ação política, nos
convida a compreender as relações de gênero e sexualidade como parte intrínseca dos processos de
invasão colonialista, escravização das populações racializadas e suas permanências na atualidade.
Também nos incita a tensionar a lógica dos feminismos brancos, heterossexuais e norte-globais como
centro hegemônico do movimento, refutando continuamente a lógica epistemicída às relações norte-
sul.
Yuderkys Espinosa, em linhas gerais, sistematiza as percepções fundamentais do feminismo
decolonial, frisando em: 1) afirmá-lo enquanto herdeiro do feminismo negro e tercermundista; 2)
produtor da denúncia epistemicída; 3) alia-se às mulheres autônomas em relação a dependência
econômica neoliberal; 4) crítica às teorias do norte-global; e 5) revisa as próprias teorizações do sul.
Já Maria Lugones, criadora do termo Feminismo decolonial e do conceito Sistema
moderno/colonial de gênero, a partir das teorias do projeto decolonial compreende que a raça, gênero,
sexualidade são produções inauguradas e mantidas na colonialidade para separar sujeitos de objetos,
brancos de racializados, civilizados de bestializados. Para ela, tanto a generificação da raça, quando
a racialização do gênero, fazem-se presente sob a lógica da colonialidade/modernidade.
Ochy Curiel, denuncia a invisibilidade de circulação dos intelectuais negros e negras, desde
Fanon a Lélia Gonzalez, e afirma que a leitura dos clássicos é um passo importante para novas
produções antirracistas em Abya Yala e Améfrica526. Além da potencialidade das críticas a
heterossexualdiade complusória e a produção dela também pela lógica colonial.
Compreendemos a importância do feminismo decolonial para a ampliação e criação de
horizontes epistemológicos e ontológicos democratizantes, antirracistas e descolonizadores sobre
corporalidades sul-global, mais especificamente mulheres e pessoas aquém do sistema heterossexual.
Localizando de forma sucinta o ramificado, extenso e plural corpo de pensadoras e pensadores que o
origina.

REFERÊNCIAS:

526
Nomenclatura desenvolvida por Lélia Gonzalez no texto “A categoria político-cultural da Amefricanidade.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da Amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro (RJ), no 92-93,
1988, pp. 69-82.
1254
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ESPINOSA MIÑOSO, Yudersky. De por qué és necesario un feminismo decolonial: diferenciación,
dominación co-constitutiva de la modernidad occidental y el fin de la política de identidad. Solar,
Año 12, Volumen 12, Número 1, Lima, 2016, pp. 141- 171.

CURIEL, Ochy. Crítica poscolonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista.
Nómadas (26), abril de 2007, pp. 92-101.

_______. Identidades Esencialistas o Construcción de Identidades Políticas. El dilema de las


Feministas Negras. In: Mujeres Desencadenantes. Los Estudios de Género en la República
Dominicana al inicio del tercer Milenio, Santo Domingo, INTEC. 2005, p. 1-17.

______. La Nación Heterosexual. Análisis del discurso jurídico y el régimen. Bogotá, Colombia: en
la frontera - Brecha Lésbica, 2013.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da Amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro


(RJ), no 92-93, 1988, pp. 69-82

NUNES, Hariagi Borba. “AQUI NA ESCOLA É BOM PORQUE TEM GENTE DE TUDO QUE
É TIPO: AS SAPATA, OS VIADO, AS BIXA!": Narrativas ficcionais sobre existir e resistir no
espaço-tempo recreio a partir de uma perspectiva feminista decolonial dos saberes. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito parcial para obtenção do título de mestra em Educação. Linha de Pesquisa:
Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Orientador: Dr. Fernando Seffner. Porto Alegre, 2019.

LUGONES, Maria. Colonialidad y Género. Tabula Rasa (9) julio-diciembre de 2008, pp. 73- 101.

PAREDES, Julieta. Comunidad Mujeres Creando. Hilando fino desde el feminismo comunitario.
La Paz, Janeiro de 2012.

1255
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DEU MATCH, E AGORA? RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE UM DATE PANDÊMICO

Raiza Alves da Silva527


Priscila Rigoni528

Resumo: Em decorrência da medida de isolamento social ocasionada pela emergência sanitária provocada pelo COVID-
19, os relacionamentos interpessoais passaram a ser concentrados no ambiente virtual. Assim, este trabalho apresenta um
relato de experiência o qual discorre sobre duas mulheres que se conheceram pelo aplicativo Tinder, e, posteriormente,
mantiveram contato por meio do Instagram e do Whatsapp. Este relato de experiência busca inspiração metodológica na
Etnografia Virtual, e está estruturado em três capítulos. Inicialmente são apresentados aspectos prévios ao match do
Tinder, tendo em conta questões psicossociais, expectativas e anseios de cada uma das mulheres diante do contexto de
pandemia. Posteriormente, os dados foram coletados a partir das conversas trocadas entre elas, e foram analisados
conforme as seguintes categorias (i) a interação mediada e a gestão do desejo e (ii) o ritual do encontro. Como aporte
teórico, são utilizados autores como Raquel Recuero, Adriana Amaral, Suely Fragoso, Beatriz Polivanov e Max Weber.

Palavras-chave: Performatividades lésbicas; Sexualidade; Pandemia; Interação mediada; Tinder

INTRODUÇÃO
Diante do isolamento social ocasionado por conta da emergência sanitária do COVID-19, fez-
se necessária a adequação das rotinas ante esta nova conjuntura. Obviamente nem todas as pessoas
estão passando por esta situação da mesma maneira, sendo que existem diversas variáveis de classe
social, raça, gênero, profissão, escolaridade, etc. que influenciam na forma como cada indivíduo
enfrenta a pandemia. Ainda, existem os fatores de medo e de insegurança os quais permeiam qualquer
situação de doença.
O Novo Coronavírus (SARS-CoV-2) é um vírus que se caracteriza pelo seu alto grau de
transmissibilidade e provoca a doença classificada como COVID-19. A transmissão entre humanos
do vírus ocorre principalmente por gotículas respiratórias. O quadro clínico da doença se apresenta
como uma síndrome respiratória aguda que pode evoluir desde quadros assintomáticos a graves com
insuficiência respiratória aguda. O tratamento dos paciente com COVID-19 se dá através de suporte
clínico de acordo com a gravidade do paciente variando desde medicações sintomáticas com
isolamento domiciliar a internação em UTI’s com suporte avançado de vida. Tendo em conta a falta
de um tratamento específico para o vírus, a principal forma de combatê-lo é praticando o
distanciamento social.

527
Graduada do curso de medicina, pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: alves.rah@gmail.com
528
Mestra do curso de comunicação social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail:
priscila.rigoni@acad.pucrs.br
1256
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A quarentena pode ser entendida como uma atividade de desconexão total com outras pessoas,
da mesma forma que realizar uma ação social implica ações diretas e imediatas entre sujeitos, de
maneira que a presença física e corpórea é interpretada como um ponto fundamental nos processos
de socialização. Todavia, conforme Weber (1992), a ação social é conceituada por qualquer ato
humano que tenha significado/sentido para quem o realize, e está orientado para/pelas ações de outro
sujeito. Nesse sentido, a quarentena, tendo como principal preocupação a saúde coletiva se enquadra
no conceito de ação social.
Assim, diante da pandemia, surgem novas formas de interação, bem como novas
performances mediadas por telas. A internet assume um papel fundamental no que diz respeito a
manter a vida social ativa, como exemplo disso são as festas, os shows, os simpósios, as reuniões de
trabalho e as conversas entre amigos, tudo online. Portanto, construir discursos em contextos de
ausência física, é possível de ser feito por meio de trocas de fotografias, de mensagens de texto, de
stickers, de memes, de vídeos, de gifs e de áudios, ferramentas as quais implicam a necessidade do
sujeito em reafirmar sua existência social no mundo.
Entre essas novas performances de interação condicionadas pela pandemia do COVID- 19,
destacam-se nesse texto os encontros e as práticas sexuais. Conforme uma notícia da Veja Rio,
aplicativos como Tinder, Happn, e Bumble têm atraído mais usuários, todavia, nem todas as pessoas
que utilizam estes aplicativos estão interessadas em namoro, mas sim em compensar de alguma
maneira o isolamento social. Algumas facilidades destes aplicativos, bem como a inovação e a
ressignificação das dinâmicas de encontros têm permeado usuários destes aplicativos. A matéria cita
o exemplo de Tati F., uma fotógrafa que deu match no Tinder com um norte-americano, e ambos
adaptaram a prática de ir ao cinema, ao combinar de ver o mesmo filme para depois conversar sobre
o que assistiram, essa proposta deu tão certo que virou uma rotina semanal dos dois. Já a farmacêutica
Ana Almeida relata que em um de seus encontros virtuais até recebeu um delivery de comida enviado
pelo seu match. Portanto, percebe-se que os encontros remotos passaram a ser um exercício comum
durante a pandemia, porém, requerem de criatividade para tornar agradável e menos apática ou
distante a experiência.
Além dos encontros virtuais, é possível falar aqui do sexting, esta palavra é a junção dos
termos em inglês sex e texting, que significa praticar sexo por mensagem de texto. Atualmente,

1257
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
esta palavra tem um significado mais amplo, e infere a troca de qualquer tipo de conteúdo erótico
pelo celular, como fotos, vídeos, mensagens de voz ou figurinhas.
Assim sendo, este trabalho tem como recorte temático as performatividades lésbicas na
pandemia, enfocando as limitações e os alcances das sexualidades e dos corpos provocados pelo
confinamento, de forma que o objetivo deste texto é apresentar um relato de experiência de duas
mulheres, que se conheceram pelo Tinder. Portanto, os objetivos específicos são os seguintes:
• Relatar sobre aspectos psicossociais individuais prévios ao match do Tinder;
• Desenvolver um estudo inspirado na netnografia acerca das interações trocadas em aplicativos
como Instagram e Whatsapp;
• Discorrer sobre o ritual do encontro, sobre as combinações, sobre os cuidados e sobre as
medidas de segurança que foram tomadas.

Nesse sentido, os problemas de pesquisa se subdividem nas seguintes questões: quais foram
as variáveis de cunho psicológico e social em que cada mulher se encontrava e quais as motivações
que levaram a baixar um aplicativo de encontros durante a pandemia? Como foi mantido o contato
nas redes sociais digitais, e de que maneira foi tomada a decisão do encontro presencial? Como se
deu este encontro? O encontro teve combinações prévias? Quais? Foram tomadas medidas de
segurança? Quais?
Este trabalho se justifica pela necessidade de refletir sobre as reconfigurações das relações
ocasionadas pelo isolamento social, resultado da pandemia do COVID-19. Agora, mais que nunca,
as interações estão centradas no ambiente virtual, assim, surgem novas possibilidades de trocas, de
maneira que o antigo jantar à luz de velas foi substituído pela luz das telas. Além do que, encontros
presenciais também ganharam outras dimensões, sendo que, dentro do contexto atual, a preocupação
central são os cuidados tomados para evitar a contaminação pelo vírus, o que gera novos rituais nas
relações sociais presenciais. Também é importante ressaltar a importância das performatividades
lésbicas como forma de resistência às relações heteronormativas que permeiam a sociedade.

METODOLOGIA
Este é um trabalho inspirado na etnografia virtual, que tem o objetivo de apresentar um
estudo empírico da internet. Compreende-se por estudo de inspiração etnográfica pesquisas que

1258
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
se utilizam de algumas partes dos procedimentos etnográficos, mas que não chegam ir a campo,
todavia, podem incorporar protocolos metodológicos e práticas de narrativas, como histórias de vida,
biografias, ou documentos que compõem a análise de dados (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL,
2011).
A etnografia virtual é uma adaptação da etnografia, que conforme Polivanov (2013), se trata
de um termo complexo o qual pode inferir diferentes significados de acordo com a área de estudo
(Antropologia, História, Comunicação, Educação, Linguística, Geografia, etc.) em que é aplicado, ou
conforme determinado pesquisador.
As definições de etnografia existentes na literatura são muitas, seja ela apresentada como
método ou como produto resultante de uma pesquisa. Além disso, apesar de ter surgido no campo da
Antropologia, a etnografia tem passado por mudanças, e encontra ecos em diversas áreas das ciências
humanas e sociais. Portanto, existe a possibilidade de aproximação da etnografia com objetos da
comunicação digital, como redes sociais, sites, aplicativos e comunidades virtuais (FRAGOSO,
RECUERO e AMARAL, 2011).
A partir do uso da internet como meio de comunicação e de formação de grupos sociais, alguns
pesquisadores perceberam que seria possível aplicar as técnicas da pesquisa etnográfica aos estudos
das culturas e das comunidades via internet. Todavia, a transposição deste método gerou muitas
controvérsias, uma vez que as principais características do fazer etnográfico são o descolamento, o
estranhamento e a ida a campo, características estas que parecem se diluir no espaço/tempo da internet
(FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011).
A etnografia virtual pode auxiliar a compreensão da função e da complexidade da
comunicação mediada por computador e pelas Tecnologias de Informação e Comunicação - TICS,
de forma que conforme Hine (2009 apud FRAGOSO, RECUERO e AMARAL), a etnografia
virtual precisa ser entendida pelo seu caráter qualitativo, sendo que a análise da internet pode ser
observada a partir de duas óticas: (i) como cultura, e (ii) como artefato cultural. Portanto a etnografia
virtual se dá no/de e através do online, e nunca está desvinculada do offline, pois ela ocorre por meio
da imersão e engajamento do pesquisador com o próprio meio.
Conforme Fragoso, Recuero e Amaral (2011) a Análise de Redes Sociais (ARS), é de caráter
estruturalista, e parte do pressuposto que as estruturas oriundas das ações e interações entre atores
sociais, pode-se entender elementos desses grupos, assim como generalizações a seu respeito.

1259
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao enfocar determinado grupo como uma rede, estamos analisando ele como uma “estrutura”,
de maneira que de um lado estão os nós (ou nodos), e de outro as arestas ou conexões. Os nós dizem
respeito aos atores envolvidos e suas representações na internet (por exemplo, o perfil do Instagram),
aqui as redes são mantidas pela interação. Já as conexões são as interações feitas entre os atores (como
adicionar alguém na sua rede de amigos, as curtidas ou os comentários), neste caso, as redes são
mantidas pelo sistema, a menos que alguém delete um nó ou uma conexão (RECUERO, 2009).
Antes de iniciar a análise, é preciso determinar uma rede social com base no objeto do
pesquisador, posterior, é preciso selecionar o objeto e a maneira como os dados serão coletados. É
necessário pensar sobre o que serão considerados como atores e como conexões. Além disso, tem-se
que selecionar os atores, que podem ser indivíduos, instituições ou grupos, os aspectos psicossociais
como idade, cor, sexo, etc. também são pontos importantes a serem levados em conta (FRAGOSO,
RECUERO e AMARAL, 2011).
Portanto, tendo em conta as limitações de tempo de pesquisa, afirmamos que este relato de
experiência é inspirado na Etnografia Virtual, por seguir partes de seus procedimentos metodológicos.
Nesse sentido, inicialmente, foram delimitadas duas redes sociais virtuais para coletar os dados:
Instagram e Whatsapp, e serão consideradas como atrizes sociais (nós/nodos) duas mulheres,
denominadas aqui, com o intuito de preservar a identidade, M1 e M2, que iniciaram sua interação
mediada pelo aplicativo Tinder, porém optaram por manter contato pelo Instagram e pelo Whatsapp,
aplicativos estes que serão compreendidos aqui como arestas/conexões.
A coleta de dados se deu a partir da captura de tela de parte das conversas, as quais foram
selecionadas de acordo com as seguintes temáticas: as fases da interação mediada , a gestão do desejo
e o ritual do encontro. Além disto, busca-se entender, por meio de um relato cedido por cada uma das
mulheres, os aspectos psicossociais prévios ao match do Tinder.

PRÉ-MATCH:

Este subcapítulo apresenta um relato sobre aspectos psicossociais de cada uma das mulheres
antes do match no aplicativo Tinder, destacando seus lugares de fala, e discorrendo sobre as
expectativas, os anseios e os motivos que levaram cada uma a instalar e fazer uso do Tinder
durante o período da pandemia.

1260
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Tinder já era usado por M1 antes da pandemia de forma intermitente. Para ela significava
uma forma de conhecer pessoas diferentes, de fora do ciclo social já estabelecido. A necessidade de
conexão e interação não mudou com o início da pandemia entretanto se tornou mais complexa para
se estabelecer. M1 trabalha na área da saúde e se manteve trabalhando durante a quarentena. Apesar
de não estar em total isolamento social, houve uma sensação de isolamento tendo em perspectiva que
as formas tradicionais de encontros sociais e lazer deixaram de acontecer para ela também. Além
disso, se tornou um contexto contraditório trabalhar diretamente com o COVID-19 no seu dia a dia
enquanto as demais pessoas se esforçam em sentido contrário, evitando ao máximo contato humano
direto e o contato com o vírus.
O Tinder viabiliza a interação social entre desconhecidos com a segurança do distanciamento
social em um primeiro momento. Para M1 isso motivou o uso do aplicativo, podendo postergar a
interação presencial para depois de já conhecer mais sobre o outro sujeito e estabelecido algum
vínculo. Dessa forma se tornaria mais fácil entender as regras necessárias para cada um de acordo
com seus contextos pandêmico para um possível encontro presencial.
A M2 já havia feito uso do Tinder em outras ocasiões antes da pandemia e tinha tido poucos
encontros mediados por este aplicativo, de maneira que estes encontros eram feitos em locais
públicos. Quando se iniciou a pandemia ocasionada pelo COVID, no fim de março, a M2 iniciou seu
isolamento social, e permaneceu trabalhando em casa, saindo somente para realizar atividades
essenciais. Assim, por estar morando sozinha e por não estar tendo nenhum tipo de interação social
presencial, a M2 baixou o tinder com o intuito de compensar de alguma maneira a falta de contato
humano, bem como com o propósito de conhecer pessoas para além de seu círculo social pré-
estabelecidos, todavia para ela, a possibilidade de um encontro presencial com um match do Tinder
era bastante remota por conta da pandemia, de maneira que sentia a necessidade de estabelecer certa
proximidade com a outra pessoa para poder efetivar um encontro físico.

AS FASES DA INTERAÇÃO MEDIADA E A GESTÃO DO DESEJO

As interações mediadas passam por três fases. A primeira corresponde às interações de


construção, que visam construir um laço e são usadas para criar uma conexão, construir uma
intimidade, aprofundar a relação, ou construir algum vínculo que ainda não há. Geralmente este

1261
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
tipo de interação traz bastante intimidade para o diálogo, mostrando que os usuários possuem
conhecimento um do outro (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011). A imagem 1 representa a
primeira mensagem entre as duas pelo Whatsapp, como elas já vinham dialogando quase que
cotidianamente pelo chat do Instagram, decidiram trocar os números de telefone. Percebe-se que,
pelo teor da conversa, ambas já têm certo conhecimento sobre o cotidiano de cada uma. A fala da M1
pergunta como foi o “dia rolezeiro”, já sabendo que a M2 tinha planos de sair de casa para fazer
algumas atividades na rua.

IMAGEM 1

Fonte: Print da conversa de Whatsapp, 2020.

Por conseguinte, as interações de manutenção são as que buscam simplesmente manter o laço
social no nível em que está, sendo que não enfoca em aumentar a intimidade entre os usuários, nem
em aprofundar o relacionamento (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011). Conforme a imagem
2, não existe nenhum tipo de troca comunicacional íntima, assim como não existe a intenção de tornar
a relação entre elas mais próxima, tampouco mostra que tipo de relação essas duas pessoas tem. Nesse
sentido, este diálogo se trata de uma troca de figurinhas que visam somente manter o laço social
existente.

1262
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 2

Fonte: Print da conversa de Whatsapp, 2020.

Finalmente, as interações de desgaste são mais raras, porém dizem respeito a um conflito entre
os atores. Geralmente elas acabam ocasionando o fim da relação, ou levam a redução na frequência
da troca de mensagens. Em casos mais complexos, este tipo de interação pode fazer com que os atores
eliminem uns aos outros das suas listas de amigos (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011).
Todavia, no caso analisado, este tipo de relação não ocorreu.
Nessa perspectiva, a interação social entre essas duas mulheres teve início no espaço virtual,
de maneira que elas não se conheciam pessoalmente. Portanto, sobre a gestão do desejo durante o
período em que ambas mantiveram contato somente mediado por aplicativos, fez-se necessário o uso
de memes, figurinhas, áudios, mensagens de texto e fotos as quais tinham o propósito de manifestar
emoções e sentimentos. O uso desses mecanismos são uma das possibilidades de expressão que a
tecnologia proporciona, todavia, existe a limitação do contato físico, o qual só é possível em um
encontro presencial. Assim sendo, observa-se que é comum o uso de memes, bem como de figurinhas
para manifestar o desejo, portanto a imagem 4 representam a forma como essas duas mulheres
conseguiram expressar a atração sexual que sentiam uma pela outra.
A imagem 4 mostra um post da página do Instagram chamada Amor Entre Girls Oficial,
compartilhado pela M1 no Direct Message, do Instagram, esta página produz conteúdos de LGBTQ+
e de empoderamento feminino. O post em questão faz alusão a pandemia de COVID-19 e a
necessidade de se ter um sistema imunológico reforçado, nesta sátira, o post explica que as

1263
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
mulheres que se masturbam possuem a imunidade boa. Nesse aspecto, o relacionamento entre duas
mulheres, foco deste texto, rompe com o sistema predominante patriarcal e heteronormativo.
Conforme Preciado (2014) contraprodutividade é a organização de formas de prazer-saber que são
alternativas às da sexualidade moderna, de forma que as práticas contrassexuais são entendidas como
formas de tecnologia de resistência.

A natureza humana é um efeito da tecnologia social que reproduz nos corpos, nos espaços e
nos discursos a equação natureza=heterossexualidade. O sistema heterossexual é um
dispositivo social de produção da feminilidade e masculinidade que opera por divisão e
fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade sensitiva e motriz
(visual, tátil, olfativa…) que depois identifica como centros naturais e anatômicos da
diferença sexual (PRECIADO, 2014, p. 25).

A imagem 4 expressa por meio de figurinhas de Whatsapp, também em tom de sátira, sobre
os desejos e atrações sexuais. Assim, verifica-se que o sexting aqui é utilizado por meio da troca de
stickers, os quais buscam gerir o desejo de duas mulheres que se encontram fisicamente distantes,
porém que possuem interesse sexual uma na outra. Apesar de o sexting ser uma prática que existe há
algum tempo, durante a pandemia pode-se perceber que esta se trata de uma alternativa ao sexo
presencial, pois é uma forma segura de se ter uma vida sexual, mantendo o isolamento, contudo, o
sexting possui a limitação física, uma vez que não é possível tocar, abraçar ou beijar a outra pessoa.
IMAGEM 4

Fonte: Print da conversa de Whatsapp e Instagram, 2020.

1264
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O RITUAL DO ENCONTRO

Antes de o encontro presencial se efetivar, firmaram-se diálogos em momentos diferentes pelo


Whatsapp e pelo Instagram sobre a dinâmica do encontro. Na imagem 6, é discutida a disponibilidade
de cada uma, assim como são combinadas as datas mais propícias para o encontro. A M2 fala sobre
sua estranheza em relação a ter um primeiro encontro na própria casa com uma pessoa que nunca
havia visto pessoalmente, pois geralmente, os encontros com os matches pelo Tinder aconteciam
sempre em locais públicos. Porém, ambas haviam pensado que fazer este primeiro encontro em casa,
seria mais seguro, por diminuir contato com outras pessoas. Por exemplo, em bares e restaurantes
mesmo com as medidas de higiene e distanciamento as bebidas e comidas servidas entram em contato
com diversos indivíduos até serem servidas.

IMAGEM 6

Fonte: Print da conversa de Whatsapp, 2020.

Por Instagram o diálogo teve outro viés, e abordou preocupações pontuais sobre saúde e sobre
o coronavírus. Observar e analisar o próprio estado de saúde teve grande importância para ambas se
sentirem mais seguras no encontro.

1265
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 7

Fonte: Print
da conversa de Instagram, 2020.

No dia do encontro, objetos como máscara e álcool gel se fizeram presentes, mostrando o
cuidado em relação à contaminação pelo vírus COVID-19. Além do que, teve o ritual de tirar o
calçado antes de entrar no apartamento, bem como limpeza das mãos e de bolsa com álcool gel.
Ambas mulheres fizeram esforços para mitigar os riscos de um encontro presencial em meio a
pandemia, mas se encontrar sempre será um risco para contaminação no contexto atual. Ponderar
entre o perigo em se expor e a necessidade individual de se relacionar é a contradição que todas
pessoas estão vivendo durante essa crise sanitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste estudo inspirado na etnografia virtual, pode-se verificar que as dinâmicas dos
encontros ganhou outra dimensão por conta da pandemia do COVID-19, nesse sentido, verifica-se
uma preocupação em evitar a contaminação pelo vírus. Dentro do recorte deste artigo, percebe-se que
cada uma das mulheres se encontrava em contextos bastante distintos, pois uma seguia trabalhando e
a outra estava em isolamento social, ainda, em relação ao uso do Tinder, é possível afirmar que ambas
estavam fazendo uso do aplicativo como uma forma de compensar as relações sociais presenciais que
estavam acontecendo com pouca ou nenhuma frequência. O contato entre as duas foi mantido durante
aproximadamente um mês através do Instagram e do Whatsapp, de maneira que foram feitos
diálogos sobre a estranheza, bem como sobre os cuidados de um encontro em tempos de
1266
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
pandemia. O encontro presencial foi permeado por uma série de rituais e de objetos pouco comuns
antes, como por exemplo o uso de máscaras e a limpeza das mãos e de objetos com álcool.
Portanto, verifica-se que as relações sociais receberam novos significados e novas
configurações diante da pandemia, que vão desde encontros virtuais, até a utilização de medidas de
segurança para evitar o contágio em encontros presenciais. Nessa perspectiva, este artigo aponta para
novas abordagens de pesquisa, tendo em conta o contexto atual de pandemia e as relações sociais,
sejam elas mediadas por computador/celular, ou encontros físicos.

REFERÊNCIAS

FRAGOSO SUELY; RECUERO RAQUEL; AMARAL ADRIANA. Métodos de Pesquisa para


Internet. Porto Alegre: Sulina, 2011.

POLIVANOV, Beatriz. Etnografia virtual, netnografia ou apenas etnografia? Implicações dos


conceitos. Revista Esferas, ano 2, n. 3. jul - dez, p. 61-71. 2013.

BEATRIZ Preciado. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.

RAQUEL Recuero. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2008.

SECRETARIA DE ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (SAPS). Protocolo de Manejo Clínico do


Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde - Versão 4. Brasília - DF, Março de 2020.

WEBER Max. Conceitos sociológicos fundamentais: metodologia das ciências sociais. Campinas:
Cortez/Unicamp, 1992.

Sites consultados

Amor em tempos de pandemia. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/puc-rio/amor-encontros-


virtuais-quarentena/. Acesso em 03/08/2020.

1267
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MEMÓRIAS E CIDADE: A VIVÊNCIA DE MULHERES LÉSBICAS E BISESSEXUAIS

Dantiely Martins Ferreira529


Gabriella Regina Santos Torres530

Resumo: É possível definir cidade como uma maneira de escrita, pois, além dos documentos e
inventários, a arquitetura também é uma maneira de fixar a história na memória dos sujeitos a partir
do momento em que estes/as passam a habitar o espaço. Neste sentido, pode-se afirmar que a cidade
guarda em si uma multiplicidade de histórias – ou deveria guardar – visto que os sujeitos que a
habitam são parte de uma diversidade. É possível dizer que a “diversidade” contemplada pelas cidades
é limitada, pois grupos sociais sofrem um apagamento de suas memórias, dado que as cidades em
geral são criadas a partir de uma ideia masculina e cisheteronormativa. O objetivo desta pesquisa é
estabelecer um recorte a respeito da vivência de mulheres lésbicas e bissexuais, apontando a
importância da memória atrelada à cidade como aspecto fundamental de reconhecimento da
subjetividade dos sujeitos e como o espaço pode ser uma ferramenta de silenciamento destas,
considerando a interseccionalidade dos sujeitos atravessados por gênero, raça e classe social. Para
isso, foi realizada uma revisão bibliográfica/histórica acerca do silenciamento destes grupos sociais e
seu reflexo na cidade, tendo em vista esta como, além de palco das relações interpessoais, sociais e
políticas, um instrumento de manutenção da memória das pessoas. Além disso, a experimentação
relacionada à vivência e impressões registradas no dia a dia das autoras também são importantes
ferramentas na construção da explanação que se segue. Assim, no Brasil atual, temos uma supremacia
branca, autoritarista, racista, machista e lgbtifóbica no controle institucional que resulta em uma
representatividade social reforçadora de atitudes e estereótipos que condizem para a dominação
violenta daqueles/as que não estão inseridos na classe de poder, estando vulneráveis e passando por
esse processo tão bem estruturado. O silenciamento desses corpos é uma prática recorrente das
estruturas opressoras que operam a longo prazo. A manutenção deste poder pode ser vista no domínio
patriarcal, que é explicitado ao analisarmos o local de ocupação de homens e mulheres nas cidades.
É possível perceber que há uma designação do espaço privado como sendo o espaço natural da
mulher, onde esta é a responsável por exercer as atividades domésticas, cuidar dos filhos e da família.
Em contrapartida, o espaço público é pensado para o universo masculino cisheteronormativo, fazendo
com que mulheres se sintam inseguras e impossibilitadas de saírem sozinhas, sendo respeitadas
apenas quando se encontram com algum homem ao lado. Além disso, o apagamento da memória das
mulheres lésbicas e bissexuais é resultante deste pensamento cisheterossexista na produção das
cidades, que se priva de evidenciar memórias afetivas e histórias deste grupo em suas marginais e
avenidas. Portanto, o apagamento da memória nas cidades, a falta de segurança, a impossibilidade de
desfrutar do direito à cidade deste grupo, reflete a inutilização de um instrumento de empoderamento
de grupos oprimidos, que poderiam e deveriam formar novos espaços e ressignificar aqueles
existentes, gerando pertencimento, segurança, autonomia e envolvimento político, social e cultural
aos sujeitos.

529
Graduanda do curso de psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis. E-mail: danty_jac@hotmail.com
530
Graduanda do curso de arquitetura e urbanismo, pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail:
gabriellaregina55@gmail.com
1268
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Palavras-chave: Memórias; Mulheres; Interseccionalidade; Diversidade; Cidade.

REFERÊNCIAS

JOICE BERTH. O que é: empoderamento?. Belo Horizonte – MG: letramento: justificando, 2018,
p. 45.

MARIANA M. Marcondes. Sobre Cidade, não-lugar e sexualidade das mulheres. Cartilha: Direto
à cidade: uma visão por gênero - Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) , São Paulo, p.
126, 2017.

JESSICA RUIZ. A libertação sexual de mulheres que amam mulheres: um ensaio sobre o direito
feminino à cidade. Cartilha: Direito à Cidade: Vivências e olhares de identidade de gênero e
diversidade afetiva & sexual.- Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), São Paulo, p. 29,
2017.

RAQUEL ROLNIK. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Coleção Primeiros Passos;
203).

1269
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT - CIDADE:
SEXUALIDADE, RAÇA E
INTERSECCIONALIDADES
E
GT CIDADE: TERRITÓRIO,
MEMÓRIAS E
INTERSECCIONALIDADES
COORDENAÇÃO

Dra. Cristine Jacques Ribeiro - UCPEL


Mestranda Camila de Freitas Moraes – UCPEL
Doutoranda Carla Graziela Rodegueiro Barcelos Araújo – UCPEL

1270
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O CONCEITO DE RACISMO ESTRUTURAL E A POLÍTICA NACIONAL
DE SAÚDE INTEGRAL DA POPULAÇÃO NEGRA

Mauro Henrique Franzkowiak Martins531


André Guirland Vieira532

Resumo: Diante da pertinência em pensar a realidade racial brasileira, este trabalho tem como objetivo discutir a
importância Movimento Negro brasileiro para a elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
(PNSIPN), elaborada pelo Ministério da Saúde, na intenção de superar desigualdades em saúde que atinge a população
negra. Problematizamos os fundamentos da elaboração de uma política em saúde para as relações étnico-raciais no Brasil
diante da atualização do conceito de racismo estrutural, trazido por Silvio Almeida. Trata-se de um estudo exploratório
realizado a partir da produção acadêmica e da legislação referente ao tema. Observamos que o conceito de racismo
institucional presente na PNSIPN pode ser insuficiente na conjuntura social em que estamos imersos atualmente. As ações
e políticas desse grupo muitas vezes podem criar barreiras, constrangimentos e exclusão. Percebemos a necessidade de
mais pesquisas sobre o acesso à saúde de segmentos da população mais vulneráveis ao estigma ou preconceito.

Palavras-chave: Diversidade; Política de Saúde; Racismo Estrutural; Movimento Negro.

INTRODUÇÃO
O Movimento Negro no Brasil é símbolo de uma longa e inconclusa luta em favor desse grupo.
A posição deste Movimento frente às questões ligadas à escravidão e à exploração de mão de obra,
desde o Brasil colônia, à discriminação após a abolição da escravatura e às desigualdades sócio-
políticas e econômicas provocou ações organizadas ao longo dos séculos em uma luta por direitos e
cidadania. A criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), criada
através da portaria Nº 992, de 13 de maio de 2009, é parcela dos resultados destas lutas.
Quando falamos de questões raciais, precisamos apontar que esta temática não é estática,
tampouco fixa. Há uma estrutura de poder de um grupo sobre o outro, em movimento, que torna
possível que se exerça o controle direto ou indireto de determinados grupos sobre o aparelho
institucional.
A partir disto, este trabalho se justifica a partir de três considerações: a) ainda hoje, por mais
que as leis garantam a igualdade entre os povos, o racismo é um processo histórico que se faz presente
na estrutura social; b) o Movimento Negro do Brasil, dada sua constituição e relevância histórica no
combate às diferentes manifestações do racismo, pode exercer poder na elaboração e construção dos

531
Mestrando do PPG em Promoção da Saúde, desenvolvimento humano e Sociedade da Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA). E-mail: mhfmartins93@gmail.com
532
Professor adjunto na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).E-mail: andre.vieira@ulbra.br
1271
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
determinantes sociais da saúde e c) as políticas de saúde voltadas para a redução de desigualdades e
para a proteção dos mais vulneráveis ainda não estão plenamente disponíveis para toda a sociedade.
Ao construir um estudo exploratório a partir da produção acadêmica e da legislação referente
ao tema, temos como objetivos deste trabalho: discutir a importância Movimento Negro brasileiro
para a elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e
problematizar os fundamentos da elaboração de uma política em saúde para as relações étnico-raciais
no Brasil diante da atualização do conceito de racismo estrutural.
Na primeira parte deste trabalho, vamos trazer a construção realizada por Silvio Almeida na
elaboração do conceito de Racismo Estrutural. O autor nos traz reflexões acerca das noções de raça e
racismo, baseadas nos pilares da igualdade, da liberdade e do direito à vida.
Na segunda parte, serão destacados alguns acontecimentos da história que tiveram a
participação do Movimento Negro do Brasil, constatado a partir das pesquisas teóricas. Vamos
trabalhar com a própria Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e dialogar
com autores que apresentam estudos relevantes na temática.

O CONCEITO DE racismo estrutural

Quando falamos das questões que envolvem raça e racismo, precisamos apontar que este
conceito não é estático, tampouco fixo. Para explorarmos mais este conceito, vamos trazer a teoria
atual do filósofo Silvio Almeida. O autor aborda esta questão a partir da construção do conceito de
racismo estrutural.
Em ALMEIDA (2020), podemos encontrar que a raça atua a partir de duas marcas básicas
que se cruzam e se complementam: como característica biológica e como característica étnico-
cultural. Enquanto característica biológica, a identidade racial é marcada pelos traços físicos, como,
por exemplo, a cor da pele. Como característica étnico-cultural, encontramos a origem geográfica, a
língua, a determinadas formas de viver e de existir.
No nosso sistema, se admite gradações e nuanças raciais: a raça não é elemento único na
classificação social da pessoa. No Brasil, temos sistemas múltiplos de classificação racial. Assim,
conforme DAMATTA (1987), o dinheiro ou o poder político possibilitam a classificação de um

1272
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
preto como mulato ou até mesmo como um branco, como se o peso de um elemento (como o poder
econômico, por exemplo) pudesse apagar o outro fator.
Em relação ao preconceito racial, DAMATTA (1987) enfatiza que este é funcionam de
maneira coerente com as ideologias dominantes da sociedade. O autor traz um comparativo em
relação a outras nações. Apenas para exemplificar, o preconceito racial Europeu e Americano parte
de uma realidade social mais igualitária, temerosos à miscigenação em conseqüência da ideia de um
postulado básico da identidade. Já em relação ao preconceito racial no Brasil 533, esse racismo
intelectual invade a cena intelectual, que é transformado por através de um cenário hierarquizado e
antigualitário.
Para ALMEIDA (2020), preconceito racial é baseado em um juízo elaborado a partir de
estereótipos acerca das pessoas que pertençam a determinado grupo racializado. A discriminação
racial é o tratamento diferenciado a membros de um grupo racialmente identificados. Aqui, a
discriminação tem como base fundamental o uso de força, de poder, sem os quais não há possibilidade
de impor vantagens ou desvantagens por conta da raça. O preconceito racial e discriminação racial,
para o autor, diferem do conceito de racismo.
O “racismo é a manifestação normal de uma sociedade e não um fenômeno patológico ou que
expresse algum tipo de anormalidade” (ALMEIDA, 2020, p. 21). Racismo “é uma forma sistemática
de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas
conscientes e inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para os indivíduos, a
depender do grupo racial ao qual pertençam” (ibidem. p. 32). Ainda, o racismo produz o sentido, a
lógica e a tecnologia para as mais variadas formas de violência e desigualdade social que desenham
a vida social nos dias atuais.
Mas, ao trazermos a questão do racismo, precisamos falar um pouco sobre as fontes do
racismo brasileiro, que nos ajudarão a entender o conceito de racismo proposto por Silvio Almeida.
Para isso, consideramos que o racismo brasileiro nasceu na crise da Revolução Francesa, vindo a
dominar o cenário intelectual no século XIX. Conforme DAMATTA (1987), no século XIX, o
racismo aparece na sua forma acabada, sendo um instrumento do Imperialismo e um argumento

533
Trazemos um exemplo comparativo que nos auxilia de maneira didática na compreensão das diferenças em
relação às posições raciais no Brasil e em outros países exemplificados por Damatta.

1273
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
natural para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo. Foi esse tipo de
racismo que a elite intelectual brasileira se utilizou como base para suas doutrinas explicativas sobre
a realidade que existia no país.
O conceito trazido por ALMEIDA (2020) aponta para as relações estabelecidas entre o
racismo e a subjetividade; o racismo e o Estado e o racismo e a economia. Neste ponto, podemos
descrever as três concepções de racismo: individualista, institucional e estrutural.
Na concepção individualista, o racismo “é concebido como uma espécie de ‘patologia’. Seria
um fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados”
(ALMEIDA, 2020, p. 36). Nesta concepção, vem à cena o preconceito, uma vez que, nesta visão, há
indivíduos com comportamentos, educação e atitudes preconceituosas, que podem funcionar
isoladamente ou em grupo.
Na concepção institucional – a qual o autor destaca por ter significado um grande avanço
teórico no que se refere aos estudos das relações raciais – “a principal tese de quem afirma a existência
do racismo institucional é que os conflitos raciais também são parte das instituições (...) porque as
instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam seus mecanismos
institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos” (ALMEIDA, 2020, p. 39-40). Neste
caso, o domínio acontece ao se criar e estabelecer parâmetros discriminatórios baseados em raças.
Na concepção estrutural, o autor destaca que o racismo vai além da questão individual. Há
também o elemento poder como constitutivo das relações raciais. Há uma estrutura de poder de um
grupo sobre o outro, que se torna possível no momento em que se exerça o controle direto ou indireto
de determinados grupos sobre o aparelho institucional. O racismo estrutural “é uma decorrência da
própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo
institucional” (ALMEIDA, 2020, p. 50). O autor aponta para racismo estrutural enquanto uma regra,
a qual regula comportamentos individuais e processos institucionais. “O racismo é parte de um
processo social que ‘ocorre pelas costas do indivíduo e lhes parece legado pela tradição’” (Ibidem, p.
52).

1274
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para este estudo, consideramos pertinente estudar a manifestação estrutural do racismo534 a
partir dos quatro elementos que ALMEIDA (2020) apresenta: a ideologia, a política, o direito e a
economia. Além disso, consideramos que o estudo do racismo tornar-se-ia falho ao desconsiderarmos
tais elementos que formam pilares da nossa sociedade.
No racismo e ideologia535, destacamos que o racismo faz parte do complexo imaginário social.
Isso é percebido pelos meios de comunicação social, pela indústria cultural e pelo sistema
educacional. Temos o imaginário do negro que trabalha em funções menos valorizadas; nas novelas,
se sustenta um imaginário de negro ser criminoso; nas escolas onde o ensino é de melhor qualidade,
as crianças que formam a maioria são brancas.
O autor ainda considera outro ponto: o significado das práticas discriminatórias pelas quais o
racismo se realiza é dado pela ideologia. As relações sociais são permeadas pela ideologia, pelo que
produz no imaginário. Assim, a pessoa torna-se branca ou preta a partir do momento que se reconhece
enquanto tal pela teia de sentidos, a qual é construída e compartilhadas coletivamente. Assim, o
racismo pode ser reproduzidos em suas próprias vítimas.
Essa reprodução se dá culturalmente, também, nas piadas, misticismo, enfim, pela cultura
popular que naturaliza a discriminação no imaginário social. “A permanência do racismo exige, em
primeiro lugar, a criação e a recriação de um imaginário social em que determinadas características
biológicas ou práticas culturais sejam associadas à raça e, sem segundo lugar, que a desigualdade
social seja atribuída à identidade racial dos indivíduos” (ALMEIDA, 2020, p. 74).
Ainda na dimensão ideológica do racismo, nosso autor traz um aspecto que não poderíamos
deixar de destacar: a meritocracia. A meritocracia se torna perceptível através do funcionamento das
instituições, como, por exemplo, processos seletivos em concursos e universidades públicas. Em
decorrência de termos uma desigualdade educacional decorrente da desigualdade racial, o perfil dos
ocupantes de cargos se destaque e prestígio em atividades públicas e os estudantes dos cursos mais
concorridos nas universidades reafirma o imaginário que, genericamente, associa competência e
mérito à condições como raça, gênero, opção sexual (ALMEIDA, 2020).

534
Consideramos relevante trabalhar com os elementos constituintes do racismo estrutural, pois é sob este conceito
que estruturamos este trabalho.
535
Silvio Almeida considera ideologia enquanto uma visão falseada, ilusória e fantasiosa da realidade. A ideologia
não é uma representação da realidade material, das relações concretas, mas a representação da relação que temos
com essas relações concretas (ALMEIDA, 2020, p. 63-66).
1275
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Este conjunto meritocrático se completa com a propagação de padrões culturais e estéticos
ligados aos grupos raciais dominantes. ALMEIDA (2020) ilustra esta ideia trazendo o exemplo do
sistema carcerário, o qual se dispõe a controlar a criminalidade, porém adquire função de controle da
pobreza, ou mais especificamente, controle racial e da pobreza. O discurso da meritocracia é
sustentado pela negação do racismo e pela ideologia racial. Se não há racismo, a culpa pela situação
que as pessoas vivem é delas próprias, pois não fizeram tudo o que estava ao seu alcance. No Brasil,
o discurso da meritocracia alavanca a conformação ideológica dos indivíduos a manter o sistema de
desigualdade racial.
Para tratarmos do racismo enquanto uma estrutura, precisamos considerá-lo enquanto um
processo histórico e político, sobre tudo uma relação de poder. É sobre este prisma que vamos tratar
o segundo elemento do racismo estrutural: a dimensão política. Para tal empreendimento, Silvio
Almeida discute a relação entre Estado e racismo.
Dentro da lógica da sociedade capitalista536, ALMEIDA (2020) considera que o Estado, neste
momento, está sob os fundamentos das trocas mercantis. Para que isto aconteça, indivíduos precisam
relacionar-se entre si enquanto pessoas livres e iguais. Assim, cabe ao Estado assegurar o direito à
liberdade individual, à igualdade formal e à propriedade privada. Sem estes elementos, não
poderíamos ter o capitalismo, pois este sistema exige contratos e mercados. Assim, o papel do Estado
neste sistema é a manutenção da ordem: garantir a liberdade e a igualdade formais e a proteção da
propriedade privada e o cumprimento dos contratos, além da internalização das múltiplas
contradições que são geradas pelo próprio sistema.
Mas não podemos dizer que o Estado se move única e exclusivamente pelos detentores de
capital. A relação do Estado com o capitalismo é muito mais complexa. A existência do mercado
depende da garantia do Estado das propriedades privadas e das relações políticas. Isto se dá através
do controle burocrático e da repressão. Assim, para ALMEIDA (2020), o Estado tem uma autonomia
relativa sobre a economia e esta relação é constantemente colocada em xeque, uma vez que a
sociedade capitalista é marcada por diversos e intensos conflitos. Quando esses conflitos tornam-se
muito agudos, o Estado entra em cena com suas intervenções, comprovando sua autonomia relativa.

536
Destacamos a relevância desta constituição para o estudo sobre questões relacionadas ao racismo, uma vez que
Silvio Almeida diz que a forma com que os indivíduos operam na sociedade, a integração de grupos e classes e a
constituição de suas identidades, relaciona-se às estruturas que dominam a sociedade capitalista (ALMEIDA, 2020).
1276
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
É com esse movimento mantido por uma combinação de violência/consenso que o Estado exerce o
controle: limitando ações de certos grupos e, eventualmente, permitindo a implantação de algum
mecanismo que assegure alguma forma de participação popular que mantenha a legitimidade do
sistema.
Para isso, ainda sobre racismo e política, Silvio Almeida traz contribuições relevantes de
Foucault, de Mbembe e de Marielle Franco. Com esses autores, ele aborda a concepção de biopoder:
o exercício do poder sobre a vida, que tem a função de disciplinar e regulamentar as relações sociais.
Neste aspecto, o racismo exerce papel central, enquanto mecanismo do poder do Estado 537. Assim,
“a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do
biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT, 2010, p. 68-69 apud ALMEIDA, 2020, p. 116)
Silvio Almeida segue tecendo sobre esta necropolítica, onde o poder de matar – gerado por
um estado de sítio, por exemplo – passa a funcionar com apelo à exceção na emergência de um
inimigo. Emerge, aí, uma noção de um inimigo ficcional que são constantemente elaboradas e
reelaboradas pelas práticas políticas. Esses inimigos são criados pelos meios de comunicação de
massa, programas televisivos, que são utilizados como meio de constituir uma subjetividade adaptada
ao sistema necropolítico, no qual predomina o medo. Legitima-se um mecanismo de extermínio, com
uma forma rebuscada o suficiente para esconde a mão do Estado. Assim, o que encontramos hoje no
sistema escolar excludente, a pobreza e a desvalorização do trabalho, negligência com a saúde da
mulher negra, falta de condições de vida dignas e a interdição da identidade negra “seriam juntamente
com o sistema prisional, partes de uma engrenagem de dor e morte. A necropolítica, portanto,
instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança
implacavelmente sobre a vida” (ALMEIDA, 2020, p. 124).
É nas bases desta necropolítica que o autor enquadra a dissertação de mestrado de Marielle
Franco538 ao analisar a atuação das Unidades de Polícia Pacificadora, implantadas nas favelas do Rio
de Janeiro. Neste caso, Silvio Almeida destaca dois processos principais que caracterizam a

537
Com base na concepção de biopoder trazida por Foucault, Silvio Almeida demarca as duas funções do racismo
ligadas ao poder do Estado. A primeira está relacionada ao biológico, que é o esfacelamento do contínuo biológico
da espécie humana, com a implementação de hierarquias e classificações entre raças. Com o racismo, há divisões
entre superiores e inferiores, bons e maus, quem merece viver, quem merece morrer; quem se expõe à morte, quem
é rejeitado. A segunda função do racismo ligada ao poder do Estado está no estabelecimento de uma relação positiva
com a morte do outro. Esta relação se estabelece no tipo biológico visto como um degenerado, anormal.
538
Título da Dissertação: UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do
Estado do Rio de Janeiro. Mestrado em Administração pela Universidade Federal Fluminense, 2014.
1277
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
necropolítica: a instituição de um controle militarizado nas favelas e a abertura à mercantilização. O
elemento racial como central para este modelo da necropolítica aparece com na “ação militarizada da
polícia, na repressão dos moradores, na inexistência da constituição de direitos e nas remoções para
territórios periféricos da cidade (...) na continuidade de uma lógica racista de ocupação dos presídios
por negros e pobres (MARIELLE FRANCO, 2014, p. 126 apud ALMEIDA, 2020, p. 127).
No terceiro elemento constitutivo do racismo estrutural, trataremos da relação direito e raça.
Neste ponto, vamos focar nossa atenção em duas concepções do direito539: o direito como poder e o
direito como relação social.
O racismo se apresenta como um elo entre direito e poder no curso da história. A associação
entre o direito e o poder numa direção antirracismo colaborou para, na maioria dos casos, a tomada
do poder por grupos políticos racistas. O direito ficou à disposição de projetos de discriminação,
segregação e extermínio. O autor conclui que “o racismo é uma relação estruturada pela legalidade”
(ALMEIDA, 2020, p. 136).
Na concepção do direito enquanto relação social, este é compreendido nas relações sociais
como um todo. Nesta concepção temos as liberdades individuais, a igualdade entre todos e o papel
do Estado, que tem a função de impor a ordem social com o uso das normas jurídicas. A formação
das normas jurídicas se dá a partir das estruturas sociais e econômicas presentes na sociedade. O
direito acontece na relação entre os sujeitos de direito. Enquanto relação social, encontramos a
dimensão estrutural do racismo. Assim, “o direito não é apenas incapaz de extinguir o racismo, como
também é por meio da legalidade que se formam os sujeitos racializados (ALMEIDA, 2020, p. 139).
No campo social, no Brasil, Silvio Almeida destaca a grande participação dos movimentos
sociais na construção dos direitos fundamentais, principalmente os direitos presentes na Constituição
de 1988. Além disso, o significativo passo na conquista das cotas raciais no serviço público e nas
universidades públicas no Estatuto da Igualdade Racial540, com contribuições teóricas de grande
relevância. Entretanto, é relevante destacarmos que o destino das políticas de combate ao racismo se
subordina aos rumos políticos e econômicos da sociedade.

539
Silvio Almeida aborda quatro concepções de direito para tratar a relação entre direito e raça: direito como
justiça, direito como norma, direito como poder e direito como relação social. De acordo com os objetivos de
nosso trabalho, torna-se relevante dedicarmos às duas últimas relações.
540
Lei nº 12.288/10. Estatuto da Igualdade Racial tem por objetivo “combater a discriminação racial e as
desigualdades raciais que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas
desenvolvidas pelo Estado”.
1278
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Por fim, o quarto elemento constitutivo do racismo estrutural, a economia. Sob a luz das
teorias neoclássicas da discriminação, Silvio Almeida nos apresenta três teorias que objetivam
explicar a discriminação sob a ótica comportamental e como um elemento externo à regularidade
econômica e suas instituições fundamentais.
A teoria da discriminação por preferência ou da propensão à discriminação, de Gary Becker,
1957, o racismo resulta da ignorância e de um comportamento baseado em informações insuficientes.
Aqui, uma pessoa negra é discriminada porque o racista a vê como algo em desutilidade, que lhe
resulta em despesa. A ignorância torna-se visível no pensamento que o racista expressa ao acreditar
que a raça influencia na produtividade. Nesta teoria temos a soma dos comportamentos individuais
preconceituosos e uma lacuna no próprio mercado em relação às informações disponíveis sobre
produtividade (ALMEIDA,2020).
A segunda teoria, a teoria do capital humano, ALMEIDA (2020) considera diferenças nos
níveis de produtividade de trabalhadores negros e brancos. Abrandam-se os comportamentos
individuais e, como na teoria anterior, sustentam-se nas falhas do mercado como explicação para a
desigualdade. Sobre essa teoria, precisamos retomar a meritocracia, já visto por nós anteriormente. A
meritocracia aparece como justificativa ética para as desigualdades. Sem a meritocracia, a
desigualdade salarial seria considerada uma ilicitude no mercado, uma vez que fere o princípio da
igualdade formal.
A terceira teoria econômica é a teoria da discriminação estatística, que, conforme ALMEIDA
(2020), justifica a desigualdade racial pelas decisões tomadas pelos agentes de mercado baseadas em
preconceitos estabelecidos na sociedade. Logo, para maximizar os lucros deve-se seguir a tendência
do mercado e pagar salários de acordo com a média estabelecida. Destacamos, então, que esta teoria
funciona com base em perfis raciais e preconceitos institucionalizados. Além disso, a teoria da
discriminação estatística afeta negativamente a autoestima e as expectativas dos indivíduos que
pertencem a um grupo discriminado.
Estas três teorias nos ajudam a perceber que, ao falar de raça e economia, precisamos falar de
desigualdade. A desigualdade é um ponto de embaraço nas teorias econômicas. A meritocracia
aparece para justificar a desigualdade salarial, ou seja, o desempenho individual do trabalhador e
trabalhadora: é na meritocracia que a desigualdade se naturaliza. Consequentemente naturaliza-
se a pobreza, a pouca educação, a falta nos cuidados médicos. Com a meritocracia, temos a

1279
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
legitimação da constituição natural de um ciclo de desigualdades. Portanto, a análise do racismo na
dimensão econômico estrutural nos ajuda a chegar a duas conclusões: a primeira “o racismo se
manifesta no campo econômico de forma objetiva, como quando as políticas econômicas estabelecem
privilégios para um grupo racial dominante ou prejudicam as minorias” (ALMEIDA, 2020, p. 170),
e a segunda conclusão “o racismo se manifesta de forma subjetiva (...) ajuda a legitimar a
desigualdade, a alienação e a importância necessária para a estabilidade do sistema capitalista”
(Ibidem, p. 171-172).

O MOVIMENTO NEGRO E A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE


INTEGRAL DA POPULAÇÃO NEGRA

A desvalorização racista do trabalho e dos trabalhadores, particularmente dos negros, tem,


portanto, raízes profundas na sociedade brasileira e sobrevive ainda hoje. A longa história da
resistência da população negra que começa antes mesmo da própria implantação do sistema escravista
prossegue após a abolição, sob novas formas, contra o novo contexto de exploração e discriminação
racista.
Esta resistência, de luta dos negros, está na perspectiva de resolução dos problemas sociais
abrangentes, principalmente os problemas relacionados ao preconceito e à discriminação racial. De
acordo com DOMINGUES (2007), é um movimento que luta conta a marginalização no mercado de
trabalho, na educação, na política, na cultura e na sociedade.
Seguindo o estudo de JORGE et al (2016), definimos o Movimento Negro como a luta da
comunidade negra na busca pela efetivação de seus direitos, criação de políticas contra a
discriminação e a segregação racial, econômica e cultural oriundas dos resultados da formação social
e econômica da sociedade ocidental.
Conforme DOMINGUES (2007), para o movimento negro, a raça – e a identidade racial – é
um fator determinante para a organização dos negros em torno de um projeto com objetivos em
comum. É um movimento político de mediação das reivindicações políticas. E é desse movimento
político de mobilização racial que este mesmo movimento assume em muitos momentos um lado
cultural.
O autor divide este movimento em quatro fases, organizados na República. A primeira
fase (1889-1937): da Primeira República ao Estado Novo; a segunda fase (1945-1964): da
1280
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Segunda República à ditadura militar; a terceira fase (1978-2000): do início do processo de
redemocratização à República Nova; quarta fase (2000 – até nossos dias): uma hipótese interpretativa.
A seguir vamos destacar elementos de importância para os objetivos deste trabalho, como o discurso
racial predominante, os principais termos de auto-identificação, a solução para o racismo e a relação
com a cultura negra (DOMINGUES, 2007).
Na primeira fase, (1889-1937): da Primeira República ao Estado Novo, temos um discurso
racial moderado. A auto-identificação se dava pelos termos homem de cor, negro e preto. Para
DOMINGUES (2007), a solução para o racismo, nesta época, era buscada pela via educacional e
moral, nos marcos do capitalismo ou da sociedade burguesa. Em relação com a cultura negra,
percebia-se o distanciamento frente a alguns símbolos associados à cultura, como a capoeira, samba
e as religiões de matriz africana.
Tentando preservar expressões culturais próprias, cultuando sua religiosidade nas
comunidades-terreiras, fundando inúmeras associações com finalidades sociais já que eram os negros
excluídos por serem “de cor”, as sociedades de auxílio mútuo, círculos recreativos, jornais próprios,
ligas de futebol, ranchos e cordões carnavalescos, bem como organizações políticas de caráter
nacional, a comunidade negra foi reconstruindo a sua própria identidade, mostrando seu valor e
reivindicando seu lugar na sociedade e o seu direito à cidadania. No início dos anos 30, em meio à
agitação político-nacional, nascia, em São Paulo, a Frente Negra Brasileira (FBN) cujos estatutos
foram aprovados com a presença de mais de mil pessoas, a 12 de outubro de 1931 (DOMINGUES,
2006).
A segunda fase (1945-1964): da Segunda República à ditadura militar, conforme
DOMINGUES (2007) o discurso racial continuava moderado, da mesma forma a auto-identificação
seguia como homem de cor, nefro e preto. Temos uma mudança importante na solução para o racismo
neste período: pela via educacional e cultural, eliminando o complexo de inferioridade do negro e
reeducando racialmente o branco, nos marcos do capitalismo ou da sociedade burguesa. A relação
com a cultura negra demonstrava uma ambigüidade valorativa diante de alguns símbolos associados
à cultura negra, como a capoeira, samba e as religiões de matriz africana.
Aqui temos o surgimento de um dos principais agrupamentos: a União dos Homens de Cor
(UHC), fundada em 1943 em Porto Alegre. Este agrupamento se expandiu, possuindo

1281
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
representantes em 10 Estados da Federação. Com a instauração do Estado Novo (1937), foram
extintas esses agrupamentos e outras organizações, como a Frente Negra Brasileira.
A terceira fase (1978-2000): do início do processo de redemocratização à República Nova,
tínhamos um discurso racial predominantemente contundente. DOMINGUES (2007) aponta a adoção
padrão do termo negro. Posteriormente, utiliza-se, também, o termo afro-brasileiro e afro-
descendente. A solução para o racismo muda sua perspectiva, sendo buscada pela via política, nos
marcos de uma sociedade socialista, a única que seria capaz de eliminar todas as formas de opressão,
inclusive a racial. A relação com a cultura negra é de valorização de seus símbolos, como o samba, a
capoeira, as religiões de matriz africana, sobretudo o candomblé.
Conforme exposto por SILVEIRA; MELLO (1996), em junho de 1978, em um momento no
qual se fortalecia a oposição civil contra o regime militar, é criado o Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial (MUCDR), reunindo várias organizações negras no país, como o grupo Afro-
Brasileiro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira, entre outros. E no Rio Grande do Sul, teve origem no
movimento negro gaúcho à proposição de 20 de novembro, evocativo da morte de Zumbi dos
Palmares, como Dia Nacional da Consciência Negra, em oposição aos 13 de maio, da falsa abolição.
A quarta fase (2000 – até nossos dias): uma hipótese interpretativa, ainda em construção,
apresenta sinais para uma nova forma de expressão, com a entrada do movimento hip-hop. Este
movimento apresenta-se como um movimento cultural inovador e que está em ascendência nacional.
Esse movimento expressa a rebeldia da juventude negra, trazendo um novo perfil de ativistas do
movimento negro. Esse novo perfil busca resgatar a auto-estima do negro e denunciar o preconceito
racial e social. Aqui temos a aliança do movimento negro com outros setores à margem da sociedade.
O hip-hop, para DOMINGUES (2017), está em fase precoce para considerá-lo uma ruptura da
plataforma do movimento negro. Ainda está em um discurso ambivalente, desprovido de um
programa político e ideológico. Ainda, não tem uma ideologia estritamente racial. Ele também
abrange setores da juventude branca marginalizada.
Mesmo assim, o Movimento Negro, com as naturais controvérsias internas, presentes em
qualquer movimento político, vem sustentando a luta contra a discriminação racial no Brasil,
procurando sempre desmistificar a falsa democracia racial. Podemos trazer como exemplo da força
deste Movimento, a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), pela Lei nº 10.678, de 23 de março de 2003, como órgão de assessoramento direto da

1282
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Presidência da República, com status de ministério, representa uma conquista emblemática do
Movimento Social Negro. Esta Secretaria tem como objetivo institucional promover a igualdade e a
proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, por meio do acompanhamento e da
coordenação das políticas de diferentes ministérios, dentre os quais o da Saúde, e outros órgãos do
governo brasileiro .
A partir dos elementos presentes até então, percebemos que a abordagem de racismo
estrutural, trazida por Silvio Almeida, nos auxilia na compreensão que determinada identidade pode
criar regras de pertencimento dos indivíduos a dada formação social como, também, criar mecanismos
de exclusão. Neste sentido, MUNANGA (2019) diz que a identidade de um grupo funciona como
ideologia quando permite que grupos diferentes trabalhem para reforçar a solidariedade entre eles.
Mas pode se tornar manipulação da consciência identitária, por uma ideologia dominante, que
considera a busca de identidade como um desejo separatista.
Consideramos, também, importante destacar que a identidade negra também teve
direcionamento político por parte dos militantes e dos movimentos sociais. A identidade negra existe
culturalmente. Isto se pode comprovar pela resistência da cultura negra no Brasil. Assim, o objetivo
não é reconstruir, mas “lançar mão dessa identidade cultural, tomar consciência de que ela existe e
que ela contribui para modelar a cara do Brasil dentro e fora do país. A existência da identidade do
afro-brasileiro supõe a existência dos outros” (MUNANGA, 1996, p. 23).
No campo da saúde, conforme SÔNIA LAGES et al, 2017, encontramos muitos pesquisadores
investigando a temática da desigualdade racial e apontado o racismo como um importante
determinante social em saúde, da mesma forma, muitas pesquisas indicam possíveis efeitos que a
vivência do racismo impacta no processo de subjetividade das pessoas negras Neste aspecto,
MUNANGA (2002) aponta a complexidade do fenômeno do racismo e seus efeitos na saúde da
população negra ao dizer que: “(...) o racismo pode ser comparado a um iceberg, cuja parte visível
corresponderia às manifestações do preconceito, tais como as práticas discriminatórias observadas
por meio dos comportamentos sociais e individuais, e que podem ser explicadas pelas ferramentas
metodológicas das ciências sociais e políticas” (MUNANGA, 2002, p. 13).
É a partir do reconhecimento de uma identidade negra que foi possível concretizar, através de
lutas, a criação de políticas públicas para os negros. Conforme NETO et al (2015), a década de
80 no Brasil foi marcada por uma série de movimentos sociais negros que objetivavam melhores

1283
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
condições de vida. Um deles foi a “Marcha Zumbi dos Palmares”, em 1995, que buscava o fim do
racismo, melhores condições de vida à população negra e fim das desigualdades raciais. A partir
disso, JUREMA WERNECK (2016) complementa que muitas pesquisas, encontros e marcos
políticos foram sendo tensionados com o objetivo de reconhecer o racismo como um determinante
social da saúde, influenciando nos processos de saúde, adoecimento e morte.
O I Seminário Nacional de Saúde da População Negra, realizado em Brasília entre os dias 18
e 20 de agosto de 2004, foi o primeiro evento convocado pelo Governo Federal para discutir a
perspectiva racial nas políticas de saúde. Um dos impactos do seminário nas diretrizes da política
nacional de saúde foi o de que essa dimensão fosse contemplada na criação de espaços para
proposição e monitoramento de ações, como o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, sediado
na Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, como instância de
relacionamento do movimento negro e pesquisadores na área, para a elaboração da Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra.
Assim, conforme Ministério da Saúde (BRASIL, 2017), motivada por movimentos sociais,
foi aprovada em 2007, no dia nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, pelo Conselho
Nacional de Saúde, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN. Em 2009,
o Ministério da Saúde instituiu a PNSIPN. Essa Política tem como marca: o reconhecimento do
racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das
condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde. Seu objetivo é promover a saúde
integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao
racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
A formulação da PNSIPN, vinha sendo discutida desde 2001, mas só seria aprovada em 2008
na Tripartite e publicada pela Portaria 992, de 13 de maio de 2009. Reafirmou os princípios do
Sistema Único de Saúde, em especial, o princípio da equidade, que pressupõe a priorização da atenção
em saúde “em razão de situações de risco e condições de vida e saúde de determinados indivíduos e
grupos de população” (BRASIL, 1998).
Em relação as políticas públicas, LAURA LÓPEZ (2012) nos ajuda a compreendê-las com
perspectiva a racial no Brasil enquanto um produto da trajetória contemporânea da militância negra.
Através da resistência e lutas disseminadas na esfera pública, a militância negra buscou

1284
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
evidenciar o racismo na sociedade brasileira e demandar ações governamentais que provoquem um
processo de desracialização.
Ainda em referência à área da saúde, a democratização das ações e serviços de saúde no
Brasil foi garantida como direito constitucional e expressa no SUS, que tem como base novas
relações entre Estado e sociedade. Esse processo contou com a participação da militância
negra, particularmente dos militantes vinculados a movimentos populares e sindicatos
(LAURA LÓPEZ, 2012, p. 125).

Para SILVIA CENTENO et al (2018), população negra até hoje está no movimento para
conquistar o que lhe é de direito através de disputas, ressignificando sua identidade social. Este
processo se dá a partir das disputas por um espaço digno na sociedade. Essa disputa tem um caráter
dinâmico, ocorrendo com diferentes formas de expressão, através dos tempos. A aprovação de uma
política pública em saúde que levou em conta um determinado segmento da população, considerando
sua raça/cor, foi e continuará sendo uma conquista muito importante na nossa sociedade.
Conforme consta na PNSIPN, a partir da publicação dessa Política, o Ministério da Saúde
reconhece e assume a necessidade da criação de mecanismos e estratégias de promoção da saúde
integral da população negra. Também esta política estabelece mecanismos para o enfrentamento ao
racismo institucional no SUS, na busca de derrubar as barreiras estruturais e cotidianas que incide
negativamente nos indicadores de saúde dessa população. Em relação às esferas do governo, o
governo federal, estadual e municipal têm responsabilidade na efetivação das ações e na articulação
com outros setores do governo e da sociedade civil, para garantir o acesso da população negra a ações
e serviços de saúde, contribuindo para a melhoria das condições de saúde desta população e para
redução das iniquidades de raça/cor, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, geracionais e
de classe.
Também destacamos o princípio da transversalidade na PNSIPN, “caracterizada pela
complementaridade, confluência e reforço recíproco de diferentes políticas de saúde” (BRASIL,
2017. P. 31). De acordo com o texto da PNSIPN, entendemos que este texto considera a participação
do sujeito no processo de construção das respostas para as suas necessidades, englobando um
conjunto de estratégias que resgatam a visão integral do sujeito, assim como os fundamentos nos
quais estão incluídas as várias fases do ciclo de vida, as demandas de gênero e as questões relativas
à orientação sexual, entre outras.
O documento traz a “inclusão dos temas Racismo e Saúde da População Negra nos
processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde e no exercício do
1285
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
controle social na saúde”; e, destaca o “incentivo à produção do conhecimento científico e tecnológico
em saúde da população negra”. O documento apresenta, ainda, em seu terceiro objetivo específico, a
inclusão do tema “Combate às Discriminações de Gênero e Orientação Sexual, com destaque para as
interseções com a saúde da população negra, nos processos de formação e educação permanente dos
trabalhadores da saúde e no exercício do controle social” (BRASIL, 2017, p. 31-33).
Também encontramos neste documento alguns elementos culturais que constituem a
identidade negra. Enquanto estratégias desta política, temos a elaboração de materiais de informação,
comunicação e educação sobre o tema Saúde da População Negra, respeitando os diversos saberes e
valores, inclusive os preservados pelas religiões de matrizes africanas (BRASIL, 2017, p. 31-34).
Neste plano, podemos destacar a questão da identidade negra que se apresenta enquanto estratégias
da PNSIPN: qualificar e fortalecer o acesso da população negra e das comunidades tradicionais
(Quilombolas e Terreiros) aos serviços de saúde da atenção básica, em tempo adequado ao
atendimento das necessidades de saúde, conforme a Política Nacional de Atenção Básica – PNAB,
em especial a Estratégia de Saúde da Família (BRASIL, 2017, p. 41).
O documento apresenta como meta a inclusão do quesito cor nos instrumentos de coleta de
dados nos sistemas de informação do SUS. Em 2017, O Ministério da Saúde pública a Portaria 344
de 01 de fevereiro de 2017, a qual dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários
dos sistemas de informação em saúde. Com esta portaria, a coleta do quesito cor e o preenchimento
do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde,
de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário de saúde, dentro dos padrões utilizados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que constam nos formulários dos
sistemas de informações da saúde como branca, preta, amarela, parda ou indígena.
Para finalizar, a partir da conquista da PNSIPN, o Ministério da Saúde apresenta as ações
voltadas à saúde da população negra, com destaque para:
a) Plano Juventude Viva – Prevê ações de prevenção para reduzir a vulnerabilidade de jovens negros
a situações de violência física e simbólica.
b) Portaria nº 1.391, de 16 de agosto de 2005, que institui, no âmbitodo SUS, as diretrizes para a
Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras
Hemoglobinopatias.

1286
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
c) Incorporação do transplante de medula para tratamento da doença falciforme no âmbito do SUS
(Portaria SCTIE n° 30, de 30 de junho de 2015).
d) Curso de ensino a distância sobre saúde da população negra promovido pelo MS e Universidade
Aberta do SUS (UNA-SUS), lançada em 27 de outubro de 2014).
e) Comitê Técnico de Saúde da População Negra – Instituído no âmbito do Ministério da Saúde, é
um espaço consultivo de participação e controle social, com representantes da gestão, pesquisadores
e movimentos negros.
f) Publicação, em 30 de março de 2017, do III Plano Operativo da Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra (Resolução nº 16, de 30 de março de 2017). O III Plano Operativo foi pactuado
e aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) – foropermanente de negociação e articulação
das esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). Com vigência para o triênio 2017- 2019, o
III Plano Operativo estabelece ações de implementação da referida política para as gestões federal,
estadual e municipal do SUS.
g) Publicação da Portaria nº 142, de 21 de julho de 2017, que institui o Grupo de Trabalho de Políticas
Públicas da Igualdade Racial e dá outras providências. Conforme o art. 1°, fica instituído o Grupo de
Trabalho de Políticas Públicas da Igualdade Racial com a finalidadede explanar aos órgãos e às
entidades governamentais e não governamentais dos estados e municípios as ações de promoção da
igualdade racial das políticas públicas federais, assim como de propor metas e prioridades aplicáveis
à realidade local (BRASIL, 2017, p. 25-26).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trazer um debate envolvendo a temática racial e saúde pública nos ajudou na reflexão sobre
os avanços das políticas públicas alcançados até o presente momento. Conseguimos perceber a
importância do Movimento Negro nesta importante conquista. Além disso, nos proporcionou a
percepção de um racismo enquanto elemento estruturante da sociedade.
Primeiramente, ao nos defrontar com a questão do racismo institucional presente na PNSIPN,
podemos questionar: este conceito de racismo institucional consegue ser suficiente na conjuntura
social em que estamos imersos atualmente? O racismo não está apenas nas instituições, enquanto
resultado de um funcionamento das instituições; tampouco se limita a um comportamento ou
uma atitude do indivíduo numa relação eu/outro. O racismo de hoje está instituído com
1287
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
normalidade, funcionando tanto como uma ideologia quanto como uma prática de naturalização das
desigualdades.
O racismo estrutural, que envolve um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas
instauradas em nossos costumes, promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito
racial. O racismo estrutural significa a normalização das relações desiguais de poder por causa das
questões de raça e cor. Para o autor que utilizamos como referência neste estudo sobre o racismo,
Silvio Almeida, o racismo causa mais do que apenas violência verbal. O racismo estrutural causa a
morte da população negra, ou seja, o racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se
resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e
político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é
estruturalmente reproduzida. Em outras palavras, não vemos o carrasco do racismo porque ele não
se assume como tal. Então é uma morte física e também da consciência do negro. A segunda se dá
pelo silêncio, pelo não dito que impede que a vítima e a população tomem consciência de que o
racismo existe (SYLVIA DANTAS et al, 2017).
Assim, queremos marcar aqui a necessidade da retomada do entendimento sobre a questão
racial presente no texto da PNSIPN. Considerar o racismo apenas em âmbito institucional não nos
parece suficiente para tratar de políticas públicas em saúde no contexto atual.
Em segundo lugar, falamos da identidade negra, considerando a militância enquanto elemento
constituinte de uma identidade. Esta identidade, representada no Movimento Negro, foi capaz de
promover a criação de um marco na Saúde Pública Nacional no que se refere a questão racial, com a
criação da Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009, a qual Instituiu a Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra.
A criação de um campo da saúde da população negra ganhou força no momento em que o
debate sobre o racismo e a formulação de programas de ação afirmativa estavam numa crescente no
contexto sócio-político brasileiro. Buscou garantir o direito do negro ser acolhido no Sistema Único
de Saúde como ele é, com suas características peculiares e preservando sua identidade e cultura.
A criação de política em saúde específica para os negros trata-se da construção de uma política
setorial, com recorte racial, gerador de um processo de diferenciação e de busca de legitimação dos
agravos sofridos pelos negros. Como MASSIGNAM et al (2015) traz em seu estudo, essas ações
e políticas não asseguram a esses grupos o fim da discriminação nos serviços prestados pela

1288
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Saúde. Estas ações podem criar barreiras, constrangimentos e exclusão de um direito universal, uma
vez que conferem maior visibilidade a suas necessidades.
Neste intento, conectamos o que o autor Silvio Almeida no prefácio da obra de Asad Haider
afirma que “a identidade é fruto de uma história, que só pode ser alcançada caso mergulhemos nas
relações sociais concretas” (HAIDER, 2019, p. 9) com o estudo de MASSIGNAM et al (2015), que
nos ajudou a lembrar que essas políticas só se viabilizam quando traduzidas à realidade específica,
com pesquisadores e ativistas sociais comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa
e equânime. Cabe às futuras pesquisas e, sobretudo ao Movimento negro, considerar a discriminação
no âmbito da Saúde, dando voz ao usuário e ao trabalhador em saúde.
Portanto, são necessárias mais pesquisas sobre a ocorrência de discriminação e seus efeitos
sobre as políticas públicas em saúde criadas e que serão desenvolvidas. Ainda, percebemos a
necessidade de mais pesquisas sobre o acesso à saúde de segmentos da população mais vulneráveis
ao estigma ou preconceito, marginalizados pela sociedade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2020.

BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. Lei 12.228. 2010.

_____. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
3.ed. Brasília: MS; 2017.

_____. PORTARIA Nº 3.925, de 13 de novembro de 1998. 1998.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação. Vol.2; tradução Klauss


Brandini Gerhardt. 9a Ed. rev. ampl. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:


Rocco. 1987.

1289
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos
históricos. Tempo, Niterói , v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007.

_____. O "messias" negro? Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978): "Viva a nova monarquia
brasileira; Viva Dom Pedro III !". Varia História. 22(36), 517-536. 2006.

HAIDER, Asad. Armadilhas da identidade: raça e classe nos dias de hoje.Tradução de Leo
Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019.

JORGE, Diego; BESERRA, Maria; MOURA, Tânia. Movimento Negro: A atuação política do
movimento como fator de conversão de suas demandas em políticas públicas. Revista do IDP –
CEPES Centro de Pesquisa, v.1, n. 32. 2016.

JUREMA WERNECK. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude soc. Sep; 25 (3):
535-549. 2016.

LAURA LÓPEZ, Cecília. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde.


Interface (Botucatu). 16(40): 121-134. 2012.

MASSIGNAN, Fernando; BASTOS, João; NEDEL, Fulvio. Discriminação e saúde: um problema


de acesso. Epidemiol. Serv. Saúde, v. 24, n. 3. pp. 541-544. 2015.

MUNANGA, Kabengele. Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os


discursos anti-racistas no Brasil. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura. 5(1), 17-24. 1996.

_____. Negritude: usos e sentidos. 4a.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

_____. Prefácio. In: CARONE, Iracy; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do
racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Vozes,
2002.

_____. Negrite e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso? Revista da


ABPN. V.4 n.8. jul-out. p. 06-14. 2012.

1290
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
_____. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Palestra proferida
no 3o Seminário Nacional Relações Raciais e Educação – PENESB- RJ – 2003.

NETO, José; FONSECA, Geovane; BRUM, Igor;, SANTOS, João; RODRIGUES, Tamara,
PAULINO, Katia; FERREIRA, Renato. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra:
implementação, conhecimento e aspectos socioeconômicos sob a perspectiva desse segmento
populacional. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 20, n. 6, p. 1909-1916, jun. 2015.

SILVEIRA, Helder; MELLO, Marcos. Histórias sobre o negro no Brasil. Cultura &Trabalho.
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Porto Alegre: SMED; 1996.
SILVIA CENTENO; MEYER, Dagmar; ANDRADE, Sandra. Representações de sujeito negro/a na
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma análise cultural. Textura UFRGS.
20(42): 1-24. 2018.

SÔNIA LAGES; SILVA, Ariane; SILVA, Diego; DAMAS, Julia; JESUS, Mariana. O preconceito
racial como determinante social da saúde - a invisibilidade da anemia falciforme. Gerais Rev.
Interinst. Psicol. Jun;10(1):109-122. 2017.

SYLVIA DANTAS; FERREIRA, Lígia; VÉRAS, Maura. Um intérprete africano do Brasil:


Kabengele Munanga. Revista USP São Paulo. (114): 31-44. 2017

1291
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CORPOS DISSIDENTES, SOROPOSITIVIDADE E REPRESENTAÇÕES: A FICÇÃO DE
ADELAIDE CARRARO E HERBERT DANIEL541

Atilio Butturi Junior542


Jair Zandoná543

Resumo: Este trabalho pretende analisar os discursos sobre a soropositividade, a sexualidade e as corporalidades em três
romances, publicados em 1987: Socorro! Estou Morrendo de Aids e O travesti, de Adelaide Carraro; Alegres e excêntricos
abacaxis americanos, de Herbert Daniel. Para tanto, problematiza inicialmente o estatuto estético-político ambíguo da
topologia das cidades e aponta para os processos de cisão entre subjetividades que engendra. Adiante, volta-se para as
narrativas e descreve séries que relacionam: i) enunciados naturalistas na enunciação do corpo, da sexualidade e da
doença; ii) enunciados sobre a homossexualidade, o corpo e o risco; iii) enunciados típicos do dispositivo da aids
brasileiro, notadamente em Carraro, em oposição aos esforços identitários e políticos de Daniel. Nessas análises, é uma
espécie de cartografia do corpo no espaço urbano que se faz notar e que aponta não apenas para um modo de produção
da verdade sobre as sexualidades e os corpos dissidentes, mas uma agonística entre a produção de si (no caso das
homossexualidades de Herbert Daniel) e a circulação de discursos e práticas de exclusão da pessoa que vive com hiv na
história da aids no Brasil e em sua materialização literária.

Palavras-chave: Soropositividade; Literatura; Herbert Daniel; Adelaide Carraro; Cidade.

INTRODUÇÃO
Nossa reflexão toma como ponto de partida algumas contribuições feitas por David Harvey
(2014), Olivier Mongin (2009) e Zygmunt Bauman (2009) para pensar a cidade enquanto espaço de
disputas, de (in)visibilidades, e os corpos dissidentes como (im)possíveis de se fazerem existir (e
resistir) por, através, por meio dela: copo-cidade e cidade-corpo. David Harvey pondera que é na
cidade as idiossincrasias da vida moderna são melhor percebidas:

A cidade é o lugar onde pessoas de todos os tipos e classes se misturam, ainda que relutante
e conflituosamente, para produzir uma vida em comum, embora perpetuamente mutável e
transitória. A comunalidade dessa vida tem sido [...] tema frequente de uma vasta gama de
textos e representações [...] que tentam apreender o caráter dessa vida (ou o caráter particular
da vida em uma cidade específica em um lugar e um tempo determinados) e o seu significado
mais profundo. (HARVEY, 2014, p. 134).

541
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, por meio de bolsa de pós-doutoramento concedida a Jair
Zandoná, e do CNPq, por meio de bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida a Atilio Butturi Junior.
542
Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina. É líder do Grupo de Estudos no Campo Discursivo
e membro do Grupo de Pesquisa A condição Corporal (PUC-SP) e do Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada
da UFSC. É editor-chefe da revista Fórum Linguístico, docente do Programa de Pós-Graduação em Linguística da
UFSC e do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal da Fronteira Sul. É,
atualmente, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ2). E-mail: atilio.butturi@ufsc.br.
543
Realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC com bolsa
PNPD/CAPES. Doutor e mestre em Literatura pela mesma instituição. É um dos editores da Revista Anuário de
Literatura (PPGL/UFSC) e editor de resenhas da Revista Estudos Feministas (REF). Integra o quadro de
pesquisadores/as do Instituto de Estudos de Gênero/UFSC, do Literatual/UFSC e do Grupo de Estudos no Campo
Discursivo/UFSC. E-mail: jzandona@gmail.com.
1292
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Ao passo que a cidade abarca – ou confronta – as diferenças (sejam elas de gênero, de
raça/etnia, de sexualidades, de geração, entre outras) das pessoas que nela vivem (ou que por ela
passam) também é espaço de conflitos, de transgressões, de violências. Quais corpos têm direito de
ocuparem a cidade, suas ruas, calçadas, enfim, os espaços públicos em segurança – sem se sentirem
ameaçados? É oportuno considerar a cidade – e seus espaços de trânsito – como campo profícuo para
que a relação com os corpos considerados abjetos (e portanto dispensáveis de qualquer atenção ou
afeto), passíveis de exclusão consciente, reprimidos violentamente (física, psicológica ou
simbolicamente), inibidos da convivência social. Corpos estranhos que não se adequam aos padrões
cisheteronormativos. Nessa complexa dinâmica, na tentativa de preservar determinadas condutas e
existências – sempre em detrimento de outras – prevalece certa assepsia social que modaliza, em
primeiro lugar, o olhar, promovendo exclusão estética, a qual está calcada numa partilha do sensível
que define regimes de visibilidade e de fruição (RANCIÈRE, 2005).
Para direcionar nossa discussão tomamos como corpus três romances: Socorro! Estou
Morrendo de Aids e O travesti, de Adelaide Carraro; Alegres e excêntricos abacaxis americanos, de
Herbert Daniel. As três narrativas foram publicadas em 1987 e carregam uma memória ainda em
disputa: a das vidas soropositivas e a dos discursos sobre o hiv e a aids. Nosso objetivo é cotejar, no
vislumbre de pensar, no regime tecnobiodiscursivo que configura o dispositivo da aids (BUTTURI
JUNIOR, 2019), os diferentes modos de inscrição: seja o flagrante hiperbólico e cientificista de
Carraro; seja o flagrante paródico de Daniel, os quais se dão em contextos muito específicos do
período de redemocratização no Brasil. Nos interessa pensar, via literatura, a territorialização dos
corpos dissidentes marcados pelo hiv-aids e que habitam a cidade (grande). Considerar essa
cartografia, mesmo que ficcional, pode ser interessante para nossa reflexão posto que, no momento
em que esses romances foram publicados havia, ainda, a limitada ideia de um perfil epidemiológico
da aids, na qual a doença estaria restrita a recortes espaciais ou a um ambiente.
Quanto ao cenário da doença, vale mencionar que os primeiros registros médicos no Brasil
foram apresentados em um congresso médico realizado em 1983 relatando o caso de dois homens
que haviam visitado os EUA (JARDIM, 2019, p. 27). Nessa época, a Secretaria da Saúde do Estado
de São Paulo, alinhada às ações progressistas da gestão de Franco Montoro (1983-1988),
protagonizou ações de conscientização sobre a aids, como a produção de panfletos e materiais

1293
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
explicativos sobre a doença544. Tanto essas quanto outras ações contribuíram para a definição do texto
que nortearia a Constituição de 1988, a criação do SUS e estabeleceu rumos para o enfrentamento da
aids no país. Como desdobramentos da expansão da epidemia, se, num primeiro momento, a doença
atingiu “homossexuais masculinos das classe média e alta, e moradores dos centros urbanos”,
posteriormente, identificou-se a “feminilização da doença [...] especialmente a partir da década de
1990 [...] [e] a pauperização da epidemia” (JARDIM, 2019, p. 31) ao atingir a população de periferia,
bem como a sua interiorização para outras partes do país.

A CIDADE NUNCA É A MESMA QUANDO SE É OUTRO


O sujeito se constrói no espaço urbano através de uma gama de fatores que se elaboram e se
conectam de diferentes formas. Nesse sentido, vale retomar três aspectos sobre a cidade delineados
por Zygmunt Bauman (2009): as zonas fantasmas; os espaços de fluxos; e a mixofilia. As zonas
fantasmas estão em oposição a espaços que, nas cidades, adquirem determinado valor. Tais espaços
estabelecem o trânsito específico de sujeitos que “devem” (ou não) ocupar esses cenários. Esse
entendimento sobre os espaços urbanos fez/faz com que as pessoas de baixa renda fossem/sejam
expulsas, deslocadas dos limites da cidade, e passaram/passem a ocupar as zonas fantasmas: as
regiões menos visadas da cidade. E são zonas fantasmas justamente porque quem lá mora não tem
visibilidade. São sujeitos invisíveis e invisibilizados, massa desprezível e sem grande “utilidade
funcional”, são pessoas supérfluas (BAUMAN, 2009, p. 22-27). É nesse espaço, portanto, onde
residem perigos, pesadelos, pessoas criminosas, violências.
Por sua vez, os espaços de fluxos indicam para uma circulação mais fluida de pessoas, de
capitais, de produtos, de bens e de mensagens. O trânsito de pessoas que circulam entre países e
culturas – como imigrantes, turistas, estudantes, profissionais etc. – estreita vínculos assíduos entre a
sociedade de origem e a de passagem, o que não era possível até meados do século XX (CANCLINI,
2007, p. 58). Para que isso seja alcançado, o espaço urbano também deve estar adequado para acolher
esse fluxo. Os portos de passagem se ampliam, funcionam como conexões, esboroam os limites

544
Sobre isso é possível conferir, por exemplo, o documento produzido pela Secretaria de Estado da Saúde,
coordenadoria de Serviços Técnicos Especializados do Instituto de Saúde – Divisão de Dermatologia Sanitária
encontrado no acervo do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual/SP foi o primeiro grupo brasileiro engajado na
causa e luta homossexual disponível no AEL/Unicamp (SOMOS PI 0.004 DOC.076, coleção do Grupo Somos,
pasta 28).
1294
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
territoriais: por meio de estações, dos aeroportos, dos terminais rodoviários, quem levam para hotéis,
a restaurantes, a cafés. Os hotéis, as pousadas (ou mais atualmente os airbnbs) têm esse caráter
provisório, com horários para check-in e check-out, destinado a pessoas que estão sempre de
passagem, para turistas ou pessoas sem residência fixa e sem intenções de se fixar.
Conforme Bauman (2009, p. 35), é “[…] nos lugares que se forma a experiência humana, que
ela se acumula, é compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado […]”. Por
esse viés, os espaços de fluxo possibilitam não apenas o contato com o estrangeiro, mas o
entendimento de que a existência do outro que lhe é desconhecido também enfatiza a diferença
existente entre o sujeito e seu conterrâneo, posto que as diferenças sociais, econômicas, de geração e
de gênero evidenciam a heterogeneidade.
Esse cenário torna-se sedutor e estimula o que Bauman chama de mixofilia, o desejo, a atração
pelo estranho (estranhos vivendo como estrangeiros), pelo diferente, pelo que é desconhecido. Essa
pulsão move(u), além de outros fatores relevantes tal como a promessa de melhores condições de
vida com a eclosão industrial no século XX, as pessoas do campo e das cidades do interior, para
viverem nas grandes cidades – lugar no qual se potencializa a noção do outro. Entretanto, ao passo
que podemos perceber a mixofilia, a cidade também induz ambivalentemente à mixofobia. Conviver
com pessoas “semelhantes”, com os mesmos rituais e hábitos estabelece o conforto homogêneo de
interesses e práticas sociais. Evitar o outro, que é também estrangeiro, impede de haver equívocos,
eventuais mal-entendidos, além de não exigir negociações complexas no que diz respeito às práticas
sociais (BAUMAN, 2009, p. 43-47), num movimento de tentar manter certa estabilidade no que se
entende como local, deixando, supostamente, o sujeito “a salvo” das incontroláveis mudanças e
novidades do global (sempre caleidoscópicas).
Se o sujeito da cidade se posiciona de modo ambivalente, entre a mixofobia e a mixofilia é
possível apreender que o modo como a cidade se constrói – ou é construída – por ele também é
diversa. A maneira como vivencia a cidade grande (re)molda suas experiências. Como experiência
entendemos, em certa medida, aquilo que acontece conosco, o que nos toca, por assim dizer. Nosso
modus vivendi também contribuirá para o modo como nossas experiências se desenrolarão, ou como
as percebemos. A experiência urbana acaba por evidenciar a pluralidade do(s) sujeito(s), porque
permite uma experiência pública (MONGIN, 2009, p. 61). Por esse viés, Olivier Mongin (2009,
p. 61-70) ao discorrer sobre a experiência pública, relaciona a cidade com as páginas de um livro.

1295
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, a cidade-corpo é também cidade-linguagem, pois entre “[…] o corpo da cidade e os corpos
que a percorrem, a cidade é uma folha jamais totalmente branca, sobre a qual corpos contam
histórias.” (MONGIN, 2009, p. 62).
Ora, o trânsito estético-político da cidade é marcado pela agonística no interior de dispositivos
ubíquos – e os dispositivos sexuais, gendrados, raciais etc. são axiais nesse processe de produção de
cisões. Quando Michel Foucault, em entrevista ao Le Nouvel Observateur de 12 de março de 1977,
pondera que:

[...] como se explica que, em uma sociedade como a nossa, a sexualidade não seja
simplesmente aquilo que permita a reprodução da espécie, da família, dos indivíduos? Não
seja simplesmente alguma coisa que dê prazer e gozo? Como é possível que ela tenha sido
considerada como o lugar privilegiado em que nossa “verdade” profunda é lida, é dita?
(FOUCAULT, 2009a [1977], p. 229)

A citação permite relacionar sexo, verdade e sujeito no Ocidente, desde o século XIX e naquilo
que chamou de dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 2009b), ao enunciado da monstruosidade.
Em Os Anormais, Foucault (2002 [1975]) constrói uma espécie de genealogia do monstro: até o
século XVIII, sua aparição estava limitada à contranatureza e à condição da criminalidade. A partir
do século XIX, um deslocamento acontece e passa-se à “autonomização da monstruosidade moral”
(2002 [1975], p. 92), de maneira que uma nova forma de poder exige que a monstruosidade seja lida
nos comportamentos e não nas espécies, nos sujeitos e nas suas práticas e não na natureza.
Foucault (2002 [1975]) situa um movimento que vai de uma monstruosidade criminosa (até o
século XVIII), no qual o problema não era o do monstro-sujeito mas do objeto – a monstruosidade –
, em direção à monstruosidade da criminalidade (na passagem para o século XIX), na qual o centro
era a subjetividade. No processo de inversão do discurso da monstruosidade uma nova percepção do
crime e do criminoso se constituiu: “Todo criminoso poderia muito bem ser, afinal de contas, um
monstro, do mesmo modo que outrora o monstro tinha uma boa probabilidade de ser criminoso.”
(FOUCAULT, 2002 [1975], p. 101).
A nova invenção, o monstro moral, marca a emergência de um novo poder, o disciplinar, e
incide, primeiramente, sobre os discursos acerca do soberano, aquele sobre o qual abunda a literatura
e a desconfiança pública – o monstro de cima; depois, sobre os discursos do povo mais humilde. Em
ambos os casos, na literatura e no jornalismo os monstros passam a ocupar espaço de destaque,
como aqueles que “[...] transgridem as duas grandes interdições: a alimentar e a sexual [...]” – de

1296
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
uma “[...] monstruosidade sexual e antropofágica [...]” (FOUCAULT, 2002 [1975], p. 127).
É por esse viés que tomamos os três romances publicado em 1987545 na medida que a literatura
oferece – como espaço de tensão seja via flagrante hiperbólico e cientificista de Carraro; seja por
meio do flagrante paródico de Daniel, como já mencionamos – a possibilidade para outras realidades
(mesmo que ficcionais), possível por meio da experiência imaginária vivida – em sentido próximo ao
sugerido por Antoine Compagnon para quem a literatura é “o lugar por excelência do aprendizado de
si e do outro, descoberta não de uma personalidade fixa, mas de uma identidade obstinadamente em
devenir” (COMPAGNON, 2012, p. 72). Na intrincada rede de nós que conectam sexo,
monstruosidade, verdade e sujeito, outros problemas são adicionados: o da doença e da subjetividade
do doente; o da literatura como documento e seus papel estratégico no interior dos dispositivos; o da
inscrição dos corpos, então dissidentes diante da normalização, em regimes de resistência mais ou
menos possíveis e na topologia das cidades, tomadas como materialidade estético-política
(RANCIÉRE, 2005) e como topia incontornável (FOUCAULT, 2013).

TRÊS POSSIBILIDADES LITERÁRIAS DE/PARA CORPOS DISSIDENTES


No que se refere ao dispositivo da aids, Adelaide Carraro é a best-seller546, a escritora das
massas (VIEIRA, 2010), e Herbert Daniel é o militante político e teórico dos direitos dos
homossexuais e das pessoas que viviam com hiv (PEREIRA, 2013; GREEN, 2018). Ao partirem de
relatos autobiográficos, escrevem – cada um a seu modo – a partir de certo pacto referencial com o
propósito de denúncia sobre o Brasil, sobre os brasileiros e, o que nos interessa aqui, sobre a aids e o
hiv.
As narrativas envolvendo questões sociais, sexualidade e gênero – seja casamento, virgindade,
prostituição, adultério, maternidade, aborto, masturbação, homossexualidade e transexualidade, por
exemplo – são privilegiadas na escrita de Adelaide, interesse que levou à proibição de suas

545
Nesse mesmo ano uma série de acontecimentos marcou a trajetória da aids e do hiv: a publicação do livro O que
é Aids, no qual Néstor Perlongher (1987), no qual descreveu, pela primeira vez, a aids como um dispositivo
(BUTTURI JUNIOR, 2016); a realização da conferência de Mann na OMS e a elaboração de um discurso da
epidemia ideológica para as políticas de enfrentamento da aids (MANN, 1987); a publicação de Paula Treichler
(1987) na qual estabelece a aids como uma epidemia discursiva em cujo bojo se produzem estigmatizações e cisões
entre modalidades de vida; a adoção do AZT como parte do tratamento para pessoas que vivem com hiv (BRASIL,
2018); a explosão discursiva da aids, quando programas como o Roda Viva dedicou um de seus episódios, com mais
de três horas de duração, à discussão do hiv-aids.
546
Entre 1963 e 1976 a romancista publicou 22 livros e vendeu 2 milhões de exemplares (NADER, 2014 [1977]).
1297
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
publicações pelos órgãos censores ditatoriais, a sexualidade feminina teve destaque e espaço. Já com
Herbert Daniel, foi outra sua relação com a ditadura e a normalização. Ele começou a escrever depois
de retornar do exílio (PEREIRA, 2013; GREEN, 2018; DIAS, 2012), primeiro tratou de pensar a
exceção no interior dos discursos libertários. É assim que João Nemi Neto (2016) descreve sua
homossexualidade como um problema: “Daniel menciona uma reunião do Comitê Brasil pela Anistia
no qual a carta (que seria publicada no ‘Lampião da Esquina’) não foi lida porque ele era
‘simplesmente uma bicha’” (NEMI NETO, 2016, p. 191).
No exercício de pensar os modos pelos quais o dispositivo da aids produz(iu) enunciados no
campo da literatura do Brasil dos anos oitenta do século passado lemos Socorro! Estou Morrendo de
Aids e O travesti, de Adelaide Carraro; Alegres e excêntricos abacaxis americanos, de Herbert Daniel.
Para tanto, é necessário retomar o flagrante naturalista e a produção de uma subjetividade específica
do homossexual. Essa subjetividade aparece, em Adelaide ou Herbert, virtualmente em oposição a
uma exacerbação da masculinidade, produzida por meio de pênis avantajados e da hipervirilidade das
personagens – em oposição à delicadeza passiva cara à descrição médica da inversão ou, como ocorre
em Daniel, com a aparição de uma nova homossexualidade, a do guei (DANIEL, 1987; BUTTURI
JUNIOR, 2012).
Em Carraro, são inúmeros os romances em que a luta por certa masculinidade é
problematizada pela aparição do homossexualismo – e aqui usamos a palavra da autora. Em O caipira
supermacho, lançado em 1980, tem como foco a personagem Nei Duarte de Abreu, um rapaz saído
do interior para tentar a vida em São Paulo. É a ordem da analidade e da homossexualidade uma
espécie de fantasma de sua masculinidade viril: “[...] pois a coisa que ele mais detestava no mundo,
era esse tipo de seres humanos invertidos. Pederastas, oh! como tinha nojo deles [...]” (CARRARO,
1983, p. 50). A estratégia criativa de Adelaide é bastante ambígua ao passo que as subjetividades,
identidades e a sexualidades dissidentes – homossexuais e travestis – são, em diferentes medidas,
associadas à noção de doença. Ao fugirem de uma conduta cisheteronormativa, operam nas narrativas
como disruptivas às masculinidades e feminilidades socialmente aceitas, de maneira que suas
existências nos enredos já indicam o caráter de flagrante, de problema social. Contudo, os desfechos
dessas vidas/personagens indicam as hierarquias e a (in)viabilidade de determinadas vidas –
entendidas como monstruosas – e de determinados corpos em detrimento de outros.
Percebemos em Adelaide também um efeito melodramático e de defesa de direitos, ainda

1298
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que pautada numa ontologia médico-científica. Essa estratégia aparece na apresentação de O travesti
(CARRARO, 1987, p. 6) assinada por Olivia Kirsten – que se inscreve como amiga da escritora –
afirma: “Por que discriminar tanto os homossexuais? As pessoas nasceram para ser amadas e
respeitadas”. Novamente ambígua, ela arremata “‘O Travesti’ é, antes de tudo, um livro humano, real,
chocante, comovente [...]” e faz notar o vértice entre a humanidade que descreve – na exceção
biopolítica – e seu desejo de narrar o chocante – a “monstruosidade” e a “perversidade” da
sexualidade.
De maneira quase inversa, muitas vezes, a escritura de Daniel diz respeito a outro discurso
sobre a homossexualidade, ou das homossexualidades, posto que permite divisar, em textos teóricos
e em sua produção literária, várias modalidades de relação homossexual e homoafetiva (GREEN,
2018). Na vila de Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos, de 1987, espécie de simulacro do
naturalismo de O Cortiço, a topologia guei é definida – “É nesse canto que se juntam quase todas as
bichas da vila” (DANIEL, 1987, p. 52) –, mas as personagens parecem solicitar uma dispersão: pois
aparecem circulando, produzem um senso de comunidade e uma rede de apoio aos que ficam doentes,
elas fazem a relação entre as várias classes que habitam a vila.
A narrativa de Socorro! Estou morrendo de aids relaciona a verdade subjetiva via sexualidade
e, também, essa verdade ao hiv: Paulo de Andrada Bernini, empresário bilionário, é tomado pelo
pavor de que seu filho mais velho Leonardo (Leo) seja homossexual. A suspeita se dá por causa de
sua proximidade com Denis, seu amigo preferido. Por conta dessas inquietações, estava determinado
em punir o jovem que, teria desvirtuado o filho – mesmo que Leo tenha negado sua orientação sexual.
De acordo com Leo, ao relatar sua infância para o amigo,

Meu pai tinha horror quando, por qualquer coisa, eu pegasse em alguma boneca de minha
irmã e a acariciava. “O que é isso? Menino não brinca com boneca. Venha cá, meu filho.
Homem tem que crescer orgulhando-se de sua virilidade”. [...] Todos os meus anos infantis
foram desperdiçados com esse negócio de que eu deveria ser um homem macho.
(CARRARO, [1987?], p. 43).

O pavor de Paulo quanto à sexualidade de Leo se relaciona não apenas à aversão e à


repugnância à homossexualidade, mas enfatiza sua obsessão sobre a aids547. Durante a narrativa, entre

547
Vale a pena retomar as palavras de Susan Sontag (2007, p. 88-89) sobre esse pavor recorrente em heterossexuais
bancos a respeito da doença descoberta em princípios da década de 1980 e sem tratamento efetivo, tal como ocorria
com as demais ISTs conhecidas até então: “A aids deu origem a fobias e temores de contaminação semelhantes, no
seio de uma versão específica da ‘população em geral’: heterossexuais brancos que não usam drogas injetáveis nem
1299
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
suas ações, solicita, por exemplo, que todos os funcionários sejam testados, com o propósito de
garantir que estivesse distante dessa realidade execrada. A lógica narrativa está pautada no discurso
médico cientificista e vai ao encontro do perfil dos primeiros casos confirmados com hiv/aids, tal
como observa Eduardo Jardim – considerando aspectos históricos, sociais e culturais – desde o
momento em que o vírus ainda não era conhecido até tomar forma e feições – inicialmente definidas
– de maneira a provocar “[...] danos à saúde pública [qu]e justificou a discriminação, sobretudo dos
homossexuais [...]” (JARDIM, 2019, p. 10), pois naquele momento se lidava com uma doença
incurável – um dos temas enfatizados durante o episódio programa do Roda Viva de 1987 – e, no
imaginário coletivo, havia a compreensão de que a aids “[...] poderia ficar confinada aos grupos de
risco.” (JARDIM, 2019, p. 10).
O discurso do câncer gay como uma mazela que atinge os mais ricos, brancos e homossexuais,
identificados como os aidéticos no dispositivo da aids (BUTTURI JUNIOR, 2016, 2019; CAMARGO
JR., 1994; DANIEL; PARKER, 1991), solicita a virilidade heterossexual do objeto de desejo (Denis)
e os desdobramentos de quando Leonardo, ao voltar do exterior, descobre-se soropositivo. Na
narrativa, a presença do médico da família tem papel importante para explicar, situar e até ensina
sobre diagnóstico, sintomas e tratamento, descrevendo a normalização biopolítica e o isolamento
social.
Já O travesti é narrado em primeira pessoa pela travesti Jaqueline. Ao lidar com suas
experiências, espera que sua história contribua para quem a ler deixe de “[...] odiar, ter nojo e
preconceito da gente.” (CARRARO, 1987, p. 7). Jaqueline era do tipo Roberta Close e morava em
São Paulo em uma casa com mais trinta outras travestis (Brenda, Gringa, Mara, Rafaela, Simone,
Verinha, entre outras tantas). Depois de ter colocado peitos, Jaqueline era uma das mais bonitas da
casa, fazendo vários programas em uma noite: “[o]s bestas dos homens adoravam ficar chupando os
meus silicones e esticarem o meu pênis sem parar [...] doía muito.” (CARRARO, 1987, p. 25).
O trabalho da noite, ela e as colegas eram organizadas por escalas e zonas de atendimento pela
cidade (Avenida República do Líbano, Marginal Tietê, Cemitério da Consolação...) e iam em duplas
para seus pontos. A descrição da rotina, do trottoir, da inclusão do preservativo nos programas (ou o

têm relações sexuais com pessoas que o fazem. Tal como a sífilis, a aids é uma doença concebida como um mal que
afeta um grupo perigoso de pessoas ‘diferentes’ e que por elas é transmitido, e que ataca os já estigmatizados numa
proporção ainda maior do que ocorria no caso da sífilis.”
1300
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
contrário, a relutância de alguns clientes em aceitar usar camisinha), os relatos das fugas da polícia,
dos episódios de prisões, a fuga para o interior para manter-se viva, as violências e as perseguições
dos “[...] matadores de travestis” (CARRARO, 1987, p. 14) são pormenorizados. Entre a violência e
a morte nas ruas, Carla, uma das travestis, morrerá vítima de complicações da aids. Seu adoecimento
é descrito com minúcias, das diarreias até a morte – incluindo a menção ao Emílio Ribas, “[...] o
único de São Paulo, que aceitava doentes de Aids e lhe comprava remédios.” (CARRARO, 1987, p.
41).
Na narrativa, Jaqueline corresponde à normalização heterossexual de tal modo que a
personagem, tornada uma vez mais Rubens, casa-se com Mariana e se tornou pai de gêmeos.
Sentencia seu destino com o desfecho biográfico: “Suspirei fundo me sentindo o HOMEM mais feliz
do mundo.” (CARRARO, 1987, p. 180).
A estratégia ambígua de Adelaide em escrever sobre os corpos e sexualidades dissidentes, ao
que indica, produz como efeitos uma forma de “adesão” aos discursos de estigmatização que
coadunam com a perspectiva de “grupos de risco” – e de culpabilização por suas condutas,
apresentadas sob a égide da promiscuidade e do perigo. Ao se dedicar a esses “temas polêmicos”,
contribui para marcar e responsabilizar os sujeitos e os corpos dissidentes de seu universo ficcional –
Jaqueline morre para que Rubens viva, porque abandonou seu passado. A necessidade disciplinar, de
punir, de redimir acaba sendo estruturante para os desfechos narrativos em Carraro.
Quanto a Hebert Daniel e seus Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos há uma
modalidade nova de flagrar a aids ao tensionar a ideia do “grupo de risco”, o da vida e o do luto. A
região da vila onde as personagens moram é uma “região epidêmica” (DANIEL, 1987, p. 123), são
“seres repulsivos” (DANIEL, 1987, p. 255) ou que deveriam estar em novos “campos de
concentração” para doentes e potenciais doentes (DANIEL, 1987, p. 226). No texto, aparecem outras
figuras da história da aids: hemofílicos, usuários de drogas ilícitas e, num deslocamento axial, uma
mulher heterossexual: “Dona Alice, a viúva....Deve estar com Aids”. Não estamos considerando que
se trata de uma pura resistência, mas de uma agonística e de possibilidade de construir outras
narrativas e que, neste caso, contribui para romper os limites dos “grupos de risco” e da relação entre
sexualidade, perigo e doença, muito embora, nesse caso, soropositividade intensifica a noção de estar
à margem, fora, de “não pertencer”, reforçando a imagem de gueto, de sujeitos invisíveis que
habitam as zonas fantasmas.

1301
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, Daniel (1987) pensa não apenas a morte mas também a vida. É por causa de uma morte
que faz irromper a aids como um problema na vila. Na narrativa, a morte se contrapõe não apenas à
existência de outras personagens soropositivas, as quais continuam vivendo – como Nerismar e
Adílio, ambos homossexuais –, como de personagens sorointerrogativas, homossexuais ou
heterossexuais. Esse movimento possibilita outro efeito de dispersão subjetiva e desindentificação,
ratificado pela assunção da vida como mote no dispositivo da aids.
Indo de encontro à normalização biomédica ou heterossexualizante de Carraro, Daniel deixa
que suas personagens permaneçam investidas no viver, como assume Deli, um dos homossexuais
sorointerrogativos do texto: “- O pior é que agora eu tenho razão de ter mais medo...Não quero perder,
Roi. Decidi: vou ser feliz. Nem que seja para contrariar a Aids.” (DANIEL, 1987, p. 184). Contrariar
a aids, então, tinha como efeito resistir aos regimes de verdade que não só produziam a ontologia
sexual para os homossexuais quanto a exigiam como condição de inteligibilidade da doença e dos
doentes. Essa produção desigual de vidas, que Daniel coloca em funcionamento é contemplada, ainda,
pela morte e pelo luto, que abundam na narrativa.
Os abacaxis americanos de Daniel movem suas vidas no esforço de honrar seus mortos: “É
preciso respeitar a morte alheia [...]. Dá humilhação ser enterrado com indignidade” (DANIEL, 1987,
p. 75). A rede de amizades e vínculos da vila, diferente das perseguições e execuções que lemos em
Carraro, inauguram justamente um modo de enlutamento. Tudo começa com a morte de Gau,
funcionário do armazém. Sua memória e seu luto reivindicam as outras bichas. Será pela luta da
dignidade e pela espessura ética de uma vida que se estabelece em Alegres e Irresponsáveis..., quando
discutem com vizinhos/as, quando elaboram histórias para justificar internamentos, quando
permanecem juntas. É essa potência política, pois, que também se espraia no romance: porque vivos,
porque resistindo.

ALGUMAS BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS


Neste breve texto, nossa intenção foi analisar os discursos materializados na literatura
brasileira do dispositivo da aids, da década de oitenta do século XX, tendo em vista a inscrição da
soropositividade no interior das cisões biopolíticas da topologia urbana – mote das narrativas.
Para tanto, tomamos três textos de 1987, escolhidos pela modalidade enunciativa: de um
lado, a literatura não-canônica de Adelaide Carraro e seu realismo naturalista, de Socorro! Estou

1302
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Morrendo de Aids e O travesti, reconhecido por seus discursos de “denúncia social”; por outro lado,
o esforço de produção de diferença em Alegres e excêntricos abacaxis americanos, de Herbert Daniel,
que coloca no centro da ação modalidades de homossexualidade distintas. Nos três casos, estamos
diante de um acontecimento discursivo, qual seja, a discursivização da soropositividade no Brasil e
as marcas que relacionam o corpo, a sexualidade e a doença.
Partindo do pressuposto que os três livros produzem-se no espaço da cidade grande e que, de
certo modo – como solicitam seus autores – recorrem ao realismo naturalista, entendemos que os
romances obedecem à normalização biopolítica num quadro estético-político específico. Assim,
pudemos observar que em Carraro é o flagrante, o discurso da doença e a insisência numa certa
biologia o que sustenta as narrativas e a produção de subjetividades perigosas – sobre as quais,
amiúde, as narradoras lançam um olhar piedoso. Já em Daniel, uma espécie de “contaminação” entre
o fazer político do autor e o fazer literário permitem colocar o dispositivo da aids em suspeição,
apontando para as formas de exceção que engendra, para o ubuesco de seus discursos e para o esforço
de pensar políticas da vida soropositiva.
Por fim, cabe destacar que se trata, não obstante as difereças entre os romances e as funções-
autor, de pensar o estético-político como modalidade de inscrição histórica. Nesse caso, a literatura
aparece na intersecção entre a história do romance a a história daqueles que, na exceção, produziram-
se a si mesmo e a seus corpos da dissidência da aids no Brasil.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Zahar,
2009.

BRASIL. Departamento de doenças de condições crônicas e ISTs. História da aids. Publicado em:
11 abr. 2018 às 19:37, última modificação em: 02 maio 2018 às 17:41. Disponível em:
http://www.aids.gov.br/pt-br/centrais-de-conteudos/historia-aids-linha-do-tempo. Acesso em: 7 set.
2020.

BUTTURI JUNIOR, Atilio. As formas de subjetividade e o dispositivo da aids no Brasil


contemporâneo: disciplinas, biopolítica e phármakon. In: CAMPIGOTTO, Ivânia et al. Língua,
literatura, cultura e identidade: entrelaçando conceitos. Passo Fundo: Editora da Universidade de
Passo Fundo, 2016. p. 59-78.

BUTTURI JUNIOR, Atilio. A passividade e o fantasma: o discurso monossexual no Brasil.


2012. 280f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística,
1303
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.

BUTTURI JUNIOR, Atilio. O HIV, o ciborgue, o tecnobiodiscursivo. Trabalhos Em Linguística


Aplicada, Campinas, v. 58, n. 2, p. 637-657, 2019. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8655554. Acesso em: 9 set. 2020.

CAMARGO JR., Kenneth Rochel de. As ciências da AIDS e a AIDS das ciências: discursos médico
e a construção da AIDS. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ABIA, IMS, UERJ, 1994.

CANCLINI, Nestor García. A globalização imaginada. Trad. de Sérgio Molina. São Paulo:
Iluminuras, 2007.

CARRARO, Adelaide. O travesti. 2.ed. São Paulo: L. Oren Editora, 1987.

CARRARO, Adelaide. O caipira supermacho. 2.ed. São Paulo: Global Editora, 1983.

CARRARO, Adelaide. Socorro! Estou morrendo de aids. São Paulo: L. Oren Editora, [1987?].

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.

DANIEL, Herbert. Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos: imagens dos dias do medo (Dias,
aliás, é anagrama de aids). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.

DANIEL, Herbert; PARKER, Richard. AIDS, a terceira epidemia: ensaios e tentativas. São Paulo:
Iglu, 1991.

DIAS, Cláudio José Piotrovski. A trajetória soropositiva de Herbert Daniel (1989-1992). 2012.
Dissertação (Mestrado) – História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, Rio de
Janeiro, 2012.

HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico e as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013.

FOUCAULT, Michel. Entrevista de Michel Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IX:
genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Trad. de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014. p. 238-250.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19.ed. Trad. de Maria Thereza
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2009b.

FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Graal, 2009a. p. 229-242.

FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Trad. de Eduardo


Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1975].
1304
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. de Raquel Ramalhete.
41.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013 [1975].

GREEN, James N. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel, pioneiro na luta
pela democracia, diversidade e inclusão. Trad. de Marília Sette Câmara. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018.

JARDIM, Eduardo. A doença e o tempo: aids, uma história de todos nós. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2019.

MANN, Jonathan M. AIDS. World health forum 1987. v. 8, n. 3, p. 361-370, 1987. Disponível em:
https://apps.who.int/iris/handle/10665/49843. Acesso em: 09 ago. 2020.

MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. Trad. de Letícia Martins de
Andrade. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

NADER, Wladyr. Entrevista: Adelaide Carraro: uma mulher de dois milhões de exemplares vendidos.
Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n. 1, p. 4-16, [1977] 2014. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/bordas/article/view/20760/15300. Acesso em: 27 jul. 2020.

NEMI NETO, João. Herbert Daniel e a luta contra o estigma da AIDS. Intellèctus, ano 15, n. 1, p.
188-207, 2016.

PATTON, Cindy. Inventing aids. Londres: Routledge, 1991.

PECHSTEIN, Israel. Passagem para o próximo sonho de Herbert Daniel e seu lugar na literatura
brasileira pós-regime militar. Spanish and Portuguese Review, n. 1, p. 78-86, 2015.

PEREIRA, Rômulo Medeiros. Herbert Daniel e suas escrituras de memória: exercícios


autobiográficos e traços estéticos de uma existência (1967-1984). 2013. 144f. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013. Disponível em:
https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/5998/1/arquivototal.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.

PERLONGHER, Néstor. O desaparecimento da homossexualidade. In: LANCETTI, Antônio (dir.).


Saúde Loucura 3. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 39-45.

PERLONGHER, Néstor. O que é AIDS. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. Trad. de Rubens Figueiredo e
Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO/34, 2005.

TREICHLER, Paula A. AIDS, Homophobia, and biomedical discourse: an epidemic of signification.


The MIT Press, v. 47, p. 31-70, 1987.

VIEIRA, Pedro de Castro Amaral. Meninas más, mulheres nuas: Adelaide Carraro e Cassandra
1305
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Rios no panorama literário brasileiro. 2010. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

1306
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
MEMÓRIA RELIGIOSA E PRÁTICAS NORMATIVAS: RELATOS DE
PESSOAS LGBT EX MEMBROS DE IGREJAS EVANGÉLICAS

Adriana Gelinski 548

Resumo: A presente reflexão busca compreender como a memória contribui para preservar o sentimento de vigilância
atrelado a sexualidade das pessoas LGBTQI+ ex membros de Igrejas Evangélicas. Foram realizadas seis entrevistas
seguindo roteiro semi estruturado, com pessoas LGBT que foram socializadas em Igrejas Evangélicas, essas foram
gravadas, transcritas e analisadas de acordo com a análise de conteúdo de Bardin (1977). Evidencia-se que as lembranças
do grupo pesquisado atua de maneira a resgatar experiências do passado no presente, acessando o que passou e revivendo
o que sentiu. Portanto, a memória contribui para os processos identitários e para reavivamento da conexão com a
divindade apreendida nos espaços religiosos, indo além, há o resgate de impressões e sensações sentidas tanto positivas,
quanto negativas.

Palavras-chave: Pessoas LGBT, Religião, Memória

INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca compreender como a memória contribui para preservar o
sentimento de vigilância atrelado a sexualidade das pessoas LGBTQI+ ex membros de Igrejas
Evangélicas. A questão é fruto da vivência e inquietações surgidas ao longo de outras pesquisas entre
os anos de 2013 à 2017, bem como seis entrevistas realizadas com pessoas LGBT, as quais foram
socializadas em Igrejas Evangélicas.
As entrevistas seguiram um roteiro semi estruturado, as quais foram gravadas e transcritas.
Posteriormente, foram inseridas e sistematizadas no banco de dados pensando e utilizado pelo Grupo
de Estudos Territoriais (GETE) por meio do Software LibreOffice. Através do banco de dados, é
possível organizar os dados entre evocação discursiva, elemento, categoria discursiva e
espacialidades discursivas. Assim o elemento é um resumo da Evocação, a qual é retirado a Categoria
Discursiva e a Espacialidade Discursiva. Isto tudo possibilita à compreensão dos discurso e a relação
das evocações discursivas e as espacialidades.
Estes discursos estão relacionados com as espacialidades e, por sua vez, estão conectados com
as práticas e vivências. Assim, o discurso contribui para dar sentido e reiterar práticas espaciais, como
afirma Mary Jane Spink (1996). Ademais, adotou-se a análise de discurso proposto por Bardin (1977)
para a análise das falas dos membros LGBT da ICM-Maringá e dos membros gays da IEA-Curitiba.
A autora destaca dois elementos: condições de produção e sistema linguístico. Tais elementos

548
Doutoranda em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR. drycagelinski@gmail.com
1307
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
colaboram para que a fala se torne um domínio ou rede semântica. Esses dois elementos estão inter-
relacionados: dependem um do outro e compõem o discurso. Assim, com este método é possível
identificar e analisar os conteúdos que emergem nas falas das pessoas entrevistadas.
Compreendido isto, utiliza-se a metodologia Snowball ou ‘bola de neve’ (BALDIN e
MUNHOZ, 2011) e o método de Saturação proposto por Sá (1998). Pois o contato com as pessoas,
foco desta pesquisa, deu-se mediante a indicação de participantes iniciais para novos participantes e
assim por diante como uma ‘bola de neve’.
Desta forma, evidenciou-se que a crença religiosa contribui para as visões de mundo,
compreensão do corpo, noções comportamentais, práticas e pensamentos. Além disso, as pessoas ao
relatarem suas vivências e experiências trazem atona uma variedade de emoções, as quais estão
intimamente vinculadas à memória.
Ademais, através do levantamento realizado no banco de dados de artigos do Grupo de
Estudos Territoriais (GETE) no dia 19/07/2019, em que foram investigados 23.435 artigos de 90
revistas referentes à ciência geográfica brasileira no período de 1940 a 2018, evidenciou-se 106
artigos que foram publicados nos periódicos geográficos brasileiros, 44549 deles abordaram o espaço
e a religiosidade de maneira central. Esses artigos buscavam refletir sobre espaços religiosos
específicos entre eles espaço islâmico, santuários católicos, comunidades ribeirinhas, cidades do
Brasil, cemitérios, festas religiosas e escolas. Além disso, os artigos problematizaram a partir dos
locais investigados a concepção de espaço sagrado e espaço profano. Os demais tiveram como tema
central Geografia da Religião, método e teoria550, elementos religiosos551, sistemas simbólicos,
território552, grupos religiosos, memória e religião, mídia e religião, mercado religioso, travestis,
transexuais e terreiros de matriz afro-brasileira, turismo religioso553, paisagem554.

549
Rosendahl (1995); (2002); (2012); Gil Filho (1999); (2003); (2005); (2012); Santos (2002); Souza (2010);
Pereira (2012), (2013), Oliveira (2012); Frangelli (2012); Correa (2012), Oliveira (2007); Saraiva (2008); Mariano
(2009); Reis (2009); D'abadia (2009); Campos (2007), Lopes (2011), Derisso (2013), Silveira (2014), Menezes
(2012), Fernandes (2013), Silva (2013), Carballo (2010), Silva (2013)
550
Pontes (2010); (2011), Torres (2013), Santos (2013)
Claval (2011), Rodrigues (2009), Quadros (2014), Santos (2013), Torres, 2013), Lima (2009), Diego (2009), Piccin
(2009), Torres, (2010), Cardoso (2012), Quadros (2014), Bernardo (2013).
551
Santos (2002), Bernardo (2013), Cardoso (2012), Queiroz (2007), Bonini (2012), Oliveira (2011), Machado
(2011), Sotelo (2005), (2013), Frangelli (2012), Leite (2012), Menezes (2012), Souza (2010), Silveira (2014).
552
Faria (2008); Oliveira (2010), Pinto (2010); Pontes (2011), Serra (2013), Correa (2012)
553
Aragão (2012), Rocha (2013),Serra (2013).
554
Faria (2008); Oliveira (2010), Pinto (2010); Pontes (2011), Serra (2013), Correa (2012)
1308
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Perante o contexto evidenciado em que 106 artigos em um total de 23.435 artigos abordam a
temática religiosidade e somente 1 trabalho problematiza a vivência espacial de travestis e transexuais
em terreiros afro-brasileiro, evidencia-se que não há número significativo de reflexões sobre a
temática religiosidade e sexualidades na ciência geográfica brasileira. Mesmo ante a uma população
majoritariamente cristã em que 64.6 % são católicas e 22.2% são evangélicas, segundo o Censo IBGE
de 2010, e 100% das pessoas realizam algum tipo de sexualidade, não há um número expressivo de
problematizações em relação a isto, o que há são trabalhos sobre espaço e religião ou espaço e
sexualidades, mas a junção de espaço, religiosidades e sexualidades não se torna visível no quadro de
produções acadêmicas, como visto na análise anterior.
É nesse contexto que nasce a inquietação em compreender a potencialidade e a incorporação
do discurso religioso para pessoas que foram socializadas em espaços religiosos evangélicos, indo
além como as pessoas LGBT sentiram e sentem este discurso, como foi o processo de auto
identificação como LGBT e a vivência religiosa, como o discurso religioso foi incorporado de tal
forma que mesmo com a saída do espaço/vivência religiosa ainda há resquícios do mesmo e como o
discurso e a socialização religiosa podem compor uma sensação de vigilância, aprovação e
desaprovação, noções de espaços sagrados e profanos devidos as suas sexualidades.
Nota-se assim que não há número significativo de reflexões sobre a temática religião, mesmo
que 86.8% das pessoas sejam cristãs; sendo que, de acordo com o Censo IBGE de 2010, 64.6% são
católicas e 22.2% evangélicos, e, 100% das pessoas vivenciam práticas espaciais e suas sexualidades.
E se pensarmos a relação de identidade, memória e religião não se torna visível no quadro de
produções acadêmicas, como visto na análise anterior.
Santos (2002) ressalta que na história do pensamento geográfico as discussões sobre religião
foram marginalizadas, bem como aquelas relacionadas ao gênero e sexualidades. Por conseguinte, a
Religião e a Geografia são saberes que podem ser compreendidos como formas de interações e
reações através do espaço. Assim “a religião normatiza alguns procedimentos das pessoas em relação
ao espaço; e, por sua vez, o conhecimento geográfico proporciona capacidades estratégicas de atuação
no espaço” (PEREIRA, 2013, p. 11).
Nesse ínterim, cabe ressaltar que espaço religioso está envolto por discursos que são
constituídos por dois polos: normal, que corresponde às pessoas que seguem os papéis e práticas
de acordo com os textos bíblicos. E não normal ou ‘desviados’, o qual diz respeito às pessoas

1309
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que não seguem os discursos e práticas instituídas pela comunidade religiosa. Tais espaços são
compostos por normas binárias e heterossexuais, entendidos assim como um espaço heterossexual
(GILL VALENTINE, 1993).
Deste modo, esta reflexão compreende as experiências, as práticas e os discursos religiosos
como agentes para o funcionamento do mecanismo de gênero, regulando as práticas das pessoas e
criando ficções de feminino e masculino (JUDITH BUTLER, 2013). Evidencia-se o discurso
religioso relacionado às sexualidades, reiterando a heteronormatividade, sendo justificada pelo
discurso sexualizador do pecado, em que as pessoas que vivenciam uma sexualidade dissidente da
heterossexualidade são entendidas como pecadoras, impróprias. Pois, qualquer prática que não siga a
linearidade sexo, gênero e desejo (Judith Butler, 2002), isto é, prática homossexual é interdita pelo
discurso religioso com práticas fundamentalistas como afirma Natividade e Oliveira (2009).
Portanto esta discussão faz parte da construção reflexiva deste trabalho, em que o discurso e
as práticas religiosas contribuem para as concepções de sexualidade. Assim, as reflexões sobre
espaço, memória, religiosidade, corpo e sexualidades se fazem indispensáveis, visto que a
socialização e o discurso religioso fizeram e fazem parte do cotidiano do grupo pesquisado.

DESENVOLVIMENTO
Ao refletirmos sobre a religiosidade das pessoas faz-se necessário compreender que
este fenômeno é cheio de símbolos, práticas e discursos. Fazendo parte das construções sócio
culturais, relacionando-se às transformações sociais, bem como pode ser constituída pelas relações
de poder, reiterando noções de gênero, de classe, de raça/etnia. (SANDRA SOUZA, 2004).
Diante disso, a relação entre sexualidades e religião é um importante caminho para compreender
o desenvolvimento das igrejas, das significações e das relações de poder que se estabelecem nos espaços
religiosos. As Igrejas assim podem ser compreendidas como uma espacialidade que é vivenciada no
cotidiano de pessoas que comungam uma determinada forma de ver, significar e entender o mundo.
Sendo constituída pelos membros, práticas e discursos. Noutros termos, a igreja pode ser entendida
de acordo com a subjetividade ou intersubjetividade.
Podendo também ser compreendida como eventualidade (DOREEN MASSEY, 2008), local de
encontros entre os membros e o Ser Divino. Assim, os membros e a liderança religiosa buscam se
reunir em espaços como as igrejas para compartilharem práticas, concepções e experiências de fé.

1310
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Tais espaços proporcionam inúmeros sentimentos, experiências e vivências, os quais podem contribuir
para o fortalecimento do discurso religioso, e, consequentemente, das concepções do divino em relação
às sexualidades, de correto e incorreto, de pecado e de espaços sagrados e não sagrados. Assim, existe
uma intersubjetividade, um significado para o espaço igreja. Este significado é atribuído pelo
reconhecimento das pessoas religiosas que aquele espaço denominado igreja é um local especial, pois
é a ‘casa do Divino/de Deus’, é onde as pessoas se encontram e buscam momentos de descanso e
redenção, bem como é o espaço que proporciona o contato não somente com a comunidade religiosa e
com a divindade, mas com si mesmo.
As espacialidades religiosas constituem-se como espaços de grande importância para a vida
das pessoas religiosas, pois, como assegura Karen Armstrong (2007): as pessoas necessitam de algo
para significar e dar sentido as suas vidas, caso contrário caem facilmente em desespero. A religião,
nesse sentido, tem o papel de produzir sensações e formas de compreender a vida, mesmo diante de
todos os tipos de problemas há esperança, significado e dar valor para existência. Além disso, para as
pessoas religiosas como é o caso das pessoas LGBT ex membros de Igrejas Evangélicas, a
socialização e experiências vivenciadas durante suas vidas desde a iniciação religiosa até o atual
momento colaboraram para a visões de mundo de certo e errado, pecado e não pecado, céu e inferno.
Estas concepções se mostram com mais força no que tange às sexualidades. (Diário de campo do dia
24 de fevereiro de 2017).
Desta forma, as religiões estabelecem práticas, formas de pensar, significar, bem como
contribuem para a regulação das sexualidades. Para Valéria Busin (2011, p.109), as religiões cristãs
tradicionais “demonstram algum nível de rejeição ou preconceito, definindo valores morais e
impondo o que é aceitável em termos de sexualidade, pois permeiam todas as relações e modelam
subjetividades”. Essas, por sua vez, regulam, produzem e impõem a heterossexualidade como único
caminho. Qualquer prática que não esteja de acordo com esta norma é entendida como desviante do
‘bem’, pecaminosa e passível de rejeição. Ela é produto e produtora de significações, representações
e dispositivos reguladores das sexualidades, como afirma Raquel Andrade Weiss (2013).
Para tanto, historicamente a relação entre religiões e as sexualidades/homossexualidade são
opostas e atualmente reforçadas através das “diferentes vozes fundamentalistas que investem no
impedimento do avanço dos direitos sexuais e reprodutivos” (ARAÚJO, 2014, p. 10).

1311
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Proporcionando assim campos de batalha nas subjetividades das pessoas e nos espaços em que a
temática é foco de embates (ISABELLE HONORATO, 2016).
Desta forma, as práticas que destoam daquilo que é entendido como natural é interpretado como
negativo, sendo classificada como pecado na visão religiosa. A partir desta visão, há uma “ampla malha
de regulações em que tais discursos procuram extrair sua autoridade de fundamentos cosmológicos e
de interpretações de textos bíblico”, como enfatiza Natividade e Oliveira (2009, p. 6), reproduzindo,
assim, atitudes e práticas homofóbicas dentro do espaço religioso, conceituada como homofobia
religiosa/pastoral.
Os espaços são permeados por discursos, entre eles o discurso normativo heterossexual.
chamado de heteronormatividade por Judith Butler (2003), e pelo discurso religioso fundamentalista
(Panasiewicz, 2008). Ser homem ou ser mulher está relacionado a um conjunto de ideias, valores e
normas construídas e reproduzidas através das vivências, práticas, crenças, linguagem, isto é, através
da cultura. De acordo com Joseli Maria Silva e Ornat (2011), quando nascemos há uma pré
classificação feita pela sociedade, baseada em características biológicas, as quais estão centralizadas
na genitália.
Nesta visão, não se pode definir o gênero pelo viés exclusivamente natural, a começar pela
própria concepção de corpo. Pois, através de processos culturais é possível definir o que é ou não
natural, por meio das inúmeras práticas aprendidas há a construção das sexualidades e dos gêneros.
Nas varias situações e espaços, de maneira explicita ou subentendida por um conjunto práticas, pré-
concepções, reiterações de “instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre
inacabado” (GUACIRA LOPES LOURO, 2008, p. 18), perpassando instâncias como a família, a
escola e a igreja.
Esse processo evidenciado por Guacira Lopes Louro (2008) é análogo ao que Judith Butler
(2003) denomina de heteronormatividade, isto é, há uma presença forte da linearidade sexo, gênero e
orientação sexual em nossa sociedade, a qual é entendida como um dispositivo hegemônico composto
por normas regulatórias de gênero e sexualidade.
Neste sentido as sexualidades são ao mesmo tempo prática e discurso, compostas por “uma
complexa malha de regulações que abarcam distintos saberes e poderes, incluindo o religioso”
(NATIVIDADE, 2010, p. 2), podemos compreender as sexualidades como um constructo social
(HEILBORN, 1999). Deste modo, as vivências e experiências dos ex membros LGBT constituem

1312
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
suas identidades, bem como contribuem na compreensão de condutas, no “trânsito por distintos
mundos sociais, incorporando ou rejeitando argumentos e noções provenientes de distintas visões de
mundo” (NATIVIDADE, 2010, p. 4).
Pensando assim, o ser de cada pessoa é composto tanto pelo corpo, quanto pela religiosidade,
sexualidade e gênero, constituindo assim a identidade de cada pessoa. Não havendo assim um destino
fixo e único para os corpos, semelhantemente a identidade, mas estão em constante movimento para
subverter e rearticular a lógica normativa influenciada pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo.
Hall (2003), por sua vez, define identidade como um processo mais amplo de mudança, ao
passo que este processo contribui para os deslocamentos, ou seja, para o autor, as identidades
modernas são fragmentadas e deslocadas. Dito de outra forma, a identidade, segundo Hall (2003),
não pode ser considerada estática ou biológica, mas é maleável, aberta e está em construção e
transformação constantemente. Pode ser construída social e historicamente, pelos discursos,
experiências e práticas espaciais, ou seja, presumivelmente constituída na plenitude do tempo e no
espaço.
Nesta perspectiva, os espaços religiosos são pontos de encontro, de relações e de experiências
e este mix constitui as identidades dos seus membros ou ex membros. Tais identidades não são
completas e imutáveis, pois estão em constante construção sendo influenciadas pelas vivências
espaciais. Nos dizeres de Hall (2003) uma única identidade, segura e imutável é uma ilusão, pois “se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu” (HALL,
2003, p. 13).
A identidade assim é construída socialmente, acontecendo através da relação dialógica com o
outro (CANDAU, 2011). Estando permanentemente em construção e alteração, diretamente
elaborada por meio dos discursos, isto é, os discursos atuam como âncoras nos processos identitários.
E é justamente neste movimento de construção e reconstrução identitária que se recorre à memória.
A memória então é a “identidade em ação” (CANDAU, 2011, p.18), a qual é responsável pela
conservação das vivências e emoções passadas que fizeram parte da socialização e identificação em
um determinado grupo como é o caso dos ex membros LGBT de Igreja Evangélicas. Assim, remete-
se “a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais as pessoas podem atualizar impressões

1313
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 2003, p. 419). Como
evidenciado na fala que segue:

Ah era muito legal sabe. Tinha o grupo de jovens a gente jogava, ensaiava, treinava, sempre
um na casa do outro. Os retiros né, que íamos para algum lugar acampar e eram vários dias
de atividades e jogos, isso que mais lembro assim. Era tão bom, era tão bom até o dia que me
chamaram na salinha. Nossa, minina, isso vou lembrar sempre! (...) Eu nem sabia que eles já
sabiam (risos). Mas quando eles descobriram até o pastor me chamou num canto, numa
salinha secreta que nem eu sabia que existia (risos). Nossa, me encheu de pergunta, se havia
consumado e não sei o que. Mas eu nem sabia o que era isso, eu nem sabia o que tava
acontecendo direito comigo, eu só sentia aquilo sabe. De pensar no menino que conheci, de
querer conversar com ele, aquela coisa de adolescente, aquela paixãozinha. E então a igreja
ficou sabendo, os jovens não falavam comigo direito, me olhavam diferente, faziam piadas.
Até que parei de ir, fui mais umas semanas e não fui mais. Foi tão ruim, porque eu não
esperava isso, eu acreditava que eles da igreja né, que não ia ser assim, mas foi. (Entrevista
realizada com Rigel, Maringá, em 21/01/2017).

A memória assim é buscada para exemplificar de maneira discursiva algumas vivencias


experienciadas em determinado momento de sua vida, esta memória sendo individual e relacionada
com momentos em coletivo. Assim, ao evidenciar suas lembranças resgata-se experiências do passado
no presente, acessando o que passou e revivendo o que sentiu. Portanto, a memória contribui para os
processos identitários e para reavivamento da conexão com a divindade apreendida nos espaços
religiosos, pois “pela retrospecção o ser humano aprende a suportar a duração: juntando os pedaços
do que foi a uma nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar a vida presente” (CANDAU,
2011, p. 15). Como na fala que segue:

Assim porque quando assim você é menininho, você menininho sem os trejeitos gays, eles
até aceitam mais, mas naquela época eu era muito afeminado. Ai eu era muito gay na verdade,
era uma bichona, era uma bichona mesmo, passava lápis e tudo. Então eles se assustavam
sabe, eles falavam que eu tava com o demônio, orava por mim, ponhava a mão na minha
cabeça expulsando satanás “sai satanás” essa coisa toda aí. Então, eles acham que isso é
errado sabe, que não que Deus não aceita a gente, que Deus odeia a gente e pronto. Eles
querem curar a gente, faziam eu ler e ler a bíblia para ser e essas coisa para curar, sendo que
a gente não tem nada. Então, era difícil eles aceitarem, mas assim eu ia mesmo assim, mas
eu não podia participar de nada, eu não podia cantar, eu não podia dançar, não podia nada
nada nada. (Entrevista realizada com Rigel, Maringá, em 21/01/2016).

Sendo assim, mediante a memória há uma duração maior/reativação de acontecimentos e


sentimentos, pois “a memória é vida” (NORA, 1993, p. 9). Relembrando assim os momentos de
socialização religiosa, mantendo princípios apreendidos e práticas religiosas vivenciadas no
passado. Organizando assim o sentido e estruturando as identidades por um lado e por outro
1314
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
atuando nas transformações dos grupos. Indo além, a memória funda “um presente em relação com o
passado” (BEATRIZ SARLO, 2006, p. 97), assim a memória atua no sentido de mesclar as vivencias
e experiências que se conectam com a religiosidade/vivência de fé e as sexualidades dos ex membros
LGBT de Igrejas Evangélicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ensaio teve como objetivo dissertar como a memória contribui para preservar a fé de ex
membros LGBT de Igrejas Evangélicas. Buscou-se evidenciar as relações entre espaço religioso,
sexualidades, identidades e como as vivências e socialização religiosa passada influenciam na
manutenção de fé. Indo além, como mesclam-se a conexão com uma divindade apreendida nos
espaços religiosos passados e as atuais sexualidades de ex membros LGBT.
Vale ressaltar que todas as pessoas entrevistadas nasceram e cresceram na vida religiosa, e
esta foi interrompida devido à outra categoria identitária, a sexualidade. Quando as pessoas se
reconhecem e são lidas devido a sexualidades dissidentes heteronormativas, como é o caso das
pessoas foco desta pesquisa, são interpretadas como ‘pecadoras sexuais’.
Desta forma, essas pessoas vivenciaram conflitos entre sua sexualidade, seu desejo, seu
sentimento afetivo não heteronormativo e o discurso sexualizador do pecado. Há, assim, o “interdito
religioso às práticas homossexuais” (NATIVIDADE e OLIVEIRA, 2009, p. 8). Porém, ao sair desses
espaços religiosos as pessoas continuam preservando sua fé, visto que o fenômeno religioso faz parte
de fatores simbólicos. Tais sentimentos fazem parte da memória e toda vez que há a necessidade da
busca por alguma prática religiosa (ouvir uma música, ler a Bíblia, um livro religioso, etc) há uma
reativação da memória religiosa que foi vivenciada no passado e continua fazendo sentido para essas
pessoas.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Murilo Silva de. “O amor de Cristo nos uniu”: Construções Identitárias e Mudança Social
em Narrativas de vida de gays Cristãos do Grupo Diversidade Católica. Dissertação (Mestrado em
Letras). Universidade Federal de Viçosa MG. 2014

ARMSTRONG, Karen. A Bíblia: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2007.

1315
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BUSIN,Valéria Melki. Religião, Sexualidades e Gênero. REVER-Revista de Estudos da Religião.
v. 11, n. 1 2011.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011.

GELINSKI, Adriana. Gênero e Prática Religiosa de mulheres Jovens da Igreja Evangélica Reformada
Nova Holanda, Carambeí-PR. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Estadual de Ponta
Grossa, PR. 2013.

______. As vivências Espaciais dos membros LGBT da Igreja da Comunidade Metropolitana em


Maringá e da Igreja Episcopal Anglicana em Curitiba e a Constituição das Significações de suas
sexualidades. Dissertação (Mestrado em Gestão em Território). Universidade Estadual de Ponta
Grossa. 2017.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.

______. A identidade na Pós-Modernidade. 11º Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HONORATO, Isabelle Brambilla. Entre tensionamentos e disputas: família, religião e o processo


de se assumir entre jovens de uma igreja inclusiva de Manaus. 2016. 109 f. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2016.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira
Borges. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.

MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma nova Política da Espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2008.

NATIVIDADE, Marcelo Tavares.. "Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma


comunidade inclusiva pentecostal". Religião & Sociedade, 2010.

NATIVIDADE, Marcelo Tavares; OLIVEIRA, Leandro. “Nós Acolhemos os Homossexuais”:


Homofobia pastoral e Regulação da Sexualidade. Tomo. São Cristovão-SE. nº. 2009.

NORA, Pierre. Entre memória e história – a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury.
Revista Projeto História, São Paulo PUC-SP, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

1316
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
PANASIEWICZ, Roberlei. Fundamentalismo religioso: história e presencia no cristianismo. In.
ALBUQUERQUE, Eduardo Bastos (Org.) Anais do X Simpósio da Associação Brasileira de História
das Religiões – “Migrações e Imigrações das Religiões”. Assis: ABHR, 2008.

PEREIRA, Clevisson Junior. Geografia da religião: um olhar panorâmico. RA´EGA. (2013).

SÁ, Celso Pereira de. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 1998

SANTOS, Alberto Pereira dos. Introdução à geografia das religiões. GEUSP. 2002.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.

SILVA, Joseli. Maria; ORNAT, Márcio. José. Espaço e múltiplas masculinidades: um desafio para o
conhecimento científico geográfico brasileiro. In: SILVA, Joseli. Maria; ORNAT, Marcio. Jose;
CHIMIM JUNIOR, Alides. Batista (Orgs.). Espaço, gênero e masculinidades plurais. Toda palavra,
2011.

SOUZA, Sandra Duarte. Revista Mandrágora: Gênero e Religião nos Estudos Feministas. Estudos
Feministas, Florianópolis, 2004.

VALENTINE, Gill. (Hetero)sexing space: lesbian perceptions and experiences of everyday space.
Environment and Planning D: society and space, v. 11, n. 4, p.395-413, 1993.

WEISS, Raquel Andrade. Do Mundano ao Sagrado: O Papel da Efervescência na Teoria Moral


Durkheimiana. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 19, n. 40, p. 395-421, jul./dez. 2013.

1317
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT JOVENS
PESQUISADORAS (ES) E
DIÁLOGOS
INTER/TRANS/MULTIDISCI
PLINAR
COORDENAÇÃO

Mestrando Ewerton da Silva Ferreira – CEEINTER


Dr. Ronaldo Bernardino Colvero – UNIPAMPA

1318
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A NECROPOLÍTICA DE ANCHILLE MBEMBE E A MARGINALIZAÇÃO DOS
SUJEITOS

Jailson Jesus Pereira555


Roberta Rayza silva de Mendonça556

Resumo: Esta pesquisa discorre sobre a necropolítica de Anchille Mbembe e a marginalização dos sujeitos, trazendo
conceitos do biopoder e da biopolítica de Foucault, como mecanismos de dominação, se debruçando ainda sobre a noção
de política de morte e questões raciais que estão esculpidas no corpo social, apontando as interçesões entre estas. Assim,
o objetivo geral se orienta em estudar como a necropolítica se relaciona com as questões raciais fazendo com que exista
um processo de seletividade entre os sujeitos. Abordamos também a atuação de instituições na execução dos sujeitos que
estão à margem da sociedade, e o papel dos movimentos políticos e ações que objetivam políticas de igualdade racial. A
metodologia parte de abordagem qualitativa, metódo dialético e pesquisa bibliografica exploratória e descritiva (GIL,
2002). Foi possível compreender que a necropolítica marginaliza e subalterniza os sujeitos através de um processo de
desumanização, ditando quem são aqueles que importam, e que merecem viver.

Palavras-chave: Necropolitica; Estado; Racismo; Marginalização.

INTRODUÇÃO
A história da humanidade é marcada por episódios sangrentos, os quais foram legitimados a
partir de discursos políticos e religiosos. Diversos massacres e extermínios de povos, ocorreram e
ocorrem nos dias atuais. As práticas de tortura, opressão e perseguição seguem como projetos em
regimes totalitários, e ainda que de forma indireta em regimes democráticos.
A partir dessas informações, surge a necessidade de trazer o conceito de necropolítica, criado
pelo filósofo e teórico político camarônes Achille Mbembe, que escreveu um ensaio problematizando
os limites da soberania do ente estatal, sob o prisma do poder de ditar à vida.
Segundo Mbembe, a necropolítica é o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer.
Para isso, ele busca no biopoder de Foucault, elementos para embasar sua tese. A proposta suscitada
por ele busca explicar e demonstrar as formas e estruturas existentes nas sociedades cujo intuito é
dizimar alguns grupos. Esses grupos são segregados e demonizados com base em sua raça, com isso
é importante questionar: quais são as intersecções existentes entre a necropolítica e as questões
raciais, fazendo com que exista um processo seletivo entre os sujeitos?

555
Granduando em Direito, pelo Centro Universitário do Rio São Francisco-UNIRIOS. E-mail:
jailsonpereira582@gmail.com
556
Professora do Curso de Bacharelado em Direito – UNIRIOS. Coordenadora do Grupo Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS; Pesquisadora do G-Pense! – Grupo de
Pesquisa sobre contemporaneidade, Subjetividade e Novas Epistemologias (UPE/CNPq), E-mail:
robertas.mendonca@hotmail.com
1319
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O racismo é elemento presente na estrutura social, estando diretamente ligado a eliminação
dos sujeitos. Logo, o trabalho possui como objetivo geral estudar como a necropolítica se relaciona
com as questões raciais fazendo com que exista um processo de seletividade entre os sujeitos.
No que tange aos objetivos específicos, o trabalho tem como escopo: I) discutir acerca da
marginalização dos sujeitos em razão de sua raça; II) apontar a necropolítica enquanto “política de
morte” e III) descrever como a necropolítica se intersecciona com seletividade dos sujeitos em razão
de sua raça.
Justificamos este artigo pela necessidade de problematizar políticas de eliminação humana,
que estão calcadas no corpo social, as quais estão diretamente ligadas a marginalização de sujeitos,
segregação e racismo.
Entendemos que se faz necessário discutir acerca da necropolítica como caminho a discutir as
“relações de inimizade”, que selecionam que são os “inimigos” da sociedade, desvelando um Estado
racista e segregado.
A metodologia utilizada parte de uma abordagem qualitativa, para que seja possível
compreender como se apresenta a necropolítica em nossa sociedade ocidental, visto que não é
possível mensurá-la em números (GIL, 2002). Utilizaremos ainda o método dialético, que nos
permitirá realizar uma construção acerca dessa realidade dialogando com o pensamento dos autores.
Nossa pesquisa será ainda bibliográfica exploratória e descritiva, ao passo que nos permitirá explorar
acerca da necropolítica e sua relação com a marginalização dos sujeitos, bem como descrever esta
sociedade ocidental (GIL, 2002).
Assim, a necropolítica acaba ditando quais vidas importam, fazendo com que exista um
processo reiterado de desumanização e subalternização dos sujeitos, demarcando assim espaços de
poder e espaços marginalização.

UMA POLÍTICA DE MORTE


Os Estados (contemporâneos), entes políticos dotados de soberania, possuem poderes que lhes
são conferidos por uma Constituição, ao passo que também impõe limites para sua atuação. Ocorre
que no dia a dia, nos deparamos com uma realidade antagônica daquela idealizada por essa Carta,
pondo em cheque diversas políticas de legitimidade estatal. Muito embora existam situações em

1320
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que essa Carta legitima esse direito de matar para com o Estado, como no caso da Alemanha nazista.
O poder elucida bem a ideia de soberania, e esse termo é sinônimo de força, a qual é
empregada na construção de políticas voltadas a segurança. Essa legitimação do uso da força, em
diversas ocasiões se torna uma “licença” para agir de forma violenta, ultrapassando a finalidade na
qual a atividade fora pautada. É corriqueiro vermos em manchetes de telejornais o abuso de violência
pelos entes estatais, que na maioria das vezes se dá em face de sujeitos que são esquecidos e
marginalizados pelo Estado.
Logo percebemos que o poder de matar é inerente a este ente, que por meio dessas políticas
ceifa vidas de sujeitos que para são tidos como menos humanos. Como fora citado, são sujeitos que
são taxados como inimigos, marginalizados, e que estão a mercê da prestação positiva do Estado.
E é partindo dessa premissa, que recaímos sobre a necropolítica de Mbembe, que personifica
esse uso da força para ceifar vidas, culminando em verdadeiras políticas de morte, o poder de ditar
quem pode viver e quem deve morrer. Em sua tese, bebendo do biopoder de Focault, aponta para um
estado de exceção e uma relação de inimizade, quais estão no corpo dos Estados modernos.

O estado de Exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de


matar. Em tais instâncias, o poder (e não necessariamente poder estatal) continuamente se
refere e apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo. (ANCHILLE
MBEMBE, 2018, p.17)

O fortalecimento dessas políticas de morte vem de um ato específico, ao racismo, estruturado


dentro do Estado, que seleciona esses grupos e os demonizam, atribuindo o status de inimigo a ser
combatido. Surgem, portanto, discursos inflamados dentro do corpo social (classes privilegiadas), e
assim verdadeiros genocídios desses grupos são concretizados, como consequência da imputação do
medo e insegurança, como “desculpa” para prática do racismo.
No Brasil, a questão racial é objeto de diversas problematizações, a violência nas relações
entre esses grupos e o Estado, imposto pelas instituições e mecanismos de controle social estão
sempre em evidência. O genocídio de povos negros e indígenas são observados ao decorrer dos dias,
resultante do uso da força e poder estatal.
Por aqui já se foi “normalizado” a execução desses povos, a história permite conhecer esses
períodos sangrentos. A começar pela invasão das terras e destruição dos povos indígenas no período
da colonização, onde diversas etnias foram massacradas e dizimadas. A escravidão foi outro
momento que marcou o extermínio dos negros e dominação pelo poder de matar (dominação esta
1321
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
produzida mediante o discurso de superioridade racial), o período ditatorial vivenciado pelo Brasil
foi outro exemplo da idealização de um inimigo a ser retirado a vida, em prol do bem comum.
Nos presídios a necropolítica também se mostra latente, locais onde se tem as maiores
violações de direitos fundamentais (ao lado das periferias), os tratamentos conferidos aos sujeitos em
condições precárias não faz jus ao objetivo e caráter ressocializador das penas, mas serve como uma
máquina de eliminação humana.
Um dos episódios que demonstram essa política de morte é o do Carandiru, também
considerado um dos mais sangrentos na história penitenciária mundial. Ocorrido no dia 02 de outubro
de 1992, no pavilhão 9 na casa de detenção de São Paulo conhecida como Carandiru (pavilhão que
se localizava os réus primários), contou com centenas de mortos e feridos.

CORREDOR ALAGADO DE SANGUE NA CASA DE DETENÇÃO DE SÃO PAULO, APÓS A


INTERVENÇÃO DA POLÍCIA MILITAR.

Fonte: Niels Andreas (1992)

Motivo de diversas versões, o que se sabe é que foi um dos maiores atos de violência e de
violação de direitos fundamentais ocorridos após a redemocratização. O sistema carcerário brasileiro
apresenta um status de estado de coisas inconstitucionais, em decorrência do desrespeito massivo as
garantias e direitos fundamentais inerentes a pessoa humana.
Ainda dentro dessa política de morte, temos uma das maiores ocorrências de eliminação dos
sujeitos, por meio das operações policiais dentro das periferias. A zona urbana (principalmente
grandes cidades e regiões metropolitanas) é essencialmente ligada ao caos, esse levado em sua

1322
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
literalidade, diversos problemas em infraestrutura, trânsito, e a tão conhecida no senso comum, a
violência, muito embora o interior tenha apresentado índices elevados.
Ao abordar esse tema a mídia, e todo corpo social, aponta para as periferias como sendo o
arcabouço da violência urbana, onde o tráfico impera e dita as regras, como sendo um território que
foge da administração estatal. E é justamente nessas regiões onde o Estado presta as garantias
fundamentais com alta carência.
Como fora acima citado, a violência é atrelada a estes territórios “esquecidos” pelo Estado,
que além do tráfico conta com grupos de milícias armadas, que também são criminosos de alta
periculosidade (agentes do próprio Estado). As polícias configuram e executam as políticas de
segurança pública, com expressa previsão constitucional, seja atuando de forma ostensiva ou
investigativa, é inegável a importância dessas instituições, mas é necessário frisar como estas tem
tido papel efetivo na execução destas políticas de morte.
Todos os dias nos deparamos com diversas mortes desencadeadas pelas operações realizadas
pela polícia nas periferias, muitas destas executadas pelas mãos dos mesmos, que atuando de forma
negligente eliminam crianças, adultos e idosos (pretos, em sua maioria), como se estes não valessem
nada, indigentes, servindo basicamente de números, taxando-os como inimigos da sociedade, como
criminosos.
Casos como o da vereadora Marielle Franco (PRESENTE!), assassinada dentro do carro,
quando voltava de uma palestra com mulheres pretas (também defensoras de direitos humanos),
empoderada e bem-sucedida, tecia críticas notoriamente acerca da violência policial durante a
intervenção federal no Rio de Janeiro. Temos ainda, o trágico episódio do pai de família Evaldo
Souza, que teve seu carro alvejado por 80 tiros, quando voltava para casa com sua família, disparados
por militares, que alegaram reação a uma “injusta agressão”.
Ou de Ágatha félix, 8 anos de idade, morta durante uma operação policial no complexo do
alemão. Casos esses que ainda não foram resolvidos, pelo contrário, os suspeitos recebem tratamento
privilegiado, como no caso dos militares envolvidos na morte do músico, segundo o jornal El país
(2020), 9 deles foram soltos pela justiça Militar.
Percebemos que a política de morte é constante e impiedosa, é seletiva, reflete a face obscura
do Estado, uma máquina de eliminação de sonhos, de pessoas fortes e que lutam pelo direito de

1323
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
serem reconhecidos como integrantes da sociedade, pelo pleno gozo dos direitos humanos que lhes
são inerentes.
Nesse caminho, pensando sobre vidas que importam ou não, Butler aponta:

[...] “há uma vida que nunca terá sido vivida”, que não é preservada por nenhuma
consideração, por nenhum testemunho, e que não será enlutada quando perdida. A apreensão
da condição de ser enlutada precede e torna possível a apreensão da vida precária. A condição
de ser enlutado precede c torna possível a apreensão do ser vivo como algo que vive, exposto
a não vida desde o início (BUTLER, 2019, p. 33).

Assim, são essas vidas, que são consideradas como “menos humana” que são atingidas pela
“política de morte”; sujeitos que sempre estiveram à margem da sociedade ocidental e têm direitos
negados sistemática e reiteradamente.
Esses são alguns, dos muitos casos que ocorrem diariamente na nossa sociedade ocidental,
apresentando assim um despreparo dos agentes policiais, bem como os preconceitos associados a este
trágico cenários, onde pessoas são mortas em razão de sua raça. Precisamos discutir acerca desse
fator, que acaba por marginalizar os sujeitos, algo que discutiremos no tópico seguinte.

A MARGINALIZAÇÃO DOS SUJEITOS EM RAZÃO DE SUA RAÇA

A demonização e/ou marginalização dos sujeitos é prática reiterada nas sociedades, e isso
perpassa em função da raça. O racismo foi, e ainda é, a principal fonte dessa marginalização.
No Brasil, as classes periféricas, mulheres, pessoas pretas, transexuais e as demais
diversidades, são discriminadas e subjugadas, em constantes olhos que os condenam. Toda e qualquer
atividade realizada por estes, será motivo de críticas, impedindo a ascensão social, torna-se mais
difícil provar a competência para realiza-las, tendo que se submeter ao dobro do exigido para prova-
la.
Para entendermos essa condição injusta imposta pela sociedade, recorremos ao conceito e
formas de racismo, elencados pelo professor Silvio Almeida. Para ele o racismo se materializa como
discriminação racial, e se articula na segregação racial, sendo um processo que impõe subalternidade
e privilégios a alguns grupos dentro da política, economia e diversos campos sociais. Almeida ainda
classifica o racismo em individual, institucional e estrutural (ALMEIDA, 2019).

1324
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O Racismo individual se manifesta por discriminação racial, sendo considerado mediante uma
ideia de patologia individual ou coletiva atribuída a determinadas pessoas. Já o institucional, é tratado
como resultado do funcionamento das instituições que privilegiam ou impõe desvantagens em função
de terminadas raças (ALMEIDA, 2019).
O autor ainda aponta:

As instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos
institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos” e ainda enfatiza “o domínio
se dá com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem
para manter a hegemonia do grupo racial no poder (ALMEIDA, 2019, p. 27)

Essas instituições possuem em seu corpo a hegemonia de grupos privilegiados, que impõe
desvantagens para com grupos diversos deste, contribuindo com o discurso de superioridade racial e
marginalização dos sujeitos.
Quanto ao racismo estrutural, ele está ligado ao institucional, sendo ele decorrente de uma
estrutura que impõe padrões com teor discriminatório em razão da raça. Para Almeida (2019) as
instituições reproduzem o racismo, elas não a cria, mas podem se posicionar dentro dos conflitos que
a estrutura social se constituí, e se estas nada o fizer, certamente se transformarão em uma via de
transmissão dos privilégios e violências racistas.
Percebemos que a estrutura social é, por excelência, dotada de racismo, e que por isso a
marginalização dos sujeitos é decorrente dessa sistemática. Nos reportamos ao caso de grande
repercussão, onde a juíza Inês Zarpelon, juíza da 1ª Vara Criminal de Curitiba, fundamentou sua
decisão com base na raça do acusado “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua
raça”.
Desse modo, notamos que a marginalização do sujeito é descrita por uma juíza racista,
legítima representante do Estado, cuja estrutura é composta, em sua maioria, por pessoas
privilegiadas. Nos reportando a poesia de que a carne mais barata do mercado é a carne negra
As pessoas pretas estão sempre na mira, estão sempre no campo da condenação, na constate
imputação da marginalização.
A carência na prestação positiva dos direitos fundamentais pelo Estado dentro das periferias
e regiões onde se vivem pessoas abaixo e na linha da pobreza, reflete nos piores índices. Educação,
direito da pessoa humana, previsto na Constituição e nas legislações internacionais, possui o
poder de transformar, direito este que é negado as pessoas que vivem nessas situações.
1325
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O não acesso a esta garantia leva crianças a ingressar na criminalidade, na exploração sexual,
no trabalho infantil, problemas quais são vistos na realidade local, e que são ignorados pela sociedade,
servindo, portanto, como corpos para o abate.
Muito se fala em meritocracia, termo que cai por terra quando nos deparamos com a realidade
vivenciada, num país onde a desigualdade social é marca registrada, as oportunidades jamais serão
as mesmas. Como uma reparação de danos e reparação histórica, possuímos as ações afirmativas,
como o sistema de cotas, especificamente a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012:

Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o
art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e
indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de
vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com
deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o
último censo do IBGE (BRASIL, 2012, p. 03)

Tal dispositivo tem sido fundamental para a representatividade e alcance nas diversas áreas,
desses grupos que estão sendo postos em constante desvantagens.
Movimentos como o “Vidas Negras Importam” tornam-se cruciais na luta pela diminuição da
violência contra essas pessoas, e por políticas de igualdade racial. De fato, todas as vidas importam,
mas o grupo que está no centro, que sofreu e sofre, que está na mira, é quem deve receber toda a
atenção e luta, precisa de voz e lugar de fala, de visibilidade. Sabiamente RIBEIRO (2017, p.24) nos
diz que “a história tem nos mostrado que a indivisibilidade mata”. E isso mostra a importância de tais
movimentos.
O privilégio branco reflete as vantagens que a pessoa branca tem em relação aos grupos das
demais etnias, condicionando ao grupo se beneficiar dessa herança racista. Cumpre trazer à baila
algumas ações que devem ser tomadas por pessoas que gozam desses privilégios, de forma a ajudar
a causa, como o reconhecimento do seu privilégio, ser mais que “não racista” ser mais ativamente
antirracista, confrontar injustiças sociais, escutar e amplificar vozes de pessoas não brancas.

A NECROPOLÍTICA E SUA RELAÇÃO COM A MARGINALIZAÇÃO DOS SUJEITOS

A necropolítica, como política de morte, de ditar quem deve morrer e viver, é


condicionada ao racismo, escancarado dentro do corpo social, institucionalizado. O genocídio

1326
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
das pessoas pretas, constitui e personifica o poder de ditar quem tem o direito à vida, se desdobrando
em uma política de guerra.
Anchille Mbembe explica:

[...] Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver
na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar;
construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e
espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas
casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas
escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais
humilhados e espancados na frente de suas famílias [...] (MBEMBE, 2018, p. 68-69).

Dessa forma, o contexto em que se apresenta essas situações, é dominada pelo terror, o medo
de ser a próxima vítima, o alvo a ser alvejado, produzindo um cenário de guerra, transformando-se
em palco para ideais supremacistas.
Diante desses mecanismos de eliminação humana, é importante ressaltar a relação que
Mbembe faz com o pensamento de Foucault, especificamente quanto ao biopoder. Tal termo na visão
de Foucault (1999) são dispositivos de governo cujo intuito é fazer viver ou deixar morrer, os quais
estão presentes na forma em que os Estados funcionam, por meio de técnicas, conhecimento e das
instituições. Nesse mesmo caminho, o autor aponta para a biopolítica como sendo a força que regula
populações e indivíduos, e ainda enfatiza o discurso como instrumento de poder que determina
condutas e legitima discursos.
Mbembe se inspira nessas teorias de Foucault, indo além, ao passo em que tece críticas ao
pensamento do mesmo, como sendo insuficientes para compreender relações de inimizade e
perseguição nos dias atuais, como acima foram descritas, condicionando o pensamento deste restrito
a visão eurocêntrica, focada apenas na sociedade europeia. Para Mbembe o discurso e o poder
elencados por Foucault personificam um racismo estrutural de Estado, que fortaleceu e fortalece
políticas de morte.
Segundo Mbembe (2018), a ideia de eliminação do inimigo do Estado sempre esteve ligada
ao período escravocrata, que ainda tem reflexos enormes dentro da sociedade. Logo podemos dizer
que o racismo, as desvantagens impostas para com esses grupos, é herança desse período desumano
da história mundial.
Jessé Souza em sua obra “ A elite do atraso: Da escravidão à lava jato” (2017, p. 62),
enfatiza “ O que permanece do escravismo é a sub-humanidade cevada e reproduzida” e ainda

1327
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diz “a crença de que existe gente criada para servir outra gente”, tudo isso traduz o pensamento de
grande parte desses grupos privilegiados. O autor ainda aponta:

É necessário reproduzir uma classe de carentes pela ausência de pressupostos para o sucesso
escolar como uma forma de continuar a escravidão com outros meios. Uma raça/classe
condenada a serviços brutos e manuais desvalorizados. (SOUZA, 2017, p. 62)

Notamos que o plano é manter uma escravidão moderna, condicionando esses sujeitos e
grupos a uma eterna desvantagem e inferioridade em relação aos demais, e assim usar essa condição
para marginalizar os sujeitos. E ainda que esse sujeito consiga o sucesso, ele sofrerá um processo e
uma cultura de embranquecimento e afastamento de sua imagem com os demais indivíduos de seu
grupo, como o caso do maior escritor brasileiro, Machado de Assis.
O racismo é elemento marcante para com a marginalização dos sujeitos, e essas políticas de
mortes são feitas e executadas em face desses indivíduos, existindo uma relação de dependência entre
uma e outra. No Brasil atual, encontramos esse discurso cada vez mais escancarado, no qual o alto
escalão do governo é notoriamente afeiçoado a essas práticas e mecanismos de eliminação,
marginalização e idealização de um inimigo estatal e dos ditos “cidadãos de bem”. Na mesma
margem, Schwarcz (2019, p. 32) enfatiza que ainda “tendemos a criar um plus perveso de
discriminação, que faz com que negros e negras morram mais cedo e tenham menor acesso aos
direitos de todos os cidadãos brasileiros”.
E assim são propagadas ações genocidas, como no caso do Governador do Rio de Janeiro
Wilson Witzel, retratado por Petrone, vejamos:

Era uma vez um governador que comandou pessoalmente, de dentro de um helicóptero


blindado, uma operação policial em que agentes da segurança pública atiraram de cima para
baixo, a esmo, em uma favela, atingindo inclusive uma tenda evangélica. Era uma vez um
governador que publicou tudo isso, com orgulho, nas páginas institucionais do governo do
Estado. Essa história de terror é a realidade desesperadora do Rio de Janeiro. (PETRONE,
2020, p. 1)

Todo esse ensaio personifica aquilo já descrito por Mbembe, do poder de ditar quem deve
viver e que deve morrer.
O projeto elencado por Souza (2017), reflete o domínio pelo discurso trazido por Foucault, e
da necropolíticade Mbembe, o domínio e inferiorização é um projeto de vida daqueles que gozam dos
seus privilégios, marginalizando e segregando os demais.

1328
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos reportamos novamente ao problema de pesquisa que deu origem a pesquisa desse artigo,
tendo como escopo a necropolítica de Anchille Mbembe, e a partir disso a marginalização dos sujeitos
em decorrência de sua raça. Portanto elaboramos o seguinte questionamento: quais são as intersecções
existentes entre a necropolítica e as questões raciais, fazendo com que exista um processo seletivo
entre os sujeitos?. Assim seguem as reflexões que construímos.
Apontamos que a necropolítica está inteiramente ligada a marginalização dos sujeitos, e que
a partir disso se obtem a “licença” para executar sujeitos que se enquadram nessas condições. As
políticas públicas de segurança caem como uma luva para o Estado como sendo técnicas de ditar
quem deve viver e quem deve morrer. O racismo está cravado na ordem social, e se desloca por todos
os campos, como trabalhista , cultural e outros.
É notório que existe uma elite com afeições escravocata, e que está a todo momento pondo
em execução um projeto de escravidão moderna, atráves dos meios de dominação, impondo
desvantagens aos sujeitos marginalizados, pois estes precisam dessa subordinação para manter em pé
seus castelos de privilégios.
E, ocupando esses lugares de maior relevância, o ciclo de reprodução do racismo continua
latente, condicionando aos grupos disprevilegiados a não ocupação de áreas com “status” de
grandiosidade. Foi possível vislumbrar que o racismo é elemento central nas relaçoes sociais,
possuindo diversas vertentes, seja ele institucional, estrutural e individual, os quais foram descritos
pelo professor Silvio Almeida.
Conforme mencionado, Mbembe (2018) traduz em seu conceito de necropolítica uma tática
do Estado e de grupos privilegiados de manutenção de seu império, e que usa o poder de ditar quem
deve viver e/ou morrer como método para marginalizar e manter suas regalias.
Portanto, as reflexões que aqui foram apresentadas, trazem a ideia da necropolítica como
sendo relacionada a marginalização dos sujeitos, diante das teses encontradas e discutidas, recaindo
sobre Mbembe, Almeida e Focault. Outrossim, é preciso lutar pela igualdade racial, pela extinção dos
privilégios institucionalizados, personificando do um Estado social democrático e de direito, cujas
garantias e direitos são plenamente ofertados e gozados por todos os cidadãos.

1329
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para os que possuem os chamados privilégios, os reconheçam, adotem medidas eficazes,
ajudem as causas voltadas para as “vidas negras importam”, afim de construir um mundo melhor e
igualitário.
As políticas públicas devem estar voltadas para todos, para que estes sintam-se acolhidos e
com espaço para chamar de seu, ter lugar e vez de fala. As instituições precisam se posicionar
contrárias ao sistema que perdura, refletindo assim na estrutura do Estado.
A soberania não deveria ter ligação com essas políticas de eliminação humana, mas sim ao
poder de conceber boas condições humanas para os seus, de ofertar o gozo pleno de direitos inerentes
a pessoa humana.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo : Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais
e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Congresso
Nacional: Brasília-DF, 2012
consolidada pelos sucessivos governos, inclusive em nível nacional. Carta Capital, s. l., 10 jun. 2019
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/a-politica-da-morte-de-

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2019.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999.

GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

PETRONE, Talíria. A licença para matar pobres e favelados é uma realidade que vem sendo

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo horizonte: Letramento, 2017.


SCHWARCZ, Lilia Morritz. Sobre o Autoritarismo brasileiro. São Paulo: companhia das letras,
2019.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso:da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

TRIBUNAL manda soltar 9 militares que mataram músico e catador no Rio. EL PAÍS, São
Paulo, 24 de maio 2020. Disponível:

1330
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/24/politica/1558649132_143547.html Acesso em: de
setembro de 2020
witzel/>. Acesso em: 17 de setembro de 2020.

1331
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GÊNEROS E SEXUALIDADES PERSEGUIDAS: A QUESTÃO LGBT E FEMINISTA NO
CENÁRIO POLÍTICO-SOCIAL ATUAL

Elder Luan dos Santos Silva557

Resumo: No Brasil, especialmente em meio a campanha presidencial de 2018, a principal estratégia utilizada pelo
neoconservadorismo foi o acionamento da categoria “Ideologia de Gênero”, um dispositivo mobilizador do pânico moral
em função da suposta doutrinação feminista e gay das crianças. Como reflexo disso, tem se percebido um aumento da
LGBTfobia em sua manifestação discursiva e física, a perseguição aos estudos de gênero e sexualidade e cerceamento da
cidadania LGBT. Esse texto tem como objeto refletir sobre os ataques as questões de gênero e sexualidade e as pessoas
LGBT operados no Brasil pelo neoconservadorismo desde a campanha eleitoral que culminou na eleição do presidente
Jair Bolsonaro até o seu primeiro ano de governo. Para tanto, serão analisadas as declarações e ataques do atual presidente
às questões de gênero, assim como a repercussão disso entre seus seguidores.

Palavras-chave: Governo Bolsonaro; Ideologia de Gênero; Lgbtfobia; Pânicos Morais.

CONTEXTOS: O COMBATE ÀS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA


EDUCAÇÃO
A ofensiva contra as questões de Gênero e os Direitos das pessoas LGBT no Brasil começa a
ganhar os contornos específicos que tem hoje, ainda em 2011, quando por pressão da bancada
evangélica a presidenta Dilma Rousseff vetou o programa Escola Sem Homofobia se sustentando na
afirmação de que seu governo não realizaria “propaganda pelas opções sexuais” (IRINEU, 2014).
Segundo Carvalho e Sívori (2017), os atores conservadores em ascensão no Congresso Nacional
criaram uma rede para divulgação e amplificação de versões distorcidas sobre os materiais do
programa. Na principal argumentação desenvolvida, alertava-se do perigo que a escola se tornasse
um lugar de aliciamento para o homossexualismo e lesbianismo, e que crianças de 6 a 8 anos estavam
sendo expostas a conteúdos pornográficos (CARVALHO, SÍVORI, 2017).
Desde o Programa Brasil Sem Homofobia que essa alternativa, de disseminação de um pânico
moral/social, foi utilizada por esses setores ultraconservadores em suas articulações que demandavam
a não aprovação dos materiais desenvolvidos para o programa. A retórica utilizada articulava
expressões patriarcalistas, homofóbicas e anti-esqueditas, em uma investida que buscava paralisar
outras iniciativas que tinham como mote a defesa dos direitos LGBTs (CARVALHO e SÍVORI,
2017).

557
Graduado em História (UFRB). Mestre em Estudos Interdisciplinares Sobre a Universidade (PPGEISU-UFBA).
Doutorando em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismo (PPGNEIM - UFBA). Membro do Grupo de Pesquisa
em Estudos Feministas em Política e Educação. E-mail: elluanss@gmail.com
1332
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na avaliação feita por Carvalho e Sívori (2017), essa cruzada em volta do Programa Escola
Sem Homofobia tornou-se uma grande oportunidade desses grupos se articularem e potencializarem
seu capital político. Entre outros ganhos, conseguiram rebatizar o projeto de Kit Gay, que, desde
então, ficou assim pejorativamente conhecido. Foi também nesse primeiro momento que nomes como
o do então deputado Jair Bolsonaro (na época PP/RJ), Marco Feliciano (PSC/SP), e do Senador
Magno Malta (PR/ES) ganharam visibilidade na grande mídia.
Segundo Vanessa Leite (2014), o fator preponderante na reação da Bancada Evangélica e dos
setores conservadores das igrejas católicas e protestantes em torno do ESH estava no fato de que os
materiais do programa admitiam a existência de adolescentes LGBT na escola, e mais do que isso,
aceitavam e encorajavam a possibilidades de elas e elas assumirem as suas diversas identidades
sexuais, apostando em uma afirmação positiva da bissexualidade, homossexualidade, lesbianidade,
travestilidade ou transexualidade na adolescência (LEITE, 2014).
A possibilidade de que o ESH, de alguma forma, colaborasse com a afirmação das identidades
sexuais, a “saída do armário” e a vivência de sexualidades/gênero não normativos desestabilizou o
projeto político heteronormativo que analogamente ecoa nas compreensões de sexo, gênero, família
e sociedade das igrejas neopetencostais e católicas. Essa mesma desestabilização, ou medo dela,
voltou à tona e se amplificou quando o Plano Nacional de Educação passou a ser discutido, e suas
menções a gênero, sexualidade e diversidade foram amplamente contestadas sob a ótica da “Ideologia
de Gênero”.
Como reflexo dessa investida operada por setores das igrejas católicas e neopentecostais, o
termo “ideologia de gênero”, carregado de um peso altamente negativo, passou a significar um
suposto esforço dos movimentos feministas, LGBT, e dos estudiosos do campo do gênero e das
sexualidades, para ensinar as crianças a serem gays e lésbicas, e passou a ser fortemente combatido
nas escolas públicas, tendo como principal articulador o Movimento Escola Sem Partido (MESP).
Desde então, uma discursividade violenta, que tende a combater tudo aquilo que se relaciona com os
direitos LGBT e das mulheres e com as questões de gênero e sexualidade, passou a ser gestada, tendo
seu ponto alto no Brasil na eleição presidencial de 2018.
Nesse ensaio, reflito sobre o avançar das situações de violências contra pessoas LGBT que,
mobilizadas pelo discurso de ódio gestado pelos movimentos ultraconservadores e ancorados na
retórica da Ideologia de Gênero, intensificaram-se no contexto das eleições presidenciais de

1333
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
2018. Para tanto, realizei o levantamento das situações de lgbtfobia que foram noticiadas pelos
principais sites de notícia do país período eleitoral das eleições presidenciais de 2018.

VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS LGBT NO CONTEXTO DAS ELEIÇÕES


PRESIDENCIAIS DE 2018
A campanha presidencial de 2018 que culminou na eleição do presidente Jair Messias
Bolsonaro eleito pelo Partido Social Liberal (PSL), foi um período fortemente marcado por um
discurso de ódio e situações de violência contra mulheres, negros e negras e, em especial, pessoas
LGBT, que tem como base fundadora os discursos e compreensões formulados pela retórica da
Ideologia de Gênero, e seus principais expotentes, parlamentares da bancada evangélica, membros
de partido de extrema direita, e os setores ultraconservadores das igrejas católicas e petencostais.
Nas semanas que antecederam as eleições presidenciais que aconteceram no dia 28 de outubro,
diversos casos de violência contra pessoas LGBT foram registrados: em Aracaju, Layna Fortuna, uma
mulher trans, foi assassinada (QUIRINO, 2018); em São Paulo, uma travesti foi morta a facadas sob
os gritos de “Bolsonaro” e “Ele Sim” (REVISTA FÓRUM, 2018); em Curitiba, um homem gay foi
assassinado e teve seu corpo trancado em um armário (SOUZA, 2018); em Salvador, na madrugada
que sucedeu o primeiro turno das eleições, o mestre de capoeira Môa do Katendê levou 12 facadas e
não sobreviveu (LIMA et al 2018); Julyanna Barbosa, ex-vocalista do grupo Furacão 2000, mulher
trans, foi atacada com uma barra de ferro (LIMA, 2018); Netinha Matias, travesti piauiense, de 40
anos, residente da cidade Sigefredo Pacheco, foi brutalmente espancada dentro de sua residência
(LINHARES, 2018). Todas essas agressões tem um ponto em comum: foram cometidas por
apoiadores declarados do então candidato à presidência da república e presidente eleito Jair
Bolsonaro.
As violências simbólicas também foram imensas. Na internet circularam vários vídeos em que
era possível ouvir e/ou ver as pessoas entoando ataques à pessoas LGBT: em um deles, um grande
grupo de pessoas no metrô de São Paulo cantou: “o bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar
viado” (MATOS, 2018); em outro, três crianças cantam: “O Bolsonaro está chegando e eu vou lançar
mais um recado, corra você que é viado, corra você que é viado, O Bolsonaro está chegando e eu
vou lançar mais uma onda, corra você sapatona, corra você sapatona” (GGB, 2018).

1334
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A jornalista Joana Oliveira (2018) em matéria publicada no site do El País, relatou em tempo
real como as agressões e os discursos de ódio em torno das eleições de 2018 estavam aumentando a
ansiedade e impondo novos modos de existência para um grupo que se sente vulnerável e ameaçado
por esses discursos, a população LGBT. A reportagem apurou como um casal de homens gays, uma
mulher trans, uma mulher lésbica e outra bissexual, duas mulheres negras periféricas e uma mulher
indígena estavam lidando com esses ataques. Os relatos dão conta de um medo latente que tem
imposto modificações na forma como essas pessoas tem vivido no Brasil, como, por exemplo, pra
um casal de homens gays, que teve que voltar para o armário e decidiu não mais expor seu afeto em
público (OLIVEIRA, 2018).
Boa parte das análises da mídia e dos movimentos sociais no Brasil, ainda recentes, atribui
essas crescentes violências ao discurso de ódio de Jair Messias Bolsonaro. Ao longo de sua construção
enquanto pré-candidato, a popularidade do mesmo se deu justamente por causa das declarações
machistas, racistas, lgbtfóbicas, misóginas e de incitação à violência.
Um levantamento realizado pela Pública em parceria com a “Open Knowledge Brasil” revelou
que nos primeiros 10 dias do mês de outubro de 2018 houve pelo menos 70 ataques com motivações
políticas contra mulheres, negros e LGBT.
Nesse levantamento, é possível localizar que parte desses ataques tem acontecido nas
universidades públicas do país. Na Universidade Federal do Paraná (UFPA), cerca de seis homens
agrediram um estudante em frente à Casa da Estudante Universitária, onde residem os estudantes com
maiores índices de vulnerabilidade social. Na Universidade de Pelotas (UFPEL), o professor Luciano
Volcan Agostini recebeu ameaças via e-mail de um estudante que dizia estar “envolvido diretamente
com a campanha de Bolsonaro” (ZANATTA et al., 2018). Na Universidade Federal da Bahia
(UFBA), a professora Denise Carrascosa do Instituto de Letras também foi ameaçada. Segundo
relatos da mesma, publicados em sua rede social e reproduzidos por diversos sites de notícias, ao
passar pela portaria do Instituto de Letras, um estudante a interpelou dizendo “Professora, depois do
dia 28 a senhora vai ver” (MUNIZ, 2018). Também na UFBA, no dia 28 de outubro, após o resultado
das eleições, militantes pró-Bolsonaro foram à porta da residência universitária, localizada no
Corredor da Vitória em Salvador, ameaçar estudantes LGBTs. Uma estudante da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) foi atacada com socos. Em seu relato publicado
na rede social Facebook e reproduzido pelo site Brasil de Fato (PITASSE, 2018), ela escreveu

1335
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que durante a agressão foi chamada de “sapatão de merda e vagabunda” e que “não era uma mulher
de respeito”. Na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) estudantes de Filosofia foram agredidas
por estudantes dos cursos de Medicina e Nutrição (UFMA, 2018). Em Teresina, o estudante
universitário Lenilson Bezerra, 24 anos, foi brutalmente agredido por 10 homens, vindo a óbito
poucos dias depois (PINCEL, 2018). Na Universidade de Brasília (UNB), livros de Direitos Humanos
foram rasgados na Biblioteca (MARQUES; CARVALHO, 2018). Na Universidade Federal do
Amazonas (UFAM), um aluno jogou uma mesa em direção a um professor da instituição que durante
a aula havia exibido um vídeo sobre fascismo (HENRIQUES, 2018).
Além desses ataques direcionados à pessoas e grupos minoritários, a Instituição Universitária
foi fortemente atacada nos dias que antecederam o segundo turno da eleição presidencial de 2018.
Um levantamento publicado no dia 26 de outubro pelo site de notícias “Conversa Fiada” (AMORIM,
2018) dava conta de que pelo menos trinta universidades públicas haviam sido invadidas por policiais
e membros da Justiça Eleitoral, sob a justificativa de propaganda eleitoral irregular558.
Dentre as ações policiais, ocorreram remoções de faixas de combate ao Fascismo na UFRJ e
na UERJ, a paralisação de aulas públicas com os temas “Contra o Fascismo, pela Democracia” e
“Esmagar o Fascismo”, respectivamente na FURG e UFGD, e a invasão de Policiais Militares
armados em uma aula que tratava sobre Fake News na UFPA, após a filha de um PM realizar uma
denúncia de que o professor estaria intimidando estudantes a não votarem no presidenciável Jair
Bolsonaro.
Essas ameaças não são novas, e já vem acontecendo há algum tempo, em especial contra
docentes universitários que pesquisam e/ou militam em favor das questões LGBTs e feministas e em
prol do direito das mulheres. Em dois casos bastante emblemáticos, duas professoras universitárias
foram ameaçadas de morte: a professora Débora Diniz da UNB passou a ser perseguida nas redes
sociais e ameaçada de morte por defender e pesquisar sobre a descriminalização do aborto, entre
outros temas dos estudos de gênero e sexualidade (PAULA, 2018); outro caso semelhante a esse
aconteceu na UFBA, onde uma professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade

558
Os dados obtidos pelo veículo “Toda Palavra” mostram que as unidades de ensino que tiveram ações da Justiça
Eleitoral em parceria com a Polícia foram: Unidades de Ensino da UFGD (Dourados), UEPA (Iguarapé-Açu), UFCG
(Campina Grande), UFF (Niterói), UEPB, UFMG, Unilab (Palmares), SEPE-RJ, Unilab-Fortaleza, UNEB
(Serrinha), UFU (Uberlândia), UFG, UFRGS, UCP (Petrópolis), UFSJ, UERJ, UFERSA, UFAM, UFFS, UFRJ,
IFB, Unila, UniRio, Unifap, UEMG (Ituiutaba), UFAL, IFCE, UFPB, UFRPE (Serra Talhada), UNESP (Botucatu),
UEAL, Unisinos e IFF (Campos dos Goytacazes).
1336
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(BEGB) foi ameaçada de morte em novembro de 2017 por pesquisar questões relacionadas ao aborto
e a divisão sexual do trabalho (MARINHO; SANTOS; VIGNE, 2018). A UFBA também foi alvo de
outras perseguições, a exemplo dos ataques e ameaças sofridas pelo Projeto Pensamento Lésbico
Contemporâneo. Lemos e Cordeiro (2018) relatam que o projeto, em especial a Jornada do
Pensamento Lésbico Contemporâneo que aconteceu de 24 a 25 de novembro na UFBA, organizada
pelo Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação – GIR@, foi alvo de ataques e ameaças
tendo como intenção a não realização do evento.
Outra face dessa violência crescente nos últimos anos no Brasil tem se dado justamente nesse
campo dos estudos de gênero e das pesquisadoras e pesquisadores envolvidos com essa temática. A
perseguição aos estudos de gênero, que se ampliou no Brasil no contexto da aprovação dos planos
municipais, estaduais e federal de Educação, teve centralidade na campanha presidencial de 2018 e,
minimamente no campo das discursividades, opôs, especialmente no segundo turno, dois projetos
políticos: um que defendia os direitos das mulheres, negros, LGBTs, índios, entre outros grupos
subalternizados, e outro que acreditava que essas agendas eram “coitadismo” (CALEIRO, 2018).
Isso ficou ainda mais nítido após os primeiros 100 dias de governo do presidente Jair Messias
Bolsonaro. Através de sua conta pessoal no twitter, principal meio de comunicação de Bolsonaro com
seus eleitores, o presidente manteve o tom da campanha e os ataques às questões de gênero. Assim
como na campanha, o governo Bolsonaro tem investido em uma guerra discursiva, que tem como um
dos princiais alvos os direitos das mulheres e dos LGBT.
No dia 05 de janeiro, cinco dias após a posse, ao anunciar o novo coordenador do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM), Murilo Resende, o presidente publicou em sua rede social que
em seus estudos, o novo coordenador deixa claro que a “prioriza o ensino ignorando a atual promoção
da lacração”. Ainda no mesmo mês, após 23 dias de empossado, Bolsonaro comemorou a desistência
do ex-deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ) de ocupar o cargo de Deputado Federal, para o qual foi eleito
nas últimas eleições. Não satisfeito, o presidente ainda comemorou o fato de que Jean Wyllys
anunciaou que iria embora do país por estar sofrendo ameaças de morte. Em 13 de Fevereiro de 2019,
também em sua conta no twitter, Bolsonaro se posicionou contra a Criminalização da Homofobia,
que havia entrado em pauta no Supremo tribunal Federal (STF) naquele dia. Uma das postagens mais
emblemáticas aconteceu no dia 05 de março de 2019, quando, para criticar o Carnaval Brasileiro,
o presidente publicou em sua rede social um vídeo onde duas pessoas LGBT faziam uma

1337
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
performance queer em cima de um contêiner, tendo gerado todos os tipos de comentários em torno
da “chuva dourada”.
Quem também teve grande destaque na mídia devido às declarações que atacam pessoas
LGBT e as questões de gênero e sexualidade foi a ministra Damares Alves. No terceiro dia de
governo, na sua posse como Ministra da Mulher Família e Direitos Humanos, disse que iria “acabar
com a doutrinação ideológica das crianças e adolescentes”, fazendo referência ao que
convencionalmente tem sido chamado de Ideologia de Gênero (PAINS, 2019), e que o Brasil estaria
entrando em uma nova era, em que “meninas vestem rosa e meninos vestem azul” e que “menina será
princesa e menino será príncipe” em uma clara ofensiva às pessoas trans e as questões relacionadas a
identidade de gênero, traindo portanto o acordo estabelecido com a ABGLT ainda em dezembro.
Muito além do campo discursivo, os cem primeiros dias do governo Bolsonaro foram palco
de um desmonte de políticas públicas para pessoas LGBT. Logo nos primeiros dias de governo foi
extinta no Ministério da Educação (MEC) a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI), pasta responsável pela promoção de políticas educacionais que
transversalizem questões de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, além de outras questões
como raça, cor, etnia, origem, posição econômica, deficiências, condição geracional e outras
diferenças. Nesse mesmo embalo, o Ministério da Saúde (MS) publicou uma orientação para que
sejam desconsideradas campanhas específicas de prevenção às Infecções Sexualmente
Transmissíveis (IST) e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) para a população de homens
gays, travestis, homens trans, bissexuais e mulheres lésbicas e trans (LONGO, 2019). A justificativa
dada pelo ministro da saúde é de que o ministério não irá “ofender as famílias”. Nesse contexto, a
Advocacia Geral da União (AGU) se manifestou contra a criminalização da homofobia e houve ainda
o anúncio de “reestruturação” dos Conselhos Nacionais, que impactará no funcionamento do
Conselho LGBTI (LONGO, 2019).
Através dessa breve contextualização vemos que há um acirramento das situações de
violências contra grupos historicamente subalternizados, resultado dessa atual produção de
discursividades que descaracteriza a importância das agendas de direitos humanos. Uma pesquisa
divulgada pela Folha de São Paulo em 20 de março de 2019 afirma que há uma escalada de violência
contra a população LGBT no Brasil desde o período eleitoral do ano passado (MENA, 2019).

1338
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A pesquisa, conduzida pela organização de mídia Gênero e Número e financiada pela
Fundação Ford aponta que 92,5% dos LGBTs entrevistados consensuam que as violências lgbtfóbicas
aumentaram desde o período eleitoral. Já entre os entrevistados, 51% afirmaram ter sofrido algum
tipo de violência motivada por sua identidade de gênero e orientação sexual. Entre os/as agredidos/as,
94% foram vítimas de violência verbal e 13% de violências físicas. Esse mesmo dado é mostrado
pelo Disque 100, serviço de atendimento telefônico gratuito destinado a receber demandas relativas
a violações de Direitos Humanos, que em outubro de 2018 recebeu 272% mais denúncias de
violências LGBTfóbicas do que no mesmo período em 2017, sendo 330 casos em outubro de 2018
contra 131 em outubro de 2017.
Essa conjuntura também tem afetado o funcionamento da Universidade, assim como tem, ao
mesmo tempo, criado um clima de tensão, além da produção e reprodução das violências lgbtfóbicas.
A universidade tem sido um dos campos onde as situações anteriormente relatadas se reverberaram e
ganharam legitimidade, e, também no espaço universitário, o foco principal dessas violências
baseadas no gênero têm sido as mulheres e pessoas LGBTs, em especial aqueles e aquelas que estão
envolvidas com os estudos de gênero e sexualidade e a militância feminista e LGBT.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ESTRATÉGIA POLÍTICA DOS PÂNICOS MORAIS


O cenário político atual que estamos vivendo, não só tem produzido outros discursos e
discursividades sobre questões de gênero e sexualidade, como também tem ampliado a violência
contra pessoas LGBT e desenvovlido uma ofensiva contra qualquer avanço legislativo em termos dos
direitos das mulheres, LGBTs e igualdade de gênero através da propagação de pânicos morais.
Miskolci (2007) ao analisar os debates em torno do casamento gay em sociedades
contemporâneas utiliza o conceito de pânicos morais para compreender os mecanismos de controle e
resistência das transformações da sociedade nos campos relacionados a gênero e sexualidade.
Segundo ele, “pânicos morais emergem a partir do medo social com relação às mudanças,
especialmente as percebidas como repentinas e, talvez, por isso mesmo, ameaçadora” (MISKOLCI,
2007, p. 103).
A partir da perspectiva de Rubin (1994) e Miskolci (2007) podemos afirmar que a noção de
Ideologia de Gênero, ao longo dos anos, se tornou um dos principais modos de regulação da
conduta sexual e da produção de gênero e sexualidades não-normativos, e um ativador do pânico

1339
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
moral, ou dos pânicos morais em torno das questões de gênero e sexualidade, das lutas feministas e
dos direitos sexuais e reprodutivos e das pessoas LGBT.
A principal estratégia para a disseminação desses pânicos morais no contexto brasileiro foi à
propagação de inverdades sobre as pautas feministas e LGBT, e os estudos de gênero e sexualidade.
Segundo Carvalho e Sívori (2017), os atores conservadores em ascensão no Congresso Nacional
criaram uma rede para divulgação e amplificação de versões distorcidas sobre as questões de gênero
e sexualidade. Na principal argumentação desenvolvida, alertava-se do perigo que a escola se tornasse
um lugar de aliciamento para o homossexualismo e lesbianismo, e que crianças de 6 a 8 anos estavam
sendo expostas a conteúdos pornográficos (CARVALHO e SÍVORI, 2017). Essa repetição das
acusações e argumentações não é aleatória. Segundo Luna (2017), a repetição literal dos argumentos,
revela, na verdade, a articulação desses atores mobilizados contra as questões de gênero e
sexualidade.
Como ressaltado no texto, durante o período eleitoral de 2018 houve um aumento significativo
das situações de violência contra mulheres e pessoas LGBT, que se justificavam justamente na
retórica do dicursos ultraconservadores sobre as questões de gênero e sexualidade. No Brasil, como
em outros lugares ao redor do mundo, o fenômeno da Ideologia de Gênero estabeleceu um confronto
de moralidades, que se traduz em disputas de modos de regulação moral (LUNA, 2017). A principal
estratégia utilizada por esses setores, foi o acionamento da categoria “Ideologia de Gênero”, um
dispositivo mobilizador do pânico moral em função da suposta doutrinação feminista e gay das
crianças (CARVALHO e SÍVORI, 2017).
Essa retórica, que nasce a príncipio a partir da disseminação de pânicos morais e violências
simbólicas, e desemboca num combate a tudo que venha se relacionar com as questões LGBT,
feministas e de gênero e sexualidade. Esses discusos, operados por discursividades múltiplas, tem,
então, cooperado enormemente para a legitimação da violência LGBTfóbica, contribuindo assim com
o aumento dos índices de LGBTfobia.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Paulo Henrique. Por que policiais invadiram 30 universidades públicas? 2018.
Disponível em: <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/por-que-policiais-invadiram-30-
universidades-publicas>. Acesso em: 12 abr. 2019.

1340
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CALEIRO, João Pedro. Https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-promete-fim-do-
coitadismo-de-negro-gay-mulher-e-nordestino/. 2018. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-promete-fim-do-coitadismo-de-negro-gay-mulher-e-
nordestino/>. Acesso em: 14 abr. 2019.

CARVALHO, Marcos Castro; SIVORI, Horacio Federico. Conservadorismo religioso, gênero e


sexualidade na política educacional brasileira. cadernos pagu, n. 50, 2018.
FÓRUM, Revista. Aos gritos de “Bolsonaro”, travesti é morta a facadas no centro de SP. 2018.
Disponível em: <https://revistaforum.com.br/politica/aos-gritos-de-bolsonaro-travesti-e-morta-a-
facadas-no-centro-de-sp/>. Acesso em: 15 abr. 2019.
GGB, Grupo Gay da Bahia -. Bolsonaro tá chegando, “corra você que é viado”: adolescentes
debocham de LGBT em vídeo. 2018. Disponível em:
<https://grupogaydabahia.com.br/2018/10/11/bolsonaro-ta-chegando-corra-voce-que-e-viado-
adolescentes-debocham-de-lgbt-em-video/>. Acesso em: 12 abr. 2019.

HENRIQUES, Camila. Professor relata agressão de aluno após vídeo sobre fascismo na Ufam:
'Jogou mesa na minha direção', diz. 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2018/10/06/professor-relata-agressao-de-aluno-apos-
video-sobre-fascismo-na-ufam-jogou-mesa-na-minha-direcao.ghtml>. Acesso em: 12 abr. 2019.

IRINEU, Bruna Andrade. Homonacionalismo e cidadania LGBT em tempos de neoliberalismo:


dilemas e impasses às lutas por direitos sexuais no Brasil. Revista Em Pauta, v. 12, n. 34, 2014
LEITE, Vanessa. “Impróprio para menores”? Adolescentes e diversidade sexual e de gênero nas
políticas públicas brasileiras contemporâneas. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Instituto de
Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
LIMA, Beá; OLIVEIRA, Joana; BETIM, Felipe. Morte, ameaças e intimidação: o discurso de
Bolsonaro inflama radicais.2018. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/09/politica/1539112288_960840.html>. Acesso em: 11
ago. 2019.
LINHARES, Lorena. Travesti é espancada por dois homens após discussão no interior do
Piauí. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2018/09/27/travesti-e-
espancada-por-dois-homens-apos-discussao-no-interior-do-piaui.ghtml>. Acesso em: 10 abr. 2019.

LONGO, Ivan. 100 dias de retirada de direitos e violência contra a população LGBTI. 2019.
Disponível em: <https://revistaforum.com.br/lgbt/100-dias-de-retirada-de-direitos-e-violencia-
contra-a-populacao-lgbti/>. Acesso em: 14 abr. 2019.

LUNA, Naara. A criminalização da “ideologia de gênero”: uma análise do debate sobre diversidade
sexual na Câmara dos Deputados em 2015. Cadernos Pagu, v. 50, 2017.

MARINHO, Nilson; SANTOS, Gil; VIGNÉ, Júlia. Professora da Ufba é ameaçada de morte
por causa de pesquisa. 2017. Disponível em:
1341
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
<https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/professora-da-ufba-e-ameacada-de-morte-por-
causa-de-pesquisa/>. Acesso em: 13 abr. 2019.

MARQUES, Marília; CARVALHO, Letícia. Livros de direitos humanos são rasgados na


biblioteca da UnB. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-
federal/noticia/2018/10/04/livros-de-direitos-humanos-sao-rasgados-na-biblioteca-da-unb.ghtml>.
Acesso em: 17 abr. 2019.

MATOS, José Edgar de. Vídeo mostra palmeirenses entoando grito homofóbico que cita
Bolsonaro. 2018. Disponível em: <https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-
noticias/2018/10/04/palmeirenses-viralizam-na-internet-com-grito-homofobico-que-cita-
bolsonaro.htm>. Acesso em: 13 abr. 2018.

MENA, Fernando. Mais da metade dos LGBT diz ter sofrido violência desde as eleições. 2019.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/mais-da-metade-dos-lgbt-diz-
ter-sofrido-violencia-desde-as-eleicoes.shtml>. Acesso em: 16 abr. 2019.

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos
pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128.

MUNIZ, Tailane. 'Sou negra, fui um alvo escolhido', diz professora da Ufba ao relatar
ameaça. 2018. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/sou-negra-fui-um-
alvo-escolhido-diz-professora-da-ufba-ao-relatar-ameaca/>. Acesso em: 10 abr. 2019.

OLIVEIRA, Joana. Gays, negros e indígenas já sentem nas ruas o medo de um governo
Bolsonaro. 2018. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/politica/1539891924_366363.html>. Acesso em: 16 abr.
2019.

PAINS, Clarissa. Menino veste azul e menina veste rosa', diz Damares Alves em vídeo. 2019.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-
damares-alves-em-video-23343024>. Acesso em: 14 abr. 2019.

PAULA, Alexandre de. Professora da UnB registra boletim de ocorrência após ser ameaçada de
morte. 2018. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-
estudante/ensino_ensinosuperior/2018/07/04/ensino_ensinosuperior_interna,692907/debora-diniz-
professora-da-unb-recebe-ameacas-pela-internet.shtml>. Acesso em: 18 abr. 2019.

PINCEL, Paulo. Universitário é brutalmente espancado em Teresina. 2017. Disponível em:


<https://piauihoje.com/noticias/politica/universitario-e-brutalmente-espancado-por-seguidores-de-
bolsonaro-44738.html>. Acesso em: 18 abr. 2019.

PITASSE, Mariana. Estudante é atacada por eleitor de Bolsonaro no Rio de Janeiro. 2018.
Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/10/12/estudante-e-atacada-por-eleitor-
de-bolsonaro-no-rio-de-
1342
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
janeiro/index.html?fbclid=IwAR3dXk3cCzALeZ9XlQ64ZZ1s4nIyHjU9JOp7Li9EX6hZqtudyEFz
KXsuZHI>. Acesso em: 15 abr. 2019.

QUERINO, Rangel. Transexual morre após ser esfaqueada por apoiador de Bolsonaro em
Aracaju. 2018. Disponível em: <https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/2018/10/transexual-
morre-apos-ser-esfaqueada-por-apoiador-de-bolsonaro-em-aracaju>. Acesso em: 10 ago. 2019.
RUBIN, Gayle. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade.
Tradução de Felipe Bruno Martins Fernandes e revisão de Miriam Pillar Grossi. Do original RUBIN,
G. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality [1984]. In: ABELOVE,
Henry; BARALE, Michèle e HALPERIN, David. (eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova
York, Routledge, 1994.
SOUSA, Felipe. Cabeleireiro gay é assassinado por eleitor obcecado por Bolsonaro. 2018.
Http://pheeno.com.br/2018/10/cabeleireiro-gay-e-assassinado-por-eleitor-obcecado-por-bolsonaro/.
Disponível em: <http://pheeno.com.br/2018/10/cabeleireiro-gay-e-assassinado-por-eleitor-
obcecado-por-bolsonaro/>. Acesso em: 12 maio 2019.

ZANATTA, C. Apoiadores de Bolsonaro realizaram pelo menos 50 ataques em todo o


país. 2018. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/11/politica/1539282750_803269.html>. Acesso em: 11
ago. 2019.

1343
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
TRIZ, (RE)EXISTINDO POR MEIO DO RAP AO PRECONCEITO DE GÊNERO: UMA
ANÁLISE DA MUSICA ELEVAÇÃO MENTAL

Gleissiano Ruan de Freitas559


Eliane Rose Maio560

Resumo: No presente trabalho analisamos o rap como militância, em particular, o produzido por le Triz, ume artiste
transgênerie não binárie, isto é não se indentifica nem como mulher, nem como homem, e a obra musical que le despontou
como ume des artistes mais potentes no Rap de militância pela igualdade de gênero, chamado de Elevação Mental, dessa
forma utilizamos a metodologia comparativa, comparando elementos da música com autores que contribuem com seus
estudos e se referindo le Triz sempre com palavras neutras, desta forma temos por objetivo analisar como rap pode ser
um instrumento para o respeito e à igualdade sexual. Em suma concluímos que le Triz tem um papel na defesa da causa
LGBT+ e sua música demonstra indignação com a sociedade, heteronormativa ao mesmo tempo que serve de inspiração
para que mais jovens, em especial, es gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, entre outres, não desistam de lutar para
defender suas identidades de gênero.

Palavras-chave: Triz; Preconceito de Gênero; Rap; Elevação Mental.

INTRODUÇÃO
No presente artigo nos debruçamos para analisar como o rap vem sendo uma forma de levantar
a bandeira contra o preconceito de gênero, em especial a partir da música Elevação Mental (2017) de
autoria de le Triz, que de acordo com Rose de Melo Rocha e Cláudia Ferraz (2019), é ume rappeir
transgênere, não binárie, ou seja não se identifica nem com o gênero feminino, nem com o masculino,
o que nos leva a um ponto da construção do nosso trabalho, seguindo as orientações de Lau (2017)
referenciaremos le Triz com palavras “neutras” por uma questão de respeito visto que le Triz (2017)
afirma se considerar uma pessoa de gênero neutro, na música Elevação Mental.
Seguindo a linha de pensamento de Lau (2017), utiliza-se o gênero neutro para referenciar le
Triz, haja vista, a nossa escolha por palavras “neutras”, além de demonstrar respeito para com le
cantorie, também fará com que aquelies que se indentificam na neutralidade de gênero se sintam
respeitades e de certa forma acolhides pelo presente trabalho, nas palavras de Lau (2017, p. 2), “a
finalidade primordial da linguagem neutra é mostrar a desconstrução de gênero, o rompimento
do binarismo nas formas escrita e falada”, estamos de acordo com e autore, e vamos um pouco

559
Graduando do curso de História, pela Universidade Estadual de Maringá, campus sede, integrante do NUDISEX
(UEM) E-mail:ruangleissiano@gmail.com
560
Psicóloga, Doutora e Pós-Doutora em Educação Escolar. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação
(UEM), coordenadora do grupo (CNPq) Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual (NUDISEX) e
orientadora do presente artigo. E-mail:elianerosemaio@yahoo.com.br

1344
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
além de suas palavras ao levantar a hipótese de que essa linguagem não-binária ajuda no sentido de
que as pessoas que se veem de forma não-binária se sentem representadas pela linguagem neutra.
Dessa forma, trataremos Triz, ultilizando palavras neutras, expresso isso, torna-se necessário
uma análise, mesmo que de forma sucinta sobre a chegada do rap Militante no Brasil, e como décadas
depois le Triz canta e trabalha com esse tipo de Rap.
Desde a década de 90, de acordo com Loureiro (2017), o rap chegou no Brasil, não como uma
mera música, mas sim como uma música que tinha em sua letra um caráter político e que denunciava
principalmente o cotidiano des moradores da favela e as violências que sofriam, assim, o rap, com
suas letras, proporciona a luta por diversas causas, e as questões de sigla LGBT+ (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transexuais +) é uma delas, no entanto essa preocupação com as causas de
gênero surgiu de forma potente nos últimos 10 anos com rappers transgêneres, como por exemplo
Glória Groover561, le Triz, entre outres.
Mostramos alguns números que o videoclipe oficial da música de le Triz, Elevação Mental de
2017, conseguiu atingir na plataforma de vídeos YouTube562, são aproximadamente, 16 milhões de
visualizações, 599 mil “likes” e 14 mil “deslikes” com 24 mil comentários, tais números refletem o
sucesso da música, e levando em consideração D’Assunção Barros (2011) de que a crítica que nesse
caso são como as pessoas dos comentários refletem a aceitação ou rejeição de determinada obra
cinematográfica; o mesmo fenômeno ocorre em videoclipes que são publicados diariamente nas
plataformas digitais. Dessa maneira, afirmamos que a música foi aceita pelo público e causa até
mesmo o sentimento de representatividade, como é expressado em um comentário de destaque no
vídeo, nas seguintes palavras: “2020 e esse hino atemporal ainda não foi superado por mim. ARTE”.
Como dissertam Rocha, Rose de Melo e Ferraz, Cláudia (2019, p.9) “[Triz] despontou nas
redes sociais com o videoclipe Elevação Mental, de 2017”, e também segundo as autoras, le Triz não
se contenta em cantar apenas rap, sendo possível assim notar traços de MPB, entre outros gêneros
musicais em suas canções.

561
Cantora trans, que se enquadra mais no estilo musical da Música Popular Brasileira (MPB), e também do funk e
que Diferente de le Triz se vê no gênero Binário (como fica explícito em suas canções e em toda a sua
caracterização), e nos últimos anos vêm ganhando muito sucesso, o que é refletido em seus seguidores no Instagram
e também na quantidade de visualizações que possui no seu canal do YouTube
562
Dados apurados no dia 17/08/2020.
1345
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Objetivamos com este trabalho analisar como o rap Elevação Mental (2017), levanta a
bandeira contra os diversos preconceitos de gênero ao mesmo tempo que por sua repercussão,
principalmente pelo clip de elevação mental cria representatividade des que o ouvem, essencialmente
dês jovens perífericos não bináries que se sentem sufocasos pelo sistema patriarcal, para tal
dialogamos com es autores ao passo que fazemos o mesmo com os elementos do videoclipe.

ANÁLISE DO VIDEOCLIPE: COMO LE563 TRIZ DEFENDE AS CAUSAS LGBT+?


O videoclipe oficial de Elevação Mental tem pouco menos de seis minutos de duração (cinco
minutos e cinquenta e nove segundos), logo no começo, antes de começar a música propriamente
dita, le Triz (2017) tem os seguintes dizeres direcionados ao público “Família, primeiramente eu
queria deixar bem claro que eu não [estou] aqui “pra” representar o rap feminino não, certo! muito
menos o masculino. Eu to aqui pra representar o rap nacional. E eu peço que respeitem a minha
identidade de gênero, “demorô”?”, a partir dessa citação é possível é possível levantar algumas
hipóteses acerca das motivações de le Triz ao gravar esse rap.
De forma sucinta, Rose de Melo Rocha e Cláudia Ferraz (2019), citam que Triz prega uma
elevação da mente em relação ao corpo, concordamos com os dizeres das autoras e entendemos que
essa elevação se refere à “cura” do preconceito, em outras palavras, para le cantorie Triz, é a partir
da Elevação Mental que uma pessoa, nas palavras de le artiste abre a sua mente, libertando-se de
todo o preconceito enraizado, dessa forma sendo uma pessoa que não se importa e nem julga os
aspectos físicos, deixando de lado os seus preconceitos com a forma de alguém falar, se vestir, sua
altura, entre outras formas de preconceito baseados nos padrões de beleza descritos por Ana Paula
Oliveira Barros (2018), que são: seios fartos, cintura fina, pernas torneadas entre outras
características.
Destacado isso, torna-se oportuno, e até mesmo necessário para a nossa análise, entender qual
é a indentidade de gênero de le Triz, bem como, le artiste defende em seus versos da música Elevação
Mental.
Como salientam Rose de Melo Rocha e Cláudia Ferraz (2019), o gênero não-binário presente
na pessoa de Triz, algo que se mostra ao longo da música, porém esse gênero não-binário não impede

563
Continuo usando o gênero dito neutro, como proposto por Lau (2017), como forma de respeito a les pessoas que
se identificam dentro da neutralidade de gênero.
1346
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
le Triz de falar sobre outras identidades de gênero e até lhe motiva para tal e também para falar,
mesmo que de forma sucinta, sobre o preconceito racial, como fica expresso no seguinte verso da
música, “seja gay, seja trans, negro ou oriental, coração que pulsa no peito é de igual pra igual”, essa
é somente uma das passagens da música em que fica explícito que para le Triz, o rap não é uma mera
forma de entretenimento, mas sim uma forma de lutar contra o preconceito de gênero, “o rap existe
pra mostrar a verdade e dor, é um grito de dentro pra fora clamando pelo amor” (TRIZ, 2017). Tal
afirmação vai de encontro com o que disserta Loureiro (2017, p. 421),

embora atualmente seja perceptível o aumento de rappers e grupos de rap desvinculados do


movimento hip-hop e mais ligados ao universo comercial, para aqueles que observam as
pesquisas na área ou acompanham a produção musical de rappers de distintas regiões do país,
é possível sustentar que o rap de denúncia social e articulado ao hip-hop ainda se manifesta
em boa medida, característica forjada nos encontros, debates e apresentações que ocorreram
na Praça Roosevelt.

A praça Roosevelt que fica em São Paulo, foi de acordo com Loureiro (2017), onde as propostas
do rap eram discutidas e difundidas quando este estilo musical chegou ao Brasil na década de 80, e a
partir de comentários de diversos fãs de le Triz nas redes sociais, Rose de Melo Rocha e Cláudia
Ferraz (2019), sugerem que e cantore frequente a praça Roosevelt, o que nos sugere que até os dias
atuais este é um local de troca de conhecimento, festivais e por que não dizer, um local de militância
da margem da sociedade, pois o rap em sua maioria é cantada por jovens periférices (LOUREIRO,
2017), sendo assim um espaço para fazerem a sua “voz ser ouvida” e dessa forma militar pelos seus
ideais, no caso de le Triz, pelo respeito à sua identidade de gênero.
O videoclipe oficial de Elevação Mental (2017) está repleto de simbologia, em cada cena, e
para melhor analisá-lo, D’Assunção Barros (1998) sugere máxima atenção nos detalhes, pois estes
refletem não só a época de produção dos vídeos, mas também a intencionalidade dos elementos
presentes nos mesmos, em outras palavras o que está presente no videoclipe de Elevação Mental
(2017) , não é por acaso e pode conter mensagens, algumas explicitas na letra e outras implícitas,
porém ressaltamos que todos os elementos: letra da música, paisagens do vídeo, entre outros fatores
devem ser analisados para uma melhor compreensão de suas intencionalidades.

1347
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No videoclipe, Triz transita pelas ruas da periferia de São Paulo564, ao mesmo tempo em que a
câmera se movimenta e proporciona ângulos diferentes de le cantorie, dando ao videoclipe um caráter
dinâmico e também cotidiano, haja vista o verso de le Triz (2017) “[...] falando dos preconceitos
sofridos no dia-a-dia”, para além disso utiliza um ônibus para ir para o centro da cidade, na qual a
câmera continua a segui-lu, enquanto transita entre os carros.
Há uma cena em um ônibus, mais especificamente quando le Triz faz sinal para ele parar, e
antes de entrar, tem um diálogo que chama a atenção pelo conteúdo implícito nele, Elevação Mental
(2017) “Ae “motô” boa noite pro senhor, to indo lá pro centro, posso entrar por favor? Vai lá menor,
mas vê se não se acostuma te aviso quando chegar e cuidado por estas ruas”, neste momento le Triz
interpreta a voz dela e também a do motorista, a última parte do diálogo se destaca: “te aviso quando
chegar e cuidado por estas ruas”, demonstrando o medo que a população LGBT+ enfrenta, como
Ariana Kelly Leandra Silva da Silva (2013, p. 16), entende como preconceito de gênero,

a discriminação contra homossexuais, negros, indígenas, meninas e meninos tímidos ou


recatados, mulheres lésbicas, transexuais, bissexuais e outras formas de orientação sexual é
latente, manifestada através de piadas, brincadeiras de mau gosto, olhares, gestos e atitudes
preconceituosas […].

Estamos em concordância com a autora, no entanto acrescentamos a violência física, a essas


formas de discriminação e é possível dissertar que a violência física é a violência de qual le Triz tem
medo e expressa nesse verso, pois como afirma em sua rima, “Brasil, país que mata pessoas trans,
espero que as estatísticas não subam amanhã”, nesse verso fica de uma maneira rítmica e potente a
crítica de le Triz à LGBTfobia e, principalmente, as mortes que ela causa, a todo momento
percebemos que le Triz não exerce seu tap somente para defender a sua identidade de gênero, mas
defender todas as outras identidades, é uma luta de le cantore para mostrar a sua insatisfação com
uma sociedade que, Ariana Kelly Leandra Silva da Silva (2013), nos mostra, que é tão diversa porém
que desde a Educação Infantil existe uma deficiência des professores e da família em ensinar as
crianças a respeitarem as diferenças e escolhas de cada ume, sendo assim ainda podemos levantar a
hipótese de que quando essas crianças crescem, se tornam adultes e jovens preconceituoses, que
pensam e agem de uma forma de que só o que eles acreditam é o “certo”, e quando são confrontades

564
Deduzimos que é São Paulo capital pois le Triz é pauliste e algumas cenas nos remetem à lugares conhecidos da
capital Paulista.
1348
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
com as diferenças, nesse caso as sexuais, tendem a agir de maneira violenta, tanto física quanto verbal,
é o clássico processo que vários historiadores chamam, de opressores versus oprimides.
O posicionamento de le Triz, sobre essa relação de opressores e oprimides, se mostra no
seguinte verso de Elevação Mental (2017), “não se cale jamais diante do opressor, não deixe que o
sistema acabe com seu amor”, este “opressor” a qual Triz se refere seriam as pessoas que usam da
violência e do seu lugar de privilégio na sociedade, para tentar silenciá-lu, logo silenciar a luta contra
o preconceito de gênero e o “sistema” a que le Triz se refere, é o mesmo sistema, ao qual Michel
Foucault (1988) que no primeiro volume do seu clássico livro História da Sexualidade I, disserta que
a sexualidade é poder, sendo assim as instituições (escola, governos, religião, entre outras), tentaram
ao longo da História e por assim dizer ainda tentam controlar a sexualidade das pessoas, para terem
mais poder sobre a vida das pessoas, desse modo o verso de Elevação Mental, dialoga diretamente
com algumas propostas do livro de Foucault (1988).
Também os versos de le Triz compactuam com o que Loureiro (2017), chama de rap ativista,
que é o rap com posicionamento político, que reflete, principalmente, a violência policial sofrida na
periferia, apesar de e autore dissertar que nos últimos anos essa marca do rap brasileiro ter perdido
lugar para a comercialização do rap, Triz vai contra essa ‘tendência’, como demonstram as autoras
Rose de Melo Rocha e Cláudia Ferraz (2019, p. 4) , talvez pelo fato de,

[...] le Triz, através de suas canções e vídeos caseiros, insiste em questionar a estrutura
gramatical de gêneros que perpassa os artigos e adjetivos, limitados entre o masculino e o
feminino na colonizadora e colonizada língua portuguesa. Pode-se considerar Triz expressão
de uma juventude que renega a estrutura tradicional de gênero, buscando formas outras de
subjetivação.

Desse modo, localizamos le Triz como sujeito ativo em seu Rap com o objetivo principal de
lutar pelas causas LGBT+, e que possui representatividade sobre e jovem, principalmente periférico
que não se enquadra nos padrões ditos tradicionais, muito menos no “conservadorismo”, como cita
le Triz em dado momento de Elevação Mental (2017) “o seu conservadorismo já está ultrapassado”
e completa “abra a sua mente, seja elevado”, a partir desse trecho dá para levantar diversas hipóteses
acerca do que le Triz chama de “conservadorismo”, chegamos a uma conclusão de que a pessoa
“conservadora” a quem esse trecho está endereçado, assim como em outras partes da letra de le Triz,
é a pessoa que tenta “silenciar” a sua luta por um mundo ou melhor um país mais igualitário e
com empatia pelas diferenças, em particular a de gênero, dessa forma, citamos novamente
1349
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Loureiro (2017), afirmando que muitas vezes es rappers exercem o papel do que denominou de
“educadores da Periferia”, pois suas letras podem transmitir uma crítica, que pode ser lida como
ensinamento. No caso de le Triz, um ensinamento que prega o amor e o respeito, como forma de se
conviver em mais harmonia, em que as pessoas respeitem as diversidades.
Ainda analisando a letra de Elevação Mental (2017), em certo momento le Triz (2017) rima
“[...] mas a luz da minha luta sua bala não apaga”, essa fala vai de acordo com es autores Rose de
Melo Rocha e Cláudia Ferraz (2019), na qual afirmam que Triz é um “corpo falante”, entendemos, a
partir da leitura dessas autoras, que a expressão de “corpo falante” a que elas se referem está ligada
ao corpo e à voz de le Triz, que como já mencionamos anteriormente, é ume sujeito ativo em seu rap
e também, seguindo o raciocínio de Loureiro (2017), le Triz é uma “educadore des periferie”, algo
que a todo momento é explícito em Elevação Mental (2017), pontuando que o respeito aos diversos
gêneros é a “chave” para um mundo, em que utilizamos o exemplo do vídeoclipe, pessoas trans ou
pessoas que não ocupam um espaço de privilégio na sociedade (espaço esse que por seguirmos uma
História Eurocêntrica está reservado ao homem branco, cis565, heterossexual e de classe média, e que
esteja enquadrado no que Kimmel (1998) chama de masculinidade hegemônica, possam andar nas
ruas, frequentar boates, sem ter medo de sofrerem violência física, ou até mesmo morrer, somente
por causa da sua orientação sexual ou da sua identidade de gênero.
Estamos de acordo com a expressão “corpo falante”, empregada por Rose de Melo Rocha e
Cláudia Ferraz (2019) para descrever le Triz, haja visto que no videoclipe de Elevação Mental (2017),
enquanto transita da periferia para as ruas movimentadas de São Paulo/Capital, realiza uma série de
movimentos que expressa os seus sentimentos com a letra que está cantando e demonstra ligação ao
que Loureiro (2017) interpreta como “Rap Nacional”, sem deixar de lado sua posição ativista que
busca a igualdade de gênero.
Ressaltamos que le Triz não se encaixa e nem quer se encaixar, como percebemos a partir da
análise de Elevação Mental, ao que Margareth Rago (2020), entende como heteronormatividade, que
a grosso modo seriam os relacionamentos heterossexuais e como cada indivíduo na condição binária
(homens e mulheres) devem agir perante a sociedade. Já le Triz segue na contra-mão da

565
De acordo com Leda Antunes (2019, p. 13), é um” termo que abrange os indivíduos que se identificam, em
todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer em função do seu sexo biológico”, em outras palavras são
pessoas que nascem com os órgãos sexuais masculino (pênis) ou feminino (vulva), e se identificam como homem e
mulher.
1350
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
heteronormatividade, haja vista que é ume pessoe transgênere, que recusa a condição binária e em
seu rap prega igualdade de gênero e tece críticas ao sistema patriarcal, no qual o homem seria um “ser
superior” e assim devendo tomar as decisões.566
Assim, segundo Margareth Rago (2020), a heteronormatividade nega aqueles que transgridem
as suas barreiras impostas, ou seja, gays, lésbica, transexuais. Como explica e autore (2020, p. 13),

pois trata-se da imposição de interpretações morais ditas como as únicas válidas para toda a
humanidade, desde sempre, que escondem sua face ficcional, excludente, autoritária e,
sobretudo, classista. Acima de tudo, considerando as relações de saber-poder que as
constituem, essas narrativas visam ao enquadramento de cada um e de todos em identidades
sexuais naturalizadas.

Essas identidades sexuais naturalizadas, são as relações entre macho e fêmea, no caso de nós
humanos, homem e mulher, as pessoas distantes desses padrões tendem a ser oprimides e sofrem
preconceitos, ou como le Triz (2017) se posiciona em seus versos, está “falando dos preconceitos
sofridos no dia a dia, o rap existe pra mostrar a verdade e a dor é um grito de dentro pra fora clamando
pelo amor!”.
Esta divisão binária entre feminino e masculino vem desde a infância, com salienta Ariana
Kelly Leandra Silva (2013, p.14),

as anunciadas diferenças – em sentido literal – entre meninos e meninas na sociedade são


evidenciadas desde o nascimento: meninas usam roupas "rosas"; meninos, "azuis"... Durante
o desenvolvimento cognitivo, ambos são educados a brincar de "boneca" ou de "carrinho"; de
"panelinha" ou de "futebol", demarcando a “delimitação do espaço" de cada um […]

Desta forma tudo o que se escapa das ideias heteronormativas é visto como ‘anormal’, como
aquilo que não deve e nem pode, utilizando essa visão heteronormativa, ser praticado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas hipóteses e discussões realizadas ao longo do texto podemos afirmar que o rap
pode ser uma potente forma de militância em prol da igualdade de gênero e que le Triz é um dos

No ocidente cristão essa ideia teve facilidade para se difundir a partir do “pecado original”, que segundo
566

Margareth Goro (2020) foi a ocasião na qual Eva se deixou enganar pela “serpente” ao comer o “fruto proibido” e
convenceu Adão a fazer o mesmo, o que os levou a expulsão do Paraíso Cristão, dessa forma as mulheres seriam
seres irracionaionais.
1351
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
principais nomes, não somente do Rap Paulista dos últimos anos, como também do rap que milita,
que luta para que todes tenham voz, para que as pessoas não sejam julgadas pela sua aparência,
identidade de gênero, raça, pois o “coração que pulsa no peito é de igual pra igual” (TRIZ, 2017).
Notamos também, que le Triz se utiliza do rap para demonstrar a sua realidade enquanto
transgênere, não-binárie e que se sente oprimide pelo sistema, o patriarcado, que institucionalizou a
heteronormatividade e nega e agride aqueles que divergem do padrão heterossexual, e questionam
esse mesmo padrão, haja vista que para o patriarcado as pessoas que não seguem a
heteronormatividade são ‘anormais’, pelo fato de aqueles que utilizam o patriarcado dizem “ mas isso
vai contra a natureza”, “ Deus criou o homem e a mulher”, e assim por diante, tais falas ao nosso ver
servem para mascarar um preconceito deveras equivocado (como os demais preconceitos) e
demasiadamente malicioso em relação às pessoas que se identificam como parte do movimento
LGBT+, pois estes são “diferentes” e assim não são vistes como humanes que detêm direitos e
respeito. Dessa forma vemos le Triz como ume sujeite ative, que não luta somente para que a sua
identidade de gênero seja respeitada, mas também se respeite o gênero de outres.
A canção Elevação Mental (2017), é prova de que os seus objetivos de um Brasil seguro para
pessoas trans, provavelmente está longe de ser atingido, porém sempre existirão pessoas (re)existindo
cada ume com a forma que mais achar melhor, e também concluímos que por meio da avaliação do
público e dos números no videoclipe oficial que refletem um amplo alcance das ideias de le Triz,
assim, percebemos que a sua figura é representativa, e afirmamos que ultrapassa, não raramente, o
papel de ume rapper ativiste de gênero (é muito provável que isso ocorra involuntariamente) para se
fazer ume influenciadore, para que mais pessoas se levantem em prol do ideal de que todes somos
iguais, e que o preconceito é prejudicial, tanto para e agresser quanto para a vítima.

REFERÊNCIAS
ANA PAULA OLIVEIRA BARROS. A garota pin-up: objetificação e sexualização da mulher na
contemporaneidade. Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade. Rio Grande, RS.2018. Disponível
em: https://7seminario.furg.br/images/arquivo/335.pdf . Acessado em:13/07/2020.

ARIANA SILVA, Kelly Leandra Silva da. Diversidade sexual e de gênero: a construção do social.
Revista NUFEN [online]. v.5, n.1, p. 12-25, 2013. disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912013000100003
acessado em:15/08/2020
1352
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BARROS, José D.'Assunção. Cinema e história–considerações sobre os usos historiográficos das
fontes fílmicas. Comunicação & Sociedade, v. 32, n. 55, p. 175-202, 2011. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/2324/2504 acessado em:
28/11/2019.

Foucault, Michel. A hipótese repressiva. In: História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de
Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 19-49.

Foucault, Michel. Nós, vitorianos. In: História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro,
Edições Graal, 1988. p. 9-18.

HÉLITON DIEGO LAU. O uso da linguagem neutra como visibilidade e inclusão para pessoas trans
não-binárias na língua portuguesa: a voz “del@s” ou “delxs”? não! a voz “delus”!. In: Simpósio
internacional em educação sexual: saberes/trans/versais currículos identitários e pluralidades
de gênero, 2017, maringá, PR. Anais (on-line), Maringá, 2017. disponivel em:
https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://www.sies.uem.br/trabalhos/2017/
3112.pdf&ved=2ahUKEwiiyNK4tLnrAhWkmeAKHaDjBJsQFjAAegQIARAB&usg=AOvVaw00J
Rys3RZ7b5GWUNp3-ah5 acessado em: 03/08/2020.

KIMMEL, Michael. A produção simultanea de masculinidades hegemonicas e subalternas.


Horizontes Antropológicos – corpo doença e saúde. Porto Alegre. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da UFRGS, n. 9, pp.103-117, 1998. Disponível
em:http://www.scielo.br/pdf/ha/v4n9/0104-7183-ha-4-9-0103.pdf. Acessado em: 28/11/2019.

LEDA ANTUNES. O que é cis, trans, não-binário e outras definições de gênero. HuffPost Brasil,
18/11/2019 Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/identidade-
genero_br_5c5b02a0e4b087104759c51a acessado em: 31/08/2020.

LOUREIRO, Bráulio. O ativismo de rappers e o “processo intelectual de massas”: uma leitura


Gramsciana do rap no Brasil. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v.17, n.2, p.419-447, 2017.
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8645849
acessado em: 03/08/2020.

MARGARETH RAGO. Ficções da Heteronormatividade. In: SOUZA, Humberto da Cunha Alves


de; JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo(Orgs). Caminhos da pesquisa em diversidade sexual
e de gênero : olhares in(ter)disciplinares. Curitiba, PR: IBDSEX , p.13-24, 2020. disponível em:
https://www.ibdsex.org.br/collection/caminhos-da-pesquisa-em-diversidade-sexual-e-de-genero-
olhares-interdisciplinares. Acessado em:24/08/2020.

ROSE ROCHA, de Melo; CLÁUDIA FERRAZ. CIBORGUE DE DREADLOCKS: o corpo falante


Triz Rutzats. In: XXVIII Encontro Anual da Compós, PUC(RS), Porto Alegre, 2018. disponível

1353
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
em:https://www.researchgate.net/publication/338434676_CIBORGUE_DE_DREADLOCKS_o_co
rpo_falante_Triz_Rutzats_1_CIBORGUE_WITH_DREADLOCKS_the_speaking_body_Triz_Rutz
ats acessado em:03/08/2020.

TRIZ. Elevação mental(TRIZ)-Clipe Oficial. 2017.(5min.e 59 seg.). Disponível em:


https://youtu.be/npGrq2lFmls acessado em:26/08/2020.

1354
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A CONTRIBUIÇÃO DA COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA PARA UMA EDUCAÇÃO
PARA A PAZ E DIREITOS HUMANOS

Simone Barros de Oliveira567


Monique Soares Vieira568
Maria Fernanda Avila Coffi569

Resumo: Este trabalho reflete a necessidade de uma educação para a paz em direção à garantia dos direitos humanos a
partir do referêncial prático da Comunicação não Violenta. Trabalha-se a perspectiva de uma nova cultura denominada
cultura de paz sob o antagonismo entre paz e violência tendo por bases autores como Galtung (2008) Jares (2007)
Guimarães (2005) e Diskin (2008), importantes pesquisadores dos estudos de paz na perspectiva de não violência rumo à
pacificação social. É resultado de uma pesquisa de caráter qualitativo, à luz da teoria crítica, produzido a partir de pesquisa
documental e bibliográfica com material já produzido. O presente artigo propõe rever os conceitos de Paz e Educação.
Aponta direcionamentos para uma educação cuja base das relações são valores humanos com base no exercício da
Comunicação Não Violenta.

Palavras-chave: Educação para a Paz; Cultura de Paz; Comunicação Não Violenta; Cultura de Paz.

INTRODUÇÃO
A violência constitui-se no contexto da sociedade do séc. XXI um dos maiores desafios a ser
enfrentado, sobretudo em tempos de intensa liberdade de expressão. Liberdade essa que em
determinadas situações manifesta-se de uma forma violenta e violadora do direito da livre expressão,
oportunizando a prórpia reprodução da violência. Comunicar-se de maneira eficaz é algo
desafiador em meio a uma sociedade condicionada a naturalizar a violência. Diante do exposto,
é preciso encontrar dinamicas e métodos para prevenção e solução pacífica dos conflitos, de
forma autentica sem evitar o conflito que pelas vias do díalogo, de uma comunicação saudável,
respeitosa, comprometida com o outro, torna-se saudável nas relações humanas.
Nessa perspectiva, o presente trabalho elucida a banalização da violencia existente na cultura
tardicional, trazendo como proposta alternativa um método comunicacional desenvolvideo pelo
psicólogo Marshall Rosenberg, a Comunicação Não Violenta. Sendo esta, uma abordagem iminente

567
Professora Associada da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre, Doutora e Pòs-doutora em Serviço
Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, Conciliadora, Mediadora e Facilitadora
Judicial, líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos Humanos e Fronteira. E-mail:
simoneoliveira@unipampa.edu.br
568
Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre e Doutora em Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, Vice-líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos
Humanos e Fronteira. E-mail: moniquevieira@unipampa.edu.br
569
Graduanda do curso de Serviço Social pela da Universidade Federal do Pampa /UNIPAMPA (campus São Borja-
RS). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira. E-mail:
mariacoffi.aluno@unipampa.edu.br
1355
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
para auxiliar na mudança gradual da cultura tradicional para a cultura de paz. Tem-se a necessidade
da real implementação dos direitos humanos para potencializar uma possível educação para a paz, de
forma que a partir dos resultados da revisão bibliografica conclui-se que a paz positiva só é efetiva
na medida em que os direitos humanos são efetivados.

A VIOLÊNCIA E CULTURA DE PAZ: DESAFIOS HISTÓRICOS


A Violência presente no contexto da socialização humana dificulta cada vez mais a abertura para
novas formas de sociabilidade que não sejam pela normalidade do sistema classista racista e
meritocrático. Galtung (2006) na sua teoria de triangulação da violência, refere que a violência mais
cruel é a violência cultural que banaliza e dissemina em ações cotidianas a violência direta e
estrutural. A cultura tradicional que nos rege pelos processos de\ educação formal e não formal, não
nos conduz para processos inclusivos, cooperativos, muitos menos coletivos. Galtung analisa a paz
sob duas perspectivas: paz negativa cuja paz é compreendida apenas pela ausência de guerra. E paz
positiva, cuja paz é entendida a partir do fim de todas as formas de violência, incluindo os conflitos
bélicos.
É sempre oportuno referir que vivemos sob égide da disputa entre classes sociais, gênero e
raça, que nos diferencia entre humanos que somos e não nos torna iguais nas nossas diferenças. Nesse
contexto, Jares (2007, p. 57), afirma que a paz é uma ordem social antagônica a algumas relações
sociais violentas, injustas, e que forçosamente deve ser introduzida na estrutura da educação mundial.
Se quisermos uma Cultura de Paz como produto da educação é necessário analisar as estruturas
educacionais e ao fazê-lo, estimular atitudes de transformação.

Nesta perspectiva de outra ordem societária pautada por uma educação cooperativa e não
competitiva, tem-se mundo à fora pesquisadores diversos, de áreas diversas pesquisado e difundido
conhecimentos que nos levam a entender e desejar uma outra cultura denominada de cultura de paz
que tem na educação o grande meio para se a alcançar. Na América Latina, o grande marco dessa
árdua caminhada foi o Fórum Internacional sobre a Cultura de Paz em São Salvador, El Salvador
(1984) que traçou objetivos para a construção de uma Cultura de Paz como: Assegurar que os
conflitos inerentes ao relacionamento humano sejam resolvidos de forma não-violenta, incluindo
justiça social, liberdade, equidade, solidariedade, tolerância e respeito como valores

1356
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
imprescindíveis à dignidade humana. Tem-se nesta perspectiva, a paz e os direitos humanos como
indivisíveis que devem ser respeitados e garantidos, a saber: os direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais entre outros, para o fim das desigualdades e ampliação da justiça social. Dessa
forma, a implementação de uma Cultura de Paz requer uma mobilização universal de todos os meios
de comunicação e educação, formais e informais. Portanto, para se chegar a uma cultura de Paz requer
aprendizado e uso de novas técnicas para o gerenciamento e resolução pacífica de conflitos. As
pessoas devem aprender como encarar os conflitos sem recorrer à violência ou dominação e dentro
de um quadro de respeito mútuo e diálogo permanente. (DISKIN,2008). Na conjuntura atual de
sociedade, há um esgotamento desse modelo tradicional de relações humanas, deseja-se, almeja-se,
luta-se por novas formas de convivência, seja no âmbito pessoal, como profissional e social. Noleto
(2010 p. 11-2) defende que

“A cultura de paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não violenta


dos conflitos. É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura que respeita
todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a liberdade de opinião e que se empenha
em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não
militares para a paz e para a segurança, como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação
ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da
negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis” (NOLETO,
2010, p.11-12)

Diante do exposto, afirmamos a necessidade de que todas as pessoas sejam educadas nos
valores básicos da Cultura de Paz. Este deve ser um esforço que inclui o conjunto da sociedade.
No entanto, para que toda a sociedade se envolva no processo de construção da Cultura de
Paz, segundo Diskin (2008), é fundamental se voltar para áreas prioritárias de atuação como:
Educação; Economia Sustentável com Desenvolvimento Social; Compromisso com os Direitos
Humanos; Equidade entre os Gêneros; Participação Democrática; Comunicação Participativa com
livre fluxo de informações e Segurança, sobretudo das populações vulneráveis que historicamente
enfrenta a violência das mais diversas e perversas formas, inclusive por parte do aparato do estado.
Não se avança sem um processo sério de educação para a cidadania e a liberdade. O caminho
é pela educação para a paz. A cultura da educação para a paz está voltada para valores como respeito
aos direitos individuais e coletivos, tolerância, solidariedade, diálogo, desenvolvimento e justiça
social (ABRAMOVAY, 2001, p. 19). Nesse processo, a sociedade no âmbito geral dialoga na
perspectiva da superação de preconceitos e discriminações sociais, raciais, familiares,

1357
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
econômicas etc, desenvolvendo potencialidades numa relação de reciprocidade, que leve ao encontro
de respostas para uma vida mais digna.

Sabe-se que transformar a realidade social, em que as instituições educacionais estão inseridas,
extrapola os muros e a competência das instituições, pois essa realidade é produzida por fenômenos
sociais muito amplos e a instituição educativa é reflexo da sociedade em que vivemos, com seus
problemas e suas belezas (SILVA, 2004). Para tanto, Guimarães (2005) apresenta alternativas práticas
em educação para a paz. Podemos começar a criar referenciais não-violentos e fortalecer conexões;
formar consensos para a paz fortalecer pessoas para serem ativistas de não-violência; abolir
preconceitos e estereótipos; instrumentalizar a resolução não-violenta de conflitos; diminuir nosso
potencial de agressão; criar aversão e rejeitar toda e qualquer forma de violência.

Alguns valores e princípios precisam ser inseridos no processo educacional. De acordo com
Brandão (2005), é fundamental que a educação seja voltada para desenvolvimento humano e não
desenvolvimento econômico; para a permanente aventura do saber; um saber como exercício crítico
e consciente da pessoa educanda; educação como instrumento de criação e consolidação de culturas
políticas de construção de valores; uma educação emancipatória que possibilite a abertura de novas e
fecundas integrações de conhecimento não apenas no campo da ciência, mas também das vivências,
e por fim, a formação de pessoas destinadas a se engajarem em frentes de luta social em nome da
justiça, da solidariedade, da liberdade e da inclusão. Todos esses desafios voltados para o mundo da
vida pelo processo educativo, é possível pelo exercício prático de uma comunicação não violenta.

A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA


A Comunicação Não Violenta (CNV) é uma abordagem que tem sua gênese no final da década
de 1960, sistematizada pelo psicólogo Marshall Roosenberg, o qual experenciou a forte segregação
racial que pairava na época. Diante dessas situações de violencia, Marshall percebeu que algumas
pessoas conseguiam se manter pacientes diante de situações conflituosas e outras passavam a ser
dominadas pela violencia. Nesse cenário, Rosenberg identifica que a violencia é fruto da cultura e
que o natural é sermos não violentos e que a violência se manifesta por um sistema de linguagem.
Com base na sua experiência de segregação racial, buscou a aprimoração desse método,
que tem por objetivo priorizar a conexão em todas as relações interpessoais. Conforme o autor
1358
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] A CNV se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a
capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas. Ela não tem nada de
novo: tudo que foi integrado à CNV já era conhecido havia séculos. O objetivo é nos lembrar
do que já sabemos - de como nós, humanos, deveríamos nos relacionar uns com os outros -
e nos ajudar a viver de modo que se manifeste concretamente esse conhecimento.
(ROSENBERG 2006 p.21).

Contrapondo a violência institucionalizada em nossa sociedade, a Comunicação Não-


Violenta parte do princípio de que o agir compassivamente pode basear as relações sociais, na
perspectiva de aprimorar a conexão entre os indivíduos através de uma comunicação clara e eficaz.
A não violência requer um cuidado intensificado em relação a outrem, o que não se tem como costume
na cultura tradicional – a violenta-. Conforme Rosenberg explicita

“requer que se concentre plenamente a atenção na mensagem da outra pessoa. Damos ao


outro o tempo e espaço de que precisam para se expressarem completamente e sentirem-se
compreendidos” (ROSENBERG, 2006, p. 134).

Para caracterizar a CNV, Marshall utiliza da figura da girafa para representar esse método de
comunicação, considerando que a girafa é o animal possui o maior coração entre os mamíferos. o
psicólogo declara a CNV de “linguagem girafa”, por ser uma linguagem autêntica e harmoniosa.
Jéferson Cappellari afirma que

Quando estamos falando a linguagem da Girafa, comunicamos através de uma linguagem


harmoniosa, autentica, em que as palavras se ajustam aos sentimentos e observações daquilo
que está acontecendo dentro de nós; falamos também das nossas profundas necessidades
humanas (CAPPELLARI, 2012, P.65)

Para comunicar-se de maneira autêntica, é preciso estar conectado com os sentimentos e com
as necessidades não atendidas, tanto dos outros quanto às próprias. Diante disso, têm-se alguns
elementos essenciais na CNV: a observação, os sentimentos, as necessidades e os pedidos.
O primeiro deles é a observação, a qual deve se desprender dos julgamentos e rótulos para que
a nossa linguagem não contribua para a violência e também, para que seja possível distinguir a
observação de uma avaliação baseada em algum juízo de valor. Rosenberg (2006, p.53) cita uma frase
do filósofo J. Krishnamurti “Observar sem avaliar é a forma mais elevada de inteligência humana”.
Sabe-se que em uma observação livre de julgamentos, a comunicação se torna funcional e
energética. Marshall reforça que
1359
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
[...] O primeiro componente da CNV acarreta necessariamente separar observação de
avaliação. Precisamos observar claramente, sem acrescentar nenhuma avaliação, o que
vemos, ouvimos ou tocamos que afeta nossa sensação de bem-estar. (ROSENBERG 2006,
p. 50).

O segundo elemento da CNV é a identificação de sentimentos, e identificar os sentimentos


gerados na observação e ser capaz de externa-los compassivamente é um desafio. Para estabelecer
conexão com os seus sentimentos é preciso ter consciência de nossos atos e saber diferenciar os
sentimentos, das emoções geradas por estes. Para Rosenberg, “desenvolver um vocabulário de
sentimentos que nos permita nomear ou identificar de forma clara e específica nossas emoções nos
conecta mais facilmente uns com os outros” (ROSENBERG, 2006, p. 76).
Dessa forma, ao expressar sentimentos verdadeiros e alcançar uma exposição genuína, o
processo de troca se torna mais humanizado. De maneira que aflora um vinculo emocional com
quem nos comunicamos. Como afirma Rosenberg, “quanto mais escutarmos os outros, mais eles
nos escutarão” (ROSENBERG, 2006, p. 209). O processo de identificar nossos sentimentos, nos
leva a reconhecer nossas necessidades, ou seja, discernir o motivo que gerou tal sentimento para
então reestabelecer o bem estar. Além disso, é necessário aprimorar nossa consciência em
relação aos nossos atos, e ter em mente como nossas atitudes e as atitudes das outras pessoas
podem despertar sentimentos positivos e negativos em nós. O que nos desafia a compreender
que cada indivíduo define como vai receber as palavras do outro, de maneira particular. Dessa
forma, ao reconhecer que os sentimentos são fruto de nossas necessidades históricas não
atendidas.
O terceiro elemento é a expressão das necessidades não atendidas. Expressar as reais
necessidades, oportuniza possíveis mudanças nas relações interpessoais, facilita a convivência e
transforma as relações conflitivas em relações mais saudáveis. Cappellari reitera que

Como a maioria de nós está inserida numa cultura de obediência, de dever e controle,
não aprendemos a fazer pedidos. Por isso, nossas solicitações frequentemente são
escutadas pelas pessoas como sendo exigências, embora muitas vezes e ssa não seja a
intenção. (CAPPELLARI, 2012, p.102)

Nessa perspectiva, essa cultura de obediência, de dever e controle trazida pelo autor,
muitas vezes prejudica o processo de comunicação, e o pedido que o quarto elemento da

1360
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
CNV, se torna uma exigência baseada em punição/recompensa, o que afeta o ideal da
cooperação. Contudo, um pedido eficaz e claro pode evitar uma situação conflituosa entre as
partes envolvidas. Segundo Marshall

[...] quarto e último componente desse processo aborda a questão do que gostaríamos de pedir
aos outros para enriquecer nossa vida. Quando nossas necessidades não estão sendo
atendidas, depois de expressarmos o que estamos observando, sentindo e precisando,
fazemos então um pedido específico: pedimos que sejam feitas ações que possam satisfazer
nossas necessidades. (ROSENBERG, 2006, p. 103).

Norteando a nossa comunicação por esses princípios se tem a tendência de se conectar de


forma mais intensa consigo e com os demais. Valorizando a escuta sensível e qualificada, e
gerando relações sinceras e concretas baseadas na empatia e cooperação.
Dessa forma, ao adotarmos uma educação com os princípios da Comunicação Não
Violenta nos abrimos para observar e perceber formas de violência escondidas por traz da
linguagem habitual e nos leva a adotar novas formas de comunicação para obter maior qualidade
nas relações, aprender a gerenciar conflitos cotidianos e gerar paz nas relações sociais. Tem-se
na CNV um método pertinente e fundamental nas mediações e resoluções de conflitos , é uma
estratégia para a mudança gradual da cultura tradicional para a cultura de paz.

EDUCAÇÃO PARA A PAZ E DIREITOS HUMANOS


A paz, sem direitos humanos, não é paz positiva que almeja todo e qualquer tipo de violência,
a paz se materializa a partir da concretização dos direitos humanos. Sem dúvida, a busca pelos direitos
humanos, previstos pela Declaração Universal dos Direitos humanos, constitui-se na grande luta de
nosso tempo. Não se pode pensar nem viver numa Cultura de Paz sem a garantia prática dos direitos
humanos, porque a história humana e a história da luta pelos direitos humanos, historicamente se
confundem. Guimarães (2005, p. 96) argumenta que “as esperanças, as angústias, as lutas, as buscas
de cada homem e cada mulher, seu cotidiano e seus grandes momentos encontram-se espelhados no
preâmbulo e nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos humanos”. Dessa forma, os direitos
humanos valem para todos os seres humanos, por isso tem caráter universal e refletem a luta e a
conquista de toda a humanidade, são também inalienáveis, não tem valor de troca, nem tão pouco se
vende, fazem parte da dignidade do ser humano.

1361
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
De acordo com Guimarães (2005, p. 256),

os direitos humanos constituem-se a pedra de toque da educação para a paz. A ligação


visceral com esses grupos possibilita à educação para a paz a profundidade de uma dignidade
própria e inalienável. Também contribui para dar educação para os direitos humanos, parte
integrante e inalienável da educação para a paz, uma dimensão mais visível desses mesmos
direitos. Sobretudo, abre-se possibilidade de entrar no mesmo processo de mudança social
que originou as noções de direitos humanos.

Depois do surgimento da Declaração Universal dos Diretos Humanos, pode-se dizer que a
sociedade contemporânea entrou num grande consenso: o de superar barbáries. O movimento em prol
dos direitos humanos está em toda parte, seja no âmbito da luta contra a pena de morte, tortura,
qualquer tipo de discriminação, contra a fome e tantas outras formas de violação dos direitos
humanos. Os grupos de direitos humanos hoje são parte integrante do sistema de funcionamento da
sociedade.

Sendo a paz compreensível a partir da garantia da vida, porque é a garantia da vida que está
expressa na declaração universal, ela pode ser assegurada, à medida em que se assegura os direitos
humanos. Para tanto, Jares (2007) observa que é necessário que a educação esteja voltada à
perspectiva dos direitos humanos para que haja uma verdadeira cidadania democrática. Para tanto, é
necessário levar em conta algumas implicações didáticas como:

– Compreender a história de luta pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais,


fomentando sua prática e seus valores;
- Conhecer a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobretudo os artigos relacionados
às condições de vida das pessoas;
- Identificar violações dos direitos humanos, indagar suas causas e possíveis alternativas, ao
mesmo tempo que se incentivam atitudes de repúdio às violações;
- Conhecer o trabalho dos organismos que lutam em defesa dos direitos humanos e estimular
compromissos em sua defesa;
- Relacionar os direitos humanos às noções de justiça, igualdade, liberdade, paz, dignidade e
democracia (JARES, 2007, p. 49).

O grande desafio é passar da teoria à prática nas vivências do cotidiano a parti dessas
dimensões que são amplas, mas não impossível. Embora se viva numa sociedade que se diz
democrática, o que se percebe é que o individualismo exacerbado e os processos de desigualdade
imperam. Portanto, justiça social, igualdade, liberdade, dignidade e todas as outras dimensões da
sociedade democrática são ainda incipientes na vida da grande maioria das populações. Muitos
não conhecem sequer os seus direitos, não sabem se quer a existência de uma declaração que
1362
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
assegura o fim de processos de desigualdades e explorações. E por não conhecerem ou por
considerarem impossível, intragável essa luta contra a os danos trazidos pelo capitalismo, o sujeito
se priva de buscar o que lhe é seu direito garantido legalmente nas sociedades democráticas por suas
legislações, como é o caso da legislação brasileira, cuja Constituição Cidadã em seu artigo primeiro
proclama: “ todo cidadão é igual perante a lei”. De fato, perante a lei, mas não no dia a dia de suas
vivências, no cotidiano de suas existências, a grande maioria é assolapada pelos processos intensos
de desigualdades sociais.

O grande educador Paulo Freire por ocasião do recebimento do prêmio da UNESCO de


educação para Paz já proclamava ao mundo:

A paz é fundamental, indispensável, mas paz implica lutar por ela. A paz se cria, se constrói
na e pela superação das realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção
incessante da justiça social. por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação
para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopisar
suas vítimas. (FREIRE, apud, GUIMARÃES, 2005, p. 74).

A teoria de paz de Galtung (1996) apresenta a paz relacionada à justiça social e aos direitos
humanos, fica evidenciado no discurso do educador Paulo Freire. Formar cidadãos é fundamental. A
democracia está estritamente relacionada aos direitos humanos, além das regras estabelecidas pelos
documentos universais e nacionais é preciso haver uma sociedade justa e concretizadora dos direitos
que são de todos e não apenas de uma pequena parcela que comanda e usufrui os frutos do trabalho
humano explorado. É necessário que não se perca ou se conquiste o princípio da indignação, porque
muitas vezes é a indignação que nos motiva no empenho da defesa e promoção dos direitos humanos
e da justiça social. Os direitos, sendo de todo e qualquer ser humano, constituem a tarefa de todo e
qualquer ser humano lutar por eles e buscar efetivá-los, dando materialidade à cidadania na
democracia.

Couto (2004), ao fazer um resgate histórico da conquista de direitos em escala mundial,


apresenta-os a partir da denominação de direitos de gerações. Na primeira geração, estão os direitos
civis e políticos, na segunda geração estão os direitos sociais e na terceira geração, encontram-se o
direito ao desenvolvimento da paz, do meio ambiente e autodeterminação dos povos. Como diz
Iamamoto (2001) é na história social da humanidade que se encontra a fonte dos problemas, ao
mesmo tempo em que se encontram as chaves para as soluções. Dessa forma, Couto fundamenta:

1363
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
compreender o movimento que constrói os direitos, sejam eles, civis, políticos ou sociais,
torna-se fundamental para pensá-lo como estratégia de enfrentamento das desigualdades
sociais, abdicando da ideia simplista de que seus fundamentos poderiam estar determinados
apenas pela lógica da manutenção da sociedade capitalista ou aprioristicamente, baseados na
concepção de natureza humana e deslocado do movimento social. Compreender a criação, a
negação, a expansão e a retração dos direitos são constituintes de um processo, onde
participam os mais diferentes sujeitos sociais(COUTO, 2004, p. 38).

Os direitos humanos perpassam os direitos nos níveis político, social econômico e cultural.
Salienta-se que a construção dos direitos no Brasil se dá por meio de lutas e conquista da população
que histórica e processualmente foram adquiridos ao longo do tempo. Para maior visibilidade,
apresentam-se em síntese, os direitos de primeira, segunda e terceira geração. Os direitos de primeira
geração são considerados direitos naturais, os direitos de segunda geração são adquiridos por
intermédio do Estado e os direitos de terceira geração são considerados de direitos da sociedade.

Os direitos de terceira geração, nos quais está incluído a paz positiva, requer a superação da
negação dos direitos em direção ao alcance da dignidade humana, pois a paz positiva reconhece e
desafia a construção da justiça entre todas as relações sociais em todas as culturas, portanto, ela é um
bem e um direito universal. Rayo (2004) argumenta que sendo a paz um direito humano de caráter
universal ela constitui um processo que

implica uma forma de relação dos seres humanos entre si e através das distintas formas de
organização social que exclui a violência em todas as suas manifestações. De outro lado,
inicia como o reconhecimento do direito dos demais a uma vida digna, prossegue através do
diálogo, e por fim, necessita da cooperação. Para que se estabeleça um diálogo genuíno, é
necessário que se aceite a necessidade de dialogar, que exista a vontade de compreensão
mútua e que as concessões sejam equilibradas (RAYO, 2004, p. 31).

Na concepção de Milani (2003), a construção de uma Cultura de Paz exige a necessidade de


transformações consideradas

indispensáveis para que a paz seja o princípio governante de todas as relações humanas e
sociais que vão desde a dimensão de valores, atitudes e estilos de vida, até a estrutura
econômica e jurídica e a participação cidadã (MILANI, 2003, p. 31),

A Cultura de Paz, argumentada por Boulding (1981), é uma cultura que promove a
diversidade pacífica, o reconhecimento das diferenças, incluindo modos de vida, padrões de

1364
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
crença, valores e comportamentos, bem como os correspondentes arranjos institucionais que
promovem o cuidado mútuo e bem-estar, e o compartilhamento igualitário dos recursos da terra entre
seus membros. A partir dessas concepções, percebe-se que para que a sociedade viva uma Cultura de
Paz é preciso o reconhecimento e a integração das diferentes culturas (CORREA, 2003, p. 97). A
construção e o fortalecimento da Cultura de Paz exigem ações tais como fortalecimento da identidade
pessoal e cultural, vivência, reflexão e respeito aos valores éticos universais com ampla mobilização
e promoção do bem-estar coletivo, pelas vias da cooperação. Cultura de Paz se baseia em não
violência e capacidade de resolver o conflito de modo pacífico. É preciso estabelecer um Código de
Ética planetário, dando origem a novos padrões de conduta de indivíduos, grupos e nações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao realizar a análise da realidade, é necessário reconhecer as contradições do mundo em que
se vive, e enfrentar as desigualdades promovidas pelos padrões de violência cada vez mais crescentes
em nossa sociedade, pois a construção de uma Cultura de Paz é indissociável da justiça e da
solidariedade. Um elemento não pode estar separado dos demais, porque a paz é um produto que se
constrói com estes diferentes elementos.

Considerando que a violência é algo cultural da sociedade tradicional, é necessário no âmbito


da educação, trabalhar no sentido de uma cidadania que reconheça as diferenças mencionadas, bem
como a singularidade dos seres humanos. Essa forma de educação produz um novo olhar, que provoca
crises nos contextos educacionais, principalmente em contextos onde se trabalha ainda voltado para
uma educação bancária, com transferência de conhecimento e não de aprendizado. É urgente uma
educação que vá além da reprodução do conhecimento, uma vez que os ambientes educacionais se
criam para alguns e não para todos de forma inclusiva. A inclusão social a que nos referimos significa
desenvolver o processo que assegure que todos tenham acesso a todas as oportunidades oferecidas
pela educação.
É nesta direção que se quer caminhar, em direção a uma educação que seja para o
desenvolvimento social e não para o crescimento econômico. O desenvolvimento faz parte do
conceito de paz positiva, que é a paz como produto de uma nova cultura. O que se percebe, no
entanto, é ainda uma grande distância entre direitos humanos, desenvolvimento social e

1365
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
crescimento econômico. Deve ser tarefa de cada ser humano construir uma sociedade de paz, pois ela
precisa e deve ser o princípio e o dinamismo constante da humanidade na busca da afirmação de si
própria, pelas vias práticas da Comunicação Não Violenta.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY Mírian et al. Escolas de paz. Brasília: UNESCO Gov. do Estado do Rio de Janeiro/
Sec. de Estado de Educação Univ. do Rio de Janeiro, 2001.

BOULDING, Elise. La violencia y sus causas. Paris França: Editorial UNESCO,1981.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A canção das sete cores: educando para a paz. São Paulo:
Contexto, 2005.

CAPPELLARI, Jéfferson. ABC do Girafês: Aprendendo a ser um comunicador emocional eficaz.


Curitiba: Multideia, 2012.

CORREA, Rosâgela Azevedo. Cultura, educação para, sobre e na paz. In: MILANI, Feizi M;
JESUS, Rita de Cássia Dias Pereira de. Org. Estratégias, mapas e bússolas. Salvador: INPAZ, 2003.

COUTO, Berenice R. O direito social e a assistência na sociedade brasileira: uma equação


possível? São Paulo: Cortez, 2004.

DISKIN, Lia. NOLETO, Marlova Jovchelo. Cultura de Paz: da reflexão à ação; balanço da Década
Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo.
– Brasília: UNESCO; São Paulo: Associação Palas Athena, 2010. 256 p

DISKIN, Lia. Cultura de paz e seus elementos essenciais. Palestra proferida na Universidade de
Caxias do Sul/ UCS. Campus Bento Gonçalves. Bento Gonçalves: 03/07/2008.

GALTUNG, J. Peace by peacefull means. Prio. 1996.

GUIMARÃES, Marcelo R. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias do Sul/RS: Educs,
2005.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. Cortez, São Paulo. 2001.

JARES, Xesús R. Educar para a paz em tempos difíceis. São Paulo: Palas Athena, 2007.

MILANI, Feizi M. Cultura de paz X violência: papel e desafios da escola. In; Cultura de paz:
Estratégias, mapas e bússolas. Salvador: INPAZ, 2003.
1366
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. [S.
l.], 1948. Disponível em: www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib _inter_universal.htm. Acesso
em: 20 ago. 2020.

RAYO Tuvilla José. Educação em direitos humanos: ruma a uma perspectivas global. Porto
Alegre: Artmed, 2004.

ROSENBERG, M. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos


pessoais e profissionais. São Paulo: Editora Agora, 2006.

SILVA, Nelson Pedro. Ética, indisciplina e violência nas escolas. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

1367
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUESTÃO SOCIAL E O FAZER CONCRETO DO SERVIÇO SOCIAL NA EDUCAÇÃO
BÁSICA

Lavínia Moraes Streck 570


Simone Barros de Oliveira571
Monique Soares Vieira 572
Maria Fernanda Avila Coffi 573

Resumo: O presente trabalho objetiva refletir a necessidade de inserção do Serviço Social no contexto da política pública
de educação básica. Elucida a importância no ambiente escolar a partir do enfrentamento das expressões da questão social,
contribuirá para o fortalecimento na atuação dos profissionais assistentes sociais nesse espaço sócio ocupacional. Tem no
método dialético critico a forma mais eficaz de compreender a realidade concreta do sujeito, assim como o trabalho do
assistente social nesse espaço de atuação profissional. Expõe reflexões construídas a partir de revisões bibliográficas e
documentais, já produzidos nesta área. Através da análise de documentos, reitera-se a importância da inserção do Serviço
Social nas escolas de educação básica, em conjunto com os demais profissionais da educação, atuando de forma
interdisciplinar e intersetorial. o Serviço Social através do desenvolvimento de suas competências profissionais vem
contribuir, para que os usuários da politica pública da educação amplie seu aprendizado com maior qualidade, vindo a
contribuir na formação de indivíduos mais conscientes. Os resultados apontam que a inserção destee profissionais pode
proporcionar mudanças significativas para os usuários dessa política, ao apresentar construção de estratégias e
instrumentos profissionais que podem ser utilizados no enfrentamento das expressões da questão social, na articulação
em rede a partir do tripé família, escola e comunidade.

Palavras-chave: Educação; Política Pública; Serviço Social; Questão Social; Intervenção Profissional

INTRODUÇÃO

“O momento que vivemos é um momento pleno de desafios, mais


do que nunca é preciso ter coragem, é preciso ter esperanças
para enfrentar o presente.
É preciso resistir e sonhar. É necessário alimentar os sonhos e
concretiza-los dia -a dia nos horizontes de novos tempos mais
humanos, mais justos, mais solidários.” (Marilda Villela
Iamamoto, 2009)

570
Graduada em Serviço Social pela da Universidade Federal do Pampa/ UNIPAMPA (campus São Borja- RS).
Integrante do Grupo de Pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira; E-mail: vinia.streck@gmail.com
571
Professora Associada da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre, Doutora e Pòs-doutora em
Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, Conciliadora, Mediadora
e Facilitadora Judicial, líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos Humanos e Fronteira. E-mail:
simoneoliveira@unipampa.edu.br
572
Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre e Doutora em Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, Vice-líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos
Humanos e Fronteira. E-mail: moniquevieira@unipampa.edu.br
573
Graduanda do curso de Serviço Social pela da Universidade Federal do Pampa /UNIPAMPA (campus São Borja-
RS). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira. E-mail:
mariacoffi.aluno@unipampa.edu.br

1368
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O presente trabalho objetiva realizar a reflexão e debate à cerca do trabalho do Serviço Social,
o exercício profissional do/a assistente social e o desenvolvimento das suas atribuições na escola
pública. As pontuações escritas, visam contribuir com a categoria profissional, em suas lutas
históricas frente a necessidade da inserção na educação básica e fortalecer essa pauta importantíssima
para o contexto atual da educação brasileira, pública e de qualidade. Desenvolve-se a partir da teria
crítica, com base em pesquisa bibliográfica de produção científica e documentos já publicados,
construiu-se uma revisão sistemática de caráter exploratório. Foi desenvolvido a partir de uma
pesquisa qualitativa exploratoria que segundo Minayo (2010), tem como particularidade as ações que
não podem ou não devem ser quantificadas, ela trabalha com o universo dos significados, dos
motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. A pesquisa qualitativa possibilita
estudar a realidade concreta do trabalho do/a assistente social no espaço educacional, assim como
refletir sobre as demandas que possam vir a se manifestar na escola, a partir da vida cotidiana desses
sujeitos que fazem parte dessa realidade, proporcionando ao pesquisador a experiência social
relacionado a pesquisa.
Entender e refletir como o trabalho do/a assistente social no ambiente escolar pode contribuir
na melhoria da qualidade de vida dos usuários que utilizam a política pública de educação. Sendo que
a pesquisa exploratória, é propicia a identificar as expressões da questão social574 nos diferentes
espaços que se manifesta, mas nessa pesquisa contribui para identificar as diferentes expressões da
questão social que se apresentam no ambiente escolar, objeto esse que é central na intervenção do
Serviço Social. Entretanto, quando se reflete sobre a questão social que se materializa no ambiente
escolar, questões como evasão escolar, violência, baixo rendimento escolar, surgem como pontos
principais, entretanto outras dificuldades apresentam-se nesse espaço, como problemas sociais na
estrutura familiar, que refletem através do desemprego, pobreza, fome, entre outros problemas sociais
que surgem a partir da exploração capital/trabalho.
Como suporte teórico, utilizamos autores/as que tratam da temática da inserção do Serviço
Social na educação, que possuem aproximação teórica crítica, com abordagem marxista como

574
A questão social para o Serviço Social, “no contexto do paradigma da correlação de forças o objeto profissional
do serviço social se define como empoderamento, fortalecimento do sujeito , individual ou coletivo, na sua relação
de cidadania (civil, política, social ,incluindo políticas sociais), de identificação ( contra as opressões e
discriminações), e de autonomia ( sobrevivência, vida social, condições de trabalho e vida...)” (FALEIROS, 1997,
p. 37)
1369
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Iamamoto (2009, 2013); Amaro (1997, 2012), Guerra (2013); Silveira (2017), Martins ( 2015), dentre
outros/as. Com base no capital teórico desses autores, compreende-se como a relação
capital/trabalho, tem impacto na educação, que é utilizada como forma de contribuir para o
crescimento do capital, e não para a emancipação dos indivíduos.
QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICA PÚBLICA
A questão social é a expressão das contradições particulares do capitalismo, que ao constituir
a força de trabalho humana como única fonte de valor, e ao mesmo tempo, reduzi-lo em decorrência
da elevação da disposição inerente do capital, consequentemente, implica no seu domínio que tem
como resultado a precarização e flexibilização das relações de trabalho, o que inclui impacto sobre
os direitos sociais, aumento e surgimento de novas expressões.

“[...] a “questão social” encontra-se no caráter coletivo da produção e da apropriação privada


do trabalho, de seus frutos e das condições necessárias à sua realização. É, portanto,
indissociável da emergência do trabalhador livre, que depende da venda de sua força de
trabalho para a satisfação de suas necessidades vitais. (IAMAMOTO, 2013, p. 330).

Discutir sobre a questão social e sua relação com ambiente escolar é compreender que as
expressões estarão para além desse espaço, pois decorrem do núcleo familiar, na comunidade, onde
os usuários da política pública de educação estão inseridos, e a partir dessa realidade quais estratégias
podem ser realizadas pelos/as profissionais assistentes sociais através das Políticas Públicas, para o
enfrentamento da questão social, sendo que o mesmo é objeto de trabalho do/a assistente social, que
está preparado para atuar no enfrentamento, nas reconfigurações, ampliações e novas formas de
exploração criadas pelo capital.
A Política Pública tem como objetivo solucionar demandas causadas na sociedade, com foco
em atender aqueles de que dela necessitam. Quando se tratar de Políticas Públicas deve ser
compreendido:

‘[...] responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um


processo de tomada de decisões que envolvem órgãos públicos e diferentes organismos e
agentes da sociedade relacionados à política implementada. Neste sentido, políticas públicas
não podem ser reduzidas a políticas estatais’ (HOFLING, 2001, p. 31).

1370
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A política pública de educação básica deve ser uma política constantemente ampliada e
consolidada, pois se tem na educação brasileira o caráter da universalidade. A educação enquanto
uma política pública tem sido a responsável pelo acesso à educação gratuita e de qualidade para
muitas crianças, jovens e adultos, sendo uma realidade garantida na constituição federal de 1988. No
que se refere a educação básica, Pierro (2005, p. 3) traz que, “a prioridade conferida à escolarização
pode ser atribuída ao fato da Constituição Federal de 1988, assegura o ensino fundamental público e
gratuito em qualquer idade, inscrevendo a educação de jovens e adultos no rol dos direitos da
cidadania”, esse marco histórico, garantiu a oportunidade ao acesso à educação de muitos indivíduos,
tendo como significado um salto no que se refere a ampliação dos direitos sociais e políticas públicas,
que busquem atender aos interesses dos indivíduos e contribuindo na melhoria da qualidade de vida.
A educação enquanto um direito social, deve ser garantida pelo Estado, e estar em processo
gradual de desenvolvimento não podendo ser reduzida a planos de governos, considerando ser uma
conquista garantida em lei, e deve ser pensada em um processo contínuo de ampliação e renovação,
chegando a quem não tem o acesso a essa política pública, e pensar em estratégias de melhorias para
o fortalecimento do direito à educação, de forma eficaz.

CONTRICUIÇÕES DO TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL PARA A EDUCAÇÃO


BÁSICA
O/a Assistente Social, é o profissional que tem a questão social como objeto de trabalho, atua
em complexas manifestações, tem competência para coordenar, propor, executar programas, projetos
e ações na realidade social e institucional. A partir das transformações sociais, o Serviço Social tem
sido solicitado pelos profissionais e demandas que acompanham esses espaços educacionais, para
intervir frente as expressões da questão social. E na contribuição para a formação pautada pela
educação cidadã. A pratica do trabalho do/a assistente social é caracterizado pela rotina institucional
e pela espontaneidade necessária para atender as múltiplas exigências estabelecidas no âmbito da
reprodução social. Em sua pratica o foco principal da profissão é a intervenção, e consequentemente
o profissional, ‘possui conhecimento para discernir as problemáticas vividas pelo indivíduo e sua
família, isto é identificar as suas carências. (FORTI; GUERRA, 2013, p. 31). Dessa forma, o/a
profissional assistente social poderá contribuir nesse espaço através de um trabalho em rede575,

575
Na tentativa de superar a fragmentação dos saberes e das políticas e para atender os cidadãos de forma integrada
em suas necessidades, as redes são uma alternativa de articular os atores envolvidos na busca de um objetivo comum.
1371
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
atendendo as demandas apresentadas pelas famílias, que ocorrem no seu dia-a-dia, e através da
execução das políticas sociais.
Frente a realidade em que a escola está exposta, com altos níveis de pobreza e miséria, que
faz parte da realidade brasileira, torna-se o sistema educacional um espaço de concretização dos
problemas sociais (CFESS, 2001). Além das demandas sociais que acompanham os usuários da
política de educação, a educação enfrenta problemas institucionais como, a insuficiência no
atendimento as demandas apresentadas pelos alunos, a melhoria da qualidade educacional.

O baixo rendimento, desinteresse pelo aprendizado e evasão escolar dentre outros, tem sido
citado como as grandes dificuldades de avanço destes alunos. As mais diferentes literaturas
têm demostrado que estes indicadores não se constituem em fatores exclusivamente relativos
à escola, e sim fatores que estão aliados a outras formas de expressão dos problemas
familiares. (CFESS, 2001, p. 11).

O enfrentamento dessas demandas sociais torna-se um desafio para o sistema de educação,


pois é função do Estado garantir o acesso à educação permanente do aluno na escola. Considerando
que a escola se constitui como um espaço de desenvolvimento social, e consequentemente um espaço
que apresenta demandas sociais na maioria das vezes não atendidas pela ausência de um profissional
habilitado para tal. Nota-se que é ainda muito pequeno o número de assistentes sociais frente a essas
demandas presentes nesse espaço. Decorrente dessa ausência, reforça-se a necessidade de
profissionais especializados nos espaços educacionais e preparados para intervir com qualidade, e
contribuírem em atividades que ampliem a qualidade da educação. O documento do CFESS aponta
que:

O Serviço Social no âmbito educacional tem a possibilidade de contribuir com a realização


de diagnósticos sociais, indicando possíveis alternativas a problemática social vivida por
muitas crianças e adolescentes, o que refletirá na melhoria das suas condições de
enfrentamento da vida escolar. [...]A contribuição do Serviço Social consiste em identificar
os fatores sociais, culturais e econômicos que determinam os processos que mais afligem o
campo educacional no atual contexto como, tais como: evasão escolar, o baixo rendimento
escolar, atitudes e comportamentos agressivos de riscos. (CFESS, 2001, p. 12).

Por se tratar de um assunto de grande importância no contexto das políticas públicas e governamentais e também
para este trabalho, trazemos a rede como uma maneira de potencializar as ações dos atores envolvidos para o alcance
de determinado objetivo. (BORGES; MARINHO; SILVA, 2013, p. 10).
1372
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Percebe-se que para desenvolver essas questões apontadas, é necessário um trabalho em
conjunto, os/as profissionais assistentes sociais não trabalham individualmente, realiza-se um
trabalho na maioria das vezes em equipe ou em rede, pois, busca-se uma ação efetiva. Para essa
intervenção conjunta é necessária uma equipe de diferentes profissionais como, psicólogos,
educadores, assistentes sociais, psicopedagogos, orientadores, entre outros.
O/a profissional assistente social pode e deve contribuir de forma interdisciplinar, em conjunto
com os outros profissionais que compõem esse espaço, na garantia de uma educação que busca a
formação de indivíduos conscientes e críticos frente a realidade social que se manifesta, onde quem
detém os meios de produção são os privilegiados, e assim é necessário constantemente fortalecer as
lutas da classe trabalhadora, no combate a exploração do trabalho, o fortalecimento da garantia de
direitos sociais, e na busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

Silveira refere a necessidade de pensar a pesquisa:

[...] como um importante e necessário instrumento de intervenção profissional, contribuindo


para o aprofundamento das discussões em torno de um objeto de estudo e servindo para a
qualificação da ação profissional, seja, enquanto pesquisador, no âmbito da construção do
conhecimento científico, subsidiando a transformação do real, quanto no âmbito da atuação
profissional nos diferentes espaços socio-ocupacionais que se inserem os profissionais.
(SILVEIRA, 2017, p. 14).

O Serviço Social por natureza é uma profissão que se constrói sobre os princípios da
interdisciplinaridade576, surgindo no ambiente escolar com a possibilidade de interagir com os demais
profissionais, para ampliar os conjuntos de esforços, frente a essa realidade que está constantemente
desafiando, (AMARO,1997), a profissão vem para contribuir nas demandas para além da sala de aula,
e assim colaborar no melhor rendimento da escola. Através do projeto de Lei número 3.688/2000,
que visa inserir assistentes sociais e psicólogos na escola, surge a esperança de ampliar e fortalecer a
equipe que já compõem o espaço escolar, para atender as demandas que fogem da sala de aula, e
assim reforçar os vínculos formados nesse espaço, entre escola, alunos, profissionais, educadores e
comunidade, ou seja, que as famílias e os usuários da política de educação, possam contar com esse
espaço para seu fortalecimento.

576
“[...] se atinge a interdisciplinaridade por sucessivas aproximações, buscando a superação de estágios limitados
de significado, intensidade e abrangência acerca da realidade que se quer conhecer e transformar” (AMARO, 1997,
p. 36).
1373
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Através do trabalho desenvolvido pelo profissional assistente social na Política de educação,
tem se um espaço socio ocupacional estratégico para a construção de projetos voltados para a classe
trabalhadora, pensando na forma de realizar estratégias frente as expressões da questão social que se
manifestam no espaço escolar. Os/as assistentes sociais enquanto educadores sociais atuam na
orientação social da população:

Dessa forma, é importante considerar que a função pedagógica e educativa do assistente


social ocorre através dos vínculos estabelecidos pela profissão com as classes sociais e se
materializa, especialmente, por meio dos efeitos do trabalho profissional na maneira de
pensar e de agir dos sujeitos envolvidos nos processos da prática. O Serviço Social
desenvolve estratégias objetivadas pelas políticas sociais públicas e privadas, especialmente
a assistência social, atendendo, sim, às necessidades de subsistência física do trabalhador,
mas também nos processos de luta e de resistência das classes subalternar em contraposição
à ordem do capital. (PIANA, 2009, p. 7).

A educação social que o Serviço Social desenvolve nas escolas em conjunto como demais
profissionais que compõe os recursos humanos da educação básica, com as famílias e a comunidade,
em processo de intervenção, estão relacionadas a fenômenos que se manifestam no dia a dia como
violência, uso de drogas, bullying, trabalho infantil, conflitos familiares. O que demanda por parte
para além apenas dos assistentes sociais, a intersetorialidade, um trabalho desenvolvido com os
profissionais que compõem esse espaço, ocasionando em atividades para além do curricular, mas uma
atenção para o social. É nesta perspectiva que:

[...] os assistentes sociais estão sendo convidados a colaborar de forma consistente com o
processo de elaboração e execução da política educacional, que reflete as expressões da
questão social que por sua vez, é matéria prima de trabalho desse profissional que tem, com
base na sua formação teórico-metodológica, técnico-operativa e seu posicionamento ético-
político, possibilidade de decifrar claramente a realidade dos processos sociais em sua
totalidade .(MENDES; AGUIAR; FONSECA, 2013, p. 9).

Os/as assistentes sociais são profissionais preparados para atuar frente as expressões da
questão social, com o olhar voltado para a totalidade o que proporciona o saber necessário para
realizar a articulação entre as políticas sociais, e assim fazer a intervenção profissional mais adequado
com base na realidade de vida do sujeito.
Para o Serviço Social, “[...] o recurso a categoria de mediação, favoreceu uma apreensão
mais próxima do movimento da totalidade social, do objeto de intervenção profissional”
1374
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(PONTES, 2009, p. 167), ou seja, os assistentes sociais atuam na mediação, a partir da sua visão da
totalidade da realidade de seus usuários, para intervir, na escola atua no tripé da educação, realizando
a mediação entre a escola, família e comunidade, na articulação entre eles. É importante referir que a
intervenção qualificada se dá por sucessivas aproximações. Essa aproximação com as famílias, a
escola e a comunidade, que compõem o tripé da educação, e ao estar inserido naquela comunidade, e
conhecendo o espaço, através dessa aproximação, é possível realizar atividades que integrem e
aproximem essas famílias desse espaço.
Na articulação da família, comunidade e a escola, os assistentes sociais tem o desafio de
desvendar as relações que constituem essas famílias e o seu território, são esses desafios impostos
diariamente que muitas vezes acabam por interferir no fracasso da vida escolar dos usuários da
política pública de educação. Na busca pelo enfrentamento das expressões da questão social na escola,
a atuação deve ser em rede, em conjunto com instituições de defesa, promoção e garantia de direitos
da criança e do adolescente: Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública. Instituições
de promoção: Comunidade, Unidades Básica de Saúde (UBS), Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS). Instituições de Controle: Fórum, Conselhos de direitos, etc.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei número 9.394/96), no que se refere ao
processo de gestão da escola pública, nos artigos 14 e 15 dispõe que:

[...] os sistemas de ensino definirão as normas de gestão democrática do ensino público na


educação básica de acordo com suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
- Participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
- Participação da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes
[...] os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares progressivos graus de autonomia
pedagógica e administrativa e de gestão financeira... (BRASIL, 1996).

Esses aspectos também constam no Estatuto da Criança e do adolescente no capítulo IV, que
trata do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, refere no artigo 53, parágrafo único, que
“é direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da
definição das propostas educacionais” (ECA, 1990). Nessa perspectiva os assistentes sociais podem
contribuir para a qualificação desses espaços, intervindo em conjunto com a gestão da escola na
aproximação, escola, família e comunidade.

1375
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Na educação básica os assistentes sociais na busca pela permanência dos usuários da política
pública de educação, podem atuar no acompanhamento dos alunos beneficiários de programas
sociais, cuja a frequência escolar é monitorado pela educação. Sendo destacado então a importância
das ações dos/as assistentes sociais, no desenvolvimento de um trabalho educativo com os indivíduos
que se fazem presente nesta política em foco, como educadores, comunidades, famílias, estudantes
entre outros, sobre o trabalho desenvolvido pelos assistentes sociais, Martinelli (1998, p. 141) refere
que “somos educadores no sentido pleno do termo, trabalhamos com a consciência, com a linguagem
que ‘é relação social’ [...]”. O trabalho desenvolvido pelos assistentes sociais, possibilita que a
educação publica brasileira, seja repensada reforçando a concepção de direito social, após essa
retomada de consciência, o rompimento com o projeto de educação burguês.

O Assistente Social na educação poderá atuar com todos os membros da comunidade escolar
(...). Esta atividade propicia a politização em torno de diversos temas que perpassam o
ambiente escolar e social. Assim, o Assistente Social, coerente com o projeto ético-político
profissional, assumirá em seu trabalho socioeducativo um caráter emancipatório,
fortalecendo as lutas das classes subalternas e não um caráter de enquadramento
disciplinador, próprio da perspectiva conservadora, apesar de ainda estar presente na
profissão (MARTINS, 2015, p. 46).

A atuação dos/as profissionais assistentes sociais nesse espaço, significa um olhar


especializado para a realidade concreta dos usuários dessa política, por se tratar de profissionais já
preparados na academia para realizar um trabalho que vise a mudança, e a melhoria da qualidade de
vida de seus usuários, através da garantia de seus direitos, e para além de apenas solucionador de
demandas, reconhecendo que os problemas sociais não são apenas solucionados por um profissional,
mas um trabalho em equipe, para que haja através de diálogos ,reflexões e estratégias, a concepção
do trabalho que o assistente social desenvolve.
No espaço escolar o compromisso do Serviço Social é com a educação do cidadão, “a
educação para a cidadania deve ser uma educação contextualizada, multidimensional e complexa, por
essas condições, revelada como uma ação potencializadora e emancipatória do indivíduo” (MORIN,
2003 apud AMARO, 2012, p. 104), através do trabalho desenvolvido pelo Serviço Social
interdisciplinar, e pelos desafios e exigências que a profissão enfrente com as mudanças societárias,
a profissão busca aproximar-se das lutas que buscam defender a cidadania e os direitos humanos
e sociais, seja na família, nos espaços escolares, na comunidade, e na sociedade.

1376
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Para a concretização da educação que vise a cidadania do indivíduo, existe quatro pilares
pautados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a ciência e a cultura (UNESCO),
importantes para esse processo sendo elas: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver
e aprender a ser.
• O aprender a conhecer, é pautado na possibilidade de aproximar-se dos diferentes
assuntos, com intuito de “beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao
longo da vida” (UNESCO, 2010, p. 31), o acesso a informações, e a possibilidade de ter
esse espaço e se inserir nele, são aspectos importantíssimos para todo processo da vida, o
conhecimento deve ser colocado em prática constantemente.
• Aprender a fazer, para além do fazer para a inserção no trabalho, é aprender “a enfrentar
as numerosas situações e a trabalhar em equipe” (UNESCO, 2010, p. 31), que seja um
aspecto espontâneo levando em conta as questões do contexto local e nacional, e que o
ensino venha a contribuir nesse aspecto.
• Aprender a conviver, elucidar a importância da convivência humana, no sentido da paz,
“preparar-se para gerenciar conflitos, no respeito pelos valores” (UNESCO, 2010, p. 31),
compreendendo que cada ser humano tem sua individualidade que deve ser respeitado.
• Aprender a ser, parte do viés da construção pessoal do indivíduo, nos aspectos de
“personalidade, e estar em condição de agir com uma capacidade cada vez maior de
autonomia discernimento e responsabilidade pessoal” (UNESCO, 2010, p. 31).
Partindo desses pressupostos apontados para uma educação que prepare indivíduos para sua
construção pessoal, e para o futuro, é que o Serviço Social vem para reforçar nesse espaço, Nesse
momento de luta é importante traçar o que está sendo realizado pelos profissionais que já estão
inseridos ou desenvolvem trabalhos com intuito de concretizar os pilares apontados acima, e buscar
aprimora-lo, além de entender como ocorre o trabalho em conjunto com os outros profissionais do
espaço educacional, e como esse trabalho pode vir a contribui para a construção cidadania dos
indivíduos na educação.
Por fim, a grande pergunta norteadora: Como o Serviço Social pode contribuir na garantia de
direitos dos Usuários da política pública de Educação? Entende-se que é no cotidiano da inserção
profissional que esta categoria profissional, no conjunto das outras profissões, na articulação
intersetorial, no trabalho minucioso e comprometido com os usuários diretos e indiretos da
1377
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
politica pública de educação básica, que as desigualdades vão sendo enfrentadas. Passa pelo
enfrentamento das diversas formas de violência visíveis e invisíveis, pela ampliação da justiça social
por menor que seja. Não se pode deixar de compreender que:

A educação, quando apreendida no plano das determinações e relações sociais e, portanto,


ela mesma constituída e constituinte destas relações, apresenta-se historicamente como um
campo de disputa hegemônica. Esta disputa dá-se na perspectiva de articular as concepções,
a organização dos processos e conteúdos educativos na escola e, mais amplamente, nas
diferentes esferas da vida social, aos interesses de classe (FRIGOTTO, 2010, p. 27).

É no campo dessas disputas que o Serviço Social se insere voltado para intervenções que
amplie a qualidade de vida das pessoas que passa por maior acesso a bens e serviços, e que tem na
educação cidadã a grande esperança de futuro promissor de inúmeras crianças e adolescentes, pois a
educação, tem um papel estratégico papel estratégico no fortalecimento da cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Serviço Social sendo uma profissão interventiva regulamentada pela lei 8.662/93, tendo
como base o projeto ético-político com caráter coletivo e hegemônico, que representa toda trajetória
de luta dessa categoria frente a períodos rigorosos, em conjunto com a classe trabalhadora na qual a
profissão está inserida. É uma profissão que tem na questão social seu objeto profissional, que se
desafia cotidianamente a enfrentar múltiplas expressões de desigualdades, e é apta a atuar em todas
as áreas da vida humana. E pelo Serviço Social ser uma profissão que trabalha com políticas
públicas/sociais e garantia de direitos, contribui e possibilita que através da articulação entre as
políticas públicas, a permanência desses usuários no espaço escolar, através da articulação do
trabalho em rede.

As acumulações e explorações do capitalismo refletem na vida das famílias, principalmente


em situações relacionadas ao mundo do trabalho, categoria altamente carente de reflexão no contexto
da esfera produtiva tendo grande impacto quando se trata no agravamento das expressões da questão
social, manifestas também no conjunto da escola, mais principalmente refletida através do
agravamento da evasão escolar, ocorrida por situações causadas pelo capital, demandas sociais essas
que ocasionam no afastamento da escola.

1378
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Essas demandas podem ser desveladas e aprofundadas através de um trabalho interventivo,
intersetorial, com uma equipe fortalecida dentro desse espaço que atendesse demandas institucionais,
e que busca pelo bom desenvolvimento de seus indivíduos. A pesquisa na área da educação, mas com
foco no Serviço Social e sua inserção é uma necessidade, visto que considera-se a Política de
Educação como um importante e estratégico espaço de atuação profissional do Serviço Social com
possibilidades diversas de construção de processos sociais de ruptura e resistência que potencializem
a garantia de direitos dos usuários desta política pública. Tem-se na inserção do Serviço Social na
educação, a grande esperança de uma educação voltada para a cidadania e garantia de direitos.

REFERÊNCIAS

AMARO Sarita Teresinha Alves. Serviço Social na Escola: O encontro da realidade com a educação.
Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1997.
AMARO Sarita. Serviço Social na educação: base para o trabalho profissional. Florianópolis:
UFSC, 2012.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,


DF: Presidência da República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 set. 2019.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 25 set. 2019.
BRASIL. Lei nº 8.662, de 7 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de Assistente Social e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1993. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8662.htm. Acesso em: 25 set. 2019.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 12 ago. 2019.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Serviço Social na Educação. Grupo de


Estudos sobre Serviço Social na Educação. Brasília: [s. n.], 2001. Disponível em:
http://cfess.org.br/arquivos/SS_na_Educacao(2001).pdf. Acesso em: 24 set. 2019.

FORTI, Valéria; GUERRA, Yolanda. Serviço Social: Temas, textos e contextos. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lumem Juris, 2013.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 6. ed. São Paulo: Cortez
Editora, 2010.
1379
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HOFLING, Eloisa de Mattos. Estado e Políticas (públicas) sociais. In: Cadernos Cedes, ano XXI,
n. 55, p. 30-41, nov./2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v21n55/5539.pdf. Acesso
em: 15 out. 2019.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Brasil das desigualdades: “questão social”, trabalho e relações
sociais. Revista SER social. Brasília, v. 15, n. 33, p. 261-384, jul./dez. 2013.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Os espaços sócios-ocupacionais do assistente social. [S. l.: s. n.],
2009. p. 1-40. Disponível em: https://www.unifesp.br/campus /san7/images/servico-
social/Texto_introdutorio_Maril da_Iamamoto.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.

MARTINELLI, Maria Lúcia. O Serviço Social na transição para o próximo milênio: desafios e
perspectivas. Revista Serviço Social e Sociedade. [S. l.], v. 29, n. 57, p. 133-148, jul. 1998.

MARTINS, Eliana Bolorino Canteiro. O rebatimento das expressões da questão social no cotidiano
escolar e a contribuição do serviço social. In: DAVID, CM., et al., orgs. Desafios contemporâneos
da educação [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. Disponível
em: http://books.scielo .org/id/zt9xy/pdf/david-9788579836220-12.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.

MENDES, Deiseleny Lopes; AGUIAR, Marcilia Silva; FONSECA, Vera Lúcia Mergener. A
inserção do Serviço Social na Educação: possibilidades e desafios. In: III SIMPÓSIO MINEIRO
DE ASSISTENTES SOCIAIS. Anais [...]. Belo Horizonte, 7 a 9 de junho de 2013. Disponível em:
https://www.cress-mg.org.br /arquivos
/simposio/A%20INSER%C3%87%C3%83O%20DO%20SERVI%C3%87O%20SOCIAL%20%20
NA%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20POSSIBILIDADES%20E%20DESAFIOS.pdf. Acesso
em: 10 out. 2019.

MINAYO, M. C. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal a saúde. IN:
NJAINE, Kathie (org). Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2010.

PIANA, Maria Cristina. Serviço Social e Educação: olhares que se entrecruzam. In: Serviço Social
& Realidade. Franca, v; 18, n. 2, p. 182-206, 2009.

PIERRO, Maria Clara. Nota sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas da
educação de jovens e adultos no Brasil. In: Educ. Soc.. Campinas, v. 26, n. 92, p. 1115-1139, out.
2005. Disponível em: http://www.scielo.br/ pdf/%0D/es/v26n92/v26n92a18.pdf. Acesso em: 12 mai
2019.
PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social: um estudo preliminar sobre a categoria
teórica e sua apropriação pelo Serviço Social. 6. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2009.

SILVEIRA, Silvia Regina. A produção do conhecimento do Serviço Social sobre a inserção


profissional na politica pública de educação no Brasil: Desafios e perspectiva no âmbito do projeto
profissional. Tese (Doutorado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Porto Alegre. 2017.

1380
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O LUGAR DA MULHER AINDA NÃO É ONDE ELA QUER: OS REFLEXOS DOS
MARCADORES DE GÊNERO NA EXCLUSÃO DA MULHER DO OCIDENTE NO
ÂMBITO PÚBLICO

Vivian Feitosa Alves Teixeira577


Luísa Vanessa Carneiro da Costa578
Roberta Rayza Silva de Mendonça579

Resumo: A presente pesquisa tem a pretensão de compreender como os marcadores de gênero operam nas relações de poder, pensando
o (não) lugar da mulher nas esferas públicas, percebendo como os esteriótipos pautados na desigualdade de gênero que continualmente
limita o poder das mulheres dentro das relações de gênero agora atuam de forma a impedir a sua entrada nas esferas públicas sociais.
Dessa maneira, o principal aporte teórico se consolidou com discussões de Beauvoir (1986), Bourdieu (1999), Saffioti (1992), Foucault
(1979), Dias (2011), Sampaio (2011). Objetivamos, ainda, apontar o (não) lugar da mulher nas esferas públicas. Em relação
a metodologia, o método utilizado foi o método dedutivo. O tipo de pesquisa foi a pesquisa bibliográfica, descritiva e
exploratória. Quanto à abordagem, foi a abordagem qualitativa e a tecnica de análise de dados foi a análise de conteúdo.
Assim, estudando e abordando os reflexos do patriarcado dentro das relações de poder para negar as esferas públicas a
entrada do feminino.

Palavras-chave: Gênero; Poder; Esferas públicas; Mulher.

INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende compreender como os marcadores de gêneros, continuamente,
trazem limitações a mulher, excluindo-as das esferas públicas e rebaixando a sua representatividade
política. O que pretendemos é uma reflexão de como os padrões comportamentais criados em prol da
desigualdade de gênero podem refletir negativamente na vida da mulher, as condicionando a estarem
dentro da esfera privada.
Com isso, a problemática estabelecida foi: Como os marcadores de gênero operam nas relações
de poder, pensando o (não) lugar da mulher nas esferas públicas? Com o intuito de refletir sobre a
desigualdade de gênero e perceber qual a relação de causa e consequência dos marcadores de gênero
e a baixa representatividade feminina nos espaços públicos.

577
Graduanda do curso de Direito, pelo Centro Universitário do Rio São Francisco. Membra do Grupo Estudos e
Pesquisas Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS E-mail: vivianalvest@outlook.com
2
Professora do Curso de Bacharelado em Direito – UNIRIOS. Coordenadora do Grupo Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS; Pesquisadora do G-Pense! – Grupo de
Pesquisa sobre contemporaneidade, Subjetividade e Novas Epistemologias (UPE/CNPq), E-mail:
luisavanessa1@hotmail.com
3
Professora do Curso de Bacharelado em Direito – UNIRIOS. Coordenadora do Grupo Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares sobre Direito, Diversidade e Sociedade – GEPIDDS; Pesquisadora do G-Pense! – Grupo de
Pesquisa sobre contemporaneidade, Subjetividade e Novas Epistemologias (UPE/CNPq), E-mail:
robertas.mendonca@hotmail.com

1381
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Dessa forma, o objetivo geral consiste em: Como os marcadores de gênero operam nas
relações de poder, pensando o (não) lugar da mulher nas esferas públicas. Ademais, os objetivos
específicos propõem-se a: I- Discutir sobre marcadores de gênero frente à uma sociedade patriarcal.;
II- Refletir acerca das relações de poder e subalternização do feminino. III- Apontar o (não) lugar da
mulher nas esferas públicas.
No âmbito pessoal, a pesquisa científica tem como justificativa o interesse em entender melhor
como a desigualdade de gênero se constitui e se forma colocando a mulher em um lugar de oprimida.
Assim como, de estudar como a sociedade é responsável por esse fator e como isso não é “natural”,
mas sim fruto das relações desiguais de poder dentro de um sistema patriarcal.
Já no contexto social, a justificativa se encontra na relevância de se entender como o patriarcado
encontrou meios de estabelecer essa dominação masculina e refletir uma cultura machista e sexista
em detrimento do gênero feminino. E poder perceber que essa cultura traz consequências negativas
na vida das mulheres até os tempos atuais.
No meio acadêmico, o trabalho encontra relevância ao refletir sobre a representatividade da
mulher nas esferas públicas perante uma perspectiva de gênero. Entendendo também como a cultura
patriarcal entra nessa problemática condicionando a mulher e ditando o seu lugar. Assim, o trabalho
vem analizando como essas imposições refletem o (não) lugar dentro dessas esferas.
Por sua vez, a metodologia parte o método dialético, que proporciona a contradição de ideiais
e discussões. Quanto ao tipo de pesquisa foi definido como bibliográfica, exploratória e descritiva,
nos permitidno explorar os marcadores de gênero e descrever esses marcadores na sociedade
ocidental (GIL, 2008). Quanto à abordagem, esta foi a qualitativa, neste caso, na nossa pesquisa a
abordagem qualitativa se fez necessária porque para discutir sobre o fenômeno do não lugar da mulher
não é possível mensurar em números (GIL, 2002). Quanto a técnica de análise de dados foi da de
análise de conteúdo, de forma a perceber as diversas questões relacionadas ao gênero que vão refletir
no lugar da mulher na nossa sociedade (BARDIN, 2007).
Diante do exposto, se faz necessário compreender como esses ditames e esses esteriótipos de
gêneros reforçam em uma dificuldade na vida da mulher atingir com precisão uma equidade que vai
além do âmbito formal, além de ter que lidar com a persistencia em manter a mulher no cenário
privado, como dona do lar e cuidadora da família. É importante entender como a sociedade
patriarcal ainda destina as esferas públicas ao homem.

1382
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
OS RÓTULOS IMPOSTOS PELA SOCIEDADE OCIDENTAL PARA AS MULHERES
De forma contínua, as mulheres são submetidas à uma posição de subalternidade, em virtude
dos modelos que foram construídos a partir das relações de poder. Assim, o indivíduo se desenvolve
dentro de uma ordem social e cultural específica, sendo ela o produto da atividade humana (BERGER
E LUCKMAN, 1976). Logo, a ordem social funciona como um sistema que promove a dominação
masculina sobre a qual se alicerça, e que mantem a mulher sempre na categoria do Outro
(BEAUVOIR, 1986), condicionando-a a estar rebaixada em sua criatividade, em sua capacidade
reflexiva, reproduzindo práticas que reforçam processos de alienação e submissão.
Durante muito tempo, as abordagens de gênero estiveram ligadas as características do sexo
biológico das pessoas, e essas diferenciações eram o que vinham a ser responsáveis pela desigualdade
de gênero. Apenas mais tarde, no entanto, foi possível começar a se pensar o gênero além de
estereótipos biológicos, começando a ser abordado como um produto construído pela a própria
sociedade. Essa diferenciação entre sexo e gênero é justificada a maneira que vem a distinguir
limitações e capacidades atribuídas as características do sexo biológico, dos padrões de identidade,
modelos, posições e estereótipos feitos pela a sociedade, padrões que ditam como as pessoas devem
agir e pensar (IZQUIERDO, 1994).
Contudo, Bourdieu (1999) apesar de entender o caráter social da desigualdade entre homens e
mulheres, afirmava que não se deve desprezar a relevância do fator biológico “corpo” ao estudar a
construção do gênero. Fato que pode ser comprovado ao pensar no determinismo biológico que esteve
presente ao longo dos séculos nos estudos científicos. Que pensa na posição ocupada por diferentes
grupos nas sociedades ou comportamentos e variações das habilidades, capacidades, padrões
cognitivos e sexualidade humanos como consequência de limites ou privilégios inscritos na
constituição biológica.
Nesse sentido, ocorreram significativas mudanças sócio-políticas no Ocidente, entre o final do
século XVIII e começo do século XIX, no qual imperou uma emergência de um novo modelo médico
para estudar a diferença entre os sexos. Com isso, o historiador Thomas Laqueur (2001) após estudar
a convocação dessa reinterpretação da biologia reprodutiva feminina, afirma que ela foi pensada no
intuito de resolver problemas ideológicos. Assim, a biologia foi usada para subestimar mulheres,

1383
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
impondo esse título de “sexo frágil” ao feminino, afirmando ser um “espelho da natureza”, mas não
passando de um reflexo cultural.
Então, para Laqueur, as diferenças sociais ou até mesmo a própria ideia de dois sexos distintos
são noções que vão sendo contextualizadas ao longo da história. Um bom exemplo a se pensar, é que
na Antiguidade grega, as diferenças não estavam ligadas ao sexo biológico, ou ligadas ao fator
“corpo”, mas sim atribuídas as características socais medidas por um maior ou menor grau de
perfeição, pois havia somente um sexo – o masculino – que possuía diferentes graus de
desenvolvimento, e que era o padrão tido como referência para as relações hierárquicas que eram
estabelecidas.
Essa distinção perdurou até o Renascimento, quando a sociedade começou a atribuir distinções
entre “feminino” e “masculino” em detrimento das diferenças biológicas entre os corpos. Tais
diferenças foram reforçadas pela ideologia machista e dogmas que vigoraram ao longo da Idade
Média. Além desses fatores, a ciência também colaborou para que o corpo e o sexo fossem a base de
diferenças inatas entre homens e mulheres, que assim, estabeleceu padrões de comportamento para
ambas os sexos. Portanto, os estudos da anatomia foram influenciados pela desigualdade entre os
gêneros, para desmerecer a mulher em razão do homem (SCHIEBINGER, 1987).
Durkheim (1999) ao explicar essa distinção e atribuições de funções masculinas e femininas,
lembra que a diferença entre o corpo feminino e masculino, nas sociedades primitivas, eram bem
menores que nas sociedades evoluídas, e que essa fragilidade atribuída a mulher veio junto com a
“evolução” da sociedade ocidental. Portanto, é possível perceber com quanto o determinismo
biológico que imperou durante séculos é uma premissa precipitada de se afirmar.
Segundo Santos (2007, p. 03), “se com a evolução biológica as mulheres encontram-se em
patamar inferior ao dos homens, provavelmente os papéis atribuídos ao sexo feminino são
socialmente aceitos como hierarquicamente inferiores”. Dessa forma, essa distinção feita levando em
consideração o sexo biológico, foi eficaz ao inferiorizar a figura feminina, sendo assim, uma tese
aliada a persistência da dominação masculina e um pilar essencial para a permanência do patriarcado.
Ao perceber que a desigualdade de gênero não se tratava de uma relação determinada pela a
biologia, mas sim por um fator cultural, o feminismo conhecido como o de “segunda onda” começou
a tratar da separação de sexo e gênero e passou a aderir o termo, já que a dominação masculina
se faz presente ao impor papeis “culturais”.

1384
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Segundo Beauvoir

Nínguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização
que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de
feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro
(BEAUVOIR, 1967, p. 9).

Dessa forma, a autora ratifica que “ser mulher” na nossa sociedade nada mais é do que seguir
os padrões que a mesma nos impõe. Estando o sexo biológico fora dessa desigualdade que o
patriarcado alimenta para manter a mulher no lugar de subalternidade, no lugar do “Outro”. Assim,
as relações de gênero vão sendo estabelecidas dentro de um sistema hierárquico que nada favorece a
mulher.
Historicamente, o homem sempre foi favorecido quanto ao poder e a visibilidade, sendo ele
aquele que teve uma maior apropriação do poder político, do poder de escolha e de decisão da sua
vida afetiva-sexual e da visibilidade social ao exercer suas atividades profissionais. Além disso,
segundo Beauvouir (1986), os homens utilizaram o emprego da força física e usaram diversos
argumentos com a finalidade de dominar, humilhar, subjulgar e oprimir mulheres.
Esse processo de apropriação resultou em diferentes formas opressivas, que submeteram as
mulheres à uma relação de dominação, violência e violação dos seus direitos. Ademais, fazendo-as
escravas de um sistema que reconhece as estruturas de dominação, havendo ainda uma internalização
dessa ideologia machista continuamente, no decorrer dos séculos. Isso se deu porque as mulheres
foram se abnegando em decorrência das relações de poder, como também, neutralizando a
desigualdade imposta.
A estrutura patriarcal junto a ideologia machista são os principais pilares que a dominação
masculina encontra seu alicerce. Castells, citado por Hahn e Machado, define esse patriarcalismo
como uma estrutura que se faz presente na sociedade como um todo, no âmbito político, no âmbito
econômico, na cultura e na religiosidade (HAHN; MACHADO, 2012). Assim como, para Walby
(1990, p. 20), esse patriarcado vem a ser um "sistema de estruturas no qual o homem domina, oprime
e explora as mulheres", sendo ele histórico e político, se alterando ao longo do tempo.

O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades


contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade, imposta institucionalmente, do
homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser
exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade da

1385
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. (CASTELLS, apud, HAHN;
MACHADO, 2012, p. 69).

Dessa maneira, os marcadores de gênero foram milenarmente pensados dentro desse sistema,
com o objetivo de manter a opressão feminina. Assim, a sociedade foi estabelecendo uma distribuição
de responsabilidade que são alheias as vontades das pessoas, utilizando de critérios classistas, sexistas
e racistas, não respeitando as singularidades de cada indivíduo.
Para Saffioti:
não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a totalidade
formada pelo corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que entra em relação
com o outro. Cada ser humano é a história de suas relações sociais, perpassadas por
antagonismos e contradições de gênero, classe, raça/etnia (SAFFIOTI, 1992, p. 210).

Neste sentido, a macroestrutura patriarcal não está preocupada em estabelecer uma equidade
entre os gêneros, mas sim em achar meios de manter a supremacia do homem cis-hetero-branco, que
segundo Walby (1990), é feita através de seis estruturas que se inter-relacionam: o modo de produção
patriarcal, relações patriarcais no trabalho remunerado e assalariado, relações patriarcais no Estado,
violência masculina, relações patriarcais na esfera da sexualidade e relações patriarcais em
instituições culturais. Essas estruturas são variáveis e autônomas, modificando-se no seu grau de
intensidade perante as opressões, que vão depender da época, da classe e da etnia.

O PODER E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO


A palavra “poder” em sua etimologia, vem do latim “potere”, que vem a significar posse. Uma
contração de “potis”, que vem a ser algo ligado a palavra “autoridade”. Ou seja, sendo uma palavra
que está sempre ligado a força, persuasão, controle, regulação, etc. (FERREIRINHA E RAITZ,
2010). Já para a filosofia, a palavra poder vem a ser "a capacidade de este conseguir algo, quer seja
por direito, por controle ou por influência. O poder é a capacidade de se mobilizar forças econômicas,
sociais ou políticas para obter certo resultado” (BLACKBURN, 1997, p. 301). Contudo, o autor expõe
que ele pode ser exercido conscientemente ou não.
Segundo Bobbio (2000, p.933) no seu dicionário político, "poder social é a capacidade que um
pai tem para dar ordens a seus filhos ou a capacidade de um governo de dar ordens aos cidadãos".
Assim como, para Souza, Garcia e Carvalho (1998, p. 417), "o poder evoca a ideia de força,
capacidade de governar e de se fazer obedecer, império". Confirmando a teoria que mesmo em
esferas distintas, o poder sempre está ligado ao sentido de autoridade e força.
1386
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Foucault traz uma ideia diferente sob o poder, ele estuda a teoria do poder identificando sujeitos
que atuam sob outros sujeitos. Diante da sua visão:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro como uma multiplicidade de


correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua
organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando cadeias
ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as
estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOCAULT, 1979, p.
88).

Assim, o poder se faz vivo dentro da sociedade, o poder está tanto articulado ao Estado, quanto
atravessando todo o corpo social. Além disso, o filósofo retrata o poder como uma prática social
formada historicamente. Se apresentando de formas diferentes, heterogênias, e em constante
mudança. O poder não está em uma instituição e nem em um sujeito, o poder está presente dentro de
relações flutuantes. Relações estas, que são marcadas pela disciplina. Assim, o poder se faz como um
conjunto de relações que produz assimetria e é permanente, sustentando um opressor e um orpimido
dentro das relações sociais.
Ainda sob a ótica do autor:

O poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral,
uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados [...] Devese, ao contrário,
supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de
produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos
de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de
força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca,
procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série,
convergências, desses afrontamentos locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos
continuamente sustentados pela intensidade destes afrontamentos (FOUCAULT, 1979, p.
90).

Com isso, pode-se afirmar que o poder dentro das relações sociais constitui-se através de
relações desiguais. E para se tornarem facilmente observáveis, é utilizada a disciplina, através do
poder disciplinador, que estabelece as relações: opressor-oprimido, mandante-mandatário,
persuasivo-persuadido, e qualquer relação que exprima um sujeita que comanda e outro sujeito que
venha a ser comandado. O poder, para ele, teria "uma essência e seria um atributo, que qualificaria
os que o possuem distinguindo-os daqueles sobre os quais se exerce. Mas, o poder não tem
essência, ele é operatório. Não é atributo, mas relação: a relação de poder é o conjunto das
1387
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas
constituindo singularidades" (FOUCAULT apud. DELEUZE, 1991, p.37).
Analisar o poder na perspectiva de Foucault é importante para entender as relações de
desigualdade de gênero, tendo em vista que "o poder como uma rede de relações sempre tensas. Não
admite polaridade fixa, mas considera que homens e mulheres, através das mais diferentes práticas
sociais, constituem relações em que há constantemente negociações, avanços, recuos,
consentimentos, revoltas e alianças" (FOUCAULT apud. LOURO, 1998, 39-40).
Com isso, é possível perceber que dentro da relação “homem” e “mulher” o poder sempre vai
ser um fator presente, já que as relações de gênero estão enraizadas em conceitos que associam a
mulher à reprodução e os homens, à produção (SCOTT, 2010). Dividir os gêneros e estabelecer
padrões em cima deles, criou uma hierarquização do masculino em cima do feminino, que vai
ganhando força dentro do sistema patriarcal junto à dominação masculina que mantem o poder
concentrado nas mãos do homem, apesar de haver resistências e conquistas femininas em diversas
esferas, não é possível invalidar ou negar a opressão de um gênero perante o outro.
Segundo Scott (1995, p.85), “o uso de gênero enfatiza todo um sistema de relações que pode
incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a
sexualidade”. Ou seja, o gênero é um fator social relevante para determinar relações entre ambas os
sexos, tendo em vista que há essa construção dicotomizada e hierárquica que contribui para a própria
lógica do poder.
Diferenças materiais dos papéis reprodutivos de homens e mulheres e a ideologia de gênero
foram formas apresentadas para tentar justificar as desigualdades de gênero. Com isso, a mitificação
do gênero parte de uma cultura que vem para sustentar a dominação masculina e manter essa não-
valorização da mulher, encarando essa relação de poder como algo natural e não como algo
socialmente construído.
Bourdieu (1999) consegue pensar esse processo de dominação masculina sob a subalternização
do feminino, dentro da noção de habitus, que segundo o autor “constituem esquemas mentais e
corporais de percepção, compreensão e ação, saber prático das leis tácitas de funcionamento social
adquiridos pela socialização praticada em um determinado campo, ou espaço social global”
(BOURDIEU apud. CAPPELLE, 2004). Assim, aponta que essas diferenciações vão mudar

1388
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
diretamente no comportamento e na conduta do sujeito, tendo o único fator determinante, nesse caso,
o gênero.
Sob a ótica do autor:

Inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através de injunções
tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados... As
regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que excluem
as mulheres das tarefas mais nobres,..., assinalando-lhes a postura correta do corpo, [...],
enfim, em geral tirando partido, no sentido dos pressupostos fundamentais, das diferenças
biológicas que parecem assim estar à base das diferenças sociais. (BOURDIEU, 1999, p. 34)

Neste sentido, pode-se perceber que há um condicionamento ao papel da mulher, limitando sua
capacidade reflexiva e intelectual, reproduzindo práticas que reforçam a sua subalternidade. Assim
como, o autor também expõe que a perpetuação da relação de dominação entre os gêneros não se
limita apenas ao âmbito doméstico, como também nas instancias da escola, do Estado e dentro das
organizações. Ou seja, dentro desses espaços acontecem a elaboração e a imposição dos ideais de
dominação e condicionam a mulher a expectativas comportamentais machistas e sexitas.
Portanto, ao ser excluída do acesso ao poder, tendo sua vida e sua sexualidade controlada pelo
o Estado e pelos padrões sociais, sua capacidade intelectual e profissional questionada e julgada como
inferior, a mulher encontra-se desfavorecida dentro dessas relações. Todo o processo de construção
cultural simbólica de gênero coloca a mulher como uma figura materna e doméstica, sendo pintada
como dona-de-casa, isolada da vida pública, do trabalho remunerado e da vida intelectual,
sacrifícando-se em prol do marido, dos filhos e do lar atendendo aos interesses do mercado e da nação.
Assim, a única função dada a mulher dentro das relações de poder da sociedade patriarcal é o dar à
luz e criar os filhos, cuidar da manutenção da casa e da alimentação das crianças.

A MULHER E O CENÁRIO PÚBLICO


Historicamente, os índices de participação política da mulher em todas as democracias
ocidentais têm sido baixos. Em países como Inglaterra, França e nos páises escandinavos esse quadro
anda passando por mudanças positivas para as mulheres. Mas, essa rígida divisão entre o espaço
público e o espaço privado estebelecidos pela o cenário democrático liberal, é um fator determinante
para a persistencia da ausência de reprensentatividade de mulheres na esfera pública.

1389
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
O espaço público é o lugar no qual os indivíduos exercem a sua cidadania, também é o espaço
destinado a política. Já o espaço privado, é aquele que abriga a família e as relações entre o gênero.
Na contemporaneidade, o espaço público é constitúido em maioria por homens, enquanto o privado
é destinado a ser o espaço da mulher dentro de um sistema patriarcal que segue condicionando as
mulheres a esse espaço de maneira estruturalizada dentro das sociedades ocidentais.
Tendo em vista que nos ultimos anos o sistema patriarcal prevaleceu, sendo ele caracterizado
pelo domínio do homem sobre a mulher e os filhos. Castells, citado por Hanh e Machado, vem
definindo o patriarcado como uma estrutura presente em toda a sociedade contemporânea, e para que
ela se perpetue precisa estar atuando dentro da política, da economia, da cultura, da legislação e da
religiosidade (HAHN; MACHADO, 2012).
Com a efetivação desta estrutura, a mulher teve o seu trabalho expropriado pelos seus maridos
dentro da esfera doméstica, é nisso que ela baseia o modo de produção patriarcal, já que
historicamente a mulher esteve realizando todo o trabalho doméstico de forma assalariada em troca
de sustento (WALBY, 1990). Sendo isso também uma manobra do capitalismo junto ao patriarcado
para manter os homens recebendo uma baixa quantia de dinheiro já que como tinham as suas esposas,
não precisariam pagar pelo o serviço doméstico.
Assim, as mulheres foram aprisionadas à ideia de que seu lugar era no âmbito privado,que ela
era destinada as tarefas domésticas (cuidar do lar e da família), enquanto que o âmbito público era
destinado aos homens, exercendo a tarefa de trabalhar e sustentar os filhos e a esposa (DIEHL;
MONTEIRO, 2012). Nesse aspecto, ao pautar a liderança, o homem detinha de liderança política, e
a mulher detinha a liderança emocional.

O homem, na liderança política, constituindo o mundo. A mulher na liderança emocional,


dentro do âmbito doméstico, com o controle dos afetos que circulam na família. A mulher
como elemento de contenção dos homens confrontados com as hostilidades da vida pública.
A luta para o homem e o amoroso para a mulher. (WARAT, 2000, p. 133).

O gênero femino sofre essa discriminação desde os primórdios. Na Grécia Antiga, ao pensar na
mulher dentro do espaço público era bastante problemático, pois ela estava fora do seu ambiente.
Entretanto, existem evidências que Ademais, existem evidências de que na Grécia existiam juízas e
no Egito também havia mulheres que eram faraós (ANGELIN; MADERS, 2010).

1390
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
No espaço público, aquele da Cidade, homens e mulheres situam-se nas duas extremidades
da escala de valores. Opõem-se como o dia e a noite. Investido de uma função oficial, o
homem público desempenha um papel importante e reconhecido. Mais ou menos célere,
participa do poder. (...) Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher – também se diz a
“rapariga” – pública é uma “criatura”, mulher comum que pertence a todos. O homem
público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a virtude. A mulher pública
constitui vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de
passagem, apropriado, sem individualidade própria. (PERROT, 1998, p. 7).

Dessa forma, é possível perceber que até mesmo quando a mulher consegue quebrar esse
padrões impostos ao gênero é motivo de vergonha, sendo até mesmo tachada como “estranha”,
“dissimulada”, “depravada” por ocupar um espaço que foi excluído dela e apropriado pelo o homem.
Com o perpasar dos séculos, assim como em Roma, às mulheres do ocidente cabiam,
exclusivamente, cuidar a casa e da família, pois acrediva-se que lá elas estariam seguras e protegidas.
E com isso, as “mulheres de rua” não eram bem vistas sociealmente. Com a Inquisição e os Tribunais
de Santo Ofício, essa limitação do espaço feminino se acentuou, pois as mulheres tiveram contato
com o conhecimento científico e usavam ele para desenvolver métodos pensados para auxiliar no lar,
por isso o número de benzendeiras, curandeiras e parteiras cresceu (DIAS; SAMPAIO, 2011).
Nesse cenário, a Igreja atuava firmamente para manter a mulher dentro dos espaços privados,
aplicando punições físicas por meio de julgamentos morais e dos julgamentos feitos nos Tribunais de
Santo Oficio. Portanto, a mulher nesse cenário europeu é condicionada a destinar sua vida as
atividades do lar. Analagamente, os Portugueses ao perceber a ameaças de invasões às terras
brasileiras, decidiram colonizar cruelmente o Brasil, impondo esses costumes europeus aos povos
que aqui habitavam, não respeitando a cultura, os hábitos, os costumes destes, e impondo essa cultura
de desigualdade de gênero para a cultura brasileira.
Segundo Dias e Sampaio (2011), houve uma proibição expressa da participação da mulher na
vida política das colonias. Essa limitação segue e se mantem presente no período Imperial, afastando
a mulher até mesmo do âmbito do estudo e educação. Isso ocorria porque a mulher ainda era vista
como um ser subalterno, incapaz de desempenhar atividades que não estivessem ligadas ao lar ou a
família. Esse fato, impulsionou movimentos femininos que buscavam ampliar o acesso da mulher à
educação.

Dessa forma, a mulher era vista como continente desconhecido, de comportamento


instável e geralmente associado à inconstância dos humores da madre (como era
conhecido o órgão sexual feminino). Como, nas mulheres, as faculdades da razão
estavam submetidas ao império da sexualidade, não poderiam aspirar a desempenhar
1391
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
atividades que exigissem autocontrole. Por isso, as práticas misóginas hegemônicas
restringiam as atividades políticas aos homens, a quem cabia também, na condição de cabeça
do casal, a gestão do patrimônio familiar (DIAS; SAMPAIO, 2011, p.61).

Ao longo do tempo, a participação da mulher dentro da esfera pública foi dando os seus
primeiros passos no país. Na República Velha, Leondina Figueiredo Dalto fundou o Partido
Republicano Feminino em 1910, um grande marco na luta pela participação da mulher na política.
Apesar do ganho em termos de organização e disseminação das suas ideias, a ideia de uma mulher
participando da polpitica nacional provocava horror em muitos homens da época, que enxergava a
mulher como inferior e dotada de sensibilidade exarcebada, o que fez com o que a conquista do voto
feminino não fosse alcançada.

Embora não tenham obtido o direito de voto durante a República Velha, as mulheres tiveram
sua situação social bastante modificada em relação ao que se observou nos períodos da
colônia e do Império, em especial no que concerne às relações privadas (família, contratos,
sucessões, por exemplo), com a entrada em vigor do Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de
1º de janeiro de 1916) (DIAS; SAMPAIO, 2011, p.68).

Na Era Vargas, o Código Eleitoral de 1932 representou a conquista definitiva do direito ao voto
feminino, o que fez com que as Constituições que vieram após este código incluísse em seus textos o
voto feminino. Além disso, o Código Penal de 1940 trouxe uma preocupação maior com a mulher
como pessoa singular e não somente com a sua honra, ao se tratar dos crimes sexuais.
A Constituição de 1988 dentre todos os avanços trazidos para o cenário brasileiro, após 20 anos
de um governo árduo de ditadura, trouxe também a plena igualdade jurídica entre homens e mulheres,
com a sua equiparação. Além de várias mudanças positivas para as mulheres, no âmbito da família,
no ambito da violência e no ambito político. Com isso, mulheres de diferentes classes, etnias,
orientação sexual venceram uma luta contra o autoritarismo.
Contudo, o pensamento machista e o sistema patriarcal traz empecilhos para que a mulher
consiga se firmar dentro das esferas públicas. A simples existência de uma previsão legal e expressa,
não é capaz de efetivizar esse feito. Tanto que nas primeiras eleições após a permissão do sufrágio
feminino, poucas mulheres votaram. Não se tinha a pretensão de resolver o problema da desigualdade,
mas sim de mascarar mais ainda essa opressão submetida as mulheres (AVELAR, 1996).
Até hoje os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder. Mostrando
que as previsões e conquistas no campo formal do direito não foi capaz de minimizar a
1392
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
desigualdade de gêneros presente na sociedade e na políticca. Uma consequência de séculos de
marginalização e exclusão da mulher, no qual é preciso ser combatido para promover a equidade
nesse meio.
Na política brasileira existem ações afirmativas direcionadas à inserção política da mulher,
determinando que haja no mínimo 30% e no máximo 70% de candidaturas de cada sexo, tendo como
intuito de promover a quebra dessa desigualdade e incluir mais mulheres no cenpario político.
Entretanto, os partidos políticos não cumprem de forma correta esse estabelecido, pois eles são, em
sua maioria, organizados e dirigidos por homens que reproduzem o machismo e o pensamento
patriarcal nesse meio.
A medida em que há a efetiva inserção da mulher dentro do cenário político, não há alguem que
possa defender os interesses delas, já que não há representatividade feminina. Criando assim, um
ciclo vicioso de exclusão e afastando a mulher das esferas públicas já que a ela não é dado esse espaço
da maneira que precisa ser dado. Dessa forma, a mulher acaba se beirando as esferas privadas já que
o patriarcado promove falsas crenças de que a ela é destinado este lugar e o Estado pouco faz para
pensar a mulher além da família e do lar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após explanação sobre o tema, percebemos que a problemática “Como os marcadores de


gênero operam nas relações de poder, pensando o (não) lugar da mulher nas esferas públicas?” nos
leva a perceber que os marcadores de gênero trazem consequências negativas a mulher ao tentar
inserir-se dentro dos espaços públicos, que a desigualdade de gênero ainda é um fator condicionante
para pensar o lugar da mulher.
Durante a seção “Os rótulos impostos pela sociedade ocidental para as mulheres” pode-se
perceber os critérios usados para separar o ser “homem” do ser “mulher” e explorar as suas diferenças
não é determinado pela biologia, mas sim pelo o fator cultural que busca manter a dominação
masculina em detrimento da opressão do gênero feminino, pensando sempre em padrões
comportamentais que vão favorecer o patriarcado.
Dando continuidade, quando abordamos sobre “O poder e as desigualdades de gênero”
podemos perceber que ao serem constitúidas a base de uma hierarquia, o poder se encontra dentro

1393
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
das relações de gênero, sendo assim, o homem o detentor desse poder e mulher a sua subalternada.
Além disso, a sociedadevem ainda se mantém encarando essa relação de poder como algo natural e
não como algo socialmente construído.
E, por fim, no tópico “A mulher e o cenário público” é possível notar que os esterítopos de
gênero criados pela patriarcado, e sua permanência e eficácia dentro das relações de poder destinaram
o ambito privado como o lugar que a mulher deve ocupar na sociedade, e que isso vem de uma raiz
histórica que apesar de ter sido superada em prol da equidade dos gêneros, muitas vezes esse “espaço”
conquistado fica apenas no ambito formal, não tendo eficácia fora dele.
Portanto, foi possível perceber que o patriarcado buscou meios de manter a mulher
oprimida, com discursos sexistas e utilizando até mesmo de falácias no campo da biologia para manter
a mulher como o “sexo frágil”, e alimentar a dominação masculina que encontra vantagens em
rebaixar e limitar a capacidade reflexiva das mulheres. E com isso, a mulher encontra dificuldades
em quebrar esse paradigma e alcaçar verdadeiramente as esferas públicas e conseguir uma real
representatividade no cenário político.

REFERÊNCIAS

ANGELIN, Rosângela; MADERS, Angelita Maria; (Org.). Multiculturalismo em Foco. Santo


Ângelo: FURI, 2010.

AVELAR, Lucia. Mulheres na elite politica brasileira canais de acesso ao poder. São Paulo:
Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1996.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo, Volume 2. Difusão Européia do Livro, 2ª Edição, 1970.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. Traduzido por Sérgio Milliet. v. 1. São Paulo:
Círculo do Livro, 1986.

BERGER, Peter.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia


do conhecimento. Tradução: Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1976.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília/São Paulo: Imprensa


Oficial do Estado de São Paulo, 2000.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.


1394
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2007.

CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves. Uma análise da dinâmica do poder e das relações de gênero
no espaço organizacional. RAE electron., São Paulo , v. 3, n. 2, Dec. 2004 .

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991.

DIAS, J.; SAMPAIO, V. G. A inserção política da mulher no Brasil: uma retrospectiva histórica.
Estudos eleitorais, v. 6, n. 3, set./dez. 2011.

DIEHL, Bianca Tams; MONTEIRO, Christiane Schorr. As mulheres na política: a busca pela
isonomia de gêneros. In: BERTASO, João Martins (Org.). Cidadania, Diversidade e
Reconhecimento. 2. ed. Santo Ângelo: FURI, 2012.

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FERREIRINHA, Isabella Maria Nunes; RAITZ, Tânia Regina. As relações de poder em Michel
Foucault: reflexões teóricas. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro , v. 44, n. 2, p. 367-383, abr. 2010.

FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. 2ª edição. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. - São Paulo : Atlas, 2008.

HAHN, Noli Bernando; MACHADO, Maristela da Fontoura. Gênero, Patriarcado e a Violência


Contra a Mulher: a necessidade do reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. In:
BERTASO, João Martins (Org.). Cidadania, Diversidade e Reconhecimento. 2. ed. Santo Ângelo:
FURI, 2012

IZQUIERDO, Maria Jesus. Uso y abuso del concepto de género. Barcelona: Universitat de
Barcelona/ICD, 1994.

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo dos gregos à Freud. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.

MATIAS DOS SANTOS, Vívian. Divisão Sexual do Trabalho: complementaridade ou conflito?.


Revista Urutágua (Online), 2007.

PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: UNESP, 1998.

SAFFIOTI, Heleieth lara Bongiovani. Rearticulando gênero e classe social. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1992.

SCHIEBINGER, Londa. Skeletons in the closet: the first illustrations of the female skeleton.
Berkeley: University of California Press, 1987.

1395
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, p. 71–99, jul./dez.
1995.

SOUZA, José Pedro G.; GARCIA, Clovis L.; CARVALHO, José F. T. Dicionário de Política. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1998.

WALBY, Silvia. Theorizing patriarchy. Oxford, Brasil BlackwelLWEBER, 1990.

WARAT, Luis Alberto. Por quem cantam as sereias. Tradução de Julieta Rodrigues Sabóita
Cordeiro. Porto Alegre: Síntese, 2000.

1396
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
UMA REFLEXÃO SOBRE AS AÇÕES EDUCATIVAS DEMOCRÁTICAS: EDUCAÇÃO
BILINGUE FRONTEIRIÇA

Eva Ferreira Jornada580

Resumo: O referido tema: Uma reflexão sobre as ações educativas democráticas: Educação Bilingue Fronteiriça tem
interesse em dialogar sobre os marcadores linguísticos fronteiriços e os direitos sociais dos seus falantes. Trata de
alimentar um diálogo reflexivo; cuja finalidade é a de resgatar algumas memórias já vivenciadas, na prática docente. A
ênfase é fazer um comparativo entre as intervenções pedagógicas realizadas anteriormente com as atuais. O objetivo dessa
é despertar no leitor a curiosidade e a valoração linguística. Fomenta-se que na intervenção pedagógica seja desenvolvida,
na instituição pública a prática da descoberta de que vive-se na América Latina, em um país com muita diversidade
linguística. Mas que a língua merece ser respeitada. Pois ela é viva, é dinâmica e é por meio da linguagem que o emissor
pode contar ao interlocutor as suas descobertas, os seus anseios e questionar o seu direito constitucional. Necessita-se que
os discentes possam ter a visão de que vive-se em São Borja, no Estado do Rio do Sul, que faz divisa com a municipalidade
de Santo Tomé, província de Corrientes, Argentina. Ambas municipalidades foram oriundas de reduções jesuíticas, na
qual os povos foram obrigados a ter o entendimento da língua utlizada pelos padres jesuítas espanhóis, representantes da
Coroa Espanhola por imposição. Essa língua foi imposta aos colonizados pelos colonizadores. Mas que deixaram
vestígios pela ascentralidade nas práticas dos afazeres.. A metodologia abordada é a revisão bibliográfica e a pesquisa
documental, por meio de dados normativos juridicos, ou seja, as leis. Porém, hoje, observa-se a possibilidade de a criança
e o adolescente poder estudar e escolher que língua vai querer aprender. Ambos têm esse direito social garantido e
legitimado. Outrora muitos educandos deixavam de estudar para trabalhar e obter o seu próprio sustento ou ajudar a
família. Atualmente, o ingresso escolar e a melhoria de qualidade de ensino, na Educação Básica são visíveis e
contemplam a todos discentes, sem acepção de pessoas. Ao repensar-se nas mudanças instituicionais, que ocorreram a
partir da implementação da Constituição Federal de 1988 há possibilidade de visualizar que podem ocorrem indicadores,
que demonstrem a relevância do acesso à educação e do uso linguístico. Com a implementação do Estatuto da Criança e
do Adolescente muitos deixaram de ficar na invisibilidade.Trabalhou-se muitos anos como educadora, passando-se por
diferentes governos e diferentes metodologias pedagógicas. Com a implementação da Base Nacional Comum Curricular
em 2018, o espanhol não foi contemplado para ser uma disciplina obrigatória. Finaliza-se com a narrativa de que a
pesquisadora quando escolhe o objeto de estudo deseja encontrar respostas às suas indagações. Justifica-se que devido ao
desenvolvimento proximal fronteiriço a língua espanhola é instigante. E cada pessoa tem o seu direito de escolha pelo
uso ou não. No entanto, embora haja discussões esse artigo defende que para haver um melhor entendimento com os
hablantes fronteiriços tem de aprender-se o espanhol, pois muitos estudantes brasileirosss atravessam a Ponte
Internacional de Integração para estudar Medicina, ou outros cursos, na Argentina.

Palavras Chave: Políticas Públicas; Educação; Experiência Pedagógica; Bilinguismo.

INTRODUÇÃO

O artigo Uma reflexão sobre as ações educativas democráticas: Educação Bilingue


Fronteiriça tem interesse em dialogar sobre os marcadores linguísticos fronteiriços e os direitos

580
Professora efetiva tanto da rede municipal quanto estadual. Graduada em Letras, Habilitação: Língua Portuguesa
e Espanhol, pela URCAMP, campus São Borja. Especialista em Imagem, História e Memória das Missões: Educação
Patrimonial, pela UNIPAMPA, campus São Borja; Especialista em Alfabetização e Letramento, pela UNINTER,
polo São Borja; Mestranda em Políticas Públicas pela UNIPAMPA, campus São Borja. Linha de Pesquisa:
Configurações Institucionais e Dinâmicas Sociais em Áreas Fronteiriças. E-mail: evaferrj@yahoo.com.br

1397
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
sociais dos seus falantes, porque todos e todas tem direito a educação. Diz o artigo 205
da Constituição Federal de 1988: " A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". A partir da
seguinte pergunta de partida questiona-se sobre esse: “ Quais são as ações estratégicas desenvolvidas
em programas institucionais fronteiriços de ensino bilingue?
Durante o desenvolvimento desse procura-se alimentar um diálogo reflexivo; cuja finalidade
é a de resgatar algumas memórias já vivenciadas, na prática docente. A ênfase é fazer um comparativo
entre as intervenções pedagógicas realizadas anteriormente com as dos dias recentes. Intigasse-se que
na intervenção pedagógica diária e atual seja desenvolvida, na instituição pública a prática da
descoberta de que vive-se na América Latina, em um país com muita diversidade linguística. Mas
que a língua merece ser respeitada. Pois ela é viva, é dinâmica e é por meio da linguagem que o
emissor pode contar ao interlocutor as suas descobertas, os seus anseios e questionar o seu direito
constitucional.
Compreende-se que há a necessidade de os discentes ter a visão de que vive-se em São Borja,
no Estado do Rio do Sul, que faz divisa com a municipalidade de Santo Tomé, província de
Corrientes, Argentina. O objetivo dessa reflexão é despertar no leitor a curiosidade e a valoração
linguística bilingue. Entretanto para discutir-se apresenta-se um problema de pesquisa: Como o
direito a aprendizagem bilingue pode ser contemplado em tempos pandêmicos? Esse é um tema muito
instigante que deve ter continuidade de discusão tanto nas instituições públicas, quanto nas
universidades.
Portanto, o presente capítulo tem uma abordagem baseada em fichamento bibliográfico como
uma das etapas. Perpassando-se por um recorte espaço temporal de resgate de memórias linguísticas,
ou seja, relatos de experiências de docência. Com relação a metodologia a pesquisa será de natureza
qualitativa. Visto que, a abordagem de cunho qualitativo trabalha os dados buscando seu significado,
tendo como base a percepção do fenômeno dentro do seu contexto” (OLIVEIRA, 2011, p. 24). Os
argumentos realizados são embasados na abordagem argumentativa, a qual Secci defende. Segundo
(SECCI, 2016, p. 15): “As análises argumentativas vieram para adaptar a produção do conhecimento
de política pública à lógica política, para ganhar mais conhecimento útil, temporal e orientado
para a ação”. Logo, nesse também serão utilizados argumentos favoráveis ao objeto de estudo

1398
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
deste, que são os relatos de experiências. Finalmente terá esse o resumo, a introdução, a subseção: O
Resgate das Memórias Linguísticas Fronteiriças, seguido de dialogar sobre As Políticas Públicas, a
pandemia e a valorização do bilinguismo fronteiriço, finalizando-se com as considerações finais e as
devidas referências.

O RESGATE DE AS MEMÓRIAS LINGUÍSTICAS FRONTEIRIÇAS


No transcorrer desse artigo a ideia é de transcrever esse discurso linguístico, numa linguagem
acessível e clara com racionalidade e objetividade, aos colegas docentes e aos futuros profissionais
de educação, no sentido de descrever algumas experiências já vivenciadas, que dependendo do ponto
de vista do leitor pode ser positiva ou não. Mas que aconteceram e fim de realizar esse, pensou-se
muito e após uma reflexão diária e contínua de várias dias e meses até diria, chegou-se a alguns
questionamentos??? É possível narrar a fruição de pensamentos e de memórias linguísticas fronteirças
que vieram à tona?!! Que anteriormente, essas reminiscências já estavam armazenadas?
Compreende-se que a memória se refere ao processo cognitivo que envolve a aquisição, a
formação, a conservação e a evocação de informação. Segundo o dicionário Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira (1999) explica que memória é a: “faculdade de conservar e lembrar estados de
consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos”. Afirma o autor (COTTA et al.,
2012) a respeito de memória que: “Quanto ao desenvolvimento, aprimora-se no decorrer da infância
e adolescência, estabiliza-se ao longo da vida adulta e passa a decair ao longo do envelhecimento”.
Depois de aposentada da instituição municipal e estadual pensou-se em dar continuidade aos estudos
para aprender mais e obter inúmeros novos conhecimentos científicos. Correr atrás do Mestrado de
Políticas Públicas tornou-se uma utopia. Visto de que era de uma instituição federal, isto é, pública e
bem conceituada.
Após muitos estudos de Ciência Política, leitura de artigos, de sites e de dissertações
aprendeu-se muito. Ou o necessário para ser aprovada. Após, a obtenção da aprovação para ingresso
no curso de Mestrado notou-se que o cérebro ama receber as novas informações. Por isso, hoje,
mestranda de políticas públicas e pesquisadora do grupo Labpoliter, ao realizar essa narrativa escrita,
ou seja, algumas reflexões de experiência dos tempos de docente é possível entender que essas
memórias vieram com uma melhor fluidez.
Necessita-se entender que há a possibilidade de resgatar memórias e transcrevê-las. A
memória ajuda a resgatar nem que seja por segundo uma sensação ou lembrança de algo, que já
1399
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
aconteceu. Mesmo na inatividade de docente a memória está viva, dinâmica e fruindo. É uma benção
e deve ser aproveitada à pesquisa. E serve para deixar resquícios de novos aprendizados guardados à
posteridade, como uma contribuição acadêmica à sociedade. Desse modo:

A função da memória é fundamental para a execução das atividades da vida diária e


contempla uma série de habilidades, em cujo cerne se insere a capacidade de armazenar e
resgatar dados por períodos que variam de segundos e podem se estender por anos ou por
toda a vida do sujeito (DICKERSON; EICHENBAUM, 2010).

Far-se-á um relato de memórias de docência, vivenciadas, nas diferentes instituições públicas


tanto da esfera municipal e estadual. Embora tenha exercido funções no Ensino Médio e nas turmas
de EJA, até a modalidade T8, nesse a ênfase será dada aos Anos Iniciais e Finais, do Ensino
Fundamental. Apesar de, frequentemente, utilizar-se a palavra memória no singular, o mais pertinente
é referir-se a memórias, num sentido plural: “em virtude do registo das diferentes especificidades
estudadas como memória explícita ou declarativa; e memória implícita ou não declarativa”
(DICKERSON; EICHENBAUM, 2010).
Encontra-se maiores explicações segundo os autores em relação a memória explícita que
esclarece o seguinte: A memória explícita, que diz respeito à aquisição consciente dos conteúdos,
também se subdivide em memória de trabalho – armazenamento de informações por curto espaço de
tempo; e, memória episódica e memória semântica – armazenamento de informações por longo
espaço de tempo (DICKERSON; EICHENBAUM, 2010). Afirmam os autores que:
A memória de trabalho possibilita manter, e ao mesmo tempo, manipular informações por
um curto período. Tais conteúdos provêm do ambiente imediato e cotidiano e/ou de
informações armazenadas na memória de longo prazo. Dessa forma, conseguimos operar
com diversos conteúdos, simultaneamente, possibilitando o desempenho de funções como
cálculos matemáticos, linguagem, compreensão de informações durante a leitura, aquisição
de novas informações (CAPOVILLA; ASSEF; COZZA, 2007).

Entende-se que para a realização desse resgaste de memória, de recordações de planos de


aulas que deram certo e ajudaram no desenvolvimento cognitivo, intelectual, racional, emotivo,
sensorial e social aos diferentes discentes buscou-se ter um melhor conhecimento sobre a
funcionalidade da memória para depois dar continuidade na transcrição dessas experiências.
Por que buscar pela memória do trabalho é repensar, por que tal atividade naquela época
a exigência era uma e na atualidade é outra? Fazer estudos comparativos dessas experiências

1400
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
requerem retroceder no tempo, a um armazenamento de lembranças de longo prazo. A partir desse
breve conhecimento para justificar-se a escolha do tema.
Para sua continuidade terá de ter os pré-requisitos de memória de trabalho e de memória
explícita e outras. A memória explícita é processada e armazenada em distintas regiões do cérebro.
Em curto prazo, este tipo de memória fica armazenado no córtex préfrontal e, posteriormente, é
convertido em memórias de longo prazo pelo hipocampo. Por fim, essas são armazenadas nas áreas
do córtex, que correspondem aos sentidos originalmente envolvidos no processamento da informação
(KANDEL, 2009). Como mediadora de conhecimentos repensar as práticas educativas é relevante
nos dias recentes, da pós modernidade, no qual instiga-se a educação bilingue.
Ao recordar-se daquela época é importante salientar que algumas ideias eram relevantes para
desenvolver no espaço escolar, naquele tempo. Porque poderia fazer-se uma seleção seletiva de
atividades pedagógicas, que são essenciais para o crescimento intelectual do (a) discente e dariam
certo. No entanto, antigamente era obrigatório a memorização, quem não decorasse os conteúdos
programáticos era reprovado.
Cabia a professora apenas repassar os cadernos didáticos, que deveriam ser aplicados de
maneira imposta e padronizada; sem direito ao diálogo e a partilha. Cada escola aplicava o seu plano
de unidade de acordo geralmente com uma data comemorativa, que fizesse uma exaltação à nação.
Enquanto, nos encontros de professores longe da escola falava-se da existência de um professor
chamado Freire, que tinha umas ideias inovadoras, mas que na prática educativa não era questionada,
nem analisada e nem pensada.

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da


educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado
nos educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles
elementos que este lhe entregou de forma não estruturada (FREIRE, 1983, p. 98).

Os conteúdos programáticos, seguiam tendo de ser ensinados por meio de um ensino bancário
que exigia apenas que o (a) estudante soubesse de maneira decorada o conteúdo e respondesse o
questionário sem hesitar e sem refletir.
Não precisava exercitar a criticidade, pois nem essa oportunidade era propiciada pelo (a)
professor (a). Hoje, o estudante tem o direito de pensar. Cabe ao Profissional de Educação
incentivá-lo a construir os novos saberes bilingues, ter opinião própria, autonomia e exigir

1401
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
respeito pela sua individualidade. Usa-se a memória episódica para coletar informações de que como
aplicava-se as aulas previstas no diário e no plano de unidade no início de carreira e compará-la com
o final.
Os autores a seguir deixam nítido que existe a possibilidade do resgaste de conteúdos da vida
pessoal e profissional da pessoa e que podem emergir. A memória episódica, que constitui memória
explícita, relaciona-se à memorização de informações, conteúdos associados a um contexto temporal
e espacial; refere-se, portanto, à aprendizagem, ao armazenamento e ao resgate de conteúdos da nossa
vida pessoal, que acontecem diariamente; experiências que podemos evocar conscientemente e sobre
as quais inserimos um contexto de tempo e espaço, podendo responder como, onde e quando
aconteceram (DICKERSON; EICHENBAUM, 2010).
Nesse Resgate de Memórias de Experiências de Docente há condições de resgatar
conscientemente como era aplicada uma aula, num determinado espaço e tempo, que queira recordar-
se. Porque tais informações foram armazenadas no córtex cerebral, no hipocampo. Sabe-se que o
papel do hipocampo foi o de coordenar o recebimento de todas as informações sensoriais que vem do
córtex, organizando-as em gavetas, ou seja, nas memórias.
A partir do momento que se passou a resgatar as memórias pronunciaria de maneira
conotativa, houve a possibilidade de trazer à tona as lembranças. Tudo que passou-se de experiências
negativas, positivas, momentos ruins, momentos bons, momentos prazerosos, ocasiões de
aprendizagem significativa e períodos de conhecimentos, de sensações e de pensamentos gravados,
que estavam armazenados no hipocampo, quando do tempo e do espaço que ocupava quando
educadora.
O hipocampo está envolvido na formação de memórias e na navegação espacial. (YASSA;
STARK, 2011): “O hipocampo tem sido apontado como área chave nos processos envolvendo
memórias associativas, armazenamento informacional e pela flexibilidade de armazenamento de
novas informações”. Salientam ainda os autores de que: O hipocampo tem um papel essencial na
consciência espacial, incluindo trajeto entre lugares, formação da memória e recordações.
Em particular, o hipocampo ajuda a selecionar informações provisórias para a memorização
e depois a passá-las para as áreas da memória de duração maior (YASSA; STARK, 2011). 125 Assim,
observa-se a importância de resgatar as memórias e as experiências do tempo pós normalista.
Durante o Estágio de uma quarta série, na Escola Estadual Viriato Vargas, aplicando aulas no

1402
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
lugar de quatro educadoras. Elas estavam encantadas pelo trabalho desenvolvidos na sala de aula,
mas nessa época não se falava no idioma de espanhol. Foi que uma delas esperou o término de estágio
terminar, para indicar uma vaga na municipalidade são-borjense, que era dela, pois ia ser nomeada
novamente para o Estado. No último dia de aula todos choravam regentes, discentes e estagiária.
Fechava-se uma porta e abria-se uma nova a de ser professora em uma escola do município, de uma
terceira série no lugar de uma professora, com a qual havia estagiado. Logo iniciava-se as
experiências gloriosas e fascinantes, que vem até os dias atuais de uma jovem pesquisadora.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS, A PANDEMIA E A VALORIZAÇÃO DO BILINGUISMO


FRONTEIRIÇO
A prioridade dessa discursividade será a Política Pública de Educação. A educação é um
direito constitucional garantido para todos (as) estudantes. O acesso a instituição pública é gratuito e
obrigatório. A escola pública oferece uma aprendizagem laica, propicia acessibilidade e a inclusão.
E é responsabilidade de os pais ou do (a) responsável propiciar condições, dos discentes, de frequentar
à escola. Entretanto, nesses tempos de pandemia, diante da crise sanitária que aflige a humanidade,
os (as) discentes tem de ficar em distanciamento social. Enquanto, os Profissionais de Educação, mais
do que nunca tem de adaptar-se à realidade, para que muitos (as) discentes recebam as suas aulas, por
meio de uma Educação Remota e Emergencial. Embora, alguns têm de buscar o material físico, na
escola pública.
Segundo Secci, 2015: “Uma política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um
problema público”. Neste contexto midiático, procura-se questionar um problema público, ou seja,
uma diferença entre uma situação atual vivida (status quo) e uma situação ideal possível à realidade
coletiva. Desse modo, é perceptível que o idioma Espanhol não está nesse momento tendo a
oportunidade de ser praticado por meio da oralidade, no espaço escolar, pelos estudantes. Essa
disciplina poderia ser contemplada pelo Programa Mais Novo Educação por meio de uma Oficina
Pedagógica. Ou por meio da Escola de Tempo Integral, que propicia a Atividade Complementar.
Esses programas governamentais ofertam de forma gratuita aos discentes da escola pública, as
demandas de políticas públicas educacionais, entre essas o ensino de língua estrangeira. Nesse caso,
defende-se a língua espanhola, para ser aprendida na instituição pública. Enquanto, discente da rede
privada pode fazer cursos de idiomas, pois os pais têm condições financeiras para propiciar-lhes
essa oportunidade.
1403
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
A municipalidade de São Borja é uma cidade gêmea, que faz fronteira fluvial, com a Santo
Tomé/AR. As crianças e os jovens deixaram de frequentar a escola para lidar com essa nova rotina.
Porque tirou todos e todas de uma zona de conforto educacional. Sabe-se que o mundo globalizado,
regional e local deveria estar unido tentando lutar contra essa pandemia. Em relação a isso, há um
sentimento de pertencimento a única humanidade.
E o Bilinguismo pode ser uma ferramenta que ajuda na integração regional, social, cultural e
econômica de ambas as municipalidades. De tal modo, a fronteira não permaneceria apenas nos
limites naturais, nos marcos ou nas aduanas, mas principalmente construídas nas vivências cotidianas
dos falantes brasileiros e hispânicos. Nesse local fronteiriço urge a necessidade de que professores
atuem no papel político de disseminar a ideia de que é relevante o estudo idiomático do espanhol,
para que haja uma maior integração fronteiriça e um melhor desenvolvimento regional. Porém,
observa-se que as fronteiras nacionais estão fechadas, apenas por protocolo de proteção à vida das
pessoas.
Porque, agora, não é o tempo de visitar-se a outra municipalidade. Precisa-se diante do Covid-
19, saber lidar com a insegurança, com o cuidado para consigo mesmo e com outro (a). Por esses
motivos são que os (as) docentes estão se reinventado e atendendo as necessidades dos estudantes.
Aqueles discentes, que passavam por vulnerabilidade social e tinham de ter assiduidade na escola
pública, continuam recebendo o Programa Bolsa Família. No entanto, nessa reflexão, realiza-se um
diálogo de que foi implementada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nº 13.415/2017. A
qual entrou em vigor nesse ano, de 2020. Nela a língua estrangeira a ser propiciada aos discentes é o
Inglês. Diante disso, encontrou-se o problema público. Ou seja, necessita-se esclarecer que existia a
Lei Nº. 11.161/2005, que defendia o uso da linguagem hispano/falante, nas escolas, do RS, o
espanhol, porém foi revogada.
Portanto, compreende-se que ainda tem instituições públicas que permanecem com a oferta
do espanhol no currículo, do Projeto Político Pedagógico, ou no Plano de Estudo, do Programa Escola
de Tempo Integral, como um componente de Atividade Complementar. Questiona-se por que dar
ênfase ao estudo do espanhol, na zona fronteiriça? Argumentaria que essa disciplina tem um amparo
da Portaria nº 213/2018, que orienta sobre uso bilingue em cidades gêmulas. Está inserido na
Constituição Estadual do RS por meio da PEC nº 270/2018. Uma justificativa plausível é que em
local de fronteira, dividido pelas águas do rio Uruguai, há a necessidade de continuar estudando

1404
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
o espanhol, pois é uma linguagem utilizada nas negociações comerciais entre as municipalidades
fronteiriças locais. A língua espanhola está carregada de interculturalidade, de trabalho coletivo,
cooperativo e respeitando as singularidades.
Percebe-se que desde a formação cultural, social, política, étnica, histórica, geográfica e
linguística desses pagos, veio juntamente com os colonizadores espanhóis mesclar-se com as
peculiaridades dos povos originários. É viva, é dinâmica e tem elementos simbólicos formados de
hibridismo, de ancestralidades ao conviverem e comunicar-se: no cultivo de plantas, nas domas, nas
olarias, nos cânticos, na arte... É a língua da maioria dos falantes, que residem em diferentes países
da América Latina. O bilinguismo pode ser utilizado por falantes nativos ou não. Há discentes, que
tem vínculos parentescos com pessoas de nacionalidade argentina. Outros tem enraizado esses saberes
adquiridos por meio de relações comerciais, que já estavam internalizados, na zona fronteiriça. Cabe
à escola pública proporcionar esses conhecimentos idiomáticos por meio de ações estratégicas de
políticas públicas linguísticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta parte do artigo deixa-se esses questionamentos e a reflexão como uma forma de abrir
um diálogo, no qual possam surgir novas soluções que apreciem essa temática. A defesa do Espanhol
sempre foi feita pelo Comitê de Integração Fronteiriça, que ocorreu desde o ano de 2018, no Brasil e
no ano 2019, em Santo Tomé sempre chancelado pela paradiplomacia. Nesses eventos participavam
diferentes atores das nacionalidades, políticos, burocratas, outros demais da sociedade civil por meio
de uma participação democrática.
Também na Universidade Federal do Pampa vem sido discutido em âmbito institucional
com diferentes atores das duas nacionalidades. colocam as considerações finais ou conclusão, local
onde as ideias possuem um desfecho ou são levadas para uma nova problemática. Esta parte do
trabalho pretende apresentar as principais conclusões, destacando o progresso e as aplicações que a
pesquisa ou experiência propicia.
Aproveita-se a oportunidade de realizar-se essa narrativa cuja pesquisa não está pronta. É um
diálogo aberto às discussões em todos os âmbitos setoriais. E também sabe-se que um objeto de estudo
nunca fica concluído estará sempre sujeito a um novo olhar investigativo de um outro
pesquisador ou de uma outra pesquisadora. Em relação ao objetivo espera-se que os interlocutem

1405
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
possa realizar a reflexão na comunidade escolar e contemplar, porque nunca um novo idoma vai ser
um motivo desfavorável ao processo ensino pedagógico. Para melhora até mesmo o turismo na
municipalidade é importante que os jovem saibam atender com fluência na língua espanholas as
pessoas que dirigem-se a um atendimento comercial, da rede hoteleira ou a uma visita a determinado
ponto turístico são-borjense.
Sabe-se que em tempos de Covid-19, na qual as fronteiras estão fechadas dá para dialogar por
meio de redes social com os vizinhos de Santo Tomé. Em relação ao problemas estão sendo dadas
as aulas programadas, pela rede municipal e pela rede estadual por meio da pltaforma Class room. A
(o) discente quando lê recebe no ensino bilingue terá muitos benefícios e poderá reconhecer o papel
da alfabetizadora na elaboração de atividades de linguagens nos programas que ele frequenta.
Assim, família deve entender que a educação bilingue é um direito dos filhos e têm de manter
as crianças e os adolescente na escola, não somente para cumprir uma condicionalidade do Programa
Bolsa Família, mas para evitar a evasão escolar e a falta de conhecimento científico. Por isso, como
Profissional de Educação e Alfabetizadora, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental observa-se o
quanto na atualidade tornou imprescindível a leitura de diferentes textos na sala de aula, bem simples
de espanhol, assim habitua-se o (a) aluno (a) a demonstrar interesse pela aprendizagem significativa.
Principalmente, agora, nesses tempos atuais, no qual o período de alfabetização deve ser dado
diariamente a oportunidade de a criança vivenciar o momento prazeroso de ler.
Assim sendo, o ensino bilingue é um dos recursos pedagógicos a serem utilizados no dia a dia
da rotina de uma escola: sempre com diferentes tipos textuais, para melhorar a imaginação, a
socialização, a fala e a escrita (produção textual). Observa-se no dia a dia, ao propiciar a leitura de
que os livros já não são tão maçantes como as cartilhas antigas. E que ler textos diversificados ajuda
a criança e ao adolescente a melhorar a sua alfabetização e o seu letramento. Cuida-se para que o
momento de a leitura oferecida ao (a) leitor (a) para que nunca seja um momento tedioso, mas sim de
deleite, ou seja, prazeroso.
Compreende-se que a alfabetizadora sempre deve estar atenta para cada discente, deve ser
afetuosa, amorosa, criativa para que o discente possa sentir-se seguro, com autoestima e feliz na
Oficina Pedagógica, no Programa Novo Mais Educação ou na Atividade Complementar, na Escola
de Tempo Integral. Afinal, pretende-se instigar nesse uma recomendação técnica para que haja
o incentivo do espanhol, como uma prática educativa de de ensino.

1406
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Editora do Senado, 1988.

COTTA, M. F. et al. O teste de aprendizagem auditivo-verbal de Rey (RAVLT) no diagnóstico


diferencial do envelhecimento cognitivo normal e patológico. Contextos Clínicos, v.5, n.1, p. 10-25,
jul. 2012.

DICKERSON, B. C.; EICHENBAUM, H. The episodic memory system: neurocircuity and disorders.
Neuropsychopharmacol, v.35, n.1, p. 86-104, 2010. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1983.

KANDEL, E. R. Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. tradução Rejane
Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. _________ Lei n.10.172, de 9 de janeiro de 2001.

OLIVEIRA, Maxwell Ferreira. Metodologia Científica: um manual para a realização de


pesquisas de administração. 2011. Universidade Federal de Goiás, Catalão, 2011.

PASSERON, Jean-Claude. 1991. Le Raisonnement Sociologique. Lespace Non-Popperien du


Raisonnement Naturel. Paris: Nathan.

SECCHI, L. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo:
Cengage Learning. 2010.

SECCI, Leonardo. Análise de Políticas Públicas: Diagnóstico de problemas, recomendações de


soluções. São Paulo: Cengage Learning, 2016.

YASSA, M. A.; STARK, C. E. L. Pattern separation in the hippocampus. Trends Neurose, v.34,
n. 10, p. 515-525, 2011.

1407
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
QUANDO A ESCOLA ME ENSINOU A NÃO SER HÉTERO?581

Crystian dos Santos Oliveira582


Eduardo Lima583
Ewerton da Silva Ferreira584
Jaqueline Carvalho Quadrado585

RESUMO: A abordagem de assuntos como gênero e sexualidade estão ao longo dos anos ganhando
visibilidade, mas isso não se traduz para o ambiente escolar. Este trabalho busca traçar uma
perspectiva, a partir de uma revisão bibliográfica qualitativa e descritiva, sobre a necessidade da
abordagem de temas como gênero e sexualidade dentro do espaço escolar. A partir da percepção da
escola como formadora de identidades, dos marcadores sociais de gênero e sexualidade pode-se
observar a emergência dos debates dentro do ambiente escolar, principalmente, buscando evitar a
saída dos alunos que fogem à hegemonia heternormativa da escola.

INTRODUÇÃO

Os assuntos como gênero e sexualidade têm ganhado evidência nos últimos anos em diversos
aspectos, sejam positivos com desenvolvimento de pesquisas na área ou mal vistos, com olhares
conservadores. Neste sentido, observamos que no contexto brasileiro há o debate sobre a inserção (ou
não) destes assuntos em diversos ambientes como escola, família, trabalho e em relações sociais em
geral e é neste cenário que os temos o surgimento de movimentos como “Contra ideologia de gênero”
e “Escola sem partido” ditando uma contrariedade às diversas maneiras de ser e existir.
Um dos primeiros locais onde temos contato com as diversas identidades, culturas, religiões
e outras formas de vida humana é a escola, pois ela cumpre um papel formador na vida do indivíduo.
A escola assume através da legislação vigente dois objetivos centrais: 1) preparo do aluno para
convívio em sociedade e; 2) preparo do alunado para o mercado de trabalho e continuidade dos

581
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul - FAPERGS.
582
Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Membro do Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política - GEEP. Bolsista de Iniciação Científica/FAPERGS E-mail:
crystiansoli@gmail.com
583
Graduando em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política - GEEP. E-mail: elima2929@gmail.com
584
Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pampa, campus São Borja. Membro do Grupo
de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política - GEEP. E-mail: ewertonferreira2662gmail.com
585
Professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa, campus
São Borja. Líder do Grupo de Pesquisa em Gênero, Ética, Educação e Política - GEEP. E-mail:
jaquelinequadrado@unipampa.edu.br
1408
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
estudos após a educação básica. Sob essa lógica não compete a escola o ensinamento sobre um único
padrão, seja ele de qualquer marcador social, pelo contrário, ela tem o dever se apresentar os
educandos a diversidade presente na sociedade. Dessa forma, cabe o questionamento: escola deve
falar sobre gênero, sexualidade e identidades dissidentes?
Trata-se de observar que a instituição escolar proporciona a relação interpessoal e a primeira
socialização fora da família que o indivíduo terá para conectar os conhecimentos adquiridos dentro
da escola com os passados pela família. São crianças e adolescentes em construção que estão dentro
da unidade escolar para este convívio e para o processo de ensino-aprendizagem. Ou seja, há neste
sentido uma necessidade de se falar sobre essas vivências, dar abertura para o debate e estimular o
respeito a diversidade, seja ela qual for. O convívio com os diversos marcadores sociais desde a
infância, segundo Vygotsky (2007), tende a repercutir na evolução das crianças e está correlacionado
à comunicação e a relação com os indivíduos.
Nesse sentido, a escola cumpre a função fundamental de articular seus ensinamentos entre
teoria, vivências e inserir nela a realidade social, local, regional, cultural e econômica do seu aluno.
A Base Nacional Comum Curricular atribui às escolas uma parcela significativa de elementos da vida
da comunidade a sua volta, portanto não se pode pensar em educação escolar sem mencionar a
pluralidade se apresenta as relações humanas.
O ambiente escolar se apresenta como dinâmico, diverso e representa a realidade social ao
qual está inserido. Por isso, na escola pública se apresentam diversos marcadores sociais da diferença
como: classe, raça, gênero, sexualidade, religião, estrutura familiar, orientação política e etc. Também
é na idade escolar que nos encontramos com as mais diversas formas de se pensar a sexualidade
humana na vivência, por que é na adolescência que surgem os desejos e as descobertas eróticas
(SEFFNER,2017). Surge neste espaço a oportunidade de se conviver com as diversas performances
de masculinidades, feminilidades e expressões de gênero.
Objetivamos portanto, lançando mão de uma metodologia que consiste em uma pesquisa
qualitativa descritiva, bibliográfica e documental (GIL, 2002), traçar uma perspectiva sobre a
necessidade da escola assumir um papel de debater a diversidade em seu território. Além disso,
vislumbrar a importância das discussões de gênero e sexualidade na educação básica.
Neste texto abordaremos discussões sobre a escola como elemento formador de
identidades (SILVA, 2015; BRANDÃO, 2007) a partir do viés onde o aluno não é um sujeito

1409
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
passivo do processo de ensino-aprendizagem, mas que traz consigo vivências, realidades e
conhecimentos ensinados pelos indivíduos a sua volta. Ou seja, não trata-se de uma educação bancária
(FREIRE, 2001), mas sim, de um processo dialético entre professor e aluno. Os marcadores de gênero
e sexualidade (BUTLER, 2003; LOURO, 2008; SEFFNER, 2011, 2016, 2017) e as perspectivas sobre
a inserção destes assuntos no ambiente escolar. Por fim, debatemos como a escola pode realizar esse
debate e apontamos como tais abordagens podem auxiliar nas desconstruções de identidades
hegemônicas e construções de identidades dissidentes.

ESCOLA COMO INSTITUIÇÃO FORMADORA


O processo de ensinar e aprender está presente na história da humanidade e é através dele que
repassamos ao longo dos séculos conhecimentos adquiridos nas diversas áreas do conhecimento e da
vida humana. O ato de ensinar nas sociedades primitivas estava ligado diretamente a reprodução da
cultura, das crenças, dos saberes e, especialmente como forma de manter viva a história de um povo
e seu legado. De acordo com Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2011, p. 184) a “cultura se refere à
ação direta do homem, por meio de técnicas, na transformação física do ambiente”, ou seja, ao longo
do tempo esse papel de repassar os saberes foram atribuídos a determinados indivíduos.
A concepção sobre escola que temos hoje emergiu a partir da Revolução Industrial que atribui
à instituição um status de detentora do conhecimento e de suas especificidades. No entanto, é preciso
pontuar que a educação nem sempre aconteceu nos bancos escolares e com certeza não acontece
exclusivamente nele. Concordamos com Ferreira (2018) ao afirmar que “o ensinar e aprender está
nos mais diversos espaços e pode ser compreendido das mais diversas formas”, porém o modelo
educacional que construímos atribui à educação formal e a escola a detenção do conhecimento
científico e, consequentemente, a única verdade.
Nela somos ensinados a como devemos nos portar, andar, viver, conhecer e o que é, e o que
não é correto fazer para viver no coletivo. A educação constrói diferentes tipos de sociedades, pois
estimula o “processo de produção de crenças e ideias, de qualificações e especialidade que envolvem
as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades (BRANDÃO,
2007, p. 11).
A escola também vai assumir um papel importante na sociedade capitalista, uma vez que
ela fornece ao mercado de trabalho mão de obra qualificada, visando ampliar o lucro dos

1410
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
detentores dos meios de produção. De acordo com Matos (2002) isso aconteceu na Europa por volta
do século XIX e no Brasil somente no século XX, após a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Nesse
sentido, entendemos que a instituição escolar de forma direta ou indireta tem um alinhamento neste
modelo de sociedade. Nas palavras de Silva (2015, p. 148) o espaço de educação formal e o currículo
tradicional que foi – e é – utilizado nas escolas está ligado a uma ideologia dominante é "[...] um
aparelho ideológico do Estado capitalista”.
Neste sentido, a ideologia dominante se apresenta de diversas formas dentro do âmbito
escolar, seja pelo processo de desenvolvimento do aluno para projetar seu lugar no mercado de
trabalho ou na formulação e construção de ideais que estão ligados à ideia de certo e errado para esses
sujeitos, moldando suas expressões e seus corpos. É importante lembrar que a escola está inserida
dentro de uma sociedade e de sua cultura, sendo assim, fala e reflete sobre as suas vivências externas
e internas. A escola assume uma tradição tradicional na sua estrutura e na maioria das vezes tem como
foco apenas a preparação para o indivíduo ao mercado de trabalho.

Aqui, quando falamos de uma aprendizagem mais aberta, queremos nos referir a uma
instituição - escola - marcada pela sua história, que vem elaborando e reelaborando a
construção do conhecimento dentro de uma tradição educacional, marcada também pelas suas
crises. Essa escola visa à formação pessoal do cidadão e do trabalhador, para a transmissão
de conhecimentos, competências, habilidades, capacidades, atitudes, hábitos e valores éticos
e morais, que devem constituir a tela de fundo dos programas de educação formal (PRETTO,
2015, p. 14).

É sob esse aspecto que merece reflexões sobre quando a escola vai cumprir seu primeiro
objetivo que a preparação do alunado para o convívio em sociedade, uma vez que essa preparação
está nas distintas relações sociais, humanas e nas identidades nela presente. Assim, cabe aqui tecer
algumas ponderações sobre a estruturação da escola pública brasileira, com um olhar para os
marcadores de gênero e sexualidade, eixo central das discussões do texto em tela.
A educação constitui-se ao longo dos séculos como um marcador de poder, riquezas e
privilégios. Os educandários brasileiros sempre estiveram como um braços das elites para determinar
como seria dividido o Brasil e, fundamentalmente, para perpetuar as desigualdades sociais.
O cenário encontrado na escola reflete o que se vê dos portões para fora. As narrativas
hegemônicas fazem parte do contexto escolar desde a sua instauração até os dias atuais. Segundo
Passos, Puccinelli e Rosa (2019), as narrativas hegemônicas são os discursos que colaboraram
para a construção da sociedade moderna, centralizando essa construção na experiência ocidental
1411
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
de humanidade, projetando um ser ideal, uno e indivisível. Ou seja, criando, a partir dessa visão, um
padrão a ser seguido, ideal de cidadão.
A história da escola pública brasileira apresenta uma realidade permeada por ideais ligados a
uma pequena parcela da população, especialmente a uma elite branca, cristã (praticante ou não),
classe média e heterrossexual. Esse processo de criação e consolidação da educação pública que inicia
no XVI, a partir das escolas jesuítas com objetivo de catequizar os povos originários e propagar a fé
cristã e estende-se ao longo de todo processo da educação no território brasileiro. A Igreja só perde a
sua influência (pelo menos no papel) a partir da Constituição Federal de 1988, mas continua atuando
de forma presente nos bastidores através de estímulos aos responsáveis mencionando que alguns
conteúdos não poderiam ser ministrados na escola.
Nesse aspecto, a educação embora ela não assuma um caráter padronizado, pois a constituição
aponta para a necessidade da valorização da diversidade de pensamentos no ambiente escolar, há uma
ideologia que foi construída e encontra-se arraigada na estrutura escolar. Concordamos com Keith
Braga, Cataeno e Arilda Ribeiro ao afirmarem que

Eles são configurados por sistemas de interesses, sejam estes elaborados pelos sujeitos que
estão diretamente nas práticas escolares cotidianas ou por aqueles que, na gestão curricular,
orientam/determinam o que deve ser ensinado na escola (2018, p. 14).

Ou seja, os profissionais da educação podem ser pensados em duas perspectivas: como


conhecedor de determinada área do conhecimento ou como adulto referência, que opera a educação
diferentemente da que se tem no lar apresentando os novos horizontes e despertando a criticidade dos
alunos (SEFFNER, 2016). Cabe então a esse profissional observar o mundo com esse viés e
oportunizar a inclusão de novos temas aos espaços e currículos escolares ou não. Portanto, é preciso
que a escola reveja a sua atuação, pois é através de suas modificações “não enquanto essencialmente
boas ou ruins, mas, por serem intencionais, representam o desenvolvimento de um projeto de humano,
de cidadão, de sujeito que se quer produzir, fabricar (KEITH BRAGA; CAETANO; ARILDA
RIBEIRO, 2018, p. 16). A escola contribui para a manutenção da norma vigente, mas também
contribui para a repressão dos sujeitos que fogem dessa norma e apresentam identidades dissidentes.
Ainda nesse aspecto de normatização da escola sobre os sujeitos que estão presente nela
é oportuno mencionar que no território escolar diversos alunos e alunas vão assumir ou

1412
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
identidades de gênero e sexuais que fogem a heterossexualidade, portanto “não podemos negar a força
com que as instâncias educativas heteronormativas atravessam os sujeitos, ao ponto de que a
heterossexualidade seja a única alternativa de viver a sexualidade e projetar socialmente o gênero
(KEITH BRAGA; CATAENO; ARILDA RIBEIRO, 2018, p. 19).

MARCADORES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

No cenário escolar as discussões sobre gênero e sexualidade estão presentes a todo momento,
seja numa partida de futebol, nas paredes dos banheiros, na sala de aula quando são criados
estereótipos e nas falas sobre as relações interpessoais. Esses movimentos, costumes e acessórios
constituem o que conhecemos como gênero. Essa construção se dá numa perspectiva hegemônica,
desvinculada da pluralidade de expressões, ou seja, deve-se seguir um tipo de comportamento para
ser considerado masculino ou feminino.
As discussões da teoria queer sobre a problematização da heterossexualidade começa na
década de 80, questionando e buscando entender como se formula essa norma dentro da nossa
sociedade. No contexto de gênero e sexualidade, estamos inseridos numa norma que é conhecida
como heteronormatividade, ou heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003), que parte do
princípio de que todos devemos seguir essa lógica.
Num contexto social onde há uma onda de movimentos conservadores e desfavoráveis à
diversidade, continua-se propagando informações falsas sobre uma parcela da população, erguendo
estigmas sociais e preconceitos que ferem diretamente às pessoas que fogem dessa lógica
heteronormativa e cisgênera, sendo marginalizadas e excluídas de diversos ambientes e convívios.
Isso não é diferente no contexto escolar, onde se estabelece essas relações observadas fora e inseridas
nas relações dentro da escola.
Isto posto, precisamos pensar a escola como um ambiente extremamente generificado. Nas
séries iniciais há filas para meninos e meninas, na educação física há divisões de times e esportes que
são marcados separados pelo gênero. Nela aprendemos noções de papéis sociais que acabam por
reproduzir a norma, as hegemonias, mas sobretudo as cisgeneridade e heterossexualidade. A escola
quando não assume o papel de debate sobre gênero, sexualidade, masculinidades e feminilidades

1413
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
por se transformar um ambiente severo aos alunos que assumem identidades diferente da hetero-
cisnormatividade.
Concordamos com Guacira Lopes Louro (2011, p. 64) ao afirmar que

os significados atribuídos aos gêneros e às sexualidades são atravessados ou marcados


por relações de poder e usualmente implicam em hierarquias, subordinações, distinções.
Implicada nessas classificações está uma noção muito utilizada na contemporaneidade – a
noção de diferença.

Ou seja, por ser um espaço extremamente generificado e regido a partir do discurso normativo,
cria-se um imaginário de quem foge a essa regra deve ser punido. A punição vai assumir o papel das
práticas lgbtfóbicas, da exclusão, dos apelidos pejorativos, da expulsão dos espaços socialização, mas
também das agressões físicas e tentativa de transformar esse corpo como pertencente a norma. Nesse
sentido, não precisamos apenas pensar em incluir esse aluno nos grupos hegemônicos formados na
escola, todavia precisamos repensar a formação que esses alunos estão recebendo para praticar a
exclusão.
Sob esse ângulo, temos que pensar a práxis educacional enquanto elemento que precisa
fomentar as diversidade na escola, pois infelizmente a naturalização da heterossexualidade implica
na sua concepção histórica e tradicional. Em outras palavras, a heterossexualidade compulsória é
aplicada às crianças e adolescentes, mas fundamentalmente atinge os corpos masculinos. Segundo
Guaciara Lopes Louro

Isso ocorre porque ela se constituiu, historicamente, como um campo normalizador e


disciplinador. O campo da Educação opera, muito expressivamente, na perspectiva da
heteronormatividade – ou seja, dentro da norma heterossexual, quer dizer, no entendimento
de que todo mundo é, ou deveria ser, heterossexual (2011, p. 66).

Ainda segundo a autora

O processo de heteronormatividade não apenas se torna mais visível em sua ação sobre os
sujeitos masculinos, mas aparece aí, mais frequentemente, associado à homofobia. Pela
lógica dicotômica que vivemos, os discursos e as práticas que constituem o processo de
masculinização implicam a negação de práticas ou características referidas ao gênero
feminino e essa negação se expressa, muitas vezes, por uma intensa rejeição ou repulsa dessas
práticas e marcas femininas (o que caracterizaria, no limite, a misoginia) (GUACIRA LOPES
LOURO, 2011, p. 67).

1414
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
COMO OU POR QUE UTILIZAR
O artigo tem tela instiga-nos a pensar “Quando a escola não me ensinou a não ser hétero?”. A
pergunta provocativa tem como objetivo nos remeter a nossa vivência escolar e pensar nas suas
múltiplas práticas, concepções pedagógicas, processos de ensino-aprendizado que estiveram presente
em nossa formação que possa apontar um único momento que a escola realizou um debate que a
norma não fosse colocada como elemento central. A pergunta retórica é justamente para tecermos
alguns apontamentos de como podemos desnaturalizar os processos de formação, mas sobretudo, dar
voz, vez e visibilidade às identidades dissidentes que apresentam-se no espaço escolar.
A discussão de gênero e sexualidade nos espaços escolares não implica “deixar de lado a
tradicional função de alfabetização científica, a escola representa hoje um grande atrativo para a
sociabilidade de crianças e adolescentes” (SEFFNER, 2011, p. 109). Pelo contrário, a inserção dos
temas nos projetos, nos debates, no cotidiano da escola enquanto tema abordado em aula - uma vez
que eles já estão presentes nos através corpos presentes na escola - é a garantia que os sujeitos
LGBTTIQ+ possam ter acesso ao conhecimento escolarizado, mas fundamentalmente terão a garantia
do direito constitucional à educação.
Ademais, quando pensamos em gênero e sexualidade na escola estamos pensando em uma
escola que tenha como cerne a necessidade de preparar seu alunado ao convívio em sociedade, uma
vez que os LGBTTIQ+ estão presentes nos mercados, lojas, farmácias, bares, restaurantes, festas,
praças, metrôs, ruas, vivem, constituem famílias, mas acima de tudo são cidadãos e merecem que
seus direitos sejam reconhecidos e assegurados. Dessa forma, quando pensamos uma educação que
tenha os temas já mencionados como um dos tema transversais e presente nas salas de aula através
dos currículos escolares estamos priorizando menos excludente.
Seffner (2011), destaca que diversos marcadores sociais da diferença são “aceitos” ou
“tolerados” na escola através da dita “inclusão”, dentre eles cabem mencionar os mais pobres, os
oriundos de famílias ditas “desestruturadas”, os negros, os indígenas e as pessoas com deficiência.
No entanto, quando abordamos questões voltadas as diversas orientações sexuais ou identidades de
gêneros, os sujeitos na maioria das vezes, são vistos como “anormais” e “culpados” por serem o que
são e, portanto, não merecem serem incluídos. O autor ainda destaca que:

1415
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
a escola não tem como resolver todos os problemas de estigma e discriminação que
atingem gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros. Mas ela pode fazer sua
parte enquanto essas pessoas são alunos e alunas (SEFFNER, 2011, p. 111).

A abordagem dos temas gênero e sexualidade no currículo escolar reduziria


significativamente o número de casos de preconceito aos LGBTTIQ e, por conseguinte, a evasão
escolar. Para isso de acordo com Seffner (2011, p. 111) precisamos além de universalizar o acesso à
educação, produzir uma escola multigênero, multicultural, multirracial, multisexual, multifamiliar,
multireligiosa, etc.
Diversos são os casos de violência contra essa parcela da população que foge ao padrão
heteronormativo, sendo dentro ou fora da escola. Observando que a escola é, além da instituição que
apresenta conhecimentos científicos, um local de socialização (SEFFNER, 2017) dos alunos com os
colegas, professores e funcionários, caso haja esse debate sobre a diversidade de expressões de
gêneros e sexualidades, o alunado iria estar preparado e consciente do respeito à diversidade, ou seja,
estaria aberto ao convívio com os demais desde a infância, naturalizando esse processo, diminuindo
a visão de anormalidade com essa parcela e, consequentemente, a violência causada pela lgbtfobia.
Deve-se levar em conta que a educação escolar não deve força nada a ninguém, nem nem
homossexual, tampouco ser heterossexual, nem escolher azul ou rosa, nem a casar ou não, mas exerce
a função de ensinar o respeito às diversidades em sua totalidade. E quando, não abre espaço para
debater sobre a diversidade causa frustração naqueles que necessitam destes momentos para fora do
espaço escolar não sofrerem violências e se sentirem acolhidos dentro da instituição.

IMAGEM 01 - Aluno sofre agressão em sala de aula.

Fonte: Correio Braziliense (2017).

1416
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
IMAGEM 02 - Aluno de vítima de homofobia.

Fonte: Terra (2012).


As imagens acima demonstram como o ambiente escolar está demarcado pela norma e que os
sujeitos que fogem a ela acabam por serem penalizados. As agressões sofridas por esses alunos e
alunas demonstram o quanto a escola necessita criar ações para potencializar o debate e respeito a
diversidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O espaço escolar é múltiplo e recebe as diversas manifestações do ser e existir. A escola tem
em sua função principal socializar os alunos (as) para que possam conviver com as diversidades e,
consequentemente, a vivência no coletivo. A escola não tem entre suas atribuições ensinar padrões
de gênero ou sexualidade, pelo contrário, nela devem ser respeitadas as diversas orientações sexuais
e identidades de gênero.
A escola está longe de ensinar a não ser hétero, pelo contrário, os discursos vigentes a força
da norma que se apresenta no ambiente escolar instituem a chamada heterossexualidade compulsória
que nega e culpabiliza qualquer outra forma de sexualidade. Portanto, estamos diante de um longo
caminho a ser trilhado para que os alunos e alunas que não se enquadrem dentro do padrão branco,
cisgênero e heterossexual tenham na escola um espaço plural e democrático.

REFERÊNCIAS
ALICE LOPES, Casimiro; ELIZABETH MACEDO Teorias do currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação? São Paulo: Brasiliense, 2007.

FERREIRA, Ewerton da Silva. DIVERSIDADE? PARA QUEM? DISCUSSÕES SOBRE O


CURRÍCULO ESCOLAR COMO POSSIBILIDADE DE PERMANÊNCIA DE ALUNOS
1417
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(AS) LGBTTIQ NO AMBIENTE ESCOLAR. 2018. 79 f. Trabalho de Conclusão de Curso em
Licenciatura em Ciências Humanas – Universidade Federal do Pampa, São Borja – RS.

GIL, Carlos Alberto. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2020.

KEITH BRAGA, Daiani da Silva; CAETANO, Márcio; ARILDA RIBEIRO, Ines Miranda. A
educação e o seu investimento heteronormativo curricular. Momento: diálogos em educação, v. 28,
n. 3, p. 12 - 29, set/dez, 2018.

LOURO, Guacira Lopes. Educação e docência: diversidade, gênero e sexualidade. Revista Brasileira
sobre Formação Docente, Belo Horizonte, v. 03, n. 04, p. 62-70, jan/jul. 2011.

SEFFNER, Fernando. Escola para todos: mesmo para aqueles que manifestam diferenças em sexo e
gênero. In. SILVA, Fabiane Ferreira da; MELLO, Elena Maria Billig. Corpos, gêneros,
sexualidades e relações étnico-raciais na educação. Uruguaiana - RS: UNIPAMPA, 2011.

SEFFNER, Fernando. Escola pública e professor como adulto de referência: indispensáveis em


qualquer projeto de nação. Educação Unisinos, v. 20, p. 48-57, 2016.

SEFFNER, Fernando. Tem nexo não falar sobre sexo na escola? Revista Textual, v. 1, p. 22-29,
2017.

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3 ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015

VYGOSKY, Lev S; COLE, Michael. [et al.] (Organizadores). A formação social da mente. 7ª. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.

1418
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
GT
– LGBTIFOBIA,RESISTÊNC
IA E CUIDADO DE SI
COORDENAÇÃO

Me. Roselaine Dias - REDE LESBI BRASIL


Dra. Dayana Brunetto – UFPR

1419
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
HOMOFOBIA CATÓLICA: FUNDAMENT(OS/ALISMOS) BÍBLICOS E MAGISTERIAIS

André Luís da Rosa586

Resumo: O cristianismo inaugurou no ocidente a homofobia de uma forma que não havia sido praticada por outra
civilização, nenhuma cultura viu com tanto horror a homossexualidade como o Ocidente cristão, diferente das sociedades
pagãs em que ela gozava de um certo grau de tolerância. Nesse horizonte, a presente comunicação tem o objetivo de
realizar uma análise histórico-crítica dos textos bíblicos que deram fundamentação para a teologia homofóbica católica,
bem como dos recentes documentos do magistério romano sobre o tema, que têm sido produzidos como uma resposta à
luta por direitos do movimento LGBTQIA+. É a partir destes fundamentos que a Igreja define que o uso do sexo só é de
acordo com a natureza quando ocorre dentro do casamento heterossexual monogâmico e com vistas à procriação, qualquer
outro uso das faculdades sexuais é moralmente errado. Por isso, não há possibilidade de aprovação da homossexualidade
para a doutrina católica.

Palavras-chave: Homofobia; Igreja Católica; Teologia.

INTRODUÇÃO

Com a decadência do Império Romano e a expansão progressiva do cristianismo na Europa,


a homossexualidade que gozava de um certo grau de tolerância passou a ser condenada em sua
totalidade, uma vez que as condutas homossexuais no judaísmo, do qual o cristianismo é herdeiro de
sua repulsa à homossexualidade, são consideradas como uma transgressão à lei divina e, portanto,
deveriam ser condenadas e perseguidas criminalmente. Assim, na Igreja Católica, as leis anti-
homossexuais não se tornaram letra morta, condenando-os à fogueira durante toda a história devido
ao vício de sodomia (RANKE-HEINEMANN, 2019). Por isso, como comenta Jorge Valenzuela
(2004), em nenhuma cultura a homossexualidade tem sido vista com tanto horror como no Ocidente
judaico-cristão.
Daniel Borrilo (2016), explicando a raiz cristã da homofobia, afirma que:

O cristianismo, herdeiro da tradição judaica, transformará a heterossexualidade no único


comportamento suscetível de ser qualificado como natural e, por conseguinte, como normal.
Ao outorgar esse caráter natural, em conformidade com a lei divina, as relações sexuais entre
pessoas de sexo diferente, o cristianismo inaugurou, no Ocidente, uma época de homofobia,
totalmente nova, que ainda não havia sido praticada por outra civilização.

586
Doutorando em Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória.
Graduado em Filosofia pela Faculdade São Luiz. E-mail: andreldarosa@hotmail.com
1420
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Assim, na mesma direção, Luiz Mott (2016), antropólogo, fundador do Grupo Gay da Bahia,
que é ex-dominicano, afirma que a homofobia é ‘uma praga cristã’, pois este ódio irracional contra
os/as LGBTQIA+ é uma verdadeira praga inspirada e legitimada pela tradição abraâmica, que está na
base das três religiões mais homofóbicas da história humana: o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo. Por isso, na sociedade ocidental, herdeira da moral judaico-cristã, o amor entre pessoas
do mesmo sexo foi considerado e tratado como crime dos mais graves, equiparado ao regicídio e à
traição nacional. O sexo entre dois homens era considerado tão horroroso que os réus deste delito
hediondo deviam ser punidos com a pena de morte: a pedradas entre os antigos judeus e até hoje nos
países islâmicos fundamentalistas; decapitados, no tempo dos primeiros imperadores cristãos;
enforcados ou afogados na Idade Média; queimados pela Santa Inquisição. Apesar de a
homossexualidade ter sido descriminalizada há quase dois séculos com o fim da Inquisição
Portuguesa, em 1821, e, em 1823, no Império do Brasil, LGBTQIA+ continuam sendo tratados como
criminosos e sofrendo os mais diversos tipos de violência homofóbica. Como reflete Mott (2016),
ainda hoje, quando se ouve de norte a sul do Brasil a sentença de morte: “viado tem mais é que
morrer!”, inconscientemente está-se repetindo o milenar veredito atribuído à própria vontade divina:
“o homem que dormir com outro homem, como se fosse mulher, deve ser apedrejado!”.
Nas últimas décadas a Igreja veio a público pedir perdão a algumas de suas vítimas no decorrer
da história, como Galileu, a comunidade judia, indígenas, descendentes de escravos. Todavia, a Igreja
não se arrependeu das atrocidades cometidas contra homossexuais, muito pelo contrário, ela persiste
em justificar as discriminações das quais eles ainda são vítimas. Apesar de uma aparente mudança de
tom - em que a Igreja (1992) afirma em seu catecismo que “eles devem ser acolhidos com respeito,
compaixão, delicadeza. Evitar-se-á, para com eles, qualquer forma de discriminação injusta” -, a
homofobia católica persiste, principalmente após o surgimento dos movimentos feminista e
LGBTQIA+ em que a hierarquia católica radicalizou seus discursos e ações contra os direitos
humanos e a dignidade das minorias sexuais. Porém, atualmente, em vez de lançar os sodomitas na
fogueira, a Igreja defende que deve-se acolhê-los com compaixão a fim de que, na melhor das
hipóteses, fiquem curados e, na pior, possam viver na abstinência do celibato. Assim, a homofobia
católica tornou-se menos extrema e mais sutil, pois já não é a homossexualidade enquanto fenômeno
individual que será o objeto da condenação eclesiástica, já que os homossexuais enquanto
indivíduos devem ser aceitos na Igreja como qualquer pecador em busca de Deus, pois eles são

1421
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
vítimas dessa “desordem objetiva” (IGREJA CATÓLICA, 1992). O objeto de condenação do
magistério torna-se a homossexualidade enquanto luta e manifestação política na esfera pública, a
reivindicação por direitos LGBTQIA+, especialmente em relação à criminalização da homofobia, ao
casamento e adoção de filhos por casais do mesmo sexo (BORRILLO, 2016).

A HOMOSSEXUALIDADE NA BÍBLIA

A fundamentação teológica e também jurídica da homofobia no mundo abraâmico possui


como base alguns poucos versículos bíblicos do Antigo Testamento e das Epístolas de Paulo e Pedro.
Cinco destas passagens, que ficaram conhecidas como “textos de terror”, são as mais recorrentes na
condenação da homossexualidade (Gn 19, 1-11; Lv 18, 22; Rm 1, 26-27; 1Cor 6, 9-10; 1Tm 1, 9-10).
Estes textos foram utilizados por muito tempo como argumentos sagrados indiscutíveis para condenar
os ‘sodomitas’ a castigos cruéis. Porém, a leitura histórico-crítica da bíblia tem demonstrado a
ilogicidade dessas condenações em base a tais passagens, que foram realizadas com más traduções e
interpretações machistas e contraditórias (MOTT, 2010). Dentro deste campo de interpretação da
bíblia, em oposição à leitura fundamentalista,587 tem-se chegado à conclusão, segundo Claude Besson
(2015, p. 58), que “não se pode pedir que a bíblia responda à questão da homossexualidade tal como
ela se coloca hoje em dia e, em nenhum caso, é possível basear-se nesses poucos trechos para
condenar a homossexualidade”.
Esta conclusão se dá pelo fato de que há uma distância milenar entre nós e o texto bíblico, o
qual foi escrito num mundo completamente diferente do nosso, em que não havia uma compreensão
mais elaborada da homossexualidade como orientação sexual, apenas certa consciência genérica de
atos ou contatos entre pessoas do mesmo sexo, diferentemente da questão atual que gira em torno da
identidade das pessoas e de seus relacionamentos, não apenas em relação aos seus atos sexuais.
Distinta da noção moderna de identidade - que possui como característica marcante a convicção de

587
A abordagem fundamentalista da bíblia afirma entender o texto unicamente conforme o que ele diz literalmente.
Esta abordagem afirma não interpretar o texto, mas simplesmente lê-lo como ele é, seu significado já está dado
independente de fatores históricos-culturais, pois a bíblia é a palavra revelada por Deus para todos os tempos. Com
base nessa premissa, afirma-se que a bíblia condena a homossexualidade em diversas passagens. Já a abordagem
histórico-crítica lê a bíblia em seu contexto histórico e cultural original. Esta abordagem considera o significado do
texto, da melhor maneira possível, tal como era segundo as intenções de seus autores humanos, em sua própria época
e a sua própria maneira. Nesta forma de interpretação a bíblia não trata das nossas questões atuais sobre a ética
sexual. A bíblia não condena o sexo gay tal como ele é entendido hoje (HELMINIAK, 1998).
1422
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
que cada indivíduo possui uma ‘profundeza interior’, uma interioridade, onde se localiza o seu ‘eu’
como centro organizador da pessoa -, a antropologia hebraica do primeiro testamento localiza o ‘eu’
em seus papéis sociais e relações públicas; um israelita desengajado da família e da comunidade não
é um eu que se possa falar significativamente, fora da sociedade não há marcador de identidade
pessoal. Desta mesma forma, não há para o povo hebreu um domínio que corresponda à moderna
noção de sexualidade. Por isso, como esta não era uma questão que os autores bíblicos tinham em
mente não se pode esperar que a bíblia apresente uma resposta sobre ela. A discussão, à época, estava
apenas direcionada para a homogenitalidade, que não era condenada em si mesma, mas em contextos
ligados à idolatria, por exemplo (HELMINIAK, 1998; DI VITO, 2005).
Mesmo não tratando da questão da homossexualidade, a partir do relato da criação de Gênesis
a Igreja estabelece a heterossexualidade universal, pois o texto afirma que há um Deus criador que
nos fez homens e mulheres e que devemos procriar: “E criou Deus o homem à sua imagem: a imagem
de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: frutificai e
multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a” (Gn 1, 27-28). Segundo Regina Soares Jurkewicz
(2005), muitos daqueles/as que pensam que a homossexualidade deve ser rechaçada recorrem a este
texto para sustentar sua posição, porém o relato bíblico não pretende estabelecer um imperativo ético,
pois se assim o fosse os versículos seguintes e anteriores teriam o mesmo propósito. Um desses
versículos, a título de exemplo, o Gênesis 2:3, - “Deus então abençoou e santificou o sétimo dia,
porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador” -, estaria colocando o
imperativo da observação do sábado para todo o sempre; no entanto, a maioria dos cristãos ignora a
instituição do sábado. Ou seja, não é pela autoridade das Escrituras, mas sim pela tradição, que os
cristãos deixaram de observar o sábado. Então, por que outros elementos do relato da criação devem
permanecer como regras morais, absolutas e inalteráveis? Na verdade o objetivo dos dois primeiros
capítulos de Gênesis, segundo Helminiak (1998), é mostrar a imagem de um mundo bom de beleza e
prazer que Deus criou, mas as pessoas fizeram mal uso da criação e a vida tornou-se mais difícil e
triste. Assim, Gênesis 1 e 2 é uma lição religiosa e não uma lição sobre orientação sexual.
Uma das mais conhecidas passagens utilizadas para a condenação da homossexualidade, que
deu origem ao termo sodomita para referir-se aos homossexuais, é da de Gn 19, 1-11, que narra a
história de Lot, que foi nômade e vivia em Sodoma, onde a hospitalidade era sagrada. Ele acolheu
dois viajantes em sua casa para passar uma noite (para a bíblia os viajantes eram anjos). Os

1423
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
moradores de Sodoma foram até a casa de Lot e disseram que queriam ‘conhecer’ os viajantes, que
na linguagem bíblica significa ter relações sexuais. Lot ofereceu suas duas filhas virgens aos
moradores de Sodoma para não fazerem nada aos viajantes. Por isso, os anjos avisaram a Lot que
Deus iria destruir a cidade de Sodoma (BESSON, 2015). Os exegetas hoje em dia estão de acordo em
dizer que não é a presumida homossexualidade dos habitantes de Sodoma que provocou a ira de Deus,
mas a agressão coletiva, o ato gratuito de violência sexual, a falta de acolhimento do estrangeiro e da
hospitalidade. Portanto, o pecado de Sodoma foi o de recusar a hospitalidade aos que visitavam Lot,
a ponto de tentarem violentá-los sexualmente. Vários séculos depois este pecado foi identificado com
a homossexualidade, mas, na sua origem, ele não tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo.
Os outros textos bíblicos que fazem referência ao episódio de Sodoma nunca enfatizam a
homossexualidade, nem mesmo a violência sexual, mas a falta de hospitalidade; apenas a Epístola de
Judas faz alusão a Sodoma com uma conotação sexual. Há um texto de Jz 19 que traz um relato
semelhante ao de Sodoma, onde um levita e sua concubina hospedaram-se na cidade de Gabaá e os
habitantes da cidade estupraram a concubina até a morte, por isso a Gabaá também foi completamente
destruída. Porém, não se interpreta esse texto como uma condenação da heterossexualidade, como
fizeram com a homossexualidade em Sodoma. Por isso, a interpretação da história de Sodoma é
tendenciosa ao enfatizar o fato dos homens quererem ter relação sexual com os viajantes, mas não
problematizar o fato de Lot ter oferecido suas filhas para um estupro coletivo, assim como no estupro
da concubina em Gabaá, pois a mensagem nos dois casos é a condenação da violência sexual e da
falta de hospitalidade ao estrangeiro, não da homossexualidade (LIMA, 2015).
Em Sodoma não há uma preocupação específica com os atos homogenitais, preocupação esta
que só aparece no primeiro testamento no livro de Levíticos, em dois versículos: em 18, 22 encontra-
se: “não deitarás com um homem como se deita com mulher; isto seria uma abominação”; e em 20,
13: “quando um homem deita com um homem como se deita com mulher, o que ambos fizeram é
uma abominação; eles serão mortos, o seu sangue recairá sobre eles”. Estes versículos fazem parte de
um conjunto literário chamado de ‘Lei da Santidade’, ou ‘Código Sagrado’, que estabelece uma lista
de preceitos e castigos para que o povo de Israel permaneça santo, afastando-se dos comportamentos
dos pagãos (VIDAL, 2008; BESON, 2015). Assim, para os antigos israelitas praticar atos
homogenitais significava ser como os gentios, era o equivalente a identificar-se com os não
judeus, era uma traição à religião. O código sagrado proíbe o ato sexual entre homens devido a

1424
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
considerações religiosas, e não sexuais, pois ele era associado aos ritos religiosos pagãos, à idolatria
e à identidade gentia. Tal condenação é irrelevante em nosso contexto, pois o sexo gay em nossa
cultura não é parte de rituais religiosos, fazendo ver que a proibição de Levítico não faz qualquer
sentido em relação à discussão atual da homossexualidade, já que se trata de uma questão religiosa
de manutenção da identidade judaica e combate da idolatria, e não uma análise ética ou moral do ato
homogenital em si (Helminiak, 1998). Vale destacar a observação de Luiz Corrêa Lima (2012) de
que o código de santidade também proíbe com o mesmo rigor: trabalhar no sábado, comer carne de
porco ou frutos do mar, aparar o cabelo ou a barba, usar roupa tecida com duas espécies de fio, plantar
tipos diferentes de semente em um mesmo campo, entre outras várias regras. Com o nascimento do
cristianismo a Lei de santidade não se tornou uma norma para a nova religião, não levando ao pé da
letra estas leis e reinterpretando-as. Entretanto, o versículo que condena os atos homogenitais
continuou valendo para o cristianismo, sem considerar o seu contexto, realizando uma interpretação
seletiva de acordo com os seus interesses.
No segundo testamento, tanto Jesus quanto os evangelhos ignoram a questão da
homossexualidade, não fazendo nenhuma menção a ela. Já o apóstolo Paulo, ao refutar o politeísmo,
o associa ao homoerotismo, pois eles não adoravam o Deus único e ainda permitiam essa prática
sexual que era vista como abominação para os judeus (LIMA, 2015). Em Rm 3, 21-22, Paulo diz:

Por isso Deus os entregou a relações degradantes: suas mulheres mudaram as relações
naturais por relações contra a natureza; os homens, igualmente, abandonando as relações
naturais com a mulher, inflamaram-se de desejos uns pelos outros, cometendo a infâmia de
homem com homem e recebendo em sua pessoa o justo salário de seu desregramento.

Embora a Igreja utilize esta passagem para fundamentar que a homossexualidade é contrária
à lei natural, segundo Daniel Heminiak (1998), a partir do método histórico-crítico, em Paulo a
expressão relações ‘contra a natureza’ (para physin) não possui o sentido de uma lei universal, como
para os estoicos, mas serve para designar algo que é atípico, que foge do ordinário, comum, padrão e
esperado socialmente. Em outras passagens Paulo utiliza a mesma expressão para referir-se a
características étnicas, culturais e costumes sociais, como: os que são judeus por natureza (Gl 2, 15),
gentios por natureza (Rm 2, 27), que a natureza ensina que é uma desonra para o homem usar o cabelo
comprido (1 Cor 11, 14), e até mesmo em Rm 11, 24 Paulo utiliza a expressão para physin para
referir-se ao modo como Deus acolheu os gentios na Igreja. Nesse sentido, segundo Rita Lima

1425
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
(2011), para Paulo até Deus seria antinatural, imoral. Por isso, não se pode utilizar esta passagem para
afirmar que a homossexualidade não está de acordo com a natureza, pois ela apenas fala que estas
relações não eram comuns em relação àquelas normalmente adotadas pelas pessoas.
Nas cartas a I Coríntios e I Timóteo, Paulo afirma que o reino de Deus está negado para os
homossexuais, incluindo este comportamento entre os mais graves, inscrevendo-o em um catálogo
de pecados. Em 1 Cor 6, 9-10 encontra-se: “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de
Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem
os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os
roubadores herdarão o reino de Deus”. E em 1 Tm 1, 9-10: “Sabendo isto, que a lei não é feita para
o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e
irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os devassos, para os sodomitas,
para os roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros, e para o que for contrário à sã
doutrina”. O problema de interpretação destes dois textos está em duas palavras gregas, malakoi e
arsenokoitai, que devem ser entendidas em seu contexto. No decorrer das traduções da bíblia estas
palavras já ganharam muitos significados. Para malakoi: ‘homossexuais’, sodomitas, molestadores
de crianças, pervertidos, e até masturbadores. Para arsenokoitai: efebos, efeminados, meninos
prostitutos e até mesmo maricas. Assim, as traduções da bíblia foram mudando conforme os
preconceitos e alvos da Igreja, chegando a traduzir arsenokoitai, em um texto do século I, por
‘homossexuais praticantes’, exatamente o que a Igreja passou a combater a partir de 1970. Tais
textos lidos em seu contexto também não dizem nada sobre os relacionamentos gays, apenas
condenam as formas abusivas de sexo associadas à atividade homogenital (HEKMINIAK, 1998).

A HOMOSSEXUALIDADE NOS DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO ROMANO

Apesar destes avanços na interpretação bíblica e na compreensão da ciência em relação à


sexualidade humana, a Igreja Católica continua repetindo como uma ladainha tais passagens de modo
fundamentalista, sem nenhuma alteração, em todos os seus documentos sobre este assunto. Em
relação a tais passagens bíblicas trabalhadas sobre a homossexualidade, a Igreja reforçou sua posição
hermenêutica na Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas
Homossexuais, de 1986 (n. 4-5), afirmando que:

1426
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
uma das dimensões essenciais de um autêntico atendimento pastoral é a identificação das
causas que provocaram confusão quanto ao ensinamento da Igreja. Entre elas, deve-se
assinalar uma nova exegese da Sagrada Escritura, segundo a qual a Bíblia ou não teria nada
a dizer acerca do problema do homossexualismo, ou até mesmo tacitamente o aprovaria, ou
então ofereceria prescrições morais tão condicionadas cultural e historicamente, que afinal
não mais poderiam ser aplicadas à vida contemporânea. Tais opiniões, gravemente erróneas
e desorientadoras, requerem, portanto, uma especial vigilância. [...] Deve-se ressaltar todavia
que, embora no contexto de uma diversidade notável, existe uma evidente coerência no
interior das mesmas Escrituras no que diz respeito ao comportamento homossexual. Por isto,
a doutrina da Igreja acerca deste ponto não se baseia apenas em frases isoladas, das quais se
podem deduzir argumentações teológicas discutíveis, e sim no sólido fundamento de um
testemunho bíblico constante.

Com esta compreensão fundamentalista, todos os poucos documentos da Igreja sobre a homossexualidade
possuem objetivo catequético de tornar clara sua posição quanto ao tema, a partir de argumentos que considera
inegociáveis neste tempo que é considerado de alto nível de corrupção moral. Seus documentos dialogam com a realidade
social em que a homossexualidade, como movimento e discurso, busca fazer-se presente tanto na sociedade quanto na
Igreja, não mais como um movimento de periferia, mas como um movimento que busca ser reconhecido como modo de
existência não-patológico de ser, sentir-se e expressar-se. Porém, a posição da Igreja continuará inflexível enquanto
defender o caráter divino da ordem da sexualidade e sua independência de qualquer construção cultural (CÂMARA,
2019). O Catecismo da Igreja Católica (1992) sintetiza os documentos anteriores e serve de base para os posteriores sobre
a homossexualidade, e, como observa Robinson (2019), aborda a questão com uma extraordinária brevidade, apenas em
três números curtos:

2357. A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que experimentam


uma atração sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo. Tem-se
revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas. A sua gênese psíquica
continua em grande parte por explicar. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta
como depravações graves, a Tradição sempre declarou que «os atos de homossexualidade
são intrinsecamente desordenados». São contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom
da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em
caso algum, ser aprovados.
2358. Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais
profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada, constitui, para a
maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza.
Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são
chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da
cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido a sua condição.
2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio,
educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela
oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da
perfeição cristã.

No catecismo a Igreja apresenta sua compreensão geral em relação à homossexualidade,


sendo seus principais argumentos os de que se trata sempre de uma ‘tendência’ que foge da norma
1427
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
natural da heterossexualidade, ou seja, ninguém é homossexual, por isso não pode ser considerada
uma identidade pessoal, uma orientação sexual com o mesmo valor que a heterossexualidade. Porém,
a Igreja distingue entre as ‘tendências homossexuais transitórias’, que são fruto de uma falsa
educação, falta de evolução sexual normal, um vício, contraída de maus exemplos, que não são
incuráveis, sendo mais fácil revertê-la com terapias; e as ‘tendências homossexuais profundamente
radicadas’, que são consideradas uma espécie de instinto inato ou uma constituição patológica;
contudo que não se deve pensar que se trata de algo intrínseco, sendo que a pessoa com esta tendência
deve viver de acordo com as orientações da Igreja e assumir sua condição como uma cruz para toda
a vida (IGREJA CATÓLICA, 1975, n. 8). Faz-se também uma radical distinção entre a ‘tendência
homossexual’ e os ‘atos homossexuais’. Nestes termos, a tendência, o sentir desejo homossexual, não
se caracteriza como um pecado, mas sim os atos sexuais homossexuais. Tal lógica é baseada na ideia
de que Deus ama o pecador mas não o seu pecado. Por isso, a Igreja deve acolher os homossexuais
mas condenar a prática de seus atos. Mesmo o catecismo admitindo que há um número não
negligenciável de pessoas com tendências homossexuais, e alguns com ‘tendências profundamente
radicadas’, cria-se uma cisão entre aquilo que estas pessoas são e os seus atos, o que sentem e fazem,
fragmentando-os por completo, pois aquilo que se faz é consequência daquilo que se é (SERRA,
2019).
A partir desta distinção entre tendência e ato, a Igreja classifica que todo ato homossexual é
‘intrinsicamente desordenado’, pois ele é contra a natureza e carece da complementaridade dos sexos
e de sua função procriativa. Como explica o teólogo James Alisson (2013), ao afirmar que todo ato
homossexual deve ser considerado mal, objetivamente desordenado, a Igreja não se disfarça de lobo
em pele de ovelha, mas mostra sua face, apresentando uma posição que para ela é ou não é, não
podendo ser relativizada. Entretanto, a Igreja reconhece não poder dizer as ‘causas’ da
homossexualidade, que “continua em grande parte por explicar” (IGREJA CATÓLICA, 1992, n.
2357). Assim, no caso afirmativo de todos os atos homoafetivos serem desordenados, a totalidade
dos avanços científicos no mundo deveria demonstrar tal fato e as pessoas gays que assumem e vivem
sua condição deveriam se autodestruir, mas, ao contrário, toda a evidência científica atualmente
disponível tem levado à conclusão de que não há patologia alguma que seja intrínseca ao ser gay, e
que as pessoas gays, perdendo o medo de viver de modo transparente, estão superando muitos
problemas psicológicos por meio da autoaceitação. A ideia de sexo natural, segundo o teólogo

1428
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
Geoffrey James Robinson (2015), trata-se na verdade de uma abstração a fim de determinar os
interesses da Igreja: ela não considera a experiência efetivamente vivida dos seres humanos. A
experiência demonstra que os atos sexuais que são naturais para os homossexuais são os atos
homossexuais, que estão profundamente incorporados nestas pessoas, não os atos heterossexuais.
Com esta base teórica a Igreja constrói seus argumentos nos outros documentos sobre questões
específicas relacionadas à homossexualidade. Nas Considerações sobre os projetos de
reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais (2003), a Igreja apresenta sua
preocupação com a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo em alguns países,
afirmando que “não existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo
remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família” (IGREJA
CATÓLICA, 2003, n. 4). Para a Igreja, aprovar tais uniões seria uma ‘aprovação do mal’ e uma
contradição entre a lei civil e a ‘reta razão’, sendo um dever dos cristãos “em presença do
reconhecimento legal das uniões homossexuais ou da equiparação legal das mesmas ao matrimônio,
com acesso aos direitos próprios deste último, é um dever opor-se-lhe de modo claro e incisivo”
(IGREJA CATÓLICA, 2003, n. 5).
Essa preocupação torna-se ainda mais grave quando se trata da possibilidade de adoção de
filhos por casais homossexuais com reconhecimento jurídico, pois “a falta da bipolaridade sexual cria
obstáculos ao desenvolvimento normal das crianças eventualmente inseridas no interior dessas
relações” (IGREJA CATÓLICA, 2003, n. 7). O documento continua refletindo que falta a estas
crianças a experiência da maternidade ou da paternidade, o que significa praticar uma violência contra
elas, pois estas relações são um ambiente que não lhes favorece o pleno desenvolvimento humano
(IGREJA CATÓLICA, 2003). Por isso, no documento Coerência Eucarística dos Políticos e
Legisladores (2005), a Igreja reafirma que a homossexualidade é intrinsicamente desordenada e em
caso algum pode ser aprovada, exortando os políticos católicos que, caso persistam na promoção
destas leis iníquas, contrárias aos ensinos da Igreja, o seu acesso à eucaristia será impedido
(CÂMARA, 2019). E, na nota da Congregação Para a Doutrina da Fé intitulada Algumas reflexões
acerca da resposta a propostas legislativas sobre a não-discriminação das pessoas homossexuais
(1992b), a Igreja defende que a discriminação por ‘tendência homossexual’ não pode ser equiparada
ao racismo ou outras formas de discriminação, pois, “diferentemente destas, a tendência

1429
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
homossexual é uma desordem objetiva e requer solicitude moral” (IGREJA CATÓLICA, 1992b, n.
10), por isso:

Incluir a tendência homossexual entre as reflexões, na base das quais é ilegal discriminar,
pode facilmente levar a afirmar que a homossexualidade é uma fonte positiva de direitos
humanos [...] Isto é ainda mais deletério se considerarmos que não existe um direito à
homossexualidade, o que não deveria, portanto, constituir a base para reivindicações
jurídicas. A passagem do reconhecimento da homossexualidade como fator, na base do qual
é ilegal discriminar, pode facilmente levar, se não de modo automático, à proteção legislativa
e à promoção da homossexualidade. A homossexualidade de uma pessoa seria invocada em
oposição a uma discriminação declarada e, assim, o exercício dos direitos seria defendido
exatamente mediante a afirmação da condição homossexual, em vez de em termos de uma
violação dos direitos humanos básicos (IGREJA CATÓLICA, 1992b, n. 13).

A partir deste documento a Igreja passou a defender em relação aos direitos LGBTQIA+ a
ideia de uma ‘justa discriminação’, pois este tipo de discriminação por orientação sexual não é apenas
justa, mas moralmente exigida como forma de defender a sociedade e as famílias, bem como pelo
próprio bem dos homossexuais, para a salvação de suas almas (JUNG, 2005). Assim, os documentos
da Igreja sobre a homossexualidade apresentam uma contradição básica, como demonstra Serra
(2019), pois, por um lado, a Igreja afirma que “homens e mulheres [que apresentam] tendências
homossexuais profundamente radicadas [...] devem ser acolhidos com respeito, compaixão e
delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta” (IGREJA
CATÓLICA, 1992, n. 2358), mas, por outro lado, sustenta discursos violentos contra os mesmos
homossexuais, classificando-os como: “depravações graves”, “intrinsecamente desordenados”, “são
contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira
complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados” (IGREJA
CATÓLICA, 1992, n. 2357). Diante desta contradição, Serra (2019, p. 15-16) se questiona: “É uma
condenação em termos bastante duros. Que respeito, que compaixão, que delicadeza, que
acolhimento, que justiça, que cuidado em não discriminar serão possíveis quando se parte dessa
base?”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente a estes ensinamentos da Igreja, resta uma única opção para as pessoas homossexuais:
o celibato. Mesmo a Igreja admitindo não compreender a homossexualidade, ela considera a
castidade o único modo de vida possível para estas pessoas, negando o direito de terem

1430
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
relacionamentos afetivo-sexuais e assumirem publicamente sua identidade como não patológica. Ao
invés de aceitarem o que são e viverem tranquilamente como qualquer outra pessoa, eles devem
reconhecer em sua orientação sexual uma fonte de constante sofrimento, pois ela “constitui, para a
maior parte deles, uma provação” (IGREJA CATÓLICA, 1992, n. 2358), devendo, para controlar os
desejos de sua natureza aberrante “unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem
encontrar devido a sua condição” (IGREJA CATÓLICA, 1992, n. 2358), tornando a sua vida um
sacrifício para a santificação. Nesse sentido, como afirma o teólogo Claude Besson (2015, p. 15): “o
discurso magisterial da Igreja Católica, longe de acolhê-los e de guiá-los, faz parte do sofrimento
dessas pessoas, encerrando-as em um conflito interior e obrigando-as a calar o que são”. A Igreja,
com seu discurso sobre a homossexualidade, segundo Vaggione (2008), atinge as pessoas
homossexuais de dois modos: primeiro em suas histórias de vida pessoais, quando um homossexual
com uma identidade religiosa cristã rompe com a norma heterossexual, colocando-o em uma profunda
situação de culpa religiosa por sentir-se pecador, negar a Deus, estar condenado ao inferno, tornando-
se em um conflito central para a sua ‘saída do armário’, o que faz com que muitos gays tornem-se
ateus e agnósticos ou busquem conforto nas novas igrejas inclusivas para LGBTQIA+. E segundo no
nível das políticas públicas e legislações, pois a Igreja Católica é uma das principais barreiras no
mundo para a existência de direitos para a comunidade LGBTQIA+, sempre lutando para que não
sejam aprovados e para reverter aqueles já conquistados.

REFERÊNCIAS

BESSON, Claude. Homossexuais católicos: como sair do impasse. São Paulo: Loyola, 2015.

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica,


2016.

CÂMARA, Uipirangi Franklin da Silva. O armário de Deus no armário dos homens ou por que
uma pessoa homossexual não pode ser cristã. Curitiba: Appris, 2019.

DI VITO, Robert. Interrogações sobre a construção da (homos)sexualidade: relações entre pessoas


do mesmo sexo na bíblia hebraica. In: JUNG, Patricia Beattie; CORAY, Joseph Andrew (Orgs.).
Diversidade sexual e catolicismo: para o desenvolvimento da teologia moral. São Paulo: Loyola,
2005. p. 139-162.

1431
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
FRY, Peter; CARRARA, Sérgio. “Se oriente rapaz!”: onde ficam os antropólogos em relação a
pastores, geneticistas e tantos “outros” na controvérsia sobre as causas da homossexualidade?.
Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v. 59, n. 1, p. 258-280, 2016.

GOMES, Ademildo; TRASFERETTI, José. Homossexualidade: orientações formativas e pastorais.


São Paulo: Paulus, 2011.

HELMINIAK, Daniel. O que a bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. São Paulo:
Summus, 1998.

IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. 1992. Disponível em: <http://www.vat


ican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html>. Acesso: 24 ago. 2020.

IGREJA CATÓLICA. Algumas reflexões acerca da resposta a propostas legislativas sobre a não-
discriminação das pessoas homossexuais. 1992b. Disponível em: <https://www.vatica
n.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19920724_homosexual-per
sons_po.html>. Acesso: 20 jul. 2020.

IGREJA CATÓLICA. Carta aos bispos da igreja católica sobre o atendimento pastoral
das pessoas homossexuais. 1986. Disponível em: <http://w2.vatican.va/roman_curia/congrega
tions/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19861001_homosexual-persons_po.html>. Acesso: 20
jul. 2020.

IGREJA CATÓLICA. Coerência eucarística dos políticos e legisladores. 2005. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/family/documents/rc_pc_family
_doc_20051007_trujillo-synod_po.html>. Acesso: 20 jul. 2020.

IGREJA CATÓLICA. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre
pessoas homossexuais. 2003. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/cong
regations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20030731_homosexual-unions_po.html>. Acesso:
20 jul. 2020.

JAMES, Alison. Diversidade Sexual: interpelações à Teologia Moral. 2013. Disponível em:
<http://www.diversidadecatolica.com.br/wpcontent/uploads/2017/10/AlisonTeologiaMoral. pf>.
Acesso: 24 ago. 2020.

JUNG, Patricia Beattie. Introdução. In: JUNG, Patricia Beattie; CORAY, Joseph Andrew (Orgs.).
Diversidade sexual e catolicismo: para o desenvolvimento da teologia moral. São Paulo: Loyola,
2005. p. 11-31.

JURKEWICZ, Regina Soares. Cristianismo e homossexualidade. In: GROSSI, Miriam Pillar (et al.).
Movimentos sociais, educação e sexualidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 45-52.

1432
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411
LIMA, Luís Corrêa. Acolher pessoas homossexuais: o desafio da Igreja Católica. In: LIMA, Luís
Corrêa. Teologia e sexualidade: portas abertas pelo Papa Francisco. São Paulo: Reflexão, 2015. p.
173-199.

LIMA, Rita de Lourdes de. Diversidade, identidade de gênero e religião: algumas reflexões. Em
Pauta, Rio de Janeiro, v. 9, n. 28, p. 165-182, 2011.

MOTT, Luiz. Del malo pecado al pecado intrínsecamente malo: La radicalización fundamentalista
de la homofobia católica desde los tiempos de la Inquisición hasta Benedicto XVI. História UNESP,
São Paulo, v. 29, p. 4-23, 2010.

MOTT, Luiz. Homofobia: uma ‘praga’ cristã. Revista Científica das áreas de História, Letras,
Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 2,
p. 66-73, 2016.

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: a Igreja Católica e a sexualidade – de


Jesus a Bento XVI. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

ROBINSON, Geoffrey James. Sínodo 2015: divórcio e homossexualidade. São Paulo: Loyola, 2015.

SERRA, Cristiana de Assis. O coração, a santa e a dádiva: contribuições teológicas de corpos fora-
da-lei. In: JURKEWICZ, Regina Soares (Org.). Teologias fora do armário: teologia, gênero e
diversidade sexual. Jundiaí: Max Editora, 2019. p. 10-33.

VALENZUELA, Jorge Oyarzún. Las uniones de hecho entre homosexuales en Chile y el Derecho
Comparado. Santiago: Universidad de Chile, 2004.

VIDAL, Marciano. Sexualidade e condição homossexual na moral cristã. São Paulo: Santuário,
2008.

1433
III Seminário (Des)Fazendo Saberes na Fronteira: Lutas e (RE)Existências. v. 3, 2020,
UNIPAMPA. ISSN 2527-2411

Você também pode gostar