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Cleber Bianchessi

Organizador

DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES
EM EDUCAÇÃO
Múltiplos Saberes, Novos Olhares – Volume 1
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
EM EDUCAÇÃO
Múltiplos Saberes, Novos Olhares – Volume 1
AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram avaliados por pares e indicados para publicação.

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Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

E26 Diálogos Interdisciplinares em Educação: múltiplos saberes,


1.ed. novos olhares – Volume 1 [recurso eletrônico] /
[org.] Cleber Bianchessi. – 1.ed. – Curitiba-PR,
Editora Bagai, 2022. 347 p.

Bibliografia.
ISBN: 978-65-5368-090-6

1. Educação. 2. Interdisciplinaridade. 3. Ensino e


aprendizagem. I. Bianchessi, Cleber.

10-2022/20 CDD 370.7


CDU 37.01

Índice para catálogo sistemático:


1. Educação: Ensino e Aprendizagem; Interdisciplinaridade. 370.7

https://doi.org/10.37008/978-65-5368-090-6.15.07.22
R

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Cleber Bianchessi
Organizador

DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
EM EDUCAÇÃO
Múltiplos Saberes, Novos Olhares – Volume 1
1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Bagai.

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Dr. Tomás Raúl Gómez Hernández – UCLV e CUM - CUBA
Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT
Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS
SUMÁRIO

INFÂNCIA: UM TERRITÓRIO INTERDISCIPLINAR ........................................................................... 11


Caroline Machado Cortelini Conceição
IMPACTOS AMBIENTAIS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA ABORDAGEM INVESTIGATIVA .. 21
Glicia Schmitz Resende | Lidiane Moreira Chiattoni | Fábio Luiz Quandt | João Carlos Ferreira de Melo Junior
ERRO ENCONTRADO NOS RECURSOS TECNOLÓGICOS USADOS PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA ... 31
Rafael Alberto Gonçalves | Stélio João Rodrigues
A IMPORTÂNCIA DA QUÍMICA DE COORDENAÇÃO E SEU CONHECIMENTO NA FORMAÇÃO
UNIVERSITÁRIA DE PROFISSIONAIS DA QUÍMICA .......................................................................... 37
Iury Araújo Paz | Kelly Lima de Oliveira | Jordana Lima Braga | Wildson Max Barbosa da Silva | Solange de Oliveira Pinheiro
METODOLOGIAS ATIVAS: POTENCIALIDADES NO CONTEXTO DA PRÁTICA EDUCATIVA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA....................................................................................................................................... 45
Maria Gisélia da Silva Gomes | Antonia Givaldete da Silva
ESTRANHANDO CONCEPÇÕES SOBRE CORPO E PRÁTICAS SEXUAIS NA
EDUCAÇÃO BÁSICA ..................................................................................................................... 55
Márcio Evaristo Beltrão
A UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO DIGITAL COMO INSTRUMENTO FUNDAMENTAL À REDUÇÃO
DAS DESIGUALDADES SOCIAIS: A NECESSIDADE ESTATAL DE INVESTIMENTO EM INOVAÇÃO E
TECNOLOGIA NO CONTEXTO PÓS-PANDÊMICO ........................................................................... 63
Melissa Trento | Rodrigo Carvalho Polli
NEOLIBERALISMO E TEORIA DO CAPITAL HUMANO: REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS
BRASILEIRAS NA DÉCADA DE 1990 ................................................................................................. 77
Francielle Aparecida Garuti de Andrade | Rodrigo Pinto de Andrade
LITERATURA NO ENSINO MÉDIO E SUAS IMPLICAÇÕES NO VESTIBULAR ......................................... 87
Mariana Ferraz | Rosilene Frederico Rocha Bombini | Ketilin Mayra Pedro
ARGUMENTAÇÃO E RACIOCÍNIO: UMA REVISÃO TEÓRICA .............................................................. 99
Antonio Sales
DIDÁTICA ZORÓ – DA DOCÊNCIA INICIANTE À DOCÊNCIA EXPERIENTE,
TRAJETÓRIA DE UM PROFESSOR PANGYJẼJ ............................................................................................ 109
Agnaldo Zawandu Zoró | Josélia Gomes Neves
O POVO INDÍGENA ARARA KARO E O SEU PRINCIPAL RITUAL CULTURAL - WAYO AKANÃ,
A FESTA DO JACARÉ ....................................................................................................................121
Marli Peme Arara | Josélia Gomes Neves
REFLEXÕES DE UM PROFESSOR FORMADO EM LÍNGUA PORTUGUESA A PARTIR DA DISCIPLINA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO:
O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA EM PAUTA..................................................................................133
Francisco Walisson Ferreira Dodó
A AULA E SUAS PARTES: PENSANDO AS MUDANÇAS E AS PERMANÊNCIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA
ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS ........................................................................................................147
Darcylene Pereira Domingues | Júlia Silveira Matos | Rafaela L. de Oliveira Guardalúpi
A FORMAÇÃO DO CARÁTER NOS ESCRITOS DA EDUCADORA ELLEN G. WHITE................................157
Erico Tadeu Xavier
ARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO ..........169
Thandryus Augusto Guerra Bacciotti Denardo
PROJETOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERSPECTIVA HISTÓRICO CULTURAL
POR MEIO DA MEDIAÇÃO DIALÉTICA ..........................................................................................181
Vilisa Rudenco Gomes | Fernanda Negri | Janaine Siqueira | Nadia Nara de Souza | Vanessa Cruz da Silva
O BIG DATA COMO PRECURSOR NA FORMA DE PLANEJAR, AVALIAR E RESSIGNIFICAR A CONSTRUÇÃO
DO CONHECIMENTO .................................................................................................................195
Rafael Cavalcante Timbó Medeiros
O GOOGLE WORKSPACE FOR EDUCATION E SUAS FERRAMENTAS DE COLABORAÇÃO EM REDE PARA A
APRENDIZAGEM
CONHECENDO A ÁGUA E SEUS PROCESSOS EM UMA ATIVIDADE COLABORATIVA,
INTERDISCIPLINAR E CONTEXTUAL ...........................................................................................203
Rafael Cavalcante Timbó Medeiros
QUAIS FRUTAS VOU ESCOLHER? CONVERSANDO SOBRE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
E O TRABALHO COM A COMBINATÓRIA NA INFÂNCIA...................................................................211
Christoan Tonete Gomes | Thiarla Xavier Dal-Cin Zanon
GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA REDE MUNICIPAL DE ENSINO
EM MAUÉS/AM NA VISÃO DOS GESTORES .....................................................................................223
Ronan Miranda Caldas | Wagner Barros Teixeira
A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO IDOSO .............................................................233
Daniela Rezende de Oliveira | Klauss Carvalho de Malta
ÉTICA, LITERATURA E DIREITOS HUMANOS:
EXPERIÊNCIA EM CONTEXTO DE ENSINO JURÍDICO.....................................................................245
Luiz Oliveira Melo | Rosemar Eurico Coenga
“O LUGAR DOS DIREITOS HUMANOS NO ENSINO DE LITERATURA:
APROXIMAÇÕES ENTRE CONCEIÇÃO EVARISTO E TEREZA CARDENAS”..........................................255
Maeli Fernandes Mota | Rosemar Eurico Coenga
A SUBJETIVAÇÃO NEOLIBERAL POR MEIO DO CURRÍCULO ESCOLAR E A EDUCAÇÃO EM DIREITOS
HUMANOS COMO UMA FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO .........................................................265
Marcos José de Lacerda Júnior
O QUE A SOCIEDADE ESPERA DE NÓS PROFESSORES BRASILEIROS ...............................................277
Maria Alexandra Naberesny
VEMOS UM MUSEU DE NOVIDADES: BREVES REFLEXÕES SOBRE REFORMA DO ENSINO MÉDIO ........289
Ana Carla de Oliveira Pinheiro | Alexsandro Martins de Christo
MULHERES, FUTEBOL E UNIVERSIDADE: UM ESTUDO COM ALUNAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
AMAPÁ - UNIFAP .........................................................................................................................301
Gustavo Maneschy Montenegro | João Carlos Silva Guimarães
“REMOVED”: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOBRE OS EFEITOS PSICOLÓGICOS
DA ADOÇÃO E DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS ...................................................................................311
Edson Moura da Silva | Giovana Lamounier Capanema Vieira | Hemille Gabriela Araújo Silva | Jessica Adriene Sartori |
Jessica do Couto Moreira | Jessyca Eduarda Alves Costa | Jordan Araújo Couto
A VITIMOLOGIA NA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA SOB O OLHAR DO FILME:
O QUARTO DE JACK ....................................................................................................................323
Edson Moura da Silva | Elane Salete Simões Neves | Elias Olair Figueiredo | Gabriel Domenico Ferreira Evangelista |
Lara Carolina Amorim Cota | Margarete Bassani Ribeiro
REPRESENTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO E DO NEGRO NO BRASIL COLONIAL EM LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO COMPARATIVO
DA DÉCADA ANTERIOR E POSTERIOR A OBRIGATORIEDADE DA LEI Nº 10.639/2003 ...........................333
Suellen Roberta Mendes das Chagas | Anderson Vicente da Silva
SOBRE O ORGANIZADOR............................................................................................................345
ÍNDICE REMISSIVO ....................................................................................................................346
APRESENTAÇÃO

Este livro, que se torna público na forma de coletânea, é resultado de pes-


quisas científicas, finalizadas ou em desenvolvimento que têm como enfoque
diálogos interdisciplinares em educação. Os capítulos foram produzidos por
docentes que, em alguns momentos, são auxiliados por seus discentes em vários
níveis de escolaridade, partir da diversidade de áreas do conhecimento, por meio
de múltiplos saberes e novos olhares sobre o processo educacional.
A presente publicação reúne capítulos que, na sua constituição e percurso,
procuram contribuir para um público de pesquisadores em diversos níveis de esco-
laridade cujo interesse seja a compreensão do ensino e da educação manifestados
pelos múltiplos saberes e na expressão dos diversos olhares por meio dos resultados
de estudos, finalizados ou não, desenvolvidos por professores, pesquisadores ou
acadêmicos que podem considerar a práxis pedagógica e procuram compreender
as lacunas para as quais as reflexões em educação apresentem ou se constituam
em caminhos interdisciplinares.
Desse modo, o primeiro capítulo expressa reflexões sobre a infância enquanto
território interdisciplinar possibilitando visualizar essa fase em diferentes lugares,
tempos e condições. Na sequência, o segundo capítulo reflete sobre a importância
da utilização de atividades investigativas no processo de ensino e aprendizagem.
Por sua vez, o terceiro capítulo destaca o erro encontrado nos recursos tecnológicos
usados para o ensino da matemática. O quarto capítulo, na sequência, destaca a
importância da Química de Coordenação e na formação de profissionais desta
área do conhecimento e o quinto capítulo descreve algumas metodologias ativas.
Em continuidade, o sexto capítulo apresenta orientações pedagógicas de
como trabalhar questões relacionadas às práticas sexuais em sala de aula e superar
a visão tradicional. No que lhe concerne, o sétimo capítulo investiga o contexto
educacional digital pós-pandêmico, o oitavo capítulo analisa as políticas públicas
voltadas para à educação e o nono capítulo destaca a importância da literatura no
ensino médio e suas implicações no vestibular.
Em continuidade, o décimo capítulo apresenta uma revisão teórica da
argumentação e raciocínio. O décimo primeiro capítulo foca a didática Zoró a
partir da docência iniciante à docência experiente, enquanto décimo segundo
capítulo apresenta a historiografia do povo indígena Arara Karo, seu principal
ritual cultural - Wayo Akanã e os antecedentes históricos da festa do Jacaré. Isto
posto, o décimo terceiro capítulo oportuniza refletir sobre a formação do professor
de língua materna e a importância da disciplina de estágio supervisionado. Já o
décimo quarto capítulo analisa imagens fotográficas que representam o ambiente
escolar durante o século XX e o décimo quinto capítulo apresenta a formação do
caráter nos escritos da educadora Ellen G. White.
Em seguimento, o décimo sexto capítulo reflete sobre a potencialidade do
diálogo entre a Arqueologia e a Educação e o décimo sétimo capítulo apresenta
um projeto dentro da perspectiva histórico cultural. Na sequência, o décimo oitavo
capítulo expressa o Big Data como precursor na forma de planejar, avaliar e res-
significar a construção do conhecimento e o décimo nono capítulo que destaca o
uso do Google Workspace For Education e suas ferramentas de colaboração em
rede para a aprendizagem. Sendo assim, o vigésimo capítulo propõe a utilização
das histórias em quadrinhos (HQs) como recurso pedagógico que podem auxiliar
no desenvolvimento do raciocínio combinatório de crianças.
Em prosseguimento, o vigésimo primeiro capítulo analisa a compreensão
da gestão democrática na perspectiva dos gestores e o vigésimo segundo capítulo
valoriza a educação como direito fundamental do idoso. O vigésimo terceiro capí-
tulo, em síntese, enfatiza a experiência em contexto de ensino jurídico auxiliado
pela ética, literatura e direitos humanos e o vigésimo quarto capítulo investiga o
lugar dos direitos humanos na literatura a partir das aproximações entre escritoras
de pele negra. O vigésimo quinto capítulo averigua a possibilidade de a educação
em direitos humanos constituir-se em uma ferramenta de oposição ao modelo
de subjetivação neoliberal, sendo que o vigésimo sexto capítulo analisa o que a
sociedade espera de nós professores.
O vigésimo sétimo capítulo, em resumo, faz breves reflexões sobre reforma
do ensino médio e o vigésimo oitavo capítulo ressalta o resultado de uma pesquisa
realizada com estudantes universitárias que participam do time de futsal feminino
de uma universidade pública. Em continuação, o vigésimo nono capítulo analisa
um filme com olhar sobre os efeitos psicológicos da adoção e devolução de crianças
e, adiante, o trigésimo capítulo apresenta reflexões sobre a vitimologia pela lente
dos elementos discursivos presentes em um filme. Por fim, o trigésimo primeiro
capítulo analisa a representação da escravidão e do negro no Brasil colonial em
livros didáticos de História do ensino médio.
Em face do exposto pelo estudo exarado nos capítulos sintetizados acima,
percebe-se que atualmente o contexto educacional está cada vez mais dinâmico,
complexo e mutável como se denota na postura investigativa dos múltiplos sabe-
res com o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo.
Tudo isso se revela por meio de novos olhares interdisciplinares na educação e
articulados pelos conhecimentos teóricos aos práticos, possibilitando ampliar e
significar os múltiplos saberes no campo da educação. Embora os capítulos não
tenham a intenção de esgotar as análises e as possibilidades de discussão acerca da
interdisciplinaridade em educação, eles apontam promissores rumos das pesqui-
sas com diálogos interdisciplinares nas áreas dos direitos humanos, formação de
professores, alfabetização, infância, diversidade étnica e cultural, meio ambiente,
gestão escolar, a ludicidade, entre outros no processo de ensino e aprendizagem
oportunizando novos olhares aos múltiplos saberes educacionais.
Equipe editorial
A interdisciplinaridade pensada por Freire é:

o processo metodológico de construção do conhecimento pelo sujeito com base em sua relação com
o contexto, com a realidade, com sua cultura. Busca-se a expressão dessa interdisciplinaridade
pela caracterização de dois movimentos dialéticos: a problematização da situação pela qual se
desvela a realidade e a sistematização dos conhecimentos de forma integrada.
(COSTA; LOUREIRO, 2017, p. 116-117)

requisito para uma visão da realidade das perspectivas da unidade, da globalidade e da


totalidade. (...). Tanto na dimensão histórica (tempo) quanto na geográfica (espaço), os temas
surgem da concretude de situações limite, ligadas a aspectos específicos da realidade (sociais,
econômicos, psicológicos, culturais, políticos etc.), cuja compreensão não pode ser dada apenas
através do conhecimento restrito da subárea específica
(ANDREOLA, 2000, p. 71).
INFÂNCIA: UM TERRITÓRIO INTERDISCIPLINAR

Caroline Machado Cortelini Conceição1

INTRODUÇÃO

A quem estamos nos referindo ao falarmos de infância? Como delimitar


a infância? A respeito dessas questões Delgado e Müller (2006, p. 10), ao fazer
referência aos estudos de Mollo-Bouvier, explicitam a tendência de adequação
entre os diferentes estágios de desenvolvimento e a maneira de dividir as idades da
infância, estabelecido a partir da contribuição da psicologia do desenvolvimento.
As diferentes imagens da infância produzidas ao longo da história são imagens
provisórias e incompletas, conhecimentos que iluminam parcialmente a infância,
são fragmentos da infância, como diz Larrosa (2004, p. 185):
[...] a presença enigmática da infância é a presença de algo radical e
irredutivelmente outro, ter-se-á de pensá-la na medida em que sempre
nos escapa: na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a
soberba da nossa vontade de saber), na medida em que suspende o
que podemos (e a arrogância da nossa vontade de poder) e na medida
em que coloca em questão os lugares que construímos para ela (e a
presunção da nossa vontade de abarcá-la).

Mobilizado por essas reflexões que acentuam a necessidade de pensar a infância


que nos escapa, nos inquieta, coloca em questão o que consideramos saber sobre ela, a
presente escrita realiza uma reflexão sobre a infância enquanto território interdisciplinar
no qual diversas áreas de conhecimento vêm atuando e contribuindo para desocultá-la,
na medida em que oferecem uma multiplicidade de olhares que possibilitam visualizar
as infâncias em diferentes lugares, tempos, condições. Trata-se de um estudo de revisão
teórica que buscou tecer considerações sobre os estudos da infância e da criança.

OS ESTUDOS DA INFÂNCIA E DA CRIANÇA NA INTERSECÇÃO


ENTRE VÁRIAS ÁREAS DO CONHECIMENTO

No século XX cresce, em âmbito nacional e internacional, o esforço por


conhecer a criança em vários campos. Assim, estudos de Ariès (1981), Heywood

1
Doutora em Educação (UNISINOS). Professora adjunta (UNIOESTE).CV: http://lattes.cnpq.br/3093574479627521
11
(2004), Del Priore (2006), dentre outros, possibilitam a compreensão de que a
infância é construção histórica e os modos de ser criança e viver a infância são
variáveis de acordo com as práticas sociais estabelecidas, em diferentes tempos
históricos e em contextos diferentes.
Como acentua Arroyo (2000, p. 39):
A infância não é um simples conceito, é um preceito, um projeto de ser,
vinculado a ideais de felicidade e emancipação, nos lembra Ariès. Ou
vinculada a um ideal-projeto de harmoniosa maturação, nos adverte
J. J. Rousseau. Um projeto vinculado muito antes à Paideia, que nasce
preocupada com a educação justa da infância. Maturação, felicidade,
emancipação, harmonia ou educação justa... tudo valores, ideais e
projetos onde a infância e seu artífice, o pedagogo, se configuram.

Os Estudos da Infância e os Estudos da Criança são campos interdiscipli-


nares que compartilham um mesmo objeto de estudos, vistos sob perspectivas
diferentes, ou seja, “campos de intersecção entre disciplinas e questionamentos
sobre as características ou os atributos da infância” (BARBOSA; DELGADO;
TOMAS 2016, p. 107). Possuem diferenças que podem advir da tradição disci-
plinar, no âmbito do objeto de estudo e sua metodologia, ou ainda da perspectiva
teórica que define os conceitos, metodologias e análise de dados.
Há três momentos significativos na configuração destes dois campos de
estudos (BARBOSA; DELGADO; TOMAS 2016):
1. O momento inicial de um lado a medicina e a psicologia debruçam-se
sobre este novo e pouco conhecido objeto de conhecimento e procuram,
no âmbito das ciências positivas, examiná-lo e de outro as contribuições
da pedagogia, que a partir de um conceito de infância, muitas vezes
idealizado, procura conhecer e educar as crianças, almejando formá-las
neste modelo;

2. O segundo momento, em que no bojo dos processos sociais dos anos de


1970 e 1980, a criança é reivindicada como sujeito político;

3. O terceiro momento, em que as ciências sociais, especialmente na socio-


logia da infância, na antropologia da infância e na geografia da infância,
procuram conhecer as crianças com metodologias mais próximas da
etnografia e das metodologias participativas.
Tristão assinala (2005, p. 30) que as ciências médicas, psicológicas e peda-
gógicas detiveram durante várias décadas “o poder de predizer a infância” esta-
12
belecendo uma representação de infância “normal” e “padrão”. Essas ciências
foram responsáveis por estabelecer um conjunto de saberes que prescreveram e
ainda prescrevem formas de relacionamentos, consideradas corretas, a partir da
posição de verdade concedida ao discurso científico (TRISTÃO, 2005). Nesse
sentido, Sarmento (2007, p. 25-26) enfatiza que a infância tem sofrido um pro-
cesso de ocultação que decorre de
[...] concepções historicamente construídas sobre as crianças e dos
modos como elas foram inscritas em imagens sociais que tanto escla-
recem sobre os seus produtores (o conjunto de sistemas estruturados
de crenças, teorias e ideias, em diversas épocas históricas) quanto
ocultam a realidade dos mundos sociais e culturais das crianças, na
complexidade de sua existência social.

Não é que as crianças tenham permanecido ausentes das pesquisas, mas sim
seus modos de vida têm escapado às pesquisas. Ainda conhecemos pouco sobre a
infância como construção cultural (QUINTEIRO, 2002). O campo dos estudos
da infância e estudos da criança tem procurado realizar esse processo de desocul-
tação, dando lugar à alteridade da infância, que perpassa por ouvir e compreender
as crianças a partir do modo como elas veem e existem no mundo (OLIVEIRA,
2001; FARIA 1999). Oliveira (2001), para isso, propõe o entendimento da criança
enquanto outro, ou seja, o reconhecimento desta enquanto sujeito pertencente à
categoria humana, com a mesma identidade genérica do adulto, no entanto, sujeito
singular, completo em si mesmo, pertencente a um tempo/espaço geográfico,
histórico, social, cultural, em que os sujeitos de pouca idade são simultaneamente
detentores e criadores de história e cultura, com singularidades em relação ao
adulto, que possuem um modo de se expressar e estar no mundo diferente do adulto.
Nesse processo de conformação histórica da infância Narodowski (1994)
acentua que a pedagogia por um lado se proclama tributária do conceito moderno
de infância, por outro lado abstrai as características históricas da infância. Entre-
tanto, como afirma Barbosa (2007), a infância é uma experiência heterogênea,
há uma pluralidade de infâncias que precisam ser compreendidas em relação à
pluralidade de modos de socializações humanas. A infância, nessa perspectiva,
é uma “experiência social e pessoal, ativamente construída e permanentemente
ressignificada” (BARBOSA, 2007, p. 1065).
A temática infância passa à condição de maior relevância na sociedade
contemporânea ocidental. O século XX é considerado o “século da criança”,
impulsionando iniciativas de proteção e educação para a criança (CAMARA,
13
2011). Tais iniciativas geraram inegáveis avanços no campo teórico sobre a infân-
cia, possibilitando as bases teóricas e científicas para uma concepção da criança
como sujeito de direitos. Assim, “os direitos da criança e a preocupação social
com a população infantil foram as principais preocupações no início do século
XX, cujo marco emblemático foi a promulgação, em 1959, da Declaração Uni-
versal dos Direitos da Criança, pela Organização das Nações Unidas” (DIAS,
2008, p. 219, grifo da autora).
Os atuais estudos possibilitam a compreensão de que, diferente da idéia
preconizada pela modernidade, ela não é única, ao contrário convivemos com
diversas infâncias, pois há uma multiplicidade de elementos culturais e sociais
que vão interferir no modo de ser criança na sociedade. Coexistem, muitas vezes,
numa mesma sociedade, diferentes infâncias, com possibilidades e realidades
bastante distintas conforme têm afirmado diversos autores (DORNELLES,
2005; BUJES, 2002; OLIVEIRA, 2001). Por conseguinte, a infância é construção
social, cultural e produção histórica, resulta de um longo percurso na história da
humanidade. Em realidade, trata-se de infâncias e não, tão somente, infância.
São diversas, não uma infância única, abstrata, genérica. Conforme Faria (1999)
cada época histórica, cada sociedade, cada lugar, irá apresentar sua definição que
expressa determinadas culturas, conhecimentos, costumes. E mesmo numa mesma
sociedade nos deparamos com diferentes infâncias, convivemos com diferentes
imagens de infância (DORNELLES, 2005)
A sociologia da infância coloca em questão as ideias modernas que com-
puseram um conjunto de saberes sobre a sociedade e a infância, sinalizando
a inadequação de tais ideias para compreender a vida social contemporânea e
explica que ela surge com uma dupla tarefa: “criar um espaço para a infância no
discurso sociológico e encarar a complexidade e ambiguidade da infância como
um fenômeno contemporâneo e instável” (PROUT, 2010, p. 733).

A VISIBILIDADE DOS BEBÊS E CRIANÇAS BEM PEQUENAS


NAS PESQUISAS

Esse movimento de desocultação da infância tem se ocupado, cada vez


mais, dos grupos etários menores, estabelecendo novos campos investigativos
que abrangem os sujeitos pequenos. Numa delimitação geral, tomando o Brasil
como referência, considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos
(conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/1990). Há um
14
significativo campo de investigação que tem se voltado à primeira infância ou
pequena infância, denominação usual para se referir às crianças de 0 a 6 anos.
Plaisance (2004) e Chamboderom e Prévot (1986), expoentes da sociologia da
infância de matriz francesa, apontam para uma sociologia da pequena infância,
ou primeira infância. Plaisance (2004) explica que esse recorte é arbitrário e pode
ter diferentes delimitações. No entanto, em geral é difundido pelos organismos
internacionais que se ocupam da educação da criança e, refere-se, geralmente, ao
conjunto de idades que precedem à escolarização obrigatória, portanto, terá como
limite a variação entre 5 a 7 anos.
O subgrupo etário bebês têm sido menos visibilizado, embora hoje exis-
tam pesquisas que colocam esses sujeitos como foco. Os bebês são os que menor
possibilidades de deixar marcas de sua presença possuem, os menos ouvidos
pelos adultos, aqueles que são menos percebidos em seus contextos de pertença
(GOTTLIEB, 2009; COUTINHO, 2010). O olhar sobre os bebês ainda é pre-
dominantemente adultocêntrico, predominando uma tendência de restringir as
competências dos bebês as suas dimensões biológicas tão somente. O bebê ainda
é percebido como um “não-sujeito” que ocupa um “espaço negativo” na sociedade,
dificultando a percepção sobre eles como sujeitos legítimos, produtores ativos
de cultura (GOTTLIEB, 2009). Geralmente são percebidos como um “pacote
biológico”, pois “passam a maior parte do tempo mais envolvidos em processos
corporais do que em atividades intelectuais” (GOTTLIEB, 2009, p. 323).
Plaisance (2004) destaca que o movimento de valorização da criança, efetuado
nas últimas décadas, tem operado a promoção da criança pequena como sujeito, em
que o bebê passa a ser considerado como “pessoa”. O autor afirma, ainda, que alguns
autores têm denominado esse movimento de uma lenta “libertação da criança”.
A preocupação em definir e estudar os grupos etários menores está atrelada a
novos valores conferidos socialmente à infância que implicam na antecipação, cada
vez maior, dos processos de institucionalização da infância, através de cuidados
extradomiciliares (PLAISANCE, 2004; CHAMBODEROM e PRÉVOT, 1986).
Isso expressa a relação de “cumplicidade” entre infância e educação estabelecida
pela modernidade, no qual a pedagogia vem reconfigurando a infância e a infância
reconfigurando a pedagogia (FRANCO, 2007).
Os bebês e as crianças pequenas e a sua educação colocam-se como foco
de interesse, a partir da definição da infância como sujeito social de direitos, que
emerge balizada por instrumentos legais, sinalizando uma mudança na sociedade
15
em que, nos atuais processos de institucionalização da infância, a educação deixa
de ser apenas um direito da mãe trabalhadora, para constituir-se em direito sub-
jetivo da criança. Essa mudança de foco tem colocado em questão, nos últimos
anos, sua educação em instituições educativas. Nesse panorama, pesquisadores
têm se empenhado na realização de estudos interdisciplinares, com o fim de
apreender a infância, a partir de múltiplas perspectivas, contribuindo para retirá-
-la de sua histórica obscuridade.
Conforme assinala Faria (2005), por muito tempo, os estudos sobre a escola
negligenciaram a educação das crianças pequenas e atualmente tem havido um movi-
mento de articulação entre pesquisa, política e pedagogia. Esta articulação coloca
em evidência as infâncias e suas condições de vida e educação. Nessa perspectiva,
Rocha (1999) afirma que atualmente pode-se falar de uma pedagogia da infância
e uma pedagogia da educação infantil que abrange pesquisas, de várias áreas do
conhecimento, e busca conhecer as crianças e os processos de sua institucionalização.
A partir da década de 1990 ocorre um importante movimento de alteração
na abordagem das pesquisas sobre a infância. Tal como destaca Rocha (1999),
passam a ser consideradas outras categorias saindo dos convencionais temas como
deficiência, indisciplina, aula, aluno, ensino, desenvolvimento e passam a abranger
outras, tais como tempo, espaço, gênero, classes sociais, culturas infantis, brincar,
linguagens, criança. Outros olhares são agregados às pesquisas que dizem respeito à
pequena infância, em que são mobilizadas diversas áreas como a história, sociologia,
a antropologia, psicologia, pedagogia, demografia, dentre outras, proporcionando
“inúmeras descobertas” sobre a condição infantil e sobre as especificidades da
educação da criança pequena (FARIA, 2005). Essas pesquisas têm sido a base
para a transformação nos conceitos de infância e criança.
Nesse movimento investigativo que coloca as crianças e suas práticas sociais
como objeto, bebês e crianças pequenas passam a ter maior relevância nas pesquisas,
a partir de múltiplos olhares. Rocha (1999) e Strenzel (2000) assinalam que se
configura um campo de investigação específico sobre o trabalho pedagógico com
crianças pequenas que consolida uma pedagogia da educação infantil. A pedagogia
da educação infantil, conforme proposto por Rocha (1999) tem como objeto a
própria relação educativa expressa nas ações pedagógicas voltadas à criança pequena
no espaço institucional cuja função precípua é a educação e o cuidado da criança,
como elementos indissociáveis. Rocha (1999) defende que a análise das práticas
cotidianas, em creches e pré-escolas, permite a identificação de uma Pedagogia da

16
Educação Infantil, constituindo-se num campo específico a ser melhor acolhido
no âmbito da prática e das pesquisas educacionais.
A partir desse período nota-se consistente ampliação em diversas áreas
das ciências sociais que configuram novos campos temáticos, tais como a socio-
logia da infância, a antropologia da infância, a filosofia da infância, dentre outros,
e contribuem para ampliar o olhar sobre a criança. Essas pesquisas possibilitam a
percepção de uma diversidade de processos históricos, os quais evidenciam uma
diversidade de infâncias, definidas pelas múltiplas vivências dos sujeitos a partir
do pertencimento social, étnico-racial, religioso, de gênero, dentre outros (RO-
CHA E GOUVÊA, 2010). Nesse sentido:

Mais que o enriquecimento do olhar sobre o tema, tal transformação


tem significado uma mudança epistemológica, em que a infância é
entendida como categoria social, que informa a inserção de sujeitos
concretos, ou seja, uma categoria que permite interrogar sobre a
inserção de crianças na vida social, em diferentes tempos históricos e
espaços sociais. [...] Assim é que esses estudos vêm produzindo novos
aportes teóricos e estratégias investigativas, no esforço de contemplar
a singularidade de tal sujeito, em sua ação no mundo. (ROCHA E
GOUVÊA, 2010, p. 190)

Esses estudos propõem novas perspectivas de análise sobre a infância e com-


põem o campo dos estudos da criança que enfrenta o desafio de consolidar-se, na
atualidade, como um campo interdisciplinar influente na produção do conhecimento
sobre as crianças. Os estudos da criança tomam a criança como ser biopsicossocial
e a infância como categoria estrutural da sociedade (SARMENTO, 2013).
A seu turno, a produção historiográfica sobre a infância também experimenta,
nos últimos anos, significativa ampliação, expressa pelo aumento do número de
títulos e de pesquisadores na área (ARCE, 2004; ROCHA, GOUVÊA, 2010).
RAMOS [et al.] (2002) sinalizam que no Brasil, especialmente em relação aos
estudos no campo da história da infância, vê-se um salto, a partir da década de
1990, demonstrando que esse ainda é um campo de investigações bastante recente2.
Acerca disso, Burke (1992, p. 11) salienta que nos últimos trinta anos “nos depa-
ramos com várias histórias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia

2
Dados apontados pelo “Levantamento bibliográfico: história da infância no Brasil”, elaborado pelo GEHPAI - Grupo
de Estudos de História da Psicologia Aplicada à Infância, IP-USP.
17
pensado possuírem uma história” a infância é um desses novos temas que passam
a interessar aos historiadores.
As produções no Brasil sobre história da infância, quer no âmbito da His-
tória, quer no da História da Educação “têm possibilitado conferir visibilidade e
legibilidade aos processos sociais de formação das diferentes infâncias brasileiras,
nos diversos espaços educativos e momentos históricos” (GOUVÊA; JINZENJI,
2006, p. 114). Nesse movimento investigativo as crianças começam a ser percebidas
como “pequenas artesãs na construção da própria história, a partir de características,
atitudes e interesses que lhes são peculiares”, a história volta-se a elas percebendo-as
como “sujeitos na história” (MOURA, 2007, p. 14).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de conclusão, destacamos que as aproximações entre diferentes


campos de conhecimento têm possibilitado a ampliação do olhar sobre a infância
e ainda há muitos diálogos a se estabelecer, a fim de visibilizar sujeitos e práticas
em seus diversos contextos, contribuindo assim para o conhecimento das infâncias
plurais a partir de múltiplas perspectivas.
É preciso que as pesquisas apresentem as infâncias no plural, as diversas
infâncias em seus contextos, em diferentes tempos, diferentes lugares, em suas
múltiplas relações. Ainda são muitos os desafios no campo investigativo, precisamos
constituir outras formas de pensar, de olhar para os sujeitos infantis, como sujeitos
sociais, produzidos historicamente, forjados por culturas no plural.
Por fim, como assinalam Barbosa, Delgado e Tomas (2016, p. 118) “os Novos
Estudos da Infância e os Novos Estudos da Criança apontam para a complexi-
dade teórico-metodológica, para um contínuo diálogo e movimento”. Estão em
construção caminhos investigativos que visibilizem as crianças por elas mesmas
a fim de que vejamos um pouco o mundo com olhos de criança.

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20
IMPACTOS AMBIENTAIS E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL: UMA ABORDAGEM INVESTIGATIVA

Glicia Schmitz Resende3


Lidiane Moreira Chiattoni4
Fábio Luiz Quandt5
João Carlos Ferreira de Melo Junior6

INTRODUÇÃO

A pauta ambiental está presente, de forma recorrente, nos noticiários e em


diferentes meios de comunicação, em especial no se refere às mudanças climáticas
e a necessidade urgente de ações que promovam o desenvolvimento sustentável,
viabilizar a compreensão desses fatos de forma crítica, torna-se imprescindível.
Percebe-se então a necessidade de uma educação que promova a formação
integral do aluno. Tal questão é abordada em diferentes documentos normativos
da educação brasileira, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei
9.394 (BRASIL, 1996) e a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017),
que evidenciam o papel da escola na formação do sujeito como cidadão analítico,
capaz de compreender o ambiente natural e apto a continuar a aprender, mesmo
após a conclusão da educação básica.
Sob esta perspectiva, o professor assume um importante papel, o de media-
dor, estimulando a autonomia do aluno, encorajando o diálogo na construção do
conhecimento e, assim, possibilitando o desenvolvimento de diferentes habilida-
des e competências. Buscar formas de viabilizar a participação ativa dos alunos
nessa construção envolve a utilização de diferentes metodologias que conside-
rem o saber prévio do estudante e leve-o a novas indagações, fomentando sua
curiosidade e sede pelo saber.
Abordagens dialógicas que rompam a cultura da Educação Bancária e a
tradicionalidade do ensino, ainda muito enraizadas em nossa sociedade, são fun-

3
Especialista em Ensino de Ciências (IFSC). Docente (SEDSC). CV: http://lattes.cnpq.br/2997547611519251
4
Doutorado em Engenharia e Ciência de Alimentos (FURG). Docente (UNIASSLEVI).
CV: http://lattes.cnpq.br/4448748119317117
5
Doutor em Saúde Coletiva (UFSC). Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Saúde e Meio Ambiente
(UNIVILLE). CV: http://lattes.cnpq.br/7360141353267899
6
Doutorado em Ecologia e Conservação (UFPR). Pós-doutor em Botânica Tropical. Professor do Departamento de
Ciências Biológicas (UNIVILLE). CV: http://lattes.cnpq.br/9349272647053308
21
damentais para o exercício da capacidade de aprender, de questionar e refletir sobre
fatos e temas do cotidiano. Induzindo assim o processo de ensino aprendizagem
a ser transformador e emancipatório, tornando os alunos capazes de pensar e agir
de forma crítica na sociedade, transformando-a (FREIRE, 1987).
A disciplina de ciências torna-se uma forte aliada nesse processo de cons-
trução, uma vez que aborda, não apenas, os conteúdos relacionados à compreen-
são do ambiente natural, mas também suscita meios para que os estudantes se
reconheçam como partes integrantes do mundo, compreendendo os fatos que os
cercam e atuando de forma ativa, sustentável e reflexiva na sociedade.
Neste sentido, possibilitar uma aprendizagem significativa, em especial nas
questões que tangem à educação ambiental e o desenvolvimento sustentável, tor-
na-se importante no cotidiano escolar, evidenciando a relevância desta pesquisa.
Uma vez que esta apresenta as atividades de cunho investigativo como método para
promover a formação integral do aluno, tornando-o crítico, questionador, reflexivo
e sujeito de sua aprendizagem, fugindo assim da passividade e mecanicidade das
abordagens tradicionais de ensino.
Sendo assim, o presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a impor-
tância da utilização de atividades investigativas, no processo de ensino aprendi-
zagem na disciplina de ciências e compreender a relevância de tal abordagem no
desenvolvimento do senso crítico e da autonomia dos estudantes no que concerne
o estudo sobre os impactos ambientais causados pelo homem e a busca por ações
sustentáveis na mitigação destes.

METODOLOGIA

A pesquisa foi desenvolvida a partir da observação e análise qualita-


tiva (GIL, 2008) do uso de diferentes atividades investigativas, nas aulas de
ciências, sendo realizada com 18 alunos do sétimo ano do ensino fundamen-
tal da Escola de Educação Básica Nossa Senhora da Conceição, localizada na
cidade de São José – Santa Catarina,
As atividades investigativas foram desenvolvidas, em primeiro momento,
de forma remota devido à pandemia do novo Coronavírus (SARS-CoV-2). E,
posteriormente, no modelo híbrido de ensino, onde as turmas foram divididas em
grupos e atendidas presencialmente no Tempo Escola e de forma remota no Tempo
Casa. Tais atividades foram realizadas instigando a participação ativa do aluno,
sendo o professor um mediador neste processo de aprendizagem. As atividades
22
foram planejadas considerando a proposta de Sequências de Ensino Investiga-
tivas (SEIs), sugerida por Carvalho (2013), uma vez que tal método parte dos
conhecimentos prévios dos estudantes e oferece condições para aquisição de novos
conhecimentos, através de uma relação dialógica por meio da problematização.
Ao longo das atividades realizou-se uma avaliação formativa e processual, na
qual os alunos sistematizaram as questões discutidas em cada momento. Ao final do
ciclo de atividades analisou-se, de forma reflexiva, todo o processo e seus resultados.

RESULTADOS

Nuvem de palavras

A atividade permitiu, através de uma chuva de ideias, identificar os conhe-


cimentos prévios dos alunos sobre a temática. Através de questões-problemas,
tais como: “Vocês acreditam que o ser humano gera impactos no meio ambiente?
Se sim, quais? E quais atividades causam esses impactos? Vocês imaginam ou já
ouviram falar sobre os resultados dessas ações?”, os alunos expuseram o que pen-
savam e sabiam sobre o conteúdo.
Ressalta-se que alguns alunos mencionaram o efeito estufa, considerando o
fenômeno como algo negativo e consequência dos impactos causados pela atividade
humana. Outros relataram que, em especial, a atividade industrial é a principal
responsável pelos problemas e mencionaram reportagens e documentários a res-
peito da temática ambiental, tal como “Seas Piracy: Mar Vermelho”.
Vale citar que dois alunos relataram não pensar muito a respeito de tais
problemas. A partir desta atividade foram possíveis diferentes discussões a respeito
da relação dos seres humanos com a natureza bem como permitiu reflexões para
as abordagens das próximas atividades.

Pegada Ecológica

Ao explorarem as pegadas ecológicas de diferentes países, tais como Esta-


dos Unidos da América, França, Itália, Alemanha, Brasil, México e Índia, os
educandos mostraram-se surpresos com os valores apresentados. Um país que
lhes chamou muito a atenção, em relação ao valor da pegada ecológica, além do
Brasil, foi a Índia, pois, por ser um país populoso, os estudantes esperavam que ele
estivesse entre aqueles com pegadas ecológicas altas, tal fato possibilitou a refle-
23
xão não apenas das questões ambientais, mas também sobre os aspectos sociais e
econômicas dos países citados.
Os alunos mostraram-se preocupados com as questões ambientais discutidas,
em especial o uso dos recursos naturais, identificando problemas e ações antró-
picas que impactam negativamente o planeta. Mostraram-se também animados
e curiosos para calcular a pegada ecológica individual. Ao compartilharem seus
resultados, discutiram os principais aspectos que levaram aos valores obtidos,
bem como ações que individualmente poderiam tomar para melhorar o resultado.
Dentre os aspectos relataram o consumo excessivo e, consequentemente, a grande
produção de lixo, que muitas vezes não é destinado a um local adequado, causando
não só a contaminação do solo como também do ar, enfatizaram a problemática do
consumo e descarte de plástico, mencionando inclusive sua relação com a morte
de animais marinhos e com a poluição do solo e do ar.

O Efeito Estufa – Experimentação

Nesta etapa da SEI os alunos já estavam mais familiarizados com as dis-


cussões a respeito dos problemas ambientais, em especial relacionados à poluição
atmosférica, retomaram as discussões sobre a emissão de gases poluentes gerados
pelas frotas automotivas das grandes cidades, pela atividade industrial e pelo des-
carte incorreto de lixo. Porém, o fato de alguns alunos compreenderem o efeito
estufa como algo negativo nos levou a planejar essa atividade com o objetivo de
possibilitar, através do levantamento de hipóteses, argumentação e, posteriormente,
com a análise e discussão dos resultados obtidos, a compreensão da importância do
efeito estufa para a vida na Terra, bem como a discussão a respeito dos problemas
decorrentes da intensificação deste fenômeno, o aquecimento global.
Vale citar que foi necessário retomar alguns conceitos ao longo da atividade,
tais como a composição da atmosfera. Logo no início da aula prática, durante a
organização para a realização do experimento, os alunos já se mostraram curiosos,
levantando hipóteses sobre o que seria desenvolvido com aqueles materiais, tais
como: “Haverá explosão para gerar aquecimento?”, “Será simulado os movimentos da
Terra e do Sol?”, “Os vidros representam a camada de ozônio que protege a Terra?”.
Ao longo das etapas do experimento, os alunos fizeram registros (utilizando
tabelas) e levantaram suposições do que aconteceria com a temperatura em cada
momento e, posteriormente, confrontaram suas suposições com os resultados
obtidos, concluindo que o aumento dos gases causadores do efeito estufa na
24
atmosfera gera a elevação da temperatura da Terra, assim como o aumento das
camadas de vidro provocava o aumento da temperatura no experimento. Tal questão
foi evidenciada através das discussões realizadas durante a aula e da elaboração
do relatório de atividade prática. Vale salientar que quatro alunos tiveram mais
dificuldade em relacionar o procedimento experimental e seus resultados com o
fenômeno do efeito estufa e do aquecimento global, deixando inclusive algumas
questões sem respostas no relatório de aula prática.

Contaminação Atmosférica e suas consequências

Através de leituras especializadas e discussões de diferentes reportagens,


retiradas de jornais e revistas eletrônicas, a saber, percebeu-se que os alunos não
tinham a dimensão das consequências das mudanças climáticas no ciclo de vida
dos seres vivos. Uma vez que se mostraram surpresos e preocupados ao lerem e
discutirem reportagens que traziam informações de pesquisas indicando a extinção
de populações de determinadas espécies em pontos diferentes do planeta, a redução
da produção de alimentos, o aumento da temperatura da água dos oceanos e a
redução dos corais e as alterações nos hábitos de migração de aves, por exemplo.
Notadamente os estudantes conseguiram relacionar o aumento da tempe-
ratura média da Terra com mudanças nos hábitos dos animais, demonstraram
preocupação com a questão, citaram, por exemplo, os problemas que a extinção
de uma espécie pode causar, tais como o desequilíbrio na cadeia alimentar e no
nicho ecológico de diferentes espécies.
Assim, a retomada dos principais conceitos abordados até o momento, em
especial os fatores naturais e antrópicos que levam ao aumento dos gases causadores
do efeito estufa, ocorreu com a realização desta atividade investigativa.

Como reduzir a contaminação atmosférica?

Após a retomada dos conteúdos abordados nas Atividades Investigativas ante-


riores, os alunos refletiram sobre as questões discutidas até o momento. Em seguida
elaboraram cartazes sinalizando as atitudes que tomariam, visando o desenvolvimento
sustentável, caso fossem gestores públicos, para a redução da poluição atmosférica.
Grande parte dos cartazes trouxe como solução o uso de tecnologias como
a de carros elétricos; o destino correto do lixo e a extinção dos lixões; a adoção
de atitudes como, por exemplo, reutilizar e reciclar; a utilização de transportes
25
alternativos, particularmente as bicicletas; o incentivo às leis mais rigorosas para
que as indústrias tenham processos produtivos mais limpos e sustentáveis e a pre-
servação das florestas. Também a redução da emissão de gases poluentes durante
os primeiros meses da pandemia da Covid-19, quando muitos países estavam com
quarentenas mais rigorosas. Os estudantes trouxeram novamente para o debate a
preocupação com o derretimento das geleiras nos polos e a extinção de animais,
como o urso polar, como consequência do aquecimento global.

DISCUSSÃO

Ao longo da Sequência de Ensino Investigativa, notou-se o interesse por


parte dos jovens participantes tanto para a sua realização, quanto pelo tema a ser
desenvolvido, alguns deles mostraram-se curiosos quando a metodologia lhes foi
apresentada e dedicaram-se até o momento final. Tal questão pode ser evidenciada
uma vez que alguns dos alunos mencionaram que esperavam atividades práticas,
que não fossem apenas textos e questões do livro didático, bem como o fato de
realizarem as atividades, com capricho, e entrega-las no prazo estipulado.
O protagonismo dos estudantes foi evidenciado na atividade investigativa
“Pegada Ecológica”, uma vez que estes através da discussão de pegadas ecoló-
gicas de diferentes países, bem como através do cálculo das pegadas ecológicas
individuais. Mediante ao evidenciado, Santos et al. (2015) relacionam o ensino
de ciências como relevante na formação dos cidadãos, uma vez que objetiva não
apenas a compreensão do mundo e de seus processos, mas visa também a formação
de sujeitos críticos, capazes de interpretar e avaliar os fatos que os cercam. Ainda
neste sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/1996
(BRASIL, 1996) reafirma a necessidade da formação dos educandos para o exer-
cício de forma crítica e reflexiva da cidadania, como componente fundamental
dentro do contexto de aprendizagem escolar.
Ainda sobre os aspectos trabalhados nesta atividade, ressalta-se a discussão
trazida pelos estudantes sobre a necessidade de ações mais sustentáveis para a
manutenção dos recursos do planeta, falas que demonstram a importância do tema
ser debatido em sala de aula. Fernandes Silva, Costa e Borba (2016) mencionam em
seu trabalho a relevância de processos educativos que abordem tais questões, pois
através de diferentes estratégias didáticas é possível formar cidadãos conscientes
de que agir de forma sustentável perpassa mudanças de hábitos de consumo. Os

26
autores enfatizam ainda que o debate sobre as questões ambientais é importante
para reduzir os impactos das mudanças climáticas.
Na atividade experimental ficou evidente a participação ativa e o protago-
nismo dos alunos, quando estes levantaram hipóteses ao longo do procedimento
e elaboraram explicações frente aos resultados, relacionando o experimento com
o efeito estufa e aquecimento global, sendo o professor um mediador no processo,
possibilitando que os estudantes se tornassem sujeitos da própria de aprendiza-
gem, construindo conceitos e desenvolvendo o pensamento científico. Os autores
Wilsek e Tossin (2009) trazem essa perspectiva quando destacam a relevância
de uma escola que possibilita ao aluno participar ativamente do seu processo de
aprendizagem, permitindo que os conteúdos sejam associados aos fatos do coti-
diano, evidenciando assim o papel de mediador do professor nessa construção.
Durante a experimentação o diálogo sempre se fez presente, permitindo um
direcionamento aos alunos. As autoras Zanon e Freitas (2007) mencionam que
uma relação dialógica oportuniza múltiplas formas de pensar e promove melhorias
nas argumentações dos estudantes frente a diferentes situações, enriquecendo
assim os conceitos trabalhados.
Na atividade investigativa: “Como reduzir a contaminação atmosférica?”, a
retomada de conteúdos permitiu a interiorização dos mesmos, uma vez que alguns
estudantes não haviam se apropriado efetivamente dos conceitos relacionados ao
tema de estudo, evidenciando o caráter processual da Sequência de Ensino por
Investigação. Segundo Zômpero e Laburú (2010), o ensino por investigação objetiva
o desenvolvimento cognitivo, em seus estudos; os autores relacionam a metodologia
com os aspectos abordados na teoria da Aprendizagem Significativa, uma vez que:
“[...] engajamento dos estudantes; a resolução do problema, para os
quais os alunos deverão mobilizar conhecimentos da experiência
adquirida; a emissão de hipóteses nas quais é possível a identificação
dos conhecimentos prévios dos alunos, bem como a possibilidade
que as atividades investigativas proporcionam aos estudantes de reor-
ganizarem seus conhecimentos na estrutura cognitiva, ao tomarem
contato com novas fontes de informações” (ZOMPERO; LABURU,
2010, p. 18).

Através da leitura de diferentes reportagens perceberam suas consequên-


cias diretas e indiretas no ciclo de vida dos seres vivos, mostrando-se reflexivos e
preocupados com o atual e futuro cenário. Considerando este aspecto, a atividade
promoveu o desenvolvimento de outras competências, além daquelas inerentes ao
27
conteúdo curricular, tais como afeto, empatia e valorização do outro, incluindo os
demais seres vivos para além dos humanos. Diante disso, a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017) trata da importância de trabalhar e desenvolver
diferentes competências e habilidades, permitindo a formação integral do sujeito.
A promoção de novas habilidades e competências também foi evidenciada
no processo de realização da SEI, neste sentido, Orsi e Gerra (2019) afirma que
as práticas educativas que envolvem a educação ambiental devem promover a
“apreensão de conhecimentos e outros saberes ambientais e socioculturais, bem
como ao desenvolvimento de atitudes, habilidades e competências válidas para
propor soluções ou minimizar os problemas socioambientais encontrados nas suas
comunidades – de forma local e planetária (ORSI; GUERRA, 2019, p. 128)”.
Com atividade de conclusão os alunos propuseram medidas para a redução
da emissão de gases poluentes e para a redução dos impactos decorrentes do
aquecimento global, medidas estas que promovem o desenvolvimento sustentável
e um ambiente equilibrado, evidenciando, em seus cartazes, a apropriação dos
conteúdos não só conceituais, como também atitudinais trabalhados ao longo da
SEI. Segundo Zômpero e Laburú (2011), as atividades investigativas são basea-
das na problematização e promovem o aprendizado de conteúdos conceituais e
procedimentais. Para os autores, tal abordagem provê o engajamento dos alunos,
permitindo que estes relacionem seus conhecimentos prévios durante o levanta-
mento de hipóteses, pesquisem em diferentes fontes e por diferentes estratégias,
objetivando resolver a questão-problema e por fim reflitam, uma vez que devem
sistematizar e divulgar os conhecimentos construídos ao longo do processo.
Ainda neste sentido, Ferreira, Neris e Mayworm (2017) afirmam que a adoção de
metodologias ativas, para o estudo de questões voltadas para a sustentabilidade,
permite o desenvolvimento da consciência ambiental, uma vez que o educando
assume uma postura participativa nas atividades.

CONCLUSÃO

O Ensino por Investigação, como metodologia ativa, para abordagem sobre


os impactos ambientais na atmosfera e a necessidade de ações que promovam o
desenvolvimento sustentável, nas aulas de ciências, é uma ferramenta que possi-
bilita amplas abordagens do conteúdo. Como visto, as atividades desenvolvidas
na perspectiva da Sequência de Ensino por Investigação promoveram um maior

28
interesse, estimularam a curiosidade e a busca por explicações frente aos problemas
apresentados e posteriores análises e reflexões acerca dos resultados encontrados.
A educação ambiental e o desenvolvimento sustentável são temas, muitas
vezes recorrentes em sala de aula, dessa forma, o uso de diferentes estratégias
metodológicas permite maior interesse do aluno e possibilita que este pense e
haja de forma transformadora na sociedade.
Fomentar o protagonismo do aluno na construção do conhecimento é
também possibilitar que este investigue, analise e tire suas próprias conclusões,
é atuar como mediador no processo de ensino-aprendizagem e, assim, permitir
que o aluno identifique a relevância dos conteúdos trabalhados em sala de aula,
uma vez que pode relacioná-los com os fatos que ocorrem no mundo que o cerca.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Lei De Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº. 9394 de 20 de dezembro de 1996.
Estabelece as diretrizes da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20, dez.1996. Disponível
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Brasília, DF: MEC: SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro04.pdf.
Acesso em: 15 jun. 2021.
BRASIL, Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação (MEC). Brasília, DF, 2017. Dis-
ponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_sit e.pdf.
Acesso em: 11 jun. 2021.
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mentação em sala de aula. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
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pandemia: implicações na saúde mental do professor e aluno. Anais VII CONEDU - Edição Online. Cam-
pina Grande: Realize Editora, 2020. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/68417.
Acesso em: 19 jun. 2021.
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Acesso em: 03 jun. 2021.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 17ª. ed. Rio de Janeiro, 1987. Dispo-
nível em: http://www.letras.ufmg.br/espanhol/pdf/pedagogia_do_oprimido.pdf. Acesso em: 27 out. 2020.
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29
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ambiental: uma proposta em movimento. Revista de Educação Pública Cuiabá, v. 28, n. 67, p. 127-148, 2019.
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ZANON, Dulcimeire Ap. Volante; FREITAS, Denise de. A aula de ciências nas séries iniciais do ensino
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ZÔMPERO, Andreia Freitas; LABURÚ, Carlos Eduardo. Atividades de investigativas no Ensino de Ciências
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ZÔMPERO, Andreia Freitas; LABURÚ, Carlos Eduardo. Atividades investigativas no ensino de ciências:
Aspectos históricos e diferentes abordagens. Revista Ensaio. v. 13, n. 03, p. 67-80, 2011. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/epec/v13n3/19832117-epec-13-03-00067.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.

30
ERRO ENCONTRADO NOS RECURSOS
TECNOLÓGICOS USADOS PARA O ENSINO DA
MATEMÁTICA

Rafael Alberto Gonçalves7


Stélio João Rodrigues8

INTRODUÇÃO

A sociedade vive, mais do que nunca, sob os auspícios e domínios da ciência


e da tecnologia, e isso ocorre de modo tão forte e marcante que é comum muitos
confiarem nelas como se confia numa divindade. A tentativa para eliminá-lo
passa, em primeiro lugar, por uma proposta que tem a finalidade de fazer frente
às necessidades e carências com que se encontra a sociedade devido ao rápido
avanço científico-tecnológico.
O complexo conjunto de relações e interações que um ensino nesta direção
requer, conduz a um problema que só parece ter uma solução através da Inter-
disciplinaridade efetiva entre vários campos do saber. Isto se configura numa
aposta importante para quebrar a excessiva rigidez existente entre as diversas
comunidades profissionais que se agarram aos seus ditames culturais, não dando
guarida a uma provável renovação, consubstanciada no entrelaçamento dos mais
diferentes matizes do conhecimento.
Fazer isto com êxito significa: desenvolver uma compreensão tanto de caráter
geral — interdisciplinar — quanto com exemplos específicos — preservando as
características particulares de cada campo de conhecimento — acerca de quais
valores existem, com as pessoas podem sustentá-los e como eles evoluem no tempo;
Entender a gênese e a função das instituições sociais nos âmbitos político, econômico
e cultural; Compreender, em sentido geral, a essência e o funcionamento interno
da ciência e da tecnologia; Ter uma familiaridade com o raciocínio científico e
tecnológico, com os principais conceitos e metodologias atuais — para aceitá-las
ou rejeitá-las —, com o projeto e a configuração de estratégias nas disciplinas
estudadas; Ter uma compreensão holística das complexas interações entre todos

7
Mestre em Ciências Naturais e Matemática (FURB). CV: http://lattes.cnpq.br/1469248630990193
8
Pós-doutorado em Educação (Faculdades EST). Doutorado em Ciências Pedagógicas (UH Cuba).
CV: http://lattes.cnpq.br/2458576908626767
31
estes componentes. E, se isto não for o suficiente — e não o é —, importa também
saber como neste complexo se reflete a arte, a literatura, a filosofia e a história,
assim com a análise política, econômica e sociológica.
Uma abordagem na tentativa de desmistificar a relação linear de desenvol-
vimento tecnológico com evolução humana não significa transformar as escolas
em templos para tornar seus alunos aprendizes de filósofos ou sociólogos. Não é
necessária e nem desejável tal atitude. Fazer isso requer apenas Interdisciplinaridade
que pode ser conseguida não através de disciplinas estanques, como se procura con-
figurar nas soluções atuais, mas sim através de grupos de conhecimento formados
pelos mais diversos professores com a adoção de novas e diversificadas técnicas.
A comunicação é a essência de uma boa relação e bom conviver. Por-
tanto, exercitamos a comunicação que a priori deveria ser em nossa
casa, com nossos familiares. Um dos melhores lugares para exercitar os
processos comunicativos é nossa casa. O próximo lugar é o ambiente
escolar, onde as interações professor-aluno, aluno-aluno, aluno-meio
são estabelecidas de maneira prazerosa. (RODRIGUES, 2015, p. 8)

Apesar da admiração pelos efeitos da ciência e da tecnologia, a preocupa-


ção é muito mais aguçada com as consequências negativas dos seus usos, tanto
nas questões do meio ambiente, do domínio de armas poderosíssimas, quanto
em relação às questões sociais decorrentes da minoria dominante de todos estes
conhecimentos. Os interesses que estão em jogo é a certeza de que a ciência cata-
lisa o desenvolvimento, conseguido financiamentos extraordinários, ocorrendo a
industrialização da própria ciência.
Se o uso de novas tecnologias da informação e da comunicação está
sendo colocado como um importante recurso para a educação básica,
evidentemente, o mesmo deve valer para a formação de professores.
No entanto, ainda são raras as iniciativas no sentido de garantir que
o futuro professor aprenda a usar, no exercício da docência, compu-
tador, rádio, videocassete, gravador, calculadora, internet e a lidar com
softwares educativos. (BRASIL, 2010b, p. 530)

Porém, muitos continuam com suas posições imutáveis pensando e


falando como antes, incapazes de compreender as circunstâncias — na grande
maioria não por desconhecimento, mas sim por vontade própria, para poder usufruir
de certos privilégios que esta postura proporciona — radicalmente mudadas nas
quais prosseguem com sua profissão.

32
DESENVOLVIMENTO

Por que será que alguns professores e cientistas não se conformam com
estas mudanças e não acrescentam a esta realidade outras ferramentas que tanto
contribuíram na sua própria atuação junto aos seus alunos e à sociedade? Será
que é a sua posição dogmática do infalível que estará caindo por terra? Querem
continuar como ‘mágicos’ na busca de ‘repassar’ conhecimentos que fatalmente
levarão ao maior conforto humano independentemente de a quem estão servindo?
A existência desta nova concepção e desta atuação crescente em direção
aos problemas gerados pelo ressentimento compreensível de que foi permitida
à comunidade científica uma autonomia de voo exacerbada, em que os cidadãos
tiveram pouca ou nenhuma influência, está proporcionando discussões mais abertas,
mais críticas e mais conscientes.
Este procedimento poderá realmente contribuir para um desenvolvimento
científico-tecnológico imbricado ao desenvolvimento de toda a sociedade. como
um importante começo nesta mudança de cultura, ainda fortemente presente
em nossa civilização, precisamos, de certa maneira, no ensino tecnológico,
além da adoção de uma nova abordagem epistemológica, levar em considera-
ção outros aspectos fundamentais.
Para isso, a educação nas escolas não pode ser apenas em ‘equipar’ os estu-
dantes com conhecimento e habilidades para que eles ‘consigam’ empregos na
sua vida de adulto. Ela precisa muito mais: precisa tornar os jovens criativos e
críticos em relação às realizações da ciência e da tecnologia que, em inúmeras
situações, eles próprios ajudaram a criar; precisa ajudá-los a pensar com respeito
às aspirações de seus colegas e de todos os cidadãos; precisa torná-los cuidadosos
com a sua saúde — hoje fortemente dependente de muitos resultados tecnológicos — e,
acima de tudo, precisa levá-los a pensar, num processo coletivo, nos resultados e
consequências dos artefatos científico-tecnológicos.
A educação aponta na direção do pensamento crítico da riqueza dos valores
culturais e das dimensões morais e espirituais da vida. Ela precisa ser levada a todos
os jovens, com estes pressupostos, independentemente de sua bagagem de conheci-
mento, sexo, credo, raça ou cor. Temos que entender que a educação como um pro-
cesso que envolve conhecimento, e, portanto, é necessário conhecer o conhecimento.
Importante destacar o enfoque social da educação e do conhecimento, isto é,
a educação é um processo de construção social do conhecimento, forma atitudes,
vincula valores e atitudes. O desenvolvimento social é um processo que afirma a
33
independência nacional, assegura um crescimento econômico sustentado preserva
o meio ambiente e assegura a participação democrática do povo como principal
ator e benefício desse processo.
Observando o contexto educacional, percebemos que o processo de ensino
e aprendizagem deve acompanhar as transformações sociais. Nesse sentido, os
educadores necessitam também aprender e ensinar com esses novos recursos e
metodologias. Salientamos o uso da informática no ambiente escolar, uma vez que
muitas rotinas sociais já estão sendo contempladas com essa tecnologia.
Dessa forma, reiteramos a importância dos conteúdos matemáticos para a
utilização de planilhas, principalmente o conceito de função. Utilizando planilha
de cálculos, os estudantes podem construir e explorar diversos conceitos mate-
máticos através de suas macros instruções, tendo o resultado em tempo real. Esse
processo leva-o a pensar matematicamente, experimentando, testando hipóteses,
criando estratégias para resolver os problemas propostos. (BRASIL, 2006, p. 88)
Com uma sociedade da informação e da comunicação, o estudante sente a
necessidade de estar incluso nesse ambiente. Portanto, trabalhar com as tecnologias
digitais no ambiente escolar possibilita o acesso a esse mundo de maneira eficiente
e eficaz, pois, nessa interação os sujeitos desenvolvem novas habilidades e compe-
tências e participam do processo de ensino e aprendizagem. (GONÇALVES, 2014)
Ao se abordar a tecnologia da informação, é comum que acadêmicos
e mesmo profissionais de mercado, tenham o costume de se referir
a sistemas como dotados de inteligência, sejam eles informatizados
(como é o caso de alguns softwares) ou não. Este é um equívoco
comum, visto que sistemas computacionais se baseiam em lógica, ou
seja, cálculos matemáticos que conferem testes baseados em proba-
bilidades que advém de equações, algoritmos e expressões aritméticas
que, por mais complexas que possam parecer apenas simulam aquilo
que se conhece por inteligência. (MEDEIROS e GONÇALVES,
2018, p. 51)

Para este estudo em particular, os autores focam este recorte de seus estu-
dos em operações matemáticas envolvendo frações com parêntese, para tanto,
inicialmente é preciso rememorar que de acordo com as propriedades resolutivas,
a adoção dos parênteses como elementos ordenadores da sequência de prioridade
na execução matemática de quaisquer operações.
Na aritmética quando dividimos um número por zero, não existe um resul-
tado. Por exemplo quando dividimos 4 por zero (4/0) não existe um valor para
34
esta operação. Se fizermos 7/ (3 – 2 – 1), pelas propriedades resolvemos os valores
que estão entre parênteses e depois dividimos, o que também resulta 7/0, não
existindo valor. Se fizermos com valores decimais 6/ (0,9 – 0,8 – 0,1), a regra
de resolução é a mesma, primeiro resolvemos os parênteses depois a divisão, o
resultado também não existirão.
Porém, quando aplicamos na planilha eletrônica a resolução aritmética 4/
(0,9 – 0,8 – 0,1), a planilha consegue apresentar resultados para aquilo que as
regras aritméticas não permitem.
Na figura abaixo buscamos alterar os valores, para verificar se havia um
padrão na planilha, no entanto, o que nos chamou atenção é que a própria planilha
traz resultados contraditórios.

Figura 01 – Operação aritmética

Fonte: Os autores

Nas linhas 1,2,3 e 6 da figura acima, a planilha fornece um resultado, que


seria impossível de pelos princípios matemáticos. No entanto nas linhas 4,5, 7 e 8
a planilha reconhece que é impossível ter um resultado. Por isso não entendemos
o porquê da discrepância nos resultados.
Quando aplicado em sala de aula, constatamos uma aversão, por parte dos
alunos, na utilização do Excel. E com a constante reflexão:
- Abandone o Excel professor.
Tendo a planilha como uma excelente ferramenta, as empresas dão preferên-
cia para quem tem domínio deste software. Os autores questionam se realmente
é viável inserir o uso da planilha eletrônica em sala diante destas inconsistências
35
básicas e catastróficas. A ferramenta traz erros primários, quanto mais os autores
pesquisam, mais erros continuam sendo encontrados, na aplicação do conteúdo.

CONSIDERAÇÕES

A constante busca por melhores condições de vida, desde os tempos mais


remotos, é o foco dos empreendimentos humanos. São necessidades que geram
possibilidades de construção de um mundo novo, com uma sociedade melhor e
sujeitos mais realizados em sua plenitude.
A educação está intimamente relacionada aos avanços e conquistas do homem
e, com certeza esta relação é resultado de seu papel de agente transformador e ao
mesmo tempo em transformação contínua.
O surgimento de novos desafios estimula a busca de outras formas de
solução, provocando assim novas construções mentais a que Piaget denomina de
acomodação. As relações que a criança estabelece com o objeto, são baseadas nas
estruturas mentais e no conhecimento de mundo que ela elabora.
A compreensão depende da estruturação e assimilação das ações sobre o
objeto e das coordenações dessas ações. As manifestações do meio são funda-
mentais nas construções cognitivas e a significação dos acontecimentos e objetos
ocorre quando inserida em uma estrutura no processo de assimilação, o que torna
indispensável a manipulação dos elementos envolvidos.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o Ensino
Médio. v. 2. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.
_______Ministério da Educação. Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação
básica, em cursos de nível superior. Disponível em: Acesso em: 23 nov. 2010b.
GONÇALVES, Rafael Alberto. Introdução à matemática financeira por meio de planilhas eletrônicas
CALC & EXCEL no ensino médio. Deutschland: Novas edições acadêmicas, 2014.
MEDEIROS, Jonas de; GONÇALVES, Rafael Alberto. Aplicações tecnológicas em ambiente acadêmico: um
olhar sobre o uso de planilhas eletrônicas e seus impactos sócio mercadológicos. In: CARRARA, Rosangela
Martins (Org,); ORTH, Miguel Alfredo (Org). Educação e tecnologia na América Latina. Florianópolis,
SC: Contexto digital tecnologia educacional, 2018.
RODRIGUES, Stélio João Rodrigues. A educação a distância um processo de ensino aprendizagem em
instituições de ensino superior: olhares e reflexões. São Leopoldo, RS, 2015. (Trabalho entregue para o
cumprimento do estágio pós doutoral)

36
A IMPORTÂNCIA DA QUÍMICA DE COORDENAÇÃO
E SEU CONHECIMENTO NA FORMAÇÃO
UNIVERSITÁRIA DE PROFISSIONAIS DA QUÍMICA

Iury Araújo Paz9


Kelly Lima de Oliveira10
Jordana Lima Braga11
Wildson Max Barbosa da Silva12
Solange de Oliveira Pinheiro13

INTRODUÇÃO

Nunca será tão simples falar sobre ensino e exemplificá-lo. Se for feita uma
pesquisa, um simples significado até uma concepção complexa e destrinchada de
diversos pensadores, haverá inúmeras respostas. E isso não é diferente dentro dos
Cursos Superiores de Química. As Concepções do processo ensino-aprendizagem
remetem para os significados pessoais e gerais em torno do processo ensino-
-aprendizagem, ou seja, interpretações do ensino e do ensinar, da competência e
desempenho dos professores, da sua eficácia, da satisfação nas atividades docentes,
do melhor método, da aprendizagem, das funções do professor e do aluno e das
dificuldades percepcionadas nas atividades docentes (FIGUEIRA, 2008).
Na teoria da construção do pensamento e da linguagem contido na obra
“A formação social da mente” (COLE et al., 1991) explicita que o aluno tem
uma maior evolução quando ocorre um desafio sobre o conhecimento atual
do aluno. Contudo há necessidades da utilização de contextos que venham a
ajudar e mediar o ensino. Algo a se ter bastante cuidado, atenção e prática é o
modo de transmitir o conhecimento.
[...] Mas transmitir deliberadamente novos conceitos e novas formas
ao aluno é, estou convencido, tão impossível e inútil quanto ensinar
uma criança a andar segundo as leis do equilíbrio. Qualquer tentativa
dessa espécie apenas desvia o aluno do objetivo proposto (TOLSTÓI,
1903, p. 146).

9
Doutorando em Biotecnologia (UECE). CV: http://lattes.cnpq.br/3502481342419035
10
Doutoranda em Biotecnologia (UECE). CV: http://lattes.cnpq.br/4441669217228037
11
Graduanda em Química (UECE). CV: http://lattes.cnpq.br/5368892491757183
12
Pós-doutorando em Química (UECE). CV: http://lattes.cnpq.br/0983778965244237
13
Doutora em Química (UECE). CV: http://lattes.cnpq.br/9351322395472113
37
E nada do que foi mencionado seria diferente no Ensino da Química, seja
na educação básica ou na educação superior, onde é comum encontrar diver-
sas metodologias que venham a auxiliar o processo de ensino e aprendizagem.
Quando se trata de ensino superior, a Química pode trazer algumas adversidades
e problemáticas, tais como a dificuldade dos alunos recém ingressados se adap-
tarem ao novo mundo de uma universidade, a sua rotina de estudos e exigências
cientificas, atrapalhando assim, o rendimento do estudante e levando até a desis-
tência do curso superior e uma grande evasão (MATTA; LEBRÃO; HELENO,
2017; MONTEIRO; SOARES, 2017).
As aulas práticas experimentais vêm se mostrando de grande importância
para o desenvolvimento e no processo de ensino/aprendizado de grande relevân-
cia. Silva e Egas (2022) demonstraram que 66% dos alunos demonstraram uma
melhora significativa do aprendizado em Química após realização de aulas práticas
“Uma vez que, tais atividades estimulam suas curiosidades e interesse, permitindo
a criação de conexões entre teoria, prática e fatos da vida cotidiana”. Contudo,
não basta apenas colocar o conteúdo prático e esperar que os alunos executem de
forma robotizada e mecânica, sem entender o fundamento ou o porquê daquilo.
O estudo da Química de Coordenação abordada nas universidades dentro
das disciplinas de Química Inorgânica, objetiva contemplar ao profissional da
Química uma formação aprofundada desta classe, compostos de coordenação,
bastante abrangente, sólida e interdisciplinar, relatando sua importância em diversas
áreas, tais como biológica, bioinorgânica, farmacológica, na medicina, na fabricação
de materiais e de tantas outras áreas exploradas nos últimos anos (SILVA et al.,
2018; SILVA FILHO et al., 2019; NASCIMENTO et al., 2019).
Os conteúdos da área da Química Inorgânica possuem a inclusão nos
currículos institucionais, de temas que propiciem reflexão sobre Ciência e Tec-
nologia. Assim, vem transformando sua concepção de práticas laboratoriais em
uma perspectiva construtiva sobre os aspectos que envolvem a formação e a pro-
fissão docente e profissional, promovendo a articulação entre a teoria e prática. A
Química Inorgânica é conhecida como o ramo da Química que estuda todos os
compostos que não possui o elemento carbono, no entanto, a Química Inorgânica
é um estudo bem mais amplo e complexo (SANTOS et al., 2014).
Os compostos de coordenação (ou complexos inorgânicos) estão presentes
na maioria dos processos químicos que envolvem espécies inorgânicas em tempe-
raturas não muito elevadas. Assim é que em fenômenos vitais como a respiração e a
38
fotossíntese (entre outros), em processos industriais importantes no cotidiano e em
um número incalculável de experimentos de laboratórios, sempre estão envolvidos
processos ou produtos relacionados à Química de Coordenação (FARIAS, 2005).
A Química de Coordenação vem trazendo grandes estudos e benefícios para
a sociedade, principalmente dentro da busca de novos fármacos. Pinheiro et al.
(2021) relata complexos inorgânicos como promissores fármacos para a Doença
de Alzheimer, uma doença neurodegenerativa crônica. Machado el al. (2021)
aborda metalofármacos a base de cobre como uma promissora terapia antitumoral
e Silva et al. (2021) apresenta complexos de rutênio, potencialidade como fárma-
cos. Muitos se tem pesquisado sobre os compostos de coordenação, pois tem-se
observado que tais complexos formam organometálicos termodinamicamente e
cineticamente estáveis, que demonstram uma alta eficiência.
Experimentos realizados pelos próprios alunos dentro das aulas de Quí-
mica Inorgânica trazem uma motivação e resgata seu conhecimento adquirido
nas aulas teóricas, proporcionando-os a buscar suas interpretações de conceitos
para aplicá-los a fim de que haja um elo entre conhecimento do cotidiano com
o científico. Nesse sentido, no ensino por investigação, os alunos são colocados
em situação de realizar pequenas pesquisas, combinando simultaneamente con-
teúdos conceituais, procedimentais e atitudinais (BALDAQUIM et al., 2018).
Dessa forma, a proposta de realizar reações que envolvam complexos inorgânicos
se mostra promissora, pois envolve mudanças de cores e reações de precipitação.
Neste capítulo será apresentado uma reação muito comum dentro da Química
Inorgânica, a formação do sulfato de tetraminocobre (II) monoidratado, e que
vem demonstrando muito interesse nos alunos, por ser colorido, formação de
precipitado e mudança de cores.
A reação do sulfato de tetraminocobre (II) monoidratado, de fórmula
[Cu(NH3)4]SO4, é um sal formado pelo íon complexo [Cu(NH3)4]2+ e pelo ânion
SO42-. Este composto é usado em estamparia têxtil e como fungicida. Os sais com-
plexos são caracterizados pelas suas cores fortes, essas mesmas cores, dependem
de alguns fatores, tais como: do número de elétrons presentes nos orbitais d do
íon metálico central, do arranjo dos ligantes em volta do íon central (geometria
do complexo), pois isso afeta a separação dos orbitais, da natureza do ligante, uma
vez que diferentes ligantes têm diferentes efeitos nas energias relativas dos orbitais
e, das transições entre orbitais (LEE, 1999).

39
DESENVOLVIMENTO

Para um melhor entendimento da prática e da reação em complexos inor-


gânicos, a produção do composto sulfato de tetraminocobre (II) monoidratado
em aulas práticas de laboratório dentro dos cursos de Química vem trazendo
bastante motivação, pois trata-se de uma reação rápida, colorida e de forma-
ção de precipitado, além de envolver um grande conhecimento teórico envol-
vendo formação de composto inorgânico, ligação coordenada e as teorias de
ligação em compostos de coordenação.
O composto [Cu(NH3)4]SO4.H2O foi obtido por reação de solução
aquosa de amônia, NH3, e sulfato de cobre (II) pentaidratado, CuSO4.5H2O, de
acordo com a reação química 01:
CuSO4.5H2O(s) + 4NH3(aq) → [Cu(NH3)4]SO4.H2O(s) + 4H2O(l)(Reação 01)
Para as reações mostradas neste trabalho foram necessários os seguintes
materiais e reagentes: Estante com tubos de ensaio, pipetas de pauster, provetas
de 5 mL, bastão de vidro, chapa aquecedora, álcool etílico (Synth), água destilada,
sulfato de cobre pentahidratado (CuSO4.5H2O) (Synth), solução de 1M de hidró-
xido de sódio (NAOH) e solução de 6 M de hidróxido de amônio (NH4OH).
Antes da formação do complexo inorgânico [Cu(NH3)4]SO4.H2O, é
importante uma demonstração de uma reação de precipitação, a fim de fornecer um
modelo prático visual de formação de precipitado, para isso, utilizou-se a reação 02:
2NaOH(aq) + CuSO4.5H2O(aq) → Na2SO4(aq) + Cu(OH)2(s) + 5H2O (Reação 02)
Neste caso ocorre reação de precipitação, forma-se um sal solúvel, sulfato
de sódio, e um precipitado, hidróxido de cobre II (Cu(OH)2), precipitado de cor
azul. Após, houve aquecimento da solução contendo o precipitado, observando
um escurecimento do precipitado, seguindo, então, a reação 03:
Cu(OH)2(s) CuO(s) + H2O(l)(Reação 03)
Por aquecimento, o Cu(OH) 2 , decompõe-se originando o
óxido de cobre (II), CuO, e água.
Foram reservados 2 tubos de ensaio que foram denominados de A e B. Adi-
cionou-se 1 g do CuSO4.5H2O em 4 mL de água destilada. Foram retirados 2 mL
desta solução e adicionados a cada tubo de ensaio. No tubo A, adicionou-se 2 mL
de solução de 1 M de NaOH, observando um precipitado parcialmente solúvel em

40
excesso de NaOH (reação 02), Figura 01(A). Aqueceu-se cuidadosamente o tubo
de ensaio até perceber o escurecimento do precipitado (reação 03), Figura 01(B).

Figura 01 – Ilustração das reações 02 (A) e 03 (B), com seus respectivos precipitados.

No tubo B, adicionou-se, gota a gota, 2 mL de solução de 6 M de NH4OH


à solução de CuSO4.5H2O, observou-se a formação de precipitado azul (reação
01) com a formação do complexo inorgânico [Cu(NH3)4]SO4.H2O, Figura 02(A).
Colocou igual volume de álcool etílico (2 mL) à solução e deixou o tubo de ensaio
em repouso até decantar o precipitado, Figura 02(B).

Figura 02 – Ilustração da reação 01, formação do complexo [Cu(NH3)4]SO4.H2O, nas Figuras A


e B. Nas Figuras C e D, o antes e depois das reações 01 e 03.

41
Ao adicionar 2 mL de uma solução de NH4OH à uma solução de CuSO4.5H2O
ocorreu uma reação com formação de precipitado de cor azul. Pela reação, perce-
be-se a reatividade do ligante NH3 frente ao íon Cu2+. Com isso, foi explorado os
efeitos tais como geometria da molécula, estados de oxidação, absorção no espec-
tro eletromagnético relacionando a cor observada com comprimentos de ondas,
consequentemente relacionando à energia da absorção. Por fim, a adição de álcool
etílico pode-se perceber a cristalização do precipitado, onde nesta etapa pode-se
explorar questões tais como cristalização e reações envolvendo precipitados, assim
como, cinética e equilíbrio na reação de complexação. A Figura 02(C) ilustra as
soluções iniciais de CuSO4.5H2O e a Figura 02(D) ilustram após as reações 01 e 03.

CONSIDERAÇÕES

Ao realizar este experimento em aulas de Química em Cursos Superio-


res, concluiu-se que se pode sintetizar complexos provenientes de sais simples
hidratados com outras moléculas estáveis, através de reações simples, levando
em consideração as relações estequiométricas. Deste modo, uma aula prática de
síntese de complexos inorgânicos serve como uma ferramenta facilitadora do
conteúdo teórico dado em sala de aula, levando a um melhor entendimento de
sua formação, de compostos de coordenação.
Além disso, na disciplina de Química Inorgânica é necessário interligar os con-
teúdos teóricos com aulas práticas servindo como suporte para a compreensão e fixação
do que foi estudado em sala de aula facilitando o processo de ensino-aprendizagem.
Portanto, é evidente a importância da vivência em laboratório na formação
do profissional da Química. Pois, além do conhecimento teórico adquirido, essas
42
práticas trazem uma segurança ao aluno na manipulação de vidrarias e reagentes,
enriquecendo assim seu currículo de forma a garantir que o profissional se torne
realmente habilitado, podendo atuar nas diversas áreas que a Química abrange.

REFERÊNCIAS
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TOLSTÓI, L. N. Artigos sobre pedagogia (Pedagoguítcheskiestât"i), Ed. Kuchnereva i K°, 1903.

44
METODOLOGIAS ATIVAS: POTENCIALIDADES
NO CONTEXTO DA PRÁTICA EDUCATIVA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Maria Gisélia da Silva Gomes14


Antonia Givaldete da Silva15

INTRODUÇÃO

A tecnologia da informação e a digitalização mudaram definitivamente


a forma como as pessoas trabalham, estudam e se comunicam. Com a inclusão
das tecnologias na educação, o processo de ensino-aprendizagem passou a contar
com novas práticas e formas de abordagem, a exemplo das metodologias ativas
de aprendizagem. A noção de aprendizagem significativa emerge mais forte e
revigorada, encontrando lastro na caracterização dos termos aprendizagem ativa e
metodologias ativas e nas possibilidades pedagógicas das emergentes tecnologias
de informação e comunicação (BERTOLDO; SALTO; MILL, 2018).
As metodologias ativas de aprendizagem são uma técnica pedagógica que se
baseia em atividades instrucionais, capazes de engajar os estudantes em, de fato, se
tornarem protagonistas no processo de construção do próprio conhecimento. Ou
seja, são metodologias menos baseadas na transmissão de informações e mais no
desenvolvimento de habilidades, de conhecimentos prévios e experiências vividas,
segundo seu próprio raciocínio.
Com essa prática, aprimora as habilidades de pensamento crítico, melhora os
índices de motivação dos estudantes. Como abordagem da didática, a metodologia
ativa busca inverter a lógica tradicional de ensino-aprendizagem, substituindo a
posição passiva do estudante, que é marcada pela recepção de conhecimentos, pela
posição de estudante como protagonista de seu aprendizado.
As metodologias ativas decorrem de propostas pedagógicas de teóri-
cos como John Dewey, Paulo Freire e Carl Rogers, entre outros. Elas
enfatizam que cada estudante deve aprender em seu ritmo, de acordo
com suas necessidades, com base em situações contextualizadas e
significativas (CHAQUIME; MILL, 2018, p. 442).

14
Mestra em Educação (UFAL). CV: http://lattes.cnpq.br/2788334074013242
15
Mestra em Ensino de Ciências e Matemática (UFAL). CV: http://lattes.cnpq.br/8395264805003654
45
A noção de Aprendizagem Ativa refere-se a um conjunto de práticas pedagó-
gicas que consideram o estudante como protagonista do próprio processo de cons-
trução do conhecimento, que se desenvolve de modo mais autônomo, participativo,
colaborativo e ativo. Essa abordagem, podem seguir diferentes linhas de pensamento
e de prática. Para Guaraldo e Brito (2017, p. 25), as “metodologias ativas podem
proporcionar autonomia, formação crítica, capacidade de fazer projetos, solucionar
problemas, organizar, planejar, repensar a próxima etapa a ser pesquisada e resolvida”.
Este capítulo tem como objetivo descrever algumas metodologias ativas e como estas
podem ser trabalhadas em sala de aula integrada as Tecnologias Digitais da Informação
e Comunicação (TDIC). Apresentaremos também uma sequência de quatro atividades
avaliativas utilizando as metodologias ativas: gamificação, seminários/discursões, Estudos
e atividades em grupo, com uso de Aplicativo e plataforma da web nas aulas de História.

METODOLOGIAS ATIVAS DE APRENDIZAGEM

Metodologias ativas configura-se como estratégias pedagógicas voltadas ao


aluno e o seu papel proativo na construção do próprio conhecimento.
Alguns exemplos de metodologias ativas de aprendizagem:
1. Gamificação, trata-se, essencialmente, de trazer elementos comuns como os video-
games (com desafios, regras, narrativas em geral) para o ensino, expor os alunos a
problemas baseados em diferentes situações, disponibilizando recursos diferenciados
para que possam resolvê-los, seja individualmente ou em grupo (FARDO, 2013).

2. Cultura maker, é baseada no princípio ou “faça você mesmo”. Na prática, quando


falamos da cultura maker na educação, falamos da apresentação de problemas
e recursos para resolvê-los. Assim, os alunos devem criar as soluções por si só,
utilizando os conhecimentos aprendidos em sala de aula (RAABE, 2016, p. 10).

3. Aprendizado por problemas, permite que os alunos exerçam o aprendizado a


partir de desafios. Ao encarar situações em determinados conceitos, é necessário
trabalhar com criatividade e reflexão. (SOUZA; DOURADO, 2015, p. 187).

4. Estudo de casos, os estudantes são expostos a problemas reais, de modo que


possam analisá-los por inteiro (como uma situação real) e, entre si, discutir
as possibilidades de solucioná-los. (SÁ; QUEIROZ, 2009).

5. Sala de aula invertida, é uma das metodologias ativas de aprendizagem que


contam com o auxílio da tecnologia, transformando qualquer ambiente em
um espaço dedicado ao estudo. Dessa forma, o tempo da aula pode ser usado
46
para discussões e debates sobre o tema, em vez de somente a transmissão do
conteúdo. O professor pode, inclusive, complementar com vídeos, demons-
trações visuais e prática. (BERGMANN e SAMS, 2016, p. 32)

6. Seminários e discussões, é a promoção de seminários e discussões entre os


alunos. Normalmente, a aplicação prática é simples, com o professor propondo
um tema para discussão geral, de modo que os alunos devem se posicionar
em relação a ele (CAPELLATO; RIBEIRO; SACHS, 2019);

7. Estudos e atividades em grupo, as metodologias ativas propõem estudos em


grupo por apresentem a riqueza que a diversidade pode levar para o resultado.
Cada um dos alunos possui habilidades, conhecimentos e até experiências dife-
rentes, que devem ser somadas nas atividades em grupo (CAMPO, 2003, p. 57).

8. Rotação por estações, o professor divide a sala de aula em “estações”, separando


os alunos por etapas relativas ao planejamento da aula. Neste caso, a primeira
etapa ou estação é a mais básica, como a leitura do tema da redação, enquanto a
segunda é a exibição de uma videoaula sobre o tema, a terceira uma discussão em
grupo sobre o tema e a quarta a produção de uma redação16. (SILVA et al., 2018).
As metodologias ativas de aprendizagem têm apresentado como novas práticas
pedagógicas ao processo de ensino aprendizagem e desenvolvimento crítico dos
alunos. Valente, Almeida e Geraldini (2017, p. 463), afirmam que o potencial das
práticas pedagógicas é maior quando envolvem os estudantes, buscando “engajá-los
em atividades práticas, nas quais eles são protagonistas da sua aprendizagem”. Ela
se dirige na direção oposta do ensino conhecido como tradicional, que centra sua
pedagogia no professor, por meio da transmissão da informação ao aluno.
Uma característica muito relevante da utilização das metodologias ativas vai ao encon-
tro da intenção de personalizar os percursos de aprendizagens dos alunos, proporcionando
uma melhor compreensão das aprendizagens. Para cada aluno, é dada a oportunidade de
encontrar respostas para suas dúvidas e dilemas mais profundos. Outro importante movi-
mento do ensino e da aprendizagem das metodologias ativas diz respeito à possibilidade
de contato com profissionais mais experientes, como professores, tutores ou mentores.
Eles podem corroborar com o aprendizado mediando os percursos individuais e coletivos.

REFERENCIAL TEÓRICO

A utilização de ferramentas tecnológicas é atualmente, essencial, por ser


mais acessível aos alunos e se aproxima de suas realidades. Segundo (MOURA,
16
https://www.totvs.com/blog/instituicao-de-ensino/metodologias-ativas-de-aprendizagem/. Acessado em: 20 maio 2022.
47
2019, p. 217) “há várias ferramentas que permitem um uso extensivo da tecnolo-
gia nas aulas, mas o principal objetivo é maximizar a aprendizagem dos alunos e
a criação de novas oportunidades para refletir, discutir e aprender. A introdução
das metodologias ativas com uso de tecnologias digitais, acontece atualmente um
passo revolucionário no processo ensino aprendizagem.
O uso de metodologias ativas como os aplicativos (Apps) e plataformas
digitais nas aulas possuem maior possibilidade de contribuir para uma aprendi-
zagem mais significativa, devido a interatividade e maior participação dos alunos.
As metodologias ativas constituem uma proposta de trabalho pedagógico capaz
de modificar positivamente as aulas, colocando o aluno no centro do processo
de ensino-aprendizagem e proporcionando a experimentação dos conteúdos de
maneira prática. As tecnologias digitais, por sua vez, tornam-se um mecanismo
para o desenvolvimento de diferentes práticas de ensino.
Para a utilização efetiva das tecnologias digitais no contexto escolar se faz
necessário conhecer as possibilidades que elas têm a oferecer. Oliveira (2018)
reflete que com a utilização de Apps, professor e aluno passam a ser construtores
de conteúdos de forma flexível e criativa. Desse modo, a inserção dos Apps na
educação é importante para a promoção do estudo, da leitura e da escrita em
plataformas virtuais, colaborando para o acesso à web e às ferramentas que ela
oferece (Carvalho 2015; Couto et al. 2016; Santaella 2016; Monteiro et al. 2018).
Sobre o uso de Apps em sala de aula, Santaella (2016) destaca que há dois
aspectos desse processo interativo na aprendizagem que merecem reflexão: o
primeiro deles tem a ver com o papel criativo dos programadores na infinidade
de Apps que hoje participam de nossas vidas online; e o segundo versa sobre o
papel promissor dos professores que sabem transferir esses Apps para fins de
aprendizagem colaborativa, divertida, flexível e eficaz. Os Apps surgem como
aliados potentes no cenário atual da educação, principalmente durante o período
da pandemia pelo Covid 19, equipamento que fornece novas possibilidades e
diferentes experiências de aprendizagem, sendo possível a utilização de recursos
multimidiáticos (textos, imagens, sons, vídeos, entre outros), tornando dispositivos
técnicos de suporte ao professor.
Segundo (MOURA, 2019, p. 217) “há várias ferramentas que permitem
um uso extensivo da tecnologia nas aulas, mas o principal objetivo é maximizar
a aprendizagem dos alunos e a criação de novas oportunidades para refletir, dis-
cutir e aprender. Qualquer professor tem à disposição Apps para tornar as suas
48
apresentações mais interativas. A saber na tabela 1, alguns Apps e sugestões de
atividades de acordo com a metodologia ativa selecionada.
Tabela 1 – Metodologias ativas: atividades com uso de aplicativos
Aplicativos/plataformas Metodologias ativas Atividades
Duolingo Cultura maker (faça você Estudar a Língua Inglesa dentro e fora da sala de
mesmo) aula, em qualquer lugar a qualquer hora.
VOLP - Vocabulário Ortográfico da Língua Sala de aula invertida Trabalhar língua Portuguesa, a ortografia e classe
Portuguesa gramatical das palavras.
Look História Seminários e discussões Assuntos destacados nos períodos históricos como
Antiguidade, Idade Medieval, Idade Moderna e
Idade Contemporânea, além da História do Brasil.
Canva Seminários e discussões Organizar de slides, vídeos, iconográficos, mapa
mental e conceitual e outros.
Kahoot Gamificação Quiz. Utilizado em qualquer disciplina.
Wordwall Gamificação Jogo. Utilizado em qualquer disciplina.
Jamboard Gamificação Jogo. Utilizado em qualquer disciplina.
Geografia mundial Gamificação Jogo de perguntas sobre países, mapas, bandeiras,
capitais, população, religião, idioma e moeda de
países.
Padlet Estudos e atividades em grupo Quadro interativo e colaborativa, utilizada em
qualquer disciplina.
Fonte: organizado pela autora, 2022

A possibilidade de uso de metodologias digitais com Apps didáticos nas aulas


podem contribuir para uma aprendizagem mais significativa, devido a interatividade
e participação dos sujeitos. Moran (2017) afirma que, os professores podem utilizar
estas tecnologias digitais, em primeiro lugar, para motivar os alunos principalmente
através de vídeos, histórias e jogos; em segundo, para inverter a forma de ensinar.

METODOLOGIA

Para realização deste capítulo utilizou-se como procedimento metodológico


a pesquisa-ação (BARBIER, 1985, 2002), com abordagem descritiva/participativa
utilizando as metodologias ativas: gamificação, seminários/discursões, Estudos e
atividades em grupo, como recursos metodológicos na organização de algumas
atividades avaliativas. A pesquisa-ação estabelece relação concreta de atuação em
educação, entre a teoria e a prática. Possibilita estratégias de conhecimentos impli-
cados com a realidade e permite ações nas quais o próprio educador pode refletir
e transformá-la. De acordo com Barbier (2002, p. 55-56) a metodologia inclui:
O processo, o mais simples possível, desenrola-se frequentemente num
tempo relativamente “curto” em que todos os membros do grupo colaboram. Na
pesquisa-ação, os dados são retransmitidos à coletividade. Ao mesmo tempo, busca
conhecer as percepções dos sujeitos sobre a realidade investigada, com o objetivo
49
de orientá-los sobre a avaliação mais apropriada dos problemas detectados, visando
redefinir o problema e apontar novas soluções.
Na pesquisa-ação, os sujeitos são autores da pesquisa, não se cogita sobre os
outros, mas e sempre com os outros “[...] a pesquisa-ação obriga o pesquisador a
implicar-se” (BARBIER, 2002, p. 14). Esta abordagem da pesquisa proporciona
interação e participação do pesquisados com todos os envolvidos na investigação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A utilização de Apps como recurso pedagógico no ensino de História tem


sido cada vez mais frequente na educação básica. Duas razões se destacam nesse
contexto: em primeiro lugar, o fato de que há uma série significativa de Apps que
abordam temáticas históricas, aproximando a historicidade das realidades dos alu-
nos; em segundo, o grande apelo dos Apps, sejam eles utilizados em computadores,
celulares, tablets, Chromebook, pelos alunos, demonstrando assim, a necessidade
de pensar formas lúdicas de se ensinar História.
Pensando em uma época em que a comunicação e o envolvimento dos alunos
parecem ser cada vez mais difíceis em salas de aula, a introdução de Apps, bem
como de diversas outras experiências das culturas juvenis, pode significar um convite
a uma nova dinâmica, que possa fazer com que o tempo da aula coincida com o
tempo dos alunos, isto é, que a duração da aula simpatize com a duração dos alunos
na era tecnológica. Dessa forma, os Apps deixam de ser apenas entretenimento e
transforma a sala de aula em um espaço de envolvimento, criação e aprendizagem.
Pensando na possibilidade de atividades/avaliativas proporcionada por alguns
Apps e com o desejo de melhorar a qualidade do ensino aprendizagem dos alunos,
pensou-se em elaborar aulas mais interativa e inovadoras visando o desenvolvi-
mento crítico e participativo dos alunos nas aulas de História. A ideia principal
era desenvolver atividades lúdicas que possibilitasse aos alunos compreender: As
fases da Primeira e Segunda Guerra Mundial, A Revolução Francesa, A Revolta
da Vacina ocorrida no Brasil em 1904, História do Brasil Colonial, Imperialismo
Europeu e a Partilhada Ásia e África, partindo da análise das revoltas existentes
nesse contexto. As atividades/avaliativas foram ministradas na escola Municipal
de tempo integral Dom Avelar Brandão Vilela, no interior de Alagoas, nas turmas
de 8º e 9º anos, no segundo semestre de 2021 e no primeiro semestre de 2022.
Apresentaremos a seguir uma sequência de quatro (4) atividades ava-
liativas realizadas com as metodologias ativas: gamificação, seminários e dis-
50
cursões, Estudos e atividades em grupo, com uso de Apps e plataforma edu-
cacionais nas aulas de História.
1. Jogo com o aplicativo kahoot. Utilizando da metodologia ativa da gamificação.
Atividade foi desenvolvida em dupla com alunos de sete (7) turmas do 8º
ano diurno. Assunto: A Revolução Francesa. O conteúdo foi trabalhado com
leitura compartilhada do livro didático, discursão aberta e análise de vídeos
do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=iAZ-VqLKu4I&t=2s https://
www.youtube.com/watch?v=LjpZD393ELI. Com o objetivo de promover
avaliação formativa dos alunos, utilizando os recursos de multimídia da sala
de aula, computador com internet e kromebooks, o jogo foi organizado com
questionários de múltiplas escolhas no aplicativo kahoot. aplicado nas turmas,
proporcionando a aprendizagem de forma lúdica e construtiva.

2. Mapa Mental no aplicativo Canva. Atividade desenvolvida com a meto-


dologia ativa seminários e discussões, com alunos do 9º ano. Para esta tarefa
foi trabalhado durante quatro (4) horas aulas o conteúdo Segunda Guerra
Mundial. Foi sugerido a construção de mapa mental utilizando o aplicativo
canva. Para dar sequência a atividade, a professora primeiro realizou uma mine
oficina, com a multimídia da sala de aula, apresentou o aplicativo canva, sua
funcionalidade, possibilidade de atividades e a interatividade do aplicativo
com as redes sociais. Em seguida os alunos utilizando os kromebooks da escola
construíram seus mapas mentais e enviaram para o email da professora. Os
mapas mentais montados pelos alunos foram socializados em sala de aula.

3. Jogo na plataforma Wordwall. Para esta atividade foi utilizado a metodo-


logia ativa da gamificação. O conteúdo trabalhado foi a Primeira Guerra
Mundial. Utilizou-se quatro (4) horas aulas, para discussão, leituras,
pesquisas em vídeos e sites. O processo avaliativo foi organizado na
plataforma wordwall que é projetada para criar atividades personalizadas
em modelo gamificado. Entre as várias opções de jogo oferecido pela
plataforma TV-Quis o escolhido para organizar a atividade. Tal como no
Quiz, os alunos respondem a perguntas de múltipla escolha. A estrutura
do TV Quiz inclui um cronómetro, a linha de Vida, Rondas Bónus, dobrar
pontuação, 50/50, entre outras. A criação do jogo no Wordwall, como
proposta de avaliação formativa no processo de aprendizagem dos alunos.

4. Atividades colaborativas com o aplicativo Padlet. Para esta atividade


foi utilizado a metodologia ativa Estudos e atividades em grupo. Para
construção do quadro colaborativa entre os alunos do 8º ano, os conteú-
dos trabalhos foram: A Revolta da Vacina ocorrida no Brasil em 1904,
História do Brasil Colonial, Imperialismo Europeu e a Partilhada Ásia
51
e África, durante o terceiro bimestre de 2021. Depois de apresentado e
discutido cada conteúdo, a atividade avaliativa foi organizada no aplicativo
padlet. Ao todo foram construídos quatro (4) quadros colaborativos com
os alunos. Escolhemos o Padlet para realização da atividade colaborativa
porque permite o compartilhamento dos murais com outras pessoas,
facilitando a distribuição de tarefas em equipes de trabalho nas turmas.
Figura 1 – Evidências da atividade colaborativa no padlet.

Fonte tirada pela própria autora 2021.

Apesar da aparente linearidade proporcionada pela organização em tópicos


neste capítulo, a criação dos jogos educativos aconteceu com a participação ativa
dos alunos. Contextualizamos que cada jogo e/ou atividade avaliativa proporcio-
nou oportunidades de aprimoramento da aprendizagem aos alunos, que foram
acrescentando maior clareza à medida que as etapas eram transmitidas.
De acordo com Fonseca e Mattar Neto (2017), a sala de aula está se tor-
nando um espaço cada vez mais híbrido, em que a inclusão das tecnologias digitais
e de metodologias ativas se tornam parte da realidade escolar. Carvalho (2015),
Santaella (2016) e Monteiro et al. (2018), afirmam que o uso de aplicativos na
educação tornou-se uma estratégia capaz de desenvolver habilidades cognitivas e
comunicacionais nas diferentes áreas do conhecimento humano, podendo colaborar,
inclusive, de forma significativa para o desenvolvimento sociocultural dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que o uso de Apps educacionais devidamente selecionados, integrado


aos componentes curriculares, como apresentado neste capítulo, podem transformar em
ferramenta metodológica onde o professor organiza atividades que permita trabalhar os
níveis mais elevados das competências cognitivas, afetivas, sociais e culturais dos alunos.
Com as metodologias ativas de aprendizagem, o ensino é feito por meio de
práticas que trabalham com diferentes conceitos de maneira repetida , de várias
52
maneiras e com feedback imediato. Dessa forma, a aprendizagem ativa dá um
salto na relação entre professores e alunos, que, neste formato, são estimulados a
tomarem a frente, com maior interação e independência, participando ativamente
do processo. Na realização de uma atividade ativa o professor se torna mais um
mediador, orientando e conduzindo os alunos na solução de problemas, na elabo-
ração de ideias e argumentos, no trabalho em equipe e em outras competências
muito importantes, como responsabilidade, independência, proatividade, ética, etc.
Conclui-se que diante a multiplicidade e intensidade das inovações tecno-
lógicas no cenário educacional atual, estas apresentam-se como um novo contexto
no processo de aprendizagem dos alunos. Monteiro et al. (2018) e Oliveira (2018)
enfatizam que, com as novas oportunidades sucedidas pela democratização e uso
das ferramentas da web, os Apps estão cada vez mais alcançando o seu espaço em
atividades educacionais, dado que se apresenta como experiências colaborativas que
fomentam competências e habilidades de cunho pessoal, educacional e profissional.
Assim, se usado para fins pedagógicos, os Apps são capazes de mudar a relação do
aluno com temáticas históricas. Quando está diretamente ligado a um conteúdo
trabalhado em sala de aula, o interesse que desperta passa a ser também interesse pelo
conteúdo e pela aula; a atenção, a concentração e o envolvimento exigidos pelos Apps
trabalhado acabam se transferindo para a própria aula, para a própria aprendizagem.

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54
ESTRANHANDO CONCEPÇÕES SOBRE CORPO E
PRÁTICAS SEXUAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Márcio Evaristo Beltrão17

INTRODUÇÃO

Em seus estudos sobre gênero, sexualidade e currículo, Miskolci (2012) com-


preende que o currículo escolar atual é performativo, refletindo o conceito de Butler
sobre performatividade. No planejamento das aulas, há a ausência de representações
de LGBTQIA+18 nos discursos considerados prestigiados e legitimados, expostos
em materiais didáticos e mídias escolhidas para serem trabalhadas na escola. Nessa
perspectiva, a partir do momento em que ocorre a negação de pessoas não heterossexuais,
a heterossexualidade é essencializada e naturalizada. Deste modo, pessoas que fogem
do perfil heteronormativo são consideradas “anormais”, garantindo às escolas o “direito”
de não problematizar questões de gênero e sexualidade, visto que isso não é consi-
derado “correto” (BASTOS; CRUZ; DANTAS, 2018). Essa concepção parte do
heterossexismo, ou seja, da pressuposição de que todas as pessoas são ou deveriam ser
heterossexuais (MISKOLCI, 2012). Assim, tudo que envolve o contexto escolar —
como os materiais didáticos — possui apenas figuras ou exemplos de casais formados
por um homem e uma mulher, reforçando a ideia de heterossexualidade compulsória19.
Perante essa observação, este trabalho possui como objetivo colaborar com os/
as docentes da educação básica que buscam desconstruir essa visão heteronorma-
tiva de ensino por meio de aulas com propósitos queer. Para isso, são apresentadas
orientações pedagógicas de como trabalhar questões relacionadas às práticas sexuais
em sala de aula, superando a visão tradicional de relacioná-las apenas à reprodução
humana. Por meio das sugestões propostas neste trabalho, espera-se que ocorram
17
Pós-doutorando em Ciências da Linguagem pelo Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem
(PPGCL - UNICAP). Professor colaborador credenciado dos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-gra-
duação em Estudos de Linguagem (UFMT). CV: http://lattes.cnpq.br/4946711879533148
18
LGBTQIA+ é a sigla de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas trans, queer, intersexo e assexuais. Inicialmente, o
termo mais comum era GLS; porém, com o crescimento do movimento contra a LGBTQIA+fobia e o estímulo à livre
expressão sexual, a sigla foi alterada para GLBT e, posteriormente, para LGBT, com a letra L indo para o início da sigla
para dar visibilidade às mulheres lésbicas e o acréscimo da letra T para representar as pessoas trans e as travestis. A partir
do final da primeira década dos anos 2000, foi acrescentado o “QIA+” na sigla, buscando representar o/a “questionado/a”
ou o/a “queer” (GOLD, 2018) e as pessoas intersexo e assexuais.
19
Para Bastos, Cruz e Dantas (2018), a heterossexualidade compulsória é quando ocorre a imposição das relações amorosas
e sexuais entre pessoas do sexo/gênero oposto. Para as autoras, ela ocorre geralmente de forma indireta e/ou “oculta”, por
meio de materiais utilizados no ambiente escolar e na mídia em que aparecem apenas casais heterossexuais.
55
profícuas reflexões sobre o papel da escola e da prática docente e discente na pro-
moção da equidade de gênero e sexual no ambiente escolar e nas relações humanas.

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS QUEER

Para Louro (2001), o termo queer significa estranho, excêntrico, raro, extraor-
dinário, sendo também utilizada como uma expressão pejorativa para se referir às
pessoas homossexuais. Como forma de ressignificar o sentido histórico atribuído
a esse léxico, a pesquisadora destaca que o termo é assumido por grupos LGBT-
QIA+ como forma de caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação,
com a ideia de que ser queer é se colocar contra a normalização, ou seja, aquilo
que é tido como naturalizado e legitimado socialmente.
Em suas pesquisas sobre os estudos queer, Miskolci (2012, p. 26) ressalta que essas
teorias buscam dar visibilidade às injustiças e violências implicadas na disseminação e
na demanda do cumprimento das normas e das conversões culturais, tanto na criação
dos “normais” quanto dos “anormais””. O autor (2012) afirma que essas práticas opres-
soras contra LGBTQIA+ são baseadas em convenções de gênero e sexualidade que
permitem e, em muitos casos, exigem que indivíduos sejam insultados cotidianamente
como esquisitos/as, “bichas”, “sapatões”, “boiolas”, entre outros termos pejorativos.
Ao contrário de Louro (1997; 2000; 2004; 2008) e Miskolci (2012), alguns/mas
pesquisadores/as brasileiros/as optam pela tradução do termo queer no sentido de “transvia-
do(s)”, como a professora Berenice Bento (2008; 2009). A autora justifica essa opção pela
inexistência em língua portuguesa de uma tradução clara para queer. Desta forma, o termo
“transviado” é considerado uma tradução cultural idiossincrática, trazendo a ideia do ser
queer ao vocabulário da língua portuguesa no Brasil. O uso da palavra “viado” justifica-se
por ser um dos xingamentos mais utilizados em nosso país para se referir a homossexuais
masculinos. Para abarcar os/as transgêneros, o “trans” também compõe o termo.
Nesta pesquisa, especificamente, o termo utilizado será queer, pois, assim
como ressalta Daniela Andrade (2015), pesquisadora trans, observa-se que a palavra
“transviado” não contém toda a carga semântica de problematização que traz o termo
queer, nem abrange toda a comunidade LGBTQIA+. Ativista que desenvolve há
anos um importante trabalho militante dos direitos da população trans por meio do
seu perfil no Facebook e do seu blog, Daniela Andrade (2015) destaca que o termo
“transviado” não contempla as pessoas trans, pois supõe uma mistura conceitual de
identidade de gênero e orientação sexual. A pesquisadora pontua que a distinção dessa
junção de características identitárias é uma luta histórica de travestis e pessoas trans.
56
Historicamente, os ideais dos estudos queer surgiram a partir das reflexões
e as críticas surgidas no movimento do feminismo lésbico e da liberação gay.
Nessa conjuntura, a política da identidade passou a ser criticada por pesquisa-
dores/as porque ela não contemplava os sujeitos que não se enquadravam no
pretenso modelo identitário hegemônico de homossexualidade, como as drag
queens, sadomasoquistas e travestis (FURLANI, 2009). Desta forma, os estudos
queer surgem questionando uma suposta “identidade homossexual”, visto que as
pessoas LGBTQIA+ que não a possuíam eram vítimas de preconceito e exclusão
dentro do próprio movimento. Um dos acontecimentos que contribuíram para
mostrar a fragilidade dessa excludente política de identidade construída até então
foi a epidemia do HIV, no início da década de 80. Furlani (2009) destaca que,
se por um lado, a discriminação e a violência aos gays aumentavam, por outro
eram criadas redes de solidariedade a partir de uma nova identidade baseada no
compartilhamento dos efeitos decorrentes da Aids.
Nessa perspectiva, com os discursos se dirigindo menos às identidades e se con-
centrando nas práticas sexuais (LOURO, 2001), o queer rejeita o essencialismo sobre a
identidade sexual e busca “provocar outro modo de conhecer e de pensar”, objetivando
se tornar “uma política de conhecimento cultural” (LOURO, 2004, p. 60). Assim, a
premissa básica queer — rejeitar qualquer forma de normatividade — pode englobar
não apenas gênero e sexualidade, mas também as questões raciais, étnicas, coloniais,
etc. Como pontuado por Furlani (2009), o queer é uma atitude intelectual, investigativa
e crítica, o qual recursa um sistema normativo que pode gerar dor e discriminação.
A partir desses pressupostos, observa-se que a escola é um dos principais
ambientes para ocorrer as ações queer de estranhar, desconfiar e desconstruir aquilo
que é tido como norma, visto que o ambiente escolar contribui de forma fulcral para
o processo de construção de nossas identidades. Em relação a isso, Louro (2001)
enfatiza que o ideal queer no processo educativo nasce do movimento de colocar em
situação embaraçosa o que há de estável no corpo de conhecimentos repassados aos/
às alunos/as, enfrentando as condições em que se dá o conhecimento. Entretanto, o
pensar queer não dará respostas prontas ao embate de questionar o que é ensinado,
mas apontará caminhos para que o/a estudante comece a repensar o modo como
ele/a recebe/assimila as informações. Deste modo, busca-se superar a ideia de que
na educação ocorre a transmissão do conhecimento, tirando assim a compreensão
de que o/a docente é o/a único/a detentor/a do conhecimento (FURLANI, 2009).
É importante frisar que, segundo Furlani (2009), uma postura pedagógica
queer é rigorosamente contra qualquer forma de normatização da sexualidade.
57
Isso ocorre desde as séries iniciais — em que brincadeiras que exigem mais do
corpo são tidas como masculinas e as mais delicadas como femininas — até em
turmas mais avançadas, em que discursos misóginos e LGBTQIA+fóbicos são
legitimados e contribuem para ações de violência e opressão. Além disso, o processo
de tornar queer o ensino é constante, visto que o pensamento normativo permeia
as práticas sociais escolares. A cada novo planejamento de aula, é preciso ocorrer
o questionamento “das redes de poder e os interesses que definem as representa-
ções negativas, inferiores e propositadamente excluídas dos currículos acerca dos
gêneros, das sexualidades, das relações étnico-raciais” (FURLANI, 2011, p. 37).
A pesquisadora Britzman (1995) elenca uma série de reflexos que as peda-
gogias queer podem provocar, como: a redefinição do conceito de família, descons-
truindo a concepção tradicional de família nuclear formada por pai, mãe e filhos/
as; um novo pensar sobre as representações de afeto, estranhando o pensamento
social de que apenas casais heterossexuais podem demonstrar carinho publicamente;
a problematização dos crimes contra a mulher e LGBTQIA+, em que culpam a
vítima pela violência cometida, entre outros. Para que isso ocorra, Louro (1997)
sugere que seja realizado um processo de estranhar o currículo. Como forma de
exemplificar essa prática pedagógica, na próxima seção, serão apresentadas suges-
tões de como trabalhar questões relacionadas às práticas sexuais em sala de aula.

QUEERING O ENSINO SOBRE O CORPO E AS


PRÁTICAS SEXUAIS

Para Bortolini et al (2018, p. 71), em disciplinas como Ciências e Biologia,


geralmente, o corpo não é problematizado, pois ele é visto como uma entidade
autônoma, sistêmica, independente e tratado de forma fragmentada, com órgãos a
mostra, sem rosto, sem nome, sem etnia, sem cultura e sem história. É importante
destacar que os corpos apresentados nos livros didáticos dessas disciplinas são
estereotipados e diferentes de boa parte dos corpos dos/as estudantes que utilizam
o material como objeto de estudo. Deste modo, há um grande desperdício nessas
disciplinas, visto que o currículo delas pode abrir para as relações do conhecimento
biológico com a cultura, história, contexto social e as experiências dos/as alunos/as.
O corpo não é algo acabado, pronto e um simples dado da natureza, mas
dinâmico e em contínuo processo de construção e possibilidades. Nessa perspec-
tiva, Bortolini et al (2018, p. 73) ressaltam que, ao estudar o corpo humano no
ambiente escolar, é importante discutir as imagens e os sentidos que os/as alunos/
58
as constroem sobre seus próprios corpos e sobre a relação que estabelecem com as
características que os marcam. Muitas vezes, essas características são as responsá-
veis por atos de preconceito e violência com aqueles/as que não possuem o corpo
padrão retratado no livro didático. Vale frisar que a proposta queer em trabalhar
o corpo não é ignorar o estudo sobre os elementos biológicos que ele possui, mas
construir uma percepção crítica do conhecimento e sentidos relacionados a ele.
Em relação a conteúdos relacionados à saúde sexual, é fulcral que o ensino não
se limite a falar de reprodução humana convencional, doenças sexualmente transmis-
síveis (doravante DSTs), higiene corporal e a função biológica dos órgãos sexuais. O
corpo envolve bem mais que isso. Assim, é importante falar também sobre os desejos,
as práticas sexuais, as variadas formas de reprodução (como as assistidas, com casais
LGBTQIA+ e/ou realizados por pais e mães solteiros/as) e as concepções culturais
acerca do assunto. Por exemplo, o/a docente pode debater noções relacionadas ao cuidado
com os/as filhos/as, em que a proteção é considerada algo “naturalmente” feminino
e que as mulheres possuem um espaço determinado socialmente: a responsabilidade
por gestar, parir, criar os/as filhos/as e manter os serviços domésticos em ordem.
Há casos extremos que usam o ciclo menstrual da mulher e a produção contínua
de espermatozoides do homem para justificar uma “poligamia natural” masculina e a
“monogamia inata” feminina (BORTOLINI et al, 2018, p. 80). Em relação à gravidez
na adolescência, muitas vezes, o assunto surge como castigo, culpa e consequência de
atos imprudentes e um discurso misógino sobre as adolescentes grávidas é reforçado pela
própria escola. Desta forma, é necessário problematizar tais questões objetivando uma
compreensão por parte dos/as discentes sobre o que envolve o corpo nas práticas sociais.
Em relação às DSTs e outros perigos do sexo, o “surgimento” da Aids é
tratado como um importante marco nas modificações das práticas sexuais em
todo o mundo. A ideia do “sexo livre” dos anos 1960 é alterada para a concepção
de “sexo seguro” dos anos 1980/1990, em que ocorre uma intensa regulação
do Estado e de outras instituições para direcionar comportamentos e práticas
sexuais. Nessa perspectiva, Bortolini et al (2018) questionam se as concepções
que orientam as discussões sobre saúde e prevenção nas escolas acabam tornando
a educação sexual em sinônimo de prevenção a Aids e outras doenças — entre
elas, a própria gravidez na adolescência, convertida em epidemia por muitas ins-
tituições. Trabalhar essas questões por essa perspectiva é legitimar o discurso do
medo relacionado à sexualidade. Uma proposta queer sobre o assunto é reconhecer
que as práticas sexuais são se limitam à reprodução e à transmissão de doenças,
mas também a prazer, afeto e identidades.
59
Um fator importante a ser discutido é a relação reforçada historicamente da Aids
com a homossexualidade. Geograficamente, a Aids se originou no Haiti e em países
africanos (BRASIL, 2004), terras associadas ao colonialismo e ao negro sexualizado.
Por essa razão, surgiram teorias (ou “fantasias”) sobre a origem da doença, como
rituais de sangue realizados por haitianos adeptos ao vodu ou por meio de práticas
sexuais de turistas gays norte-americanos no Haiti (FARMER, 1992; PELÚCIO;
MISKOLCI, 2009). Desta forma, os discursos sobre a Aids eram relacionados dire-
tamente à homossexualidade masculina, principalmente aos gays negros e/ou latinos.
Perlongher (1987), Pelúcio e Miskolci (2009) e Beltrão e Barros (2017)
argumentam que, em uma seara que abrangia tanto os discursos médicos quanto os
religiosos, a doença era divulgada como uma resposta moralizante à livre expressão
do amor não-heterossexual vivida no início dos anos 70. A partir de um jogo de
manobras linguísticas que construíram uma base sólida para discursos discrimina-
tórios e estigmatizantes acerca da Aids, grupos sociais heteronormativos utilizavam
de metáforas para legitimar atos excludentes, como relacionar essa doença ao hor-
ror, à punição, ao crime, à vergonha e à morte (AGGLETON; PARKER, 2001).
Além de problematizar o discurso sobre a Aids ser um “câncer gay”, o/a docente
pode analisar com os/as alunos/as como as propagandas construíram a subjetividade
do/a soropositivo/a com o passar dos anos. Inicialmente tratado como “aidético”, a
pessoa portadora do vírus HIV passou a ser representada como soropositiva, visto
que ter o vírus não significa ter a doença. Como ponto de partida, pode ser anali-
sado um anúncio vinculado mundialmente em 1992 pela marca italiana de roupas
e acessórios Benetton, por meio da campanha de prevenção ao HIV United Colors
of Benetton. Na imagem, é retratado um dos últimos momentos do ativista homos-
sexual pró-direitos dos/as soropositivos/as David Kirby. Cercado por sua família,
o jovem faleceu aos 32 anos em sua casa por complicações da Aids, em 1990. Para
realizar uma relação com a forma em que a mídia brasileira retratou a epidemia da
doença, podem ser trabalhadas as reportagens que narraram os últimos anos de vida
do cantor Cazuza, como a histórica capa da revista Veja de 26 de abril de 1989, em
que mostra o intérprete como uma pessoa prestes a morrer.
Como etapa final da atividade, o/a professor/a pode apresentar anúncios
recentes sobre o combate à Aids e ao preconceito das pessoas que possuem o
vírus, como as campanhas da ONG francesa AIDES, em que aparecem modelos
representando soropositivos/as e ensinando seu/sua parceiro/a a fazer alguma
atividade: dançar, mergulhar, praticar esportes e tocar piano. Neles, o sexo não é
apresentando como algo perigoso, proibido e imoral, mas como um ato relacio-
60
nado ao aprendizado, a momentos agradáveis e ao prazer (BELTRÃO; BARROS,
2017). Antes visto como um indivíduo perigoso e que causava a morte a quem se
relacionasse com ele/a, o/a soropositivo/a agora possui sua subjetividade ressigni-
ficada. Esses enunciados no anúncio buscaram motivar as pessoas soronegativas a
se aproximarem dos/as portadores/as do HIV. Desta forma, como destaca Beltrão
e Barros (2017), a pessoa soropositiva possui sua subjetividade construída não
apenas pela perspectiva médica, tratada como saudável, mas também pela social,
que podem tanto proporcionar o aprendizado quanto o prazer sexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática de pensar e/ou repensar o currículo é um dos grandes desafios da


escola atual, em que se torna cada vez mais complexo o ato de “transversalizar” temá-
ticas necessárias para a compreensão contemporânea por meio dos componentes
curriculares (BASTOS; CRUZ; DANTAS, 2018). Nesse cenário, o tratamento do
conteúdo pelo conteúdo perde o sentido quando não ocorre a sua problematização
e quando a abordagem apresentada não relaciona o que está sendo trabalhado com
as diversas realidades do mundo atual. Vale destacar que não basta apenas o desejo
de realizar uma prática docente envolvendo assuntos de cunho social, pois, muitas
vezes, eles podem ser trabalhados de forma genérica. É necessário tratar temas
relacionados a gênero e sexualidade por uma perspectiva crítica, proporcionado
ao/à discente uma reflexão que poderá levá-lo/la à emancipação.
Vale destacar que, cada vez mais, é complexo realizar um ensino queer,
principalmente devido aos discursos opressores emitidos por figuras políticas que
buscam silenciar pessoas LGBTQIA+ e as colocarem às margens da sociedade.
Entretanto, é de suma importância resistir a esses investimentos discriminatórios,
buscando não apenas a reflexão discente sobre o assunto, mas também, manter a
esperança de que a sociedade seja mais justa, igualitária e democrática para todos/
as viverem, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

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PERLONGHER, Néstor. O Que é AIDS. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Nota: este capítulo é um recorte revisado e atualizado da tese de doutorado “Políticas educacionais para
gênero e sexualidade em Mato Grosso: um estudo crítico do discurso”, de Márcio Evaristo Beltrão (2019).
62
A UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO DIGITAL
COMO INSTRUMENTO FUNDAMENTAL À REDUÇÃO
DAS DESIGUALDADES SOCIAIS: A NECESSIDADE
ESTATAL DE INVESTIMENTO EM INOVAÇÃO E
TECNOLOGIA NO CONTEXTO PÓS-PANDÊMICO

Melissa Trento20
Rodrigo Carvalho Polli21

INTRODUÇÃO

Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está


a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III, CF). As disparidades
históricas, culturais e regionais havidas entre os estratos sociais que compõem a
sociedade devem ser superadas pelo Estado brasileiro por meio da efetividade
dos direitos sociais, mediante políticas públicas afirmativas correspondentes aos
anseios e necessidades atuais para cumprir tal finalidade.
Nesse contexto e para o que concerne ao presente ensaio, não há dúvidas
de que, para o atingimento dos fins constitucionais de redução das disparidades
sociais, a educação ocupa lugar de extremo relevo, porquanto compreende prestações
materiais tendentes à promoção do desenvolvimento em sua maior amplitude, eis
que apresenta múltiplas facetas - pessoal, cultural, econômica, implicando tanto na
esfera individual quanto na sociedade. Por conta dessa magnitude de importância,
o legislador originário intencionalmente revestiu o direito à educação com o status
de direito fundamental, incluindo-o no rol do art. 6o, que trata dos direitos sociais.
Entretanto, a evasão escolar propiciada pelos efeitos da crise sanitária pro-
vocada pelo Covid-19, associada à falta de métodos pedagógicos- tecnológicos
e ausência de estrutura de equipamentos digitais suficientes para a devida conti-
nuidade das aulas a todos os alunos no país, obstou a intenção constitucional de
desenvolvimento pessoal e, consequentemente nacional, sobretudo em razão das
desigualdades sociais peculiares da atual era da informação.

20
Mestranda em Direito Econômico e Desenvolvimento (PUC-PR). Auditora de controle externo (TCE-PR).
CV: http://lattes.cnpq.br/9706923655134442
21
Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento (PUC-PR). Advogado. CV: http://lattes.cnpq.br/6839777019402571
63
Assim, o objetivo do presente capítulo é analisar o contexto educacional
digital pós-pandêmico e avaliar a capacidade do Estado de implementação
de uma estrutura logística digital por meio de inovação tecnológica para
a efetiva promoção da igualdade material, mediante o fornecimento de
serviços educacionais no país.
Para tanto, estabelecer-se-á o paralelo entre a compreensão da constru-
ção teórica da igualdade de posições, concepção de justiça social que preconiza
a redução das distâncias sociais com o intuito de embasar políticas públicas
universalizantes, integrais e otimizadas no sentido de promover investimentos
efetivos em tecnologia e conectividade para a educação de todos no Brasil.

DESENVOLVIMENTO

A premissa conceitual do direito fundamental à educação estampado no


artigo 20522 da Constituição da República, converge no sentido de que, inserido
no dever constitucional, o direito à educação deve atender, simultaneamente,
vários vieses interdependentes, todos voltados à promoção do desenvolvimento
da pessoa. Para a sua integralidade, o direito à educação transcende a mera oferta
gratuita e oficial prestada pelo Estado, seu alcance está relacionado, simultanea-
mente, à perspectiva de que o ambiente escolar proporcione a todos os alunos o
desenvolvimento de instrumentos de adaptação social, capazes de construir uma
lógica de formação do raciocínio intelectual.23
Na concepção de Maliska, o “direito de todos” à educação impõe ao Estado
brasileiro o encargo de desenvolver funções mentais e valores morais que ultimem
uma ambientação à vida social hodierna.24 Dentro da acepção do termo direito
público subjetivo, o “acesso ao ensino obrigatório e gratuito” que faz menção o art.
208, § 1º, da Constituição Brasileira postula a hermenêutica de que a acessibilidade
deve ser concreta e efetiva, não bastando o simples fornecimento da educação,
sem considerar as circunstâncias, adversidades e eventuais readaptações que a
prestação do serviço público exige em determinada sociedade e momento histó-

22
Art. 205 CF - “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.
23
CASTANHA, Daniel. Direito fundamental à educação no brasil e o acesso gratuito à educação básica obrigatória incluindo
o ensino médio: a consagração da igualdade de posições à luz do desenvolvimento. In: Direitos Fundamentais, Tecnologia
e Educação. Organização Ana Cláudia Santana, Emerson Gabardo, Annappa Nagarathna, Curitiba: Íthala, 2019, p. 32.
24
MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. p. 157.
64
rico. Da mesma forma, o seu não oferecimento, ou sua oferta irregular, importa
na responsabilização da autoridade competente25.
Assim, devido à suspensão das atividades escolares presenciais por conta da
pandemia, o uso de ferramentas de tecnologia tornou-se essencial, indispensável
e emergencial para o prosseguimento da educação obrigatória, sob pena de grave
e talvez irreparáveis danos e prejuízos na aprendizagem de milhares de crianças
e adolescentes decorrentes da crise sanitária instalada no país.
Segundo Daniel Castanha, a missão precípua do direito à educação é fomen-
tar uma construção coletiva, consciente e livre, com poder de influência e decisão,
capaz de reafirmar continuamente o Estado democrático de direito.26
Aplicável ao contexto pandêmico em que vivenciamos, o art. 206, inciso I,
da Constituição da República estabelece como princípio a “igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola”, o que reclama a garantia de meios concretos
para a acessibilidade dos alunos, inclusive a oferta dos instrumentos tecnológicos
necessários para o acompanhamento das aulas remotas por aqueles que não dis-
ponham de recursos para adquiri-los.
Nas lições de Emerson Gabardo, o modelo do Estado Social e Democrá-
tico de Direito, presente no sistema constitucional pátrio, impinge aos Poderes
Públicos “o dever de garantir aos cidadãos não somente condições mínimas de
existência digna, mas também condições suficientes para que cada pessoa possa
desenvolver livremente a sua personalidade Esse objetivo pressupõe uma série de
condutas estatais positivas ou negativas para a satisfação dos direitos fundamentais
sociais prescritos na Carta Magna”27.
A satisfação do conteúdo integral dos direitos sociais pressupõe mais do que
o atendimento ao mínimo existencial. E à Administração compete adotar todas as
medidas possíveis para que a dignidade do cidadão não seja promovida apenas em
um grau mínimo, mas sim em um grau máximo. Importante observação seguindo
a mesma linha de raciocínio de Ana Paula de Barcellos, cuja reflexão conclui que
o mínimo existencial não se resume ao mínimo para se viver, mas visa também
assegurar um mínimo de inserção social.28

25
HACHEM, Daniel Wunder; KALIL, Gilberto Alexandre de Abreu. O direito fundamental social à educação e sua
maximização por meio da função extrafiscal dos tributos: o exemplo do Programa Universidade para Todos (Prouni).
A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 16, n. 66, p. 153-177, out./dez. 2016.
26
CASTANHA, Daniel. Direito fundamental à educação..., p. 35.
27
GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 331.
28
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 396.
65
No mesmo sentido é o entendimento dos autores Alexandre Godoy Dotta e
Rodrigo Maciel Cabral, ao lecionarem que a provisão de um direito fundamental não
pode significar qualquer provisão, mas sim uma provisão de natureza satisfativa, a
fim de alcançar as finalidades propostas pela Lei de Diretrizes e Bases. Veja-se, por
exemplo, as políticas públicas voltadas à avaliação da qualidade no ensino superior29.
Nesse sentido, impõe-se à Administração Pública uma atuação maximizada,
universalizada e inclusiva que possibilite aos seus titulares a fruição de seus direitos
de maneira real e efetiva, ainda que sob adversidades decorrentes de crises sanitárias
pandêmicas, como exemplo a imposta pelo vírus COVID-19.
Levando em conta a interpretação sistêmica e relevando-se a atuação otimi-
zada e progressista da Administração Pública é que se pode afirmar que a garantia
do mínimo existencial representa apenas o ponto inicial do agir estatal. Ademais,
o dever do Estado de “atendimento ao educando, em todas as etapas da educação
básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, trans-
porte, alimentação e assistência à saúde” (art. 208, VII, da Constituição da Repú-
blica), representa mandamento não exaustivo, o que implica no dever de abranger
e considerar todas as medidas de assistência que sejam necessárias à garantia da
manutenção dos estudantes na escola e de viabilizar formatos contemporâneos
e adequados à realidade que se apresenta, exigindo interpretação atualizada, em
razão das circunstâncias excepcionais.
A universalização da educação no Brasil vem sendo construída lentamente e
ainda sem resultados práticos evidenciados. A igualdade material não foi concre-
tizada. A pandemia agravou ainda mais o cenário de desigualdade social, criando
a dicotomia entre os estudantes com recursos financeiros capazes de permanecer
conectados e dar continuidade às aulas em formato digital em contraposição com
os alunos completamente vulneráveis e à mercê da iniciativa pública para ter-lhes
assegurado o simples acesso à educação durante o período de isolamento social.
A proteção do direito fundamental à educação possui dimensões multifacetárias,
o que compreende o objetivo de desenvolvimento da sociedade, razão pela qual
se reputa pertinente analisar tal direito sob o enfoque de importantes concepções
de justiça social que se fundam na igualdade, a fim de ressaltar qual delas possui
melhores características capazes de, factualmente, minimizar as realidades desiguais
existentes na estrutura social brasileira.

29
CABRAL, Rodrigo Maciel; DOTTA, Alexandre Godoy. Mínimo existencial na hermenêutica da jurisprudência brasileira
referente às políticas públicas relativas ao direito à educação. RECHTD. Revista de estudos constitucionais, hermenêutica e
teoria do direito, v. 10, p. 147, 2018. http://dx.doi.org/10.4013/rechtd.2018.102.05
66
Consistentemente no dever de dispensar tratamento equânime às pessoas,
a igualdade material30 pode ser concretizada por meio de diversas políticas públi-
cas, dentre elas, a garantia de acesso à educação em sua maior amplitude, tal qual
prevista no artigo 208, l e ll, da Constituição Federal. Todavia, a densificação dos
preceitos fundamentais que embasam a educação exige diretrizes públicas lastrea-
das em diferentes concepções de justiça social. Os modelos a seguir delineiam as
noções sobre a igualdade de posições e a igualdade de oportunidades propostas pelo
sociólogo francês François Dubet.
As duas concepções têm por finalidade precípua atenuar as disparidades
que sobrepujam entre a abstração da previsão constitucional de igualdade entre os
indivíduos e a realidade que, lamentavelmente, denota o cenário de desigualdade
social no Brasil. Em qualquer das hipóteses, a ideia é “reduzir certas desigualdades
a fim de torná-las, se não justas, ao menos aceitáveis”.31
Embora as duas formulações possuam propósito legítimo e não sejam exclu-
dentes entre si, elas contribuem para a mobilização das classes sociais de formas diver-
sas, pois atingem grupos de interesse situados em posições diversas no tecido social.32
Diante disso, convém destacar as suas peculiaridades para estabelecer apli-
cação prioritária de uma das concepções que apresenta o melhor potencial de
direcionar a implementação da política pública adequada a garantir a igualdade
efetiva no fornecimento da educação digital.
A igualdade de posições considera que a sociedade está distribuída em variadas
e distintas posições sociais. Uma espécie de “rede”, em que cada indivíduo ocupa
um ponto específico e, juntos, formam toda a estrutura social. As medidas políticas
que possuem respaldo na igualdade de posições focam nas condições de vida de
cada pessoa (v.g alimentação, moradia, vestuário, transporte), ao acesso a todos
os tipos de serviços públicos - neste ensaio particularmente se limitará à educa-
ção – dentre outras questões sociais com o intuito de, reduzindo as disparidades
entre as pessoas, promover a justiça social.33 Pode-se afirmar, portanto, que com
políticas públicas embasadas na igualdade de posições mostra-se a possibilidade
de estreitamento das diferenças entre o plano abstrato da igualdade positivada e

30
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 9.
31
DUBET, François. Status e oportunidades: como repensar a justiça social. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2015.
p. 11. 30 Ibidem, p. 14-15.
32
Ibidem, p. 14-15.
33
CASTANHA, Daniel. Direito fundamental à educação..., p. 37.
67
as situações fáticas do plano concreto, tal qual preceitua um verdadeiro Estado
de bem-estar social e quiçá a promoção da felicidade, para além da liberdade.34
Assim, pode-se concluir que a implementação da igualdade de posições
possui um efeito universalizante, pois, é possível deduzir que serviços públicos
de grande relevância como saúde, transporte público e, notadamente, a educação,
estariam ao alcance de uma gama de cidadãos em maior escala, visto que amplia-
ria os benefícios a um número mais elevado de pessoas, proporcionando o gozo
e usufruto de determinados serviços públicos aos quais tais pessoas não estavam
contempladas. Logo, na visão de François Dubet, é dever dos entes federativos
responsabilizarem-se pela construção e funcionamento adequado e gratuito dos
espaços públicos – escolas, bibliotecas, centros culturais, hospitais, terminais
rodoviários etc., para que todos possam deles se beneficiar.35
O segundo modelo a ser compreendido é o da igualdade de oportunidades.
Tal concepção parte da premissa de que os poderes constituídos têm o dever de
disponibilizar a todos a possibilidade de preencher as melhores posições disponí-
veis, com base em um princípio meritocrático.36 Com base nesse modelo, não há
preocupação em relação à redução das desigualdades que precedem as diferentes
posições sociais ocupadas pelos indivíduos em determinado contexto ou situação,
mas sim com o combate a discriminações injustas. A igualdade de oportunidades
apregoa que todas as posições dispostas na estrutura social devem estar abertas
indistintamente. As desigualdades sociais seriam aceitas, já que a concepção de
justiça em questão desconsidera as origens dos indivíduos, ao passo que valoriza a
competição decorrente do mérito de cada um. Segundo Daniel Castanha, o desen-
volvimento dessa formulação de justiça social é fictício, porquanto desconsidera
o fato de que as pessoas de diferentes estratos sociais ocupam posições desiguais
em razão de suas heranças econômicas e culturais37.
A promoção da igualdade de oportunidades visa garantir acesso indis-
criminado a bens e serviços em que os menos favorecidos estariam normal-
mente excluídos. Assim, por meio de políticas públicas, os mais vulneráveis
são integrados às possibilidades de escolha, assegurando-lhes o acesso
equânime aos serviços públicos da mesma maneira que outros cidadãos. 38

34
GABARDO, Emerson. A felicidade como fundamento teórico do desenvolvimento em um Estado Social. Revista
Digital de Direito Administrativo, v. 5, n. 1, p. 99-141, jan./jun. 2018.
35
DUBET, François. Op. cit., p. 24-25.
36
Ibidem, p.27.
37
CASTANHA, Daniel. Direito fundamental à educação..., p. 40.
38
HACHEM, Daniel Wunder. Tutela..., p. 108.
68
Portanto, a concepção de justiça social baseada na igualdade de oportu-
nidades pode ser sintetizada a partir da eliminação das desigualdades no
começo da disputa, de forma que indivíduos permaneçam em equilíbrio
inicial, porém, aceita eventuais desigualdades resultantes do desempenho
dos indivíduos, já que derivados da meritocracia.
Após rápida síntese dos modelos de justiça social propostos por
François Dubet, revela-se oportuno correlacioná-los para com o presente
capítulo, denotando que, em verdade, a política educacional brasileira e, em
especial, a educação digital possui correspondência axiológica imediata
para com a igualdade de posições. Muito embora, conforme relata a com-
pilação, ambos os modelos contenham medidas interessantes e louváveis,
ensejam ações estatais distintas.
A educação digital que se impõe hodiernamente requer a premissa iguali-
tária contida na igualdade de posições, pois é a que melhor reflete o ideal a que
se busca. Isso porque, as políticas educacionais que englobam a necessidade de
conectividade universalizada devem empenhar-se na efetivação da igualdade
material, transcendendo a impessoalidade de diplomas normativos insensíveis
para nivelar, de forma imediata, as realidades desiguais existentes na estrutura
social.39 Assim, o modelo de justiça social lastreado no primado da igualdade
material que melhor se coaduna com o propósito constitucional da educação é
o da igualdade de posições, devendo, pois, servir de alicerce às políticas públicas
educacionais digitais no Brasil ao propósito final de garantir, no maior espectro
possível, o desenvolvimento social, cultural e econômico.
Sabe-se que o cumprimento da dimensão objetiva dos direitos fundamen-
tais impõe à Administração Pública, agindo sponte propria, que estabeleça os
meios necessários a conferir aos cidadãos ampla acessibilidade aos bens jurídicos
de natureza jusfundamental40, em especial e ao que atina ao presente ensaio, o
direito à educação. Nas lições de Fabrício Motta, uma política pública não pode
desconsiderar a multiplicidade de fatores que permeiam a matéria. Não levar em
consideração a existência de desigualdades sociais e estruturais pode consistir em
um fator determinante no insucesso da política pública educacional”.41

39
CASTANHA, Daniel. Direito fundamental à educação..., p. 44.
40
HACHEM, Daniel Wunder. Tutela..., p. 519.
41
MOTTA, Fabrício; BUÍSSA, Leonardo; BARBOSA, Maísa. O financiamento da educação no Brasil como instrumento
de aprofundamento da desigualdade social. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte,
ano 18, n. 73, p. 97-114, jul./set. 2018.p. 110.
69
A acessibilidade ao serviço público da educação em tempos atuais requer
do Estado a reinvenção e remodelagem do formato tradicional praticado na rede
pública de ensino. Se as desigualdades já eram evidentes e abissais antes do período
de pandemia, durante o seu transcurso e após tal colapso sanitário, as disparidades
serão ainda mais explícitas. As políticas públicas de cunho social devem ter, por
premissa, a busca pela equidade. É inconcebível a adoção de medidas de ordem
geral sem que se considere a vulnerabilidade de uma significativa parcela da popu-
lação. “Em uma sociedade estruturalmente desigual como a brasileira, o amplo
acesso ao ensino de qualidade é um dos pilares para se minimizar distorções”
(MOTTA, Fabrício, 2018, p. 110)42
O Brasil ocupa a lamentável posição de 156ª (entre 164 países avaliados) na
mensuração de distribuição de rendas entre a população, o que o coloca entre os
dez países mais desiguais do mundo, segundo o coeficiente de Gini43, figurando
na posição 84º do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, sendo
a educação uma de suas principais variáveis.44
A tutela administrativa dos direitos fundamentais reclama que a Admi-
nistração formule e execute políticas públicas, orientadas a corrigir os problemas
sociais que impeçam indivíduos e setores específicos da sociedade de lograr acesso
igualitário aos bens jurídicos por eles protegidos. “Não basta que sejam prestados
os serviços públicos, impõe-se também a tomada de decisões políticas que corrijam
aquelas distorções sociais remanescentes”. (HACHEM, 2014, p. 520)45
É preciso reconhecer a indispensabilidade do fornecimento de tecnologia
em conectividade (v.g. computadores, notebooks e acesso à internet) enquanto
premissa básica para o desenvolvimento de personalidades para que, em última
análise, possam estas aprimorar a democracia por meio das decisões políticas,
além de promover o desenvolvimento econômico social tão almejado e pres-
crito no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (educação de qualidade
para todos) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas e no Plano
Nacional de Educação do Brasil.
Reconhecendo a importância do investimento na área educacional, com vistas
a garantir o atingimento de um patamar desejável de acesso ao ensino de qualidade,
42
Ibidem, op. cit. p. 110.
43
Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf acesso em 15/07/2021 e DISTRIBU-
TION of income or consumption. In: WORLD BANK. World development indicators. Washington, DC, [2020]. tab.
1.3. Disponível em: http://wdi.worldbank.org/table. Acesso em: jun. 2020.
44
Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade de 2020 disponível em http://hdr.undp.org/sites/default/
files/2020_statistical_annex_table_3.pdf acesso em: 15 jul. 21.
45
HACHEM, Daniel Wunder. Tutela administrativa efetiva..., p. 520.
70
o novo Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
tornou-se fonte de financiamento permanente com a Emenda Constitucional nº
108/20 e Lei nº 14.113/20, consignando que os aportes da União chegarão a 23%
do total dos Fundos até 2026. Assim, com mais recursos, surgem novas possibili-
dades aos gestores públicos para repensar o fornecimento da educação nos moldes
tradicionais. O modelo contemporâneo deve ser compatível com as necessidades
atuais e anseios prementes de uma sociedade justa, igualitária e globalizada.
Resta evidente que a tecnologia relacionada à educação digital se revela
como condição sine qua non para a fruição de certas prerrogativas garantidas
pelo Estado Democrático e Social do Direito – o adequado desenvolvimento das
capacidades dos estudantes, pleno exercício futuro da cidadania, livre escolha da
profissão, dentre tantos outros direitos fundamentais e objetivos da República.
Por isso, o direito à educação em sentido amplo deve deixar de ser considerado
mera promessa constitucional para alcançar lugar de destaque no sistema jurídico
e proporcionar efeitos práticos na sociedade.
Para delinear o cenário de imprescindibilidade da educação digital para a
emancipação da sociedade, convém destacar a recente publicação da Lei nº 14.172
de 10 de junho de 2021, que dispõe sobre a garantia de acesso à internet, com fins
educacionais, a professores e alunos da educação básica pública.
O importante avanço legislativo consignado na referida Lei estabelece o
repasse de 3,5 bilhões aos Estados para atender alunos da rede estadual e municipal.
Prescreve a lei que os recursos poderão ser investidos na contratação de internet
móvel, na aquisição de terminais portáteis (máximo de 50%), na contratação de
soluções de conexão na modalidade fixa para conexão de domicílios ou de comu-
nidades quando for comprovado custo-efetividade ou quando não houver oferta
de dados móveis na localidade de moradia dos estudantes.46
Tal marco legal tem o potencial de reduzir o amplo espectro das classes
sociais e por fim, minimizar os efeitos deletérios das desigualdades sociais exis-
tentes, convergindo, inclusive, com o que prevê a Política Nacional de Educação
e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável preconizados pela ONU.
Segundo dados do IBGE e do Censo Escolar 2020 (INEP/MEC), a internet
banda larga não chegava a 17,2 mil escolas urbanas (20,5%) em 2020 (Censo Escolar
da Educação Básica). Ao fim de 2020, somente 2 a cada 10 cidades (22,5% das
redes municipais) terminaram o ano com plataformas educacionais em operação
46
Lei nº 14.172 de 10 de junho de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.172-de-10-de-
-junho-de-2021-325242900. Acesso em 18 jun. 2021.
71
(dados da Undime), o que denota indicativo de insuficiência de investimentos
para a garantia do acesso dos estudantes à educação básica obrigatória. Nas lições
de Élida Graziane Pinto “gastar formalmente o montante mínimo de recursos
vinculados, mas não assegurar o padrão de qualidade, é gastar mal (lesão aos prin-
cípios da finalidade e eficiência), além de configurar oferta irregular de ensino nos
moldes do art. 208, §2º combinado com o art. 206, VII, ambos da CR/1988”.47
A oferta de conectividade e inclusão digital nas escolas públicas é pauta
emergencial que não apenas viabilizará o ensino híbrido já praticado na rede
privada quanto auxiliará nas estratégias de enfrentamento ao abandono escolar
evidenciado durante a pandemia. Ademais, possibilitará o cumprimento do dever
expresso no art. 227, caput, da Constituição da República, pois confere absoluta
prioridade à educação para crianças, jovens e adolescentes (faixa etária que cor-
responde à educação básica obrigatória no país). A universalização do acesso à
rede mundial de computadores nas escolas possui previsão normativa na Lei
13.005/2014 (Plano Nacional de Educação) e na Lei 14.109/2020 (que alterou a
Lei do Fust), consignando metas específicas de conexão de escolas à internet de
alta velocidade até 2024. De acordo com a estratégia 7.15 do Plano Nacional de
Educação, tal transformação digital nas escolas deveria ter ocorrido até o ano de
2019, o que obviamente não se concretizou.
Ademais, o princípio da juridicidade que direciona todo o agir estatal impul-
siona a Administração Pública para redimensionar suas estratégias, inovar em tec-
nologia da informação e implantar medidas, bem como estruturar o serviço público
de educação de modo a visar “ao pleno desenvolvimento da personalidade humana”
e “capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre”, con-
forme estatui o art. 13.1 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, introduzido na ordem jurídica brasileira pelo Decreto nº 591/1992.
Assim, pode-se concluir que a inclusão digital se revela vital e de extrema
urgência na atualidade para a garantia mínima da igualdade de posições entre
os indivíduos que se encontram no sistema escolar, ao fito de ostentar condi-
ções efetivas de desenvolver-se singularmente, bem como o de impulsionar
o desenvolvimento da sociedade.
À título de ilustração, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-
cílios (Pnad) Covid-19, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE), em outubro de 2020 um contingente de 5,5 milhões crianças e

47
PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos Direitos à Saúde e à Educação. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 26/27.
72
adolescentes com idades entre 6 e 17 anos não conseguiram ter acesso às atividades
escolares ao longo do ano letivo de 2019.
Tal cenário impõe à Administração Pública que assuma um perfil inclusivo
para efetivamente atenuar as assimetrias sociais, ainda mais escancaradas após a
pandemia do Covid-19. Por meio de ações planejadas, racionais e estruturadas
o Estado figura como o principal propulsor do desenvolvimento, por intermé-
dio da premente inclusão digital.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento econômico e social brasileiro, pautado no Estado de


Direito Social Democrático como é, apresenta conexão indissociável à concepção
material de igualdade, o que incumbe ao Poder Público propiciar igualdade de
oportunidades para além do ponto partida. À atuação universalizada e integral
da Administração Pública outorga-se o dever de agir em prol da redução das
desigualdades da sociedade, viabilizando condições estruturais, tecnológicas e
pedagógicas equânimes entre a rede pública e particular de ensino. Sem as mes-
mas condições na qualidade de ensino, dificilmente o indivíduo terá condições
de usufruir de sua liberdade e construir os caminhos para o seu desenvolvimento
como ser humano e como parte da sociedade.48
Expostas as concepções de justiça social fundadas na igualdade, tem-se que
a inclusão digital consubstancia-se em um importante veículo para concretizar
a igualdade material, cujo propósito é o de mitigar as distâncias entre todos os
que ocupam algum ponto na estrutura social por meio da educação pública de
qualidade, tecnológica e inovadora.
O cotejo das ilações refletidas ao longo da temática proposta conduz a algu-
mas considerações: i) é possível asseverar que se trata de dimensão indissociável
do direito fundamental à educação fornecer a todos o direito à inclusão digital,
já que urgem providências para combater os impactos da pandemia na educação
quanto aos aspectos da conectividade dos estudantes e professores, infraestrutura e
condições de aquisição e manutenção de serviços e equipamentos de informática,
cuja hipossuficiência econômica esteja obstando o pleno acesso ou desenvolvimento
das aulas não presenciais; ii) a adoção de posturas proativas alicerçadas na igualdade
de posições pelo Estado têm o condão de viabilizar um sistema efetivo para atingir o

BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
48

2010. p. 105.
73
desenvolvimento pessoal e interpessoal por meio das ações de educação. Portanto,
depreende-se que para conferir dignidade humana e tratamento igualitário a todos
os estudantes, por meio do desenvolvimento das capacidades intelectuais e morais,
é imprescindível a atuação universalizada, inclusiva e otimizada da Administração
Pública na aplicação de receitas e políticas públicas educacionais direcionadas ao
acesso à educação digital na rede pública de ensino no país.

REFERÊNCIAS
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Nota: capítulo integral submetido à publicação na Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura:


TRENTO, Melissa; BLANCHET, Luiz Alberto. Crise do serviço público de educação no contexto
da pandemia: implementação de infraestrutura para a melhoria do ensino mediante logística digital
em prol da inclusão universalizada e da igualdade material. Revista de Direito Administrativo e
Infraestrutura _ RDAI., v.5, p. 145 - 166, 2022. ISSN 2675-9527.

76
NEOLIBERALISMO E TEORIA DO CAPITAL
HUMANO: REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS
EDUCACIONAIS BRASILEIRAS NA DÉCADA DE 1990

Francielle Aparecida Garuti de Andrade49


Rodrigo Pinto de Andrade50

INTRODUÇÃO

Este texto é resultado de estudos sobre Estado e Políticas Públicas Educacio-


nais, e tem como objetivo analisar o projeto neoliberal e suas influências no campo
das políticas públicas para a educação. Buscou-se articular políticas educacionais bra-
sileiras ao contexto político, econômico e social na fase da reorganização do capital.
O capítulo analisa as políticas públicas voltadas para à educação, tendo como
fundamento a perspectiva histórica, buscando estabelecer a relação do contexto
da economia globalizada neoliberal com a sua efetivação nas políticas públicas
emanadas da Reforma do Estado brasileiro e que repercutiram nas políticas desti-
nadas à educação. Pode-se dizer que a Reforma do Estado ocorreu a partir de um
projeto neoliberal e esteve ancorada em pressupostos que previam a necessidade
de restrição das atribuições do Estado, mormente no campo da educação escolar.
Para discutir a temática proposta, o texto será dividido da seguinte maneira:
primeiramente analisamos o contexto histórico do surgimento do neoliberalismo.
Em seguida, apresentamos as definições dos conceitos de políticas públicas e polí-
ticas educacionais, dando um particular enfoque para dá redefinição do papel do
Estado e as reformas que resultaram em mudanças no campo educacional brasi-
leiro, especialmente a partir da década de 1990. Por fim, discutimos o conceito de
educação e os reflexos das práticas neoliberais no sistema educacional brasileiro.

NEOLIBERALISMO: ACEPÇÕES DO TERMO

O termo neoliberalismo pode ser entendido como uma doutrina ou cor-


rente de pensamento, como um movimento ou como um conjunto de políticas.
Conforme explica Reginaldo Moraes:

49
Doutora em Educação (UEM). CV: http://lattes.cnpq.br/9821201632314062
50
Doutorado em Educação (UEM). CV: http://lattes.cnpq.br/3057696425156430
77
Uma corrente de pensamento e uma ideologia, isto é, uma forma de
ver e julgar o mundo social; 2. um movimento intelectual organizado,
que realiza reuniões conferências e congressos, edita publicações,
cria think-tanks, isto é, centros de geração de ideias e programas, de
difusão e promoção de eventos; 3. um conjunto de políticas adotadas
pelos governos neoconservadores, sobretudo a partir da segunda
metade dos anos 70 e propagados pelo mundo a partir das orga-
nizações multilaterais criadas pelo acordo de Bretton Woods (1945),
isto é, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)
(MORAES, 2001, p. 10)

Trata-se de um fenômeno político e econômico que teve sua origem no libera-


lismo clássico, no período pós Segunda Guerra Mundial, principalmente na Europa
e América do Norte, onde o capitalismo já estava avançado. Uma das principais
bases para a compreensão desta teoria e documento referência do movimento neo-
liberal é o texto de Friedrich Hayek: O caminho da servidão, publicado em 1944.
Nesta obra, Hayek é contra qualquer tipo de restrição dos mecanismos de
mercado por parte do Estado, para o autor, a intromissão do Estado resultaria numa
ameaça fatal não só à liberdade econômica como também política. A ingerência
do Estado, segundo Hayek, é nociva e prejudicial. Ela afeta a liberdade individual
e faz com que a sociedade ande pelo caminho da servidão (ANDERSON, 1995).
Foi a partir da década de 1970 que a corrente neoliberal ganhou forças. O
ano de 1979, com a eleição inglesa de Margaret Thatcher (1925-2013), a primeira
governante disposta a aplicar o modelo neoliberal, seguida por Ronald Reagan
(1911-2004) nos Estados Unidos em 1980, que o neoliberalismo foi tornan-
do-se hegemônico (MORAES, 2001).
De acordo com Moraes (2001), as três principais escolas defensoras do
pensamento neoliberal são: a escola Austríaca, cujo precursor foi Friedrich August
von Hayek, o patrono do pensamento neoliberal contemporâneo. A escola de Chi-
cago, liderada por Theodore Schutz, criador da teoria do capital humano. Escola
de Virgínia ou public choice, comandada por James Buchanan (MORAES, 2001).
Entre os principais reflexos da implantação de práticas neoliberais cujo êxito
se deu além do esperado, estão: a desmontagem de serviços públicos básicos; as
privatizações de empresas; o crescimento de capital corrupto e polarização social;
seguidas da ampliação das desigualdades sociais (ANDERSON, 1995).
Nesse sentido, a corrente neoliberal é a ressignificação do liberalismo clássico,
com novos conceitos, porém, mais conservador. Assim, podemos compreender o
78
neoliberalismo como um projeto de reformas no plano econômico, político, cul-
tural especificamente diante das políticas públicas educacionais que consiste em
transferir a educação escolar da esfera pública para a esfera do mercado.

POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS EDUCACIONAIS

A elaboração de políticas públicas para a educação no contexto do recru-


descimento das ideias neoliberais no Brasil, certamente foram influenciadas por
múltiplas determinações em sua constituição, considerando o fato de que não
há neutralidade e que os sujeitos que nelas atuaram agiram com determinadas
intenções e finalidades específicas, neste caso, voltadas aos interesses do capital,
isto é, podemos afirmar que a educação escolar não é um elemento alheio de sua
conjuntura histórica, mas, faz parte de todo processo sócio/político e econômico.
A redefinição do papel do Estado e as influências das agências internacionais
nas políticas públicas para a educação está atrelada a atual fase de desenvolvimento
do capitalismo financeiro. É na análise da elaboração e recomendações das políti-
cas educacionais que podemos entender as influências da ofensiva neoliberal em
todo contexto educacional brasileiro na qual se considera que o metabolismo do
capital, na sua forma contraditória, determina as mudanças nas relações sociais,
pois é do projeto neoliberal que decorrem condições que possibilitam ao capital
a inauguração de um novo ciclo de reorganizações (MAZZUCCHELLI, 1985).
As políticas públicas podem ser definidas como o Estado em ação, são elas
que atribuem materialidade e visibilidade ao Estado. Eloísa de Mattos Hofling
afirma que, por políticas públicas podemos entender “o Estado implantando um
projeto de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade”
(HOFLING, 2001, p. 31). Elas representam um conjunto de objetivos que dão
forma a um determinado programa de ação governamental e que proporcionam
condições para a sua execução.
As políticas públicas caracterizam-se pelas iniciativas e diretrizes, pelos planos
e programas governamentais adotados em resposta aos problemas considerados
socialmente relevantes. São ações planejadas e implantadas para garantir direitos
sociais conquistados pela sociedade e incorporados nas leis (CARVALHO, 2012).
Por políticas educacionais podemos entender aquelas que são responsáveis
pela organização dos processos educativos institucionalizados nacionalmente,
“uma política pública de corte social, de responsabilidade do Estado – mas não
pensada somente por seus organismos” (HOFLING, 2001, p. 31).
79
As políticas educacionais respondem às lutas e aos embates de uma época,
a legislação, ou norma jurídica; ela não está absorta aos interesses de grupos e de
classes sociais divergentes. Trata-se de uma fração da política pública; ela revela,
em cada época histórica, os anseios e as demandas sociais quanto à educação e o
projeto político que se quer concretizar por meio do Estado. A política educa-
cional comporta, além das diretrizes, normas, obrigatoriedades em certos níveis,
definição e criação de condições de acesso. Pode-se entender que a formulação e
implantação das políticas públicas educacionais são expressão de lutas, pressões e
conflitos sociais, elas são produto da construção social. As políticas são resultado,
embora provisórios, de grupos e forças econômicas, sociais e de políticas confli-
tantes (CARVALHO, 2012; PEREIRA, 2009).
O Estado não é o único responsável pela criação das políticas públicas e
educacionais, elas expressam as relações existentes entre o Estado e a sociedade.
O Estado não é um ente em si, não é um poder que paira sobre a sociedade, não
está acima dos conflitos sociais, mas profundamente envolvido neles. O Estado
corresponde às condições materiais de vida, ou seja, às relações econômicas
inerentes à produção e à reprodução das relações sociais. As políticas públicas
e educacionais resultam das contradições sociais e repercutem na estrutura
do próprio Estado (MARX, 1983).
A proposta de analisar a educação brasileira a partir da legislação educacional
ou das reformas de ensino implica pensar que subjacentes ao estatuto legal, encon-
tram-se forças econômicas, políticas e sociais que estão em constantes conflitos.
Desde a elaboração e a promulgação de uma lei até sua execução, tendem a surgir
vozes discordantes que manifestam seus interesses próprios.
Para melhor entendimento do contexto de reformas pelas quais passou a
educação a partir da década de 1990, faz-se necessário identificar as confluências
que existem entre as políticas educacionais promulgadas pelo estado e a Reforma
do Estado que acabaram por inaugurar um novo modelo de sistema educativo.
A estrutura de funcionamento da Reforma do Estado caracteriza-se por
meio do processo da reforma dos sistemas de previdência social, em que se buscou
racionalizar recursos, diminuindo o seu papel no que se refere às políticas sociais;
saúde e educação; desregulamentação na economia; privatização; abertura de
mercados, procedentes da incorporação de diretrizes neoliberais. Segundo o Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995):

80
[...] a reforma do Estado deve ser entendida dentro do contexto da
redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto
pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de
bens e serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador
desse desenvolvimento (BRASIL, 1995, p. 12).

No documento acima citado, a administração pública gerencial passa a reque-


rer formas flexíveis de gestão e de descentralização, pois passa a contemplar o cidadão
como um cliente dos seus serviços e institui uma avaliação sistemática dos serviços
prestados, como no caso da educação. O desenvolvimento deixa de ser um projeto
conduzido apenas pelo Estado nação e passa ter como base o mercado mundial.
Logo que as políticas públicas implementadas nesse período, alinhadas ao
modelo neoliberal de administração passaram a reduzir os gastos públicos desti-
nados à proteção social, o processo de mudanças na educação passou a ser cons-
tituído a partir do discurso da técnica e da agilidade administrativa. Os conceitos
de produtividade, eficácia, excelência e eficiência foram importados das teorias
administrativas para as teorias pedagógicas (OLIVEIRA, 2006).
A lógica do empresariamento da educação procurava ter em seu discurso certa
neutralidade e buscava muitas vezes de modo sorrateiro eliminar a luta política no
interior das instituições escolares. Entre as propostas do Estado neoliberal estão o
paradigma da liberdade econômica, da eficiência e da qualidade; uma economia de
mercado autorregulável: livre concorrência; fortalecimento da iniciativa privada,
com ênfase na competitividade.
Estado minimalista, com três funções: policiamento, justiça e defesa nacio-
nal; projeto de desestatização, desregulamentação e privatização; desqualificação
dos serviços e das políticas públicas. E, uma educação cuja ênfase está no ensino
privado, na escola diferenciada/dual e na formação das elites intelectuais; uma
educação que visa à formação para o atendimento das demandas e exigências do
mercado (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012).
A educação, nesse sentido, é entendida não mais como um direito social,
mas como uma mercadoria a ser consumida individualmente, portanto, quem tiver
mais poder econômico “compra” uma educação de melhor qualidade.
[...] Daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas
demandas do capital e pelo esgotamento dos cortes dos recursos
dos orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique melhor o uni-
verso instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo se vende, tudo
se compra”, “tudo tem preço”, do que a mercantilização da educação.
81
Uma sociedade que impede a emancipação só pode se transformar
em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro
(MÉSZÁROS, 2005, p. 16).

Diante desse cenário, as políticas educacionais passaram a sofrer forte


influência e ingerência de organismos internacionais como: UNESCO, CEPAL
e, a questão educativa passou a ser objeto de análise e discussão a partir de
1990. Conforme afirma Oliveira:
No decorrer dos anos 1990, o debate sobre educação e desenvolvimento
esteve pautado pela exigência de responder ao padrão de qualificação
emergente no contexto de reestruturação produtiva e de globalização
da economia, ocupando lugar de destaque nas políticas educacionais
(OLIVEIRA, 2006, p. 105).

Em 1994, com a Conferência Nacional de Educação para Todos, fortaleceu


a ideia de divisão das responsabilidades, com o governo de FHC, 1995, aumentou
o foco na escola como mecanismo de inclusão e ascensão social, com o intuito de
tirar cada vez mais a responsabilidade do Estado com a educação.
Embora a escola seja responsável pelo cumprimento de sua função social,
qual seja: formar cidadãos, não se pode esquecer o papel do Estado nesse processo,
considerando que as políticas públicas são dele emanadas, e a escola depende delas
para uma atuação efetiva (PEREIRA, 2009).
Assim, as políticas educativas atreladas aos interesses do capital e permeadas
pelas transformações ocorridas no campo educacional provocadas pelo neolibera-
lismo, concebem a educação como um negócio e não como um bem social.

A TEORIA DO CAPITAL HUMANO E SUA INFLUÊNCIA NA


ELABORAÇÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS
NA DÉCADA DE 1990

A teoria do Capital Humano foi elaborada pelo professor da escola de Chi-


cago, Theodore Schutz, na década de 1960. Na perspectiva dos defensores dessa
teoria, o bem-estar dos pobres depende exclusivamente da educação, pois é por meio
dela que o indivíduo obterá ascensão social. Rosana Evangelista da Cruz destaca que:
[...] o discurso neoliberal resgata e reformula os enfoques economicistas
da Teoria do Capital Humano, apontando a relação de dependência
entre educação e desenvolvimento econômico e social, excluindo os
fatores estruturais que determinam as diferenças de classe e enfatizando
82
o valor do desempenho individual como determinante da condição
de cada um na sociedade. [...] o neoliberalismo propõe a transferên-
cia da lógica do mercado para a educação, elege a livre concorrência
como fundamental para a garantia da eficiência e da qualidade dos
serviços educacionais prestados e transfere a meritocracia vigente no
campo empresarial para o educacional, pois assim estaria garantindo o
estabelecimento de critérios competitivos, adequados para promover
os mais capazes e esforçados (CRUZ, 2003, p. 66).

Esse discurso neoliberal centra no indivíduo a responsabilidade por seus


sucessos e fracassos; um modelo totalmente alinhado aos ditames do capital cuja
lógica está pautada nas necessidades de mercado, tendo a educação enquanto pro-
duto e a escola como empresa. A influência de teorias econômicas neoliberais na
elaboração de políticas educacionais para a educação é responsável pela crença na
educação como o único meio de ascensão, tanto individual quanto do próprio país.
Embora se reconheça que a educação escolar seja um elemento necessário
para construção de melhores condições sociais de uma nação, José Carlos Libâ-
neo (2012) a educação escolar a partir da perspectiva neoliberal não pode ser
apresentada como a solução para todos os males e dilemas dos homens no e do
mundo do capital (LIBÂNEO, 2012).
François Chesnais (2001) salienta que, em nenhum momento, a mundialização
do capital gera condições iguais aos indivíduos e afirma que, ao contrário, “[...] todas
as tendências à desigualdade que haviam sido contidas com dificuldades, no decorrer
da fase precedente” (CHESNAIS, 2001, p. 12) ganham proporções incalculáveis.
Dessa forma, põem-se alguns desafios como o de questionar o papel da
educação dentro da lógica neoliberal, uma vez que a educação nesses moldes, visa
apenas legitimar os interesses do mercado de trabalho ao invés de formar um ser
ativo, proponente de mudanças, possibilitando seu acesso não somente à ciência
e a tecnologia, mas à uma vida de bem-estar social. Para tanto, é preciso superar a
formação unileteral, para o trabalho ou para a ciência, e propor uma educação omni-
lateral, que englobe a formação intelectual, corporal e profissional (MARX, 1983).
Conforme afirma István Mészáros, no livro Educação para além do capital
(2005), o impacto da lógica do capital sobre a educação impõe ao sistema educa-
cional, “formador da mão-de-obra qualificada”, a obrigatoriedade de apresentar
alterações em sua estrutura organizacional e política para contemplar as novas
demandas do mercado de trabalho e assim adequar-se a nova realidade posta
pelo desenvolvimento capitalista.
83
Contudo, segundo o autor, não basta educar a todos a partir dos moldes
da educação escolar capitalista. Isso porque as contradições do capital são inso-
lúveis. Pois, mesmo que todos estejam altamente qualificados para o mercado
de trabalho, dentro da atual ordem, nunca haverá espaço de trabalho para todos.
Para Mészáros “uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a
correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais
da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções
de mudança” (MÉSZÁROS, 2005, p. 25).
Cabe salientar que este modelo de educação, pautado na formação voltada
apenas para o mercado trabalho e para o atendimento das necessidades mínimas
dos alunos, reduz o papel da escola a prover somente conhecimentos ligados
à realidade imediata do aluno, utilizáveis na vida prática, em outras palavras,
esse modelo enfatiza a função de socialização da instituição escolar, que passa a
ter apenas o sentido de convivência, de compartilhamento cultural, de práticas
de valores sociais, em detrimento do acesso à cultura e à ciência acumuladas
pela humanidade (LIBÂNEO, 2012).
Diante disso, entendemos que o desafio da educação escolar é voltar-se para
sua função primordial, qual seja: propiciar formação cultural e científica, isto é,
permitir que o aluno tenha domínio do saber sistematizado mediante o qual se
promove o desenvolvimento de capacidades intelectuais, como condição de asse-
gurar o direito à igualdade, tornando o sujeito apto para atuar socialmente. É nesta
perspectiva que a escola será caracterizada como instância de democratização social.

CONCLUSÃO

A educação escolar é organizada para responder às necessidades da sociedade,


muito embora, seja ela mesma, objeto de contradições, de luta, de embate e de
proposição da superação da ordem vigente. Roberto Jamil Cury, na obra Educação
e Contradição (1994), afirma que a escola recebe influência do seu contexto, mas, ao
mesmo tempo o influencia, sendo este seu elemento contraditório (CURY, 1994).
Entendemos que o desafio da escola é, portanto, fazer com que o conteúdo
por ela transmitido, seja analisado e apreendido dentro de uma totalidade dinâ-
mica. A escola tem função de incluir, democratizar o conhecimento e preparar
para cidadania. É dever da escola formar o indivíduo para que ele escolha seu
destino profissional, tem que formar o sujeito autônomo, quando isso não acontece,

84
o mercado de trabalho é quem determina o destino. Assim ela se torna elitista,
serve aos interesses do capital.
Podemos afirmar que a educação é necessária para romper e superar a lógica
das contradições do sistema capitalista, para isso, ela precisa estar para além do
capital e andar de mãos dadas com a luta para a transformação do atual modelo
econômico/político hegemônico.

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sobre as práticas neoliberais.

86
LITERATURA NO ENSINO MÉDIO E SUAS
IMPLICAÇÕES NO VESTIBULAR

Mariana Ferraz51
Rosilene Frederico Rocha Bombini52
Ketilin Mayra Pedro53

INTRODUÇÃO

Em relação ao ensino de literatura, sabe-se que o atual processo de leitura


de textos literários não propicia um aproveitamento adequado da literatura como
fenômeno artístico, já que, muitas vezes, prioriza o ensino do contexto histórico
ou apenas o trabalho com fragmentos de obras literárias consideradas canônicas,
não estimulando, dessa forma, o jovem estudante à prática da leitura literária.
Quando se discute a respeito da formação do leitor nas escolas, em especial a
formação do leitor literário, sabe-se que ainda há muito a ser feito nessa questão. É
importante ressaltar que o ensino de literatura ao longo do ensino fundamental é
caracterizado por uma formação menos sistemática e mais livre do ponto de vista das
escolhas dos textos pelos docentes, haja vista que são utilizados livros da literatura
infanto-juvenil da mesma forma que as obras da literatura considerada clássica.
Apenas no ensino médio ocorre uma sistematização do ensino de literatura e,
apesar das orientações apresentadas pelos documentos oficiais, percebe-se que esse
trabalho está pautado em um modelo historiográfico que mais estuda as características
do estilo de época, do autor e da obra, pouco se voltando para o letramento literário
ou ainda para a experiência estética proporcionada pela leitura da obra literária.
De acordo com Diniz (2013), são duas as dificuldades de abordar a leitura na
escola. A primeira é o utilitarismo imediatista, oposto à fruição, já que o aluno lê para
passar na prova ou ainda para ser aprovado no vestibular. A segunda é o afastamento
que a literatura acaba provocando no aluno, se a visão de que a exigente cultura literária
não seja algo para ele. Somem-se a essas questões os julgamentos e interpretações que já

51
Mestranda em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem (UNESP). CV: http://lattes.cnpq.br/8193481873280631
52
Doutora em Estudos Literários (UNESP). Docente (UNISAGRADO). CV: http://lattes.cnpq.br/5816114359890064
53
Doutora em Educação (UNESP). Pós-doutorado (UNESP). Docente (UNISAGRADO). Professora Colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem (UNESP).
CV: http://lattes.cnpq.br/0991868156805558
87
vêm atrelados aos textos literários ao colocarem o aluno em posição secundária quando
ele deveria ser sujeito primário, isto é, ao lado do texto, na leitura dos textos literários.
As obras literárias possuem linguagem polissêmica, com vocabulário que
retrata o período e o estilo em que foram produzidas e, muitas vezes, não são com-
preendidas pelo estudante do ensino médio. Normalmente, isso causa desinteresse
pela dificuldade encontrada no contato com a linguagem ao dificultar a compreensão.
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006) apontam
impasses que ocorrem na literatura, como substituição da literatura “difícil” por uma
literatura considerada mais digerível; simplificação da aprendizagem literária a um
conjunto de informações externas às obras e aos textos, além de substituição dos textos
originais por resumos. Isso ocorre principalmente pela carga horária da disciplina de
literatura e as “metas” que deverão ser cumpridas em três anos referentes ao ensino
médio, pelo professor e escola, que requerem uma seleção de obras que permita uma
formação mais significativa possível para os alunos com o objetivo e foco nos vestibulares.
Por outro lado, os grandes vestibulares do país divulgam, a cada novo processo
seletivo, as listas de leituras obrigatórias para os candidatos. As obras solicitadas para esses
exames influenciam indiretamente a seleção de leituras integrais. O professor não pode
manter seu planejamento focado totalmente ao programa do vestibular, mas os alunos
precisam estudar todo o conteúdo demandado nesses exames em um período de três anos.
Como prática consolidada, a cada ano, são selecionadas obras importantes das
literaturas brasileira e portuguesa como leituras obrigatórias para os vestibulandos. Toda
essa demanda de livros a serem lidos faz com que o aluno do ensino médio não explore
profundamente as obras, mas sim se preocupe apenas com o que é solicitado e, muitas
vezes, o conhecimento de uma obra literária não passa da leitura de um breve resumo.
Atualmente está sendo implantada nas escolas a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018), um documento de caráter normativo que define o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos
devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.
Para a BNCC é importante recolocar o texto literário como ponto de partida
para o trabalho com a literatura, intensificando seu convívio com os estudantes,
diferente do que acontece atualmente, já que as biografias de autores, as carac-
terísticas de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o
cinema e as HQs, têm tornado o texto literário como plano secundário.
Ainda dando destaque à BNCC, há os campos de atuação social propostos para
contextualizar as práticas de linguagem no ensino médio em Língua Portuguesa. A
88
literatura encontra-se no campo artístico-literário em que se busca a ampliação do
contato e a análise mais fundamentada de manifestações culturais e artísticas em geral,
visa à continuidade da formação do leitor literário e do desenvolvimento da fruição.
Nesse campo, a principal ideia é levar os estudantes a ampliarem seu repertório
de leituras e selecionar obras significativas para si, conseguindo aprender os níveis
de leitura presentes nos textos e os discursos subjacentes de seus autores. A prática
dessa leitura literária deve ser capaz de resgatar a historicidade dos textos: produção,
circulação e recepção das obras literárias, em um entrecruzamento de diálogos (entre
obras, leitores, tempos históricos) e em seus movimentos de manutenção da tradição e
de ruptura, suas tensões entre códigos estéticos e seus modos de apreensão da realidade.
A tradição literária deve ser constituída por textos clássicos, considerados
canônicos – obras legitimadas como elemento expressivo de suas épocas. Essa tradi-
ção possibilita a apreensão do imaginário e das formas de sensibilidade de uma deter-
minada época, de suas formas poéticas e das formas de organização social e cultural
do Brasil, sendo ainda hoje capazes de tocar os leitores nas emoções e nos valores.
No vestibular mais concorrido do país exige-se uma análise crítica da obra e
até que o aluno seja capaz de estabelecer uma relação entre obras. Para isso, é neces-
sário que o ensino da literatura no ensino médio ultrapasse o mero conhecimento
do enredo de uma narrativa. A escolha dos textos literários deve considerar, dentre
outros fatores, o universo do educando, a atualidade dos textos e os diálogos que
eles estabelecem com as especificidades do sujeito e do mundo em que ele vive.
Em face de todas as questões apresentadas até o momento, esta pesquisa justi-
fica-se pela discussão do nível de conhecimento literário imposto pelo vestibular e o
ensino da literatura que vem sendo orientado e desenvolvido especialmente nos anos
finais da educação básica. Assim, a pesquisa teve por objetivo analisar as questões
de literatura do vestibular organizado pela Fundação Universitária para o Vestibular
(FUVEST), e a forma como esse conhecimento está sendo avaliado neste concorrido
exame. Na sequência, os resultados são comparados com as orientações das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em relação ao ensino da literatura.

DESENVOLVIMENTO

A fim de discutir a temática proposta, este trabalho foi executado por meio de
pesquisa bibliográfica. O referido estudo foi dividido em duas partes: apresentação
das questões selecionadas das provas de literatura da Fuvest (anos de 2017 a 2019)

89
com as respectivas análises quanto ao conteúdo e forma como a literatura foi cobrada;
levantamento das orientações encontradas em documentos oficiais nacionais.
As análises estão fundamentadas na Teoria Literária e no método da análise
comparativa. Também serão consideradas discussões de estudiosos sobre o ensino
da literatura para embasar o estudo e análise dos resultados.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ao analisar as questões de literatura cobradas nas provas da primeira fase


dos últimos três anos do vestibular FUVEST, foi constatada a seguinte realidade:
em 2017 foram apresentadas 12 questões; em 2018 foram 13 questões e apenas 9
em 2019. Não há tanta variação na primeira fase, sendo que nesses três anos foram
exigidas na prova as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas, Claro Enigma e Vidas
Secas. Iracema aparece em 2017 e 2019; Sagarana em 2018 e 2019. As únicas obras
que aparecem particularmente em cada ano são Mayombe, em 2017, Minha Vida
de Menina e o Cortiço, em 2018, e A Relíquia, em 2019.
Podemos notar que a cobrança das obras Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Claro Enigma e Vidas Secas é maior do que todas as outras obras que estão na lista de
leitura obrigatória. O número de questões também chama bastante atenção: Memórias
Póstumas de Brás Cubas tem uma média de 2 a 3 questões a cada ano; já Vidas Secas tem
apresentado 1 a 2 questões e Claro Enigma apenas 2 em todos os últimos três anos.
Passoni (2017) aponta que a Fuvest tem recomendado a leitura de algumas
obras que os examinadores julgam ser as mais significativas no desenvolvimento
da história da literatura de língua portuguesa. Constata-se que não só a literatura
brasileira está presente na lista de obras, mas também a literatura africana na obra
Mayombe, escrita pelo autor Pepetela, contando a história da libertação de Angola.
O tipo de questionamento também não varia tanto com o passar dos anos. Em
primeiro lugar são exploradas questões de “interpretação”, podendo chegar a até 4 delas
por prova; logo em seguida estão as questões que cobram “caracterização do período
literário”, pois há pelo menos uma em cada exame. Estão presentes também questões que
avaliam “caracterização da obra”, “recursos estilísticos”, “recursos linguísticos”, “caracteri-
zação dos personagens”, “comparação entre obras” e até mesmo “interdisciplinaridade”.
O Quadro a seguir apresenta uma organização de como as questões
de literatura estão sendo apresentadas nas provas da Fuvest e que tipo de
cobrança tem sido mais presente:

90
Quadro 1 – Levantamento das questões de Literatura - Fuvest 2017 a 2019 – por tipo de
questionamento
Ano da Nº da Tipologia Tipo de
Título da Obra
Prova Questão do Texto Questionamento
Caracterização do
4 Iracema Narrativa
período literário
Caracterização do
5 Iracema Narrativa
período literário
6 Iracema Narrativa Interpretação

Memórias Póstumas de Brás


10 Narrativa Interpretação
Cubas

Memórias Póstumas de Brás


11 Narrativa Interpretação
Cubas
Memórias Póstumas de Brás
12 Narrativa Recursos estilísticos
2017 Cubas
Caracterização do
13 Vidas Secas Narrativa
período literário
Caracterização da
14 Mayombe Narrativa
obra
Comparação entre
15 Mayombe Narrativa
obras

16 Mayombe Narrativa Interdisciplinaridade

Caracterização do
17 Claro Enigma Poema
período literário
18 Claro Enigma Poema Interpretação
Memórias Póstumas de
Característica dos
72 Brás Cubas/ Minha Vida de Narrativa
personagens
Menina
Memórias Póstumas de
73 Brás Cubas/ Minha Vida de Narrativa Recursos estilísticos
Menina
74 Minha Vida de Menina Narrativa Interpretação
2018 75 Minha Vida de Menina Narrativa Interpretação
Caracterização do
76 O Cortiço Narrativa
período literário
77 O Cortiço Narrativa Recursos linguísticos
Característica dos
78 Vidas Secas Narrativa
personagens
79 Vidas Secas Narrativa Interpretação

91
Caracterização da
80 Sagarana Narrativa
obra
81 Sagarana Narrativa Recursos estilísticos
2018 82 Sagarana Narrativa Interpretação
Caracterização da
83 Claro Enigma Poema
obra
84 Claro Enigma Poema Recursos linguísticos
Memórias Póstumas de Brás Caracterização da
64 Narrativa
Cubas/ Vidas Secas obra
Caracterização da
65 A Relíquia Narrativa
obra
66 Iracema Narrativa Interpretação
67 Iracema Narrativa Recursos linguísticos
Comparação entre
68 Claro Enigma Poema
2019 obras
69 Claro Enigma Poema Interpretação
Caracterização da
70 Sagarana Narrativa
obra
Memórias Póstumas de Brás
71 Narrativa Interpretação
Cubas
Memórias Póstumas de Brás
72 Narrativa Interpretação
Cubas
Fonte: elaborada pela autora.

A prova de literatura tem exigido um nível avançado de leitura e entendimento


das obras, tanto no aspecto da narrativa propriamente dita como do contexto histó-
rico, social, a relevância da obra para o estilo literário da época e até características
do autor. Especificamente, os livros da lista de leituras obrigatórias da FUVEST
são selecionados para ter uma abrangência grande de momentos históricos dife-
rentes. Nessa lista, por exemplo, há obras do romantismo, naturalismo, realismo e
modernismo. São escolas muito diferentes, cada uma com suas particularidades.
Algumas questões cobram uma análise crítica da obra, outras ainda exi-
gem uma boa base para entender e relacionar as reflexões que são apresenta-
das. A cobrança também exige que o candidato tenha um repertório cultural
e criticidade para opinar e relacionar temas. A seguir, é apresentado um levan-
tamento por tipo de questionamento que a prova de literatura da FUVEST
vem elaborando nos últimos anos.

92
Quadro 2 – Levantamento por tipo de questionamento
Tipo de questionamento e
Ano / nº da questão / Obra
Quantidade de questões
2017
questão 4 - Iracema
Caracterização da obra 2019
(4 questões) questão 66 - Iracema
questão 70 – Sagarana
questão 72 – Memórias Póstumas de Brás Cubas
Caracterização temática do
2017
período
questão 5 - Iracema
(1 questão)
2017
questão 6 – Iracema

Aspecto Linguístico 2018


(4 questões) questão 77 - O Cortiço
questão 84 – Claro Enigma
2019
questão 67 - Iracema
2017
questão 10 - Memórias Póstumas de Brás Cubas (interpretação
Interpretação da Obra temática)
(19 questões) questão 11 - Memórias Póstumas de Brás Cubas
questão 14 – Mayombe
questão 15 – Mayombe
2018
questão 73 - Memórias Póstumas de Brás Cubas/Minha Vida
de Meninas
questão 74 - Minha Vida de Meninas
Interpretação da Obra questão 75 - Minha Vida de Menina
(19 questões) questão 79 - Vidas Secas
questão 80 - Sagarana
questão 82 - Sagarana
questão 83 - Claro Enigma
questão 84 - Claro Enigma

93
2019
questão 64 - Memórias Póstumas de Brás Cubas/Vidas Secas
(interpretação da obra)
questão 65 - A Relíquia
Interpretação da Obra
questão 66 – Iracema
(19 questões)
questão 67 – Iracema
questão 69 - Claro Enigma
questão 70 – Sagarana
questão 71 - Memórias Póstumas de Brás Cubas
2017
questão 12 - Memórias Póstumas de Brás Cubas
Recursos estilísticos 2018
(3 questões) questão 73 - Memórias Póstumas de Brás Cubas/Minha Vida
de Menina
questão 81 - Sagarana
Contexto histórico 2017
(1 questão) questão 13 - Vidas Secas
2017
questão 15 – Mayombe
Comparação entre obras 2018
(3 questões) questão 80 – Sagarana
2019
questão 68 - Claro Enigma
Interdisciplinaridade 2017
(1 questão) questão 16 - Mayombe (geografia)
2017
Caracterização do período questão 17 _ Claro Enigma
literário questão 18 - Claro Enigma
(3 questões) 2018
questão 76 - O Cortiço
2018
Caracterização dos
personagens questão 72 - Memórias Póstumas de Brás Cubas/Minha Vida
de Menina
(2 questões)
questão 78 - Vidas Secas
Fonte: elaborada pela autora

Com base nas análises realizadas, percebe-se, que é expressivo o número de


questões que exploram a interpretação da obra, tendo aumentado de forma significa-

94
tiva nos últimos dois anos esse tipo de questionamento. Os outros tipos de cobrança
aparecem em menor quantidade, sem destaque para nenhum aspecto significativo.
Nota-se que a exigência de conhecer as obras literárias vai além da simples
compreensão ou mero conhecimento do enredo, o que exige uma reflexão bem
mais aprimorada das relações que se estabelecem entre os elementos da narrativa
e as temáticas e/ou valores subjacentes às obras.
Como consequência da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional: 9.394/96 - LDB (1996) e da mudança estrutural da educação
básica, houve a intenção do governo federal em se criar documentos oficiais que
orientassem o ensino nessa etapa de escolaridade.
No que diz respeito a esses documentos em nível federal, foram criados três
principais: os Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio PCNEM (1999),
os Parâmetros Curriculares Nacionais+: Ensino Médio – Orientações Educacio-
nais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (2002): PCN+ e
as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006): OCN. Os dois primeiros
abordam o ensino da literatura como matéria subordinada ao ensino de língua
portuguesa ou sendo utilizada como pretexto para ensinar e exemplificar conteúdos
distintos. Somente o último documento designa um papel mais direcionado para a
importância da literatura e da formação do leitor literário. Fortes e Oliveira (2015)
afirmam que é a partir das considerações presentes nas OCNs que se apresenta
uma “proposta de encaminhamento metodológico para leitura literária de Rildo
Cosson, como reflexão sobre certa possibilidade de abordagem da literatura no
contexto do ensino médio brasileiro” (FORTES; OLIVEIRA, 2015, p. 283).
A literatura no ensino médio limita-se à literatura cobrada no vestibular,
quase como apenas uma cronologia literária. Para Cosson (2016, p. 21), a literatura
vista nesse período da educação básica é “uma sucessão dicotômica entre estilos de
época, cânone e dados bibliográficos dos autores acompanhada de rasgos teóricos
sobre gêneros, formas fixas e alguma coisa de retórica em uma perspectiva pra lá
de tradicional”. Os textos literários são vistos em sua maior parte através de frag-
mentos, sendo aulas informativas e, muitas vezes, incompreendidas pelos alunos.
Todorov (2009), em A Literatura em perigo, afirma que a leitura de fragmentos
de obras contribui ainda mais para o desinteresse do corpo discente pela leitura lite-
rária. Assim, poucas são as oportunidades da leitura de um texto integral e, quando
acontecem, os alunos são submetidos a resumir ou discutir a obra assistematicamente.

95
É possível constatar que os especialistas responsáveis pelo tema da literatura nas
Orientações Curriculares para o Ensino Médio publicadas pelo MEC, em 2006, ressaltam as
especificidades do texto literário. Essas orientações partem do conceito de letramento da
pesquisadora Magda Soares, ao afirmar que o letramento é o “estado ou condição de quem
não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais da escrita” (SOARES,
2004, p. 47). Essas mesmas Orientações reforçam que o letramento literário pressupõe
que o aluno não só seja capaz de ler o poema ou a narrativa literária, mas também possa
apropriar-se efetivamente desses textos por meio da experiência estética, isto é, a fruição.
Antônio Cândido (1995), em O direito à literatura, defende que a literatura é capaz
de desenvolver em nós a sensibilidade, tornando-nos mais compreensivos, reflexivos, críticos
e abertos para novos olhares e possibilidades diante da nossa condição humana. Dessa
forma, corrobora com o que as OCN orientam, para que esse trabalho com a literatura
possa “formar o leitor literário, melhor ainda, de letrar - literariamente o aluno, fazendo-o
apropriar-se daquilo a que tem direito” (BRASIL, 2006, p. 54). Assim, seguindo a reflexão
de Cândido, a leitura literária favorece a reflexão sobre o mundo a nossa volta, revelando
nossos horizontes, ampliando os conhecimentos, possibilitando novos pontos de vista.
A interação com os textos literários favorece o desenvolvimento da curiosidade
e da imaginação dos leitores, a elevação e a educação da sensibilidade estética. Por
meio da literatura é possível acessar diferentes saberes sobre as culturas de povos e
lugares desconhecidos não importando se fictício ou real. A leitura literária deixa
em cada pessoa uma bagagem de experiências que nos constrói como leitores e
que se refletem em nossa formação e posturas diante das questões reais.
Sendo assim, o letramento literário deve ser trabalhado como algo que
requer mais tempo, pois diante de um texto literário é preciso saber refletir sobre
questões estéticas, políticas, sociais ou pessoais que possam estar contidas impli-
citamente ou explicitamente no texto.
Cosson (2016, p. 40) cita três etapas para compreender a leitura, a primeira
conhecida como antecipação, para aguçar a curiosidade do aluno, “consiste nas várias
operações que o leitor realiza antes de penetrar no texto propriamente dito, são rele-
vantes tanto os objetivos da leitura, que levam o leitor a adotar posturas diferenciadas
ante o texto, quantos os elementos que compõem a materialidade do texto, como
a capa, o título, o número de páginas, entre outros”. A segunda é a decifração, se
aprofundar no texto através das letras e das palavras. Para o autor, “quanto maior é
a nossa familiaridade e o domínio delas, mais fácil é a decifração”. A última etapa é
da interpretação, “são as relações estabelecidas pelo leitor quando processa o texto,
96
por meio da interpretação, o leitor negocia o sentido do texto, em um diálogo que
envolve autor, leitor e comunidade”. Por isso, por mais pessoal e íntimo que esse
momento interno possa parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social.
Constata-se, por meio da análise dos documentos oficiais e das questões
de literatura na Fuvest, ser evidente que as orientações se contrapõem ao que é
cobrado no vestibular. Com o intuito de apenas ser aprovado no exame, o leitor
torna-se um leitor seletivo, com o foco apenas em responder corretamente as
questões e não se apropria dos textos com fruição.
Todorov (2009), em A literatura em Perigo, sustenta a ideia de que a literatura
tem um papel particular a cumprir, diferentemente dos discursos religiosos, morais
ou políticos, ela não formula um sistema de preceitos; por essa razão, escapa às
censuras que se exercem sobre as formuladas de forma literal.
É necessário priorizar o real aprendizado do aluno, oferecer a ele diversos textos
que estejam próximos ou distantes de sua realidade histórica e social para que possa
construir sua própria identidade como leitor e não apenas para realização de exames.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura é uma área de conhecimento de enorme importância para a


formação e desenvolvimento humano, pois possibilita aos leitores uma reflexão
sobre si e sobre o mundo. Através da literatura se pode compreender elementos
sociais, históricos e culturais, além de desenvolver aspectos cognitivos e sensoriais.
Contudo, é necessário que ocorra uma leitura literária, ou seja, um aproveitamento
satisfatório e prazeroso da obra lida.
A escola, apesar de ter todas as orientações nos documentos oficiais, formação
continuada de professores de Língua Portuguesa e tendo até mesmo projetos de
leituras, ainda não tem contribuído de forma eficaz para a formação de leitores
literários, devido a necessidade da preparação para os vestibulares.
O gosto pela leitura não está sendo estimulado, já que estas possuem lingua-
gem polissêmica, com vocabulário que retrata o período e o estilo em que foram
produzidas e, muitas vezes, não são compreendidas pelo estudante do ensino
médio, causando desinteresse pela dificuldade encontrada.
Através de um universo fictício ou real, a literatura auxilia no progresso
da concentração, imaginação, senso crítico, sensibilidade, aspectos linguísticos e
cognitivos, em conjunto com conhecimentos históricos, abertos para novos olha-
res e possibilidades diante da vida humana, além de contribuir para a formação
97
social. A relevância que a literatura tem na vida do estudante se dá pelo acesso a
um bem cultural que muitos não têm o mínimo contato fora do ambiente escolar.
O processo de ensino de literatura não deve ser focado apenas em apresentar
uma cronologia entre períodos literários, principais autores de cada época e frag-
mentos de textos para uma possível identificação das obras estudadas, mas sim apre-
sentar ao aluno o caráter atemporal, bem como a função simbólica e social da obra
literária. Assim, compete à escola repensar o Ensino da leitura literária, tornando
a literatura uma prática cultural no cotidiano dos estudantes, através da fruição
e do reconhecimento de grandes autores que fazem parte da história brasileira.

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98
ARGUMENTAÇÃO E RACIOCÍNIO:
UMA REVISÃO TEÓRICA

Antonio Sales54

INTRODUÇÃO

Este texto é uma revisão teórica sobre o conceito de argumentação e suas


aplicações especialmente no estudo da Matemática. Há vários autores, teóricos
ou não, que tratam da temática de forma ampla. Entre os autores que se ocupam
da argumentação destacamos as contribuições de Toulmin (2006), um filósofo do
Direito, Meyer (2008), linguista, Abreu (2006), também linguista, mas voltado para
questões de comunicação, Oléron (1987) e Plantin (2008), oriundos da filosofia
e este último dedicado ao estudo da história da argumentação.

O CONCEITO DE ARGUMENTAÇÃO

A argumentação é tomada aqui como a expressão do raciocínio. Na clas-


sificação da Teoria Antropológica do Didático (TAD) ela é um objeto ostensivo
(o que é percebido pelos sentidos: texto, símbolo, gesto) que usamos para tornar
acessível um objeto não-ostensivo, isto é, uma ideia, um conceito ou um encadea-
mento de ideias e conceitos (CASABÓ, 2001). Nesse caso, argumentar é a ação
de fazer ou de mostrar como se faz e é também a ação de justificar porque se faz.
Vista nessa perspectiva e inserindo - a na perspectiva da TAD ela é uma técnica,
mas é também uma tecnologia. É um fazer e um recurso tecnológico.
Conforme a TAD (CHEVALLARD; BOSCH; GASCÓN, 2001) tecnologia é
um argumento justificatório da técnica utilizada. Para cumprir esse papel a argumentação
deve estar embasada em uma teoria. Entendemos que o raciocínio se expressa através de
argumentos e se reelabora através deles e por essa razão não nos preocuparemos em fazer
distinção entre ambos. Oléron admite explicitamente que a palavra raciocínio admite duas
significações: “De um lado ela [a palavra raciocínio] designa as atividades ou o processo
de raciocinar. Por outro lado, ela designa o produto ou o resultado dessas atividades”.
Segundo esse autor a materialização desse processo se dá por “meio de palavras, textos

Doutor em Educação (UFMS). Docente do Programa de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática (UNIVERSI-
54

DADE ANHANGUERA-UNIDERP) e de Educação Matemática (UNIAN). CV: http://lattes.cnpq.br/4297904237292516


99
escritos que são transmitidos de um indivíduo para outro” (OLÉRON, 1977, p. 3-4, tra-
dução nossa). É esse resultado do raciocínio que estamos denominando de argumentação
e entendemos que pode ser confundida com o próprio raciocínio, embora saibamos que
haja diferenças não muito sutis entre ambos. Portando, postulamos que argumentação e
raciocínio, na superfície, podem ser confundidos e como não é nossa intenção proceder
a uma discussão formal sobre o assunto pensamos não ser necessário entrar em uma
discussão que consumiria um longo espaço. Ocuparemos-nos dos aspectos práticos da
argumentação e da teorização sobre eles. Pierce (2003), semiótico, estuda os três tipos
de raciocínios. Como esses raciocínios são expressos através da argumentação é natural
supor que haja três tipos de argumentação. Portanto, Pierce discute a argumentação de
forma indireta e sob a perspectiva dos raciocínios abdutivo, indutivo e dedutivo que serão
analisados em parágrafos posteriores.
Dessa forma vemos que argumentação tem sentido amplo, porém em nosso
estudo interessa especialmente as suas contribuições para o estudo da Matemática.
Em virtude dessa delimitação nossa lista de autores inclui Arsac (1992) e cola-
boradores, todos da Didática da Matemática, e Pedemonte (2002), pesquisadora
italiana também da Didática da Matemática.
Argumentação não é um objeto matemático. Ela vem da Filosofia e do
Direito. É toda expressão do raciocínio podendo ser uma simples explicação
ou uma tentativa de convencer.
No estudo da Matemática podemos distinguir três níveis de profundidade da
argumentação: a argumentação, a prova e a demonstração. A demonstração, embora
também não seja um conceito puramente matemático, e processa através de objetos
matemáticos ostensivos visando validar a relação que se conjectura existir entre
objetos matemáticos não-ostensivos. A argumentação, mesmo sendo menos precisa e
menos formal, também utiliza objetos ostensivos, matemáticos ou não, para cumprir
o seu papel de procurar esclarecer ou convencer. Na Matemática a demonstração
não é objeto de estudo, é uma ferramenta de trabalho conforme salientou Montoya
Delgadillo (2010). Quando há alguma discussão a respeito esta ocorre no âmbito da
Filosofia da Matemática.
Na perspectiva em que estamos analisando o tema há diferenças signifi-
cativas entre argumentação, prova e demonstração. Prova, é uma explicação ou
argumentação aceita por um grupo social. Não se trata necessariamente de algo
rigoroso. É uma argumentação que possui coerência suficiente para convencer.
Encaixam-se nesse status as “demonstrações” feitas por computador, onde muitos
100
experimentos são realizados, e os vários exemplos propostos em sala de aula que
culminam por convencer o aluno da veracidade do que está sendo exposto.
Arsac (1992) classifica a demonstração como uma prova aceita pela comuni-
dade de matemáticos. Ela é atemporal e impessoal. A demonstração, nessa perspec-
tiva, é uma argumentação que satisfaz os requisitos exigidos por uma comunidade
de especialistas. Demonstração é um caso particular de argumentação e de prova.
Quanto aos objetivos a argumentação se divide em explicação e justificativa.

EXPLICAÇÃO OU ESCLARECIMENTO

Uma argumentação sem intenção objetiva ou subjetiva de convencer. Não há


emissão de juízo de valor. Ocorre quando se responde a um pedido de informação ou
se processa um esclarecimento sobre um fenômeno, natural ou social, presenciado.

JUSTIFICATIVA OU JUSTIFICATÓRIA

Essa argumentação consiste em explicar com a intenção de convencer. Há


toda uma elaboração prévia e a busca por uma organização das ideias. É dessa
que os estudiosos da didática da Matemática se ocupam, e é sobre essa forma que
os cientistas da comunicação se debruçam.
O esquema seguinte (fig. 1) ilustra o exposto até o momento. Esse esquema
representa o nosso pensamento e foi elaborado por nós na tentativa de esclarecer o
leitordos nossos pressupostos, portanto é elemento de uma argumentação explicativa.

Figura 1- Esquema da Argumentação

Fonte: Elaboração própria

101
Arsac e seus colaboradores ao discutir o tema elaborou um
esquema é mais simples (fig.2).

Figura 2. Esquema elaborado por Arsac

Fonte: Arsac (1992, p. 6)

Em termos práticos, ou do ponto de vista da aplicação no estudo da Mate-


mática etendo a TAD como referencial definimos a argumentação explicativa
como uma técnica didática e a justificativa ou justificatória como uma tecnologia,
no sentido conferido pela TAD. Tecnologia é um argumento racional com a fina-
lidade justificar e uma técnica utilizada ou institucionalizar um resultado obtido.
A palavra não tem nenhuma relação com ideia de artefato.
Esquematicamente (fig. 3) tem-se:

Figura 3- Equena da Argumentação

Fonte: Elaboração prórpia

102
A argumentação explicativa ocupa pouco espaço em nossa discussão, embora,
por ser uma técnica didática, devesse merecer muito mais. A argumentação justi-
ficatória, por sua vez, pode ser classificada, quanto ao nível de racionalidade, em
três níveis, a saber:Folclórica, Natural e Racional. Analisemos cada uma delas.

NÍVEL FOLCLÓRICO

A argumentação “folclórica”, ou baseada em evidências, inclui as categorias:


Ingênua e por Tradição. A denominação de folclórica se deve a Casabó (2001),
e Pais (2008), ampliando o pensamento, esclarece que esse tipo de argumento é
carregado de jargões, crenças, tradições, estereótipos, soluções mágicas, modismos
e mitos que circulam no imaginário das pessoas e que:
Mesmo que nem todo argumento folclórico seja um argu-
mento errado, pois, emcertos casos bem específicos, pode
ser apenas uma redução simplista de umaquestão, a pre-
dominância desse tipo de explicação para os fenômeno-
seducacionais boicota a profissionalização da carreira
docente (PAIS, 2008, s/p.).
Ingênua é toda argumentação que tem algo de infantil, de simplista como,
por exemplo: “acho que o time A vai ganhar do time B”.
Por quê?
Resposta: “Bem, porque meu time não vai me decepcionar”.
Ou ainda: “o carro A é melhor do que o carro B”.
Por quê?
Resposta: “Ele tem mais presença, é mais bonito”.

ARGUMENTAÇÃO POR TRADIÇÃO

A argumentação “por Tradição” se fundamenta na vivência, em fatos obser-


vados, porém, não questionados.
Alguns exemplos:
Pergunta: Por que você pensa que essa é uma forma correta de fazer?
Respostas possíveis: 1) Porque eu aprendi assim, 2) Porque o professor
fazia assim, 3) O livro traz assim.

103
Podemos ainda citar o exemplo de uma prática que se faz por tradição. Em
algumas regiões para resolver a equação , as duas frações são reduzidas ao mesmo
denominador e depois “cortam-se” os denominadores. Isso é admitido como uma
regra que dispensa explicação (SALES, 2010).

ARGUMENTAÇÃO NATURAL

Estamos considerando uma argumentação como natural quando há


elaboração de um raciocínio, um encadeamento de ideias, uma articulação
entre as partes do raciocínio, mas falta sistematização.
Exemplos:
Por que você acha que o time A vai ganhar do time B?
Respostas: 1) Porque ultimamente ele vem ganhando de times do porte de B,
2) Por que contratou fulano que vem mostrando um bom desempenho e B não
tem um jogador que se destaca.
Supomos que existam diversos níveis de complexidade de raciocínio e
seus consequentes níveis de argumentação. Desde o raciocínio natural até o
lógico-dedutivo há uma gama, mesmo que não muito vasta, de possibilidades.
O próprio raciocínio natural pode variar da linguagem ordinária, e a argumenta-
ção permanecer no nível folclórico, aos níveis nos quais a experiência de vida e os
muitos exemplos repetidos com acerto são evocados como justificativa.
Supomos que seja possível também ter um nível de raciocínio próximo do
natural, mas já impregnado de algum conhecimento formal faltando apenas a
incorporação de uma terminologia específica. Da mesma forma pode ocorrer a
existência de um raciocínio pré-lógico-dedutivo, ao qual falta uma terminologia
especializada, mas permite entrever o embrião de uma lógica formal.
Por exemplo, é possível que um pai, ou mãe, pouco letrado, mas com boa
vivência social, ao ver o filho efetuar a operação , diga de imediato, que o cálculo
estáerrado. Mas como aprendeu isso na experiência da vida poderá ter dificuldade
para explicar e dirá apenas: “você não está vendo que não pode ser?”.
Pensamos que não se trata de um argumento folclórico porque há oculta em
suas palavras uma lógica racional que, por ser construída fora dos centros acadêmi-
cos, não está sistematizada, mas permite entrever uma compreensão do problema.
Montamos um esquema que permite sintetizar o exposto (fig. 4):

104
Figura 4-Esquema Síntese da Argumentação

Fonte: Elaboração própria

Pierce, conforme já exposto, admite três tipos de raciocínios e, por extensão,


admitimos que a argumentação racional também possa ser analisada sob esses três
aspectos. Convém esclarecer que não tendo como enfoque a Matemática, Pierce
não se atém ao rigor desta ao tratar do raciocínio indutivo. A indução de Peirce não
tem o mesmo estatuto da indução matemática. Ela é constatativa e não conclusiva.
Consideremos os três raciocínios.
Segundo Pierce:
abdução é o processo para formar hipóteses explicativas. É a única
operação lógica a introduzir idéias novas; pois que a indução não
faz mais que determinar um valor, e a dedução envolve apenas as
conseqüências necessárias de pura hipótese. Dedução prova algo que
deve ser; Indução mostra que algo atualmenteé operatório; Abdução
faz uma mera sugestão de que algo pode ser (PEIRCE, 1983, p. 46.
Grifos do autor).

Pensamos ser oportuno inserir um exemplo de abdução. Suponhamos que


um professor de matemática proponha como atividade para os alunos resolver as
operações: a) 15+7= e b) 33+41= cujos resultados são, espectivamente, 22 e 74.
Observe que se trata de adição de números ímpares e os resultados são, ambos, pares.
Resolvidas as operações um aluno pergunta:
-Professor, a soma de dois números ímpares é sempre um número par?
Professor:
- Por que você pensa assim? De onde tirou essa ideia?
105
Aluno:
- Observei nos dois exemplos dados que o resultado era par e supus que
fosse sempre assim (abdução). Fiz o teste para mais outros exemplos e deu certo
(indução, na perspectiva de Pierce).
Nas palavras de Pierce:
A inspiração abdutiva acontece em nós num lampejo. É um ato de
insight, embora extremamente falível. É verdade que os elementos da
hipótese estavam antes em nossa mente; mas é a idéia de associar o
que nunca antes pensáramos em associar que faz lampejar a inspiração
abdutiva em nós (PEIRCE, 1983, p. 51).

Em uma aula de matemática, em um curso universitário, seria exagero afirmar


que ele provou por indução. Todos os seus argumentos permaneceram no nível
abdutivo, no primeiro insight. Considerando, porém, uma aula na educação básica,
especialmente se for aluno do ensino fundamental, pensamos não ser problema
afirmar que ele abduziu e depois fez uma prova (não demonstração) por indução.
Para fazer essa afirmação basta lembrarmos que para Pierce é Indução quando se
pode dizer: até aqui o princípio se mostrou válido.
A Dedução é um argumento que apresenta fatos nas premissas e a conclusão
é levada a cabo a partir desses fatos anunciados nas premissas e por isso se cons-
titui em um “índice do fato cujo reconhecimento é assim compelido” (PEIRCE,
2003, p. 30). As demonstrações apresentadas em “Os Elementos de Euclides” se
enquadram nesse perfil. De alguma forma há uma inferência também na dedução,
porque há uma relação entre o que está suposto nas premissas e a conclusão.
A Indução é, no conceito de Pierce, um argumento que emerge de abduções
ou inferências. Emerge de hipóteses, de experimentos realizados, e conclui-se que
as hipóteses são verdadeiras na medida em que as predições se confirmam. No
entanto essa conclusão pode estar sujeita a modificação na medida em que novos
experimentos são realizados. Essa, a modificação da conclusão, não é uma possi-
bilidade em matemática tendo em vista que, nessa ciência, a indução se baseia em
regularidades de entes abstratos e a conclusão é induzida algebricamente.
Os argumentos indutivos se valem de observações de regularidades e ocorrem nas
conjeturas e nas conhecidas provas por indução. Conjeturar é um argumento indutivo.
Há na academia uma discussão sobre a possível ruptura na passagem da
argumentação para a demonstração, mas entendemos que Pedemonte (2002)

106
procedeu uma análise detalhada sobre isso e uma adaptação do seu estudo
fugiria ao objetivo deste esboço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por se tratar de um esboço teórico talvez não seja oportuno apresentar con-
clusão ou considerações finais. Supomos ser mais pertinente esboçar uma síntese
geral. Nesse caso salientamos que embora não tenhamos discutido a perspectiva
de Pedemonte somos do parecer de que é possível evoluir da argumentação para a
demonstração e evidenciamos isso outros trabalhos por nós produzidos (SALES;
PAIS, 2010; SALES; PAIS, 2011).
Neste espaço nossa preocupação consistiu em apresentar os níveis de argu-
mentação, sua relação com a prova e a demonstração e esboçar a sua função no
âmbito do estudo da Matemática tendo em vista que estudos mais detalhados estão
disponíveis nos textos citados no parágrafo anterior. Visamos também contribuir
para que o professor de matemática da educação básica possa ter elementos para
analisar o nível do argumento apresentado pelo seu aluno.
Como forma de articular a abdução, indução e dedução retomamos o exem-
plo citado em que um suposto aluno abduziu, a partir de dois exemplos, que a
soma de dois números ímpares pode produzir sempre um resultado par. Através
de alguns exemplos mais ele “induziu”, isto é, verificou por indução, que até certo
ponto a sua perspectiva se confirmava, logo, ele “induziu-se” (concluiu para si
mesmo) que o princípio se estendia para além do que lhe era possível experi-
mentar. Imaginemos agora o professor percebendo toda essa articulação entre o
particular e o geral e propondo o seguinte desafio à classe: “procurem dois núme-
ros ímpares cuja soma seja 55”.
É de se esperar que o aluno que fez todo esse percurso racional responda:
“não dá, professor! Tem que dar sempre par”. Temos aí um caso de dedução, pois,
se dois números ímpares quaisquer, quando somados, resulta em um número par,
esse “par” de ímpares cuja soma é ímpar não existe.
Esse aluno usou uma argumentação natural que permite entrever um racio-
cínio lógico bem elaborado. Faltam elementos formais na fala, mas não há inge-
nuidade e nem “tradição” em seus argumentos. Fizeram-se presentes, nessa suposta
experiência didática, a abdução, a indução e a dedução.

107
REFERÊNCIAS
ABREU, Antônio Suárez. A Arte de Argumentar: gerenciando razão e emoção. 11. ed. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2006.
ARSAC, Gilbert, et al. Initiation au Raisonnement Déductif au Collège. Lyon: Presses Universitaires de
Lyon, 1992.
CASABÓ, Marianna Bosch. Un punto de vista antropológico: la evolución de los “instrumentos de represen-
tación” en la actividad matemática. Quarto Simpósio de la Sociedad Española de Investigación en Educación
Matemática. Huelva: Universidade de Huelva, 2001. Disponível em: http://www.seiem.es/publicaciones/
archivospublicaciones/actas/Actas04SEIEM/IVsimposio.pdf Acesso em: 11 jun. 2009.
MEYER, Bernard. A arte de argumentar. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CHEVALLARD, Yves; BOSCH, Marianna; GASCÓN, Josep. Estudar Matemáticas: o elo perdido entre
o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
MONTOYA DELGADILLO, Elizabeth. Etude de la transformation des connaissances géométriques
dans la formation universitaire des professeurs de lycée de mathématiques au Chili. 2010. 197 f., Tese
(Doutorado em Didática da Matemática). Paris: Université Paris Diderot (Paris 7), 2010. OLÉRON, Pierre.
L´Argumentation. 2 ed. Paris: PUF, 1987.
OLÉRON, Pierre. Le Raisonnement. Paris: Presses Universitaires de France, 1977.
PAIS, Luiz Carlos. Notas de aula sobre níveis de argumentação. Campo Grande, MS: 2008. Não publicado.
Não paginado.
PEDEMONTE, Bettina. Etude didactique et cognitive des rapportes de l´argumentation et de la démosn-
tration dans l´aprentissagem des mathetmatiques. 2002. 424 f. Tese (Doutorado em Didática da Matemática).
Grenoble, Fr: Université Joseph Fourier-Grenoble I; Gênova, It: Université de Genova, 2002.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PLANTIN, Christian. A Argumentação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SALES, Antonio. Práticas argumentativas no estudo da Geometria por acadêmicos de Licenciatura em
Matemática. 2010. Tese (Doutorado em Educação). Campo Grande, PPGEDU/UFMS, 2010.
SALES, Antonio; PAIS, Luiz Carlos. A Argumentação nas Atividades de Geometria Desenvolvidas por
Acadêmicos de um Curso de Licenciatura em Matemática. Revista da Faculdade de Educação (Universidade
do Estado de Mato Grosso), v. 13, p. 117-132, 2010.
SALES, Antonio; PAIS, Luiz Carlos. A Argumentação no Estudo da Geometria Euclidiana por Acadê-
micos de Licenciatura em Matemática. In: XIII Conferência Interamericana de Educação Matemática,
2011, Recife/PE. XIII Conferência Interamericana de Educação Matemática-XIII CIAEM. Recife/PE:
Brascolar Gráfica e Editora Ltda, 2011.
TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

108
DIDÁTICA ZORÓ – DA DOCÊNCIA INICIANTE À
DOCÊNCIA EXPERIENTE, TRAJETÓRIA DE UM
PROFESSOR PANGYJẼJ

Agnaldo Zawandu Zoró55


Josélia Gomes Neves56

INTRODUÇÃO

A pesquisa ora apresentada se localiza no contexto das Ciências Humanas


na área da Educação Escolar Indígena, no campo da Didática Intercultural. Trata
de um estudo qualitativo, porque o nosso interesse foi verificar junto a docentes
indígenas do Povo Zoró, como iniciaram suas atividades em sala de aula. Neste
tipo de pesquisa, a investigação ocorre no próprio espaço onde está o problema,
pois ele está diretamente relacionado à situação do estudo: “Os investigadores
qualitativos frequentam os locais de estudo porque se preocupam com o contexto.
Entendem que as acções podem ser melhor compreendidas quando são observadas
no seu ambiente habitual de ocorrência. [...]. (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 48).
Neste texto, apresentamos uma parte da pesquisa desenvolvida no âmbito
do curso de Especialização Lato Sensu ofertada pelo Departamento em Educa-
ção Intercultural (DEINTER), da Universidade Federal de Rondônia, Campus
de Ji-Paraná. O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foi desenvolvido no
período de março 2018 a outubro de 2021 na Terra Indígena Zoró no município
de Rondolãndia, estado do Mato Grosso (ZAWANDU ZORÓ, 2021).
Após sua finalização foi apresentado em novembro de 2021 ao Programa
de Pós-Graduação em Educação Escolar Indígena (PPGEI). Os participantes
foram 3 (três) professores que atuam na Escola Estadual Zawã Karej e moram na
Aldeia Gala Ãjut. No entanto, considerando o recorte deste escrito, apresentaremos
apenas a reflexão de um docente, o mais experiente do grupo.
Os interesses teóricos possuem relação direta com o tema e contribuem
para um aprofundamento da Didática em contextos indígenas e às teorias peda-
gógicas interculturais (FREIRE, 1996; PIMENTA, 1997; 2012; GARCIA,
2010; INFORSATO; SANTOS, 2011). Foram considerados também textos
55
Especialista (UNIR). Professor indígena (SEDUC-MT). CV: http://lattes.cnpq.br/8805558695317581
56
Doutora em Educação Escolar (UNESP). Professora (UNIR). CV: http://lattes.cnpq.br/1098108142638272
109
da legislação que regulamentam a Educação Escolar Indígena e outros docu-
mentos oficiais (BRASIL, 1998);

CONTEXTUALIZAÇÃO E DESAFIOS PARA A DIDÁTICA ZORÓ


NA PERSPECTIVA DOCENTE Pangyjẽj

Me movo como educador porque, primeiro me movo como gente.


Posso saber pedagogia, biologia como astronomia, posso cuidar da
terra como posso navegar. Sou gente. Sei que ignoro e sei que sei. Por
isso, tanto posso saber o que ainda não sei como posso saber melhor o
que ainda já sei. E saberei tão melhor e mais autenticamente quanto
mais eficazmente construa minha autonomia em respeito à todos
outros. (FREIRE, 1996, p. 58).

Antes do contato o Povo Zoró tinha a sua forma própria de ensinar e


aprender. Adultos e crianças estavam sempre juntos. Em todos estes momentos a
observação, a orientação, a demonstração e os primeiros fazeres estavam presentes.
Ações importantes e necessárias para assegurar a sobrevivência física e cultural da
coletividade. Os documentos oficiais apontam que a educação sempre existiu como
projeto societário das populações originárias: “Desde muito antes da introdução
da escola, os povos indígenas vêm elaborando, ao longo de sua história, comple-
xos sistemas de pensamento e modos próprios de produzir, armazenar, expressar,
transmitir, [...] e reelaborar seus conhecimentos [...]”. (BRASIL, 1998, p. 22).
A situação depois do contato trouxe muitas mudanças para os povos indígenas
e uma delas foi o saber formal através da escola. A atuação dos movimentos foi
importante para assegurar aspectos importantes de relações interculturais na Cons-
tituição federal de 1988. Assim, a razão da implantação da escola nas aldeias Zoró
“[...] surgiu com a necessidade dos indígenas em lidarem com o entorno regional [...].
É uma instituição reivindicada e defendida pela comunidade como um instrumento
importante na luta pela autonomia do Povo”. (DIAS, 2017, p. 16). Mas, de que
forma a escola pode assumir este papel de colaborar com as lutas do Povo Zoró?
Talvez por meio de estudos como este que foi elaborado no curso de Espe-
cialização Lato Sensu em Educação Escolar Indígena por meio do Departa-
mento de Educação Intercultural (DEINTER) da Universidade Federal de
Rondônia. A finalidade da pesquisa foi analisar a trajetória inicial de docentes
Zoró, os obstáculos pedagógicos surgidos neste período e como têm construído
a profissionalidade experiente.
110
Vale salientar que o povo Pangyjẽj conhecido como Zoró, é falante da língua
pertencente à família linguística Mondé do tronco linguístico Tupi, habitantes da
Terra Indígena Zoró, localizada no município de Rondolândia, Estado de Mato
Grosso. Sua homologação foi assegurada através do Decreto nº 265/1991. Sua
população atual corresponde a 770 (setecentas e setenta) pessoas que se organizam
em 24 (vinte e quatro) aldeias, dentre estas, a Aldeia Gala Ãjutj que em na língua
indígena significa, “floresta em pé”. Constitui o
Este aldeamento foi criado em 2015 pelo clã Pangỹj Kirej núcleo familiar
originado por Benamor Dabyt Zoró e Marina Zat Kãj Zoró. É composto por
28 pessoas todas falantes da língua Pangyjẽj com um total de 6 (seis) famílias.
A aldeia conta com a Escola Municipal Indígena Zawyt Wawã - Anexo 5. As
razões que mobilizaram a criação desta aldeia levaram em conta vários motivos:
a comunidade decidiu viver mais próximo da floresta em uma região rica em
produtos extrativistas como castanha, copaíba, dentre outros; bem como por
ser um local de caça abundante e ainda a necessidade de ampliar a vigilância
nos limites da Terra Indígena.

Figura 1 – Vista parcial da Aldeia Gala Ãjutj

Fonte: Agnaldo Zawandu Zoró (2021).

111
Foi neste contexto que elaboramos o referido estudo que foi pensado a
partir dos problemas evidenciados no início da carreira docente na perspectiva
da Didática Intercultural. Trata de uma compreensão pedagógica em construção
situada no âmbito da Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Univer-
sidade Federal de Rondônia. Sua principal inspiração decorre das relações entre
o aprender e o ensinar comunitário porque inferimos que muitos aspectos destas
formas de educar estão presentes no espaço escolar como estratégica de sentidos
ao saber formal. Algumas especificidades deste modo de pensar esta concepção
formativa vem se delineando no espaço da educação escolar indígena.
Nesta perspectiva, o educar não se limita a atuação docente, pois os sabe-
dores e sabedoras indígenas também contribuem para as aprendizagens culturais-
-formais desde o surgimento das primeiras escolas indígenas. Assim, a Didática
Intercultural, inspirada nos processos próprios dos saberes ancestrais ameríndios
é um componente curricular que discute temas referentes às infâncias, teorias da
aprendizagem, função social da escola, às relações docência/discencia, o planeja-
mento pedagógico, os processos avaliativos e as especificidades da carreira docente
indígena - ingresso, formação, remuneração, saúde e relações com a comunidade.
Neste contexto, por meio dos memoriais de profissionalidade docente a
Didática Intercultural se interessa em estudar as trajetórias iniciais na profissão,
a construção da identidade docente e a experiencia profissional. A esse respeito,
há estudos interessantes como o de Huberman (2000) que apresenta uma siste-
matização sobre o ciclo de vida profissional docente. De acordo com este autor a
carreira docente pode ser caracterizada por diferentes fases de atuação: entrada,
estabilização, diversificação, serenidade e desinvestimento.
Mas, será que este estudo ajuda a entender a trajetória de um educador ou
educadora indígena? Avaliamos que a definição da entrada na profissão é inter-
pretada como a fase do professor iniciante que vai de 1 (um) a 3 (três) anos, é
caracterizada pela sobrevivência e descoberta. Estes sentimentos são compartilhados
frequentemente por docentes nos processos de formação. Em determinadas situa-
ções informam que em função do desconhecimento de determinados conteúdos
aquele assunto não é discutido em sala de aula.
Assim, é possível inferir que a área de atuação docente intercultural é carac-
terizada por um conjunto de exigências que envolvem o domínio de saberes e a
reflexão permanente sobre a prática pedagógica, pois é: “[...]. É na leitura crítica
da profissão diante das realidades sociais que se buscam os referenciais para modi-
112
ficá-la” (PIMENTA, 2012, p. 19). Mas, até chegar aí há um grande caminho que
precisa ser percorrido, que resulta de elaborados processos em que se articulam o
trabalho docente e a formação em contínuos processos de ação, reflexão e ação:
Espera-se, pois, que mobilize os conhecimentos da teoria da educação
e da didática, necessários à compreensão do ensino como realidade
social e, que desenvolva neles, a capacidade de investigar a própria
atividade para, a partir dela, constituírem e transformarem os seus
saberes-fazeres docentes, num processo contínuo de construção de
suas identidades como professores. (PIMENTA, 1997, p. 6).

Nesta direção, há um entendimento pedagógico que é preciso uma atenção


especial ao professor ou professora no início da carreira como política pública
específica. Uma possibilidade formativa que tem sido chamada em outros países
de Indução Docente, a finalidade principal é criar meios de transição entre a
condição de professor iniciante e à docência profissional:
A necessidade de desenvolver programas de indução ou inserção para
o professorado principiante já se converteu numa política educativa
assumida por um número crescente de programas educativos [...]. Na
América Latina, diferentes países se uniram na última década a esta
estratégia formativa que vem a considerar o período de indução como
um período diferenciado no processo de converter-se em docente.
Um período em que os professores são professores e ao mesmo tempo
aprendizes. Ensinam e aprendem em contextos geralmente mais
complexos e vulneráveis que o resto dos docentes com experiência.
[...]. (GARCIA, et al, 2016, p. 146).

Analisamos que é necessário retomar as trajetórias docentes como forma de


refletir as características que marcam o início destas caminhadas. Este processo
possivelmente possibilita a elaboração de propostas como essa da Indução Docente.
Neste sentido, é que propomos o referido estudo o que exigiu a participação de
um docente indígena Zoró para colaborar na investigação. A pesquisa considerou
a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que estabelece
as regras da ética na pesquisa através da assinatura do participante no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O professor participante é identi-
ficado por seu próprio nome conforme autorização prévia.
A técnica metodológica adotada foi a entrevista narrativa. Trata de um
conjunto de possibilidades que buscam “[...] identificar e refletir sobre aspectos
característicos a partir dos quais produzem histórias cruzadas entre o individual
113
e o contexto social coletivo. [...] a narrativa é fundamental para a construção da
noção de coletivo. [...]”. (EUGÊNIO; TRINDADE, 2017, p. 121).

DESAFIOS PARA A DIDÁTICA ZORÓ – PERSPECTIVA DE UM


DOCENTE INICIANTE QUE APRENDEU COM A EXPERIÊNCIA

O professor constrói sua performance a partir de inúmeras referências.


Entre elas estão sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica,
sua convivência com o ambiente de trabalho, sua inserção cultural
no tempo e no espaço. Provocar que ele organize narrativas destas
referências é fazê-lo viver um processo profundamente pedagógico,
onde sua condição existencial é o ponto de partida para a construção
de seu desempenho na vida e na profissão. (CUNHA, 1997, p. 189).

O docente indígena que contribuiu para a sistematização do presente


estudo foi o professor Francisco Embusã Zoró. Tem 45 anos, atua com turmas
de 1º a 4º ano do Ensino Fundamental. Estudou na primeira edição do Projeto
Açaí – curso de formação indígena em nível médio realizado pela Secretaria de
Estado da Educação de Rondônia (SEDUC). Após a conclusão foi aprovado no
Programa de Educação Superior Indígena Intercultural por meio do processo
seletivo da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) no primeiro
semestre de 2008. Sua formação é em Línguas, Artes e Literatura. Possui 29 anos
de experiência em sala de aula.
No intuito de valorizar a língua materna do povo que é a Pangyjẽj, como
gesto decolonial, assim como de adotar a perspectiva intercultural que caracteriza
as relações interétnicas na atualidade, no decorrer deste trabalho consideraremos
tanto a língua portuguesa como a língua indígena. Neste sentido, a entrevista
realizada no dia 15 de maio de 2021 na aldeia Gala Ãjut, Terra Indígena Zoró,
no município de Rondolândia, estado do Mato Grosso, foi realizada em língua
Pangyjẽj considerando que futuramente poderá ser lida por outros professores e
professoras da comunidade Zoró:
Bala ungaj panga. É, ma formação, forma mã ungaj Língua e artes e
literatura. 29 anos ka unga professor nã. Bala tere m ã jã, jã mem curso
manga um wabuj mena bera kala ana te panzena, ebu ma ej mã uma
kubá, anã pangena preparar aula kaj meneã baka bala karea, plano mangé
kaj, epi separa bywej tere pare kaj ki epi bywej jã tama serie pygywa mãj
kaj, enã mã bala gusep tigim é tasep tingim ká bude, epi bere kalé ikini
buwena bala tere jã jã pangusep tingij nã ena panderej comunidade jande
114
ungajman ka ebu mã anã te panzenã li niã ebu mã ma ej pi uma kubá,
ebu mã ma ej pi uma kuba. Ena epi mã men jã balap we xikap ka letra
maiúscula kaj ki enaté jã we maba ki te etigide de panzena bala começa
letra maiúscula mã ewe kaj ma duvida tere mã janã. Bere kala wade ena
man pi mene ka mena jã ma ej pi we ma ã bu zenã jã Ligia ej pi Ligia
bu jena etigi FUNAI pat nã mem anã liã man nã ebu mã epi we ma,ã
na bu pangena liã mene mã ã epi bum ã epi já epi curso ka gubá ki ki jã
IAMA ej pare ka etede ebu mã ana budea mene malu epi mawe maki curso
nã ki. Ma plano manga é mem é ana mene kaj tenzena bywej kajali kinã
mene manga unga ena te a men mã plano nã ete buzena jã separado nã
tama série xig ki epi tama serie tawap kaj ki, plano tarade mi tere unga
tama kubá, jã bere kala wapia mene ka epi jã gyja um we we sakena ena
té jã mem jã plano um ka mene ka. Bala tuma Waratã ej ta wade mem jã
COMIM bu pajena e ej kaj, COMIM pare manga manga tuma bala ana
pangena bywej makuba lia mene. Epi bu tumã IAMA ej pare ka wade tuja
é COMIM ej pare kaj 1993 por ai mi epi tujena epi IAMA ej pare kaj epi,
é me mi det tujena IAMA ej pare kaj epi memi det tjena IAMA pare kaj
já am unga weta, epi bu tuma IAMA pare pi é projeto Açaí binga ki epi
tere bu tujena graduação manga tukalip pi, makuj tere m anã estado kuj
tere mato grosso ka UNEMAT ka Barra do bugres ka ebu mã gali 2012
mi nambua. É bapkyp angena mã formação nã.Ate bu tujena mawe xig
maki puã jã ma ej jande tupere ambakata ki mene xig maki bu jena gulua
tere etgi glua tere, wexig maki tumenã antes de COMIM kaja, awe jana
té ma ej mã tupereambakata ebu tujena tyryte pa a kuj ki mawe kuj ki
tuka ki ki mem CIMI ej bujena enate jã mawe maki bywej makube maki.
Ena unga akuba te tasande gusep tingej nã mãj kaja mejaka jã am te zana
wemi zali pé makia te karalia unga jã ujere ka takaja, man ga bu menga
ana té budea we kaj matigi karalia. Bala pangena pambere kalá , wade
zana we mamba lia ena té. Ena unga takuru kaja jina té mej karalia,
jã wetere nã panzande jã wetere nã panzande bywej makubé kala mene
ka.Professor nã panzali bu panzena preocupado nã bywej kaj puã, ena
mã etigia ana tenza we maki parat mandat tigi ungaj nãlia bu wena
um ité jã professor nã mene kala tere mena ena tea, professor nã tenzena
liã jã ana tenza gyja we manga naliã bu we na enate puã ebã já gyje ka
te bakup u té jana.

O relato do Francisco Embusã Zoró em língua indígena apontou vários


elementos importantes para pensar a Didática Zoró, uma delas foi o sentimento
de preocupação e insegurança no início da carreira. As leituras a esse respeito con-
firmam que, “Os professores iniciantes necessitam possuir um conjunto de ideias e
habilidades críticas, assim como capacidade de refletir, avaliar e aprender sobre seu
115
ensino de tal forma que melhorem continuamente como docentes. [...]”. (GARCIA.
2010, p. 27). Na tradução para a língua portuguesa observamos que o docente infor-
mou quais foram os principais desafios que enfrentou em seu trabalho pedagógico:
[...]. A minha primeira dúvida, surgiu quando iniciei o meu trabalho
em sala de aula porque eu não tinha nenhuma formação na área. Não
sabia como dar aula, mas os outros colegas de trabalho que tinham mais
experiências que me ajudaram nas minhas dúvidas e na preparação
de planos de aula. A segunda dificuldade foi quando a minha comu-
nidade me indicou para ser professor, não tinha nenhuma noção por
onde começar, mas procurei outras pessoas para me ajudar. A terceira
dúvida era não saber determinados conhecimentos, como por exemplo
a função de letra maiúscula e letra minúscula, não sabia explicar para
os meus alunos a diferença. Eu superei essa dificuldade com ajuda
da Lígia funcionária da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Na
época ela trabalhava no setor da educação e me ajudou a superar essa
dificuldade. (EMBUSÃ ZORÓ, 2021, p. 1).

A entrevista narrativa é um recurso importante na educação porque possi-


bilita aproximações com as experiências docentes. Como saber das dúvidas que
emergem diante das primeiras atividades em sala de aula, principalmente sem um
preparo prévio? Foi possível compreender que o início do trabalho docente do
professor Embusã Zoró foi marcado por preocupações sobre o fazer pedagógico.
Além disso, havia as expectativas da comunidade, quanto a função social da escola
indígena, pois: “Todo planejamento educacional, para qualquer sociedade, tem de
responder às marcas e aos valores dessa sociedade. Só assim, é que pode funcionar
o processo educativo, ora como força estabilizadora, ora como fator de mudança.
[...]”. (FREIRE, 1986, p. 23).
Outro elemento, apontado foi o desconhecimento de determinados conteúdos
relacionados às culturas ocidentais. Um aspecto que demonstra as exigências da
escola indígena, na medida em que se caracteriza justamente pela feição intercul-
tural: “[...] é indispensável que o professor domine os saberes, que esteja mais de
lição à frente dos alunos e que seja capaz de encontrar o essencial sobre múltiplas
aparências, em contextos variados”. (PERRENOUD 2000, p. 27). Aos poucos esta
situação foi se modificando devido a colaboração de outros colegas de profissão.
Assim, o relato do professor Embusã aponta que a Didática Intercultural
Zoró para ser bem sucedida precisa partir inicialmente da realidade discente, uma
vez que para a compreensão de um determinado assunto é preciso começar por
aquilo que os (as) estudantes já conhecem. Essa interação de culturas, contribui
116
para as aprendizagens escolares. Este jeito de trabalhar pode ser demonstrado
através do conteúdo “tipos de paisagem”, por exemplo: como é o tipo de paisagem
que tem em torno da aldeia? Possivelmente os alunos e alunas vão descrever o tipo
de mata que observam na comunidade como palmeiras de tucumã/maluj, a árvore
“roxinho”, copaibeira/mangawip a partir daí é possível discutir melhor o tema.
No decorrer do diálogo, provavelmente os (as) estudantes vão falar na língua
indígena e depois o professor pode ir acrescentando outros elementos que vão
ampliar o seu conhecimento sobre o que está sendo discutido. Sobre as palmeiras
de tucumã/maluj podem participar da discussão informando sua utilidade para a
produção de artesanato como anel, colar, brinco, etc. Além disso, podemos explicar
que este vegetal depende do tipo de solo, que pode crescer até 15 metros e o seu
nome científico é Astrocaryum aculeatum.
Em relação à formação docente, Francisco Embusã Zoró disse que se lem-
bra do primeiro curso que participou sob a coordenação do Conselho de Missão
entre Povos Indígenas (COMIN) juntamente com outros professores por volta
de 1983. Depois participou do curso promovido pelo Instituto de Antropologia
e Meio Ambiente (IAMA), onde pode aprimorar ainda mais a visão de como
trabalhar em sala de aula. Conforme a antropóloga idealizadora da proposta a
finalidade principal era: “[...] formar professores indígenas que possam dar aulas
em suas aldeias, para crianças e adultos. Foram dados dois cursos de um mês de
duração, em 1992 e 1993, ministrados por uma equipe de lingüistas, professoras
de português, matemática, artes e antropólogos. [...]”. (MINDLIN, 1994, p. 234).
Depois de certo tempo continuou estudando, ocasião em que participou do
Projeto Açaí, formação em nível médio ofertada pelo governo de Rondônia. Pos-
teriormente, ingressou na educação superior onde cursou a Licenciatura Indígena
Intercultural pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) na cidade
de Barra do Bugres na habilitação de Línguas, Artes e Literaturas cuja conclusão
ocorreu em 2012. Este processo ocorreu de forma simultânea, ao mesmo tempo
em que estudava já trabalhava como professor na comunidade Zoró.
Considerando a sua experiência docente de quase 30 anos na educação escolar
indígena no contexto Zoró, o professor Embusã analisa que o começo do trabalho
em sala de aula é realmente desafiador. No entanto, aconselha os profissionais
iniciantes a enfrentarem estes momentos marcados por inseguranças porque as
aprendizagens vão sendo aos poucos construídas durante o processo. Não devem
descuidar de seus alunos e aquilo e nem daquilo que precisam e devem aprender.
117
Eu digo aos professores e professoras iniciantes que não tenha medo,
o professor não pode pensar negativo, mas no decorrer da carreira vai
crescendo como profissional. Isso eu falo por experiência, porque já
enfrentei várias dificuldades. Nós como professores a nossa preocupação
é com os alunos, todos os dias tentamos melhorar a nossa didática. Assim
é a função do verdadeiro professor que se preocupa com seus alunos
para conseguir uma boa aprendizagem. (EMBUSÃ ZORÓ, 2021, p. 1).

Uma das reflexões significativas que aprendeu durante o tempo em que


estudava e atuava como professor foi que uma boa didática pode ser pensada a
partir do compromisso com o planejamento escolar. É neste momento, antes da
aula acontecer que o profissional da educação toma decisões importantes referen-
tes à definição do tema, preparação das atividades e organização dos assuntos de
acordo com o nível de conhecimento de seus alunos e alunas, confirmando que:
A preparação da aula, aqui entendida como todo o momento que propicie
aprendizagem, é o grande trunfo para que os alunos possam aproveitá-la
ao máximo, mantendo uma relação eficaz com os conteúdos para poder
apreender aquilo que o professor propôs como objetivos de ensino.
[...], não se pode aceitar que a aula seja um momento de improviso, no
qual o professor aja livremente sem fazer conexões e articulações com
assuntos já desenvolvidos, com os conhecimentos prévios dos alunos,
sem estrutura de sucessões de atividades que não cumpram propósitos
de aprendizagens definidos. (INFORSATO; SANTOS, 2011, p. 86).

O relato do professor Embusã contribui para pensarmos a Didática Zoró na


medida em que ajuda a entender os sentimentos docentes no início da profissão e o
seu amadurecimento no decorrer de sua trajetória profissional. Assim, em um contexto
intercultural o trabalho pedagógico evidencia que há especificidades que precisam
ser consideradas: a responsabilidade diante das expectativas da comunidade uma vez
que sua indicação para a sala de aula partiu dela; as dúvidas quanto a dialogia entre
os conteúdos da tradição cultural e aqueles das sociedades ocidentais, por exemplo.
Essa situação é diferente da docência “branca” ou não indígena, porque embora
também enfrente este problema, geralmente há uma formação prévia que pode
contribuir nestes momentos, além de dispor de uma estrutura escolar – diretor (a),
coordenador (a) pedagógico, por exemplo, em pode buscar apoio. Nos territórios
indígenas, em algumas situações a escola se limita ao grupo de docentes e estudantes.
Nestes momentos, vivencia aflições de forma solitária sem outras interlocuções
que possam ajudar no trabalho de mediação cultural, o que leva a reproduzir formas
de atuação experenciadas quando iniciou sua escolarização: “Diante destas situações,
118
o professor iniciante tem silenciado suas angústias em suas próprias salas de aula,
sobrevivendo, na maioria das vezes, por meio de imitações dos seus próprios profes-
sores. Assim, não apresenta condição para refletir sua prática a partir das teorias estu-
dadas”. (SOUZA; ROCHA, 2017, p. 8974). Temas que precisam ser aprofundados.
Outra observação que destacamos no decorrer da reflexão do professor
Embusã e que é importante para a História da Educação Escolar Indígena diz
respeito ao seu processo de formação docente. Ela ocorreu a partir da participação
de outros parentes com os estudos no IAMÁ, Projeto Açaí e depois na UNEMAT.
Ele fez parte da geração histórica dos primeiros docentes indígenas de Rondônia
e noroeste do Mato Grosso, foi um dos primeiros professores do povo Zoró. Uma
pessoa que sabe da importância da educação, da língua Pangyjẽj e se preocupa com
a aprendizagem de seus alunos e alunas. Talvez porque também tenha vivenciado
momentos importantes da História do povo Zoró.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização deste estudo surgiu da necessidade de refletir a situação do


professor ou professora indígena iniciante no contexto Zoró Pangyjẽj. Neste
sentido, buscamos analisar o começo da carreira docente Zoró para identificar os
obstáculos que marcam este período e a progressiva aquisição de saberes didáticos
que qualificam o docente como experiente.
A referida pesquisa de cunho qualitativo foi desenvolvida na Terra Indígena
Zoró, em Rondolândia, Mato Grosso, no período de março 2018 a outubro de
2021, prolongada por causa da pandemia da covid-19. Neste texto destacamos
a participação de um dos professores que colaborou com o estudo por meio da
entrevista narrativa, ele atual como docente na Escola Estadual Zawã Karej.
Retomando o objetivo proposto entendemos que o começo da profissão
docente Zoró, tem sido marcado por vários desafios como a elaboração do planeja-
mento e relacionado a isso, a realização das aulas. Analisamos que em um contexto
indígena o trabalho pedagógico exige questões específicas que precisam ser con-
sideradas, tais como: a responsabilidade de responder às demandas esperadas pela
comunidade, coletivo responsável por sua indicação para as atividades em sala de
aula, bem como, a habilidade de articular o conhecimento entre os dois universos
culturais e linguísticos – os saberes Pangyjẽj e os saberes ocidentais, por exemplo.
Concluímos que a formação em nível médio e na graduação em uma pers-
pectiva específica e diferenciada tem contribuído para a profissionalização docente
119
Zoró, com impacto para a melhoria das atividades na escola indígena. Uma estra-
tégia que possibilita uma maior segurança para o trabalho didático e as finalidades
esperadas pela comunidade. No entanto, é necessário a existência dos processos
continuados, meios de atualização dos conhecimentos docentes, de redefinição do
currículo e da construção de aprendizagens necessárias a nova geração.

REFERÊNCIAS
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métodos. Portugal: Porto Editora, 1994.
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interdisciplinar nas escolas Pangyjẽj. Orientadora: Josélia Gomes Neves. 36f. Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC). Especialização Lato Sensu em Educação Escolar Indígena do Departamento de Educação
Intercultural (DEINTER), UNIR, Campus de Ji-Paraná, 2021.
120
O POVO INDÍGENA ARARA KARO E O SEU
PRINCIPAL RITUAL CULTURAL - WAYO AKANÃ,
A FESTA DO JACARÉ

Marli Peme Arara57


Josélia Gomes Neves58

INTRODUÇÃO

O estudo ora apresentado foi elaborado junto ao Povo Indígena Arara Karo,
habitante da Terra Indígena Igarapé Lourdes, no município de Ji-Paraná, em
Rondônia no período de junho de 2015 a setembro de 2016. O recorte para este
escrito envolve dois aspectos: a historiografia do referido povo e os antecedentes
históricos da festa do Jacaré. (ARARA, 2016).
Os Arara constituem uma sociedade indígena da Amazônia que se autode-
nomina Karo, composta por aproximadamente 400 pessoas, organizadas nas aldeias
Pajgap e Iterap, localizadas na Terra Indígena Igarapé Lourdes em Ji-Paraná, estado
de Rondônia. Sua língua materna pertence ao tronco linguístico Tupi Ramarama,
a 2ª língua falada pela maioria das pessoas é o português.
O Wayo Akana ou a Festa do Jacaré é realizada periodicamente na época do
verão, ocasião em que há uma mobilização coletiva que organiza esta atividade
cultural. Considerando a importância deste ritual é que foi proposto o seguinte
estudo pela primeira autora, uma pesquisadora indígena e a segunda autora que
acompanha esta sociedade étnica há cerca de 15 (quinze) anos, elementos que
serão levados em conta neste escrito.
Constitui uma parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) desenvol-
vido na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) na Licenciatura em Educação
Básica Intercultural sob orientação da segunda autora. Foi elaborado na perspectiva
da educação crítica ou problematizadora (FREIRE, 1987) no âmbito da área da
Educação Escolar Intercultural no Ensino Fundamental e Gestão Escolar, habi-
litação do curso que forma a docência dos anos iniciais da escolarização.
Embora o tema Festa do Jacaré já tenha sido discutido por outros pesqui-
sadores e pesquisadoras em diferentes visões (MINDLIN, 2001; ISIDORO,
57
Graduada (UNIR). Professora indígena (SEDUC). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6001-0708
58
Doutora em Educação Escolar (UNESP). Professora (UNIR). CV: http://lattes.cnpq.br/1098108142638272
121
2006; PAULA, 2008; NEVES, 2009; SANTOS, 2015), compreendemos que
é importante a análise por uma intelectual indígena Arara, enquanto impor-
tante recurso de protagonismo e visibilidade étnica, com potencialidade para
ser trabalhado em sala de aula.
Em relação à metodologia o estudo se caracterizou em uma perspectiva
qualitativa, um recurso que: “Compreende um conjunto de diferentes técnicas
interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema
complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos
fenômenos do mundo social [...]”. (NEVES, 1996, p. 1). Nesta direção, realiza-
mos um levantamento bibliográfico no intuito de localizar fontes que de alguma
forma disponibilizassem elementos sobre a comunidade Arara em interface com
a pesquisa autobiográfica porque ela envolve: “[...] Histórias de Vida, Biografias,
Autobiografias, Memoriais - não obstante se utilize de diversas fontes, tais como
narrativas, história oral, fotos, vídeos, filmes, diários, documentos em geral, reco-
nhece-se dependente da memória”. (ABRAHÃO, 2003, p. 2).
Esta concepção metodológica não se limita à coleta de dados, mas assume
um papel formativo para todos os participantes do estudo, uma vez que: “As pes-
soas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e
criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos
outros [...]”. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 27). Este sentimento esteve
presente no decorrer do estudo pois concebemos as narrativas indígenas como
relevantes fontes de conhecimento principalmente, porque os sujeitos participaram
ativamente do ritual em discussão: Pajé Cícero Xia Mot Arara, Luisa Arara, José
Dutra Yohwãy Arara, Maria Ora Yõ Arara, Pedro Arara e Carlão Arara.

CONTRIBUIÇÕES À HISTORIOGRAFIA ARARA KARO: VIDA


TRIBAL, DESALDEAMENTO E RETORNO À VIVÊNCIA
COMUNITÁRIA

Neste primeiro tópico, apresentamos alguns elementos da História do Povo


Arara Karo de Rondônia que foi elaborado a partir de narrativas dos sabedores e
sabedoras da etnia obtidos a partir do que foi estabelecido na Resolução nº 466/2012
que trata da ética na pesquisa. Incluímos também um relato relevante de Pedro
Arara registrado pela antropóloga Betty Mindlin (2016) sobre o tema. Envolve a
vida do Povo em tempos imemoriais organizadas por marcadores próprios, depois

122
discute as invasões, desaldeamentos e o trabalho escravo nos seringais, por último
os esforços do retorno à vivência comunitária por volta de 1976.
Para os Arara o Povo da atualidade resultou de um evento sobrenatural
oriundo de um processo de renascimento. De acordo com a narrativa do Pajé
Cícero Xia Mot Arara, em tempos outros, o céu caiu sobre os ancestrais Arara
e tudo escureceu. Nisso apareceram vários bichos como onça, tatu, porco, cutia,
paca, pássaros, todos eles adivinharam que o céu ia cair. De repente, chegou o tal
de Xa’wãt, conhecido pelos brancos6 com o nome de Mapinguari e começou a
devorar as pessoas. Depois o pajé ouviu uma voz que dizia, “Sai, sai, pega sua filha”.
Assim o céu caiu e já não existia mais ninguém pois o Xa’wãt já tinha comido
todos, restaram apenas o pajé e sua filha para recriar o Povo Arara. Ele ficou com
ela em cima de um pé de açaí. Os velhos contam que a sorte é que o pajé casou
com sua própria filha e a partir daí, foi possível o reaparecimento do povo Arara
em seu território tradicional onde é atualmente o município de Ji-Paraná.
Os relatos dos participantes59 do estudo de forma geral informam que
antigamente os indígenas da etnia Arara Karo não tinham um lugar determi-
nado para morar considerando o modo de vida nômade. Mas, se encontravam
em épocas específicas em antigas aldeias, como: Iyá Perot ká/Pedra Cascalhenta,
Kanã Opi/Terra Vermelha, Xapîya Korokôtkã/Escrotos Leves. Neste contexto,
um dos aspectos de fundamental importância na cultura era a presença do líder
espiritual, o Pajé. Um diferencial Arara dentre outras etnias indígenas cujos pajés
foram associados ao diabo, uma ação direta das seitas evangélicas fundamentalistas
que provocaram a sua destruição no interior aldeias.
Nesta direção, Cícero de forma muito corajosa aceitou a decisão dos espíritos,
a de ser a autoridade religiosa dos Arara, ser o Pajé60. Este trabalho exige muitos
sacrifícios, dentre outros desafios, o de enfrentar o sobrenatural através dos animais
na floresta. Para os Arara ser Pajé é responder a um perfil específico: ser alguém
considerado boa pessoa, honesta, justa, generosa que possa perceber e dialogar com
outros seres para poder cuidar adequadamente de seu povo. Cicero se saiu tão bem
em sua atuação que com o tempo ensinava o ofício de Pajé a outros escolhidos:
[...]. Manuel teve como guia seu cunhado Cícero Tiamot [...]. Tiamot
ensinou Manuel a enfrentar e dialogar com as araras, macacos, papa-

59
Vitória Naxap Wêt Arara, Maria Ora yô Arara, Firmino Xit Xabat, Cida Yari Arara, Procópio Na ´Xot Wêt Arara, Pedro
Arara, Paulo Orok mãn Arara, Maria Arõx Arara, Benedito Yõn Péw Arara e Fermino Ot Xãra Arara.
60
Infelizmente o Pajé Cícero Arara nos deixou no dia 20 de junho de 2020. Como tantos outros povos indígenas fomos
surpreendidos com a pandemia da covid-19 que cobriu de luto nossa comunidade. Uma perda irreparável.
123
gaios, lontras, onças, todos os animais que não são apenas bichos, mas
seres do além, de quem não se pode ter medo, sob pena de adoecer.
Manuel, como os outros pajés, trilha o Caminho das Almas, o Narawá
Nekam [...]. Conta-nos que veste a roupa das onças, o couro dos
espíritos, metamorfoseia-se em onça, anda no meio delas. Quando
em sua forma humana, o pajé encontra uma onça que é também
pajé. Se tem medo, atira, e noutro dia descobre que não se tratava de
uma onça, mas de um colega pajé, que surge na aldeia, ferido. [...].
(MINDLIN, 2016, p. 333).

Até meados do ano passado o Povo Arara contava com o trabalho de Cícero
Xia Mot Arara, que nasceu na região de Ji-Paraná por volta de 1936, como já
mencionado, o território tradicional de perambulação dos Karo. Era um dos histo-
riadores desta etnia. Sabia das lutas e dos tempos difíceis vividos pelos Arara com
outros povos e principalmente dos embates com os “brancos”, os não indígenas.
Cícero viveu nas aldeias e sofreu a dispersão provocada pelo contato com grupos
não indígenas. Neste sentido, com outros mais velhos afirmou que o primeiro
branco que o Povo conheceu foi um homem chamado Barros do Seringal Santa
Maria. Isso aconteceu durante uma travessia do Rio Machado em que os indí-
genas formavam seus grupos para andar na mata. Contam que foi a equipe do
Benedito Arara que encontrou o não indígena e voltou para a maloca para avisar
os parentes daquele diferente “outro”.
Assim, a memória Arara aponta que em um determinado momento pessoas
desconhecidas tomaram conta de seus territórios e organizavam estes espaços em
seringais com diferentes “patrões”. Era o chamado 2º Ciclo da Borracha que para
o Povo significou um dos principais marcos de reedição do sofrimento Karo, o
que nos leva a interpretá-lo como uma “situação-limite”. De acordo com Paulo
Freire em Pedagogia do Oprimido, trata de um conjunto de ocorrências que: “[...]
se apresentam aos homens [e mulheres] como se fossem determinantes históricas,
esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se.
[...]”. (FREIRE, 1987, p. 60). Foi nesta época que doenças desconhecidas provo-
caram muitas mortes nos aldeamentos. Além das enfermidades, foi neste difícil
tempo com o seringalista Barros que o Povo Arara ouviu e teve que aprender pela
primeira vez o duro significado da palavra “patrão”. De início não sabiam bem o
que queria dizer, mas com o passar do tempo e por meio de duras experiências
entenderam que significava algo muito ruim, alguém que provocava medo e terror:

124
Primeiro branco que teve contato com os Arara foi o velho Barros.
Apareceu na aldeia [...]. Depois foram (os Arara) trabalhar no serin-
gal, com o patrão. O patrão não mandava mercadoria para eles, não
tinha feriado, tinha que trabalhar todo o tempo para poder pagar a
mercadoria que foi comida. Mesmo assim, o patrão ficava reclamando,
que se não trabalhasse mandava matar. [...]. Então, meu pai desistiu,
não tinha como agüentar o patrão. (ISIDORO, 2006, p. 26).

A pesquisa narrativa possui esta especificidade, a de permitir conhecer o


pensamento subalternizado e a partir daí observar os impactos da linguagem colo-
nial por meio do termo “patrão” no mundo ameríndio amazônida. Assim, o patrão
seringalista Barros era muito poderoso, pois além de se apropriar dos espaços étnicos,
capturava os indígenas para trabalharem por troca de roupa e comida no seringal.
Os Arara se depararam de uma forma muito concreta e brutal e pela segunda vez,
com um processo desenvolvimentista ancorado na extração da borracha confir-
mando que: “[...] todo o processo de ocupação da Amazônia tem representado
uma usurpação dos territórios [...] indígenas, [...] era e é a estratégia geopolítica
do confisco sumário pela força, desses territórios [...]”. (OLIVEIRA, 1990, p. 103).
Dentre outras situações, os participantes do estudo contaram que um dia
o seringalista Barros e seus peões fizeram uma armadilha para poder pegá-los.
Eles ficaram na passagem escondidos aguardando atravessarem o rio. Quando
já estavam quase no meio os brancos começaram a atirar neles e conseguiram
prender alguns que foram colocados dentro de uma canoa e levados até o barracão
deles para trabalhar em regime forçado. Mas um dos indígenas tentou escapar
e pulou na água, quando emergiu para respirar foi alvejado por um capanga do
Barros. Não sobreviveu. Assim, a morte estava sempre por perto e “ensinava” que
a desobediência aos seringalistas era resolvida com bala.
Estes conflitos trouxeram muitos prejuízos e dores para os Arara no contexto
do seringal. As famílias Arara foram obrigadas a trabalhar para estes grandes
seringalistas: primeiro com o Barros do Seringal Santa Maria, depois o Firmino
que se dizia proprietário do seringal da Penha e Eduardo Barroso seringalista com
colocação nas proximidades do rio Riachuelo. Em algumas situações os indígenas
fugiam de um seringal para outro devido às tensões existentes: “No final da década
de 1950 o capataz ou seringalista Pedro Lira, no rio Urupá, seringal Tapirema,
planejou matar os índios, para roubar-lhes as terras.
Os Arara ouviram um boato e fugiram para o seringal da Penha e depois
para o seringal Santa Maria. [...]”. (MINDLIN, 2016, p. 324). Os narradores
125
informaram que os Arara eram muitos antes do contato, que não tinham doença,
mas depois começaram a morrer com as enfermidades do “outro” como gripe,
sarampo. Havia também os conflitos territoriais, brigavam, matavam os bran-
cos e por sua vez, estes se organizavam em expedições punitivas e matavam os
índios. Assim, os antigos contam que os não indígenas acabaram com os Arara
matando muitos deles. Uma explicação para o declínio populacional resultante
do chamado 2º Ciclo da Borracha.
Em decorrência disso, os Arara em 1977 estavam reduzidos a 77 pessoas.
(MOORE, 1978). Os relatos de alguns sobreviventes afirmam que foi uma época
de muita humilhação, como a da proibição da utilização da língua indígena ou
de terem suas crianças arrancadas dos braços de suas mães em troca forçada de
objetos: “[...] foram trocados por uma peça de roupa [...] suportaram ataques de
povos hostis, [...]; foram dados, crianças, a famílias da cidade, para virar agregados
semiescravos, sem acesso à própria tradição nem à instrução cidadã”. (MINDLIN,
2016, p. 323). E neste contexto em que parecia não existir mais esperança, pos-
sivelmente em 1961, o Pajé Cícero contribuiu com a retomada da vida tribal do
Povo Arara: “Encontrou Chiquito Arara no Seringal da Penha e o convidou para
sua maloca, “[...] marcando dessa forma um importante papel no processo de
realdeamento do seu Povo bem antes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI)
que só ocorreu em 1966”. (NEVES, 2020, p. 1-2).
Este gesto do Cícero Arara na interpretação da Pedagogia do Oprimido
pode ser entendido como a elaboração de um inédito-viável, evento que ocorre
em contextos de subalternização com o desvelamento das situações-limite: “[...].
No momento em que estes as percebem não mais como uma ‘fronteira entre o
ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais ser’, se fazem cada vez
mais críticos na sua ação [...]”. (FREIRE, 1987, p. 60). Tempos depois, um padre
localizou os Arara em um dos seringais e informou ao Serviço de Proteção aos
Índios (SPI). A esse respeito, o Cacique Pedro Agamenon informou que aos poucos
os parentes foram se encontrando: “[...]. Foi uma alegria danada, para eles nós já
estávamos mortos, foi uma surpresa, nem sabiam se estávamos vivos, nós também,
nem sabíamos se eles já tinham se acabado [...]”. (MINDLN, 2016, p. 331).
A partir dos anos 1970, o Povo Arara Karo foi reorganizando seus modos
de vida no contexto comunitário. O livre exercício de falar em sua língua materna,
a plantação de roças, os processos de coletas dos produtos florestais e o retorno
das festas. A estabilidade ocorreu com a demarcação da Terra Indígena Igarapé

126
Lourdes, parte do território tradicional da etnia que aconteceu em 1976 e homo-
logada através do Decreto nº 88.609/1983.
No entanto, conforme as narrativas, as observações empíricas e outros estudos
apontam, as cicatrizes da colonização permaneceram na vida do povo Arara, seja
nos nomes das pessoas, os mesmos dos antigos proprietários de seringais. Podem ser
notadas na forma de falar a língua portuguesa, que se aproxima bastante do modo
de comunicação dos não indígenas da região ou mesmo nas marcações territoriais:
A ocupação das terras pelos colonizadores e a invasão de divisas são
percebidas, inclusive no acesso à aldeia I’terap que é por meio da
fazenda 3 Rios.[...]. Este artigo possibilita conhecer a história do
povo Arara (Karo Tap) contada por quem vivenciou/sentiu na própria
pele, mesmo que pela memória dos pais e avós, a violência pela qual
foram tomados. Essa abordagem foi uma maneira de reconhecer e
valorizar a narrativa dos esquecidos e/ou silenciados pela colonialidade.
(ALVES; ARARA; MEDEIROS, 2021, p. 14).

Apesar destas memórias coloniais, os Arara Karo elaboram formas de viver


entrelaçando as práticas culturais ancestrais às demandas da contemporaneidade
ocidental. Estas marcas de reinvenção e ressignificação são percebidas no dia
a dia da aldeia, no espaço escolar, na saúde, na organização política, enfim nas
relações que estabelecem com as instituições e pessoas não indígenas. Talvez, seja
um recurso encontrado para vivenciar uma identidade indígena sintonizada com
as lutas do presente com vistas à construção de um mundo futuro em que tenha
um lugar para o povo, os Tupi Ramarama.

A FESTA DO JACARÉ: ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO


RITUAL KARO

A festa do Jacaré constitui uma prática cultural do Povo Arara. Em nosso


entendimento, a cultura constitui um conjunto de elementos produzidos ao
longo da convivência de um determinado povo. Neste processo há um contí-
nuo movimento de elaboração e reelaboração de códigos próprios expressos em
suas linguagens e simbologias:
[...] A cultura de um povo é nada mais nada menos que o conjunto
das respostas que aquele povo dá às experiências pelas quais ele passa
e aos desafios que ele sofre. A língua, bem como a cultura, vão sendo
moldadas ao longo do tempo. Qualquer grupo social humano é um

127
universo completo de conhecimento integrado, com fortes ligações
com o meio em que se desenvolveu. (TEIXEIRA, 1995, p. 293).

Nesta direção, esta festividade representa um momento ritualístico de


aprendizagens culturais e pedagógicas. Um tipo de sala de aula vivencial onde
as crianças e os jovens tem a oportunidade de participarem com os mais velhos
da comunidade. É o principal evento Arara, ocasião que as pessoas experientes
assumem o papel de importante conhecedoras e educadoras da tradição étnica. No
decorrer das atividades apresentam narrativas sobre as primeiras festas do Povo
Karo, os mitos, as guerras, situações engraçadas e outros acontecimentos que con-
sideram relevantes ocorridos em tempos passados, além de atualizar o significado
desta prática cultural em tempos de globalização. E, como no contexto das festas
tradicionais Cinta Larga, o evento passa a ser a atividade festiva mais importante:
Este ritual ou festa é o evento social mais significativo nesta sociedade, o
único capaz de mobilizar um grande contingente de pessoas e também
de recursos. [...]. [...] o ritual enquanto um instante privilegiado no
continuum da vida social, que se distingue pela dramatização de temas
e questões fundamentais para a sociedade. (DAL POZ, 1991, p. 9).

De acordo com os antigos, a história do Jacaré surgiu de um homem que era


gente que existiu há muito tempo na história do povo Arara. Um Pajé Arara mais
velho da aldeia que descobriu qualidades importantes deste animal: ser valente,
resistente e um guerreiro no rio. Nos processos de caça, observaram que mesmo
atingido ele demorava a morrer. Com o tempo estas narrativas foram ganhando
força, principalmente pelos enfrentamentos físicos e espirituais que ocorriam com
este animal mesmo após a sua morte.
O marco histórico que originou o surgimento da Festa do Jacaré está rela-
cionado a uma caçada coletiva por um grupo de homens Arara que avisaram suas
mulheres para onde iam e anteciparam a realização de uma grande festa. Quando
retornaram à aldeia de longe já se ouviam os gritos e assovios, sinais que estavam
retornando. Estavam com os jacarés nas costas. Daí as mulheres e os demais que
estavam na maloca foram encontrá-los, saudando os caçadores que eram os seus
maridos com a bebida tradicional, a macaloba.
Em relação ao local destas memórias, os diálogos com o Pajé Cícero Arara,
permitiram compreender que existiam algumas malocas na atual cidade de Ji-Pa-
raná onde atualmente está localizado o Colégio Tupã, no Distrito de Nova Colina,
por exemplo. Ali era um ponto sagrado para o povo Arara, um marcador que a
128
memória não esqueceu, o local que por algum tempo todos se ajuntavam para fazer
os rituais e as cerimônias. E foi ali que os pajés anunciaram esta nova atividade,
estava surgindo o Wayo Akanã, a Festa do Jacaré.
Cícero também informou que tanto na Festa do Jacaré como em todas as
outras festas de antigamente (milho, malocas novas, etc.) as bebidas como macaloba
de milho, batata doce, cará e mandioca eram abundantes. Nesta época o Povo Arara
não tomava macaloba azeda, só doce, ou seja, não havia problema de embriaguez.
De acordo com Dutra Arara, Maria Arara e Paulo Arara, as festas duravam vários
dias, com bastante carne, onde todos se apresentavam pintados com urucum até
a realização das colheitas, quando se agrupavam para este trabalho.
Mas, na época que os Arara tiveram que viver nos seringais as festas foram
interrompidas, pois eram proibidos de fazê-las, como tantas outras coisas relaciona-
das às suas autonomias: “[...] os discursos [...] de não reconhecimento, que operam
na verticalidade, reforçam a reificação de identidades a partir de uma perspectiva
normatizadora, etnocêntrica e assimilacionista [...]”. (ANUNCIAÇÃO, 2017, p.
43). As atividades ritualísticas só foram retomadas no processo do realdeamento
quando se organizaram na Aldeia Posto Central, ali ocorreu a primeira grande
festa com muita comida, bebida e pintura corporal.
Analisamos como adequado a utilização do conceito de re-existência para
traduzir alguns aspectos do percurso histórico trilhado pela sociedade Arara Karo.
Possíveis mecanismos que foram produzidos para assegurar a sobrevivência cole-
tiva na adversidade e posteriormente para reorganizar seus modos de vida como
partícipes da história: “La re-existencia la concibo como las formas de re-elaborar
la vida auto-reconociéndose como sujetos de la historia, que es interpelada en
su horizonte de colonialidad […] y reafirmando lo propio sin que esto genere
extrañeza. […]. (ALBÁN, 2007, p. 23).
Inferimos que fez parte das estratégias de re-existência Arara as lembranças
dos rituais, da rotina da vida na aldeia dentre elas, a Festa do Jacaré e suas conver-
sações em Tupi Ramarama. Uma memória utópica e mobilizadora que impulsio-
nou os movimentos de reação à condição subalterna, traduzida no forte desejo de
vivenciar novamente estes momentos que só o retorno tribal poderia proporcionar.
A título de ilustração demonstramos que essa prática cultural tem sido constante
na agenda dos Arara, como a festa de 2016 evidenciada no registro abaixo:

129
Figura 1 - Cícero, Marli, Manichula e Miru (2008)

Fonte: Acervo (GPEA)/Unir.

Assim, a história do Povo Arara e a Festa do Jacaré são elementos insepará-


veis. Este evento cultural pode ser interpretado como “um fato social total”, uma
concepção ampla de sociedade organizada por múltiplos entrelaçamentos onde a
vida tribal, a espera, a preparação e o ritual estão conectados: “[...] tudo se mistura,
tudo o que constitui a vida [...]. Nesses fenômenos sociais ‘totais’, [...], exprimem-se,
de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas
sendo políticas e familiares ao mesmo tempo [...]”. (MAUSS, 2003, p. 187).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste trabalho foi apresentar aspectos de um estudo elaborado


junto ao Povo Indígena Arara Karo, habitante da Terra Indígena Igarapé Lourdes,
no município de Ji-Paraná, Rondônia no período de junho de 2015 a setembro de
2016. O recorte para este escrito envolveu dois elementos centrais, a historiografia
do referido povo e os antecedentes históricos da festa do Jacaré.
A elaboração deste escrito foi possível a partir das narrativas de indígenas
experientes, profundos conhecedores das práticas culturais Arara em interface
com a pesquisa bibliográfica. Consideramos as lentes teóricas do educador bra-
sileiro Paulo Freire (1987) e do pensador colombiano Adolfo Albán Achinte
(2007) como mecanismos dialógicos para compreensão da trajetória Arara. Um
130
meio de articulação com a área da Educação Escolar Intercultural no Ensino
Fundamental e Gestão Escolar, habilitação do curso Licenciatura em Educação
Básica Intercultural que forma a docência dos anos iniciais da escolarização, área
de formação e atuação das autoras.
A Festa do Jacaré surgiu em tempos imemoriais, anterior ao contato com
os não indígenas. A admiração e o respeito pelo animal possivelmente contri-
buíram para que este ritual passasse a ocupar um importante espaço na vida do
Povo Arara. Apesar das bruscas alterações culturais decorrentes do contato com
os grupos não indígenas, principalmente nos ciclos da borracha, época de intensa
ocupação na Amazônia, concluímos que esta etnia continua expressando aspectos
significativos de seus modos de vida traduzidos em seu principal ritual cosmoló-
gico: Wayo Akanã ou a Festa do Jacaré.

REFERÊNCIAS
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Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 14. p. 79-95, set. 2003.
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re-existencia socio-cultural en comunidades Afro-descendientes de los valles interandinos del Patía (Sur de
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ALVES, Maria Isabel Alonso; ARARA, Marli Peme; MEDEIROS, Heitor Queirós de. Os Arara (Karo Tap):
modos de ser e processos de ressignificação em meio à colonização amazônica. Revista Atos de Pesquisa
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ANUNCIAÇÃO, Renata Franck Mendonça de. Somos mais que isso: práticas de (re) existência de migrantes
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de Campinas-SP, 2017.
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lia Gomes Neves. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). Campus de Ji-Paraná. Departamento de Educação Intercultural (DEINTER), 2015.
CLANDININ, D. J.; CONELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiências e história na pesquisa qualitativa.
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CH-USP, 1991.
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Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006.
MINDLIN, B; DIGUT, T; SEBIROP, C. e outros narradores Gavião Ikolen. Couro dos espíritos: namoro,
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131
MINDLIN, Betty. Aula Magna de Pedro Arara Karo. Arara Karo: a persistência de um povo. Estudos
Avançados 30 (87), 2016.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2003.
MOORE, D. Relatório sobre o Posto Indígena Lourdes. Oitava Delegacia Regional segundo as Diretrizes
de levantamento de dados para elaboração de projetos. Brasília, UnB, 1978.
NEVES, Josélia Gomes. Cultura Escrita em Contextos Indígenas. Tese (Doutorado em Educação) –
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em: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/paje-cicero-xia-mot-arara-luto-e-re-existencia-in-
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NEVES, Jose Luis. Pesquisa qualitativa – características, usos e possibilidades. Caderno de Pesquisas em
Administração, São Paulo, v.1, n. 3, 2º sem, 1996.
OLIVEIRA, Ariovaldo. Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflito. Campinas, São Paulo:
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PAULA, Jania Maria de. Karo e Ikolóéhj: escola e seus modos de vida. Porto Velho. 2008. 223 f. Dissertação
(Mestrado em Geografia). Fundação Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2008.
SANTOS, Júlia Otero dos. Sobre mulheres brabas, parentes inconstantes e a vida entre outros: a festa do
jacaré entre os Arara de Rondônia. 2015. 338 f. Tese (Doutorado). Universidade de Brasília. 2015.
TEIXEIRA, Raquel F. A. As Línguas Indígenas no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI,
Luís Donizete Benzi. (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º
graus. Brasília/MEC, 1995.

Nota: dedicamos este texto à memória dos Arara que não sobreviveram às explorações e maus tratos nos
seringais da Amazônia.

132
REFLEXÕES DE UM PROFESSOR FORMADO EM
LÍNGUA PORTUGUESA A PARTIR DA DISCIPLINA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO: O ENSINO DE LÍNGUA
MATERNA EM PAUTA

Francisco Walisson Ferreira Dodó61

INTRODUÇÃO

Reconhecer a importância do estágio para a formação de professores faz com


que os objetivos deste relato de experiência sejam convergentes com as contribui-
ções de (LEURQUIN, 2015), que defende a necessidade de um olhar diligente
às disciplinas de estágio, uma vez que estas se configuram como uma preparação
dos futuros professores de língua materna.
A ideia deste relato surgiu quando recebi em minha sala um estagiário do
curso de Letras. Após finalizado o estágio, refleti sobre a relevância de eu pro-
duzir um relato, evidenciando a importância do estágio supervisionado, a fim de
levantar reflexões sobre o processo de formação do professor de língua materna.
Considerando, portanto, a minha experiência com o ensino de língua, analisei
as aulas dadas pelo estagiário, para tecer, neste texto, reflexões sobre o ensino e
a aprendizagem de Língua Portuguesa e sua relação com a disciplina de estágio.
O objetivo-mor deste relato é, pois, levantar reflexões sobre a formação do
professor de língua materna, além de evidenciar a importância da disciplina de estágio
supervisionado como imprescindível para os cursos de Letras (e demais cursos de
licenciatura). Logo, essa preparação precisa oportunizar o amadurecimento de práticas
pedagógicas imbricadas ao ensino de língua materna, que é o foco deste estudo;
por isso, é tão importante um olhar diligente à disciplina de estágio supervisionado.
Dessa maneira, este trabalho está organizado da seguinte maneira: na intro-
dução, com o objetivo de situar o leitor, mostro como surgiu a ideia de produzir este
relato; no desenvolvimento, traço uma caracterização do contexto em que o estágio fora
realizado; e, por último, nas considerações finais, faço um apanhado geral das minhas
reflexões levantadas a partir da análise das aulas ministradas no período do estágio.

61
Doutor em Linguística (UFC). Professor (SEDUC–CE). CV: http://lattes.cnpq.br/6002586478534594
133
METODOLOGIA

Este relato de estágio consiste em registrar e analisar as aulas ministradas


entre os dias 15 de dezembro de 2021 a 17 de dezembro de 2021 por um estudante
de Letras Português/Inglês. A partir dessa experiência, teço algumas considerações
pertinentes que servirão como fomento de discussão relacionada à prática de sala de
aula, mais especificamente em aulas de língua materna no Ensino Médio, eviden-
ciando, portanto, a importância da disciplina de estágio para os estudantes de Letras.
As aulas que foram observadas e analisadas por mim, professor titular da disciplina,
totalizaram 4 aulas de Língua Portuguesa. O conteúdo estudado foram os elementos
de coesão de texto, focalizando as conexões, as conjunções, e como tais elementos
funcionam no texto, construindo a progressão temática, isto é, o sentido global do texto.
O estágio supervisionado fora realizado na Escola Estadual de Educa-
ção Profissional José Maria Falcão, situada na Rua Raimundo Correia Lima,
s/n, Pacajus – CE, CEP: 62870-000.
As aulas observadas no estágio foram ministradas pelo estudante do curso de
Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Inglesa; o estágio foi ministrado
em uma turma de 2º ano da referida instituição de ensino.
O quadro a seguir consegue fornecer um panorama que situa o
leitor no contexto do estágio:
Quais os conteúdos trabalhados pelo estagiário?
O conteúdo ministrado pelo estudante estagiário tratava sobre os elementos de coesão textual: as cone-
xões/ conjunções.
Quais e como as atividades durante a observação foram desenvolvidas?
Foram desenvolvidas aulas abordando o uso das conjunções no gênero tirinha; essa atividade serviu de
introdução ao assunto, para, na sequência, explorar e aprofundar os conceitos relacionados ao conteúdo;
dando continuidade, foram desenvolvidas atividades que trabalhavam as conjunções numa perspectiva
sintática, abordando o grupo das conjunções coordenativas.
Como o estagiário estimulou os alunos e como estes se comportaram frente aos conteúdos aborda-
dos pelo estagiário?
O estagiário estimulou os alunos fazendo uso de diferentes textos, para trabalhar as conjunções e como
elas se comportam no texto para construir sentidos. Essa forma permitiu que os alunos percebessem a
importância desse conteúdo para a construção da progressão temática.
Qual foi a metodologia e recursos utilizados pelo estagiário?
O estagiário fez uso dos seguintes recursos metodológicos para ministrar as aulas: livro didático; quadro
branco; pincel; caderno e lápis.

134
AS AULAS MINISTRADAS NO ESTÁGIO

Esta seção é muito importante, uma vez que representa o “coração” deste
relato, pois é aqui que, a partir das aulas observadas, teço reflexões pertinentes sobre:
ensino de língua portuguesa e formação de professor de língua materna, eviden-
ciando ainda a relevância da disciplina de estágio na formação de futuros docentes.

ALGUMAS REFLEXÕES PERTINENTES SOBRE ENSINO DE


LÍNGUA MATERNA: AULA DE GRAMÁTICA OU AULA DE
ANÁLISE LINGUÍSTICA/SEMIÓTICA?

Para a realização da produção deste relato, fiz um paralelo do conteúdo


ministrado com os documentos oficiais da educação brasileira. Nesse sen-
tido, fazendo esse link com as prescrições contidas na Base Nacional Comum
Curricular (doravante BNCC), o conteúdo sobre as conjunções está relacio-
nado com as seguintes habilidades:
Código e Descrição da Habilidade da Base Nacional Comum Curricular
(EM13LGG401) Analisar textos de modo a caracterizar as línguas como fenômeno (geo)político,
histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso.
(EM13LGG302) Compreender e posicionar-se criticamente diante de diversas visões de mundo
presentes nos discursos em diferentes linguagens, levando em conta seus contextos de produção e de
circulação.
Fonte: Retirado da BNCC (2018).

É válido ressaltar que, para a BNCC, não basta o professor ministrar a aula (de
gramática, neste caso); é preciso que tal conteúdo faça sentido para a vida cotidiana
dos alunos. Nesse caso, estudar os tipos de conjunções coordenativas ou subordinati-
vas (considerando somente a abordagem estruturalista da língua) não é o suficiente,
nem produtivo; é preciso evidenciar para o aluno a importância dos conectivos para
a construção da ideia global do texto. Logo, uma conjunção “portanto”, por exemplo,
não é apenas um conectivo classificado como conjunção coordenativa conclusiva; no
texto, ao usar os conectivos, construímos sentidos e argumentamos sobre determinado
tema ou assunto; e isso precisa ficar claro para os estudantes; saber usar adequada e
criticamente esses elos coesivos é decisivo para a construção da nossa argumentação.
A BNCC sugere, como competências específicas relacionadas a este conteúdo
ministrado nestas aulas do estágio, as seguintes competências:

135
Competências específicas:
Competência específica 3 - Utilizar diferentes linguagens (artísticas, corporais e verbais) para exercer,
com autonomia e colaboração, protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva, de forma crítica,
criativa, ética e solidária, defendendo pontos de vista que respeitem o outro e promovam os Direitos
Humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional e global.
Competência específica 4 - Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, social,
variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas
de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como respeitando as variedades linguísticas e agindo
no enfrentamento de preconceitos de qualquer natureza.
Fonte: Quadro retirado da BNCC (2018).

Para ministrar este conteúdo, o estudante estagiário da turma utilizou textos


pertencentes aos mais diversos campos de atuação segundo a BNCC62.
Considerando as orientações da BNCC e a sua relação com o conteúdo
ministrado, é válido trazer à discussão deste relato os estudos de MENDONÇA
(2006), uma vez que a autora ratifica a necessidade de uma mudança do professor
de língua materna frente ao ensino de gramática no contexto escolar.
Para a teórica, só faz sentido estudar a língua portuguesa, quando este ensino
fizer sentido ao aluno. Nesse contexto, em convergência com a BNCC, Mendonça
defende a nomenclatura “Análise Linguística” em vez de aula de “Gramática”.
A seguir, apresento um quadro elaborado pela autora, fazendo um compa-
rativo entre: dar aula de gramática versus dar aula de análise linguística:
Ensino de gramática Prática de Análise Linguística
Concepção de língua como sistema, estrutura inflexível e Concepção de língua como ação inter-
invariável. locutiva situada, sujeita às interferências
dos falantes.
- Fragmentação entre os eixos de ensino: as aulas de gra- Integração entre os eixos de ensino: a
mática não se relacionam necessariamente com as aulas de análise linguística é ferramenta para a
leitura e de produção de texto. leitura e a produção de textos
Metodologia transmissiva, baseada na exposição dedutiva - Metodologia reflexiva, baseada na
(do geral para o particular, isto é, das regras para o exemplo) indução (observação dos casos particu-
+ treinamento. lares para a conclusão das regularidades/
regras.
Privilégio das atividades metalinguísticas. - Trabalho paralelo com as habilidades
metalinguísticas e epilinguísticas.
Ênfase nos conteúdos gramaticais como objetos de ensino, Ênfase nos usos como objetos de ensino
abordados isoladamente e em sequência mais ou menos fixa. (habilidades de leitura e escrita), que
remetem a vários outros objetos de
ensino (estruturais, textuais, discursivos,
normativos), apresentados e retomados
sempre que necessário.

62
Os campos de atuação da BNCC são: da vida cotidiana, da vida pública, das práticas de estudo e pesquisa do artístico/
literário e do jornalístico-midiático.
136
Centralidade da norma-padrão. Centralidade dos efeitos de sentido.
Ausência de relação com as especificidades dos gêneros, Fusão com o trabalho com os gêneros,
uma vez que a análise é mais de cunho estrutural e, quando na medida em que contempla justa-
normativa, desconsidera o funcionamento desses gêneros nos mente a intersecção das condições
contextos de interação verbal. de produção dos textos e as escolhas
linguísticas.
- Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o período. Unidade privilegiada: o texto.
- Preferência pelos exercícios estruturais, de identificação e Preferência por questões abertas e ativi-
classificação de unidades/funções morfológicas e correção. dades de pesquisa, que exigem compa-
ração e reflexão sobre adequação e efeito
de sentidos.
Fonte: Quadro retirado de Mendonça (2006).

Este estudo de Mendonça converge com as contribuições de


Geraldi (1984), que defende que
a análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as questões tradi-
cionais da gramática quanto amplia-as a propósito do texto, entre as
quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto; adequação
do texto aos objetivos pretendidos, análise dos recursos expressi-
vos utilizados (metáforas, metonímias, paráfrases, citações, discurso
direto e indireto etc.); organização e inclusão de informações etc.
Essencialmente, a prática de análise linguística não poderá limitar-
-se à higienização do texto do aluno em seus aspectos gramaticais e
ortográficos, limitando- -se a ‘correções’. Trata-se de trabalhar com o
aluno o seu texto para que ele atinja seus objetivos junto aos leitores
que se destina (GERALDI,1984, p. 74).

Corroborando esta visão de ensino de língua materna,


(ARAÚJO; SILVA 2015) defendem que
a prática de análise linguística não é, assim, nem um novo método,
nem uma nova roupagem para ensino de gramática, não se resumindo,
portanto, a um novo jeito ou a uma nova estratégia para apenas trans-
mitir regras prescritivas, conceitos e definições. Não se trata também
de usar o texto como pretexto para repetir as práticas pouco reflexivas
que ocorriam (ou ocorrem) na escola. Trata-se, ao contrário, de refletir
sobre a língua portuguesa, sem se limitar ao ensino de classificações
e nomenclaturas e de regras prescritivas que não se relacionam com
os atuais usos linguísticos. É uma atividade que possibilita com-
preender os fenômenos linguísticos na dimensão da textualidade e da
normatividade, o que poderá contribuir para a formação de leitores e
produtores de textos (ARAÚJO; SILVA, 2015, p. 732).
137
Analisando as contribuições dos autores supracitados, é preciso entender, antes
de tudo, que o que eles estão propondo não é o fim das aulas de gramática, pelo
contrário; os autores reforçam a necessidade de estudarmos e conhecermos a nossa
língua; contudo, estudar o idioma que falamos, só faz sentido quando estas aulas se
tornam produtivas e significativas, ou seja, quando o aluno entende que, a partir do
uso que fazemos de nosso idioma, construímos sentidos, textos, discursos: estudar
a língua requer, portanto, muito mais que estudarmos a estrutura por ela mesma.
Nessa conjuntura, tal proposta de ensino
assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas
enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os
textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades
ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e
produção de textos em várias mídias e semioses (BNCC, 2017, p. 61).

Em convergência com a BNCC, Leurquin (2020) reforça a necessidade de


tornarmos as aulas de língua materna um verdadeiro encontro, em que aprende-
mos a usar a língua para produzir textos e interagirmos nas mais diversas esferas
de comunicação. É, portanto, baseado nessa perspectiva de ensino que levanto
minhas reflexões sobre o ensino de Língua Portuguesa, tendo como corpus desta
análise as aulas dadas pelo estagiário de Letras.

A REGÊNCIA

Na seção anterior, expus um quadro-sumário que expunha informações


pertinentes sobre as quatro aulas observadas no estágio. Agora, irei aprofundar
minhas análises, descrevendo e tecendo comentários e reflexões a respeito das
aulas ministradas no período do estágio.
Nas aulas primeira e segunda, consideradas a introdução do conteúdo, o
estagiário analisou, juntamente com a turma, a seguinte tirinha:

Fonte: https://deposito-de-tirinhas.tumblr.com/post/146013971482/laerte-coutinho. Acesso


em: 13 dez. 2021.
138
A partir da tirinha, o estagiário introduziu o conteúdo sobre as conjunções;
apesar de o conectivo “se” não ser uma conjunção coordenativa (o conteúdo da aula),
o estagiário aproveitou isso para mostrar a função dos conectivos para produzir
efeitos de sentido no texto e diferenciar as conjunções coordenativas das conjun-
ções subordinativas. No quadro abaixo, apresento a atividade proposta por ele:
1. De acordo com a tirinha, sobre qual assunto os personagens estão conversando?
2. Sobre que assunto, de fato, o pai gostaria de tratar com o filho?
3. O filho entendeu o que o pai quis dizer?
4. Baseado na resposta anterior, o que gera o humor na tirinha?
5. No segundo quadrinho, o autor utiliza o conectivo “se”:
a. Qual o sentido que o conectivo “se” estabelece entre as orações?
b. Qual é a função desta palavra no período?
c. Qual a classe de palavra pertence o vocábulo “se”?
d. O uso dessa classe de palavra nos textos é relevante? Justifique sua resposta.

A partir dessa aula introdutória, analisei que a didática do estagiário conversa


com as orientações prescritas pela BNCC e vem ao encontro das contribuições
dos teóricos que apresento na introdução deste relato.
A atividade, apesar de trabalhar nomenclaturas, não se limitou a trabalhar
a estrutura da língua por ela mesma, mas vai além; o estagiário teve o cuidado de
tornar a atividade produtiva e significativa para os alunos.
Um fato interessante sobre esta atividade foi que o tipo de abordagem que
o estagiário usou convergia com os estudos que conceituam a língua como instru-
mento de comunicação e interação, portanto geradora de sentidos. Não obstante,
as aulas seguintes se contrapunham a esse tipo de abordagem. Isto é, considerando
as primeiras aulas, criou-se uma expectativa, em relação à abordagem do conteúdo,
que não fora correspondida posteriormente.
Nas aulas terceira e quarta, o estagiário expôs, no quadro branco, uma lista de
conectivos com exemplos das conjunções coordenativas. À guisa de demonstração,
transcrevo abaixo os exemplos dados por ele:
Conjunção coordenativa Aditiva (sentido de soma) Ontem, fui à feira e comprei
muitas frutas.
Conjunção coordenativa Adversativa (sentido de oposição) Eu estudei bastante, mas não
passei na prova.
Conjunção coordenativa Explicativa (sentido de Eu faltei a aula, porque estava
explicação) doente.
Conjunção coordenativa Alternativa (sentido de Ora chovia, ora fazia sol.
alternância)

139
Conjunção coordenativa Conclusiva (sentido de conclusão) Eu estudei muito; portanto estou
preparado para a prova do Enem.
Fonte: Quadro elaborado pelo estudante estagiário (2021).

Se fizermos uma relação da maneira que o estagiário explicou o conteúdo


com as discussões teóricas que vimos na introdução do relatório, perceberemos
que tal didática vai de encontro às prescrições e orientações dos estudos supra-
citados; em outras palavras, embora reconheçamos que o aluno precisa também
conhecer os elementos estruturais da língua, é mais importante que ele entenda a
sua função e como podemos usá-los nos textos e construir a nossa argumentação.
Sendo assim, mais produtivo que trazer exemplos fora de contexto, frases
isoladas, seria explorar o uso das conexões no texto, como ele o fez na primeira
aula, na qual fez uso do gênero tirinha para introduzir o conteúdo.
Ainda refletindo sobre a abordagem utilizada para trabalhar o conteúdo das con-
junções, é válido ressaltar que não sou contra o ensino de nomenclaturas gramaticais;
entretanto, o ensino de língua materna não deve se limitar a esse tipo de abordagem.
O quadro abaixo foi utilizado para trabalhar alguns exem-
plos de conjunções coordenativas:

Fonte: Usado pelo estagiário na aula (2020).

Entendo que o aluno, sim, precisa conhecer tais nomenclaturas, porém esta
abordagem estrutural é limitada, não explora as diferentes formas de construir a
argumentação. Por exemplo, no quadro, o “mas” é dado como exemplo de conjunção
coordenativa adversativa; o “e” como conjunção coordenativa aditiva. Porém, nem
sempre estes conectivos irão estabelecer sentido de oposição e soma respectivamente. A
140
depender do contexto de uso, “e” também pode estabelecer sentido de oposição ou de
conclusão; e o “mas” pode estabelecer sentido de adição, como nos exemplos a seguir:
Texto 1: Exemplo de uso com o conectivo “Mas” Texto 2: Exemplo de uso com o conectivo “e”
Rosa de Hiroshima O mundo é grande
(Vinicius de Moraes) (Carlos Drummond de Andrade)
Pensem nas crianças, mudas, telepáticas O mundo é grande e cabe
Pensem nas meninas, cegas, inexatas Nesta janela sobre o mar.
Pensem nas mulheres, rotas alteradas O mar é grande e cabe
Pensem nas feridas, como rosas cálidas Na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
No breve espaço de beijar.
Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida

A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica


Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.

Note que, no primeiro texto, o poeta elenca uma lista de coisas que devem
ser pensadas, não podem ser esquecidas; portanto, quando ele enumera tais ele-
mentos, ao chegar no quinto verso (“Mas, oh, não se esqueçam da rosa (...)”, o
contexto faz com que este conectivo estabeleça sentido de soma e não de oposição.
Por outro lado, no segundo texto, o “e”, comumente classificado como
conectivo com sentido de soma, assume, neste contexto de uso, sentido de
oposição, porque, mesmo o mundo e o mar serem grandes, não impede que
eles caibam na mão do eu lírico.
Essas discussões, geralmente, não são contempladas no ensino tradicional
de gramática; são outros tipos de estudos que analisam o uso dos conectivos em
uso, como a gramática funcionalista. Além da gramática funcionalista, há muitos
outros estudos sobre os conectivos que consideramos mais produtivos e signifi-
cativos para a construção da argumentação.
À guisa de exemplo, pode-se citar (ADAM, 2011). Em seus estu-
dos, o foco recai no uso ou na função deste uso dos conectivos para a cons-
trução da argumentação no texto.
Uma outra perspectiva de abordagem dos conectivos é pelo quadro teó-
rico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), que estuda
a influência do contexto de produção/contexto comunicativo na escolha dos
conectivos para escrever o texto.
Tendo citado outros estudos sobre os conectivos, além da gramática normativa, é
pertinente citarmos também as contribuições da Linguística Textual (KOCH, 2006).
141
Todos esses teóricos vistos até aqui vêm contribuindo com estudos que
suscitam a necessidade de um ensino de gramática renovado; a própria BNCC
adota a terminologia “análise linguística/semiótica” em detrimento da termologia
“gramática”, uma vez que esta deixa de considerar determinados fenômenos lin-
guísticos, como os contextos reais de comunicação-interação, por exemplo.
Podemos concluir, dessa maneira, que é preciso ampliar as possibilidades
de abordagem dos conectivos nas aulas de língua materna.
Em se tratando da finalização do conteúdo, o estagiário realizou uma ati-
vidade com questões de marcar, para trabalhar o assunto. A atividade foi retirada
de provas do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. A seguir, apresento
uma questão da atividade como exemplo:
(Enem-2014)
Miss Universo: “As pessoas racistas devem procurar ajuda”
SÃO PAULO - Leila Lopes, de 25 anos, não é a primeira negra a receber a faixa de Miss Universo. A primazia coube a
Janelle “Penny” Commissiong, de Trinidad e Tobago, vencedora do concurso em 1977. Depois dela vieram Chelsi Smith, dos
Estados Unidos, em 1995; Wendy Fitzwilliam, também de Trindad e Tobago, em 1998, e Mpule Kwelagobe, de Botswana,
em 1999. Em 1986, a gaúcha Deise Nunes, que foi a primeira negra a se eleger Miss Brasil, ficou em sexto lugar na classifi-
cação geral. Ainda assim a estupidez humana faz com que, vez ou outra, surjam manifestações preconceituosas como a de um
site brasileiro que, às vésperas da competição, e se valendo do anonimato de quem o criou, emitiu opiniões do tipo “Como
alguém consegue achar uma preta bonita?” Após receber o título, a mulher mais linda do mundo - que tem o português como
língua materna e também fala fluentemente o inglês - disse o que pensa de atitudes como essa e também sobre como sua
conquista pode ajudar os necessitados de Angola e de outros países.
COSTA, D. Disponível em: http://oglobo.globo.com. Acesso em: 10 set 2011 (adaptado)
O uso da expressão “ainda assim” presente nesse texto tem como finalidade
a) criticar o teor das informações fatuais até ali veiculadas.
b) questionar a validade das ideias apresentadas anteriormente.
c) comprovar a veracidade das informações expressas anteriormente.
d) introduzir argumentos que reforçam o que foi dito anteriormente.
e) enfatizar o contrassenso entre o que é dito antes e o que vem em seguida.

É interessante relacionar a maneira como o estagiário expõe o conteúdo


(teoria) com a maneira como trabalha na prática o conteúdo. No caso dessa última
aula, apesar de a abordagem da explicação ser tradicional, na prática não aconteceu
a mesma coisa; pois a atividade proposta pelo estagiário permite fazer com que o
aluno entenda que usar, identificar ou saber a classificação do conectivo não basta; a
atividade oportunizou o aluno a pensar sobre como o uso dos conectivos funciona no
texto e que implicaturas tal uso repercute no texto, a fim de construir a argumentação.
Entretanto, entendo que, nas aulas, o estagiário poderia ter aprofundado a análise
da atividade; embora as questões conversem com os estudos da Linguística Aplicada,
a meu ver, o estagiário não explorou de modo mais produtivo, já que a correção
aconteceu somente com a leitura do texto e a aferição de quem marcou a alternativa
correta. Não foi considerado, por exemplo, o nível de linguagem do texto, o contexto
142
de produção do texto, quem produziu o texto, o objetivo do texto etc. Todos esses
pontos configurariam uma aula de análise linguística, se o estagiário assim o fizesse.
Tendo apresentado as atividades e a maneira como o conteúdo fora traba-
lhado em sala de aula, teço a seguir a síntese desta experiência, baseando-me em
teóricos que vêm contribuindo com os estudos relacionados à Linguística Aplicada.

SÍNTESE DA EXPERIÊNCIA

Uma vez que não poderia registrar tudo que aconteceu no estágio, (por questão
de espaço), limito-me, nesta seção, a apresentar, pelo menos, os dois pontos que
mais me chamaram atenção: 1) o professor de língua portuguesa (em formação,
ou já formado) precisa considerar-se também um pesquisador; 2) o conceito de
análise linguística precisa ser “plantado” e “cultivado” nos professores de língua
portuguesa já atuantes e nos futuros professores de língua materna.
Quando defendo que o professor de língua materna precisa considerar-se tam-
bém um pesquisador é no sentido de que, ao trabalhar a linguagem em sala de aula,
essa discussão precisa fazer sentido e precisa ser produtiva para o aluno; dessa maneira,
a prática da pesquisa embasará o professor em suas escolhas teórico-metodológicas.
No artigo de (DODÓ; FERNADES, 2019), os autores tecem uma discus-
são sobre a importância da formação do professor como questão decisiva para o
trabalho com o ensino de língua materna. Segundo eles:
os rumos que as nossas aulas de língua materna terão, poderão ser
positivos ou negativos; isso vai depender de como o professor abor-
dará o conceito de língua e das escolhas dos métodos de ensino para
conduzir a prática e o exercício da linguagem na sala de aula (DODÓ;
FERNANDES, 2019, p. 20).

Em convergência com esse posicionamento, Neves (1991) defende a necessi-


dade de os professores buscarem um referencial teórico que possa nortear suas aulas,
tornando-as, verdadeiramente, atrativas, produtivas e mediadoras para o alcance do
desenvolvimento linguístico dos alunos. Nesse sentido, “(...) se nossa prática de pro-
fessores se afasta do ideal é porque nos falta (...) um aprofundamento teórico acerca
de como funciona o fenômeno da linguagem humana” (ANTUNES, 2003, p. 40).
Baseado nas contribuições destes autores, corroboro seus estudos, fazendo um
link com as observações e análises das aulas assistidas por mim no contexto do estágio.

143
De modo geral, ora o estagiário trabalhava numa perspectiva tradicional,
ora trabalhava numa perspectiva da linguística aplicada.
Considerando isso, entendo que, muitas vezes, ainda não está claro para
os docentes os objetivos de se ensinar língua portuguesa a nativos desta língua.
Logo, se não está claro para o docente, isso poderá influenciar em suas aulas de
língua materna, podendo representar um impasse para o desenvolvimento das
competências e habilidades linguísticas dos estudantes.
Isso foi observado em algumas aulas. Os alunos se questionavam sobre o
porquê de estudar “isso”. O estagiário respondeu que este conteúdo poderia ser
cobrado nos vestibulares e/ou no Enem. Esse fato consegue, pois, confirmar essa
necessidade de uma reflexão, de fato, mais profunda sobre o uso que fazemos da
língua nas diversas esferas de comunicação.
Paralelo a essa discussão, é necessário traçar alguns pontos relacionados ao
conceito de análise linguística e sua repercussão para o ensino de língua materna.
Vimos, em seções anteriores, que a diferença-mor entre estudar gramática e estudar
análise linguística é que aquela limita-se a estudar a estrutura pela estrutura; esta,
além de estudar a estrutura, oportuniza uma reflexão de como usar os elementos
linguísticos para produzir textos, construir argumentação, construir sentidos.
Trazendo essa reflexão às aulas que estão sendo analisadas por mim, pude notar
que, em alguns momentos, trabalhava-se só o ensino de gramática por ela mesma;
em outros, trabalhava-se o ensino de análise linguística (mesmo que de forma bem
superficial); sobre isso, tais reflexões revelaram: I) uma dificuldade em estabelecer ou
definir que referencial teórico usar para embasar o fazer docente; II) certa incompreen-
são da terminologia “análise linguística”; III) por fim, considerando as explicações do
conteúdo feitas nas aulas, percebi que o estagiário usou apenas uma corrente teórica
para trabalhar os conteúdos: a corrente estruturalista, demonstrando não conhecer
outras formas de abordagem da língua, como a gramática funcionalista, por exemplo.
Assim, entendo que é primordial que o professor esteja sempre em formação,
pesquisando, refletindo, analisando e revendo seu fazer docente, a fim de embasar
consistente e conscientemente sua prática.
É exatamente, nesse ponto, que entram como grande importância a dis-
ciplina de estágio e os estudos: da Sociolinguística, da Análise do Discurso, da
Linguística Textual, da Semiótica, da Estilística, enfim, da Linguística Aplicada.
Esses conhecimentos são importantes, pois são eles que justificarão as escolhas

144
teórico-metodológicas do professor de língua materna, tornando as aulas de língua
portuguesa cada vez mais produtivas e significativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de ter apresentado e descrito as aulas ministradas no período do


estágio, depois de ter maturado as reflexões a partir da observação das aulas, faço
aqui um apanhado geral dos pontos que merecem destaque:
• a disciplina de estágio é imperecível para a formação de futuros docentes;

• o professor precisa estar sempre pesquisando; mesmo não sendo um pes-


quisador (em seu sentido stricto sensu), é necessário teoria para embasar
sua prática no contexto de sala de aula;

• as aulas de língua materna só fazem sentido, quando o aluno compreende


o porquê e como usar a língua para interagir e se comunicar;

• há várias perspectivas de abordar o trabalho com a linguagem na sala de aula.


Ao considerar a pertinência desses pontos, desejo que trabalhos futuros sobre
a importância da disciplina de estágio e de trabalhos que fomentem a discussão
sobre o ensino de línguas ganhem cada vez mais força e espaço.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, I. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
ADAM, J. M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. 2. ed. revista e aumentada.
São Paulo: Cortez, 2011.
ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras no caminho. São Paulo:
Parábola Editorial, 2007.
ARAÚJO, T. F. J.; SILVA, A. Ensino de gramática/análise linguística: uma professora, múltiplas práticas.
Linhas Críticas, Brasília, v. 21, n. 46, p. 727-749, set./dez. 2015. Disponível em https://periodicos.unb.br/
index.php/linhascriticas/article/view/4714/4301. Acesso em: 12 out. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC/SEB, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 23 maio 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua estrangeira. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998.
BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo socio-discursivo.
Tradução Anna Raquel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 1999.

145
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. et al. Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
DODÓ, F, W, F, D; FERNANDES, D, S. A importância da formação do professor de português: fator
decisivo para as escolhas teórico-metodológicas que nortearão o fazer docente nas aulas de língua materna.
Letras Escreve. Macapá, v.9, n.3, 2º sem., 2019. Acesso em: https://periodicos.unifap.br/index.php/.
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1984.
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
LEURQUIN, E. V. L. F. Gênero textual e atividades de linguagem em sala de aula de Português língua
estrangeira. In: SIMÕES, D. M. P; FIGUEIREDO, F. J. Q. de. Contribuições da linguística aplicada para
professores de línguas. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 243-262.
LEURQUIN, E. Concepções teórico-metodológicas defendidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais,
pela Base Nacional Comum Curricular e pelo Interacionismo Sociodiscursivo relacionadas ao ensino da
análise linguística/semiótica. In: GUIMARÃES, A. M. M.; CARNIN, A.; LOUSADA, E. G. (org.). O
Interacionismo Sociodiscursivo em foco: reflexões sobre uma teoria em contínua construção e uma práxis
em movimento. Araraquara: Letraria, 2020. p. 227-247.
MENDONÇA, M. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN. C.
(org.). Português no Ensino Médio e Formação do Professor. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2006, p. 199-226.
NEVES, M. H. M. Gramática na escola. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1991.

146
A AULA E SUAS PARTES: PENSANDO AS MUDANÇAS
E AS PERMANÊNCIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA
ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS

Darcylene Pereira Domingues63


Júlia Silveira Matos64
Rafaela L. de Oliveira Guardalúpi65

INTRODUÇÃO

A utilização de iconografia para pesquisas acadêmicas no Brasil, especi-


ficamente fotografias, segundo Boris Kossoy (2012) ocorre devido a revolução
documental e o alargamento do conceito de documento nas últimas décadas,
principalmente entre os estudiosos da história social, das mentalidades e de
gênero. O presente capítulo pretende realizar uma análise de imagens fotográficas
a partir da metodologia proposta pelo autor acima citado, ou seja, composta por
duas dimensões: interna e externa. Nessa perspectiva, selecionamos imagens que
representem o ambiente escolar durante o século XX e discutimos as mudanças
e permanências no interior desse sistema de ensino.
Inicialmente afirmamos, “o que fica evidente, sem dúvida, é que a escola é
atravessada pelos gêneros; é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance
mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e femi-
nino.” (LOURO, 2011, p. 91). Consequentemente, as fotografias demonstram essa
diferenciação dos gêneros principalmente, no período anterior a Segunda Guerra
Mundial, pois segundo Almeida “apesar do movimento feminista dos anos iniciais
do século XX ter defendido um ensino não diferenciado para meninos e meni-
nas, a coeducação dos sexos foi uma prática que se divulgou mais rapidamente”
(ALMEIDA, 2015, p. 72) somente após a metade do século.
Assim, as fotografias demonstram o cotidiano desse espaço escolar que
era determinado e dividido a partir de masculino e feminino e dos aprendizados
necessários para cada gênero. Dessa forma, os meninos recebiam uma educação

63
Doutoranda em História (UFPel). CV: http://lattes.cnpq.br/1116806849100317
64
Doutorado em História (PUCRS). Professora e coordenadora Mestrado Profissional em História (UFPel).
CV: http://lattes.cnpq.br/9702327766711105
65
Graduanda em História (UFPel). CV: http://lattes.cnpq.br/3108933244813773
147
voltada especificamente a profissionalização na vida adulta e as meninas aos cui-
dados da casa, como por exemplo, costurar, bordar e pintar.
Além disso, segundo o historiador Kossoy a interpretação da fotografia propor-
ciona um exame interpretativo, algo presente nas análises realizadas durante a pesquisa
A partir do conteúdo documental que encerram, as fotografias que
retratam diferentes aspectos da vida passada de um país são importantes
para os estudos históricos concernentes às mais diferentes áreas do
conhecimento. Essas fontes iconográficas, submetidas a um prévio
exame técnico-iconográfico e interpretativo, prestam-se definitiva-
mente para a recuperação de informações. (KOSSOY, 2012, p. 57)

Assim a pesquisa deseja demonstrar através da análise das fotografias as


permanências e mudanças ocorridas no ambiente escolar ao longo do recorte
temporal apresentado. Além disso, discutir a materialidade dessa iconografia e
a intencionalidade dessa produção, uma vez que, representa um ambiente ins-
titucional. Outro ponto a considerar, é que segundo Fonseca (2011) a história
da educação e dos espaços escolares tornou-se importante por auxiliar na ela-
boração de currículos, construção de novos procedimentos e principalmente na
definição de políticas educacionais.

DESENVOLVIMENTO

A primeira seção de iconografias, composta por duas fotografias, aqui sele-


cionadas para demonstrar nossa problemática foram produzidas na década de 30.
Nesse período, o ambiente escolar dividia em diferentes locais meninos e meninas,
algo que é presente nas representações.
Podemos observar na primeira fotografia uma classe de meninos, alinhados,
uniformizados, com a presença de uma professora e uma auxiliar. Está sendo
registrado o momento de uma aula de leitura, uma vez que, um aluno está em pé
lendo em voz alta, em relação aos outros sentados que também estão realizando a
leitura de maneira silenciosa. A fotografia fora registrada por um profissional, fato
justificado pelo período, possui a intencionalidade de demonstrar primeiramente
a ordem do local, a disciplina na classe e também o ensino aplicado na escola.

148
Aula de leitura do EEPG Orozimbo Maia, de Campinas, em 1939.

Fonte: Arquivo da EEPG Orozimbo Maia

A segunda fotografia demonstra uma aula de latim, no início dos anos


30, diferentemente da anterior registrada por outro ângulo. A professora está
segurando uma aluna na sua frente e apontando para o quadro negro enquanto
as outras meninas estão de costas realizando a leitura. Além disso, podemos
observar que o espaço da sala de aula é em formato de auditório com degraus
para proporciona os níveis. Novamente observamos que a fotografia foi realizada
por um profissional e deseja demonstrar as atividades que são desenvolvidas no
interior da escola, como a anterior.

149
Sala de aula com suporte do quadro-negro nos anos de 1930

Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Sala-de-aula-com-suporte-do-quadro-ne-
gro-nos-anos-de-1930_fig1_345212538

Nesse sentido, ambas as imagens demonstram justamente o que os manuais


de ensino, do início do século XX, desejavam, ou seja, “o modo de sentar e andar,
as formas de colocar cadernos e canetas, pés e mãos acabariam por produzir um
corpo escolarizado, distinguido o menino ou a menina que “passara pelos ban-
cos escolares”. (LOURO, 2011, p. 66). Dessa forma, as fotografias confirmam o
ambiente escolar de maneira hierárquica, disciplinado e ordeiro, uma vez que,
é justamente a intencionalidade do registro, alunos dispostos de maneira siste-
mática observando a professora.
Além do mais, segundo a historiadora supracitada “a escola que nos foi
legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças,
católicos e protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres
e ela imediatamente separou os meninos das meninas” (LOURO, 2011, p. 61), algo
presente nos registros aqui analisados. Assim, consideramos que o modelo de ensino,
diferenciação por gênero, espacialidade na sala, disciplina e ordem são elementos
que permaneceram como fundamentais nas primeiras décadas do ensino no Brasil.
Nesse contexto da década 30, segundo Quadros é favorável devido o sur-
gimento do “curso de Pedagogia criado em 1939, por ocasião da organização da
Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil. Desde então, organi-
150
zou-se de diferentes modos e passou por inúmeras reestruturações (QUADROS,
2010, p. 11). Consequentemente, o curso de graduação proporcionou de forma
gradual uma formação para nós docentes, especialmente, mulheres que estavam
adentrando no mercado de trabalho.

Grupo Escolar Senador Flaquer em 1957

Foto da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, em São Paulo

A presente fotografia demonstra uma classe de 2º ano do curso primário


da escola Professora Maria Lourdes Santarnecchi, com 30 meninos e uma pro-
fessora. Embora, a fotografia tenha sido registrada após a aglutinação do ensino
entre meninos e meninas, essa prática ainda era exercida fortemente no Brasil,
principalmente no interior de instituições privadas e religiosas, pois segundo
Almeida (2015) as premissas positivas, misturadas com os dogmas religiosos da
Igreja católica reforçavam as características físicas, psicológicas, intelectuais e
emocionais diferentes de acordo com o gênero.
Apesar da propalada necessidade de se introduzir o sistema de classes
mistas nas escolas, o que era defendido por feministas e republicanos,
essas diferenças naturais eram, em última análise, impeditivas para a
implantação do regime coeducativo. Isso porque, juntar os sexos nas
escolas era um procedimento que possuía um fundo moral, o que
era reforçado pelo ponto de vista da Igreja Católica. (ALMEIDA,
2015, p. 66)

151
Continuamos observando a separação dos gêneros e uma diferenciação no
aprendizado para ambos. Contudo, devemos salientar que é justamente nesse
período, especificamente entre 1945 a 1964, que segundo Carli (2010) surgem os
movimentos para o ensino popular no Brasil: Campanha Nacional de Educação de
Adultos em 1950; Campanha Nacional de Educação Rural em 1952; Campanha
do Livro Didático e Manuais de Ensino em 1953 e a criação do Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais em 1955.
Além disso, o começo da tramitação no Congresso Parlamentar da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a primeira LDBEN no Brasil,
“foram 13 anos de discussão parlamentar, de que amplos setores da sociedade
civil tomaram parte” (CARLI, 2010, p. 75). Em decorrência das mudanças na
legislação e no cenário político nacional observaremos uma mudança signifi-
cativa nos períodos posteriores.
A terceira foto retrata um ambiente escolar diferente em relação aos anterio-
res, uma vez que, observamos a presença de meninos e meninas juntos na classe e
sem a presença da professora. A fotografia se apresenta em cores, em decorrência
do avanço do registro fotográfico e consegue de maneira superior detalhar até
mesmo os elementos presentes nas paredes da sala de aula.

Sala de aula no Colégio Sagrado Coração de Maria Belo Horizonte 1980

Fonte: https://www.fundacaotorino.com.br/ei/sobre/

A fotografia aqui selecionada retrata uma sala de aula numa escola particular
no estado de Minas Gerais e possui como intencionalidade demonstrar o espaço
de aprendizado que essa instituição proporciona aos seus alunos. Justamente por
152
se tratar de uma instituição privada a foto foi produzido por um profissional e
está presente no site de propaganda da escola. Novamente observamos a ordem
e disciplina presentes no local, a mistura dos gêneros no mesmo ambiente e uti-
lização de mapas e gráficos nas paredes da sala. Além disso, os jovens não estão
vestidos de maneira semelhante, ou seja, uniformizados, outro ponto de altera-
ção em relação a outras imagens.
Além disso, vale mencionar que o contexto histórico de produção dessa
fotografia é o período da ditadura-civil militar no Brasil e em decorrência disso,
segundo Carli (2010) as reformas do ensino primário e secundário ocorreram
em 1971 e foram consolidas pela Lei nº 5.692/1971 e a nova LDBEN. Nesse
momento, buscava-se a modernização da educação e do espaço escolar, algo que
é visualizado de maneira indireta na própria fotografia.
As últimas imagens são referentes ao final do século, especificamente
década de 90, na escola EMEF Sebastiana Cobra no munícipio de São José dos
Campos no estado de São Paulo.

Fonte: https://sites.google.com/site/historia1958/35o-anos-da-emef-sebbastiana-cobra

A presente foto analisada demonstra o interior de uma turma de 5º ano, na


representação já observamos a classe composta por meninos e meninas uniformi-
zados, dispostos aparentemente de maneira linear. Contudo, alguns alunos estão
ao redor da professora que está a corrigir algum material ou avaliação algo. Além
disso, notamos a presença de material didático na carteira dos alunos, especifica-
153
mente porque nesse período o livro didático teve ampla distribuição pelo país, em
decorrência, segundo Matos (2013) da criação do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) em 1985, no final do governo militar. Paulatinamente esse
material didático adentra no ambiente escolar e auxilia no desenvolvimento de
metodologias de ensino e aprendizagem, anteriormente, unificadas na presença do
professor que reproduzia o dito “conhecimento” somente no quadro negro, como
numa foto aqui analisada no início do século XX.
Outro ponto significativo sobre o registro realizado é o avanço tecnológico
das câmeras fotográficas que consequentemente baixaram o custo, uma vez que,
essa imagem não foi produzida por um profissional. Ela registra justamente um
momento espontâneo no interior de uma classe, no qual, os alunos não estão
preocupados em demonstrar que estão sentados e disciplinados. A fotografia
registra justamente um momento muito comum no cotidiano do espaço escolar,
o contato dos professores com seus alunos. Assim, a intencionalidade expressa
esse momento de proximidade entre o profissional, no caso uma professora,
e a classe de alunos e alunas.

Fonte: https://sites.google.com/site/historia1958/35o-anos-da-emef-sebbastiana-cobra

A foto demonstra uma turma de Educação de Jovens e Adultos no interior


da sala de aula com a presença de um professor, o único docente masculino repre-
sentado durante o nosso trabalho. Observamos que, de certa maneira, a disposição
dos alunos permanece a mesma, ordenados de maneira enfileirada em carteiras
154
individuais com seus materiais. Contudo, essa realidade corrobora a necessidade de
jovens e adultos retornarem ao ensino, principalmente na década de 90, devido a
modernização de vários setores da sociedade e consequentemente a especialização
da mão-de-obra anterior sem formação no mercado de trabalho. Dessa forma,
Além de ser uma ferramenta para ingresso daqueles que sempre
ficaram à margem da sociedade e não tiveram condições de estudar,
o ensino e a aprendizagem na EJA é uma abertura para a diminuição
do abismo social que se difundiu por meio da desigualdade no país.
(CHAGAS, 2020, p. 2)

Em suma, o EJA demonstra a necessidade de escolarização de uma camada


social que evadiu da escola em determinado momento, especificamente para adentrar
no mercado de trabalho e naquele instante retorna para escolarizar-se. A fotografia
foi feita por uma câmera particular, como a anterior, e registra um momento de
diálogo entre o professor e os alunos que estão sentados. Novamente observamos
uma mudança em relação ao ensino sistematizado e rigoroso do início do século.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, nosso interesse no decorrer da pesquisa era demonstrar através de


registros fotográficos as mudanças e permanências no espaço escolar brasileiro.
Primeiramente, podemos enfatizar a separação dos alunos a partir da perspectiva de
gênero nas primeiras décadas do século e posteriormente a aglutinação de ambos,
masculino e feminino, no ambiente escolar. Enfatizamos a presença, principal-
mente, de mulheres no interior desse local exercendo um cargo docente, uma vez
que, nesse período o magistério no Brasil era uma porta de emprego para muitas
mulheres. Assim, a grande maioria do corpo docente nacional responsável pela
educação denominada como básica e fundamental era composto por mulheres,
algo que ainda permanece na educação.
Além disso, outro ponto muito significativo nas fotos é a necessidade de
demonstrar a ordem no interior das salas de aula, logo os alunos são dispostos
enfileirados para melhor controle e domínio do espaço por parte do professor que
fica a frente de todos e tem uma visão periférica do local. Por isso, afirmamos que
“a escola foi (e em muitos casos ainda é) uma das instituições que atuaram no
processo normalizador, apontado por Foucault como responsável por nossas visões
reguladoras dos sujeitos e de seus corpos” (SILVA; ROSSATO; OLVEIRA, 2013,
p. 461). E evidentemente “a escola produz e reproduz conteúdos e identidades
155
culturais. Reproduz porque, como faz parte da sociedade, participa das represen-
tações que, nessa circulam” (VIEIRA, 2006, p. 72).
As mudanças mais significativas que podem ser apontadas, é primeira-
mente a aglutinação de ambos os gêneros, como já citado, além da utilização de
materiais didáticos que influenciam no interior da escola, primeiramente através
da utilização do próprio quadro de giz e posteriormente com livros didáticos
produzidos especificamente para o ensino e aprendizado dos alunos. Além disso,
visualizamos que o desenvolvimento tecnológico adentra no espaço escolar, uma
vez que, as fotografias da década de 90 foram registradas de câmeras particulares
e sem auxílio de um profissional. Logo demonstrando que esse equipamento de
certa maneira estava presente nesse local.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Jane Soares. A construção da diferença de gênero nas escolas – Aspectos históricos (São
Paulo, séculos XIX-XX). Revista Eletrônica de Educação, v. 9, n. 1, p. 65-77, 2015. Disponível em: http://
www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/1039. Acesso em: 27 jun. 2022.
CARLI, Ranieri. Educação e Cultural na história do Brasil. Curitiba: Ibpex, 2010.
CHAGAS, Viviani Ramos da Silva. A EJA no Brasil: reflexões sobre o seu histórico. CONEDU: VIII
Congresso Nacional da Educação. Maceió, 2020.
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História e Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 4ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 13 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 184 p.
MATOS, Júlia Silveira. Ensino de História, Diversidade e os Livros Didáticos: histórica, políticas e mercado
editorial. Rio Grande: Editora da Universidade Federal do Rio Grande, 2013.
QUADROS, Claudemir de. História da Educação Brasileira. Santa Maria: Editora da Universidade Federal
de Santa Maria, 2010. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/18304 de junho de /
Curso_Lic-Pedag_Historia-Educacao-Brasileira.pdf?sequence=1. Acesso em: 28 jun. 2022.
VIEIRA, Marcia Ondina Ferreira. Docentes, representações sobre relações de gênero e consequências sobre
o cotidiano escolar. In: SOARES, Guiomar Freitas; SILVA, Rosane Santos da; RIBEIRO, Paula Regina
Costa, Org(s). Corpo, gênero e sexualidade: Problematizando práticas educativas e culturais. Rio Grande:
Ed. FURG, 2006. p. 69-82.
SILVA, Cristiani Bereta de.; ROSSATO, Luciana.; OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. A formação
docente em História: Igualdade de gênero e diversidade. Revista Retratos da Escola. Brasília, v. 7, n. 13, p.
453-465, jul./dez. 2013 Disponível em: <http//www.esforce.orr.br>. Acesso em: 06 set. 2017.
Nota: esse texto é resultado da produção de pesquisa, debates e discussão realizadas dentro do grupo de
estudos em Ensino de História, que recebe financiamento de bolsa EPEC-Ensino/FURG e do projeto de
pesquisa em Livros didáticos, financiado por bolsa CNPQ-PIBIC
156
A FORMAÇÃO DO CARÁTER NOS ESCRITOS DA
EDUCADORA ELLEN G. WHITE

Erico Tadeu Xavier66

INTRODUÇÃO

Este estudo apresenta a posição da educadora norteamericana, Ellen White


sobre a formação do caráter. Suas análises são corroboradas por outras fontes com
o intuito de demonstrar que o desenvolvimento do caráter pode ser encarado
como a continuidade de sua formação até o fim da vida. Nesse sentido, a pesquisa
apresenta diversos fatores que contribuem positiva ou negativamente para isso.
Em vista da importância do caráter, este estudo visa a demonstrar que um
caráter sempre poderá ser transformado, não importa quão degradada tenha sido
sua formação, mediante a atuação de um poder superior ao de seu próprio possuidor,
sem descartar, com isso, a necessidade de seu esforço e participação.

FORMAÇÃO DO CARÁTER NA INFÂNCIA

A formação do caráter começa antes mesmo do nascimento, através da


hereditariedade. As qualidades herdadas incluem aspectos físicos, habilida-
des mentais, talentos e tendências da personalidade e caráter, fatores estes que
determinam o potencial de cada indivíduo. Todavia, mais importante do que a
hereditariedade é o “fato de que cada pessoa tem a chance de desenvolver-se a
cada dia” (HABENICHT, 1976, p. 3).
Após o nascimento, especialmente os primeiros anos são importan-
tes porque neles é colocado o fundamento para o posterior desenvolvimento,
sendo que “as lições aprendidas durante os primeiros sete anos têm mais a fazer
pela formação do caráter da criança, do que aquilo que ela aprenderá nos anos
futuros” (WHITE, 1954, p. 193).
Nesses primeiros anos algumas áreas são de especial importância para a
formação do caráter das crianças, podendo-se destacar algumas, quais sejam:

Pós-Doutorado (FAJE). Doutorado em Ciências da Religião (Atlantic International Universit – EUA). Professor de
66

Teologia (Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia) e Professor conteudista (UNINGÁ).


CV: http://lattes.cnpq.br/1331886661450859
157
a. Atitudes
“As crianças sentem e absorvem as atitudes das pessoas que a cercam.
Os pais influenciam o desenvolvimento da criança pelo trato gentil, pelo tom
de voz, pela maneira como suas necessidades são satisfeitas e pelo sorriso
feliz” (HABENICHIT, 1976, p. 5).
b. Confiança
“Se as necessidades da criança forem sabiamente satisfeitas, ela apren-
derá a interagir com amor com os pais” (HABENICHIT, 1976, p. 5). “Apren-
dendo a confiar e obedecer aos pais, certamente aprenderá a confiar e obedecer
ao Salvador” (WHITE, 2004a, p. 515).
c. Personalidade
“O fundamento da personalidade é colocado nos primeiros cinco ou seis
anos de vida, pois, para usar uma metáfora, nessa idade a criança já é um leão ou
um cordeiro” (STONE e CHURCH, 1973, p. 262).
d. Amor próprio
“A criança aprende que é importante para os outros, pois os outros gostam
dela, e que é uma pessoa de valor. As crianças que não se sentem amadas tornam-se
adultos que não amam nem respeitam a si próprios, o que leva a não amar e nem
respeitar a Deus” (BERNARD, 1970, p. 399).
e. Relacionamento com autoridade
“[...] as crianças aprendem a respeito da autoridade dos pais mesmo antes
de entender algo sobre a autoridade de Deus” (WHITE, 2004b, p. 305).
f. Consciência
É resultado do que os pais ensinam através de um código de comportamento
e será seu guia em toda a vida (Pv 5:22). “Por isso é essencial que o adulto seja
consciente em seu comportamento e atitudes”, a fim de influenciar positivamente
a criança hoje, “porque as chances de posteriormente fazer mudanças profundas na
vida e caráter de uma pessoa são muito pequenas” (HURLOCK, 1967, cap. 15).

158
A INFLUÊNCIA DOS PAIS NA FORMAÇÃO DO CARÁTER

A maioria dos psicólogos é unânime em afirmar que a formação do caráter


começa na mais tenra infância (SANTOS, 1996, p. 78). Pelas suas atitudes, anseios
e expectativas, os pais, mesmo de forma inconsciente, norteiam a vida da criança,
de modo que ela passa a adotar um estilo de vida, o que reflete e forma seu caráter.
Cientificamente se sabe que todos os aspectos – físico, intelectual e emocio-
nal – são repassados ao pequeno ser ainda em formação. A criança, “já no ventre
materno, recebe traços de caráter da mãe” (WHITE, 1989a, p. 134). “A mãe é a
que primeiro exerce a influência – positiva ou negativa – sobre a criança, pois está
nutrindo-se do próprio sangue da mãe” (WHITE, 1977, p. 371). Cabe a ela a
responsabilidade de zelar por seus hábitos durante o período de gestação, para que
o ser que está sendo gerado receba as influências para a formação de seu caráter.
Sobre o pai também repousa a mesma responsabilidade, por suas atitudes,
palavras e afeto, trabalhar para que todas as suas ações contribuam para o eno-
brecimento do caráter de seus filhos.
No capítulo 35 do livro Orientação da Criança, Ellen White apresenta
algumas maneiras pelas quais os pais podem contribuir na formação de bons
caracteres em seus filhos. Essas maneiras podem ser assim resumidas:
1) Devotando à tarefa o melhor tempo e pensamento;

2) Compreendendo os princípios envolvidos;

3) Assumindo uma posição firme e decidida;

4) Semeando pacientemente a preciosa semente;

5) Ensinando submissão á Lei;

6) Coordenando o físico, mental e espiritual;

7) Oferecendo alimento puro para a mente;

8) Tendo alvos elevados quanto ao desenvolvimento do caráter;

9) Ensinando as crianças a escolherem por si mesmas;

10) Orando por sabedoria Celestial. (WHITE, 1992, p. 184-190).

159
Um dos fatores que mais exercem grande influência na formação do caráter
é o tipo de disciplina aplicada pelos pais. Dependendo da sua forma e atuação,
teremos indivíduos fortes, estruturados ou pessoas frágeis e desequilibradas.
As capacidades físicas, mentais e espirituais devem ser desenvolvidas de
maneira equilibrada, sob o preço da disciplina. O exemplo perfeito é Jesus, que “cres-
cia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2:52).
“Pais bem informados exercem uma disciplina do tipo democrático, onde há abertura
para o diálogo, e onde as punições são aplicadas com amor” (WHITE, 1989a, p. 79).

A INFLUÊNCIA DOS AMIGOS NA FORMAÇÃO DO CARÁTER

Os pais ocupam uma sagrada posição de influência perante seus filhos,


especialmente na infância. Mas essa influência não se prolonga durante a vida
toda, e a influência externa também se destaca. “É o tempo em que os amigos se
tornam a grande influência no desenvolvimento do caráter da criança. Tudo isso
pela poderosa força do exemplo” (SMILES, s/d, p. 79).
Na idade infantil o aprendizado acontece por imitação, por isso é funda-
mental ajudar os pequenos na escolha dos amigos, para que eles não imitem os
maus traços de caráter. O relacionamento com amigos é fundamental para que a
criança aprenda a explorar os aspectos de sua personalidade. “É com o amigo que
a criança tem o relacionamento de igualdade, algo que não é proporcionado por
pais ou irmãos” (BRAZELTON, 1994, p. 529).
É também no relacionamento saudável entre amigos que a criança aprende
pela primeira vez a fazer concessões mútuas exigidas pela igualdade. “Os amigos
proporcionam o aprendizado recíproco da autoridade domínio ou submissão (valor
próprio e humildade)” (BRAZELTON, 1994, p. 530).

A INFLUÊNCIA DOS PROFESSORES NA FORMAÇÃO DO


CARÁTER

No ambiente escolar o professor é um modelo que a criança costuma imitar.


Mesmo que a criança já traga de casa o modelo familiar, ela extrai do professor
elementos comportamentais que incorporará em seu próprio caráter.
“A questão do respeito à autoridade, por exemplo, dependerá amplamente da
maneira como o professor expressa pleno domínio de si mesmo nas mais variadas
situações, mostrando firmeza no momento de requerer respeito à obediência da
160
criança” (MAUCO, 1975, p. 116). A fraqueza da autoridade do professor contribui
para a insegurança e inadaptação da criança.
Sobre a questão da obediência, cabe também ao professor um papel fun-
damental, uma vez que ele precisa estabelecer regras a serem obedecidas, as quais
devem dirigir a conduta dos alunos. “Devem ser poucas regras, mas claras e colo-
cadas em execução” (WHITE, 1994a, p. 323).
A influência do professor como educador deve ser exemplar, posto que as
crianças veem e sentem o que ele faz. Professores capazes de formar o caráter de
“homens e mulheres de sólidos princípios, habilitados para qualquer posição na
vida, são os mestres mais úteis e de êxito permanente” (WHITE, 1994b, p. 4).

O DESENVOLVIMENTO DO CARÁTER

Ao se estudar sobre o caráter do homem, a primeira questão que se evi-


dencia é se ele pode ou não ser desenvolvido. Para alguns filósofos, como Kant,
Schopenhauer, Spinosa, Ribot, Buhler e Kafka, o caráter é um dado hereditário
imutável. A criança traz, desde o nascimento, sua constituição psíquica integral,
esperando apenas o momento oportuno para sua eclosão completa. Para outros, como
Locke, Helvetius, Watson, Freud e Adler, o caráter nada tem de inato, resultando
unicamente da influência do meio e da educação. Por outro lado, “Stern, Piaget
e Clarepede afirmam que a formação do caráter é produto da ação conjugada da
herança, do meio social e da educação” (SANTOS, 1957, p. 183).
Apesar dessa controvérsia, se sabe que o caráter pode ser desenvolvido.
Embora certas propriedades do caráter sejam herdadas e essas limitem até certo
ponto o seu desenvolvimento, “há um amplo espaço que cada indivíduo pode
desenvolver através da vontade pessoal, com educação, autoeducação e responsa-
bilidade” (BRUGGER, 1977, p. 73).
Portanto, o caráter não se constrói ao acaso, acidentalmente. “É uma obra de
toda uma vida, envolvendo o somatório das experiências do passado e do presente”
(SANTOS, 1996, p. 53). Um caráter nobre deve ser o ideal de vida de qualquer
pessoa, mas não se pode consegui-lo unicamente por desejá-lo. “É necessário labor,
esforço da parte do homem” (WHITE, 1978a, p. 347).
O desenvolvimento do caráter resulta no sucesso nesta vida e na futura.
Ellen White afirma que “o caráter formado segundo a semelhança divina é o único
tesouro que neste mundo podemos levar para o futuro. [...] Que importância tem,
pois, nesta vida, o desenvolvimento do caráter” (WHITE, 1978a, p. 100).
161
Já que o caráter pode ser desenvolvido, a pergunta imediata que vem à mente
é: como posso desenvolvê-lo de modo que se possam mudar hábitos e vida? Cattel
e outros autores citados por Floyd Ruch, afirmam que para “desenvolver o caráter
é necessário persistência, disposição, maturidade e energia” (RUCH, 1941, p. 465).

OS ESCRITOS DE ELLEN WHITE

A educadora Ellen White apresenta vários fatores que contribuem para o


desenvolvimento e formação de um caráter puro e santo.
a) Estudo das Escrituras e Oração
“A Bíblia inteira é uma revelação de Deus, e se esta for aceita, estudada e
obedecida, é o grande instrumento que Deus nos dá para desenvolvermos nosso
caráter” (WHITE, 1994b, p. 249). “Prosseguir em conhecer ao Senhor, ou seja,
estudo diligente das escrituras e oração aperfeiçoa o caráter” (WHITE, 1978a, p. 15).
b) Boa leitura
A leitura de bons livros é importante. “A juventude deve ler livros que exer-
çam sobre o espírito efeito saudável e santificador. Há muita literatura considerada
boa que não contribui para isto” (WHITE, 1978a, p. 287).
c) Controle da mente e dos pensamentos
Os pensamentos são preponderantes na formação do caráter. “Os pensamentos
devem ser controlados, pois pensamentos impuros causam profunda impressão à
mente, e acabarão interferindo em nossas ações. Por outro lado, bons pensamentos
abrem caminho para boas ações. Nossa mente não deve parar em nada que seja
impuro ou estimule maus pensamentos” (WHITE, 1978a, p. 143-144).
d) Escolha de companheiros
“Devemos escolher para nossa companhia companheiros que possam nos
ajudar no desenvolvimento do nosso caráter. Más companhias têm arruinado o
caráter e a vida de muitos” (WHITE, 1978a, p. 164).
e) Trabalho
Os jovens devem se ocupar com trabalho útil. A preguiça acaba se tornando
um hábito que trará consequências. Na formação da juventude, o trabalho, mesmo
braçal é de maior valor do que jogos (WHITE, 1978a, p. 209-214).

162
f ) Contato com a natureza
“O contato constante com a natureza, a observação das belas coisas da criação
de Deus, propendem a despertar o espírito, purificar e elevar o caráter. Desperta o
interesse e respeito pelas coisas que Deus criou” (WHITE, 1973, p. 143).
g) Esforço Diligente
Deve haver sincero e perseverante esforço para romper com os costumes,
regras e más associações (WHITE, 1989b, p. 547). Os elementos que tornam o
desenvolvimento do caráter bem sucedido são: desejo irreprimível; vontade indo-
mável; esforço tenaz; incansável perseverança (WHITE, 1978b, p. 669).
h) Como desenvolver o Caráter
“Cada ato da vida tem sua influência neste processo. As pequenas coi-
sas têm sua influência e a negligência nestas coisas pode deixar grandes defi-
ciências no caráter das pessoas” (WHITE, 1989b, p. 546). As faculdades men-
tais e morais devem ser educadas para a formação de um caráter de valor, com
pleno desenvolvimento do intelecto.
i) A meditação e a atividade
A meditação e a atividade são essenciais à formação do caráter cristão.
j) O trabalho duro
Trabalho duro é essencial ao êxito de cada jovem. Devemos vencer a incli-
nação de procurar uma ocupação fácil e em qualquer posição que servirmos
estarmos desenvolvendo o caráter.
l) O tempo
Todo momento deve ser sabiamente aproveitado, cuidando de se proteger
o coração (a mente) de determinadas coisas que possam denegrir o caráter. Um
coração bem protegido significa sobrevivência.
m) A resistência
No que concerne às tentações; a fortuna, a fama, o poder e o prazer são os
maiorais. “Resistindo contra cada uma delas de peito aberto, cultivaremos o caráter
dentro de nós” (SWINDOLL, 1985, p. 22).
n) Sinceridade e integridade
Deve-se buscar a sinceridade com todo coração, pois ela faz parte de um
caráter sólido, sem hipocrisia e máscaras. Deve-se buscar ser verdadeiros e honestos,
apresentando profundidade de pensamentos e firme integridade.
163
o) Os talentos
Os talentos devem ser aproveitados ao máximo. Deus nos deu estes talentos
para honrar e glorificar o Seu nome e para o bem de nossos semelhantes.

A TRANSFORMAÇÃO DO CARÁTER

Se todos os seres humanos possuíssem um caráter puro e nobre as relações


e a qualidade de vida seriam diferentes. Porém, tal coisa não é a realidade. Muitas
pessoas há que estão à margem da utilidade, da realização pessoal, da felicidade e,
sobretudo, da paz perene, porque vivem sob a tutela de um caráter desqualificado
e vil. Questiona-se: Há esperança para tais pessoas? Um caráter perverso e mau
pode ser transformado? Se pode, que fatores determinam essa mudança? Essas
perguntas são respondidas mediante quatro abordagens: o poder da vontade, a
entrega a Deus, o esforço humano e o sentido da palavra caráter.
1) o poder da vontade
O primeiro ingrediente para uma transformação efetiva de caráter é a von-
tade. Todo ser humano é dotado do livre arbítrio. Isso significa dizer que ele pode
escolher que direção dar a sua própria vida. Quando através de um ato decidido
da vontade o homem escolhe adquirir um caráter nobre, está crescendo nessa
possibilidade, o que é essencial para qualquer mudança. “Ninguém diga: não posso
remediar meus defeitos de caráter [...] A impossibilidade está em nossa própria
vontade. Se não quiserdes, não vencereis” (WHITE, 1989b, p. 549).
A vontade do homem canalizada na direção da mudança abre possibilidade
para a transformação, redireciona os objetivos e prioridades e coloca o homem
na condição de ser transformado. “A vontade é o poder que governa a natureza
do homem, trazendo todas as outras faculdades sobre sua influência. A vontade
não é o gosto ou inclinação, mas é o poder de decidir” (WHITE, 1992, p. 209).
No entanto, é preciso lembrar que o homem sozinho não é capaz de produzir
a transformação necessária, requerendo o poder divino. “Colaborando a vontade
do homem com a de Deus, ela se torna onipotente. Tudo que deve ser feito a seu
mandado, pode ser cumprido por Seu poder” (WHITE, 1978a, p. 101).
Deus pode e quer realizar a transformação cabendo ao homem exercer sua
vontade na direção da vontade de Deus. “Não podeis controlar vossos impulsos,
vossas emoções, como desejareis, mas podeis controlar a vontade, e fazer uma
completa mudança em vossa vida” (WHITE, 1989b, p. 549).
164
2) a entrega a Deus
O segundo passo na direção da transformação do caráter é a entrega da vida
a Deus. Para que haja essa entrega o homem precisa conhecer o terno amor de
Deus e ter a clara noção da impossibilidade humana. “Devemos ter menos con-
fiança no que podemos por nós mesmos fazer, e mais confiança no que o senhor
para nós e por nós pode fazer” (WHITE, 1977, p. 514).
A advertência de que “Satanás está planejando aproveitar-se de nossos
traços de caráter, hereditários e cultivados, e cegar-nos os olhos para nossas
necessidades e defeitos. Unicamente compreendendo a própria fraqueza e
olhando firmemente para Jesus, podemos caminhar com segurança” não deve ser
negligenciada (WHITE, 1978a, p. 101).
Uma atitude de entrega verdadeira a Deus, capaz de experimentar a trans-
formação de caráter, tem algumas características próprias, descritas a seguir:
a) Compromisso com Deus
Compromisso envolve responsabilidade e disposição para conhecer a Deus e
permitir Sua correção. Swindoll explica de forma feliz: “uma pessoa santa é aquela
que possui um coração sensível para Deus, uma pessoa que leva a Deus muito a
sério” (SWINDOLL, 1985, p. 201).
A promessa de Deus é de que O acharemos quando O buscar-
mos de todo o coração ( Jr 29:13).
b) Atitude de Oração
“Deus supre todas as nossas necessidades segundo nossa própria capacidade
para receber” (WHITE, 2004a, p. 121). Portanto, a oração não tem o objetivo de
modificar a Deus. Ele já está pronto a nos atender. A oração muda a nós mesmos,
preparando-nos para receber o que Deus quer nos dar.
O poder da oração não consiste tampouco nas palavras, mas em que através
da oração a vontade humana vai aos poucos se assemelhando à vontade de Deus
e produz uma atitude interior que permite a ação transformadora de Deus. Pedir
que Deus nos ensine a orar e nos dê vontade para orar, deve ser a constante preo-
cupação de todos os que querem apoderar-se do poder transformador de Deus.
3) o esforço humano
a) Alvos de crescimento constante
A acomodação impede o pleno desenvolvimento. “Lembrai-vos que nunca
alcançareis norma mais elevada que a que vos propuserdes” (WHITE, 1978a, p. 99).
165
b) Rompimento com as práticas passadas
Qualquer associação ou condescendência com os costumes passados que
deterioram o caráter leva a pessoa ao impedimento do processo de transforma-
ção. Ellen White explica que o esforço deve ser sincero, cuidadoso e perseverante
para romper com os costumes, regras e associações do mundo. Profundidade de
pensamento, sinceridade de desígnio, firme integridade são essenciais.
c) Perseverança
Significa continuar colocando em prática as verdades recebidas, pois
“no aperfeiçoamento do caráter cristão é essencial perseverar em agir corre-
tamente” (WHITE, 1978a, p. 552).
d) Vigilância
Virão momentos de tentação e prova que exigirão atitude de vigilância.
“É preciso uma vigilância e uma disciplina constantes [...] Haverá sem dúvida
hesitações, erros, desfalecimentos momentâneos. Ter-se-á de lutar contra nume-
rosas dificuldades e tentações, e de vencê-las [...]” (SMILES, s/d, p. 14).
4) o sentido profundo da palavra caráter
“A palavra caráter vem de um vocábulo grego que significa ‘gravar’. É, por-
tanto, a marca característica do estilo de vida de uma pessoa” (VAN PELT, 1996,
p. 106). O caráter é o que a pessoa de fato é, aquilo que somente a própria pessoa
e Deus conhecem. Em Jeremias 31:33 Deus afirma que “na Nova Aliança escre-
veria Sua Lei no coração e na mente do homem”. Escrevê-la no homem significa
imprimir nele o próprio caráter de Deus (cunhar, como um sinal impresso).
O que significa possuir caráter de Deus? A expressão bíblica “imagem de Deus”
em Gênesis 1:27 é um dos textos que afirma que o homem foi feito à imagem de
Deus. II Coríntios 4:4 diz que Cristo é a imagem de Deus. Portanto, os homens
possuem certos atributos divinos dados pelo próprio Deus, entre eles: o livre arbí-
trio, a razão, a capacidade de amar, respeitar, os talentos, a inteligência etc. Todos
os seres humanos possuem os atributos anteriormente citados, mas somente os
que se entregam ao Senhor e são transformados podem possuir o caráter de Deus.
Diante disso, Ellen White afirma que “a grande obra de pais e mestres é a
formação do caráter – procurar restaurar a imagem de Cristo nos que se acham
sob seus cuidados” (WHITE, 1994a, p. 55). Afirma ainda que “a formação do
caráter é a obra de toda a vida” (WHITE, 1992, p. 162) e “a transformação do
caráter é o testemunho para o mundo de que Cristo habita o ser” (WHITE,
166
1989b, p. 549). E acrescenta: “O caráter formado à semelhança divina, é o único
tesouro que podemos levar deste mundo para o futuro” (WHITE, 1992, p. 161).
Assim, possuir o caráter de Cristo é muito mais que expressar atitudes retas
e nobres. É revelar a expressão máxima da semelhança com Deus, característica
dos que possuem os princípios da lei de Deus gravados no interior, e este é um
processo que dura toda a vida e cujos frutos serão para a eternidade.

CONCLUSÃO

A formação do verdadeiro caráter começa na infância pela influência


direta dos pais, dos amigos e dos professores. O contexto familiar, a religião,
os bons princípios, o estudo das escrituras sagradas, as escolhas adequadas de
leitura, trabalho, amizades, entre outros aspectos, contribuem para que a criança
cresça com um caráter bem formado.
A transformação do caráter é possível mediante o poder da vontade da entrega,
da renúncia e compromisso com Deus. O esforço humano aliado ao Poder Divino
resultará em um caráter transformado e mais semelhante ao caráter de Deus.
Para a formação do caráter na criança se ressalta a importância da presença
de Deus na formação do caráter, especialmente na vida das crianças de hoje, que
vivem em um mundo conturbado, no qual está presente a desagregação familiar
e social, fatores que levam as crianças a seguirem caminhos que marcarão sua
existência terrena e na eternidade.

REFERÊNCIAS
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BRAZELTON, T. Berry. Momentos decisivos no desenvolvimento infantil. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BRUGGER, Walter. Dicionário de filosofia. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda., 1977.
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trabalho apresentado para o curso Seminário do Desenvolvimento do Caráter, 1976.
HURLOCK, Elizabeth. Child development. New York: McGraw-Hill, 1967, cap. 15.
MAUCO, Georges. A educação afetiva e caracterial da criança. Lisboa, 1975.
RUCH, Floyd L. Psychology and life: A study of the trinking, feeling and doing of people. Chicago: Scott,
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SANTOS, Augusto César Maia. Caráter ou personalidade – O que o cristão deve mudar afinal? Artur
Nogueira – SP: Centro de Divulgação de Saúde – Editora Ltda., 1996.
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SWINDOLL, Charles. Firme seus valores. Venda Nova, MG: Betânia, 1985.
VAN PELT, Nancy. Filhos, educando com sucesso. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996.
WHITE, Ellen. Child guidance. Nashiville,TN: Southern Publishing Association, 1954.
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______. Ciência do bom viver. Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1977.
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Publicadora Brasileira, 1994a.
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______. Testemunhos para a igreja. v. 5. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004b.

168
ARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO: UM DIÁLOGO
INTERDISCIPLINAR ATRAVÉS DO PATRIMÔNIO

Thandryus Augusto Guerra Bacciotti Denardo67

O campo da Arqueologia no Brasil vem se consolidando cada vez mais atra-


vés da profissionalização incentivada pelas mudanças ocorridas no licenciamento
ambiental, especialmente a Portaria nº 230/2002 do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que tornou obrigatório os estudos
preventivos de Arqueologia em empreendimentos que afetem áreas acima de
no mínimo 1000 m². A Lei do licenciamento ambiental vem sofrendo diversos
ataques desde sua criação, especialmente por parlamentares alinhados mais com
os interesses da burguesia (empresarial e latifundiária) do que com a proteção do
patrimônio nacional, como a tentativa do deputado Kim Katagiri (DEM-SP) de
acelerar todo o processo de obtenção de licenças (A VERDADE, 2019).
Uma particularidade dos estudos arqueológicos no Brasil, no âmbito da
Arqueologia Preventiva ou de Contrato, isto é, a Arqueologia ligada ao licencia-
mento ambiental e que corresponde a cerca de 98% dos estudos arqueológicos
e geração de acervos (WICHERS apud VASCONCELLOS, 2020, p. 139), é
que a mesma portaria já mencionada estabelece, no seu Art. 6, parágrafo 7º, a
obrigatoriedade de ações voltadas à Educação Patrimonial. A concepção da área
de Educação Patrimonial se modificou desde esta primeira portaria, o que pode
ser visto através da publicação Educação Patrimonial, histórico, conceitos e processos
(IPHAN, 2014), na qual se destaca a Educação Patrimonial como um processo
de mediação em bases vigotskianas, e busca uma descentralização das instituições
de ensino formal e não-formal, compreendendo os territórios como espaços edu-
cativos. Tais pressupostos foram oficializados na Portaria IPHAN nº 137/2016:
Art. 3º. São diretrizes da Educação Patrimonial:

I. Incentivar a participação social na formulação, implementação


e execução das ações educativas, de modo a estimular o protagonismo
dos diferentes grupos sociais;

II. Integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os


bens culturais aos espaços de vida das pessoas;

67
Doutorando em Arqueologia (MAE/USP). CV: http://lattes.cnpq.br/1058669383267451
169
III. Valorizar o território como espaço educativo, passível de lei-
turas e interpretações por meio de múltiplas estratégias educacionais;

IV. Favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valo-


rização e preservação do patrimônio cultural;

V. Considerar que as práticas educativas e as políticas de pre-


servação estão inseridas num campo de conflito e negociação entre
diferentes segmentos, setores e grupos sociais;

VI. Considerar a intersetorialidade das ações educativas, de modo


a promover articulações das políticas de preservação e valorização
do patrimônio cultural com as de cultura, turismo, meio ambiente,
educação, saúde, desenvolvimento urbano e outras áreas correlatas;

VII. Incentivar a associação das políticas de patrimônio cultural


às ações de sustentabilidade local, regional e nacional;

VIII. Considerar patrimônio cultural como tema transversal e


interdisciplinar.

Proponho refletir sobre a potencialidade do diálogo entre a Arqueologia e a


Educação, tendo o patrimônio como ponto de convergência dos dois campos. O
texto está dividido em três partes. Na primeira, apresentarei algumas discussões
sobre o campo da Arqueologia, a fim de desmistificar algumas confusões ou com-
preensões erradas sobre ele; em seguida, mostrarei algumas potencialidades que a
interface Arqueologia/Educação tem através do conceito de patrimônio-gerador.
Por fim, darei alguns exemplos para mostrar como o patrimônio pode servir para
trazer questões que problematizem a nossa sociedade capitalista, dentro de pers-
pectivas anti-coloniais e anti-imperialistas, e promovam uma esperança capaz de
mobilizar para sua substituição.

ARQUEOLOGIA COMO CIÊNCIA DO PRESENTE

Antes de mais nada, é necessário desmistificar a ideia de que a Arqueologia é


a ciência relacionada ao estudo do passado longíquo. O principal objeto de estudo
do campo é a chamada cultura material, isto é, os objetos que foram modificados
fisica ou simbolicamente através das ações humanas dentro de uma cultura. A
partir da associação de elementos é possível estabelecer relações entre tais objetos
(interpretá-los) a fim de compreender modos de produção (tanto na sua infraes-
trutura quanto na sua superestrutura) e estudar o desenvolvimento de sociedades
170
pretéritas e seus “processos de transformação até sua união com sociedades mais
recentes. [...] Estes processos não são somente acumulativos mas se criam e recriam
continuamente, se transformam e se projetam para o futuro” (VARGAS, 1986, p.
7, tradução minha). Em outras palavras, a Arqueologia é antes de tudo uma ciên-
cia do presente. Dentro da perspectiva da Arqueologia Social Latino-americana.
A Arqueologia não é, como não é nenhuma ciência, uma etérea ati-
vidade acadêmica separada dos problemas da sociedade de onde se
desenvolve; é, e sempre tem sido, um instrumento ativo da luta social
que se veicula permanentemente; serve para dar coesão e sustento à
classe social que a utiliza. A Arqueologia é arma de opressão quando
serve para justificar a exploração dos camponeses indígenas de nossos
países, desenvolvendo “teorias” que mostram sua inferioridade histórica
frente aos invasores europeus e sua tendência à decadência. É arma
de opressão quando saúda e engrandece o passado para insultar o
presente, criando a retrógrada convicção de que “todo tempo passado
foi melhor”. É arma de opressão quando é utilizada para inventar o
caos e o azar na história anônima dos povos pré-históricos [sic] ou
agráfos. É arma de opressão quando converte em objeto o sujeito
histórico. A Arqueologia, no entanto, é arma de libertação quando
descobre as raízes históricas dos povos, ensinando a origem e o caráter
de sua condição de explorados; é arma de libertação quando mos-
tra e descobre a transitoriedade dos estados e das classes sociais, a
transitoriedade das instituições e das pautas de conduta. É arma de
libertação quando se articula com as demais ciências sociais que se
ocupam dos problemas de hoje, e mostra a unidade processual da
história em seus fins gerais e suas particularidades regionais ou locais.
(LUMBRERAS, 1981, p. 6, tradução minha)

Dentro desta perspectiva, a prática arqueológica deve participar da constru-


ção de uma sociedade justa (ARENAS, 2007); sendo parte do legado filosófico
latino-americano, ela “se coloca como meio para fornecer validade histórica a um
continente brutalmente colonizado pelo modo de vida ocidental por mais de cinco
séculos” (BENAVIDES, 2011, p. 185), dentro de uma proposta revolucionária,
definida por programas de pesquisa altamente politizados e socialmente compro-
metidos (MCGUIRE e NAVARRETE, 1999).
O principal objeto de estudo da pesquisa arqueológica, como já foi dito, é a
cultura material, isto é, o conjunto de produtos (materiais e imateriais) do trabalho
humano e o desenvolvimento de diferentes tecnologias em diferentes sociedades.
Tais objetos permitem compreender as bases econômicas, simbólicas e culturais.
171
Assim, a Arqueologia permite observar processos de longa duração histórica,
como os processos de expropriação das sociedades indígenas, ou a formação dos
processos de exclusão baseados na raça. Existe, inclusive, a área hoje conhecida
como Arqueologia do passado recente, voltada a compreender particularmente a
produção de cultura material da nossa sociedade ocidental contemporânea.
O conceito de trabalho, enquanto forma estritamente humana de atuar sobre
a natureza a fim de criar maneiras de ser e estar no mundo, é um conceito que liga
não só o presente com o passado, mas também abre um campo de diálogo imenso
entre a Arqueologia e uma Educação baseada nas perspectivas de Paulo Freire. É
sobre isto que falarei na próxima seção.

PAULO FREIRE E ARQUEOLOGIA: PATRIMÔNIO-GERADOR

Para Paulo Freire, o ensino-aprendizagem é um processo de apreensão


do mundo, baseado principalmente no questionamento, no estabelecimento de
relações e na ação sobre a realidade. O autor vê a Educação como um processo
profundamente humanizador diante de uma realidade capitalista desumaniza-
dora, “uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos”
(FREIRE, 1980, p. 30), uma distorção da possibilidade de ser mais, esta sim a
vocação da humanidade68. Diante desta opressão, é necessário o ato de se engajar
no mundo, provocando mudanças que em última instância levam a uma revolução
social, em que a classe oprimida possa ser capaz de libertar a si mesma e a seus
opressores. Dessa forma, “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação,
exige uma permanente busca” (Ibid., p. 35), uma permanente busca que começa
na indagação crítica do mundo que seja capaz de articular novos conhecimentos
com velhos e mobilizar experiências.
O conceito do trabalho tem um papel-chave nesta concepção libertadora
e crítica do ensino-aprendizagem, uma vez que é através do trabalho que o ser
humano modifica sua realidade. O trabalho e seus frutos assim servem como
temas geradores na obra freiriana, isto é, temas transversais que, ao serem tra-
tados coletivamente, trazem questionamentos e suscitam soluções a partir da
investigação crítica da realidade.
68
É possível notar a proximidade de Paulo Freire com Leontiev. Para o psicólogo soviético, são as atividades humanas que
relacionam categorias sociais, culturais e biológicas, e a grande diferença do desenvolvimento humano é a capacidade de
complexificar o planejamento através de uma grande quantidade de passos a fim de realizar um dado objetivo; no entanto, a
sociedade capitalista, ao alienar o trabalho, justamente vai contra o próprio desenvolvimento humano, gerando sofrimentos
e doenças psíquicas (LEONTIEV, 2004). Para o autor, o ensino e a aprendizagem (que ainda não eram vistos como um
processo único) é a maneira pela qual se dá a apreensão crítica (não alienada) das atividades humanas.
172
Na obra de Freire o trabalho é concebido tanto na sua dimensão
ontológica – como condição do processo de humanização do ser –
quanto histórica, no reconhecimento que o autor faz das suas diferentes
manifestações ao longo do tempo. Destaca-se a singular e profunda
relação que Freire estabelece em alguns de seus escritos entre lin-
guagem (palavra/diálogo), consciência (de classe) e a experiência do
trabalho. [...]

O trabalho, do ponto de vista ontológico, é entendido na sua acepção


mais ampla enquanto práxis humana material e não material, não se
reduzindo à produção de mercadorias. (FISCHER, 2010, p. 401)

Por fim, Paulo Freire coloca que o processo de educar-ensinar necessita de


um certo radicalismo, em que o educador-educando “não se sente dono do tempo,
nem dono dos homens [sic], nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete,
dentro do tempo, para com eles lutar” (FREIRE, 1980, p. 24, grifo meu).
Temos, portanto, dois importantes pontos de convergência com a Arqueologia
Social apresentada anteriormente: a compreensão do trabalho como conceito-chave,
inclusive levantando seus aspectos históricos, e, principalmente, o comprome-
timento com a mudança social para uma sociedade justa. Como estabelecer tal
diálogo, como construir a interface Arqueologia/Educação? A resposta passa pelo
patrimônio e a Educação através do patrimônio.
Antes de mais nada, é necessário voltar para a questão da Educação Patri-
monial na Arqueologia. Sem querer estender a longa discussão das relações
estabelecidas entre os dois campos ao longo das décadas69, concordo com a pers-
pectiva apresentada por Scifoni (2019) em que a Educação Patrimonial aparece
como um direito difuso70. Assim ela “se justifica, não pelo seu pretenso caráter
redentor dos problemas do patrimônio, mas como direito social e como neces-
sidade, significa afirmar que ela está em primeiro lugar e não como anexo e
complemento do processo de patrimonialização” (SCIFONI, 2019, p. 30). Visto
como um direito transindividual, e principalmente relacionado aos coletivos, é
possível se afastar de perspectivas individualistas tanto no âmbito da Educação
quanto a respeito do patrimônio.
O que é patrimônio? Rapidamente, podemos compreender por patrimônio o
conjunto de elementos materiais e imateriais com significados próprios atribuidos

Para uma discussão a partir das relações institucionais, ver Oliveira (2019).
69

Direito difuso é aquele cujo principal receptor são coletivos sociais e não indivíduos. Por exemplo, o meio ambiente é
70

um direito difuso.
173
por grupos sociais, participando da memória e da identidade destes grupos. Assim,
o patrimônio não existe por si próprio, ou melhor dizendo, ele só existe de maneira
coletiva. É dessa forma que ele aparece no Art. 216 da Constituição Brasileira;
Krenak, que participou ativamente da Constituinte de 1988 e, portanto, fez parte
da construção do atual entendimento jurídico a respeito do patrimônio, relata que
O que eu achei muito interessante no processo que me envolveu na
Constituinte é que eu tinha patrimônio muito mais como recursos do
que como direito. Antes de isso aparecer para mim como um acervo,
um patrimônio, ele aparecia para mim como um recurso, e eu nem
tinha pensado criticamente na diferença que pode haver entre um
acervo e um recurso. Agora, pensando criticamente, imagino que a
diferença seja a seguinte: o recurso é aquilo que você frui na vida
[...]. Vai fruir um recurso. É diferente da ideia de você ter um acervo.
Nesse conceito de acervo, você está aqui deste lado da montanha, mas
sabe que do outro lado da montanha tem disponível um conjunto de
bens, de coisas que você pode ter contato.

Da Constituinte pra cá, passamos a difundir a ideia de que existe um


acervo. [...] e inclui os bens tangíveis, aquilo que você toca, que você
percebe, que você consegue demonstrar, e também os intangíveis [...]
(KRENAK e CAMPOS, 2021, p. 25-26)

Esta perspectiva de patrimônio traz potencialidade de diálogo entre Arqueo-


logia e Educação ao pensar neste acervo como um inventário de temas geradores
capazes de problematizarem a sociedade capitalista contemporânea (DENARDO,
2020). Demarchi (2021) apresenta o conceito de patrimônio-gerador, em que
“o patrimônio é tomado como objeto mediador das relações educativas e serve
ao objetivo de conscientização dos sujeitos” (p. 77) a partir da investigação da
realidade. Isto significa que o patrimônio do passado serve para projetar novas
possibilidades de futuro, especialmente ao apreender criticamente o presente, de
acordo com a sugestão que Santos (2008) faz de
compreender o objeto, a manifestação cultural, como um ponto de
partida para questionamentos, comparações, a fim de estabelecer
conexões entre o velho e o novo, arte e ciência, uma cultura e outra,
para uma análise crítica e o estímulo da criatividade, fazendo a ponte
entre os obejtos e a cultura do aluno, potencializando o patrimônio
cultural como vetor de produção de conhecimento. (p. 141)

174
Uma vez que os objetos são compreendidos como vetores de processos sociais,
é possível discutir o que leva certos objetos a se tornarem patrimônio e outros não.
Isto é, a investigação crítica71 de um acervo patrimonial constitui um laboratório
de História, onde é possível analisar memórias a partir de uma dimensão crítica
(MENESES, 1994). Sendo o patrimônio fruto do trabalho humano, a hierarqui-
zação de certos produtos que se tornam tombados ou musealizados muitas vezes
passa pela divisão de classes dentro da própria sociedade, onde é o patrimônio
relacionado à elite e seu modo de vida aquele mais valorizado, ou então patrimônios
sobre os quais são erigidos discursos que glorificam um passado inexistente a fim
de criar discursos ufanistas. Outra capacidade do acervo é discutir criticamente o
presente através dele, seja através da problematização de como aquele objeto che-
gou a ser produzido, seja através da problematização de como ele foi consumido.
Por fim, patrimônio-gerador pode servir no combate aos preconceitos e
racismos que fazem parte da superestrutura do modo de produção capitalista.
Milanez et al (2019), por exemplo, descrevem como o racismo contra povos indí-
genas aparece enquanto segregação, negação da existência, fossilização da cultura,
além de preconceito religioso desde a chegada dos europeus à América. Vemos
diversas mentiras sendo contadas sobre estes povos, como eles serem aculturados,
terem muito privilégios, muitas terras, serem atrasados e não gostarem de trabalhar
(PORTAL GELEDÉS, 2014). Nos últimos anos, vimos o presidente Bolsonaro e
seu vice dizendo que indígenas são como animais em zoológico (G1, 2018), ou se
lamentarem que os indígenas não tenham sido dizimados no passado (G1, 2022).
Diante disso, vale notar a perspectiva de Souza (2022), que traz como
objetivos do ensino de história e cultura indígenas (dentro do âmbito do currí-
culo de Física): i. Consciência da existência do preconceito nos indivíduos e na
sociedade; ii. Combate ao problema; iii. Auto-sócio-crítica do mundo moderno
atual; iv. Invenção, valorização, reinvenção e reativação de práticas e conhecimen-
tos. Dentro de cada um deles, é necessário desaprender e aprender conceitos, e
podemos facilmente ver como o patrimônio-gerador pode ser importante tanto
para a desaprendizagem quanto para a aprendizagem.

71
Esta investigação crítica abre espaço inclusive para se desenvolver interfaces com disciplinas das ciências naturais, como
a Física, uma vez que é possível discutir quais técnicas são utilizadas na análise dos objetos, quais os limites desta técnica,
e como elas modificaram o próprio fazer arqueológico, levando à formação de uma auto-consciência crítica de como são
realizadas as pesquisas (CLARKE, 1973).
175
Tabela 1. Quadro de tópicos a serem desaprendidos e aprendidos em sala de aula (SOUZA,
2022, p. 17)

176
EM VIAS DE CONCLUSÃO: O PRINCÍPIO MOBILIZADOR DA
ESPERANÇA

O capitalismo só pode existir graças ao processo contínuo de acumula-


ção primitiva, processo este constituído pelo saque e desapropriação de classes
oprimidas. Como integrantes da classe trabalhadora em um país do Sul Global,
sofremos na pele as consequências diretas desta acumulação por expropriação e
as tensões causadas por ela. Diante do imperialismo, muitas vezes parece que não
temos para onde correr, ou que não temos alternativa a não ser nos submetermos
a um liberalismo que, no máximo, vai destruir o planeta em longo prazo ao invés
de curto. A Arqueologia como ciência do presente mostra a continuidade desta
expropriação e como ela forma a sociedade capitalista contemporânea.
Por exemplo, o patrimônio musealizado de um povo indígena serve como
gerador para uma série de questões iniciais, uma vez que pode colocar em evidência a
violência colonial através do saque e roubo de terras, além do apagamento da história.
O que aconteceu com o povo que, através do seu trabalho, produziu aquele patri-
mônio? Como suas terras eram usadas no passado, e como são usadas no presente?
Quais são as continuidades e diferenças que podem ser estabelecidas? A comuni-
dade regional é influenciada por seu passado indígena? O que podemos aprender?
Por outro lado, os diversos patrimônios dos povos afro-brasileiros ser-
vem como inventários de temas relacionados à resiliência de dezenas de povos
sequestrados e trazidos para o Brasil, a forma como estas diversas culturas per-
sistiram na nossa sociedade, a manutenção de uma ancestralidade juntamente
com mudanças produzidas por escolhas sociais. Através deste acervo, podemos
problematizar como o racismo é intrínseco ao capitalismo, as relações da ideologia
da supremacia branca com o liberalismo, como as relações de trabalho escravistas
se relacionam com as relações de trabalho estabelecidas hoje, com direitos traba-
lhistas cada vez mais precarizados.
Como último exemplo, o acervo gerado pelas pesquisas relacionadas à
Arqueologia do passado recente também traz uma série de questões iniciais que
podem ser trabalhadas. Qual foram os processos políticos do período da ditadura
militar e é possível estabelecer analogias com hoje em dia? Quais foram as con-
sequências de um restabelecimento democrático feito a partir de acordos a portas
fechadas, com ampla anistia a torturadores militares, mas não às suas vítimas? É
possível estabelecer uma continuidade com as constantes violências sofridas em

177
favelas e em terras indígenas a ponto de falar que a história brasileira é marcada
por uma constante guerra civil?
A partir da investigação destas questões, reconhecemos que estes povos e
grupos sociais que sofreram e sofrem a violência também resistem ao capitalismo
por séculos, e que a nossa sociedade é apenas uma possibilidade entre tantas
outras. Vemos outras maneiras de estar no mundo e modificá-lo. Temos a chance
de elencar novas formas de agir e modificar o mundo que nos rodeia através do
patrimônio-gerador. Assim, a Arqueologia, em interface com a Educação, pode
servir ao que Freire chamou de uma postura “criticamente esperançosa”, em que o
futuro não está escrito e a desumanização não é inevitável (FREIRE, 2018). Em
outras palavras, existem sim alternativas à sociedade liberal e capitalista.
Esperança se relaciona com a nossa capacidade de projetar o futuro e sonhar,
sonhar com realidades que ultrapassam o curso dos acontecimentos e que, ao estar
em desacordo com a realidade, nos permite trabalhar para a realização destas utopias
(LENIN, 2017). Este é o “princípio de esperança” que podemos tirar da Arqueo-
logia e Educação em diálogo, uma esperança que “não é um otimismo irrestrito e
irresponsável, senão um realismo baseado no que a História nos mostra. As coisas
podem mudar se atuamos em coletivo. A desesperança imobiliza. A esperança
abre horizontes” (VÁZQUEZ, 2018, p. 672, tradução minha).

Agradecimentos

Gostaria de agradecer minha companheira e camarada, Ana Carolina, pela


revisão do texto e diversas sugestões feitas para a sua escrita.

REFERÊNCIAS
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180
PROJETOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL NA
PERSPECTIVA HISTÓRICO CULTURAL POR MEIO
DA MEDIAÇÃO DIALÉTICA

Vilisa Rudenco Gomes72


Fernanda Negri73
Janaine Siqueira74
Nadia Nara de Souza75
Vanessa Cruz da Silva76

INTRODUÇÃO

A perspectiva do trabalho com projetos na educação infantil surge


inicialmente a partir da concepção de sujeito competente e busca romper
com antigas praticas que posicionavam a criança como mera executora de
atividades ligadas ao desenvolvimento motor, sem estarem necessariamente
comprometidas com seu desenvolvimento emocional, social, afetivo, cog-
nitivo ou mesmo com a pesquisa.
O trabalho com projetos surge a partir de uma curiosidade, uma investi-
gação que o grupo de crianças se propõe a realizar para responder às questões
que surgem em suas vivências diárias. Tais questionamentos podem vir à baila
quando elas estão no parque, por ocasião de um passeio ou ainda no refei-
tório, podendo surgir até mesmo a partir de uma provocação da professora
dentro de determinado contexto.
Quando o desejo de investigação surge do grupo de crianças, a busca pela
resposta da questão se legitima por ser uma curiosidade real da vida real, a curio-
sidade e os porquês fazem parte da infância, torná-las legítimas e transformá-las
em projetos científicos, permite que desde muito cedo as crianças se projetam
como pesquisadores e venham a explorar um universo de diferentes fontes de
informação como livros, jornais, revistas, vídeos, mapas, músicas, etc.
Esse trabalho garante que a criança avance no seu desenvolvimento e realize
atividades dentro da zona de desenvolvimento proximal, que segundo Vigotski
72
Doutoranda em Ensino (UNIVATES). CV: http://lattes.cnpq.br/0854115545219589
73
Especialista em Educação Infantil. CV: http://lattes.cnpq.br/2320341011332120
74
Especialista em Orientação (IESDE). Orientadora Educacional.
75
Especialista em Educação Infantil. CV: http://lattes.cnpq.br/1302951563479500
76
Pedagogia (UNIASSELVI). Gestora.
181
(1989) o bom ensino deve incidir dentro dessa perspectiva e não de atividades
onde a criança já conhece e sabe realizar, pois desta forma, ela não alcança nem
descobre algo que desenvolva suas funções psicológicas superiores.
A educação infantil possui um papel fundamental na formação e desenvol-
vimento das crianças, espaço que permite diferentes oportunidades para o alar-
gamento de suas capacidades de aprender, conhecer e imaginar. As experiências e
vivências em grupo são importantes para a constituição de sujeitos mais humanos,
mais sensíveis, mais críticos e com autonomia de pensamentos e ações.
Os projetos nascem de uma pergunta, um questionamento das crianças
ou podem vir de uma provocação da professora a partir de um centro de inte-
resses da infância propriamente dita. O papel do educador é de organizar o
método e os objetivos mais gerais.
No início do trabalho o educador é um facilitador, um mediador dessa desco-
berta, realizando anotações, transcorrendo suas falas e sobretudo proporcionando
diferentes possibilidades de registros pelas crianças, planejando atividades para
que possam avançar em suas investigações, nas explicações dos fenômenos e nas
verificações de suas hipóteses.
À medida que o projeto vai avançando, a professora vai organizando as
documentações que inclui anotações das próprias crianças, seus desenhos, vídeos,
gravações e outros produzidos dentro do percurso investigativo que perpassa por
grandes áreas como a Geografia, a Sociologia, a História, a Filosofia, entre outras,
as quais possibilita o encontro com uma infinidade de textos, sem deixar de men-
cionar a Matemática presente em qualquer objeto de investigação.
A duração de um projeto não é pré-determinada, tudo depende do que está
sendo explorado e do interesse das crianças, neste percurso, as crianças ampliam
seu universo acerca da cultura acumulada pela humanidade, aprendem a manusear
diferentes objetos, se projetam num universo investigativo que lhes permitem
avançar no vocabulário, na autonomia, na postura, na autoestima, tornando a vida
diária na escola altamente atrativa e produtiva, a partir de atividades significativas
voltadas ao desenvolvimento de suas múltiplas potencialidades.
O trabalho realizado em grupo permite que as crianças escutem dife-
rentes pontos de vistas e aprendam a considerar ou refutar diferentes hipó-
teses, aprendam a socializar informações, a expor, a partilhar descobertas, a
trabalhar com a diversidade, a construir novas relações com outros adultos e

182
parceiros mais experientes que as levem a novos horizontes e que possibilitam
ampliar seu processo de humanização.
O objetivo do presente capítulo é apresentar um projeto dentro da
perspectiva histórico cultural que tem a mediação dialética como método de
investigação. Nos utilizamos da pesquisa qualitativa de cunho descrito com
aproximações de estudo de caso.

A PERSPECTIVA DIALÉTICA DE PROJETOS NA LINHA


HISTÓRICO CULTURAL

A dialética sofreu uma profunda influência, em termos lógicos de Parmênides


e Heráclito, tendo em vista a busca da verdade por meio do Logos A dialética teve
seu maior desenvolvimento em Hegel, porém em base Idealista.
A dialética foi apropriada por Marx e Engels (2007) com a intenção de nos
levarmos a perceber fatos que estão além do que está aparente. Com a dialética
podemos desocultar a imediaticidade e a pretensa independência do fenômeno,
assim, os elementos cotidianos deixam de ser naturalizados e isolados, passando
a serem interpretados como componentes de relações reais, sociais e históricas,
ainda que os fenômenos estejam todos entranhados.
A dialética surge a partir de uma percepção mais profunda dos proces-
sos naturais, captados na sua dinâmica própria por um pensamento que
busca representá-lo em seu movimento, tendo por isso de penetrar nas
camadas mais íntimas de sua realidade, no intuito de refletir em ideias
abstratas os elementos objetivos que ali se encontram. (ALMEIDA,
OLIVEIRA e ARNONI, 2007, p. 41)

A dialética materialista se compõe de três leis centrais: 1 a passagem da


quantidade a qualidade 2 a interpenetração dos contrários 3 A negação da nega-
ção. e as categorias vão emergindo cristalinamente: totalidade, contradição (não
antagônica e antagônica) superação, mediação, momento predominante, etc.
Nesse sentido, entendemos que as ideias se relacionam umas às outras,
que entram em contato e se unificam. No cotidiano, a percepção do todo não é
nítida, conseguimos perceber apenas as camadas mais externas dos fenômenos,
os aspectos mais relevantes, fato que nos impede de conhecer seu núcleo e a tota-
lidade reduzida a pano de fundo.
Quando o cotidiano é percebido sem clareza, a tendência é com-
preendê-lo a partir do senso comum, como se estivesse desligado de suas
183
condições históricas e sociais. Ao procedermos desta forma, acabamos por
negar o movimento dialético dos elementos, afastando-nos do mundo real.
Mesmo que a totalidade não seja percebida, ela continua existindo e deter-
minando as partes que a compõem.
Nessa perspectiva, tomamos o conhecimento como objeto de análise, seja
ele de ordem científica ou cotidiana
Os projetos na linha histórico cultural trabalham dentro da perspectiva
dialética, onde o interesse do pesquisador estende-se como um leque que se abre
a tudo, especialmente aos procedimentos e não apenas no produto e o tempo passa
a ser fator indeterminado pois não há um tempo estabelecido, pré-determinado
para a realização da pesquisa.
Para Oliveira, Almeida e Arnoni (2007) o conhecimento imediato explica
a realidade por meio de uma abordagem empírica, fruto da nossa impressão pri-
meira a qual é fixada por meio de estereótipos, analogias e esquemas abordados
sem a menor preocupação de sistematização, organização e problematização da
realidade, atravessando sucessivas gerações sem ser questionado.
Cabe nos esclarecer que o imediato não é mais pobre nem inferior ao
mediato, portanto, o mediato não é mais rico melhor ou superior ao mediato, eles
são estados distintos e opostos (não antagônicos) entre si. Desta forma a relação
entre professores e alunos não podem ser hierárquicos, nem de dominação, por
um lado, nem de subordinação, por
No primeiro momento temos o nosso primeiro olhar acerca do fenômeno,
um olhar cru, imediato. Após a professora ir mediando o conhecimento sistema-
tizado, por meio do conhecimento científico podemos nos posicionar com uma
postura mais crítica daquelas primeiras impressões do conhecimento imediato, que
resultam na ruptura entre eles e que nos permite compreender o conhecimento
escolar como um terreno fértil de embate entre esses dois tipos de saberes.
A relação dialética pretende nos oportunizar uma visão de totalidade. O
particular e o universal são instâncias que não se contradizem, mas são distintas
numa formulação de proposição ou argumento. A visão do mundo na dialética
pode partir do particular para vislumbrar o universal ou parte do universal para
se ter entendido com clareza o particular.

184
O PROJETO DO JARDIM

O projeto que será apresentado a seguir foi realizado no ano de 2021 e


encerrado no final deste mesmo ano, na sala de crianças de 5 a 6 anos, do Jardim,
na escola Dona Maria Francisco Siqueira mediado pelas professoras Fernanda
Rossoni Negri e Nádia Nara de Souza, com a direção da professora Vanessa da
Cruz e a supervisão da professora Vilisa Rudenco Gomes. Surgiu a partir da
primeira semana de aula, quando as crianças estavam em produção gráfica de
desenho livre e um aluno falou que desenharia um delicioso chocolate, rapida-
mente o grupo voltou a atenção para aquela fala, também queriam seu chocolate
no papel, a partir disso, começaram a pensar sobre do que seria feito o chocolate,
levantando hipóteses a respeito do alimento.
Algumas crianças acharam que seria feito de canela, marshmellow e também
de creme de avelã. Compreendemos o papel do professor enquanto mediador do
conhecimento e responsável por organizar o processo e o acesso à cultura erudita
também a partir de referenciais artísticos. Assim, as professoras vislumbraram
um projeto dentro da presente temática, contemplando obras de arte e literaturas
infantis, como ponto de partida das discussões e estratégias pedagógicas. De posse
das indagações da turma, definimos nossa problemática de pesquisa: “De onde
vem o chocolate?” Com esta pergunta, a professora anotou todas as hipóteses
levantadas, traçando com o grupo os objetivos específicos inscritos em questões
sociais, biológicas, de cultivo e conceitos matemáticos.
Das falas das crianças retiramos nossas finalidades específicas que se referiam
a: Realizar pesquisa relacionada a origem do chocolate; Descobrir o processo de
localização geográfica de sua origem; Conhecer os diferentes tipos de chocolate;
Reconhecer a importância de uma alimentação equilibrada; Fazer leitura de
mapas e gráficos relacionados ao tema; Iniciar o desenvolvimento do conceito de
fração; Compreender a relação do trabalho com a produção agrícola; Oportuni-
zar o conhecimento de outras culturas; Aprender sobre a existência da profissão
de confeiteiro; Recontar histórias ouvidas para produção de um texto escrito,
tendo o professor como escriba; Compreender a função social dos textos lista
e receita; Oportunizar a livre expressão por meio do desenho, pintura, colagem,
dobradura e escultura: Expressar ideias, desejos e sentimentos sobre as vivências,
por meio da linguagem oral e escrita(escrita espontânea); Trabalhar com registros
por meio de fotos, desenhos e outras formas de expressão; Ampliar as relações
interpessoais, desenvolvendo atitudes de participação e cooperação em tempos de
185
pandemia; Construir nosso código de ética a fim de compreendermos nossas ações
diante do projeto e do grupo; Despertar a observação, o raciocínio e a curiosidade
na criança através de pesquisa.
A partir destes objetivos específicos, organizamos os quadros dos com-
ponentes curriculares aderentes ao projeto: Ciências humanas: Origem do
chocolate pelos povos Maias e Astecas. Agricultura do cacau; Consumo de
bebidas; Ciências humanas: Nutrição do corpo; Pirâmide alimentar; Bene-
fícios e malefícios do chocolate; Matemática: Desenvolvimento do conceito
de frações, divisão, adição, subtração e resolução de situações problema; Lin-
guagem oral e escrita: letras do alfabeto; contar e recontar histórias; lei-
tura de forma não convencional.
Com tantas demandas para nossas descobertas, era imperioso que as famí-
lias se envolvessem em nossa empreitada científica, pois a educação infantil
ainda é um espaço muito carente de materiais de pesquisa como ausência de
bibliotecas, materiais audiovisuais, veículos de locomoção e profissionais de áreas
distintas da pedagogia. Desta forma, estreitar os laços com as famílias e fazer
com que elas percebessem a importância da sua participação na pesquisa para o
processo de desenvolvimento das crianças foi algo necessário para a realização
e desenvolvimento do trabalho.
Para iniciar esse processo de cumplicidade foi criado um grupo de Whatsapp
e ali iniciamos com um texto de apresentação, construído oralmente pelas crianças
e digitado pelas professoras, o texto foi produzido pelas crianças, a partir do con-
ceito de bilhete explanado pela professora, assim como todas as convenções desta
tipologia textual, como a função social deste, a brevidade do texto, os protocolos
iniciais e finais, assim como o objetivo e a justificativa, para posteriormente ser
transcrito no grupo de pais. Segue o texto na íntegra:
Boa tarde uuu

Estamos iniciando um projeto em nossa sala referente ao chocolate


e precisamos muito da colaboração das famílias. Nosso Projeto
Chocolate surgiu das interações das crianças realizadas através
dos momentos de desenho livre. Várias hipóteses foram levan-
tadas e juntos iremos aprender sobre o tema. Hoje será lançada
uma pesquisa sobre a origem histórica do chocolate, queremos
descobrir quais povos iniciaram o consumo do chocolate, onde se
localizam esses povos, de que forma o chocolate era consumido.
Com a ajuda de vocês, as crianças irão pesquisar e deverão trazer
186
o material impresso para a solicitação das respostas encontradas
para as perguntas acima. Qualquer dúvida, podem nos procurar
no privado, estamos à disposição.

Atenciosamente,
Professoras Fernanda e Nádia.

A estratégia utilizada foi disparar o bilhete na sexta-feira, para que as famílias


tivessem tempo de buscar e organizar o material. Na segunda-feira, cerca de 60%
das crianças estavam com materiais para apresentação.
Sentamos em roda no tapete e a primeira fala da professora foi tranquili-
zá-los dizendo que todos teriam a oportunidade de apresentar seu material, mas
que seria muito importante ouvir, apreciar e respeitar cada colega. Tivemos uma
socialização incrível, uma criança compartilhou com os colegas a bandeira do
México em cartolina, colorida com seus lápis de cor, além de pequenas infor-
mações escrita por ele, sobre os primeiros habitantes daquele país. Boa parte
do grupo socializou informações da wikipédia que foram “lidas por eles” por
meio da orientação das gravuras.
A partir da leitura de cada criança, entendemos que traziam um amálgama
composto por fragmentos de uma fonte de pesquisa não científica, misturados
com saberes de suas famílias e informações mais populares, mas que compunham
apenas uma parte do todo. Entendemos que este processo é dialético, que o que
as crianças tinham trazido fazia parte de sua tese sobre o assunto, nos cabendo
trazer a antítese dessas informações, instrumentalizá-los com informações mais
completas para que fossem elaborando suas sínteses.
Com as apresentações, duas palavras fic aram em cons-
tante evidência: Cacaueiro e Cacau.
Então, partimos para a próxima pesquisa, desta vez, realizada de forma
coletiva em sala de aula. Trouxemos para sala o computador e o projetor para
conhecer a árvore daquele fruto, as crianças queriam saber sobre o tamanho do
fruto, seu cultivo, o formato e cores. Depois da pesquisa, as crianças registraram
por meio do desenho nossas descobertas.
Ali surgiu o desejo de provar essa fruta desconhecida para todos nós. As
famílias se envolveram e no dia seguinte fomos surpreendidas por um menino
da sala trazendo um cacau de verdade para partilhar com os colegas e demais
funcionários do núcleo. Importante destacar que durante um projeto, o envolvi-
mento das pessoas que compõem o ambiente escolar é fundamental. As crianças
187
compartilhavam o que estava sendo aprendido, desta forma, poderiam conhecer
as partes que compõem o todo e fazer suas conexões e elaborações.
Quando a fruta cacau chegou na nossa sala, mediamos um momento de
exploração através do cheiro, textura, cor e peso da fruta. Todas as crianças tiveram
o momento de expressarem suas expectativas sobre aquele gosto e conhecer o sabor
de algo novo, que não fazia parte daquele universo meridional.
O sabor da fruta não agradou muito os paladares sulistas, concluíram que o
gosto não se parecia com o chocolate conhecido por eles. Também decidiram com-
partilhar com os demais funcionários do núcleo, que também não conheciam a fruta.
Retomamos a pesquisa trazida pelas crianças, agora sob o enfoque geográ-
fico, mediamos a localização através do globo terrestre e planisfério. As crianças
aprenderam a localização da América Central, local de origem do chocolate. O
planisfério e o globo terrestre passaram a fazer parte do cenário da sala, ampliando
horizontes para outras localizações geográficas.
Em virtude de a casca da fruta ser bastante exótica, resolvemos experimen-
tar secá-la e depois propomos aos alunos que imaginassem o que poderíamos
criar a partir das cascas secas. Neste momento, as crianças avaliaram as cascas e
a professora foi a escriba no momento de fazer uma lista de sugestões criativas
de novos objetos para as cascas.
Para Teberosky e Colomer: (2008)
Desempenhando o papel de escriba o professor ajuda a criança dife-
renciar entre dizer e dizer para ser escrito, a controlar a extensão da
emissão dada e repetir de forma literal, a recuperar a ordem sequencial
da emissão, a diferenciar o que já está escrito e o que ainda não está
escrito, enfim, ajustar o oral ao escrito. (TEBEROSKY E COLO-
MER, 2008, p. 123)

Nessa atividade a criança aprende características básicas da escrita, onde


a criança dita e o professor vai ajustando suas falas ao texto, onde o aluno
vai se apropriando da mensagem e percebendo que esta deve ser clara, pois
o receptor não estará presente.
Tivemos a oportunidade de assistirmos a um documentário sobre o cho-
colate, com este as crianças elencaram três pontos que chamaram sua atenção:
a profissão de chocolatier, o local de produção do cacau e a receita de mousse de
chocolate utilizado pela fábrica de chocolate.

188
A narrativa sobre o local de produção do chocolate gerou grande curiosidade
sobre o Estado do Espírito Santo, o que levou às professoras a mostrarem o mapa
político do Brasil, mas antes, este foi explicado junto ao mapa mundi, onde foi
dito que aquele era apenas um pequeno pedaço do mundo, as crianças ficaram
tão encantadas com a representação gráfica do território, que resolvemos colar em
cada uma de nossas cinco mesas um mapa múndi.
Dando continuidade ao projeto, nos organizamos para a realização da aula
de culinária. Necessário destacar as intervenções de letramento que permearam
o desenvolvimento do projeto. As crianças manifestaram a vontade de fazer a
receita do mousse e em seguida problematizamos como poderíamos fazê-la, o
que seria necessário para sua produção. Nesse momento a professora anotou os
ingredientes necessários para a receita e prontamente sugere que cada criança
contribua com algo para fazermos.
Então discutimos como faríamos para saber o que trazer e como comu-
nicamos às famílias. Uma criança disse que deveríamos escrever em um
pedaço de papel os ingredientes e assim procedemos, mas não de forma
convencional. Primeiramente, a professora escreveu no quadro em forma
de lista o nome de todos os ingredientes, com suas respectivas pistas. Após
visualizarem, as crianças foram combinando entre elas o que cada um poderia
trazer, quando decidiram, elas escreveram, cada um com sua forma particular
de escrita, um bilhete, o qual deveria ser levado para casa e lido para os pais,
para tanto, as crianças desenharam e algumas fizeram tentativa de escrita a
partir da lista feita pela professora.
No dia seguinte, as crianças trouxeram os ingredientes, e percebemos que se
fizeram entender com os seus bilhetes, pois utilizaram suas ferramentas e técni-
cas de escrita para a realização da receita. O resultado foi tremendo, porque cada
criança tinha em suas mãozinhas o ingrediente anotado. A atividade, que a olho
nú nos pareceu pequena, envolveu muito compromisso da parte das crianças, que
foi escolher o ingrediente, elaborar sua forma de anotação, cuidar para que aquela
anotação não se extraviasse, a leitura que fizeram em casa, a credibilidade que a
anotação produziu, pois ali eles não tinham apenas a fala, mas o bilhete, que era
uma “prova” do planejamento futuro.
A execução da culinária foi um momento ímpar, na medida em que acredita-
mos que este seja gerador de cumplicidade e prestígio e são, sem dúvida, absorvidos
pela criança, pois o compromisso que os pais assumem ao estarem alinhados aos
189
acontecimentos da sala é gerador de infinitas potências para o desenvolvimento
emocional e intelectual de cada um deles.
É necessário destacar que nos preocupamos em desenvolver uma abordagem
includente em relação às crianças e suas diferentes possibilidades de contribuição
do ingrediente, assim, na roda, tratamos o assunto de forma muito tranquila, sem
pressioná-los a trazerem algo que não seria possível para aquele momento.
A roda de conversa é o local onde todas as crianças têm a oportunidade de
falar e também de se sentirem parte do todo, esses momentos sempre nos foram
muito caros, pois era ali onde podíamos fazer a retomada de cada etapa que já tinha
sido concluída e lembrar as que ainda precisavam ser alcançadas. A conversa, o
diálogo, a roda nos davam alicerce para que a todo o momento os pares estivessem
se sentindo parte do processo.
No momento da execução da aula de culinária, ainda destacamos a orga-
nização no momento de preparar, a retomada da lista de ingredientes e modo de
preparo, esperar a vez de participar, o momento de escolha de cobertura, contribuir
da execução da receita e a autonomia ao se servir.
Em todo o processo, a cada detalhe é possível perceber o aprendizado de
questões relacionadas a matemática, quantidades, contagem um-a-um e divisão.
Na aula de culinária as crianças comeram e puderam levar uma porção para casa,
com o objetivo de compartilhar a produção com as famílias, um bilhetinho foi
enviado junto, para agradecer o envolvimento de todos. Algumas famílias deram
devolutiva nos parabenizando e elogiando o sabor do mousse.
Em um outro momento trouxemos para as crianças o filme “ A fantás-
tica fábrica de chocolate”. Após assistirmos ao filme, realizamos uma roda de
conversa e fizemos alguns apontamentos relacionados aos comportamentos e
atitudes das crianças da história. Compreendemos que o filme é uma forma de
arte que deve ser proporcionada às crianças. O momento do cinema não poderia
faltar para os nossos pequenos.
A leitura de diferentes histórias com o tema chocolate também fizeram
parte das tardes do grupo. Uma em especial “O coelhinho que não era de
Páscoa” da autora Ruth Rocha. A história tem como protagonista um coe-
lhinho que não queria ser de páscoa, e aprende com seus amigos a profissão
de confeiteiro e acaba salvando a páscoa no final da história. Muitas crian-
ças sentiram vontade de também serem confeiteiros, então, aproveitamos a

190
oportunidade para conhecer um pouco mais dessa profissão, convidando um
profissional para ampliar nosso olhar.
Em virtude da pandemia, tivemos que pensar em estratégias para essa ati-
vidade, pois a escola tinha um protocolo de segurança onde não poderia entrar
nenhum adulto além dos que já estavam no quadro, assim, a professora entrou em
contato com o confeiteiro que se colocou à disposição para fazer um vídeo para
as crianças. Foi aí que surgiu a ideia de fazermos um bolo e a professora entregar
na casa dele para ele confeitar.
Nossa primeira necessidade era obter uma receita do bolo, assim fomos até
a internet buscá-la. Após a professora selecioná-la, essa foi lida para as crianças,
com o combinado de ser realizada no outro dia. Porém, a professora explicou que
não teríamos o computador e que seria preciso anotá-la para não esquecer. A
professora sugeriu que escrevessem em uma cartolina, de uma forma que ficasse
visível para o grupo todo e todos pudessem ler e realizar a receita sem ajuda,
sozinhos, apenas sob seu olhar atento.
Enquanto a professora fazia a leitura, eles organizavam a escrita na carto-
lina, ali valia tudo, desenhos, a primeira letra, uma única sílaba da palavra, enfim,
puderam utilizar diferentes recursos para o registro.
Posteriormente fizemos a organização e a divisão de ingredientes e todos
contribuíram da melhor forma. Após o bolo ficar pronto, as crianças enviaram
para o confeiteiro, que gravou um vídeo falando sobre a sua profissão e história
de vida, ele também mostrou algumas técnicas de confeitaria.
No dia seguinte, as crianças ficaram maravilhadas com a surpresa do bolo
confeitado e ainda puderam fazer o corte e se servirem com autonomia. Uma
criança manifestou a vontade de levar a receita para a mãe dele e assim todas
as crianças fizeram o registro da receita e levaram para as suas casas. Também
propomos que fizessem com suas famílias e se pudessem compartilhassem esse
momento com a turma. Tivemos uma surpresa com a vontade do Miguel em fazer
e trazer de presente para as professoras.
Propostas e desafios envolvendo conceitos matemáticos fizeram parte do
projeto a todo o momento. Aqui temos uma proposta de retomada e elaboração
de conceitos de fração, jogos de alfabetização relacionados ao tema também esti-
veram presentes e na foto (anexo 1) especificamente estamos utilizando o celular
para vermos juntos de onde vem o açúcar. Estávamos diante de questionamentos

191
e demandas que exigem outras ferramentas e as mídias precisam estar presentes
para contribuir de forma positiva na aquisição de conhecimento.
Como percebemos uma polêmica a respeito do “açúcar” solicitamos a
visita de nossa nutricionista, que ofereceu uma palestra para as nossas crianças.
Nessa visita, ela trouxe propostas de trocas inteligentes, para que as crianças
entendessem que o açúcar em excesso faz mal para a saúde e assim nos ensi-
nou a diminuí-lo usando o cacau no lugar de achocolatados. Aqui podemos
abordar a ideia de porcentagem com os termos, cacau 50% ou cacau 70%, onde
foi explicado utilizando a caneca que eles utilizam, riscamos com canetão para
representar a metade, e explicamos que metade poderia ser representada por
50%, e os 70% teria dois risquinhos a mais.
No dia seguinte, fizemos a bebida de chocolate sugerida pela nutricionista,
sem açúcar, apenas o cacau. Esta atividade foi realizada com o grupo, sem a inter-
venção da professora, desde o check list dos utensílios necessários como jarra,
colher grande para mexer, os copinhos em correspondência biunívoca e todos os
ingredientes necessários para a produção da bebida. Quando a experimentamos,
tivemos opiniões variadas, foi aí que surgiu a ideia de fazermos uma votação para
verificar quantos porcento a bebida tinha sido aprovada. A votação ocorreu em
assembleia e a bebida obteve 80% de aprovação.
A professora trouxe para a sala um livro muito diferente, onde as ilustra-
ções eram feitas de tecidos, botões e lãs, cujo nome era “Meu amor” de Beatrice
Alemagna. As crianças ficaram muto interessadas não apenas nas histórias, como
também na possibilidade de ampliarem suas produções artísticas, seus dese-
nhos, suas pinturas e esculturas.
Compreendendo que a arte também deve fazer parte do ambiente da edu-
cação infantil, oportunizamos um momento de produção coletiva: Combinamos
de produzirmos uma tela com materiais dos tons do chocolate, do projeto da
turma, para presentear a supervisora e a orientadora do núcleo que estiveram
presente em todo o processo do desenvolvimento do “Projeto Chocolate”. Nesta
atividade cada criança contribuiu de uma forma, uns pintaram, outros colaram
e outros escreveram. A participação não só das crianças como das professo-
ras no projeto foi determinante para que este, acontecesse, nosso processo de
aprendizagem foi sendo um deleite para o grupo, fomos aprendendo coisas que
superaram os primeiros objetivos, fomos nos envolvendo todos os dias, reali-

192
zando descobertas inusitadas e potentes na construção de sujeitos experientes,
criativos, autônomos e mais sensíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos que ao final do projeto, as crianças puderam ampliar


seus conhecimentos e suas vivências no processo de investigação sobre a origem
do chocolate. Adentraram em um universo de mapas e conseguiram se localizar
geograficamente, se apropriaram de linguagens matemáticas relacionadas às
quantidades, contagem biunívoca, frações, porções, gramas e quilo.
Foram protagonistas de receitas, comunicavam-se através de diferentes ten-
tativas e estratégias de escrita. Ouviram histórias, leitura de receitas, seus colegas
nas rodas de conversa e as professoras que conduziam o andamento do projeto.
Também apreciaram as produções dos amigos, as produções coletivas, fil-
mes, documentários e mapas. Além das crianças, as famílias estiveram presentes
e envolvidas nas propostas feitas em sala, validaram as produções das crianças e
assim elas sentiram-se poderosas e capazes de aprender, criar e construir cartazes,
objetos, escrever bilhetinhos, contar o que foi aprendido, confeitar sobremesas,
cortar uma fatia de bolo, organizar a forma de servir uma bebida e tantas outras
experiências que foram possíveis.
O trabalho com projetos oportuniza a criança momentos nos quais elas
afrouxam suas certezas e se abrem para aprender e se desenvolver. Ao final
do projeto, as crianças puderam ampliar seus conhecimentos e suas vivências
no processo de investigação sobre a origem do chocolate. Adentraram em um
universo de mapas e conseguiram se localizar geograficamente, se apropriaram
de linguagens matemáticas relacionadas às quantidades, contagem biunívoca,
frações, porções, gramas e quilo.
Foram protagonistas de receitas, comunicavam-se através de diferentes ten-
tativas e estratégias de escrita. Ouviram histórias, leitura de receitas, seus colegas
nas rodas de conversa e as professoras que conduziam o andamento do projeto.
Enfim, percebemos que, trabalhar com projetos em uma perspectiva histórico
cultural permite com que os professores adentrem as diferentes áreas do conheci-
mento de forma histórica e cultural, reconhecendo o processo em sua totalidade,
de forma coletiva com o grupo, dessa forma, o conhecimento da cultura na qual
a crianças está inserida é apresentada, estudada e elaborada por ela.

193
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, José Luís Vieira de; OLIVEIRA, Edilson Moreira de; ARNONI, Maria Eliza Brefere. Mediação
dialética na educação escolar: teoria e prática. São Paulo: Loyola, 2007.
TEBEROSKY, Ana, COLOMER, Teresa. Aprender a Pensamento e Linguagem. Pensamento e Linguagem.
ler e a escrever: uma proposta construtivista. Porto Alegre. Artmed, 2008.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

194
O BIG DATA COMO PRECURSOR NA FORMA
DE PLANEJAR, AVALIAR E RESSIGNIFICAR A
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

Rafael Cavalcante Timbó Medeiros77

INTRODUÇÃO

Esse trabalho foi instigado a partir da observação de experiências signi-


ficativas percebidas em uma escola de Ensino Médio Integrado (EMI), EEEP
Professora Alda Façanha na cidade de Aquiraz-CE, situada no Nordeste do Brasil.
A escola é integrante de um projeto piloto composto pela Secretaria de Educação
do Estado do Ceará (SEDUC-CE) e a Google, que disponibiliza as ferramentas
do Google Workspace for Education e parceiros, para facilitar o processo formativo
dos alunos, buscando informações que norteiam a leitura mais significativa dos
dados gerados a partir das aplicações.
A abordagem é justificada a partir da análise da importância no desen-
volvimento, diversificação, estudo e planejamento de técnicas e ferramentas que
assessorem a construção de meios mais didáticos de progredir com o ensino e
aprendizado. Para tal movimento, é essencial a produção, leitura e interpretação de
dados educacionais de forma rápida e capaz de modificar, a tempo, a abordagem
instrutiva no processo educativo. Muitas vezes, ainda que dispondo de ferramen-
tas adequadas para o desenvolvimento do trabalho, não conseguimos abraçar por
inteiro todas as suas potencialidades, por isso a elaboração desse estudo rápido
e conciso sobre os conceitos básicos de Big Data e sua abordagem na melho-
ria do processo de aprendizagem.
Essa ação propõe a utilização de ferramentas, sites e aplicativos já exis-
tentes na Web, de forma gratuita, com o intuito de fortalecer o processo
de ensino e aprendizagem. Visando instigar os profissionais ligados à edu-
cação a repensar seu papel, agora como agentes construtores de conhe-
cimento e não somente doadores.
A produção conta com uma fundamentação teórica aplicada ao pro-
cesso evolutivo e de expansão do Big Data como precursor na melhoria da
Mestrando em Tecnologias Emergentes em Educação (MUST University - EUA). Professor (SEDUC-CE).
77

CV: http://lattes.cnpq.br/8980539982139253
195
educação contemporânea. Essa tecnologia é tratada e discutida de maneira
a incentivar sua utilização em busca de melhores resultados na formação
integral dos discentes atuais.

CONCEITO SOBRE GOOGLE WORKSPACE FOR EDUCATION


(G-SUITE FOR EDUCATION)

Esse é um pacote de serviços ofertados pela Google, onde visa facilitar o


aprendizado colaborativo entre estudantes, educadores e gestores escolares. A
conta é criada e gerenciada por um sistema de ensino ou escola, onde os dados
coletados e armazenados são definidos como informações pessoais, cabendo ao
administrador gerenciar a forma como os usuários utilizam o produto.
As aplicações contam com um coletor de dados de utilização, sendo ope-
rados esses elementos apenas para melhorar a oferta dos serviços e seu relaciona-
mento com a instituição que administra. O kit principal do G-Suite for Education
conta com Gmail, Agenda, Classroom, Contatos, atividades, Drive, Documen-
tos, Formulários, Grupos, Planilhas, Sites, Apresentações, Chat, Google Meet,
Vault e Sincronização do Chrome.
Os utilitários fornecidos pela empresa contam com envio de mensagens e
documentos (Chat e Gmail), compartilhamento e armazenagem de informações,
áudios, músicas, fotos vídeos (Drive, Grupos e Classroom), ferramentas de cria-
ção, desenvolvimento e compartilhamento de documentos, planilhas, enquetes e
apresentações (Documentos, Planilhas, Formulários e Apresentações) e uma sala
de reunião virtual (Google Meet). O intuito no uso desses acessórios como media-
dores no processo educativo, é gerar experiências de usabilidade, permitindo criar
caminhos alternativos na evolução do ensinar e aprender.

BIG DATA

O CONCEITO DE BIG DATA

Para Sin e Muthu (2015), a expressão Big Data retrata grandes e


complexos grupos de dados difíceis de serem processados por aplicativos
convencionais, também sendo extensivo o seu conceito às ferramentas e
tecnologias utilizadas em sua decodificação. Para Taurion (2013), o termo
se relaciona a um grupo de informações, gerados pela diversificação tecno-
196
lógica, que apresentam uma multiplicação exponencial que está adiante da
capacidade dos aparatos específicos utilizados até então para determinar,
gerir e examinar os materiais.
Os desafios inerentes a utilização do Big Data perpassam pelo processo
de armazenamento, análise e relatórios. Segundo Sin e Muthu (2015), os discos
rígidos utilizados pelas máquinas atualmente não são capazes de armazenar
e processar o grande fluxo de materiais gerados, sendo necessário um banco
de dados especial. A análise necessita ser realizada por muitos computadores
onde as informações são divididas, processadas e posteriormente agregadas
novamente. Os relatórios são gerados por técnicas específicas dependendo
do tipo de material e atividade.
As técnicas utilizadas no tratamento tecnológico do Big Data são bem
diversificadas, pois os desafios a serem encarados dependem do tipo de aplicação
das informações. Para Sin e Muthu (2015), os esquemas mais empregados na
exploração das informações são: regressão (estima conexões por estudo estatís-
tico), vizinho mais próximo (baseia-se em previsões próximas aos de matérias que
se buscam), clustering (norteia-se por semelhança entre registros) e classificação
(observa uma categorização anterior).
Existem diversas ferramentas que auxiliam vencer os desafios proporcio-
nados pelo volumoso fluxo de informações gerados pelo Big Data, sendo possível
encontrar muitos com código aberto. Conforme estúdio de Sin e Muthu (2015),
dentre os acessórios gratuitos, o que mais se destacam são: MongoDB (gerenciador
de banco de informações cruzadas), Hadoop (processador em clusters de programa-
ção simples), MapReduce (executa informações em paralelo e em grandes clusters),
Orange (ferramenta de verificação de dados baseada em Phyton) e Weka (utiliza
uma enorme casta de algoritmos para processamento em Java).

O BIG DATA E A MINERAÇÃO DE DADOS

A mineração de dados tem exercido um forte papel como ferramenta


condutora de soluções com certeza limitada. Diversos autores conceituam essa
abordagem de informações como sugere Côrtes, Porcaro e Lifsghitz (2002),
tratando de exame indutivo de informações, colaboração entre homens e
computadores em busca de elementos valiosos, extração de fatos úteis, sem-
pre utilizando para isso um enorme conjunto de referenciais. Para Côrtes,
Porcaro e Lifsghitz (2002), a mineração é um procedimento sobremodo
197
colaborativo entre homens e máquinas, visando vasculhar numerosos bancos
de dados, removendo informações por meio de reconhecimento de padrões e
relacionamento entre variáveis.
Segundo Côrtes, Porcaro e Lifsghitz (2002), o procedimento de execução da
mineração de dados leva em conta uma diversidade de etapas, tendo como primícia,
antecedendo à instauração do processo de busca, estabelecer evidentemente quais
produtos deseja-se obter, para a partir de então, definir as estratégias e métodos
a serem aplicados. Esse estágio importante no garimpo de dados é chamado de
funcionalidade, possui etapas que seguem padrões diferentes a partir do que se
deseja explorar de informações, não existindo consenso entre autores.
O trabalho de Côrtes, Porcaro e Lifsghitz (2002), sugere que logo que
claramente estabelecida as formas como será desenvolvido o trabalho, a fun-
cionalidade se desdobra em análise descritiva e análise de prognóstico. O
estudo descritivo busca informações capazes de constatar irregularidades
ou singularidades que sejam capazes de induzir os resultados da minera-
ção, bem como padrões mascarados.
O reconhecimento de prognóstico reflete o campo de apuração dos elementos
tratados, buscando medir resultados a partir de parâmetros descobertos. Seguindo
o raciocínio de Côrtes, Porcaro e Lifsghitz (2002), esse é um processo que antevê
alguma resposta a partir de uma referência estabelecida, prenuncia um comporta-
mento futuro levando em conta um conjunto de respostas e antecipando valores
a uma variável típica. A mineração de dados pode ser empregada para trabalhar
resultados com diversas funcionalidades passando por áreas como o marketing,
finanças, saúde, educação etc.

A UTILIDADE DO BIG DATA NA EDUCAÇÃO

Quando empregado na educação, as técnicas e ferramentas do Big Data


são capazes de aumentar a efetividade nos processos de planejamento, avaliação
e ressignificação no processo de construção do conhecimento. Segundo Scaico,
De Queiroz e Scaico (2014), sob o prisma da abordagem convencional, é impro-
vável reunir e compreender todas as informações geradas no processo de ensino
e aprendizagem, o que leva a necessidade em utilizar técnicas de mineração de
dados para auxiliar o desenvolvimento dessa prática.
Segundo Scaico, De Queiroz e Scaico (2014), a utilização do Big Data
voltado à educação tem o poder de assessorar o exercício das ações educativas
198
de professores, gestores e administradores públicos, servindo como guia para
efetivação de políticas educacionais que afetem positivamente o caminho da
aprendizagem. Um exemplo disso é a elaboração de ambientes adaptativos de
aprendizagem, onde o feedback ao comportamento do aluno em interação é
realizado em tempo real, se adaptando às suas necessidades de aprendizagem,
possibilitando um maior nível de engajamento.
Mesmo o Big Data sendo responsável pelo processamento de gigantescas
e volumosas quantidades de informações, é fundamental a participação de edu-
cadores para validar os resultados gerados, segundo estabelece em seu estudo
Scaico, De Queiroz e Scaico (2014). A participação humana nesse processo
se faz necessária e imprescindível para garantir uma ação compatível com a
complexidade humana, criando uma direção no processo de aplicação das
técnicas de mineração de dados.

A UTILIZAÇÃO DE NOVAS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO

Com a nova realidade digital disseminada em larga escala entre a


sociedade, principalmente os nativos digitais, muitos são os desafios obser-
vados se interpondo entre os que participam do desenvolvimento proces-
sual de ensino e aprendizagem. De um lado, os estudantes dominam as
tecnologias, suas ferramentas e suas aplicações intuitivamente; do outro
lado, os professores, muitas vezes com dificuldades até mesmo de acessos
básicos às novas tecnologias. Muitos professores ainda resistem ao desuso
da oralidade e metodologias mais tradicionais centradas neles, dificultando
a compreensão por parte dos estudantes.
Existe uma grande gama de possibilidades para tratar da elaboração
de novas aprendizagens, apoiadas na utilização de tecnologias. Como retrata
Oliveira (2017), as tecnologias emergentes detêm um potencial elaborativo
inestimável de novas aprendizagens, sendo excelentes alternativas para fins
educacionais. As novas tecnologias atreladas ao processo educativo, evidenciam
metodologias cruciais na construção de um ensino relevante, de qualidade e
significativo para os nossos jovens.
Cada pessoa aprende de uma forma diferente, sendo assim, é necessário
um forte planejamento das ações, a utilização da tecnologia pode subsidiar essa
estruturação. Para Cavalcante (2017), as tecnologias, a cada dia passam a integrar
massivamente como ferramentas de aprendizagem, promovendo uma flexibi-
199
lidade durante o processo de aprender. O autor relata a importância de dispor
dessas técnicas relacionando-as com a concepção freiriana acerca do assunto,
onde o diálogo entre professor e aluno se inicia antes mesmo do contato físico,
onde o docente necessita planejar ações e materiais que induzam os educan-
dos de forma adequada e atrativa.
Para Medeiros, Lopes e Ribeiro (2020), o processo educativo necessita
atuar como promotor e motivador de transformações no estudante, proporcio-
nando meios de produção de conhecimento, adicionando valores que façam
sentido ao indivíduo, desenvolvendo um ser crítico e criativo com atuação
ativa na sociedade a que faz parte.

DESENVOLVIMENTO

Pretendendo constituir elementos auxiliares a superar problemas crô-


nicos no desenvolvimento da ação educativa, como discrimina Prodanov e
Freitas (2013) em seu trabalho, oportunizando referenciais acerca de uma
temática em estudo, propiciando um conceito mais elaborado que orien-
tem a apresentação dos objetivos. Para a organização desse trabalho foram
utilizadas as seguintes etapas:
1. Revisão Bibliográfica, na qual sucederam análises de trabalhos na área
da temática abordada;
2. Estudos e triagem de referências que expunham mais claramente o
conteúdo abordado;
3. Traçado uma linha de pensamento conceitual e posteriormente descri-
tiva, promovendo ações que contribuam com a aplicação do tema em
desenvolvimento.
A pesquisa procurou mapear conceitos e informações importantes de traba-
lhos já desenvolvidos e publicados em áreas afins e educação, visando proporcionar
entendimento e aplicação do Big Data e a diversificação do processo de ensino
por meio dessa nova tecnologia aplicada às ações de ensino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Barbosa, Andrade e Carvalho (2017), nas situações em que as tec-


nologias da Informação e Comunicação (TIC) são utilizadas, o intentar e
efetuar o processo educativo infere-se pelo quantitativo tecnológico aplicado,
200
sendo esse processo reconhecido como cibercultura. Mesmo operando corre-
tamente as ferramentas do Google Workspace for Education, um grande volume
de dados com informações preciosas deixa de ser analisadas substancialmente
pelos docentes da referida escola.
No processo de Educação a Distância (EAD), a cibercultura é inerente ao
processo, como pontua Barbosa, Andrade e Carvalho (2017), pois a utilização
das TIC origina um desdobramento exponencial de informações pertinentes
ao processo educacional. Quando o ensino é presencial e são inseridas as TIC
como ferramentas de apoio ao desenvolvimento da ação, é imprescindível a
utilização de apetrechos que auxiliem a mineração de elementos que contri-
buam no aprimoramento da programação, análise e redefinição de metodolo-
gias e estratégias educacionais.
A abordagem do Big Data, na aplicação da mineração de dados, como
elemento ressignificador do processo de ensino e aprendizagem é um rele-
vante e essencial artifício para a educação contemporânea, imersa na cibercul-
tura. Como refere-se Barbosa, Andrade e Carvalho (2017), remover informa-
ções reais a partir de ambientes tecnológicos, trabalhando, e modificando-os,
torna a educação mais personalizada, transformando o discente cibernético
em um agente ativo do processo.

REFERÊNCIAS
Babosa, A. A. S., Andrade, F. S., & de Carvalho, R. N. (2017). Mineração de Dados em Ambientes Virtuais
de Aprendizagem: Aportes para a Pesquisa em Educação a Distância. EDUCAÇÃO, 6(1), 125-136.
Cavalcante, R., (2017). Criação, aplicação e avaliação de um jogo computacional interdisciplinar para promo-
ção da visão ambiental no ensino médio integrado. Graduação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
CE, Brasil.
Côrtes, S. C, Porcaro, R. M., & Lifschitz, S. (2002). Mineração de dados-funcionalidades, técnicas e abor-
dagens. PUC.
Hollmichel, Stefanie. Google workspace: Education. Google, 2022, https://workspace.google.com/intl/pt-BR/
terms/education_privacy.html.
Medeiros, R. C. T., Lopes, G. S. e Ribeiro, M. E. P. N., (2020). A importância do pré-teste na produção de
jogos - Relato de experiência. In: C. Bianchessi, (Org.), Práticas pedagógicas e saberes curriculares: experiências,
desafios e conquistas (pp. 54-64), Paraná: Editora Bagai, 2020.
Oliveira, J. J. S. de. (2017). Criação do jogo “Um Passeio na Indústria de Laticínios” buscando pro-
mover a Educação Ambiental no Curso Técnico de Alimentos. Química Nova na Escola, V. 39, No
2, p. 142-152.

201
Prodanov, C. C., & De Freitas, E. C. (2013). Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e
do trabalho acadêmico-2ª Edição. Novo Hamburgo, RS: Feevale.
Scaico, P. D., de Queiroz, R. J. G., & Scaico, A. (2014). O conceito big data na educação. In anais do workshop
de informática na escola (Vol. 20, No. 1, pp. 328-336).
Sin, K., & Muthu, L. (2015). Aplicação do Big Data na mineração de dados da educação e análise da apren-
dizagem - Uma revisão da literatura. Revista ICTACT sobre computação suave, 5 (4).
Taurion, C. (2013). Big data. Rio de Janeiro: Brasport.

202
O GOOGLE WORKSPACE FOR EDUCATION E SUAS
FERRAMENTAS DE COLABORAÇÃO EM REDE PARA
A APRENDIZAGEM
CONHECENDO A ÁGUA E SEUS PROCESSOS
EM UMA ATIVIDADE COLABORATIVA,
INTERDISCIPLINAR E CONTEXTUAL

Rafael Cavalcante Timbó Medeiros78

INTRODUÇÃO

Esse trabalho foi instigado a partir da proposição de uma atividade de


resposta a um fórum da disciplina de tecnologia baseada em computador na
sala de aula do curso de mestrado da Must University. A proposta de atividade
para debate deveria ser a descrição de uma ação pedagógica que promovesse a
colaboração em rede, descrevendo o roteiro, ferramentas tecnológicas necessárias
e o processo de avaliação e feedback. Para o desenvolvimento do exercício foram
utilizados recursos computacionais do Google Workspace for Education, buscando
facilitar o desenvolvimento da atividade, já que o público para o qual a atividade
foi pensada já utiliza esses apetrechos tecnológicos.
O trabalho foi pensado para ser desenvolvido com estudantes da 2ª série
do ensino médio em uma escola de Ensino Médio Integrado (EMI), EEEP Pro-
fessora Alda Façanha, na cidade de Aquiraz–CE, situada no Nordeste do Brasil.
A temática sugerida potencializa a geração de conhecimentos interdisciplinares
e contextuais, perpassando várias áreas do conhecimento, ressaltando olhares
singulares ao progresso na construção do saber formal. A abordagem é justificada
pela importância em ressignificar o modelo como os estudantes desenvolvem o
aprendizado, reestruturando abordagens e meios didáticos que fomentem uma
aprendizagem mais dinâmica, atrativa e construtivista.
Essa ação é muito dinâmica e pode ser trabalhada envolvendo professores
das diversas áreas em colaboração e aperfeiçoamento para o desenrolar de ati-
vidades transdisciplinares, impactando a vida dos estudantes de uma maneira a
corroborar com sua formação integral. para isso, a produção teórica conta com
Mestrando em Tecnologias Emergentes em Educação (MUST University - EUA). Professor (SEDUC-CE).
78

CV: http://lattes.cnpq.br/8980539982139253
203
uma fundamentação teórica aplicada ao processo de reconhecimento, estudo e
utilização de ferramentas colaborativas como precursoras de um aprimoramento
na forma de fazer a educação do século XXI.

COLABORAÇÃO EM REDE

A aprendizagem colaborativa detém certos atributos peculiares, como bem-


-organizado por Oliveira, Ferreira e Oliveira (2017), essa abordagem perfila
aprender atualmente, onde o aluno constrói autonomia e comprometimento na
evolução de sua aprendizagem. O professor assume o papel moderador na cons-
trução do conhecimento, gerando espaços e situações que permitam o estudante
emancipar-se no desenvolvimento de seu saber. Tanto professores como alunos
se permitem trocar experiências que formalizarão a aquisição de novas inteligên-
cias, sendo potencializada a interação em grupo e os debates, proporcionando o
desenvolvimento de competências sociais e colaborativas.
Para Bittencourt et al. (2004), a aprendizagem colaborativa se baseia em
quatro teóricos: I – Piaget: na perspectiva construtivista, a interatividade é condição
principal, acrescida do respeito à diversidade de pensamentos e ideias; II – Vygotsky:
as relações sociais são essenciais para fomentar o processo de aprendizagem, sendo
primordiais para uma reconstrução do conhecimento e aumento cognitivo real;
III – Paulo Freire: a relação de troca encoraja a comunicação em uma perspectiva
reelaborada de pensar e refletir o conceito de outrem, promovendo um aprender
que nunca é solitário; IV – Pierre Levy: a conjuntura digital protagoniza uma
nova forma de produzir saberes a partir de uma prática coletiva.
Segundo Bittencourt et al. (2004), o computador é uma máquina capaz de
permutar, elaborar e acumular informações, transformando boa parte de nossos
potenciais cognitivos. Para o autor, quem tem o controle dessas técnicas, é possuidor
de um ganho extraordinário no desenvolvimento e preservação do progresso de
inteligência, edificando-se baseado em ações pedagógicas colaborativas. A apren-
dizagem colaborativa faz despontar o aluno como ser ativo no processo educativo,
dando a oportunidade de escolhas que produzem aptidões sociais e cognitivas.

COLABORAÇÃO EM REDE PARA APRENDIZAGEM

A acessibilidade à informação de forma instantânea, a intensificação no


progresso científico e tecnológico, tem proporcionado a formação de um novo
perfil técnico nos setores trabalhistas. Para Vaz et. al (2018), isso está projetando
204
e modificando globalmente a forma de desenvolver os processos de ensino e
aprendizagem, sendo possível, por meio da tecnologia, incrementar o aspecto
contextual e flexível às demandas exigidas pela sociedade em geral. A utilização
das tecnologias em rede voltadas para a educação, tem fortalecido o processo de
aprendizagem, proporcionando uma maior proximidade entre alunos e professores,
mesmo quando geograficamente distantes.
A confluência do ciberespaço nos processos de ensino e aprendizagem, preco-
niza a colaboração com troca de experiências, gerando competências e habilidades
que ativam massivamente a potencialidade das relações sociais e na construção
de uma direção na formalização do conhecimento. A utilização do ciberespaço
como ferramenta no processo educativo engrandece o processo interativo entre
docentes e discentes, publicizando ideias e pensamentos, até mesmo daqueles
mais tímidos, pois é criado uma atmosfera favorável para colaboração, interação
e exposição de modelos concebidos.
Para que a colaboração em rede seja utilizada como precursora do processo
de ensino e aprendizagem, segundo Vaz et. al (2018), é necessário que os seus
experimentadores entendam a capacidade das tecnologias envolvidas no processo e
a forma como caminham em consonância com os objetivos de aprendizagem. Essa
maneira de desenvolver o conhecimento, colabora na conversão de experiências
que transformam a forma de viver, conviver e interagir, alavancando transições
positivas nos meios cognitivos, convergindo com os estímulos que a sociedade
contemporânea lança a cada minuto.

ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS EM REDE

Segundo da Fonseca (2006), os pensadores progressistas em educação, estão


em constante atividade em repulsa ao armazenamento de informações fora do
contexto e realidade vivida a quem está direcionado a captação desses conheci-
mentos. Para o autor, tratar o ensino como propagação de instrução agrupada e a
aprendizagem como reprodução habitual do que é repassado, acaba estagnando a
produção de conhecimento e criatividade. A flexibilidade em que está inserida a
sociedade atual, torna as velhas práticas pedagógicas obsoletas, a depender de como
são inseridas e formalizadas como protagonistas no âmbito contemporâneo. Partindo
desse pressuposto, a urgência em desenvolver estratégias pedagógicas que acompa-
nhe o movimento e ferramentas utilizadas pela humanidade no contexto presente.

205
Para Moura e Carvalho (2006), as TIC’s são essenciais no desenvolvimento de
boas práticas em sala de aula, principalmente quando geridas em rede, proporcionando
atividade colaborativa com intenção pedagógica. Segundo as autoras, a utilização
de ferramentas em rede, proporcionam um ambiente de protagonismo para seus
utilizadores, onde estes passam a interagir e produzir conteúdo que auxilia no
desenvolvimento cognitivo, seu e de seus colegas, promovendo significado ao que
é estudado. Para Grotto (2004), a formalização do conhecimento é uma associação
de correlação entre o sujeito e o meio, ganhando propósito a partir de vivências
construtivas que promovam experiências.
Para Grotto (2004), a interatividade proporcionada pelas ferramentas digi-
tais em rede, promove em seus utilizadores, determinado grau de envolvimento,
transferência de práticas e domínio sobre os eventos. A autora evidencia que é
inexequível adivinhar com confiança o procedimento humano, por isso, ferra-
mentas adaptativas e em rede são propícias à utilização pedagógica para desen-
volver conhecimento, pois buscam potencializar interatividade e colaboração
para fortalecer a aprendizagem.

FERRAMENTAS DE COLABORAÇÃO ON-LINE

Com a rápida transformação da conjuntura social, as conversas que envolvem


o tema educação, estão sempre rondando inovações e técnicas que melhor estimulam
a forma de proceder com o ensino e aprendizagem. A nova abordagem tem que
superar a habitual barreira da repetição de informações, respeitando o protagonismo
e autonomia da geração digital. Segundo Oliveira, Ferreira e Oliveira (2017), o ato
educativo deve promover uma atribuição social, ou seja, o que é informado deve
ser transformado por seu receptor em conhecimento com significância para a sua
vida em consonância com a sociedade em que está inserido, para isso, é necessário
a aplicação de novos meios metodológicos que possam mediar a transformação
da informação em conhecimento.
Existe uma vasta quantidade de potenciais ferramentas que podem ser
utilizadas como mediadoras na formação do conhecimento. Podemos citar os
Blog’s, Chat’s, E-mail’s, Redes Sociais, Fóruns, Editores Online de Sites, Mensagens
Instantâneas, Google Workspace for Education, dentre outros. Todos eles comutam
a colaboração para o seu pleno desenvolvimento, criando e gerando novos signifi-
cados a cada troca de informações. Exploraremos mais a fundo aqui a ferramenta
Google Workspace for Education.
206
GOOGLE WORKSPACE FOR EDUCATION (G-SUITE FOR
EDUCATION)

Esse é um pacote de serviços ofertados pela Google, onde visa facilitar o


aprendizado colaborativo entre estudantes, educadores e gestores escolares. A
conta é criada e gerenciada por um sistema de ensino ou escola, onde os dados
coletados e armazenados são definidos como informações pessoais, cabendo ao
administrador gerenciar a forma como os usuários utilizam o produto.
As aplicações contam com um coletor de dados de utilização, sendo ope-
rados esses elementos apenas para melhorar a oferta dos serviços e seu relaciona-
mento com a instituição que administra. O kit principal do G-Suite for Education
conta com Gmail, Agenda, Classroom, Contatos, atividades, Drive, Documen-
tos, Formulários, Grupos, Planilhas, Sites, Apresentações, Chat, Google Meet,
Vault e Sincronização do Chrome.
Os utilitários fornecidos pela empresa contam com envio de mensagens e
documentos (Chat e Gmail), compartilhamento e armazenagem de informações,
áudios, músicas, fotos vídeos (Drive, Grupos e Classroom), ferramentas de cria-
ção, desenvolvimento e compartilhamento de documentos, planilhas, enquetes e
apresentações (Documentos, Planilhas, Formulários e Apresentações) e uma sala
de reunião virtual (Google Meet). O intuito no uso desses acessórios como media-
dores no processo educativo, é gerar experiências de usabilidade, permitindo criar
caminhos alternativos na evolução do ensinar e aprender.

DESENVOLVIMENTO

O atual trabalho foi constituído por etapas distintas na composição de sua


proposta de atividade, no que concerne a proposta de atividade cooperativa via
ferramentas de colaboração em rede, seguiu-se as etapas descritas abaixo:
I. Foi pensado o título da aula, “O estudo dos processos inerentes a água”;

II. Desenvolveu-se os objetivos de aprendizagem: i. Gerar conhecimen-


tos específicos sobre os processos Químicos, Físicos e Biológicos da água; ii.
Desenvolver pensamento crítico ambiental acerca da forma como se utiliza
a água; iii. Proporcionar aprendizagem colaborativa entre os estudantes; iv.
Potencializar competências socioemocionais;

III. O período de desenvolvimento da atividade foi ponderado para 1 mês;


207
IV. O roteiro e o desenrolar da atividade está descrito nas etapas abaixo:

1. Os alunos formularam perguntas que acharam pertinente ao tema da


atividade;

2. Os alunos elaboraram, colaborativamente, respostas para as perguntas


realizadas no ponto 1 da atividade, para isso, desenvolveram atividades de
observação prática que os auxiliavam nas respostas aos questionamentos;

3. Os alunos organizaram, colaborativamente, as perguntas do ponto 1, a


partir das respostas do ponto 2;

4. Os alunos reformularam, colaborativamente, as respostas do tópico 2,


a partir da reorganização das perguntas do tópico 3 e de observações
práticas sobre o tema da atividade;

5. Os alunos mantiveram essa dinâmica de colaboração e observação durante


o período sugerido pelo professor;

6. As ferramentas do Google Workspace foram utilizadas para a realização


do estudo colaborativo sobre a temática proposta:

A. Google docs: Onde as perguntas e respostas foram editadas e compartilhadas;

B. Google fotos: Onde os vídeos das práticas e observações eram compartilhados;

C. Google agenda: Onde ocorria o acompanhamento da atividade por todos


os envolvidos, via agenda compartilhada, das etapas de desenvolvimento
da atividade proposta;

D. Google formulário: Onde foram realizadas enquetes sobre o procedimento,


avaliação e feedback da atividade;

7. Ao final da atividade houve uma apresentação de seus resultados e


observações;

8. O processo avaliativo levou em consideração a participação e colabora-


ção em cada etapa, também a participação e relevância das observações
durante a apresentação;

9. O feedback do professor ocorria duas vezes na semana via colaboração no


Google docs e em sala de aula;

10. Foi considerado para termos de avaliação as respostas a todas as enquetes;


208
11. Ao final da atividade, foi desenvolvido um formulário no Google, com
perguntas pertinentes ao tema proposto;

12. A nota final da atividade foi formada conforme descrita abaixo:

O trabalho conseguiu agrupar bem os alunos e suas ideias, os permitindo


cooperar na construção de suas próprias narrativas diante da atividade proposta.
mais do que avaliar, esse tipo de instrumento pedagógico permite associar o conhe-
cimento teórico as observações corriqueiras e cotidianas, sendo potencializadas por
ferramentas de colaboração em rede que ampliam a profundidade do conhecimento,
ao mesmo tempo que estreitam as distâncias geográficas. Barbosa (2008) explica que,
a prática avaliativa é uma incumbência pedagógica essencial e perene ao conjunto
professor, meio e alunos, onde as etapas de desenvolvimento, são confrontadas com
os propósitos sugeridos inicialmente e o resultado de ampliar a aprendizagem.
Toda atividade deve ser reflexiva e desenvolver um padrão de excelência no
labor de docentes e discentes. Barbosa (2008), pleiteia em seu trabalho, que a tarefa
escolar está além de uma atividade classificatória, mas funciona como uma ação que
permite o desenvolvimento da cognição inserida a realidade de cada participante
dessa construção. esse tipo de ação permite promover a equidade, autonomia e
inclusão, consentindo destrinchar codificações e signos na interlocução altruísta
que concebe uma multiplicidade de vivências com potencial desenvolvimento
de aprendizagens significativas.
Segundo Bittencourt et al. (2004), as ferramentas de colaboração em rede
permitem a criação de ambientes propícios ao progresso de associações, multipli-
cidade e permutas essenciais à estruturação de um entendimento global. Segundo
as autoras, aprender dessa forma, transforma a compreensão da vivência, tornando
o estudante um ser mais ativo na transformação da informação em aprendiza-
209
gem, ofertando a possibilidade de conexões com outras realidades, promovendo
a curiosidade para a transmutação ininterrupta do saber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho fomenta a utilização de atividades colaborativas e em rede como


forma de compartilhar informações instrutivas, ao mesmo tempo que promove
interação entre alunos e professores. Como bem ressalta Oliveira, Ferreira e Oli-
veira (2017) em seu trabalho, onde destaca o papel do professor como mediador e
estimulador dos discentes na cooperação e efetiva participação durante a montagem
significativa dos saberes. A utilização das ferramentas de colaboração em rede tem
ganho espaço e alavancado o processo do ensino e aprendizagem.
A atividade aplicada surge como uma opção em desenvolver um espaço de
aprendizagem mais democrático, como corrobora Barbosa (2008) em seu trabalho.
A intenção desse trabalho, como descreve muito bem a autora, mostra a preocupação
com o desenvolvimento e o progresso de um trabalho que construa aprendizagem
para todos, promovendo e estimulando uma aprendizagem de sucesso, buscando
a evolução real e não apenas o status de aprovado. O estudo mostra que, o plane-
jamento do professor é muito importante, já que ele é o condutor que redireciona
o caminho a partir de cada observação.

REFERÊNCIAS
Barbosa, J. R. A. (2008). A avaliação da aprendizagem como processo interativo: um desafio para o educador.
Rio de Janeiro: Faetec.
BITTENCOURT, Carla Simone et al. Aprendizagem colaborativa apoiada por computador. RENOTE,
v. 2, n. 1, 2004.
da Fonseca, A. A. (2006). O uso do diário virtual (blog) como portfólio digital: uma proposta de avaliação.
Grotto, E. M. B., Terrazzan, E. A., & Franco, S. R. K. (2004). Interação am ambientes baseados na Web:
uma reflexão necessária. RENOTE: revista novas tecnologias na educação [recurso eletrônico]. Porto Alegre, RS.
Hollmichel, Stefanie. Google workspace: Education. Google, 2022, https://workspace.google.com/intl/pt-BR/
terms/education_privacy.html.
Moura, A., & Carvalho, A. A. A. (2006). Podcast: potencialidades na educação. Prisma. com, (3), 88-110.
OLIVEIRA, Thares dos Santos; FERREIRA, Priscila Silva; OLIVEIRA, Estêvão Domingos Soares de.
O uso da ferramenta google docs para a aprendizagem colaborativa. Anais do III CONEDU, Congresso de
Nacional de Educação. João Pessoa – PB, p. 1-9, 2017.
Vaz, D., Noronha, F. P. T., dos Reis, J. M., & Backes, L. (2018). Redes sociais: a interação para além da sala
de aula. Momento-Diálogos em Educação, 27(1), 266-281.
210
QUAIS FRUTAS VOU ESCOLHER? CONVERSANDO
SOBRE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E O
TRABALHO COM A COMBINATÓRIA NA INFÂNCIA

Christoan Tonete Gomes79


Thiarla Xavier Dal-Cin Zanon80

INTRODUÇÃO

Durante nossa jornada em sala de aula, seja como professores, como licen-
ciandos ou alunos da educação básica, percebemos que a combinatória se apresenta
como um dos conteúdos matemáticos mais complexos, tendo em vista a existência de
algumas dificuldades relatadas por estudantes (ZANON, 2019). Essas dificuldades
se concentram na compreensão dos enunciados, na identificação dos agrupamentos
(permutação, arranjo ou combinação), no número de cálculos envolvidos, dentre
outros aspectos que acabam por caracterizar os problemas como difíceis e, em
algumas ocasiões, incompreensíveis aos olhos de quem está lendo (ZANON, 2019).
Entretanto, apesar de ser formalizada com seus conceitos elucidados apenas
no ensino médio (BRASIL, 2018; ZANON, 2019), temos que seus princípios
podem ser abordados em etapas iniciais do processo educacional, como, por
exemplo, na educação infantil (BORBA; PESSOA; BARRETO; LIMA, 2013;
ZANON, 2019), quando se explora e se trabalha com atividades relacionadas ao
raciocínio combinatório. Por isso, no decorrer dos anos, o debate acerca do ensino
de matemática na educação infantil tem se intensificado e se tornado elemento
de constante análise entre pesquisadores. Desse modo, há um movimento de
reflexão acerca de práticas pedagógicas que podem ser implementadas para o
trabalho com a matemática na infância.
Assim sendo, nossos estudos buscam propor aos docentes que atuam na
educação infantil uma discussão sobre a utilização de um recurso pedagógico que
pode auxiliar no desenvolvimento do raciocínio combinatório de crianças. Esse
recurso são as histórias em quadrinhos (HQs), um gênero literário que ainda circula
entre crianças e adolescentes. Dentre suas caraterísticas, as HQ trazem uma dada

Licenciado em Matemática (IFES). CV: http://lattes.cnpq.br/5309325501152984


79

Doutora em Educação (UFES). Professora da Licenciatura em Matemática (IFES).


80

CV: http://lattes.cnpq.br/4458768372376772
211
visão da realidade. Portanto, nossa intenção é apresentar a história em quadrinhos
“Hoje é dia de salada de frutas!”, discorrer sobre como professores da educação
infantil podem trabalhar essa narrativa com crianças de 5 anos, através de uma
intervenção pedagógica, e descrever possíveis maneiras de como ela, a HQ, pode
auxiliar no desenvolvimento do raciocínio combinatório.
O enredo da HQ aqui mostrada tem a finalidade de apresentar a seguinte
situação: uma criança é convidada por uma adulta (nós pensamos e planejamos
que fosse sua mãe, mas as crianças que a lerem podem ter outras interpretações) a
escolher três dentre quatro frutas disponíveis para a preparação de uma salada de
frutas. As ações de escolha e as formas de organizar as frutas para a preparação da
salada tendem a mobilizar o raciocínio combinatório das crianças envolvidas no
processo. Desse modo, acreditamos que a proposta amplia padrões convencionais de
aulas expositivas e dialogadas e expande o uso de materiais didáticos manipuláveis
em atividades de matemática. Além disso, busca, de uma maneira mais dinâmica,
aproximar as crianças da matemática presente em seu cotidiano. Ademais, a inser-
ção dessa temática na educação infantil pode vir a contribuir para aprendizagens
futuras, nessa, e, em outras áreas do conhecimento, no decorrer da vida das crianças.

DESENVOLVIMENTO

A análise combinatória, ou simplesmente combinatória, é um dos ramos


da matemática mais presentes no cotidiano das pessoas. Sua aplicação pode ser
vista em maratonas, por meio das combinações de pódios que podem ocorrer;
campeonatos de futebol, através das possibilidades de grupos de times formados
para uma disputa de campeonato; escolha de roupas para um passeio quando, por
exemplo, a pessoa escolhe uma camisa, uma calça e um sapato dentre diversas
opções; cardápios de restaurantes ao combinarem as opções de entrada, prato
principal e sobremesa, dentre as várias disponíveis; dentre outras situações.
Diante disso e devido à grande aplicabilidade que a combinatória tem no
dia a dia, diversos estudiosos se debruçaram sobre ela e buscaram definir seu
objeto de estudo. Na literatura específica, ela é entendida como “[...] a parte da
matemática que analisa estruturas e relações discretas” (MORGADO et al., 1991,
p. 1) e, assim, “desenvolve métodos que permitam contar o número de elementos
do conjunto, sendo esses elementos agrupamentos formados sob certas condições”
(HAZZAN, 2013, p. 1). Essa definição incide sobre os objetos de estudo acerca dos
quais a combinatória se dedica e sobre as condições dadas para que o problema seja
212
resolvido. Por isso, Morgado et al. (1991) destacam que em combinatória encon-
tramos, geralmente, dois tipos de problemas quando se fala em conjuntos finitos
de elementos, são eles: (1) aqueles que demonstram a existência de subconjuntos
de elementos e (2) aqueles que contam ou classificam os subconjuntos. Então,
para interpretar e resolver problemas de análise combinatória, é necessário que o
estudante desenvolva o raciocínio combinatório, um “[...] tipo de pensamento que
envolve contagem, mas que vai além da enumeração de elementos [...]” (PESSOA;
BORBA, 2010, p. 2) e perpassa a ordenação, otimização, classificação, associações
entre elementos de um ou mais conjuntos e análise da existência de possibilidades
mediante a certas condições (MEIRELES; ZANON, 2021).
Por isso, não é qualquer condição que é essencial na resolução de problemas
de combinatória. É preciso respeitar as especificidades de cada agrupamento e as
indagações que eles geram ao resolvedor. Um exemplo disso é no que se refere à
contagem. Sobre ela, destacamos que “[...] nos problemas combinatórios [a con-
tagem] vai além de uma mera enumeração de objetos expostos, pois são contadas
maneiras possíveis de combinar dados elementos, de modo que todas as combi-
nações, que atendem certos critérios, sejam consideradas” (BORBA; ROCHA;
AZEVEDO, 2015, p. 3). Logo, as contagens que envolvem os problemas combi-
natórios são específicas para esse tipo de situação.
Convém destacar também que a combinatória pode interferir nas relações
humanas. Isso ocorre devido ao abordado por Zanon (2019), ao ressaltar que a
forma de pensar da análise combinatória — cujo intuito é estimular a tomada de
decisões baseada em critérios estabelecidos anteriormente — pode vir a influenciar o
mundo em seus diversos aspectos, como o social, cultural e político. Assim sendo, o
estímulo à investigação e à reflexão de grupos de itens elucidados pela análise com-
binatória pode ser transladado das situações-problema para a realidade e vice-versa.
No que se refere aos documentos oficiais em que a educação brasileira se
baseia, compreendemos que a Base Nacional Comum Curricular [BNCC] (BRA-
SIL, 2018) aponta ideias do raciocínio combinatório já na educação infantil. Isso
ocorre, principalmente, em um dos cinco campos de experiências indicados por ela,
o de “espaço, tempos, quantidades, relações e transformações”, e, também, em outros
campos do documento, nos quais discorre que crianças encontram constantemente
conhecimentos matemáticos, tais como contagem, ordenação, enumeração, relação
entre quantidades e outros, que lhes estimulam a curiosidade (BRASIL, 2018).
Logo, no contexto do campo de experiência destacado, há partes que mostram
ser importante uma abordagem do raciocínio combinatório na educação infantil.
213
Ao refletirmos sobre o trabalho com a combinatória na infância (MEIRELES;
ZANON, 2021; ZANON, 2019), pensamos na utilização de um recurso lúdico
que estimule a criticidade, a curiosidade e a participação das crianças. Assim,
entendemos que é nesse cenário que as HQs podem ser incorporadas.
É importante salientar que as histórias em quadrinhos são um dos gêneros
literários mais difundidos na atualidade e estão presentes no cotidiano de crianças
e adolescentes. Esse texto é assim denominado em função da introdução de balões
com falas de personagens, que são dispostos em desenhos (SILVA, 2011). Fischer
(2019) aponta que as HQs auxiliam os docentes na medida em que transformam
o conteúdo escolar em algo mais atraente e motivador para os alunos, fazendo
com que eles possam se apropriar desses saberes de uma forma diferente da con-
vencional. Logo, parece-nos que a história em quadrinhos tem potencialidades
para o processo educacional formal, visto seu papel social e cultural.
Destacamos, ainda, que a maneira como a HQ é construída também influencia
nos modos como os conhecimentos podem ser adquiridos por meio dela. Fischer
(2019) afirma que as HQs utilizam de artifícios “[...] como o desenho, as linhas, as
cores, o texto etc., os quadrinhos conseguem extrapolar o papel, garantindo assim
a elaboração de narrativas extremamente ágeis e com características bastante cine-
matográficas” (p. 18). Desse modo, elas mostram um cenário e uma história que
pode transmitir diversos conhecimentos, consoante o contexto e a forma como é
examinada. Silva (2011) salienta que “[...] as histórias em quadrinhos têm muitas
outras aplicações didáticas que geram a criação, a pesquisa e a reflexão e podem
ser exploradas por professores de todas as disciplinas [...]” (p. 11). Inferimos que,
dentre as disciplinas mencionadas pelo autor, temos a matemática.
Por isso, quanto à utilização das histórias em quadrinhos no ensino da
matemática, salientamos que “[...] esse recurso educacional ainda é pouco explo-
rado [...]” (PERIPOLLI; BARIN, 2018, p. 7). Dessa maneira, seu emprego em
sala de aula pode ser uma alternativa que pode ajudar a desmitificar algumas
concepções negativas que alguns estudantes têm para com a matemática. Nesse
sentido, as HQs podem ser utilizadas “[...] na introdução, revisão de conteúdo,
problematizando situações, verificando assim conhecimentos prévios que os alunos
já possuem principalmente no formato de discussão de conteúdo, para observar a
criticidade dos alunos” (PERIPOLLI; BARIN, 2018, p. 7). Desse modo, devido
a sua grande multifuncionalidade, entendemos que é de suma importância con-
siderar sua utilização em aulas planejadas na educação infantil, tendo em vista
que esse é um gênero literário que pode já ser conhecido por algumas crianças e
214
que pode ser apresentado a outras como uma nova forma de texto, quando esse é
trabalhado associado a um conteúdo matemático.
Assim, inferimos que há inúmeras possibilidades de utilização das histórias
em quadrinhos em sala de aula, ficando a critério do professor a melhor maneira
de empregá-la e de integrá-la ao seu planejamento. Todavia, para realizar esse
planejamento, é necessário que o docente conheça seu público-alvo, ou seja, os
alunos com quem irá trabalhar. No caso da educação infantil, as crianças.
Convém destacar que o sujeito que está presente na educação infantil possui
características próprias e está em pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e social.
É importante frisar que Sarmento (2011) discorre que não é possível determinar
um início e um fim para a infância, mas que há distintas etapas organizadas de
acordo com a idade do indivíduo. Ele destaca que há diferentes realidades sociais
nas quais a criança pode estar inserida, que variam de acordo com a classe social
e com a etnia delas. Todavia, há particularidades que são intrínsecas a todas as
crianças. No que se refere a essas condições, temos
[...] a peculiar situação de vulnerabilidade e dependência social, eco-
nômica e jurídica dos seus membros; a ausência de direitos cívicos e
políticos formais; o conjunto de concepções socialmente produzidas
que, sendo heteróclitas e contraditórias, têm o poder de referenciar
distintivamente o que é ser “criança”. Estes elementos comuns não
são estáticos, transformam-se ao longo dos tempos, tanto quanto
dos espaços geográficos e sociais, mas configuram condições especí-
ficas de existência para as crianças em cada espaço-tempo concreto
(SARMENTO, 2011, p. 584).

Assim, destacamos que as crianças dependem dos adultos com os quais


convivem para ter acesso aos recursos necessários à sua sobrevivência, como ali-
mentação, saúde e moradia. Sobre a forma de ensinar na educação infantil e as
singularidades desse processo, a BNCC (BRASIL, 2018) aborda que na educa-
ção infantil as concepções de educar e cuidar estão atreladas e precisam estar em
consonância com o processo de aprendizagem. Assim, cabe ao professor elaborar
atividades que despertem o interesse das crianças e contribua para o seu desen-
volvimento psicológico e social.

215
O USO DA HQ COMO RECURSO DIDÁTICO

Visando trabalhar o raciocínio combinatório utilizando as HQs com crianças


da educação infantil, propomos uma intervenção pedagógica utilizando esse recurso.
Conforme afirmam Damiani, Rochefort, Castro, Dariz e Pinheiro (2013), a inter-
venção pedagógica pode ser definida como “[...] investigações que envolvem o pla-
nejamento e a implementação de interferências (mudanças, inovações) – destinadas
a produzir avanços, melhorias, nos processos de aprendizagem dos sujeitos” (p. 58).
Desse modo, podemos perceber que essas práticas pensadas a partir de inter-
venções pedagógicas têm o intuito de aprimorar a aprendizagem das crianças e
propor alternativas que tendem a motivar tanto os estudantes quanto os professores
na busca pelo conhecimento. Além disso, salientamos que as ações propostas pela
intervenção pedagógica visam “[...] contribuir para a produção de conhecimento
pedagógico e levar à diminuição da distância entre a prática educacional e a pro-
dução acadêmica” (DAMIANI et al., 2013, p. 58). Assim, busca-se, por meio da
intervenção, gerar nossos saberes que serão incorporados à prática educacional.
Dessa maneira, propomos uma sequência didática com o uso das histórias
em quadrinhos como recurso didático para o trabalho com a combinatória na
infância. Sugerimos, nessas ações, que ela seja desenvolvida em, aproximadamente,
250 minutos, da maneira como o professor acreditar ser possível dentro do seu
planejamento. Com isso, queremos dizer que ela pode ser trabalhada em uma
semana ou em um mês, da forma como o docente entender ser mais viável. A
seguir, descrevemos as etapas dessa sequência, as quais podem ser implementadas
por professores da educação infantil.

Quadro 1 – Etapas da sequência didática: descrição de ações e tempo estimado


Etapas Descrição de ações Tempo
estimado
1 - Rotina da turma Tempo destinado à rotina da turma. 20
minutos
2 - Conhecendo Conhecendo as histórias em quadrinhos: diálogos sobre 30
o gênero literá- o gênero literário através de apresentação de exemplos minutos
rio histórias em de histórias encontradas em jornais, revistas infantis ou
quadrinhos disponíveis na internet

3 - Construindo Momento para as crianças elaborarem as suas próprias his- 40


histórias em tórias, colorir as imagens e contar ao professor suas ideias, minutos
quadrinhos para que este consiga registrá-las em balões.
216
4 - Lendo livre- Leitura livre e interpretação pelas crianças das histórias em 30
mente as histórias quadrinhos construídas por elas, para que possam rela- minutos
em quadrinhos tar experiências, sentimentos, emoções e conhecimentos
implícitos nas HQs.
5 - Apresentando Apresentação da história em quadrinhos “Hoje é dia de 40
uma história em salada de frutas!”. As cenas podem ser mostradas indi- minutos
quadrinhos que vidualmente às crianças através de cartazes, projeção em
envolve o raciocínio PowerPoint, impressão da história, dentre outros, elabora-
combinatório dos previamente pelos professores. Ao final da apresenta-
ção, as crianças terão acesso à história completa e poderão
interpretar as imagens que a compõem. Na sequência, as
crianças serão convidadas a dialogar sobre suas impressões
em relação às imagens e à história contada.
6 - Lendo a história Leitura da HQ para as crianças. O professor poderá entre- 20
em quadrinhos pro- gar uma cópia da história completa para cada aluno e ir minutos
posta na Etapa 5 lendo junto com eles, usando os cartazes/projeção com as
partes da história, para que elas possam acompanhar a lei-
tura da escrita nos balões e a sua relação com as imagens.
7 - Refletindo sobre Reflexões sobre o raciocínio combinatório presente na 45
raciocínio combina- história em quadrinhos. Os registros das percepções das minutos
tório a partir da his- crianças serão feitos pelo professor, por meio de anotações
tória em quadrinhos de trechos de diálogos dos estudantes, e pelas próprias
crianças quando apresentarem algum desenho para ilustrar
possíveis respostas às questões feitas pelo docente.
8 - Identificando Interpretação das ideias dos alunos acerca do pensamento 25
fragmentos de combinatório existente na HQ apresentada, verbalizadas e/ minutos
desenvolvimento do ou através de alguma ilustração.
raciocínio combina-
tório pelas crianças
Carga horária total 250
minutos
Fonte: Elaborado pelos autores, 2022.

Para a execução desta sequência didática, elaboramos uma história em qua-


drinhos que envolve o raciocínio combinatório, cuja narrativa se baseia em um
diálogo entre uma mãe e filho sobre a produção de uma salada de frutas. Nessa
narrativa, escolhemos trabalhar com a combinação, agrupamento em que se escolhe
uma quantidade de elementos e a ordem de escolha não influencia no resultado.
Esse agrupamento combinatório evidencia-se quando a mãe solicita a João (nome
que atribuímos ao garoto) que escolha três dentre as quatro frutas disponíveis para
se colocar na salada de frutas. A história completa se encontra abaixo:

217
Figura 1 – Hoje é dia de salada de frutas!

Quadrinho 1 Quadrinho 2 Quadrinho 3

Quadrinho 4 Quadrinho 5

Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.

Destacamos que, no decorrer da sequência didática, o professor pode realizar


perguntas disparadoras e reflexivas às crianças, nas etapas 5 e 7. Na quinta etapa,
o docente poderá vir a perguntar aspectos da história como um todo. Sugerimos
perguntas como: quantas pessoas aparecem na imagem? Elas são do mesmo tama-
nho? Quais são as características físicas delas? Que tipo de relação vocês pensam
que elas têm? Quais frutas João disse que pegaria? Quantas frutas seriam? Dentre
essas frutas que ele falou, quais você escolheria para montar uma salada com duas
frutas? Você escolheria as mesmas frutas que João escolheu? Por quê? Na etapa 7,
propomos aos docentes que realizem perguntas direcionadas ao raciocínio combina-
tório, tais como: quantos tipos de frutas João tem à disposição para escolher? Como
João organizou as frutas que escolheu? Ele poderia ter organizado diferente? Como?
A seguir, trazemos algumas possibilidades de escolha das frutas. Lembramos que
as frutas podem ser feitas, pelo professor, com material emborrachado para que as
crianças possam manuseá-las, organizá-las e ordená-las como mostramos abaixo.
218
Quadro 2 – Listagem de possibilidades

1- 9- 17 -

2- 10 - 18 -

3- 11 - 19 -

4- 12 - 20 -

5- 13 - 21 -

6- 14 - 22 -

7- 15 - 23 -

8- 16 - 24 -

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Dentre as 24 possibilidades listadas, percebemos que muitas delas se repetem,


alterando apenas a ordem de escolha da fruta. Desse modo, pode-se pensar nas
seguintes possibilidades distintas:
1 - (Maçã, Manga, Laranja);
2- (Abacaxi, Manga, Laranja);
3 - (Maçã, Abacaxi, Laranja);
4 - (Maçã, Manga, Abacaxi).
219
Desse modo, na história em quadrinhos, temos a combinação de 4 elementos
tomados 3 a 3, que matematicamente é dada por:
C 43 = = = = = 4
Neste procedimento de cálculo, temos que C43 indica a combinação de 4
elementos tomados 3 a 3. Desse modo, o número 4 representa o total de elementos
que podemos escolher de determinado conjunto. Já o 3 representa a forma como
iremos realizar os agrupamentos, ou seja, tomando sempre 3 dos 4 elementos
disponíveis. O símbolo (!) representa o fatorial de um número, ou seja, a multi-
plicação de determinado número pelos seus antecessores naturais até o número
1. Por exemplo, 4! representa 4 x 3 x 2 x 1. Já a letra C representa a operação a
ser realizada, ou seja, a combinação. Dessa forma, o docente da educação infantil
poderá anotar os diálogos que teve com as crianças e refletir a partir deles, buscando
analisar o progresso que os alunos tiveram com a atividade, bem como estratégias
para melhorar a intervenção pedagógica mencionada para uma próxima aplicação.

CONSIDERAÇÕES

No decorrer do texto, evidenciamos a possibilidade de se trabalhar a mate-


mática na infância, especialmente o conteúdo de análise combinatória. Destaca-
mos que, neste trabalho, usamos como recurso a história em quadrinhos “Hoje é
dia de salada de frutas!”. Nosso intuito era apresentar uma atividade dinâmica e
diferente daquelas normalmente abordadas em salas de aula da educação infantil,
pois propomos uma intervenção pedagógica fundamentada em uma sequência
didática, na qual consideramos as caraterísticas das crianças pequenas.
Nas ações que propomos, atribuímos importância aos conhecimentos cons-
truídos pelas crianças, de acordo com suas singularidades, nos ambientes sociais
que frequentam, que são fatores importantes na elaboração das práticas pedagó-
gicas desenvolvidas pelos docentes da educação infantil (BRASIL, 2018). Logo,
envolver o cotidiano dos estudantes em práticas educativas os motiva e pode tor-
nar o ensino mais interessante para eles. Nesse sentido, surge a ideia de trabalhar
com um recurso didático pouco explorado para o trabalho com a matemática na
infância: as histórias em quadrinhos. As HQs são uma importante ferramenta de
propagação de saberes e de leitura de mundo, sendo possível o debate de qualquer
temática a partir delas (FISCHER, 2019). Isso ocorre devido a uma estratégia
sistemática, previamente elaborada pelos professores. Assim, é importante ressaltar
que a utilização das HQs para o aprendizado das crianças pode não somente lhes
220
apresentar um novo gênero literário, caso não tenham conhecimentos prévios
sobre os quadrinhos, mas também proporcionar uma estratégia pedagógica como
apoio para o desenvolvimento do raciocínio combinatório.
Por fim, enfatizamos que no processo de elaboração da HQ utilizada na
sequência didática proposta neste trabalho, aprendemos que esse gênero literário
é versátil, haja vista que possibilita que o professor tenha autonomia ao propor a
tarefa em questão, uma vez que é possível utilizar uma história criada por outros
autores ou até mesmo elaborar a sua própria narrativa. Tendo isso em mente, o
docente pode transformar contextos em enunciados matemáticos (ZANON, 2017),
o que para nós é algo importante na construção de conhecimentos a respeito de
tópicos da matemática. Logo, ao elaborar a nossa sequência didática, percebemos
que o uso dos quadrinhos como recurso pedagógico contribui para a expansão de
práticas que unem o cotidiano, a literatura e a matemática.

REFERÊNCIAS
BORBA, Rute Elizabete de Souza Rosa; PESSOA, Cristiane; BARRETO, Fernanda; LIMA, Rita. Crianças,
adolescentes, jovens e adultos e a resolução de situações combinatórias. Horizontes, Itatiba, v. 31, n. 1, 2013.
Disponível em: https://revistahorizontes.usf.edu.br/horizontes/article/view/726/297. Acesso em: 17 jun. 2022.
BORBA, Rute; ROCHA, Cristiane de Arimatéa; AZEVEDO, Juliana. Estudos em Raciocínio Combina-
tório: investigações e práticas de ensino na Educação Básica. BOLEMA: Boletim de Educação Matemática,
Rio Claro, v. 29, n. 53, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/bolema/v29n53/1980-4415-bo-
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2018. Disponível em: http://www.basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versao-
final_site.pdf. Acesso em: 17 jun. 2022.
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Marion Rodrigues; PINHEIRO, Silvia Siqueira. Discutindo pesquisas do tipo intervenção pedagógica.
Cadernos de Educação, Pelotas, n. 45, p. 57-67, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufpel.
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FISCHER, Márcia Aparecida Cardoso da Cunha. O uso da história em quadrinho na sala de aula como
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HAZZAN, S. Fundamentos de matemática elementar 5: combinatória, probabilidade. 8. ed. São Paulo:
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221
MORGADO, Augusto César de Oliveira; CARVALHO, João Bosco Pitombeira de, CARVALHO, Paulo
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PERIPOLLI, Patrícia Zanon; BARIN, Cláudia Smaniotto. Uso pedagógico de histórias em quadrinhos no
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leitores críticos. Revista Anagrama, São Paulo, v. 5, n. 1, p.1-12, 2011.
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uma perspectiva bakhtiniana. Revista Pró-Discente, Vitória, v. 23, n. 2, p. 98-110, jul./dez. 2017. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/prodiscente/article/view/18618. Acesso em: 02 maio 2021.
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2019. 332f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal
do Espírito Santo, Vitória, 2019. Disponível em: https://sappg.ufes.br/tese_drupal//tese_13491_TESE%20
Thiarla%20-%20%20FINAL%2001-05%20para%20IMPRESS%C3O.pdf. Acesso em: 17 jun. 2022.

NOTA: este capítulo é uma adaptação de um TCC, o qual pode ser acessado em: https://repositorio.ifes.
edu.br/handle/123456789/1722?locale-attribute=en

222
GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA REDE
MUNICIPAL DE ENSINO EM MAUÉS/AM NA
VISÃO DOS GESTORES

Ronan Miranda Caldas81


Wagner Barros Teixeira82

INTRODUÇÃO

Recorte de uma dissertação de mestrado desenvolvida no âmbito da


Universidad de la Integración de las Américas (CALDAS, 2021), no Para-
guai, este capítulo desenvolve a temática da gestão democrática do ensino,
considerando a realidade da cidade amazonense de Maués, na perspectiva de
gestores de escolas no município.
O questionamento que norteia nosso percurso é o seguinte: o que pensam
os gestores sobre a gestão democrática de uma unidade de ensino, considerando
vantagens e desafios? Dessa forma, nosso objetivo aqui é analisar de forma sucinta
as impressões dos gestores sobre a gestão democrática em Maués.
Os dados analisados foram obtidos mediante pesquisa etnográfica, mate-
rializada por meio da aplicação de um questionário de sondagem aos informantes
por meio da ferramenta Google Form, devido à pandemia da Covid-19, garantindo,
assim, todos os cuidados sanitários necessários.
Além desta seção introdutória, este capítulo está formado por uma seção
de desenvolvimento que aborda pressupostos sobre a gestão democrática e,
então, apresenta e analisa dados a partir da perspectiva de gestores amazonen-
ses. Na sequência, apresenta outra seção, à guisa de encaminhamentos possí-
veis, seguida pelas referências.

81
Doutorando em Ciências da Educação (UNIDA-PRY). Professor (SME-Maués/AM).
CV: http://lattes.cnpq.br/0501017164481747
82
Doutor em Letras Neolatinas (UFRJ). Professor adjunto (UNILA) e professor pesquisador (UFAM).
CV: http://lattes.cnpq.br/6227315631560289
223
DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA GESTÃO
DEMOCRÁTICA NAS ESCOLAS

A gestão escolar pode ser definida como um conjunto de estratégias que o


gestor deve traçar ao começo de cada ano a fim de guiar o estabelecimento edu-
cacional, envolvendo as áreas pedagógica, administrativa, financeira, de gestão de
pessoas, de marketing e de comunicação.
No decorrer dos anos, a gestão escolar tem passado por constantes mudanças,
principalmente na história recente, considerando o contexto das escolas no século
XXI, e essas mudanças trazem para os gestores escolares desafios na implementação
de uma gestão em perspectiva democrática.
Sobre a questão, Silva (2015, p. 4-5) afirma que
[...] é possível notar que a gestão democrática ainda é complexa em
sua organização em muitos ambientes escolares, as fragilidades nas
políticas públicas, os diretores mal preparados, família e equipe de
trabalho desengajados com a proposta de trabalho, são alguns dos
entraves que bloqueiam o sucesso democrático dentro da escola,
portanto, é necessário que cada membro da comunidade escolar reflita
sobre seu papel social, a fim de que a escola possa ser um local no
qual o aluno exerça seu papel de cidadão tenha sucesso no processo
de ensino e aprendizagem.

Na perspectiva da investigadora, ficam evidentes que os desafios para imple-


mentar a gestão escolar democrática tocam diferentes âmbitos, abrangendo políticas
públicas, formação dos gestores escolares e participação da comunidade escolar
no processo, em especial da família, o que faz com que implementar uma gestão
nessa perspectiva seja considerado um processo complexo.
Apesar disso, Silva e Pereira (2018, p. 17) descrevem avanços históricos
que a gestão escolar democrática vem conquistando, em especial ao considerar
documentos norteadores. Afirmam que
Ao assumir, na Constituição Federal de 1988, o formato federativo,
também foram designadas as atribuições educacionais aos entes
federados: Distrito Federal, estados e municípios. Em seguida, resul-
tados das lutas entre as forças políticas e econômicas dominantes
e os segmentos sociais e populares, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394/96 estabeleceu no art. 3º o princípio da
gestão democrática do ensino público.

224
No cenário histórico, a luta por uma gestão escolar democrática é travada
em diferentes instâncias, e cada conquista deve ser comemorada. Nesse cenário, os
embates têm se intensificado com a finalidade de regulamentar legislação norteadora
e de definir instrumentos que operacionalizem essa perspectiva de gestão escolar.
Paro (2015, p. 85), por sua vez, afirma que
[...] isto pode funcionar como um importante suporte legal para
cada vez mais se incrementarem medidas a chamar a comunidade
para a escola para participar de decisões a respeito de seus rumos e
da realização de seus propósitos educativos.

Nessa esteira, o Projeto Político Pedagógico constitui importante meca-


nismo da gestão democrática, disposto nos documentos legais da educação, a ser
desenvolvido por meio de planejamento estratégico das instituições de ensino.
Para Moura (2011, p. 57),
[...] numa concepção de gestão democrática, constitui-se em um
instrumento essencial de gestão educacional, desde que seja levado em
conta no planejamento: a participação efetiva daqueles que compõem
a escola, o atendimento aos dispositivos legais, as necessidades da
comunidade, além de considerar os aspectos que historicamente foram
acumulados pela humanidade, a fim de promover nos alunos condições
de discutir a realidade que se apresenta, no intuito de transformá-la.

Levando em consideração esses aspectos, os desafios para implementação


da gestão democrática são muitos. Sua construção perpassa o fortalecimento par-
ticipativo dos agentes envolvidos com a comunidade escolar. Assim, é necessário
que essa comunidade compreenda sua importância na construção de uma gestão
escolar participativa, auxiliando na transformação do cotidiano escolar.
Sobre a questão, Lück (2015) destaca essa forma de gerir o público, entrelaçada
ao processo de desenvolvimento da família, na convivência humana, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas manifestações
culturais. Dessa forma, a gestão escolar democrática deve considerar diversos
agentes sociais, diferentes processos desenvolvidos no seio da sociedade e estar
pautada nos documentos que norteiam o sistema de ensino brasileiro.
Com base nos pressupostos abordados até aqui, a seguir, passamos a ana-
lisar como é vista a gestão democrática na perspectiva de gestores que atuam
na cidade amazonense de Maués.

225
A GESTÃO ESCOLAR NA PERSPECTIVA DE GESTORES
AMAZONENSES

Conforme mencionado anteriormente, os dados analisados foram reti-


rados do trabalho de mestrado desenvolvido por Caldas (2021). Os cinco
informantes que participaram da pesquisa atuam como gestores em escolas
públicas na cidade de Maués/AM. Para facilitar sua apresentação, neste capí-
tulo, foram organizados em quadros.

QUADRO 01 – Respostas à Pergunta 01


Como você desenvolve a gestão de sua escola?
Nº Nome Respostas
1 Informante 1 Faço de maneira coletiva-participativa.
2 Informante 2 Faço de maneira coletiva-participativa.
3 Informante 3 Faço de maneira coletiva-participativa.
4 Informante 4 Faço de maneira coletiva-participativa.
5 Informante 5 Faço de maneira coletiva-participativa.
Fonte: adaptado de Caldas (2021)

Em conformidade com as informações obtidas, percebemos que os cinco


gestores responderam que desenvolvem a gestão de maneira coletiva-participativa.
A resposta mostra que a cultura da gestão democrática vem sendo incentivada
dentro da rede municipal de ensino em Maués, no Amazonas.
Esse panorama vai ao encontro do que afirma Furquim (2019), ao considerar
a importância de o gestor educacional pensar em estratégias para fazer com que
sua gestão agregue a participação da comunidade escolar. No entanto, entendemos
que essa tarefa não é fácil e requer tempo, estudo e conhecimento.
Para detalhar a situação da gestão democrática em Maués, Amazonas, acre-
ditamos ser necessário entender de que maneira o gestor escolar desenvolve sua
gestão na perspectiva democrática em sua instituição de ensino.
Vejamos a seguir o que disseram os informantes a respeito.

226
QUADRO 02 – Respostas à Pergunta 02
Como você desenvolve a Gestão Democrática em sua escola?
Nº Nome Respostas
1 Informante 1 Faço de maneira coletiva e participativa, todos interagem.
Sempre busco envolver os profissionais de modo que possamos
2 Informante 2
desenvolver uma gestão participativa.
Fazer uma gestão precisa de uma coletividade que busque, incentive,
3 Informante 3
conheça e desenvolva mecanismos de processos educativos.
Trabalhamos em coletividade, cada um desenvolve sua função, pro-
4 Informante 4
curando fazer seu melhor para obtermos resultados positivos.
É importante a participação dos envolvidos na escola: professores,
funcionários, alunos, pais e toda comunidade escolar precisam
estar envolvidos por meio da democracia nas tomadas de decisões
5 Informante 5
na escola; assim é possível alcançar objetivos traçados com a
colaboração de todos, para maiores possibilidades de ter êxito
naquilo que é almejado dentro da instituição de ensino.
Fonte: adaptado de Caldas (2021)

Os gestores escolares municipais informaram que a gestão se dá de forma


coletiva e participativa, incentivando professores, funcionários, alunos, pais e toda
a comunidade escolar a contribuírem para o processo de gestão escolar, o que vai
ao encontro dos pressupostos de Almeida et al. (2014) sobre a perspectiva de uma
escola de referência, a qual assegura aprendizagem de qualidade pela participação
da comunidade escolar nas tomadas de decisões.
Considerando a realidade das escolas brasileiras, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (BRASIL, 1996) afirma que
Art. 14º Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão demo-
crática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas
peculiaridades e conforma os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto


pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos ou


equivalentes.

Pelo que percebemos, os gestores municipais em Maués estão buscando


trabalhar em consonância com a determinação da legislação vigente, na tentativa
de construir uma escola nos moldes de convívio e gestão coletivo-participativa.

227
No intuito de analisar o que pensam esses gestores de forma ampliada, indo além
do contexto escolar de sua própria instituição de ensino, a pergunta seguinte focou
em suas perspectivas sobre a gestão escolar na rede municipal de ensino em Maués.

QUADRO 03 – Respostas à Pergunta 03


Como a Gestão Democrática está presente nas escolas da rede municipal de ensino?
Nº Nome Respostas
1 Informante 1 A gestão é parcialmente democrática.
2 Informante 2 A gestão é presente de forma ativa.
3 Informante 3 A gestão é parcialmente democrática.
4 Informante 4 A gestão é presente de forma ativa.
5 Informante 5 A gestão é presente de forma ativa.
Fonte: adaptado de Caldas (2021)

A partir dos dados obtidos, percebemos que a gestão democrática está pre-
sente na rede municipal de ensino na visão de todos os informantes, sendo que
para três deles ela acontece de forma presente e ativa.
Buscando entender melhor as respostas obtidas pela pergunta anterior, a
seguir, apresentamos quadro com justificativas dos gestores.

QUADRO 04 – Respostas à Pergunta 04


Justifique sua resposta.
Nº Nome Respostas
1 Informante 1 A gestão é parcialmente democrática, pois seguimos um sistema
educacional.
2 Informante 2 A gestão está sempre presente de forma ativa, buscando meios que pos-
sam subsidiar o desenvolvimento escolar.
3 Informante 3 A gestão escolar democrática é, atualmente, vista como o melhor
caminho a seguir pelos gestores para fazer a escola funcionar de forma a
atender às expectativas da formação adequada dos alunos.
4 Informante 4 Conhecemos a realidade de nossa clientela, porque estamos presentes
diariamente na escola.
5 Informante 5 O gestor tem que pensar numa gestão democrática presente e de forma
ativa, pois é indispensável a participação ativa da comunidade escolar
no processo de tomada de decisões, baseada na dinâmica do trabalho
coletivo e de partilha de responsabilidades para o exercício da autonomia
escolar das escolas municipais de ensino de Maués.
Fonte: adaptado de Caldas (2021)

228
Observa-se que os gestores escolares acreditam nos resultados a partir da
implantação de uma gestão democrática nas escolas de forma presente e ativa em
Maués/AM. Apenas um deles acredita que esse trabalho acontece de maneira
parcialmente democrática na rede municipal de ensino por seguir um planeja-
mento maior, do sistema educacional, extrapolando o planejamento local. Apesar
disso, todos entendem que o melhor caminho é fazer as escolas funcionarem
dentro da perspectiva democrática.
Segundo a Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014), prevê-se
Assegurar condições, no prazo de dois anos, para a efetivação da
gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de
mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no
âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da
União para tanto.

A análise dos depoimentos tem permitido entender que em Maués/AM


o sistema educacional vem implementando a gestão democrática em seus esta-
belecimentos educacionais. Com isso, o município assegura, nos moldes dessa
lei, a descentralização, a integração do sistema com a família, favorecendo a par-
ticipação da comunidade escolar.
Para finalizar nossa análise, apresentamos mais detalhes sobre o que pen-
sam os gestores sobre a gestão escolar em Maués, focando em vantagens e desa-
fios dessa perspectiva de gestão.

QUADRO 05 – Respostas à Pergunta 05


Quais são as vantagens e os desafios da Gestão Democrática em sua visão?
Nº Nome Respostas
1 Informante 1 A vantagem é poder contribuir junto ao corpo docente e discente
de sua escola, porém os desafios são muitos, principalmente com a
pandemia.
2 Informante 2 Ao proporcionarmos uma gestão democrática podemos ter uma
visão inovadora de profissionais que possam atuar de forma partici-
pativa e colaborativa para o processo de desenvolvimento escolar.
3 Informante 3 Vantagens: melhora a educação dos alunos, trabalha o espírito da
coletividade, desenvolve o pensamento crítico e político. Desafios:
estimular as competências e habilidades, motivar alunos e professo-
res em sala de aula.

229
4 Informante 4 Partilhamos conhecimento em prol da melhoria da educação.
Vantagens: envolvimento dos profissionais nas ações praticadas pela
escola. Desafios: buscar possíveis caminhos para participação efetiva
da comunidade escolar (família dos alunos).
5 Informante 5 Vantagens: o gestor não trabalha de forma isolada, ele sempre busca
envolver todos nas decisões que irão ajudar no ambiente escolar.
Desafios: as políticas públicas, gestores mal preparados, dificuldade
de participação dos pais na escola e professores desmotivados por
falta de um salário digno.
Fonte: adaptado de Caldas (2021)

De acordo com os dados, a gestão democrática apresenta como princi-


pais vantagens o compartilhamento das decisões, uma perspectiva inovadora de
gestão, o trabalho coletivo, a partilha de conhecimento e o desenvolvimento do
pensamento crítico e político.
No tocante aos desafios, foram mencionados a pandemia da Covid-19, a
necessidade de se estimular competências e habilidades de alunos e professores,
a busca de caminhos para a participação efetiva da comunidade, a formação
e a remuneração de educadores.
Sobre a questão, Furquim (2019), comenta:
Não são apenas as transformações nas metodologias de ensino-apren-
dizagem que trouxeram desafios a você, gestor. Mudanças de com-
portamento da sociedade e os velhos desafios da rotina administrativa
escolar exigem novas posturas de gerenciamento.

Ao analisar os dados, fica claro que a gestão escolar democrática revela


vantagens ao processo educacional, e, ao mesmo tempo, traz também grandes
desafios que o profissional à frente do estabelecimento escolar tem que conhecer
e, na medida do possível, administrar, liderando essa escola do século XXI, o que
exige nova postura, sendo um gestor influenciador na atuação de pessoas, bem
como dispondo de perfil flexível e dinâmico.
Antes de terminar nosso trajeto neste capítulo, a seguir, à guisa de encami-
nhamentos, propomos mais algumas considerações.

230
ALGUNS POSSÍVEIS ENCAMINHAMENTOS...

Em consonância com o início deste capítulo, a pergunta que norteou nosso


percurso aqui visou saber o que pensam os gestores sobre a gestão democrática
em Maués/AM, considerando vantagens e desafios.
Os resultados evidenciam que, no município em questão, a gestão
escolar democrática é parte integrante do contexto educacional das esco-
las da rede municipal de ensino.
No tocante aos gestores, ficou evidente que consideram o modelo demo-
crático o adequado ao trabalho em suas escolas devido às vantagens que traz
consigo, entre as quais a partilha da gestão e as contribuições para os educadores,
os estudantes e a comunidade escolar.
No entanto, é necessário ressaltar que a implementação desse modelo
de gestão é um processo que acarreta desafios, conforme os mencionados no
decorrer deste capítulo, sendo necessário o engajamento de toda a comuni-
dade para o sucesso do processo.
Além disso, entendemos ser importante destacar a necessidade de investi-
mento na formação continuada de gestores e educadores com relação à temática
e implementação de iniciativas de difusão da perspectiva de gestão democrática,
para que a comunidade a conheça e possa se engajar.
Sabemos que essas são apenas algumas das questões envolvidas, havendo
muitas outras que, igualmente, merecem atenção. No entanto, devido à concisão
deste capítulo, deixamos esse novo desafio a futuras pesquisas!

REFERÊNCIAS
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outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2014/lei-13005-25-junho-
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visão dos gestores, da BNCC e do RCA. Dissertação de mestrado defendida no âmbito do Programa de
Mestrado em Ciencias de la Educación da Universidad de la Integración de las Américas. Ciudad del Este,
Paraguay, 2021.
231
FURQUIM, D. 10 desafios da gestão escolar na educação do século 21. Escolas Disruptivas, 2019.
LÜCK, Heloísa. Gestão educacional: uma questão paradigmática. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015. (Série:
Cadernos de Gestão).
MOURA, E. S. Relações e contradições entre a gestão escolar democrática e a qualidade total: um estudo a
partir das observações realizadas em escolas públicas da rede Municipal de Manaus. 2011. 131 f. Dissertação
(Mestrado em educação) – UFAM/FUA, Manaus, 2011.
OLIVEIRA, J. L. C. de; MAGALHÃES, A. M. M. de; MASUEMATSUDA, L. Métodos mistos na
pesquisa em enfermagem: Possibilidades de aplicação à luz de Creswell. Texto & Contexto – Enfermagem,
Cascavel, v. 27 n. 2, jun. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-07072018000200323&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 11 abr. 2021.
PARO, Vitor Henrique. Diretor escolar: Educador ou gerente? São Paulo: Cortez, 2015.
SILVA, J. N. Os desafios da gestão democrática. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE REPRE-
SENTAÇÕES SOCIAIS, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO, IV, 2015, Campo Grande. Anais [...].
Campo Grande: EDUCERE, 2015.
SILVA, M. A. da; PEREIRA, R. da S. (org.). Gestão escolar e o trabalho do diretor. Curitiba: Appris, 2018.
(Educação, Tecnologias e Transdisciplinaridade; Políticas Públicas de Educação).

232
A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
DO IDOSO

Daniela Rezende de Oliveira83


Klauss Carvalho de Malta84

INTRODUÇÃO

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o envelhecimento da


população representa uma das maiores conquistas, e também, um dos maio-
res desafios da humanidade (OMS, 2005, p. 8). Nesse sentido, a Organiza-
ção Mundial da Saúde adverte que
Em todo o mundo, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais está
crescendo mais rapidamente que a de qualquer outra faixa etária. Entre
1970 e 2025, espera-se um crescimento de 223 %, ou em torno de
694 milhões, no número de pessoas mais velhas. Em 2025, existirá
um total de aproximadamente 1,2 bilhões de pessoas com mais de
60 anos. Até 2050 haverá dois bilhões, sendo 80% nos países em
desenvolvimento. (OMS, 2005, p. 9)

Nesse entendimento, no que se refere à realidade brasileira, merecem des-


taque as observações de Dardengo e Mafra:
(...) atualmente no Brasil há mais de 26 milhões de pessoas idosas
- cerca de 13,7% da população total, com idade acima de 60 anos.
Conforme estimativas, os idosos farão parte de um grupo maior que
o de crianças com até 14 anos, em 2030. E, em 2055, estima-se que
o número de idosos será maior que o de crianças e jovens com até 29
anos. Observa-se que, em 2025, serão 64 milhões de velhos e, em 2050,
um em cada três brasileiros será idoso, representando aproximada-
mente 29,7% da população. (DARDENGO; MAFRA, 2018, p. 2-3)

Percebe-se, pois, que nas últimas décadas há um acentuado aumento mundial


da população idosa, e esse fato desperta a atenção de diversos países e sociedade
para a criação e implantação efetiva de políticas públicas que assegurem o direito

83
Doutora em Direito e Justiça (UFMG). Professora do curso de Direito (UNAERP). Advogada.
CV: http://lattes.cnpq.br/3102197230766801
84
Pós-graduação em Planejamento Tributário (LEGALE). Pós-graduando em Direito Tributário (PUCRS). Professor
e advogado. CV: http://lattes.cnpq.br/2440698559494685
233
do idoso ao envelhecimento ativo, saudável e de qualidade (OMS, 2005, p. 9). Dito
de outra forma, o aumento da expectativa média de vida da população precisa ser
acompanhado de qualidade de vida, assegurando-se a saúde do idoso em todas
as suas dimensões (física, moral e social), exigindo-se que o Estado – e também a
sociedade – atue constantemente em benefício dessa parcela da população.
Dentre os direitos fundamentais do idoso, o direito à educação se revela como
essencial para que seja possível um envelhecimento saudável e com qualidade de
vida, pois é por meio da educação que ocorre a transformação e evolução moral,
social e política do ser humano, sendo ela instrumento necessário para a reinserção
social do idoso na vida da comunidade.
Atualmente, a legislação brasileira reconhece e garante diversos direitos fun-
damentais aos idosos, se mostrando bastante diversificada e organizada. Contudo,
no que se refere ao direito do idoso à educação e à implantação de políticas públicas
voltadas para a educação das pessoas idosas, percebe-se que, no Brasil, esse direito
ainda não se encontra devidamente consolidado. Isso porque, além da ausência
de um maior investimento na área de educação e de uma melhor preparação e
formação dos profissionais que atendem os idosos, muitas leis e políticas públicas
não observam as variadas peculiaridades, condições e necessidades inerentes a
pessoa idosa, desconsiderando a posição no processo educacional, havendo um
desrespeito às particularidades inerentes a sua idade.

O IDOSO E O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

Em 1963, a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao classificar as faixas


etárias, determinou como indivíduos de “meia idade” aqueles que tinham idade de
45 a 59 anos, indivíduos “idosos” aqueles compreendidos na faixa etária dos 60 aos
74 anos, “anciãos” como aqueles indivíduos que tenham de 75 a 90 anos de idade,
e “velhice extrema” todos os indivíduos acima dos 90 anos de idade (VIEIRA,
NASCENTES, 2004, s/p). Nesse entendimento, em 2005, a Organização Mundial
da Saúde (OMS), baseando-se no critério cronológico, estabelece que a velhice
se inicia aos 65 anos nos países desenvolvidos e aos 60 anos nos países em desen-
volvimento (OMS, 2005, p. 10-12).
A legislação brasileira, em consonância com as diretrizes da OMS, também
adota o critério cronológico para definir quem é a pessoa idosa, determinando
que idoso é “a pessoa maior de sessenta anos de idade” (art. 2º da Lei n. 8.842/94
– PNI, e também, art. 1º da Lei 10.741/2003 – Estatuto do Idoso).
234
O critério cronológico, frequentemente utilizado nas legislações (DINIZ,
2011, p. 6), apesar de ser mais objetivo e oferecer maior segurança jurídica e estabi-
lidade nas relações sociais, desconsidera as peculiaridades, condições e experiências
de cada indivíduo na avaliação do processo de envelhecimento. Por isso, definir
o que vem a ser “pessoa idosa” é uma tarefa extremamente complexa, sendo que
nem o critério cronológico, nem o critério jurídico, são suficientes e adequados
para obter-se uma conclusão satisfatória, sendo necessária a utilização de outros
critérios, como por exemplo, fatores psicobiológicos, fisiológicos, econômicos e
sociais. Isto porque, quanto maior for o desenvolvimento econômico-social de um
país, ou ainda, quanto maior for o grau de acesso da população a políticas públi-
cas de saúde, maior será a sua expectativa de vida (OMS, 2005, p. 8-13). Nesse
sentido, Neri e Cachioni assinalam que
O modo de envelhecer depende de como o curso de vida de cada
pessoa, grupo etário e geração é estruturado pela influência constante
e interativa de suas circunstâncias histórico-culturais, da incidência
de diferentes patologias durante o processo de desenvolvimento e
envelhecimento, de fatores genéticos e do ambiente ecológico. (NERI;
CACHIONE, 1999, p. 121)

Assim, em razão da diversidade de critérios que podem ser adotados, bem


como a mutabilidade desses critérios quando analisados no tempo e no espaço, e
considerando-se ainda as condições e peculiaridades de vida de cada população,
é impossível obter uma conclusão definitiva sobre a identidade do idoso.
Certo é que viver é envelhecer, e passar pelo processo de envelhecimento é
inevitável para todo ser que vive. Todo ser vivo – e o ser humano não seria diferente
– possui um ciclo de vida: ele nasce, cresce e se desenvolve, amadurece e morre. E,
devido a finitude da vida, as ideias de “velhice” e “envelhecimento” são, geralmente,
compreendidas somente por meio de uma perspectiva biológica, de modo que a
pessoa idosa é considerada como sujeito que possui o condicionamento físico ou
a saúde debilitada, por vezes portadora de alguma doença (seja ela de natureza
física ou psíquica), além de economicamente improdutiva.
No entanto, em razão do desenvolvimento e dos avanços das ciências bio-
tecnológicas e farmacêuticas, essa concepção negativa acerca da ideia de velhice
e da pessoa idosa tem mudado, uma vez que os idosos de hoje não são iguais aos
idosos de algumas décadas atrás, pois conseguem manter uma vida saudável e
ativa por muito mais tempo. Atualmente, é possível envelhecer de forma saudável
e com qualidade de vida. Assim, esclarece Menezes que
235
A questão básica e prioritária é perceber a velhice como uma etapa
final natural da existência e, o velho, o protagonista principal, não
necessariamente como coitado, um miserável, gerando sentimento de
pena e de paternalismo por parte das pessoas. Não se trata também
de supervalorizar e louvar o velho e a velhice, trata-se apenas, da
sensibilidade de uma sociedade e, de uma ética de solidariedade em
reconhecer que os valores singulares humanos não se encontram na
potência, no vigor e na beleza física, mas sim, na dignidade humana.
(MENEZES, 1999, p. 273)

É necessário que a população mais jovem seja preparada e educada para


compreender que o processo de envelhecimento é um fenômeno natural, e que a
pessoa idosa é parte integrante da sociedade, que necessita de atenção e cuidados,
mas também é capaz de contribuir com os indivíduos mais jovens ao compartilhar
os seus conhecimentos, experiências, lembranças e sentimentos.
De todo modo, é inegável que com o passar dos anos, e por mais que o indi-
víduo seja zeloso com sua própria saúde, o organismo humano vai se debilitando, e
questões relativas ao envelhecimento e ao aumento da população idosa tornam-se
uma problemática social. Assim, as pessoas idosas, bem como suas famílias e a
sociedade como um todo, passaram a exigir que o Estado atenda essa nova demanda
social por meio da criação, regulamentação e implantação de políticas públicas
específicas que sejam capazes de assegurar os direitos fundamentais dos idosos,
além de promover a sua reinserção e participação política ativa na vida social.

A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Os direitos fundamentais devem ser entendidos como aqueles direitos ine-


rentes à pessoa humana e que lhes são essenciais para uma existência digna, e por
isso, são reconhecidos e positivados pela ordem jurídico-constitucional; isto é, são
os direitos humanos enquanto “manifestações possíveis do Direito, com aptidão
para a produção de efeitos no plano jurídico”. (GUERRA FILHO, 2005a, p. 43)
A educação se refere a todo e qual processo de aprendizagem, isto é, ao ato
de ensinar e aprender, construindo-se me instrumento fundamental pelo qual a
sociedade é capaz de construir, desenvolver e transmitir o conhecimento. Além
disso, a educação engloba todos os meios e métodos de ensino que visam assegurar
a instrução, o desenvolvimento e a formação pessoal e profissional dos indivíduos.
Nesse entendimento, é inegável que a educação constitui um direito fun-
damental, uma vez que ela permite e garante o pleno desenvolvimento do ser
236
humano enquanto ser individual, social e político. É por meio da educação que
ocorre a transformação social para o bem comum, uma vez que “a educação é um
processo histórico de criação do homem para a sociedade e simultaneamente de
modificações da sociedade para o benefício do homem” (PINTO, 1989, p. 39).
Embora a educação seja fundamental para a formação do ser humano e a
transformação da sociedade, no Brasil, ela nem sempre foi reconhecida como um
direito fundamental, a exemplo das Constituições da República de 1937 e 1967.
Do mesmo modo, até a promulgação da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB/88), a educação não era considerada uma responsabi-
lidade primordial do Estado, e a educação gratuita e de qualidade não era tratada
como um direito de todos os brasileiros, sendo que o ensino público era encarado
muito mais por uma perspectiva assistencial do que como uma obrigação formal
do Estado e de toda a sociedade.
A relevância e importância do ensino e da educação para o desenvolvimento
do indivíduo e da sociedade, bem como para o adequado exercício da cidadania,
foram repensadas nas deliberações da Constituinte de 1987-1988, de modo que
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) passou a
reconhecer a educação como um direito fundamental social de todos os brasi-
leiros, cuja prestação é uma obrigação primordial do Estado, em conjunto com
a família e a sociedade. Assim, o art. 6º da CRFB/88 determina que os direitos
sociais são “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados”.
A CRFB/88 prescreve, ainda, que compete privativamente à União legislar
sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, inc. XXIV) e, concorren-
temente, compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre edu-
cação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento
e inovação (art. 24, inc. IX). Além disso, o texto constitucional, no título VIII,
ao tratar da Ordem Social, contém diversos dispositivos que visam assegurar o
direito à educação, bem como o seu acesso, qualidade e organização (arts. 205 a
214, CRFB/88). O art. 205 da CRFB/88 determina que
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

237
A educação, enquanto direito de todos e dever do Estado e da sociedade,
além de fundamental para a formação pessoal e profissional do indivíduo, é direito
essencial para a construção de uma sociedade justa, harmônica e solidária, eis que
possibilita que o ser humano exerça conscientemente e plenamente a sua liberdade,
além de possibilitar a sua inserção e participação na vida social.

POLÍTICAS PÚBLICAS DO IDOSO NO BRASIL

No Brasil, a preocupação com o processo de envelhecimento populacional


e a questão das pessoas idosas tem se acentuado nas últimas décadas, motivo pelo
qual os direitos e a proteção jurídica do idoso encontram-se resguardados no
ordenamento jurídico após a promulgação da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
Contudo, o tratamento normativo das questões inerentes ao envelhecimento
populacional nas políticas públicas brasileiras surge a partir da década de 60 do
século passado, em 1961, quando em razão da forte influência da sociedade civil,
foi criada a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (CAMARANO;
PASINATO, 2004, p. 259-263). No mesmo período, em 1963, o Serviço Social
do Comércio (SESC) implantou uma política social de atenção aos idosos, com
o intuito de dar amparo aos aposentados, desenvolvendo atividades destinadas a
promover a socialização e saúde (física e mental) dessa população. Posteriormente,
em 1975, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS),
cujo objetivo principal era assegurar a saúde e a renda das pessoas idosas (CAMA-
RANO; PASINATO, 2004, p. 262-265).
Em 1976, houve um grande avanço em relação às políticas públicas voltadas
para o idoso com a instituição das Diretrizes para uma Política Nacional para a
Terceira Idade que estabelecia diretrizes e regras para uma política social destinada
às pessoas idosas. E, em 1982, foi realizada a I Assembleia Mundial sobre Envelhe-
cimento, momento em que foi instituído o conceito de envelhecimento saudável.
O entendimento do que vem a ser “envelhecimento saudável” repercutiu na
Constituinte brasileira (1987-1988), e a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (CRFB/88) reconheceu e assegurou o direito fundamental à saúde
para toda população – sobretudo, após a instituição do Sistema Único de Saúde
(SUS), por meio da Lei Orgânica da Saúde n. 8.080/90. Entretanto, apesar dos
diversos avanços alcançados com a implantação do SUS, a atenção e cuidado com

238
a saúde do idoso ainda permaneceu como atribuição preponderante das famílias
e da sociedade, e não primordialmente do Estado.
Posteriormente, em 1994, por meio da Lei n. 8.842, foi criada a Política
Nacional do Idoso (PNI) com o objetivo de “assegurar os direitos sociais do idoso,
criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva
na sociedade.” (art. 1º da Lei n. 8.842/94). O PNI de 1994 ainda assegura o direito
à saúde do idoso e o seu amplo acesso por meio do SUS, de modo que essa parcela
da população possa alcançar a longevidade com qualidade de vida.
Anos depois, em resposta às proposições contidas no Plano de Ação Interna-
cional para o Envelhecimento, formulado na II Assembleia Mundial sobre o Envelhe-
cimento, realizada em 2002, foi instituído o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003),
que assegura aos idosos a fruição e gozo de todos os direitos fundamentais ine-
rentes à pessoa humana, e também, o acesso irrestrito a todas as oportunidades e
facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (art. 2º
da Lei n. 10.741/2003). O documento normativo ainda determina como dever da
família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público “assegurar ao idoso, com
absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao
respeito e à convivência familiar e comunitária” (art. 3º da Lei n. 10.741/2003).
Em 2006, por meio do SUS, é instituído o Pacto Pela Saúde, cujo objetivo
é promover inovações nos processos e instrumentos de gestão, visando alcançar
maior eficiência e qualidade dos serviços prestados pelo SUS, redefinindo as
responsabilidades de cada um de seus gestores em função das necessidades de
saúde da população e na busca da equidade social. Em relação aos idosos, o pacto
assume o compromisso de garantir a saúde do idoso de forma integral, visando
o envelhecimento saudável e ativo dessa população por meio da implantação da
Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI - Portaria n. 2.528).

O IDOSO E O DIREITO À EDUCAÇÃO NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO

No Brasil, as primeiras iniciativas visando a educação destinada aos adultos


e idosos foi realizada pelo Serviço Social do Comércio (SESC), a partir de 1963,
por meio da oferta de cursos voltados para atividades de artesanato, canto, ginás-
tica, pintura e lazer em geral (BÚFALO, 2013, p. 203). Posteriormente, em 1977,
239
foram criadas em São Paulo as primeiras Escolas Abertas para a Terceira Idade do
SESC, com a oferta de cursos e programas relacionados à aposentadoria, infor-
mações sobre aspectos biopsicossociais do envelhecimento, atualização cultural,
além da promoção de atividades físicas e de complementação sócio-cultural. O
principal objetivo das Escolas Abertas para a Terceira Idade é estimular a pessoa
idosa a assumir o papel de protagonista do seu aprendizado por meio da educa-
ção permanente (CACHIONI, 2003, p. 47-52). Essas escolas surgem como uma
alternativa ao processo de asilamento do idoso, uma vez que estimulam a sua inte-
ração e integração com a sociedade (CANÕAS, 1985, p. 41) ao desenvolver seus
trabalhos e atividades fundamentando-se em três eixos: participação, autonomia
e interação (CACHIONI, 2003, p. 49).
Na década de 1980, nas regiões Sul e Sudeste, destaca-se a criação de associa-
ções e conselhos compostos por instituições governamentais e não governamentais,
com a participação dos idosos que se organizaram coletivamente, no intuito de
promover direitos sociais (em especial, lazer e cultura) e o direito à saúde dos idosos.
Entretanto, apesar dos avanços em relação aos trabalhos e atividades educa-
cionais voltados para a população idosa ao longo das décadas de 60 a 80, o direito
dos idosos à educação somente é reconhecido como um direito fundamental a
partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/88). Assim, no que se refere especificamente ao direito fundamental da
pessoa idosa à educação, a CRFB/88 assegura o “direito à educação e à aprendizagem
ao longo da vida” (art. 206, inc. IX). Além disso, a educação básica gratuita é assegu-
rada “para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (art. 208, inc. I).
O direito à educação permanente e a aprendizagem ao longo da vida, assegu-
rado pela norma constitucional, envolve práticas e processos educacionais formais,
não-formais e informais, pautando-se no princípio da formação múltipla e integral
do indivíduo. Sobre a necessidade da educação permanente, Oliveira afirma que
A ideia de que a educação é um processo permanente e que a apren-
dizagem dura a vida inteira é fruto não só da evolução histórica do
pensamento sobre a educação, como também da necessidade de
uma educação contínua que atende às situações de mudança e ainda
possibilite a maturação do indivíduo (OLIVEIRA,1999, p. 235).

Nesse entendimento, em consonância com a Constituição da República


de 1988, o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), assegura aos idosos a fruição
e gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, e também,
240
o acesso irrestrito a todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua
saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social,
em condições de liberdade e dignidade (art. 2º da Lei n. 10.741/2003).
Na Lei n. 8.842/94, que institui a Política Nacional do Idoso (PNI), em seu
art. 10, o direito do idoso à educação ganha destaque, ao determinar-se que, na
implementação da política nacional do idoso, compete aos órgãos e entidades
públicos na área de educação, dentre outros: adequar currículos, metodologias e
material didático aos programas educacionais destinados ao idoso; desenvolver
programas que adotem modalidades de ensino à distância, adequados às condições
do idoso; e apoiar a criação de universidade aberta para a terceira idade, como
meio de universalizar o acesso às diferentes formas do saber.
O direito do idoso à educação também está previsto no art. 20 do Estatuto
do Idoso (Lei n. 10.741/2003), que estabelece que o idoso “tem direito a educação,
cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem
sua peculiar condição de idade.” A lei determina, ainda, que é obrigação do Poder
Público criar “oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos,
metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados” (art.
21) e apoiar “a criação de universidade aberta para as pessoas idosas” e incentivar
“a publicação de livros e periódicos, de conteúdo e padrão editorial adequados
ao idoso, que facilitem a leitura, considerada a natural redução da capacidade
visual” (art. 25, parágrafo único).
A educação da pessoa idosa é incluída, ainda, nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Resolução CNE/CEB n. 1, de 5 de
julho de 2000). No entanto, nesse documento, o idoso é considerado e caracterizado
como adulto, de tal forma que as suas peculiaridades, condições e necessidades são
totalmente desconsideradas no processo educacional, havendo um desrespeito às
particularidades inerentes a sua idade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A população idosa no Brasil tem aumentado nos últimos anos, de modo


que o processo de envelhecimento deve ser tratado como uma questão social a
ser analisada e aprimorada por meio da implantação de políticas públicas efetivas,
garantindo-se a qualidade de vida da pessoa idosa em seus diversos aspectos: físico,
psíquico, econômico, social e cultural. Isto porque, a pessoa idosa, assim como

241
qualquer outro membro da sociedade, é sujeito de direitos e deveres, participando
e exercendo o seu papel social dentro da comunidade.
Contudo, ainda nos dias de hoje, o idoso é tratado como cidadão de segunda
classe, sofrendo diversas formas de discriminação e violência. Além disso, os direitos
fundamentais dos idosos são frequentemente violados, de modo que essa parcela
da população é, por vezes, colocada à margem da sociedade.
Garantir a proteção e a efetivação dos direitos fundamentais dos idosos é
dever e responsabilidade social do Estado, que deve assumir o compromisso de
promover a igualdade e a justiça social, minimizando os danos decorrentes de
discriminações de faixa etária, como também as relacionadas com as diferentes
condições econômicas e sociais da população. Do mesmo modo, a legislação e as
políticas públicas devem assegurar que o processo de envelhecimento seja enca-
rado como uma problemática social, cuja solução exige a adoção de medidas que
preparem os indivíduos para o envelhecimento saudável.
Além disso, é inegável que a sociedade civil assume um papel de grande
importância para a estruturação e implantação de políticas para o público idoso,
sobretudo, no que diz respeito aos diversos programas, atividades e trabalhos que
buscam garantir a educação permanente e o aprendizado ao longo da vida.
No âmbito da educação, o Poder Público e a sociedade civil devem atentar-se
para o fato de que a população idosa possui suas peculiaridades e necessidades
específicas, devendo-se desenvolver novas práticas e ações educacionais que lhes
sejam adequadas. É preciso compreender que o ser humano é um ser inacabado
e em constante transformação, e o processo de aprendizado é permanente e deve
ser acessível para todos os membros da sociedade.
Importa ressaltar, também, que a educação do idoso não pode ser compreen-
dida como uma política de caráter assistencialista, e sim, como instrumento capaz
de promover a saúde e a qualidade de vida, permitindo-lhe um envelhecimento
saudável e com condições suficientes para que possa exercer a sua cidadania e ter a sua
dignidade respeitada (OLIVEIRA; SCORTEGAGNA; OLIVEIRA, 2015, p. 354).
Por fim, verifica-se que no Brasil, embora a legislação e as políticas públicas
específicas para a educação contemplem os direitos da pessoa idosa em diversos
aspectos, há momentos em que o idoso é equiparado e/ou caracterizado como
adulto, e o seu direito à educação é integrado à educação de adultos, e até mesmo,
à educação para todas as idades. Por isso, é possível concluir que a sociedade
brasileira ainda carece de ações e políticas públicas específicas e eficazes para a
242
educação da pessoa idosa, prejudicando e/ou impedindo a concretização de um
direito essencial para um envelhecimento ativo e saudável: o direito à educação.

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243
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244
ÉTICA, LITERATURA E DIREITOS HUMANOS:
EXPERIÊNCIA EM CONTEXTO DE
ENSINO JURÍDICO

Luiz Oliveira Melo85


Rosemar Eurico Coenga86

Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não


aprendemos a conviver como irmãos.

Martin Luther King

INTRODUÇÃO

O trabalho apresentado nasceu da aproximação entre o campo do Direito


e da Literatura, no âmbito do ensino jurídico, e da necessidade de debater os
direitos humanos pelo viés literário. Recai no contexto atual desordem, revoltas,
injustiças e ódio as minorias prevalecem entre os seres humanos, impedindo-os
de preparar para o terreno da tolerância, respeito e alteridade. É no contexto desse
cenário que o trabalho será desenvolvido. No caso específico, as áreas de Direito e
Literatura apresenta-se como uma fonte inesgotável de oportunidades e debates
em torno dos direitos humanos.
Como uma experiência humana, o Direito, tem como princípio corolário e,
basilar a Ética, referindo-se a todas as ações humanas com a devida subordinação
as normas de caráter obrigatório. Inquieta saber, que a humanidade tenha avançado
em tecnologias antes inimagináveis, capazes de sair do planeta Terra, viajando em
velocidades incríveis, ultrapassando a velocidade da luz e, ainda não conseguem
apontar uma solução para fome mundial! Até quando a humanidade vivera o “ter”
se sobre pondo ao “ser”. Assim sendo, como está sendo preparado os adolescentes,
jovens e adultos que assumirão os cargos relevantes do país? As instituições de
ensinos, em especial, os cursos superiores estão preparados?
E havendo discussões sobre a qualidade do ensino no Brasil e em destaque,
o ensino superior, devido ao aumento de curso ofertados por novas Instituições de
Ensinos Superiores, e na sequência, da educação jurídica. Porém, ao analisar sua
85
Mestrando em Ensino (UNIC). Advogado. CV: http://lattes.cnpq.br/5001682452507579
86
Doutor em Teoria Literária e Literatura (UnB). Docente (UNIC). CV: http://lattes.cnpq.br 6784437572638138
245
história, pode ser observado que desde seu surgimento, os cursos de Direito têm
passado por dificuldades, apresentando distorções diante da realidade, formando
bacharéis com baixa reflexividade e criticidade para suprir a necessidade frente ao
crescimento e avanço acelerado da sociedade e consequentemente de seus problemas.
Sendo assim, este trabalho propõe uma contribuição de um olhar com mais
Ética, incluindo a Literatura como um facilitador do ensinamento e aprendizagem
dos Direitos Humanos no contexto do Ensino Jurídico, buscando uma percepção
da realidade social mais humanizadora, pois, com os trabalhos literários, surgem
uma nova opção aos operadores/atores do direito uma outra maneira de interpre-
tação, direcionando para uma forma de compreenção mais humanizada da ordem
jurídica, apresentando uma possibilidade de ensino jurídico, sendo estudado e
analisado pela visão e ângulo literário.
Pretendemos apresentar uma proposta ressignificadora da ética, literatura
e direitos humanos no contexto do ensino jurídico. Com um olhar interpretativo
da liberdade e igualdade, a partir da filosofia da existência de uma forma mais
sensível buscando a verdadeira essência da humanidade. E com auxílio e visão
ampliada da literatura enquanto forma de promoção dos direitos humanos, com sua
capacidade formadora e de efetivação e apresentação de diversas possibilidades de
debruçarmos sobre o verdadeiro significado dos direitos humanos, possibilitando
o reconhecimento dos direitos e deveres de uns para com os outros, possibilitando
uma releitura da própria história e, reconstrução de um novo mundo.

SOBRE O ENSINO DE LITERATURA NO CONTEXTO DE


ENSINO JURÍDICO

O uso da literatura como instrumento em sala de aula apresenta enfoque


interdisciplinar que enriquece o ensino jurídico. Em torno das discussões sobre os
rumos a serem tomados para uma nova reformada Educação e do Ensino, segundo
Coelho (COELHO, 2000, p. 13), “a Literatura poderia ser a ponta de eixo ideal
para uma nova estrutura de ensino”. Apoiada nas ideias da teoria da complexidade
e pelos defensores da transdisciplinaridade como metodologia pedagógica.
Nos rastros do pensamento complexo, a autora apresenta a Literatura como
objeto transdisciplinar, destaca que a Literatura:
É um autêntico e complexo exercício de vida que se realiza com e na
Linguagem – esta complexa forma pela qual o pensar se exterioriza e
entra em comunicação com os outros pensares. Espaço de convergên-
246
cia do mundo exterior e do mundo interior, a Literatura vem sendo
apontada como uma das disciplinas mais adequadas para servir de
eixo para a interligação de diferentes unidades de ensino.

A literatura constitui um objeto específico de conhecimento que mobiliza


vários saberes. Sobre a relação entre literatura e outros saberes, Barthes (2013) afirma:
A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson
Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico,
botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se,
por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina
literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes
no monumento literário. (BARTHES, 2013, p. 18).

Para o autor (2013, p. 19), “a Literatura trabalha os interstícios da ciência


[...] A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a
Literatura nos importa”. Com isso, os direitos humanos, enquanto campo do
universo jurídico por meio de seus códigos, pode ser compreendido com maior
abrangência com o uso interdisciplinar entre Literatura e Ciência Jurídica. Pro-
curamos abordar neste debate uma elaboração propositiva, teórica, que busca
refletir, especialmente, uma perspectiva de uma educação em direitos humanos
que tem por referência a temática dos direitos humanos por meio da Literatura
no cotidiano de uma educação jurídica.
Destacamos algumas reflexões relacionadas à temática da educação em
direitos humanos sob a ótica dos ensinamentos de Antonio Candido. Em seu
famoso ensaio O Direito à Literatura (2011), Candido diz que: “a Literatura
é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na
sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no
inconsciente” (CANDIDO, p. 177).
Defender o trabalho com a Literatura implica a construção de cidadãos
críticos, mais empáticos e nos ajuda a refletir sobre nosso papel no mundo e
sobre o lugar do outro, diante de ataques de ódio, perseguições, chutes e uso
de gás. Portanto, defendemos ao longo do texto, a importância da humaniza-
ção, conforme recomenda Candido:
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o
processo que confirma no homem aquelas trações que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento
247
das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo
do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade
na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2011, p. 182).

Posição semelhante encontrada nas ideias do crítico literário Tzvetan Todorov


(TZVETAN TODOROV, 2010, p. 76), que diz:
A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando esta-
mos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos
outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor
o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma
técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo,
ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de
nós a partir de dentro.

Sendo utilizado o método hermenêutico, a análise perpassa pela bibliografia


apresentada. Não pretendendo exaurir o exame da bibliografia de algum autor em
especial, mas sim, em buscar ao máximo uma abordagem seletiva dos autores e
obras, no alcance de seus subsídios para o tema e visão propostas. O tema indicado
provoca uma abordagem interdisciplinar que muitas vezes se encontra no limite
entre a ética, literatura e direitos humanos.
Por essa razão, foi imperioso percorrer a bibliografia de forma a propiciar uma
conexão harmoniosa e inteligível das ideias apresentada neste trabalho, conexões
que só é possível a partir de uma abordagem dialógica e criativa. Buscando uma
apresentação onde os textos teóricos e literários possam dialogar, complementar
e se validarem. Concluindo assim, que a literatura apresenta uma atuação que
incorpora a ética em seu modo de ser como acontecimento, proporcionando um
experienciar de existências aproximando escritor e leitor. Desde modo, a literatura
possui um papel formador e mediador da ética e do modo de ensinar e aprender
de ser dos indivíduos, possibilitando uma capacidade de participação como auto-
res da e na vida humana, a partir de uma compreensão e apreensão dos direitos
humanos, fazendo mais sentido a sua existência e participação na história humana.
A palavra ética é derivada do termo ethos, de origem grega, que quer dizer
modo de ser. Assim sendo, possui duas variações: êthos (caráter) e éthos (costume).
Logo, o termo moral sempre se relaciona com a ética, derivada do latim para o
termo éthos, que virou moris. Sendo assim, ética e moral são semelhantes. Uma

248
consiste em código de conduta, costumes morais e hábitos e de um determinado
local, ao passo que a outra, pretende ser a racionalização dessa moral, eticamente.
A moral é criada de acordo com a evolução de cada sociedade, por meio
de suas tradições e costumes, ditando o que pode e o que não pode, o que é
aceito e o que não é aceito. Porém, a ética, se dedica a reflexão sobre as ações
morais, aprovando ou reprovando o certo e o errado, bem como o que deve ser
mantido e o que deve ser reprovado, buscando assim um melhor equilíbrio entre
todos de uma sociedade em comum.
Mas há um clamor dos excluídos/oprimidos, aqueles que quase não são
ouvidos, e quando são, praticamente não são atendidos. Como está a comunidade
estudantil? Como são tratados educandos e educadores? A formação dos cidadãos
e profissionais do futuro, depende diretamente dos educadores, por isso devem
ser valorizados, reconhecidos, fornecendo condições necessária para fortalecerem
seus conhecimentos. “Pois não há docência sem discência”.
(...) A ética de que falo é a que sabe afrontada na manifestação dis-
criminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável
da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens
ou com adultos que devemos lutar (...) (FREIRE, 2020, p. 17 e 18)

O início do movimento entre Direito e Literatura, surgiu nos Estados


Unidos, tendo como contribuições relevantes de grandes autores, como John
Wigmore e Benjamim Cardoso, sendo considerados os pais fundadores do
movimento. (YASMIN, 2014, p. 01).
Proporcionando um alcance importante e espaço institucional, seja por meio
de publicações de revistas especializadas no tema, seja por meio de publicações
de disciplinas especificas dentro de algumas instituições em seus currículos dos
cursos jurídicos, (ainda assim, pouco conhecido em algumas regiões do Brasil) e
com isso, usam ideias Legais para melhorar a compreensão da Literatura, que se
apresentam nas relações sociais em seus relatos, possibilitando uma experiência
quase que real de fatos narrados ficção/realidade vivenciada pela sociedade.
Buscando compreender o papel da literatura na promoção e efetiva-
ção dos direitos humanos, inserindo em uma compreensão para além de seus
valores inertes, dando-lhe vida:
O problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado
do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos,

249
inerentes à sua realização: o problema dos fins não pode ser dissociado
do problema dos meios (BOBBIO, 2004, p. 44).

Segundo alguns pensadores, o homem é um ser social, logo, sente a neces-


sidade de conviver em sociedade, porém, se tornou mais buscador do material, do
que do imaterial, competindo mais, e buscando sobrepor ao outro, adquirir e reter
bens, que muitas vezes nem chega a usufrui-los, do que buscar o compartilhar,
auxiliar uns aos outros, bem como, exigir mais seus diretos coletivos.
Não obstante, a humanidade ter passado por duas guerras, forçou refletir
em um mundo mais homogêneo, afinal, a humanidade respira o mesmo ar, e se
alimenta, usa os mais variados produtos industrializados e ou produzidos em
grandes escalas de todas as regiões do planeta.
Sendo assim, é inquestionável o avanço em tecnologias agrícolas, industriais
e até mesmo intelectuais (novas formas de compartilhar conhecimentos) porém,
não aprenderam ainda a arte de “dividir o pão”.
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS

Nós, os povos das nações unidas, resolvidos a preservar as gerações


vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa
vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé
nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser
humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim
como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob
as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados
e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a
promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de
uma liberdade ampla.

E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros,
como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a
segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e
a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não
ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional
para promover o progresso econômico e social de todos os povos.

Assim sendo de suma importância destacar, que há boas leis, o que falta
são líderes, pessoas comprometidas verdadeiramente em colocá-las em práticas,
precisando de novas leis e/ou adequação das já existente, que seja verdadeira e
efetivas, leis usuais. Observado o preâmbulo da Declaração Universal Dos Direitos
Humanos, é possível destacar o reconhecimento da dignidade de todos os seres
250
humanos, ao pondo de destacar como sendo uma só família, ou seja, desde 1948
foi adotada e proclamada pela resolução de 217 A(III) da Assembleia Geral das
Nações Unidas, e apresentada ao mundo:
Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade ine-
rente a todos os membros da família humana e dos seus direitos
iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo;

Destarte, colocando em práticas as leis vigentes, seriam mais que suficientes


para a humanidade viverem como uma grande família global. As leis são vivas e
acompanham a evolução da raça humana, logo, o que dizer do comportamento
observado atualmente, diante do que está declarado no artigo 2º da Declaração
Universal Dos Direitos Humanos desde o ano de 1948:
Artigo 2° - Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as
liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna,
de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será
feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou
internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja
esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito
a alguma limitação de soberania.

Portanto, não é difícil observar que os direitos humanos apresentam um


pressuposto reconhecedor, de que aquilo que é indispensável para um seja também
indispensável para o outro. Logo, cabe observar, que se permitir cada indivíduo
chegar a essa conclusão sozinho, o egoísmo não permitirá alcançar tal objetivo,
sobrepondo de tal forma, o direito pessoal e individual sobre o coletivo.
O devaneio, é necessário quando se quer construir algo novo, assim como
para ser construído um grande prédio, o projeto nasce primeiro em um sonho/
projeto abstrato. Qualquer projeto humano, primeiramente perpassa por devaneios.
Assim sendo, os poetas/escritores são os mestres dos sonhos, e presenteiam
a humanidade com suas riquíssimas e inquietantes palavras. Palavras essas que
tomam vidas nas imaginações e nas ações das pessoas que tenham contado com elas.
Não obstante, o pensar é libertador, é possível até mesmo aos encarcerados,
presos e sem liberdades do corpo físico. Além de proporcionar a possibilidade de
uma pessoa ter contato também com algo escrito há séculos bem como atuais,
251
informações, receitas, relatos, contos, noticiário policial, moda de viola, canção
popular e além de tudo que a mente humana seja capaz de produzir.
Logo, o ser humano não consegue “não pensar”, sendo assim, a literatura se
apresenta como uma forma de instruir, alegrar, informar e, modificar vidas, sendo
um instrumento que deveria ser valorizado por todos. Porém, é compreensivo o
porquê alguns governantes não têm interesse, ela pode libertar uma mente, e uma
mente livre, poderá livrar outras e outras. Como bem apresenta Antonio Candido
em sua obra Direto à Literatura:
Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação
universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e
não há homem que possam viver sem ela, isto é, sem a possibilidade
de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como
todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e
quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo
fabuloso. (CANDIDO, 2011, p. 176)

Outrossim, um povo que pensa é um povo livre. A verdadeira liberdade


surge com o pensar reflexivo. A reflexão convida os seres humanos a buscarem
melhorias. Ao longo do tempo, as revoluções proporcionaram grandes melho-
rias tanto no campo quanto na cidade, portanto, o que de fato melhorou para
as pessoas carentes e oprimidas?
Com a revolução industrial, houve o êxodo rural, as pessoas partiram do
campo para as grandes cidades, e como viviam em situações precárias, ao chegarem
nas cidades, e não conhecendo de seus direitos como seres humanos, aceitavam
tratamentos desumanos, que infelizmente se arrasta até os dias atuais. O que
poderia despertar uma coragem e conhecimento para uma classe tão oprimida
se não o conhecimento principiológico apresentado pela literatura. Sendo uma
bandeira de luta para Paulo Freire, apresentado um fragmento em sua obra Peda-
gogia do oprimido, que diz: “Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto
da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta
por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 1987, p. 32)
Logo, é de suma importância ler, reler e revisitar os textos literários. Além
de proporcionar um devaneio único em cada momento experenciado. As obras de
Paulo Freire denunciam e apontam soluções incomparáveis. Chamando sempre
a atenção dos leitores e ouvintes, sobre a necessidade de uma compreensão como
seres inclusos, que se sente e agem como pertencente, pois, somente assim é pos-

252
sível transformar e não só ser transformado pelo mundo. Assim sendo, todos tem
direitos e obrigações, exigindo uma e cumprindo a outra.
Sendo assim, o presente trabalho é proposto com o objetivo de apresentar uma
proposta de atualização hermenêutica necessária dos valores dos direitos humanos,
e um trabalho interdisciplinar, que dão origem à cultura do saber, através de uma
visão investigativa apresentada pelas janelas da literatura. No entanto é necessária
uma constante reflexão. Até que ponto a teoria do politicamente correto contri-
buiu para os direitos humanos? Haja vista, todos os direitos e garantias prevista
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, seria suficiente para qualquer e
todo ser humano ser respeitado, as divisões de raça, classe, opção sexual, religião
etc. fez enfraquecer todos, pois a divisão nunca fortalece.

CONSIDERAÇÕES

Mesmo com algumas reformas apontadas em alguns estudos, no campo da


formação de bacharéis, ainda assim, é bastante tímida a inclusão da literatura nos
aprendizados do direito e consequentemente dos direitos humanos. Havendo uma
necessidade de uma formação mais plural/humana e menos técnica. Objetivando
a ampliação da ética, e visão mais humanizadora dos bacharéis em Direito, devido
à complexidade do conteúdo jurídico e consequentemente dos direitos humanos
ora esquecido e pouco valorizado.
De acordo com texto constitucional de 1988, em seu artigo 206, estabelece
a liberdade de ensinar e de aprender, de pesquisar e de divulgar o pensamento, a
arte e o saber, pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, garantindo um
padrão de qualidade. Em tempos sombrios, como que vivemos hoje, frente a uma
pandemia que não cessa e nos causa temor, em tempos de ruptura democrática,
acreditamos que a inserção da literatura no âmbito do contexto de ensino jurí-
dico permite mobilizar ações fortemente propositivas de valorização dos direitos
humanos. Portanto, é este o nosso estudo: propagar uma pedagogia ética, estética
voltada para o respeito, amorosidade e humanização, daí seguirmos os ensina-
mentos de Paulo Freire: “Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com
outros para fazer de outro modo”.

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2013.
BARBOSA. Matheus – Literatura e Direito – Rio Grande do Sul: Editora: Viseu, 2020.
253
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Planalto. Disponível:http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm Acesso em: 23 set. 2021.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul/ São
Paulo: Duas Cidades, 2011.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000.
CARVALHO, José Mauricio de. Miguel Reale. Ética e Filosofia do Direito – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945 - Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte
integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de
1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas - Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm. Acesso em: 06 dez. 2021.
Declaração Universal Dos Direitos Humanos – Disponível em: https://declaracao1948.com.br/declaracao-
-universal/declaracao-direitos-humanos/?gclid=CjwKCAiAhreNBhAYEiwAFGGKPCd_kne-XHGRU-
-731JP0smc63AX9NlTboghndABmBTqPSPGmG-HdhRoCAJcQAvD_BwE. Acesso em: 06 dez. 2021.
FREIRE, Paulo (1921-1997) 65ª ed. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa – Rio
de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo Saraiva, 1999.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2010.
YASMIN. A evolução do movimento direito e literatura. Blog Brasil de Maravilhas. Publicado em janeiro de 2014.
Disponível em: https://brasildemaravilhas.wordpress.com/2014/01/21/a-evolucao-do-movimento-direito-e-
-literatura/. Acesso em: 23 set. 2021.
https://www.pensador.com/frase/Mjcy/#:~:text=Aprendemos%20a%20voar%20como%20os%20p%C3%A1s-
saros%20e%20a%20nadar%20como,aprendemos%20a%20conviver%20como%20irm%C3%A3os. Acesso
em: 06 dez. 2021.

254
“O LUGAR DOS DIREITOS HUMANOS NO ENSINO
DE LITERATURA: APROXIMAÇÕES ENTRE
CONCEIÇÃO EVARISTO E TEREZA CARDENAS”

Maeli Fernandes Mota87


Rosemar Eurico Coenga88

INTRODUÇÃO

Este trabalho, é parte de uma pesquisa em andamento e tem por finalidade


investigar o lugar dos direitos humanos na literatura, a partir das aproximações
entre as escritoras de pele negra, Conceição Evaristo e Teresa Cárdenas e discutir
questões relacionadas à pobreza, à condição da mulher negra frente às circunstâncias
de racismo e sexismo e suas implicações na sala de aula, bem como no contexto
escolar, pautados em referenciais que abordam tais temáticas.
Pretendemos promover o diálogo, a reflexão e o pensamento crítico de estu-
dantes do primeiro ano do ensino médio, de uma escola pública em Cuiabá, Mato
Grosso, a partir do letramento de re(existência), do protagonismo de mulheres
negras latino-americana, nas aulas de Eletivas de Língua Portuguesa, para que estes
reflitam sobre as condições da mulher de pele negra que, diante da desigualdade
social e ainda lidar com a discriminação e o preconceito.
A partir de obras literárias recebidas pela escola, por meio do PNLD 2018, foi
elaborado pelos professores, da disciplina de Língua Portuguesa, um projeto literário
em que todas as turmas de primeiros aos terceiros anos deverão ler uma obra literária
por bimestre. Neste segundo bimestre ficou acordado para os primeiros anos a leitura
da obra: Esse cabelo de Djaimilia Pereira de Almeida que discute a temática de cunho
racial. Uma única turma, os quais são os participantes da nossa pesquisa, irão ler as obras:
Cartas para a minha mãe, de Teresa Cárdenas e Olhos d’água de Conceição Evaristo.
Iniciamos, a pesquisa na primeira semana de maio com uma abordagem da
temática racial, apresentação das obras e das autoras. Depois ouviram uma canção:
Negra tinta de Bia Ferreira e finalizamos a aula com uma canção da Banda Raça
Negra, onde cantaram e se divertiram. Pensando na escola pública como um lugar

87
Especialização em Língua Espanhola e Literatura em Língua Espanhola (UFMT).
CV: http://lattes.cnpq.br/5262766582822364
88
Doutor em Teoria Literária e Literatura (UnB). Docente (UNIC). CV: http://lattes.cnpq.br 6784437572638138
255
de direito e de saber de todos aqueles que dela necessitam é que nos impulsio-
nam enquanto pesquisadora e professora da sala de aula, a apoiar e lutar por um
ensino de qualidade, onde, o aluno encontre significado para sua trajetória de vida,
enquanto indivíduo, reconhecendo a importância do saber na sua formação escolar.
Dessa maneira, a escola deve ser uma referência para todos aqueles que ali vão
em busca do conhecimento possam se sentir acolhidos e enxergar o espaço escolar
como um lugar de pertencimento e se veja como parte do processo para a construção
de uma sociedade mais igualitária, mais justa para todos. Acreditamos que a leitura
literária contribui para o pensamento reflexivo uma vez que discute questões da socie-
dade contemporânea, trazendo átona problemas vivenciados no cotidiano das pessoas.
O contato com o texto literário, desperta o criticidade do leitor, para que ele
se posicione diante dos conflitos, diante das injustiças e das desigualdades sociais,
desperta o desejo por uma sociedade melhor e o faz perceber que as mudanças
precisam acontecer, primeiramente nele próprio, enquanto leitor/estudante e depois
em todos os demais que carecem de oportunidades.
Nessa perspectiva, a escritora brasileira, Conceição Evaristo e a cubana, Teresa
Cárdenas, contribuem para uma tomada de consciência, de descoberta e de conquista
por direitos humanos e por igualdades sociais, levando o leitor a uma profunda
reflexão diante da vida e do respeito ao outro. A escola é, portanto, um espaço, onde
se aprende sobre o mundo, onde cada um se identifica, se reconhece e também se
diferencia. Sendo a escola um lugar de ensino/aprendizagem, é também um lugar de
construção de boas histórias, de superação, de oportunidades e de reconhecimento.

DESENVOLVIMENTO

O texto literário proporciona a insurgência do debate sobre as questões relacio-


nadas aos direitos humanos e as escritoras negras como Conceição Evaristo e Teresa
Cárdenas, se aproximam nas questões de racismo e de sexismo, situações que reivindicam
espaço de discussão em sala de aula; daí surgiu o interesse em aprofundá-las, através
de um diálogo comparativo entre Olhos d’água, da brasileira Conceição Evaristo, e
Cartas a minha mãe, da cubana Teresa Cárdenas, obras de escritoras latino-americanas.
Os livros selecionados se aproximam pela relação temática de gênero, racial, social
e estética. Para tanto, pretendemos empreender um estudo acerca da recepção das obras
junto aos alunos do Primeiro Ano do Ensino Médio, nas aulas de língua materna. A esco-
lha dessas obras foi motivada por discutirem um assunto atual e que carece de debates em
tempos de crescente violência sofridas pelas mulheres negras e outros grupos minoritários.
256
Espera-se que os educandos desenvolvam o pensamento crítico quanto às questões
citadas por meio da leitura das obras literárias, debates em sala de aula, relatos e questionários
sobre o tema abordado. E por fim, mediante as estratégias citadas, espera-se que os alunos
saibam lidar de forma respeitosa com as diferenças étnicos raciais, culturais e transculturais.
Nesse sentido, vale a pena utilizar esse universo cheio de possibilidades e dire-
cionar o estudante para a devida apropriação de conteúdo, como a leitura literária por
exemplo, pois, além de favorecer a sua curiosidade, ainda propicia o despertar de um
leitor por excelência. A BNCC orienta a aplicação dos usos em seus contextos locais
e concordamos com essa orientação uma vez que amplia a compreensão linguística
voltada para a interculturalidade, ou seja, para o reconhecimento das diferenças.
Portanto, vale ressaltar que a (BNCC, p.523), o Campo Artístico-Literário, cita
o texto literário como uma expressão artística, como formas semióticas de expressão,
de modo a envolver os estudantes em projetos, bem como a participar de produção
de blogs e vlogs entre outros, de modo a interagir com as tecnologias e o universo
cibernético, todavia, percebe-se as lacunas deixadas nas entrelinhas, pois enquanto
documento oficial, deveria ressaltar a importância da leitura das obras literárias como
aquisição do saber, como desenvolvimento do pensamento crítico, ampliação do ima-
ginário, como um lugar de criatividade e múltiplas possibilidades de aprendizagem ,
uma vez que fomenta a discussão na sala de aula e possibilita o debate democrático.
Do mesmo modo, o Documento de Referência Curricular do Estado de Mato
Grosso para Área de Linguagens e suas Tecnologias, (DRC-MT p. 319,320 e 321),
por sua vez, no Campo Artístico-Literário, ignora também a apropriação da leitura
da obra literária, quando propõe múltiplas atividades relacionadas as mídias e textos
digitais, como os exemplos a seguir:
Compartilhar sentidos construídos na leitura/escuta de textos literários,
participar de eventos (saraus, competições orais, [...]; Analisar obras
significativas das literaturas brasileiras e de outros países e povos, em
especial a portuguesa, a indígena, a africana e a latino-americana, com
base em ferramentas da crítica literária; Produzir apresentações e
comentários apreciativos e críticos sobre livros, filmes, discos, canções,
espetáculos de teatro e dança, exposições etc. (resenhas, vlogs e podcasts
literários e artísticos, playlists comentadas, fanzines, e-zines etc.).

Entretanto, não queremos dizer com isso, que atividades como essas não sejam
importantes para o desenvolvimento do discente, o que queremos ressaltar aqui é a
omissão da leitura da obra literária como ferramenta de ensino/aprendizagem, em
que propicia ao leitor/aluno o desenvolvimento do imaginário, como a aventura
257
de conhecer muitos lugares, culturas diferentes e ainda promove a criticidade.
Por fim, a literatura, além de expandir os conhecimentos do leitor, proporciona a
este viver experiências jamais experienciada de outra maneira, em outras palavras,
podemos dizer que essa omissão da leitura da obra literária na sala de aula nos
documentos oficiais, é por certo, o apagamento da literatura na Educação Básica.
Partindo do pressuposto que em uma comunidade escolar, alunos e professores cons-
tituem sujeitos imprescindíveis no processo de ensino aprendizagem em uma comunidade
escolar em que ambos exerçam a prática cotidiana como objeto de reflexão, fica evidenciado
que é possível o avanço rumo a uma educação mais justa e igualitária. A inserção de textos
literários na educação básica amplia o entendimento do aluno e promove a contemplação
cultural e revela ainda, valores diferentes aos seus. Isso acontece porque, a partir do contato
com texto literário, o aluno é capaz de se familiarizar com padrões de interação social,
diversificada e distinta, sabendo valorizar e apreciar diferentes formas culturais.
Wolfgang Iser (1996), importante representante da Teoria do Efeito da
Recepção, diz que diante dos vazios dos textos, isto é, dos interditos, o leitor deverá
preenchê-los com plurissignificações. Isto posto, cabe ao leitor interagir com a
estrutura do texto literário, pois, mesmo sofrendo seus efeitos, ainda age sobre ele.
Se o sentido do texto tem um caráter de imagem, então o sujeito nunca desaparecerá
dessa relação. Ao contrário do que é um princípio válido para o modo do conheci-
mento discursivos, os seguintes pontos de vista são características desse processo:
O leitor não consegue mais se distanciar dessa interação. Ao contrário,
ele relaciona o texto a uma situação pela atividade nele despertada; assim
estabelece as condições necessárias para que o texto seja eficaz. Se o leitor
realiza os atos de apreciação exigidos, produz uma situação para o texto e
sua relação com ele não pode ser mais realizada por meio da divisão discur-
siva entre sujeito e objeto. Por conseguinte, o sentido não é mais algo a ser
explicado, mas sim um efeito a ser experimentado. (ISER, 1996. p. 33-34).

Portanto, se em princípio é a imagem que estimula o sentido, que não se encontra


formulado nas páginas impressas do texto, então ele se mostra o produto que resulta do
complexo de signos do texto e dos atos de apreensão do leitor. O teórico argumenta que:
Os textos literários foram considerados ora como testemunha do
espírito da época, ora como reflexo de condições sociais, ora como
expressão das neuroses dos seus autores etc.; os textos foram nivelados
como documentação, e desse modo, se elimina aquela dimensão que
os diferencia da mera documentação. (ISER, 1996 p. 39-40).

258
Nesse sentido, experimentar a leitura com o espírito da época, as condições
sociais e as disposições dos seus autores, certamente, é uma posição privilegiada,
uma vez que os textos literários têm como característica não perder a sua capaci-
dade de comunicação. Por essa razão, mesmo depois de muito tempo, eles ainda
conseguem se comunicar com o leitor e ainda são passíveis de significação.
Cosson (2021, p. 16), ao referir-se à prática da literatura, seja ela leitura ou
escrita, diz que “consiste exatamente em uma exploração das potencialidades da lin-
guagem, da palavra escrita, que não tem paralelo em outra atividade humana”, através
da qual nos é revelado, muitas vezes, um discurso arbitrário carregado de um discurso
próprio, maneira de se tornar dono da linguagem que, sendo minha, é também do
outro. De outro modo, a literatura tem o poder de nos transportar de um universo
a outro, de nos fazer agregar valores e nos chamar para uma reflexão crítica sobre a
realidade, além de nos libertar de nós mesmos, ampliando a nossa visão de mundo:
[...] a literatura tem o poder de se metamorfosear em todas as formas
discursivas. Ela também tem muitos artifícios e guarda em si o presente,
o passado e o futuro da palavra. Como acontecia com o deus grego, não
se pode conhecer a verdade da palavra e da linguagem sem interrogar
constantemente esse discurso proteiforme, percorrendo seus artifícios e
as diferentes temporalidades que ele encerra. (COSSON, 2021, p. 17).

Nesse sentido, Cosson (2021, p. 17), deixa claro que não sabemos da vida por
meio da literatura ou da experiência do outro e nem por vivenciar experiência de outras
pessoas, mas que a “ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são
processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor.” A literatura nos
proporciona, portanto, viver outras vidas, sair de nós mesmos e, assim, vivenciar aconteci-
mentos e discutir as questões da sociedade como forma de garantir os direitos humanos.
Antonio Candido (2011, p. 172), no bojo das discussões sobre o movimento pelos
direitos humanos, afirma que somos a primeira era que busca encontrar solução para as
questões dos direitos humanos, para resolver os conflitos que tem gerado desarmonias e
injustiça. Essa busca pelos direitos humanos, conforme diz: não mais do estado ideal sonhado
pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça [...].
Segundo Candido (2011, p. 172), na atualidade já não se vê estampado em
colunas de jornais ou em revistas, caricaturas do esfarrapado ou do negro como
motivo de piadas, como era de costume, pois a sociedade compreendeu que essa
conduta não agrada mais, pois em vez de provocar o riso, como antes, hoje, o
sentimento é de revolta, que ele chama de rompimento do estado de coisas, ou seja, é
a possibilidade de mudança para a compreensão do estado das coisas.
259
A sociedade pós-moderna tem visto essas transformações acontecerem na
atualidade, é isso tem sido positivo, pois revela o melhoramento do ser humano
pela busca de igualdade e justiça, ainda assim, se faz necessário o melhoramento
do indivíduo em outros aspectos, como romper o preconceito e a discriminação
racial, para que em um futuro próximo, os descendentes afro-brasileiros, não
passem mais por situações constrangedoras apenas por serem negros.
Nesse sentido, a luta pelos direitos humanos pressupõe, segundo Candido (2011,
p. 176) leis que do ponto de vista social, garantam os direitos básicos de um indivíduo.
Vale pontuar, que segundo Candido, os bens importantes são não apenas os que assegu-
ram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.
Desse modo, acreditamos que o texto literário, garantem a integridade espiritual do
indivíduo, uma vez que o faz com que se posicione diante dos conflitos, diante das injustiças e
das desigualdades sociais. Desperta ainda, o desejo por uma sociedade melhor e o faz perceber
que as mudanças precisam acontecer, para que possamos evoluir enquanto seres humanos.
Nessa perspectiva, (Candido,2011, p. 182) diz: a literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade
e o semelhante. Cabe, portanto, enquanto garantia dos direitos humanos, oportunizar a todos o
acesso a arte, a música, a obra literária como bens imprescindíveis no tocante a alma humana.

METODOLOGIA

As nossas reflexões para este trabalho estão alicerçadas no lugar dos direitos
humanos na literatura, a partir do diálogo, nas aproximações entre Conceição Evaristo
e Teresa Cárdenas, que aponta a necessidade de debate sobre questões sociais (iden-
tidade, desigualdade, raça e sexismo) e o texto literário, bem como, o letramento de
re/existência do protagonismo de mulheres negras na Disciplina de Eletivas de língua
Portuguesa. A proposta interventiva tem como objeto de estudo o letramento literário
como foco nas questões citadas acima e que são percebidas no ambiente escolar.
Para tanto, traçaremos um estudo comparativo entre os livros “Cartas para minha
mãe”, de Teresa Cárdenas (2020), e “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo (2020), com
os alunos matriculados na primeira série do Ensino Médio com o objetivo de averiguar
os motivos que os levam à prática de comportamentos preconceituosos, relacionados a
questões de cunho racial e de sexismo no ambiente escolar. Nessa perspectiva, os estu-
dantes deverão refletir sobre a leitura das obras trabalhadas em sala de aula, atentando
para situações relacionadas à pobreza ou mesmo à condição da mulher negra diante de
eventos ou circunstâncias de racismo e sexismo vivenciadas nas grandes cidades brasileiras.
260
A obra literária Olhos d’água, da escritora Conceição Evaristo (2020), reúne uma
coletânea de 15 contos, os quais apresentam questões sociais e existenciais vivenciadas
pelos afrodescendentes, no caso, as mulheres, inseridas nos subúrbios das grandes
metrópoles do Brasil, em especial, do Rio de Janeiro. Desse modo, essa narrativa de
ficção traz uma abordagem da violência urbana e da pobreza a que as comunidades
afrodescendentes se encontram expostas nas favelas brasileiras. No entanto, fica evidente
que o conflito maior são as lutas pessoais de cada personagem na busca de si mesma,
seu desejo de realizar sonhos, de se sentir amada e acolhida na sua dor, nas suas aflições.
A problemática narrada ficcionalmente pela escritora Conceição Evaristo (2020)
revela a vivência e experiência de mulher de pele negra que, através das suas percepções,
permite contar as vivências e as mazelas humanas, principalmente, de mulheres negras
afrodescendentes no subúrbio brasileiro que, ainda na atualidade, vivem tanto a desigual-
dade da cor da pele e quanto do sexismo. Vistas a partir desta perspectiva, pode-se dizer
que, às vezes, realidade e ficção se mesclam através de suas narrativas. Percebemos ainda
que ficam evidenciados na obra Olhos d’água momentos contraditórios entre o nasci-
mento, tido como refrigério para a alma feminina, como alegria e esperança, e a morte,
que representada pela dor, pelas lágrimas pela saudade dos entes queridos que partiram.
Desse modo, podemos compreender de maneira clara a frase contida no prefácio
do livro em análise: “Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro.” (EVA-
RISTO, 2020, p. 9). Assim, as narrativas em Olhos d’água levam o leitor a entender que
a vida de suas personagens é construída, costurada e umedecida pelo choro, as quais,
mesmo em silêncio, suplicam, do lugar de submissão que lhes foi designado ao longo
da história, por um espaço que é seu por direito, onde possam sonhar, conquistar e
construir sua própria história a partir do sentimento de pertencimento de uma socie-
dade acolhedora, onde a discriminação e o preconceito sejam apenas coisa do passado.
Quanto à Cartas para a minha mãe, de Tereza Cárdenas (2020), a obra nos é apre-
sentada em Diários Cartas ou ainda Cartas diários, modo que a narradora criança utiliza
para se comunicar com o mundo dos vivos e relatar o seu cotidiano de abandono, discri-
minação, até mesmo entre os seus, devido a seus traços nítidos, em que são evidenciadas
características próprias da negritude. A escritora nos chama a atenção para a vulnerabilidade
das personagens e para o fato de que o medo, a violência, a discriminação, a desigualdade
social e o abandono fazem parte do cenário das comunidades afrodescendentes cubanas.
Outro fator que nos chama a atenção na obra de Teresa Cárdenas é o suicídio,
devido à depressão, causada pelas mazelas humanas, como a falta de oportunidades,
de perspectivas de vida, fato cada vez mais comum na atualidade, independente-
261
mente de classe social e da cor da pele. Já o sexismo em Cartas para a minha mãe
é pontuado como assédio infantil e, em outros momentos, como uma alternativa
para apurar a cor; no caso, trata-se de uma referência ao clareamento da cor da
pele, situação em que não se dá muita importância ao caráter do sexo oposto.
Já em Olhos d’água, a sexualidade das personagens é revelada conforme as his-
tórias pessoais de cada uma delas, ora pelas próprias condições vivenciada, ora pelas
mazelas humanas, como a falta de perspectiva de vida e o despreparo, pelos quais
acabam fazendo escolhas erradas, ora pela busca de amar e se sentir amada. Neste
sentido, percebemos que os significados são construídos, mediante a linguagem, na
interação comunicativa, nas vivências de cada sujeito nesta perspectiva, a escritora,
Conceição Evaristo, sem meias palavras, discute o relacionamento homoafetivo,
mostrando assim, que a humanidade é complexa e carece discutir as vivencias humana
por completo, como forma de diluir tabus e preconceitos na sociedade atual.
Assim como Cuba, o Brasil vive as mesmas problemáticas em relação à pobreza,
à discriminação racial e ao preconceito. Ambas as escritoras usam a escrita como forma
de denunciar a violência e a discriminação racial decorrentes da cor da pele. Compreen-
demos que a denúncia utilizada pelas escritoras, Conceição Evaristo e Teresa Cárdenas,
aponta para as desigualdades sociais vivenciadas pelos afros descentes, principalmente,
pelas mulheres negras que vivem nos subúrbios das grandes cidades. Por fim, ambas
escritoras, desperta a todos nós enquanto sociedade a engarmos na luta a favor dos menos
favorecidos, para que estes tenham seus direitos resguardados enquanto seres humanos.
Finalmente, esperamos que os alunos possam se posicionar de modo respeitoso
no trato com o outro, percebendo, através da leitura e sob a ótica das escritoras
latino-americanas, o quanto se faz necessário discutir essas questões como forma
de combater ideias preconceituosas e o quanto é importante saber respeitar as
diferenças raciais, bem como, lutarmos por políticas públicas que garantam os
direitos humanos a todos cidadãos e cidadãs da nação brasileira.

RESULTADOS ESPERADOS

Esperamos com este trabalho, que o conhecimento adquirido seja uma luz na insti-
tuição de ensino, favorecendo, assim, ministrar aulas com base nos teóricos em estudo e com
estratégias e mecanismos que despertem no educando o interesse por questões relacionadas
à pobreza, bem como por aquelas relacionadas à mulher de pele negra, diante de circuns-
tâncias de racismo e sexismo. Além disso, também é esperado que o texto literário amplie
o universo dos estudantes, que o texto literário, desperte a usar a imaginação, a criatividade
262
e a percepção, contribuindo com atitudes respeitosas no trato com as mulheres, princi-
palmente com a mulher de pele negra, devido sempre ter estado exposta à discriminação.
Diante da temática em discussão, como, “O lugar dos direitos humanos no
ensino de literatura: aproximações entre Conceição Evaristo e Teresa Cárdenas”,
percebemos o quanto vale apena trabalhar com a literatura na sala de aula. As
discussões na sala aula, os depoimentos dos alunos relacionado as vivências de pre-
conceitos e de violações de seus direitos, além de nos comover, nos levam a outros
desafios, como a lutar por um espaço, no ambiente escolar, em que seja oportuno
a leitura, e ao pensamento reflexivo, assim como, a desafiar os alunos a desenvol-
verem a prática da leitura literária como forma de apreciação, depois como forma
de apropriarem do conhecimento e desse jeito despertar o leitor crítico que há em
todos aqueles que descobrem na leitura o caminho para se posicionar diante da vida.
Nesse sentido, desejamos a transformação do estudante/leitor após o ato da leitura e
que, desse modo, saiba lidar com as diferenças a sua volta e tratar todos com respeito. Espe-
ramos também que todo aprendizado possa alcançar lugares muito além do espaço escolar
e que proporcione o melhoramento da pessoa humana, como forma de ressignificar a vida.
Portanto, esperamos que este trabalho seja significativo na vida dos nossos alunos
e que o ensino literário, avance em qualidade para a efetiva aprendizagem dos nossos
jovens aprendizes uma vez que o avanço tecnológico tem possibilitado ressignificar as
aulas por meio da leitura digital e de muitas outras atividades. Esperamos ainda, cola-
borar com a pesquisa para que metas e diretrizes das políticas públicas sejam (re)vistas
e melhoradas, contribuindo, dessa forma, para o ingresso dos nossos jovens estudantes
nas instituições de ensino superior com as habilidades e competências que lhes são
exigidas e que lhes sejam assegurados dos seus direitos enquanto estudantes e cidadãos.

CONSIDERAÇÕES

Neste trabalho, buscamos primeiramente, nos apropriarmos do conhecimento


a respeito dos direitos humanos, para depois refletir o que o texto literário de duas
importantes escritoras negras, discutem, por meio do texto literário, as vivências
de mulheres negras inseridas nos subúrbios das grandes metrópoles, em cidades
situadas na América Latina, em especial, Brasil e Cuba.
Desse modo, levar o texto literário, com a temática racial para discutir na sala de aula,
é uma oportunidade ímpar para conhecer o contexto em que alunos e alunas se encontram
inseridos. É ainda, uma forma de perceber a dor que alunos e alunas trazem consigo pelas
vivências no seu cotidiano, causada pelo preconceito, a discriminação e a desigualdade social.
263
Com a fundamentação apresentada, percebemos a importância de se trabalhar
com a diversidade de gêneros textuais em sala de aula, em especial, o texto literário,
pois acreditamos na criatividade daqueles que ensinam e que desejam transformar
a sua realidade escolar, num lugar de possibilidades, no despertar da leitura e na
importância do obra literária como ferramenta de transformação do pensamento,
como meio de amenizar a desigualdade social, como o lugar de ouvir a dor do outro
e como meio de criar vínculos afetuoso e respeitoso.
Para tanto, faz-se pertinente um conceito de ensino de leitura/escrita como
prática social, em que o aluno/a, confronte e registre suas ideias e ainda garanta
a sua memória, e, que essa visão crítica, lhe garanta uma condição diferenciada
na sua relação com o mundo e com todos a sua volta. Enquanto profissionais da
Educação, convém que a nossa escrita alcance outras esferas além do contexto
escolar para que políticas públicas sejam discutidas e oportunizadas aos alunos
para sua efetiva aprendizagem e assim tenham seus direitos assegurados.
Esperamos que, ao final deste trabalho, os alunos consigam empreender
significados por meio da leitura literária nas áreas do conhecimento e ainda, que os
estudantes não apenas saibam respeitar as diferenças no âmbito escolar, no bairro
onde vivem e na sociedade como um todo, mas também que saibam se expressar e
compreender os fenômenos sociais, naturais, culturais e transculturais e que a aquisi-
ção do saber seja o produto dos nossos esforços nas diferentes áreas e que os direitos
humanos, assegurados em nossa constituição, alcance a todos, em especial, aos
nossos jovens estudantes, para que tenhamos uma sociedade mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular- BNCC. Brasília: MEC/SEB, 2017.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 4 fev. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. SEDUC- Secretaria de Estado de Educação. Governo de Mato. Documento
de Referencia Curricular de Mato Grosso (DRC-MT-EM), 2021. https://pt.scribd.com/document/536138586/
DRC-MT-EM-ITINERARIOS-Completo-Vers-uo-Leitura-Critica-1-docx
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. Disponível em: https://
filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2017/10/antonio-candido-o-direito-c3a0-literatura.pdf. Acesso em:
05 fev. 2022.
CÁRDENAS, Teresa. Cartas para minha mãe. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2021.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 14. reimp. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2020.
ISER, Wofgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. v.1
264
A SUBJETIVAÇÃO NEOLIBERAL POR MEIO
DO CURRÍCULO ESCOLAR E A EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS COMO UMA FERRAMENTA DE
TRANSFORMAÇÃO

Marcos José de Lacerda Júnior89

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a pretensão de acompanhar as correntes teóricas


que examinam as potencialidades do currículo escolar como um mecanismo para
obtenção de justiça social e de contenção das diversas formas de opressão (de raça,
classe e gênero, por exemplo).
Nesta análise, em específico, o objetivo primordial é verificar a possibilidade
da educação em direitos humanos constituir-se em uma ferramenta de oposição
ao modelo de subjetivação neoliberal. Por esse motivo, almeja-se explicitar os
principais fundamentos do neoliberalismo e entender as suas implicações para a
conformação das subjetividades dos indivíduos.
Em seguida, após a exposição de algumas contribuições teóricas relacio-
nadas ao conceito de currículo escolar, planeja-se compreender de que forma
ele é utilizado, a fim de adequar subjetivamente os estudantes aos postulados
do neoliberalismo. Ainda, intenciona-se apresentar a dimensão instituinte dos
direitos humanos, pesquisando as razões pelas quais a educação em direitos
humanos, quando realizada a partir da perspectiva instituinte, pode representar
um contraponto à subjetivação neoliberal posta em marcha por meio do currículo
escolar atualmente hegemônico.
O procedimento metodológico adotado diz respeito a uma pesquisa biblio-
gráfica sobre os conceitos relacionados ao objeto de investigação e a uma pesquisa
documental, tendo em vista a consideração valorativa do conteúdo da Base Nacio-
nal Comum Curricular (BNCC). A observação é conduzida por meio do método
dialético, já que se pretende dar atenção aos movimentos históricos que ocorrem,
de maneira contraditória e conflituosa, na realidade concreta. Isto é, leva-se em
conta a determinação da atual formação social em relação ao currículo escolar,

89
Mestrando em Direitos Humanos e Políticas Públicas (PUCPR). CV: http://lattes.cnpq.br/8909027746952781
265
mas também não se ignora que ele pode atuar de maneira a modificar, em certo
grau, a base material da qual emerge.

A RACIONALIDADE NEOLIBERAL

O neoliberalismo pode ser entendido “como o sistema de acumulação


dominante (ou seja, o estágio atual, a etapa ou o modo de existência do capi-
talismo contemporâneo)” (FILHO; MORAIS, 2018, p. 96). Portanto, antes
de se analisar mais extensamente o próprio neoliberalismo, é imprescindível
que sejam tecidas algumas considerações sobre aquilo que, historicamente,
ele representa: o capitalismo.
Mesmo sem ignorar o caráter histórico do capitalismo, isto é, ainda que se dê
atenção aos fatos de que ele não foi o mesmo ao longo do transcurso do tempo e de
que detém distintas características a depender do espaço geográfico em que se faz
presente, é possível defender que o capitalismo apresenta atributos e pressupostos
elementares que o identificam como tal, ou seja, que permitam que determinada
formação social seja qualificada como capitalista (FRASER; JAEGGI, 2020).
Na perspectiva econômica, o capitalismo constitui um modo de produção
fundado na contradição entre capital e trabalho assalariado e na existência de duas
classes sociais antagônicas. A primeira (a dos capitalistas) é detentora dos meios
de produção, enquanto a segunda (a dos trabalhadores) possui apenas a sua força
de trabalho, cuja venda, sob a forma de mercadoria, é indispensável para a sua
sobrevivência física (COGGIOLA, 2021).
No processo produtivo das mercadorias, os capitalistas se apropriam, sem a
devida contraprestação, de parte dos valores criados pelos trabalhadores. O valor
excedente extraído dos operários é reinvestido na produção, proporcionando a
expansão do capital, com o objetivo de se manter competitivo na concorrência em
face às demais indústrias. Dessa forma, constata-se que duas das características
centrais do modo de produção capitalista são a exploração (remuneração dos tra-
balhadores em patamares inferiores aos valores que engendram) e a acumulação
constante de capital (COGGIOLA, 2021).
Expandindo a classificação puramente econômica, Fraser apresenta, em
sua interlocução crítica com Jaeggi (2020, p. 12), uma definição totalizante de
capitalismo, captando-o como uma “ordem social institucionalizada”. A filósofa
defende, seguindo essa lógica, que o conceito de capitalismo, para além do âmbito
econômico (modo de produção), abrange quatro pressupostos de fundo sem os
266
quais ele não subsiste: a reprodução social; a dependência em relação à uma forma
específica de interação com a natureza; os poderes públicos; e a expropriação
(FRASER; JAEGGI, 2020, p. 31-103).
Em razão da delimitação analítica deste trabalho, o foco será dirigido apenas
para um desses pressupostos: a reprodução social. Todavia, primeiramente, há de se
esclarecer ao que se faz referência, quando da utilização do termo “neoliberalismo”.
Após, será efetivado o exame do papel da reprodução social especificamente na
forma atual de expressão do capitalismo, isto é, na sua vertente neoliberal.
O neoliberalismo é comumente classificado, a partir do último quartel do
século XX, tanto como uma ideologia quanto como uma política econômica.
Desde a perspectiva ideológica, o neoliberalismo é identificado com as teorias que
apregoam a naturalização do mercado, ou seja, a noção de que o desenrolar da vida
econômica e social não pressupõe a atuação do Estado, havendo de se permitir que
a esfera mercantil, entendida como uma realidade ontológica, flua sem quaisquer
tipos de interferências, para que assim ocorra o desenvolvimento da economia, da
sociedade e dos sujeitos que a compõem (DARDOT; LAVAL, 2016).
Por sua vez, a categorização do neoliberalismo tal qual uma política econômica
o identifica com as medidas concretas que aplicam o receituário proposto pelos
economistas neoliberais (DARDOT; LAVAL, 2016). As prescrições envolvem
“uma combinação de políticas macroeconômicas baseada em políticas fiscais e
monetárias contracionistas e metas de inflação” (FILHO; MORAIS, 2018, p. 97).
Contudo, essas duas acepções, quando tomadas isoladamente, não dão
conta de explicar com a profundidade necessária o fenômeno do neoliberalismo.
Se visualizado tão somente como uma ideologia ou como um conjunto de polí-
ticas econômicas fundamentadas nessa ideologia e no corpo teórico neoliberal,
não há como se explicar a razão pela qual as políticas neoliberais continuam a
ser aplicadas (mesmo quando comprovada a causalidade que exercem em rela-
ção às crises econômicas, políticas e sociais) e o porquê essa ideologia perma-
nece hegemônica, ainda que demonstrada a ausência de validade científica de
suas teses (DARDOT; LAVAL, 2016).
Para além disso, o argumento de que o neoliberalismo corresponde a uma
política econômica gera a impressão de que os representantes do capital coloni-
zam, vindos de fora, os poderes estatais e fazem com que os atores da política
institucional apliquem as medidas neoliberais, após serem licenciados para tanto
por alterações efetivadas no quadro jurídico do Estado, em benefício das grandes
267
corporações financeiras, quando, na verdade, a dimensão legal faz parte da própria
lógica interna da economia (DARDOT; LAVAL, 2016). De modo resumido: “o
jurídico pertence de imediato às relações de produção, na medida em que molda
o econômico a partir de dentro” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 25).
De acordo com esse raciocínio, a designação mais precisa de neoliberalismo
é a que o reconhece na forma de um sistema normativo de âmbito global ou uma
razão do mundo. Essa racionalidade é global não apenas porque tende a expandir
sua organização normativa por todo o globo, mas também por ter a capacidade
de abarcar todos os aspectos da vida humana (DARDOT; LAVAL, 2016).
Sendo, primordialmente, uma racionalidade, o neoliberalismo orienta “não
apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados” (DAR-
DOT; LAVAL, 2016). As normas impostas pela razão neoliberal dizem respeito
à estruturação das condutas sob o prisma da concorrência e à subjetivação em
consonância ao paradigma empresarial (DARDOT; LAVAL, 2016).
Frisa-se que a tipificação do neoliberalismo tal qual uma racionalidade não
colide com a argumentação exposta no início desta subseção no sentido de que ele
corresponde à fase atual do capitalismo, pois, como Dardot e Laval (2016, p.16)
deixam explícito, o “neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo”.
Essa racionalidade histórica e singular constitui um novo tipo de governo.
O termo (governo) é empregado não com o objetivo de designar o âmbito ins-
titucional, mas para fazer referência à atividade prática de direção das condutas
humanas, o que pode ficar mais claro com o uso da expressão “governamenta-
lidade”. Essa determinação dos comportamentos sociais presume não apenas a
utilização das ferramentas postas à disposição do Estado para influir na ação dos
governados, mas também o denominado autogoverno, isto é, a criação de uma
condição em que o indivíduo aplica sobre si mesmo determinadas técnicas de
governo (DARDOT; LAVAL, 2016).
A apreensão da prática do autogoverno evidencia que o ato de governar não
é incompatível com a liberdade, tendo em vista que a governamentalidade atua “no
espaço de liberdade dado aos indivíduos para que estes venham a conformar-se
por si mesmos a certas normas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 18). Conforme já
sublinhado, sob o neoliberalismo, essa normatividade corresponde à introjeção e
à difusão dos paradigmas da competitividade e do modelo empresarial.
Para que se concretize a consolidação dessa normatividade em todos os
âmbitos da vida social (economia, política, subjetividades e relações interpessoais,
268
por exemplo), o neoliberalismo lança mão de sua dimensão criadora, fabricando
“certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetivida-
des” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 14).
Portanto, este é o ponto oportuno para se retomar a apreensão do capita-
lismo como uma ordem social institucionalizada que requer a presença de algumas
condições de fundo, dentre as quais está a reprodução social (FRASER; JAEGGI,
2020). Sendo o neoliberalismo o momento atual do capitalismo, ele também exige
o pressuposto da reprodução social.
Essa condição para a existência do modo capitalista de produção diz res-
peito às “formas de prover, cuidar e interagir que produzem e mantêm os laços
sociais” (FRASER; JAEGGI, 2020, p. 58). Nesse sentido, para além do trabalho
doméstico, a reprodução social concerne à criação de valores, significações a serem
compartilhadas socialmente e modos de interação que são imprescindíveis ao fun-
cionamento e à aceitação hegemônica do capitalismo (FRASER; JAEGGI, 2020).
Fraser e Jaeggi (2020) explicam que esse movimento pode ocorrer em diversos
espaços sociais, abrangendo, inclusive, a escola. Por decorrência, o uso da esfera
escolar e do que nela se ensina para fins de subjetivação neoliberal, ou seja, para
a formação de uma subjetividade fundada na lógica da concorrência e do modelo
empresarial, é de grande valia para a reprodução do neoliberalismo.

CURRÍCULO ESCOLAR E SUBJETIVAÇÃO NEOLIBERAL

A evocação da expressão “currículo escolar”, provavelmente, faz surgir na mente


do leitor ou do ouvinte a ideia de um documento que prevê as disciplinas e os con-
teúdos que são ensinados na escola. Contudo, para além dessa acepção relativamente
trivial, há um debate teórico com o objetivo de delimitação mais precisa do tema.
De acordo com uma perspectiva analítica abrangente, o currículo corresponde
a “projeções de finalidades educativas escolhidas em meio a decisões ideológicas
e políticas” (LIBÂNEO, 2019, p. 3). As finalidades educativas, por sua vez, estão
relacionadas às discussões políticas, culturais, ideológicas e sociais que pretendem
estabelecer o sentido e os objetivos da educação escolar, isto é, fixar quais valores e
concepções o sistema educacional deve concretizar, quais resultados há de buscar
e de que forma deve ser avaliado (LIBÂNEO, 2019).
Fica evidente, por decorrência, que o currículo escolar não corresponde a algo
neutro e isento das contradições inerentes à base social da qual emerge. A concepção
crítica de Freire (2005, p. 123) sobre o currículo escolar corrobora essa conclusão:
269
Não reduzimos, por isso mesmo, sua compreensão, a do currículo
explícito, a uma pura relação de conteúdos programáticos. Na ver-
dade,a compreensão do currículo abarca a vida mesma da escola, o
que nela se faz ou não se faz, as relações entre todos e todas as que
fazem a escola. Abarca a força da ideologia e sua representação não
só enquanto idéias, mas como prática concreta.

Desse modo, segundo a pedagogia freiriana, o currículo, além de ser imbricado


à ideologia, detém um viés concreto que abarca todas as práticas desenvolvidas na
escola. Ele abrange, consequentemente, a natureza das relações interpessoais que
são construídas e a forma pela qual o conteúdo escolar é trabalhado.
Essa noção é compatível com os delineamentos da pedagogia históri-
co-crítica. Saviani (2000, p. 17), um dos expoentes dessa corrente pedagógica,
apresenta uma delimitação do conceito de currículo escolar, ao pontuar que o
objeto da educação corresponde “à identificação dos elementos culturais que
precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos”, mas também deve estar ligado à procura dos meios mais
aptos para o alcance dessa finalidade.
Dentro dessa lógica, o currículo deve propiciar aos estudantes o acesso
aos bens científicos e culturais historicamente produzidos pela humanidade,
pois, consoante Freire (2015, p. 155), “não há prática educativa sem conteúdo”,
e ainda estipular as melhores maneiras pelas quais essa atividade pode ser
atingida, levando-se em consideração, para tanto, as particularidades e o con-
texto dos alunos (LIBÂNEO, 2019).
No entanto, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada
no ano de 2017, não se ateve a esses requisitos. Ela representa um documento de
natureza normativa que tem por objetivo nortear a “formulação dos currículos dos
sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
e das propostas pedagógicas das instituições escolares” (BRASIL, 2017).
Da análise de seu texto, extrai-se que o foco da BNCC não é a identificação
dos conteúdos propiciadores do desenvolvimento da humanidade nos estudan-
tes, nem o balizamento dos métodos mais adequados para o alcance dessa meta.
O âmago do documento é a construção de um currículo baseado na valoração
de competências e habilidades.
Essa pretensão se mostra clara já na introdução da BNCC, em que consta
seu objetivo de “concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de

270
dez competências gerais” (BRASIL, 2017). Ainda na introdução do documento,
há a conceituação de competência e habilidades:
Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conheci-
mentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e
socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas
da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do
trabalho (BRASIL, 2017).

Segundo Libâneo (2019), a BNCC, ao assim proceder, instituiu um currículo


de caráter instrumental. A instrumentalidade do currículo está ligada à previsão de
um “conjunto de conteúdos mínimos necessários ao trabalho e emprego, na verdade
um ‘kit’ de habilidades de sobrevivência para redução da pobreza e adequação dos
indivíduos aos requisitos de empregabilidade precária” (LIBÂNEO, 2019, p. 14).
O neoliberalismo, conforme já sublinhado, é conduzido pelos postulados
da competitividade e do modelo empresarial. Essa normatividade traz consigo,
por decorrência lógica, a naturalização da desigualdade e a convivência pacífica
com a condição de pobreza social a que muitos cidadãos estão submetidos. Sendo
assim, o sistema educacional e o currículo escolar que lhe dá sentido, quando fixam
como finalidade primária a edificação de competências e habilidades, agem em
conformidade com a racionalidade neoliberal.
Isso ocorre já que o foco nas aludidas competências e habilidades é indispen-
sável para que as crianças e os adolescentes sejam equipados com o instrumental
necessário para o ingresso na competitividade do mercado e da vida social. Isto
é, a preocupação não é de que os jovens tenham acesso, mediante os procedi-
mentos mais adequados, ao conhecimento produzido pela humanidade e de que
para, a partir dele, humanizem-se e sejam capazes de analisar, criticamente, a
realidade material que os circunda.
Pelo contrário, o ensino, nos moldes propostos pela BNCC, tem o anseio
de introjetar, na subjetividade dos educandos, a concepção de que o indispensável
para a sua formação é a aquisição das ferramentas que os façam mais competitivos
do que os demais alunos, seus futuros concorrentes no mercado de trabalho.
Todavia, as condições reais da formação social brasileira, continuamente,
demonstram, por meio dos elevados níveis de desemprego, cuja taxa, em 2021,
foi a décima sexta pior do mundo (ALVARENGA, 2022), que, no mercado de
trabalho, não há espaço para todos. A razão neoliberal não apenas naturaliza essa
condição, tornando-a intrínseca ao paradigma da concorrência, como também
271
culpabiliza apenas o indivíduo por não ter alcançado o sucesso na competição em
face de seus pares, isentando o Estado e o próprio funcionamento exploratório do
modo capitalista de produção de qualquer responsabilidade.
A ideia por trás da BNCC é de que, uma vez concedidas, no ambiente
escolar, as competências e as habilidades, se o sujeito não alcançar a estabilidade
social e econômica, a responsabilidade é exclusivamente dele. A subjetivação, por
meio do currículo escolar, em atenção ao modelo empresarial é imprescindível
para que os estudantes assimilem essa noção.
Tendo em vista que o próprio indivíduo funciona como uma empresa, cabe
a ele a absorção, em cada vez maiores proporções, das competências e habilidades
que o valorizem e o tornem mais apto no embate contra seus concorrentes. O
sucesso ou o fracasso do sujeito é atribuído à sua boa ou má administração de
si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016). Dessa forma, as crises socioeconômicas
próprias do neoliberalismo e suas consequências (desemprego, fome e falta de
moradia, por exemplo) são naturalizadas e tornam-se menos questionadas por
aqueles que são a elas expostos.
Entretanto, consoante exposto no início desta subseção, o currículo escolar,
por representar a projeção das finalidades educativas, está condicionado pelos
conflitos, embates e contradições que se materializam na arena sociopolítica
(LIBÂNEO, 2019). Consequentemente, cabe àqueles que estão preocupados
com a construção de uma nova racionalidade a disputa em torno da construção
do currículo escolar. A luta pela concretização da educação em direitos humanos
pode ser um importante passo para essa tarefa de transformação social.

A DIMENSÃO INSTITUINTE DOS DIREITOS HUMANOS E A


EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS COMO FERRAMENTA
DE TRANSFORMAÇÃO

Com a previsão cada vez mais intensa dos direitos humanos em instrumentos
normativos nacionais e internacionais, a invocação de sua gramática para as mais
diversas finalidades tem se intensificado nos cenários político e social. Em que
pese a difusão do ideário dos direitos humanos, há de se ressaltar a inexistência de
consenso a respeito de seu conteúdo, isto é, distintas correntes teóricas disputam
a definição de qual seria a acepção mais adequada para a expressão.
Sánchez Rubio (2017) afirma que o paradigma dominante, na contempo-
raneidade, no que concerne aos direitos humanos é o que os vislumbra a partir de
272
sua dimensão institucional. Sob a influência da perspectiva institucional, ideias
ou conceitos como a liberdade e a dignidade humana são alçadas ao plano da
ontologia, ou seja, tratadas como se detivessem uma existência independente dos
seres humanos (SÁNCHEZ RUBIO, 2017).
E os direitos humanos, dominados por esse viés institucional, são hipos-
tasiados em documentos normativos, assumindo relevância tão somente
numa perspectiva pós-violatória e dependendo da atuação institucional (por
meio de juízes, tribunais e políticas públicas, por exemplo) para obterem
proteção (SÁNCHEZ RUBIO, 2017).
Ocorre que, como bem informa Sánchez Rubio (2017), essa perspectiva de
proteção dá conta, com certa generosidade, de tão somente 99,9% das violações
de direitos humanos. Por esse motivo, o autor propõe que, para a retomada do
potencial libertador dos direitos humanos, eles devem ser entendidos dentro de
uma nova lente que priorize as práticas humanas, em vez de superdimensionar a
institucionalidade (SÁNCHEZ RUBIO, 2017).
De acordo com Sánchez Rubio (2017), os direitos humanos são construções
sociais e históricas oriundas das relações materiais e culturais estabelecidas entre os
sujeitos, de forma que, no cotidiano, os indivíduos criam e destroem esses direitos.
O autor sustenta, ainda, que a sociedade civil dispõe de um sistema de garantias
próprio para os direitos humanos (sem ter de apelar, necessariamente, ao Poder
Judiciário). Para corroborar a tese, traz o exemplo dos grupos sociais que se juntam
para evitar um despejo ilegal, o que corresponderia, claramente, a um mecanismo
de garantia do direito humano à moradia (SÁNCHEZ RUBIO, 2017).
Essa ótica de análise conforma-se à dimensão instituinte dos direitos huma-
nos, que, a seu turno, é consagrada tão somente pela ação coletiva e por meio
de lutas individuais travadas no cotidiano. Os movimentos sociais organizados
segundo a lógica do poder compartilhado e os poderes instituintes cotidianos
(lutas individuais no âmbito da família, do trabalho e da escola, por exemplo) são
imprescindíveis para a reação contra os abusos advindos dos poderes constituintes
oligárquicos e para a construção de uma dimensão multigarantista e pré-violatória
de direitos humanos (SÁNCHEZ RUBIO, 2017).
Tal visão insere-se na tradição da teoria crítica dos direitos huma-
nos, que busca, incessantemente, consolidar a percepção de que, para além
de simples previsão normativa, abstrata e genérica, esses direitos possuem

273
um valor de combate, organizando a luta social pela liberdade (ESCRI-
VÃO FILHO; SOUSA JÚNIOR, 2016).
Portanto, a educação em direitos humanos, caso deseje ser uma ferra-
menta de transformação e de oposição à racionalidade neoliberal, deve levar
em conta a dimensão instituinte desses direitos. A usurpação do currículo
escolar pelos parâmetros e modelos apregoados pelo neoliberalismo tem o
fim de construir subjetividades individualistas e orientadas pela concorrên-
cia e pelo paradigma empresarial.
A dimensão instituinte dos direitos humanos é algo incompatível com essa
lógica, haja vista valorizar a cooperação e a atuação coletiva com o objetivo de
alcançar resultados que tragam benefícios à totalidade dos que estão envolvidos
no processo de resistência e de luta contra alguma situação opressiva.
Nesse sentido, a inclusão, no currículo escolar, da perspectiva instituinte
dos direitos humanos, pode ser benéfica ao plano dos que almejam superar a
racionalidade neoliberal e fomentar o desenvolvimento de sujeitos capazes de
compreender, de maneira crítica, a realidade desigual na qual estão inseridos e de
detectar os possíveis meios de alterá-la.
A inserção da dimensão instituinte dos direitos humanos, no currículo das
escolas, pode ocorrer por meio do ensino das linhas teóricas que identificam o
real sentido dos processos de resistência popular concretizados ao longo da his-
tória do Brasil. Há de ser consubstanciado, no ambiente escolar, um tratamento
teórico adequado, abrangendo todas as implicações sociológicas e políticas, das
lutas abolicionistas travadas contra a escravidão e o racismo no século XIX; das
greves e revoltas da classe trabalhadora, durante o século XX, para a conquista de
melhores condições de trabalho; e das lutas feministas para o alcance da igualdade
formal e material neste país, por exemplo.
Por meio desses mecanismos de ensino, pode-se fomentar a criação de cons-
ciências que sejam capazes de perceber e que tenham o desejo de transformar a
exploração do modo de produção capitalista, buscando, portanto, uma maior justiça
social; bem como é possível estimular a formação de subjetividades que contestem
opressões como as de raça e de gênero, solidarizando-se com os movimentos que
se opõem a essas estruturas de dominação.

274
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um primeiro momento, a detecção do neoliberalismo como uma racio-


nalidade capaz de impor sua normatividade a todos os âmbitos da vida social
parece ser desalentadora, pois evidencia que, para a derrocada desse sistema, não
basta a conquista do poder institucional por setores progressistas, a fim de que,
dessa maneira, sejam substituídas as políticas neoliberais por outras que sejam
comprometidas com o real desenvolvimento socioeconômico.
Contudo, essa apreensão é imprescindível para a definição dos melhores
meios de oposição à atual fase do capitalismo e às crises que lhe são próprias. Sendo
o neoliberalismo uma racionalidade e não apenas uma ideologia ou uma política
econômica, o embate a ser travado contra ele há de buscar o desmantelamento
dessa racionalidade e a sua substituição por uma nova normatividade.
A educação em direitos humanos, quando atenta à dimensão instituinte deles,
pode representar uma decisiva ferramenta para o estímulo de subjetividades orien-
tadas segundo uma lógica de cooperação e de valorização da luta coletiva contra
estruturas opressivas, de modo que haja uma contraposição às normatividades da
concorrência e do modelo empresarial inerentes ao neoliberalismo.

REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Darlan. Taxa de desemprego do Brasil deve ficar entre as maiores do mundo em 2022;
veja ranking. G1, 28 abr. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/04/28/taxa-
-de-desemprego-do-brasil-deve-ficar-entre-as-maiores-do-mundo-em-2022-veja-ranking.ghtml. Acesso
em: 01 jun. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base. Acesso em: 01 jun. 2022.
COGGIOLA, Osvaldo. Teoria econômica marxista: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Boitempo,
2021. E-pub.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1. ed.
São Paulo: Boitempo, 2016. E-pub.
ESCRIVÃO FILHO, Antônio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Para um debate teórico-conceitual e
político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Tradução de
Nathalie Bressiani. São Paulo: Boitempo, 2020. E-pub.
FILHO, Alfredo Saad; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Paulo: Boi-
tempo, 2018.
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

275
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 15. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2015.
LIBÂNEO, José Carlos. Finalidades educativas escolares em disputa, currículo e didática, 2019. Disponível
em: https://tinyurl.com/3e4sfc7c. Acesso em: 01 jun. 2022.
SÁNCHEZ RUBIO, David. Crítica a una cultura estática y anestesiada de derechos humanos. Por una
recuperación de las dimensiones constituyentes de la lucha por los derechos. Revista Culturas Jurídicas,
Niterói, v. 4, n. 7, p. 26-63, 2017. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/44855.
Acesso em: 02 jun. 2022.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 7.ed. Campinas: Autores
Associados, 2000.

276
O QUE A SOCIEDADE ESPERA DE NÓS
PROFESSORES BRASILEIROS

Maria Alexandra Naberesny90

“O ser humano é aquilo que a educação faz dele.”


Immanuel Kant, filósofo alemão.

Escrevo estas mal traçadas linhas do meu leito de recuperação. Sofri um acidente
andando. Sim, caminhando por uma calçada, próximo a minha residência. A calçada
é totalmente irregular, torta e qualquer mínimo deslize, pisar em falso causa grandes
acidentes. Acabei fraturando o tornozelo. O diagnóstico foi de fraturas múltiplas
na perna. Resultado, três dias de internação, uma cirurgia, uma placa de metal de
10 cm do lado esquerdo e dois pinos do lado direito para apoiar e reforçar e 65 dias
de afastamento do trabalho. Devo salientar que trabalho em gestão escolar, de mim
dependem diretamente 1050 alunos, professores, funcionários, e a diretora a qual,
sem meu suporte, se vê obrigada a gerir sozinha todo esse complexo educacional.
Algum desavisado irá perguntar, o que esse episódio isolado tem a ver com
a educação? Pois bem, leitor, lhe respondo prontamente. Tem tudo a ver. A edu-
cação relevante e significativa tem absolutamente tudo a ver com a organização
de qualquer sociedade. Diz a norma brasileira ”PASSEIOS PÚBLICOS DE
CONCRETO EXIGEM PROJETO QUE CONSIDERE A ACESSIBILI-
DADE DOS USUÁRIOS E BOAS PRÁTICAS DE EXECUÇÃO” Matéria
original do site AECwebTexto: Juliana Nakamura
O concreto é bastante aproveitado na construção de calçadas em função
de características como durabilidade, resistência e custo competitivo.
Mas embora envolva práticas de amplo domínio da engenharia, essa
solução não pode prescindir de cuidados de execução, sob o risco de
surgirem manifestações patológicas que comprometem a vida útil e
a funcionalidade dos passeios públicos.”As recomendações começam
com a realização de um projeto, que contemple aspectos dimensionais
e especificações técnicas — como traço do concreto, tamanho de juntas
e a inserção de tela soldada — definidas em função da carga à qual
o piso será exposto. O projeto é fundamental, também, para garantir
atendimento aos requisitos de acessibilidade. Para tanto, devem ser
observadas a legislação municipal e a ABNT NBR 9050:2020 —
90
Mestrado em Master in TESOL (University of Brighton, U.B., Inglaterra). CV: http://lattes.cnpq.br/2745880231295075
277
Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos
urbanos, recentemente atualizada.

De acordo com a engenheira Erika Mota, gerente de Cidades da ABCP (Asso-


ciação Brasileira de Cimento Portland), a dimensão de cada faixa do passeio (livre, de
acesso e de serviço) varia em função da largura total da calçada e da legislação de cada
cidade. “Infelizmente é bastante rara a elaboração de um projeto com a previsão das faixas que
ordenam o espaço e com parâmetros mínimos de acessibilidade, como inclinação transversal e
longitudinal, e revestimentos que garantam conforto e segurança ao pedestre”, destaca Mota.
Além da ABNT NBR 9050, outras normas de referência para orientar o
projeto de calçadas de concreto são: – ABNT NBR 16.537:2016 — Acessibilidade
— Sinalização tátil no piso — Diretrizes para elaboração de projetos e instalação
– Lei 13.146/2015 — Lei Brasileira de Inclusão – ABNT NBR 12.655:2015 —
Recebimento e controle do concreto.
Mas, obviamente, nada disso é levado em consideração pelo construtor
brasileiro ao fazer suas calçadas. As prefeituras não os orientam, estes, por sua
vez, não sabem que existem normas, se sabem, não são encorajados a segui-las.
E tudo no Brasil vai, como sempre, na base da informalidade, intuição, no bom
e velho chute. Eis que, o barato sai caro. Uma gestora escolar, se vê na condição
de afastamento do trabalho por 65 dias o que, obviamente onera ainda mais, as
já precárias condições de funcionamento e educação na escola em qual trabalha.
Completamente compreensível. Temos uma administração pública, por nós
mesmos escolhida, sempre incapaz de organizar as cidades e municípios nos quais
vivemos. O objetivo geral que muitos candidatos a cargos públicos perseguem é
comumente enriquecer. Deixar para trás os dias de miséria e passar a levar uma vida
digna de príncipe, de sultão, de reis. Quem se importa em trabalhar para organizar
a vida em comunidade, para oferecer uma educação de fato? Tudo tempo perdido.
Passa imediatamente cada um, tão logo empossado em cargo de gestão política a
cuidar de seu próprio enriquecimento ilícito. E as escolas, e a educação, aquela única
condição a qual ajudaria a minimizar a miséria e ignorância brasileira? Essa será
o quanto antes esquecida. Afinal, cidadãos bem formados, críticos e conscientes
jamais elegeriam estúpidos políticos como: Zé do Bar, Brochão da lotação, Pro-
fessora Fernandinha, entre outros despreparados. Aliás, primeiramente, cidadãos
conscientes jamais admitiriam um número exorbitante de políticos e de assessores
que nada fazem para organizar as cidades, proporcionar vida digna aos munícipes,
promover debates relevantes e educativos acerca de quais as reais necessidades
do município, quais as questões urgentes a serem tratadas, quais as metas para
278
a melhoria da qualidade da educação oferecida aos munícipes. Jamais. Cidadãos
com elevado nível de consciência acerca de seus direitos e especialmente acerca das
obrigações dos políticos eleitos não são convenientes aos donos do poder. Cidadãos
conscientes e bem formados não elegem maus políticos. Primeiramente, reduziriam
drasticamente o número de políticos e assessores inúteis na administração pública.
Elegeriam políticos verdadeiramente preparados e conscientes de seu papel frente
aos importantíssimos cargos públicos. Novamente nos questionamos, o que as
questões sempre mal resolvidas políticas tem a ver com a educação? Oh meu caro
cidadão, tudo. Tem tudo a ver. Se cada cidadão fosse devidamente preparado para
votar, elegeria menos políticos e mais competentes, desperdiçaríamos menos dinheiro
público com enriquecimento ilícito de eleitos despreparados, teríamos condições
dignas de viver em cidades mais bem cuidadas e estruturadas e esta que vos escreve
não estaria em casa, de licença médica por ter torcido seu pé em uma calçada mal
feita, torta e irregular. Estaria trabalhando e colaborando para uma educação mais
significativa e relevante para os alunos o que contribuiria para que tivéssemos cida-
dãos mais bem formados, capazes de consultar as normas de execução de calçadas
impedindo novos acidentes banais de pessoas tropeçando, torcendo o tornozelo,
caindo e perdendo dias de trabalho por estarem impedidas de trabalhar por sofrer
acidentes em calçadas mal construídas por cidadãos que não tiveram acesso a uma
educação de qualidade que lhes capacitasse a seguir normas de construção de calçadas
entre outras tantas tarefas importantes de cidadãos habitantes de grandes cidades
periféricas às maiores metrópoles mundiais. É claro que esse é apenas um exemplo
de todas as mazelas que cercam nossa sociedade exatamente por não conseguirmos
organizar o sistema educacional tornando-o mais eficiente e efetivo.
Tendo dito isso, voltemos ao tema que nos interessa, como os alunos das
escolas brasileiras atuais saem com assustadora má formação, considerados anal-
fabetos funcionais da imensa maioria das escolas brasileiras, tanto públicas quanto
privadas? Esses deixam as escolas de nível médio sem o mínimo de preparo para
adentrarem ao mercado de trabalho ou sequer, exercerem seu papel de cidadão
consciente de seus direitos e principalmente deveres. Segundo Tainá Loureiro,
em matéria publicada no jornal da USP em 13/11/2020 “Escolas brasileiras
ainda formam analfabetos funcionais -Cerca de 29% da população brasileira tem
dificuldades para ler textos e aplicar conceitos de matemática; para especialistas,
dados refletem a falta de investimentos na educação”.
Ainda em matéria citada o professor José Marcelino de Rezende Pinto, da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP,
279
esses dados denunciam a baixa qualidade da educação brasileira, pois não se refe-
rem às pessoas que nunca estiveram na escola, mas a alunos que frequentaram
as escolas. “A nossa escola ainda produz muitos analfabetos”, afirma, adiantando
que “ela não consegue transformar o conhecimento, a alfabetização, seja ela na
linguagem pátria ou matemática, em algo do cotidiano dessas pessoas”.
Esses dados são especialmente preocupantes pois sabemos que a falta de uma
formação adequada é sinônimo de falta de oportunidades e do aumento das injus-
tiças e diferenças sociais já tão marcantes na sociedade brasileira. As estatísticas de
desempenho em redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2020
mostram que, no estado que mostra a melhor média em desempenho na avaliação,
São Paulo, fica em 600, aquém do mínimo considerado de 700 em exames em geral.
Para especialistas como o professor Rezende Pinto acima citado em periódico da
Universidade de São Paulo, “o analfabetismo funcional é um desafio que depende de
políticas públicas e recursos”. Eu gostaria de ir mais além. Eu gostaria de propor que
houvesse um engajamento, uma espécie de força tarefa onde todos da sociedade
e principalmente os professores estivessem unidos no desafio de reconstrução da
educação brasileira. A seguir procurarei demonstrar a importância de termos os
educadores envolvidos nos processos de reformulação de nossas metodologias
com vistas a formação mais condizente com as atuais necessidades da sociedade.

O QUE MUDAR? POR QUEM? COMO?

Sou o tipo de professora que sempre gostei de me manter atualizada. Faço


muitos cursos e leio muito. Já participei de vários tipos de formação no qual se
demonstra que apenas o investimento em formação continuada de professores,
ou modernização das escolas não darão conta de resolver ou ainda minimizar
os graves problemas enfrentados no atual quadro da educação brasileira. Como
mostra artigo publicado no site povir.org em 12 mar. 2018:
“Levantamento feito pelo Banco Mundial, mostra que o país gasta 62%
a mais do que precisaria investir para atingir os resultados educacionais
atuais. Ou seja, o dado sugere uma ineficiência no uso dos recursos,
principalmente quando se compara o rendimento de países que investem
menos que o Brasil e conseguem obter resultados melhores no Pisa (prova
internacional que avalia alunos de 15 anos), como é o caso do Chile,
México e Turquia. “Como percentual do PIB [Produto Interno Bruto],
o Brasil gasta atualmente mais do que a média da OCDE [Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] de seus pares. Além
280
disso, o Brasil superou a média da OCDE em termos de despesas públicas
totais na educação infantil e no ensino médio”, aponta o estudo.”

Mais do que gostar de estudar sinto que é obrigação de qualquer educador


se manter atualizado e relevante para atender às demandas da sociedade (princi-
palmente a brasileira) por educação. Longe de achar que, modificar o atual cenário
de fracasso da educação brasileira é tarefa unicamente do professor, tampouco
sem um engajamento real desses profissionais será impossível modernizarmos o
ensino ofertado nas atuais escolas brasileiras, especialmente as públicas. Afinal,
não é possível que profissionais formados nas décadas de 1980 e 1990, quando os
recursos tecnológicos hoje disponíveis ainda nem eram populares no Brasil, tam-
pouco muitas das pesquisas realizadas e novas metodologias muito mais eficazes
surgiram desde então, sem uma formação continuada possam dar conta das atuais
demandas da educação. A experiência para um bom profissional de educação é
crucial. Mas não basta. O método educacional comumente utilizado nas escolas
não superem as necessidades de nossos atuais alunos, como nos mostra Moran:
As metodologias predominantes são as dedutivas: o professor trans-
mite primeiro a teoria e depois o aluno deve aplicá-la a situações mais
específicas. O que constatamos cada vez mais, é que a aprendizagem
por meio da transmissão é importante, mas a aprendizagem por ques-
tionamento e experimentação é mais relevante para uma compreensão
mais ampla e mais profunda (MORAN, 2018, p. 2)

ALUNOS DESMOTIVADOS E DESINTERESSADOS

É muito comum nas escolas públicas, os gestores receberem reclamações


dos professores acerca dos alunos. Os docentes se veem desesperados com as
atitudes, posturas e comportamento dos alunos especialmente daqueles que se
encontram no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. As reclamações referem-se
especialmente aos alunos acima de 11 anos. Os docentes reclamam muito da falta
de comprometimento dos alunos, de suas saídas constantes para irem ao banheiro e
depois ficarem andando pelos pátios e outras dependências escolares sem quererem
permanecer nas salas de aula. Quando estão em sala a reclamação é de que estejam
ouvindo música com fones de ouvido, sem prestarem atenção aos conteúdos, sem
participarem das atividades propostas. Reclamam ainda da falta de obediência às
instruções dadas pelos professores, às constantes faltas, o não cumprimento de
prazos, às respostas grosseiras aos serem questionados por suas atitudes, à rebeldia,
281
os protestos isso tudo sem contar as pichações e depredação dos prédios escolares,
dos materiais, das carteiras e todo o mobiliário existente nas escolas.
Parece um tanto simplista achar que toda a rebeldia dos alunos se resume
à falta de limites imposta pelos pais, falta de bons modos não colocados pelas
famílias, ou simples birras de pré-adolescentes como os professores nessa escola
costumam avaliar. Segundo palavras de Larrosa et al: “Atualmente estamos assistindo
a certa dissolução da forma tradicional da escola. A escola, diz-se, já não é o único lugar
da educação, e talvez não seja o mais adequado. A escola, diz-se se transformou em um
lugar anacrônico, obsoleto, desagradável e ineficaz...” (LARROSA et al, 2021, p. 249)
De fato, é muito difícil especialmente para jovens com menos de 15 anos,
isto é, nascidos de 2010 em diante, adequarem-se a um estilo de escola que ainda
se utiliza do método de “Educação Bancária” citado por Freire: “Ensinar não é
transferir conhecimento” (FREIRE, 1996, p. 27). É preciso entender que nossos
alunos já nasceram em plena revolução digital. O que já não fazia muito sentido
na década de 1970, copiar exercícios repetitivos da lousa, resolvê-los e entregar
ao professor porque “valem nota”, se mostram ainda mais irrelevantes em pleno
século XXI. Essa estratégia não significa ensinar, nem provocar uma construção do
conhecimento significativa para o educando e muito menos oferece um ensino que
seja capaz de suprir as atuais demandas de nossa sociedade. Copiar conteúdos da
lousa se fazem absolutamente desnecessários, principalmente na atual conjuntura
onde as escolas contam com PNLD (programa nacional do livro didático) onde
os alunos têm livros para serem manuseados, estudados, explorados e devidamente
utilizados em sala sob um planejamento cuidadoso do professor. Além dos livros,
os alunos vêm para a escola munidos de seus celulares, inclusive isso é parte da
reclamação dos professores a de que os alunos “só ficam no celular e não prestam
atenção às explicações dos professores”. Ora, esses alunos encontram-se entediados
pois não veem sentido no que a escolha lhes vem oferecendo. Segundo a professora
Dra. Maria Learice Alencar do Instituto Atos – Centro Educacional Leonardo
Da Vinci, em sua pesquisa “A Relevância da Felicidade na Dinâmica Escolar’’,
realizada em escola municipal de Brasília – DF, os alunos foram entrevistados e
relataram não ver sentido nas aulas oferecidas. É relevante a observação feita pelos
alunos, além disso sua percepção do que vem sendo oferecido de forma geral nas
nossas escolas é legítima. É muito comum professores que ensinam nas escolas
públicas de ensino Fundamental I e II, na região onde esse artigo vem sendo
escrito, reclamarem da falta de folhas de sulfite e toner para que possam realizar
cópias de atividades para fornecerem aos alunos. Mas, se os alunos têm livros
282
didáticos, livros paradidáticos e acesso a conexão através de seus celulares, qual o
sentido de ficarem realizando tarefas, retiradas de websites da internet, totalmente
descontextualizados? De fato, os exercícios repetitivos gerados em folhas de sulfite,
além de anti ecológicos tornaram-se enfadonhos e obsoletos aos alunos. É muito
corriqueiro observar-se nas escolas, nas salas de aula após os alunos saírem grande
quantidade de atividades impressas amassadas, rasgadas, rabiscadas, perdidas,
deixadas nas carteiras e no chão. Esses alunos estão gritando, estão mostrando
que essa escola que está sendo oferecida não condiz com suas reais necessidades,
expectativas e com a modernidade oferecida fora dos muros escolares.
Nas palavras de Moran: “As pesquisas atuais da neurociência comprovam
que o processo de aprendizagem é único e diferente para cada ser humano, e que
cada pessoa aprende o que é mais relevante e o que faz sentido para si, o que gera
conexões cognitivas e emocionais” (MORAN, 2018, p. 2) Tampouco funcionará
aplicar sanções e punições aos alunos como sugerem determinados professores.
Alguns insistem em mandar os casos de indisciplina, muitas vezes de situações
banais como: “estou mandando estes alunos para a direção pois um jogou pó de giz no
outro”, para a gestão escolar e exigem que os pais sejam convocados, que sejam
aplicados períodos de suspensão e até que o conselho tutelar seja acionado. Fre-
quentemente tentamos contactar os pais. Mas o que acontece na grande maioria
das vezes é que seus celulares se encontram desligados, fora de serviço e até mesmo
não atendem por estarem em horário de trabalho. Os pais quando são encontrados
e comparecem à escola respondendo à convocação da gestão muitas vezes não dão
conta de disciplinar seus filhos. Não dão conta, pois muitos também são oriundos
desse mesmo sistema educacional falido. Além disso, despertar a curiosidade, a
criatividade, a motivação dos alunos, não é tarefa da família. É incumbência da
escola. Adolescentes hoje dificilmente se contentam em vir à aula e realizar o
mesmo tipo de tarefas descontextualizadas que já eram oferecidas à seus pais,
décadas atrás. Muitas delas são desmotivadoras, repetitivas e sem desafios reais,
apenas por medo de serem reprovados ou serem avaliados com notas baixas, não
serem feitas por todos os alunos. Nem é esse o objetivo da escola. O aluno não
deve ter medo da escola, nem dos professores e nem da gestão. O aluno respei-
tará a instituição escolar à medida que perceber relevância nas aulas, preparo em
seus professores e gestores, aulas dinâmicas, bem estruturadas, bem planejadas,
multidisciplinares, significativas que estejam em conexão com o mundo moderno,
que conversem com os problemas atuais enfrentados pela sociedade em que vive-
mos. Ainda nas palavras de Moran:
283
O que a educação formal hoje precisa levar em conta é que a apren-
dizagem individual, grupal e tutorial avança no cotidiano fora das
escolas, pelas muitas ofertas informais na rede. Temos inúmeras opor-
tunidades de aprender sozinhos, em grupo e por meio de coaching ou
orientação de diversos tutores. Há inúmeros cursos massivos abertos,
grupos de colaboração acessíveis e pessoas mais experientes que podem
ajudar-nos (de forma gratuita ou remunerada) fora das instituições
formais. Assim, se a educação formal quiser continuar sendo rele-
vante, precisa incorporar todas essas possibilidades do cotidiano aos
seus projetos pedagógicos. Incorporar os caminhos individuais de
aprender, os colaborativos e os de orientação. (MORAN, 2018, p. 9)

Não é apenas o desafio de concorrer com as tecnologias disponíveis e com


sites especializados em educação. O governo Federal acaba de aprovar com 264
votos favoráveis projeto de lei que regulamenta o Ensino domiciliar. É óbvio que
existirá uma série de exigências para que se possa usufruir do citado sistema onde
a criança não necessita frequentar a escola diariamente. No entanto, com o rápido
avanço dos recursos tecnológicos somados à falta de qualidade atual do sistema
educacional e a baixa qualidade na formação do profissional de educação, é de se
esperar que essa realidade chegue muito mais cedo do que imaginado às nossas
escolas. Considerar alunos como inimigos que atrapalham a aula, o trabalho do
professor e o aprendizado dos demais é um tiro no pé. Não raro, recebe-se suges-
tões de professores como: “Esse aluno problemático deve ser expulso da escola”,
“Devemos dar os conteúdos e deixar esses alunos estudando em casa”, “Devemos
suspender esse aluno”, “Queremos a transferência compulsória desse aluno”. Tais
educadores não percebem que estão pondo armadilhas para si mesmos. Os atuais
governantes elegeram-se prometendo acabar com a estabilidade do funcionário
público, privatizar a educação, proporcionar ensino domiciliar entre outras medidas
as quais põe em risco o trabalho desses professores e a qualidade da educação, já
tão desfavorecida em nosso país. O grande objetivo das gestões atuais é diminuir a
demanda de profissionais da educação tendo como pretexto a obsolência do sistema
de ensino, especialmente o público. Com isso, objetivam livrar-se da necessidade
de continuar com profissionais que se recusam a construir planos de ensino mais
relevantes e capazes de atrair a participação e o aprendizado dos alunos. Como
muito bem observado por Cortella, 2008, citado em Rocha, 2018, “há causas
intraescolares do fracasso sobre as quais devemos nos debruçar se quisermos real-
mente reverter o quadro de nossa realidade social injusta.” (ROCHA, 2018, p. 156)

284
É importante frisar que não é tarefa exclusiva dos professores modernizar
o sistema de ensino. Porém esses, sem dúvida, serão os mais prejudicados com
a privatização do Ensino Público e a implementação de meios alternativos de
escolarização como o Ensino domiciliar. Nas palavras de Moran: “Todas as orga-
nizações estão revendo seus métodos tradicionais de ensinar e aprender. Algumas
estão ainda muito ancoradas em métodos tradicionais, centrados na transmissão de
informações pelo professor.” (MORAN, 2018, p. 19). Mas esse será exatamente o
que levará boa parte dos atuais profissionais da educação ao caminho do desem-
prego e da extinção de seu trabalho público estável. Não podemos esperar apenas
dos governantes que um total reforma na educação pública brasileira aconteça. É
obrigação deles, sem dúvida, pagamos impostos. Mas estes só se moverão em dire-
ção a implantação de políticas de modernização e organização do ensino público
à medida que forem empurrados, pressionados e exigidos pela própria população.
É exatamente a mobilização do povo que os fará trabalhar de forma eficaz. Não
podemos esquecer do que nos ensina as sábias palavras de Freire:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-faze-
res se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo
buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei,
porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer
e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.
(FREIRE, 1996, p. 16)

Manter-se atualizados e relevantes é tarefa indispensável ao professor e


premissa de qualquer sistema sério de ensino.
Por outro lado, não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que a injeção
de recursos financeiros na educação por si só será capaz de resolver ou mesmo
atenuar os problemas encontrados. Como nos mostra Bacich. “Na época em que
os computadores foram inseridos na escola, muitos professores que aderiram a
novidade continuaram a ministrar o mesmo tipo de aula, mudando apenas o recurso
(computador no lugar de quadro e giz” (BACICH, 2018, p. 130)
Além disso, é importante salientar que o treinamento dado ao professor, por
si só, não garante aulas mais significativas aos alunos nem mudanças significativas
no quadro atual da educação. Bacinch e Moran argumentam que:
A reflexão pede uma mudança de postura, em que gradativamente o
educador se posicione como um mediador, um parceiro na construção
de conhecimentos que não está no centro do processo. Quem está no
285
centro, nessa concepção, são o aluno e as relações que ele estabelece
com o educador, com os pares e principalmente, com o objeto do
conhecimento. (BACICH e MORAN, 2018, p. XVI)

Todos sabemos das dificuldades encontradas pelos professores, especialmente


em escolas públicas cotidianamente. Salas cheias, falta de recursos, salários baixos
e desmotivadores, interesses de partidos políticos em tornar as escolas seus currais
eleitorais. Porém, é importante lembrar que condições ruins de trabalho não isentam
os professores de buscarem sempre a formação continuada e principalmente refletir
constantemente sobre sua prática profissional. Afinal, sabemos que a sociedade
só mudará e se tornará mais consciente de seus deveres e direitos à medida em
que forem ensinados nas escolas a exigirem condições mais justas de viverem na
sociedade. Não podemos nos contentar apenas em cobrar dos políticos melhores
salários e condições de trabalho. Sem dúvida que isto é necessário e que as lutas
e vigílias devem ser constantes. Porém, concomitantemente com nosso trabalho
de cobrança aos gestores públicos não podemos esquecer de cuidarmos para que
continuemos profissionais comprometidos com a modernização do ensino, que
nossas aulas não deixem de ser relevantes, contextualizadas, dinâmicas. Que nunca
deixemos de estar atualizados com as mais recentes pesquisas na área da educação e
com as novas metodologias de ensino. Afinal, como questionado por Pacheco, 2017:
Que rigor e que exigência existem num modelo educacional no qual
alunos do século XXI são “ensinados” por professores do século XX, que
recorrem a práticas oriundas do século XIX? Rigor e exigência existirão
em escolas onde se dê a todos condições de acesso, e a cada um, condi-
ções de sucesso”. (PACHECO, 2017) Entrevista disponível em https://
campusvirtual.fiocruz.br/portal/?q=node/28497 Acesso em: 29 jun. 2022.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável que hoje perdemos muito do glamour que outros professores


tiveram em décadas passadas, assim como relatado por profissionais mais antigos,
por nossos pais e professores. O que chega até nós é que os professores brasileiros já
tiveram seus tempos de glória e altos salários. No entanto, fizemos nossas escolhas,
já sabíamos que atualmente a profissão do magistério já não goza mais do poder
aquisitivo e do respeito da sociedade desfrutado outrora. Porém fizemos nossas
opções, temos a responsabilidade de oferecermos o melhor de nós mesmos aos
alunos que nos são entregues para que possamos escolarizá-los. Não podemos salvar
o mundo, nem consertar todos os problemas enfrentados pela sociedade brasileira.
286
Mas podemos nos equipar com leituras mais atualizadas e relevantes ao nosso
trabalho pedagógico. Podemos exercer nossa reflexão crítica sobre nossa prática
educacional. Lembrando que investir na própria formação e atualização profis-
sional não é uma opção, é requisito fundamental. A BNC-Formação Continuada
na Prática traz orientações a respeito dos referenciais profissionais docentes para
que as redes aprimorem os seus processos de formação continuada. Foi instituída
pela resolução n. 1 do Conselho Nacional de Educação (CNE), em 27 de outubro
de 2020. O documento estabelece As Competências Gerais Docentes, entre elas,
especialmente a de número 6, refere-se à: “valorizar a formação permanente para
o exercício profissional, buscar atualização na sua área e afins, apropriar-se de novos
conhecimentos e experiências que lhe possibilitem aperfeiçoamento profissional e eficácia e
fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania, ao seu projeto de vida, com liberdade,
autonomia, consciência crítica e responsabilidade.” (BNC Formação continuada, dis-
ponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-cne/cp-n-1-de-27-de-
outubro-de-2020-285609724
Há atualmente cursos de alta qualidade oferecidos gratuitamente, de forma online,
os quais podemos desfrutar sem a necessidade de locomoção ou mesmo de investimento
em dinheiro. Esses cursos possuem elevado valor formativo e podem nos ajudar muito
na tarefa de mantermo-nos atualizados sobre os atuais debates acerca da educação e
principalmente de promovermos auto reflexão sobre nossa prática. A Universidade
Federal do Ceará, por exemplo, oferece pós-graduação à distância de alta qualidade,
com certificado e gratuitamente. As aulas encontram-se disponíveis em seu ambiente
virtual e são sempre ministradas por profissionais de comprovado nível de formação de
qualidade. Pesquisadores, professores, doutorandos das melhores universidades do país
e até do exterior oferecem aulas gratuitamente de alto valor educativo todas às sextas
e sábados disponíveis em todas as redes sociais da universidade em seu Laboratório
Digital Educacional (LDE) da Universidade Federal do Ceará (UFC) através do link
https://www.youtube.com/ldeufc. Todos sabemos que hoje, a oferta de informação
e formação de bom nível está disponível na web e que é possível aproveitar de forma
gratuita uma vastidão de recursos. Outra opção é o ambiente virtual de aprendizagem
oferecido pelo governo federal em https://avamec.mec.gov.br/#/, onde é possível fazer
cursos de alta qualidade e obter certificado gratuitamente através das parcerias que o
MEC tem com universidades de ponta brasileiras como a Universidade Federal do
Goiás e a Universidade Federal de Alagoas e de Pernambuco. Afinal, Freire que é
uma das nossas maiores inspirações na busca por um ensino de qualidade, relevante e
libertador para a sociedade, foi bem claro conosco em suas palavras:
287
Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. A prática docente crítica,
implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético,
entre o fazer e o pensar sobre o fazer O saber que a prática docente
espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente
produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta
a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica
do sujeito. (FREIRE, 1996, p. 22)

Sendo assim, é preciso sermos conscientes e realistas. A sociedade, nem o


emprego do magistério público nos proporcionará altos salários, reconhecimento,
valor e respeito se não formos capazes de mostrar que nossas aulas e nossa escola
são indiscutivelmente relevantes e transformadoras.

REFERÊNCIAS
AECwebTexto: Juliana Nakamura “PASSEIOS PÚBLICOS DE CONCRETO EXIGEM PROJETO
QUE CONSIDERE A ACESSIBILIDADE DOS USUÁRIOS E BOAS PRÁTICAS DE EXECUÇÃO”,
26/05/2021. Disponível em <https://abcp.org.br/calcadas-de-concreto-recomendacoes-para-projeto-e-exe-
cucao/#:~:text=Al%C3%A9m%20da%20ABNT%20NBR%209050,2015%20%E2%80%94%20Lei%20
Brasileira%20de%20Inclus%C3%A3o.> Acesso em: 06 jul. 2022.
BACICH L.; MORAN J. Metodologias Ativas Para Uma Educação Inovadora: Uma Abordagem Teórico
Prática, Porto Alegre, Penso, 2018.
BNC - Formação Continuada. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO Publicado em: 29/10/2020 | Edição: 208
| Seção: 1 | Página: 103 Órgão: Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação RESOLUÇÃO
CNE/CP Nº 1, DE 27 DE OUTUBRO DE 2020. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/
resolucao-cne/cp-n-1-de-27-de-outubro-de-2020-285609724>. Acesso em: 06 jul. 2022.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia, Saberes necessários à Prática Educativa, São Paulo, Paz e Terra 1996.
Escolas brasileiras ainda formam analfabetos funcionais, Jornal da Usp, Tainá Lourenço, 13/11/2020. Dis-
ponível em <https://jornal.usp.br/atualidades/escolas-brasileiras-ainda-formam-analfabetos-funcionais/>.
Acesso em: 06 jul. 2022.
Estudo do Banco Mundial mostra que aumento da eficiência do gasto público poderia melhorar o desempenho
nacional em 40% no ensino fundamental e 18% no médio, Porvir Inovações em educação, Marina Lopes,
12/03/2018. Disponível em <https://porvir.org/falta-mais-dinheiro-na-educacao/>. Acesso em: 22 jun. 2022.
Em vitória do governo Bolsonaro, ensino domiciliar é aprovado na Câmara, UOL notícias, Gabriela Vinhal
e Ana Bimbati 18/05/2022. Disponível em <https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/05/18/em-vitoria-
-do-governo-bolsonaro-ensino-domiciliar-e-aprovado-na-camara.htm>. Acesso em: 30 jun. 2022.
LARROSA J. ET AL Desenhar a Escola: Um Exercício Coletivo De Pensamento IN LARROSA J Elogio
da Escola, Belo Horizonte, Autêntica, 2021 p. 249 a 270.
ROCHA J. Design Thinking na formação de professores: Novos Olhares Para Os Desafios Na Educação, in
BACICH L.; MORAN J. Metodologias Ativas Para Uma Educação Inovadora: Uma Abordagem Teórico
Prática, Porto Alegre, Penso, 2018 p.153 a 174.

288
VEMOS UM MUSEU DE NOVIDADES: BREVES
REFLEXÕES SOBRE REFORMA DO ENSINO MÉDIO

Ana Carla de Oliveira Pinheiro91


Alexsandro Martins de Christo92

INTRODUÇÃO

O título deste texto alude à visão crítica dos seus autores a respeito da lei
nº 13.415/17, que normatiza a reforma do Ensino Médio brasileiro. As premissas
dessa reforma são as de incentivar e desenvolver o protagonismo juvenil por meio,
basicamente, da possibilidade de os alunos escolherem as disciplinas às quais
gostariam de estudar de acordo com a sua vocação e interesse, ao se decidirem
pelo que se denominou de itinerários formativos. Se supõe que, por essa via, os
estudantes poderiam se interessar mais pela escola e por sua formação.
Como um ensaio, as palavras aqui expressas se mostram como um convite à reflexão
coletiva, bem como objetivam contribuir com a agenda de pesquisas sobre a educação,
a fim de que essas reformas cumpram o objetivo a que se propõem, a saber: fazer com
que os alunos aprendam. É inquestionável a necessidade de se modificar aspectos rela-
cionados ao sistema educacional brasileiro, tais como: a estrutura física das escolas, suas
metodologias e currículos,haja vista a obsolência de algumas práticas e a ineficácia de
muitas ações. No entanto, compete avaliar as mudanças propostas e as estratégias adota-
das para suaimplementação. Portanto, foi com esse propósito que o texto foi produzido.
Para tal empreendimento, ele estará estruturado em três pontos fundamen-
tais. A primeira parte apresenta ao leitor, os elementos conceituais e discursivos
que justificam a reforma do Ensino Médio. Nesse âmbito não se pode deixar de
falar sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é o documento que
estabelece as competências e habilidades essenciais que os estudantes de todo o país
devem desenvolver ao longo de toda a Educação Básica. No segundo momento,
discutimos os aspectos epistemológicos das novas unidades curriculares indicadas
na reforma, sobretudo o Projeto de Vida. E, por fim, focalizamos os desafios à
atuação docente, por meio de relatos e idiossincrasias de nós professores, postos
91
Doutora em Sociologia Política (UENF). Professora de Sociologia (SEEDUC-RJ).
CV: http://lattes.cnpq.br/0475924210728731
92
Especialização em História Política: Poder e Cultura (UFES). Professor de Sociologia (SEDU-ES).
CV: http://lattes.cnpq.br/8699400722216149
289
por essa reforma. Assim, pensando suas possibilidades, desafios e dificuldades
problematizamos o horizonte pragmático desse novo Ensino Médio.

A REFORMA DO ENSINO MÉDIO POR DENTRO:


ENTENDENDO A PROPOSTA

O Novo Ensino Médio se apresenta como um conjunto de reformas desse


nível da educação básica, decorrente de uma alteração na Lei de Diretrizes e
Bases (LDBEN, nº 9394/96). Obrigatoriamente, essas reformas passaram a ser
implementadas em todas as escolas do Brasil, públicas e privadas, a partir de 2022.
Primeiramente apresentada como medida provisória no governo de Michel Temer,
em 2016 – ano em que ele assumiu a presidência após o impeachment da presi-
denta Dilma Rousseff – esse conjunto de reformas foi definitivamente aprovado
e normalizado como uma lei federal sob o nº 13.415, em 2017.
Importa salientar que sua aprovação se deu em meio a um austero plano de ajuste
fiscal que limitou por vinte anos as rubricas destinadas aos gastos públicos. Esse ponto
é crucial porque, considerando as defasagens econômicas e financeiras em muitos
setores da educação pública no país, somos levados a crer que o contingenciamento
de recursos trará relevantes dificuldades práticas à implementação da proposta. Nesse
ponto, passamos à descrição a engenharia institucional que configura a referida
reforma em cotejo com as análises sobre alguns desdobramentos empíricos
Após os debates públicos para a estruturação da proposta, o MEC disponibi-
lizou o acesso a ela por meio de um sítio na internet, bem como um guia de orien-
tação sobre a implementação do Novo Ensino Médio93. Essas foram as principais
fontes donde foram retiradas as informações que sustentam esta argumentação.
No referido Guia de Implementação justifica-se que a proposta da reforma:
considera três grandes frentes: o desenvolvimento do protagonismo dos
estudantes e de seu projeto de vida, por meio da escolha orientada do
que querem estudar; a valorização da aprendizagem, com a ampliação
da carga horária de estudos; e a garantia de direitos de aprendizagem
comuns a todos os jovens, com a definição do que é essencial nos currículos
a partir da BNCC (Guia de Implementação do Novo Ensino Médio).

Discursivamente, a proposta é extremamente relevante e consoante com a


realidade educacional posta. Diante da influência das novas tecnologias da comu-

Sobre o tema ver: https://www.gov.br/mec/pt-br/novo-ensino-medio e também disponível em: https://anec.org.br/


93

wp-content/uploads/2021/04/Guia-de-implantacao-do-Novo-Ensino-Medio.pdf. Acesso em: 10 maio 22.


290
nicação e informação, as TICs, temos jovens cada vez mais informados e ávidos
por cultura, lazer, consumo e entretenimento. Tendo em vista que ssa fase da vida é
repleta de expectativas e indefinições, à escola está reservado um papel importante
no que diz respeito a contribuir nesse processo, considerando que, nesse país de
enormes desigualdades socioeconômicas, muitas dessas demandas são resolvidas
ou abrandadas no interior dessa instituição social. Quanto a isso não objetamos.
Mas quem está no chão da escola não pode deixar de expressar a dúvida e, até a
desconfiança, de como essa proposta sairá da teoria e operará na prática.
O referido Guia explicita que o modelo educacional atual não tem respondido
de forma satisfatória aos desafios interpostos à juventude, deficiência que se reflete nos
altos índices de repetência e evasão no Ensino Médio. Sublinhando haver uma desco-
nexão entre os anseios da juventude e o que a escola oferece, o documento arremata
que, por isso, não dá para responsabilizar apenas sujeitos externos à escola pelos pífios
resultados apresentados. Ele reitera que a origem da desmotivação e do desinteresse
dos jovens se encontra, também, no descompasso entre a formação escolar oferecida,
os interesses dos estudantes e as exigências do mundo contemporâneo, o que indica a
necessidade de mudanças na estrutura e organização dessa etapa da educação básica.
Também concordamos em parte com essas afirmações. É premente que a escola
se reestruture para responder às demandas postas pelos alunos, tendo em vista que
ela ainda opera num ritmo analógico, ao passo que os estudantes se encontram no
modo digital. Intencionalmente não entraremos no debate sobre a enorme exclusão
digital e tecnológica presente na sociedade brasileira, e que foi comprovada nesse
período da pandemia, pois esse é um debate específico e sua amplitude não cabe no
escopo desse texto, contudo, salientamos que não ignoramos a importância do tema.
Entendemos que a proposta deveria ser mais honesta no sentido de confessar
que tais premissas estão mais relacionadas com uma agenda econômica neoliberal,
sendo de fato secundária a sua preocupação com a formação de nossos estudantes.
Isso porque, os ajustes foram concretizados a partir das exigências vindas por parte
de organismos financeiros internacionais, como comprova o documento do Banco
Mundial para a educação, cujos três pilares de estratégia são: Investir antecipadamente.
Investir de forma inteligente. Investir para todos94. Portanto, é nessa conjuntura que
a política se mobiliza para compor a agenda de reformas, arregimentando todo
um aparato político, publicitário e midiático para sua aceitação.

94
Vide o resumo executivo do documento “Estratégia 2020 para a educação do Grupo Banco Mundial”. Disponível em:
https://documents1.worldbank.org/curated/en/461751468336853263/pdf/644870WP00PORT00Box0361538B0PU-
BLIC0.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
291
Afirmamos isso porque não são recentes os movimentos de lutas e reivindicações
dos profissionais da educação, no sentido de propor melhorias ao sistema de ensino,
demandando mais políticas, recursos e investimentos para o setor. Ações que, politicamente,
sempre foram vistas como gastos, e não como uma perspectiva estratégica de investimento
de longo prazo como devem ser, e para as quais a gestão pública faz ouvidos moucos.
Para os críticos, essa reforma do ensino médio traz poucas novidades além
de negligenciar questões já pontuadas em estudos anteriores. Assim, como aponta
Silva (2018) “sob a aparência de novo, a atual reforma do Ensino Médio acoberta
velhos discursos e velhos propósitos” (p. 1). A reforma curricular proposta prevê que,
considerando as competências gerais da BNCC e da LDBEN, as redes deverão defi-
nir estratégias para trabalhar o desenvolvimento do projeto de vida dos estudantes,
como orientação vocacional e profissional e preparação para o mundo do trabalho.
Nesse sentido, Silva verifica o retorno de perspectivas já debatidas e criticadas, pois:
A definição de competências como eixo de prescrições curriculares foi favo-
recida, no contexto da reforma curricular da década de 1990, em virtude de
sua proximidade com a ideia de competição e de competitividade (…) Esse
discurso, agora revigorado, é retomado em meio às mesmas justificativas, de
que é necessário adequar a escola a supostas e generalizáveis mudanças do
“mundo do trabalho”, associadas de modo mecânico e imediato a inovações
de caráter tecnológico e organizacional (SILVA, 2018, p. 11)

Quanto às noções de competência e habilidades, constantes na BNCC,


leia-se aprender a aprender, e aprender a fazer, respectivamente – mais uma vez,
discursivamente adequadas, porém pragmaticamente problemáticas – entende-
mos que suas proposições aparecem de modo generalista e mecânico, tendo em
vista que as mudanças estruturais, mais prementes que tais propostas exigem, não
foram ainda implantadas. As escolas públicas não contam sequer com conexão de
internet de qualidade para a realização dos trabalhos, tampouco oferecem suporte
tecnológico em quantidade e qualidade para que a proposta se efetive.
De caráter pragmático, na “nova” organização curricular trazida pela reforma e
alinhada às diretrizes preconizadas pela BNCC, as disciplinas foram transformadas
em áreas do conhecimento, a saber: Matemática e suas tecnologias, Linguagens
e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias e Ciências Humanas
e Sociais aplicadas, tendo como objetivo integrar as disciplinas, fortalecendo as
relações entre elas e melhorando seu entendimento e aplicação na vida real”.
Não discordamos da importância da integração, tampouco da eficácia dessa
metodologia, pois estratégias semelhantes são adotadas em projetos sociais de caráter
292
socioeducativo que, em razão de sua dinâmica multidisciplinar, surtem efeitos muito signi-
ficativos. Mas, diferentemente dos projetos sociais, algumas questões de caráter estruturais
e organizonais não estão presentes no espaço escolar, e foram elementos importantes para
o sucesso da metodologia de projetos. Nos projetos rompe-se efetivamente com caráter
disciplinar, sendo as suas ações moldadas desde a sua concepção como não disciplinar, o
que não ocorre nas escolas. Pois, embora discursivamente se pretenda romper com essa
matriz de referência, “as componentes curriculares” ainda são elaboradas, distribuídas e
desenvolvidas no âmbito das escolas como disciplinas. Além disso, nos projetos sociais,
a contratação de seus operadores (professores, educadores sociais, instrutores etc.), se dá
a partir de um perfil definido, tanto do operador da política, quanto do público-alvo. No
caso da reforma houve a implementação das mudanças sem uma preparação prévia dos
profissionais que nela atuarão, sobretudo na disciplina de Projeto de Vida, sobre a qual
nos deteremos em um tópico específico. Por fim, mas não menos importante, o aporte
de recursos não era tão contigenciado além de inúmeras parcerias feitas com outras ins-
tituições, visando uma educação integral. A prática de esportes, por exemplo, podia ser
realizada em espaços distintos dos bairros, em cooperação com outros equipamentos da
comunidade, o deslocamento para atividades extracurriculares era mais facilitado dado
o número reduzido do público assistido etc.
O Guia insiste que a reforma apoia-se na possibilidade de que o estudante poderá
escolher, dentre diferentes percursos, a formação que mais se ajusta às suas aspirações e
aptidões e ao seu projeto de vida particular, a partir da garantia de aprendizagens essen-
ciais e comuns a todos os estudantes, referenciadas na BNCC, e da oferta de itinerários
formativos organizados e estruturados pedagogicamente. De acordo com o documento,
essas são as pré-condições a serem atendidas para que o jovem desenvolva sua autonomia,
acompanhada do senso de responsabilidade que as escolhas sobre o seu futuro exigem.
Na prática, uma utopia. As redes ainda encontram limitações para ofertar a
maior quantidade de itinerários possível para atender aos anseios dos alunos. Via
de regra, a oportunidade de escolha se dá num cenário muito limitado de possibi-
lidades e que, não necessariamente, estão amparadas nas demandas e desejos dos
jovens. O fato de as disciplinas não serem medidas através das notas faz com que a
participação e engajamento dos estudantes sejam fluidos. Fazer com que assumam
o conhecimento e a educação como valores em si passa por uma mudança cultural a
ser incutida nesses sujeitos em desenvolvimento – nos termos do ECA –,que não se
processa do dia para a noite. Adicionalmente, os profissionais que medeiam o acesso
às unidades curriculares são professores que precisam fechar sua carga horária de
trabalho na escola, o que não contribui para a alteração desse quadro problemático.
293
A indicação constante no Guia de que as redes de ensino desenvolvam ati-
vidades para trabalhar a capacidade dos estudantes de definirem objetivos para sua
vida pessoal, acadêmica, profissional e cidadã, de se organizarem para alcançar suas
metas, de exercitarem determinação, perseverança e autoconfiança para realizar
seus projetos presentes e futuros são pontos de grande relevância, mas parte de
uma perspectiva meramente subjetivista, desconsiderando que para grande parte
dos estudantes, diretamente afetada pela reforma por estarem nas redes públicas
de ensino, a questão fundamental são as restrições materiais da proposta.
Empiricamente, constatamos alunos afirmarem desistir do ensino médio inte-
gral porque o que estavam aprendendo não era interessante e tampouco os formavam
como técnicos, ou seja, a educação integral “não servia para nada”. A única percepção
que têm é a de que “saem mais tarde da escola”95. Nesse aspecto, o argumento de que o
Novo Ensino Médio deve ter um núcleo profissional – porque no modelo tradicional
os alunos saiam da escola sem formação ou experiência, como demanda o “mundo
do trabalho” e de que o ensino profissionalizante vem no sentido de que a formação
ofertada pela escola tenha aderência na realidade – tem se mostrado falacioso96.
Além disso, somos levados a questionar se os novos itinerários formativos não
aprofundarão as desigualdades educacionais, pois as redes privadas há algum tempo já
vinham se preparando para a sua oferta, inclusive com a preparação e contratação de docentes
para tal demanda, sendo esses oferecidos no contraturno e sendo mantido o núcleo básico
de conhecimentos propedêuticos. Por sua vez, na realidade das escolas públicas constatamos
a carência de professores de muitas disciplinas, condicionando os alunos a ficar uma parte
considerável do tempo com aulas vagas em razão da extensão da carga horária diária. E aqui
temos mais um problema de caráter estrutural, pois com a defasagem salarial dos docentes
que se submetem a contratações precárias por meio de extensão da carga horária97, para
aumentar seus rendimentos, consequentemente, se transforma numa sobrecarga laboral,
o que afeta a qualidade das aulas e do processo ensino-aprendizagem, por consequência.
O mês de Março de 2022 foi o prazo limite para que todas as redes e uni-
dades escolares implementassem o Novo Ensino Médio, o que prevês o aumento
da carga horária de todo Ensino Médio de 2400h para 3000h, até 2024. Cabe às
redes de ensino a responsabilidade pela criação das unidades curriculares assim

95
Falas obtidas dos alunos nas escolas em que trabalhamos.
96
Neste escopo, cumpre registrar o enfraquecimento da rede profissional e tecnológica fortalecida muito no período de
2005 a 2010 com a política de expansão e interiorização dos Institutos Federais. Além disso, os convênios propostos pela
reforma com o sistema S receberam as mesmas críticas já citadas.
97
Como, por exemplo, a Gratificação por Lotação Prioritária (GLP) no Rio de Janeiro; Carga Horária Especial (CHE)
no Espírito Santo.
294
como decidirem se elas serão pré-definidas em seus currículos ou decididas no
âmbito das próprias escolas. Então, com algumas redes implementando mais
cedo e outras mais tarde, a conjuntura atual é de que todas as unidades escolares
brasileiras estão no momento de implementação dessas novas reformas.
Assim, de modo preliminar, e cujo diálogo com outros trabalhos e reflexões
fazemos questão de estabelecer, exporemos alguns dos desafios que já se interpuseram
às escolas, aos professores, e, lamentavelmente, também aos estudantes nesse processo.

PROJETO DE VIDA: A QUE SE PROPÕE ESSA UNIDADE


CURRICULAR?

Dentre as “inovações” desse Novo Ensino Médio destacamos a constituição


dos itinerários formativos e a ênfase no Projeto de Vida98. Como os itinerários são
de responsabilidade das redes de ensino, compondo um arranjo bastante hetero-
gêneo, não nos deteremos em sua análise no espaço desse texto, dedicando-nos a
entender a dinâmica do componente curricular Projeto de Vida.
De acordo com as diretrizes expostas no Guia, as redes deverão destinar uma
carga horária específica ao Projeto de Vida, que deve ser ofertado logo no início da
etapa para que os estudantes tenham a oportunidade de exercer seu protagonismo desde
o começo do Ensino Médio, momento em que ocorre o maior número de evasões.
Reflitamos: será mesmo que a causa primordial da evasão escolar é a falta de
protagonismo do estudante? Desconfiamos seriamente que não. Pensamos que a
desistência se dá mais por questões materiais e estruturais do que, necessariamente,
pela falta de um projeto de vida por parte dos alunos. Dito isso, vamos entender
como se constitui essa componente curricular no escopo deste Novo Ensino Médio.
O Projeto de Vida é destacado pela BNCC como um eixo estruturante do
Ensino Médio por se tratar de um componente que acompanha a construção da
identidade, orienta os processos de tomada de decisão ao longo da vida e dá sentido
à inserção dos jovens no mundo (DANZA; MORGADO DA SILVA, 2020).
De acordo com esses autores, ele chega às escolas num contexto em que os estu-
dantes começam a requerer um ensino que atenda às suas reais demandas, ou seja, que
faça sentido. Afirmam ainda que, segundo alguns estudos, para além da atribuição de
sentido à escola, a inclusão desse tema no ensino apresenta outros benefícios, tais como:

98
Esse é mais um ponto em que “vemos um museu de novidades”, pois reconhecemos no projeto de vida as mesmas bases
da disciplina que na ditadura chamavam de OSPB, cujos conteúdos estavam de acordo com o regime da época. Hoje,
chama-se projeto de vida e está de acordo com o mercado. Nos dois casos os percebemos alienantes.
295
garantir a coesão psicológica aos estudantes nessa fase de intensa cons-
trução da identidade, gerar bem-estar e sensação de prosperidade,
contribuir para a transição entre a juventude e a fase adulta, contribuir
para a inserção social e laboral, favorecer a construção de projetos de vida
voltados para o compromisso social e o bem comum, além de desem-
penhar um importante papel na formação da identidade moral, ou seja,
de como os jovens se reconhecem a partir dos valores morais que regem
suas condutas (DANZA; MORGADO DA SILVA, 2020, p. 214).

Nesse aspecto, uma crítica fundamental a ser feita se respalda no fato de que a função
da escola é socializar os conhecimentos científicos. E no trecho acima verificamos a falta
de cientificidade na abordagem já que não há uma diretriz específica que defina os con-
teúdos epistemológicos e tampouco o profissional da área a trabalhar com a componente.
Ainda é pelos autores supracitados que verificamos que,
Assim como a Psicologia, outros campos do conhecimento contribuem
para que o tema dos projetos de vida seja discutido, compreendido e
desenvolvido nas escolas. Um suporte importante vem da Sociologia.
Essa ciência entende o projeto de vida como uma conduta emancipatória
que visa à adaptação ou à superação do campo de possibilidades dos
jovens, que é conferido pelo lugar social, histórico e econômico que
ocupam na sociedade. Essa concepção nos ajuda a compreender que o
projeto de vida tem um papel importante na superação das desigualda-
des, pois possibilita a mobilidade social mediante o entendimento dos
privilégios, das desigualdades e das dificuldades que contornam a vida
dos jovens e que podem ser superadas na medida em que oportunidade
e ações para o seu enfretamento forem planejadas e efetuadas [...]Outro
campo do conhecimento que contribui para a discussão em torno do
projeto de vida é a filosofia, em especial a perspectiva existencialista
[...] donde se quer chamar a atenção para o fato de que precisamos
fazer escolhas e nos responsabilizar por elas. São essas escolhas que
nos constituirão e que determinarão os rumos da nossa vida (DANZA;
MORGADO DA SILVA, 2020, p. 214, grifo nosso).

Todos os campos citados, embora inter-relacionados e observando a inter-


disciplinaridade, possuem abordagens, metodologias e conceitos próprios e que
requerem uma estruturação mais embasada por meio de formação e/ou capacitação
específicas. A inobservância desse ponto produz uma verdadeira babel de práticas
que podem interferir negativamente no desenvolvimento do projeto no seu todo.
Na rede pública, lócus privilegiado de nossas análises, é possível encontrar
os mais distintos arranjos, em que professores de diversas áreas o trabalham sem
296
necessariamente ter uma organicidade. Recentemente, com a entrega dos livros
didáticos se espera alguma padronização no trabalho, mas ainda de modo muito
incipiente. Alguns relatos nos permitem entender isso.
Uma de nossas interlocutoras confessa concentrar-se nas questões tratadas
pela Sociologia, uma vez que essa é a sua formação e disciplina para a qual fez
concurso público. Além disso, suas dúvidas em relação ao Projeto de Vida se
refletem na dificuldade em motivar a si e aos alunos, transformando uma relação
profissional em pessoal. Segundo a professora,
O que eu sentia era que eles faziam por mim e não pelo interesse.
Era uma relação que era uma professora que eles respeitavam muito
[...] eles me respeitavam, a gente tinha uma relação muito boa. Às
vezes eu falava algumas coisas sobre profissões e por aí. Falava, às
vezes levava até conteúdo de sociologia para eles (N., professora de
sociologia da rede estadual do RJ, 2022).

Outro elemento digno de nota, reiterando a questão da formação, é o fato


de que os professores são escolhidos para trabalhar com o Projeto de Vida por
critérios nada objetivos, tampouco pedagógicos ou epistemológicos. É o que nos
permite compreender a partir do relato de outras duas docentes da mesma rede.
É sociologia pura [onde eu trabalho, junto comigo] três professores
de Educação Física dão aula de Projeto de Vida (C., professora de
sociologia da rede estadual do RJ, 2022)99.

[é] para fechar as cargas horárias (L., professora de sociologia da rede


estadual do RJ, 2022).

Verificamos, portanto, a falta de um norte orientador para que a disciplina


realize aquilo a que se objetiva. Observando sua matriz multi e interdisciplinar
seria prudente uma preparação de profissionais para o desenvolvimento deste
componente. Não pensamos que haja uma área do conhecimento privilegiada
para o exercício da mediação dessa unidade curricular, mas vemos a necessidade
de uma capacitação específica para além da utilização de um material didático
com características de livro de autoajuda ou orientação vocacional.
É importante a proposta de construção de um projeto de vida a partir da
escola. No entanto, não precisa ser uma disciplina, haja vista a contradição do
seu formato com o modelo que se propõe. Não precisava ser obrigatória a todos
99
Tivemos a oportunidade de trocar experiências e recursos didáticos com uma professora de matemática que mobiliza
capitais de caráter socioemocionais na sua prática cotidiana.
297
os estudantes nem compor a grade regular da escola. Mais uma contradição em
termos, pois apesar de obrigatória não é uma disciplina pontuada. Assim, cabe ao
docente o encargo de atrair os alunos numa proposta que é interessante na teoria,
mas problemática na prática. Como sublinhou nossa interlocutora:
Lá [na escola em que trabalho] eles [os alunos] sabem que não tem
nota. Então, toda hora eles saem, eles matam aula dentro da escola e
por aí vai (L., professora de sociologia da rede estadual do RJ, 2022).

Na rede privada assim como na rede federal se pode observar que os profissionais
que trabalhavam essa componente vinham, via de regra, da área de conhecimento da
pedagogia, ressaltando sua especialização em psicopedagogia, um campo mais alinhado
ao desenho institucional da proposta. Em contrapartida, nas redes públicas analisadas
se observou que o modelo ensaístico desse componente curricular não trouxe balizas
de como poder realizá-la a contento. A diversidade de profissionais que poderão
ministrá-la reflete, ao fim e ao cabo, numa proposta inorgânica e pouco eficiente.

OS DESDOBRAMENTOS NA PRÁTICA DOCENTE

Bem, chegamos ao ponto nevrálgico da proposta, ou seja, à prática dos seus


operadores. Como já dito linhas atrás, os docentes, bem como outros integrantes
da comunidade escolar, nunca ignoraram ou negligenciaram a necessidade de
alterações na estrutura educativa vigente, pois como diz o dito popular “ensinamos
alunos do século XXI, com pedagogia do século XX, numa estrutura do século XIX”.
Portanto, é patente a concordância de nossos pares com modificações no sistema.
A questão fundamental a ser apontada é que no bojo dessa reforma pare-
cem ser os docentes os principais agentes responsáveis pelos fracassos do sis-
tema. E, numa relação de mútua desconfiança e cobrança, não se constrói um
terreno fértil para a mudança.
Retomando as premissas do Guia, lá está exposto, “conhecer as demandas
dos jovens: o primeiro passo para o protagonismo juvenil. O incentivo e o desen-
volvimento do protagonismo juvenil é um dos objetivos centrais do novo ensino
médio”. E esses são os objetivos concretos em nossa prática como professores. No
entanto, a desconfiança institucional em vez de potencializar, desmobiliza a ação
dos docentes. É o que nos permite entender a fala de outro interlocutor:
A autonomia implica na constante avaliação dos professores (E,
professor da rede pública do ES, 2022).

298
Segundo Benevente (1991, p. 178) não se muda uma instituição sem mudar
as práticas que a produzem no dia a dia além do fato de que “mudança de práticas
é de ordem diferente e de uma lógica diferentes da mudança legislativa: é um pro-
cesso complexo que envolve os professores e não resulta nem da simples vontade
destes e nem decorre mecanicamente de qualquer intervenção exterior” (p. 140).
E nesse mesmo diapasão não há como desconsiderar que “é mais fácil mudar
os discursos dos que as práticas” (LEITE, 2000). Por isso, uma relação mais dialó-
gica com os operadores da ponta, ou burocratas de “nível de rua” (LOTTA, 2012),
seria a estratégia mais acertada no sentido de produzir os resultados esperados. Isso
implica uma escuta ativa desses operadores por parte dos gestores da coisa pública.
De acordo com Silva (2018) verifica-se um profundo desrespeito pela condição
do professor, que é tomado como incapaz de exercitar a análise e a crítica. Dada a essa
suposta incapacidade, outros pensarão e proporão por ele (p. 13). Por essa razão, quando
não se considera a necessidade de se partir da escola, o alcance limitado das reformas
já está dado no momento mesmo de suas proposições, visto que os educadores reinter-
pretam os dispositivos normativos e atribuem a eles novos significados (SILVA, 2018).
Desse modo, observamos a desconsideração dos profissionais da educação
um dos pontos problemáticos da reforma, posto que não mexeram em elementos
efetivamente problemáticos do processo educativo. Alguns exemplos desses são: o
quantitativo de alunos em relação à quantidade de recursos fornecidos pela escola,
sendo sempre necessário fazer um rodízio para a proposição de atividades fora da sala
de aula e; o confinamento dos alunos por mais tempo na escola, sem a diversificação
das atividades, torna o espaço escolar enfadonho e propenso à desordem pela ocio-
sidade de alunos que estão sem atividades em determinados momentos. Acrescido
a isso, vemos que a necessidade de professores trabalharem em mais de uma escola,
e com muitas turmas, limita sua capacidade criativa e os extenua fisicamente, com-
prometendo sua saúde e qualidade de vida, e, consequentemente seu fazer docente.
Porém, a despeito desse quadro, o que se nota atualmente são iniciativas em
prol da adequação das práticas docentes à essa nova conjuntura. As redes privadas,
por meio de seus sistemas, anteciparam alguns passos nesse processo. Por exemplo,
um dos autores desse texto teve uma capacitação sobre a BNCC e o Novo Ensino
Médio já no ano de 2019, ao passo que na rede estadual, o discurso era de que não
seria implementado. Mas, conforme já pontuado, por meio das pressões de agências
internacionais e da condicionalidade de repasse de verbas à implementação dessa
reforma, o gestor se rendeu. Fazendo isso num processo travestido de democrático,
299
o realizou de modo absolutamente vertical e a toque de caixa. Assim, coube aos
professores se adaptarem e seguir “trocando o pneu com o carro em movimento”.
Tudo isso sem falarmos da questão dos desafios à prática docente impostos pelo
retorno após o isolamento social produzido pela pandemia da COVID-19.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não tocamos na questão dos materiais didáticos, que no escopo do Novo


Ensino Médio são chamados de objetos, porque entendemos que essa questão requer
uma reflexão a parte, e considerando que ainda está vigente o período de escolhas
desses objetos não temos elementos empíricos e analíticos para escrutiná-los.
Não discordamos que o modelo de educação até então vigente não vinha se mos-
trando eficiente ao objetivo de produzir o aprendizado dos nossos alunos, e, portanto,
não advogamos em prol de sua manutenção. Mas, não pudemos nos furtar de produzir
nossas críticas sobre pontos que entendemos problemáticos, que se mantiveram após
a reforma e que, se não tocadas, será uma mudança de ação com vistas a manter
tudo no mesmo lugar, ou, para referenciar nosso título, um “museu de novidades”.
A preocupação com o mundo do trabalho é absolutamente legítima. No
entanto, mais uma vez reproduz a lógica de responsabilização do indivíduo pelo
seu alijamento do mercado, pois não leva em consideração as questões estruturais
que constituem nossa massa de desempregados, subempregados ou desalentados.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ciências humanas e suas tecnologias / Secretaria de Educação Básica. – Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. 133 p. (Orientações curriculares para o ensino médio;
volume 3).
BRASIL. Guia de Implementação do Novo Ensino Médio. Disponível em: https://anec.org.br/wp-content/
uploads/2021/04/Guia-de-implantacao-do-Novo-Ensino-Medio.pdf. Acesso em: 10 maio 22.
DANZA, Hanna Cebel. Projeto de Vida: construindo o futuro. Vol. Único/ Hanna Cebel Danza , Marco
Antonio Morgado da Silva. 1ª ed. – São Paulo: Ática, 2020.
LEITE, Carminda. Uma análise da dimensão multicultural no currículo. Revista de Educação, vol. IX, nº
1, 2000. Universidade do Porto.
LOTTA, Gabriela. O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre
o controle e a discricionariedade. In: FARIA, C. A (org.). Implementação de Políticas Públicas. Teoria e
Prática. Editora PUCMINAS, Belo Horizonte, 2012.
SILVA, Mônica Ribeiro da. A BNCC da reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso.
Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, 2018.

300
MULHERES, FUTEBOL E UNIVERSIDADE: UM
ESTUDO COM ALUNAS DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO AMAPÁ - UNIFAP

Gustavo Maneschy Montenegro100


João Carlos Silva Guimarães101

INTRODUÇÃO

Mesmo ainda carecendo de maiores investimentos, pesquisas102 e visibilidade,


o futebol feminino vem alçando maior destaque, seja na elaboração de estudos
e também no acesso/permanência das mulheres do que diz respeito à prática
dessa modalidade esportiva. Portanto, o protagonismo das mulheres no futebol
resulta de sua insistência em permanecer em um espaço que não é representado,
incentivado e reconhecido como seu, mas, sim, fruto de insurgências, resiliências
e resistências por parte delas.
Sem dúvida, o futebol no Brasil representa uma prática cultural de identidade
nacional. Todos, todas e todes, de alguma maneira, em algum momento de suas
vidas, são afetados pelo futebol, seja quando o time da cidade joga, em finais de
campeonatos transmitidos pela televisão e/ou na Copa do Mundo. Assim, é muito
provável que cada pessoa tenha alguma história para contar sobre esse esporte, seja
evidenciando fatos positivos ou negativos, mas o fato é que o futebol, dificilmente,
passa despercebido por nossas vidas.
Todavia, a formação futebolística brasileira não foi construída ausente de
tensões, conflitos e exclusões, sobretudo no quesito classe social, raça e gênero. Ao
“chegar” ao Brasil, em finais do século XIX e início do século XX, o futebol teve
um forte apelo classista, sendo as pessoas das classes populares e negras tolhidas
dessa prática. Como alternativa para jogar o esporte que caía no gosto popular,
em muitos contextos, sobraram a elas as trilhas da “clandestinidade” e improvisa-
ções em ruas, terrenos e quintais.

100
Doutorado em Estudos do Lazer (UFMG). Docente do Curso de Educação Física e do Programa de Pós Graduação
em Educação (UNIFAP). CV: http://lattes.cnpq.br/9623409607452966
101
Acadêmico do Curso de Educação Física. Bolsista de Iniciação Científica (PROBIC/UNIFAP).
CV: http://lattes.cnpq.br/0137574326298814
102
Esta pesquisa recebeu financiamento do Programa de Auxílio ao Pesquisador, promovido pela Universidade Federal
do Amapá – PAPESQ/UNIFAP
301
Com relação às mulheres, alvo deste estudo, não foi diferente, vez que
sofreram/sofrem restrições e proibições para praticar futebol. Como indica Goel-
lner (2021), desde que o futebol foi criado, as mulheres, em diferentes tempos
e contextos sociais, precisaram disputar poderes para nele adentrar e, ao fazê-lo,
desconstruíram representações que, assentadas na biologia do corpo e do sexo,
justificavam o caráter exótico, espetacular e impróprio atribuído à sua prática.
Entre os anos de 1930 e 1940, vários discursos de viés biologicista vieram
à tona com o intuito de proibir a prática futebolística das mulheres. Baseando-
-se em pensamentos de que o futebol era contra a “natureza” feminina e de que
poderia “comprometer funções reprodutivas”, sendo, portanto, uma ameaça à
condução de uma maternidade sadia, essa modalidade foi oficialmente impedida
às mulheres em 1941. Entretanto, por trás desses argumentos, estava o caráter
fortemente machista e patriarcal da sociedade, que se incomodava com a ocu-
pação dos espaços públicos e a decisão do uso do próprio corpo pelas mulheres
(GOELLNER, 2021; FRANZINI, 2005).
Nessa perspectiva, é fundamental compreender a presença das mulheres no
futebol, passando pela discussão das motivações, barreiras e espaços/locais que
garantiram sua presença na modalidade, pois se trata de uma vivência que ainda
imprime uma série de dificuldades, como as desigualdades de gênero, falta de
oportunidades e limitação de espaços para prática esportiva.
O presente texto apresenta o resultado de uma pesquisa realizada com estu-
dantes universitárias que participam do time de futsal feminino da Universidade
Federal do Amapá – UNIFAP. Fazem parte desse coletivo 17 mulheres. Esse grupo
também é responsável pela participação da UNIFAP em competições esportivas
universitárias, seja no âmbito estadual ou nacional. Assim, as questões centrais
que orientaram a investigação foram: quais as motivações para praticar futebol?
Que barreiras são apontadas para a permanência no futebol?
Além dessas, procuramos também responder: quais espaços/locais tiveram
importância para inserir as meninas na prática futebolística? Qual pessoa/agente
social teve mais importância para iniciação das alunas no futebol? Houve resistência
familiar para que elas praticassem futebol? Os dados que serão apresentados a seguir
foram coletados por meio de um questionário virtual, na plataforma Google Forms.

302
DESENVOLVIMENTO

Iniciamos o questionário apresentando a seguinte questão: qual dos locais/


ambientes abaixo você considera que foi mais importante para a sua inserção no futebol?

Gráfico 1: Referente ao local/ambiente de maior importância para inserção no futebol

Fonte: Elaborado pelos autores (2022)

Como se pode observar, a escola foi indicada como o local de maior relevância
para a inserção das alunas no futebol, mencionada por 35,3% das partícipes. Em
seguida, vieram as opções amigos da rua (29,4%), família (23,5%) e universidade,
com 11,8%. Para esse grupo de participantes, as informações revelam o papel de
instituições de ensino que possibilitaram a inserção das mulheres no futebol, o
que traduz como esses espaços podem se constituir em locais de questionamentos
e tensionamentos das diversas maneiras de desigualdades.
Para Souza et al. (2020), a escola é um espaço propício para se debaterem
diversos assuntos, um dos quais seria a prática do futsal feminino escolar, que
se encontra repleto de preconceitos e sexismo. Historicamente, ao que se refere
à mulher no esporte, sempre foram visíveis as dificuldades encontradas para se
estabelecerem, embora já seja significativo o espaço adquirido pelo sexo feminino
em diversas práticas esportivas.
Apesar de a escola ser apontada como um importante local para inserção das
meninas no futebol, isso não significa que esse processo esteja ausente de tensões,
como retratam Maffei, Verardi e Carvalho (2019). Os autores realizaram uma
investigação na qual discutiram o interesse na prática do futebol feminino nas
303
aulas de Educação Física, nas escolas públicas estaduais do município de Santa
Cruz do Rio Pardo-SP. De modo geral, foi indicado que 70% das participantes
da pesquisa passaram por experiências com o esporte na escola, embora os senti-
mentos das alunas, em relação ao futebol, sejam polarizados.
Um grupo de alunas demonstrou aderência e interesse pela modalidade,
construindo sentimentos positivos em relação ao futebol. Já outro grupo demons-
trou não adesão ao esporte, sendo que os motivos alegados pelo desinteresse se
relacionam com os atritos e os impedimentos por parte dos meninos, bem como
a falta de colegas praticantes para jogarem juntas.
A despeito de termos observado outros espaços/ambientes de importância
para a inserção das mulheres no futebol, tais como a família, os amigos e a univer-
sidade, para esse grupo que investigamos, a escola foi o principal local de acesso à
prática do futebol. Ainda que exista um paradigma presente na prática do futebol
feminino, que historicamente traz uma bagagem preconceituosa, entendemos que
a escola, como um local com potencial anticolonial, possibilita transgressões dos
sistemas de dominação, como o sexismo (hoocks, 2017).
Na sequência, indagamos as participantes sobre qual pessoa/agente social elas
consideraram que mais as tinha incentivado para praticar futsal.Como é possível
observar no gráfico 2, a opção “professor” e “amigas” foram as mais mencionadas,
ambas com 23,5% das respostas. Em seguida, vieram as opções “pai” e “amigos”,
igualando também o quantitativo de respondentes (11,8%).

Gráfico 2: pessoa/agente social que mais incentivou a praticar futebol

Fonte: Elaborado pelos autores (2022)

304
A ação docente tem a finalidade de contribuir para a formação global do
cidadão, incluindo-se, assim, os aspectos biológico, cultural, social e afetivo. Dentro
dessa perspectiva, cabe ressaltar que a intervenção do/da professor/professora se
constitui para além de transmitir conhecimento, mas a concebemos como uma
prática engajada, que deve ser questionadora dos determinantes de classe, de gênero
e raciais (hoocks, 2017). Diante disso, ao identificarmos que o “professor” foi um
dos principais artífices para a inserção no futebol das mulheres que pesquisamos,
compreendemos, com mais evidência, o papel que essa/a profissional pode ter para
reconceitualizar o ensino, questionar parcialidades e formas de opressão.
Não estamos aqui romantizando o/a professor/professora. Há de se destacar
os limites do seu trabalho, como as condições materiais precárias às quais muitos/
as são submetidos/as., No entanto, esse trabalho docente precisa ser pautado sob
a perspectiva da mudança, entendendo o ato pedagógico como essencialmente
político. Assim, o alicerce dessa mudança perpassa pela importância de proporcionar
a todos, todas e todes, indistintamente, as mesmas oportunidades de aprendizado,
transgredindo os modelos de dominação da sociedade capitalista colonial, a qual
se baseia, sobretudo, em modelos classistas, sexistas e raciais.
Como discute Freire (1996), ensinar é uma especificidade humana, que, além
de exigir competência profissional, requer comprometimento e compreensão de que a
educação é uma forma de intervenção no mundo, e que, portanto, deve ser dialógica e
tem uma natureza ideológica, sempre articulada com algum tipo de intencionalidade.
Como ensina o autor, ensinar exige a convicção de que a mudança é possível, mesmo
diante todas as dificuldades e as desigualdades que vivenciamos cotidianamente.
Ainda sobre essa questão, outro aspecto de destaque, indicado pelas inte-
grantes da pesquisa, foi a importância das “amigas” para a inserção na prática
futebolística. Isso revela como esse espaço pode se constituir em um locus de
sociabilidade, formação de laços, edificação de identidades e de fortalecimento das
mulheres. Além disso, destacamos que essa contribuição para iniciação ao futebol
foi realizada por outras mulheres, revelando o quanto que a presença feminina no
futebol tem se expandido nos dias atuais.
Quando observamos que mulheres têm um papel de destaque para inserir outras
mulheres em um espaço que historicamente não foi tido como seu, isso revela o pro-
tagonismo que o sexo feminino tem em alçar espaços/locais quaisquer que sejam. Isso
também não significa que as mulheres não têm maiores dificuldades para se inserir, caso
desejem, no futebol, mas indica que, mesmo lentamente, têm ocorrido mudanças de
305
um paradigma essencialmente masculino no futebol e, com resistência, as mulheres têm
se feito presentes nesse contexto. Embora também tenhamos observado a presença da
figura masculina – pai, amigos, professor - como destaque para inserção das mulheres
no futebol, é de se destacar o elevado número de jogadoras que indicaram a figura de
uma mulher como a principal para a iniciação na prática futebolística.
Na sequência da pesquisa, questionamos às partícipes se houvera resistência
de sua família em relação à prática do futebol. Os resultados das respostas podem
ser observados por meio do Gráfico 3.

Gráfico 3: Resistência na família em relação ao futebol

Fonte: Elaborado pelos autores (2022)

Um aspecto positivo foi o fato de 41,2% das mulheres indicarem a opção


“não houve resistência e tive incentivo da família para jogar futebol”. Novamente,
interpretamos esse dado como um avanço em termos de inserção da mulher no
futebol. Se, em tempos passados, as mulheres foram proibidas oficialmente de
jogar futebol, restando-lhes o caminho de uma prática “clandestina” (GOELL-
NER, 2021), bem como enfrentando preconceito e mesmo proibição de familiares
(FERREIRA et al., 2018), identificamos que, para um grupo elevado das mulheres
que investigamos, a prática futebolística foi aceita e incentivada, o que indica uma
trilha de mudanças na sociedade que começa a se abrir.
Todavia, também notamos que foi registrado pelas participantes certa indi-
ferença da família em relação à prática futebolística. Assim, 17,6% indicaram
que “minha família não gostava que eu jogasse futebol, mas deixavam eu jogar,
mesmo contra a vontade deles”; 23,5% informou que “não houve resistência, mas
também não tive incentivo vindo da família”; 11,8% assinalou que “minha família
306
é indiferente quanto ao fato de jogar futebol”. Nenhuma participante indicou a
necessidade de ter praticado futebol escondida da família.
Dessa maneira, se, por um lado, percebemos um caminho que sugere mudança
de paradigma para a inserção da mulher no futebol, vez que a maioria das partícipes
(41,2%) demonstrou o apoio e o incentivo da família para praticar esse esporte,
por outro lado, ainda é possível notar certa indiferença de familiares em relação a
essa prática, embora nenhuma menina tenha indicado proibição e interdição pela
família, no que concerne ao futebol.
O apoio da família é decisivo para a inserção e a permanência de mulhe-
res no futebol. Observamos esses dados como uma sinalização de mudança na
sociedade. Assim, algumas meninas vêm tendo a oportunidade de praticá-lo desde
a infância, com o apoio da escola e de suas famílias, o que não significa que as
experiências das mulheres com o futebol não estejam revestidas de preconceito e
interdições. Todavia, mesmo em meio a tantos obstáculos, elas se mantêm firmes,
fazendo-se presentes na modalidade.
Por fim, o último eixo de perguntas visava identificar as barreiras para
praticar futebol, bem como as motivações das alunas para permanecer na moda-
lidade. A pergunta que procurava mapear as barreiras para praticar futebol ficou
redigida da seguinte maneira: você enfrenta/enfrentou alguma das dificuldades
listadas abaixo para jogar futebol? Nessa questão, as alunas poderiam marcar mais
de uma opção de assinalamento.

Gráfico 4: Barreiras para praticar futebol

Fonte: Elaborado pelos autores (2022)


307
As alternativas que obtiveram maior percentual de respostas foram a “falta
de local/espaço apropriado para treinar” e a “falta de tempo para treinar por conta
dos estudos”, alcançando 70,6% e 52,9% das respostas, respectivamente. Já com
percentuais menores de respostas, identificamos as seguintes barreiras: “precon-
ceito” (23,5%); “falta de tempo para treinar, por conta de ter que trabalhar” (4%);
“parou de treinar quando teve filho” (5,9%); “tem dificuldade de treinar, pois tem
que cuidar do/da filho/filha” (5,9%)
Como argumenta Franzini (2005), as mulheres não tiveram vida fácil quanto
à compreensão da sociedade em sua participação na seara futebolística. Essa
inserção sempre foi revestida de barreiras e obstáculos que se colocaram sob uma
perspectiva para o seu afastamento nessa vivência. Além das questões históricas,
como preconceito e proibições oficiais, a falta de espaços apropriados para elas, bem
como as restrições de tempo em função da terceira e, até mesmo, quarta jornada
de trabalho (TIBURI, 2019) impõem ainda mais obstáculos para que as mulheres
possam se inserir e manter-se em uma prática esportiva e do lazer.
Como ensina Tiburi (2019), o trabalho é um problema de gênero. Mesmo
tendo ou não um emprego fora de casa, a maior parte das mulheres trabalhará mais
dos que os homens que, de um modo geral, não fazem o serviço da casa. Em outras
palavras, as mulheres acumulam, muito mais do que os homens, o trabalho remu-
nerado com o não remunerado e, sem dúvida, isso impacta negativamente nas con-
dições das mulheres de se fazerem presentes nas práticas esportivas e do lazer, mais
ainda no futebol, que carrega consigo toda uma carga de machismo e estereótipo.
Outro aspecto a destacar nesses resultados é a categoria “preconceito”,
que, embora não tenha sido a mais indicada, registrou 23,5% das respostas.
Mesmo que já estejamos distantes de uma época em que as mulheres eram proi-
bidas de jogar futebol, o preconceito de gênero ainda se faz presente em relação
à prática da mulher no futebol.
A questão seguinte, que procurou identificar as motivações das alunas para
se manterem na equipe de futsal, ficou redigida da seguinte forma: quais das alter-
nativas abaixo mais descrevem a sua motivação para jogar futebol na UNIFAP”?
Como se observa por meio do gráfico 5, as opções mais indicadas foram “parti-
cipar de competições esportivas” (88,2%) e “praticar exercício e saúde” (70,6%).
Também destacamos os interesses ligados à “socialização – conviver com outras
meninas” (58,8%) e “lazer” (52,9%).

308
Gráfico 5: Motivações para praticar futebol

Fonte: Elaborado pelos autores (2022)

Percebemos que os interesses das mulheres para se manter na prática do


futsal na UNIFAP ocorrem pelos mais variados motivos, tais como realizar exer-
cício físico; participar de competições; lazer; encontrar amigas. Isso nos mostra
que o interesse dessas alunas é resultado de vários fatores: ao mesmo tempo que
o futsal é lido por elas como um espaço de treinamento e exercício físico, estando
associado à ideia de manutenção da saúde, o fato de participar da equipe também
significa o estabelecimento de sociabilidade e de lazer.
A motivação que leva as mulheres a procurar o futebol está relacionada
também à exposição que este tem nos meios de comunicação. Atualmente, é
possível notar que o futebol feminino alça maior destaque, sendo possível assistir
à transmissão de jogos pela televisão, com várias jogadoras brasileiras alcançando
destaque nacional e internacional. Dessa maneira, o aumento da exposição do futebol
feminino implica crescimento da motivação e procura das mulheres por essa prática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho nos possibilitou aprofundar o entendimento sobre o futebol


feminino. Diante disso, ficou claro que, historicamente, o futebol traz uma bagagem
sexista e preconceituosa. Vale lembrar que, por 40 anos, as mulheres foram proibidas
oficialmente de praticar esportes considerados de “natureza masculina”, dentre eles,

309
o futebol. Por mais que atualmente se questione, a presença do sexismo ainda é
encontrada no futebol, gerando o rebaixamento e a desqualificação do feminino.
Mesmo diante de tantas dificuldades, as mulheres têm desenhado sua tra-
jetória no futebol, percurso este calcado em resistências para se fazerem presentes
nessa esfera social. Portanto, os dados aqui apresentados nos indicam algumas
características da trajetória das mulheres no futebol, o que, sob o nosso ponto de
vista, vem a sugerir mudanças da relação das mulheres nesse esporte, mesmo que
tais mudanças ainda sejam lentas.
Registramos que esta pesquisa apresenta resultados parciais e circunstanciais,
os quais “falam” da realidade de um grupo de 17 mulheres que compõem uma
equipe de futsal feminino universitário. Percebemos avanços em relação à inserção
das mulheres nessa seara, as quais têm ocupado espaços e enfrentado barreiras. No
entanto, são necessárias investigações sobre outras mulheres, em outras realidades,
a fim de obter uma interpretação mais abrangente do objeto debatido.

REFERÊNCIAS
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futebol feminino no brasil: uma revisão narrativa. Revista Diálogos em Saúde. v. 1, n. 2, jul/dez. 2018.
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futebol. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n. 50, p. 315-328, 2005.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra: São Paulo, 1996.
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v. 27, jan/dez. 2021.
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pectivas no processo de ensino-aprendizagem da educação física escolar. 1ª ed. Belo Horizonte: Poisson, 2020.
TIBURI, M. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

310
“REMOVED”: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOBRE
OS EFEITOS PSICOLÓGICOS DA ADOÇÃO E
DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS

Edson Moura da Silva103


Giovana Lamounier Capanema Vieira104
Hemille Gabriela Araújo Silva105
Jessica Adriene Sartori106
Jessica do Couto Moreira107
Jessyca Eduarda Alves Costa108
Jordan Araújo Couto109

INTRODUÇÃO

Removed110 é um curta que trata da trajetória de Zoe Locke, criança de 9


anos de idade retirada do lar junto com o irmão ainda bebê. A menina é levada
de casa por conta da disfunção existente ali, pois a mãe sofria violência de seu
companheiro. Quando ocorre a retirada, Zoe também é separada do seu irmão
mais novo, do qual cuidava grande parte do tempo.
Nas cenas do curta apresenta-se o personagem Zoe passando por alguns
lares e acaba sendo devolvida à instituição de acolhimento devido à dificuldade de
adaptação. Por fim, uma família acolhe a menina e o seu irmão mais novo. Além
de mostrar de forma tocante a história de uma criança que sobrevive em uma
instituição de abrigo, Removed também tem o objetivo de mostrar para o telespec-
tador quais os impactos causados na vida dessas crianças quando são devolvidas e
os traumas causados por viver em um ambiente disfuncional.
Percebe-se que o intuito do filme é, não somente conscientizar os pais
sobre a responsabilidade com a vida dos filhos, como também encorajar famílias
a adotarem, visando uma garantia de qualidade de vida para órfãs ou vulneráveis.

103
Doutor em Educação (PUC-Minas). Professor (FAMINAS BH). CV: http://lattes.cnpq.br/6436140896087143
104
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
105
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
106
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
107
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
108
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
109
Graduando em Psicologia (FAMINAS BH).
110
Baseado no filme: ReMoved, lançado primeiramente nos EUA, em agosto de 2013, duração de 13 minutos, dirigido e
produzido por: Nathanael Matanick para 168 Film Festival. Personagens principais: Zoe Lock.
311
Diante do roteiro de Removed percebe-se imediatamente a importância do
psicólogo em um trabalho ativo no processo de adoção, e do papel de relevân-
cia no que se diz respeito à garantia da qualidade de vida das crianças em lares
disfuncionais. É função desse profissional orientar a família candidata à adoção
sobre os impactos do procedimento para a criança, além de garantir que aquela
família esteja apta para receber a criança disponível. O psicólogo é responsável
por trabalhar principalmente a realidade emocional dos pais adotivos, acompa-
nhando-os na convivência com as crianças para avaliar a adaptação de ambas as
partes. Em outro sentido, ao mesmo tempo que é fundamental dar garantias em
relação à família, também é essencial saber se a criança está apta para a adoção,
para serem inseridas em uma nova família.

DESENVOLVIMENTO

Adoção tem por sinônimo acolher, aceitar, reconhecer. O acolhimento de


uma criança ou adolescente é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) criado em 1990. O conjunto de Leis estabelece os direitos fundamentais
das crianças e dos adolescentes no Brasil como contorno de garantia a esse público
do direito à convivência familiar e comunitária, em um ambiente promovedor de
seu desenvolvimento integral. No documento, em seu art. 25 compreende a família
como “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”.
A família natural é aquela constituída por membros com vínculos consan-
guíneos entre si, enquanto, a designação de família extensa ou ampliada, cabe
àquela formação que se estende para além da unidade pais e filhos ou casal,
sendo representada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente
convive e mantém vínculos de afinidade (LEI N. º 12.010, 2009; VASCONCE-
LOS, 2015 APUD. ALBORNOZ, 2018).
Contudo, caso não seja possível permanecer no seio familiar o art. 19 do
Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê:
Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio
da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada
a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença
de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (ECA, 199,
Art. .19, BRASIL, 1990)

312
Entretanto, no Artigo 23 do mesmo Estatuto fica esclarecido que a falta de
recursos materiais não pode ser um fator determinante para a perda ou suspensão
do poder que a família exerce.
Assim, entende-se que para destituir a guarda de uma criança ou adoles-
cente é necessário cautela, por ser uma decisão geradora de sequelas psicosso-
ciais negativas à criança e à família. Essa deliberação só deve ocorrer se ficarem
comprovados benefícios para a criança ou adolescente, não causando danos a seu
desenvolvimento, ou seja, “quando apresentar reais vantagens para o adotando e
fundar-se em motivos legítimos” (ECA, 199, Art. .43).
Para revelar esses motivos legítimos, a intervenção do Estado na família
natural deve ser primariamente baseada em orientação, apoio e estímulo. Essa
interferência também se estende a grávidas, puérperas e a qualquer pessoa que
apresente desejo de conceder seu filho à adoção. A destituição do poder de guarda
familiar e o arranjo em uma família substituta é um recurso legal destinado a garantir
o cuidado de crianças e adolescentes que não podem permanecer em sua família
de origem por motivos diversos. É uma medida que só deve ser tomada quando
os direitos da criança ou adolescente forem violados ou esgotados os recursos para
permanência na família natural ou extensa (ALBORNOZ, 2018). A efetividade
do processo de adoção necessita da execução de trâmites judiciais lentos, visto que
se trata de um processo complexo, devido à exigência de provas razoáveis que o
tutor não pode assumir essa responsabilidade. Então, antes do início do processo
adotivo, vários trâmites legais precisam ser cumpridos. Isso é necessário para que
todas as perspectivas sejam analisadas e para que não haja prejuízo ao menor.
Em alguns casos ocorre o abrigamento em Instituições acolhedoras, ligadas
ou não ao governo, atuantes pontualmente na área de proteção a menores. O abri-
gamento deve ser feito preferencialmente em pequenos grupos, a fim de reduzir
os impactos e rótulos consequentes da institucionalização. Os abrigos residenciais
(ARs), são instituições que possibilitam conexões afetivas, semelhantes à estrutura
familiar, e tem como objetivo atender as demandas materiais e afetivas da criança
e do adolescente (ALBORNOZ, 2018).
No que diz respeito à família adotante, elas atravessam um longo período
de coleta de documentos, testes de proficiência, saúde financeira e mental para
serem elegíveis para tal, além de fazer parte de uma lista de espera.
A lentidão de todo o processo adotivo é uma das causas das dificuldades em
adotar. Gera ainda uma longa permanência nas instituições, dificultando a adoção
313
de crianças e adolescentes, já que o principal interesse das famílias substitutas é
por meninos e meninas bem pequenos (ALBORNOZ, 2018).
Após a adoção ainda há outras questões a serem consideradas referentes à
saúde emocional dos envolvidos, como no caso das distinções entre o filho biológico
e o filho adotado. Apesar de se tratar de um processo jurídico o Estatuto da Criança
e Adolescente estabelece que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento,
ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação” (ECA, 199, Art.20). Em outro
ponto, no artigo 48, há um reforço desses direitos, a partir da irrevogabilidade da
adoção, o que garante que nos documentos de identificação do adotado constem
como filiação os dados dos adotantes e nenhuma informação sobre sua família
natural. Dessa forma, “a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os
mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo
com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (ECA, 199, Art. 41).
Atualmente os motivos mais comuns para o abrigamento, em todas as
regiões do Brasil, são a negligência e o abandono, revelando uma deficiência de
vínculos afetivos. Além disso, muitas chegam aos abrigos porque são oriundas de
famílias precárias em que é comum a violência doméstica, concomitante com o
uso de drogas e álcool por pais ou responsáveis. Muitas são crianças de rua, órfãos,
ou estão vulneráveis, pois pais ou responsáveis foram encarcerados, passaram por
abuso sexual por familiares, entre tantas outras tristes razões. (ASSIS; FARIAS;
2013 APUD PARRA; OLIVEIRA; MATURANA, 2019).
Nessa perspectiva, há inclusive, a defesa de que em certos lares, o meio ambiente
físico e social é tão empobrecido e caótico que a colocação de uma criança em uma
instituição de abrigamento pode proporcionar a recuperação e um crescimento psico-
lógico (BRONFENBRENNER, 1996 APUD, SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2006).
Assim, conforme Hueb (2016) o acolhimento institucional tanto pode ser
uma forma de espera pela reestruturação familiar e de preparo para o retorno à
família biológica daquela criança ou adolescente que se encontra em situação de
risco social ou pessoal, como pode ser visto como período de transição para o
processo de adoção quando não há mais possibilidades de reinserção na família
de origem ou substituta. Entretanto, se por um lado, a institucionalização acolhe,
por outro pode provocar ansiedade devido a mudanças no ambiente, na rotina,
nas pessoas com quem a criança passa a conviver.

314
A ausência de uma rede de apoio social pode produzir um senso de soli-
dão e falta de significado de vida (SAMUELSSON; ET AL., 1996, APUD
SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2006), pois a rede de apoio social e afetivo define
como o indivíduo percebe seu mundo social, como se orienta nele, suas estraté-
gias e competências para estabelecer relações, como também os recursos que este
lhe oportuniza frente às situações adversas apresentadas. O abrigo precisa fazer
parte da rede de apoio social e afetivo, fornecendo recursos para o enfrentamento
de eventos negativos advindos tanto de suas famílias quanto do mundo externo,
modelos positivos, segurança e proteção. Somente assim oferecerá um ambiente
propício para o pleno desenvolvimento cognitivo, social e afetivo das crianças e
adolescentes inseridos nesse contexto.
Assim, destaca-se a necessidade de políticas públicas de intervenção dire-
cionadas às instituições de abrigo, considerando o grande número de crianças e
adolescentes abrigados, de forma que se favoreça uma melhoria das condições
de atendimento a essa população (SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2006), incenti-
vando o atendimento profissional.
Cada vez mais em evidência a adoção vem sendo transformada em um meio
mais simples e completo para extirpar o abandono infantil na sociedade atual (RIEDE;
SARTORI, 2003) tornando-se alvo de estudos psicológicos, sociais e jurídicos.
Todavia, outro viés começa a ganhar expressão, a devolução de adotados.
Quando não ocorre o estabelecimento de um vínculo afetivo familiar de fato entre
adotantes e adotado, poderá ocorrer um duplo abandono da criança, quando essa
passa a ser vista como ‘problema’ por ter nascido de ‘outra barriga’, de maneira que
os adotantes não a sentem como pertencente à família (RIEDE; SARTORI, 2003).
Os mesmos autores (2003) apontam que para evitar a frustração da adoção,
torna-se ainda mais necessário conhecer o perfil dos adotantes e reforçar a pre-
paração, visto que na adoção ocorre a busca de uma família para a criança e não
uma criança para resolver os problemas de uma família.
Sendo assim, a equipe interprofissional assume um lugar acentuado para o
sucesso nas adoções. É necessária transparência em todo o trâmite, pois a “devo-
lução” oficializada é uma experiência de duplo abandono, com consequência de
difícil reparação. Assim, a exigência do profissionalismo da equipe envolvida é
preconizada pelo ECA (1990) em seu artigo 151, que dispõe:
Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe
forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito,
315
mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desen-
volver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,
prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade
judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
(ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ARTIGO
151 LEI 8.069 13 DE JULHO 1990, BRASIL, 1990).

Os profissionais serão os condutores do entendimento que adoção é um pro-


cesso de troca, com forte carga emocional, onde ambos se complementam (RIEDE;
SARTORI, 2003). Como estabelece o artigo 39, parágrafo 1° do ECA, toda criança
tem direito a um lar e a uma família, quando a família não tem como criá-la, o estado
intervém enviando a criança para uma instituição para futuramente ser adotada.
De acordo com Riede; Sartori (2003) os tribunais de Justiça brasileiros já
estão avançando no sentido da reparação civil, condenando os pais a pagarem
um valor pelo abandono. Tal reparação pode ser exemplificada com uma situação
publicada no site do Conselho Nacional de Justiça e notícia divulgada pelo Jor-
nal Estadão de São Paulo. Um casal adotante foi condenado por danos materiais
e morais em razão da adoção e posterior devolução do menor ao abrigo. Eles
queriam uma criança do sexo feminino, e no abrigo havia um casal de irmãos
biológicos, foram alertados da impossibilidade de separá-los, então adotaram-nos,
o menino foi devolvido justamente no período de convivência entre a guarda e
a sentença definitiva de adoção. A devolução ocorreu com a alegação de uma
crise conjugal devido à convivência com a criança do sexo masculino, ficou clara
a intenção de adotar apenas a menina. Desenvolveram pelo menino comporta-
mentos de negação e hostilidade.
A determinação judicial de retorno à instituição visava melhorar o rela-
cionamento familiar com o intuito de ofertar tratamento a toda a família, sendo
certo que os pais deveriam acompanhar de perto o menor, além de se sujeitar a
tratamento psicológico, o que não ocorreu.
O casal fazia visitas escassas e quando ocorria, envolviam o mesmo em situa-
ção de humilhação e rebaixamento, e ainda sim, só o visitavam por obrigação, por
estarem respondendo ação penal por abandono e temiam retaliações. Não tiveram
interesse em construir vínculo afetivo e eximiram-se de qualquer responsabilidade
referente ao compromisso assumido de acolher e cuidar do mesmo independen-
temente de suas características. O ato dos pais adotivos foi motivo de mais um
trauma para o menor, já que esse passou a ter traços agressivos e de insubordinação,
apresentando inclusive dificuldade no processo de aprendizagem. Vale ressaltar
316
que, atitudes como essa, estão em descumprimento da regra legal prevista no artigo
39, parágrafo 1 do Estatuto da Criança Adolescente (BRASIL, 1990).
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente,
da qual o Brasil é signatário, nos artigos 19, 20 e 21 protege o bem-estar físico,
espiritual e social dos menores, especificando os direitos fundamentais, seguidos do
Princípio do Melhor Interesse da Criança e/ou Adolescente (DA SILVA, 2012).
Sendo assim, visando esses direitos garantidos por Lei, e tendo em conta o ocorrido
descrito, percebe-se que os direitos da criança devolvida, não foram respeitados,
bem como ele não foi respeitado como indivíduo, não foi amado, e saiu da situa-
ção fragilizado, traumatizado com o duplo abandono, e com seus direitos feridos.
Por essa razão, o estágio de convivência, previsto no Art. 46 do ECA, não
pode servir de justificativa legítima para a causação, voluntária ou negligente, de
prejuízo emocional ou psicológico à criança ou adolescente entregue para fins
de adoção, especialmente diante dos princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana e da prioridade absoluta em relação à proteção integral à infân-
cia e à juventude (COSTA, 2009).
Da Silva (2012) pontua, pensando nos impactos psicológicos da devolução
de crianças adotadas, que a adoção é irrevogável e está prevista na Lei 8.069/1990
do ECA. Os estudos sobre o dano psicológico causado pela devolução ainda são
escassos, mas já se sabe que os pais adotivos podem perder o poder familiar pelas
mesmas razões que os pais biológicos, quando ferem os direitos da criança garan-
tidos pelo Estatuto Da Criança e do Adolescente.
Desse ponto de vista, nos casos em que há forte rejeição da família para
com a criança e essas partes não possam coexistir, a devolução é aceitável a fim de
evitar maior sofrimento. Visando prevenir a devolução da criança ou adolescente
adotado, a Lei prevê o estágio de convivência para possibilitar uma aproximação
gradativa, tendo em vista que a adoção é um processo mútuo, que exige tanto uma
despedida dos vínculos estabelecidos até então, quanto um tempo de construção
de novas relações (DA SILVA; 2012).
De acordo com Da Silva (2012), a Justiça não reconhece o conceito de
devolução, pois antes já se admite que a adoção é irreversível. Portanto, devolver
um filho adotivo é crime equivalente a abandonar um filho biológico. Contudo
há uma brecha legislativa permitindo o abandono durante o chamado período de
convivência – que pode durar mais de um ano –, quando os candidatos à adoção
têm apenas a guarda provisória da criança.
317
A partir dessas reflexões cabe ainda a pergunta: por que a devolução ocorre?
De acordo com Paiva (2004) apud Alvarenga; Bittencourt (2013) as devo-
luções podem ocorrer por dificuldades de adaptação de ambas as partes e por
conflitos que se revelam na formação de um novo vínculo.
Conforme Franco, (2016) apud Carnauba; Famelli Ferret, (2018, p. 125):
Por um lado, encontram-se adultos com histórias de dores não supe-
radas e a procura de um filho perfeito como eles desejam, e do outro
lado estão crianças com necessidades afetivas, precisando de uma
família que os ampare e que realmente os queira como integrantes
de sua família, aguardando e idealizando uma família perfeita para
si. (FRANCO, 2016 apud. CARNAUBA; FAMELLI FERRET,
2018, p. 125)

Os problemas podem surgir a partir das expectativas criadas pelo adotante,


que se não atendidas pelo adotado, geram sentimentos negativos de insuficiência.
Todos possuem experiências anteriores a serem levadas em consideração para que
o vínculo não seja afetado. Segundo Soares et al (2012) apud Carnauba; Famelli
Ferret (2018), as devoluções são resultado de um processo adotivo mal estrutu-
rado, por isso é importante monitorar adequadamente antes, durante e após, para
evitar que devoluções ocorram.
A criança institucionalizada nutre o sonho e a expectativa de ser acolhida,
de ter uma família. Nesse sentido, os pais adotivos devem querer realmente inte-
grar candidatos à adoção no âmbito familiar. As crianças disponíveis para adoção,
muitas vezes, passaram por momentos conturbados, privadas de laços afetivos, e
uma rejeição pode afetar negativamente o seu desenvolvimento.
O novo abandono pode interferir diretamente nas relações da criança com
o meio social, motivando comportamentos como a agressividade, uma dificuldade
de expressar sentimentos, medo de confiar novamente nas pessoas, até a negação a
uma nova adoção por medo de serem devolvidas novamente. (CAMPOS; LIMA,
2011, apud CARNAUBA; FAMELLI FERRET, 2018, p. 216)
O processo de adoção é considerado um dos mais importantes na área da Vara
da Infância e da Juventude, por objetivar a colocação de crianças ou adolescentes em lar
substituto, de forma fixa e irrevogável (MOTTA, 2000 APUD FERREIRA, 2001).
Entre outros profissionais, o psicólogo está envolvido em todos os processos
relacionados à adoção e à criança ou ao adolescente em situação de acolhimento.
Inserido dentro da instituição e com o apoio da equipe interdisciplinar, ele atua
318
com foco no bem-estar das crianças e dos adolescentes segundo Aguiar; Carrero;
Rondina, (2007) apud Correia; Silva; Glidden (2018). Os psicólogos também
atuam na preparação das famílias que irão adotar.
Lídia Natalia Dobrianskyj (1999) apud. Reis; Leite; Mendanha, (2017)
explica que a intervenção do psicólogo vem determinada por uma dupla necessi-
dade de prognosticar o êxito e prevenir possíveis disfunções. A adoção é sempre
uma situação complexa, pois estão presentes tantas variáveis capazes de afetar o
desenvolvimento psicológico e social da criança, especialmente como foram vividas
e refletidas, tais como abandono, ruptura e institucionalização.
Na operacionalização do sistema de garantias, a atuação do psicólogo dar-se-á
na análise da situação, no sentido de diagnosticar a realidade por meio de pesquisas,
em análises e planejamento de ações e recursos para o enfrentamento das situações
de risco, na mobilização e articulação dos vários segmentos (governamentais, não
governamentais, sociedade civil nos níveis nacionais, regionais e locais), promoção,
defesa e responsabilização através de mecanismos de exigibilidade dos direitos e
humanização dos serviços, promoção, atendimento e prevenção através de ações
especializadas de atendimento, com a inclusão social das crianças, adolescentes e
suas famílias e promoção de ações que possibilitem aos jovens o empoderamento
dos mesmos com vistas ao protagonismo social (ALBERTO; et al., 2008).
Ainda sobre o papel da psicologia, Fonseca; et al, (2020, p. 10), aponta que:
A psicologia desempenha a arte de ouvir as particularidades de cada
sujeito em suas angústias, medos e incertezas diante do processo
adotivo, que por vezes, torna-se moroso dentro do sistema judiciário,
pois não dão conta das especificidades de cada família, ficando assim
evidente o trabalho do psicólogo no processo adotivo. (FONSECA;
et al, 2020 p. 10)

O profissional de psicologia é, muitas vezes, responsável pela geração de


vínculos a partir de mediações. E as interferências são produzidas no contexto em
que a criança está inserida. Destarte, há disponibilidade da criança abrigada para
estabelecer novos vínculos, apesar de, em um primeiro momento, ter desconfiança,
a qual vai se transformando à medida que uma gradativa confiança se estabelece. A
desconfiança inicial revela o temor de um novo abandono (ORIONTE; SOUZA,
2005 APUD ALVARENGA; BITTENCOURT, 2013).
No contexto atual, a atuação do psicólogo assume papel de relevância também
por causa dos momentos que sucedem a adoção, pois não basta preparar adotante e
319
adotando apenas na fase judicial. Fica cada vez mais evidente a importância desse
tipo de profissional para o sucesso das futuras relações familiares, pois após adoção
surgem situações novas, jamais experimentadas pelas partes, sendo recomendável
a atuação de um psicólogo para auxílio na interpretação de cada novo sentimento,
dúvida ou desejo (REIS; LEITE; MENDANHA, 2017).
Dessa forma, como evoca Alvarenga e Bittencourt (2013, p.43) “uma pre-
paração deficiente da criança tanto quanto candidatos mal-informados e mal
preparados, dificultam o processo de construção da filiação, gerando profundos
sentimentos de fracasso em todos os envolvidos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo tratou de diversos aspectos sobre a adoção, em especial


sobre questões relacionadas à devolução da criança, as consequências psicoló-
gicas, os impactos da institucionalização da criança e adolescente e a atuação
do psicólogo nesses processos.
A revisão de literatura demonstrou que a prática da adoção necessita de
critérios rigorosos para ser realizada da maneira mais adequada possível, pois
envolve fortes cargas emocionais de diferentes envolvidos. Evidenciou-se que os
candidatos a pais têm uma série de motivações baseadas em suas próprias expec-
tativas o que pode levar a frustrações e decepções ao realizar o ato da adoção.
Observou-se que o processo de adoção é constituído de diferentes etapas, devendo
ser executadas com cautela e acompanhamento, perscrutando desde o interesse
até a vinculação à família interessada.
Identificaram-se como as instituições de abrigo assumem papel fundamental
e precisam fazer parte da rede de apoio social e afetivo, possibilitando um melhor
desenvolvimento cognitivo, social e afetivo dos adolescentes e crianças.
Evidenciou-se ainda o fracasso no processo de adoção, momento em que
ocorre a devolução da criança ou adolescente. As consequências advindas desse fato
podem ocasionar diferentes danos psicológicos como o gatilho para as sensações
de abandono e rejeição. Esse tipo de atitude leva, muitas vezes, a não incorporação
social e familiar, contribuindo para o fomento de transtornos, mal-estar e de novas
consequências de sofrimentos psíquicos.
Assim, percebeu-se a importância dos psicólogos no procedimento da adoção
e ainda na prevenção e redução dos impactos que a “devolução” da adoção possa
causar, auxiliando os possíveis pais a proporcionarem um ambiente adequado para
320
receber essas crianças, e contribuir para a construção de vínculos e confiança. O
profissional de psicologia também pode auxiliar na criação e manutenção do vínculo
com as crianças e adolescentes institucionalizados, pois através desse vínculo se
torna possível criar oportunidades de desenvolvimento sócio-afetivo-emocional.
Ficou claro que os assuntos referentes à adoção são relevantes e delicados,
envolvendo sentimentos, expectativas, esperanças, rejeição, abandono e muitos
outros. Observa-se dessa forma a importância dos mediadores psicólogos para
acompanhar ambos os lados, a fim de que tomem decisões claras e realistas, evi-
tando dessa forma futuras complicações e consequências para os envolvidos.
Por fim, apesar das iniciativas positivas para dar maior atenção ao processo
de adoção, sabendo das melhorias implementadas no processo, acredita-se que
ainda são necessários aperfeiçoamentos e criação de novas formas de facilitar e
contribuir para a realização de uma mediação mais eficaz, tornando-se plausível
a realização de estudos e mais pesquisas sobre o tema.

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322
A VITIMOLOGIA NA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA
SOB O OLHAR DO FILME: O QUARTO DE JACK

Edson Moura da Silva111


Elane Salete Simões Neves112
Elias Olair Figueiredo113
Gabriel Domenico Ferreira Evangelista114
Lara Carolina Amorim Cota115
Margarete Bassani Ribeiro116

INTRODUÇÃO

O objetivo deste capítulo é discutir a vitimologia pela lente dos elementos


discursivos presentes no filme “O Quarto de Jack”. Este longa-metragem baseado
no romance de Emma Donoghue e lançado em 4 de fevereiro de 2016 (Brasil),
com duração de 118 minutos, foi produzido por Ed Guiney David Gross e diri-
gido por Lenny Abrahamson. Brie Larson interpreta Joy “Ma” para mim, Jacob
Tremblay interpreta Jack, Sean Bridgers interpreta Velho Nick, Joan Allen inter-
preta Nancy para Avó, William H. Macy interpreta Robert para Avô, Amanda
Brugel interpreta Official Parker, Joe Pingue interpreta Official Grabowski e Cas
Anvar interpreta o Dr. Mittal.
O filme apresenta uma adaptação da obra literária de Emma Donnoghue, que
é baseada na história real de uma jovem austríaca a qual foi mantida em cativeiro
por seu próprio pai em 2008 e é conhecida em todo o mundo como “Case Fritzl”.
O filme descreve a história de Joy, que aos 17 foi sequestrada e mantida
em cativeiro durante oito anos pelo seu sequestrador e abusador, Nick. Nesse
período ela engravida e dá à luz seu filho Jack e ambos são mantidos na casa,
uma sala medindo cerca de 11x11 metros. Há cenas emocionantes, mas não
são reais, pois presenciamos eventos bastante semelhantes aos que já haviam
sido relatados ao redor do mundo.

111
Doutor em Educação (PUC-Minas). Professor (FAMINAS BH). CV: http://lattes.cnpq.br/6436140896087143
112
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
113
Graduando em Psicologia (FAMINAS BH).
114
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
115
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
116
Graduanda em Psicologia (FAMINAS BH).
323
Apesar de sua timidez, Jack é educado por sua mãe através das aulas minis-
tradas pelo idoso sequestrador. Eles têm lareira, comida, geladeira e pode assistir
televisão e, à noite, Jack deve dormir no pequeno armário quando ele visita Alegria.
“Em troca” do cárcere, o idoso Nick fornece mantimentos para os dois.
Quando uma oportunidade de escapar se apresenta, “meu filho e eu fazemos tudo
ao nosso alcance para aproveitá-la”. Mas como você encara o mundo depois de
tanto tempo preso? A maioria das duas horas do filme são gastas no quarto ato,
que dá ao filme seu título. A prisão não é apenas física, mas também emocional.
No blog psicoampliar é feita a seguinte leitura de que “a mãe sempre explicou ao
menino Jack que o mundo dentro da televisão é imaginário. A realidade é única
e exclusivamente aquilo que lhe é palpável” (OLIVEIRA, 2020).
Para dar ao filho uma infância mais feliz naquele ambiente desfavorável ela
criou um mundo paralelo em que o que acontecia na televisão não era real, e os
personagens e cenas ficavam presos nele. Como resultado, a imaginação de Jack
continuou até seus cinco anos quando sua mãe (tentou) explicar-lhe que tudo era
uma fantasia. A do pequeno Jack cita frases que parecem sem sentido, porém toda
a criação fantástica dele. Já para Joy, num conflito entre a claustrofobia de antes
e depois do cárcere com o medo de ser livre novamente.
A imaginação do pequeno Jack contém frases que parecem sem sentido, mas
refletem toda a sua fantástica criação. Joy, por outro lado, está presa entre dois medos:
de ficar presa ou ser livre novamente, porém não conseguir manter a criação do filho.

DESENVOLVIMENTO

No decorrer da trama somos tocados pelas cenas de raiva, angústia, medo,


dor ou nojo. Jack tem um olhar encantador que lhe permite uma identificação com
o espectador. Joy, tem outra perspectiva da situação, pois ela conhece o mundo
exterior, mesmo sem estar nele há um longo tempo.
Em determinada parte do filme, notamos que ambos têm dificuldades em
aceitarem as mudanças do mundo real, repletas de opções e diferentes verdades.
É emocionante acompanhar o primeiro contato de Jack com o mundo real e o
reencontro de Joy com seus familiares. Ela fica presa entre a claustrofobia de antes
e depois do cárcere. Como resultado de seus traumas iniciais, ela tem um olhar
apreensivo e temeroso para tudo o que vem em seu caminho, especialmente o
medo de não poder ficar com o filho.

324
A transformação de Joy e Jack é um labirinto de emoções que eventual-
mente colidem e convergem, tornando este título um grande filme sobre um dos
sentimentos mais poderosos do mundo: o amor materno e os sacrifícios que ela
faz pelo bem-estar de seu filho, pagando o preço com sua saúde mental, medo
constante e confinamento mental.
Contudo, o aparente “final feliz” nada mais é do que apenas o final de um
ciclo que aprofunda a temática da trama, ao revelar obstáculos difíceis de serem
superados durante o processo de integração deles com a realidade.
Ao longo deste filme encontramos alguns aspectos correlatos aos elementos
discursivos sobre o tema da Vitimologia. De faria e Da Silva Paiva entendem que
Vítima deriva do latim “victima” e “victus”, e significa vencido, dominado. Tendo
em vista que no âmbito do Direito Penal a vítima é vista como sendo o sujeito
passivo do crime, aquele contra quem se imputa o delito ou contravenção.
Destaca-se que em 1985 pela primeira vez o conceito de vítima foi
expresso pela Organização das Nações Unidas, na declaração que designou
sendo vítima todas as pessoas que,
individual ou coletivamente, sofreram dano, incluindo lesão física ou
mental, sofrimento emocional, perda econômica ou restrição subs-
tancial dos seus direitos fundamentais, através de atos ou omissões
que consistem em violação a normas penais, incluindo aquelas que
proscrevem abuso de poder (MAIA, 2012, p. 2).

Este conceito mostra que a vítima seria, então, o sujeito passivo do crime,
aquele que de alguma forma foi lesionado. Os danos não se restringem apenas aos
materiais, podem ser também, físicos, psicológicos ou morais.
Na busca da compreensão do tema e de acordo com Benjamin Mendelsohn,
2002, as vítimas podem ter cinco classificações da seguinte maneira:
1. vítima ideais (completamente inocente). 2. vítimas menos culpadas
que os criminosos (exignorantia). 3. vítimas tão culpadas quanto os
criminosos (dupla suicida, aborto consentido, eutanásia). 4. vítimas
mais culpadas que os criminosos (vítimas por provocação que dão
causa ao delito). 5. vítimas como únicas culpadas (vítimas agressoras,
simuladas e imaginárias). (FREDERICO, 2013, p. 3,4).

A associação da vitimologia com o filme é aqui encontrada em duas destas


classificações. A vítima completamente inocente ou vítima ideal na pessoa de Jack,
que já nasceu dentro do cativeiro. E Joy se classifica como vítima de culpabilidade
325
menor ou por ignorância que estava no lugar em que o infrator pôde abordá-la e
sequestrá-la por ser educada e não se atentar para o perigo. A psicologia jurídica
com o filme fomenta a discussão se esse caso conversaria com a resolução funda-
mentada no âmbito da justiça restaurativa ou da justiça retributiva?
Este questionamento se mostra em execução viável, por ser um assunto per-
tinente, primeiro pelo fato de que muito se fala em vítimas e crimes na sociedade,
e em como é importante entender os aspectos e os espaços em que podem ocor-
rer, como também lidar com as suas resoluções na justiça. E segundo, por existir
material bibliográfico com relevância e seriedade a respeito do assunto proposto.
Deduzir se o questionamento sobre a que âmbito da justiça o caso exposto no
filme conversa, em que se tem o drama vivido por duas vítimas de sequestro e
abusos por um infrator frio, calculista e cruel.
Este capítulo propõe analisar o conceito de vitimologia e como ele se aplica
na perspectiva psicológica no contexto do filme O Quarto de Jack. Também atra-
vés de pesquisas exploratórias de livros e artigos científicos buscar embasamento
para explicar como as vítimas deste sequestro se comportam mediante a vivência
de tal violência, além de explicar o conceito de vitimologia e como ele se associa
à trama do filme e, ainda, apontar como o fator psicológico da vítima pode lidar
com o trauma e como também analisar o impacto psicológico e os traumas viven-
ciados por Joy e Jack pós sequestro.
Abordar o tema trazendo informações baseadas em investigações e pesquisas
empíricas que visam instruir e orientar o meio acadêmico quanto ao conceito de
vitimologia e como ele se aplica na perspectiva psicológica no contexto de um
filme sobre sequestro e abusos sexuais e psicológicos é um desafio para anali-
sar com base na pesquisa teórica.
O presente capítulo é elaborado com base na pesquisa descritiva com o
intuito de apresentar o conceito de vitimologia. Para Poles e Bousso (2009)
um conceito é uma ideia ou construção mental elaborada acerca de um fenô-
meno (POLES, BOUSSO, 2009, p, 43).
O tema em consideração neste capítulo está relacionado à ciência da vitimo-
logia e, como tal, é necessária uma abordagem histórica dessa ciência, que tem a
vitimologia como foco principal em todos os seus estudos. Um deles é o impacto
na vida de pessoas que são agredidas violentamente e até mesmo mortas por seus
agressores em algumas situações.

326
Em 2018 a revista Exame trouxe uma reportagem de Ruic apresentando
o ranking com os piores países do mundo para mulheres. Esta constatação é da
fundação filantrópica do conglomerado de mídia Thomson Reuters Foundation,
que divulgou na terça feira 26/06/2018 um estudo que buscou analisar alguns
fatores como saúde, discriminação, violência sexual e outros tipos de violência que
elegeram os piores países para as mulheres. E o ranking ficou assim: 1º Índia; 2º
Afeganistão; 3º Síria; 4º Somália; 5º Arábia Saudita; 6º Paquistão; 7º República
Democrática do Congo; 8º Iêmen; 9º Nigéria e 10º Estados Unidos.
Não vemos o Brasil nessa lista, mas isso não significa que não haja violência
contra a mulher, como apresentado pelo UNICEF (2021), ou dados importantes
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (BSP). “Entre 2016 e 2020, 35 mil
crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos violentamente no Brasil –
média de 7 mil por ano.” Além disso, de 2017 a 2020, 180 milhões de pessoas
sofreram violência sexual – uma média de 45 milhões por ano”.
O filme abordado neste capítulo é baseado em uma trágica história real
ocorrida em 2008, a qual alcançou grande repercussão mundial. Em 16 de janeiro
de 2018 o jornal Estado de Minas postou em suas páginas uma matéria relem-
brando os casos mais famosos de sequestro, entre os quais o de Elisabeth Fritzl
da Áustria que foi sequestrada e estuprada pelo seu pai Josef durante 24 anos no
porão da casa da família em Amstetten.
Diante das inúmeras possibilidades de classificações para às vítimas, Fre-
derico (2013) vai observar que:
É perceptível que cada autor tome parâmetros como: idade, sexo,
condição social, financeira e patológica para atribuir a vítima uma
classificação que julgue a mais coerente. Todavia cada autor classifica
a vítima de acordo com a linha de pesquisa que adotará, e sendo assim
deixa uma gama de ramificações para conclusões de estudos outros a
serem realizados. (TOMÉ; PEREIRA, 2014. p. 115).

O capítulo apresenta que é de suma importância que, na atualidade, a cri-


minologia se interesse por estudar a vítima, Vidal e Pinto (2014).
ressalta-se que no passado somente o criminoso era peça fundamental
no modelo criminológico e a vítima era mera coadjuvante. Agora, na
atualidade, destaca-se não só o criminoso, mas também a vítima, que
passou a fazer jus do campo penal e na própria criminologia, sendo
objeto de pesquisa, assim como o criminoso. (VIDAL E PINTO,
2014, p. 55).
327
Sempre se colocou a figura do criminoso como a peça importante sobre o ato
cometido e por muito tempo o principal objetivo do Estado e ordenamento jurídico
era o criminoso, colocando a vítima apenas como coadjuvante na história. Os deba-
tes sobre meios sociais e suas razões psicológicas para o cometimento da infração
penal levavam em conta o pensamento do delinquente esquecendo-se do cuidado
psicológico da vítima, o que na prática os estudos apontam, conforme Vargas (1978):
Para cada indivíduo existe um certo número de riscos de se tornar
vítima de um crime particular ou de um tipo definido de agres-
são criminal. Esta probabilidade depende, toda ela, de uma série
de predisposições, assim como fatores externos atenuantes. (VAR-
GAS,1978, p. 22).

No entanto, nos é apresentado que vítima se caracteriza no sujeito que está


em situação oportuna de ser prejudicado e violado, sendo ferido nos seus aspectos
sociológico e psicológico, envolvendo os acontecimentos ao seu redor.
Neste capítulo fica evidente a presença de dois dos conceitos de vitimologia
de acordo com Frederico (2013), a vítima completamente inocente ou vítima ideal
na pessoa de Jack, que já nasceu dentro do cativeiro. E Joy se classifica como vítima
de culpabilidade menor ou por ignorância.
A vítima completamente inocente ou vítima ideal: é a vítima inconsciente,
completamente alheia à ação do criminoso e que absolutamente nada fez ou nada
provocou para desencadear a situação criminal de que foi acometida. Ou seja, o
que Araújo e Madrid, 2020 afirmam ser aquela que é completamente estranha ao
criminoso e à sua ação, aquela que não provoca e nem tampouco colabora para o ato
delituoso. Corresponde às vítimas que são totalmente inocentes, sendo a respon-
sabilidade do crime totalmente do criminoso, complementa Ferracine (2020). E o
exemplo perfeito é o Jack, que nada fez para viver este trauma agressivo, além de ter
nascido no cativeiro como consequência dos constantes abusos sofridos pela mãe.
Segundo Tomé e Pereira, “A vítima de culpabilidade menor ou vítima por
ignorância: neste caso se dá um certo impulso involuntário ao delito. O sujeito
por certo grau de culpa ou por meio de um ato pouco reflexivo causa sua própria
vitimização.” (Tomé; Pereira, 2014. p. 115) Joy aqui se apresenta como a vítima
que não é totalmente inocente por estar sozinha na rua e ser educada com um
estranho, colocando-se em risco para ser sequestrada.
No filme O Quarto de Jack mostra-se o desenvolvimento de uma relação, o
que podemos observar nas três categorias de comportamentos: o vínculo afetivo
328
(mãe e filho), comportamentos resilientes e relação abusiva-coercitiva: o menino
era reprimido, mantido em oculto dentro do armário enquanto a mãe era estuprada.
Contudo, a mãe de Jack tem um comportamento resiliente, que mesmo
num ambiente insalubre e adverso, proporciona a criança brincadeiras lúdicas,
conversas e leituras, preocupa-se com a qualidade da alimentação e com a prática
de exercícios físicos. Conforme a seguir explica Lúcia, Borges e Albigo, 2021,
sobre a relação abusiva-coercitiva, vemos que o poder está concentrado somente
em um dos integrantes que é o criminoso, o velho Nik. Após a saída do cativeiro,
é nítida a influência do isolamento social que a vítima sofreu, trazendo para ela
várias alegrias, mas também conflitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente capítulo visamos responder ao desafio a nós proposto de, par-


tindo da narrativa de um filme de ficção baseado em fatos reais, vislumbrarmos
um tema bem inusitado e apresentar respaldos da psicologia jurídica. Tal tema nos
proporcionou crescimento através das pesquisas e no envolvimento com os desafios
propostos. Nos deparamos com uma perspectiva de características e classificações
das vítimas de crime e consentimos em que duas destas classificações ficam bem
definidas no contexto que é a justiça restaurativa e a retributiva.
As personagens são bem definidas: duas vítimas e um agressor. A auto
colocação da vítima em risco é um fato consequente das orientações recebidas
do grupo familiar, sobre o ser educada com as pessoas; todavia não a orientaram
quanto ao estar alerta, e como consequência, Joy acaba sendo sequestrada e abusada
sexualmente por vários anos e ainda engravida no meio desse processo. Vemos
uma relação abusiva e com requintes de crueldade, ameaças, violência psicológica
e vulnerabilidade na saúde de Joy e Jack, o que culminou no planejamento da fuga.
Já fora do cativeiro, Jack consegue passar algumas informações importan-
tes aos policiais, que conseguiram fechar o cerco e encontrar a casa do agressor,
entretanto o velho Nick havia fugido. Porém agora a polícia tem informações e
provas de que ele cometeu alguns crimes.
O crime praticado contra a liberdade sexual, especificamente no crime de
estupro e estupro de vulnerável, significa que o livre arbítrio de escolha em ter
ou não relação sexual é violado.
Guimarães afirma:

329
Que pelo fato de a subjetividade da mulher ser absolutamente negada
no ato do estupro, ocorre um processo de vitimização, o qual torna
acontecer novamente durante o processo, gerando sua revitimização,
pois a vítima é posta, meramente, como meio de prova... A violação
da intimidade da vítima é tão grave e desprezível que as condutas
descritas no tipo penal são reputadas de hediondos e as sequelas
oriundas do delito não são abrandadas pela privação de liberdade do
agressor. (GUIMARÃES. 2020. p. 13).

Discorrendo em uma opção possivelmente viável “à simples judicialização


para esses crimes, a Justiça Restaurativa permite tornar realidade tal possibilidade,
pois é um modelo que visa à valorização da vítima com o intuito da reparação”
(Guimarães, 2020. p. 14), a fim de que possa expressar suas angústias e sentimentos,
os quais são negligenciados no sistema processual penal (Bianchini, 2012), mas
sem descuidar das necessidades do autor.
Em contrapartida, temos a justiça retributiva em que “o sistema penal ao
adotar a teoria mista, promete com a imposição de uma sanção penal, reeducar
o ofensor na penitenciária para, após o cumprimento da pena, poder reinseri-lo
novamente em sociedade.” (GUIMARÃES, 2020. p. 15).
Porém, para vítimas de abuso sexual, cárcere privado e os longos anos de
frequentes abusos, o grupo entende que não é o modelo ideal, pois, tudo o que a
Joy quer é superar os traumas adquiridos e o cumprimento da justiça, colocando seu
agressor atrás das grades. Colocá-los frente a frente para negociar um atenuante
para a pena, ou uma forma de o velho Nyck estar por perto para compensá-la dos
danos físicos, psicológicos, sociais tende a potencializar o sentimento de inca-
pacidade de Joy, colocando-a para reviver todos os percalços do abuso contínuo.
Todavia, após esta pesquisa estamos convictos de que a história retratada
por este filme apontou vários aspectos do cotidiano de muitas mulheres, jovens e
crianças vítimas de violência no seio familiar e social, as quais esperam pelo socorro,
pelo resgate, que alguém as veja e busque justiça por elas. A aplicação prática deve
vir acompanhada de real apoio e da busca de ressignificação da liberdade dessas
mulheres, a começar pelo encarceramento de seu agressor, e a sua reabilitação,
caso este comprove arrependimento.
Portanto, faz-se necessário envolvimento e coragem por parte das autori-
dades para providenciar novos estudos e pesquisas com o fim de apurar se de fato
a judicialização da justiça restaurativa é uma proposta válida para tornar o pro-
grama eficiente pois a ( justiça ) retributiva não pode atender às mulheres, jovens
330
e crianças que sofrem violência sexual, cárcere privado e violência psicológica ou,
ainda, se será necessário um novo olhar e um novo método para dar sentido à
justiça que estas vítimas merecem.

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332
REPRESENTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO E DO NEGRO
NO BRASIL COLONIAL EM LIVROS DIDÁTICOS
DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO
COMPARATIVO DA DÉCADA ANTERIOR E
POSTERIOR A OBRIGATORIEDADE DA
LEI Nº 10.639/2003

Suellen Roberta Mendes das Chagas117


Anderson Vicente da Silva118

A publicação da Lei 10.639/2003 tornou obrigatório o Ensino da História


da África e da Cultura Afro-Brasileira no Brasil. Embora a mesma tenha até
sugerido em quais disciplinas o(s) assunto(s) poderia(m) ser trabalhado(s), como
as de História e Artes, inclusive transversalmente, não houve um acompanhamento
a nível ministerial governamental a fim de averiguar a transliteração da lei para
efetiva vivência dela. A partir dessa ausência foi possível tecer o presente capítulo
a fim de reconhecer como foram e vem sendo (re)presentados a escravidão nos
livros, bem como a história e representação do(s) negro(s) no Brasil, o que nos
dispomos a analisar em exemplares de livros didáticos do Ensino Médio publicados
na década anterior e posterior a referida Lei 10.639/2003.
Para entendermos as permanências e mudanças observadas nas obras do
ensino médio faz-se necessário compreendermos o panorama que culminou com
a criação da Lei 10.639/2003 e retroagir ao final da década de 1990, quando
podemos observar um quadro político extremamente diversificado, obrigando
o Brasil, a partir das lutas encabeçadas pelos movimentos sociais, a repensar
questões sociopolíticas necessárias ao desenvolvimento da sociedade numa
perspectiva de contribuir para visibilidade de grupos étnicos até então margina-
lizados por grupos sociais dominantes. Necessário lembrar que tínhamos saído,
na década anterior, de uma longa ditadura (1964-1985) finalizada de fato com
a promulgação da nossa Constituição Federal – CF em 1988, propondo-se ser
a balizadora de direitos e garantias fundamentais. Mesma década onde se viu
a efervescência historiográfica deslanchar a todo vapor no Brasil com os novos
paradigmas trazidos pela Nova História, e sua fragmentação, enfatizadora dos

Especialista em Docência do Ensino Superior (UNIVERSO). CV: http://lattes.cnpq.br/1587507493863453


117

Doutor em Antropologia (UFPE). Professor Adjunto pesquisador em Ensino das Ciências Sociais (UFPE).
118

CV: http://lattes.cnpq.br/8170344621940111
333
processos culturais e herdeira dos Annales, que originou a “história problema”,
como um contra ponto ao materialismo histórico dialético, defensor de uma tese
mais totalizante da história, ancorado em um viés mais político e econômico,
corrente historiográfica até então reinante na academia. O presente capítulo é
uma miscelânea dessas duas correntes, visto a questão política ser importante
como garantia das liberdades, inclusive as individuais, assim como a cultural
que por assim dizer é a materialização dessas liberdades.
Neste contexto, a educação terá um papel fundamental na arti-
culação de novas maneiras de representar a cultura e a história da
África e dos negros no Brasil.
Circe Bittencourt em seu saber histórico (2013) relata que os anos de
1990 a 1995 nos estados brasileiros pululavam aproximadamente três deze-
nas de propostas educacionais que convergiam para a superação do modelo
tecnicista dos anos 1970, embora divergissem em outros pontos. Ressalta que
todas as propostas se apresentaram, assim como os saberes escolares contidos
nelas, como fruto de discussões dos três setores que seriam legítimos para
opinar em tal assunto: o poder educacional, das Secretarias de Educação, o
da academia, dos estudiosos com as discussões historiográficas, e dos profes-
sores. Concluindo que as propostas apresentadas basicamente propunham o
conteúdo do currículo estruturado sob duas formas: a dos eixos temáticos, cujo
lado crítico recai sobre a imprecisão em discernir eixos temáticos escolares das
histórias temáticas, mas se justificaria pela “impossibilidade de se estudar toda
a história da humanidade” e que a inovação trazida por esta forma de aborda-
gem seria a flexibilização para a montagem e organização dos conteúdos. E a
segunda abordagem pautada nos “modos de produção”, baseada, segundo ela, no
estruturalismo que imobilizaria as ações dos indivíduos na sociedade. Ambas
abordagens desfrutam de objetivos semelhantes, assim como são igualmente
críticas às noções de tempo histórico oriundos do positivismo. Mas ambas,
duplamente criticadas por Circe, quanto a concepção de uma História nacional
subordinada à europeia, em que o Brasil só “começaria a existir” a partir da
Europa. Ainda ressalta que seriam os objetivos ou as finalidades do ensino, se
inserindo e se integrando na constituição ou transformação paradigmática,
responsáveis pelas alterações nas relações sociais e culturais confirmando a
Educação como via importante para manutenção ou quebra de discriminações.
Ainda assevera que as propostas educacionais objetivavam suplantar um ensino
de história fundamentado na construção de um tempo histórico homogêneo,
334
eurocêntrico, com lógica de periodização baseada no sujeito-histórico do
Estado-Nação (BITTENCOURT, CIRCE, 2013, pp. 14-23).
A partir desse contexto, nota-se na historiografia brasileira uma abertura,
não sem resistências, para o debate que enfatizava o percurso histórico dos gru-
pos negros no Brasil. Dessa empreitada, surgiram novas maneiras de empoderar
os grupos afro-brasileiros. Então, através da legislação, o Estado brasileiro criou
uma política de reparação e valorização de ações afirmativas, que incentivaram
o ingresso, a permanência e a valorização das identidades da população negra
no âmbito das escolas, bem como nos manuais que as representavam com a
promulgação da Lei 10.639/2003.
De acordo com Silva e Fonseca (2007), as representações no ensino da
História devem ter como principal norteador a história do imaginário. Esta é um
importante instrumento para pensar como as populações discriminadas foram
sendo esquecidas no contexto do ensino brasileiro. Além disso, as ideologias de
representação para Durand (2002), enfatizam a reprodução imposta por estruturas
sociais dominantes no cenário político de uma determinada sociedade, neces-
sário se fazia um contra ponto.
Deste modo, o tema desse capítulo mostra uma relevância histórica signifi-
cativa quando se pensa a sua contribuição para entender o ensino brasileiro, mais
especificamente o ensino de história, a partir da produção de material didático que
destaca como os mecanismos ideológicos estão representando os afrodescendentes
no currículo e nos livros didáticos das escolas brasileiras.
Francisco de Assis Silva apresenta, em seu livro “História do Brasil” (1992),
uma crítica objetiva da escravidão, justificando essa visão na própria “Apresentação”
da obra quando afirma ser possível ter tal posicionamento, por ser “fruto de um
momento histórico em que as liberdades democráticas [no Brasil] nos permitem
enveredar pelo caminho da análise crítica mais objetiva”.
Ele divide o livro em seis unidades onde cada uma apresenta no mínimo
um capitulo e no máximo doze. Seu livro não traz consigo o apelo do trabalho
editorial, até pela data de publicação (1992). Apresenta o açúcar como atividade
lucrativa, “motor” que atraiu interesses e apresentou as justificativas necessárias à
colonização e consequentemente à escravidão, instituição necessária, na visão dos
colonos, para empreitada pretendida. Ele combate à ideia de passividade do índio
e do negro e refuta a ideia da “democracia racial” no Brasil afirmando que tanto
índio como negro foram escravizados e ambos reagiram, cada um a seu modo,
335
a essa instituição, no entanto, o poder econômico, político e militar do homem
branco se sobressaiu (SILVA, 1992, p. 55).
Ainda levanta uma questão que incomoda o historiador tradicionalista
do “como falar sobre as lutas negras e ao mesmo tempo defender a ideia sobre
a bondade do Senhor? O melhor seria sustentar a tesa da ‘passividade negra’”.
Contudo ele mesmo ressalva que:
não podemos confundir as lutas negras na colônia como movi-
mentos de consciência coletiva e politicamente organizado com
o propósito de colocar um ponto final no regime escravista. Nem
tampouco foram movimentos voltados ideologicamente para a
tomada do poder. Foram, invariavelmente, rebeldias individuais ou
coletivas, onde o negro buscava livrar-se da escravidão” (SILVA,
1992: p. 58).

Apresentando assim o negro como sujeito histórico contestador do sistema


ao qual estava inserido através de resistências diversas.
O estudo da História da África e dos africanos está ausente na obra, como
era de se esperar, pela anterioridade à Lei Nº 10.639/2003, assim como a con-
tribuição cultural e para a formação da sociedade brasileira, contudo contempla
a luta dos negros no Brasil quando relata os tipos de resistências empregadas
contribuindo assim com a diretriz da consciência política e histórica a fim de
desmistificar o mito da passividade e da inferioridade negro, bem como do
festejo da “democracia racial”. Apresenta a escravidão como aviltante e infame
oriunda da ideia da inferioridade da raça negra disseminada pela sociedade da
época, e afirma que a abolição não foi representada como um simples ato de
bondade da elite política imperial [...] posto que o quilombo foi exemplo de
resistência (SILVA 1992, p. 180). Mas
A abolição [...] tema na qual os arautos da mentira encontram
farto material para falsear a verdade histórica. [...] a história do
Brasil é, em grande parte, a história da escravidão e da luta do
negro pela liberdade [...]. É fato inconteste [...] que o negro foi
trazido para o Brasil em atendimento aos interesses do homem
branco, quer como mão-de-obra escrava, quer como mercadoria
altamente lucrativa para grupos mercantis e para o Estado metro-
polita (SILVA, 1992, p. 180).

Percebe-se que Assis (1992, p. 97) é um autor que se coloca nos livros,
reconhecendo a escravidão como processo malévolo para os escravos, embora
336
não tenha desenvolvido a contribuição do negro na questão cultural para for-
mação do Brasil. Além de não apresentar ações de fortalecimento das iden-
tidades e o combate ao racismo e a discriminação até esperado visto a obra
ser anterior a Lei 10.639/2003.
Já Vicentino e Gianpaolo nos convida, em sua “História do Brasil”
(1997), no Prefácio e na Apresentação, a mergulhar em uma história do Brasil
marcada por uma constante: a “mudança”, contudo esta seria efetuada para
não se sair do lugar afirmam parafraseando Giuseppe Tomasi di Lampedusa
quando afirma que “é preciso que tudo mude para que tudo permaneça como
está” revelando o tom de crítica aos problemas estruturais enfrentado pelo
país desde os 1500. Já se apresentam como portadores de uma visão crítica
da construção da sociedade e suas relações entre os indivíduos. Enfatizam,
em Nota, que trabalharam com periodização cronológica, para não fugirem à
prática comumente adotada pelos historiadores autores de livros didáticos, a
fim de facilitar o entendimento, contudo ressaltam que não se deve prender-
-se em exatidão absoluta a tais períodos, pois não são unânimes na academia,
podendo existir outros “marcos” mais significativos.
Apresentam a escravidão, como considerada pelos portugueses da época,
“uma instituição “justa”, já que no início, escravizavam-se os mouros, con-
siderados “infiéis” pelos cristãos” sem nenhuma crítica ou contra ponto. E
exemplificam dois fatores que explicaria a preferência do negro africano
para o emprego do trabalho escravo: o comércio de escravos no Atlântico e
o desaparecimento dos índios, através de extermínios. Apresentam os negros
escravos como vistos pela sociedade da época, como mercadorias, formadora
da base da sociedade e sem mobilidade social, também sem apresentar um
contraponto. Relatam a escravidão na África como promovida e estimulada
pelos portugueses a fim de comprar os negros vencidos dos chefes das tribos
vencedoras afirmando que, aos poucos, as tribos africanas teriam passado a
capturar seus conterrâneos e passado a vendê-los aos comerciantes portugue-
ses em troca de fumo, tecido, cachaça, joias. Não houve uma preocupação em
explicar os tipos de escravidão existentes em África anterior à chegada dos
europeus, em especial dos portugueses. Relatam os tipos de resistências pra-
ticadas pelos negros contra a escravização como atos de rebeldia, bem como
de violência contra os senhores, além de fugas, suicídios e até organização
em comunidades livres, referindo-se aos quilombos, descrito como ameaça,

337
aos Senhores de Engenhos, por estimular o desejo de liberdade nos escravos
(VICENTINO; GIANPAOLO, 1997, pp. 103-111).
Ponto positivo do livro é que já apresenta um trabalho gráfico mais elabo-
rado, mais atrativo, porém é bem resumido e não entrega a questão crítica que
se propuseram, no início da obra, permanecendo, na maioria das vezes, apenas
relatando como os personagens se enxergavam ou, melhor dizendo, como os
senhores enxergavam suas relações sociais com os demais. Não trabalha de fato
a luta dos negros para resistir e enfrentar suas adversidades, ficando mais com a
visão do senhor, representando o negro como objeto, mercadoria, e sem mobili-
dade social, negando-lhes assim sua importância para a formação da sociedade,
embora tenham relatado algumas formas de resistência. Também foram omissos
quanto ao legado cultural deixado pelos negros. Não há, dessa forma, o forta-
lecimento de identidades, valorização de ações educativas que combateriam o
racismo e a discriminação, porque os autores, apesar do discurso mais inflamado
na apresentação de sua obra, incorreram num erro de visão única da história, a
mais tradicionalíssima possível.
Cotrim em sua “História do Brasil” (2005), propõe um livro de visão global
da história do Ocidente e do Brasil, como o próprio autor nos conta na “Apre-
sentação”, procurando abranger processos históricos das sociedades analisando
aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais utilizando-se, quando possível,
das contribuições mais recentes da historiografia e do ensino de história para tornar
mais significativo o aprendizado do aluno, onde o mesmo possa fazer uma relação
entre a história que se analisa com a que se vive, analisando o passado e o presente.
Cotrim abre o capítulo 23 sobre a economia açucareira fazendo uma
“ponte” entre o presente, com a concentração de terras no Brasil, e o passado
com as implantações dos engenhos. Diga-se de passagem, o único a realizar
essa “ponte” de ligação para um aprendizado significativo. Também apresenta
o açúcar como solução encontrada por Portugal para colonizar o Brasil. Traz
em “Textos Complementares” a vida cotidiana de um engenho, a vida privada,
relatando como um “feitor-mor” estava orientado pelo seu senhor a tratar os
escravos: desde o nascimento até à morte daquele. Elenca alguns motivos que
justificariam a escravidão africana à indígena como: a barreira cultural, onde o
índio não estaria “adaptado” ao trabalho na lavoura, pois na tribo seria incum-
bência das mulheres tal atividade; a dizimação sofrida pelos indígenas por causa
das epidemias (varíola, gripes) [além do posicionamento da própria Igreja]; por
outro lado os negros, em sua maioria, provinham de culturas familiarizadas com
338
metalurgia e criação de gado. Também contesta a passividade tanto de indíge-
nas quanto de negros frente à escravidão citando Stuart Schwartz que diz que
“os africanos sem dúvida não eram mais “predispostos” ao “cativeiro do que os
índios”; sem esquecer à Igreja que combateu a escravização do índio e permitiu
a dos negros” (COTRIM, 2005, pp. 209-213).
Na abertura do capítulo 24 sobre as Condições da Escravidão Africana
reflete, novamente fazendo uma “ponte” sobre o tráfico negro da África para o
Brasil com o Brasil contemporâneo e sua grande população de afro-descendentes,
questionando como se desenvolveu esse tráfico negro; quais as condições de vida
dos africanos ao chegarem no Brasil e quais estratégias de resistência à escravidão
desenvolveram (COTRIM, 2005, p. 217).
Descreve o negro como sujeito histórico que luta e, invocando a mais
recente historiografia afirma que
As “negociações” entre senhores e escravos também faziam parte
do cotidiano escravista. Segundo os historiadores João José Reis e
Eduardo Silva, muitos escravos cumpriam as exigências de obe-
diências e trabalho em troca de um melhor padrão de sobrevivência
(alimentos, vestuários, tratamento) e da conquista de espaço para
a expressão de sua cultura, organização de festas, etc. (COTRIM,
2005, p. 221).

Informação também corroborada recentemente por Gomes (2019) em


seu livro sobre a Escravidão em que detalha os mecanismos de recompen-
sas e punições que cooptaria o subjugado a contribuir “espontaneamente” e
impediria que fosse desenvolvido no mesmo um senso de revolta. Mecanismo
de “meritocracia” que, diga-se de passagem, encontra-se em pleno vapor nas
relações trabalhistas modernas.
Embora Cotrim reconheça o negro como sujeito histórico, que não seria um
ser passivo aos acontecimentos vivenciados, e também admita sua contribuição na
formação da sociedade brasileira, assentindo no direito que tem em suas crenças
e culturas, peca ao não as apresentar em seu livro o que não fortalece as identida-
des e o combate ao racismo e discriminações, nem para a valorização identitária.
Também está ausente na obra o estudo da África, se limitando a dizer que “os
portugueses foram os primeiros a realizar o comércio de escravos africanos através
do Atlântico” (COTRIM, 2005, p. 217).

339
Já Campos e Miranda em sua “História do Brasil” (2005) pensam um livro
didático, como nos informa na “Apresentação” de sua obra, que não se apresente
como um “pacote de viagem”, com paradas predeterminadas, objetivos fixos e
meios de transporte programados, mas algo próximo de um “mochilão” em direção
à História, de trajetos múltiplos, inúmeras possibilidades de reflexão e críticas e
entradas e saídas provisórias.
O livro também se propõe a ser um compêndio de história mundial e
do Brasil, por ser volume único, e apresenta a sociedade colonial assentada
na oposição entre senhores e escravos e outros grupos sociais, normalmente
homens livres que definiam-se de acordo com grau de proximidade ou distância
com os primeiros. Ponto positivo trazido pelos autores é que ressaltam que a
escravidão já existia na África, inclusive desde o século VIII com mercadores
mulçumanos que negociavam escravos na rota do mediterrâneo para a Europa,
e enfatizam que os Portugueses e outros Estados europeus marcaram a “África”
para sempre com a institucionalização do comércio de cativos para as Américas
e que a mesma esteve baseada na questão econômica. Nesse ponto, foi o único
dentre os livros utilizados como fonte a afirmar que a escravidão em África foi
institucionalizada pelos europeus, mais especificamente, pelos portugueses. Eles
procuraram realizar breve explanação sobre a diferença entre trabalho escravo, de
servo e de assalariado e apresentaram a escravidão negra como mais atrativa do
que a do indígena pela rede mercantil trazida consigo, com estrutura em escala
mundial, obedecendo aos interesses econômicos, além da questão religiosa da
defesa do índio pela Igreja em detrimento dos negros. Apresentaram o negro
como sujeito histórico que “apesar de todas as condições desfavoráveis e dos
discursos legitimadores da escravidão [...] não deixaram de apresentar formas
de resistência à situação: promoveram sabotagens no processo de produção do
açúcar; organizaram fugas coletivas ou individuais; assassinaram senhores e
feitores; suicidavam-se e geravam revoltas nas plantations e povoações” além
da “preservação das crenças e ritos africanos, apesar da condenação e vigilância
do clero colonial” e dos quilombos “marca mais característica da resistência”
(CAMPOS; MIRANDA, 2005, pp. 213-218).
Ponto negativo observado na obra é que não apresenta textos de visões
antagônicas ao tema, como se propõe, realiza mais uma síntese, embora uma
síntese bem elaborada falando sobre a escravidão ser anterior à sistematização
portuguesa, mesmo não aprofundando a questão. Relatam a existência da escra-
vidão de guerra na África, dos vencidos pelas tribos rivais, e citam o comércio
340
dos mercadores mulçumanos desde o século VIII (CAMPOS; MIRANDA,
2005, p. 2013). Outra questão negativa é a ausência da cultura negra na obra,
não falam dos conjuntos de crenças, da cosmogonia, músicas, danças etc., contri-
buições culturais importantes, embora apresente o negro como sujeito histórico,
defendendo seus interesses nas diversas formas de resistências praticadas. Apesar
dos autores proporem um debate no livro, devido à unicidade do volume, eles
perderam páginas preciosas para aprofundar o assunto e trazer as contribuições
culturais que ficou ausente na obra.
Apresentada a investigação a que o presente capítulo se propôs, foi possível
anuir à importância da escolha do livro didático, pois a discussão empreendida
permitiu instrumentalizar o pensar docente acerca dessa escolha por meio de uma
reflexão dos aspectos e dimensões da História e Cultura afro-brasileira contidas
neles e embasadas na legislação, sem, contudo, elegê-lo como único suporte edu-
cacional válido e adequado, visto serem portadores de “fatos” históricos.
Nessa linha de pensamento, Ferreira e Franco afirmam que “os fatos nunca
são coisas dadas, mas o resultado de um diálogo entre o documento e o seu
leitor”. (ideia compartilhada por Jaime Pinsk (2012) em seu “Ensino de His-
tória e a Criação do Fato”). Além disso, continua Ferreira e Franco o trabalho
empreendido na interpretação das fontes dependerá da condução que o histo-
riador dará aos seus questionamentos sobre o objeto de estudo que se conecta as
fontes dadas (FERREIRA; FRANCO, 2009, p. 64). A partir desse contexto, é
importante destacar que a fontes não são apenas documentos estáticos com letras
e palavras, mas um conjunto de símbolos e significados empreendidos por um
grupo específico, que determinam em certo sentido, a lógica social vivida num
determinado momento histórico.
Dessa maneira, Jaime e Carla Pinsky (2013, p. 23) complementam esse
diálogo nos alertando para não cairmos numa espécie de anacronismo pois que
o passado deve ser interrogado sim e a partir de questões que nos inquietam no
presente sim, contudo nos alerta para que não caiamos num “presentismo” vulgar,
procurando encontrar no passado justificativas para atitudes, valores e ideologias
praticadas no presente, mas sim tomarmos como referências questões sociais e
culturais, bem como todas as desigualdades: sociais, raciais, sexuais para interpretar
o mundo, [re]organizar a sociedade, mudar limites, realizar rupturas ou mesmo
consolidar instituições etc. Ou seja, necessário se embasar de múltiplas visões para
não incorrer no risco de uma história superficial e “única”.

341
Portanto, o conceito de representação é de fundamental importância. Para
Burke (2005), a representação das estruturas sócio-históricas deve levar em con-
sideração as diversidades culturais. Nesse sentido, a reprodução ou a ruptura com
sistemas de dominação ou exclusão são vistas pela teoria da representação como
um processo de agenciamento do sujeito. Assim, o livro didático não deixa de
ser visto como instrumento de reconstrução das práticas ideológicas, que poderá
contribuir para uma nova configuração do ensino da cultura brasileira, enfatizando
a produção cultural e histórica das etnias africanas no Brasil, visto que o fazer
histórico, não é neutro em seus posicionamentos.
Após as discussões empreendidas, a partir da representação que os autores
fizeram da escravidão e do negro no Brasil Colonial nas obras didáticas para
o ensino médio, ficou evidente a questão ideológica presente pelas omissões,
eufemismos, relatos, evitando assim promover uma discussão direta com
múltiplas fontes. As obras didáticas mencionadas não atenderam, em sua
integralidade, tanto os manuais de (1992) e (1997) anteriores à promulgação
da Lei 10.639/2003, já esperado, quanto os posteriores também, ambos de
(2005), o que não era esperado.
Apesar das conquistas e sugestões da contidas na referida Lei 10.639/2003
seu “translado” integral para vivência escolar ainda é um devir, e essa mudança,
estrutural, não é realizada por decreto, mas por interações sociais diárias eivadas de
lutas e, nesse contexto, o livro didático continua sendo um instrumento cobiçado
pelo poder que pode ocupar na manutenção do status quo ou como balizador de
políticas de ações afirmativas.
De maneira geral, o presente capítulo permitiu entender os contextos
e as forças envolvidas atuantes na “guarda”, elaboração e difusão do conhe-
cimento histórico, onde o livro didático é um instrumento valioso nesse
embate de permanências e rupturas.
Com isso, reconhecendo a dívida social que o Estado brasileiro e a Sociedade
ainda possuem junto aos descendentes de africanos negros foi por isso instituída “a
obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos
currículos da Educação Básica tratando-se de decisão política, com fortes reper-
cussões pedagógicas, inclusive na formação de professores”. (BRASIL, 2004, p. 17)

342
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anais/2011/trabalhos/66.pdf >. Acesso em: 23 maio 2020.

344
SOBRE O ORGANIZADOR

CLEBER BIANCHESSI

Doutorando em Educação e Novas Tecnologias (UNINTER). Mestre em


Educação e Novas Tecnologias no Centro Universitário Internacional Uninter
(2017-2019). Especialização em Mídias Integradas na Educação na UFPR
(2018); Especialização em Gestão Pública na UFPR (2016); Especialização em
Desenvolvimento Gerencial na FAE Business School (2002); Especialização
em Interdisciplinaridade na Educação Básica no IBPEX (1998); Especialização
em Saúde para Professores do Ensino Fundamental e Médio na UFPR (2019).
Graduação em Administração de Empresas pelo Centro Universitário Cesumar
- UniCesumar (2017); Graduação em Filosofia, Sociologia e História pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC PR (1997).
E-mail: cleberbian@yahoo.com.br

345
ÍNDICE Ensino jurídico 245, 246, 253 Prática educativa 45, 120, 249, 254, 270,
288
REMISSIVO Estágio supervisionado 133
Práticas sexuais 55, 57-60
Ética 53, 74, 113, 122, 136, 186, 236, 245,
246, 248, 249, 253, 254 Q
F Quarto de jack 323, 326, 328
A Ferramentas de colaboração 203, 206, 207, Química de coordenação 37-39, 43, 44
209, 210
Abordagem investigativa 21 R
Festa do Jacaré 121, 127-132
Adoção e devolução de crianças 311 Recursos tecnológicos 31, 281, 284
Formação do caráter 157, 159-163, 166,
Arara Karo 121-123, 126, 127, 129, 130, 167 Rede municipal de ensino 223, 226, 228,
132 229, 231
Formação universitária 37
Argumentação e raciocínio 99, 100 Reforma do ensino médio 289, 290, 292,
Fotografias 147, 148, 150, 156 300
Arqueologia e educação 169, 174, 178
G Removed 311, 312
B
Gestão escolar democrática 223-225, 228, Representação da escravidão 333
Big Data 195-202 230-232
S
C Google Workspace for Education 195, 196,
201, 203, 206, 207 Subjetivação neoliberal 265, 269
Conceição Evaristo 255, 256, 260-263
H T
Construção do conhecimento 21, 29, 46,
195, 198, 204, 282 Histórias em Quadrinhos 211, 214-217, Teoria do capital humano 77, 78, 82
220, 222
Contexto pós-pandêmico 63 Tereza Cardenas 255
Currículo escolar 55, 265, 269-272, 274
I
Território interdisciplinar 11
Impactos ambientais 21, 22, 28
D V
Implicações no vestibular 87
Desenvolvimento sustentável 21, 22, 25, Visão dos gestores 223, 231
28, 29, 70, 71 Infância 11-20, 76, 157, 159, 160, 167, 181,
182, 211, 214-216, 220, 237, 307, 317, 318, Vitimologia 323, 325, 326, 328, 331, 332
Desigualdades sociais 63, 68, 69, 71, 78, 322, 324
256, 260, 262 W
Inovação e tecnologia 63
Didática Zoró 109, 110, 114, 115, 118, 120 Wayo Akanã 121, 129, 131
Direito fundamental do idoso 233
L
Literatura no ensino médio 87, 89, 95, 98
Direitos humanos 19, 62, 136, 236, 245-
251, 253-256, 259, 260, 262-265, 272-275, Livros didáticos de história 333
331
Diálogo interdisciplinar 169 M
Docência experiente 109 Mediação dialética 181, 183, 194

Docência iniciante 109 Metodologias ativas 28, 45-50, 52-54, 288


Mulheres 55, 59, 124, 128, 132, 141, 151,
E 155, 161, 250, 255, 256, 260-263, 301-310,
327, 330, 331, 338
Educação básica 19, 21, 22, 32, 36, 38, 45,
50, 55, 64, 66, 71, 72, 74, 88, 89, 95, 98, 106, Museu de novidades 289, 295, 300
107, 112, 121, 131, 211, 221, 227, 240, 258,
289-291, 300, 310, 342 N
Educação digital 54, 63, 67, 69, 71, 74 Negro no Brasil colonial 333, 342
Educação infantil 16-20, 30, 181, 182, 186, Neoliberalismo 77-79, 81-83, 85, 265-269,
192, 211-216, 220, 281 271, 272, 274, 275
Efeitos psicológicos 311
P
Ellen G. White 157
Perspectiva histórico cultural 181, 183, 193
Ensino da matemática 31, 214, 222
Perspectiva psicológica 323, 326
Ensino de história 50, 147, 156, 175, 334,
335, 338, 341, 343 Povo indígena 121, 130, 177

Ensino de literatura 87, 98, 246, 255, 263 Professor Pangyjẽj 109

Ensino de língua materna 133, 135, 137, Professores brasileiros 277, 286
140, 143, 144
Profissionais da química 37

346
ISBN 978-65-5368-090-6

9 786553 680906 >

Este livro foi composto pela Editora Bagai.

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