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DIREITOS HUMANOS E

POLÍTICAS PÚBLICAS
DE ACESSO À JUSTIÇA
EM TEMPOS DE
COVID-19:
diálogos multidisciplinares
Rosane Teresinha Carvalho Porto
Janaína Machado Sturza
Tânia Regina Silva Reckziegel
Organizadoras

DIREITOS HUMANOS E
POLÍTICAS PÚBLICAS
DE ACESSO À JUSTIÇA
EM TEMPOS DE
COVID-19:
diálogos multidisciplinares

1ªEdição Apoio:

Editora Dom Modesto Fundação de Amparo à


Blumenau, 2022 Pesquisa do Estado do RS
Editora Dom Modesto
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Profª. Drª. Tássia Aparecida Gervasoni – IMED/Brasil
Profª. Drª. Vera Lucia Spacil Rada� – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Willame Parente Mazza – UESPI/Brasil
Rodrigo Cristiano Diehl
APRESENTAÇÃO 7

APRESENTAÇÃO

Ao honrar-me com a possibilidade de construir essa apresentação, permito-me


realizar algumas reflexões históricas e teóricas. Cada época da história humana na
Terra possui suas enfermidades fundamentais. Em um tempo razoavelmente recente,
os seres humanos experimentaram a época bacteriológica que chegou ao seu “fim”
com o avanço da medicina e com a descoberta dos antibióticos capazes de controlar
grande parte das infecções causadas por bactérias. Embora o mundo ainda esteja em
processo de aprender a conviver com a Covid-19 (doença causada pelo Coronavírus
denominado SARS-CoV-2), não se pode ainda afirmar que se vive sob uma época
viral. Graças à técnica imunológica do corpo humano, talvez possamos deixar para
trás grandes preocupações.
Analisando sob a perspectiva patológica, o início do século XXI não é definido
nem como bacteriológico nem como viral, mas sim como neuronal. Essa afirmação
baseia-se nas doenças patológicas que se disseminam desde o começo do novo século,
como depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade,
transtorno de personalidade limítrofe ou a Síndrome de Burnout. Não são as infecções
ocasionadas pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas sim enfartos
causados pelo excesso de positividade. Assim sendo, escapam a qualquer técnica
imunológica estudada pela ciência que tem por função afastar a negatividade daquilo
que é estranho, neste caso, ao corpo humano.
A consagração do século passado como uma época imunológica deixou
profundas marcas além daquelas para o campo da saúde. Tratou-se de uma época na
qual se estabeleceu uma visível divisão entre o dentro e o fora, entre o amigo e o
inimigo, entre o conhecido e o estranho. Esse mesmo esquema imunológico havia sido
transmutado para a Guerra Fria e dominado pelo vocabulário dessa guerra, por um
dispositivo vinculado ao campo militar. Assim como a ação imunológica, a sociedade
passou a operar por meio do ataque e da defesa, construindo cenários de completa
cegueira para outras perspectivas – afinal, consolidou-se o entendimento de que: em
nome da defesa, afasta-se tudo que é estranho; mesmo que esse estranho não
represente nenhum perigo, ele deve ser eliminado em virtude de sua alteridade¹.
8 DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À
JUSTIÇA EM TEMPOS DE COVID-19: diálogos multidisciplinares

O fato de um paradigma ter suas bases questionadas e seu conjunto de elementos


centrais postos à reflexão, pode indicar o seu declínio. A possibilidade de construção
de novos paradigmas pode ser vista no caminho percorrido pelo estudo
multidisciplinar dos direitos humanos e das políticas públicas de acesso à justiça ainda
em tempos de pandemia, proposto pelas consagradas pesquisadoras Rosane
Teresinha Carvalho Porto, Janaína Machado Sturza e Tânia Regina Silva Reckziegel
nesta obra. Verifica-se, neste cenário desafiador proposto pelas organizadoras, a
necessidade da luta pelo reconhecimento de direitos às populações historicamente
marginalizadas, a qual implica em marcas significativas de aproximação entre as mais
diversas áreas do conhecimento como possibilidade de pensar novos alicerces e novas
direções aos direitos humanos e às políticas públicas de acesso à justiça.
Como forma de atingir os objetivos perseguidos pelas organizadoras da presente
obra científica, onze foram as contribuições de autores das mais diversas áreas do
conhecimento e dos recantos deste mundo afora: Porto e Correira, ao inaugurar as
discussões, buscam dialogar com as políticas públicas de acesso à justiça a partir de
dados oficiais brasileiros sobre demandas trabalhistas surgidas, ou talvez agravadas,
em tempos de Covid-19. Na sequência, Gambacorta traz a sua contribuição com a
construção do conhecimento, vivo e em movimento, a partir da normativa de
emergência e sua aplicação, tendo por fundamento as problemáticas que orbitam as
relações laborais.
Muñoz, fundamentada em uma visão crítica das atuais relações estabelecidas e
impostas na sociedade, adverte sobre a necessidade de exercício do direito a se
desconectar como a única via para erradicar o trabalho sem fim. Reckziegel,
complementando a discussão trazida por Muñoz, reconstrói o longo caminho, ainda
parte para ser trilhado, dos desafios das políticas públicas em tempos de Covid-19.
Para fechar este bloco de profunda reflexão teórica, Sippert e Sturza traçam paralelos
indispensáveis entre o público e o privado em relação à vacinação na pandemia da
Covid-19, partindo do pressuposto da saúde como um bem público global.
Com o olhar para o acesso à justiça em tempos de pandemia, Spengler e
Andrade discutem, com grande maestria, a possibilidade da utilização de soluções
consensuais em conflitos sanitários. Na sequência, dois estudos complementam as
discussões propostas nesta obra: Nogueira e Rebouças, em um contexto brasileiro de
Covid-19, problematizam o aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais,
que trouxeram consigo consequências terríveis para os campos da fome e da
insegurança alimentar. Por sua vez, Costa e Dio�o, com consistente base teórica sobre
questões de gênero, buscam sobrepujar as barreiras culturais associadas aos

1 Trecho sobre defesa imunológica baseado na obra de Han (2017).


Rodrigo Cristiano Diehl
APRESENTAÇÃO 9
estereótipos de gênero, discutindo possíveis estímulos às práticas discriminatórias no
mercado de trabalho.
O último conjunto de estudos desta obra é inaugurado por Schubert e Nielsson,
conversando com os direitos reprodutivos das mulheres a partir das discussões
promovidas pela biopolítica, tendo como marco o caso das esterilizações forçadas no
Peru. Chini e Wermuth, dando continuidade às discussões de gênero, articulam
elementos da monitoração eletrônica de pessoas no âmbito penal com a exceção
ambulatória em corpos femininos e feminizados. E, por fim, porém sem encerrar as
problemáticas levantadas nesta obra, Barcellos explora, sob um contexto contraditório
de vulnerabilidades e de proteção integral, a vacinação de crianças no Brasil.
Ainda que os estudos sobre os direitos humanos possam ser recentes se
comparados aos milênios de história da humanidade, não restam dúvidas de que no
âmbito formal eles alcançaram patamares de excelência, lançando o desafio da sua
efetivação em caráter universal. Contudo, é no campo da materialidade que os
obstáculos para sua efetivação se tornam cada vez mais evidentes, ainda mais quando
utilizado como marco temporal a ocorrência da pandemia da Covid-19 com todas as
suas consequências e desafios.
Questionar algumas bases até então consolidadas sobre a efetivação de políticas
públicas de acesso à justiça na condição de direito humano. possibilita, de forma inicial
e incidental, suscitar três reflexões: I) verificar uma nova realidade para o acesso à
justiça e a pacificação adequada aos conflitos, partindo de uma revolução democrática
da justiça (Boaventura de Sousa Santos); II) compreender o direito e a justiça para
além de codificações, repensando o papel do direito e de seus operadores em uma
sociedade classificada como contemporânea (Luis Alberto Warat); e III) traduzir este
mesmo mundo contemporâneo e líquido a partir de seus reflexos, tanto para os
indivíduos quanto para a coletividade, especialmente no campo das políticas públicas
(Zygmunt Bauman).
Sem mais delongas, convido você a mergulhar por cada palavra, linha e
parágrafo desta grande obra e, para juntos, refletirmos sobre a possibilidade de
construir um novo olhar acerca dos direitos humanos e das políticas públicas de
acesso à justiça em tempos de Covid-19.

RODRIGO CRISTIANO DIEHL


Doutor em Direito.
Integrante da Equipe Recém-Doutor (ARD-FAPERGS/20).
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10 DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À
JUSTIÇA EM TEMPOS DE COVID-19: diálogos multidisciplinares
Daniela Silva Fontoura De Barcellos
PREFÁCIO 11

PREFÁCIO

O estudo e a promoção dos direitos humanos são dois desafios constantes em


meios diferentes: o primeiro embate ocorre na academia; o segundo, na política e na
sociedade. No entanto, esta situação pode ser agravada em ambos os campos, quando
um evento imprevisível e de dimensão global ocorre, como foi o caso da pandemia de
coronavírus, declarada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020.
Em uma situação totalmente adversa como esta, o Brasil decretou estado de
calamidade pública, com a aprovação de um correspondente regime extraordinário
fiscal, financeiro e de contratações, denominado popularmente de “Orçamento de
Guerra”. Assim, direitos fundamentais tão caros como a liberdade e o direito de ir e
vir, foram total ou parcialmente retirados temporariamente em detrimento de bens
jurídicos maiores, quais sejam, a vida e a saúde da coletividade. Medidas para a
prevenção da doença foram autorizadas por leis federais, estaduais e municipais.
No entanto, estas medidas de prevenção aparentemente simples como o uso de
álcool em gel e máscaras, lavar as mãos com água e sabão e a recomendação para a
realização do isolamento social, nem sempre podem ser cumpridas, especialmente
pela população mais vulnerável. A pandemia, portanto, evidenciou as desigualdades
do Brasil, especialmente em relação à prevenção da doença, por vezes dificultada pela
falta de acesso a direitos básicos como moradia e água potável.
Neste contexto, cabe trazer para a análise do contexto pandêmico brasileiro a
teórica crítica norte-americana Nancy Fraser, que defende que a política neoliberal
aderiu à pauta de reconhecimento, entendido como igual respeito e possibilidades
participativas aos valores das diversas culturas, deixando de lado a redistribuição,
entendida como a redistribuição paritária dos recursos materiais. Este fato provocou o
aumento da pobreza e o distanciamento dos mais ricos dos mais pobres.
A pandemia do COVID 19, portanto, evidenciou esta diferença e atingiu mais
gravemente a população pobre e negra devido à carência de políticas de redistribuição
de renda que norteia a política neoliberal de beneficiar apenas o reconhecimento, em
detrimento de políticas de redistribuição. Desta forma, pode-se responsabilizar a falta
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12 DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À
JUSTIÇA EM TEMPOS DE COVID-19: diálogos multidisciplinares

de uma pauta política realmente comprometida com as questões da pobreza, da


redistribuição de renda e da redução de desigualdade como uma das responsáveis
pelos altos índices de óbito decorrentes da COVID 19 na população negra.
Para melhor compreender como os direitos humanos foram mobilizados na
academia, na política e na sociedade, especialmente no que diz respeito ao campo
jurídico e ao acesso à justiça, a UniJuí realizou o II Seminário: Políticas Públicas de
acesso à justiça e direitos humanos em tempos de Covid-19, nos dias 4 e 5 de maio de
2022, com presença de conferencistas nacionais e a apresentação de trabalhos de
mestrandos e doutorandos.
Foram dois dias bastante intensos, com muita reflexão, conteúdo e pontos de
vista com o mesmo pano de fundo: a preservação dos direitos humanos, da saúde e do
funcionamento da justiça, mesmo em condições adversas como em uma pandemia
mundial. Destes dias de intensos debates multidisciplinares sobre políticas públicas de
acesso à justiça e direitos humanos em tempos de Covid-19, resultou esta obra,
organizada pelas pesquisadoras Rosane Teresinha Carvalho Porto, Janaína Machado
Sturza e Tânia Regina Silva Reckziegel.
Como os leitores terão a oportunidade de apreciar, a obra resultante destes
diálogos multidisciplinares coloca em evidência a relação entre as políticas de saúde,
o acesso à justiça e outras divisões de interseccionalidade, como o gênero, a classe e a
raça. Trata-se, portanto, de uma obra indispensável no contexto brasileiro, não apenas
pela atualidade de seus temas, mas pela profundidade das análises, engrandecidas
por um caleidoscópio de visões teóricas, científicas e interdisciplinares.

Boa leitura!
Rio de Janeiro, outono de 2022.

DANIELA SILVA FONTOURA DE BARCELLOS


Doutora em Ciência Política pela UFRGS e Coordenadora adjunta do Programa
de Pós-graduação em Direito da UFRJ.
Rosane Teresinha Carvalho Porto | Janaína Machado Sturza | Tânia Regina Silva Reckziegel
AGRADECIMENTO À FAPERGS 13

AGRADECIMENTO À FAPERGS

Não poderíamos deixar de registrar o agradecimento à Fundação de Amparo à


Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul, que, por meio do EDITAL FAPERGS
09/2021 AUXÍLIO PARA ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS – AOE, viabilizou a
realização do II Seminário políticas Públicas de Acesso à Justiça e Direitos Humano em
Tempos de Covid-19, no âmbito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, bem como a estruturação e publicação desta obra, agora
disponível à comunidade acadêmica e ao público em geral.

Rosane Teresinha Carvalho Porto


Janaína Machado Sturza
Tânia Regina Silva Reckziegel
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 - POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA:


DADOS NO BRASIL SOBRE AS DEMANDAS TRABALHISTAS EM
TEMPOS DE COVID-19 17
Rosane Teresinha Carvalho Porto / Lauren Carolina Vieira Correira

CAPÍTULO 2 - LA NORMATIVA DE EMERGENCIA Y SU APLICACIÓN:


problemáticas en torno a las relaciones laborales en el escenario de la
pandemia del Covid-19 41
Mario Luis Gambacorta

CAPÍTULO 3 - EL DERECHO A DESCONECTARSE: la única vía de


erradicar el trabajo sin fin 53
Daniela Andrea Allende Muñoz

CAPÍTULO 4 - OS DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM


TEMPOS DE COVID-19 69
Tânia Regina Silva Reckziegel

CAPÍTULO 5 - A SAÚDE COMO BEM PÚBLICO GLOBAL: a vacina na


pandemia Covid-19 entre o público e o privado 83
Evandro Luis Sippert / Janaína Machado Sturza

CAPÍTULO 6 - ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA DE


COVID-19: uma solução consensual para os conflitos sanitários 97
Fabiana Marion Spengler / Thaís de Camargo Oliva Rufino Andrade
CAPÍTULO 7 - INSEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO À JUSTIÇA
NO BRASIL DA COVID 19 111
Maurício Soares de Sousa Nogueira / Gabriela Maia Rebouças

CAPÍTULO 8 - AS BARREIRAS CULTURAIS ASSOCIADAS AOS


ESTERIÓTIPOS DE GÊNERO: possíveis estímulos às práticas
discriminatórias no mercado de trabalho e os óbices impostos na
garantia de oportunidades equânimes entre os gêneros 125
Marli M. Moraes da Costa / Nariel Dio�o

CAPÍTULO 9 - DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES


NO CENTRO DA BIOPOLÍTICA: o caso das esterilizações
forçadas no Peru 143
Fernanda Lavinia Birck Schubert / Joice Graciele Nielsson

CAPÍTULO 10 - MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS EM


ÂMBITO PENAL: uma análise da exceção ambulatória em corpos
femininos e feminizados 155
Mariana Chini / Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

CAPÍTULO 11 - A VACINAÇÃO DAS CRIANÇAS NO BRASIL:


diálogos necessários com base na vulnerabilidade e na proteção
integral 169
Daniela Silva Fontoura de Barcellos

CAPÍTULO 12 - O ESVAZIAMENTO DO DEBATE POLÍTICO DAS


QUESTÕES PERTINENTES À REDISTRIBUIÇÃO E O
AGRAVAMENTO DOS EFEITOS DA PANDEMIA NA POPULA-
ÇÃO NEGRA 185
Denise Bi�encourt
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
POLÍTICAS PÚBLICAS DE
ACESSO À JUSTIÇA
dados no Brasil sobre as demandas
trabalhistas em tempos de Covid-19

Rosane Teresinha Carvalho Porto / Lauren Carolina Vieira Correira


SUMÁRIO

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA:


dados no Brasil sobre as demandas trabalhistas
em tempos de Covid-19²

Rosane Teresinha Carvalho Porto³


Lauren Carolina Vieira Correira⁴

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Bem se sabe que a pandemia instaurada em 2020 em face da propagação do
coronavírus (SARS-CoV-2.), trouxe consigo alterações comportamentais consideráveis
na sociedade em geral, desde as relações mais básicas até as questões mais complexas.
Não sendo, pois, diferente no âmbito trabalhista, tanto no que condiz ao próprio
desenvolvimento das atividades, quanto em relação a possíveis demandas jurídicas
decorrentes do seu exercício.

2 Resultados parciais do projeto Recém-Doutora ARD-FAPERGS/20.


3 Doutora em Direito pela UNISC. Mestre em Direito na área de concentração: Políticas Públicas de Inclusão Social
com bolsa Capes. Estágio Pós-doutoral em Direito pela Universidade La Salle, sob a orientação do Dr. Daniel
Achu�i. Pós-doutoranda pela UFRGS, sob orientação da Dra. Luciane Cardoso Barzo�o. Especialização pela
PUCRS em Docência no Ensino Superior. Especialização pela PUCRS em Nova Educação, Metodologias e Foco no
Aluno. Professora-permanente na Unijuí no Curso de Graduação em Direito e no Programa de Pós-graduação em
Direito — Mestrado e Doutorado. Professora no Curso de Graduação em direito e no Curso de Pós-graduação Lato
Sensu na UNISC. Estuda temáticas voltadas a crianças e adolescentes, direitos sociais, Acesso à Justiça e soluções de
conflitos entre elas: mediação e justiça restaurativa. Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica & Direitos
Humanos (CNPq). Integrante do grupo de pesquisa Direito e Fraternidade da UFRGS (Capes/ CNPq). Integrante
da equipe de trabalho do projeto Rede de cooperação acadêmica e de pesquisa: eficiência, efetividade e
economicidade nas políticas de segurança pública com utilização de monitoração eletrônica e integração de banco
de dados (Edital Procad/ Capes no16/2020). Pesquisadora Recém-doutora ARD-FAPERGS"; Email:
rosane.cp@unijui.edu.br.
4 Graduanda em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Bolsista de
Iniciação científica PIBIC/ UNIJUI no projeto de pesquisa Políticas Públicas de Acesso à Justiça em tempos de
COVID-19: Limites e possibilidades da mediação sanitária nas demandas judiciais de trabalhadores no Brasil,
Argentina e Chile, sob coordenação da Profa. Dra. Rosane Teresinha Carvalho Porto, e-mail:
laurencorreia.v@hotmail.com.
SUMÁRIO

Nesse sentido, considerando toda a sorte de mudanças sociais ocasionadas


durante o período pandêmico, faz-se necessário avaliar e aprofundar a questão
concernente ao acesso à justiça dos trabalhadores, em perspectiva com os direitos
humanos, uma vez que o próprio direito do trabalho constitui um direito Social, que
deve, em sua condição, ser exercido de forma a considerar e proteger a dignidade de
quem o exerce, sendo o trabalho decente, inclusive, um dos objetivos de
desenvolvimento sustentável (ODS’s) apresentados pela chamada Agenda 2030.
Tal agenda foi firmada em 2015 por 193 países integrantes das Nações Unidas,
incluindo o Brasil, e constitui-se em uma declaração ou, nos termos de seu preâmbulo,
em “um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade” (ONU,
2015), baseado na preocupação da relação sociedade X mundo, em perspectiva da
sustentabilidade. Assim, a Agenda aborda as dimensões econômica, social e ambiental
do desenvolvimento sustentável, e inclui, para alcance até o ano de 2030, 17 objetivos
e 169 metas, sendo a promoção do trabalho decente e crescimento econômico o oitavo
desses objetivos.
Tendo em vista a busca pela efetividade dos direitos humanos na via das políticas
públicas de acesso à justiça, é necessário avaliar a questão de “fora da caixa”,
considerando a singularidade da situação. Assim intenta o projeto de pesquisa
“POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS DE COVID-19:
Limites e possibilidades da mediação sanitária nas demandas judiciais de
trabalhadores no Brasil, Argentina e Chile”, apoiado pelo Fundo de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), através do Auxílio Recém
Doutor.
Projeto este no qual se dá enfoque à situação das demandas trabalhistas em
tempos de pandemia no contexto da América Latina, mais precisamente no Brasil,
Argentina e Chile, respeitando as suas particularidades, tendo como temática base do
projeto a análise das legislações, jurisprudências e políticas públicas de acesso à justiça
em relação às demandas judiciais dos trabalhadores, considerando a persistência da
Covid-19, conjuntamente com a verificação da possibilidade de utilizar a mediação
sanitária como alternativa para a resolução das demandas suscitadas. Isso tudo em um
enfoque comparativo entre Brasil, Argentina e Chile, a partir da perspectiva da
biopolítica.
Assim, o problema norteador da pesquisa corresponde à seguinte indagação:
Quais os impactos da pandemia nas relações trabalhistas e quais os limites e as
possibilidades da utilização da mediação sanitária como prevenção de conflitos e de
acesso à justiça no Brasil, Argentina e Chile, analisando aspectos relacionados à
proteção da saúde do trabalhador nestes locais?
SUMÁRIO

Partindo da hipótese de que a aplicação da mediação sanitária é viável estando


aliada a algumas políticas públicas, a pesquisa possui como objetivo geral analisar as
políticas públicas de acesso à justiça e prevenção de conflitos, os debates
jurisprudenciais e as legislações sob a ótica da proteção dos direitos do trabalhador, a
partir do marco teórico biopolítico, destacado nos estudos de Giorgio Agamben e
Michel Foucault, bem como dos limites e possibilidades de aplicação da mediação
sanitária como uma dessas políticas, em uma perspectiva comparada entre Brasil,
Chile e Argentina, para então evidenciar se as demandas suscitadas teriam resolução
aprazível utilizando a mediação sanitária.
O texto está estruturado da seguinte maneira: no primeiro momento, ao abordar
sobre as demandas judiciais de COVID/19: dados no Brasil, descreve-se como foi e está
sendo realizada a pesquisa vinculada ao projeto Recém-Doutor, apresentando-se
alguns resultados parciais relacionados às demandas e políticas laborais adotadas no
Brasil e, no segundo momento, discorre-se sobre o teletrabalho, sua previsão legal e as
implicações ao teletrabalhador quanto à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais -
LGPD e a pandemia de Covid-19.

1. DEMANDAS JUDICIAIS EM TEMPOS DE COVID-19: DADOS NO BRASIL


Foi realizada pesquisa exploratória através de análise bibliográfica e documental
de diversas bases de dados, principalmente leis e jurisprudências, a fim de formar um
banco de dados consistente sobre a temática, sendo inicialmente, de forma genérica, na
internet utilizando o termo “Covid-19”, a qual suscitou em uma série de resultados em
sua maioria relacionados ao número de casos do vírus.
A partir disso, tendo como enfoque o direito pátrio brasileiro, passou-se,
prontamente, a filtrar a busca, através das legislações e medidas governamentais
adotadas no período 2020-2021, as quais foram verificadas principalmente no site do
Planalto, tendo como exemplo a expedição da Lei nº 13.979/2020, que trouxe
disposições gerais sobre as medidas para enfrentamento do Covid-19. Em seguida,
voltou-se para a questão trabalhista em si, partindo da busca por legislações, a
exemplo da Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020, a qual instituiu o Programa
Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda, dentre outras disposições, até o
alcance de algumas bases de dados e observatórios já existentes sobre o tema, as quais
demonstraram ser pertinentes e foram anexadas em uma tabela específica,
respeitando a seguinte forma:

FONTE ASSUNTO LINK

Dentre as bases de dados encontradas, cabe ressaltar a plataforma colaborativa


das bibliotecas da Justiça do Trabalho, produzida pelo CSJT (Conselho Superior da
SUMÁRIO

Justiça do Trabalho), a qual compila diversas informações sobre a influência da Covid-


19 no Direito do Trabalho. Seguindo essa linha, é possível encontrar base de dados no
site da OIT, contendo as medidas adotadas para enfrentamento da Covid-19 em
alguns países, incluindo Brasil, Argentina e Chile.
Em seguida, passou-se à análise das demandas suscitadas nos Tribunais,
partindo do pressuposto que a pesquisa jurisprudencial, em geral, objetiva identificar
as principais demandas laborais levadas aos tribunais durante a pandemia, a fim de
mapear quais assuntos tem incidência durante o período, bem como verificar a
possibilidade ou incidência de políticas públicas de acesso à justiça, tal qual à
mediação sanitária, sempre sob a perspectiva dos direitos humanos e da biopolítica.
Assim, foi realizada pesquisa específica no Supremo Tribunal Federal (STF),
Tribunal Superior do Trabalho (TST) e nos Tribunais Regionais do Trabalho do Rio de
Janeiro (TRT 1), São Paulo (TRT 2), Rio Grande do Sul (TRT 4), Paraná (TRT 9) e Minas
Gerais (TRT 3), considerados os de maior destaque do país. A partir desta pesquisa, já
foi possível vislumbrar algumas demandas trabalhistas específicas do período
pandêmico. Doravante, foi organizado um documento no Word, em formato de
tabela, onde foram anexados os resultados obtidos na análise, conforme o seguinte
modelo:

TRIBUNAL/FONTE NOTÍCIA DATA LINK

Assim, em cada um dos tribunais citados foram consultadas, primeiramente,


as notícias concernentes ao Covid-19, onde já se pôde vislumbrar certo padrão nas
demandas, no entanto, ainda sem profundidade. Seguindo essa linha, deu-se
início, de fato, à pesquisa jurisprudencial em cada um dos tribunais citados,
sendo utilizados termos como “coronavírus”, “Covid-19”, “Covid” e “pandemia”
na barra de pesquisas. Tal abordagem tinha como intuito fazer uma avaliação
jurisprudencial geral das demandas trabalhistas tidas como específicas do estado
pandêmico. Em vista de muitas demandas do período não possuírem citação dos
termos pesquisados na ementa, passou-se a uma pesquisa mais profunda,
filtrando os resultados por data posterior a janeiro de 2020. Estabelecendo esse
filtro, os resultados esperados começaram a aparecer, permitindo-se vislumbrar
os tipos de demandas suscitadas mais amplamente. Assim, foi possível começar
a formar uma base de dados, seguindo o seguinte formato de tabela:

TRIBUNAL TEMA PALAVRAS-CHAVE EMENTA e LINK


SUMÁRIO

Conforme a pesquisa nos tribunais avançava, foi percebido que os mesmos


também já possuíam uma base de dados própria, a exemplo do TRT 9, do estado do
Paraná, e Consolidação de Informativos do TRT4, do estado do Rio Grande do Sul, o
que, por certo, facilitou o desenvolvimento das atividades. Tais bases possuíam desde
jurisprudências até artigos sobre a temática dos trabalhadores na pandemia. Inclusive,
foi produzida uma tabela específica com link e informações sobre as bases verificadas,
cabendo ressaltar que o acesso a determinadas obras permitiu realçar a própria
natureza exploratória da pesquisa.
Com a coleta de dados, permitiu-se realizar um filtro dos tipos de demandas
trabalhistas suscitadas, o que servirá como um dos indicadores para as próximas
etapas do projeto de pesquisa. Nesse sentido, foi observado que alguns temas se
fizeram presentes em praticamente todos os tribunais, sendo em parte provenientes
especificamente do estado pandêmico atual, enquanto outros são adequações de
temas já demandados, uma vez que se trata de direitos já adquiridos nas relações
trabalhistas.
Observa-se a incidência massiva dos seguintes temas nos tribunais
analisados:Imperativo ressaltar, nesse ponto, que os temas alcançados a partir da
comparação das demandas analisadas no Tribunal Superior do Trabalho, Supremo

SUSPENSÃO DE ATIVIDADES

REINTEGRAÇÃO

DOENÇA OCUPACIONAL

AUXÍLIO EMERGENCIAL

CITAÇÃO POR MEIOS TELEMÁTICOS

AUDIÊNCIA TELEPRESENCIAL

TEMAS GRUPO DE RISCO


DEMANDADOS
TELETRABALHO

TESTAGEM COVID-19

JUSTA CAUSA

FORÇA-MAIOR

ESTABILIDADE PROVISÓRIA/ GARANTIA PROVISÓRIA DE


EMPREGO/ NÃO DEMISSÃO

OBSERVAÇÃO MEDIDAS DE PROTEÇÃO


SUMÁRIO

RETORNO AO TRABALHO

FATO PRINCÍPE

MEDIDAS/DETERMINAÇÕES DE SEGURANÇA

LEVANTAMENTO FGTS

SALÁRIO

PARCELAS RESCISÓRIAS

DISPENSA

RESCISÃO CONTRATUAL

INSALUBRIDADE

PENHORA

RECURSOS PÚBLICOS/SAÚDE

NEGOCIAÇÃO COLETIVA

COTA DE APRENDIZES

LABOR AOS FERIADOS

PRESCRIÇÃO

EXECUÇÃO

OBRIGAÇÃO DE DAR E FAZER

ACORDO JUDICIAL

INDENIZAÇÃO

Tribunal Federal e nos cinco Tribunais Regionais do Trabalho destacados, de forma


alguma, constituem a integralidade das demandas suscitadas nos mesmos durante o
estado pandêmico, mas refletem aquelas cuja incidência se faz repetitiva e presente em
sua maioria.
A partir dos temas citados, pode-se fazer alusão à questão da demissão, a qual,
por certo, não surgiu nos tribunais em decorrência do Covid-19, mas teve, em suas
próprias causas de pedir, considerando as particularidades de cada caso, alterações
próprias do período pandêmico, como é o caso de diversas proposições em face do
chamado “compromisso público de não demissão”, bem como da presença de força
maior, como se percebe nas seguintes decisões:
SUMÁRIO

AGRAVO. CORREIÇÃO PARCIAL. LIMINAR DEFERIDA.


REINTEGRAÇÃO DE EMPREGADO DISPENSADO NO
CURSO DA PANDEMIA DA COVID-19. COMPROMISSO
PÚBLICO “NÃO DEMITA”. AUSÊNCIA DE SUPORTE
JURÍDICO. 1 - Decisão corrigenda consubstanciada em
deferimento de liminar em mandado de segurança em que
determinada a reintegração de trabalhador dispensado no curso
da pandemia da COVID-19 com fundamento em compromisso
público firmado pelo requerente ao aderir ao movimento “NÃO
DEMITA”. 2 – A ausência de clareza quanto ao suporte jurídico
da ordem de reintegração, ou seja, a inexistência de
fundamentação quanto à hipótese de garantia de emprego que
ampara a medida, consubstancia decisão carente de coerência
argumentativa e incorre na hipótese prevista no parágrafo único
do art. 13 do RICGJT. Agravo a que se nega provimento" (TST,
CorPar-1001139-13.2021.5.00.0000, Órgão Especial, null, DEJT
14/10/2021).

RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMADO. DISPENSA POR


FORÇA MAIOR. PANDEMIA COVID-19. IMPOSSIBILIDADE.
Não configuram força maior, tal como prevista nos arts. 501 e 502
da CLT, os problemas financeiros ocasionados pela pandemia da
COVID-19. Devido o pagamento integral das parcelas rescisórias
dos trabalhadores, cujos contratos foram rescindidos por
iniciativa do empregador, sem que houvesse extinção do
estabelecimento de trabalho. Provimento negado.
(TRT da 4ª Região, 5ª Turma, 0020345-64.2020.5.04.0352 ROT, em
19/10/2021, Desembargador Manuel Cid Jardon - Relator).

DISPENSA DISCRIMINATÓRIA NÃO COMPROVADA.


AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA. REINTEGRAÇÃO.
PANDEMIA DE COVID-19. No tocante à estabilidade
decorrente da pandemia de COVID-19, a autora, à época em que
fora dispensada, não a detinha, pois a adesão do banco
reclamado ao movimento de não demitir seus empregados se
restringiu até 01/09/2020, data anterior à dispensa da Obreira, não
configurada, portanto, nenhuma causa impeditiva à ruptura do
vínculo laborativo (TRT da 3ª Região, 8ª Turma,
0010806-63.2020.5.03.0009 (ROT), Redator Convocado Carlos
Roberto Barbosa).

COVID-19. ADESÃO AO MOVIMENTO "NÃO DEMITA".


NULIDADE DA DISPENSA IMOTIVADA. NÃO
CONFIGURAÇÃO. Restando demonstrado que o compromisso
publicamente assumido pelo reclamado de não promover o
desligamento de seus empregados durante a pandemia de
Covid-19 teve duração de sessenta dias, e que a despedida
SUMÁRIO

ocorreu após esse período, não há que se falar em nulidade da


dispensa, com os consectários daí resultantes. (TRT da 1ª Região
-0100893-39.2020.5.01.0068 - DEJT 2021-09-04. Terceira Turma.
RILDO ALBUQUERQUE MOUSINHO DE BRITO).

Assim, em que pese a continuidade do projeto de pesquisa, já é possível demarcar


alguns pontos acerca dos reflexos e as grandes implicações da Covid-19 nas relações
trabalhistas, refletidas nas demandas judiciais e disposições normativas brasileiras,
considerando toda a necessidade de adequações sociais do período pandêmico.

2. UM NOVO REGIME? INDAGAÇÕES SOBRE TELETRABALHO


Questões que já eram perceptíveis, tornaram-se inegáveis com a pandemia do
coronavírus, sendo, talvez, o maior exemplo disso a necessária adequação nas relações
mais básicas de convivência para o modelo virtual. Certo é que o momento atual é o
império da era digital, até mesmo atribuída de Quarta Revolução Tecnológica
(SCHWAB, 2016), a qual vem se desenvolvendo gradativamente, mas que encontrou
na pandemia uma forma de expansão acelerada, dada a necessidade social.
Nesse sentido, tendo em vista o âmbito trabalhista, tanto as empresas, quanto
empregadores tiveram que se adequar ao modelo “digital”, o que também refletiu no
Judiciário e demais áreas ligadas à observação das relações trabalhistas. E aqui tem-se
o romper do teletrabalho, trabalho remoto ou Home-Office.
Para fins de melhor compreensão, faz-se necessário conceituar o teletrabalho, o
que, antecipa-se, não consiste em uma tarefa demasiadamente fácil, mas por certo
necessária. Assim, não há a intenção de esmiuçar o conceito, abordando
profundamente suas raízes e distinções, mas, ao menos, busca-se tentar clarear a
mente quanto ao tema abordado, a fim de possibilitar certa reflexão.

2.1 Do Teletrabalho, Trabalho Remoto e Home Office (Trabalho em Domicílio)


Primeiramente, cabe destacar o que se tem por trabalho em domicílio. Conforme
interpretação do art. 83, da CLT, o Trabalho em domicílio é aquele “executado na
habitação do empregado ou em oficina de família, por conta de empregador que o
remunere” (BRASIL, 1943). Não havendo distinções “entre o trabalho realizado no
estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o
realizado à distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de
emprego” (BRASIL, 1943), conforme dispõe o art. 6º da CLT.
Nesse sentido, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou no ano
de 2021 um relatório intitulado “Working from home: From invisibility to decent work”, em
tradução livre, “O trabalho em domicílio: Da invisibilidade ao trabalho decente” (OIT,
SUMÁRIO

2021), adotando conceituação pautada na Convenção nº. 177 de 1996, da qual o Brasil
não é signatário, mas, tendo em vista que a Argentina ratificou a convenção em 2006,
faz-se cabível destacar aqui o que dispõe em seu artigo primeiro:

Artículo 1
A los efectos del presente Convenio:
(a) la expresión trabajo a domicilio significa el trabajo que una
persona, designada como trabajador a domicilio, realiza:
(i) en su domicilio o en otros locales que escoja, distintos de los
locales de trabajo del empleador;
(ii) a cambio de una remuneración;
(iii) con el fin de elaborar un producto o prestar un servicio
conforme a las especificaciones del empleador,
independientemente de quién proporcione el equipo, los
materiales u otros elementos utilizados para ello,
a menos que esa persona tenga el grado de autonomía y de
independencia económica necesario para ser considerada como
trabajador independiente en virtud de la legislación nacional o de
decisiones judiciales;
(b) una persona que tenga la condición de asalariado no se
considerará trabajador a domicilio a los efectos del presente
Convenio por el mero hecho de realizar ocasionalmente su
trabajo como asalariado en su domicilio, en vez de realizarlo en
su lugar de trabajo habitual;
(c) la palabra empleador significa una persona física o jurídica
que, de modo directo o por conducto de un intermediario, esté o
no prevista esta figura en la legislación nacional, da trabajo a
domicilio por cuenta de su empresa (OIT, 1996).

Ademais, no relatório citado, a OIT estima que no ano de 2019, antes da


COVID-19, havia em todo o mundo cerca de 260 milhões de trabalhadores em
domicílio, o que representa cerca de 7,9% do emprego mundial (OIT, 2021, p.1), já
adiantando notáveis mudanças nesses números ao decorrer na Pandemia.
Em que pese a convenção trate sobre o trabalho em domicílio, o conceito adotado
é muito semelhante ao teletrabalho. Há de se ter em vista que o Teletrabalho não se
esgota no modelo de trabalho em domicílio, uma vez que, a exemplo do que se tem
visto durante a pandemia, é possível estar trabalhando remotamente, até mesmo nas
dependências do empregador, a exemplo das aulas ministradas de forma online, ou
até mesmo em outros lugares, como telecentros, lan houses, residências de terceiros,
entre outros. Em outras palavras:

O teletrabalho é mais do que uma modalidade de trabalho em


domicílio. É um conceito de organização laboral por meio da qual
o prestador dos serviços encontra-se fisicamente ausente da sede
SUMÁRIO

do empregador, mas virtualmente presente, por meios


telemáticos, na construção dos objetivos contratuais do
empreendimento (MARTINEZ, 2020, p. 387).

Valendo-se dos estudos de Maria Aparecida Bridi (2020, p.176), é possível dizer
que o teletrabalho, caracterizado como aquele exercido fora do espaço da empresa,
não é um modelo totalmente novo, mas ao longo dos anos teve maior impacto nas
relações trabalhistas em si, em razão do próprio desenvolvimento tecnológico,
principalmente após a revolução informativa da década de 1970. Para a autora, o
teletrabalho está permeado de certa incongruência conceitual e, embora não possa ser
visto totalmente separado do trabalho em domicílio, com esse não se confunde, nesse
sentido:

O trabalho remoto, que já era uma realidade para milhões de


trabalhadores pelo mundo e que ganhou proeminência na crise
da pandemia da COVID-19 de 2020, refere-se ao trabalho
realizado exclusivamente no domicílio do trabalhador, por isso é
utilizado também como sinônimo de home office (BRIDI, 2020, p.
176).

Assim, pode-se dizer que:

A grosso modo, o teletrabalho e o home office cumprem


dinâmicas semelhantes, de forma que, em tradução literal, o
teletrabalho pode transparecer uma espécie de home office;
porém, o contrário não corresponde à realidade, de forma que
nem todo home office é teletrabalho (ROSSETTO; MORAES,
2022, p. 493).

No entanto, no presente artigo, os termos Home office e trabalho remoto serão


utilizados como sinônimos de teletrabalho, considerando a difusão social de tais
termos nessa condição, bem como a própria disposição legal.
Há de se destacar que o teletrabalho é fruto da contemporaneidade, “surgindo
num contexto no qual o sistema fabril clássico está em evidente declínio” (MAÑAS,
2003, p. 128). Para o autor existem alguns elementos básicos distintivos do teletrabalho
para com as demais modalidades de trabalho, quais sejam:

a) a utilização de novas tecnologias, em especial a de


telecomunicações, informática, com os instrumentos a eles
inerentes, tais como o telefone, computador, fax, secretária
eletrônica.
b) a prestação de serviços ocorre geralmente na residência do
SUMÁRIO

teletrabalhador, mas pode se dar em telecentros ou de forma


nômade, sem um local fixo e certo, podendo também o
teletrabalhador cumprir parte de sua jornada na empresa e, a
outra parte, longe dos olhos do empregador.
c) a permanente troca de informações entre os sujeitos da relação,
não exigindo o contrato direto, pessoal e contínuo, eis que quase
todos os atos se dão por meio da Internet ou mesmo por linha
telefônica (MAÑAS, 2003, p. 129).

No Brasil, a Lei nº. 13.467, de 13 de julho de 2017, incorporou o teletrabalho na


CLT, adicionando o Capítulo II-A ao Título II, expondo, a partir do art. 75-A,
disposições sobre a prestação de serviços no regime do teletrabalho. Tendo em vista
toda sorte de mudanças ocasionadas no período pandêmico, em 25 de março de 2022
foi expedida a Medida Provisória nº 1.108, a qual altera a Lei nº 6.321, de 14 de abril de
1976 e a Consolidação das Leis do Trabalho, elencando em seus artigos algumas
disposições gerais sobre o teletrabalho, como se percebe na alteração do art. 75-B da
CLT. Assim, pode-se fazer um comparativo entre o disposto inicialmente pela Lei nº
13.467/2017 e o que foi alterado no respectivo artigo, em 2022, como se observa abaixo:

Art. 75-B da CLT – redação antiga Art. 75-B da CLT – redação atualizada
Art. 75-B. Considera-se teletrabalho a Art. 75-B. Considera-se teletrabalho ou
prestação de serviços preponderantemente trabalho remoto a prestação de serviços
fora das dependências do empregador, fora das dependências do empregador, de
com a utilização de tecnologias de maneira preponderante ou não, com a
informação e de comunicação que, por sua utilização de tecnologias de informação e
natureza, não se constituam como trabalho de comunicação, que, por sua natureza,
externo não se configure como trabalho externo.
Parágrafo único. O comparecimento às
dependências do empregador para a § 1º O comparecimento, ainda que de modo
realização de atividades específicas que habitual, às dependências do empregador
exijam a presença do empregado no para a realização de atividades específicas,
estabelecimento não descaracteriza o que exijam a presença do empregado no
regime de teletrabalho (BRASIL, 2017, estabelecimento, não descaracteriza o
grifos do autor). regime de teletrabalho ou trabalho remoto.
§ 2º O empregado submetido ao regime de
teletrabalho ou trabalho remoto poderá
prestar serviços por jornada ou por
produção ou tarefa.
SUMÁRIO

§ 3º Na hipótese da prestação de serviços


em regime de teletrabalho ou trabalho
remoto por produção ou tarefa, não se
aplicará o disposto no Capítulo II do Título
II desta Consolidação
§ 4º O regime de teletrabalho ou trabalho
remoto não se confunde e nem se equipara
à ocupação de operador
de telemarketing ou de teleatendimento.
§ 5º O tempo de uso de equipamentos
tecnológicos e de infraestrutura necessária,
e de softwares, de ferramentas digitais ou
de aplicações de internet utilizados para o
teletrabalho, fora da jornada de trabalho
normal do empregado não constitui tempo
à disposição, regime de prontidão ou de
sobreaviso, exceto se houver previsão em
acordo individual ou em acordo ou
convenção coletiva de trabalho.
§ 6º Fica permitida a adoção do regime de
teletrabalho ou trabalho remoto para
estagiários e aprendizes.
§ 7º Aos empregados em regime de
teletrabalho aplicam-se as disposições
previstas na legislação local e nas
convenções e acordos coletivos de trabalho
relativas à base territorial do
estabelecimento de lotação do empregado.
§ 8º Ao contrato de trabalho do empregado
admitido no Brasil que optar pela
realização de teletrabalho fora do território
nacional, aplica-se a legislação brasileira,
excetuadas as disposições constantes na Lei
nº 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo
disposição em contrário estipulada entre as
partes.
§ 9º Acordo individual poderá dispor sobre
os horários e os meios de comunicação
entre empregado e empregador, desde que
assegurados os repousos legais (BRASIL,
2022b, grifo nosso).
SUMÁRIO

Ao caracterizar o teletrabalho, na redação dada em 2017, o legislador foi mais


incisivo ao considerar como aspecto fundamental a preponderância do regime de
trabalho fora das dependências do empregador, embora o empregado pudesse
comparecer ao local eventualmente, sem descaracterizar o regime de teletrabalho,
como se lia no parágrafo único. Isto é, ainda que o empregador trabalhasse com
frequência em tal regime, ele estaria “juridicamente desvirtuado” caso não houvesse
“uma clara prevalência diante das tarefas desempenhadas sob controle patronal direto
ou presencial” (TOLEDO FILHO, 2019, p. 21). Nota-se que essa não era uma visão tão
antiga, mas de pouco anos antes da pandemia do coronavírus eclodir, o que reforça, a
sua maneira, o impacto do período de isolamento e o próprio avanço tecnológico nas
relações trabalhistas.
A respeito do tratamento dispendido ao teletrabalho durante a pandemia, é
possível, ainda, destacar a expedição da Lei nº 14.311, de 9 de março de 2022, a qual
altera disposições da Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021, disciplinando acerca do
afastamento da empregada gestante, inclusive a doméstica, não imunizada contra o
coronavírus sars-cov-2 das atividades presenciais, no caso de incompatibilidade da
atividade laboral exercida com a sua realização à distância (BRASIL, 2022a). Sem
esquecer da Medida Provisória nº. 927/ 2020 (já revogada), a qual dispôs medidas para
o enfrentamento da Covid-19 no âmbito trabalhista, instituindo o teletrabalho como
uma possibilidade de o empregador adotar o regime de teletrabalho, como alternativa
para preservação de renda e emprego durante o estado pandêmico (BRASIL, 2020),
sendo essas medidas provenientes do “direito de trabalho emergencial” (BARZOTTO,
SICILIANI; JOBIM; GRAMINHO, 2021, p. 20).

2.1.1 Do teletrabalhador e a proteção de dados pessoais: Considerações sobre a


LGPD
“No atual contexto da sociedade informacional, é cediço que o poder econômico
se mede pela capacidade de coletar e armazenar informações que identificam ou
possam identificar pessoas, que são utilizadas de maneira muito criativa com evidente
geração de lucros” (MARQUES; LIMA. C., 2022, p. 58). Essa consiste em uma das
grandes preocupações para com o regime do teletrabalho. Considerando que o
teletrabalhador, em geral, não estava preparado para exercer as atividades em tal
regime, a proteção dos dados pessoais surge como uma necessidade e garantia dos
próprios direitos fundamentais. Assim, a Proteção de dados é medida que se faz
necessária tanto para proteger o teletrabalhador, quanto para evitar o lucro e acesso
desmedido de plataformas coletoras de dados, como o Google, por exemplo
(MARQUES; LIMA. C., 2022, p. 58).
SUMÁRIO

Ademais, o teletrabalho consiste em uma modalidade de trabalho flexibilizada ou


flexibilizatória, onde o tempo e o espaço da prestação de serviços não se condicionam
ao modelo tradicional (FINCATO, 2019, p. 59).
Assim, outra questão pertinente é a divisão de horários, visto que, ao trabalhar de
casa ou de outro espaço diverso do local de trabalho habitual, nas dependências do
empregador, em boa parte dos casos não há uma espécie de “ponto digital”, isto é,
uma fiscalização dos empregadores, o que é, também, outra situação insurgente de tal
modalidade de trabalho. Diante disso há uma clara e, a sua maneira, súbita
necessidade de adequação, tanto por parte dos trabalhadores, quanto dos
empregadores. Nesse sentido:

A transposição do local de trabalho da empresa para a residência


do trabalhador não trouxe a este apenas comodidade, mas
também uma série de questões envolvendo sua saúde laboral,
uma vez que a preservação do meio ambiente laboral
“residencial” é mais complexa, exigindo cautela para que não se
violem direitos da personalidade fundamentais, a exemplo da
privacidade e intimidade desse trabalhador (FREITAS, 2022, p.
309).

Após a Medida Provisória nº 1.108 de 2022, foi acrescentado o inciso III ao art. 62,
da CLT, contando com a seguinte disposição:

Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:


I - os empregados que exercem atividade externa incompatível
com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser
anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro
de empregados;
II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de
gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste
artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.
III - os empregados em regime de teletrabalho que prestam
serviço por produção ou tarefa (BRASIL, 1943).

Tal artigo diz respeito ao regime de trabalho extraordinário, isto é, a jornada de


trabalho que ultrapassar o limite de 44 horas semanais estabelecidas no art. 7º, XIII, da
Constituição Federal da República (BRASIL, 1988). Para Mauricio Godinho Delgado e
Gabriela Neves Delgado (2017, p. 126), a jornada de trabalho extraordinária é uma
excepcionalidade e, assim como a chamada jornada suplementar, também ultrapassa
o limite fixado constitucionalmente, porém de forma “comum e repetida”, devendo
contar com a remuneração adicional de 50%, salvo casos específicos.
SUMÁRIO

Embora o teletrabalho reste excluído do regime extraordinário, é preciso reforçar


que “a condição de teletrabalhador não afasta, necessariamente, a possibilidade de
fiscalização do horário de trabalho por parte do empregador, através de sistemas
eletrônicos” (MACEDO; XEREZ, 2016, p. 229), tendo assim, presunção relativa, que,
como tal, admitiria prova em contrário (DELGADO, 2017, p. 138). Contudo, quanto a
isso, tem que se considerar a possibilidade de novas interpretações futuras, tendo em
vista as próprias características do teletrabalho frente à pandemia. Certo é que;

As relações de trabalho presentes na atualidade, sobretudo as


inseridas sob a marca da tecnologia, encontram-se cunhadas
sob o manto da provisoriedade, impregnadas que estão pelo
tom das tendências flexibilistas, da condição da
derrogabilidade e da alterabilidade dos ajustes da norma
legal, incluindo protocolos, diretrizes, regulamentações.
Contudo, é de se levar em consideração que medidas tomadas
de forma apressada, sob o manto da provisoriedade, tendem
a exercer profunda interferência e transfigurar-se sob o
condão da definitividade (ROSSETTO; MORAES, 2022, p.
495).

Justamente por se tratar de tecnologia de informação, e, como tal, algo


relativamente novo nas relações sociais em geral, inclusive trabalhistas, é imperativo
também uma adequação legislativa nesse contexto. Assim, embora não esteja expressa
na lei, à questão de proteção de dados nessa relação sui generis entre teletrabalhador e
empregador no Brasil será aplicada a Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD, visto que
“a relação de trabalho sequer teria como se iniciar e desenvolver sem a coleta,
recepção, armazenamento e retenção de dados pessoais dos empregados ou
candidatos a empregos” (PINHEIRO; BONFIM, 2022, p. 36).
A Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD ou Lei nº. 13.709 de 15 de agosto de
2018, alterou a Lei nº 12. 965 de 23 de abril de 2014, que instituía o chamado Marco
Civil da Internet, a fim de dispor sobre o tratamento de dados pessoais de pessoas
naturais ou jurídicas, inclusive no contexto digital, com o objetivo primordial de
proteção desses dados e, como tal, dos direitos fundamentais e do “livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, conforme versa o seu art. 1º
(BRASIL, 2018).
Nesse sentido, é cediço que:

A Lei Geral de Proteção de Dados tem por fundamentos a


consolidação do respeito à privacidade, autodeterminação
informativa, liberdade, privacidade, desenvolvimentos
econômico e tecnológico, e inovação, bem como a livre-iniciativa,
SUMÁRIO

a livre concorrência e a defesa do consumidor, além dos direitos


humanos, livre desenvolvimento da personalidade e dignidade.
Para garantir a consumação do seu rol de fundamentos, é
especialmente voltada para operações de tratamento de dados,
inclusive nos meios digitais, ou seja, para operações realizadas
com os dados pessoais, desde a sua coleta, até a sua eliminação,
passando pela possibilidade de distribuição e transferência. A
partir dessa ideia, toda e qualquer operação que reflita em algum
tipo de manuseio de dados pessoais, passará pelo crivo da Lei
Geral de Proteção de Dados (SANTOS, 2020, p. 105).

Há, diante disso, uma clara necessidade de adaptação principalmente por parte
do empregador, no que se refere à proteção dos direitos do teletrabalhador no
exercício de suas funções (MEDRADO; LIMA. T., 2022).

2.1.2 Das demandas dos teletrabalhadores na Pandemia


É certo que o isolamento social constituiu um dos principais motivos, senão o
principal, para expansão do teletrabalho no contexto de pandemia. Nesse sentido,
pode-se citar a questão dos grupos de riscos, referentes às pessoas com comorbidade
ou atuantes nas chamadas portas de entrada do enfrentamento da Covid-19, como é o
caso dos profissionais da saúde.
De toda forma, os números podem ser um reflexo desta “nova” realidade, já que,
ao divulgar as estimativas referentes ao período de 20 a 26 de setembro de 2020 na
PNAD – COVID-19, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) alcançou a
medida de 7,9 milhões de pessoas trabalhando remotamente (IBGE, 2020). O alto
contingente de teletrabalhadores e as dúvidas que cercam o regime também foram
refletidas nos tribunais, a exemplo dos seguintes casos:

PANDEMIA. TELETRABALHO. POSSIBILIDADE DE


DEFERIMENTO JUDICIAL. Mesmo diante da pandemia de
COVID-19, a inclusão da pessoa em grupo de risco, por si só,
não autoriza o deferimento indistintamente ao regime de
home office. O reconhecimento do direito ao teletrabalho
depende da análise do caso concreto, sendo possível quando
as condições pessoais demonstrarem risco exacerbado à
saúde do autor. Contudo, em regra, completado o ciclo
imunizatório, o direito fundamental citado foi minimamente
protegido, sendo possível o retorno ao trabalho presencial.
Recurso ordinário da reclamante indeferido.
(TRT da 4ª Região, 4ª Turma, 0020115-20.2021.5.04.0018 ROT,
em 18/08/2021, Desembargadora Ana Luiza Heineck Kruse -
Relatora).
SUMÁRIO

PANDEMIA. COVID-19. TELETRABALHO. EMPREGADO


PORTADOR DE COMORBIDADE. O empregador tem a
obrigação de adotar todas as medidas necessárias para
propiciar um ambiente de trabalho hígido e saudável aos seus
empregados (CLT, 157), dentre as quais se inclui a
implantação de regime de teletrabalho aos portadores de
comorbidades, que são mais suscetíveis de serem atingidos
pelos efeitos nefastos da doença que gerou a pandemia (TRT
da 2ª Região; Processo: 1000422-49.2021.5.02.0063; Data:
30-07-2021; Órgão Julgador: 13ª Turma - Cadeira 2 - 13ª
Turma; Relator(a): RAFAEL EDSON PUGLIESE RIBEIRO).

PANDEMIA DE COVID-19. AFASTAMENTO DO


TRABALHO PRESENCIAL. ADICIONAL DE
INSALUBRIDADE. SUPRESSÃO. Em que pese o adicional de
insalubridade se constitua como salário-condição, sendo
devido, em princípio, durante o período de exercício
de atividade considerada nociva, no caso em tela, há previsão,
em decreto municipal, de que o afastamento do trabalhador
por necessidade de atendimento de medida sanitária de
enfrentamento à pandemia de COVID-19 deveria ocorrer sem
prejuízo de sua remuneração e de sua efetividade. O
afastamento do demandante do trabalho, por ser ele portador
de doença crônica e integrar grupo de risco no caso de
infecção pelo coronavírus, ocorreu por circunstâncias alheias
à sua vontade, tendo o demandante, além disso, percebido
o pagamento da vantagem por longo período, mesmo após o
início da vigência dos decretos municipais que resultaram no
seu afastamento do labor. Impositiva a aplicação do princípio
basilar da proteção. Apelo do reclamante provido (TRT da 4ª
Região: Processo nº 0020462-58.2021.5.04.0663.
Redator: Alexandre Correa Da Cruz; Órgão julgador: 2ª
Turma; Data: 21/02/2022).

A grosso modo, a Covid abalou as estruturas, sejam sociais, econômicas,


trabalhistas e outras mais. Nada foi esperado e tudo que se pôde fazer foi adequar-se,
da melhor e mais rápida forma possível. No que tange às demandas trabalhistas no
Brasil, durante o período, por certo, não foi diferente. Assim, novos temas surgiram,
como é o caso do afastamento emergencial em decorrência de comorbidade, e outras
foram adequadas, a exemplo das demandas suscitadas em detrimento de rescisão
contratual que durante o período tiverem, em boa parte uma nova abordagem em
decorrência do compromisso de “não demissão”, adotado logo no início da pandemia.
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que a magnitude do abalo causado pela pandemia alcançou níveis
consideráveis, fazendo, as vezes forçadamente, com que a sociedade se readequasse e,
como tal, trouxe consigo diversas alterações, das quais não escapa o meio trabalhista e
os próprios direitos humanos, a exposição reflete resultados parciais obtidos durante
a pesquisa do projeto “POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS
DE COVID-19: Limites e possibilidades da mediação sanitária nas demandas judiciais
de trabalhadores no Brasil, Argentina e Chile”, vinculado ao Programa de Pós
Graduação em Direitos Humanos da UNIJUÍ, explicitando toda a metodologia
adotada para o alcance dos mesmos.
Não há o intuito, então, de dissecar todos os elementos concernentes à questão do
Covid-19 nas relações trabalhistas, sobre a perspectiva do acesso à justiça, mas apenas
de levantar o que já se pôde denotar durante a pesquisa até o presente momento, tendo
em vista, também, se tratar de uma questão real, que ainda está se desenrolando.
Assim, tendo em vista o objetivo geral do projeto de analisar as políticas públicas
de acesso à justiça e prevenção de conflitos, os debates jurisprudenciais e legislações
sob a ótica da proteção dos direitos do trabalhador, a partir do marco teórico
biopolítico e dos limites e possibilidades de aplicação da mediação sanitária como uma
dessas políticas, em uma perspectiva comparada entre o Brasil, Chile e Argentina,
para, então, evidenciar se as demandas suscitadas teriam resolução aprazível
utilizando a mediação sanitária. Já foi possível realizar um mapeamento das
principais demandas trabalhistas no Judiciário, possibilitando a organização de uma
base de dados consistente em referência as mesmas, considerando, para tanto, a
existência de bases já consolidadas provenientes dos próprios tribunais analisados e
outros meios.
Diante disso, dentre os diversos achados ao longo da pesquisa, merece destaque
a questão do teletrabalho, tido como um regime consideravelmente novo, surgindo do
desdobramento do trabalho a domicílio, com a evolução das tecnologias de
informação e comunicação, a qual ganhou maior impulso no decorrer da pandemia,
considerando as medidas adotadas pelos governos e pelos próprios empregadores no
enfrentamento do coronavírus.
Reiterando-se, por fim, em que pese se aproxima o fim do isolamento em
decorrência da Covid-19, o objeto de pesquisa não se esgotou e, portanto, haverão de
surgir novos desdobramentos, os quais certamente serão acompanhados pelo grupo
de pesquisas e gerarão novos resultados.
SUMÁRIO

REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO

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SUMÁRIO

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 2
LA NORMATIVA DE
EMERGENCIA Y
SU APLICACIÓ́N
problemáticas en torno a las relaciones
laborales en el escenario de la
pandemia del Covid-19

Mario Luis Gambacorta


SUMÁRIO

LA NORMATIVA DE EMERGENCIA Y SU APLICACIÓN:


problemáticas en torno a las relaciones laborales en
el escenario de la pandemia del Covid-19

Mario Luis Gambacorta⁵

A MODO DE PRESENTACIÓN
En este documento nos proponemos continuar problematizando la reflexión en
torno a las relaciones laborales en el marco de la pandemia. En tal sentido, hemos
puesto prioritario foco en la aplicación de la normativa desde el ámbito nacional.
La matriz para el relevamiento de la producción normativa y su aplicación se ha
complejizado. Se destacan problemas en torno a la instrumentalización de lo
dispuesto en temáticas como las que señalaremos a continuación.
Lo dispuesto normativamente deja en evidencia dificultades preexistentes, sobre
todo, en cuanto a registración, así como en las temáticas vinculadas con suspensiones,

5 Abogado. Docente. Investigador. Doctor en Ciencias Jurídicas. Universidad del Salvador (USAL). Carrera de
Postgrado con el título de Especialista para la Magistratura, Universidad Nacional de San Martín (UNSAM). Título
de Postgrado de Especialización en Globalización y Estado social. Problemáticas Abiertas, Universidad de Castilla-
La Mancha. Profesor Titular de Derecho del Trabajo y Seguridad Social de la Universidad Nacional de José C. Paz
(UNPAZ). Profesor Titular de Derecho II -Derecho Colectivo del Trabajo- en la Universidad Nacional de Lomas de
Zamora (UNLZ). Profesor Adjunto Regular de Derecho Del Trabajo y de la Seguridad Social del CPC de la
Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Profesor Adjunto de la matéria Derecho sindical y
de las Relaciones Colectivas del Trabajo de la Carrera de Relaciones del Trabajo de la Facultad de Ciencias Sociales
de la UBA. Coordinador Académico de la Maestría en Negociaciones Colectivas del Trabajo de la Universidad del
Museo Social Argentino (UMSA). Profesor en la Maestría en Estudios y Relaciones del Trabajo de FLACSO.
Docente en la Especialización en Derecho Laboral de la Facultad de Derecho de la UNLZ. Director de Proyecto de
Investigación UBACyT. Director de Proyecto de Investigación Científica y Tecnológica UNPAZ. Director de
Proyecto de Investigación UMSA Subdirector del Núcleo de Estudios de Políticas y Relaciones del Trabajo de la
Universidad Metropolitana para La Educación y el Trabajo (UMET). Director de la Diplomatura en Relaciones
Laborales Colectivas en el Sector Público (UNLZ-INAP-FOPECAP). Director de la Diplomatura en Inspección del
Trabajo y de la Seguridad Social (UMSA). Autor de libros, artículos y publicaciones en Argentina y el exterior.
SUMÁRIO

despidos y negociación colectiva, procederes de los actores sociales y la autoridad


administrativa del trabajo. Esto, por demandas, necesidades y criterios divergentes en
los intereses, en cuanto al cumplimiento y la aplicación de la normativa de excepción
en el marco de la pandemia.
A continuación, detallaremos aspectos que entendemos relevantes en la
evolución de los actos de la administración, la complejización en su aplicación y
potenciales efectos de esta. En dicha inteligencia, formularemos consideraciones, en
términos de lo que venimos conceptualizando como un enfoque de carácter crítico-
tutelar⁶,especialmente, en cuanto al rol de las autoridades administrativas en línea con
el desarrollo de sus funciones.

1. LA NORMATIVA PARA LA PANDEMIA Y SU APLICACIÓN


Pondremos foco en la proyección y efectos –mediatos e inmediatos– de
normativas que se vienen extendiendo en el tiempo y en las formas en que se puede
dar su cumplimiento en el marco de la pandemia. Nos preocupa el surgimiento de
estrategias para su modificación de hecho al instrumentárselas, o su elusión
desarticulada de otras normas vigentes.
Mencionaremos también normativa de emergencia no dictada en el término que
prioritariamente nos ocupa – desde el 25 de abril al 22 de junio de 2020–, en virtud de
que los efectos y consecuencias de su dictado siguen produciéndose al presente.
* Una versión anterior fue publicada en Desigualdades en el marco de la
pandemia: universidad y territorio / Nora Goren ; Guillermo Ferrón. - 1a ed - José C.
Paz : Edunpaz, 2020. P. 149-167.
En tal línea de análisis, es sabido que el DECNU7 No 297/20 del 19 de marzo,
estableció el ASPO⁸. Y vinculándose con la antedicha norma, la Resolución No 279/20
del 30 de marzo, del MTEySS⁹, estipuló que los trabajadores alcanzados por dicho
ASPO quedaban dispensados del deber de asistencia (art. 1). Sin embargo, las

6 El concepto de enfoque de carácter crítico-tutelar lo vengo desarrollando a partir de una inquietud académica
vinculada con la preocupación en cuanto a un enfoque des- contextualizado de difusión y enseñanza del
derecho. Y atendiendo, en simultáneo, la idea tan bien explicitada por Carlos María Cárcova, en su trabajo
Notas acerca de la Teoría Crítica del Derecho (febrero de 2000), en cuanto a que: “el conocimiento solo
avanza a partir de rupturas, de revoluciones, de la sustitución de una red de cono- cimientos por otra más
adecuada, esto es, con mayor fuerza explicativa o con mayor capacidad predictiva o con ambas cosas a la
vez”.
7 Decreto de Necesidad y Urgencia.
8 Aislamiento social, preventivo y obligatorio.
9 Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social de la Nación (Argentina).
SUMÁRIO

interpretaciones no deberían limitarse a describir lo anterior, ya que se ha formulado


una potencial flexibilización laboral desprotectora para el caso de que las tareas
puedan ser realizadas desde el lugar de aislamiento. En efecto, se dejó a la buena fe
contractual el establecimiento de las condiciones en que dicha labor se realizará entre trabajador
y empleador. Y esto lo advertimos en atención a que debemos recordar que, en el
derecho del trabajo, es sabido que no hay igualdad de partes, sino hiposuficiencia de
las y los trabajadores cuando se trata de negociar con su contraparte empleadora.
Consecuentemente, ya que se lo ha normativizado así, debería ser monitoreado,
ya no solo por el actor sindical sino, especialmente, por las autoridades
administrativas del trabajo. En términos inspectivos, no hablamos sino de la necesidad
de controlar, fiscalizar y evitar que una formulación normativa se torne abusiva en su
aplicación, así como, los sugeridos acuerdos que en tal sentido pudieran darse. Por su
parte, el artículo 3 de dicha norma incluye como trabajadores a quienes presten
servicios mediante figuras no dependientes, como locaciones de servicios, becas,
pasantías, residencias médicas, pluriempleo o de múltiples receptores de servicios. Y
aquí nos preguntamos: ¿esto solo debe interpretarse como un criterio de amplitud
limitado a la emergencia o evidencia en términos de metalenguaje un reconocimiento
de la existencia de fraude laboral, no registración y deficiente registración? De nuestra
parte, nos parece evidente que, como mínimo, se corroboran las consecuencias
negativas del incumplimiento de obligaciones a cargo de numerosos empleadores, y
las dificultades –saneadas aquí por la norma estatal– de acceder a determinados
derechos; tanto para trabajadores, como para empleadores, en cuanto a normativas de
la emergencia, como asistencias, subsidios y beneficios desde el Estado.
Postulamos que, luego de la pandemia, se siga profundizando en la problemática
de la informalidad laboral y visibilizando los incumplimientos. Ya que la enunciación
no debería solo darse en términos instrumentales ante el COVID-19, sino orientarse a
una política pública que erradique el fraude laboral.
En otro trabajo, también hemos señalado el abuso del derecho, refiriéndonos a
suspensiones, despidos y políticas empresariales¹⁰. Así las cosas, la Resolución
MTEySS No 202/20 del 13 de marzo suspendió, en su artículo 2, el deber de asistencia
para las situaciones previstas en el artículo 7 del DECNU No 260/20 del 12 de marzo¹¹
para determinadas personas. Y también se refirió a la situación antes mencionada,
expresando que lo hacía independientemente de cómo se desarrollaren las

10 Sobre temáticas emergentes de la pandemia del COVID-19: el desafío de no caer en generalizaciones ni respuestas
automáticas, ver Gambacorta (enero marzo 2020). O coronavirus e os reflexos no Direito do Trabalho. Revista Jurídica
Eletrônica RTM, Ediçao Especial, 17(1).
11 Se refiere a las acciones preventivas por el aislamiento obligatorio.
SUMÁRIO

prestaciones de servicios. Del mismo modo se hizo (es decir, sin distinguir entre
figuras dependientes o no) en la Resolución MTEySS No 207/20 del 16 de marzo, para
mayores de 60 años, embarazadas y grupos de riesgo (art. 1). Y allí también las y los
trabajadores deberán, en el marco de la buena fe contractual, establecer con su
empleador las condiciones en que dicha labor será realizada (art. 2). Paradójicamente,
vemos que, en normas de protección y reconocimiento de derechos, también se
aprecia una proyección de la informalidad laboral y de parámetros de autonomía de
la voluntad que podrían afectar la necesaria tutela que conlleva el derecho del trabajo.
Luego, la Resolución MTEySS No 219/20 del 20 de marzo, en su artículo 1,
estableció que las y los alcanzados por el ASPO, de buena fe, también deberían
establecer con el empleador, en forma similar, la forma de realización de las tareas.
Pero aquí se agregó que quienes efectivamente acuerden este modo de realización de
tareas percibirán su remuneración habitual, en tanto que, en aquellos casos que esto no
sea posible, las sumas percibidas tendrán carácter no remuneratorio excepto los
aportes y contribuciones al sistema nacional del seguro de salud y al Instituto Nacional
de Servicios Sociales para Jubilados y Pensionados, la AFIP dispondrá las medidas
necesarias a fin de verificar la correcta aplicación de esta disposición.
Se agrega en la misma resolución, en su artículo 2, que, respecto del personal
considerado esencial (descriptos en el art. 6 del DCNU No 297/2020 y sus
reglamentarias) “La continuidad de tales actividades, en estas circunstancias,
constituye una exigencia excepcional de la economía nacional”, ello conforme el
artículo 203 de la LCT¹².
En el mismo sentido que lo expresado precedentemente, su artículo 3, se aplica a
los monotributistas y a los no registrados. Con esto último, se podría colegir el
reconocimiento de la existencia de irregularidades, es decir, fraude laboral; pero la
necesidad en la emergencia es de darles cobertura.
Vemos que aquí se nos presentan criterios vinculables con la deslaboralización de
relaciones de trabajo dependientes, como la autonomía de la voluntad para establecer
el trabajo; la buena fe, que no deja de estar en un terreno de desigualdad entre partes
(conforme lo recono- ce el artículo 17 bis de la LCT¹³) y la informalidad. Pero se agrega,
en el artículo 2, en sustento de los temperamentos adoptados, la consideración como
exigencia excepcional de la economía nacional, lo cual veremos ha dado lugar a
conflictividad laboral.

12 Ley de Contrato de Trabajo.


13 Reincorporado a la LCT por la Ley No 26592, en mayo de 2010, luego de que la dictadura cívico-militar iniciada el
24 de marzo derogara de facto el artículo 19 del texto original de 1974.
SUMÁRIO

El debate se ha dado en conflictos colectivos. A partir de contraposiciones al


intentar un análisis de los alcances sobre cómo juzgar, en términos del artículo 203, “el
criterio de colaboración”. Esto, en virtud de la continuidad en el tiempo, de exigencias
laborales en torno a la organización de los tiempos de trabajo sobre determinados
colectivos y, en especial, en cuanto a la existencia o no de colisión con el Decreto N°
484/2000, que fija un límite máximo a la cantidad de horas extras mensuales y anuales
que se pueden realizar.
En términos generales, apreciamos parámetros similares para la Resolución No
279/2020 del Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social del 30 de marzo.
Aunque en esta norma, cabe poner foco en su artículo 4, en la medida en que considera
un ejercicio razonable de las facultades del empleador la reorganización de la jornada
de trabajo a efectos de garantizar la continuidad de la producción de las actividades
declaradas esenciales; pero aclarándose, en condiciones adecuadas de salubridad en
consonancia con los protocolos establecidos por la autoridad sanitaria.
Aquí también se han suscitado conflictos por los alcances del antes mencionado
artículo 203, en cuanto al límite de los ciclos de y la continuidad del trabajo con
jornadas de 12 horas diarias. Por ello, entendemos que deberían analizarse y
profundizarse criterios que contemplaran, con mayor profundidad, la situación no
solo productiva sino también las razones higiénicas, en términos físicos y psicológicos,
de quienes por extensos períodos se encuentran expuestos al virus, limitados en el
contacto familiar y preocupados por la transmisión de la enfermedad, amén de la
necesidad de descansos adecuados a este contexto. La negociación colectiva,
entendemos, tendría que ser la herramienta fundamental en tal sentido; pero con un
adecuado control de legalidad por parte de la autoridad administrativa del trabajo.

2. PROHIBICIÓN DE SUSPENSIONES Y DESPIDOS, PAGOS E INDEMNIZA-


CIONES
Para comenzar el tratamiento de este punto, recordemos que el 13 de diciembre
de 2019 se dictó el DECNU No 34/2019 por el cual se declaró la emergencia
ocupacional (art.1) por el término de 180 días, a partir de su entrada en vigencia.
En su artículo 2, este decreto estableció que el trabajador o la trabajadora afectado
por un despido sin justa causa tendrá derecho a percibir el doble de la indemnización
correspondiente de conformidad con la legislación vigente. No siendo esta duplicación
aplicable a las contrataciones celebradas con posterioridad a su entrada en vigencia
(art. 4). Asimismo, el plazo original fue ampliado por el DECNU No 528/2020 del 9 de
junio, por igual plazo.
SUMÁRIO

Por su parte, el DECNU No 329/2020 del 31 de marzo había fijado la prohibición


de despidos sin justa causa, y por las causales de falta o disminución de trabajo y
fuerza mayor por 60 días; y las suspensiones por causales de fuerza mayor o falta o
disminución de trabajo, por igual término. Se exceptuaron las suspensiones que se
pudieran efectuar en los términos del artículo 223 bis de la LCT.
Quedó establecido en la norma que la consecuencia de la violación de lo
dispuesto no producirá efecto alguno, debiendo mantenerse vigentes las relaciones
laborales existentes y sus condiciones actuales (art. 4). Es decir, la consecuente
reinstalación en el puesto de trabajo. De igual modo, por DECNU No 487/2020 del 18
de mayo, se prorrogaron dichas prohibiciones por el plazo de 60 días más.
Vinculándose con lo anterior, y en especial relación con las previsiones del
artículo 223 bis, el DECNU No 529/20 del 9 de junio de 2020, establece (art. 2) que los
límites temporales de los artículos 220, 221, 222 de la LCT, no regirán para las
suspensiones por falta de trabajo y fuerza mayor, dispuestas en los términos del antes
nombrado artículo 223 bis, como consecuencia de la emergencia sanitaria.
Para clarificar aspectos de la problemática emergente en cuanto a la aplicación,
cabría reflexionar en cuanto a que:
a) La aplicación del artículo 223 bis de la LCT es una excepción a las previsiones
generales de este decreto.
b) Los acuerdos, tanto colectivos como individuales, requieren, en los propios
términos del artículo 223 bis, de homologación.
c)Los acuerdos individuales se enmarcarían en un carácter supletorio o
complementario; o sea, para atender situaciones de trabajadores no alcanzados por la
representación sindical; la cual debería intervenir, o ser convocada, para una mejor
tutela de los derechos laborales, y en el marco de la negociación colectiva que se prevé.
d) Para una adecuada aplicación del 223 bis de la LCT, debería distinguirse más
claramente entre lo colectivo y lo pluriindividual.
e)Los acuerdos no deberían entenderse solo como salariales, ni limitados
automáticamente a un 75%.
f) Existen, y se pueden formular, otro tipo de cláusulas sobre condiciones, pagos,
jornada, etc.; las cuales deberían controlarse en su legalidad, en función del respeto al
orden público laboral, para homologarse los acuerdos pertinentes.
g) Si se diera una negociación articulada, las cláusulas no tendrían que ser a la baja
del acuerdo marco referencial (al que también nos referiremos), sino iguales o
mayores, conforme la capacidad de la parte empleadora.
SUMÁRIO

De otra parte, se ha planteado un debate en cuanto a que el artículo 223 bis no


tendría que estar incorporado en el capítulo de la LCT referido a las suspensiones, sino
en el que trata las remuneraciones, por estar vinculado al carácter de estas¹⁴. Sin
desmedro de esta postulación, se trata de una herramienta prioritariamente usada en
el marco de los PPC¹⁵y aplicable, frecuentemente, a las suspensiones que se establecen
en los términos previstos en dicho artículo.
Por otro lado, pero también en relación con este artículo, destacamos la creación,
por Disposición N° 5/20 de la Subsecretaría de Fiscali- zación del Trabajo 5, del 12 de
mayo; de un Registro de los acuerdos homologados en los términos del artículo 223
bis de la LCT por las Autoridades Provinciales del Trabajo, el cual debería facilitar la
consulta y el control de estos.

3. LA DISTRIBUCIÓN DEL ESFUERZO EN LA CRISIS DE LA PANDEMIA


El DECNU No 332/20 del 1 de abril creó el Programa de Asistencia de
Emergencia al Trabajo y la Producción, que otorga, en su artículo 2, una serie de
beneficios, conforme las condiciones que se establecieron. Este decreto luego fue
modificado por los DECNU No 347/20 y 376/20, respecto de algunos de los alcances y
contenidos del antes mencionado Programa.
En términos generales, destacamos entre los beneficios otorgados, la
postergación o reducción en el pago de las contribuciones patronales al Sistema
Integrado Previsional Argentino, una asignación compensatoria al salario, un Repro
de asistencia por la emergencia sanitaria, una prestación económica por desempleo y
créditos a tasa cero para personas adheridas al régimen simplificado para pequeños
contribuyentes y para autónomos.
El 27 de abril se suscribió un acuerdo, que podríamos caracterizar, en términos
negociales, como marco, entre representantes de la CGT¹⁶ y la UIA¹⁷. Se puso especial
foco en las presentaciones en conjunto que efectuaren las representaciones sindicales
y empresariales para la aplicación de suspensiones conforme el artículo 223 bis.
El 29 de abril, el Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social establece
también, por Resolución No 397/20, que los acuerdos serán homologados, previo
control de legalidad por la autoridad de aplicación, cuando se ajusten íntegramente a

14 Así fue expresado, por ejemplo, en el conversatorio sobre “Despidos, suspensiones y remuneraciones en tiempo de
pandemia”, organizado por la Comisión de Derecho del Trabajo de la Asociación de Abogados de Buenos Aires
(AABA). Buenos Aires, 11 de junio de 2020.
15 Procedimiento preventivo de crisis. Se encuentra previsto en la Ley No 24013 (arts. 98 y subsiguientes).
16 Confederación General del Trabajo de la República Argentina.
17 Unión Industrial Argentina.
SUMÁRIO

este acuerdo marco conjunto (art. 1). Por su parte, el artículo 2 genera un
procedimiento especial, cuando la presentación la hacen las empresas para aplicar
suspensiones. En dicho caso, será remitida en vista a la asociación sindical por tres
días, prorrogables por dos días más a pedido del sindicato; pero prevé que, vencido
este plazo, se considera como conformidad respecto del acuerdo sugerido por la parte
empleadora. Y si hubiere oposición del sindicato, se abrirá una instancia de diálogo y
negociación (art. 2). Y si las presentaciones que efectúen las partes, conforme el 223 bis,
no se ajustaran íntegramente al acuerdo marco CGT-UIA, serán sometidos a un control
previo por la autoridad de aplicación que indicará las consideraciones que correspondan en
orden al trámite requerido (art. 3).
A partir del antes señalado acuerdo marco y de esta normativa, se manifestaron
problemáticas en cuanto a su cumplimiento y la forma de homologación¹⁸. Una, casi
inmediata, fue en cuanto a evitar una suerte de “homologaciones cuasiautomáticas”,
es decir, que se produjeran sin un adecuado control de legalidad. Por otro lado, se han
cuestionado los beneficios obtenidos por las empresas en cuanto a ser más favorecidas
y realizar un menor esfuerzo. Por ejemplo, con el beneficio complementario que recibe
una empresa respecto del 50% de los salarios, y valiéndose de un acuerdo por el cual
se reducen los salarios a su cargo a un 75% del salario neto, solo pagaría un 25%. Así,
el trabajador percibiría un 25% menos y el Estado contribuiría con el 50%. El menor
esfuerzo lo harían las empresas, ya que podrían llegar a percibir un 50%, pero
realizando también suspensiones abonarían ya no el 50% sino un 25% del antedicho
salario.
Se ha criticado el otorgamiento generalizado del beneficio antes mencionado, con
el argumento que no todas las empresas lo requerirían. Pese a percibirlo, algunas han
diferido pagos, formulando una suerte de “acuerdos tácitos” respecto de este u otros
temas.
Podría relacionarse, asimismo, lo expresado en los dos párrafos precedentes con,
por ejemplo, la Resolución MTEySS No 408 del 6 de mayo, en cuanto establece, en su
artículo 1, que:
Los empleadores que hubiesen efectuado el pago total o parcial de haberes
correspondiente al mes de abril de 2020 en forma previa a la percepción por parte de
sus trabajadores dependientes del beneficio del Salario Complementario, instituido
por el Decreto No 332/2020 y sus modificatorios, y cuyo monto, sumado el pago del
beneficio del Salario Complementario correspondiente a dicho mes, supere el monto
que le hubiere correspondido percibir a cada trabajador por parte de su empleador,

18 Respecto de esta, como de otras problemáticas señaladas en este trabajo, hemos participado en
actividades académicas, realizado entrevistas y consultas informativas.
SUMÁRIO

podrán imputar el monto excedente a cuenta del pago del salario correspondiente al
mes de mayo de 2020.
Se objeta también que:
A )Se han realizado despidos en el período de prueba, lo cual también está
alcanzado por la prohibición –general– de suspensiones o despidos fijada en la
normativa de excepción.
b) Se ha cuestionado, en función de poner un límite a las horas extras que se
realizan, los alcances del artículo 203 de la LCT, interpretándose que ello puede entrar
en colisión con los límites determinados por el Decreto No 484/2000; pero, además, en
determinados casos podría llegar a afectar la integridad psicofísica de las y los
trabajadores.
c) Se han configurado negativas por parte de empleadores respecto del beneficio
establecido por la normativa de emergencia para atender al cuidado de menores. Ante
estos casos, se está recurriendo a medidas cautelares para salvaguardar el derecho.
d) Se han configurado descuentos sobre rubros variables, premios y almuerzos
que percibían las y los trabajadores. Hay acuerdos que operan sobre las
remuneraciones de abril, ya devengadas, por lo cual devendrían ilegales.
e) Otro tema verificable es el problema que se cierne sobre las jubilaciones, en
vista de cómo se atenderá la falta de aportes prevista y cómo se soportará el esfuerzo
compensador que requerirí́a.

CONCLUYENDO EL RESUMEN SOBRE ESTA ETAPA Y PENSANDO EL


FUTURO –DENTRO Y PARA LA POSPANDEMIA
De lo relevado y analizado para la formulación de este documento de trabajo,
detectamos la aplicación de estándares no tutelares, los cuales se suelen articular con
la instrumentalización de desregulaciones flexibilizadoras en materia laboral, que
fácilmente adoptan vías de facto, como lo pudimos apreciar en el punto anterior. Y
esto nos lleva a colegir la demanda de una mayor fiscalización de las conductas por
parte de la autoridad administrativa laboral.
La adecuación y el esfuerzo ante la pandemia nos presenta medidas
gubernamentales tanto tutelares como potencialmente no tan protectorias, así como
medidas calificables a nuestro juicio como subsidios, sin mayores discriminaciones en
cuanto a diferenciar capacidades de pago del sector empleador en Argentina.
Las situaciones precedentemente descriptas, así como otras respuestas
normativas que se esbozan y enunciaremos a continuación, nos parecen que merecen
SUMÁRIO

una cauta atención para mantener una adecuada tutela de los derechos de las y los
trabajadores.
En tal sentido, ya respecto de la existencia de diversos proyectos de ley de
teletrabajo, podríamos sintetizar que hay quienes proponen una mayor o menor
regulación específica desde lo legislativo y quienes también, en más o en menos,
analizan delegar esta a los convenios colectivos de trabajo.
Por otro lado, para la salida de la pandemia, hemos constatado un incipiente
debate en cuanto a volver al fuero de atracción de lo comercial, conforme lo estipulaba
en su momento la Ley No 24522 en la década de 1990, en términos de acción
institucional y producción normativa, en un sentido flexibilizador desprotectorio.
Esto ya fue superado por la Ley No 26086, que devolvió el trámite de los créditos
laborales ante su juez natural –v. gr., del trabajo–. Por eso nos preguntamos: ¿vamos a
volver a aplicar las mismas fórmulas que ya se constató que no han dado resultado
positivo para el mantenimiento, y menos aún, la creación de puestos de trabajo?
Entendemos que es menester que, desde la gestión administrativa y la
legislación, en línea con el artículo 14 bis de la Constitución Nacional y los tratados
internacionales vigentes en Argentina, se prioricen al trabajador y la trabajadora como
sujetos de preferente tutela constitucional; sobre todo, ante la efectiva posibilidad de
enfrentarnos a un temperamento más en línea con la prevalencia del orden económico
que del laboral.
Para finalizar, nos referiremos al que se suele mencionar como otro potencial
escenario de solución de estas problemáticas; concretamente, la creación de un CES¹⁹.
Con relación a esto, no queremos dejar de advertir que en este conflictivo escenario,
con posiciones a menudo ancladas en enfoques ideológicos excluyentes, al estudiar la
temática y sus problemáticas²⁰, es necesaria una mejor evaluación respecto de si se
verifican las condiciones para la creación y viabilidad del funcionamiento de un CES.
Parecería que determinados sectores del capital ya hubieran optado por
cuestionar cualquier enfoque social desde el libre juego del mercado. Aunque,
paradójicamente, requiriendo mantener subsidios para el sostenimiento y salvataje de
sus empresas. Y aquí nos preguntamos: ¿cómo se superarán las desigualdades –
agravadas por la pandemia–? ¿Quién soportará el mayor esfuerzo?
El escenario es complejo y las correlaciones de fuerzas contribuirán a la
formulación de nuevas matrices de análisis en las que el rol y la batalla por el control
o sujeción del gobierno del Estado no serán menores.
Consideramos que las respuestas, propuestas y alternativas de solución desde la
autoridad administrativa del trabajo, y del Estado en general, deberían prestar más

19 Consejo Económico y Social.


20 Gambacorta, M. L. (diciembre de 2019). Concertación, diálogo social macro y par- ticipación institucional. Revista
Derecho del Trabajo, La Ley, LXXIX(12).
SUMÁRIO

atención a la efectiva participación e integración del movimiento sindical organizado.


Esto, no solo para visibilizar, en mayor medida, a un actor social como el sindical, sino
también para construir una alianza política que, junto con otras subjetividades a
integrar, se oriente a equilibrar las disputas de poder y los conflictivos intereses en
juego. En el mismo sentido, los movimientos sociales también están llamados a un rol
importante en este entramado conflictual, en el que, probablemente, se reconfigurará
la Argentina, mejor o peor, en función del modelo de nación que se imponga o
consensúe.
Por nuestra parte, consideramos estratégica la interacción entre el movimiento
sindical y las organizaciones sociales para articularse y converger, sin desmedro de
mantener identitariamente las diversidades que requieran sus lógicas organizativas;
todo ello, bajo el significante común de la centralidad del trabajo²¹.
Hemos querido describir problemáticas, pero sin dejar de formular propuestas,
sean estas para el análisis, el debate, el consenso, e inclusive el conflicto. Por ello, ya
expresábamos, al principio de este trabajo, que nos proponemos lograr una mayor
fuerza explicativa y capacidad predictiva, frente a la pandemia que nos aqueja y más
allá de ella.

21 Gambacorta, M. L. Representación sindical y social de inclusión ante la hegemo- nía deslaboralizadora. Resumen presentado
para el GT1: La representación sindical y social frente a la desigualdad: estructuras de organización, articulaciones y
complementariedades ante las transformaciones en el mundo del trabajo, II Semana sobre Democracia y
Desigualdades. UNPAZ. A realizarse los días 22 y 23 de octubre de 2020.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 3
EL DERECHO A
DESCONECTARSE
la única vía de erradicar el trabajo sin fin

Daniela Andrea Allende Muñoz


SUMÁRIO

EL DERECHO A DESCONECTARSE:
la única vía de erradicar el trabajo sin fin

Daniela Andrea Allende Muñoz²²

INTRODUCCIÓN
La Pandemia por Covid 19 no solo trajo transformaciones en materia de salud,
sino también en el área legislativa, jurídica y social, debido al surgimiento de
problemáticas derivadas de las nuevas formas de relaciones laborales al interior de la
empresa, dentro de las cuales se encuentra la jornada de trabajo, las formas de control,
las tecnologías aplicadas como herramientas de trabajo, entre otras.
Si bien en Chile existía la figura del teletrabajo, la cual se encuentra regulada en el
artículo 22 del Código del Trabajo, la pandemia hizo aumentar esta forma de trabajo
en el año 2020 y 2021 en nuestro país, modificando de esta manera, el modo en que se
desarrollan las relaciones laborales al interior de la empresa. Actualmente muchos
trabajadores han regresado a la presencialidad, mientras un número no menos
considerable continúa en teletrabajo, y todo hace presagiar que el uso de esta
modalidad irá en aumento.
Así, las relaciones laborales al interior de la empresa han cambiado, trayendo
como consecuencia, la apertura del debate sobre el derecho a no contestar llamadas,
whatsapp o correos electrónicos fuera de la jornada, incluso el negarse a pertenecer o
permanecer en grupos de aplicaciones de comunicación social, tales como whatsapp,
que tengan fines laborales.
De este modo, se abre un debate interesante sobre la necesidad de reconocer el
derecho a desconectarse como la única vía del descanso efectivo, en el sentido de
permitir que de manera efectiva exista una verdadera conciliación entre el trabajo y la

22 Inspectora del Trabajo, Chile. Abogada, Magister en Derecho del Trabajo y Seguridad Social de la Universidad de
Chile.dallendem@dt.gob.cl
SUMÁRIO

vida personal. Lo que actualmente no ha sido posible debido a la excesiva exigencia


de la inmediatez, la hiperconectividad, el hipercontrol y la sobrevaloración de la
disponibilidad del trabajador.

1. LA JORNADA DE TRABAJO EN CHILE


El trabajador debe cumplir con la prestación de los servicios de forma
subordinada y sujeto a las potestades del empleador. Por ello cobra importancia que
la jornada laboral tenga límites, con el objeto, que este tenga tiempo libre para disfrutar
de su vida personal.
El profesor Sergio Gamonal se refiere a la jornada de trabajo como
multidimensional, debido a que por una parte, implica el tiempo durante el cual el
trabajador está a disposición del empleador, y por otra parte, el tiempo que puede
destinar a otras actividades²³.
La jornada laboral, antes de la Revolución Industrial no tenía la importancia que
ha adquirido actualmente. Fueron las excesivas jornadas de trabajo, las cuales llegaban
habitualmente a las 16 o 18 horas continuas de trabajo, lo que provocó un aumento
significativo en la mortalidad, debido a que se trabajaba de lunes a domingo, sin
derecho a vacaciones²⁴.
Luego de la Segunda Guerra Mundial, los países industrializados redujeron en
forma progresiva los tiempos de trabajo, lo cual era justificado en base a la salud de los
trabajadores, la justa repartición del progreso económico y la necesidad de fomentar
la vida en familia. Desde el punto de vista colectivo, el movimiento social
norteamericano llamó a una huelga general para el 1 de mayo de 1886 en Chicago, que
terminó con brutales acontecimientos que determinaron la instauración a nivel
mundial del Día del Trabajo. Así la limitación de la jornada laboral se convirtió en uno
de los grandes valores simbólicos el movimiento obrero²⁵.
Después de reiterados abusos y malas condiciones laborales, surge la necesidad
de crear mínimos irrenunciables, los que son promovidos durante el siglo XIX,
marcando un hito la Revolución Industrial y en el caso chileno estos mínimos
comienzan a observarse a principios del siglo XX, siendo una de las grandes
reivindicaciones laborales establecer la jornada laboral de 48 horas semanales y 8
horas diarias²⁶.

23 GAMONAL CONTRERAS, Sergio; GUIDI MOGGIA, Caterina, “Manual del Contrato de Trabajo”, Santiago Chile,
Thomson Reuters, segunda edición, 2015, p. 172.
24 CARRO IGELMO, Alberto, “Curso de Derecho del Trabajo”, Barcelona, España, Bosh, 1991. pp.75 y76.
25 Como señaló GAMONAL CONTRERAS, Sergio; GUIDI MOGGIA, Caterina, ( 2015, p. 174.)
26 WALKER ERRAZURIZ, Francisco, “Derecho de las Relaciones Laborales, Un Derecho vivo”. Santiago, Chile,
Editorial Universitaria, 2003, p. 300.
SUMÁRIO

Desde el primero del enero del 2005 se marca un hito en la legislación laboral
chilena, modificando la normativa que se mantuvo por 80 años disminuyendo de 48 a
45 horas laborales semanales. Así actualmente el tema de la jornada está en boga,
debido a que una de las promesas del actual Gobierno es la rebaja de esas 45 a 40 horas.
Sin embargo, la regulación, limitación y disminución de la jornada de trabajo parece
un esfuerzo fútil, si es que el trabajador, en sus tiempo de descanso, no es capaz de
abstraerse de sus obligaciones laborales.
Por su parte, los descansos se encuentren regulados por ley, tales como, la
colación, los fines de semana, las vacaciones y feriados, pero también es posible que
estos sean regulados de manera contractual tanto individual, como colectivamente.
En este contexto, el derecho a descanso tiene por objeto la realización de
actividades que no tengan relación con sus funciones laborales y por tanto, durante ese
periodo el trabajador no debe encontrarse a disposición de su empleador, pues en caso
de ser vulnerado este derecho sería posible por parte del trabajador ejercer un despido
indirecto o demandar mediante una tutela laboral la vulneración de la integridad física
y psíquica y/o su vida privada, consagrados en el artículo 19 de la Constitución Política
Chilena, debido a que como analizaremos más adelante es obligación del empleador
proteger y garantizar el derecho al descanso.
Este tema ha sido una de las principales preocupaciones de la Organización
Internacional del Trabajo (OIT), la cual desde su creación en 1919, ha impulsado la
reglamentación de las horas de trabajo y la fijación de la duración máxima de la
jornada diaria y semanal de trabajo (OIT, 1919). Muestra de aquello es el primer
convenio de la OIT, que se refiere a la limitación de las horas de trabajo en las empresas
industriales, labor que ha continuado con una serie de convenios y recomendaciones
posteriores²⁷.

2. LAS NORMAS QUE PONEN EN LA MESA ESTA TEMÁTICA.


El derecho al descanso se encuentra establecido en el Código del Trabajo (articulo
34 y siguientes), regulando el descanso anual²⁸, semanal²⁹, diario³⁰ y entre jornadas³¹,
los cuales reflejan como prioridad el descanso necesario y mínimo para las y los

27 AZÓCAR SIMONET, Rodrigo, “Derecho a desconectarse del trabajo: una necesidad para conciliar la vida personal y
laboral”, Santiago, Chile, Centro de Políticas Públicas UC, Pontificia Universidad Católica, 2019. p. 5.
28 Derecho del trabajador a interrumpir su actividad laborativa durante 15 días hábiles por cada año de trabajo. Este
descanso es remunerado.
29 Derecho de los trabajadores a descansar los domingos y festivos.
30 Derecho de los trabajadores de disponer de, a lo menos media hora para colación. Este descanso divide la jornada en
dos partes y por regla general no se imputa a la jornada de trabajo.
31 Aquel tiempo destinado al reposo entre una jornada diaria y otra, por un lapso no inferior a 12 horas.
SUMÁRIO

trabajadores al cumplir sus labores, debido a que no descansar mermará de tal forma
sus fuerzas que expondrá su salud y eventualmente su vida. Así, esto deriva de las
normas que establecen la jornada de trabajo incluidas las varias excepciones a la
jornada ordinaria (artículos 21 y siguientes), definiéndola como el tiempo durante el
cual la o el trabajador debe prestar sus servicios en conformidad al contrato. Agrega,
que también se considera jornada de trabajo el tiempo en que la o el trabajador se
encuentra a disposición del empleador sin realizar labor, por causas que no le sean
imputables³².
Asimismo, el artículo 22 del texto legal citado, establece que la duración de la
jornada ordinaria no excederá de 45 horas semanales y en su inciso segundo y
siguientes, refiere a las o los trabajadores que están excluidos de limitación de jornada.
En este contexto, el Profesor Gamonal define la jornada de trabajo como el
período delimitado por las partes o por la ley, durante el cual la o el trabajador deberá
estar en el sitio de sus funciones y a disposición del empleador, para el cumplimiento
de su actividad laborativa subordinada. De esta manera, clasifica la jornada entre
activa –tiempo durante el cual el trabajador debe prestar efectivamente sus servicios
en conformidad al contrato- y pasiva –tiempo en que la o el trabajador se encuentra a
disposición del empleador sin realizar labor, por causas que no le son imputables-.³³
La distinción anterior resulta del todo relevante, debido a que no puede
confundirse en caso alguno la jornada pasiva con el descanso, ya que en esta última el
empleador tiene la obligación de garantizar y proteger ese derecho, pues en caso de no
hacerlo contravendría la obligación de proteger eficazmente la vida y la salud de los
trabajadores consagrado en el artículo 184 del Código del Trabajo.
Por su parte, resulta relevante destacar las garantías constitucionales que se ven
afectadas en los casos que se vulnere el derecho a descanso, entre los cuales
encontramos la garantía establecida en el artículo 19 Nº1 de la actual Constitución
Política de la República, que indica en su inciso primero: “La constitución asegura a
todas las personas: 1. El derecho a la vida e integridad física y psíquica de la persona”.
Esto debido a que la falta de descanso de las y los trabajadores puede producir un
desgaste en su salud tanto física como mental, ocasionando enfermedades de diversos
tipos e incluso puede provocar la muerte.

32 La Dirección del Trabajo, establece mediante su Dictamen Nº4247/092 de 28.10.2011 que no constituyen jornada de
trabajo el tiempo destinado al cambio de vestuario, equipos e implementos de seguridad y aseo personal que se lleva
a cabo en el campamento donde los trabajadores mantienen temporalmente su residencia o morada.
33 Como señaló GAMONAL CONTRERAS, Sergio; GUIDI MOGGIA, Caterina, (2015, p. 266).
SUMÁRIO

Por su parte el articulo 19 Nº4 del mismo texto constitucional, consagra el respeto
y protección a la vida privada, la que durante mucho tiempo, en el modelo de empresa
fordista tenía un límite territorial que garantizaba la privacidad por alcance, debido
que al abandonar la fábrica el trabajador se ponía fuera del alcance del poder
empresarial. Sin embargo, en la actualidad la informática y las nuevas formas de
comunicación digital –entre empleador y trabajador- diluye el espacio físico. De este
modo, el poder del trabajador deja de reconocer fronteras físicas y se produce el cruce
entre el trabajo y la privacidad que impone dos cuestiones fundamentales para
resolver: primero, cómo se va a determinar el contenido de ese derecho de cara a su
ejercicio dentro de la empresa, y segundo, como se va a resolver los eventuales
conflictos que ese ejercicio genere con los poderes jurídicamente reconocidos al
empleador. Dicho de otro modo, cuanta intimidad entra con el trabajador a la
empresa, y como se arregla el problema que ese ingreso provocará con la propiedad
del empleador³⁴.
Desde esta perspectiva, Ugarte señala que la privacidad del trabajador tiene como
ámbito protegido tres dimensiones: primero, la privacidad personal que dice relación
con la dimensión física de la o el trabajador y sus objetos personales, los cuales
incluyen la protección de la corporalidad tales como datos biológicos o biométricos,
extendiéndose a objetos personales como documentos, pertenecías, medicinas, entre
otros³⁵; segundo, la privacidad espacial, el cual refiere aquellos ámbitos de la vida
individual y social que se encuentran excluidos del conocimiento de terceros, en
particular del empleador, tales como indumentarias, vida sexual, piercings, tatuajes,
relaciones sentimentales y sexuales, creencias personales e ideológicas, entre otras; y
por último y no menos importante la privacidad virtual o tecnológica que dice relación
con la protección a zonas que la realidad virtual pone a disposición de los sujetos.
Dicha zona incluye las formas de comunicación informática como el correo
electrónico, whatsapp, telegram, entre otras, incluyendo incluso los espacios de
interacción social en los cuales existe una expectativa de privacidad tales como
Facebook, instagram, tik tok, entre otras³⁶.
De este modo conviene tener presente que, por su ubicación sistemática en el
texto constitucional, este derecho deriva, a su vez, del derecho a la dignidad de la
persona que implica la existencia de un ámbito propio y reservado frente a la acción y

34 UGARTE CATALDO, José Luis, “Derechos Fundamentales, tutela y trabajo”, Santiago, Chile, Legal Publishing, 1ª
edición, 2018, pp. 192-193.
35 FIGUEROA GARCÍA-HUIDOGRO, Rodolfo, “Privacidad”, Santiago, Chile, Ediciones Universidad Diego Portales,
2014, p. 115.
36 Como señaló UGARTE CATALDO, José Luis (2018, pp. 198-199)
SUMÁRIO

el conocimiento de los demás, necesario, según las pautas de nuestra cultura, para
mantener una calidad mínima de la vida humana.
No obstante, el derecho a la intimidad de la o el trabajador puede entrar en
conflicto con el interés empresarial de controlar el cumplimiento de las obligaciones
laborales, que llevará a cabo en virtud de las facultades directivas de que dispone al
amparo de la libertad de empresa, reconocida. Dicho control empresarial se puede
materializar a través de diversas formas, que se concretan mediante la supervisión
personal de la actividad profesional desarrollada en el tiempo y lugar de trabajo, que
en la actualidad se ejerce mediante medios tecnológicos.
En este contexto, y sin perjuicio del posterior análisis pormenorizado a que obliga
la casuística, la existencia de ciertos presupuestos de validez del control empresarial
dependerá de la licitud de la medida que afecta a la privacidad del trabajador, pues si
esta se opone a este derecho, no existe coalición entre el derecho a la propiedad de la
empresa y la privacidad de la trabajadora o trabajador, sino que de plano se incurre en
una vulneración de derechos fundamentales.
De esta manera el Código del Trabajo chileno contiene derechos mínimos de los
trabajadores, regulándose los aspectos más fundamentales como esos mínimos
legalmente garantizados e irrenunciables, los cuales pueden ser reclamados ante los
tribunales laborales mediante la tutela laboral (Art. 485 CT).
Por su parte, con el panorama desde el año 2020 con la crisis social y sanitaria, el
sistema de relaciones laborales en Chile comenzó a plantear problemáticas que antes
habían pasado desapercibidas.
En este contexto, se dicta el 18 de marzo de 2020 el Decreto Supremo Nº104, que
declara Estado es Excepción Constitucional de Catástrofe por calamidad pública en
todo el territorio nacional, comenzando a los pocos días las cuarentenas sanitarias de
la población. Desde el punto de vista de las relaciones laborales se dictó la Ley 21.227,
denominada “Ley de Protección del Empleo”³⁷.
Otra normativa importante producto de la crisis sanitaria y social, es la Ley
21.220, la cual vino a modificar el Código del Trabajo e incorporó un nuevo Capítulo
IX al Título II del Libro I, denominado “Del Trabajo a Distancia y Teletrabajo”³⁸.

37 Establecía que los contratos de trabajo podían ser suspendidos por decisión unilateral del empleador, manteniéndose
el vínculo laboral pero sin obligación de prestar servicios por parte del trabajador, ni de pagar remuneraciones por
parte del empleador. Durante ese tiempo de suspensión, el trabajador obtiene dineros con cargo a su Seguro de
Cesantía, por lo que no se encontraba a disposición del empleador.
38 Se definió el teletrabajo como aquel en el que el colaborador presta sus servicios, total o parcialmente, desde su
domicilio u otro lugar distinto a establecimientos, instalaciones o faenas de la empresa, y teletrabajo, si los servicios
se prestan utilizando medios tecnológicos, informáticos o de telecomunicaciones.
SUMÁRIO

Esta modalidad de trabajo que puede ser pactada al inicio o durante la vigencia de
la relación laboral, en ningún caso, podrá implicar un menoscabo en su remuneración,
ni en los derechos individuales y colectivos que se reconocen en el Código. Las partes
pueden acordar que el trabajador distribuya libremente su jornada, adaptándose a sus
necesidades y respetando los límites diarios y semanales. También, se podrá pactar que
el trabajador quede eximido de la limitación de jornada.
Además, se establece que se debe respetar el llamado “derecho a desconexión” de
12 horas continuas entre jornada de trabajo, tiempo en el cual el trabajador no estará
obligado a responder sus comunicaciones, órdenes y otros requerimientos.
En este contexto, sin perjuicio de que el derecho a descanso ya se encontraba
regulado en el Código del Trabajo, en Chile se comenzó a hablar con mayor intensidad
del derecho a desconexión como fuente del derecho a descanso.

3. EL TRABAJO SIN FIN


Las nuevas tecnologías impactan tanto en las jornadas laborales que se desarrollan
mediante teletrabajo como las que se ejercen de manera presencial, pues mientras en el
teletrabajo o trabajo a distancia, la línea divisoria entre la vida laboral y la vida personal
se superponen, existiendo así una mayor dificultad para diferenciar la jornada de
trabajo con la del descanso; en el trabajo presencial el escenario no es muy distinto,
debido a que la o el trabajador al estar siempre conectado, consiente e
inconscientemente se siente obligado a permanecer en esta condición y disponible para
contestar al empleador sus requerimientos.
De esta manera se desdibuja la relación laboral como la conocíamos antes de la
irrupción de los teléfonos inteligentes y los medios de comunicación tecnológicos,
debido a que en el modelo fordista de la empresa, el trabajador terminaba su jornada y
regresaba a su hogar, no teniendo contacto con su empleador hasta el día siguiente, en
donde se le asignaban funciones y se le impartían instrucciones. Al llegar las nuevas
tecnologías los trabajadores se ven expuestos a recibir instrucciones en horarios fuera
de la jornada laboral, lo que no permite que la o el trabajador logre desconectarse.
Así es posible señalar que para que el descanso sea efectivo, es necesaria de la
desconexión. En este sentido, si bien el derecho al descanso siempre ha existido, la
hiperconectividad y el hipercontrol que ejerce el empleador actualmente provocan que
este tiempo sea cada vez menos efectivo, pues el derecho a descansar no solo refiere a
recibir mi remuneración integra en estos períodos, sino también dice relación con no
ser contactado por el empleador durante el período de descanso.
SUMÁRIO

Una de las recomendaciones de la Comisión Mundial de la OIT sobre el futuro del


trabajo, se refiere a la necesidad de los trabajadores, de que tengan una mayor
autonomía sobre sus tiempos de trabajo sin dejar de satisfacer las necesidades de la
empresa, lo que conlleva una mejoraría en su salud y bienestar, así como su
desempeño personal y el empresarial. De este modo, la Comisión reconoce que las
horas que se trabajan son excesivas, señalando que la manera que se desarrollan las
relaciones laborales al interior de la empresa ha cambiado con las nuevas tecnologías,
el derecho a desconectarse se a transformado en un aspecto crucial para que el derecho
a descanso se pueda ejercer³⁹.
Como ya se indicó anteriormente, antes la o el trabajador terminaban su jornada
y comenzaba su vida personal debido a que el empleador no iba a visitarlo a su casa
para entregarle instrucciones y tampoco lo llamaba a su teléfono fijo, actualmente,
mediante las nuevas tecnologías como el whatsapp y el correo electrónico ya no
existen horarios ni lugares para conectarse, no existe barrera alguna para ejercer la
comunicación entre empleador y trabajador.
La hiperconectividad aparece como un tema relevante en Chile desde la
regulación del teletrabajo durante la pandemia, debido a que se permite que la jornada
de trabajo mediante esta modalidad se ejerza incluso sin limitación de jornada, lo que
a juicio de la suscrita desincentiva la desconexión y por tanto, es más difícil ejercer el
descanso efectivo.
Sin perjuicio de lo anterior, se estableció que durante un lapso de 12 horas
continuas en un período de 24 horas, los trabajadores no estarán obligados a
responder comunicados, ordenes u requerimientos del empleador.
A su vez, el empleador no podrá establecer comunicaciones, ni impartir ordenes
u otro tipo de solicitudes en aquellos días en que los trabajadores hagan uso de
descanso, permiso o feriado anual. Siendo esto aplicable para las o los trabajadores con
y sin limitación de jornada, sin embargo, esto en la práctica no es del todo efectivo.
De esta manera la hiperconectividad toma un rol preponderante a la hora de
analizar el derecho a descanso, pues la desconexión se vuelve cada vez más escaza y
en algunos casos incluso es nula, debido a que el empleador ejerce constantemente sus
facultades de dirección y control mediante los medios electrónicos que tiene a su
disposición.
En razón del análisis realizado, la desconexión puede definirse como el derecho
que tiene el trabajador a no contestar fuera de su jornada laboral, por parte del

39 Como señaló AZÓCAR SIMONET, Rodrigo, (2019. p. 7).


SUMÁRIO

empleador fuera de la jornada laboral, abarcando este concepto las funciones y las
responsabilidades. De esta manera, se vuelve un elemento esencial para lograr el
descanso efectivo, por el cual la o el trabajador no deberían sentir temor a sufrir ningún
tipo de represalia.
Sin perjuicio de lo anterior, se debe tener en cuenta que la desconexión de los
asuntos laborales depende de diferentes factores, tales como psicológicos, económicos
y sociales, pues incluso ante la supuesta decisión de la o el trabajador de estar
voluntariamente siempre conectado y disponible, el empleador tiene la obligación de
tomar medidas para prohibirlo o evitarlo, respetando de esta forma los derechos
fundamentales y evitando de esta forma el llamado “trabajo sin fin”⁴⁰.
En consecuencia, el derecho a descanso es un derecho irrenunciable, teniendo el
empleador la obligación de informar, capacitar al trabajador y por tanto, prohibir como
política de la empresa los requerimiento de asuntos laborales fuera de la jornada, en
base a su obligación de respetar eficazmente la vida y la salud de las y los trabajadores
que se encuentran bajo su subordinación y dependencia.

4. LAS NUEVAS FORMAS DE CONTROL DEL EMPLEADOR, LAS CUALES


DERIVAN EN EL HIPERCONTROL.
La tecnología ha transformado lo que entendíamos por lugar y tiempo de trabajo,
debido a que actualmente las y los trabajadores están permanentemente conectados y
a disposición del empleador sin importar la hora o lugar.
Uno de los efectos que el profesor Ugarte identifica en el mundo del trabajo
debido a la introducción de las denominadas nuevas tecnologías, no dicen relación con
el proceso productivo en si mismo, sino en la posición que se encuentran las partes en
la relación laboral. Generándose así una paradoja, pues por un lado se produce una
expansión en la autonomía de los trabajadores mediante la tecnología que les permite
organizarse y desarrollarse de mejor modo, pero por otra parte, y simultáneamente, se
asiste de nuevas herramientas de control a disposición del empleador, que lo ponen
frente a nuevos riesgos en el plano de los derechos fundamentales, como la intimidad
o la vida privada⁴¹.
Ante la ausencia de una normativa específica que regule el uso de los medios
tecnológicos y digitales en el ámbito laboral y la escasa intervención de los sindicatos

40 En este sentido, “En un mundo regido por las nuevas tecnologías, el trabajador a veces no tiene o no sabe encontrar
la oportunidad de desconectarse del trabajo, ya sea cuando este se realiza en un domicilio o en cualquier otro lugar.
Son factores educacionales y personales los que pueden influir en su conducta, para lo cual es impresindible el
apoyo de la empresa. (OIT, 2018)
41 UGARTE CATALDO, José Luis, “El nuevo derecho del trabajo”, Santiago, Chile, Editorial Universitaria, 2004. p. 145.
SUMÁRIO

para regular estas materias en sus instrumentos colectivos, se abre una temática que
urge ser tratada debido al auge de los controles basados en el uso de las tecnologías,
los cuales se vuelven cada vez más sofisticados e ilimitados en sus sistemas de
supervisión y vigilancia de la actividad laboral dentro y fuera del lugar de trabajo,
tales como técnicas de seguimiento a distancia por gps, videovigilancia,
monitorización y registro del computador, llamadas telefónicas, evaluación de los
clientes, entre otras⁴².
Si bien es sabido que las facultades del empleador están limitadas por la dignidad
humana, que una de sus derivaciones más importantes el derecho a la vida privada,
para que esta limitación tenga resultados reales, este debe proteger eficazmente el
derecho que tienen las y los trabajadores de desconectarse para que puedan tener un
descanso efectivo.
De este modo, actualmente el debate no se centra en el conocimiento que tienen
las o los trabajadores de los medios de control que ha instalado su empleador para
supervisar el cumplimiento de sus obligaciones, pues eso ya esta resuelto.
Centrándose la discusión en el ejercicio, las facultades empresariales y la finalidad del
control⁴³.
En este escenario, de leyes laborales estableciendo derechos mínimos y el
empleador dotado de amplias facultades de mando, la norma laboral no consigue
imponer un sistema de relaciones laborales que permita equilibrar efectivamente los
poderes de ambas partes. Por el contrario, parte del supuesto de la imposibilidad de
aspirar siquiera por el trabajador a un equilibrio que le permita pactar las condiciones
mínimas en el estándar de la ley laboral, o mejores. Dicho de otro modo, no busca la
normativa laboral la corrección de las desigualdades en el contrato de trabajo, solo
asegurar que ese desequilibrio no dañe cuestiones que el legislador estima como
mínimos establecidos con normas de carácter general como las leyes y, por tanto, sin
posibilidades de hacerse cargo de las particularidades de cada rubro, empresa o
establecimiento, que ciertamente pueden llevar a otros mínimos de mayor o menos
cobertura.
El derecho a desconectarse del trabajo en los periodos de descanso puede estar
sujeto a ciertas limitaciones, siendo en primer lugar recomendable regular el uso de los

42 FERNANDO GARCÍA, Francisca, “Vigilancia y control de los trabajadores y derecho a la intimidad en el contexto de
las nuevas tecnologías”, Revista del Derecho del Trabajo y Seguridad Social, Nº399, 2016, pp.37-68. Disponible en:
h�ps://www.observatoriovascosobreacoso.com/wp-content/uploads/2017/04/ed-ferrando-garca-rtss-cef-399.pdf. Con
acceso el 06.05.2022.
43 APARICIO ALDANA, Rebeca, El problema de la videovigilancia laboral: entre el control empresarial y el derecho a
la protección de datos de los trabajadores; “Trabajo en Plataformas Digitales: innovación, derecho y mercado”.
Directores: TODOLÍ SIGNES, Adrián; HERNÁNDEZ BEJARANO, Macarena , España, Thomson Reuter. 2018.p.575.
SUMÁRIO

medios tecnológicos al interior de la empresa para garantizar la intimidad de los


trabajadores en el uso de los dispositivos electrónicos que utilizan tanto para el
desempeño de sus funciones laborales y la vida personal.
Desde este punto de vista, el empleador debe tomar todas las medidas al interior
de la empresa para que todas las y los trabajadores, jefaturas, mandos medios, clientes,
usuarios o cualquier persona que se vincule con el trabajador en el ejercicio de sus
funciones por cualquier medio no se comunique con la o el trabajador en sus días de
descanso.
En consecuencia, ningún trabajador puede sufrir represalias de ningún tipo por
no trabajar en sus días de descanso o negarse a contestar requerimientos en horarios
fuera de su jornada laboral, salvo caso fortuito o fuerza mayor⁴⁴ o de haberse acordado
individual o colectivamente la realización de trabajo, pero siempre esto debe ser de
manera excepcional.

5. EL ROL DE LA DIRECCIÓN DEL TRABAJO EN ESTA MATERIA.


La Dirección del Trabajo es creada por el Decreto con Fuerza de Ley Nº2 de 1967,
del Ministerio del Trabajo y Previsión Social, que establece en su artículo en su artículo
1º, como parte de sus funciones velar por la correcta aplicación de las leyes que
garantizan los derechos sociales de las y los trabajadores y la de fiscalizar la aplicación
de la legislación laboral.
Asimismo, esta ley crea las Inspecciones del Trabajo, en las cuales se delega por el
Director del Trabajo la fiscalización en terreno del cumplimiento de la norma laboral.
De este modo la Dirección del Trabajo habla mediante sus pronunciamientos
entre los cuales para este trabajo destacaremos el Dictamen Nº 1389-007 del 08.04.2020,
el cual fija el sentido y alcance de la ley Nº 21.220 de 26.03.2020, en lo relativo al trabajo
a distancia y teletrabajo, que establece en su titulo VI “El derecho a descanso y el
derecho a la desconexión” que en lo pertinente indica que la circunstancia de laborar
en un régimen excluido de los límites de la jornada no priva a los respectivos
trabajadores del derecho a descanso semanal consagrado en la normativa vigente.
En lo que respecta al derecho a desconexión debemos destacar que este asiste a las
y los trabajadores a distancia que distribuyen libremente su horario y a las y los
trabajadores excluidos de limitación de jornada y se traduce que, durante un lapso de

44 Se encuentra regulado en el articulo 45 del Código Civil Chileno estableciendo que “Se llama fuerza mayor o caso
fortuito el imprevisto a que no es posible resistir, como un naufragio, un terremoto, el apresamiento de enemigos,
los actos de autoridad ejercidos por un funcionario público, etc”.En materia laboral, se utiliza en la regulación de la
jornada y como causal de término del contrato de trabajo.
SUMÁRIO

al menos 12 horas continuas, en un período de 24 horas, dichos dependientes estarán


obligados a responder comunicaciones, ordenes u otros requerimientos del
empleador.
Por su parte, el empleador no podrá establecer comunicaciones, impartir ordenes
u otro tipo de solicitudes en aquellos días en que los trabajadores hagan uso de sus
días de descanso, permiso o feriado anual.
Esto significa que el empleador debe respetar los tiempos de descanso de sus
trabajadores, garantizando el tiempo en el cual ellos no estarán obligados a responder
comunicaciones, ordenes u otros requerimientos.
Dicho tiempo, establece la norma debe ser de 12 horas continuas en un periodo de
24 horas, periodo en el cual el empleador no podrá establecer comunicaciones ni dar
ordenes en días de descanso o vacaciones de los trabajadores.
En este contexto, la Dirección del Trabajo en su rol protector de los derechos de los
trabajadores y aplicando sus facultades interpretativa, en su pronunciamiento impide
al empleador emitir comunicaciones entre las horas libres que transcurren en los
periodos de descanso, estableciendo así, la prohibición en el empleador.
En consecuencia, es función de la Dirección del Trabajo fiscalizar al empleador en
el cumplimiento de la obligación de no emitir comunicaciones ni ordenes en el periodo
de descanso del trabajador, garantizando el pleno respeto al derecho a desconexión y
como correlativo el efectivo descanso.

A MODO DE CONCLUSIÓN
En este trabajo se ha intentado entregar un panorama de las relaciones laborales
post pandemia, en el cual las nuevas tecnologías y formas de comunicación han abierto
el debate respecto a la desconexión y el derecho a descanso, problema que se acrecienta
cuando hablamos de los trabajadores sin limitación de jornada.
Así en este trabajo se analizaron, variados conceptos que han surgido en este
período, tales como la hiperconectividad, el hipercontrol, entre otros, los cuales
irrumpen y que deben ser considerados a la hora de analizar la jornada de trabajo, las
facultades del empleador y el derecho a descanso del trabajador.
De esta manera, a juicio de la suscrita la única manera de lograr un descanso
efectivo es garantizando y protegiendo el derecho a desconectarse del trabajo y esto
sólo es posible con un cambio cultural, social y educacional, en donde la
disponibilidad no sea sobrevalorada, donde culturalmente respetemos el derecho del
SUMÁRIO

otro a tener vida personal, solo así se lograra una conciliación efectiva entre la vida
personal y la laboral.
En este contexto, hasta no lograr ese cambio, se debe prohibir no solo en las
relaciones laborales regidas por la ley de teletrabajo sino que en cualquier modalidad,
que el empleador ejerza comunicaciones e instrucciones por cualquier medio fuera de
la jornada laboral, salvo casos excepcionales como ya se indico.
Solo de esta forma, el derecho a descanso dejará de ser un derecho meramente
teórico, que solo leemos en los libros y que en la práctica en contados casos se ejerce de
manera efectiva.
Finalmente indicar que, la discusión actual en el sistema de relaciones laborales
chileno, referente a la rebaja de 45 a 40 horas semanales, a juicio de la suscrita carece
de toda importancia sino se garantiza y protege el derecho a desconectarse del trabajo
y por tanto, el derecho a descansar, debido a que el enfoque debe establecerse en esto
último, pues en caso contrario esta rebaja solo será una norma sin ningún tipo de
efecto real para las y los trabajadores.

REFERENCIAS
APARICIO ALDANA, Rebeca, El problema de la videovigilancia laboral: entre el control empresarial y el
derecho a la protección de datos de los trabajadores; “Trabajo en Plataformas Digitales: innovación, derecho
y mercado”. Directores: TODOLÍ SIGNES, Adrián; HERNÁNDEZ BEJARANO, Macarena , España,
Thomson Reuter. 2018.

AZÓCAR SIMONET, Rodrigo, Derecho a desconectarse del trabajo: una necesidad para conciliar la vida
personal y laboral, Centro de Políticas Públicas UC, Pontificia Universidad Católica, Santiago, Chile, 2019.

CARRO IGELMO, Alberto, Curso de Derecho del Trabajo, Barcelona, España, Bosh,1991.
FERNANDO GARCÍA, Francisca María, “Vigilancia y control de los trabajadores y derecho a la intimidad
en el contexto de las nuevas tecnologías”, Revista del Derecho del Trabajo y Seguridad Social, Nº399, 2016.
Disponible en: h�ps://www.observatoriovascosobreacoso.com/wp-content/uploads/2017/04/ed-ferrando-
garca-rtss-cef-399.pdf. Con acceso el 06.05.2022.

GAMONAL CONTRERAS, Sergio y Guidi Moggia, Caterina, “Manual del Contrato de Trabajo”, Santiago,
Chile, Legal Publishing, 2015.

FIGUEROA GARCÍA- HUIDOGRO, Rodolfo., Privacidad, Ediciones Universidad Diego Portales, Chile,
2014.

ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO (OIT), 2018. Garantizar un tiempo de trabajo


decente para el futuro. Conferencia Internacional del Trabajo. 107ª reunión. Recuperado desde: h�p://
www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---relconf/documents/meetingdocument/
wcms_618490.pdf.

UGARTE CATALDO, José Luis, “El nuevo derecho del trabajo”, Santiago, Chile, Editorial Universitaria,
2004.

UGARTE CATALDO, José Luis, “Derechos Fundamentales, tutela y trabajo”, Santiago, Chile, Legal
Publishing, 1ª edición, 2018.
SUMÁRIO

WALKER ERRAZURIZ, Francisco, “Derecho de las Relaciones Laborales, Un Derecho vivo”. Santiago,
Chile, Editorial Universitaria, 2003.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 4
OS DESAFIOS DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS EM
TEMPOS DE COVID-19
Tânia Regina Silva Reckziegel
SUMÁRIO

OS DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM


TEMPOS DE COVID-19

Tânia Regina Silva Reckziegel⁴⁵

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Enfrentamos um dos maiores desafios sanitários e sociais com dimensão
global, momento em que a pandemia da COVID-19⁴⁶ intensificou a crise do capital e
as desigualdades sociais. O conhecimento científico nos mostrou a sua limitação
quanto ao combate do fatídico vírus, visto que por um lado temos pesquisadores
preocupados pela busca acirrada da cura, combate e prevenção, e por outro um vírus
que se alastra e contamina em ritmo desordenado, causando uma mortandade sem
fronteiras.
Ao adotar estratégias de isolamento social para prevenir a propagação do vírus,
a população brasileira, diante deste novo panorama, encontra-se em situação de
extrema vulnerabilidade, principalmente as comunidades de baixa renda. As políticas
sociais foram reduzidas, o desemprego vem se intensificando, grandes e pequenas
empresas estão diante de um colapso econômico e a única certeza que temos diz
respeito à importância dos saberes científicos e políticas de acesso à justiça em prol da
garantia do direito à saúde.

45 Desembargadora do Trabalho (TRT da 4.ª Região - RS). Conselheira do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
UNIJUI, Brasil (2021). Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Possui Graduação em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Especialista em Gestão
Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. La�es: h�p://la�es.cnpq.br/4639064998859556 E-
mail: taniasilvareck@gmail.com
46 O coronavírus diz respeito a um vírus respiratório, que se espalha através de gotículas geradas quando um
indivíduo infectado tosse ou espirra, através de secreção nasal ou até mesmo saliva (STURZA, 2020, p. 6).
SUMÁRIO

O principal objetivo deste trabalho é elucidar os principais desafios do Estado na


implementação e na efetividade das políticas públicas de acesso à justiça e garantia do
direito à saúde em meio à pandemia da Covid-19 e seus impactos na vida dos
trabalhadores, bem como alertar a população diante da importância dos
investimentos em políticas públicas⁴⁷ e desenvolvimento científico, de modo a garantir
uma boa qualidade de vida em momentos de crise econômica e sanitária.

1. DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS DE COVID-19


Em 11 de março de 2019, a Organização Mundial da Saúde – OMS declarou ao
mundo o início da pandemia do novo coronavírus, COVID-19, originário do SARS-
COV-2, que compõe uma família de vírus conhecidos por causarem infecções
respiratórias. O processo pandêmico espalhou-se rapidamente pelo mundo. A maioria
das pessoas contaminadas apresentaram apenas sintomas leves e moderados. Outras,
no entanto, desenvolveram um quadro muito mais grave, resultando em sequelas
graves até o óbito.
Decorridos mais de dois anos das primeiras notícias relacionadas ao vírus,
felizmente, o número de infectados e o número de óbitos em nosso país começam a
declinar, perfazendo, atualmente, cerca de 13.800 novos casos relatados, em média, a
cada dia. Esse número corresponde ao percentual de 7% desde o pico da pandemia,
em meados de abril de 2021, ocasião em que a maior média diária relatada superou
37.600 infectados ao dia. Até a presente data, o Brasil contabiliza mais de 663 mil
mortes, de acordo com a Reuters COVID Tracker.
No Brasil, os desafios superam os problemas sanitários, sociais e econômicos, na
medida em que se somam a muitos outros sob a responsabilidade central dos
governos e suas instituições, em todas as esferas do sistema federativo estabelecido
por nosso modelo constitucional. As ações do Estado, em face dessas diversas
dimensões de poder e organização administrativa, assumem maior complexidade, sob
o ponto de vista do gerenciamento dos recursos financeiros e a efetividade de
resultados dentro desse contexto. A crise desencadeada pelo coronavírus envolve, por
certo, desafios em todas as áreas de políticas públicas, que não são diagnosticadas de
imediato.
Como signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais,
conforme o Decreto n.o 591 de 6 de julho de 1991⁴⁸, o Brasil garante a toda a nação o

47 Quanto ao conceito de política pública: tal é um conjunto de decisões e ações adotadas por órgãos públicos e
organizações da sociedade, intencionalmente coerentes entre si, que, sob coordenação estatal, destinam-se a enfrentar
um problema político (SCHMIDT, 2018, p. 127).
48 Conforme Artigo 12, item 1, alínea C, Constituição Federal.
SUMÁRIO

dever de fazer cumprir todas as disposições estabelecidas no documento. Assim, deve


primar pela implementação de políticas públicas que garantam à população o direito
“ao mais elevado nível de saúde física e mental”. Os governos signatários são,
portanto, obrigados a adotarem medidas concretas para a “prevenção, tratamento e
controle de doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras”.
Norteado pelo compromisso assumido e, acima de tudo, pelas disposições
estabelecidas em nossa Constituição Federal, em seu Artigo 6o49, o governo brasileiro,
em todas as esferas da federação, adotou e segue adotando medidas de caráter
emergencial e ações coordenadas para combater a disseminação da COVID-19, além
de estabelecer ações e políticas públicas coordenadas para o controle da situação em
condições satisfatórias.
Na linha das orientações formuladas pela OMS, a União e os governos dos
Estados e municípios adotaram, logo no início da pandemia, a política de isolamento
social ou confinamento, ensejando dificuldades no que tange à manutenção da
atividade econômica e níveis de emprego no mercado de trabalho. De toda sorte,
ambos os desafios se relacionaram à necessidade de proteção à vida e ao bem-estar
social, no contexto brasileiro, de uma crise mundial.
Segundo Roberto Rocha Coelho Filho, por meio da Nota Técnica n.o 33 do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, acerca dos problemas relacionados
à política de distanciamento social ou confinamento domiciliar da população, os
contrastes sociais e a vulnerabilidade de boa parte da população, principalmente no
que tange às condições de moradia, dificultam a aplicação de tal política em nosso país:

“Parte da presunção de que todas as pessoas possuem um local de


residência, em condições minimamente adequadas, para um
período relativamente longo de isolamento. Porém, as condições
de moradia da população brasileira estão bem distantes desta
expectativa. Em ensaio recente, Klintowi�, Moreira e Tavares
fizeram uma compilação de indicadores de diferentes bases de
dados, demonstrando um quadro bastante preocupante. O Brasil
conta com um déficit habitacional em ritmo crescente nos últimos
anos, chegando a 7,5 milhões em 2018. Temos 4 milhões de
famílias vivendo em domicílios sem banheiro, 35 milhões
vivendo sem acesso à água tratada (e um número ainda maior
sujeito a acesso intermitente) e 100 milhões sem rede de esgoto.
Uma boa parte dessas condições habitacionais precárias se

o
49 Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
o
desta Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 90, de 2015).
SUMÁRIO

concentram em territórios de favela, nos quais somam-se outros


tipos de carência, como serviços adequados de transporte, saúde,
educação, segurança etc. Em algumas cidades, como São Paulo,
30% da população vive em condições críticas de urbanidade. Em
Belém, 66% das moradias estão em aglomerados subnormais. Já
em Salvador, quase metade da população vive em áreas sujeitas
a alagamento e desabamento. É nessas áreas precárias que vive a
maior parte dos 13,5 milhões de brasileiros em extrema pobreza.
Áreas estas, caracterizadas por assentamentos subnormais, em
que vive uma população majoritariamente negra – em proporção
duas vezes maior que a de brancos, segundo os dados do Retrato
das Desigualdades de Gênero e Raça no Brasil”.

Notadamente, a organização administrativa do Estado, no sistema tripartite


(União, Estados e Municípios), foi colocada à prova com o advento da pandemia do
coronavírus e o agravamento da situação de emergência sanitária em nosso país.
Conforme mencionado, as limitações do Sistema Único de Saúde – SUS somam-se ao
desafio de fazer cumprir os princípios e as regras básicas firmados em nossa Carta
Magna, alinhados à efetivação de políticas públicas voltadas à conquista do bem-estar
social, respeito à dignidade do ser humano e cidadania. Isso significa acesso
igualitário a todos, independentemente de qualquer condição social, étnica, ideológica
ou de gênero, aos meios de preservação da vida, como saúde, segurança e acesso ao
trabalho, instrumento fundamental para a conquista da dignidade.

2. AS POLÍTICAS PÚBLICAS ATUAIS E A GARANTIA DOS DIREITOS


HUMANOS NO BRASIL
Dessa forma, foram necessárias adequações do ordenamento jurídico,
infraconstitucional principalmente, no que se refere às relações de trabalho durante a
aplicação das políticas de isolamento social e confinamento. Tais providências foram
implementadas pelo Governo Federal no intuito de viabilizar e legitimar as
providências pontuais e urgentes, de forma a viabilizar as providências sanitárias
sugeridas pela OMS com menor impacto possível na economia e emprego.
Desde o início da pandemia, e frente ao temor mundial sobre seus possíveis
efeitos, havia uma grande expectativa e ansiedade em relação a busca de um
tratamento eficaz ou possíveis imunizantes para combater o vírus. Assim, no mundo
todo, grandes laboratórios farmacêuticos, em pouquíssimo tempo – considerando o
tempo médio de produção de vacinas –, conseguiram apresentar ao mundo os tão
aguardados imunizantes. Por outro lado, o curto espaço de tempo para a produção
desses imunizantes suscitou, e ainda suscita, muitas discussões sobre a eficácia e
SUMÁRIO

segurança desses produtos, além de outras tantas discussões que fomentaram teses
divergentes de toda ordem, no meio científico, político e no âmbito da sociedade civil.
Nesse cenário, as medidas restritivas, inicialmente indicadas pelas autoridades
sanitárias e largamente defendidas pelos meios de comunicação, influenciaram e
indicaram o rumo das principais ações e políticas a serem implementadas pelo Poder
Público – a maioria voltada à adoção de uma rigorosa política de isolamento social,
que perdurou por alguns meses, impactando, severamente, a economia brasileira e
mundial. Naquele contexto, a indústria, o comércio, os serviços e os trabalhadores em
nosso país ocupavam o epicentro de uma grave crise, de natureza tríplice: sanitária,
econômica e social.
Sem dúvida, é preciso reconhecer que a saúde pública e a economia estão
consubstanciadas em pilares fundamentais do que chamamos bem-estar social, fator
que acentua a preocupação de todos os setores da sociedade e do governo brasileiro.
Nos primeiros meses da pandemia, a inexistência de um tratamento
comprovadamente eficaz ou cientificamente comprovado em meio ao crescimento do
número de mortos e da saturação do SUS impulsionou o Poder Público Federal à
adoção de ações emergenciais voltadas ao campo da saúde pública e preservação da
nossa economia, no intuito de salvaguardar, primeiramente, a saúde da população e,
concomitantemente, tentar preservar, ao máximo, o nível de empregos formais:

“A pandemia do novo coronavírus traz uma série de implicações


para o Direito Público nos diferentes sistemas jurídicos do
mundo, inclusive para o Brasil, decorrentes de quatro problemas
contextuais relacionados à emergência de um novo corpo
normativo para o enfrentamento desta calamidade pública: a
centralização de poder e ações na autoridade executiva em
relação aos Poderes Legislativos e Judidiários; os conflitos
potenciais entre as medidas para a prevenção do contágio e as
garantias e direitos individuais; bem como as repercussões
contratuais e de suporte para serviços públicos, setores de
infraestrutura e seus eventuais prestadores privados (APUD
COVID-19)”.

A política de isolamento social adotada por todos os Estados da Federação,


conforme já referido, promoveu profundas mudanças na rotina dos trabalhadores,
bem como contribuiu, inevitavelmente, para o fechamento de inúmeros postos de
trabalho em nosso país e no mundo. As instituições públicas, atreladas aos três
poderes, em âmbito municipal, estadual e federal, readequaram-se no intuito de
atender às orientações da OMS, bem como do Ministério da Saúde. O Congresso
Nacional, por exemplo, passou a realizar sessões virtuais à distância.
SUMÁRIO

Na Justiça Nacional, a Resolução n.o 313/2020 do Conselho Nacional de Justiça


normatizou o funcionamento parcial, com a suspensão dos prazos processuais, em
todo o país, até 30 de abril de 2020, sob regime de plantão extraordinário para todas as
Cortes, exceto quanto ao Supremo Tribunal Federal e à Justiça Eleitoral, cuja prestação
de serviços passou a ser realizada, prioritariamente, em regime de trabalho remoto,
exigindo-se o mínimo necessário de servidores em regime de trabalho presencial.
A pandemia exigiu das autoridades governamentais a adoção de medidas
protetivas destinadas a mitigar a escalada do desemprego em decorrência da crise
sanitária. O trabalho pelo sistema home-office, quando possível, passou a ser adotado, o
que, certamente, contribuiu para a manutenção de inúmeros empregos formais e para
a continuidade de muitas atividades no âmbito das empresas.
Reitera-se que a pandemia de COVID-19 desencadeou uma grave crise em nossa
sociedade, de ordem sanitária, econômica e social. Esse contexto, notadamente,
contribuiu para um acentuado retrocesso ou prejuízo ao progresso e à afirmação dos
Direitos Humanos em nosso país e em todos os países atingidos pela pandemia, em
maior ou menor proporção. Vejamos:

“Tal deve-se ao fato de a crise sanitária, pelas medidas de saúde


pública adotadas, ter de imediato originado uma crise econômica
e uma crise social sem fronteiras. As três crises são hoje
indissociáveis, sendo indiscutível que a crise econômica e
sobretudo a social persistirão para além da crise sanitária
(PATRÃO NEVES, 2020)”.

Sabemos que a evolução dos direitos humanos, conforme conhecemos na


atualidade, emergiu do pensamento filosófico e das experiências políticas e sociais,
desenvolvidas a partir da antiguidade clássica. Naquele período, surgiram as
primeiras concepções sobre direitos inerentes à condição humana, que não poderiam
ser desconsiderados nem mesmo pelo monarca ou Estado, na figura de seus
governantes.
Os direitos humanos nascem das necessidades individuais de proteção e
segurança, o que abarca, em seu contexto, ações do Estado consubstanciadas em
políticas públicas relacionadas à saúde, à educação e à melhora das condições de
trabalho. Moradia e assistência social também devem ser contempladas nessa
categoria. E, para que sejam assegurados tais direitos fundamentais, o Poder Público
tem o dever de desenvolver, articular e coordenar ações e políticas públicas voltadas à
efetivação de seu principal objeto, a promoção do bem-estar social.
SUMÁRIO

O gerenciamento dessas políticas públicas e programas sociais em nosso sistema


federativo tem por meta assegurar a eficácia e a efetividade das garantias
constitucionais voltadas à promoção do bem-estar social. Com base nessa diretriz, a
Constituição Federal Brasileira, em seu Título II, Artigo 5o, contempla os direitos e
garantias fundamentais, na forma de direitos individuais e coletivos, relacionados ao
conceito de pessoa humana e a sua personalidade: direito à vida, à igualdade, à
dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade. Ademais, no Artigo 6o e
seus incisos, define os chamados direitos sociais, relacionados à garantia das
liberdades positivas dos indivíduos, à educação, saúde, trabalho, previdência social,
lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância, além da assistência aos
desemparados.
Acerca disso, discorre a Procuradora do Estado de São Paulo Flávia Piovesan:

“A chamada concepção contemporânea de direitos humanos é


fundada na universalidade e na indivisibilidade desses direitos.
Universalidade porque a condição de pessoa há de ser o requisito
único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra
condição. Indivisibilidade porque os direitos civis e políticos hão
de ser somados aos direitos sociais, econômicos e culturais, já que
não há verdadeira liberdade sem igualdade e nem tampouco há
verdadeira igualdade sem liberdade. Esta concepção, acolhida
pela Declaração Universal em 1948, veio a ser endossada pela
Declaração de Viena de 1993, que em seu parágrafo 5º consagrou
que os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de
forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma
ênfase (REVISTA PGE)”.

A meta firmada em nossa Carta Magna é a constante melhoria das condições de


vida de toda a sociedade, priorizando os desfavorecidos de forma a equilibrar a
sociedade e proporcionar a igualdade de condições entre todos os brasileiros. À
revelia de tais conceitos, é importante reconhecer que a pandemia de COVID-19
impactou as bases de nossa sociedade em um contexto muito maior, além da crise no
sistema de saúde e do elevado número de óbitos. Verificou-se, desde então, uma crise
em três setores: de ordem sanitária, econômica e social.
Como não poderia deixar de ser, os efeitos da pandemia em nosso sistema
econômico acentuaram ainda mais as mazelas relacionadas à condição
socioeconômica, étnica e sanitária, o que, por certo, resulta em um dos maiores
desafios vivenciados pela sociedade brasileira e mundial desde a publicação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
SUMÁRIO

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, CIDH, em abril de 2020,


alertou sobre os perigos à integridade dos direitos humanos em razão das
desigualdades econômicas e sociais, além das ameaças às liberdades:

“A pandemia da Covid-19 pode afetar seriamente o pleno


exercício dos direitos humanos devido aos graves riscos à vida, à
saúde e à integridade pessoal. As Américas são a região mais
desigual do planeta, caracterizada por profundas lacunas sociais
em que a pobreza e a pobreza extrema constituem um problema
transversal em todos os Estados da região, bem como a falta ou
precariedade no acesso à água potável e saneamento, a
insegurança alimentar, situações de contaminação ambiental e
falta de moradia ou habitat adequado”, alertou a CIDH
(AGÊNCIA SENADO).

No Brasil, o agravamento da situação sanitária motivou a decretação do “estado


de calamidade pública”⁵⁰, mediante o Decreto Legislativo n.o 6, de 20 de março de
2020⁵¹. Da mesma forma, as demais unidades da Federação reproduziram, a seu
tempo, o mesmo procedimento. Ainda que imprescindíveis tais providências
institucionais, pelos motivos já discorridos, a medida extrema reverberou em todos os
setores da sociedade, impondo limitações, primeiramente, ao direito de liberdade. A
ocupação de espaços públicos e sociais (praças, locais de lazer e, quanto ao
trabalhador, o próprio ambiente da prestação do serviço) deveria adequar-se aos
ditames de decretos e regulamentos correlatos.
O isolamento social e as demais medidas restritivas de liberdade tinham por
justificativa a preservação de um outro direito fundamental, a preservação da saúde e
a manutenção da vida. Portanto, na prática, o que se observa é, talvez, uma
ponderação entre valores e bens jurídicos fundamentais, sob a orientação da OMS.
No que se refere às liberdades individuais, as medidas restritivas adotadas, no
âmbito das políticas públicas para o gerenciamento do estado de calamidade pública,
a rigor, impuseram à sociedade brasileira parâmetros mais rígidos e coercitivos de
controle da circulação e de convivência em sociedade, impondo a necessidade de
ponderação quanto ao exercício dos direitos humanos e fundamentais à vida, à saúde
e à liberdade. Por outro lado, o direito social de acesso ao trabalho e à manutenção dos
meios de produção de bens e serviços em nossa economia, com vista à garantia do
bem-estar social, representou um enorme desafio para a maioria da sociedade
brasileira, em que muitos subsistem da prestação de serviços de baixa rentabilidade ou

50 Previsão legal: Art. 65, da Lei 101 de 04 de maio de 2000. Disponível em: h�p://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lcp/lcp101.htm
51 h�ps://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=MPV&numero=927&ano=2020&ato=615Azaq5EMZpWT390
SUMÁRIO

informais, não alcançados pela facilidade do sistema home office. Neste último caso, é
necessário reconhecer que o acesso ao trabalho e a mobilidade estão intimamente
ligados ao direito à vida ou sua manutenção, em qualquer democracia moderna.
Notadamente, os direitos civis e políticos dos cidadãos foram os primeiros a
sofrer limitações justificadas, não obstante, pela premente necessidade de
implementação de medidas sanitárias pontuais, no intuito de obter resultados
positivos na redução do contágio e propagação do vírus. Ademais, pela capacidade
limitada do SUS em nosso país.
A política pública de isolamento social e confinamento da população foi a
primeira providência tomada pelas autoridades brasileiras para combater a
propagação do vírus. Nesse contexto, o direito à liberdade individual de ir e vir passou
a sofrer mitigação em prol da saúde da coletividade.
Contudo, as condições de habitação de parcelas consideráveis da população
brasileira impuseram enormes entraves ao distanciamento social e à adoção das
medidas de higiene apontadas pelas organizações sanitárias como essenciais para
evitar a contaminação pelo vírus. Portanto, a conclusão a que chegamos é que, embora
necessário, como medida de contenção da propagação do vírus, o confinamento
domiciliar exitoso exige medidas complementares por parte do poder público, com
vista a garantir padrões mínimos de higiene, salubridade e bem-estar.
Quanto ao direito social de acesso ao trabalho e ao emprego, as medidas adotadas
pelo Governo Federal foram editadas com o propósito de garantir, ou minimizar, o
impacto da crise econômica global, com efeitos duradouros, muito além da própria
pandemia Covid-19.
Na seara das relações trabalhistas, duas Medidas Provisórias foram editadas: a
primeira, por meio da MP 927 de 22 março de 2020⁵², destinada às necessárias
reformas frente ao estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública,
tais como: o teletrabalho, a antecipação de férias individuais, a concessão de férias
coletivas, o aproveitamento e a antecipação de feriados, o banco de horas, a suspensão
de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho e o diferimento do
recolhimento do FGTS. Após, a MP 936 de 20 de março de 2020, instituindo um
programa emergencial para regular a suspensão dos contratos de trabalho, bem como
a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários, com a previsão de
pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda.

52 A medida provisória 927 de 22/3/20 dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de
calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19). Sua vigência foi encerrada em
19/07/2020. Disponível em: h�p://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv927.htm.
SUMÁRIO

Por iniciativa do próprio Congresso Nacional, foi ainda aprovada a Lei


13.982/2020, prevendo o pagamento de um auxílio-emergencial no valor de R$ 600,00
mensais aos trabalhadores do mercado informal. Mais de 66 milhões de brasileiros
receberam diretamente esse auxílio-emergencial segundo dados divulgados pelo
Ministério da Cidadania: se contabilizado o número de integrantes de uma família, o
benefício chegou a mais de 126 milhões de pessoas (cerca de 60% da população
brasileira), tendo, portanto, se mostrado como uma medida fundamental para a
manutenção das condições de vida de cidadãos que não possuíam regulares vínculos
de emprego.
Tais medidas governamentais, na área trabalhista, sofreram inúmeros
questionamentos de constitucionalidade, em especial quanto à possibilidade de
negociações individuais entre os sujeitos do contrato de trabalho. Mas o STF acabou
suspendendo a eficácia de apenas dois dispositivos da MP 927: o artigo 29 (que não
considerava doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores pelo
coronavírus) e o artigo 31 (que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à
atividade de orientação).
Quanto à MP 936, que previa a possibilidade de celebração de acordos
individuais para implantação da redução proporcional de jornadas e salários,
argumentou-se que haveria a violação ao Artigo 7º, VI, da Constituição, quando prevê
entre os direitos dos trabalhadores a irredutibilidade salarial, salvo negociação
coletiva.
O STF, no entanto, rejeitou o questionamento (em polêmica decisão que aludiu a
um “direito constitucional de crise”) e acabou validando a possibilidade de celebração
de acordos individuais, a depender do valor dos salários dos trabalhadores
envolvidos.
Ultrapassados os questionamentos jurídicos acerca da constitucionalidade,
coube ao Congresso Nacional decidir pela conversão das MPs em leis, mas uma delas,
a 927, acabou caducando por decurso de prazo: esgotados os 120 dias de vigência, não
foi aprovada (aplicando-se então a regra do art. 62, §11, da Constituição, segundo o
qual, diante da perda de eficácia de medida provisória, “as relações jurídicas
constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão
por ela regidas”).
Já a MP 936 foi aprovada e convertida na Lei n.º 14.020/2020, sendo que, de
acordo com dados divulgados pelo Ministério da Economia, foram celebrados mais
de 20 milhões de acordos para suspensão de contratos de trabalho ou redução
proporcional de salários e jornada, envolvendo quase 10 milhões de trabalhadores e
SUMÁRIO

cerca de 1,5 milhão de empregadores, no âmbito do Programa Emergencial de


Manutenção do Emprego e da Renda.
O governo federal, tentando mitigar o aumento inevitável do desemprego em
massa, instituiu Medidas Provisórias e mudanças em nossa legislação laboral, com
vista à manutenção dos empregos formais. Nesse sentido, foram editadas diversas
medidas legislativas para fornecer soluções temporárias, a exemplo da Lei n.º 14.020
de 06 de julho de 2020, que criou regras permitindo ao empregador a antecipação de
férias, a redução do período do trabalho e a possibilidade de suspensão do contrato de
trabalho. Nesse caso, o Governo arcou com um benefício em substituição ao salário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise desencadeada pelo Covid-19 exigiu ações governamentais rápidas e,
muitas vezes, controversas, contemplando medidas de ampla abrangência, como o
estímulo ao distanciamento social e a ampliação da capacidade de serviços de saúde,
como a instituição de hospitais de campanha e medidas de apoio econômico a
cidadãos, a famílias e a empresas, além da implementação urgente da renda básica
emergencial.

Não resta dúvida, porém, que seguimentos socialmente mais carentes e, portanto,
vulnerabilizados enfrentam os maiores riscos e têm sido, no que diz respeito aos
direitos humanos, os mais prejudicados. A pandemia, nesse sentido, só serviu para
acentuar o problema da desigualdade social e, o que é mais preocupante, a
desigualdade de acesso aos bens da vida: saúde, liberdade, segurança, educação,
moradia de qualidade, equidade de gênero, entre outros direitos fundamentais ao
bem-estar social.

Assim, a COVID-19, na esfera trabalhista, nos permitiu identificar os desafios da


sociedade civil no que diz respeito ao acesso à saúde e universalidade dos direitos. Por
essa razão, é extremamente necessário ampliarmos as políticas de acesso à justiça e
medidas de proteção dos indivíduos. Ainda, levando em consideração a atual crise
sanitária, econômica e social, há uma necessidade emergente de mudarmos as relações
políticas e sociais. Dessa forma, o enfrentamento exige a ampliação das discussões e
articulações intersetoriais da sociedade, de modo em que as organizações do mercado
do trabalho passem a ser mais humanitárias e valorizem o profissional.
Em tempos de pandemia, o dever dos Estados só aumenta, de modo em que
sejam capazes de elaborar normas ou medidas eficazes, para que possam evitar
ameaças contra a saúde e bem-estar público, respeitando os preceitos da dignidade
humana.
SUMÁRIO

De outra forma, há de se considerar o fato de a justiça ser uma atividade essencial,


impondo a organização de medidas para garantir seu funcionamento, vencidas, até o
momento, com a colaboração de todos os envolvidos.

REFERÊNCIAS
AGÊNCIA SENADO. Desigualdade e abusos na pandemia impulsionam cobranças por direitos
humanos. Disponível em: <h�ps://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/08/desigualdade-e-
abusos-na-pandemia-impulsionam-cobrancas-por-direitos-humanos. Acesso em 30 abr 2022.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Pandemia é principal causa de violações de direitos humanos no


Brasil. Disponível em: < h�p://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2120-pandemia-e-principal-
causa-de-violacoes-de-direitos-humanos-no-brasil-diz-relator-da-cidh. Acesso em: 30 abr 2022.

Constituição Federal. Disponível em: <h�p://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/


d0591.htm>. Acesso em: 30 abr 2022.

Organização Pan-Americana da Saúde. Direitos humanos, gênero e o enfrentamento da COVID-19.


Disponível em: <h�ps://opasCovid.campusvirtualsp.org/Covid-19/direitos-humanos-genero-e-o-
enfrentamento-da-Covid-19> Acesso em: 30 abr 2022.

PATRÃO NEVES, Maria do Céu. Os desafios da COVID-19 aos Direitos Humanos. Cadernos Ibero-
Americanos de Direito Sanitário. 2021. Disponível em: <h�ps://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/
index.php/cadernos/article/view/825> Acesso em: 30 abr 2022.

PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos humanos no sistema constitucional brasileiro. Disponível
em: <h�p://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista5/5rev4.htm> Acesso em: 30 abr 2022.

PIRES, Roberto Rocha Coelho. Os Efeitos Sobre Grupos Sociais e Territórios Vulnerabilizados das
Medidas de Enfrentamento à Crise Sanitária da Covid-19: Propostas para o Aperfeiçoamento da Ação
Pública. Disponível em: <h�ps://www.ipea.gov.br/portal/
index.php?option=com_content&view=article&id=35439>. Acesso em: 30 abr 2022.

REUTERS COVID TRACKER. Disponível em: <h�ps://graphics.reuters.com/world-coronavirus-tracker-


and-maps/pt/countries-and-territories/brazil/> Acesso em: 30 abr 2022.

SENHORAS, Elói Martins; ELIAS, Maurício. COVID-19, Política e Direito. Boa Vista: Editora da UFRR,
2020.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 5
A SAÚDE COMO BEM
PÚBLICO GLOBAL
a vacina na pandemia Covid-19
entre o público e o privado

Evandro Luis Sippert / Janaína Machado Sturza


SUMÁRIO

A SAÚDE COMO BEM PÚBLICO GLOBAL:


a vacina na pandemia Covid-19 entre o público e o privado⁵³

Evandro Luis Sippert⁵⁴


Janaína Machado Sturza⁵⁵

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A pandemia da Covid-19, que de forma avassaladora se proliferou por todo o
mundo, afetando diretamente a vida e a saúde das pessoas, mostra o quanto o ser
humano continua vulnerável quando se trata de saúde. Sendo assim, faz-se necessário
entender a dinâmica universalista das relações econômicas, sociais, políticas e
históricas, ocasionadas principalmente pelo fenômeno da globalização.
Em um cenário de globalização, neste contexto global de rápidas transformações,
mudança no padrão das doenças, diversidades dos atores que atuam nos múltiplos
cenários, a saúde deve ser vista e entendida como um bem público global, bem
comum e direito da humanidade.

53 Excerto do projeto de tese “O DIREITO À SAÚDE COMO BEM COMUM DA HUMANIDADE NA PERSPECTIVA
DA METATEORIA DO DIREITO FRATERNO: O ACESSO À VACINAÇÃO COMO MEDIDA DE
ENFRENTAMENTO GLOBAL DA PANDEMIA COVID-19” realizado pelo Doutorando Evandro Luis Sippert do
Programa de Pós-graduação do Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos – Unijuí.
54 Doutorando em Direito pelo PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Mestre em Direito pela UNIJUÍ, Bacharel em Direito pela
Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ, Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUC/RS, MBA em Gestão das Tecnologias de Informação e Comunicação em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS, Pós-Graduação em Docência do Ensino
Superior pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Advogado. Contato: evandro.sippert@gmail.com.
55 Professora Orientadora - Pós doutora em Direito pela Unisinos. Doutora em Direito pela Universidade de Roma Tre/
Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Demandas Sociais e
Políticas Públicas também pela UNISC. Professora na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – UNIJUI. e-mail: janasturza@hotmail.com. Email: janasturza@hotmail.com.
SUMÁRIO

Na pandemia, o acesso à saúde se dá prioritariamente por meio do acesso às


vacinas, as quais historicamente apresentam-se como um dos mecanismos mais
eficientes no controle e erradicação de doenças infecciosas transmissíveis, com grande
impacto na redução da morbidade e mortalidade mundial em decorrência destas
infecções. A pandemia possibilitou constatar que, apesar de todo o empenho da
comunidade científica internacional na produção de vacinas, as patentes das mesmas
estão adstritas a grandes conglomerados internacionais. A quebra ou a relativização
das patentes, mesmo de forma temporária, permitindo que outros países pudessem
dispor e fabricar vacinas poderia ter amenizado a tragédia humana, a qual,
atualmente, já passa de milhões de mortes.
A pandemia representa sérios riscos para a saúde das pessoas, principalmente as
mais vulneráveis, bem como demonstra a necessidade de acesso a um direito à saúde
universal e igualitário, perfectibilizado pela vacinação. Desta forma, o presente
trabalho enfrenta a temática levantada através do emprego do método de abordagem
hipotético-dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica e documental.

1. GLOBALIZAÇÃO E O ACESSO À SAÚDE COMO UM BEM PÚBLICO


O avanço da ciência e da tecnologia em todos os níveis da vida não obstou o
surgimento de uma nova pandemia, que de forma avassaladora se proliferou por todo
o mundo. Dessa maneira, faz-se necessário entender a dinâmica universalista das
relações econômicas, sociais, políticas e históricas. Em consequência desta conjuntura
globalizada, há uma necessária e inevitável ruptura de paradigmas e ressignificação
tanto de valores como da sociedade, com significativos reflexos no direito e na saúde
(SIPPERT; STURZA, 2021).
A pandemia, principalmente em um mundo globalizado, representa sérios riscos
para a saúde das pessoas, principalmente as mais vulneráveis. É necessária a
consciência de que somos todos humanos, tendo em vista que “sou humano porque o
Outro me reconhece como tal, o que, em termos institucionais, significa que sou
reconhecido como um detentor de direitos humanos” (DOUZINAS, 2009, p. 375-376).
Essencialmente em um momento tão complicado como o atual, salienta-se que “a
pandemia do Coronavírus está mudando e vai mudar ainda mais a vida de todos. Isso
nos obriga a repensar a política e a economia e a refletir sobre o nosso presente, o nosso
passado e o nosso futuro” (FERRAJOLI, 2020a, p. 7).
Para Bedin (2001), a globalização apresenta-se além de um processo no qual
ocorre a mundialização do capital, bem como dos fluxos econômicos, mas muda
também a relação com o espaço e com o tempo que se acelera, influenciando em todos
os espaços onde os homens vivem, se movem, interagem e trocam experiências. As
formas ambivalentes significam também que o global não atinge cada local ou pessoa
SUMÁRIO

da mesma forma. Assim, é um contrassenso referir que os lugares, a distância, bem


como as dimensões territoriais deixaram de ser importantes ou que anunciam o fim do
Estado-nação, nem que a globalização esteja encaminhando-se na direção de uma
comunidade mundial com prosperidade, democracia e paz perpétua (BEDIN, 2001;
GOMES, 2000).
Com o rápido crescimento da globalização da atividade econômica e suas
implicações para a política pública, imperioso destacar as características diferenciais
de bens públicos globais. Sabe-se que uma economia eficaz, bem como o bem-estar das
pessoas, requer bens públicos apropriados. Desta forma, a expansão das atividades
econômicas, para além das fronteiras, afeta diretamente a demanda dos bens públicos,
portanto, necessitando assim de bens públicos globais. Ressalta-se que os bens
públicos de caráter global necessitam atender a critérios específicos (KAUL,
GRUNBERG, STERN, 2012).
Kaul, Grunberg e Stern (2012) destacam também que os bens públicos devem ter
fortes qualidades de caráter público, ou seja, devem ser marcados pela não rivalidade
no consumo e a não exclusão – com estes traços, situam-se na categoria geral de bens
públicos. Ainda, para serem considerados bens públicos globais, seus benefícios
devem ser universais “(...) em termos de país (estendendo-se a mais de um grupo de
países, povos servindo a diversos, ou de preferência a todos grupos populacionais) e
gerações (tanto a geração atual como as futuras, ou ao menos suprindo as
necessidades das gerações atuais sem impedir as opções de desenvolvimento das
gerações futuras”) (KAUL, GRUNBERG, STERN, 2012, p. 42).
Ressalta-se de fundamental importância a questão central de quem deveriam ser
os beneficiários, o publicum, de um bem público, de modo que possa ser considerado
como global. As grandes diferenças e iniquidades, onde existem atores mais influentes
que outros, principalmente na determinação de políticas públicas e onde alguns bens
são mais facilmente acessíveis a uns do que a outros, influenciam diretamente no
fornecimento ou utilização dos bem públicos globais. Sendo assim, para se determinar
se um bem público pode ser determinado como global, deve-se verificar o seu alcance,
sendo que necessita atingir mais de um grupo de países, ou seja, ter benefícios
atingidos mundialmente, no sentido de que alcance todas as nações ou ao menos um
grande número de nações pertencentes a diferentes números de países.
Os benefícios dos bens públicos, mesmo que sejam difundidos mundialmente,
não podem ser usufruídos por somente alguns grupos socioeconômicos, ou seja, a um
segmento mais rico, marginalizando ainda mais os pobres. Há que se considerar que
não é somente o critério da renda que divide o mundo, mas a etnia, o sexo, a religião,
as afiliações políticas e outros fatores também separam as pessoas. Assim, um bem,
para ser considerado bem público global, necessita que os seus benefícios devam
SUMÁRIO

alcançar não somente um amplo espectro de países, mas sim um amplo espectro de
população global (KAUL, GRUNBERG, STERN, 2012).
Num mundo globalizado, um bem público global, do qual depende o bem-estar
das pessoas, dever ser marcado pela sua universalidade. Deve beneficiar mais de um
grupo de países, não discriminando entre qualquer segmento populacional ou
conjunto de gerações atuais ou futuras.
Porém, em se tratando de saúde, nem todas as doenças são prováveis de atingir
todos os países globalmente, sendo que alguns países podem apresentar pouca
preocupação quanto à expansão de algumas doenças. Também alguns países podem
ter condições e capacidades médicas para cuidar dos cidadãos que contraírem
determinadas doenças, dentro das suas fronteiras. Porém, sempre existem algumas
doenças que preocupam a todos os países; um conhecimento abrangente global em
saúde a todos beneficia (ZACHER, 2012).
A saúde se amolda a características de bem público, quer seja por meio dos
vínculos internacionais, na migração, e também pelo fluxo de informações que
aceleram a transmissão através das fronteiras de doenças e da transferência
internacional dos riscos à saúde comportamentais e ambientais. Também em
decorrência da globalização introduzir mudanças contextuais “que são
qualitativamente e quantitativamente diferentes em riscos de doença, vulnerabilidade
da saúde e resposta política” (CHEN, EVANS, CASH, 2012, p. 338).
Desta forma, em um cenário de globalização, neste contexto global de rápidas
transformações, mudança no padrão das doenças, diversidades dos atores que atuam
nos múltiplos cenários, a saúde deve ser vista e entendida como um bem público
global, bem comum e direito da humanidade, principalmente num momento de crise
sanitária, advinda da pandemia da Covid-19.

2. A PANDEMIA DA COVID-19 E O DIREITO À SAÚDE


A pandemia oriunda da propagação do novo Coronavírus está produzindo
consequências substanciais e grandes repercussões de ordem social e econômica em
praticamente todos os países do mundo, desvelando um cenário complexo, afetando
diretamente a vida de todas as pessoas, mostrando o quanto somos extremamente
vulneráveis. Assim sendo, o acesso à saúde representa uma importante prerrogativa à
vida do homem, pois dispor de saúde é primordial ao ser humano, quer na sua
individualidade ou mesmo em situações de vivências coletivas. Em outras palavras, o
ser humano necessita de uma garantia a este direito essencial à sua sobrevivência
(SIPPERT; STURZA, 2020).
SUMÁRIO

Frente a esta situação, mesmo com o avanço da ciência e da tecnologia em todos


os níveis da vida, o surgimento de uma nova pandemia, que de forma avassaladora se
proliferou por todo o mundo, mostra o quanto o ser humano ainda continua
vulnerável quando se trata de saúde. Dessa maneira, faz-se necessário entender a
dinâmica universalista das relações econômicas, sociais, políticas e históricas, as quais
tem como consequência uma ruptura de paradigmas e ressignificação tanto de valores
como da sociedade, com significativos reflexos no direito e na saúde.
Portanto, garantir o acesso à saúde e o direito à saúde, na pandemia da Covid-19,
em um mundo globalizado e multifacetado, representa uma importante prerrogativa
à vida, considerando-se que “ao infectar indistintamente, qualquer pessoa, o
Coronavírus expôs o valor inestimável da saúde pública e a necessidade de seu caráter
universalista e gratuito” (FERRAJOLI, 2020, p. 9).
Martini Vial (2010) destaca que o sistema do direito ficou, por muito tempo,
distante do sistema da saúde. No entanto, “não pode mais estar ligado aos confins do
próprio Estado, mas precisa ultrapassar limites geográficos e políticos para que
efetivamente tenhamos uma dimensão fraterna no convívio social” (MARTINI VIAL,
2010, p. 108). Segundo Ventura (2013), no século XXI, é evidente a internacionalização
do direito, existindo uma interação entre o direito internacional e o direito interno.
Na saúde e no direito à saúde também existe a regulação internacional,
interagindo com a regulação interna das ordens jurídicas nacionais, sendo que “(...) a
norma de direito internacional, por vezes, limita-se a dar forma a pulsões regulatórias
internas, que encontram melhores condições para emergir sob a forma de
compromisso multilateral ou regional” (VENTURA, 2013, p. 23), enfatizando-se ainda
que, no direito interno, “no âmbito do processo legislativo nacional ou, com menor
transparência, sob a forma de atos normativos do Poder Executivo, incontáveis
pretensões internacionais e transnacionais encontram vazão” (VENTURA, 2013, p. 23).
A saúde e o direito à saúde representam uma importante prerrogativa à vida do
homem que, na sua individualidade ou mesmo em situações de vivências coletivas,
necessita de uma garantia a este direito essencial à sua sobrevivência, pois “saúde é um
direito humano indispensável ao exercício de muitos outros direitos humanos, que
qualifica o direito à vida, elevando-o a direito à vida digna” (VENTURA, 2013, p. 27).
Ventura (2013) ainda explana que a expressão saúde internacional foi utilizada no final
do século XIX e no início do século XX, geralmente em relação ao controle de
epidemias que ultrapassavam as fronteiras dos países. Entretanto, atualmente, a
expressão saúde internacional deu lugar à expressão saúde global. Ainda, assevera que
devem ser considerados os interesses e as necessidades da saúde da população em
nível mundial, em relação aos interesses das nações em particular. Também sublinha
SUMÁRIO

“a crescente importância de novos atores para além do Estado e das organizações


internacionais, tais como algumas grandes fundações internacionais, a mídia e as
grandes corporações” (VENTURA, 2013, p. 25).
Ventura (2013) ainda realça os esforços para a construção de uma legislação
sanitária no plano internacional, em que a mundialização do direito à saúde está longe
de completar-se. Explana que a desigualdade entre as normas nacionais e a
diversidade entre as culturas sanitárias são óbices permanentes para a afirmação de
“direito global da saúde”, sendo que tal empecilho mostra-se evidente com a pandemia
da Covid-19.
Portanto, o entendimento do direito à saúde, numa perspectiva global, revela-se
fundamental num momento de crise sanitária tal qual como a advinda da pandemia,
corroborando, também, o entendimento da saúde como um bem comum da
humanidade, pois saúde “diz respeito à forma como nos relacionamos em sociedade;
por isso, a saúde é um bem comum, está relacionada ao território com alternativas nem
sempre vindas do sistema formal e oficial de saúde” (MARTINI VIAL, 2010, p. 138).
Assim, entendendo a saúde como bem comum e direito humano, numa visão
transnacional, e diante da crise sanitária e humanitária ocasionada pela pandemia da
Covid-19, destaca-se a importância fundamental do uso da vacinação, estratégia de
enfrentamento à pandemia, a qual também sofre interferência direta do público e do
privado.

3. AS VACINAS NO ENFRENTAMENTO À PANDEMIA: ENTRE O PÚBLICO E


O PRIVADO
Uma grande dimensão da globalização é a integração da economia mundial por
meio dos mercados privados. Os mercados globais geraram crescimento desigual, má
distribuição de renda e muitas instabilidades econômicas. Neste sentido, a
globalização também propiciou o ingresso dos mercados privados na saúde, sendo
que cada vez mais privatizam-se os serviços de saúde para conter os custos e promover
a eficiência.
O pagamento privado pela saúde impõe barreiras ao acesso dos pobres a uma
cobertura universal. Sendo muitas vezes o setor público quem financia a pesquisa mais
básica em saúde, o desenvolvimento aplicado de drogas e vacinas é conduzido de
forma preponderante pelo setor privado, os quais são protegidos por direitos de
propriedade intelectual, que por sua vez concentram seu desenvolvimento tecnológico
em produtos para servir os consumidores que possuem poder aquisitivo.
SUMÁRIO

Os fracos incentivos e a inviabilidade de lucro, sem poder de mercado,


desencorajam os investimentos nas doenças dos “pobres”, o que demonstra que as
questões de equidade são afetadas pelos desequilíbrios globais (CHEN, EVANS,
CASH, 2012). O atual modelo globalizado também traz implicações nas relações
sociais e no surgimento de novas demandas, fazendo-se necessário uma
ressignificação do Estado, das políticas públicas e do direito, com o objetivo de atender
as reivindicações da sociedade. A humanidade não pode estar ao arbítrio de um
mercado desprovido de qualquer princípio moral, baseado no lucro a qualquer custo,
sem preocupação com os direitos humanos e com a dignidade da pessoa humana,
principalmente dos segmentos das populações mais pauperizados (SIPPERT, 2017).
Em relação ao uso das vacinas, constatou-se que tem um impacto significativo na
qualidade de vida e na longevidade das pessoas na sociedade moderna, e que são um
instrumento de enfrentamento de inúmeras doenças infecciosas transmissíveis,
protegendo não apenas os indivíduos, mas também a coletividade, proporcionando a
promoção da saúde humana.
O uso das vacinas visa, maiormente, proteger “o indivíduo e a comunidade de
uma infecção ou também impedir o desenvolvimento de formas graves, de modo que
o quadro clínico seja mais brando, evitando também, entre outras consequências, o
colapso do sistema de saúde” (FERNANDES et al., 2021, p. 21). A vacinação, portanto,
historicamente apresenta-se como um dos mecanismos mais eficientes no controle e
erradicação de doenças infecciosas transmissíveis com grande impacto na redução da
morbidade e mortalidade mundial em decorrência destas infecções.
Em relação à Covid-19, a OMS reforça que algumas medidas são consideradas
essenciais para minorar a disseminação e transmissão do vírus, dentre as quais as
medidas de proteção individual, de afastamento social e, também, a vacinação são
primordiais. A vacinação por meio da imunização mostra-se como um dos
mecanismos mais efetivos para frear o desenvolvimento e a proliferação da Covid-19,
diminuindo o agravamento da doença, as internações hospitalares e reduzindo o
número de mortes.
Entretanto, a fim de controlar a pandemia da Covid-19, houve uma mobilização
internacional na tentativa de criar uma vacina. Na busca por uma vacina para
combater a Covid-19, a produção global utilizou algumas plataformas tecnológicas
consideradas clássicas, como as “vacinas inativadas, de vírus atenuados e antígenos
recombinantes utilizando vetores virais, bacterianos e leveduras. Outros utilizaram
novas abordagens tecnológicas, como ácidos nucleicos, DNA e RNA, vacinas
sintéticas, entre outras abordagens” (FERNANDES et al., 2021, p. 93).
SUMÁRIO

É inegável que a pandemia da Covid-19 está ressignificando toda a sociedade,


influenciando os mais diversos estamentos sociais, culturais e econômicos. Ante esta
nova realidade, é indispensável que sejam repensados conceitos e valores, que possam
efetivamente ir ao encontro das novas dinâmicas que surgirem no mundo pós
coronavírus, especialmente nas questões atinentes à saúde, uma vez que a “crise
humanitária deixa claro como a saúde (ou sua ausência) interfere nos direitos à
liberdade, à economia, à educação, ao emprego, à democracia e à paz” (SANTOS, R.,
2020, p. 11).
Nesse contexto, “é fundamental dispor de vacinas eficazes e seguras para toda a
população” (FERNANDES et al., 2021, p. 92). É evidente que todas as medidas
adotadas neste momento, todas as decisões jurídicas e políticas irão afetar diretamente
a vida e a saúde das pessoas. A pandemia possibilitou constatar que, apesar de todo o
empenho da comunidade científica internacional na produção de vacinas, as patentes
das mesmas estão adstritas a grandes conglomerados internacionais, sendo que a
quebra ou a relativização das patentes, mesmo de forma temporária, permitindo que
outros países pudessem dispor e fabricar vacinas, poderia ter amenizado a tragédia
humana, a qual, atualmente, já passa de milhões de mortes.
Nesse sentido, a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) foi o tema da 73ª
Assembleia Mundial da Saúde (AMS) onde foi adotada a Resolução WHA73.1,
“Resposta à COVID-19”, a qual foi endossada por 130 dos 194 membros da OM,
ocasião em que foi reafirmado pelos países a importância da solidariedade para
combater a Covid-19, bem como a necessidade de cooperação internacional e
colaboração em todos os níveis, a fim de conter e controlar a pandemia e mitigar suas
consequências.
A Assembleia destacou a necessidade de fortalecer os sistemas nacionais de
saúde, não só com fornecimento de equipamentos de proteção individual, mas
também reforçou a necessidade do intercâmbio de informações sobre melhores
práticas na resposta à Covid-19, destacando o reconhecimento do acesso à vacinação
extensiva como um bem público global. Nesse sentido, todos os Estados devem
garantir o acesso universal a tecnologias e produtos essenciais de saúde para
responder à pandemia, o qual deve ser considerado uma prioridade global, devendo
ser removidos quaisquer obstáculos à efetivação do acesso a esses bens, como as
barreiras do Acordo da Organização Mundial do Comércio sobre Propriedade
Intelectual (TRIPS) (FREITAS; TASCA, 2020).
Para Souza (2011), o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) – “Agreement on Trade-Related Aspects of
Intellectual Property Rights (TRIPS) –, o qual entrou em vigor em 1995 no âmbito da
SUMÁRIO

Organização Mundial do Comércio (OMC), obriga os países-membros da OMC a


adotarem padrões rigorosos de proteção patentária, ou seja, propriedade intelectual,
e, desta forma, torna mais caro e inacessível o acesso às inovações tecnológicas,
inclusive nos aspectos relacionados à saúde. Sendo assim, o acordo ameaça as políticas
de saúde pública, especialmente em países em desenvolvimento.
A resolução da Assembleia Mundial da Saúde (AMS), que sustenta uma
possibilidade da quebra de patentes de futuras vacinas ou remédios para a Covid-19,
satisfaz uma demanda dos países mais pobres, no sentido de que seja garantido o
acesso global igualitário ao seu tratamento. Porém, a licença compulsória, ou quebra de
patente, é um processo longo e extremamente sinuoso, o que por vezes inclui o
pagamento de royalties, os quais encarecem sobremaneira os produtos, bem como
também são influenciados pela capacidade de produção de quem rompe a patente.
Deveria ser definido claramente o mecanismo a ser utilizado para garantir o acesso
equitativo a todos os países do mundo (BUSS; GALVÃO, 2020).
Salienta-se que enquanto o vírus da Covid-19 circular em algum lugar do planeta,
a pandemia continuará sendo uma ameaça global, principalmente devido ao
surgimento de novas variantes mais transmissíveis. A distribuição global de vacinas é
extremamente desigual se comparados os países ricos com os países pobres. Há que se
destacar que a quebra de patentes também não soluciona imediatamente a questão
equitativa de distribuição de vacinas, pois a falta de estrutura, bem como insumos,
seria um óbice para a fabricação dos imunizantes, assim como nem mesmo os
laboratórios que fabricam as vacinas já testadas e aprovadas contra a Covid-19 não
possuem esta capacidade de produção (BIERNATH, 2021).
Os países-membros da OMC iniciaram formalmente negociações para aumentar
o suprimento global de vacinas contra a Covid-19, principalmente com o apoio dos
Estados Unidos da América, que historicamente sempre foi contrário. Assim, se
perfectibiliza um grande avanço, sendo com duas principais propostas: a primeira,
defendida por Índia, África do Sul e outras nações em desenvolvimento, pede a
suspensão pelos próximos três anos das patentes dos imunizantes que barram o
coronavírus; e a segunda, encampada por União Europeia, Suíça e Reino Unido,
entende ser possível aumentar a quantidade de doses disponíveis por meio de acordos
de licenciamento e transferência de tecnologia com outros produtores capacitados, que
possuem fábricas espalhadas pelo mundo (BIERNATH, 2021).
Já o médico sanitarista e pesquisador da Fiocruz, José Gomes Temporão, destaca,
em relação à quebra de patentes, que “o risco de represálias fica ainda menor se uma
decisão do tipo acontecer não por iniciativa de um único país, mas, sim, num
organismo internacional, como é a OMC” (TEMPORÃO, 2021, não paginado), pois
SUMÁRIO

devido à grande importância de uma tomada de decisão neste sentido, com uma
decisão política internacional, não ficaria espaço para uma possível retaliação contra a
decisão.
Há que salientar que ante à grave crise sanitária e humanitária, em se tratando de
saúde, bem comum global, é premente que se tome medidas para que a vacina possa
ser disponibilizada mundialmente. A vacinação como forma de promover a saúde
necessita ultrapassar todos os tipos de fronteiras e obstáculos, alcançando todas as
pessoas que, diretamente ou indiretamente, estão sendo ou serão afetadas pela
pandemia, o que somente ocorrerá, em um mundo globalizado, se forem tomadas
ações coletivas, em detrimento de tomadas de decisões individuais. As respostas
eficazes de combate ao coronavírus e às necessidades de saúde são um conjunto de
necessidades sociais e globais que perfectibilizam um bem viver em comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do apresentado, verifica-se que a pandemia da Covid-19 se alastrou por
todo o mundo, mostrando diuturnamente o quanto as pessoas continuam vulneráveis,
principalmente no tocante à saúde, pois, apesar dos avanços tecnológicos e científicos,
a falta de saúde afeta toda a ordem mundial, social e econômica, também mostrando
o quanto o ser humano ainda é extremamente frágil neste aspecto.
Denota-se também que o fenômeno da globalização alterou significativamente o
mundo. Desta forma, garantir o acesso à saúde como um bem público global, assim
como o direito à saúde de forma universal, na pandemia da Covid-19, em um mundo
globalizado e multifacetado, representa uma importante prerrogativa à vida.
Destaca-se que, para enfrentar a pandemia, a vacinação por meio da imunização
mostra-se como um dos mecanismos mais efetivos para frear o desenvolvimento e a
proliferação da Covid-19. Porém, apesar de todo o empenho da comunidade científica
internacional na produção de vacinas, as patentes das mesmas estão adstritas a
grandes conglomerados internacionais, sendo que a quebra ou a relativização das
patentes, mesmo de forma temporária, permitindo que outros países pudessem dispor
e fabricar vacinas, poderia amenizar a tragédia humana, a qual, atualmente, já passa de
milhões de mortes em todo o mundo.
A pandemia apresenta-se como uma crise global de caráter sanitário e
humanitário e que exige, em certa medida, que se produzam respostas eficazes de
combate ao coronavírus e às necessidades de saúde, as quais são um conjunto de
necessidades sociais globais, como a vacinação universal. Uma tomada de decisão em
relação à quebra de patente das vacinas poderia significar um avanço significativo no
SUMÁRIO

combate à crise sanitária advinda da pandemia, como um mesmo projeto coletivo


global entre os agentes envolvidos no processo de produção da saúde.

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SUMÁRIO

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Tradução de Zaida Maldonado. Rio de Janeiro: Record, 2012.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 6
ACESSO À JUSTIÇA EM
TEMPOS DE PANDEMIA
DE COVID19
uma solução consensual para os
conflitos sanitários

Fabiana Marion Spengler / Thaís de Camargo Oliva Rufino Andrade


SUMÁRIO

ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID19:


uma solução consensual para os conflitos sanitários⁵⁶

Fabiana Marion Spengler⁵⁷


Thaís de Camargo Oliva Rufino Andrade⁵⁸

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando se fala em Acesso à Justiça, alguns pontos são de vital importância. O
primeiro sem dúvida foi apresentado pelo jurista Kazuo Watanabe (1988), que destaca
que a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites
do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso

56 Pesquisa resultante do projeto “Ontem, hoje e amanhã: cartografia das políticas públicas brasileiras auto e
heterocompositivas de acesso à justiça” financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande
do Sul – Fapergs, Edital 07/2021 – PqG – Pesquisador Gaúcho, processo nº 21/2551-0002322-8 e pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq, Edital Processo: 407119/2021-3, Chamada CNPq/
MCTI/FNDCT Nº 18/2021 - Faixa B - Grupos Consolidados.
57 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Pq2). Pós-doutora em Direito pela Università degli Studi di Roma
Tre, em Roma, na Itália, com bolsa CNPq (PDE). Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação stricto sensu
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – RS, com bolsa Capes, mestre em Desenvolvimento
Regional, com concentração na área Político Institucional da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – RS,
docente dos cursos de Graduação e Pós Graduação lato e stricto sensu da UNISC, Líder do Grupo de Pesquisa
“Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos” vinculado ao CNPq; coordenadora do projeto de pesquisa “Ontem,
hoje e amanhã: cartografia das políticas públicas brasileiras auto e heterocompositivas de acesso à justiça” financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – Fapergs, Edital 07/2021 – PqG –
Pesquisador Gaúcho, processo nº 21/2551-0002322-8 e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico CNPq, Edital Processo: 407119/2021-3, Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021 – Faixa B –Grupos
Consolidados, coordenadora e mediadora do projeto de extensão: “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a
mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar conflitos” financiado pela Universidade de
Santa Cruz do Sul –UNISC; autora de diversos livros e artigos científicos. E-mail: fabiana@unisc.br.
58 Doutoranda em Direito sob a linha de pesquisa Dimensões Instrumentais das Políticas Públicas na Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC, Mestre em Direito da Saúde: Dimensões Individuais e Coletivas, pela Universidade
Santa Cecília – UNISANTA (2019), Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie (2007). Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos liderado pela
professora Pós-Dra. Fabiana Marion Spengler. E-mail: thais.oliva@terra.com.br.
SUMÁRIO

à Justiça, enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica


justa.
Garantido por nossa Carta Magna de 1988 com o status de direito fundamental, o
desafio de assegurar acesso efetivo a decisões eficazes, se apresenta de forma muito
mais clara em cenários de crise, em especial no período de pandemia, conforme será
estudado no presente capítulo.
Até 2018, os relatórios da Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ, 2017) já apontavam um crescimento acentuado no número de demandas de
primeira instância relativas ao direito à saúde entre os anos de 2008 e 2017.
Neste cenário, que será melhor detalhado adiante, surge um novo elemento, com
impactos e consequências incertos: a Pandemia da COVID-19, oficialmente decretada
no Brasil, a partir da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Nesta realidade, surgiram novas demandas, em especial na área de saúde,
podendo agravar ainda mais o cenário até então encontrado. O que se busca saber com
o presente estudo é qual o impacto identificado nas demandas de saúde, com a
Pandemia da COVID-19, e quais Políticas Públicas foram adotadas na tentativa de
mitigar esses possíveis impactos.
Identifica-se, para sustentação da presente análise, alguns estudos realizados
pelo Conselho Nacional de Justiça, em especial Justiça em números 2017: ano-base
2016 (CNJ, 2017), Justiça em Números 2018: ano-base 2017 (CNJ, 2018), Relatório
Analítico Propositivo. Judicialização da Saúde no Brasil. 2019 (CNJ, 2019) e pelo
relatório do Instituto INSPER (INSPER, 2019, meio digital), “Judicialização da Saúde
no Brasil: Perfil das Demandas, Causas e Propostas de Solução”, que retratam a
situação da Judicialização da Saúde, antes da Pandemia.
Para os anos de 2021 e 2022, estes relatórios não foram encontrados no mesmo
formato. O que foi possível identificar foi outro trabalho realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça, chamado Judicialização e Sociedade (CNJ, 2021): ações para
acesso à saúde pública de qualidade, que objetivou apresentar informações sobre os
desafios de atendimento às demandas por saúde pela população que acaba por
recorrer ao Poder Judiciário de modo a subsidiar de dados quantitativos e qualitativos
o Plano Nacional para o Poder Judiciário.
Assim, a proposta de estudo objetiva identificar quais mecanismos de tratamento
do conflito estão à disposição nas demandas sanitárias, implementados pós início da
Pandemia, para garantir o não perecimento do Direito e assegurando às partes o
amplo acesso à justiça, à segurança jurídica em tempo razoável.
SUMÁRIO

Trata-se de uma abordagem experimental ao tema, que objetiva trazer mais


elementos para o estudo das Políticas Públicas no Brasil, em especial nas demandas
que exigem conhecimento especializado.
Para cumprir o objetivo proposto, utilizou-se como método de abordagem o
dedutivo; como método de procedimento foi utilizado o monográfico e como técnica
de pesquisa aplicou-se a bibliográfica, a partir de documentação indireta que serviu de
base teórica para o desenvolvimento dos objetivos e das principais conclusões.
Por conseguinte, para sistematizar o presente estudo, o trabalho está subdividido
em três itens. Primeiramente, estuda-se o direito de acesso à Justiça como direito
fundamental, representando a garantia conferida pelo Estado à tutela jurisdicional
adequada a cada caso concreto.
O segundo item trabalha o tratamento do conflito sanitário (como um direito
social) através dos meios autocompositivos, em especial durante a pandemia mundial
COVID-19.
Por fim, será analisado como o Estado, na iminência de uma crise sanitária, volta
o olhar para o tratamento (adequado e eficaz) do sanitário.

1. O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA


No paradigma Estado Democrático de Direito, o direito de acesso à Justiça passou
a fazer parte do rol de direitos e garantias fundamentais, representando a garantia de
uma proteção conferida pelo Estado de maneira eficaz (FERREIRA, 2007).
A expressão “acesso à Justiça ” pode ser definida de três formas: I) em sentido
restrito, diz respeito ao “acesso à tutela jurisdicional” de direitos – acesso a um juiz
natural para a composição de litígios; II) em sentido mais amplo, embora insuficiente,
refere-se ao “acesso à tutela”, jurisdicional ou não, de direitos – acesso a mecanismos
judiciais ou extrajudiciais de solução de conflitos e; III) em acepção integral, significa
“acesso ao Direito” – acesso à ordem jurídica justa, conhecida e implementável
(BENJAMIN, 1995, p. 77).
Para garantir o efetivo acesso à Justiça enquanto um direito constitucionalmente
assegurado, o Estado deve garantir uma tutela jurisdicional adequada a cada caso
concreto, assegurando às partes uma igualdade real, assegurando às partes
“resultados efetivos, solucionando os conflitos, restabelecendo a paz social e
entregando concretamente a quem tem razão o bem da vida pretendido” (PAROSKI,
2006, p. 207).
Conforme leciona Canotilho, “da interligação do direito de acesso à Justiça com os
direitos fundamentais, originam-se as dimensões essenciais da garantia institucional
SUMÁRIO

do acesso à Justiça, conectada com o dever do Estado de garantir a aplicação judicial


do direito” (CANOTILHO, 2003, p. 497).
O acesso à Justiça é garantido por nossa Carta Magna de 1988 com o status de
direito fundamental previsto no artigo 5.º, inciso XXXV, nos seguintes termos: “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL,
1988, meio digital).
Na sequência, o acesso à Justiça pode ser notado no texto constitucional, ainda de
forma implícita, nos seguintes incisos do Art. 5º: LIV (princípio do devido processo
legal), LV (princípio do contraditório e da ampla defesa), LXXIV (princípio da
assistência judiciária integral e gratuita) e LXXVIII (princípio da razoável duração do
processo) (BRASIL, 1988, meio digital).
Alcança, nesta seara, tanto os direitos individuais, como os coletivos em sentido
amplo. Trata-se de “direito social fundamental” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 13)
de suma importância na atual sociedade, uma vez que, na ausência de instrumentos
adequados para a proteção dos direitos proclamados, não há de se falar em acesso
efetivo à Justiça (SPENGLER; MELLO; MESQUITA, 2019).
Não se fala em acesso à Justiça pelo simples acesso ao Poder Judiciário, mas pelo
acesso à decisão procurada, numa duração razoável do processo e cuja tutela
definitivamente encerre o litígio proposto, características de primaz importância
quando o objeto do litígio é a saúde.
Neste sentido, os esforços para a efetivação do acesso à Justiça integram a própria
evolução do Direito, surgindo com vigor na história de lutas do Estado moderno, uma
vez que o Direito é uma ciência dinâmica, que acompanha as permanentes
transformações sociais pelas quais passa a nossa sociedade e deve promover a
pacificação social e garantir os direitos e prerrogativas de todos os cidadãos.
Desse modo, o Estado, investido no seu Poder Jurisdicional, coloca-se à mercê do
jurisdicionado recebendo sua pretensão e, se for o caso, reconhecendo o direito e lhe
outorgando o bem da vida pretendido. A isso se dá o nome de “tutela jurisdicional”,
sendo o processo o efetivo exercício da jurisdição aplicada pelo Estado.
Tal manifestação do Estado-Juiz e sua atuação podem ser entendidas como a
jurisdição sendo “uma das funções da soberania do Estado, consistente no poder de
atuar o direito objetivo, compondo os conflitos de interesses, resguardando a ordem
social” (SPENGLER, 2010, p.103).
A ideia aqui é o sonho de “Justiça” para o problema desses cidadãos, que são
conhecedores da “cultura da sentença” que traz como consequência “o aumento cada
vez maior da quantidade de recursos, o que explica o congestionamento não somente
das instâncias ordinárias, como também dos Tribunais superiores, e até mesmo da
Suprema Corte” (WATANABE, 2011, p. 4).
SUMÁRIO

Vê-se, ao se falar em jurisdição (aqui entendido como tutela jurisdicional), que o


jurisdicionado, num primeiro raciocínio, visa garantir o seu direito no processo estatal,
numa verdadeira relação de ação e defesa. Todavia, o ponto de partida para a atuação
da jurisdição e a realização de escopos comuns é o conflito juridicamente
transcendente, onde o processo não é a única técnica para dirimir os conflitos.
Para garantir o efetivo acesso à Justiça, enquanto um direito constitucionalmente
assegurado, o Estado deve garantir uma tutela jurisdicional adequada a cada caso
concreto.
Nos conflitos de direitos sociais, entretanto, em que os problemas são
distributivos (BORGES, UGÁ, 2009) e não envolvem somente duas partes (em que
uma delas é sagrada vencedora), mas implicam ganho ou perda para a sociedade
como um todo (BORGES, UGÁ, 2009), o tratamento do conflito deve ser
autocompositivo.
O direito à saúde está incluído no rol dos direitos sociais. E dessa classificação
decorrem duas características (RAMOS, 2005): por um lado, os direitos sociais
possuem um caráter objetivo, pois integram o “ordenamento jurídico objetivo da
coletividade” (RAMOS, 2005, p. 148), exigindo do Estado a organização da rede de
prestação dos serviços de saúde (AITH, 2010), e, por outro lado, dispõem de um
caráter subjetivo, que garante um direito individual e o respectivo dever do Estado de
assegurá-lo. Dizer que o direito à saúde é um direito social significa, pois, que o
indivíduo pode exigir do Estado prestações positivas de ações e serviços de saúde
individuais e coletivas.
Nesse diapasão, o Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional, não
está restrito a resolver conflitos como se essa competência fosse apenas sua. Assim, o
acesso à Justiça não pode ser confundido como acesso à jurisdição na medida em que
há outros meios adequados para a solução de conflitos (no sentido de não
jurisdicionais e não estatais).

2. A COMPOSIÇÃO DE CONFLITOS PELO SISTEMA MULTIPORTAS


A partir da Constituição Federal de 1988, houve uma ampliação da noção de
acesso à Justiça, cabendo ao Poder Judiciário dar atendimento a um número maior de
reclamações. Assim, este tem o dever de multiplicar as portas de acesso à proteção dos
direitos reivindicados (NALINI, 2000, p.32).
Para Fernando Aith (2020), houve uma rápida evolução do Direito Sanitário no
Brasil, o que veio acompanhada por uma crescente judicialização do direito à saúde,
refletindo o pensamento de que o Direito à Saúde só pode ser efetivado por meio da
intervenção do Poder Judiciário (WATANABE, 2005, p. 684-690), chegando ao ano de
SUMÁRIO

2020 com números expressivos de processos judiciais em andamento para solicitar


medicamentos, cirurgias, tratamentos de alto custo, alimentos parentais etc.
No caminho de efetivar a utilização de métodos alternativos para a solução de
conflitos, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº. 125 de 2010, que
instituiu a Política Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos de Interesses no
âmbito do Poder Judiciário (GABBAY, 2013).
Além das opções de conciliação já existentes no CPC de 1973, outras leis
trouxeram mecanismos diferenciados de composição de conflitos, como, por
exemplo, a Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis Estaduais, e por
fim o CPC/2015 e a Lei de Mediação (Lei no 13.140/2015).
Com destaque delineado no CPC/2015, “que após enunciar no capítulo a garantia
de acesso à Justiça, dispôs no art. 3º, § 2º que o Estado Promoverá, sempre que
possível, a solução consensual dos conflitos” (TARTUCE, 2018).
Não sendo mais um meio alternativo, já que alheio à Justiça tradicional, mas sim
adequado, já que inserido como método capaz de pacificação social, garantidor do
acesso à Justiça e da duração razoável do processo, a autocomposição ganha espaço
mediante a criação de Centros Judiciários de Soluções de Conflitos e Cidadania
(CEJUSC), que, apartados da figura de um fórum, concentram sessões de mediação ou
conciliação que visam resolver conflitos já judicializados ou não, com previsão no
artigo 165, “caput”, do Código de Processo Civil (SPENGLER, 2016, p.24).
Neste contexto, entende-se por Sistema Multiportas o complexo de opções que
cada indivíduo tem à sua disposição para solucionar um conflito a partir de diferentes
métodos. Este sistema envolve métodos heterocompositivos (adjudicatórios) e
autocompositivos (consensuais), com ou sem a articulação ou participação estatal.
Esta perspectiva baseia-se no chamado sistema multiportas, cujo intuito é
fornecer diversas opções (diversas “portas”) de solução de conflitos, como alternativa
ao sistema tradicional de acesso ao Poder Judiciário.
Segundo o relatório “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil de demandas,
causas e propostas de solução” (CNJ,2021), houve um crescimento acentuado de
aproximadamente 130% no número de demandas de primeira instância relativas ao
direito à saúde entre os anos de 2008 e 2017. Ainda conforme o Relatório da “Justiça
em Números” (CNJ, 2018), é muito superior aos 50% de crescimento do número total
de processos de primeira instância.
Pelo vertiginoso aumento das demandas judiciais, resta aparente que o Estado
tem falhado nas políticas públicas de Saúde, sendo dever dos diversos agentes
envolvidos a busca por meios que garantam efetivo acesso aos mais variados recursos
disponíveis, à toda coletividade, o que não ocorre através de demandas
SUMÁRIO

individualizadas, no Poder Judiciário (SPENGLER NETO; BECKER; QUADROS,


2019).
Diante de todo cenário que se apresenta decorrente da grande judicialização de
demandas, e já apontado no presente estudo, com relação à Judicialização na área da
Saúde, verifica-se que quanto maior for o número de opções disponibilizadas para a
solução de controvérsias, maior a chance do jurisdicionado alcançar uma resposta
justa, útil e eficiente ao litígio vivenciado.

3. POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS DE


PANDEMIA
Com a declaração da Organização Mundial da Saúde sobre a situação de
pandemia em relação ao Covid-19 (em 11 de março de 2020), bem como a iminência
de uma crise sanitária em decorrência da multiplicação de demandas judiciais em que
se litiga sobre o direito à saúde no contexto pandêmico, o olhar se volta para o
tratamento (adequado e eficaz) do conflito sanitário.
Durante o estado de calamidade pública instalado no Brasil, foram editadas
pelo Conselho Nacional de Justiça recomendações e resoluções para tentar contornar
e regulamentar situações até então não enfrentadas, especialmente na seara do direito
da saúde.
Neste contexto, a Resolução n. 125/2010 (BRASIL, 2010) foi alterada pela
Resolução n. 326/2020 (BRASIL, 2020), que entre suas modificações incluiu o art. 6º, X,
in verbis:

“X – criar Sistema de Mediação e Conciliação Digital ou a


distância para atuação pré-processual de conflitos e, havendo
adesão formal de cada Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional
Federal, para atuação em demandas em curso, nos termos do art.
334, § 7º, do Código de Processo Civil de 2015 e do art. 46 da Lei
nº 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei de Mediação)”.

Frisa-se que a edição dessa Resolução foi necessária para atualizar a


regulamentação desse procedimento e adequar a continuidade dos serviços de
mediação e conciliação diante da nova realidade enfrentada pelo Poder Judiciário, em
razão da disseminação do COVID-19 em 2020 (MIKLOS, 2021, p.20).
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mediante Recomendação 92, de
29/03/2021, sugere aos magistrados que atuem na pandemia da Covid-19 de forma a
fortalecer o sistema brasileiro de saúde e a preservar a vida com observância da
SUMÁRIO

isonomia e dos preceitos veiculados pela Lei de Introdução às Normas do Direito


Brasileiro.
Do mesmo modo, através da Recomendação n. 100, de 16 de junho de 2021, aos
magistrados com atuação nas demandas envolvendo o direito à saúde que priorizem,
sempre que possível, a solução consensual da controvérsia, por meio do uso da
negociação, da conciliação ou da mediação.
De acordo com a Recomendação, ao receber uma demanda envolvendo direito à
saúde, poderá o magistrado designar um mediador capacitado em questões de saúde
para realizar diálogo entre o solicitante e os prepostos ou gestores dos serviços de
saúde, na busca de uma solução adequada e eficiente para o conflito.
Igualmente há a recomendação aos tribunais para a implementação de Centros
Judiciários de Solução de Conflitos de Saúde (Cejusc), para o tratamento adequado de
questões de atenção à saúde, inclusive aquelas decorrentes da crise da pandemia da
Covid-19, na fase pré-processual ou em demandas já ajuizadas.
Todas as iniciativas desenvolvidas pelo CNJ estão em acordo com os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU (ONU, 2022). Dentre
eles, há o Objetivo 3: “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para
todos, em todas as idades” e o Objetivo 16: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas
para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e
construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis” (ONU,
2022).
Alguns desenhos de meios de resolução alternativa de disputas voltados para a
solução de conflitos relacionados ao direito à saúde (em meio à crise sanitária) foram
implantados no Brasil. Exemplo: o primeiro, do Estado do Paraná: dados referentes a
partir do ano de 2018 a 2022, momento antes e após a criação do “PROGRAMA
EFICIÊNCIA NA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SUPLEMENTAR”, ocorrida em
setembro de 2019 (TJPR, 2019); e o segundo do Estado do Rio Grande do Sul: dados
referentes a partir do ano de 2018 a 2022, momento antes e após a criação do “Centro
Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) Saúde Pública e Suplementar”,
ocorrida em dezembro de 2020 (TJRS, 2022). Em ambos, serão analisadas o tempo médio
de duração do processo referente aos provimentos jurisdicionais nos conflitos de
saúde, envolvendo plano de saúde, encaminhadas ao CEJUSC-Saúde para serem
submetidos à audiência de conciliação e mediação (art.334 do CPC).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os conflitos na área da saúde têm crescido com o passar dos anos e ganharam
novos contornos com o advento da Pandemia da COVID-19. Porém, foi possível
SUMÁRIO

identificar com o presente estudo que problemas estruturais decorrentes da


insuficiência de recursos para o atendimento de todas as demandas e deficiências
técnicas, para a efetivação do Direito Constitucional à Saúde, eclodiram a necessidade
de intervenção do Poder Judiciário, também chamada de judicialização.
No curso do presente trabalho, buscou-se apresentar alguns meios propostos de
solução desses conflitos, especialmente para atendimentos de novas demandas
decorrentes do estado pandêmico mundial.
Foi possível identificar que com o passar dos anos houve um aumento
exponencial no número de processos judiciais, o que evidencia que o Estado tem
falhado nas políticas de Saúde Pública, sendo dever dos diversos agentes envolvidos
a busca por meios que garantam efetivo acesso aos mais variados recursos disponíveis
à toda coletividade, o que não ocorre mediante demandas individualizadas no Poder
Judiciário.
Neste cenário, as experiências coletadas têm demonstrado ser possível a
substituição gradual do tradicional modelo de judicialização, devendo ser utilizadas
como referência para que outras ações similares sejam iniciadas.
O próprio Judiciário pode, a partir da concepção abordada, adotar medidas que
busquem soluções alternativas à judicialização da saúde, como por exemplo o
fomento da conciliação prévia na área sanitária.
Diante do cenário exposto, apresenta-se relevante o estudo e aprimoramento de
novos modelos de solução de conflitos, em especial na área da saúde, alternativos ao
clássico modelo de judicialização a fim de garantir o não perecimento do Direito,
assegurando às partes o amplo acesso à justiça e à segurança jurídica em tempo
razoável.

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3%BAde%2FComit%C3%AA+Executivo+de+Sa%C3%BAde&p_r_p_185834411_title=14.+Progr
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SUMÁRIO

CAPÍTULO 7
INSEGURANÇA
ALIMENTAR E ACESSO
À JUSTIÇA NO BRASIL
DA COVID 19
Maurício Soares de Sousa Nogueira / Gabriela Maia Rebouças
SUMÁRIO

INSEGURANÇA ALIMENTAR E ACESSO À JUSTIÇA


NO BRASIL DA COVID 19

Maurício Soares de Sousa Nogueira⁵⁹


Gabriela Maia Rebouças⁶⁰

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Brasil pandêmico viu suas desigualdades econômica e social serem
agudizadas. A desigualdade, por sua vez, traz consigo consequências terríveis, sendo
talvez a pior delas a questão da fome e da insegurança alimentar.
A economia brasileira, que já não vinha bem (CARRANÇA, 2021), vive um dos
piores momentos da história, fruto não apenas da Covid 19, mas principalmente das
políticas e decisões de governo equivocadas. Negacionismo (ESTUDO, 2021;
FONSECA; NATTRASS; LAZARO; BASTOS, 2021), rejeição de ofertas de vacina
(GUEDES, 2021; CARVALHO; CANCIAN, 2021; GASPAR, 2021), ausência de uma
política nacional e integrada de combate ao vírus (BRUM, 2021; ESTUDO, 2020),
ausência de uma política séria de isolamento social, aposta estatal em tratamentos não
aprovados pela ciência (SHALDERS, 2021; MINISTÉRIO, 2022). Esses são alguns dos
exemplos da condução errática feita pelo governo brasileiro neste período de crise
sanitária sem precedentes recentes, considerada desastrosa por parte da comunidade

59 Possui graduação em Direito pela Universidade Tiradentes (2011), MBA em Direito Tributário pela Fundação
Getúlio Vargas e Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Já foi professor de Direito
Tributário da Universidade Federal de Sergipe e atualmente é docente da Estácio/SE. Hoje cursando o Mestrado
em Ciências da Religião na UFS e o Doutorado em Direito na Unit. E-mail: mausoares10@hotmail.com.
60 Doutora em Direito pela UFPE, com estágio pós-doutoral com bolsa CAPES (2015/2016) junto ao Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Docente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos
da Universidade Tiradentes-UNIT/SE; Docente do Programa de Pós-Graduação em Sociedade Tecnologias e
Políticas Públicas (SOTEPP) do Centro Universitário Tiradentes-UNIT/AL. Líder do grupo Acesso à justiça,
direitos humanos e resolução de conflitos, cadastrado no CNPq. Email: gabriela_maia@unit.br
SUMÁRIO

científica, o que acabou resultando num desempenho econômico ainda mais


devastador, mesmo levando em conta as dificuldades que a pandemia traria por si
só⁶¹.
O judiciário, por sua vez, acabou tendo um papel relativamente importante com
relação à condução da pandemia, principalmente se levarmos em conta a postura do
STF, exemplificada pela decisão que deu autonomia aos governadores e prefeitos para
tomarem medidas de isolamento social boicotadas pelo governo federal (STF, 2020).
Neste contexto de crise sanitária e econômica, o problema da fome do Brasil
tomou proporções dramáticas, destacando-se a solidariedade das comunidades, bem
como as ações assumidas por organizações não governamentais da sociedade civil em
parceria com o setor privado⁶². Diante desse cenário, para além de atitudes solidárias
e questões políticas, surge o questionamento relativo à dificuldade ainda maior de
concreção do direito à alimentação digna no contexto pandêmico e o papel que o
judiciário pode ter na busca desta concretização.
Quanto ao direito fundamental à alimentação no contexto do ordenamento
jurídico brasileiro, vale mencionar que a Emenda Constitucional número 64, de 4 de
fevereiro de 2010, elevou à categoria de direito fundamental social o direito à
alimentação e, consequência lógica, colocou o Brasil na trilha das boas práticas
internacionais a respeito dos direitos humanos, no sentido de inclusão desse direito no
rol das cláusulas pétreas (RIBEIRO, 2021).
Ocorre que, mesmo depois da elevação do direito à alimentação à categoria de
direito fundamental, não percebemos um avanço contínuo referente à sua
concretização, ao contrário, como vimos anteriormente, na pandemia esse grave
problema se agudizou e o espectro da fome volta a assombrar milhões de brasileiros.
Temos, assim, mais uma disparidade visível entre texto constitucional e realidade
factual.
Da análise dessa disparidade entre realidade factual e texto constitucional,
surgem questionamentos ligados à influência e maior acesso de determinadas classes
ao sistema de justiça brasileiro. A situação instaurada quando da análise do sistema de
justiça nos traz fundamentalmente uma necessidade de se debruçar de maneira crítica
sobre o tema do acesso à justiça⁶³.

61 Conferir, por exemplo, matéria da jornalista Malu Gaspar (2021), na Revista Piauí.
62 A título de exemplo, conferir INSTITUTO, 2021.
63 “O discurso é hoje elitista, cientificista, universalista, moralizador, técnico e teórico. Não há dúvida de que estamos
em excelente ambiente para o jurista, que, a cada decisão, reafirma, na figura do juiz, do advogado ou do
doutrinador, a sua importância central no regime republicano. Este trabalho, entretanto, coloca dúvida em relação à
utilidade desse discurso, hoje, para a democracia e para a implementação tolerante e honesta dos direitos humanos”
(KAUFMANN, 2011, p. 383).
SUMÁRIO

Neste rumo, antes de introduzir o tema do acesso à justiça propriamente dito, é


importante analisar a disparidade entre o texto constitucional e a realidade a partir do
conceito de constitucionalização simbólica, tendo este como dispositivo teórico para
explicar a sobreposição do sistema político ou econômico sobre o direito. Com relação
a esta sobreposição da economia sobre o direito e o tema do acesso à justiça, este ponto
de vista nos possibilita averiguar, por exemplo, se o tema da insegurança alimentar
tem entraves de justiciabilidade justamente por ser uma demanda que advém das
classes subalternizadas.
Neste sentido, importante analisar que o Estado brasileiro e o sistema judicial têm
seguido comumente a cartilha do receituário neoliberal, baseado na ideia de Estado
mínimo, ou seja, o Estado deve ser apenas um regulador da economia, fortalecendo o
mercado financeiro em detrimento de uma política econômica desenvolvimentista e
de bem estar-social. Por esse caminho, políticas públicas de justiça social são vistas
como gastos apenas, não mecanismos de efetivação de direitos. Um exemplo concreto
diz respeito ao FGTS⁶⁴ e os saques extraordinários ao trabalhador, que arca com seus
próprios recursos (cuja finalidade é garantir seguridade em caso de desemprego), sua
reserva, para amortizar dívidas bancárias e despesas correntes.
A análise da justiciabilidade do direito à alimentação a partir da ótica do acesso à
justiça, portanto, pode desvelar, justamente, essa sobreposição do poder político e
econômico sobre o direito na prática. É a questão da influência do poder econômico de
determinadas classes e da ideologia neoliberal sobre o sistema de justiça que acabaria
impedindo o acesso das classes subalternizadas a suas demandas, tais como o direito
à alimentação digna.
Com suporte metodológico na pesquisa documental e bibliográfica, este artigo
apresenta uma análise que parte da hipótese de não concretização do direito à
alimentação, fruto de constitucionalização simbólica característica do Estado
brasileiro, fazendo-se necessário, portanto, evidenciar as relações entre política
econômica, desigualdades e acesso à justiça.

1. INSEGURANÇA ALIMENTAR NO CONTEXTO DO BRASIL PANDÊMICO.


Em 11 de março de 2020, após a detecção de inúmeros casos de uma síndrome
viral em Wuhan (China), a Organização Mundial de Saúde (OMS), organismo das
Nações Unidas (ONU), reconheceu que o surto do novo coronavírus alastrava-se
mundialmente, na forma de uma pandemia⁶⁵. No Brasil, o primeiro caso foi detectado

64 É o caso mais recente da Medida Provisória nº 1.105, de 17 de março de 2022, que dispõe sobre a possibilidade de
movimentação da conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
65 Constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) – o mais alto nível de alerta da
Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
SUMÁRIO

ainda em fevereiro de 2020, um paciente que havia voltado de viagem à Itália. Dois
anos depois, dados oficiais do governo brasileiro já haviam registrado mais de 28
milhões de casos no país.
A pandemia rapidamente impôs no mundo inteiro, e também no Brasil, um
contexto de restrições e paralizações das atividades ordinárias da população. Comércio
fechado, restrições severas à circulação de pessoas, encorajamento ao isolamento social
e ao trabalho remoto foram algumas das medidas que impactaram sensivelmente as
condições de sobrevivência da população e criaram desafios ainda maiores para
aqueles que já estavam em condição de vulnerabilidade, social ou econômica.
No tropeço de sua forma de gestão, o governo brasileiro passou a implementar
medidas emergenciais de proteção ao trabalho, com suspensão de contratos e
benefícios emergenciais, e implementou mecanismo de auxílio emergencial para as
famílias em situação de informalidade, desemprego ou pobreza. Essas medidas foram
fundamentais, mas, ainda assim, além de não atingirem todas as pessoas que
precisavam (compreensível em função de questões burocráticas), não foram suficientes
para impedir o agravamento das condições alimentares da população brasileira.
Em 2021, uma pesquisa nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19 no Brasil, empreendida pela Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mostrou que,
naquele ano, menos da metade dos domicílios brasileiros (44,8%) tinha seus(suas)
moradores(as) em Segurança Alimentar. “Dos demais, 55,2% que se encontravam em
Insegurança Alimentar, 9% conviviam com a fome, ou seja, estavam em situação grave,
sendo pior essa condição nos domicílios de área rural (12%)” (VIGISAN, 2021).

Do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões


conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes,
43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19
milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome. Observou-se que a
IA grave no domicílio dobra nas áreas rurais do país,
especialmente quando não há disponibilidade adequada de água
para produção de alimentos e aos animais. É o pior índice desde
então. Em 2004, o país tinha 64,8% da população em segurança
alimentar, hoje tem 44,8%. Até 2013, pesquisas mostravam
regressão da fome no país. A Pesquisa de Orçamentos Familiares
2017-2018 do IBGE, no entanto, evidenciou o aumento da
insegurança alimentar. Hoje, é ainda maior (VIGISAN, 2021).

O cenário enfrentado em 2021 colocava o Brasil no epicentro da pandemia


mundial. As desigualdades existentes e em franco agravamento com as políticas
neoliberais de austeridade fiscal dos anos anteriores foram potencializadas pela
SUMÁRIO

desarticulação nas políticas emergenciais de enfrentamento da pandemia, a exemplo


da mora na compra e distribuição de vacinas, bem como na saturação do sistema de
saúde.
As regiões Norte e Nordeste apresentaram os dados mais graves de insegurança
alimentar, reforçando as assimetrias regionais já existentes. Igualmente, a população
rural se mostrou mais vulnerável, sobretudo quando se associa a insegurança
alimentar à insegurança hídrica. A população negra também foi a mais impactada,
reforçando todos os marcadores sociais da diferença.
As graves violações de direitos humanos no tocante à segurança alimentar foram
agudizadas no contexto pandêmico brasileiro, o que tem reflexos diretos no sistema de
justiça. A questão é saber: em que medida a justiça brasileira tem sido protagonista no
enfrentamento de fortes desigualdades da nossa nação?

2. ACESSO À JUSTIÇA NO ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES


A relação entre poder econômico e acesso à justiça não pode ser entendida de
maneira única. Por um lado, podemos tomar o direito como um instrumento de
dominação de uma classe, que faz uso dele para defender e atuar de acordo com os
seus próprios interesses; por outro, ele não deixa de estar na gramática das lutas dos
diversos grupos e movimentos sociais por acesso à justiça e condições de vida digna.
Assim, sobre essa relação entre econômico e jurídico, importante atentar que um
não se subordina diretamente ao outro, mas se relacionam dialética e
estruturalmente⁶⁶. Um dos aspectos teóricos importantes, neste sentido, é situar o
conceito de constitucionalização simbólica como essa sobreposição parcial do político/
econômico sobre o direito, que ocorre de maneira mais frequente em sistemas
disfuncionais⁶⁷.
Neste sentido, diante da distância cada vez maior entre texto constitucional que
garante o direito à alimentação digna e a realidade factual que atinge milhões de
brasileiros com o problema da fome na pandemia da Covid 19, percebe-se que “é
através das chamadas ‘normas programáticas de fins sociais’ que o caráter

66 “A forma jurídica preserva seu núcleo necessário em face do Estado, não porque o jurídico seja maior que o político,
mas porque ambas as formas não podem ser submetidas uma à outra a ponto de deixarem de existir. Derivam todas
de uma mesma forma comum, do valor e da mercadoria, que demanda não uma ou outra, mas sim uma e
outra”(MASCARO, 2013, p. 134).
67 “Nesse sentido, a constitucionalização simbólica também se apresenta como um mecanismo ideológico de
encobrimento da falta de autonomia e da ineficiência do sistema político estatal, sobretudo com relação a interesses
econômicos particularistas. O direito fica subordinado à política, mas a uma política pulverizada, incapaz de
generalização consistente e, pois, de autonomia operacional” (NEVES, 2011, p. 152).
SUMÁRIO

hipertroficamente simbólico da linguagem constitucional apresenta-se de forma mais


marcante” (NEVES, 2011, p. 115).
Uma pergunta que surge diante desse contexto é a seguinte: com um papel cada
vez mais ativo⁶⁸ no cenário político e econômico, o judiciário pode contribuir
democraticamente na concreção do direito fundamental à alimentação?
Propomos aqui que a questão da insegurança alimentar deve ser analisada pelo
viés do paradigma do acesso à justiça, tendo em vista ser uma demanda
predominantemente das classes subalternizadas, ao passo que o judiciário tem um
papel a jogar para que esse problema seja superado.
Sabe-se da presença cada vez maior do judiciário na vida econômica e política
brasileira e das implicações no cotidiano das pessoas. Se antes se falava que tudo era
ou fazia parte da política, hoje, adaptando-se tal discurso aos tempos atuais, pode-se
dizer que tudo é direito, ou seja, o judiciário tem interferido nos mais diversos aspectos
da vida atual, seja economicamente, seja politicamente⁶⁹.
Se por um lado o judiciário deixou de ser um poder meramente reativo à violação
de direitos postulados, por outro lado, restou nítida que esta postura protagonista⁷⁰
colocou em xeque a legitimidade de sua atuação a partir de um ativismo expresso na
aliança manifesta entre Poder Judiciário, Ministério Público e mídia, no intuito
justamente de se contrapor às outras instituições brasileiras ou partidos políticos,
como no caso da operação Lava Jato⁷¹.
Aqui, nos interessa analisar, a partir dos paradigmas teóricos que se debruçaram
sobre a temática do sistema de justiça, quais elementos podem ser aprimorados e
discutidos no sentido da atuação legítima do judiciário. É necessário, a esta altura,
definir a judicialização da política e da economia como um fenômeno complexo,
agravado pelo neoliberalismo e pela hiper midiatização da vida pública. E reconhecer

68 Ativo e para além, muitas vezes confuso, sendo um player imprevisível em termos de estabilização de expectativas
contrafáticas, tomando aqui o conceito de direito do próprio Luhmann, a quem Neves se socorre para apresentar
sua teoria da constitucionalização simbólica.
69 “Nunca, na história republicana do país, juízes e promotores alcançaram tanta evidência como agora. Graças às
prerrogativas concedidas pela constituição de 1988, as duas corporações estão presentes na vida econômica,
influenciando a agenda política” (FARIA, 2004, p. 103).
70 Aqui refutamos a hipótese de que o protagonismo do judiciário teria sido decorrente do vácuo político
administrativo deixado pelo poder executivo brasileiro. Com a redemocratização, se de fato o poder executivo deixa
de autoritariamente concentrar poderes, por outro lado, nosso presidencialismo mantém claro que o protagonismo
do executivo continua em primeiro plano, seja com ações ou omissões estrategicamente decididas. Seja na ampla
utilização de medidas provisórias, seja na construção de programas de governo como o bolsa família (atualmente
auxílio brasil), seja no desenvolvimento do Sistema Único de Saúde, exemplos de forte atuação o executivo.
71 A este respeito, conferir, a título de ilustração, AS MENSAGENS, 2019-2022.
SUMÁRIO

que, dentro desta complexidade estruturante do judiciário, as contradições vão se


apresentando: por exemplo, direciona seu ativismo para os demais poderes,
intervindo na sempre delicada separação, mas tem sido pouco enérgico em
salvaguardar as instituições democráticas, cada vez mais ameaçadas com
reinvindicações estapafúrdias; atua judicializando demandas individuais de saúde
sem se responsabilizar pelos impactos no Sistema Único de Saúde; as graves
assimetrias e desigualdades de investimentos em educação e demais políticas
públicas, submetidas a um teto de gastos públicos nas próximas décadas, convive com
o corporativismo de classe que faz do judiciário brasileiro o mais caro do mundo.
Com isso, o sistema de justiça segue nebuloso, ora encastelado em seus tribunais
de mármore, ora adepto de um lawfare na sanha de criminalizar a política, ora
corporativista como classe, mas sempre como protagonista nessa reconfiguração entre
os poderes. Em todo o caso, as demandas por acesso à justiça seguem ampliando em
função das desigualdades sociais e econômicas.
Neste sentido, o futuro do judiciário, pelo menos se quiser manter sua
legitimidade diante da sociedade, deve passar pela melhoria de atuação em 4 áreas:
desigualdade (aí incluída a questão do direito fundamental à alimentação), separação
de poderes, obrigações contratuais e acesso à justiça.
No tocante ao direito fundamental à alimentação digna, portanto, destaca-se o
papel fundamental que a defensoria pública deve jogar na concreção desta cláusula
pétrea. Se, por um lado, a ausência de uma defensoria pública equipada de maneira
adequada dificulta a concreção de direitos sociais, por outro é fundamental que haja
sua estruturação no sentido justamente de trilhar o caminho do acesso amplo à
justiça⁷².
Importante mencionar também que muitas vezes atacar as causas da pobreza e
injustiça é mais eficaz e mais barato do que acionar o judiciário para interceder sobre
tais demandas. Logo, não se defende aqui, por óbvio, que a questão da fome seja um
problema essencialmente do sistema de justiça. Porém, na falta de políticas públicas
mais efetivas, espera-se que o judiciário atue no reconhecimento da violação de
direitos que a insegurança alimentar provoca.
É neste contexto que destacamos que a questão da fome e da insegurança
alimentar no Brasil, analisada sob a perspectiva do acesso à justiça, tem recebido pouca
atenção. É fundamental a análise dos motivos pelos quais, por exemplo, no Brasil, os

72 “No caso em análise, a Constituição prevê como um dos objetivos a construção de uma sociedade justa e mais
igualitária, porém não apresenta critérios concretos, apenas anuncia diretrizes. Ao reafirmar esse objetivo
constitucional na lei que organiza a Defensoria Pública, essa instituição passa a ser ferramenta para a construção
daquele objetivo constitucional, ou seja, a busca por uma sociedade mais igualitária” (RIBAS, 2014, p. 58).
SUMÁRIO

conflitos decorrentes da insatisfação dos usuários do SUS são há tempos judicializados


e pesquisados no âmbito da academia⁷³, enquanto pessoas passam fome sem sequer
cogitarem judicializar o tema, visto que a insegurança alimentar é assunto que
costuma passar ao largo quando a discussão versa sobre acesso à justiça, seja na
academia, seja nos grandes escritórios de advocacia, seja no âmbito do judiciário.
Logo, não se pode olvidar também da importância da massificação do acesso à
justiça como forma de contornar desigualdades e no sentido de assentar o pluralismo
social típico da era pós-moderna. Se não está sendo, não podemos esquecer que o
judiciário pode e deve ser um dos protagonistas na busca por uma sociedade menos
desigual (REBOUÇAS, 2010).
No contexto da pandemia de Covid-19, a contraposição da judicialização da
saúde de um lado e da ausência de judicialização da insegurança alimentar de outro,
nos revela os dois lados da moeda de intervenção do judiciário que acaba por interferir
por ação e por omissão nas políticas públicas de salvaguarda da vida. Neste ponto, é
necessário destacar que uma parte das ações de judicialização da saúde dizem respeito
ao fornecimento de alimentos de alto custo, por vezes considerados medicamento,
para o tratamento de enfermidades digestivas de pacientes, sobretudos neonatais
(fórmulas alimentares).
Uma pesquisa sobre o direito fundamental à alimentação nos tribunais
(DELDUQUE e SILVA, 2014) concluiu que das dezenas de ações analisadas, todas
versavam sobre o fornecimento de alimentos especiais (fórmulas alimentares),
concedidas no âmbito do sistema SUS, sem que especialistas em nutrição fossem
consultados ou se provasse a necessidade de tal uso. Portanto, completamente
absorvido pelo direito à saúde, judicializado para o tratamento de indivíduos
determinados, o direito à segurança alimentar restava mitigado por esse viés judicial,
que seguia sem garantir alimentação adequada à população.
Por outro lado, se o sistema de justiça não chega para garantir o acesso à
alimentação, chega para punir quem, no desespero e sem recursos, força seu acesso.
Aqui, merece destaque ainda pensar que, a despeito da sua injustificação frente ao
sistema de garantias constitucionais, o furto famélico aumentou no período
pandêmico (ADAILTON, 2022), crescendo as demandas na defensoria pública.
Portanto, a insegurança alimentar, além de implicar em violação de direito em si,
acaba impactando no sistema de justiça criminal e vulnerabilizando ainda mais a
população pobre. É a própria criminalização da pobreza em suas múltiplas
interseccionalidades, reforçando os contornos de uma aporofobia.

73 “Os conflitos decorrentes da insatisfação do usuário do SUS com o tempo de espera por atendimento há anos
encontra eco no sistema de justiça. São inúmeras e comuns ações para obter acesso a serviços de saúde disponíveis,
mas com extenso tempo de espera por atendimento” (FREITAS FILHO E SANT’ANA, 2016, p. 74).
SUMÁRIO

Na Bahia, de março de 2020, início da pandemia, a janeiro deste


ano, 108 casos de crimes famélicos foram registrados no sistema
do tribunal (...) De acordo com Pacheco, o perfil de quem furta
comida é quase sempre o mesmo: pessoas em situação de
vulnerabilidade social, desempregadas, negras, mulheres chefes
de família, moradoras das periferias ou em situação de rua
(ADAILTON, 2022)

Assim, a análise que se sobressai é de que há um longo caminho na compreensão


do poder judiciário de seu papel na efetiva concretização do direito à alimentação, hoje
mitigada por ações individuais que reduzem a demanda por alimentos especiais
(fórmulas alimentares), mas que não afetam a política de segurança alimentar,
insuficiente, no Brasil. Registre-se por fim que, na contramão de todo o movimento
mundial, o governo brasileiro em 2019 extinguiu o CONSEA (Conselho Nacional de
Segurança Alimentar) que fazia parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional – SISAN, instituído pela Lei 11.346/2006 (Lei Orgânica de Segurança
Alimentar e Nutricional). A pandemia, a partir de 2020, só agravou esse quadro.

À GUISA DE CONCLUSÃO: POSSÍVEIS CAMINHOS PARA A CONCREÇÃO


DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO DIGNA
A discussão sobre a concreção do direito fundamental à alimentação passa,
necessariamente, pela comparação com outras políticas públicas mais comumente
judicializadas, como as demandas do SUS, que funcionam em termos de reparação
individual, mas não conseguem reverter as graves desigualdades que marcam a
sociedade brasileira. Desta forma, ao se buscar a compreensão relacional entre a não
concreção do direito à alimentação, agudizada pela pandemia da Covid 19, e a questão
do acesso à justiça, tomou-se como ponto de partida a concepção de um marco teórico
que possibilitasse a apreensão crítica da diferença entre texto constitucional e
realidade factual.
Inicialmente, buscou-se apreender a forma pela qual se manifesta atualmente o
problema da fome no Brasil, repita-se, agravado pela crise causada pela pandemia da
Covid 19 e pela forma como ela foi tratada no Brasil. Durante a pandemia do Covid-19,
cujos efeitos ainda perduram nos dias atuais, as iniciativas de garantia do direito à
alimentação foram insuficientes e agudizaram ainda mais as desigualdades sociais e
econômicas da sociedade brasileira. Iniciativas governamentais, como o auxílio
emergencial, benefício emergencial, saques extraordinários do FGTS amenizaram,
mas não impediram o aumento da insegurança alimentar, aprofundamos a nossa
participação no mapa da fome, em passado recente extinto.
SUMÁRIO

Tais movimentos, entretanto, possuem natureza paliativa, defendendo-se aqui


que a concreção do direito fundamental à alimentação depende de uma ação conjunta
e sistemática do Estado brasileiro em suas três esferas, legislativo, executivo e
judiciário, tendo a atuação do judiciário um sentido de atuar na omissão do executivo
e na perspectiva de impedir retrocessos como o esvaziamento de programas de
sucesso no Brasil, como o Fome Zero⁷⁴.
Logo, a superação do problema da fome no Brasil com a participação do sistema
de justiça e dos demais poderes da República constitui parte de um projeto de
sociedade, onde o Direito pode ter um papel importante, se for apropriada a sua
análise em consonância com um projeto digno do compromisso democrático firmado
na Constituição de 1988. Acontece que uma mudança de perspectiva de análise do
problema, enfrentado aqui na ótica do acesso à justiça, pode servir de farol para a
concreção do direito social à alimentação digna, no sentido de uma realização, ainda
que tardia, do texto constitucional de 1988.
Indicamos aqui possíveis caminhos para a concreção do direito fundamental à
alimentação e como o judiciário pode encampar esse tema de maneira transversal, tais
como: na perspectiva da proibição de retrocesso, deve-se pensar na vedação da
suspensão de políticas estatais de combate à fome, tais como programa fome zero e
auxilio emergencial; ações coletivas para comunidades tradicionais e indígenas no
sentido de garantir o fornecimento de cestas básicas; ações coletivas para alimentação
e cuidados com pessoas em situação de rua através das defensorias públicas e SUAS
(Sistema Único de Assistência Social); ações que versem a respeito da obrigatoriedade
de estados e municípios estruturarem Restaurantes Populares; possível judicialização
de uma renda básica de cidadania a partir de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão.
A segurança alimentar na perspectiva do acesso à justiça é assunto urgente que
deve ser pesquisado em todas as áreas do conhecimento. Se, por um lado, as questões
orçamentárias relacionadas à questão da “Reserva do Possível” devem ser levadas em
conta na atuação do judiciário ao abordar a questão, por outro, o enfrentamento por
parte do sistema de justiça a respeito da questão da insegurança alimentar é condição
fundamental para a concretização plena do nosso Estado Democrático de Direito.

74 “Dessa maneira, o programa Fome Zero trata-se de uma política pública de atuação integrada de ministérios do
governo federal, por intermédio da intersetorialidade e transversalidade das ações estatais, proporcionando uma
gestão articulada e planejada, pautada no princípio da segurança alimentar, possibilitando, citem-se, melhorias nas
condições de acesso e consumo de alimentos saudáveis, abastecimento de água, saúde, escolarização, geração de
ocupação e renda” (RIBEIRO, 2021, p. 225).
SUMÁRIO

REFERÊNCIAS

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 8
AS BARREIRAS CULTURAIS
ASSOCIADAS AOS
ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO
possíveis estímulos às práticas
discriminatórias no mercado de
trabalho e os óbices impostos na
garantia de oportunidades equânimes
entre os gêneros

Marli M. Moraes da Costa / Nariel Dio�o


SUMÁRIO

AS BARREIRAS CULTURAIS ASSOCIADAS AOS ESTEREÓTIPOS DE


GÊNERO: possíveis estímulos às práticas discriminatórias no mercado de
trabalho e os óbices impostos na garantia de oportunidades equânimes
entre os gêneros

Marli M. Moraes da Costa⁷⁵


Nariel Dio�o⁷⁶

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo trata das barreiras culturais e dos estereótipos de gênero no
ambiente de trabalho como uma forma de estímulo e manutenção da violência contra
as mulheres nesse ambiente. Para isso, buscar-se-á provocar um debate necessário na
pauta tradicional do mercado de trabalho, pouco voltada para as questões que dizem
respeito à saúde física e psíquica das mulheres trabalhadoras.
As pressões trazidas ao mundo do trabalho, principalmente pelo avanço das
novas tecnologias, estão intensificando os problemas na saúde mental dos

75 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, com Pós Doutoramento em Direitos
Sociais pela Universidade de Burgos-Espanha, com Bolsa Capes. Professora da Graduação, Mestrado e Doutorado
em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-RS - UNISC. Coordenadora do Grupo de Estudos Direito,
Cidadania e Políticas Públicas. MBA em Gestão de Aprendizagem e Modelos Híbridos de Educação. Especialista
em Direito Processual Civil. Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar Sistêmica. Membra do Conselho
Consultivo da Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Membra do Núcleo de Estudos
Jurídicos da Criança e do Adolescente – NEJUSCA/UFSC. Membra do Conselho Editorial de inúmeras revistas
qualificadas no Brasil e no exterior. Autora de livros e artigos em revistas especializadas. La�es: h�p://
la�es.cnpq.br/2928694307302502. ORCID: h�p://orcid.org/0000-0003-3841-2206. E-mail: marlim@unisc.br.
76 Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa PROSUC-CAPES. Mestra em
Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Especialista em
Ensino da Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e em Direito Constitucional pela Faculdade
Cidade Verde (FCV). Bacharela em Direito (UNICRUZ). Graduanda em História (UFPel). Integrante do Grupo de
Pesquisa em Direito dos Animais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), do Grupo de Pesquisa em
Direito, Cidadania e Políticas Públicas (UNISC) e do Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e
Direitos Humanos (UNICRUZ). Professora e advogada. La�es: h�p://la�es.cnpq.br/5462241417886493. ORCID:
h�p://orcid.org/0000- 0003-4767-016X. E-mail: nariel.dio�o@gmail.com.
SUMÁRIO

trabalhadores, mais precisamente das mulheres, devido ao acúmulo de atividades que


exercem. O Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo em diagnósticos de pessoas com
transtorno de ansiedade e o quinto lugar com diagnósticos de depressão, o que indica
a existência de fatores capazes de desenvolver esses problemas.
Nesse sentido, é notório que devem ser investidos mais recursos em cuidados da
saúde mental, considerando que a mesma tem impactos decisivos nas habilidades dos
indivíduos para viver em sociedade. Os novos contornos sociais, a globalização, a
intensificação das relações mercantis e a política neoliberal originam tensões que
implicam na necessidade de redefinições sociais, políticas, culturais e econômicas, ao
mesmo tempo em que se reformam espaços e aumentam as desigualdades sociais
entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
A sociedade passa por uma crise paradigmática que acabou por desestabilizar
tudo aquilo que parecia sólido e relativamente seguro. O medo e incerteza do futuro,
devido às constantes transformações que surgem a cada dia, principalmente no
campo do trabalho, além dos efeitos da pandemia do Covid-19, foram fatores que
desestabilizaram ainda mais a saúde mental. No sistema capitalista e neoliberal, o
sujeito é tido apenas como um objeto (um corpo que deve servir ao trabalho) e não
como um ser humano que tem sentimentos, dores emocionais e necessidades básicas
para sobreviver com dignidade. Muitas empresas negligenciam estes aspectos em seu
ambiente organizacional e, com isso, seus colaboradores pagam com sua saúde
biopsíquica o alto preço decorrente da tristeza, da angústia e da depressão.
Neste contexto, cabe questionar: Quais estratégias podem ser adotadas pelos
empregadores, objetivando evitar o adoecimento biopsíquico das mulheres
trabalhadoras? O objetivo geral do artigo é, a partir do contexto atual das mulheres
trabalhadoras, analisar as ações e medidas possíveis para melhorar sua condição no
mercado, notadamente, quanto à sua saúde biopsíquica. Para tanto, a metodologia
empregada é qualitativa, com pesquisa exploratória e técnica bibliográfica, usando
livros, artigos, notícias e documentos oficiais sobre o tema na construção do referencial
teórico. Como método, optou-se pelo dedutivo, a partir do uso de uma racionalidade
e de um raciocínio descendente: a análise geral do caso concreto para, então, identificar
o contexto específico.

1. A DIVISÃO SEXUAL E OS DESAFIOS ENFRENTADOS PELAS MULHERES


NO MERCADO DE TRABALHO
Por muitos anos, as mulheres foram estereotipadas como fracas, submissas,
passivas e sem poder político – isso influenciou fortemente a inserção da mulher no
mercado de trabalho e consequentemente a busca pela sua independência econômica.
SUMÁRIO

Historicamente, homens e mulheres ocuparam espaços diferenciados na sociedade,


assim como distintas vivências, o que ocasionou a demanda por direitos específicos às
mulheres, que paulatinamente foram sendo incorporados ao ordenamento jurídico.
Em decorrência disso, o homem, detentor do estereótipo de provedor e chefe da
família, teve uma maior inserção nos espaços públicos de tomada de decisões, no
mercado de trabalho e no acesso a direitos. Por sua vez, as mulheres, ao invés de
receberem educação formal e capacitação para adentrar o espaço público, “[...] eram
treinadas para o casamento, para administrar a casa, criar os filhos, e tolerar as relações
extra-matrimoniais (sic) do marido [...]” (DESOUZA; BALDWIN; ROSA, 2002, p. 486).
O efetivo ingresso formal da mulher no mercado de trabalho não foi unicamente
resultado das lutas dos movimentos de mulheres, mas especialmente da necessidade
do mercado, em razão das duas guerras mundiais (REIS; COSTA, 2014). Diante da
escassez de mão de obra masculina, que era convocada para a guerra, as mulheres
foram chamadas a assumir postos e responsabilidades econômicas, para satisfazer a
demanda do mercado e, também, possibilitar a manutenção de suas famílias.
Saffioti (2013) ressalta que o emprego da mão de obra, tanto masculina quanto
feminina, configura-se de diferentes modos nos diversos tipos de formação econômico
social. Ou seja, as forças de trabalho masculina e feminina são determinadas de
maneira diferente em cada tipo de sociedade, dependendo de processos históricos e
culturais, de modo que “[...] nas sociedades baseadas na propriedade privada dos
meios de produção, a força de trabalho feminina determina-se diversamente da
masculina” (SAFFIOTI, 2013, p. 328).
Logo, é importante explorar uma nova conceituação do que consiste em ser o
trabalho enquanto categoria mais ampla que envolve tanto trabalhos de produção
quanto os de reprodução. Os trabalhos de reprodução, que são constituídos pelo
cuidado, podem ser remunerados, tal como da cozinheira, enfermeira, diarista, mas
também podem ser invisíveis, como os cuidados exercidos pelas mulheres dentro do
núcleo familiar, tarefas que não são divididas de forma equânime dentro da sociedade
conjugal (NICHOLSON, 1987).
A noção de trabalho não remunerado por si só abarca tanto o trabalho no setor
informal, que envolve as atividades voluntárias e redes informais da economia, como
o trabalho doméstico, as atividades beneficentes, a criação dos filhos e o cuidado com
os doentes, dentre diversas outras atividades. A noção de trabalhos de reprodução foi
cunhada para caracterizar as atividades atribuídas às mulheres tais como gerar e criar
os filhos, atender aos doentes e idosos e realizar o trabalho doméstico. Enquanto a
teoria marxista ortodoxa limitou-se a uma análise da atividade produtiva e das
SUMÁRIO

relações de produção, a tarefa das feministas, especialmente através da economia


feminista, foi de ampliar esses conceitos através dos tempos (NICHOLSON, 1987).
Em uma economia monetária de produção, a economia feminista visa abordar
essas atividades econômicas não remuneradas – e que são subsumidas pelo
intercâmbio de produção e circulação –, buscando o desenvolvimento sustentável da
própria vida e a reprodução da força de trabalho. Desse modo, segundo Girón e
Correa (2017), a economia feminista prioriza as lacunas que existem em atividades não
remuneradas, em vez de aprofundar a diferença salarial entre mulheres e homens
quando o trabalho é remunerado, na área de produção. A economia feminista tem
especial preocupação com a invisibilidade do suporte das mulheres ao sistema
econômico nos diversos países.
Este debate possui relevância na estruturação e na implementação de políticas
públicas que valorizem o chamado trabalho da mulher (KÜCHEMANN; CRUZ,
2008); contudo, esse movimento de valorização da mulher no âmbito econômico e,
consequente ruptura com os estigmas sociais, ainda enfrenta estruturas sedimentadas
no sistema patriarcal que é muito resistente aos novos paradigmas. Melo (2002) explica
que parte dos serviços gerados na economia é denominada não-mercantil, por não ter
valor de mercado. Dentre os serviços não mercantis, incluem-se os serviços domésticos
remunerados, prestados por trabalhadores autônomos, que têm seu valor social
medido nos termos da remuneração destes. Contudo, o trabalho realizado no âmbito
doméstico, em prol da família, continua sem valor agregado, “[...] por isso tais
atividades acabam não sendo consideradas no cômputo das contribuições de homens
e mulheres para a prosperidade da família” (REIS; COSTA, 2014).
Assim, numa sociedade de consumo, quem não recebe remuneração é excluído
das relações de troca e reconhecimento. Importante frisar que a economia feminista é
um campo das ciências econômicas que compreende o estudo do pensamento
econômico a partir da invisibilidade das mulheres no pensamento neoclássico e
marxista, bem como a ressignificação do trabalho de forma mais ampla, considerando
o mercado informal, o trabalho doméstico, a divisão sexual do trabalho na família e
fundamentalmente agregando a esfera reprodutiva como essencial à existência
humana (POCHMANN, 2002).
Nicholson (1987) defende que o marxismo fracassou ao tentar compreender o
gênero, especialmente porque Marx em sua obra limitou-se à análise do trabalho de
produção, compreendendo o trabalho doméstico e de cuidado dos filhos inclusive
como naturais. Embora baseada na teoria marxista, a economia feminista procura
ampliar e desenvolver conceitos que passaram invisibilizados nesta teoria. Na
acumulação de capital, o trabalho não remunerado sai dos interesses da economia
SUMÁRIO

monetária de produção. Não é visível porque não é uma atividade paga; por isso, a
necessidade de um maior esforço no reconhecimento desse trabalho não remunerado,
com um uma enorme importância social.
Ba�hyány (2004) afirma que em todas as sociedades os indivíduos necessitam
realizar três atividades essenciais: a) o trabalho produtivo, b) o trabalho doméstico e c)
o cuidado com os filhos e doentes. Nesses termos, o primeiro possui natureza social e
coletiva, através do qual se produz bens, que constituem riqueza social. A forma como
esse trabalho é organizado depende das condições históricas de cada sociedade, que
dá origem aos diferentes modos de produção, por exemplo, escravidão, vassalagem,
capitalismo etc. Em segundo lugar, o trabalho doméstico, de natureza individual, é
aquele por meio do qual as necessidades diárias são atendidas, como alimentação,
higiene, saúde, manutenção da casa, dentre outros. Por fim, a criação das crianças é o
meio pelo qual a noção de moral, os hábitos e costumes da comunidade são
transmitidos, garantindo, desta forma, a reprodução do imaginário cultural da
sociedade.
O trabalho produtivo se desempenha em uma jornada prefixada por
determinado tempo (até a aposentadoria). O trabalho doméstico, por sua vez, será
desempenhado todos os dias ao longo da vida de uma pessoa. O mesmo ocorre com a
criação dos filhos, que deve ser exercido ao longo dos anos, todos os dias e a toda hora.
De acordo com Simone de Beauvoir, a mulher sempre exerceu um papel limitado à
passividade, sendo que a vida, a força e a energia, por exemplo, eram atreladas à figura
masculina. Nesse sentindo, a sociedade espera da mulher um determinado tipo de
comportamento que não extrapole os limites dados a ela. Ou seja: o encargo que a
sociedade impõe à mulher é considerado como um serviço prestado ao esposo; em
consequência, ele deve à esposa presentes ou uma herança e compromete-se a
sustentá-la. Logo, a sociedade se desobriga em relação à mulher.
Os direitos que a esposa adquire cumprindo seus deveres traduzem-se por
obrigações a que o homem se submete (BEAUVOIR, 1983, p. 549). Esse paradigma está
fortemente ligado à economia do cuidado, que se refere aos elementos de cuidado com
as necessidades mais básicas da existência e reprodução das pessoas (ENRÍQUEZ,
2007). Os trabalhos de reprodução, historicamente atribuídos às mulheres, são
invisíveis ao mercado, muito embora sejam de especial importância à criação e
manutenção da vida humana, da força de trabalho e da sustentação das engrenagens
do sistema capitalista.
Nesses termos, a divisão sexual do trabalho relaciona-se a aspectos
comportamentais, sociais e culturais construídos sobre o papel da mulher na
sociedade, na família e na manutenção da força de trabalho. Essa compreensão
SUMÁRIO

orienta-se na análise de processos históricos que estabeleceram uma valorização da


maternidade e da capacidade gestacional feminina, prendendo a mulher neste papel.
Esses tipos de trabalho são frequentemente associados a uma definição cultural das
mulheres como pessoas cuidadosas, gentis, diligentes, estando sempre prontas para se
sacrificarem pelos outros, por exemplo, como “boas mães”.
Ser um bom pai raramente está associado a cortar sanduíches da merenda ou
trocar as fraldas dos nenês. Em geral espera-se que os pais sejam responsáveis por
tomar decisões e ganhar o pão, consumindo os serviços prestados pelas mulheres e
representando a família fora de casa (CONNELL; PEARSE, 2015, p. 32-33). De maneira
geral, o cuidado é entendido como uma atividade de responsabilidade feminina,
geralmente não remunerada, sem reconhecimento ou valor social.
Desta forma, as mulheres dificilmente serão trabalhadoras ideais, dada a sua
sobrecarga na ocupação do tempo. O perigo de atribuir competências próprias à
condição feminina, no caso os trabalhos de reprodução, acaba por produzir profundas
divisões entre homens e mulheres na distribuição das atividades, mantendo a “cultura
bipolar de gênero”, cujas atividades tidas como femininas possuem valor social e
remuneração reduzidos (LOBO, 2016).
Nestes termos, a divisão sexual do trabalho é causa importante das assimetrias de
gênero no ambiente produtivo e reprodutivo, remunerado ou não. Contudo, essa
divisão atua de maneira mais impessoal e simbólica. O reforço da atribuição da
domesticidade à mulher está na ideia de que a responsabilidade pelo cuidado e
educação dos filhos é de suas genitoras; portanto, é delas que se espera dedicação do
amor e tempo disponível, o que não se aplica aos homens (LOBO, 2016).
Segundo dados do IPEA (2017), obtidos no período de 1995 a 2015, mais de 90%
das mulheres declararam realizar atividades domésticas, proporção quase inalterada
ao longo de 20 anos. Já com relação à população masculina, esse índice subiu de 46%
para 53% da população. Contudo, ao analisar o número de horas dedicadas ao
trabalho doméstico pelas mulheres verifica-se, no período em análise, uma redução de
6 horas semanais, enquanto o tempo médio desempenhado pelos homens nas mesmas
atividades permaneceu o mesmo (IPEA, 2017). Ou seja, ainda não é possível afirmar
que haja indícios de uma nova divisão das tarefas entre homens e mulheres em casa.
Além do mais, verifica-se que exercer a atividade remunerada não afeta as
responsabilidades assumidas pelas mulheres com as atividades domésticas, apesar de
reduzir a quantidade de horas dedicadas a elas. Diante do exposto, as mulheres
ocupadas continuam se responsabilizando pelo trabalho doméstico não remunerado,
o que confirma a permanência da dupla jornada feminina. Somando trabalho
remunerado e não remunerado de homens e mulheres, no período de 2015, verificou-
SUMÁRIO

se que a jornada média semanal das mulheres superava em 7,5 horas a dos homens
(53,6 horas semanais das mulheres e 46,1 a dos homens). Outro fator interessante de
análise é a influência da renda no engajamento do trabalho doméstico. Quanto maior
a renda da mulher e/ou família, menor a proporção das que afirmam realizar
atividades domésticas. Constata-se, portanto, que os avanços com relação à igualdade,
ao menos no que se refere ao uso do tempo, têm avançado mais nas classes mais altas
(IPEA, 2017).
Os estigmas vinculados à ocupação do tempo da mulher ainda permanecem,
numa sociedade com fortes resquícios da cultura patriarcal: a mulher responsabilizada
pelo trabalho doméstico e pelo cuidado dos filhos e dos doentes acaba por ter
prejudicada a possibilidade de ser considerada uma trabalhadora ideal. Impactadas
pela dupla jornada e pela divisão sexual do trabalho, as mulheres, mesmo com mais
estudo, recebem salários menores, são empregadas em condições mais precárias e
sofrem com o sexismo institucional, assédio moral e sexual, e tem menos incentivos de
progredir na carreira, para assumir postos de comando (BATTHYÁNY, 2004, p. 64).
A divisão sexual do trabalho acaba por dificultar o ingresso e a permanência da
mulher no mercado laboral e consequentemente na economia. Restrita ao espaço
doméstico, a participação feminina na construção política, econômica e cultural ainda
é mínima, o que prejudica o desenvolvimento social. Essa situação é demonstrada a
partir das informações disponibilizadas pelo IPEA (2017), que aduz que entre aquelas
com renda de até 1 (um) salário-mínimo, 94% dedicavam-se aos afazeres domésticos,
comparados a 79,5% entre as mulheres com renda superior a 8 salários mínimos. No
caso dos homens, observa-se uma maior proporção dos que realizam afazeres
domésticos nas faixas mais altas de renda, sendo maior entre aqueles que auferem
entre 5 e 8 salários-mínimos (57% deles realizavam afazeres domésticos, enquanto
entre aqueles com renda mais baixa, cerca de 49% realizavam) (IPEA, 2017).
Estatísticas mais recentes (2016 e 2017) indicam que a participação das mulheres
em tarefas domésticas ainda é maior que a participação masculina, tanto nos afazeres
domésticos, quanto na categoria cuidados. As únicas funções domiciliares que os
homens destinam mais tempo incluem pequenos reparos ou manutenção do lar e
reparo de veículos ou eletrodomésticos, na proporção de 68% para eles e 37% para
elas. As estatísticas do período demonstram que 40% das mulheres destinam seu
tempo aos cuidados, contra 28% dos homens. Em relação aos afazeres domésticos, esse
percentual chega a 94% para elas e 79% para eles. Os índices são ainda mais
antagônicos se consideradas as tarefas que envolvem o preparo de alimentos, lavar
louças, roupas e sapatos: 37 pontos percentuais (IPEA, 2018). Considerando os dados
coletados entre o período de 2001 e 2015, verifica-se o seguinte resultado:
SUMÁRIO

As mulheres trabalham mais horas semanais que os homens: 47h


contra 45h, de acordo com dados de 2015. Nos cálculos, entram o
tempo dedicado ao trabalho remunerado, não remunerado e
tempo de deslocamento casa-trabalho-casa. A composição desse
tempo permanece desigual entre os sexos, com as mulheres
dedicando 18h por semana a mais aos afazeres domésticos. Os
dados mostram que, de 2001 a 2015, as mulheres aumentaram
em 7h semanais o tempo disponível para lazer, enquanto, para os
homens, esse aumento foi de 4h. Para elas, isso se deve à
diminuição no tempo gasto com trabalhos domésticos. Já para
eles, o motivo é a redução no tempo destinado ao trabalho
remunerado. Durante todo o período analisado, a proporção de
mulheres que realizam afazeres domésticos ficou acima de 91%.
Já entre os homens, ela variou de 45% em 2001 para 55% em 2015
(IPEA, 2018a, p. 1)

Nesse cenário, o trabalho reprodutivo é muito mais vinculado às funções


esperadas da mulher. As características esperadas do trabalhador ideal estão
intimamente ligadas às consideradas tradicionalmente masculinas: focar a vida no
trabalho, dedicar longas horas, ajustar a vida familiar às exigências do trabalho, são
exemplos. Apesar da inserção das mulheres na força de trabalho, os empregadores
continuam a procurar o provedor de renda homem em seu modelo de divisão do
trabalho. Essa ideia de um trabalhador ideal associado ao masculino é profundamente
discriminatória, visto que as mulheres, quando não são obrigadas a desistir de sua
carreira diante das responsabilidades com os serviços de cuidado, acabam sendo
segregadas a trabalhos por tempo parcial e/ou trabalhos com responsabilidades
menores, o que acaba por ser um limitador ao seu crescimento profissional.
É importante compreender que o abandono do mercado de trabalho pela mulher
é geralmente uma consequência de sua sobrecarga entre o trabalho externo e o
cuidado com a casa e com os demais membros da família. Deixar o emprego é uma
das estratégias para fazer frente às responsabilidades familiares no caso das mulheres.
As atividades domésticas das mulheres são reguladas por seus papeis reprodutivos
como filhas, esposas, mães e avós, cujas demandas variam nos diferentes estágios de
seu ciclo vital. Conquanto consigam se inserir no mercado produtivo, elas ainda
estarão atreladas aos trabalhos reprodutivos que são considerados de sua
responsabilidade devido à divisão sexual do trabalho (SAFFIOTI, 2013).
Nesse cenário, a emancipação feminina no mercado de trabalho exige abdicações,
que muitas vezes são inviáveis para quem tem todo o trabalho reprodutivo e de
cuidado não remunerado para desenvolver em suas casas. Isso ocasiona muitos
problemas na saúde física e psíquica das mulheres, ensejando que sejam possibilitadas
SUMÁRIO

alternativas capazes de auxiliá-las no processo reconfiguração da esfera laborativa.


Tema que será tratado em seguida.

2. A SAÚDE BIOPSÍQUICA DAS MULHERES E A POSSIBILIDADE DE


FORMAS MAIS EQUÂNIMES NO AMBIENTE DE TRABALHO
Na atualidade, vive-se uma crise ocasionada pela pandemia do Covid-19, que
resultou, ainda mais, em sofrimento na vida das mulheres, diante da continuidade da
opressão e discriminação impostas culturalmente, mas também dos novos contornos
que a pandemia trouxe para o trabalho feminino, como a sobrecarga verificada no
home office: cuidado da casa e dos filhos, somado à necessidade de altos índices de
produtividade. Intensificou-se o processo de fortalecimento das tendências de divisão
patriarcal de gênero, raça e classe e, além disso, há tendência ao crescimento dos
números de casos de doenças psicológicas, tais como, a ansiedade, depressão,
síndrome de burnout, entre outras, razão pela qual não restam dúvidas quanto à
necessidade emergente de mudanças nas relações sociais de divisão do trabalho.
Nesse sentido, Pinho e Araújo (2012, p. 561):

As mulheres têm apresentado consideravelmente mais sintomas


de angústia psicológica e desordens depressivas do que os
homens. Os transtornos mais frequentes entre as mulheres são
aqueles relacionados aos sintomas de ansiedade, humor
depressivo, insônia, anorexia nervosa e sintomas
psicofisiológicos; enquanto os homens apresentam maiores taxas
de distúrbios de conduta, tais como comportamento antissocial,
uso de drogas e abuso de álcool.

Segundo Frost (2003), o ambiente organizacional é farto em “toxinas


emocionais”; essas circunstâncias aflitivas, quando prolongadas, geram pressões que
podem resultar em constrangimentos, humilhações, vergonha e tristeza, capazes de
prejudicar a saúde e a vitalidade do trabalhador, afetando diretamente seu
desempenho. Pessoas machucadas nunca respondem com criatividade aos desafios.
Afirma o autor, ser impossível obter excelência de quem não está bem consigo mesmo
ou com o ambiente organizacional.
A permanência das mulheres no mercado produtivo, diferentemente dos
homens, é limitada por funções domésticas e familiares, o que faz com que o emprego
tenha que ser adaptado às suas funções. Desta forma, os sintomas do estresse estão
diretamente relacionados com a sobrecarga gerada pelas múltiplas jornadas de
trabalho das mulheres, resultantes das desigualdades de gênero potencializadas pela
divisão sexual do trabalho.
SUMÁRIO

Em estudo realizado por Pinho e Araújo (2012), o qual avaliou a relação entre
trabalho doméstico, trabalho profissional e saúde mental, verificou-se que mulheres
empregadas e mulheres donas de casa passavam por um adoecimento mental
produzido por fatores distintos, contudo, ambos os grupos experimentam níveis
semelhantes de sintomas depressivos. No trabalho doméstico, os sintomas estavam
associados à rotina das tarefas, desvalorização e interrupções constantes das mulheres.
Outros fatores que influenciam nessa sobrecarga são a idade, situação conjugal,
número de filhos e lazer, assim como o trabalho reprodutivo não remunerado, fatores
que também intensificam o sofrimento psíquico entre a população feminina.
Não há como deixar de mencionar a condição das mulheres trabalhadoras que
também são vítimas da violência doméstica. Somado a todo o estresse da sobrecarga
feminina, há as consequências biopsíquicas sofridas em virtude da violência. De
acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (2022), na maioria das mulheres
vítimas da violência intrafamiliar foram detectados sinais e sintomas depressivos e
ansiosos, perturbação do sono, transtornos alimentares como a anorexia, a bulimia, a
compulsão para comer, fobias de vários objetos, dificuldades sexuais, manifestações
psicossomáticas como taquicardia, dores no peito, hipertensão arterial, síndrome do
intestino irritável, sangramentos uterinos, dores pélvicas, dores osteomusculares, além
de queda da imunidade, com maior predisposição a infecções bacteriana e viral. Tem
sido ressaltado também uma maior incidência de alcoolismo, tabagismo e uso abusivo
de calmantes entre estas mulheres.
Os índices trazidos por Pinho e Araújo (2012), obtidos com base em pesquisa
realizada com mais de 700 mulheres, exteriorizam um preocupante cenário. Conforme
as pesquisadoras, evidenciou-se a ocorrência de transtornos mentais entre as mulheres
(numa proporção de 4 em cada 10 mulheres estudadas). As pesquisadoras ainda
indicaram que outros estudos brasileiros já demonstraram uma variação de 24,9% a
45% de mulheres acometidas por referidos transtornos no país. Em comparação a
outros países, chegou-se ao resultado de 27% em Santiago (Chile) e 18% na Grã
Bretanha. Esse cenário demonstra a necessidade do fomento à discussão em torno das
questões relativas ao gênero. As autoras continuam:

Os achados desta investigação revelaram que as mulheres com


alta sobrecarga doméstica e que recebiam até um salário-mínimo
apresentaram maior prevalência de TMC⁷⁷ quando comparadas

77 Essa expressão refere-se a transtornos mentais comuns, situação de saúde que não preenche critérios formais
suficientes para diagnósticos de depressão e/ou ansiedade.
SUMÁRIO

àquelas que recebiam mais de um salário mínimo. Indivíduos de


baixa renda acabam por ter mais preocupações com os problemas
financeiros do que os que têm maior renda per capta, levando ao
desenvolvimento da ansiedade e da depressão. A falta de
dinheiro pode levar ao estresse e à insegurança; a posse de bens
duráveis como geladeira, telefone, máquina de lavar e televisão
ilustram as diferenças de condições de vida proporcionadas pela
renda mensal (PINHO; ARAÚJO, 2012, p. 570).

As doenças mentais comuns também estariam relacionadas com a


impossibilidade de participar de atividades de lazer, diante do tempo limitado e do
direcionamento do momento que seria de descanso, para o trabalho reprodutivo não
remunerado. Nesse sentido, entende-se que o lazer auxilia no desaparecimento do
estresse e da depressão, todavia, ele deve envolver prazer, desejo e liberdade, “[...]
como uma atividade que só tem sentido e razão no tempo disponível, diferente das
obrigações profissionais, religiosas, domésticas e sociais” (PINHO; ARAÚJO, 2012, p.
570).
A partir dessas exposições, verifica-se que são impostas muitas barreiras para a
emancipação feminina no mercado de trabalho. Ainda são mantidos velhos hábitos de
desvalorização do trabalho feminino, de submissão a condições precárias,
principalmente no caso de mulheres em situação mais vulnerável: pertencentes às
camadas sociais mais baixas, negras, imigrantes, as mães solo e aquelas que precisam
efetivar tarefas de cuidado em benefício dos entes familiares, mulheres que estão em
relacionamentos abusivos (vítimas de maior desprezo por parte de seus companheiros
e que também costumam administrar todo o lar, além de sofrerem episódios de
violência). Essas vulnerabilidades e entrecruzamento de opressões são fatores de
estímulo à manutenção da supremacia masculina no mercado de trabalho.
O rompimento com esses preceitos é ainda mais difícil em virtude da prevalência
dos estereótipos de gênero, que atribuem ao homem a condição de ativo e provedor,
enquanto para a mulher resta a passividade, um local de obediência servil.
Estereótipos que tem origem na divisão sexual, na discriminação de gênero e na
desvalorização do trabalho reprodutivo.
Para mudar esse cenário, muitos esforços são necessários, ensejando uma
articulação conjunta do Estado, do mercado e da sociedade, para reforçar a valorização
do trabalho das mulheres, seu importante papel na sociedade capitalista,
principalmente o de produtora da força de trabalho. Para que as relações de poder
sejam descontinuadas, isso não depende apenas das mulheres ao buscar maior
respeito e valorização no mercado de trabalho, mas também da sociedade que deve
desconstituir as barreiras impostas ao seu crescimento, como os estereótipos de
SUMÁRIO

gênero, além do importante papel do Estado na construção e fortalecimento de


políticas e mecanismo de ação, que possibilitem que as mulheres tenham o subsídio
estrutural necessário para a própria emancipação, a exemplo da disponibilidade de
creches públicas e acessíveis.
Os empregadores também podem (e devem) contribuir para a melhoria desse
cenário. As normas do ambiente de trabalho devem ser reavaliadas, principalmente no
contexto da pandemia, em que se intensificou a possibilidade do trabalho híbrido
(presencial e remoto), devendo ser estabelecidos limites, principalmente no que diz
respeito às exigências desumanas de produtividade. Além disso, o investimento em
desenvolvimento da saúde emocional é uma boa prática para que as mulheres possam
identificar as situações que estão vivendo, além de entenderem seus problemas na
administração da rotina de trabalho, como forma de autoconhecimento e mudança.
Ultimamente também tem se discutido a possibilidade de uma jornada semanal
de quatro dias, como forma de valorizar o descanso que, consequentemente, vai refletir
na produtividade. Países como a Islândia, Bélgica, Nova Zelândia, Espanha e Japão já
vivem essa realidade, assim como a empresa de produtos pet Zee.Dog, no Brasil. Na
Islândia, o primeiro teste de uma semana mais curta de trabalho foi um grande
sucesso, pois teve como resultado a manutenção ou aumento da produtividade. Além
disso, os trabalhadores informaram sentirem-se menos estressados e esgotados, com
maior capacidade de equilibrar a vida profissional e familiar. A jornada semanal que
era de 40 horas passou para 35 ou 36 horas, com a mesma remuneração. No Japão, “a
Microsoft descobriu que, ao diminuir horas na semana de trabalho, a produtividade
teve um aumento expressivo. Os 2.300 funcionários tiveram todas as sextas-feiras de
folga. E a produtividade aumentou 40% no período”. Além disso, os funcionários
passaram a usar o tempo com mais eficiência, houve redução dos gastos com
eletricidade no escritório e mais de 90% de aprovação dos funcionários. O período de
teste da semana mais curta, no Japão, foi de um mês e a empresa pretende implantar
novamente (CAVALLINI, 2021, s.p.).
Essa diminuição seria uma possibilidade de melhoria na condição de sobrecarga
feminina. É claro que os exemplos apresentados se referem a contextos completamente
diferentes do Brasil, mas podem ser usados como uma forma de repensar as relações
de trabalho e a exaustão da mão de obra, incluindo, neste caso, homens e mulheres,
mas voltando-se principalmente para as consequentes implicações na vida delas.
Todavia, isso exigiria, também, um trabalho de ordem legislativa, ao passo que
dificilmente as empresas irão aderir ao programa pensando apenas no bem-estar dos
trabalhadores. Ainda predomina uma ideia de exploração do trabalho, no intuito de
obter o maior lucro possível, sem refletir sobre as condições (muitas vezes precárias)
em que se inserem os trabalhadores.
SUMÁRIO

Nesse cenário, a discussão sobre as múltiplas jornadas de trabalho das mulheres


e o seu esgotamento psíquico é um tema central a ser debatido dentro do campo da
economia feminista. Enquanto mulheres forem consideradas meras cuidadoras,
administrando sozinhas todo o ambiente doméstico e, ainda, precisando exercer suas
funções profissionais com excelência, como se não tivessem família, continuarão sendo
sobrecarregadas e limitadas em sua esfera profissional, além de apresentarem
problemas de ordem física e psíquica, inevitáveis quando são impedidas de cuidar de
si mesmas.

A principal característica do homem econômico é que ele não é


uma mulher. A economia só tem um sexo. A mulher pode
escolher entre tentar ser ele ou ser seu oposto. Complementar e
equilibrar essa dura lógica de racionalidade e interesse pessoal.
Ela própria escolhe. Porque tudo que fazemos é resultado do livre
arbítrio. [...] Hoje, as teorias econômicas padrão defendem que os
resultados econômicos têm gênero neutro. De fato, parecem
bastante neutros quando expressos como matemática abstrata.
Mas os economistas dizem que o sexo não tem importância, não
impede que as pessoas, por causa de seu sexo, tenham relações
estruturais diferentes com produção, reprodução e consumo na
sociedade (MARÇAL, 2017, p. 173)

A economia feminista sabe que não há neutralidade na economia, pois o gênero


tem importância em um mundo onde as mulheres estão cada vez mais abaixo da linha
da pobreza. O gênero tem importância na medida em que as mulheres ainda têm
salários mais baixos e posições mais precárias no mercado de trabalho, além de
possuírem o estereótipo de cuidadoras e de mulheres do lar. O gênero importa na
medida em que o trabalho feminino é tão desvalorizado a ponto de se tornar invisível
para a economia e para o capitalismo (MARÇAL, 2017).
Portanto, é urgente repensar as formas de trabalho, no intuito de possibilitar
relações mais equânimes no mercado. Sob a lente do gênero e do feminismo, essas
discussões tornam-se viáveis, pois entendem como articulam-se os processos de
opressão e submissão feminina, que invadem tanto a esfera pública quanto a privada;
é o primeiro passo na criação e fortalecimento de políticas voltadas a ressignificar a
condição das mulheres em sociedade e, principalmente, nas relações de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os papéis sexuais, definidos com base em estereótipos de gênero, são o aspecto
central para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres no trabalho,
tornando-se uma barreira para a emancipação e autonomia feminina e ocasionando a
SUMÁRIO

sobrecarga do trabalho da mulher que, obrigada a ser uma super heroína que deve dar
conta de todas as demandas pessoais e profissionais, acaba esquecendo da própria
saúde e do autocuidado para atender aos anseios da sociedade capitalista e patriarcal.
Em virtude de tudo que é exigido para as mulheres, as doenças e transtornos
biopsíquicos tem crescido exponencialmente, principalmente durante a pandemia em
que, além de continuarem exercendo suas funções profissionais, as mulheres passaram
a trabalhar mais intensamente nos lares, por causa da maior presença das famílias no
ambiente privado. Além disso, uma complexidade de fatores tem evidenciado que as
mulheres estão sendo as mais afetadas pelo desemprego e as que mais assumem
funções precárias e informais, principalmente se considerado o período da pandemia.
Para piorar esse cenário, os índices de pobreza também aumentaram e foram as
mulheres as principais vítimas, evidenciando a existência da chamada feminização da
pobreza e gerando um debate que irá transcender para o pós-pandemia.
A partir do exposto neste artigo, verifica-se que há viabilidade de transformar o
cenário em que vivem as mulheres, mas isso depende da atuação de uma frente ampla,
formada por empresas, Estado e sociedade, na condução de políticas e ações mais
benéficas às mulheres, que carregam toda uma carga de responsabilidades que é
inerente ao seu gênero. Portanto, é emergente a inserção de uma lente de gênero no
mercado do trabalho, o que pode ser possibilitado pelas teorias da economia feminista,
capazes de demonstrar a necessidade de romper com hábitos e costumes que
hierarquizam os gêneros e os grupos sociais.
A economia feminista compreende que o trabalho doméstico e reprodutivo deve
ter lugar na agenda política, na medida em que o combate às desigualdades de gênero
no mercado fazem parte dos propósitos de um país democrático como o Brasil. Temas
como a redefinição dos trabalhos produtivo e reprodutivo, a corresponsabilização dos
homens nas tarefas do cuidado, além da estruturação e ampliação de serviços sociais e
a construção de alternativas solidárias são formas de romper com a lógica dominante
e possibilitar outras expressões da economia.

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SUMÁRIO

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 9
DIREITOS REPRODUTIVOS
DAS MULHERES NO CENTRO
DA BIOPOLÍTICA
o caso das esterilizações forçadas no Peru

Fernanda Lavinia Birck Schubert / Joice Graciele Nielsson


SUMÁRIO

DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES NO CENTRO DA


BIOPOLÍTICA: o caso das esterilizações forçadas no Peru

Fernanda Lavinia Birck Schubert⁷⁸


Joice Graciele Nielsson⁷⁹

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo pretende, a partir da perspectiva da biopolítica, analisar aspectos do
controle reprodutivo executado no Peru, especificamente por meio de esterilizações
forçadas. Trata-se de tema que apresenta especial relevância, uma vez que os corpos
das mulheres permanecem sendo alvo de políticas de planejamento familiar e de
anticoncepção direcionadas à seleção eugênica, assim como em função de, no Peru,
ainda não ter havido uma responsabilização civil ou penal pelas esterilizações
forçadas realizadas no governo Fujimori.
O artigo foi construído tendo por problema de pesquisa a seguinte pergunta: é
possível pensar as esterilizações forçadas perpetradas entre os anos de 1996 a 2000 no
Peru de Fujimori como uma forma de controle biopolítico?
Como objetivo geral, a pesquisa busca evidenciar, a partir do marco teórico da
biopolítica, que as esterilizações forçadas ocorridas no Peru revelam uma atuação
estatal seletiva. Para dar concretude ao objetivo geral, os objetivos específicos do texto,
que se refletem na sua estrutura em duas seções, são: a) Contextualizar, a partir da
perspectiva biopolítica, fenômenos como o uso de pílulas anticoncepcionais, a
realização de esterilizações forçada de mulheres, o planejamento familiar, que podem

78 Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ com bolsa CAPES/PROSUC. Pós-graduanda em Direito
Previdenciário pela EBRADI. Bacharela em Direito pela UNICRUZ. Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e
Direitos Humanos. E-mail: fernanda_lbs@hotmail.com.
79 Doutora em Direito Público pela UNISINOS. Mestra em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. Professora-pesquisadora
do Programa de Pós-graduação – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos – da UNIJUÍ; Professora do Curso
de Graduação em Direito da UNIJUÍ. E-mail: joice.gn@gmail.com.
SUMÁRIO

ser interpretados como formas de controle biopolítico e de atuação estatal seletiva que
suprime de – algumas – mulheres a liberdade de decidirem ter ou não filhos/as; b)
Estudar a maneira como se deu a política de esterilização forçada no Peru nos anos
1996 a 2000, assim como a repercussão do caso até os dias atuais, diante da inexistência
de responsabilização civil ou penal.
O método de pesquisa empregado foi o hipotético-dedutivo, mediante o
emprego de técnica de pesquisa bibliográfica.

1. A INSTRUMENTALIZAÇÃO BIOPOLÍTICA DE (ALGUNS) CORPOS


FEMININOS: controle reprodutivo e planejamento familiar
As políticas populacionais podem ser compreendidas como uma série de
medidas destinadas à modificação do estado da população, especialmente no que se
refere ao volume, à distribuição e à densidade dentro de um dado território, assim
como a aspectos qualitativos e quantitativos de uma atividade específica que
desempenha (ALVES, 2006).
Muitas políticas populacionais impediram que as mulheres exercessem controle
sobre seus próprios corpos. Apesar de o século XX ter sido marcado pela luta por
direitos sexuais e reprodutivos, diversas condutas estatais que tiveram o intuito de
manutenção das mulheres num estado biopolítico e, por consequência, do controle
sobre suas vidas, bem como da regulação sobre a reprodução, a fertilidade e a
mortalidade (NIELSSON, 2020).
Como exemplo da atuação estatal direcionada à gestão dos processos
reprodutivos das mulheres, é possível mencionar as políticas internacionais da década
de 1960 que incentivavam o uso de contraceptivos modernos na região que
denominavam de terceiro mundo (na qual se incluía a América Latina), como as
pílulas anticoncepcionais, assim como a realização de esterilizações. O incentivo a esse
novo método contraceptivo vinha acompanhado de notícias sensacionalistas sobre o
risco do aumento populacional no mundo e, na América Latina, esteve diretamente
relacionado à Revolução Cubana de 1959, momento a partir do qual os países latino-
americanos passaram a ser considerados como campos férteis para revoluções
(PEDRO, 2003). É por isso que se pode dizer que a sua adoção foi impulsionada,
seguramente, por interesses políticos e econômicos (WICHTERICH, 2015).
Tanto os contraceptivos, quanto as esterilizações não eram destinadas, em regra,
a populações tidas como desenvolvidas ou a pessoas saudáveis, mas sim executadas
sobre grupos marginalizados, cujos principais destinatários eram os corpos de
mulheres rotuladas como passivas e oprimidas, e cujo “[...] descontrole da fertilidade
SUMÁRIO

[era] tido como um indicador de sociedades tradicionais, ‘atrasadas’”, nas palavras de


Wichterich (2015, p. 26). Por isso, Biroli (2016) indica que essas práticas de
transformação dos corpos das mulheres em objeto de intervenção foram pautadas na
eugenia, no racismo e na busca do controle social da pobreza.
Essas políticas de contracepção e de esterilização revelam a eleição da
reprodutividade como um instrumento que, ao mesmo tempo em que gerencia e
manipula a vida de populações, exerce a disciplina sobre os corpos das mulheres, que
são sujeitas destinadas à procriação (ou não, a depender do grupo que estiver sendo
analisado), o que permite falar sob a ótica da biopolítica e do biopoder (NIELSSON,
2020).
Para Foucault (2010), o biopoder se caracteriza como aquele que tem o condão de
causar a vida (ação positiva) e deixar morrer (ação negativa), de modo a gerenciar a
existência dos seres humanos. A biopolítica se volta não mais ao indivíduo, mas à vida
da população como um todo, a “[...] uma massa global, afetada por processos de
conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a
produção, a doença etc” (FOUCAULT, 2010, p. 289).
Bi�encourt (2015, p. 227) explica que o mecanismo da biopolítica atua a partir de
uma espécie de estatização do biológico, uma vez que o Estado realiza “[...] uma ‘gestão
calculista da vida’, de sujeição dos corpos e controle das populações ao eclodir nas
práticas políticas a gestão da natalidade, saúde, longevidade, sexualidade, habitação,
epidemias, imigração”.
Foucault (2010) aponta que o mecanismo que permite o exercício do poder de
matar em um regime de biopoder é o racismo que, além de se introduzir no domínio
da vida, tem como função tornar legítima a morte do outro, “[...] da raça ruim, da raça
inferior (ou do degenerado, ou do anormal), [...] o que vai deixar a vida em geral mais
sadia, mais sadia e mais pura” (WERMUTH; FORNASIER, 2015, p. 221). A biopolítica
funciona, portanto, como um meio para assegurar a prevalência de uma camada da
população e a eliminação, muitas vezes indireta, de outra.
Foucault (1988) ainda salienta a importância do controle do sexo para “[...] uma
série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da
disciplina do corpo e o da regulação das populações”. Dentre essas táticas, é possível
mencionar a histerização dos corpos das mulheres que assegurou, também, a sua
medicalização, já que a histeria foi construída como uma patologia intrínseca ao corpo
feminino (FOUCAULT, 1988).
A biopolítica, portanto, vai reger de forma distinta a vida de homens e mulheres,
na medida em que se destina não apenas à manutenção das relações de poder e das
SUMÁRIO

formas políticas de controle sobre a vida, mas, também, do status de quem exerce o
domínio da própria biopolítica: os homens. Acerca desse assunto, Wermuth e
Nielsson (2016, p. 16) salientam que “na biopolítica, em que o sexismo estabelece a
cesura entre a vida que merece viver e merece morrer, a decisão entre vida e morte do
corpo feminino está entregue às mãos do soberano homem, a partir de uma estrutura
patriarcal de organização da sociedade”.
Logo, é sobre o corpo feminino que recai a função enunciativa do biopoder, uma
vez que a ele sempre foi atribuído um caráter territorial, que pode ser ocupado pelos
homens e por eles utilizados. Nielsson (2020, p. 890) explica que o corpo das mulheres
“[...] é o espectro que carrega os signos de pertencimento, dando azo a uma espécie de
crueldade funcional e pedagógica que transmite uma mensagem sacrificial de
domínio disciplinar e biopolítico [...]”, já que se destina não apenas ao controle do
corpo individual, mas à gestão da própria espécie a partir do dispositivo da
reprodutividade.
O despojamento de direitos das mulheres, que decorre das práticas das
estratégias biopolíticas de controle sobre o corpo, especialmente àquelas relacionadas
à reprodutividade, culminam na constituição daquilo que Nielsson (2020) denomina
hystera sacra¸ que tem sua vida reduzida a uma posição hierarquicamente inferior na
distinção valorativa das vidas humanas, na medida em que se transforma em mero
corpo biológico (deslocado de sentido político), uma vida nua.
Pode-se dizer, portanto, que a biopolítica e os dispositivos de que ela lança mão
reduzem as mulheres aos seus úteros e, a depender dos interesses que o circundam,
elegem os úteros que são dignos ou úteis ao cumprimento da função social da
reprodutividade e os que são indignos ou inúteis para tanto. Essa distinção valorativa
hierárquica tem influência de marcas variáveis como raça, classe, idade,
nacionalidade, sexualidade (NIELSSON, 2020).
A atribuição de valor à vida de cada mulher, ou a um grupo de mulheres, é
influenciada, diretamente, pelo direito que legitima ou dá margem às suspensões de
direitos e à redução da vida ao corpo biológico e ao dispositivo da reprodutividade.
Diante disso, é possível estudar o fenômeno do controle reprodutivo e da atuação
biopolítica no Peru, onde estima-se que mais de 200.000 mulheres tenham sido
esterilizadas de forma forçada, que será feito no tópico a seguir.

2. ESTERILIZAÇÕES FORÇADAS: UMA EXPRESSÃO DO CONTROLE


BIOPOLÍTICO NO PERU
As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelas mobilizações de mulheres em
torno dos direitos sexuais e reprodutivos tanto em contextos globais, quanto locais.
SUMÁRIO

Apesar disso, no Peru, o governo de Alberto Fujimori promoveu políticas massivas de


esterilização forçada, o que se deu de forma diversa das políticas de mesma natureza
desenvolvidas em outros países. Isso porque, no caso peruano, os atores políticos
locais se apropriaram de discursos feministas nacionais e internacionais para legitimar
suas ações. Ewig (2014, p. 53) explica que: “Es decir, en los casos anteriores el impulso
de manipulación vino del exterior mientras que en el Perú fue una manipulación
política gubernamental”.
Pouco depois da realização da Conferência do Cairo, Fugimori anunciou uma
mudança na política populacional no Peru em 1995, que tinha como cerne, segundo o
presidente, a luta contra a pobreza. Valendo-se de sua popularidade e força política,
ele centrou essa política no planejamento familiar, sob a justificativa de que a pobreza
decorria da carência de informação e serviços sobre o assunto. Esse posicionamento
evidenciou que Fujimori defendia o planejamento familiar mais como uma forma de
redução da pobreza no país, do que como um direito das mulheres (EWIG, 2014).
Essas pretensões reveladas de Fujimori foram compiladas no Programa Nacional
de Salud Reproductiva y Planificación Familiar (PNSRPF 1996-2000), cujo conteúdo estava
alinhado, em geral, com as disposições do Plano de Ação do Cairo. Apesar dessa
similitude, o Programa continha, conforme Ewig (2014, p. 60), “[...] algunos defectos
importantes y debilidades significativas, errores, sobretodo referidos a las metas en la
provisión de servicios, que fueron identificados posteriormente por la Defensoría del
Pueblo”, o que levou à sua reelaboração. Além disso, o programa peruano privilegiou
as esterilizações, que são procedimentos irreversíveis, o que conflitava com as
disposições do Cairo (EWIG, 2014).
Em meio a esse contexto, entre os anos de 1996 e 2000, foram realizadas
esterilizações massivas, que ganharam maior notoriedade a partir de denúncias
realizadas pela ativista Giulia Tamayo à CEDAW. À época, a política de planejamento
familiar implantada pelo governo Fujimori esterilizou 272.028 mulheres peruanas,
sendo que outras 18 mulheres acabaram mortas no procedimento ou em decorrência
dele. A maioria residia no meio rural e entre as zonas mais afetadas estavam
Huancavelica, Piura, Ayacucho, Cusco, Apurímac, La Libertad, Puno, San Martín y
Cajamarca, especialmente nas zonas de extrema pobreza (BALLÓN GUTIÉRREZ,
2014). Conforme Citroni (2014), desse número, pelo menos 2.000 esterilizações foram
realizadas sem o devido consentimento das mulheres peruanas, que, muitas vezes,
sofreram ameaças, intimidações, humilhações e constrições. Apesar disso, todos os
procedimentos foram registrados como AQV (Anticoncepción Quirúrgica Voluntaria).
Essa política foi marcada pela realização de procedimentos ilegais e práticas
abusivas pelas equipes de saúde. Além dos discursos enganosos e dos subornos
usados para convencer as mulheres, cuja maioria eram indígenas com pouco aporte
SUMÁRIO

financeiro, muitos procedimentos foram realizados em salas cirúrgicas precárias e não


contaram com cuidados pós-operatórios, o que resultou em enfermidades e até
mesmo morte (MOLINA SERRA, 2017).
Além disso, as informações que as mulheres recebiam eram, muitas vezes,
insuficientes, já que não se explicava o alcance de uma esterilização (o fato de ser
irreversível), ou incompreensíveis, já que muitas delas sequer falavam espanhol (se
utilizavam da língua quechua ou aymara para se comunicar) (BALLÓN GUTIÉRREZ,
2014).
Tamayo (2014) relata que, além das esterilizações forçadas ou praticadas a partir
de discursos enganosos ou subornos, a política de planejamento familiar
implementada por Fujimori traçava metas de esterilizações a serem alcançadas por
profissionais de saúde, que iam desde o nível nacional até o local. A depender do
cumprimento ou não das metas estabelecidas, os profissionais de saúde receberiam
incentivos ou sanções. Molina Serra (2017, p. 43) salienta que a maioria dos discursos
de profissionais de saúde evidencia relações hierárquicas de poder, uma vez que “[...]
sus lenguajes esbozan una imagen concreta de las personas a quienes fue dirigida la
política, refiriéndose a las y los pacientes como “gente del campo”, evidenciando una
notable distancia intelectual, económica y socio cultural […]”.
Como o procedimento recaía normalmente sobre corpos de mulheres
marginalizadas, o que se viu foi a normalização da indiferença com relação ao
consentimento para a prática das esterilizações. Os anseios das mulheres submetidas
às esterilizações forçadas foram anulados em detrimento das ideias de modernidade e
de progresso do país, no qual não estavam inseridos certos setores populacionais
(racializados) e certas localidades peruanas (empobrecidas), que eram tidas como
ameaças à segurança e à estabilidade internas (TAMAYO, 2014).
Diante dessas práticas de controle reprodutivo biopolítico sobre os corpos das
mulheres peruanas, ainda no final do século XX, foram feitas diversas denúncias, com
a pretensão de assegurar às vítimas e às suas famílias o acesso à justiça e às medidas
de reparação integral, assim como o julgamento dos responsáveis (CITRONI, 2014).
Depois de diversas denúncias realizadas pela população, por organizações da
sociedade civil, pela imprensa, pela Defensoría del Pueblo, por congressistas peruanos,
em junho de 1999, a CLADEM, a organização não governamental DEMUS, a
Asociación Pro Derechos Humanos (APRODEH), o Centro Legal para Derechos
Reproductivos y Políticas Públicas (CRLP) e o Centro para la Justicia y el Derecho
Internacional (CEJIL) apresentaram uma petição perante a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), em detrimento do Estado do Peru, em função da violação
dos direitos humanos de María Mamérita Mestanza Chávez, que faleceu depois de ter
sido submetida a uma esterilização forçada (CITRONI, 2014).
SUMÁRIO

A CIDH não chegou a se pronunciar, uma vez que, em agosto de 2003, os


peticionários e o Estado peruano chegaram a uma solução amistosa, na qual o Peru
reconheceu sua responsabilidade internacional pela violação dos artigos 1.1, 4, 5 e 24
da Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como do artigo 7º da
Convenção de Belém do Pará. Na oportunidade, o Peru também assumiu o
compromisso de investigar os casos de esterilização forçada e punir os autores, além
de ter se comprometido a indenizar os familiares de María Mamérita Mestanza
Chávez, garantir educação gratuita nos níveis primário, secundário e superior em
colégios e centros de estudo superiores estatais. Além disso, segundo Citroni (2014, p.
103), “el Perú se comprometió a realizar las modificaciones legislativas y de políticas
públicas sobre temas de salud reproductiva y planificación familiar, eliminando
cualquier enfoque discriminatorio y respetando a la autonomía de las mujeres […]”,
assim como a adotar recomendações vindas da Defensoria del Pueblo.
Apesar disso, o Estado peruano manteve-se inerte, sem avançar nas denúncias
contra Fujimori e outros responsáveis pelas esterilizações em massa. Em 2010, então, a
CIDH reconheceu que o Peru estava descumprindo as obrigações assumidas na
Solução Amistosa do caso María Mamérita Mestanza Chávez, especificamente as
obrigações de reparação educativa aos seus filhos e ao compromisso de investigar e
punir os responsáveis (CITRONI, 2014).
Em 2012, o Comité de las Naciones Unidas de Derechos Económicos, Sociales y
Culturales manifestou sua preocupação pelo fato de as mulheres submetidas às
esterilizações forçadas não terem tido nenhum tipo de reparação e recomendou que o
Estado procedesse a uma investigação efetiva e imediata dos casos. No mesmo ano, o
Comité de las Naciones Unidas contra la Tortura também expressou preocupação com o
caso, assinalando que a situação era incompatível com os compromissos assumidos
por meio da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (CITRONI, 2014).
Como resultado da pressão exercida pela comunidade internacional, em 2012, a
Fiscalía Supraprovincial Penal de Lima decidiu reabrir as investigações do caso Mestanza
Chávez. Menos de dois anos depois, no entanto, decidiu por não formalizar denúncia
contra Fujimori e seus ex-ministros da saúde, sob a justificativa de que não se tratavam
de crime de lesão à humanidade, “[...] por el desconocimiento del ataque generalizado
y sistemático contra la población civil de parte de Alberto Fujimori; y que los delitos
enmarcados en el Código Penal Peruano no se habrían configurado por falta de dolo
de parte de los exministros, asesores y directores de salud” (CITRONI, 2014, p. 107).
Em 2016, novamente, a partir da insistência de organizações de direitos humanos
como o Instituto de Defensa Legal e o Estudio para la Defensa de la Mujer (DEMUS), 2.074
casos de esterilização forçada, cujas vítimas eram, predominantemente, mulheres
SUMÁRIO

indígenas, foram apresentadas ao Ministério Público. No entanto, houve novo


arquivamento, sob a alegação de insuficiência de provas (CARRANZA KO, 2020).
Em outubro de 2018, com as contínuas pressões exercidas pelo DEMUS, pela
CIDH e por outros grupos atuantes, a Fiscal Provincial Marcelita Gutierrez Vallejos
formalizou uma denúncia penal contra Alberto Fujimori e os ex-ministros da saúde
Marino Costa Bauer, Eduardo Yong Mo�a, Alejandro Aguinaga e Ulises Jorge
Aguilar, enquanto autores das esterilizações forçadas, caracterizadas como delitos
contra a vida, o corpo e a saúde, na modalidade de lesão grave, em um contexto de
violação de direitos humanos (CARRASCO, 2021).
Em dezembro de 2021, 12 anos após o Ministério Público ter apresentado uma
denúncia, foi aberto um processo penal contra Fujimori e outras quatro pessoas que
ocupavam cargos altos em seu governo, por meio do qual serão investigados
judicialmente como autores mediatos das esterilizações forçadas. É a primeira vez que
o caso avança barreiras judiciais, uma vez que diversas denúncias anteriores haviam
sido arquivadas (FOWKS, 2021). Apesar disso, a tramitação do processo foi suspensa
com relação a Alberto Fujimori, até que o Chile se manifeste quanto à ampliação da
concessão da extradição, já que esta não incluiu, inicialmente, o processo judicial de
investigação das esterilizações forçadas (ALBERTO, 2021). Mais de duas décadas
depois da esterilização forçada de inúmeras mulheres peruanas, ainda não houve
responsabilização pelos danos causados, tampouco foi realizado um programa de
reparação às vítimas e suas famílias.
Portanto, o que se verifica é que a inserção da pauta dos direitos sexuais e
reprodutivos nas disposições normativas internacionais e na legislação interna
peruana no final do século XX contribui para o controle biopolítico do corpo de
mulheres e gestão da vida, especialmente dos grupos mais vulneráveis pelo Estado do
Peru. Esse controle seletivo de quem pode e quem não pode ter ou continuar tendo
filhos faz com que as mulheres tenham sua vida digna reduzida unicamente aos seus
corpos biológicos, reforçando os aspectos biopolíticos presentes nos Estados e na
sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como escopo principal, a partir da perspectiva da
biopolítica, analisar aspectos do controle reprodutivo executado no Peru,
especificamente por meio de esterilizações forçadas.
Para tanto, foi realizada, no primeiro tópico, uma contextualização histórica de
fenômenos de planejamento familiar e métodos contraceptivos na América Latina, a
partir da perspectiva da biopolítica. Esses fenômenos podem ser interpretados como
SUMÁRIO

maneiras de atuação do Estado que suprimem a liberdade de escolha de algumas


mulheres, especialmente aquelas que pertencem a grupos vulneráveis.
O segundo tópico teve como objetivo estudar a maneira como se deu política de
esterilização forçada no Peru nos anos 1996 a 2000, assim como a repercussão do caso
até os dias atuais, tendo em vista que ainda não houve responsabilização civil ou penal
dos responsáveis. Estima-se que as esterilizações tenham atingido mais de 200.000
mulheres, que foram submetidas ao procedimento de forma forçada, mediante
suborno ou sem que soubessem que as privaria de uma nova gestação.
Foi possível verificar, também, que a esterilização forçada, a qual causa danos
físicos e psicológicos, é realizada principalmente em mulheres que pertencem a grupos
estigmatizados: pobres, deficientes, que pertencem a minorias étnicas ou nacionais,
que são portadoras de HIV, por exemplo, utilizando-se do argumento de que elas não
deveriam ter filhos por não serem aptas ou pelo aumento da prole não ser uma boa
decisão.
Ao referendar políticas de planejamento familiar, o próprio direito, por meio de
regulamentações ou de políticas públicas, legitima a redução da vida digna das
mulheres ao seu corpo biológico e ao dispositivo da reprodutividade, evidenciando o
seu agir a partir da biopolítica.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 10
MONITORAÇÃO
ELETRÔNICA DE
PESSOAS EM
ÂMBITO PENAL
uma análise da exceção ambulatória em
corpos femininos e feminizados

Mariana Chini / Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth


SUMÁRIO

MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DE PESSOAS EM ÂMBITO PENAL:


uma análise da exceção ambulatória em corpos femininos e feminizados⁸⁰

Mariana Chini⁸¹
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth⁸²

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O artigo objetiva analisar o panorama da exceção a partir de um contexto pós-
moderno, no sentido de compreender a ambulatoriedade de situações excepcionais na
contemporaneidade, levando-se em consideração a aceleração nos modos e meios de
vida das populações. Em um sentido mais estreito, o intento é o de analisar o lócus da

80 Pesquisa realizada junto ao Projeto “Rede de cooperação acadêmica e de pesquisa: Eficiência, efetividade e
economicidade nas políticas de segurança pública com utilização de monitoração eletrônica e integração de bancos
de dados”, vinculado ao Edital nº 16/2020 do Programa de Cooperação Acadêmica em Segurança Pública e
Ciências Forenses (PROCAD/CAPES).
81 Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ. Bolsista pelo Programa de Cooperação Acadêmica em Segurança Pública e Ciências Forenses – PROCAD/
CAPES. Mestra na área de Novos Paradigmas do Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Integrante dos
Projetos de Pesquisa: Eficiência, efetividade e economicidade nas políticas de segurança pública com utilização de
monitoração eletrônica e integração de bancos de dados (UNIJUÍ; UNESC; UFPA; CNJ; Polícia Civil-RS,
financiamento CAPES); Eficiência e economicidade de políticas de monitoração eletrônica de pessoas no âmbito
penal no Brasil (UNIJUÍ; UNESC; UFPA; CNJ; Polícia Civil-RS, financiamento CAPES); Estado de Direito, Sistemas
de Justiça e crítica jurídica: horizontes de uma nova política (UPF-RS). Integrante dos Grupos de Pesquisa: Dimensões
do Poder e Relações Sociais (CNPq); Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq). E-mail: mar.chini@hotmail.com.
82 Pós-Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutor e Mestre em
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Especialista em Direito Penal e Direito Processual
Penal e Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ).
Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos
Humanos – da UNIJUÍ. Professor do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Pesquisador Gaúcho da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Líder do Grupo de Pesquisa Biopolítica e
Direitos Humanos, certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Membro da Rede Brasileira de Pesquisa Jurídica em Direitos Humanos. Coordenador do Projeto PROCAD/CAPES
“Rede de cooperação acadêmica e pesquisa: eficiência, efetividade e economicidade nas políticas de segurança
pública com utilização de serviços de monitoração eletrônica e integração de bancos de dados”. E-mail:
madwermuth@gmail.com.
SUMÁRIO

exceção no contexto da monitoração eletrônica de pessoas em âmbito penal, mais


especificamente no que concerne aos corpos femininos ou feminizados.
A problemática central da pesquisa é, portanto: a monitoração eletrônica de
pessoas em âmbito penal pode ser considerada como lócus de uma exceção
ambulatória? Como se apresenta essa exceção em corpos femininos/feminizados?
Como hipótese preliminar, suscita-se a ideia de que a monitoração eletrônica de
pessoas em âmbito penal pode ser considerada como lócus de uma exceção
ambulatória que atua diferencialmente em corpos femininos/feminizados, recaindo de
modo mais incisivo sobre eles.
No intuito de verificar se a hipótese delineada é ou não válida, utilizar-se-á a
abordagem hipotético-dedutiva, com técnica de procedimento bibliográfica,
dividindo-se o artigo em duas seções: a primeira tratando de uma análise da vida nua
e da exceção em um sentido geral, e a segunda voltada para o exame da exceção
ambulatória em corpos femininos e feminizados monitorados eletronicamente em
âmbito penal.

1. VIDA NUA E EXCEÇÃO


Agamben (2008), ao longo da obra O que resta de Auschwi�, explora não apenas o
tema da vida nua, mas também busca preencher a “lacuna” deixada pelo testemunho,
refletindo, para além desse ponto, sobre a linguagem da vida e os modos como esta é
apresentada, não só no campo de Auschwi�, mas também na profundeza dos
próprios corpos.
Conforme o filósofo italiano, no que diz respeito a Auschwi�, o testemunho vale,
principalmente, “por aquilo que nele falta” (AGAMBEN, 2008, p. 43). Significa que os
que “tocaram o fundo” não têm possibilidade de voltar para dar seu testemunho. No
mesmo sentido, muitos daqueles que gostariam de falar possuem somente uma “não-
linguagem mutilada e obscura”, não obstante, a chamada não-arquivibilidade da
história só pode se dar através da linguagem dos sobreviventes (AGAMBEN, 2008, p.
46-47).
No processo de interrogação da lacuna, Agamben (2008, p. 49-51) alcança a figura
do “der Muselmann”, que é a representação do “intestemunhável”. Os muçulmanos
eram prisioneiros dos campos de concentração que sofriam com a desnutrição e
acabavam por parecer “mortos-vivos”, os quais também se tornavam indiferentes ao
que acontecia ao seu redor, se auto-excluindo das relações com o ambiente. Essa
figura, portanto, serve para representar a vida-nua em seu modo mais puro.
SUMÁRIO

De acordo com Muller (2008, p. 49), os nazistas seriam os criadores do primeiro


Estado “radicalmente biopolítico”, pois “retiraram no âmbito político toda a
humanidade dos detentos antes de enviá-los aos campos de concentração”. Nesse
contexto, os deportados eram “reduzidos legalmente a corpos viventes” e depois se
tornavam “na expressão de Hannah Arendt, como ‘futuros cadáveres’”.
Be�elheim deu-se conta das transformações silenciosas que a chamada “situação
extrema” produzia na personalidade daqueles que eram internados nos campos. Em
tal situação, estaria em jogo “continuar sendo ou não um ser humano”, de forma que
“o muçulmano marcava de algum modo o instável umbral em que o homem passava
a ser não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 54-55).
De acordo com Muller (2008, p. 49), ao legitimar-se a exclusão de pessoas de
qualquer direito, o Estado passa a poder matá-las sem que isso se considere um crime.
A partir da eliminação, conduzida nos campos, das vidas consideradas indignas de
serem vividas, “a biopolítica que tem início aí transformou-se em tanatopolítica, quer
seja, política da morte, e o campo de concentração tornou-se seu paradigma
contemporâneo”.
Primo Levi, na mesma senda, verifica o início da ética em Auschwi�
“precisamente no ponto em que o muçulmano, a ‘testemunha integral’, havia
eliminado para sempre qualquer possibilidade de distinguir entre o homem e o não-
homem” (AGAMBEN, 2008, p 55).
O muçulmano é um ser indefinido em que “não só a humanidade e a não-
humanidade, mas também a vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a
medicina e a política, a vida e a morte transitam entre si sem solução de continuidade”.
Nesse sentido, “o seu ‘terceiro reino’ é a cifra perfeita do campo, do não-lugar onde
todas as barreiras disciplinares acabam ruindo, todas as margens transbordam”
(AGAMBEN, 2008, p. 56).

O paradigma da “situação extrema” ou da “situação-limite” foi


frequentemente invocado no nosso tempo tanto pelos filósofos
quanto pelos teólogos. Desempenha função semelhante àquela
que, segundo alguns juristas, corresponde ao estado de exceção.
Assim como o estado de exceção permite fundar e definir a
validez do ordenamento jurídico normal, também é possível, à
luz da situação extrema – que no fundo é uma espécie da exceção
– julgar e decidir sobre a situação normal (AGAMBEN, 2008, p.
56).

Antes de se implantar um estado de exceção deve haver um estado de


normalidade ou de regras; por isso, é interessante compreender a ideia inicial de
SUMÁRIO

contrato para, assim, poder compreender a exceção, visto que as teorias contratualistas
fundamentam os ideais burgueses presentes na modernidade e influenciam o direito
ocidental moderno e a instituição do constitucionalismo.
Conforme Pinto Neto (2010, p. 143), o constitucionalismo, quando busca
fundamentar o poder soberano, se baseia teoricamente no contrato social, de forma
que “a confiança em um pano de fundo formal baseado no consentimento livre de
indivíduos em posição de igualdade substitui o antigo fundamento teológico do poder
soberano”.
De acordo com Foucault (1979, p. 17), a criação de um pacto social não é
necessariamente um modo de proteger os cidadãos, mas uma forma de encerrar a
violência em um sistema de regras dominado por apenas alguns indivíduos em
detrimento dos demais.

Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a


guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba
por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis
da paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o
sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da
dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente
repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação
tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil
calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu
resultado e propriamente falando sua perversão [...] A
humanidade não progride lentamente, de combate em combate,
até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam
para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em
um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em
dominação (FOUCAULT, 1979, p. 17).

Em suma, a problemática do contrato social enquanto um mito que legitima a


dominação biopolítica abre a discussão para o que Agamben (2004, p. 11) denomina
como estado de exceção, o qual representa “a forma legal daquilo que não pode ter
forma legal”, de modo a ser um patamar que não é “nem exterior nem interior ao
ordenamento jurídico” (AGAMBEN, 2004, p. 39).
Pinto Neto (2010, p. 142-143) entende que “o estado de exceção não é ‘exceção’,
mas a regra sobre a qual o estado de direito se ergue como uma espécie de mito que
encobre as relações de poder reais que existem”. Assim, existe uma indiscernibilidade
entre regra e exceção, dado que enquanto se busca definir a exceção como algo alheio
SUMÁRIO

ao direito, em verdade se está tentando ocultar o fato de que é o próprio direito quem
a cria.
Conforme Agamben (2008, p. 57-58),

Auschwi� é exatamente o lugar em que o estado de exceção


coincide, de maneira perfeita, com a regra, e a situação extrema
converte-se no próprio paradigma do cotidiano. Mas é
precisamente esta paradoxal tendência que se transforma no seu
contrário, tornando interessante a situação-limite. Enquanto o
estado de exceção e a situação normal, conforme acontece em
geral, são mantidas separados no espaço e no tempo, nesse caso,
mesmo fundando-se reciprocamente em segredo, continuam
opacos. Mas quando passam a mostrar abertamente a
convivência entre si, conforme ocorre hoje de maneira cada vez
mais frequente, iluminam-se uma à outra, por assim dizer, a
partir do interior. Isso implica, contudo, que a situação extrema já
não pode servir de critério de distinção, como acontece em
Be�elheim, mas que a sua lição é antes de mais a da imanência
absoluta, a de ser “tudo em tudo”.

Arendt (1989, p. 300), ao tratar da migração pós Primeira Guerra Mundial,


assevera que uma vez que os migrantes estivessem fora do país de origem, “não
podiam ser assimilados em parte alguma [...] permaneciam sem lar; quando deixavam
o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos,
perdiam todos os direitos”. No mesmo sentido, no contexto contemporâneo,
Wermuth (2015, p. 118) refere que, em nome de um suposto “combate ao terrorismo”,
se legitimam determinadas violências em formato de exceção, a qual acaba se
aplicando com maior intensidade e frequência sobre as vidas nuas ou “não
qualificadas politicamente”.
Ao tratar da questão da “abstrata nudez de ser unicamente humano”, Arendt
(1989, p. 331-332) assevera que o conceito de dignidade humana aparece quando são
proclamados os “Direitos do Homem”, enquanto “independentes da história e dos
privilégios concedidos pela história a certas camadas da sociedade”. Esse é o ponto em
que os seres humanos se alienam da natureza e passam a dominá-la e, nessa situação,
“na qual a ‘humanidade’ assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à
história”, o chamado “direito de ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de
pertencer à humanidade”, passa a caber à própria humanidade.
Nesse momento, surge o paradoxo da perda dos direitos humanos, que diz
respeito ao fato de que essa perda coincide com “o instante em que a pessoa se torna
um ser humano em geral”, estando “sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma
SUMÁRIO

opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique”, sentido no qual a
pessoa não representa “nada além da sua individualidade absoluta e singular, que,
privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu
significado” (ARENDT, 1989, p. 335-336), o que significa dizer: o ser humano enquanto
“apenas” humano.
As considerações feitas em relação aos conceitos de vida nua e de exceção são de
grande relevância para introduzir o cerne da pesquisa que se delineia, no sentido de
que é importante compreender o significado de tais categorias em seu contexto de
maior abordagem até então – qual seja, o da modernidade –, para, em seguida,
delinear-se a temática a partir de uma perspectiva pós-moderna, focalizando na
situação ambulatória da exceção no que diz respeito aos corpos femininos e
feminizados submetidos à tecnologia de monitoração eletrônica em âmbito penal, o
que será mais bem destacado na seção seguinte.

2. EXCEÇÃO AMBULATÓRIA EM CORPOS FEMININOS/FEMINIZADOS


Seguindo-se a linha do versado até o momento, verifica-se que o estado de
exceção pode ser abordado desde o paradigma moderno, como também desde o
paradigma contemporâneo (ou pós/super/alter-moderno). Como expoentes destes
paradigmas, utiliza-se no presente artigo a abordagem agambeniana (no primeiro
contexto) e a abordagem de Hardt e Negri (no segundo contexto).
De acordo com Agamben (2004, p. 31), no que se refere à extensão global, o estado
de exceção já teria atingido seu limite máximo, de forma que o sentido de
normatividade do direito “pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por
uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito
internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente,
pretende, no entanto, ainda aplicar o direito”.
No paradigma do Império, por sua vez, o Estado de exceção, e suas tecnologias de
polícia, constituem o núcleo e o elemento central de um “novo direito”, o qual possui
caráter supranacional e é definido “através dos ilimitados espaços globais, até as
profundezas do mundo biopolítico, e confrontando-se com uma imprevisível
temporalidade” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 45).
Como refere Bordin (2004, p. 50-51), o direito internacional westfaliano dos
Estados soberanos desaparece e o mundo passa a ser governado por uma única
estrutura de poder: o Império. Isso ocorreria a partir de um sistema político que é
“descentralizado e desterritorializado”, sentido no qual o Império “se considera
sempre em um estado de exceção permanente e justifica suas intervenções militares
SUMÁRIO

em vista da ‘manutenção da paz’ (isto é, da lex mercatoria)” (BORDIN, 2004, p. 53-54).


Primo (2018, p. 126) traça um paralelo entre Agamben e Negri, dizendo que, para
o primeiro, a “guerra ao terror” – que se teria iniciado após os atentados de 11 de
setembro de 2001 – marca um ponto em que o estado de exceção passa a ser tido como
paradigma de governo dominante na política contemporânea, embasando-se na
justificativa de existência de uma guerra civil mundial. Assim, a partir de uma
definição do biopoder baseada na exceção soberana e ligada a uma espécie de
indistinção entre “o que é política e o que é direito, bem como através da inclusão
exclusiva da vida nua na ordem jurídica, Agamben parece indicar o estado de exceção
como a história da prática política no século XX, ora afirmada como paradigma nos
primeiros anos do novo milênio”.
Desde outro ponto, Primo assevera que, para Negri, não é por a questão ter sido
articulada neste momento que o 11 de setembro tenha sido o fato que mudou tudo.
Nesse contexto, os atentados apenas teriam explicitado algo que já vinha se
constituindo, de modo a acelerar a expressão de poder vinda com as ideias de
comando e repressão, esclarecendo-se que se estaria em meio a uma “guerra”.
Em tal situação, as intervenções passariam a prefigurar o Estado de exceção “a
partir de baixo”, sem fronteiras, armadas com meios de comunicação e voltadas para
a chamada “produção simbólica do Inimigo” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 55). Nesse
sentido, a intervenção contínua, “ao mesmo tempo moral e militar, é realmente a
forma lógica do exercício da força, que deriva de um paradigma de legitimação
baseado num Estado de exceção permanente e de ação policial” (HARDT; NEGRI,
2001, p. 57).
É difícil compreender de que modo o direito moderno dos Estados-nação atua em
meio a uma realidade pós-moderna imperial. Todavia, isso ocorre porque a lei
supranacional se transforma e penetra nos Estados-nação, reconfigurando sua lei
interna. Assim, a lei supranacional vem a superdeterminar a lei nacional (HARDT;
NEGRI, 2001, p. 35).
Perceber esse movimento virtual da soberania é chave para compreender a
possibilidade de um estado de exceção ambulatório, pois, se a própria soberania deixa
de ser fixa, não será justamente a exceção o que irá criar raízes determinadas. A
questão principal, porém, é compreender se a excepcionalidade pode ser reconhecida
em um lócus que não seja, necessariamente, territorial, mas sim, corpóreo. Nesse
ponto, as considerações iniciais acerca da vida nua servem como base para entender a
figura dos monitorados eletronicamente em âmbito penal.
SUMÁRIO

Compreende-se que a tornozeleira eletrônica é um dispositivo que interliga


controle biopolítico e tecnologias de vigilância sobre os corpos. Ponto importante,
porém, é que este dispositivo apresenta consequências distintas para diferentes tipos
de corpos, no sentido de que, aos que estão em situação de vulnerabilidades (seja de
gênero, raça, classe, ou intersecção entre estas), a medida alcança maior estigmatização
e intolerância.
De acordo com Carvalho (2016, p. 116), a identidade social dos monitorados é,
geralmente, marcada pelo desvio, sentido em que, “além dos atributos pessoais que
caracterizam sua origem social e que são usualmente associados a uma série de
estereótipos que marginalizam, existe a dificuldade de realização de todo o processo
de tentativa de ressocialização”. Muito disso ocorre porque “a tornozeleira é um
símbolo do cárcere e retoma o corpo como eixo da ação penal. E como símbolo ligado
ao cárcere, o porte do equipamento imputa ao monitorado um estigma”
(CARVALHO, 2016, p. 138-139).
Tal estigma é mais evidente em pessoas em condições de precariedade, que,
conforme Butler (2018, p. 40-41), consiste em uma “distribuição diferencial da condição
precária”, em que as pessoas são expostas de modos diferentes a condições de
pobreza, violência, fome, dentre outras vulnerabilidades.
Analisando a precariedade a partir de Antonio Negri, Paolo Virno e Franco
Berardi, Villar (2016, p. 130, tradução nossa) compreende que as vidas precárias são
lançadas ao abandono, a uma “zona de indeterminação, de indistinção em que
qualquer vida, mesmo aquelas sem status jurídico, está imersa na produção
biopolítica. O lugar (des)habitado por vidas precárias; uma vulnerabilidade que nos é
imposta como condição existencial”⁸³.
O poder que é exercido pela estigmatização atinge os indivíduos monitorados.
No entanto, isso não ocorre de modo igualitário, sendo que os corpos femininos/
feminizados sofrem duplamente com tal estigma por conta das atribuições patriarcais
que são impostas a eles, mesmo antes do emprego da monitoração.
Além disso, questões de raça e classe atravessam essa já complexa situação dos
corpos femininos/feminizados. De acordo com o Movimento Negro Unificado,
surgido em 1978, “classe e raça são variáveis sociais que devem ser tratadas
conjuntamente em qualquer proposta de sociedade em que esteja em jogo a eliminação
das desigualdades sociais, particularmente em sociedades multirraciais como a
brasileira” (CARNEIRO, 1993, p. 39).

83 “una zona de indeterminación, de indistinción en la que cualquier vida, incluso aquellas carentes de estatuto
jurídico, se halla inmersa en la producción biopolítica. El lugar (des)habitado por las vidas precarias; una
vulnerabilidad que se nos impone como condición existencial”.
SUMÁRIO

Como apontado por Gonçalves e Danckwardt (2017, p. 141-142), a população


carcerária feminina tem aumentado no Brasil em uma conjuntura na qual o sistema
penal seleciona prioritariamente as mulheres “que mais sofrem os danos de uma
política que converte grande parte da questão social em questão criminal, uma vez que
elas são recrutadas de classes populares, ostentando perfis de exclusão e de alta
vulnerabilidade social” (GONÇALVES; DANCKWARDT, 2017, p. 141-142).
Na mesma perspectiva, Carvalho (2016, p, 116) sublinha o fato de que a
identidade social dos monitorados é, geralmente, marcada pelo desvio, em um sentido
no qual “além dos atributos pessoais que caracterizam sua origem social e que são
usualmente associados a uma série de estereótipos que marginalizam, existe a
dificuldade de realização de todo o processo de tentativa de ressocialização”. E esse
processo é ainda mais complexo para corpos femininos/feminizados que sofrem
diferentes tipos de vulnerabilidade.

Dentre todos os corpos, é o corpo feminino ou feminizado aquele


que, segundo Rita Segato (2014), se adapta mais efetivamente a
esta função enunciativa do biopoder, porque é, e sempre tem
sido, imbuído de significado territorial e reprodutivo. O corpo
das mulheres constitui o espectro que carrega os signos de
pertencimento, dando azo a uma espécie de crueldade funcional
e pedagógica que transmite uma mensagem sacrificial de
domínio soberano disciplinar e biopolítico, pois se destina àquele
corpo, mas também à gestão da espécie que o domínio da
reprodutividade representa (NIELSSON, 2020, p. 890).

Essa centralidade do corpo feminino ou feminizado para a gestão biopolítica é


evidenciada no próprio encarceramento feminino, que “compõe o processo de
reprimir, encerrar e repreender as mulheres tanto no espaço público quanto no
privado”. Trata-se de um cenário no qual, de acordo com Lemgruber, há uma dupla
estigmatização da mulher presa: enquanto “transgressora, tanto da ordem social
quanto de seu papel materno e familiar; numa sociedade que é fruto de ideologia
machista e patriarcal” (CARVALHO, 2016, p. 37).
De acordo com Campello (2019, p. 193), “O corpo feminino sob monitoramento
traz com ele as especificidades e implicações relacionadas ao que se espera de uma
mulher na sociedade brasileira”. Exemplo disso pode ser percebido pelo relato trazido
por Carvalho acerca de uma monitorada gestante no dia em que foi ao hospital dar à
luz (2016, p. 115, grifo da autora):

“Quando entrei no centro cirúrgico e fui trocar de roupa, uma


enfermeira me disse assim: ‘Você foi uma menina levada ou ainda é?’ Eu
SUMÁRIO

disse que fui. E ela me perguntou o que tinha feito para estar usando
aquilo. Eu disse que tinha sido homicídio. Tinha matado uma pessoa. Ela
parou o que estava fazendo e me olhou meio assim, meio com medo. Aí eu
falei, uma não. Duas pessoas! Ela disse que não acreditava que uma moça
bonita tinha feito essas coisas – ela sorri meio constrangida – e eu disse
que não fiz isso não. Foi por tráfico, Senhora, que fiquei presa. E durante
os dias que precisei ficar no hospital repeti essa história por pelo menos
umas três vezes. Eu e a minha filha fomos bem tratadas por todos e em
momento algum me senti mal por estar usando a tornozeleira”. [...] A tia
olha para Eva e diz, “nem deu tempo de se sentir mal com a
tornozeleira. A neném era gulosa só queria peito e você estava com toda
sua atenção para ela”. A mãe me olha e diz, “eu que me senti mal pela
Eva estar usando a tornozeleira e ficar exposta a tudo isso. As pessoas me
olhavam como se eu fosse a culpada dela estar naquela situação. Em
momento algum eles olharam para o pai dela com o mesmo olhar”.

Este relato serve perfeitamente para demonstrar de que modo a exceção ganha
contornos ambulatoriais no contexto da monitoração eletrônica em esfera penal,
acompanhando a monitorada inclusive no lócus do parto da própria filha. Além disso,
o exemplo explicita a intensificação da gestão biopolítica sobre os corpos femininos/
feminizados, considerando-se que tanto a monitorada quanto sua mãe foram alvos de
escrutínio sobre suas vidas, ao passo que o pai da monitorada não sofreu o mesmo tipo
de inspeção crítica.
Com base nestas considerações, compreende-se que a monitoração eletrônica de
pessoas em âmbito penal pode ser considerada como lócus de uma exceção
ambulatória que atua diferencialmente em corpos femininos/feminizados, recaindo
sobre eles de modo mais incisivo do que sobre aqueles sujeitos privilegiados pelo
contexto patriarcal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa em voga analisou, ainda que brevemente, o panorama da exceção
tanto no contexto moderno quanto no contexto pós-moderno, verificando-se que
existe uma ambulatoriedade em situações excepcionais da contemporaneidade,
buscando examinar o lócus da exceção no contexto da monitoração eletrônica de
corpos femininos/feminizados em âmbito penal.
Ao visar responder a problemática central sobre a monitoração eletrônica de
pessoas em âmbito penal ser, ou não, lócus de uma exceção ambulatória, bem como o
questionamento acoplado que diz respeito ao modo como se apresenta a exceção em
corpos femininos/feminizados, aventou-se a hipótese de que essa monitoração pode
SUMÁRIO

ser considerada como lócus de uma exceção ambulatória que atua diferencialmente
em corpos femininos/feminizados, recaindo de modo mais incisivo sobre estes.
A partir de uma análise da vida nua e da exceção em um sentido geral e do exame
da exceção ambulatória em corpos femininos e feminizados monitorados
eletronicamente em âmbito penal, considerou-se que a hipótese aventada resta,
portanto, confirmada.

REFERÊNCIAS
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AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwi�: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução:
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

BORDIN, Luigi. Império e multidões no pensamento filosófico-político de Antonio Negri. Filosofia


Unisinos, vol. 5, n. 9, p. 45-61, Jul/Dez 2004.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Tradução Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CAMPELLO, Ricardo Urquizas. Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o monitoramento


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CARNEIRO, Sueli. Mulher Negra. Cadernos Geledés, n. IV, 1993.

CARVALHO, Maria Luiza Lacerda. Histórias de vida, prisão e estigma: o uso da tornozeleira eletrônica
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GONÇALVES, V. C.; DANCKWARDT, C. O monitoramento eletrônico de mulheres na Comarca de Porto


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HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record,
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NIELSSON, Joice Graciele. Corpo Reprodutivo e Biopolítica: a hystera homo sacer. Revista Direito &
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PINTO NETO, Moysés. A Matriz Oculta do Direito Moderno: crítica do constitucionalismo


contemporâneo. Cadernos de Ética e Filosofia Política, USP, vol. 17, n. 2, pp. 131-152, 2010.
SUMÁRIO

PRIMO, Guilherme Brito de. Bioviolência e gestão dos corpos: um estudo em Giorgio Agamben e Antonio
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VILLAR, Antonio Gómez. El abandono: el lugar (des) habitado por las vidas precarias. Athenea Digital,
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WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A produção da vida nua no estado de guerra global. Revista da
Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, vol. 60, n. 1, p. 117-136, 2015.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 11
A VACINAÇÃO DAS
CRIANÇAS NO BRASIL
diálogos necessários com base na
vulnerabilidade e na proteção integral

Daniela Silva Fontoura de Barcellos


SUMÁRIO

A VACINAÇÃO DAS CRIANÇAS NO BRASIL:


diálogos necessários com base na vulnerabilidade
e na proteção integral

Daniela Silva Fontoura de Barcellos⁸⁴

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho analisa a vacinação das crianças e adolescentes no Brasil,
tendo como pressuposto a aplicação dos princípios da vulnerabilidade e da proteção
integral. Este tema ganhou especial relevância no contexto da pandemia mundial do
coronavírus⁸⁵, em que se observou uma notável reação da ciência com o
desenvolvimento de vacinas. No entanto, estas vacinas, por terem sido colocadas no
mercado rapidamente, foram questionadas quanto a possíveis efeitos colaterais e, até
mesmo, quanto a sua eficácia⁸⁶.
Antes mesmo da pandemia mundial do vírus do Covid-19, todavia, já estava em
pauta o debate sobre a queda do percentual de vacinação das crianças no Brasil. Uma
das principais razões atribuída a esta prática foram os movimentos antivacina, que
atuam espalhando boatos sobre a vacinação ser ineficaz, insegura e prejudicial à saúde.
Esta informação falsa se estendeu para as redes sociais e grupos de mensagens e gerou
como efeito o reaparecimento de doenças infecciosas já consideradas erradicadas⁸⁷.
84 Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora de direito civil da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora adjunta do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRJ.
E-mail: barcellosdanielasf@gmail.com.
85 A Organização Mundial da Saúde decretou estado de pandemia em relação ao coronavírus em 11 de março de 2020.
86 Revista Isto É. “Bolsonaro sobre vacina da Pfizer: ‘Se você virar um jacaré, é problema seu’”. Publicado em
18/12/2020, atualizado em 19/12/2020. Disponível em: <h�ps://istoe.com.br/bolsonaro-sobre-vacina-de-pfizer-se-
voce-virar-um-jacare-e-problema-de-voce/>. Acesso em: 15 maio 2022.
87 No Brasil, já são 971 casos em nove estados: Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba,
Pernambuco, São Paulo, Santa Catarina e Roraima. Disponível em: <h�ps://www.padrao.com.br/br/p/426/por-
que-doene-231-as-controladas-este-227-o-ressurgindo-no-se-233-culo-21.aspx>. Acesso em: 4 maio 2022.
SUMÁRIO

O tema da vacinação aplicada a crianças e adolescentes ganha complexidade pelo


fato de que estes grupos “biologicamente, ainda não alcançaram a sua maturidade física e
psicológica” (DIAS. 2016, p. 780). Sendo assim, a proteção jurídica especial da criança e
do adolescente tem como fundamento a condição de pessoas em desenvolvimento
(art. 69, I, da Lei 8.069/1990). Como consequência disto, entre outros, destaca-se o fato
de que as crianças e adolescentes não podem exercer pessoalmente os atos da vida
civil, necessitando ser representados ou assistidos por seus pais ou responsáveis.
Assim, o processo de tomada de decisão a respeito da vacinação torna-se faticamente
mais complexo quando envolve menores de idade, tanto por sua saúde ser mais frágil
em função do processo de desenvolvimento físico e biológico, como por ser uma
escolha que não é feita pelo próprio interessado, mas por terceiros no exercício da
autoridade parental.
Por todo o exposto, na análise da vacinação infantil é fundamental sempre ter em
conta a vulnerabilidade existencial dos sujeitos e o mandamento legal da proteção
integral, estipulado em todo o ordenamento jurídico brasileiro, a começar pela
Constituição Federal. De acordo com o artigo 227 do referido diploma, a proteção de
crianças e adolescentes é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com
absoluta prioridade a efetivação dos seus direitos fundamentais, incluindo a saúde.
Como ressaltam Teixeira e Nery (2021, p. 132), a partir desta premissa o texto
constitucional tem como escopo a tutela integral da pessoa, colocando em evidência os
princípios da dignidade, da solidariedade e da igualdade.
Para tratar do tema, em primeiro lugar, aborda-se o marco legal da vacinação
infantil à luz dos princípios da proteção integral e da vulnerabilidade existencial das
crianças e adolescentes. Em um segundo momento, analisa-se o estado das coisas
especificamente em relação à vacinação contra o Covid-19 e a dimensão coletiva do
tema. Por fim, destaca-se o processo de tomada de decisão dos pais sobre a vacinação
infantil e suas consequências.

1. O MARCO LEGAL DA VACINAÇÃO INFANTIL E SUA COMPREENSÃO A


PARTIR DOS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA
VULNERABILIDADE
A partir do parâmetro da dignidade da pessoa humana e do princípio da
proteção integral, estabelecido constitucionalmente, crianças e adolescentes deixam de
ser considerados objetos de tutela, passando a ostentar o status de sujeitos de direitos⁸⁸.
Sendo assim, a atuação da família, da sociedade e do Estado deverá ser pautada pela

88 CURY, Munir; PAULA, Paulo Afonso Garrido de; MARÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da criança e do
adolescente anotado. 3ª ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 21.
SUMÁRIO

satisfação integral desses direitos. Este entendimento encontra amparo no plano


internacional, na Convenção sobre Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário⁸⁹.
Além da convenção, que trata especificamente das crianças, destacam-se também
outros diplomas internacionais que, embora não tratem exclusivamente dos infantes,
reconhecem importantes direitos aos mesmos. É o caso, por exemplo, do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos⁹⁰ que garante às crianças o direito a não
discriminação, ao registro e à nacionalidade⁹¹. Já a Convenção Interamericana de
Direitos Humanos⁹² atribui especificamente às crianças o direito às medidas de
proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e
do Estado⁹³.
Destaca-se, ainda, a Doutrina das Nações Unidas para a Proteção Integral da
Criança e do Adolescente, que representa um avanço em termos de proteção aos
direitos fundamentais, posto que calcada na Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), tendo ainda como referência documentos internacionais já citados,
além das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da
Infância e da Juventude⁹⁴ e das Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da
delinquência juvenil⁹⁵. Quanto a seu conteúdo, a doutrina possui três premissas, todas
elas adotadas no direito brasileiro. A primeira é que as crianças e adolescentes deixam
de ser objetos passivos para se tornarem sujeitos de direitos; a segunda é que devem
ser destinatários dos direitos e políticas públicas com absoluta prioridade; e a terceira
é que se deve respeitar sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Como se pode inferir, o conteúdo dos tratados e doutrinas internacionais dos
quais o Brasil é signatário refletem-se tanto na Constituição Federal, como no Estatuto
da Criança e do Adolescente, que enunciam o princípio da proteção integral da
criança. Para completar o conjunto normativo nacional, em 2016, foi aprovada a Lei
13.257, sobre políticas públicas para a primeira infância (Marco Legal da Primeira
Infância), com regras específicas para crianças no período de vida entre zero e seis
anos de idade. A aprovação desta lei representa a consolidação da doutrina da

89 Internalizada pelo Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990.


90 Internalizada através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.
91 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Art. 24: 1. Toda criança terá direito, sem discriminação alguma
por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas
de proteção que a sua condição de menor requerer por parte de sua família, da sociedade e do Estado. 2. Toda
criança deverá ser registrada imediatamente após seu nascimento e deverá receber um nome. 3. Toda criança terá o
direito de adquirir uma nacionalidade.
92 Internalizado através do Decreto 592, de 6 de julho de 1992.
93 Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 19: Direitos da Criança: Toda criança tem direito às medidas de
proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado.
94 Regras de Beijing, Resolução 40/33 de 29 de novembro de 1985.
95 Diretrizes de Riad, de 1º de março de 1988.
SUMÁRIO

proteção integral de crianças e adolescentes, prevista no plano internacional e adotada


no ordenamento jurídico pátrio.
O Marco Legal da Primeira Infância tem como objetivo estabelecer sintonia entre
a legislação e o significado do período da existência humana que vai do início da
gestação até os seis anos de idade, pretendendo dar atenção à relevância dos primeiros
anos na formação humana, na constituição do sujeito e na construção das estruturas
afetivas, sociais e cognitivas que dão sustentação para toda a vida. A referida lei
reconhece a importância de atividades nos primeiros anos de vida da criança de modo
a favorecer o seu desenvolvimento, porque nessa etapa da vida acontecem
importantes aprendizados sociais, biológicos, emocionais e afetivos que terão
impactos futuros para a criança. De acordo com o entendimento do Núcleo Ciência
pela Infância, crianças com desenvolvimento integral saudável durante os primeiros
anos de vida “têm maior facilidade de se adaptarem a diferentes ambientes e de
adquirirem novos conhecimentos, contribuindo para que posteriormente obtenham
um bom desempenho escolar, alcancem realização pessoal, vocacional, econômica e se
tornem cidadãos responsáveis" (NCPI, s.d.).
O arcabouço legal de amparo à criança e ao adolescente evidencia sua inclusão
entre os grupos vulneráveis protegidos pela legislação civil brasileira. Em geral, a
origem formal desta proteção, diferentemente do afirmado pela doutrina do direito
civil constitucional⁹⁶, funda-se em documentos internacionais, especialmente tratados
de direitos humanos, internalizados no Brasil via decreto, com dispositivos expressos
em nossa Carta Constitucional, e regulados com lei especial, notadamente um
Estatuto. No caso da criança e do adolescente, esta proteção se concretiza
juridicamente no plano interno pela assinatura de tratados internacionais,
recepcionados via decreto (v.g. Decreto 592/92 e Decreto 99.710/1990), com principais
lógicas enunciadas na Constituição e regulamentados em detalhe no Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) e no Marco Legal da Primeira Infância (Lei
13.257/2016).
Do ponto de vista material, os grupos vulneráveis são protegidos em razão de
alguma fragilidade específica. No caso das crianças e adolescentes, a vulnerabilidade
advém da questão biológica, pois se encontram em processo de desenvolvimento
físico e psicológico (DIAS. 2016, p. 780), sendo reconhecidos pela legislação como

96 A doutrina do direito civil constitucional afirma que todas as iniciativas de proteção dos vulneráveis baseiam-se na
lógica Constitucional e no princípio da dignidade da pessoa humana, que configura a lógica do ordenamento
nacional (vide por exemplo, KONDER: 2014, 101. Afora esse detalhe, a autora concorda com o estudo competente e
cuidadoso realizado pelo autor no que tange à vulnerabilidade.). Embora isso não deixe de ser verdade, o fato é que
se trata de um fenômeno mais amplo, seguindo tendências, padrões internacionais objetivados em Convenções
Internacionais de direitos humanos, em sua maioria anteriores à nossa Constituição, cujos mandamentos foram
incorporados objetivamente na Constituição e na legislação infraconstitucional.
SUMÁRIO

pessoas em desenvolvimento (ECA, art. 69, I). Para a proteção deste grupo vulnerável,
o eixo norteador é sempre o atendimento ao princípio de sua proteção integral.
Ainda sobre a vulnerabilidade, cabe observar que esta dimensão humana
ingressou no direito como um dos critérios para intervenções jurídicas equilibradoras,
com o objetivo de atuar nas relações sociais para promover não apenas a igualdade
formal, mas também uma igualdade substancial (KONDER: 2014, p. 101-102). No
Brasil, a vulnerabilidade ficou conhecida primeiramente por seus usos no Direito do
Trabalho e, depois, por sua ampla aplicação no Direito do Consumidor, mediante o
art. 4º, I, deste diploma legal que enuncia o “reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo”. Nestes dois contextos, o conceito de
vulnerabilidade vincula-se a situações de inferioridade contratual seja no contrato de
trabalho, seja no contrato de consumo.
Já a vulnerabilidade, em sua dimensão existencial, conforme enuncia Carlos
Konder, “é uma situação jurídica subjetiva em que se encontra o titular sob maior
suscetibilidade de ser lesionado em sua esfera extrapatrimonial” (KONDER: 2015, p,
105). Sendo assim, impõe-se a aplicação de normas jurídicas de tutela diferenciada
para a satisfação da dignidade da pessoa humana, não em detrimento da tutela das
situações patrimoniais, mas, como defende Pietro Perlingieri, “com uma tutela
qualitativamente diversa” (PERLINGIERI, 2002, p. 154).
Portanto, a vulnerabilidade existencial da criança se associa à sua personalidade
ainda em desenvolvimento, conforme reconhecido na Constituição Federal (art. 227),
juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990). E esta
vulnerabilidade existencial demanda tanto o amparo material, para a sua
sobrevivência, como o amparo afetivo, para a construção da personalidade de forma
sadia e sociável. E tal amparo em suas duas dimensões traduz-se no cuidado dos pais
que conduzirão o filho do estado de vulnerabilidade absoluta, ao nascer, ao processo
de aquisição de autonomia, na maioridade.
Destaca Tepedino (2004, p, 35): os pais devem levar em conta que o status de filho
atrai duas espécies de situações jurídicas existenciais, as decorrentes da identidade
genética e as decorrentes do exercício da autoridade parental. A dignidade humana se
projeta na identidade biológica e nos processos educacionais do filho, enquanto a
guarda indica um estado de cuidado e vigilância. A questão da vacinação infantil é
complexa, dado que abrange os dois aspectos da situação existencial da criança e do
adolescente. A saúde diz respeito à dignidade da pessoa humana; enquanto tomada
de decisão sobre a vacinação é fruto do exercício da autoridade parental. Além disso,
a decisão individualmente tomada repercute socialmente, como questão saúde
pública⁹⁷.
SUMÁRIO

O arcabouço jurídico que tem como premissas a dignidade da pessoa humana, o


princípio da proteção integral e vulnerabilidade da criança, ainda traz de forma
explícita mandamento legal da vacinação infantil, inserido no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que enuncia em seu o art. 14: “é obrigatória a vacinação das
crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Especificamente em
relação ao Covid-19, a Lei nº 13.979/2020 estabeleceu a vacinação como uma das
medidas obrigatórias para o enfrentamento da pandemia.
Em relação especificamente à vacinação contra a Covid-19, em 16 de dezembro de
2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou a vacinação de
crianças de 5 a 11 anos, atestando a efetividade e segurança dos imunizantes
Cominarty (Pfizer) contra a Covid-19, anteriormente já aplicado em adolescentes e
adultos, bem como aprovou em 20/01/2022 o uso pediátrico da CoronaVac (Instituto
Butantã) para o público entre 6 e 17 anos.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA),
órgão colegiado de caráter deliberativo e controlador das ações de promoção, proteção
e defesa dos direitos das crianças e adolescentes⁹⁸, recomenda a implementação de
medidas para garantia da vacinação infantil contra a COVID-19 no Brasil. Esta
recomendação considerou a orientação anterior do mesmo órgão para “que seja
observado e garantido, tão cedo quanto possível, o direito à vacinação das crianças e adolescentes,
em conformidade com as orientações da ANVISA, Ministério da Saúde e demais órgãos técnicos
responsáveis”, publicada em 22/09/2021, em face do retorno às aulas presenciais de
crianças e adolescentes, que pode expor esse público a maiores situações de risco de
contaminação pela Covid-19 (CONANDA, 2022).
Portanto, no ano de 2022 a vacina contra o Covid-19 é obrigatória para adultos e
recomendada pelas autoridades sanitárias para crianças e adolescentes. Visto o marco
legal sobre a vacinação infantil no contexto das lógicas jurídicas para sua proteção,
passa-se a dimensionar a vacinação em uma perspectiva mais ampla, encarada como
política pública.

2. VACINAÇÃO INFANTIL: PROTOCOLOS, DADOS E EFICÁCIA


O tema da vacinação infantil, além de sua repercussão individual, possui também
uma dimensão coletiva. Neste contexto, fundado no direito fundamental à saúde (art.
6º, caput, da CF-88), precisa ser considerado como política pública e, como tal, “atingir
níveis adequados de proteção e promoção” (SARLET E FIGUEIREDO, 2021, p. 31)

97 Este aspecto será explorado no capítulo seguinte.


98 O CONANDA está previsto no art. 88 da Lei nº 8.069/90 - ECA, criado pela Lei nº 8.242/91 e regulamentado pelo
Decreto nº 9.579/2018.
SUMÁRIO

para ser eficaz. No caso da vacinação em geral, o índice considerado ideal para
promover a chamada “imunidade de rebanho” ou “herd imunity” é acima de 95%⁹⁹.
No entanto, no ano de 2021, a porcentagem de aplicação das vacinas obrigatórias no
Brasil foi de 60,7%, segundo informações do DATASUS do Ministério da Saúde
(BUTANTAN, 2022).
No que diz respeito à vacinação infantil, o Ministério da Saúde possui um
protocolo consolidado de vacinas obrigatórias para crianças. Para figurar neste rol,
primeiramente, as vacinas passam por um conjunto de estudos científicos atestando
sua eficácia. Em seguida, os estudos devem ser apresentados nas agências reguladoras
e serem por ela aprovados. Vencidas estas etapas, as vacinas precisam ser compradas
e dá-se início à distribuição e aplicação das mesmas.
O protocolo de aplicação de vacinas obrigatórias no Brasil inicia-se ao nascer,
ocasião em que se recomenda a aplicação de duas vacinas: uma contra a tuberculose
grave e outra contra a hepatite B. No primeiro ano de vida, são aplicadas 9 vacinas,
sendo algumas destas aplicadas com doses de reforço ou mesmo em 3 doses
diferentes, totalizando 18 aplicações. Dentre as principais vacinas indicadas para
crianças, além das anteriormente mencionadas, estão as seguintes: contra poliomielite
(protege contra a paralisia infantil), febre amarela, tetra viral (protege contra catapora,
rubéola, caxumba, varicela e sarampo) e meningocócica (protege contra meningite)¹⁰⁰.
Nos últimos 10 anos, a cobertura vacinal brasileira vem caindo vertiginosamente,
o que deixa a população – especialmente o público infantil – mais vulnerável a doenças
que podem deixar sequelas ou causar mortes e que já estavam erradicadas no país,
como é o caso do sarampo e da poliomielite (BUTANTAN: 2021). Esta queda de
cobertura vacinal ocorre, sobretudo, pela disseminação de informações mentirosas
alegando a ineficácia e o perigo das vacinas. O caso de maior repercussão ocorreu em
1998 e refere-se a um artigo científico publicado na revista The Lancet. Nele, o autor
Andrew Wakefield sugeria uma relação entre o autismo e a vacina tríplice viral. Em
seguida, esse trabalho foi contestado, pois se descobriu que o médico havia alterado
dados dos pacientes e que possuía contato com advogados que queriam processar
fabricantes de vacinas (BUTANTAN, 2021). Em razão disso, o médico teve seu registro
cancelado em 2010 (ROSENVALD, 2018, p. 20).
De acordo com Soraia A�ie Calil Jorge, diretora do Laboratório de Biotecnologia
Viral do Instituto Butantan, a vacinação é a forma mais efetiva para a eliminação de

99 Índice recomendado pela Organização Mundial de Saúde, para atingir imunidade da população. (ROSENVALD,
2018, p 19).
100 O protocolo integral de vacinação infantil está disponível no Ministério da Saúde no seguinte endereço: <Calendário
Nacional de Vacinação - 2022.pdf (saude.es.gov.br>. Acesso em: 20 maio 2022.
SUMÁRIO

uma doença viral e as consequências dos baixos índices de imunização não podem ser
ignoradas. De acordo com a cientista, no caso de uma pandemia, a redução da
vacinação torna impossível controlar a disseminação do vírus e, portanto, eliminar ou
diminuir os índices de pessoas doentes. A longo prazo, pode ocorrer a reemergência
de um vírus, além de impedir o controle da doença (BUTANTAN, 2021)
Dada a importância da vacinação tanto para a população em geral, como para as
crianças e adolescentes em especial, notadamente em uma pandemia, analisam-se a
situação atual relativa às providências em relação à vacinação contra o Covid-19, de
acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, órgão
responsável pelo licenciamento de vacinas. Segundo a agência, o Brasil aprovou, até
maio de 2022, o uso das seguintes vacinas para uso adulto: Comirnaty (da Pfizer),
Coronavac (Butantan), Janssen Vaccine (Janssen-Cilag) e Oxford (Fiocruz e
Astrazeneca)¹⁰¹.
No caso das crianças, foi necessária a realização de estudos em separado, por
haver variação na eficácia da resposta vacinal nas distintas faixas etárias, sendo as
diferenças mais gritantes nos menores de 2 anos. Sendo assim, as vacinas aprovadas
para o uso infantil, até maio de 2022, são: Coronavac (Butantan) para crianças e
adolescentes entre 7 e 17 anos e a Comirnaty, uso pediátrico (da Pfizer) para crianças
de 5 a 11 anos¹⁰².
Atualmente, já existem estudos internacionais referentes à vacinação contra o
coronavírus com todas as faixas etárias. Em relação aos menores de 5 anos, tem-se
notícia de que a mesma já foi aplicada para a faixa etária a partir de 3 anos em alguns
países. Em Xangai, por exemplo, em que a CoronaVac já é aplicada para crianças entre
3 e 5 anos, um estudo comprovou que 75% dos casos graves ocorreram em crianças
não vacinadas¹⁰³. No Chile, onde a vacinação entre 3 e 5 anos também foi aprovada,
um estudo com 500 mil crianças vacinadas durante o surto da variante ômicron
mostrou que a vacina do Butantan e da Sinovac tem eficácia de 69% contra internação
em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 64,6% contra hospitalização pela Covid-19
(Crescer: 2022).
Levando em conta os estudos científicos desenvolvidos até a presente data, a
vacinação contra Covid-19 foi considerada pelo Ministério da Saúde como a

101 ANVISA: Disponível em: <h�ps://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/paf/coronavirus/vacinas>. Acesso em:4 maio


2022.
102 ANVISA: Disponível em: <h�ps://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/anvisa-alerta-para-
diferencas-entre-as-vacinas-para-criancas>. Acesso em: 4 maio 2022.
103 O estudo, feito por infectologistas do Hospital Pediátrico da Universidade Fudan, foi publicado na plataforma
MedRvix. Disponível em: <Coronavac protegeu crianças a partir de 3 anos em surto de ômicron, em Xangai,
mostra estudo - Revista Crescer | Saúde (globo.com)> Acesso em 20 maio 2022.
SUMÁRIO

ferramenta mais eficaz para rápida redução do número de casos graves e do número
de mortes decorrentes da doença – fato comprovado pela rápida redução do número
de casos e do número de mortes decorrentes da doença, acompanhando o avanço da
vacinação no Brasil e no mundo.
Pelos dados do Ministério da Saúde, até maio de 2022, foram devidamente
vacinadas 23.835.136 crianças e adolescentes com primeira dose, e 11.772.052 com a
segunda dose, desde janeiro de 2022, data em que se iniciou no Brasil a aplicação da
vacinação contra Covid-19. Esta aplicação se faz fundamental, ainda que o número de
crianças contaminadas seja menor, comparado ao da população adulta, pois não
afasta os casos de crianças que adquiriram a forma grave da doença e de morte.
Além de proteger a saúde das crianças, a vacinação em massa ajuda a evitar a
circulação do vírus, pois quanto maior o número de pessoas vacinadas, mais se tem
barreiras contra a circulação viral. É, também, uma proteção indireta para familiares,
colegas de aula e demais pessoas do convívio das crianças e adolescentes,
especialmente aqueles que sejam considerados integrantes dos grupos de risco.

3. A TOMADA DE DECISÃO DA VACINAÇÃO INFANTIL E SUAS


CONSEQUÊNCIAS
Diante do marco legal relativo à proteção das crianças e adolescentes, do
princípio da proteção integral e dos dados científicos sobre a vacinação, analisa-se,
neste capítulo, a tomada de decisão sobre a vacinação infantil e suas consequências.
Esta outra dimensão da análise atinge a esfera da personalidade, ligada à dignidade
da pessoa humana. Portanto, os pais ou responsáveis, ao exercerem a autoridade
parental, devem encará-la “como um múnus privado que transcende o interesse
pessoal, a mera vontade de mandar ou sujeitar” (MENEZES: 2018, p. 19). Inegável é
que, quando tratamos de crianças e adolescentes, as questões de saúde tornam-se mais
importantes e mais complexas do que em adultos, pois o fato de não serem capazes de
exercer pessoalmente os atos de disposição sobre sua saúde, implica na consideração
da vulnerabilidade e no mandamento da proteção integral por parte seus
responsáveis.
De regra, as decisões dos adultos competentes são respeitadas no direito médico,
por mais equivocadas que sejam, ou que tenham como consequência a morte do
paciente (ROSENVALD, 2018, p. 20). No entanto, para a realização do princípio da
proteção integral, é necessário chegar a um ponto de equilíbrio entre a autoridade
parental e os interesses da criança, considerados de forma individual e coletiva. Isso
porque, no caso da recusa por parte dos pais em vacinar um número significativo de
crianças, isso atinge o efeito de imunidade do grupo, tornando-se um problema de
SUMÁRIO

saúde pública, vindo a afetar a coletividade e, potencialmente, aumentando ainda


mais o risco de infecção daquela criança cujo pai recusou a vaciná-la.
Do ponto de vista individual, a tomada de decisão sobre a vacinação passa pelo
estado atual ou permanente da saúde do indivíduo. Portanto, ainda que a regra geral
seja vacinação obrigatória, há de se comportar exceções, que levam em conta o risco de
uma pessoa morrer ou ter sua condição piorada, tendo em vista a interação da vacina
com seu organismo, dada sua situação de saúde. Pessoas com imunodeficiência
possuem contra indicação em relação a vacinas e o dever dos pais de informar isto às
autoridades é suficiente para evitar a necessidade da vacina.
Um segundo elemento presente na tomada de decisão em relação à vacinação
infantil é o desacordo razoável entre os pais (CIOATTO, 2021). Caso apenas um pai ou
responsável se recusa a vacinar, entende-se que este está indo contra as obrigações
legais. Assim, basta que o outro genitor, favorável à vacina, acompanhe a criança até
uma unidade de saúde para que a vacinação ocorra. O mesmo entendimento se repete
em outros países, tal como na Alemanha, onde um tribunal decidiu que o pai tinha o
direito de vacinar o filho, apesar das objeções da mãe (ROSENVALD, 2018, p. 20).
Uma terceira questão em relação à vacinação infantil é se a recusa a vacinar as
crianças e adolescentes pode dar ensejo à perda da guarda das mesmas pelos pais ou
responsáveis. O fato de os pais não vacinarem a criança, a princípio, não tem o condão
de fazê-los perder a guarda da criança. Isso porque o afastamento da criança de sua
família é uma medida jurídica absolutamente excepcional. Além disso, em razão do
avanço lento da vacinação das crianças pela escassez de doses, qualquer exigência que
limite, impeça ou segregue crianças não vacinadas do ambiente familiar ou escolar é
ilegal, uma vez que não será possível, ao menos neste primeiro momento, identificar
as reais causas, seja pela recusa dos responsáveis, seja pela irregularidade (ou falta) do
fornecimento das doses de vacina.
Uma outra questão diz respeito à proibição de uma criança ou adolescente não
vacinado de frequentar as aulas presenciais. Em relação a isto, é importante destacar
que, em alguns estados¹⁰⁴, há leis que determinam a apresentação da carteira de
vacinação dos alunos no ato de suas matrículas ou rematrículas nas escolas das redes
de ensino público e privado. No entanto, os estabelecimentos de ensino não podem
recusar a matrícula ou frequência das crianças e adolescentes às aulas caso não estejam
com o esquema vacinal completo, incluindo a vacinação contra a Covid-19. Todavia, a
direção da escola deve solicitar aos pais e/ou responsáveis que realizem a imunização
dos filhos, dando um prazo de 60 dias para que apresentem a carteira de vacinação
atualizada. Caso o pedido não seja atendido no prazo, dada a omissão dos
104 Vg. Lei Estadual nº 15.409/2019 do Estado do Rio Grande do Sul.
SUMÁRIO

responsáveis, a Defensoria Pública (2022) recomenda que o Conselho Tutelar seja


acionado para as devidas providências e a reparação de direitos, sem quaisquer
prejuízos à efetivação da matrícula. Com isso, a não apresentação da carteira de
vacinação ou a apresentação do documento desatualizado, dá ensejo à notificação dos
pais no ato da matrícula ou rematrícula para procederem à entrega ou à sua devida
regularização.
Em resumo, na maioria absoluta dos casos, excetuando a contraindicação vacinal
em razão da saúde, a vacinação das crianças e adolescentes é obrigatória e sua não
observância constitui violação do direito à saúde e do princípio da proteção integral.
No entanto, a não vacinação das crianças, a princípio, não tem como condão afastá-las
do convívio dos pais ou de frequentar a escola, pois isto seria aumentar ainda mais sua
vulnerabilidade. Assim, a menos que, ao lado da desproteção à saúde, comprovem-se
fatos graves a ensejar a perda da guarda ou suspensão do poder familiar. Não sendo
esse o caso, deverão ser aplicadas outras medidas, a exemplo da advertência,
encaminhamento de cursos e programas de orientação. E, mantida a inércia dos pais,
o serviço de saúde deverá deslocar-se até a sua residência ou outro local em que se
encontrar, com vistas à orientação dos pais e possibilitando a aplicação da vacina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vacinação infantil é um tema multidisciplinar que, no âmbito jurídico, coloca
em evidência a natureza da proteção da criança e do adolescente, considerados
vulneráveis existencialmente em razão de estarem em processo de desenvolvimento
físico e psicológico. Por isso, a proteção da dignidade da pessoa humana potencializa-
se ao ser direcionada para este grupo reconhecido através de tratados e diretrizes
internacionais que reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos de direito, a
serem atendidos como prioridade absoluta, com fulcro no princípio da proteção
integral, tendo em vista sua condição de vulnerabilidade em razão de sua condição de
pessoa em desenvolvimento.
Especificamente em relação ao tema da vacinação infantil, o Estatuto da Criança
e do Adolescente dispõe explicitamente em seu art. 14 a obrigatoriedade da vacinação
das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
Sendo assim, do ponto de vista jurídico e das recomendações científicas,
corroboradas por estudos e protocolos médicos nacionais e internacionais, existe uma
indicação clara para a vacinação infantil, inclusive contra o Covid-19. No entanto, o
número de crianças e adolescentes vacinados no Brasil contra o coronavírus ainda não
atingiu os números esperados. O baixo número de vacinação infantil, em um país que
possui tradição em campanhas de vacinação nacionais com boa adesão, é
SUMÁRIO

preocupante. Com certeza uma das causas que vem impactando nesta decisão é a
circulação de informações falsas sobre a desnecessidade, a ineficácia e, até mesmo, do
perigo das vacinas.
Para reverter este fenômeno, deve-se trabalhar com uma situação conjunta que
atribua aos pais, à sociedade e ao Estado, sua parcela, assim como determina o art. 227
da Constituição Federal, ao enunciar a proteção às crianças e adolescentes com
absoluta prioridade e de forma integral. Em toda situação que envolver uma criança
ou um adolescente, deve-se primar pela solução que garanta, em maior extensão, os
direitos que lhe são assegurados em reconhecimento a sua vulnerabilidade existencial.
Não se trata, portanto, de seguir apenas as convicções pessoais do responsável pela
criança, a qual se constitui em sujeito de direitos, devendo sempre toda decisão a seu
respeito ser pautada no seu melhor interesse.
Os não vacinados estão agindo contra o consenso social e científico e sua
circulação em ambientes coletivos prejudica os demais, colaborando para a
contaminação por coronavírus e, no limite, podendo gerar a morte de alguém. Assim,
a não vacinação prejudica não apenas a criança, mas também a comunidade em que
ela vive. Portanto, a imunização contra doenças em geral e contra a Covid-19 em
especial mediante o uso de vacinas, é uma política pública que salva milhões de vidas.
Sua aplicação é segura e eficaz, inclusive para as crianças e adolescentes, merecedores
de especial proteção.

REFERÊNCIAS
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SUMÁRIO

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 12
O ESVAZIAMENTO DO
DEBATE POLÍTICO DAS
QUESTÕES PERTINENTES À
REDISTRIBUIÇÃO E O
AGRAVAMENTO DOS
EFEITOS DA PANDEMIA NA
POPULAÇÃO NEGRA
Denise Bi�encourt
SUMÁRIO

O ESVAZIAMENTO DO DEBATE POLÍTICO DAS QUESTÕES


PERTINENTES À REDISTRIBUIÇÃO E O AGRAVAMENTO DOS
EFEITOS DA PANDEMIA NA POPULAÇÃO NEGRA

Denise Bi�encourt¹⁰⁵

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os problemas causados pela pandemia do COVID 19 não se resumem,
infelizmente, aos óbitos decorrentes de complicações pela contaminação pelo vírus.
Muitos outros problemas foram revelados e se tornaram mais evidentes devido ao
isolamento das famílias e ao distanciamento social (como a violência doméstica,
aumento no quadro de depressão etc.). Também evidenciou-se as dificuldades das
camadas menos favorecidas de fazer isolamento, seja pela necessidade de trabalharem
de forma presencial, já que nem todas as atividades podem ser realizadas
remotamente, seja pelo alto índice de ocupação das moradias habitadas pela
população mais carente e a falta de condições sanitárias adequadas aos cuidados de
higiene que o combate e prevenção à contaminação demandam, seja pelo uso de
transporte público. Enfim, muitos outros exemplos poderiam ser trazidos, porém estes
já são suficientes para demonstrar a complexidade das injustiças que foram aguçadas
pela situação de saúde pública que o mundo, notadamente o Brasil, atravessou, e ainda
atravessa.
A situação do negro no Brasil é bastante delicada, pois a forma degradante como
foram trazidos para o país, bem como a maneira como foram tratados até o final do
século XIX, perduram até os dias de hoje. Mesmo após a Lei Áurea (Lei n.º 3.353 de
1888), que aboliu a escravidão no Brasil, a situação da população negra pouco mudou.
O fato de terem adquirido a liberdade não lhes garantiu melhores condições de
trabalho, melhores moradias e uma vida mais digna. Os negros livres permaneceram

105 Doutora, Mestre e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa
Cruz do Sul (UNISC).
SUMÁRIO

tendo o mesmo tratamento dos escravos, além da discriminação que sofrem até os dias
atuais.
Diante de tal contexto, cabe indagar se a pandemia do COVID 19 atingiu mais
gravemente a população negra devido à carência de políticas de redistribuição de
renda que norteia a política neoliberal de reconhecimento.
Para construir a resposta à pergunta, recorrer-se-á, primeiramente, à Teoria
política de Nancy Fraser. Em um segundo momento do artigo, apresentar-se-ão dados
referentes aos efeitos da pandemia do COVID 19 na população negra, visando
confirmar ou refutar a hipótese de que esta foi mais gravemente atingida.
O método utilizado será o hipotético dedutivo, já que a hipótese será testada
frente à coleta de dados. A pesquisa será bibliográfica, em fontes indiretas.

1. A TEORIA DE NANCY FRASER COMO RECURSO PARA COMPREENSÃO


DO MOMENTO ATUAL
As políticas públicas, dentre tantas outras complexidades, passam pelo debate
acerca da justiça. Por isso, cabe aqui apresentar a teoria de justiça de Fraser a fim de
construir a resposta à problemática que norteia o presente artigo.
A filósofa e cientista política Nancy Fraser trabalha com uma teoria da justiça
calcada na crítica a três elementos, que no pós-Guerra Fria passaram a ser analisados
separadamente: a distribuição¹⁰⁶, o reconhecimento¹⁰⁷ e a representação¹⁰⁸. Alerta que
o modelo neoliberal propositadamente suprimiu a centralidade da redistribuição na
teoria da justiça, dando prevalência à noção de reconhecimento. É exatamente neste
aspecto que a autora irá construir suas críticas a fim de demonstrar o esvaziamento do
debate político ocasionado por esta postura e a necessária reconciliação entre os dois
primeiros elementos. Por conta deste esvaziamento teórico, a política não deu
respostas adequadas às questões da pobreza, desemprego, desindustrialização, fato
que deixou uma brecha para a ascensão de políticos com discursos atentatórios aos
direitos fundamentais (FRASER, 2019).
Segundo Fraser (2019), o conceito de justiça precisa ser revisitado, pois as bases
compartilhadas que pressupõem um contexto de justiça normal estão abaladas. Em
época de justiça normal, há um certo consenso gramatical em relação ao “O que”¹⁰⁹,

106 Distribuição paritária dos recursos materiais.


107 Igual respeito e possiblidades participativas aos valores das diversas culturas.
108 Participação nos espaços formais de representação política.
109 Diz respeito aos objetos, bens que podem ser incluídos em uma teoria da justiça.
SUMÁRIO

“Quem”¹¹⁰ e “Como”¹¹¹. Estas bases, hoje instáveis, refletem a desestabilização da


antiga estrutura gramatical da justiça normal e requerem a troca de lente, pois olhar o
anormal com a lente usada em períodos normais não levará a respostas satisfatórias
aos novos desafios da justiça anormal. As anormalidades atuais gravitam em torno
destas três bases (‘o que”, “quem” e “como”) que impactam sobre os três elementos
centrais na teoria da justiça (redistribuição, reconhecimento e representação). A partir
do reenquadramento deles, a filosofa americana propõe um novo paradigma
compatível com a teoria da justiça anormal (FRASER, 2008).
Devido ao pouco espaço, o presente trabalho delimitar-se-á no “O que”¹¹² para
tecer suas críticas à atual política brasileira que aderiu ao contexto neoliberal. Mesmo
recentemente o Brasil tendo sido governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
tradicionalmente de esquerda, não enfrentou como se esperava as questões de
redistribuição de renda. Desta forma, a centralidade na pauta política, a partir da
Constituição de 1988, centrou-se em temas como a igualdade racial, de gênero,
homossexualidade, meio ambiente. Pautas inquestionavelmente de extrema
relevância; porém, para realmente serem concretizadas, requerem o enfrentamento
através de uma política de redistribuição e distribuição de renda para realmente
prover os sujeitos de recursos econômicos indispensáveis em um país capitalista como
o Brasil. Neste aspecto (“O que?”), há um dissenso sobre o que deve ser objeto de
investigação da teoria da justiça.
Alguns acreditam que a Teoria da justiça deve-se ocupar das injustiças
distributivas, visto que a devida distribuição de recursos econômicos teria a força de
promover justiça. Ou seja, uma política tributária capaz de redistribuir renda, salários
e direitos sociais compatíveis com os padrões da vida digna promoveriam, por si só,
justiça.
De outro lado estão os defensores da teoria da justiça alicerçada no
reconhecimento. Aqui, muito mais importante que a distribuição justa de recursos
econômicos e a luta de classes, está a necessidade de buscar a inclusão dos grupos
minoritários e excluídos, tais como mulheres, índios, negros, pardos, LGBTQI+¹¹³.

110 Refere-se aos sujeitos que devem ser alcançados pela teoria da justiça.
111 Refere-se aos fóruns legítimos para debater e definir o “o que” e o “quem” da teoria da justiça. Neste aspecto, a
autora faz importantes apontamentos em relação à globalização, que não admite mais o modelo westfaliano.
112 “O que constitui uma distribuição justa de riquezas e recursos? O que conta como reconhecimento recíproco ou
respeito igual? O que caracteriza representação política justa e uma voz igual?”
113 Já antecipando as críticas de Fraser, a centralidade exclusiva do reconhecimento no debate político que questões
pertinentes à distribuição saíram de cena e o fosso entre miseráveis e ricos aumentou, a desindustrialização e
precarização das relações de trabalho empobreceu parte da classe média, gerando muita insatisfação e a
deturpação das causas deste cenário. Aqui, por culpa da política neoliberal progressista, governos autoritários e
contra os direitos fundamentais identificaram chances reais de ascenderem, e ascenderam.
SUMÁRIO

Diversamente das duas posições acima, há os defensores da teoria da justiça


calcada no debate acerca da representação para quem a teoria da justiça deve deter-se
em discutir mecanismos de representação política, tais como direito ao voto, cotas nos
sistemas proporcionais etc.
No “O que” da teoria da justiça anormal há um desequilíbrio entre os três
elementos (redistribuição, reconhecimento e representação). A autora (FRASER, 2008)
diagnosticou que as lutas por justiça no modelo neoliberal estão voltadas para o
reconhecimento dos grupos e raças com valores que não se encaixam dentro do
modelo hegemônico. Surge, então, como nunca visto, a luta dos grupos tais como
LGBT+, indígenas, mulheres e todos aqueles cujas identidades foram e são
desvalorizadas e excluídas do debate político. Além disto, a nova política defende com
voracidade a questão ambiental, abrindo espaço importante para grupos defensores
de tal bandeira. De forma alguma a autora reduz a relevância destas temáticas, porém
critica a visão unidimensional porque despreza o fato de que o reconhecimento destes
grupos decorre, em grande medida, de desigualdades materiais extremas e da
exclusão da representatividade em espaços políticos formais, daí porque a
necessidade de reconciliar as três dimensões (reconhecimento, redistribuição e
representatividade). Por isso, o dualismo social entre o mundo simbólico e o mundo
material esvaziam o debate político, levando a uma visão cega aos pontos de contato
de influência mútua entre as três dimensões. Economia e mundo simbólico
relacionam-se e influenciam mutuamente e uma observação estanque deles é
insuficiente diante da complexidade que os elementos possuem e refletem um sobre o
outro (VANALI, 2014).
O neoliberalismo pós Guerra Fria ditou, intencionalmente, a centralidade política
da luta pelo reconhecimento, deixando o mercado livre para traçar seus próprios
caminhos. Assim, a política ficaria responsável pela inclusão social dos excluídos
através de leis que valorizam a igualdade, políticas de quotas, combate à violência de
gênero, reconhecimento de orientações sexuais distintas, mas sem tocar na interface
econômica da realidade social. Ou seja, para o neoliberalismo, o princípio da
igualdade pouco avançou no viés material, permanecendo muito mais atrelado à
igualdade formal acrescentando-se um novo ingrediente: a meritocracia (FRASER,
2021).
Estas, por sua vez, jogam a responsabilidade pelo sucesso econômico ao
indivíduo criando uma cultura do “self-made man”. A fragilidade desta percepção
repousa no fato de desprezar a responsabilidade do Estado e da política em criar um
ambiente de iguais oportunidades, munindo os indivíduos de armas iguais para a luta
pela conquista de bem materiais e acesso a recursos privados e públicos através de
políticas públicas de distribuição e redistribuição de renda.
SUMÁRIO

Diante da mitigação, no debate político influenciado pelo neoliberalismo da


distribuição, as crises econômicas intensificaram especialmente após a crise de 2008
nos Estados Unidos e na Europa, surgindo na sociedade um profundo sentimento de
descontentamento e descrença com a polícia atual, já que ela não deu conta de manter
o padrão de vida de determinados grupos sociais. Aqui repousa um dos fatos mais
centrais na ascensão de governos políticos descompromissados com direitos
fundamentais (reconhecimento), alegando que estes foram a causa do
empobrecimento da sociedade.
Usando argumentos simplistas, a extrema direito lança mão do discurso
reacionário ao neoliberalismo progressista, alegando que foi o reconhecimento de
direitos dos imigrantes, mulheres, negros etc., que gerou a escassez dos recursos
existentes, uma vez que foram divididos em mais partes, razão pela qual restou menos
àqueles que antes ocupavam posições privilegiadas. A consequência foi: o
deslocamento do debate da questão de classes para a questão da raça¹¹⁴, o
enfraquecimento de partidos da esquerda e o esvaziamento da política, já que agora a
agenda ocupada tradicionalmente pela esquerda deixou de ser central. Com isso, há
um deslocamento da esquerda para o centro, no qual as bandeiras desta ideologia
muito se aproximam daquelas levantadas pelos partidos de direita. Assim, acredita-se
que tenha havido o esvaziamento da política.
Por isso, a crise atual não é apenas uma crise política, mas, mais que isso, ela
possui uma interface econômica deixada de lado. Explicando melhor, na origem desta
crise política está o distanciamento da própria política, do debate sobre questões
econômicas e seus impactos em esferas que não são diretamente econômicas, mas que
nem por isso sofrem sua influência. Ou seja, questões como exclusão social, problemas
ambientais, sofrem os efeitos das escolhas econômicas e por isso devem ser
observadas conjuntamente (FRASER, 2021).
Diante da insuficiência da política progressista de reconhecimento¹¹⁵, eclode o
neoliberalismo reacionário “etnonacional, anti-imigrante e pró-cristão, se não

114 Utiliza-se termo ‘raça” no sentido das características físicas e culturais de grupos humanos e não no sentido biológico
de classificação de seres vivos.
115 A autora denomina esse fenômeno político neoliberal de política progressista de reconhecimento e de certa forma é
responsável pelo surgimento de caricaturas como Trump na medida em que a política, preocupada apenas com o
reconhecimento, deixou de regulamentar o mercado, permitiu a flexibilização das relações de trabalho, deixou a luta
de classe de lado, preocupando-se apenas com a luta entre “raças”. Posicionando-se assim, a política não deu conta
de resolver os problemas de destruição de renda e é a dimensão distributiva que produz os insumos econômicos
capazes de corrigir distorções que obrigam camadas sociais a permanecerem no obscurantismo. Então, a luta pelo
reconhecimento sem os devidos recursos econômicos é uma luta que avança em passos pequenos em termos de
inclusão social, ao passo que o mercado desregulamentado caminha a passos largos para aumentar o fosso que
separa os mais ricos dos mais pobres (FRASER, 2021).
SUMÁRIO

abertamente racista, patriarcal e homofóbico” (FRASER, 2021, p. 45). Tal política


reacionária, como consequência do afastamento neoliberal do debate sobre
redistribuição, é alheio às questões de tolerância e reconhecimento.
Importante destacar que, tanto a política progressista de reconhecimento como a
política reacionária, não foram e não são capazes de mexer nas grandes fortunas
através de uma política tributária justa, bem como ficam distantes das relações de
trabalho, permitindo sua flexibilização quase que absoluta. Ao fim e ao cabo, a única
diferença que as duas vertentes assumem diz respeito a reconhecimento: o
neoliberalismo reacionário culpa a política de reconhecimento pela diminuição dos
recursos da classe trabalhadora e acredita que mantendo excluídos os que lutam pelo
reconhecimento, o acesso aos bens materiais se normalizará (ou seja, não propõem
medidas distributivas) e a política progressista chamando para si a luta dos grupos
minoritárias, mas sem tocar no mercado (aqui também carecem ações efetivas
redistributivas).
Em certa medida, a teoria de Fraser vai ao encontro de Mouffe (1999) que defende
o retorno de uma política de esquerda e de direita, centrada na luta de classes. Para
Mouffe, a utopia da conciliação de interesses divergentes, antagônicos, foi
responsável pelo fim da política, na medida em que é o conflito entre o mercado e a
classe trabalhadora que alimenta o debate político. A superação deste dualismo levou
à vitória do mercado e ao esvaziamento do debate político. Concatenando ambas
teorias (de Mouffe e de Fraser), percebe-se que a inclusão da luta pelo reconhecimento
na política neoliberal serviu para preencher o esvaziamento do debate político
quando este abriu mão da regulamentação do mercado, atendendo aos ditames do
mercado. Outro ponto de contato entre as duas filósofas repousa no fato da
necessidade de a esquerda reassumir o tema que sempre lhe foi central: a luta de
classes¹¹⁶.
A política do século XXI relegou a um segundo plano as ideias socialistas de
(re)distribuição de renda como se este problema já tivesse sido superado. Ocorre que,
muito pelo contrário, os dados levam à conclusão de que a distribuição de renda é
cada vez mais desigual e, se não receber o tratamento correto, o fosso só tende a
aumentar e as injustiças a se reproduzirem. Para dar sustentação a este diagnóstico,
Dowbor (2017) destaca que, mesmo diante da disponibilidade de recursos
tecnológicos, a fome ainda perdura no globo e “800 milhões de pessoas passam fome,
não por culpa delas, mas por culpa de um sistema de alocação de recursos sobre o
qual elas não têm nenhuma influência.” Ao contrário de se ter solucionado o

116“O que possibilitou essa confusão foi a ausência de uma esquerda verdadeira” (FRASER, 2019, p. 83).
SUMÁRIO

problema da desigualdade, ela é crescente no planeta¹¹⁷, razão pela qual o debate


político ainda não pode deixá-la de lado.
Feitas as considerações acerca da teoria de Fraser como um ponto de partida para
compreensão de como o Brasil chegou à situação atual de extrema desigualdade, a
seguir apresentar-se-ão informações que confirmam a gravidade do abandono, pela
política, da pauta da redistribuição e o fomento à manutenção da exclusão de grupos
discriminados, em especial os negros.

2. OS EFEITOS DA PANDEMIA NA POPULAÇÃO NEGRA: o agravamento dos


problemas de redistribuição
Então, em um mundo de crescente desigualdade social, é indispensável revisar a
relação entre reconhecimento e (re)distribuição, na medida em que a exclusão de
grupos da agenda política, necessariamente, passa por questões econômicas.
Segundo o IBGE, no Brasil, entre as pessoas que tem renda inferior a US$ 5,50/dia,
15,4% são brancas e 32,9% são pretas ou pardas. Percebe-se que mais que o dobro de
pessoas com esta renda se concentra entre aquelas que não são brancas. Esse dado
ainda é mais alarmante quando a renda é abaixo de US$ 1,90/dia. Aqui, 3,6% são
brancos e 8,8% são negros e pardos, ou seja, mais do que o dobro daqueles que tem
acesso à remuneração tão baixa são negros e pardos. Assim, percebe-se que quanto
menor é a renda, mais distantes da pobreza os brancos estão¹¹⁸.
Em sede de participação política, o relatório do IBGE¹¹⁹ também diz muito. A
representação de deputados federais eleitos em 2018 também possui uma cor
predominante: 75,6% são brancos e 24,4% são pretos e pardos.
A pandemia do COVID 19 teve efeitos mais perversos sobre a população carente
e, diretamente, sobre a população negra, já que esta ocupa majoritariamente a base da
pirâmide social como acima se apresentou.
Apenas para ficar em uma dimensão dos males decorrentes da pandemia, a
morte ocasionada por ela também tem cor. Mais uma vez os negros foram os mais
atingidos. Em todas as idades, homens pretos e pardos foram as principais vítimas da
Covid-19 (28,7% das pessoas com identificação de cor ou raça), que morreram mais

117 No plano social, segundo o Banco Mundial, a pobreza diminuiu em cerca de 1 bilhão de pessoas nas últimas
décadas, o que representa um grande avanço, ainda que o critério de 1,90 dólar por dia seja absurdamente baixo.
Deste 1 bilhão, 700 milhões são chineses (DOWBOR, 2017).
118 IBGE Disponível em h�ps://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em:
31/01/2022
119 IBGE Disponível em h�ps://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em:
31/01/2022
SUMÁRIO

que os brancos (28,4%). Por outro lado, ocorreram mais mortes de mulheres brancas
(22,4%) do que pretas e pardas (20,4%). Essa diferença entre homens e mulheres por
cor ou raça se deve à sub-representação, o que também é um problema que prejudica
a compreensão e a reflexão acerca das políticas (re)distributivas¹²⁰.
Os óbitos de pretos e pardos na faixa etária dos 70 anos ou mais é menor que os
números de óbitos dos brancos. Isso em razão da menor esperança de vida dos negros
e, como é sabido, a maior mortalidade pelo COVID ocorreu entre os idosos. Então, a
população branca tem expectativa de vida maior porque goza de melhores condições
econômicas que lhes permite acesso à saúde, alimentação adequada, moradia, lazer
etc. Esta foi mais atingida pelos óbitos, mas não por conta do lugar que ocupa na
pirâmide social, mas porque ocupa lugares mais privilegiados que lhes permite
superar a faixa etária dos 70 anos. Ao contrário da população negra que tem
dificuldades de atingir idades mais avançadas.
Em todas as faixas de idade de zero a 69 anos, pessoas pretas e pardas morreram
mais do que as brancas por Covid-19. Na faixa dos 70 ou mais, isso se inverte: a
população branca teve o percentual de mortes mais elevado que pretos ou pardos. Os
dados revelam que os óbitos de pardos e pretos estão relacionados ao “estilo de vida
individual e às condições de vida de grupos sociais. Pretos e pardos têm menor acesso
a serviços de saúde e, portanto, menores condições de prevenção, diagnóstico e
tratamento de doenças”¹²¹.
O Instituto Polis realizou uma pesquisa¹²² importante sobre os efeitos da
pandemia sobre as populações negra (preta e parda) e indígena, identificando que esta
tem 39% mais chances de morrer por Covid-19 do que a população branca. Conclui
que “as taxas de mortalidade ajustadas mostram que homens negros têm maior risco
de morte (52%) do que homens brancos, assim como mulheres negras apresentam
maior mortalidade (56%) do que mulheres brancas.”¹²³ Percebe-se que o Brasil não
ficou imune ao neoliberalismo progressista e suas intencionalidades. Também não
deixou de vivenciar a política neoliberal reacionária com as eleições de 2018 de Jair
Bolsonaro.

120 Disponível em IBGE h�ps://censos.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/32414- homens-


pretos-e-pardos-morreram-mais-de-covid-do-que-brancos-em-2020#:~:text=Desse%20total%2C%20foram
%20identificadas%20101,pandemia%2C%20do%20que%20homens%20brancos. Acesso em 31/01/2022
121 Disponível em IBGE h�ps://censos.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/32414- homens-
pretos-e-pardos-morreram-mais-de-covid-do-que-brancos-
em-2020#:~:text=Desse%20total%2C%20foram%20identificadas%20101,pandemia%2C%20do%20que%20homens%2
0brancos. Acesso em 31/01/2022
122 Este estudo restringiu-se à população do município de São Paulo.
123 h�ps://polis.org.br/estudos/territorio-raca-e-vacinacao/
SUMÁRIO

Porém, uma trilha que leve políticas públicas capazes de atender a preceitos de
justiça precisa ser desenhada. Para tanto, recorre-se à teoria de justiça de Fraser, a qual
defende a estratégia para lidar com a crise gramatical acerca do “o que” da teoria da
justiça normal, a retomada da centralidade do reconhecimento e da redistribuição,
reconciliando-as. No caso brasileiro, antes desse passo de combate ao neoliberalismo
progressista, será preciso retomar a política progressista de reconhecimento olhando
para os dados que denunciam as injustiças que excluem do acesso às políticas públicas
de estado os mais pobres (redistribuição) e, mais intensamente, os negros
(reconhecimento).
Adaptando as lições trabalhadas à realidade brasileira, uma abordagem
unidimensional de reconhecimento desvinculada das questões de redistribuição, bem
como de representação, exclui, e não por acaso, os mais pobres e com menos
representatividade política. Porém, mais perversa é a política neoliberal reacionária,
porque exclui os três elementos até então usuais na teoria da justiça: reconhecimento,
redistribuição e representação. Isso leva a um fosso distributivo ainda maior e,
consequentemente, na dificuldade de acesso a bens indispensáveis à vida digna que
foram aclamados na Constituição de 1988 como direitos fundamentais a serem
concretizados através de política de Estado e não apenas de governo, restringindo,
assim, os âmbitos de discricionariedade dos governantes.
No cenário político reacionário brasileiro, os direitos fundamentais de todas as
dimensões estão sofrendo graves ataques e, para salvaguardá-los, um primeiro passo
é a retomada da política progressista de reconhecimento, para, quiçá, em seguida,
revisitar o equilíbrio entre reconhecimento, redistribuição e representação. Segundo a
teoria de Fraser, este é o único caminho possível para corrigir discriminações e
exclusões históricas como ocorre com os negros no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da teoria de justiça de Fraser, verificou-se a necessidade de a política
retomar a pauta econômica para através da (re)distribuição, ao lado do
reconhecimento e da representação, gerar um ambiente de inclusão social com reais
oportunidades. Assim, acredita-se que as distorções históricas e culturais, que colocam
grupos de seres humanos em condições de desvantagem retroalimentando o próprio
sistema de exclusão/inclusão, poderá ser corrigido.
Desta forma, as políticas públicas de Estado, visando a concretização dos diretos
fundamentais, pautar-se-á na revisão das questões pertinentes à (re)distribuição de
renda, bem como pela adesão a um discurso de reconhecimento e tolerância às
SUMÁRIO

diferenças e pela ampliação e institucionalização dos espaços de representação. Pode-


se responsabilizar a falta de uma pauta política realmente comprometida com as
questões da pobreza, da redistribuição de renda e da redução de desigualdade como
uma das responsáveis pelos altos índices de óbito decorrentes da COVID 19 na
população negra.
Faz-se necessário acordos semânticos acerca da justiça que não surgiram em
contexto político reacionário, o qual não acolhe o debate acerca do reconhecimento, tão
pouco da redistribuição. Tais pactos só serão alcançados em espaços públicos com
igualdade de representação, receptivos à diversidade e à tolerância e atentos ao acesso
aos bens materiais necessários à vida digna.

REFERÊNCIAS

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo, São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

FRASER, Nancy. Justiça anormal. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo. v. 108 p. 739 - 768 jan./dez. 2013.

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de Gabriel Landi Fazzio.
São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

FRASER, Nancy. Reenquadrando a Justiça em um mundo globalizado. Lua nova: revista de cultura e
política. n.77, 2009. Acesso: 22 jan.2022. Disponível em:h�ps://www.scielo.br/j/ln/a/
BJjZvbgHXyxwYKHyJbTYCnn/?format=pdf&lang=pt

MOUFFE, Chantal. El retorno de lo politico. Tradução Marcos Aurelio Rodriguez. Paisós, 1999.

IBGE Disponível em h�ps://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso


em 31/01/2022

VANALI, Ana Crhistina. Repercussões contemporâneas da Teoria Crítica: o debate entre Nancy Fraser e
Axel Honneth sobre redistribuição e reconhecimento. Disponível em: h�ps://revistas.ufpr.br/vernaculo/
article/view/36400. Acesso em 02/05/2021
ARTE-FINAL E DIAGRAMAÇÃO:

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