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André Petitat

PRODUÇÃO
DA ESCOLA
PRODUÇÃO
DA SOCIEDADE
Análise sócio-histórica de alguns
momentos decisivos da evolução
escolar no ocidente

Tradução:
EUNICE GRUMAN
Consultoria, supervisão e revisão técnica desta iulic,,lu
TOMAZ TADEU DA SILVA

IJ489p Petitat, André


Produção da escola/produção da s :c idade: análise sócio-históri-
ca de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente /
André Petitat ; trad. Eunice Gruman. -- [ i/rto Alegre : Artes Médicas,
1994.

1. Educação — Sociologia — Históm. I. Título.

CDU 37:301.19(091,) ARTES


rVÉDICAS

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto CRB 10/1023 PORTO ALEGRE / 1994
192 / André 1'clilnl

ao surgimento c à produção e reprodução de novas fraçfles das classe» superiores. Simul-


taneamente, surge uma hierarquia, provavelmente relacionada com n desigualdade no
rccrutiimcntc dos alunos e no prestígio dos cursus moderno •£ clássico. Abaixo desta rede
superior, que se situa no prolongamento do baccalauréat, nascem múltiplas escolas profis-
sionais, técnicas e comerciais. Aparecem então dois níveis: o mais elevado é ocupado

8
pelas Escolas de Artes e Ofícios, dispensando uma formação a um tempo teórica (aulas)
e prática (oficinas). Saindo do curso, seus alunos se empregam como operários qualifica-
dos ou contramestres. Todavia, a qualidade do ensino garante-lhes possibilidades de
mobilidade muito interessantes; muitos passam a ocupar funções de quadros na indústria
ou nas ferrovias, ou abrem a sua própria empresa (cf. DAY, C. R., "The Making of
Mechanical Engineers in France: the Ecole dês Arts et Métiers, 1903-1914", em Frendi
Historical Studies, vol. 10, n" 3, 1978, pp. 451 a 455; SHINN, T, art. cit., pp. 48 e 49). O
recrutamento de alunos para estas escolas ocorre em maior número entre a pequena
burguesia artesanal, comercial e industrial, e entre os empregados. Uma fração crescente,
que chega a 20% no final do século XIX, é oriunda dos meios operários (cf. DAY, C. R:,
Escola e produção/
op. cit., p. 459). No nível mais baixo, encontramos escolas simples para o aprendizado de
um oficio manual ou técnico, em sua maior parte e até os ano* 1880 originárias de
reprodução sócio-cultural
iniciativas particulares (da parte de Irmãos das Escolas Cristãs, sociedades industriais.
Câmaras de Comércio, grandes fábricas...) ou municipais. O relançamento das EPS ocasi-
ona, ao mesmo tempo, a abertura de ateliers para o aprendizado de ofícios, logo coloca-
dos sob o controle do Ministério do Comércio (18892). Em torno de 1914, as Escolas
Práticas de Comércio e Indústria (EPCI), as Escolas Nacionais Profissionais, as Escolas de O presente trabalho procura acentuar a colaboração entre história e socio-
Aprendizado de Offcios da Cidade de Paris e as duas escolas de relojoaria de Besançon logia da educação. A história é uma das melhores fontes críticas da sociologia,
e de Cluses contam com menos de 20 mil alunos no total. Todas elas formam uma elite uma vez que esta trabalha sobre uma base histórica, sobre um momento da
de operários e de empregados onde são recrutados os contramestres, os chefes de escri- evolução da humanidade. Evito postular as etapas passadas e futuras desta
tórios e os quadros inferiores da indústria, do comércio e da administração, (cf. PROST, evolução; minha preocupação não é a de ilustrar uma filosofia da história, ou
A., O Ensino na França de 1800 a 1967, Paris, A. Colin, 1968, pp. 308 a 310). Apesar da de inventar uma nova. Minha intenção é, acima de tudo, crítica: crítica das
deterioração do aprendizado de ofícios, a formação profissional dos operários mais sim-
ples e dos empregados foi a última a receber a atenção, dos poderes públicos. Será preciso teorias sociológicas que pressupõem um esquema de reprodução, que subesti-
esperar a lei Astier (1918) para notar uma melhoria nesta área. A institucionalização do mam ou ao contrário superestimam o papel dos conflitos sociais, que confun-
ensino técnico e científico leva a marca da divisão já constatada ao nível dos estudos dem características gerais e características específicas. Esta crítica não vai culmi-
secundários. nar numa nova teoria, mas somente em certas proposições que pedem
68. DESTUTT DE TRACY, Observações sobre o Aluai Sistema de instrução Pública, Paris, Viúva aprofundamento.
Panckoucke, ano IX.
69. A. Perdiguier, citado por FAURE, A., na Introdução à obra de PERDIGUIER, A, Memórias
de um Companheiro, Paris, Máspero, p. 10.
70. Citados por TRÉNARD, L., op. cit., p. 107. L A ESCOLA PRODUZ E REPRODUZ
71. Citado por FALCUCCI, C., op. cit., p. 205. ;
72. UARD, L., O Ensino Superior na França, op. cit., citado por CITRON, S., art. cit., p. 86. O esquema da reprodução, em suas diversas variantes, é o primeiro obs-
73. WEISZ, G., "O corpo docente do ensino superior e a ideologia da reforma universitária
na França, 1860-1885", na Revista Francesa de Sociologia, vol 58, n" 2, 1977, pp. 230 e 231. táculo para uma colaboração maior entre a história e a sociologia. Este esquema,
74. L. Boltanski descreve de que maneiras os novos conhecimentos científicos da medicina aliás, não convém à análise histórica, pois não é capaz de explicar o seu mo-
serviram para legitimar a intervenção nas práticas populares de puericultura: o sentimento vimento. Não que ele seja falso; pode ser muito bem aplicado em certas situ-
de ser o detentor da verdade se soma às distâncias sociais. Cf. BOLTANSKI, L., A Primeira ações, mas nunca exprime mais do que uma parte ou um aspecto dos fenóme-
EducaçSo e Moral de Classe, Paris, Mouton, 1969, pp. 34 a 47. nos, mantendo os demais na sombra. A história destaca, inúmeras vezes, a
75. UARD, L., op. cit., p. 244, citado por CITRON, S., art. cit., p. 87. participação da escola na produção . da sociedade.
76. Ver edição francesa, pp. 301 a 313. Em Genebra, a cultura escolar moderna que gira em
torno das línguas vivas, das ciências e das técnicas, emerge e se organiza de acordo com Na Idade Média, vimos como ela criou uma medicina de elite que passou
um esquema muito próximo do da França. Desde o princípio, há uma tendência para a a combater os "charlatães"; como aprofundou o fosso existente entre o baixo
bipolarização: um ensino pós-primário paralelo ao aprendizado dos ofícios, e um ensino clero ignorante e o alto clero letrado; como participou ativamente da elaboração
moderno geral que tem o Colégio por referência, mas que nem por isso desemboca nos e da difusão de um novo direito; como transformou o comerciante em um
estudos superiores (classes francesas). Depois, assistimos a uma ascensão, com integração homem capaz de ler e escrever e até mesmo em um homem culto. Sob o Antigo
de um curso completo sem latim, ao lado do ensino clássico. Este acontecimento que Regime, o colégio escolariza e difunde um humanismo que passa a servir de
acarreta a exclusão do Colégio de qualquer sistema de formação que não seja articulado
com base nos estudos superiores — com exceção das divisões pedagógicas que fornecem referência à "gente graúda", que começa a tomar consciência de sua originali-
professores e professoras para o primário — acarreta também a criação de uma instituição dade no sentido negativo, pois já não era povo, classe da qual se distancia, nem
que assume em parte o lugar das classes francesas e que se volta para a preparação dos era nobreza, classe da qual procura tomar parte. No sentido oposto, a escola
alunos para a entrada nas escolas técnicas comerciais e profissionais. elementar de caridade parece limitar-se estritamente a reproduzir a ordem moral
77. Para descrições das escolas alemãs do século XIX, ver CAUVIN, M., A Renovação Pedagó- e política; mas, ao mesmo tempo, contribui para produzir uma das mais p r o f u n -
gica na Alemanha, 1890-1933, Paris, A. Collin, 1970, pp. 60 a 69; RINGER, F. K., Education das transformações culturais, participando do movimento que fez recuar a cul-
and Society in Modern Europe, Bloomington, Indiana University Press, 1979, pp. 32 a 69;
DUMESNIL, G., A Pedagogia na Alemanha do Norte, Paris, Delagrave, 1885, pp. 111 a l"2-
78. RINGER, F. K., op. cit., pp. 70 a 76. 193
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tura popular oral. As primeiras escolas técnicas superiores institucionalizam o mercial e artrsanal. Na América, os maias praticavam uma forma de escritn
encontro do desenvolvimento técnico-científico com um Estado moderno centra- hieroglífíca; por ocasião da conquista espanhola, os pictogramas astecas "orien-
lizado, inaugurando assim a produção de uma categoria social nova. Por seu tavam-se para uma forma de escrita ideográfica comparável aos caracteres chi-
lado, as escolas técnicas elementares representam urna ponte entre os conheci- neses
mentos e ns tccnologias empíricas e a linguagem científica. O que pode parecer Emergência de um Estado central, de cidades e da escrita: estes fenómenos
defesa e reprodução de uma classe artesanal de elite logo assume a forma da estão ligados e não cabe a mim detalhar as suas circunstâncias ou especificar as
produção de uma elite operária. Enfim, os grandes sistemas escolares do Estado relações entre eles.6 No princípio, a escrita parece apanágio de categorias restri-
certamente procuram reproduzir a si próprios e às classes dominantes, mas tas pertencentes à esfera do poder político-religioso. É isto que leva Lévi-Strauss
participam também da produção e da difusão de novos valores, assim como de a dizer que "a função primária da comunicação escrita é facilitar a servidão".7
uma transformação da cultura de dependência do povo, de uma modernização A escrita seria no mínimo um instrumento indispensável para garantir a dura-
compartimentada do secundário, de uma transformação das classes dominantes, ção dos grandes Estados, para produzir e reproduzir a homogeneidade neces-
do desenvolvimento da mobilidade, ainda que de pequena envergadura, etc. sária nas sociedades de Estado divididas em "classes" sociais.' A fragilidade dos
Dentro da realidade mutante e evolutiva, produção e reprodução aparecem ' impérios desprovidos de sistemas de escrita elaborada — na América pré-co-
como dois aspectos inextricavelmente ligados.' Expliquemos melhor: a escola lombiana e na África — parece antes confirmar do que prejudicar esta relação.'1
não faz mais do que produzir as condições de reprodução dos grupos sociais em É necessário vincular escolas e escrita? Estas duas criações são procedentes
posição dominante ou dominada, enquanto que participa da produção e da das mesmas condições? A antiga China e o Egito dos faraós recorriam ao en-
transformação destes mesmos grupos. Para citar um exemplo contemporâneo, a sino não somente para transmitir os códigos da escrita, mas também para pre-
escola participa do surgimento de uma camada social formada por tecnocratas.2 parar os jovens para as funções administrativas, políticas e religiosas necessárias
aos seus costumes. Sem dúvida, o mesmo ocorria entre os maias e em outras
civilizações. Também é certo que existiram escolas em impérios que não conhe-
II. DEFINIÇÃO GERAL DA ESCOLA E DEFINIÇÕES ESPECÍFICAS ciam a escrita, ou que possuíam sistemas de registros muito elementares. Este
era o caso dos inças: astronomia, teologia, medicina, matemática, poesia e música
eram objeto de ensino oral; somente a arte de contar tinha o auxílio de um
A escola é uma instituição educativa especializada, nisto distinguindo-se engenhoso sistema que utilizava cordas com nós.10 A existência de escolas que
da família, dos clãs familiares, dos locais de trabalho, das comunidades de ofí- transmitiam oralmente os conhecimentos e que limitavam seu ensino à
cios, de associações e de grupos de todo tipo, os quais também moldam as memorização pode ser confirmada pelas próprias sociedades que se valiam da
novas gerações e reeducam até mesmo os adultos. O ensino é um ramo da escrita, como as escolas védicas, as escolas orais do Islã e uma parte das escolas
divisão social do trabalho que somente se impõe quando certas condições estão cristãs da Idade Média.
devidamente preenchidas. Não se deve estabelecer laços absolutos de causa e consequência entre
As escolas diferem entre si, assim como as condições que cercam seu escola e escrita. Contudo, de acordo com as informações de que dispomos, estas
surgimento. A distância que separa a escola elementar de monastério e a escola duas "invenções" têm origem em condições similares. Tanto uma quanto outra
politécnica é tão grande quanto é pequeno o denominador comum entre ambas. se impõe em sociedades de Estado urbanizadas e divididas em grandes grupos
O que nos dizem as teorias sociológicas? Encaminham-nos para dois géneros sociais que ultrapassam as relações de parentesco. Aqui, contento-me com esta
fundamentais de explicações. Os funcionalistas relacionam a escola com a dife- proposição, a um tempo vaga e fundamental."
renciação de atividades complementares e com a reprodução do consenso, en- A difusão da escrita e das escolas no Ocidente medieval e moderno ilustra
quanto que os conflitualistas referem-se às oposições de classes e à necessidade as relações entre estes dois fenómenos e a urbanização, as classes sociais e o
de instâncias ideológicas de dominação. Estado. Quatro grandes períodos podem ser distinguidos: 1) escolas cristãs e
Nas sociedades agrárias de pequenas dimensões, que repousam sobre re- sociedade feudal rural; 2) escolas urbanas e corporativas e renascimento urbano;
lações de parentesco densas e complexas, a escrita e a escola não têm razão de 3) princípio da generalização da escrita e nítida diferenciação das culturas esco-
ser: a produção e a reprodução das relações sociais prescindem de instituições lares de acordo com as "classes" sociais; 4) revolução industrial, eliminação da
educativas especializadas, assim como de leis e de tratados escritos, de religiões predominância rural, urbanização e centralização política: generalização da es-
codificadas em textos, etc. Para além do pictograma, a verdadeira escrita — crita e surgimento dos sistemas escolares de Estado. Vejamos um a um estes
aquela que associa sinais a fonemas — surge juntamente com a cidade e com períodos.
o listado, condições que também parecem comandar o nascimento das escolas. As grandes invasões, pouco a pouco, reduzem o número das escolas roma-
Dados arqueológicos fazem remontar esta invenção fundamental até à civiliza- nas que se extinguem com o retorno à vida rural e feudal. Hmergem, então, as
ção suméria, em torno de três mil anos antes de Jesus Cristo. Os Estados- escolas elementares religiosas, nas quais se aprende a ler e a cantar os salmos;
cidades desta civilização contavam com um aparelho administrativo-religioso de as escolas das catedrais conservam elementos das antigas artes liberais, inte-
sacerdotes e funcionários letrados.3 Na China, a escrita .urge com as primeiras grando-os a uma cultura religiosa original. Elas formam clérigos, padres, prin-
dinastias, perto do final do terceiro milénio a.C, isto é, no momento em que a cipalmente, e funcionários públicos, mas somente têm sentido quando em rela-
fragmentação em pequenos territórios dominados por senhores cede espaço a ção com a produção-reprodução da Igreja, a grande entidade que desenvolveu-
uma centralização política e territorial.4 No Egito, a escrita parece também dire- se dentro do Império Romano e que conseguiu, apesar de tudo, conservar uma
tamente ligada à gestão de uma sociedade político-religiosa centralizada. O grau certa unidade na vida fragmentada que se seguiu às invasões. O renascimento
de urbanização difere entre estes três focos de civilização, mas a cidade sempre carolíngeo amplia esta escola cristã para que ela trabalhe ainda melhor pela
está presente, seja ela a princípio um centro administrftivo ou um centro co- unidade do Império. Carlos Magno esforça-se por interessar pelas letras a classe
ProáuçSo da Eicolu — Produção da Socitàttle /
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tempo, ao trabalho e ai novas gerações, tudo isso ultrapassa e ao mesmo tempo
de senhores feudais, cuja cultura se orienta antes de mais nada em directo às mantém laços com os grandes grupos sociais em evolução. A nobreza deve
artes guerreiras. fazer face a novas situações, abandonar logo os torneios e as grandes cavalga-
Uma verdadeira revolução escolar surge com o desenvolvimento urbano das para instruir-se em um ofício de armas capaz de revolucionar as técnicas de
dos séculos XI e XII. Nas grandes cidades italianas, aparecem então escolas guerra; abandonar o antigo castelo no campo para se instalar na corte em
elementares urbanas, municipais e particulares, cujos alunos já não são futuros posições de prestígio que não podem ser obtidas no interior; deve frequentar as
clérigos, mas sim futuros comerciantes ou homens de letras. Estas duas institui- escolas, marcando através de instituições especiais as distâncias que a separam
ções, a escola elementar religiosa e a escola elementar urbana, encontram-se de uma burguesia gulosa, que compensa sua baixa origem social com riqueza
separadas por uma profunda "revolução" urbana, demográfica e económica. e cultura.
O nascimento das universidades que eram escolas parcialmente emancipa- Quanto ao povo das cidades e dos campos, este se torna verdadeiramente
das da tutela da Igreja confirma que estamos em presença de uma verdadeira objeto de estratégias educativas escolares que caminham à frente dn demnnda
mutação, de uma nova etapa. As faculdades de Direito produzem e reproduzem por alfabetização, esforçando-se por canalizá-la em proveito de projetos de
um novo ramo da divisão do trabalho que contribui para a elaboração e para integração política e de dependência cultural.
a aplicação de regras jurídicas. Esta atividade não poderia prescindir de uma' Nunca é demais destacar o fosso que separa a estruturação das escolas
certa medida de homogeneidade; dedica-se a codificar as normas de novas re- corporativas medievais da organização das instituições escolares do Antigo
lações urbanas de dominação e de cooperação e, evidentemente, utiliza o recur- Regime. Estas últimas obedecem a um esquema de administração centralizada
so da escrita, instrumento privilegiado de formalização e de sistematização. que elimina a autonomia dos regentes de colégios, dos corpos discentes, num
As faculdades de Medicina são impensáveis sem a renascença urbana, e, esquema que se aplica naturalmente às escolas elementares de caridade, mas
principalmente, sem a formação de uma "burguesia" abastada que protege e também aos colégios e às academias d.os nobres. Esta mutação na administração
recorre às luzes das ciências médicas herdadas dos gregos e dos árabes, ciências escolar das novas gerações produz e reproduz, ao mesmo tempo, as mudanças
escritas que definem o médico culto em oposição aos "feiticeiros" e às "bruxas". características na concepção do tempo, nas atitudes relativas às novas gerações
Estas duas novas "profissões" escolarizadas permanecem estreitamente vin- e nos princípios de administração estatal em geral. Esta última marginaliza de
culadas aos círculos dominantes. As universidades participam ativamente da maneira característica os corpos intermediários que servem de contrapeso ativo
definição de uma elite urbana culta, que estabelecerá uma durável supremacia contra a centralização e a arbitrariedade do Estado monárquico. Já perceptível
oligárquica a partir do século XV. Colaborando para o desenvolvimento urbano no século XVI, este fenómeno se acelera no século XVII. Na França, R. Mousnier
e comercial, a participação na cultura escrita ultrapassa os círculos dominantes, descreve assim esta situação: desaparecem os Estados Gerais, as assembleias de
pode ser observada entre os artesãos, e contribui para a eclosão de uma litera- notáveis e numerosos Estados Provinciais; transformam-se os corpos de oficiais
tura diversificada. Deste ponto de vista, é importante poder situar — com mais em simples executantes; as cidades são colocadas sob tutela administrativa; a
precisão do que oferecem as atuais pesquisas — o papel das faculdades de eleição dos prefeitos e dos vereadores sofre intervenções diretas, assim como na
Artes, que foram de longe as mais importantes da Idade Média. Uma pequena vida das corporações de ofícios, etc.12
fração dos "artistas" destina-se aos estudos superiores, q que nos leva a pensar Tudo isto já antecipa a quarta etapa, a mutação do século XIX, que con-
que os cursos de gramática e de filosofia já detêm,' ainda que parcialmente, o siste na emergência de sistemas escolares do Estado, a que vem somar-se este
papel sócio-cultural dos colégios que lhes sucederam. fenómeno único na história das civilizações, que é a generalização da cultura
Com o século XVI, entramos em uma terceira fase, marcada pela repentina escrita. As condições propiciadoras desta transformação se confundem com as
difusão dos colégios. que condicionam o aparecimento dos próprios Estados modernos, os quais, a
Contrariamente às faculdades de Teologia, de Direito e de Medicina, os despeito da teoria do laisser-faire, fazem da educação pública uma das prindp.ii.s
colégios não podem ser explicados pela relação de produção-reprodução de pe- peneiras para a sua administração.
quenas elites compartimentadas que ostentam um patriarcado dominante. Eles Sejam quais forem as suas versões, o Estado moderno não se reduz a um
difundem antes de mais nada uma cultura geral que serve de base e de refe- desenvolvimento de tendências burocráticas. Outros Estados burocráticos nasce-
rência cultural à "gente graúda", que se instala solidamente entre o "povo miúdo" ram no decorrer da História e mostraram características absolutamente diversas.
e a nobreza; esta última logo será dotada de sua própria rede de formação. A Aqui, o desenvolvimento do Estado combina-se a uma revolução industrial,
participação da escola na produção de uma homogeneidade cultural própria aos científica e técnica sem precedentes, e a um modo de produção capitalista que
grandes grupos sociais aparece muito pouco nas sociedades fragmentadas da não somente autoriza como também estimula tais transformações. Atualmente, o
Idade Média. Com os colégios, ela se impõe claramente. O mesmo acontece com Estado investe em todos os aspectos da vida social, consegue sobreviver e es-
as escolas elementares de caridade e as academias ou colégios reservados à tender-se mesmo para além da supressão do capital privado, e desenvolve uma
nobreza. Já não se trata aqui de responder à produção-teprodução de atividades vasta burocracia escolar.
especializadas dos poderes espirituais ou temporais, mas sim de produzir-repro- O surgimento das escolas técnicas superiores no Antigo Regime representa
duzir os grandes subconjuntos de atividades sociais características da sociedade uma das preliminares mais significativas desta mutação. Estas escolas tomam
do Antigo Regime, oscilante entre as ordens e as classes. forma graças a um duplo impulso: de um lado, uma cultura científica escrita
As condições de surgimento destes três tipos de escolas, contudo, não que rompe as barreiras corporativas, que demonstra sua eficácia agindo sobre a
podem ser reduzidas à existência de tais "classes" sociais, cujos contornos tam- natureza, e de outro um Estado empresário que administra grandes obras pú-
bém dependem de transformações muito genéricas. A expansão demográfica, o blicas. A institucionalização escolar das relações entre ciências, tecnologia e
crescimento urbano, a ascensão dos Estados, o progresso das trocas, a relativa produção acarreta uma divisão da cultura técnico-científica em níveis desiguais
abertura das economias locais, a impulsão dada pelas colónias, a concorrência e hierarquizados. Somos assim trazidos de volta a métodos de determinação dos
entre as religiões, a transformação das mentalidades em relação à medição do
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indivíduos em classes sociais. A nova cultura se implanta sobre as divisões não realizam a reprodução de elementos idênticos a si próprios, mas garantem
sociais existentes e sua fragmentação em níveis chega para produzir e reprodu- uma certa homogeneidade dentro das próprias transformações.13
zir os diversos patamares de um novo exército do trabalho industrial e assala- Esta homogeneidade de valores, de imagens, d« símbolos, etc., evidente-
riado em pleno crescimento. mente nunca é total. A escola obtém somente resultados precários e parciais,
A divisão em períodos é sempre relativa aos aspectos sobre os quais se sempre contestados pela evolução dos conflitos sociais e pelas distinções simbó-
centra a análise, pois os ritmos de evolução variam: o código da escrita não licas, e também pela evolução das condições gerais. Uma sociedade dividida em
evolui no mesmo ritmo que as culturas escolares; a cultura clássica era menos grupos, ou estratos, ou "classes" perfeitamente homogéneas culturalmente é uma
frequentemente sujeita a revisões que a cultura científica moderna; sob o ângulo ficção sociológica cuja utilidade teórica não é clara. E duvidoso até mesmo que
da organização espaço-temporal das escolas, a ruptura mais radical se dá nos em algum tempo tenha existido concordância completa acerca da delimitação
colégios, cujos princípios são a seguir integrados, e não negados, pelos sistemas dos conteúdos simbólicos, das práticas e dos públicos escolares. Das faculdades
escolares do Estado, etc. A periodização de Durkheim coincide parcialmente de Teologia1'1 aos sistemas escolares do Estado, somente podemos f a l a r de mo-
com a que é proposta acima. Centrando-se na cultura escolar do secundário, mentos de convergência, de entorpecimento dos conflitos, mas nunca de com-
este autor distingue um período escolástico, um humanista e um realista. Apli- pleto acordo. Eis algo que parece inerente à própria função de homogeneização
cada ao ensino elementar, esta mesma centralização conduz a uma periodização cultural das escolas: falar em produção-reprodução homogénea de uma cultura
bastante diferente: cultura latino-religiosa até o século XVII, que a partir de é falar em conflito e, por fim, em dominação (ou, às vezes, compromisso) do
então vai sendo pouco a pouco substituída pela cultura elementar francesa. Em uma concepção sócio-cultural, desta ou daquela ideologia do homem culto, do
seguida nos damos conta de que esta dupla periodização traduz mal as relações alfabetizado submisso ou do engenheiro bem informado."
de definição recíproca do primário e do secundário, assim como as discrimina- A função de homogeneização simbólica das escolas encontra-se, pois, cons-
ções de classe das quais elas procedem. tantemente ligada às relações de dominação, a tal ponto que numerosos soció-
Tanto quanto possível, é desejável definir e dividir a escola em períodos, Jogos elaboram teorias baseadas unicamente neste aspecto, sobre a contribuição
de forma racional. Ela apresenta-se separada das outras atividades sociais: trata- da escola para a reprodução das relações de dominação entre "classes" sociais
se de identificar as condições desta separação e as relações que ela produz e A história da educação entra em evidente contradição com estas premissas te-
óricas. A objeção é simples e violenta: é impossível explicar o desenvolvimento
reproduz. das escolas apenas recorrendo aos conflitos sociais entre dominantes e domina-
A História nos revela uma profusão de escolas particulares surgidas de
acordo com condições específicas. Será possível identificar dentro desta diversi- dos. Os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, a evolução da noção de
dade uma definição geral e abstrata que seja de alguma utilidade? As páginas tempo e de espaço, o surgimento dos Estados modernos, o retraimento da fa-
que se seguem pretendem contribuir para tanto. mília e dos laços de parentesco, a dissociação entre vida familiar, local de tra-
A escola é uma criação de indivíduos que vivem em sociedade, mas esta balho e local de formação, a urbanização, os movimentos demográficos, a revo-
criação não é mais do que uma resposta a certas necessidades, a certas condi- lução industrial, todos estes fenómenos que manifestam vínculos evidentes com
ções que favorecem esta "invenção". O mesmo podemos dizer da escrita. Estas o desenvolvimento escolar não podem ser reduzidos a conflitos sociais.
condições favoráveis, como já vimos, ocorrem em sociedades extensas e popu- Esta constatação torna obrigatório introduzir uma distinção entre aquilo
losas que conhecem a escrita e são dotadas de um Estado central, que engloba que provém de necessidades estruturais e aquilo que tem origem nas necessida-
cidades e uma divisão em "classes" sociais. Em toda parte, quando ocorrem tais des da ação social; entre uma causalidade implicativa e uma causalidade a t i v a .
condições, as famílias, os clãs, os locais de trabalho, as comunidades das cida- Assim, a produção-reprodução dos conhecimentos científicos implica instâncias
des pequenas e grandes formam uma base espontânea e não-especializada para de homogeneização, mas esta necessidade implicativa — relativa às condições
a educação. A escola se impõe tão logo estas instâncias elementares revelem-se inca- gerais de surgimento e manutenção das atividades científicas e tccnológiois
pazes de nssumir a produção-reprodução de princípios á", classificação social mais não define a forma particular que assumirá esta ou aquela escola dentífici), nnn
abrangentes do que elas próprias: aqueles que separam padres de fiéis; senhores e a subdivisão em níveis escolares hierarquizados dos conhecimentos cienlínVns.
funcionários de produtores; comerciantes de consumidores; homens de ciência e Esta distinção lembra sob diversos ângulos aquela que separa a psicologia
de tecnologia de operários, etc. A escola se separa das instâncias educativas cognitiva da afetiva: na realidade, a escola sempre une os dois aspectos, a ins-
não-especializadas porque é consequência de estruturas sociais complexas que trução e a educação, o saber e a estruturação hierárquica, a necessidade estru-
tural de uma homogeneidade suprafamiliar e as determinações de classe.
englobam estas instâncias de base.
Nestas sociedades "complexas", as crenças religiosas em primeiro lugar, e A divisão do trabalho sempre serviu para encobrir formas de conflito,
logo em seguida as regras administrativas e jurídicas, as culturas escritas típicas sobretudo nos níveis mais "complexos", isto é, nos níveis que precisamente
de "classes" sociais em oposição, os conhecimentos científicos e tecnológicos, reivindicam escolas. Daí nossa dificuldade em dissociar o que é consequência
todas estas construções simbólicas exigem uma produção-reprodução relativa- da "diferenciação" social do que provém das relações de dominação, pois a
mente homogénea', que somente instâncias especializadas são capazes de fornecer. escola funde em si própria estes dois aspectos irredutíveis. Contudo, é altamen-
Esta exigência de homogeneidade distingue-se das ambições e das pressões te duvidoso que formas complexas de divisão do trabalho, despojadas (tanto
pela transformação ou pela conservação da cultura transmitida. A ortodoxia reli- quanto possível) das relações de dominação, possam prescindir de instâncias de
giosa evolui, as leis se adaptam e refletem as relações de força, as línguas se produção-reprodução cultural homogénea supra-familiar. A menos que retornemos
transformam, os códigos e as técnicas de escrita sofrem as investidas do tempo, às pequenas unidades sociais fragmentadas, uma forma de escola — contribu-
as ciências continuamente revisam o seu aparato técnico e conceituai: as escolas indo para o reforço das relações de cooperação — sem dúvida muito diferente
da aluai acabará por se impor."
200 / André Petilat ProduçSo da Eicola — Produção da SocMadf l 201
As escolas são, assim, duplamente determinadas em sua existência e em social e nem a evoluçSo escolar: elas tentam adaptar-se as novas situações e se
suas formas específicas. Conflirualistas e funcionalistas centram-se sobre um ou dividem quanto às soluções a adotar. Em plena revolução industrial, elas lutam
outro destes conjuntos de determinações ativas ou implicativas, operando redu- entre si a respeito da necessidade e da forma de modernizar a cultura clássica,
ções de importância variável. a respeito de sua própria definição cultural e de outras classes sociais. Aqui não
É através de um processo assim que os funcionalistas, muitas vezes, con- existe coerência entre os objetivos desejados, mas uma certa desordem, conflitos
fundem a necessidade estrutural de uma homogeneidade cultural em uma so- e hesitações.
ciedade complexa com as exigências de dominação e de doutrinação ideológica A invenção e a transformação das culturas escolares nunca deixam de ser
das classes no poder. Assim, Pnrsons dirá da escola primária que ela realiza objeto de conflitos. Estes servem ao mesmo tempo de cadinho e de campo de
uma função de integração, contribuindo para que a divisão de trabalho seja forças, onde tomam forma as definições sempre mutantes das homugeneid.ules
melhor aceita; Bowles e Gintis dirão, ao contrário, que a escola realiza uma culturais a ser produzidas e reproduzidas através das instituições escolares. As
função ideológica, legitimando a dominação burguesa. notas que se seguem referem-se às relações entre grupos sociais desiguais e
O fato de ser inevitável recorrer — em uma sociedade complexa — a opostos e culturas escolares hierarquizadas.
instâncias educativas supra-familiares não significa por si só que ocorra qual- Nas sociedades em que a escrita e a escola são prerrogativas de uma
quer consequência específica: a variedade de escolas já é considerável e o inven- pequena minoria, os conflitos relativos ao ensino, na maior parte das vezes,
tário das possibilidades históricas está apenas começando. Assim como o desa- permanecem circunscritos aos círculos dirigentes e letrados. Logo que, em cir-
parecimento das academias nobres ou dos colégios clássicos não significou a cunstâncias propícias, a escola escapa a suas estritas funções administrativas e
morte da civilização, apostamos que o fato das escolas técnico-burocráticas e religiosas e contribui para definir culturalmente grandes grupos sociais, sua base
das burocracias de Estado terem sido ultrapassadas também n3o significará um conflitual também se amplia proporcionalmente. Enfim / a estatização modifica
retorno à "barbárie". em profundidade a dinâmica conflitual que acompanha a criação de novas ins-
Em resumo, a escola é uma instância especializada na educação das novas tituições e as subdivisões no novo campo da cultura moderna e científica; ela
gerações (cuja ação, às vezes, estende-se aos adultos), cuja criação se torna traz consigo uma centralização dos conflitos, uma globalização dos problemas,
necessária assim que a sociedade atinge um nível de divisão do trabalho que uma dramatização da criação, uma publicidade dos debates, fornecendo às ins-
implica a utilização da escrita, a existência do Estado e o surgimento de gran- tâncias parlamentares um de seus temas favoritos de disputas, levando partidos,
des grupos sociais, mais extensos do que os clãs familiares, como é o caso das sindicatos e grupos de pressão a tomarem posições opostas.
castas, das ordens, das classes e de qualquer outra forma de classificação que A partir do Antigo Regime, a escola se subdivide em instituições que
a história da humanidade ainda poderá catalogar. A escola se impõe às formas correspondem aproximadamente às "classes" sociais: escolas elementares de ca-
básicas de educação (da família, do clã, da comunidade, etc.) que são fragmen- ridade, colégios, academias. É difícil deixar de ver em tudo isto um efeito das
tadas e esparsas, contribuindo assim para produzir e reproduzir uma divisões sociais; notáveis e pedagogos, aliás, não fazem mistério desta corres-
homogeneidade cultural relacionada com a divisão do trabalho (homogeneidade pondência; ela faz parte da ordem das coisas e das categorias mentais. A ten-
das crenças religiosas, das regras jurídico-administrativas, definição cultural es- dência à generalização da cultura escrita se manifesta sob a forma de uma divisão áestn
crita das elites, e depois de outras classes sociais, homogeneidade da cultura cultura em diversos subconjuntos que coincidem parcialmente.
científica, etc.) e parcialmente determinada pelos conflitos sociais e pelas rela- As academias e os colégios da nobreza acrescentam ao humanismo livresco
ções de dominação. Os grupos dominantes, que falam em nome de toda a uma cultura distintiva, cujo eixo são as artes cavalheirescas, a arte das relações
sociedade e que identificam a sobrevivência desta sociedade com a sua própria, mundanas; é uma cultura aberta às disciplinas científicas e modernas, impreg-
desempenham um papel fundamental na orientação das instituições escolares, nada do culto à honra, de genealogia e de heráldica, isto é, de veneração ex-
na seleção de seus conteúdos simbólicos, de suas práticas e de seus públicos. A plícita pela distinção social, pelo que separa o nobre do burguês, mesmo daque-
história nos ensina, contudo, que estes grupos jamais conseguem controlar com- le mais rico. Eis algo que diverge nitidamente do humanismo piedoso e labo-
pletamente um processo evolutivo que foge de seu alcance, porque é conse- rioso, da retórica latina, da "civilidade" elementar e da prolongada negação das
quência de causas muito mais gerais que as relações de dominação ou que os disciplinas científicas a que se limita a cultura própria aos colégios da pequena,
conflitos sociais. média e alta burguesia. Estas instituições se distinguem por sua vez das escolas
elementares de caridade, primeiro degrau de um novo curso em língua "vul-
gar" que se forma à margem do humanismo clássico. Estas novas instituições
Dl. A ESCOLA COMO ARTICULAÇÃO SELETIVA E CONFLITUAL veiculam o que podemos chamar de uma cultura de dependência, que se resume
ao alfabeto, ao qual se somam intenções político-religiosas de domesticação do
ENTRE CULTURA E GRUPOS SOCIAIS povo.
Conhecemos os conflitos latentes e abertos entre burguesia e nobreza, a
A escola pode ser definida .por seus conteúdos simbólicos, por seus méto- reação dos nobres ao irresistível avanço da burguesia e a demarcação dos limi-
dos, seus agentes, seu público; ela agrupa e seleciona tanto uns quanto outros. tes desta última em relação ao "povo miúdo" e aos movimentos populares. Sem
Este processo de seleção e de articulação sócio-cultural é, nunca é demais repe- nos determos nas interpretações específicas, digamos que a maior parte dos
tir, impossível de ser reduzido somente aos conflitos sociais, A seleção das cren- conflitos do Antigo Regime não podem ser interpretados sem referência a estas
ças religiosas é mais expressiva do que as exigências d^s classes dominantes; o "classes" sociais e as suas oposições.17 Por outro lado, o que observamos ao
mesmo pode ser dito dos conhecimentos médicos, científicos, técnicos e até nível das instituições escolares? Conflitos entre instituições? Muito poucos: «ipe-
mesmo jurídicos. As relações com a natureza são 'ao importantes quanto as nas alguns problemas de concorrência, rapidamente resolvidos. Na realidade,
relações entre os homens. As classes dominante.0 não dominam nem a evolução tudo se passa como se todos houvessem se colocado tacitamente de acordo

íl
202 / André Petitat tln Esi)/rt /In SKCICI/I/I/C / 201

acerca da repartição dos espaços culturais, com limites que não deveriam ser as mesmas oposições entre ubstrato e concreto, náo-utilitário c lilil, trjori.i e
transpostos: um acordo parcial sobre a utilidade de uma cultura escrita para o prática, agindo em níveis diferentes, a tal ponto que um sistema do oposições
povo, desde que isto não gerasse indivíduos fora de suas classes de origem, simbólicas parece estar atuando na tradução escolar das exigências científicas e
nem gente que sobrecarregasse a oferta de estudos clássicos; um acordo parcial técnicas da revolução industrial.
sobre a utilidade dos colégios, desde que estes não tentassem usurpar nada do Esta lógica feita de oposições binárias formalizada em programas desiguais
que faz a especificidade da nobreza. As divisões sociais reais, constantemente tres- corresponde entre os protagonistas das reformas a uma lógica de distincào-
passadas de conflitos, abrem espaço em nível escolar para subdivisões do campo simbó- assimilação. Os partidários do latim tentam manter a lodo custo a excelência tln
lico, ou, mais simplesmente, a diferenças de cultura na qual as aposições e os conflitos formação clássica, através da outorga desta suprema distinção. Rejeitam, pois, n
somente aparecem sob uma forma simbólica. pretensão da cultura moderna a honras maiores. Esta cultura, pá M merorcr
Assim, o alfabeto em língua vulgar do pobre se opõe à distinta cultura crédito, precisa expurgar de seus conteúdos tudo o que é considerado demasi-
greco-latina do burguês, assim como a efémera "literatura de meia pataca"18 se adamente baixo, isto é, utilitário e concreto, além de recrutar seus alunos nas
opõe às "obras-primas eternas". Por sua vez, falta à cultura clássica livresca_ camadas sociais mais elevadas e de rechaçar seus aspectos sócio-sírnbólico.s
aquilo que faz um cavalheiro completo, o que faz a graça, a honra, a nobre desvalorizadores. Emerge, então, um "primário-superior" que, tendo como refe-
extraçSo distinguir-se da plebe rude. A vida quotidiana é feita de marcas de rência o primário, pretende ele próprio determinar uma cultura geral moderna;
deferência e de arrogância, de confirmações e de negações contínuas da posição esta última, a princípio, próxima das necessidades práticas, não levará muito
ocupada, de humilhações e de honras recebidas, de submissões e de revoltas. tempo para descobrir que o caminho da valorização é o da teoria e da abstr.i-
Tudo isso transparece na cultura escolar apenas sob a forma de oposições sim- ção.
bólicas estáticas, integradas em uma hierarquia de valores culturais em que As novas culturas escolares modernas formam uma espécie de linguagem
reinam as normas dominantes, sejam elas aceitas ou contestadas. cultural cujos princípios criadores não escondem suas relações com os grupos
A tradução para o nível cultural escolar das oposições e conflitos sociais sociais. Ao contrário, eles afirmam sem constrangimentos que as diferenças de
não coloca estes conflitos em cena de urna maneira explícita, antes os reduz aos cultura somente têm sentido se considerada sua relação com as desigualdades
termos de diferenças e de hierarquia de culturas escritas que coincidem parci- sociais. "Valorizar" uma instituição significa sempre torná-la menos utilitária,
almente. Esta tradução representa o primeiro e fundamental impulso da ação mais teórica e... mais seleta. Nota-se também que as divisões da cultura escolar
ideológica da escola. Por definição, sua condição primeira reside na separação formam um sistema reconhecível pelo fato de que o primário-superior, o secun-
entre escola e vida social, separação esta que contribui para reforçar a autono- dário especial, o secundário moderno evoluem concomitantemente, o que me
mia das representações simbólicas em relação à vida real. Pensemos na cultura leva às relações que uma cultura escolar mantém com as classes sociais através
latina: nenhuma tradição oral teria sido capaz de manter um fosso tão profundo de seu público escolar.
entre esta cultura e a vida real A separação entre escola e sociedade produz e Ao lado dos conflitos e de suas traduções escolares, a articulação entre
reproduz uma autonomia das representações simbólicas, redobrando assim as distâncias uma cultura escolar e um grupo social se dá através da definição do público
entre as oposições reais e as diferenças, ou as oposições simbólicas hierarquizadas. escolar. Desde o início, é necessário excluir os esquemas mecânicos que o pró-
A resistência das teorias funcionalistas, centradas na integração sócio-sim- prio termo "articulação" pode evocar. Trata-se sempre de uma correspondência
bólica, talvez tenha a ver com as particularidades desla tradução-redução dos estatística entre grupos de contornos mais ou menos nítidos e uma cultura
conflitos para o nível escolar, onde, por fim, .não resta nada além de diferenças definida com uma precisão totalmente relativa. A nobreza n3o forma um con-
hierárquicas de programas e de instituições. E verdade que estas diferenças vão junto homogéneo, e as academias refletem esta situação, inclusive sendo algu-
além de simples exigências funcionais: por que foram criadas duas redes de mas delas mais prestigiadas do que outras. O mesmo raciocínio pode ser apli-
escolas elementares? Por que a ruptura entre academias e colégios? É impossível cado aos colégios, onde a heterogeneidade é ainda maior. Não se deve pois ver
responder completamente a estas questões sem levar em conta os conflitos de na correspondência entre culturas escolares e "classes" sociais mais do que re-
classes; mas também é verdade que a autonomia cultural escolar contribui para lações estatísticas entre conjuntos informes.
Nas sociedades de castas e de ordens, acontece de as escolas serem estri-
disfarçar os conflitos.
Isto é particularmente evidente se abordamos a cultura científica e suas tamente reservadas, por direito, a certas categorias sociais. Era o caso da antiga
subdivisões. Cultura científica elementar e cultura científica superior remetem às índia." Na Europa do século XVII, as academias nobres oferecem um exemplo
oposições simbólicas gerais entre teoria complexa e elemento isolado, entre de escola formalmente exclusiva. A extrema atenção dada à qualidade do nas-
conhecimento especulativo e utilitário, entre fundamental e aplicado. Nestas cimento nas primeiras escolas técnicas superiores fazem delas instituições-limi-
distinções se opõem e se reconhecem, por exemplo, o arquiteto-diretor de um tes. As universidades, os colégios e as escolas de caridade estão em princípio
canteiro de obras, com sua visão de conjunto, e o pedreiro, limitado a seu abertas a todos os grupos sociais; estas instituições admitem, em torno de um
trabalho específico. Tanto um quanto outro fazem parte das relações diretas de público privilegiado, estudantes de outras origens.'0
poder e de dominação, das quais restam somente, no nível escolar, diferenças No interior das sociedades do Antigo Regime coexistem, pois, escolas for-
de cultura científica e de posição dentro da hierarquia. malmente reservadas a um grupo, e escolas formalmente abertas a todos. A
No século XIX, este processo sofre um desenvolvimento muito interessan- eliminação da nobreza acarreta o desaparecimento das primeiras, subsistindo
te. É o século no qual se impõe a máquina, explodem as lutas operárias e já somente as do segundo tipo. O "nascimento" e a propriedade fundiária são, então,
ronda o espectro do comunismo; é também o século da criação-subdivisão da postos de lado em proveito do comércio, das finanças e do talento: o dinheiro e a
nova cultura moderna escolar, cujos compartimentos mostram somente de ma- cultura se tomam os princípios de base da classificação social e da selcçao escolar.
neira implícita e simbólica os conflitos cujos murmúrios surdos já podem ser Durante o Antigo Regime, fala-se muito em ignorância e relativamente pouco
ouvidos entre os operários da indústria. No mundo do trabalho, encontramos em talentos e em dons; no século XIX, esta predominância se inverte: urna vê/.
204 / André Peliliil Produção (in Escola </n / 'l)f>

generalizada a escrita e vencida a ignorância, a hierarquia das culturas escritas primáriu romo escola de base para todos. Certas tendências, como ns da Su<Vi,i,
— e até mesmo das civilizações — será percebida, ao menos parcialmente, como dos Esta aos Unidos e do Canadá, caminham no sentido de um enriquecimento
uma hierarquia do dom, do talento inato. Esta evolução nas mentalidades, evi- desta cultura escolar comum, engajando-se, assim, a favor da famosa escola
dentemente, deve ser relacionada ao novo papel desempenhado pelo intelectual, única. Em outros locais, a criação de ciclos de orientação não apagou as divi-
pela criatividade científica, cujos efeitos podemos ver apontando aqui e ali na sões institucionais; após alguns anos de escola primária, surgem culturas esco-
produção, nos transportes, nas comunicações, etc. lares que poderíamos chamar de "semigerais", pois voltam-se apenas para algu-
Na seleção dos públicos escolares,21 as relações desiguais mantidas com a mas categorias de alunos, sem, contudo, prepará-los para uma profissão: curso
cultura escolar (mascaradas pela ideologia do dom) e com o dinheiro (justificadas latino-científico, pré-profissional, etc., entre os quais os ciclos de orientação re-
por uma ideologia do mérito) vêm definitivamente substituir os atributos liga- presentam elos de ligação. Vencida esta etapa, um grande número de aluno»
dos formalmente e visivelmente às ordens sociais (e, por extensão, às raças, aos integra-se à produção, aos aprendizados ou às escolas profissionais. Somente
sexos, às etnias, etc.). Estes critérios são muito mais flexíveis do que aqueles uma fração, ainda que crescente, continua os estudos "semigerais" por mal»
baseados em distinções jurídicas. Eles permitem muito maior mobilidade, favo- alguns anos, antes de empreender os estudos universitários cuja especiallzn<,'Ao
recendo, ao mesmo tempo, a confirmação das posições sociais. O século XIX é se acentua conforme o avanço no curso.
um período em que as instituições se posicionam de acordo com uma lógica Diversos fenómenos devem ser distinguidos aqui: o surgimento de mim
ainda muito marcada pelas antigas sociedades de ordens. É somente em uma cultura escolar elementar destinada a todos os grupos sociais, o aparecimento
fase posterior, a partir do segundo quarto do século XX, que o sistema escolar de diversas culturas "semigerais" de conteúdos e durações diversas, o crpsrl-
vai funcionar plenamente como um canal de mobilidade e participar da multi- mento dos ofícios para os quais se fazia necessária uma preparação profisslonnl
plicação de profissões não-manuais, técnicas e científicas em particular. Quanto escolarizada prévia.
maior a importância da mobilidade social, mais a escola exerce sua função de Durkheim e Parsons interpretaram o surgimento de culturas escolares go-
integração cultural — para além da simples confirmação homogénea de posi- rais ou semigerais da seguinte forma: a divisão crescente do trabalho exigiria
ções sociais — e também maior é o papel da escola como agente de seleção.22 uma integração das tendências centrífugas nos valores universais que a escola
Esquematizando, podemos dizer que passamos de escolas cujo papel dominante sabe incutir como ninguém. Contudo, os fatos históricos somente correspondem
é a confirmação cultural de posições sociais a escolas de confirmação-integração parcialmente a esta hipótese. As escolas elementares do Antigo Regime — de
cultural." caridade ou vinculadas aos colégios — difundem culturas gerais rudimentares
Couluilo, t.imbém csla formulação é insuficiente, pois não leva em conta distintas, que correspondem ao desejo de distinção dos indivíduos. A cultura
um elemento importante, a mobilidade dita "intracarreira". Em uma sociedade clássica dos colégios não serve para unir o conjunto da sociedade, mas para
"móvel", uma mesma formação pode conduzir a situações sociais muito diferen- homogeneizar camadas burguesas heterogéneas. Neste período da história, é
tes. Este fenómeno é muitissimamente bem conhecido, e não há necessidade de necessário pois dizer que as culturas gerais escolares contribuem, antes de mais
deter-me nele (ver terceira parte). Ocorre que uma confirmação ou uma integração nada, para homogeneizar as categorias sociais. Se no final o seu resultado é
cultural pela escola seguidamente serve como preparação para uma posição uma união, isto ocorre somente após haver servido para cristalizar culturalrnen-
social provisória, o que toma mais frouxos os laços entre a formação escolar e te as divisões, apoiando desta forma a produção-reprodução de relações de
as categorias sócio-profissionais correspondentes. Não somente a formação poder e de dominação nas quais se realiza a unidade assimétrica das divisões
distendeu os seus laços com a origem social dos alunos, como também sociais.
corresponde apenas por uma fração — é verdade que, em geral, largamente O discurso fundonalista se aplicará melhor à escola primária do século
majoritária — à profissão futura. A cultura escolar se torna para muitos uma cul- XIX? Não temos certeza, ao menos até o momento em que a escola primaria —
tura de passagem. Este fenómeno, sustentado por uma evolução rápida das téc- suas primeiras séries — se torna uma escola para todos, e n8o somente uma
nicas de produção e de administração, mantém laços evidentes com certas ten- escola para o povo. Temos o conjunto das novas gerações ocupando os mesmos
dências presentes na estruturação da cultura escolar: proliferação de aulas bancos escolares durante três, quatro ou cinco anos. Esta experiência comum de
opcionais, multiplicidade de formações "a escolher" dentro de conjuntos bastan- um regime escolar idêntico (ou similar) é suficiente para incutir e legitimar
te informes, desintegração dos programas fortemente estruturados e de grande valores de bases unitárias? É capaz de definir espaços simbólicos de convergên-
precisão. A longo prazo, a estruturação e a seleção dos conteúdos escolares não cia entre todas as classes sociais? Empiricamente, é quase impossível responder
a uma questão como esta, pela dificuldade de separar todas as influências vin-
pode deixnr de levar em conta uma articulação estat»stica fluida, tanto em re- culadas. Historicamente, estas classes primárias únicas se impõem como uma
lação ao passado social quanto em relação ao futuro profissional. conquista democrática, como o instrumento privilegiado da unidade linguística,
Isto me leva a retomar, detalhando mais, a distinção entre uma escola de como a confirmação simbólica e institucional da unidade do país, da
cultura geral e uma escola de preparação profissional. Para dizer a verdade, esta representarividade das instituições, como uma prova tangível da realidade da
distinção é desconfortável e de difícil emprego. Por exemplo, diz-se que a vo- igualdade e da fraternidade dos cidadãos, e também corno expressão de uma
cação do colégio é a de difundir uma cultura geral; ou culturas gerais, dever- mobilidade crescente e confirmação simbólica da igualdade formal na competi-
se-ia dizer, para levar em consideração as subdivisões desta instituição. Neste ção. A escola primária unitária se torna um símbolo importante da unidade
mesmo sentido, o que transmitiam as classes iniciais dos colégios senão uma social, da igualdade dos cidadãos contra a desigualdade entre senhores e vassalos.
cultura geral ainda mais "geral"? E as escolas elementares de caridade? E as Devemos seguir os funcionalistas neste ponto ou ver nesta cultura primária
atuais escolas primárias? De fato, é impossível Miar em uma cultura escolar para todos um reforço da ação ideológica das classes dominantes, que por este
geral: elas são diversas a reivindicar este título, A úrTcn cvltura verdadeiramen- mecanismo se adapta a um só tempo à revolução industrial e ao surgimento de
te geral seria comum ao conjunto das culturas escolarrs: o alfabeto, os números
e alguns elementos que foram acrescentados por ocasião da criação da escola
206 / André Petitat 1'roduçBo da Etcula — ProdiiçSo tia Siicletlaile / 207

uma classe operária organizada no plano político e sindical? Parece que ambas mas vezes, é na lama que ele encontra um leito (...) Aprende, pois, com von-
as teorias têm razão em parte. tade. Na realidade, nada pode comparar-se à instrução. Ó proveito de um único
Com a revolução industrial, a civilização venceu uma etapa comparável à dia de aula é um lucro para toda a eternidade."2'
passagem para a agricultura e a pecuária. Em dois séculos, a máquina acabou Sem dúvida, o intelectual, sob a forma do sábio que conserva e adapta
com a predominância agrícola até então maciça, tornando geral a utilização da uma tradição, precede a escrita. O ensino de alto nível dos inças era garantido
escrita, sob a égide de um Estado em plena expansão. Uma sociedade assim, por sábios assim. Mas não há nada mais estimulante e mais "autodidático" para
móvel e subdividida, não pode prescindir de instâncias unificadoras, seja a sua o intelectual do que a escrita e a escola. Seu trabalho não é uma tarefa servil,
ação oriunda da dominação de um grupo social ou da cooperação entre grupos mas a obra de um espírito, e o livro é o principal meio de expressão desta
sociais. É difícil imaginar como grandes concentrações urbanas, redes de comér- obra.25 Este intelectual, sem dúvida, é no princípio um religioso erudito, depois
cio e de produção extremamente ramificadas, subdivididas e interdependentes um clérigo que se torna parcialmente autónomo dos poderes civis e religiosos,
poderiam prescindir de instâncias unificadoras ativas, mesmo na hipótese da que escreve, leciona, aconselha, cuida, filosofa, se torna poeta, cronista, homem
supressão da classe burguesa ou na das burocracias socialistas. A escola primá- de ciências, no que é imitado por uma quantidade de amadores das camadas
ria oferece um simbolismo unitário, ativo e eficaz, e além disso ligado à apren- superiores. Muitas civilizações viveram esta evolução, em diferentes graus. A
dizagem Ac. um modo de comunicação indispensável. Seja numa sociedade de Idade Média nos oferece o exemplo de uma atividade intelectual recolhida ao
classes ou não, c difícil imaginar a sua supressão. Na melhor das hipóteses, a seio das esferas religiosas; contudo, não por longo tempo. O renascimento ur-
simbolização escolar da igualdade dos cidadãos deixaria de ser em grande parte bano contribui para fazer do intelectual um leigo, a imprensa lhe ofereço um
formal; na pior, camuflaria outras relações de dominação. Tanto em um caso meio de expressão incomparável, a ciência experimental lhe abre novos horizon-
como no outro, ela se imporia como necessária, ainda que mudando de forma tes, que o encontro com o capital liberado de qualquer entrave vai a m p l i a r
e de substância. numa escala insuspeitada. Enquanto em outros tempos os pequenos círculos de
Quanto às culturas escolares "semigerais", também elas têm tendência a intelectuais mal ultrapassavam os limites das camadas dirigentes propriamente
alongar sua duração. Assim como no passado, estas culturas tendem a ditas, hoje sabemos o que ocorre; sem falar na distinção entre trabalhadores
homogeneizar grandes divisões sociais em evolução. Basta lembrar o avanço da manuais e não-manuais, que divide as sociedades industriais atuais em duas
escolarização em direção aos colégios, transformados em instituições de "mas- partes praticamente iguais, enquanto que ainda no século XIX não se contava
sa", abertas a porções consideráveis das novas gerações, até mesmo a mais de mais do que uma pequena minoria de ofícios considerados não-manuais. É esta
um quarto delas. A criação de escolas primárias para todos não diminuiu a nova oposição entre manuais/não-manuais, manuais/intelectuais que traduz sim-
duração dos estudos colegiais; ela não fez mais do que retardar a entrada no bolicamente o sistema escolar e o afluxo de estudantes em um ramo escolar
secundário, sempre conservando intacta a cultura distintiva das classes dirigen- "semigeral", outrora reservado a uma elite mais restrita.
tes. A partir de então, os colégios se abriram e passaram a preparar os alunos Desde o seu nascimento até os nossos dias, o sistema escolar tem constan-
para as camadas sociais mais variadas, surgidas com o movimento de temente contribuído para produzir e reproduzir a oposição entre manuais /
terceirização. Eles também subdividiram-se em seções distintas e hierarquizadas não-manuais e manuais / intelectuais sob uma forma ou outra. Esta é uma de
que visavam a subconjuntos de profissões específicas. Uma certa cultura geral suas constantes. Suas maiores vitórias são de haver imposto a desvalorização da
escrita, outrora considerada apanágio de uma pequena elite, se torna agora uma cultura oral e a supremacia da escrita, a inferioridade da mão e a supremacia
característica de mais de uma quarta parte da população ativa. Nas atuais so- do espírito, através do que ele contribui para produzir e reproduzir relações de
ciedades hierarquizadas, isto somente poderia significar um prolongamento da dominação mutáveis.
duração dos estudos superiores e a criação de áreas escolares que permitem Muitas vezes, os autores apresentaram a aproximação entre a escola c ii
salvaguardar uma definição cultural mais estrita, mais longa e ao mesmo tempo produção como uma solução para este problema, numa união ideal da teoria o
mais seleta das elites dominantes. da prática produtiva. Até o momento, as tentativas neste sentido não são nuillo
Esta evolução não poderia ser compreendida sem levar em consideração as conclusivas. Pode até mesmo ser que a solução inversa, que prolonga as ten-
transformações na distinção entre ofícios manuais e não-manuais, uma das mais dências existentes, se mostre mais revolucionária. Ela consiste em separar .liiul.i
antigas divisões sociais da humanidade, juntamente com a divisão do trabalho mais a formação da atividade profissional, cultura escolar adquirida e f u n ç J n
por sexos. A escrita e a escola se constituem em instrumentos privilegiados de económica exercida. Isto vai novamente acentuar a formação escolar geral, rom-
uma produção-reprodução dos trabalhadores não-manuais e dos intelectuais. O per com as distinções na medida em que estas antecipam oposições profissio-
trabalhador não-manual — escriba, funcionário público, pastor, senhor — se nais, tornar mais ainda a cultura escolar um fundo provisório independente das
opõe ao artesão e ao camponês; ele está a salvo dos maus odores, do ruído, da realizações profissionais particulares, visar, somente em última instância, a pre-
lama. Até mesmo o ofício de escriba, em que a mão é tão importante, é con- paração para uma profissão. Mas um programa assim somente pode dar frutos
siderado não-manual, pois pertence ao universo da escrita, da reflexão, do sa- se ocorre uma diminuição no tempo de trabalho, pois este associa a uma du-
grado e do poder. ração maior ou menor uma cultura e uma categoria sócio-profissional. Supondo-
Em um manual de leitura egípcio que remonta provavelmente à XI dinas- se que o tempo de trabalho seja reduzido pela metade, o resultado só pode ser,
tia, um pai encoraja o filho a estudar aplicadamente: "Nunca vi um ferreiro a longo prazo, uma repercussão na cultura escolar e uma distensão nos seus
embaixador, mas já vi um ferreiro trabalhando, à beira de sua fornalha; seus laços com o trabalho. A escola, neste caso, não seria tanto um instrumento de
dedos eram iguais aos de crocodilo, e seu cheiro era pior que o de ovas de divisão das gerações e de integração nos ramos exíguos da divisão do trabalho,
peixe. (...) O barbeiro passa a navalha da manhã à noite; ele nunca se senta, a mas sim uma instância produtora e reprodutora de distinções culturais cada vez
não ser para comer (...) Ele exaure os braços para encher o estômago. (...) O mais autónomas das necessidades do trabalho e da oposição entre trabalhadores
fazendeiro pastoreia eternamente os mesmos rebanhos; ele tem a voz rouca manuais e intelectuais.
como um corvo. (...) Quando descansa, se é que verdadeiramente repousa algu-
208 / André Petitat
Produfto da Encolu — Produção ila Sociedade / 209
Notas de referência 14. Sabemos o quanto a lógica Intern» é Importante para o mundo religioso: os conflitos
doutrinários, apesar de tudo, nSo cessam de se manifestar.
1. Isto se aplica não somente às "metrópoles" europeias, mas também aos países coloniza- 15. Sempre é importante ter em mente que a escola não é nunca a única instituição a garantir
dos. A colonização não se fez apenas a golpes de espada e a tiros de fuzil. A Igreja e as uma homogeneização-dominação cultural. É certo, por exemplo, que os jogos públicos e
escolas realizaram, simultaneamente, um processo de aculturação, às vezes mais, às vezes as múltiplas festas a um tempo religiosas e profanas desempenharam um papel muito
menos profundo, que teve por resultado acrescentar à força militar uma dependência importante na Idade Média para devolver o vigor e verificar as relações entre os grupos
cultural. A "teoria da dependência" analisa o papel reprodutor da escola nas situações sociais, valendo-se do calor e dos rituais de uma densa sociabilidade. Cf. MUCHEMBLED,
coloniais e neocoloniais, mas ela o encara de tal maneira que não parece existir nenhuma R, Cultura Popular e Cultura das Elites na França Moderna, Séculos XV a XVlll, Paris,
escapatória para esta situação, como se a escola exercesse uma ação de sentido único. Flammarion, 1978, p. 382. Em meados do século XVI, Jean Bodin faz uma ligação direta
Ora, não seria muito difícil demonstrar que, se a escola contribui para a dependência, ela entre o aprofundamento da educação formal e o declínio dos jogos e das festas: "Este
também alimenta, ainda que contra a vontade, possibilidades de independência que, nas último ponto foi admiravelmente bem compreendido pelos legisladores, que não se limi-
sociedades modernas, passam necessariamente pela generalização da escrita e pela medi- taram a prescrever a educação em comum para as crianças, mas que também fixaram
ação cultural. Na América Latina, a corrente pedagógica encarnada por Paulo Freire é um uma alimentação única para todos os cidadãos, refeições solenes, distribuições de carne,
exemplo vívido. Cf. FURTER, R, Os Sistemas de FormaçSo e seus Contextos, Berna, P. Lane , jogos, enfim, banquetes sagrados para que esta vida em comunidade inspire os cidadãos
1980, pp. 79 3 94. a viver em paz, a fazer amizades, a deixar de lado as animosidades recíprocas c n
2. As posições de M. Weber a este respeito são bem conhecidas: "The elaboration of the esquecer as querelas. Mas uma vez que estas instituições caíram em desuso, foram infe-
diplomas from universities, business and engineering colleges and the universal clamor lizmente pervertidas quando não completamente suprimidas, não nos resta mais nenhum
for the creation of further educational certificates in ali fields serve the formation of the outro meio de estabelecer e de conservar a amizade entre os cidadãos, comparável à
privileged stratum in bureaus and in offices. "Assim como os nobres precisavam demons- educação em comum das crianças", em BODIN, J., Discurso ao Senado e ao Povo de Toiilause
trar a antiguidade de sua ascendência, os especialistas de todos os géneros aplicam-se a Sobre a Educação a ser Ministrada aos Jovens na República (1559), em Obras Filosóficas, (trad.
elaborar novos currículos, novos diplomas, a fim de, acima de tudo, monopolizar as P. Mesnard), Paris, PUF, 1951, p. 58. J. Bodin parece crer que um novo estilo de relações
posições socialmente e economicamente mais vantajosas. Cf. WEBER, M., Economy and sociais está em vias de estabelecer-se, no qual a cultura transmitida através de interme-
Society, New York, Bedminster Press, 1969, p. 1000. Dentro deste raciocínio, o sistema diários desempenha um papel fundamental. Hoje, a suntuosidade da mídia e o acesso à
escolar representa a um tempo o papel de catalizador, de unificador cultural e de informação impõe à escola uma redefinição do seu papel cultural.
reprodutor. Poderíamos acrescentar que a escola contribui para consolidar as posições dos 16. Illich afirma, ao contrário, que é possível prescindir da escola, substituindo-a por redes de
"especialistas", dos "cientistas" e dos "técnicos", associando o êxito escolar às aptidões aprendizado. Isto é não levar em consideração as funções de homogeneização e de dis-
inatas, inculcando uma espécie de veneração por estes sacerdotes da sociedade moderna, tinção culturais exercidas pela escola. Além disso, sua ideia somente é realizável se outras
entre os quais se destacam psicólogos, psiquiatras e sociólogos. Para uma atualização ad instituições ocupam o lugar da escola, sob a influência destas relações. A informatização
tese de M. Weber, ver COLLINS, R., The Credential Society, New York, Academic Press, da sociedade poderá, até um certo ponto, substituir a escola? É uma questão que pode
1979. ser considerada. A hipótese mais realista é, talvez, a de uma transformação da vida
3. UNESCO, (sob os auspícios de...), História do Desenvolvimento Cultural e Cientifico da Hu- escolar no sentido de uma maior utilização das novas técnicas de acesso e de adminis-
manidade, vol. I: HAWKES, J., WOOLEY, L, A Pré-História e os Princípios da Civilização, tração "académica" e de uma abertura para as atividades informais (comunicação dentro
Paris, Laffont, 1967, pp. 527 a 530 e 577 a 588. de grupos, expressão individual, tomadas de decisões, atividades livres, etc.).
4. CARTIER, M., "A China", na Enciclopédia das Civilizações da Antiguidade à Época Contempo- 17. De R. Mousnier a B. Porchnev, os historiadores estão de acordo, ao menos neste ponto.
rânea, Paris, Lidis, 1966, pp. 134 e 135. 18. Cf. MUCHEMBLED, R., Cultura Popular e Cultura das Elites, op. cit,
5. LAFAYE, J., As Civilizações Antigas da América, Paris, Lidis, 1966, p. 348. 19. Pelo menos na época dos vedas. As escolas budistas parecem ter estado abertas a todas
6. "O único fenómeno que a acompanhou fielmente (à escrita) foi a formação das cidades as castas. Cf. MYERS, E. D., op. cit., pp. 49 a 70.
e dos impérios, isto é, a integração em um sistema político incluindo um número consi- 20. As escolas religiosas e as universidades do final da Idade Média preparam seus .ilunos
derável do indivíduos e sua hierarquização em castas e em classes. "Cf. LÉVI-STRAUSS, para integrar grupos profissionais aos quais se interdita a reprodução biológico, Hsta
C, Tristes Trópicos, Paris, Plon, 1955, p. 343. particularidade mereceria uma atenção especial. A não-reprodução biológica rcdu/ ni U'n
7. Ibid., p. 344. dências à hereditariedade familiar? O nepotismo só age eficientemenlv n» selo d<- nin.i
8. A palavra classe está colocada entre aspas para indicar que a emprego no seu sentido família maior? A história do cerceamento social das universidades na Ul.idi 1 MiVli.i i i u l l r , i
genérico de macrogrupo social: castas, ordens, classes, ele. claramente que uma elitização estrita não é incompatível com a fórmula L|I- min i r | i n > i l u
9. LÉVI-STRAUSS, C., op. cif., p. 344. cão biológica de certas categorias, sobretudo quando os laços familiares sào ainda m u i l n
10. Cf. MYERS, E. D., Educntion in lhe Perspective of History, New York, Harper and Brothers atuantes. O sistema de tio para sobrinho pode se revelar muito eficaz na reprodução das
Publishers, 1960, pp. 295 e 296. posições sociais; aqui, não há hereditariedade em linha direta, mas sim uma hereditarie-
dade indireta, no interior do clã familiar. Sem dúvida, esta é menos rigorosa do que o
11. É sempre um pouco arbitrário opor as sociedades com Estado às sociedades sem Estado, sistema de herança de pai para filho. É o que a Igreja católica tende a provar, sendo um
as sociedades sem "classes" às sociedades de "classes", 33 sociedades sem escrita às dos mais importantes canais de mobilidade social até o final do Antigo Regime. Sem
sociedades com escrita, as sociedades rurais às sociedades urbanas, pois a realidade ofe- dúvida, as mais altas funções da igreja dos pobres, sobretudo as mais bem remuneradas,
rece sempre situações transitórias complexas que fazem estas distinções voar em mil continuam nas mãos das grandes famílias nobres ou burguesas. No entanto, os estudos
pedaços e exigem tipologias mais elaboradas. Aqui, trata-se unicamente de formular uma superiores de teologia continuam sendo mais acessíveis às pessoas de condição humilde
relação geral, e não de propor uma "grande partilha". Cf. GOODY, J, A Razão Gráfica, do que os de direito civil ou de medicina. A não-reprodução biológica sem dúvida con-
Paris, Ed. Minuit, 1979, pp. 245 a 267. Para uma forma de escola oral bem elementar, ver tribuiu para formar o caráter fechado das escolas religiosas, de pedagogia total e de
WATKINS, M. H., "The West África 'Bush' School", em The American Journal of Sociology, claustro: a Igreja se torna uma nova família, exige o abandono dos ambientes profanos e
vol. XLVIII, maio de 1943, n» 6, pp. 666 a 675. uma incorporação completa em uma nova vida. Incorporação completa e pedagogia total
12. MOUSNIER, R., "A participação dos governados na atividade dos governantes, na França não significam, no entanto, um modelo cultural uniforme. A teologia, da mesma forma
dos séculos XVII e XVIII", em A Pena, a Foice e o Martelo, Paris, PUF, 1970, pp. 231 a 262. que a ciência, mais tarde, se imobiliza em níveis culturais distintos. Na Idade Média,
13. Por exemplo, a abertura a Aristóteles e a conciliação entre a razão e a fé: as faculdades encontramos já pelo menos dois: as escolas elementares cristãs e as universidades. Uma
de teologia desempenham um papel importante na produção-difusão homogénea deste análise atenta revelaria, sem dúvida, outros estágios e correspondências entre estes níveis
desvio cultural; a passagem da escolástica às belas-letras, da cultura clássica à cultura hierárquicos e as divisões sociais. Tradicionalmente o baixo clero sempre foi recrutado
moderna; o emprego homogéneo da ciência em proveito do Estado, etc. dentre o povo, os bispos e cardeais dentre a nobreza, os níveis intermediários denta- .1
210 / André Pctitnl

pequi-iu e <i alta burguesia. Sem dúviiia, tutlt) isto meitveii;. um estudo mais atcnlo
suplementar, que contudo ultrapassa os limites destn pesquisa.
21. Na terceira parte deste trabalho, abordo mais detnlhadíimente os problemas relativos à
selecão dos indivíduos.
22. Este último ponto tem justo destaque nas mãos de P. Sorokin.
23. "To every class we have a school assigned
Rules for nll ranks and food for every mind"
Poema de G. Crabbe, citado por STONE, L,, "Literacy and Education in England, 1640-
1900", em Past and Present, Fev. 1969, n9 42, p. 71.
24. HAWKES, J., WOOLEY, L, op. cif., "O ensino de Khety, filho de Dauf", p. 386.
25. Cf. JERUSALÉM, M., "O trabalho: do labor, pena servil, à opus, obra pessoal", em POUPART,
J., e outros, O Trabalho, Paris, Ed. Marketing, 1978, pp. 328 a 331.

TERCEIRA PARTE

A democratização
dos estudos numa
perspectiva histórica.
Escola e produção/
reprodução das posições
sociais.
Problemas contemporâneos

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