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Currículo e cotidiano escolar: novos desafios *

Alfredo Veiga-Neto **
ULBRA — UFRGS

As disciplinas ínfimas, os panoptismos de todos os dias


podem muito bem estar abaixo do nível de emergência dos
grandes aparelhos e das grandes lutas políticas. Elas foram,
na genealogia das sociedade moderna, com a dominação de
classe que a atravessa, a contrapartida política das normas
jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder.
Foucault, 1997, p.184.

O currículo parece condenado ao desaparecimento. Para nós, educadores, essa frase


funciona como uma provocação. Ela é estranha e nos perturba. Afinal, se o currículo
desaparecer, como se darão as práticas escolares? Como serão selecionados e organizados
os conteúdos? Como serão executados os processos de ensinar e como poderá se efetivar a
aprendizagem? Quais serão os novos mecanismos para o controle e a avaliação daquilo que
é ensinado e (eventualmente...) aprendido? Ou será que até mesmo essas perguntas
perderão a importância e o sentido que têm hoje? Afinal, pode-se pensar a educação
escolar sem os nossos conhecidos processos curriculares de planejamento dos objetivos,
seleção de conteúdos, modos de colocar tais conteúdos em ação na escola e avaliação?
O fato é que —como um artefato cultural inventado há pouco mais de quatro
séculos para colocar ordem na educação escolar e constituir representações (na escola)
daquilo que se diz ser a realidade do mundo— o currículo atravessa hoje uma profunda
crise. Ela manifesta-se não apenas nos modos pelos quais ele funciona nos mais diferentes
níveis de ensino como, também, na próprias teorizações pedagógicas que o tomam como
elemento de análise e problematização. Assim, não apenas o currículo como um conjunto
de práticas escolares está em crise, mas também aquilo que se pensa, se diz e se teoriza
sobre ele. E, junto com tudo isso, entram em crise também as relações de poder que,
durante muito tempo, se estabeleceram por obra tanto do currículo em si quanto das teorias
que tratam dele.
Nesses tempos em que nada mais se sustenta no ar, o artefato que funcionou como
um documento de identidade1 parece perder, cada vez mais, a sua própria identidade.
Enquanto um documento de identidade que se colocou a serviço da disciplinaridade e da
docilidade dos corpos que a ele se submetem, agora é a sua própria identidade que está em
risco. Não se trata simplesmente de dizer que o currículo está se ressignificando, mudando
de identidade, nomadizando-se em termos identitários. Isso é pouco... Talvez mais do que
isso —e, de certa maneira, seguindo outros construtos e artefatos culturais contempo-
râneos—, trata-se de uma própria dissolução de toda e qualquer identidade que se possa
atribuir a ele.

1
Silva (1999).
Num mundo em progressiva liquefação e liquidação, em que a solidez, a estabili-
dade e as certezas sonhadas pelos inventores da Modernidade estão se derretendo, se
desmanchando e sendo colocadas todas sob suspeita, o currículo não poderia ficar imune às
mutações do pós-moderno. Num mundo em que tudo parece ser, cada vez mais intensa e
rapidamente, uma metamorfose ambulante, em que tudo o que é deixa de ser no instante
seguinte, o currículo se encontra em xeque. Afinal, se o horizonte histórico, social e
cultural em que ele foi inventado —e a favor do qual durante tanto tempo ele trabalhou—
está sendo rapidamente deixado para trás e se por toda parte se anuncia o advento de novos
paradigmas, de novas epistemes, de novas formas de vida e de novas maneiras de estar no
mundo, aquilo que chamamos de crise do currículo pode ser compreendido como um dos
efeitos dessa (assim chamada) grande crise da Modernidade.
A partir deste ponto, duas questões preliminares se colocam. Vamos a elas.

Duas questões preliminares


A primeira questão: por toda parte fala-se em crise. Ora se afirma que o mundo
todo está em crise; ora se diz que a crise maior é a dos valores éticos; ora se lamentam as
crises na educação, na saúde, na segurança; ora se acusa essa ou aquela ideologia pelas
crises que nos assolam. Mas em que consiste, afinal, a crise? Ou, talvez melhor: de onde
vem essa sensação de que tudo está em crise? E se, como argumentaram Hardt e Negri
(2003, p.93), “a própria modernidade é definida por crise”, pouco há de novo nessa crise
que nos atravessa e pela qual nós todos atravessamos, exceto a sua intensidade e a sua
abrangência. De fato, parece que jamais as sociedades humanas experimentaram de modo
tão intenso, profundo e abrangente essa sensação de crise. Voltarei a isso mais adiante.
A segunda questão diz respeito ao que se pode chamar de relações entre o
currículo e o mundo social e cultural mais amplo. No que se refere às questões aqui em
discussão, me parece muito interessante procurarmos as articulações entre a crise por que
passa o currículo e essa crise mais ampla em que estamos mergulhados na Contempora-
neidade. Conhecer tais articulações nos proporciona várias vantagens. Será mais fácil
compreendermos, por exemplo, tanto a radicalidade das relações entre currículo e cultura2
quanto o caráter contingente do próprio currículo. Para aqueles que ainda pensam o
currículo como um conjunto de manifestações (no nível pedagógico) de uma estrutura
epistemológica mais profunda, subjacente e natural —desse modo, naturalizando o currí-
culo e atribuindo-lhe um caráter necessitário—, os estudos históricos e culturais mostram a
sua “natureza” não natural, mas contingente. Isso não significa que não se possa identificar
uma epistemologia a sustentar essa ou aquela prática ou teorização curricular; mas, seja
como for, nunca se tratará de uma epistemologia geral, abrangente e capaz de abrigar toda
e qualquer concepção sobre o currículo. Em casos como esse, ao invés de pensar em uma
epistemologia assim transcendente, prefiro seguir Thomas Popkewitz e o seu conceito de
epistemologia social, um conceito que “toma os objetos constituídos como conhecimento
da escolarização e os define como elementos de práticas institucionais, historicamente
formadas através de relações de poder que dão coerência e estrutura aos caprichos da vida
cotidiana” (Popkewitz, 1994, p.197). Trata-se de um conceito que “enfatiza o caráter
relacional e social do conhecimento.” (id.)
No âmbito dessas duas questões precedentes, uma pergunta que sempre se coloca é,
por exemplo: quais os efeitos de determinadas mudanças culturais sobre o currículo? Uma

2
Veiga-Neto (2002a).

2
outra, em sentido inverso e igualmente importante: como e em que grau certas reformas
curriculares e certas ressignificações no campo do currículo podem acarretar mudanças
numa dada sociedade? Enfim e resumindo: que tem o currículo escolar a ver com o que se
passa fora da escola?
Antes de ir adiante, vale fazer um rápido comentário de ordem metodológica.
Tenho reiteradas vezes insistido3 que sempre que se fala em relações, causas e efeitos é
preciso ter o cuidado de não pensar mecânica e linearmente os fenômenos e as relações que
se dão no mundo social, seja no âmbito da cultura, da educação, da economia, da política
etc. No caso da educação, a escola deve ser pensada não apenas como produzida pela
sociedade em que se insere mas, também e ao mesmo tempo, como produtora dessa mesma
sociedade que a produz. Entre essas diferentes instâncias, dão-se relações de causa-e-efeito
que, além de complexas, não são lineares nem, muito menos, unidirecionais. Nesses casos,
quando discuto tais relações tenho recorrido ao conceito deleuziano de causalidade
imanente; a saber, “a causa imanente é aquela cujo efeito a atualiza, integra e diferencia”.
Desse modo, trata-se de uma causa “que se atualiza em seu próprio efeito”, havendo uma
“correlação, pressuposição recíproca entre a causa e o efeito” (Deleuze, 1991, p.46).
Resumindo: as relações entre o mundo do currículo e o mundo social mais amplo não são
apenas muito intrincadas e complexas; mais do que isso, trata-se de relações em que as
implicações entre os elementos em jogo se dão imanentemente.
Chegando agora ao núcleo deste texto, um lembrete: quando falo em “campo do
currículo”, tomo essa expressão no sentido mais amplo possível. Com ela me refiro tanto
ao conjunto das práticas pedagógicas curriculares —que vão da definição dos objetivos da
escolarização até os processos de avaliação, passando pelo planejamento, pela seleção de
conteúdos, pelas práticas e metodologias de ensino etc.—, quanto a todo o conjunto das
mais diferentes teorizações sobre o currículo.4

O núcleo
Colocadas essas considerações preliminares, entro no núcleo deste texto.
O que desenvolverei a seguir será uma discussão um tanto preliminar e resumida
acerca daquele que eu considero ser um dos maiores desafios que hoje se coloca para o
campo do currículo. Refiro-me à situação paradoxal de, por um lado, pensarmos e
praticarmos uma educação escolar centrada na estrutura curricular e, por outro lado,
tentarmos fazer isso em articulação com uma perspectiva filosófica —ontológica, ética,
epistemológica— que pretende se despedir do plano da transcendência que vem
dominando a Pedagogia há mais de quatrocentos anos. Em outras palavras: é possível
apostarmos no currículo e, ao mesmo tempo, colocarmos nossas fichas na celebração do
cotidiano? Ou, se quisermos: é possível combinar o caráter transcendente do currículo com
o caráter imanente do acontecimento? Ou, ainda: como ficam a solidez e a rigidez do
currículo frente à liquidez evanescente e a flexibilidade do mundo da vida?
Para que essas perguntas façam mais sentido e para que se possa pensar em
algumas quase-respostas para elas, é preciso levarmos em conta três questões: o

3
Para detalhes, vide principalmente Veiga-Neto (2001, 2002, 2008).
4
Isso não implica, é claro, tentar separar a prática da teoria. Seria preciso lembrar que não apenas não há
teorização sem práticas como, também, a própria teorização (enquanto “ação de teorizar”) é uma prática? E
seria preciso lembrar que não há prática —que (pelo menos) faça sentido como tal— sem teoria que a
“sustente”?

3
compromisso do currículo com o plano da transcendência, a Modernidade como crise
permanente e a virada para a imanência.
Assim, mais do que responder de modo direto e decisivo a essas perguntas, o que
segue pretende servir de subsídio para que outros levem adiante a discussão; ou para que
eu mesmo faça isso no futuro...

Currículo e transcendência
Em primeiro lugar, é preciso levarmos em consideração que o currículo foi
inventado no final do século XVI, justamente quando se iniciava a Modernidade. Dito
apenas assim, esse enunciado traz pouca novidade. Ele ficará mais rico se, como já referi,
acrescentarmos que a invenção do currículo estava íntima e fortemente conectada com a
invenção da própria Modernidade. Em vários outros lugares discuti pormenorizadamente
tal conexão (Veiga-Neto, 1996, 2002, 2004). Neste texto vou adiante, relacionando a
invenção do currículo com um embate que se travou naqueles primórdios da Modernidade.
Com isso, penso ser possível compreender melhor, mais refinadamente, por que e em que
medida o currículo contribuiu para que a Modernidade se estabelecesse na forma como se
estabeleceu. Penso ser possível, também, compreender o quanto o currículo está fundado
na —e, por isso, comprometido com a— transcendência e, nesse sentido, inscreve-se numa
visão de mundo que trabalha pela solidez e pela estabilidade e contra a evanescência e a
flexibilidade.
A fim de dar andamento a esse “ir adiante”, é preciso colocar a questão num quadro
histórico mais amplo. Refiro-me, mais precisamente, que é preciso colocá-la na moldura
do conflito que, no Renascimento tardio, se estabeleceu entre duas frentes: uma delas, um
pouco mais antiga, a frente a favor do plano da imanência; a outra, a frente a favor do
plano da transcendência. Enquanto que o plano da imanência começou a se apresentar já
no século XIV como a grande alternativa revolucionária radical em relação ao pensamento
transcendente da Idade Média —e, dessa maneira, pretendendo destruir as relações com o
passado medieval—, o plano da transcendência, que sucedeu ao primeiro, funcionou como
“uma contra-revolução no sentido próprio da palavra” (Hardt e Negri, 2003, p.92). A
transcendência se instalou como uma “iniciativa cultural, filosófica, social e política que,
por não poder se voltar ao passado nem destruir as novas forças, procurou dominar e
expropriar a força dos movimentos e dinâmicas emergentes” (id.). Contra o primeiro modo
de ser moderno, radicalmente inovador, —ou seja, contra uma Modernidade imanente cuja
emergência se dera em oposição ao pensamento sagrado-transcendente medieval—,
levantava-se um segundo modo de ser moderno —uma Modernidade transcendente, de
cunho reacionário, “que se opunha à reapropriação do poder pela multidão” (id.). O
conflito deu-se como um jogo entre “um poder constituído transcendente e um poder
constituído imanente, ordem contra desejo” (id.).
Em suma, a Modernidade nasceu e cresceu sob o signo dos conflitos; nas palavras
de Hardt e Negri (2003, p.94), “a Modernidade européia é, desde o princípio, uma guerra
em duas frentes”.
A Segunda Modernidade, reavivando parte do passado medieval, repôs o plano de
transcendência. A reposição atendia a determinadas vontades de poder, na medida em que
o transcendentalismo combina com ideologias de comando e de autoridade, servindo assim
excepcionalmente bem para a dominação e a contenção, seja no âmbito religioso, seja no
âmbito político. Por outro lado, o plano de imanência, liberando perigosamente o
pensamento, a vontade e a ação, colocava em risco justamente os programas políticos e

4
econômicos que se encaminhavam ainda timidamente para a constituição dos Estados
nacionais. Dessa maneira, é fácil ver por que houve tanto investimento a favor do plano de
transcendência.
Assim, se a Primeira Modernidade, em sua negação aos valores e formas de vida da
Idade Média, representava o advento da secularização, do profano e da liberdade na
Europa, a Segunda Modernidade representou um freio a tudo isso. A Europa voltava a
apostar no sagrado, agora travestido sob outras roupagens, tidas como seculares. Mesmo
afirmando-se secular, mesmo pensando em deslocar o sagrado para o profano, o huma-
nismo dessa Segunda Modernidade européia não conseguiu —até mesmo muito recente-
mente— se livrar do transcendentalismo platônico e monoteísta (Peters, 2007). Tanto a
vertente do platonismo quanto a vertente dos monoteísmos5, vêm há mais de quatro séculos
alimentando e servindo de sustentação ao pensável, ao visível e ao dizível no mundo
ocidental. Isso tem sido assim nas mais diferentes esferas dos saberes e das práticas sociais
modernas; e é claro que a própria Pedagogia não é exceção...
O resultado daquele enfrentamento inaugural é bem conhecido: venceram os
herdeiros de Platão. Passadas as primeiras décadas de florescimento do plano de imanên-
cia, volta a transcendência e repõe-se o arco platônico. O resultado disso foi que “no século
XVII, a Europa voltou a ser feudal” (Hardt & Negri, 2003, p.94). Mas, ao fim e ao cabo, o
que se deu foi uma vitória de Pirro pois, mesmo vencedor, o plano de transcendência até
hoje não teve sossego. O plano da transcendência continuou no âmago do pensamento
moderno, ainda que muitas vezes de modo disfarçado. Por outro lado e por sua vez,
também o plano da imanência espreita à sombra o pensamento moderno; manifestando-se
em diferentes perspectivas filosóficas e programas políticos6, ele continua sombreando e
assombrando a transcendência.
O currículo, justamente por ser um artefato cultural e escolar centrado na ordem, na
representação e na disciplina identificava-se perfeitamente com o plano de transcendência,
colocando-se claramente contra a imanência. No âmbito da educação escolar —isso é, no
âmbito da “preparação das novas gerações”—, o currículo contribuiu fortemente para
“restabelecer ideologias de comando e autoridade, e assim exibir um novo poder trans-
cendente jogando com a ansiedade e o medo das massas, seu desejo de reduzir as
incertezas da vida e aumentar a segurança” (Hardt e Negri, 2003, p.93).
No que concerne à “preparação das novas gerações”, é bom lembrar que, além da
educação escolar —e em articulação com essa—, também a religião ainda exercia papel
importantíssimo na Europa; e, aliás, continuaria sendo assim pelos séculos seguintes. Cabe
lembrar que ambas as universidades onde pela primeira vez aparece o uso da palavra
curriculum com o sentido que ainda hoje atribuímos a ela foram Leiden e Glasgow, centros
intelectuais “fortemente influenciados por idéias calvinistas” (Hamilton, 1992, p.42).
Acrescento a isso o fato de que a Universidade de Leiden foi fundada em 1575, como uma
retribuição do Príncipe de Orange (protestante) aos cidadãos da cidade de Leiden por sua
resistência ao cerco dos espanhóis (católicos). Assim, ainda que desde sua fundação essa
universidade tenha se notabilizado pela defesa da liberdade de pensamento e expressão —o
que está registrado pelo seu lema Præsidium Libertatis7—, ela estava profundamente
comprometida com o pensamento cristão, cujo transcendentalismo impregnava, é claro,
tanto os católicos quanto os protestantes. Para ambos, não havia lugar para o imanentismo

5
Leia-se, neste caso, do judaísmo e do cristianismo. Num âmbito mais amplo, vale incluir o islamismo.
6
Como em Spinoza, em Bakunin, em Nietzsche etc.
7
Essa expressão pode ser traduzida um tanto livremente como “bastião da liberdade” ou “fortaleza (em
defesa) da liberdade”.

5
da Primeira Modernidade. Por isso, a organização curricular —enquanto operadora da
ordem (disciplinar) e da representação— acabou servindo como uma luva para ambos,
protestantes e católicos.
Nunca será demais sublinhar esses fatos pois, entre outras coisas, tal entendimento
desfaz a tradicional imagem de que a invenção do currículo tenha se dado como uma
operação epistemológica, como resultado da ação de pessoas inteligentes e inovadoras que
teriam “descoberto” uma maneira de tornar mais organizado e produtivo o funcionamento
da educação escolarizada. Tal organização e tal produtividade ocorreram de fato, mas não
foi propriamente a busca de ambas que moveu os inventores do currículo. Bem mais do
que isso, essa invenção colocava-se tanto a serviço de uma episteme que assumia o plano
da transcendência quanto contra uma outra, logo vencida, que operava no plano da
imanência. Para dizer de outra maneira: o currículo não foi primeiramente inventado e,
depois, colocado a favor de uma das frentes que estavam em luta. Ele surgiu como um
novo saber —sobre como organizar e colocar em funcionamento outros saberes—, gerado
num circuito em que estavam em jogo tanto a vontade de poder das frentes em luta quanto
certos regimes de verdade que davam curso à dominação e ao próprio poder. Em suma, o
currículo emergiu nas lutas que marcaram a passagem da Primeira Modernidade para a
Segunda Modernidade; e, dado seu caráter necessariamente transcendente, ele colocou-se
desde sempre do lado dessa última.

A Modernidade como crise permanente


A sensação de crise que atravessou toda a Modernidade e que hoje atinge propor-
ções alarmantes é, em boa parte, a manifestação do desassossego e da assombração
causadas pelo conflito permanente que entre si travaram o plano da imanência e o plano da
transcendência. Nas palavras de Hardt e Negri (2003, p.93-94), a crise nasceu “do conflito
ininterrupto entre as forças imanentes, construtivas e criadoras e o poder transcendente que
visa restaurar a ordem. Esse conflito é a chave do conceito de modernidade, mas foi
dominado com eficácia e refreado”.
Além disso, a sensação de crise pode ser também entendida como a “manifestação
do diferencial entre as tentativas de prever e dominar o acontecimento e o seu caráter
justamente imprevisível” (Veiga-Neto, 2008, p.4). Assim, “a crise corresponde à distância
entre aquilo que pensamos e planejamos que venha a acontecer e aquilo que efetivamente
acaba acontecendo. Nossa sensação de crise é a medida da diferença entre o esperado,
sonhado, desejado e o obtido, atualizado, conseguido” (id.).
A essas alturas, pode-se perguntar se o planejamento do futuro —imediato ou
remoto— não teria sido desde sempre uma prática comum em qualquer cultura. A resposta
é, obviamente, afirmativa. Mas o que é novo na Modernidade é que se acredita mesmo que
tal planejamento, desde que bem feito, acabe necessariamente dando bons frutos. O
homem moderno acredita que o futuro funcionará conforme aquilo que foi planejado,
desde que o planejamento esteja bem feito. Isso é assim porque o homem moderno não só
tomou para si o próprio tempo como, também, aposta mais no necessitarismo da
transcendência do que na contingência da imanência.
Assim expliquei essa questão (Veiga-Neto, 2008, p.4): “perdendo a sacralidade
com que era experienciado e compreendido ao longo da Idade Média, [na Modernidade] o
tempo foi deixado nas mãos dos homens”; ocorreu a secularização e a humanização do
tempo. Com isso, os homens sentiram-se donos do seu próprio destino. E, porque se vêem
donos de si, sentem-se também responsáveis por si mesmos. E quanto mais os homens

6
arrogam a si o direito e a capacidade de apreender e controlar o seu inapreensível e
incontrolável futuro, maior a angústia que eles geram em si mesmos ao ver fracassado seu
projeto. A (sensação de) crise é o preço que eles pagam por pensarem ser donos de seu
futuro. Pode-se dizer, então, que a (sensação de) crise é uma das manifestações mais
palpáveis e perturbadoras da arrogância do sujeito moderno em relação ao controle que ele
pensa ter sobre o seu devir.
Na repetida frustração gerada pela não consecução do planejado, esse sujeito acaba
se sentindo como alguém que deve estar sempre analisando o que passou e recomeçando
aquilo que não conseguiu realizar. Aqui se compreendem as palavras de Bauman (1998,
p.20), em toda a sua profundidade: “pode-se definir a Modernidade como a época, o estilo
de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem
‘tradicional’, herdada e recebida; em que ‘ser’ significa um novo começo permanente”. É,
então, desse começar e recomeçar de novo próprio da Modernidade que, em boa parte, nos
vem também a sensação de crise.
Além disso, também a percepção que hoje temos do tempo, que nos parece cada
vez mais acelerado, contribui para aumentar a sensação de crise. Ao recorrer à metáfora da
física dos sólidos e dos líquidos, Zygmunt Bauman identifica também na raiz da grande
crise a progressiva liquefação do mundo contemporâneo e a aceleração do tempo8: os
fluidos “não fixam o espaço nem prendem o tempo”, isso é, “não se atêm muito a qualquer
forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la”, de modo que se “os
sólidos suprimem o tempo, para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa”
(Bauman, 2001, p.8).
Mas, nem tudo são sombras... Ao contrário de vermos a crise como algo sempre
indesejável, como a face sombria e negativa da Modernidade, proponho que se siga
Hannah Arendt, quando ela argumenta que as crises não são, por si mesmas, negativas
(Arendt, 1997). No mesmo sentido vai Borheim (1996, p.49), para quem, nas crises, “não
parece haver um rastro de negatividade —ao contrário: há a força de escolher, julgar,
discernir, debater; são palavras ligadas à força do pensamento e, portanto, à criação da
filosofia, da ciência”. Para ambos, os momentos críticos, por mais críticos que sejam, nos
abrem oportunidade para a reflexão e para a ação, no sentido de mudarmos os
acontecimentos. Desse modo, “as crises têm, em si mesmas, uma positividade que não
devemos desperdiçar” (Veiga-Neto, 2008, p.5).

A virada para a imanência


Com isso, chego ao terceiro (e último) ponto a ser comentado. Trata-se da atual
virada para a imanência, com o correlato enfraquecimento da ênfase no plano da
transcendência.
O começar e recomeçar de novo que atravessou toda a Modernidade, a repetida
frustração em não conseguir controlar o futuro, o permanente embate entre as forças da
imanência contra as forças da transcendência e a vertiginosa aceleração do tempo social
acabaram por levar a (permanente) crise da Modernidade a níveis cada vez mais altos e
insuportáveis. Como referi antes, o que é novo, de algumas décadas para cá, é a forte
intensidade e a ampla abrangência dessa (sensação de) crise. A famosa frase de Marx sobre
o desmanche dos sólidos parece-nos, mais do que nunca, inteiramente atual.

8
Aqui não me refiro, é claro, aos conceitos que a Física tem sobre tempo. Estou tratando do tempo individual
e social, como ele é percebido, “utilizado”, significado nas práticas sociais.

7
Tal estado de coisas está contribuindo para o descrédito em relação ao plano da
transcendência e, simetricamente, para que se deposite mais confiança no plano da
imanência. Expressões hoje usuais como flexibilização, cotidiano, incerteza, volatilidade,
contingência, indeterminação, liquefação e acontecimento (entre várias outras) são
manifestações do crescente descrédito na solidez, estabilidade e tranqüilidade prometidas
pelos defensores do plano da transcendência. De certa forma, então, parece estar havendo
uma nova configuração das forças em conflito há meio milênio. É por considerar que tal
nova configuração está desfigurando a Modernidade que muitos afirmam que os tempos
modernos estão sendo deixados para trás.
No contexto do que está sendo aqui discutido, importa pouco o nome que podemos
dar a esse novo tempo, a esse novo estado da cultura9: pós-modernidade, modernidade
tardia, contemporaneidade, hipermodernidade, modernidade líquida etc. O que interessa é
termos claro que o longo ciclo da Segunda Modernidade está chegando ao fim (se é que já
não chegou...). Isso não significa o simples desaparecimento do plano da transcendência,
mas sim o seu deslocamento para certos âmbitos específicos dos saberes e das práticas
sociais. Temos bons exemplos de tal deslocamento no forte crescimento de determinadas
práticas e instituições religiosas e na expansão de certos tipos de fundamentalismos
(religiosos e políticos).
Mas, de qualquer modo, cada vez parece mais expressiva a quantidade e aqualidade
daquilo que é produzido por aqueles movimentos culturais e vertentes teóricas que vêm
assumindo, implícita ou explicitamente, o plano da imanência. Nas palavras de Hardt e
Negri (2003, p.159), “o pensamento pós-moderno foi recebido por uma ampla esfera de
especialistas como toque de clarim de um novo paradigma de prática acadêmica e
intelectual, e como oportunidade real de desalojar os paradigmas dominantes de conheci-
mento em seu próprio terreno”.
Em termos da Pedagogia e, em particular, no campo do currículo, a virada para a
imanência acarreta alguns problemas que me parecem ainda pouco discutidos. Na medida
em que ela coloca sob suspeição tanto as metanarrativas iluministas —sempre tão caras ao
pensamento político e pedagógico moderno— quanto os discursos totalizantes —sobre o
mundo, a sociedade, os sujeitos e a própria Educação—, não há dúvida de que a virada
para a imanência puxa o tapete sobre o qual se assenta a maior parte das certezas dos
educadores modernos. Questões como definição dos objetivos, seleção dos conteúdos e
critérios para a avaliação são tão mais problemáticas quanto mais nos afastamos das
metanarrativas e, principalmente, do imperativo da totalidade.
Alguns desses problemas parecem estar sendo ou resolvidos ou contornados, graças
a certos deslocamentos conceituais e metodológicos pensados e propostos por autores
afinados com o pensamento pós-moderno. Ora fugindo dos discursos e das práticas da
Grande Pedagogia —uma denominação que me parece apropriada para designar a tradição
moderna que trata dos saberes e das práticas educacionais no registro do plano de
transcendência—, ora procurando examinar microscopicamente o cotidiano das práticas
escolares —a fim de formular novas teorizações—, ora experimentando novas alternativas
práticas —quase sempre mais pontuais e específicas—, o fato é que o cenário geral me
parece bastante promissor.

9
Tomo de empréstimo essa expressão de Lyotard (1988, p.xv), quando ele propôs chamarmos de pós-
moderno esse novo “estado da cultura após as transformações que afetaram as regras do jogo da Ciência, da
Literatura e das Artes, a partir do final do século XIX”.

8
Mas é claro que, outras vezes10, os problemas são varridos para debaixo do tapete,
como se a Grande Pedagogia pudesse ser, automaticamente e por um simples ato de
vontade, relida e ressignificada no plano da imanência.
O que considero mais importante nisso tudo é o fato de que parece aumentar, no
campo do currículo, a quantidade de pesquisadores e pesquisas que se mostram sensíveis
ao plano de imanência, sensíveis aos detalhes do acontecimento, sensíveis ao mundo da
vida. Mesmo assim, ainda é preciso avançar no sentido de disponibilizar, de forma mais
ampla e prática, ao imenso contingente de professores e professoras —cuja formação se
deu segundo perspectivas centradas plano da transcendência— o que está sendo produzido
por aqueles pesquisadores.

Quase-respostas
Chegados ao final deste texto, recoloco as questões propostas anteriormente. Uma
das perguntas já feitas serve como idéia-chave: é possível combinar o caráter transcendente
do currículo com o caráter imanente do acontecimento?
Penso que ainda não temos condições de dar uma resposta acabada a uma pergunta
desse tipo; mas isso não nos impede de ensaiarmos algumas considerações adicionais que
podem funcionar como quase-respostas para ela.
Se continuarmos pensando no currículo como um artefato estável, seguro e sólido, a
resposta é fácil: não haverá como ficarmos com o currículo e, ao mesmo tempo, pensarmos
e apostarmos no caráter imanente do cotidiano —pelo menos, em termos de extrair dele
tudo o que ele pode nos dar e ensinar. Nesse caso, ao contrário de aprendermos com o
cotidiano, só nos restará a prática tradicional e arbitrária de forçá-lo a obedecer o que todos
pensam já saber sobre como ele deve ser e funcionar.
Se pensarmos em ressignificar o currículo, temos de ter claro que será preciso
empreender um processo radical: descentrá-lo do plano de transcendência e desviá-lo para
o plano de imanência. Mas nesse caso, pode acontecer que, levando tal ressignificação ao
extremo —ou seja, transformando finalmente o currículo num artefato centrado no plano
da imanência—, se chegue a uma outra situação paradoxal: de não termos mais, diante de
nós, um artefato a que se possa chamar de currículo. É claro que sempre alguém poderá
dizer que tanto faz, que o currículo é aquilo que nós dizemos que ele é, que podemos
chamar de currículo qualquer constructo ou artefato que quisermos etc. Tal nominalismo é,
no fundo, uma saída pela tangente, pois não resolve o problema prático que se tem pela
frente. Afinal, se alguém quiser chamar de currículo isso ou aquilo, sem guardar algum
compromisso, por menor que seja, com o artefato escolar que vem funcionando há quase
meio milênio, então também estamos livres para dizer que isso ou aquilo que estão
chamando de currículo não é um currículo. Cai-se, assim, num tipo de discussão
improdutiva e nada interessante.
Por outro lado, talvez se possa ressignificar também tanto o próprio conceito de
cotidiano quanto as análises que hoje se fazem sobre ele. Mas também aqui a situação não
é simples.
Como se vê, tais discussões colocam desafios ao campo do currículo que não são
nem simples nem, muito menos, fáceis de resolver.

10
Ou, talvez, na maioria das vezes.

9
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Neste texto, problematizei as relações entre a rigidez e a flexibilidade, entre a
solidez e a fluidez, entre a fixidez e a evanescência, entre a transcendência e a imanência.
Tais relações funcionam como combustível à própria crise da Modernidade.
Rigidez e flexibilidade, solidez e fluidez, fixidez e evanescência, transcendência e
imanência são estados, condições e atributos irredutíveis entre si. Mesmo assim, isso não
impede, é claro, que os objetos aos quais eles se ligam ou se referem sejam tratados em
conjunto. Não que isso seja feito para que se busque dar um tratamento dialético àquilo que
alguns costumam ver como uma contradição entre opostos. Meu argumento vai em outra
direção que nada tem a ver com a dialética: talvez o mais interessante seja mesmo
continuar mantendo a tensão entre o plano da transcendência e o plano da imanência, de
modo a obter desse diferencial a energia para alimentar os nossos entendimentos e as
nossas práticas no campo da Educação. Mas isso só poderá ser feito de modo racional e
produtivo se conhecermos as afinidades e as (in)compatibilidades envolvidas em cada
situação, em cada relação. Se não for assim, poderemos estar dando um tiro no próprio pé
ou simplesmente fazendo um furo na água.

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* Este texto foi preparado para ser apresentado e discutido no Simpósio Diálogo sobre
Diálogos, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em março de 2008.

** Alfredo Veiga-Neto é Mestre em Genética, Doutor em Educação, Professor do


Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado) da Universidade Luterana do Brasil
—ULBRA— e Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Educação
(mestrado e doutorado) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul —UFRGS.
alfredoveiganeto@uol.com.br

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