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Copyright © by Ana Maria Monteiro, Adriana Ralejo et al.

, 2019

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C316
Cartografias da pesquisa em ensino de história / organizadoras Adriana
Ralejo, Ana Maria Monteiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2019.
304 p. : il. ; 15,5 x 23,0 cm.
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-9068868-6
1. História - Estudo e ensino - Avaliação. 2. Livros didáticos - Brasil
- História. 3.Currículos - Planejamento. I. Ralejo, Adriana. II. Monteiro,
Ana Maria.

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644


Sumário

Apresentação — Cartografias da pesquisa em Ensino de História 7


Ana Maria Monteiro e Adriana Ralejo
Prefácio 15
Helenice Rocha
PARTE 1 19
Três territórios a compreender, um bem precioso a defender:
estratégias escolares e Ensino de História em tempos turbulentos 21
Fernando Seffner
De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento
de Michel Foucault para a pesquisa no campo do Ensino de História 43
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

PARTE 2 61
Ensino de História: uma incursão pelo campo 63
Mauro Cezar Coelho e Taissa Bichara
A Pesquisa em Ensino de História no Brasil:
potência e vicissitudes de uma comunidade disciplinar 85
Sonia Regina Miranda
Produção sobre Ensino de História
em periódicos acadêmicos brasileiros (1970-2016) 113
Nadia G. Gonçalves
Enseñanza de la historia en Argentina: un panorama de investigaciones y redes 127
María Paula González
Pesquisa em Ensino de História:
desafios contemporâneos de um campo de investigação 143
Carmen Teresa Gabriel
Vestígios de leituras e escritas nas rotinas cotidianas do
Ensino de História no Brasil (décadas de 1930-1960) 163
Cristiani Bereta da Silva
Investigar em Ensino de História: entre fronteiras e limites epistemológicos 187
Flávia Eloisa Caimi e Letícia Mistura
Sentidos de “negro” no Ensino de História: articulações em contextos
de referência para a produção do conhecimento no livro didático 199
Warley da Costa
Em nome da ordem: as escolas municipais paulistanas na
ditadura civil-militar (1964-1985) e a professora por evocação 217
Helenice Ciampi
Qual o lugar da diferença na pesquisa em Ensino de História? 239
Cinthia Monteiro de Araujo
O documentário Os guardiões da Lagoa: a universidade no espaço do quilombo 255
Carlos Augusto Lima Ferreira
Os saberes dos professores sobre os conhecimentos que ensinam:
trajetórias de pesquisa em Ensino de História 271
Ana Maria Monteiro
APRESENTAÇÃO

Cartografias da pesquisa em Ensino de História

Ana Maria Monteiro1 e Adriana Ralejo2

O fazer pesquisa em “ensino de História” tem se configurado, no Brasil,


em território contestado e com sentidos disputados por pesquisadores das
áreas de conhecimento da Educação e da História. A partir de diferentes lu-
gares, referenciais teóricos e perspectivas de abordagem, uma produção de
conhecimentos sobre os currículos e a docência nessa disciplina tem se cons-
tituído, sendo reconhecida e legitimada, ou não, por seus pares.
O “ensino de” como “lugar da prática” ainda é, por muitos, desvalorizado,
entendido como “vazio de saberes”, de teoria, o que repercute sobre os sen-
tidos a ele atribuídos. “Ensino de”, “lugar de docência”, lugar teórico no qual
saberes são mobilizados, de forma tácita muitas vezes, mas para os quais as
pesquisas têm contribuído na compreensão da complexidade teórica da reela-
boração didática ali realizada; “lugar político” no qual saberes são seleciona-
dos, afirmados, negados, contestados. Didáticas são propostas na busca de re-
produzir/desestabilizar hierarquias sociais, produzir identidades, memórias,
problematizar posições de sujeito.
Governos de diferentes alinhamentos políticos e ideológicos têm se mos-
trado atentos e interessados em promover ou controlar o ensino dessa disci-
plina escolar que tem se mantido nos currículos há mais de dois séculos. Pelo

1 Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Laboratório de Estudos


e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH), pesquisadora do Laboratório do Núcleo de Estudos
Curriculares (LaNEC) e do Grupo de Pesquisa Oficinas da História. Professora do Programa de
Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação (PPGE/FE) e do Programa de Pós-
graduação em Ensino de História do Instituto de História (PPGEH/IH) da UFRJ.
2 Professora de História da educação básica e assessora pedagógica de área de conhecimento.
Formadora regional do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC/RJ). Pesquisadora
do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH), do Laboratório do Núcleo
de Estudos Curriculares (LaNEC) e do Grupo de Pesquisa Oficinas da História.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 7


exposto, pode-se afirmar que o ensino de História é, efetivamente, um lugar
político no qual disputas em torno da relação saber/poder se efetivam nos
documentos, nas políticas, no currículo, nas práticas escolares, na produção
de memórias.
Como tem se constituído esse lugar no contexto educacional brasileiro?
Que perspectivas teóricas e abordagens têm sido privilegiadas? Como têm
sido estabelecidas as relações entre diferentes grupos de pesquisa dessa co-
munidade disciplinar? Entre esses grupos e os agentes das políticas governa-
mentais? Entre pesquisadores do ensino da História e os historiadores? Entre
pesquisadores e professores dessa disciplina escolar?
Acreditamos que, passados trinta anos da realização do I Encontro Pers-
pectivas do Ensino de História, realizado na Faculdade de Educação da Uni-
versidade de São Paulo em 1988 – quando, pela primeira vez, foi realizado
um movimento organizado que reuniu professores e pesquisadores para dis-
cutirem questões relacionadas ao ensino dessa disciplina e seu currículo –, é
oportuno e necessário traçar um diagrama das forças e saberes que constitu-
íram e constituem historicamente essa área de conhecimentos. Cremos que,
agora, temos condições para fazer um mapa que nos auxilie a compreender
a emergência da produção de saberes, das relações de força que atravessam
essa produção naquilo que é central e tem se afirmado, mas também naquilo
que tem permanecido nas margens, ou interditado, negado no meio das lutas
por hegemonia travadas entre governos, instituições e comunidades discipli-
nares por meio de políticas curriculares, discursos oficiais e/ou contra-hege-
mônicos. Enfim, uma cartografia que não apresente um “retrato” de um certo
momento no qual posições estão fixadas, mas que possibilite compreender as
disputas, os movimentos, tensões e deslocamentos na dinâmica de produção
de conhecimentos nessa área estratégica do sistema educacional.
Área de pesquisa que mereceu pouca atenção até a década de 1980, o en-
sino de História teve seu interesse instigado principalmente no contexto da
abertura política que caracterizou o fim do regime militar e a instauração do
processo de redemocratização do país. Novos tempos eram inaugurados e,
entre os muitos desafios políticos, sociais, culturais e educacionais, a História
a ser ensinada passou a se configurar como questão a ser enfrentada. Enten-
dia-se que era chegada a hora de superar perspectivas anacrônicas do ponto de
vista historiográfico presentes nos currículos e de viabilizar um ensino capaz
de “formar cidadãos críticos e agentes de transformação social”.
Com base em Cuesta Fernandez (1998), alguns autores defendem que, no
Brasil, pode-se definir uma periodização com quatro momentos de definição
e redefinição do código disciplinar da História escolar: construção do código

8 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO


disciplinar da História no Brasil (1838-1931); consolidação do código discipli-
nar da História no Brasil (1931-1971); crise do código disciplinar da História
no Brasil (1971-1984); reconstrução do código disciplinar da História no Brasil
(1984-?) (SCHMIDT, 2012, p. 78).
De acordo com essa proposta, prossegue Schmidt, a partir de 1984 teria
sido iniciada a “reconstrução do código disciplinar da História no Brasil”,
período que pode ser caracterizado por um intenso movimento de renovação
na seleção dos conteúdos a serem ensinados: de uma história tradicional a
uma história militante, engajada; de uma história político-administrativa a
uma história econômica ou sociocultural; de uma forma de organização cur-
ricular linear para uma história temática, por eixos temáticos ou integrada;
de metodologias de ensino baseadas em questionários, exercícios de memo-
rização, para uma proposta de ensino baseada em problematizações e no uso
de fontes que aproximam o ensino de História das perspectivas da História
dos historiadores.
Assim, na década de 1980, críticas acentuadas foram apresentadas, par-
tindo de diferentes grupos e por diferentes motivos. Mas o que podemos ve-
rificar é que a História “a ser ensinada” ou “ensinada” foi posta em questão,
foi problematizada: no momento da retirada dos Estudos Sociais do currículo
do então Primeiro Grau – em relação a esse aspecto havia praticamente uma
unanimidade entre professores e historiadores -, optava-se pelo retorno das
disciplinas História e da Geografia. Mas que História? Que Geografia?
Por outro lado, observou-se um investimento crescente de profissionais
envolvidos com a formação de professores de História na busca de sua quali-
ficação em cursos de Mestrado e Doutorado e que escolheram como objeto de
pesquisa o ensino e a formação de professores nessa disciplina. Localizados
em sua grande maioria em Faculdades de Educação, iniciaram a constituição
de um campo: o de pesquisa em ensino de História.
Esse objeto, ao longo desses anos, começou a receber a atenção dos his-
toriadores que até então não demonstravam maior interesse pelas questões
educacionais. Ao longo dos anos 2000, temos observado um deslocamento
das disciplinas de Didática e de formação de professores para Departamentos,
Faculdades e Institutos de História que buscam assumir a responsabilidade
por essa formação e com abordagens que procuram se diferenciar daquelas
assumidas pelos pesquisadores localizados em Faculdades de Educação.
Esse processo inaugura a afirmação de um novo código disciplinar? Ou
estamos ainda em pleno processo de disputas pela reconstrução desse código?
Na busca de afirmação do “ensino de” como tempo/espaço de produção de
conhecimentos, foi criado, em 1993, o Encontro Nacional de Pesquisadores

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 9


do Ensino de História (ENPEH), que tem sido realizado em diferentes uni-
versidades públicas brasileiras, desde a sua primeira edição, na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), até a 11ª. edição, na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) em 2017.
O ENPEH é um evento que tem se consolidado como referência para os
pesquisadores dessa área de pesquisa ao longo de sua trajetória. A partir de
2006, a criação da Associação Brasileira do Ensino de História (ABEH) vem
contribuindo para o seu reconhecimento como o acontecimento mais signifi-
cativo no âmbito da pesquisa em ensino de História no Brasil.
A décima primeira edição desse evento, como mencionado, foi realizada na
UFRJ, na Faculdade de Educação, campus da Praia Vermelha, na cidade do Rio
de Janeiro, entre 26 e 29 de setembro de 2017. Teve como promotores, além
da UFRJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade
Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (UNIRIO), a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e contou com
o apoio da ABEH.
A Comissão Organizadora do XI ENPEH, elegeu como temática “Pesquisa
em ensino de História: desafios de um campo de conhecimento”. Essa opção
deveu-se ao reconhecimento do crescimento significativo do número de pesqui-
sadores e grupos que assumem o ensino de História como linha de pesquisa no
século XXI, principalmente desde 2010, e cuja produção tem sido divulgada nos
principais periódicos brasileiros (GONÇALVES e MONTEIRO, 2017).
Apesar da satisfação que essa constatação produz, considerou-se que era
tempo de avaliar, problematizar essa produção e questionar: o que tem signi-
ficado “fazer pesquisa” nessa área? Quais os sentidos atribuídos ao ensino de
História? Objeto de conhecimento? Campo de investigação/lugar de produção
de conhecimento? Como têm sido enfrentados os desafios epistemológicos da
contemporaneidade pelos pesquisadores dessa área? Quais as escolhas realiza-
das face à pluralidade de apostas políticas possíveis no cenário atual? Como as
reformulações curriculares propostas no atual contexto das políticas educacio-
nais no Brasil têm sido significadas nas pesquisas? Desafios ou perspectivas?
O “ensino de História” se configura como um “código disciplinar” (CUESTA
FERNANDEZ, 1998) ameaçado face à contestação da validade dessa forma de
organização para o enfrentamento das demandas educacionais contemporâ-
neas? O fato de se constituir como “lugar de fronteira” (MONTEIRO, 2007)
entre História e Educação fragiliza sua potencialidade como área de conheci-
mento? Ou expressa uma especificidade epistemológica reconhecida nas pro-
duções originais que as pesquisas têm possibilitado (re)conhecer?

10 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO


No contexto de reformas curriculares que colocam em questão o ensino da
disciplina História na educação básica, propor a discussão dos desafios da pes-
quisa em ensino de História como campo de conhecimento buscou, também,
atender a demandas que têm permeado as discussões sobre as reestrutura-
ções curriculares em curso no Brasil e as disputas pela hegemonia sobre essa
produção. Expressou, também, o anseio por reafirmar o papel do ensino de
História na formação da cidadania, formação essa que passa pelas práticas do
ensino de História para o desenvolvimento de posturas políticas em relação à
vivência cidadã e que precisam das contribuições da pesquisa para a compre-
ensão de seus desafios e dilemas.
Nessa edição de 2017, os trabalhos inscritos foram organizados em quatro
Grupos de Pesquisa em Diálogo (GPDs). A organização constituída teve por
objetivo criar espaços nos quais fosse possível reconhecer, a partir dos traba-
lhos apresentados, um panorama de quatro eixos: pesquisa; didática e currículo;
demandas sociais; e políticas públicas. Como objetivo, ponderamos a possibili-
dade de estabelecimento de diálogos, a verificação de aproximações e diferenças
entre as abordagens, posicionamentos teóricos dos grupos de pesquisa repre-
sentados, considerando os procedimentos teórico-metodológicos, as categorias,
os conceitos e as hipóteses utilizados, bem como seus resultados. Para a coor-
denação dos GPDs, a Comissão organizadora convidou professores brasileiros
com reconhecida atuação e produção de pesquisa em ensino de História. A eles
foi atribuída a responsabilidade pela avaliação e indicação dos trabalhos a serem
apresentados e discutidos nas respectivas sessões dos GPDs.3
Ao criar espaço para a discussão e reconhecimento da potencialidade da
área do ensino de História como campo de conhecimento, buscou-se, como
vimos, construir uma cartografia dessa área, na qual a dinâmica das relações
entre produção de saberes e poderes, em perspectivas macro e micro, pudesse
vir a ser constituída e reconstituída, contribuindo para a emergência/redefini-
ção de objetos, problemas, metodologias, sujeitos pesquisadores, sentidos de
pesquisa em ensino de História.
Em contexto no qual o ensino de História tem sido interpelado e ameaçado
por políticas públicas e fundamentalismos que buscam controlar e silenciar
práticas curriculares no país, entendemos que essa cartografia se apresenta
como forma de reafirmar o direito à produção científica e a seu acesso, no
caso, o direito ao conhecimento histórico, por todos os cidadãos.

3 Os nomes dos pesquisadores que coordenaram os GPDs, assim como os trabalhos


apresentados, podem ser encontrados nos ANAIS do XI ENPEH. Acessar: https://www.
xienpeh.ufrj.br/ANAIS.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 11


Neste livro, apresentamos os textos de pesquisadores convidados pela Co-
missão Científica e que permitem aos leitores também construir uma carto-
grafia de investigações que estão sendo desenvolvidas no Brasil, dos sujeitos
e grupos de pesquisa nelas constituídos, dos sentidos atribuídos à pesquisa
nessa área.
Organizá-lo representou o desafio de reunir, com coerência, trabalhos com
focos e abordagens diferentes. Na primeira parte, expomos os textos que dis-
cutem questões teórico-políticas envolvidas no fazer pesquisa em ensino de
História. O texto de Fernando Seffner, que abre essa parte, analisa os territó-
rios que caracterizam o campo do Ensino de História. A seguir, Durval Albu-
querque Júnior, baseado no pensamento de Michel Foucault, visualiza outros
olhares sobre o ensino de História, a partir da concepção de uma “genealogia
do poder” que constitui o campo da Educação.
Na segunda parte, contamos com as contribuições de pesquisadores que
apresentam cartografias desse fazer pesquisa. Mauro Cezar Coelho e Taissa Bi-
chara enfocam os Grupos de Pesquisa registrados no Diretório do CNPq, para
compreender como a área do ensino de História atua no campo acadêmico.
Sonia Miranda configura como esse campo tem se tornado um lugar de luta
por representação e legitimação, no qual se tem constituído uma comunidade
de pesquisadores. Já Nadia Gonçalves trabalha com um mapeamento de pro-
duções científicas sobre o ensino de História registradas em periódicos acadê-
micos, percebendo um aumento significativo dessas produções. María Paula
González, traçando um panorama sobre o ensino de História na Argentina,
evidencia potencialidades nas redes de cooperação entre Brasil e Argentina
que têm proporcionado diálogos, avanços e novas indagações. Por fim, Carmen
Teresa Gabriel, com base em referenciais do pós-fundacionalismo e da Teoria
do Discurso, posiciona essa área de investigação como um campo de luta me-
diante os desafios contemporâneos enfrentados.
Na terceira parte, os autores expõem pesquisas por meio das quais é pos-
sível conhecer trabalhos nessa área e compreender especificidades de apor-
tes teórico-metodológicos que têm sido utilizados. Cristiani Bereta aborda as
práticas culturais de leitura e escrita relacionadas ao ensino de História entre
1930 e 1970, permitindo um olhar sobre parte do cotidiano escolar e da cons-
trução de saberes dos estudantes. Flávia Caimi e Letícia Mistura desenvolvem
argumentação teórica a fim de defender a potencialidade do entendimento do
ensino de História como um “lugar de fronteira”, em que relações de poder se
apresentam em diálogos e disputas. Warley da Costa apresenta resultados de
sua pesquisa, que busca compreender como questões étnico-raciais são mobi-
lizadas na produção do conhecimento histórico escolar, principalmente frente

12 ANA MARIA MONTEIRO E ADRIANA RALEJO


às atuais propostas curriculares oficiais. Helenice Ciampi faz uma análise de
memórias pessoais, profissionais e institucionais, assim como de práticas de
professores de História da rede municipal de São Paulo durante o período da
ditadura militar no Brasil, visando contribuir na percepção dos professores
em relação ao seu protagonismo, para além das amarras ideológicas. Cinthia
Araujo enfoca políticas de currículo para o ensino de História, em busca de pa-
drões de estabilidade para a manutenção da tradição disciplinar, bem como de
sinais de alternativas à tradição, acreditando que o saber histórico escolar pode
se tornar um espaço de diálogos interculturais. Carlos Augusto Ferreira discute
o desenvolvimento de projeto interdisciplinar para a realização de atividades
em espaço escolar de uma comunidade quilombola no âmbito do Programa
Interinstitucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), articulando ensi-
no, pesquisa e extensão, o que possibilita novos olhares sobre a produção do
conhecimento em História Local, identidade, memória e cidade. Finalizando,
Ana Maria Monteiro apresenta trajetória de pesquisa para a qual tem estabe-
lecido diálogo com Lee Shulman, para analisar os saberes dos professores a
respeito dos conhecimentos históricos que ensinam.
Esperamos que este trabalho possa ajudar pesquisadores e professores
dedicados ao ensino de História a reconhecerem a sua área de atuação, os
desafios enfrentados e as potencialidades que permitem a continuidade de
discussões por um ensino de qualidade em nosso país.

Referências bibliográficas

CUESTA FERNANDEZ, R. Clio em las aulas. La enseñanza de la Historia en España


entre reformas, ilusiones y rutinas. Madrid: AKAL,1998.
GONÇALVES, N. G.; MONTEIRO, Ana Maria F. C. Saberes e práticas docentes e
ensino de história: temas, conceitos e referenciais (1970-2014). Educação em Revis-
ta, UFMG, v. 33, 2017.
MONTEIRO, Ana Maria F. C. Ensino de História: lugar de fronteira. In: ARIAS
NETO, J. M. (org.). História: guerra e paz. Londrina (PR): ANPUH/Editorial Mídia,
2007. 323 páginas.
SCHMIDT, M. A. M. dos S. História do Ensino de história no Brasil: uma proposta
de periodização. Revista História da Educação, v. 16, n. 37, p. 73-91, maio-ago. 2012.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 13


PREFÁCIO

Helenice Rocha1

Prefaciar o livro Cartografias da pesquisa em ensino de História é discorrer so-


bre um campo que vem se constituindo em uma espiral ascendente no Brasil,
a partir da década de 1980. Década de abertura democrática e consequente
reformulação educacional em diferentes frentes, naquele momento o ensino
de História viu surgirem grupos de pesquisadores preocupados com o compo-
nente curricular – tanto na dimensão de seu ensino quanto na de sua pesquisa
–, o que foi o fundamento da constituição desse campo: a ação conjunta.
Como sabemos, uma espiral ascendente realiza movimentos que se repe-
tem e se ampliam, fortalecendo sua base. A realização do XI Encontro Nacio-
nal dos Pesquisadores do Ensino de História em 2017 é mais uma demonstra-
ção dessa vitalidade, documentada exemplarmente neste livro. O evento foi
planejado e realizado como momento ímpar de reunião dos pesquisadores e
de grupos de pesquisa, que puderam apresentar um rico painel de suas prin-
cipais reflexões. Ao escrever este prefácio, também tenho a oportunidade de
observar mais uma volta na espiral do campo do Ensino de História.
Além do XI ENPEH, nessas quase quatro décadas colecionamos outros
indicadores da maior importância sobre a constituição desse campo e de sua
cartografia: o Encontro Perspectivas do Ensino de História, a publicação de
um sem-número de dossiês sobre o ensino de História, a constituição formal
de grupos de pesquisa e o aumento exponencial de estudos sobre o ensino de
História, bem como a diversificação das temáticas em diálogo com diversas
áreas de conhecimento. Tudo isso atesta a vitalidade e a diversidade cada vez
maiores, presentes nesse espaço social.

1 Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando no


Departamento de Ciências Humanas, no PPGHS e no ProfHistória. Coordena o grupo de
pesquisa interinstitucional Oficinas de História. No período de 2017-2020, pesquisadora
PROCIENCIA UERJ/FAPERJ, com o projeto “Narrativas nos livros didáticos de História:
tradição e rupturas”.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 15


Para Pierre Bourdieu, todo campo “é um campo de forças e um campo de
lutas para conservar ou transformar esse campo de forças” (BOURDIEU, 2004,
p. 22-23). O presente livro também registra a luta dos pesquisadores e grupos
de pesquisa no ensino de História. E cada realização, especialmente as que agre-
gam o conjunto do campo, é mais uma demonstração de sua vitalidade, pois
alimenta intelectualmente esse coletivo de pesquisadores, os interessados no
ensino de História e os docentes em formação e em atividade nas escolas.
Este livro, bem como o evento que lhe deu origem, possui uma pretensão
inovadora. A de ir além das marcas constituintes do campo, entre a Educação
e a História. A escola é um espaço complexo, em que, para ocorrer o ensino
de História, diversas condições que extrapolam o conhecimento disciplinar
precisam ser atendidas. Entre elas, é preciso que se estabeleça a relação entre
professor e alunos, pautada em uma cultura escolar que se construiu no tem-
po, regulada socialmente. Possivelmente, pela multiplicidade de objetos, pro-
blemáticas e abordagens que a escola como espaço social requisita, o campo
do Ensino de História possua mesmo um pertencimento simultâneo e inexo-
rável à Educação e à História. Os capítulos desta obra evidenciam essa riqueza
de diálogos, ao evocar ora uma área, ora outra para responder às questões
propostas nas pesquisas a que se referem.
Como dito, especialmente a partir da década de 1980, a pesquisa sobre
o ensino de História no Brasil começou a se estruturar como campo de pes-
quisa. Antes, o ensino de História correspondia principalmente à prática dos
professores no ensino básico em cada nível, e eventuais incursões ensaísticas
de historiadores, educadores ou pensadores sociais acerca da sua importância
ou impactos e de sua necessidade de permanência ou mudança curricular, fi-
losófica ou metodológica. No final do século XX houve investimentos teóricos
diversos em pesquisas sobre o ensino de História, propiciando o estabeleci-
mento efetivo desse campo.
Com o início em algumas regiões do país e irradiação para outras, as pes-
quisas sobre o ensino de História começaram a vir a público. E, conforme vie-
ram a público as primeiras dissertações e teses referenciadas na Educação ou
na História, passou a haver o diálogo generoso com aportes da Antropologia,
Filosofia, Política, Estudos da Linguagem e outros. A escola e suas práticas,
para serem escritas, exigem mesmo perspectivas que considerem sua com-
plexidade. Simultaneamente, acompanhando a pós-graduação em nosso país,
constituíram-se grupos de pesquisa fomentados pelo CNPq. O XI ENPEH
procurou valorizar essa forma de organização dos pesquisadores no Brasil. E
isso tudo propicia e fortalece a espiral ascendente que mencionamos no início
deste prefácio.

16 HELENICE ROCHA
Parte significativa das contribuições deste livro tangencia essas trajetórias
– individuais e de grupos de pesquisa – que têm constituído o campo do Ensi-
no de História. São os olhares de pesquisadores que, da perspectiva da Histó-
ria e da Educação, apreciam aspectos, o momento e a dinâmica interna desse
campo, mapeiam o território e fazem sua cartografia.
A pesquisa do ensino de História também dialoga responsivamente com as
demandas sociais de nosso país. O momento é de expectativas contraditórias
no que a ele se refere como prática no ensino básico e como formação docente.
Ao mesmo tempo que reconhecemos pontos fortes e frágeis na trajetória de
nossa democracia, o ensino, e em especial o ensino de História, vem receben-
do ataques por sua potencialidade de formação política das novas gerações,
por seu diálogo e informação. Esta obra também registra tal movimento, em
busca de transformação e de manutenção, na relação com o campo do Ensino
de História em sua face de prática social da política e da ética, a qual a pesqui-
sa registra, reflete e acompanha.
Finalmente, mais uma vez em inspirado movimento prospectivo de nossa
espiral, voamos para as possibilidades do ensino de História com o texto de
Durval Albuquerque Junior. Entre as reflexões sobre o campo do ensino e as
lutas para seu estabelecimento, as diversas pesquisas sobre o ensino de His-
tória de ontem e de hoje, após pulsarem em resposta a demandas e questio-
namentos atuais, são acolhidas na reflexão que propõe uma poética do ensino
de História.
Dessa maneira, o livro Cartografias da pesquisa em ensino de História merece
um lugar na prateleira das produções em ensino de História como referên-
cia da constituição do próprio campo, marco de um evento importante de
pesquisadores dessa área. Parabéns aos organizadores, grupos de pesquisa e
participantes que constituem cotidianamente o campo do Ensino de História,
fortalecendo-o inclusive em suas contradições e lutas instauradoras. É uma
leitura instigante para os que tiverem essa oportunidade.

Referência bibliográfica

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: UNESP, 2004. 86 p.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 17


PARTE 1
Três territórios a compreender, um bem precioso a defender:
estratégias escolares e Ensino de História em tempos turbulentos

Fernando Seffner1

Você vê muito, mas talvez saiba pouco

No lugar que visito profissionalmente diversas vezes por semestre, vejo


muito, escuto praticamente tudo, sinto cheiros, percebo olhares, não falo qua-
se nada, apenas me apresento e digo o mínimo, anoto tudo o que consigo
anotar, poucas vezes me tocam, só toco em alguém quando solicitado, respon-
do poucas perguntas porque poucas perguntas me são feitas, mas sinto que
muita coisa está sendo feita porque eu ali estou, está sendo feita para que eu
olhe, e, por vezes, se aguarda a minha reação. Fico inundado de impressões,
e o meu maior medo é ver muito e entender pouco, eventualmente esquecer,
sem antes anotar. É perder meu olhar nos contornos da agitação dos corpos e
das falas e não compreender o que está acontecendo. O texto que segue é um
esforço para dar conta de entender todas as possibilidades desse lugar, que é a
sala de aula de ensino de História, tal como outros esforços escritos que já fiz
individualmente ou com colegas, como se pode ver em Gil e Seffner (2016) e
Seffner (2012; 2010; 2017). Volto sempre a esse lugar que muito me agrada:
estar sentado no fundo de uma sala de aula, em uma escola pública, sem outra
tarefa que não seja observar algum estagiário ou estagiária, por vezes uma dupla
em regime de docência compartilhada, e uma classe de alunos e alunas em ação.
Mas a coisa aqui vai seguir um rumo um pouco diferente. O foco segue
sendo a sala de aula de História, o momento em que um professor ou uma
professora, na frente de uma classe de alunos e alunas, em qualquer nível ou

1 Docente no Programa de Pós-graduação em Educação PPGEDU/UFRGS e no Mestrado


Profissional em Ensino de História – ProfHistória Polo UFRGS. Orientador de estágios
docentes em ensino de História junto ao Departamento de Ensino e Currículo Faculdade de
Educação UFRGS. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/2541553433398672.
E-mail: fernandoseffner@gmail.com

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 21


grau, busca dar andamento a explicações sobre a História. Recolho narrativas,
procuro compreender, e traço um mapa. Um mapa não descreve a realidade,
e nem esse é meu propósito. Elaboro um mapa para encontrar caminhos, ru-
mos, alternativas a essas aulas de História. Por isso falo em territórios, mas sei
que “O mapa não é o território. [...] Um romance não é a vida” (VERÍSSIMO,
2008, p. 118). O foco é, então, elaborar mapas, conhecer trilhas e rumos, para
dar o melhor destino àquela aula de ensino de História. O melhor destino está
sempre ligado à possibilidade de acontecerem, naquelas aulas, aprendizagens
significativas em História, o que implica um caminho de qualidade e um bom
ponto de chegada. Aprendizagens significativas dizem respeito a conteúdos
aprendidos e formas pedagógicas vivenciadas que façam diferença na vida da
classe de alunos e alunas, e também na vida dos estagiários e estagiárias. A
História é entendida como um conhecimento narrado. Mas a narrativa não
pode ser pobre, sob o risco de ter valor meramente informativo. Há que se
combinar a narrativa de situações históricas com a construção de categorias
teóricas que estruturam o raciocínio histórico. Ensino de História, Teoria e
Metodologia da História não se separam em momento algum, embora possam
ser analiticamente distinguidos no planejamento de uma aula.
Naquele momento sentado no fundo da sala de aula, estou vendo alunos,
alunas e estagiários e estagiárias. Mas estou vendo também os elementos sem-
pre presentes das muitas culturas juvenis a falarem pela boca do alunado; os
elementos que estruturam nosso curso de Licenciatura em História e toda
a produção historiográfica e da área do ensino de História a se expressarem
na aula que foi planejada e está em execução; percebo no desempenho dos
estagiários um mundo de coisas que lhes veio dos anos em que estiveram sen-
tados na posição de alunos, aprendendo, entre outras coisas, a serem profes-
sores; capto os traços dos grandes embates das políticas públicas de Educação
e as grandes encruzilhadas e crises que assolam a escola pública brasileira
nos últimos anos; escuto falas que trazem para a sala de aula os discursos da
sociedade, a saber, discursos de pertencimentos religiosos, partidários, dos
movimentos sociais, da família, das mídias, dos enfrentamentos e impasses
que atravessam o cenário político brasileiro contemporâneo; escuto referên-
cias a nomes de pessoas, políticos, lideranças e organizações; escuto disputas
entre meninos e meninas; disputas entre meninos; disputas entre meninas;
queixas familiares. Estou praticando uma modalidade de etnografia das cenas
escolares, apoiando-me, entre outros, nos textos da coletânea de Clifford e
Marcus (2017), articulando conhecimentos de sociedade, cultura e linguagem,
e com categorias próprias do campo da cultura escolar, como currículo, apren-
dizagens, relação ensino-aprendizagem, avaliação, disciplina, pedagogias cul-
turais, pedagogias do gênero e da sexualidade, artefatos pedagógicos, jogos,

22 FERNANDO SEFFNER
estratégias didáticas. O chamado “conteúdo” de História vai sendo exposto,
e vai trombando nas vidas daquele grupo de jovens. E produzindo faíscas das
mais interessantes. Mas pode também produzir simples desinteresse.
A conjuntura política brasileira contemporânea está marcada por ataques à
democracia e à diversidade cultural, com retorno de práticas autoritárias. Cons-
titui um desafio teórico, pedagógico e político pensar um ensino de História
que incorpore a Educação em temas sensíveis, promova indagações sobre os
sentidos do passado e do presente, e remexa as concepções naturalizadas da
formação da nacionalidade brasileira, buscando ampliar o compromisso demo-
crático das culturas juvenis. Há esforços no sentido de colonizar a escola, a
função docente e as políticas públicas de Educação pelos códigos morais de
alguns pertencimentos religiosos e do que, por vezes, se apresentam como sen-
do “os valores da família”, sem especificar exatamente de que família se está
falando. Nessa conjuntura, é delicada a tarefa da escola que dispõe os alunos a
questionarem saberes que foram aprendidos no âmbito da família e no interior
dos pertencimentos religiosos. É para isso que se vai à escola, para entrar em
contato com valores do mundo público, da justiça social, da ética republicana,
das liberdades laicas – a saber, a mais ampla liberdade de consciência, a mais
ampla liberdade de crença e a mais ampla liberdade de expressão. Não se manda
uma criança à escola para que lá se repitam exatamente os valores familiares
e religiosos. É certo que aqui temos um terreno de enfrentamentos, mas vale
lembrar que a tarefa da escola é dupla: alfabetização científica e sociabilidade do
espaço público. As razões de ordem científica – por exemplo, aquelas ligadas à
saúde sexual e reprodutiva – podem não coincidir com valores familiares e reli-
giosos sobre o mesmo tema. A sociabilidade no espaço público – que contempla
igualdade de tratamento entre homens e mulheres – pode colidir com crenças e
moralidade religiosa que, muitas vezes, naturalizam uma “posição inferior” das
mulheres. Mas, repetimos, é para isso que se vai à escola, para a ampliação de
horizontes, e não para a simples confirmação de expectativas trazidas da família
ou outros ambientes.
E isso é tarefa do ensino de História? É sim, pois toda aula de História
tem como um dos seus objetivos viabilizar condições para que alunos e alunas
se interroguem sobre sua própria historicidade. Ou seja, se percebam como
produzidos por processos históricos e inserções sociais. Se gosto disso ou
daquilo, se penso isso ou aquilo, se considero tal coisa certa e outra errada,
se prefiro o Ocidente ao Oriente, tudo isso é o resultado das marcas histó-
rico-sociais que me produziram. Posso modificá-las, claro está, a partir do
momento que me dou conta delas e dos processos de produção histórica a que
fui – e estou sendo – submetido. Esse não é um raciocínio individual apenas.
Também a estrutura familiar em que estou inserido, a sociedade mais ampla

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 23


na qual vivo, meu país, minha língua de comunicação com o mundo, a escola
na qual estudo são resultado de processos históricos. A cada aula de História
acrescentamos alguns elementos para que alunos e alunas se qualifiquem para
entender que são sujeitos da História. Assim percebendo, poderão se qualificar
para serem também sujeitos que fazem a História, no sentido de que assumem a
realização histórica de si mesmos e das estruturas que os rodeiam. O mundo em
que vivemos não nasceu pronto, não está sempre igual, tradições se modificam,
valores mudam, o que já foi considerado perfeitamente dentro das leis e das
normas – por exemplo, ter escravos – agora não é mais permitido. A aula de His-
tória é lugar adequado para aprender sobre essas questões, com apoio em fontes
e conceitos. E de uma forma dialogada, levando em conta a dimensão ética e
política do espaço público: local onde se negociam as diferenças entre os modos
de ver, perceber e viver o mundo. Onde se exercita a tolerância, mas, sempre
que possível, a aceitação do outro. Se na minha casa posso regrar como quiser,
no espaço público tenho que negociar com os demais, de um modo democráti-
co. Esse aprendizado é fundamental, e a escola é o lugar dele, como preparação
para a vida no espaço público. A escola, mesmo quando privada, é uma extensão
das políticas públicas de Educação, que constituem, sobretudo, um direito: ao
nascer em tal lugar, tenho direito ao mais elevado nível de educação ali possível.
Isso é bom para mim, e para a sociedade na qual nasci e vou viver.
O ensino de História ajuda a produzir um futuro para os jovens, pois lhes
fornece ferramentas e informações para entender a historicidade do mundo,
situada aí a própria vida de cada um. Tal possibilidade de lhes acenar com um
futuro – grandioso ou não, mas, em todo caso, possível de ser perseguido –
revela a enorme força do ensino de História. Faz mover os sujeitos, tal como a
cartomante Madame Carlota instila em Macabéa, personagem principal de A
hora da estrela, de Clarice Lispector: um poderoso desejo de futuro, acenando
com a possibilidade de ela conhecer um “moço alourado”, após ter caído em
tristeza e resignação pela perda do namorado nordestino:

Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida
de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira
tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma
perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a
cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito
e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou:
seus olhos faiscavam como o sol que morria. (LISPECTOR, 1998, p. 79)

Com essas preocupações em mente, o texto busca ajudar na resposta à


questão do evento que lhe deu origem: pesquisa em ensino de História: de-

24 FERNANDO SEFFNER
safios de um campo de conhecimento.2 De olho no que ocorre no campo da
historiografia, e do que ocorre no campo do ensino, e do que ocorre no entorno
desses campos. O campo do ensino se configura nos dias de hoje como campo
de batalha, e muito do que se faz nas aulas de História tem sabor de resistên-
cia para colocar a nu as estratégias do poder. A resistência político-pedagógica
não é tarefa menor. Não é por se dizer “estamos resistindo” que o trabalho de
professores e professoras de História deve ser visto como em condição inferior.
Parte dos esforços de resistência envolve, inclusive, a própria permanência da
História enquanto disciplina escolar, em todos os níveis e graus. Uma luta já en-
frentada, na época dos Estudos Sociais, embora com outros contornos. Resistir
não é atitude nova na área do ensino de História. Se uma sociedade ganha con-
tornos mais nitidamente conservadores e autoritários, não há garantia alguma
de que tal não aconteça também com o ensino de História. Aqui se aposta em
um ensino de História dialogado e democrático, capaz de desenhar novos futu-
ros. O futuro não pode ser a repetição indefinida do presente.
É com tudo isso na cabeça, e muito mais certamente, que me sento no fundo
de salas para assistir a aulas de História. Situado esse meu lugar, que me per-
mite saber das minhas possibilidades, intenções e aflições, parto dele para a ele
retornar ao final deste artigo. O caminho contempla examinar três territórios
e suas práticas: um curto olhar no território Brasil e algumas questões de seu
momento político; um exame de alguns dos impasses que envolvem a escola
pública de modo geral, e, mais particularmente, a escola pública brasileira; e
algumas considerações sobre a figura central do empreendimento educacional,
a saber, professores e professoras, tomados enquanto servidores públicos. Feito
isso, retorno à sala de aula de ensino de História e, coerente com a proposta de
mapa já traçada acima, identifico pistas e sugiro caminhos e atitudes. O bem
precioso a defender, como alude o título, é um ensino de História de qualidade.

Brasil: se assoprar posso acender de novo3

Difícil arriscar em poucas palavras uma explicação para o cenário contem-

2 O texto é fruto da palestra de abertura do XI Encontro Nacional de Pesquisadores em Ensino


de História – Pesquisa em ensino de História: desafios de um campo de conhecimento,
setembro de 2017, UFRJ. Na sua redação, buscou-se preservar algumas marcas da fala.
Maiores informações em: https://xienpeh.ufrj.br/. Acesso em: 28/01/2018.
3 A frase “se assoprar posso acender de novo” é uma estrofe da música Já fui uma brasa,
de Adoniran Barbosa (1910-1982), e aqui empregada para indicar tempos pós-Constituição
Federal de 1988, em que o calor democrático aqueceu o país, ao contrário das cinzas que
hoje sepultaram muitas das iniciativas da época passada.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 25


porâneo brasileiro. Mas se faz necessário pelo menos situar, neste texto, a
posição política de quem escreve sobre a história imediata, pois que ela tem
consequências para o mapa de alternativa ao ensino de História. Começo com
uma afirmação simples: estamos vivendo um momento de atropelamento do
regime democrático. O ano de 2016 teve menos densidade democrática do
que o ano de 2015. No ano de 2017, experimentamos nova redução demo-
crática. E no momento em que escrevo este texto, vivemos a dúvida de saber
se efetivamente teremos eleição presidencial no final do ano, e se nela poderá
concorrer o candidato que tem a preferência em qualquer pesquisa de opinião.
Há um clima de guerra não declarada contra minorias sociais, o que se revela
pela elevação dos casos de agressão – e inclusive morte – de mulheres, de
população LGBT, de negros e negras, de população pobre em geral, de jovens
homens negros, e de outros grupos vulneráveis socialmente. Há, claramente,
uma tentativa de criminalizar os movimentos sociais e cercear a liberdade de
expressão. Protestar é tratado como crime, mesmo quando o protesto visa
um governante que experimenta a pior avaliação em toda a série histórica das
estatísticas desse tipo. Há dois elementos fundamentais que sustentam um
regime democrático, e os dois se encontram em conflito com outras lógicas: o
direito da liberdade de manifestação (modalidade da liberdade de expressão),
na contramão da criminalização dos movimentos sociais; e a existência dos
sujeitos coletivos, os sujeitos das causas sociais, na contramão da noção de
sujeito empreendedor individualista. Não há possibilidade de democracia sem
estes dois elementos: liberdade de manifestação e sujeitos coletivos. E esses
dois elementos se encontram sob ataque.
Associado ao fenômeno político acima, derivam outras iniciativas que im-
plicam constrangimento democrático: redução da cidadania pela via da perda
ou diminuição de direitos (caso das reformas trabalhista ou da previdência);
criminalização do direito de protestar, com a votação de legislação como a
do terrorismo, que permite supor que manifestações tradicionais da cultura
política brasileira possam agora ser julgadas pela ótica de ataques terroristas;
criminalização das culturas juvenis, com exemplos claros no que se refere
ao funk e ao hip-hop; crescimento dos casos de intolerância religiosa, com
invasão de locais sagrados de uma religião por membros de outra, imposição
de cultos de determinadas religiões em espaços públicos, votação de leis de
isenção de impostos com claro favorecimento a determinadas religiões; pre-
domínio do discurso tecnocrático na solução de conflitos, fazendo crer que a
discussão política atrapalha as decisões de ordem racional, e não permitindo
perceber que a razão não elimina o julgamento político das prioridades; for-
te crise na noção de democracia representativa, com elevada desconfiança da
população em relação aos ocupantes dos cargos públicos e partidos políticos;

26 FERNANDO SEFFNER
avanço do discurso da meritocracia, fazendo crer que todos têm possibilida-
de de igual desempenho, desde que se esforcem, e deixando de visibilizar as
enormes desigualdades que caracterizam a maioria das sociedades, a brasileira
em particular. No cenário global, e já com repercussões no Brasil, vivemos
uma atmosfera difusa de oposição Oriente e Ocidente, entre nós se dissemi-
nando certo medo dos “bárbaros” e de um possível “choque de civilizações”,
afetando as ideias de nação – passado comum e futuro comum – e de preo-
cupação com a “origem” de cada povo ou grupo social (TODOROV, 2010). E,
por fim, o forte predomínio de um discurso da crise, que se converteu em um
modo de gerenciar a contemporaneidade, cumprindo o papel de estreitar o de-
bate político, pois lida com a noção de alternativa única, em afirmações do tipo
“tivemos que tomar tal medida por conta da crise” ou “não há como fazer isso
por causa da crise” ou “a situação de crise não permite que ...”. O encurtamen-
to do debate político explica, em parte, a volta do discurso da família como
base da sociedade, em vez de se discutir que é a qualidade do espaço público
que pode garantir uma boa base para a sociedade. Assistimos também a uma
colonização do espaço público por valores familiares, com forte influência, por
exemplo, na possibilidade de abordagem dos temas de gênero e sexualidade, e
no enfraquecimento da noção de Estado laico.
Uma hipótese política importante deste texto é a de que vivemos tem-
pos de avanço dos discursos do privado na Educação, comprometendo seu
caráter de política pública. Dissemina-se na sociedade certa ideia de que os
valores de mercado – competição e concorrência, liberdade de regulamenta-
ção, direito do consumidor, livre disposição dos bens conforme a vontade de
seus proprietários, isenção de impostos e aposta na livre movimentação de
capital e de pessoas – seriam os mais adequados para informar as políticas
públicas de Educação, dentre outras. Com isso, noções de solidariedade, de
reconhecimento da vulnerabilidade social de certos grupos, de estratégias de
cooperação nos estudos, de gestão democrática da escola – questão prevista
em legislação federal e de todos os estados –, de participação coletiva nas
decisões, de mútua ajuda, de criação de mecanismos legais para superar desi-
gualdades históricas – como é o caso dos sistemas de reservas de vagas ou de
cotas – seriam marcas culturais do atraso e dos privilégios, e que deveriam ser
eliminadas da cultura escolar.
Seguindo essa orientação privatista, individualista e meritocrática, o ter-
ritório escolar não é mais visto como campo de experimentações políticas e
abertura de possibilidades, mas de treinamento para a vida como ela é, reifi-
cando os valores sociais vigentes para as novas gerações, em vez de permitir
que elas tenham a oportunidade de discutir sua pertinência. Paralelamente a
isso toma força a ideia de que a Educação é um empreendimento puramente

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 27


técnico. Vale dizer que, nos regimes democráticos, o campo educacional se
encontra profundamente conectado com o campo dos direitos humanos, origi-
nando a Educação em Direitos Humanos como disciplina escolar em algumas
oportunidades. Para o caso brasileiro, bastaria lembrar duas importantes po-
líticas públicas, já previstas na Constituição Federal de 1988: a promulgação
do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2006) e das
Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2013). A
estas se somaram as legislações estaduais, dando forma aos comitês de Educa-
ção em Direitos Humanos. O período democrático pós-Constituição Federal de
1988 nos legou uma sintonia entre políticas públicas de Educação e políticas
públicas de Direitos Humanos. Essa conexão alimentou a percepção de que o
território escolar é um território altamente político. Nenhuma sociedade delega
a formação dos jovens a uma instituição apenas por sua racionalidade técnica.
Há aí um importante componente político. A própria educação é claramente um
instrumento de garantia de outros direitos sociais e individuais. Certamente
indivíduos que apresentam um grau de escolarização mais elevado estão em
condições de lutar por seus direitos de modo mais adequado. A trajetória esco-
lar é momento de experimentar a participação política, o desenvolvimento de
opiniões originais e próprias sobre o mundo, o alargamento de horizontes na
compreensão do social, por vezes efetivamente se afastando de alguns valores
familiares ou religiosos, o que, hoje em dia, provoca imenso pânico.
A escola não pode estar apartada dos acontecimentos políticos que saco-
dem a sociedade, e em um momento turbulento como o que vivemos no país,
menos ainda. E é justo neste momento que crescem as manifestações para que
a educação se restrinja ao seu componente “técnico”.4 A criança e posterior-
mente o jovem, enquanto realizam seu percurso escolar, o fazem dentro de
uma política pública que é reconhecida pelas Nações Unidas – com o aval do
Brasil – como promotora simultaneamente do direito econômico, do direito
social e do direito cultural.5 De modo um tanto esquemático, podemos dizer
que se defrontam, em nível global, dois campos de proposição do que seja
a tarefa educacional de oferta pública (estatal ou não). De um lado, tendo

4 Pablo Gentili analisa duas situações recentes em dois países distintos nos quais a escola se
vê demandada a problematizar acontecimentos políticos do seu entorno, e as reações das
autoridades em cada caso. Trata-se da disputa de terras na Argentina envolvendo o povo
Mapuche, e das tensões recentes na região da Catalunha. Disponível em: https://elpais.com/
elpais/2017/09/13/contrapuntos/1505337330_354035.html. Acesso em: 29/01/2018.
5 O documento oficial das Nações Unidas sobre esse tópico está disponível em: https://conf-
dts1.unog.ch/1%20SPA/Tradutek/Derechos_hum_Base/CESCR/00_1_obs_grales_Cte%20
Dchos%20Ec%20Soc%20Cult.html. Acesso em: 25/01/2018.

28 FERNANDO SEFFNER
como agente fomentador em particular as diretrizes e documentos do Banco
Mundial, e campanhas do tipo “aprendizagem para todos”, se afirma que os
princípios básicos das políticas educacionais devem visar o aprendizado para
a atuação competitiva junto aos mercados e devem se construir sistemas de
avaliação dos aprendizados para verificar de que modo as competências e ha-
bilidades aprendidas na escola revelam o ajuste entre o sistema educacional
e as demandas do desenvolvimento econômico. De outro lado, em especial
na coletânea majoritária dos documentos acordados pelo sistema das Nações
Unidas e suas agências, que se utilizam em geral da expressão “educação
para todos”, se expressa a visão de que a tarefa educativa é mais ampla do
que aquela das “aprendizagens”, contemplando fortemente lidar com valores
que promovam o desfrute de outros direitos, estratégias pedagógicas partici-
pativas, desenvolvimento junto aos jovens não apenas da alfabetização e da
habilidade de calcular, mas também a valorização da capacidade de negociar
conflitos de forma não violenta, desenvolver o espírito crítico e a noção de
emancipação social, atentar para as situações sociais em que diferenças podem
se transformar em desigualdades. Para o caso brasileiro, a visão de Educação
mais próxima daquela das Nações Unidas se torna muito importante, pois ela
conecta a escola com o compromisso de construção e manutenção da demo-
cracia, e a democracia é um bem raro na história brasileira, restrita a poucos
períodos. Entre nós, em geral, quando identificamos situações de impasse ou
problemas no exercício democrático, tendemos a solucionar isso com a redu-
ção da densidade democrática, processo que está acontecendo na conjuntura
atual do país. Todo esse cenário traz consequências para o ensino de História,
e, por conta disso, a sua compreensão é importante.

Escola: ir ao encontro, ir de encontro

A escola, e em especial a escola pública, enfrenta conjuntura difícil já por


algumas décadas, em parte como resultado dos confrontos ao nível das polí-
ticas públicas de Educação, já elencados no item anterior. São unânimes duas
constatações ao se pensar o caso brasileiro. A primeira é a de que a escola
sofre de certo “atraso” tecnológico e mesmo no seu desenho estrutural, frente
aos “avanços” contemporâneos, especialmente em termos de flexibilidade e
diálogo com as culturas juvenis. A segunda é a de que a escola ainda é o equi-
pamento social mais importante para as tarefas de alfabetização científica, so-
cialização e sociabilidade das crianças e jovens. Mesmo com o enorme acesso
às redes sociais, muitas vezes as redes de amizades se articulam na web a par-
tir das vivências escolares. No caso brasileiro, o grande avanço no processo de

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 29


escolarização ainda vem produzindo efeitos em todos os níveis, seja no acesso ao
ensino superior, seja na progressão mais rápida das meninas e sua inserção com
mais escolaridade no mercado de trabalho, seja pelo crescimento da demanda por
escolas de turno integral. No Brasil atual, a escolaridade está prevista para iniciar
aos 4 anos de idade, estendendo-se até o final do ensino médio, num total de 14
anos, notável avanço para a situação de duas décadas atrás.
Não é mais possível viver a condição infantil e juvenil no Brasil sem ser em
estreita conexão com o sistema escolar, e penso que ainda não conseguimos
dimensionar, de modo adequado, todas as consequências disso. Uma delas é
bastante clara. Os ataques que cada vez mais sofrem a escola e os docentes,
em parte, são derivados do fato de que tanto a instituição quanto seu corpo
técnico têm cada vez mais influência na gestão das culturas juvenis, ou, no
mínimo, de que é no território escolar que os jovens cada vez mais vivem
suas manifestações culturais. Embora todo o barulho produzido por igrejas e
famílias, é bastante evidente que essas duas instituições não possuem mais o
alcance que tinham na formação de jovens e crianças, quando se comparam
os dias de hoje com a situação de algumas décadas atrás. Embora com todas
as precariedades e debilidades, o alcance do sistema escolar cresceu de modo
muito grande após a entrada em vigor da legislação posta em andamento a
partir da Constituição Federal de 1988, não por acaso conhecida como Consti-
tuição Cidadã, aquela que reservou, entre todas as que o país já teve, a maior
quantidade de estratégias de inclusão social.
Selecionamos, para o âmbito deste artigo, três frentes de questionamen-
tos, composições, ataques e enfrentamentos com a escola, o que justifica o
título do item, pois temos situações de “ao encontro” e “de encontro”, de
composição amigável e de franca hostilidade, dentro de cada uma das frentes
a serem analisadas. São elas: de um lado, questionamentos pós-modernistas
e de âmbito pós-estruturalista à escola; de outro, o ataque neoliberal à escola;
de outro ainda, os questionamentos do mundo tecnológico acerca dos méto-
dos e modos da educação escolar. Um fogo cruzado de três ataques centrais
a suas fundações modernas e iluministas. Para começar, vale lembrar que das
muitas instituições criadas pelo pensamento moderno, a escola é, certamente,
a instituição-símbolo dos valores da modernidade:

A educação escolarizada e pública sintetiza, de certa forma, as ideias e


os ideais da modernidade e do iluminismo. Ela corporifica as ideias de
progresso constante através da razão e da ciência, de crença nas poten-
cialidades do desenvolvimento de um sujeito autônomo e livre, de uni-
versalismo, de emancipação e libertação política e social, de autonomia
e liberdade, de ampliação do espaço público através da cidadania, de ni-

30 FERNANDO SEFFNER
velamento de privilégios hereditários, de mobilidade social. [...] A escola
pública se confunde, assim, com o próprio projeto da modernidade. É a
instituição moderna por excelência. (SILVA, 1995, p. 245)

Quase tudo na escola, do prédio ao currículo, da fila na entrada ao sistema


de avaliação, da disposição das salas ao uniforme, dos documentos que exal-
tam sua missão e seus valores aos modos como a sociedade a ela se refere,
respira o ar da modernidade. A escola como local onde, a despeito de suas
origens de classe ou raciais, de suas marcas de gênero ou de pertencimento
religioso, todos iriam aprender e se tornariam sujeitos com iguais oportuni-
dades de acesso aos benefícios da vida letrada. Essa marca forte da escola se
encontra sob severo questionamento, mas ainda habita certo senso comum
sobre a instituição, especialmente quando se trata de enaltecer sua nobre mis-
são em cerimônias oficiais.
Definido esse “caráter básico” da escola, escolhemos a primeira frente para
comentar. São os questionamentos pós-modernistas e pós-estruturalistas que
incidem, em particular, sobre a noção de sujeito da educação. No caso brasilei-
ro, a explosão de movimentos sociais e novas identidades, a partir do final do
período da ditadura civil-militar, trouxe fortes críticas a esta figura de sujeito
que parece universal, mas que, na realidade, representa o homem branco, eu-
ropeu, heterossexual, urbano, de classe econômica elevada, de tradição cató-
lica, sem nenhuma deficiência física ou de outra ordem. É cada vez mais claro
que o sujeito universal dos processos educativos modernos representa uma
parcela ínfima da população, sendo, para a maioria dela, um ideal a alcançar,
em geral inatingível. Com isso, as narrativas modernas vinculadas à escola, de
cultivo da razão, crescimento pelo progresso, ideais de emancipação social e
autonomia, dizem respeito fortemente a uma matriz de pensamento colonial
ou colonizado, e a uma parcela abonada da sociedade, que diz representar o
todo. A proliferação das identidades culturais e dos movimentos sociais, a sua
inclusão no sistema escolar e a pressão que fazem para que a escola represente
também sua cultura e seus valores ficam bem expressas pela situação descrita
em diário de campo das disciplinas que leciono:

O grupo de alunos da Licenciatura em História da turma da noite tem


como traço comum a forte defesa da escola pública brasileira. Em parte,
isso se explica pelo grande número de alunos e alunas dela originários,
e que, pelas políticas de reserva de vagas, alcançaram chegar à universi-
dade. Dessa forma foi interessante observar as reações de alguns desses
alunos depois de uma saída de campo e uma atividade com convidados
que fizemos com a turma. Em um primeiro momento, levamos a turma

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 31


para visita a um mocambo, não muito distante do prédio da faculdade. A
liderança negra que nos recebeu detalhou longamente o sofrimento de
crianças negras na escola pública, vítimas de racismo e outras injúrias.
Fez fortes críticas à instituição escolar e às políticas públicas de edu-
cação, pelo seu viés branco e colonizador, e incluiu nelas, com vigor, a
disciplina de História. Na semana seguinte trouxemos como convidado
para conversar com os alunos um grupo de militantes do movimento
LGBT da cidade, que também abordou seus percursos escolares, impas-
ses, traumas, e, particularmente, situações de homofobia explícita por
parte de outros alunos, do corpo docente, da direção e das políticas pú-
blicas. Novamente uma das lideranças criticou a disciplina de História
por privilegiar apenas o relato dos homens heterossexuais, e das mu-
lheres como meras figuras de apoio a esses homens. Na aula seguinte,
quando então estávamos “a sós”, foi visível o incômodo de alguns alu-
nos e alunas, que se, por um lado, haviam entendido a pertinência das
críticas, por outro, consideravam que assim não se ajudava a defender
a escola, já tão atacada por todos os lados, era só o que faltava agora os
movimentos sociais das minorias não ajudarem a defender e preservar a
escola, o que gerou vivo debate na turma, pois se tratava, como outros
argumentaram, de tanto defender a escola pública, quanto de exigir nela
mudanças no sentido da inclusão efetiva das minorias. (Diário de campo
das aulas de estágio docente, 2017).

Uma segunda frente de ataques e críticas à escola é o que podemos chamar


de “assalto neoliberal ao senso comum sobre educação pública produzido pelo
modernismo e pelo iluminismo e o consequente deslocamento da educação
da esfera do espaço público para o espaço privado do consumo e da escolha”
(SILVA, 1995, p. 245-246). O movimento que empurra a educação escolar da
esfera dos direitos e a faz transitar para a esfera do consumo se expressa de
muitos modos, e se conjuga com o discurso da meritocracia, que entende a
sociedade como dispondo de oportunidades iguais para todos, e se alguns se
empenham, merecem ser reconhecidos, e se outros não são reconhecidos, é
porque não se empenharam.
A educação sai da esfera dos direitos, e passa para a esfera do consumo. Ela
é um capital que cada um agrega – ou não – à sua trajetória. O interesse em
agregar – ou não – é percebido como individual. O ganho de agregar educação
à carreira é percebido também como individual, fruto de uma escolha pessoal,
e o aspecto propriamente social e coletivo da educação como política pública
fica esmaecido. A noção de escolha anima a questão dos itinerários formativos
no ensino médio. Quando me lembro do meu tempo de ensino médio, na
década de 1970, vejo que não tive como escolher quase nada. Dessa forma, se

32 FERNANDO SEFFNER
algo tivesse dado errado, eu poderia colocar a culpa na mantenedora, que, no
meu caso, era o estado do Rio Grande do Sul, pois sempre estudei em escolas
públicas estaduais. A propaganda governamental convida agora os estudantes
a escolherem seus percursos, o que, em geral, é visto como atitude não apenas
de respeito, mas democrática, pois concede ao aluno – agora, um consumi-
dor – o direito de escolher no suposto livre mercado das opções pedagógicas.
Se algo der errado mais adiante, certamente já sabemos o que a autoridade
educacional dirá: na hora da escolha, estava brincando em vez de estudar,
então ocorre que você não escolheu de modo adequado, agora vire-se, pois
cada um é sujeito de si, responsável integral por suas escolhas e atos. Uma
variação dessa afirmação pode ser dita como “o seu currículo é um problema
seu”, em absoluta sintonia com a enorme ênfase nos dias de hoje na questão
da avaliação, transformada em verdadeiro farol do currículo (VEIGA-NETO,
2013). Dito em tom um tanto cabalístico, a frase parece ser “faça o que quiser,
escolha o caminho que bem entender, lhe damos liberdade, mas será avaliado
depois”. Melhor então é passar a vida escolar se preparando para a avaliação,
o que se comprova largamente na prática educacional e nos numerosos cur-
sinhos preparatórios. Em suma, o discurso neoliberal é francamente despo-
litizador do campo educacional, em que tudo então parece se resumir a uma
engenharia de processos e decisões.
A terceira frente de questionamentos é aquela que vem das tecnologias
(SIBILIA, 2012), e se materializa nos atritos em sala de aula, em questões
como “devemos permitir o uso dos celulares em sala de aula ou não?”. Como
lidar com o buscador Google ou com a Wikipédia? Mas também proliferam
propostas educacionais que louvam o potencial de aprendizagem manifesta-
do quando se coloca uma criança na frente de um terminal de computador,
manipulando atrativos programas pedagógicos, com recursos nem de longe
imagináveis na sala de aula de uma escola. Certa ideia de que “todo o conhe-
cimento está na web”, e de que as crianças e jovens já são “incluídos digitais”,
tem levado à defesa de um ensino feito no conforto da casa, nos horários em
que a pessoa decidir, sem a necessidade desta pesada arquitetura escolar –
prédios, pátios, chamadas, filas, professores, horários, sinetas, direção, aulas
e avaliações com hora marcada, disciplina. A escola poderia ser substituída
pelo conforto da casa, num ambiente sem fios, sem papéis, sem turbulências,
respeitando supostos ritmos naturais da pessoa que quer aprender, ao estilo
“agora estou com vontade de estudar, então me conecto”, “agora não estou
mais, então me desconecto”, e assim por diante, novamente trazendo uma
aura de liberdade pessoal para essas propostas. Não se trata aqui de negar as
possibilidades das tecnologias educacionais, mas de pensar uma equação em
que elas não sejam vistas como portadoras exclusivas do progresso, e a escola

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 33


não seja apontada como sinônimo do atraso. A tecnologia revigora a escola,
ou acaba com ela? Mais uma vez, aqui, o embate “ao encontro”, “de encontro”
do título deste item.

Ser professor é mais do que ter uma profissão, é ter uma missão!

A docência está entre as profissões mais endeusadas e romantizadas do


mundo certamente, e ao mesmo tempo entre as mais controladas, sujeitas a
pressões sociais e mal pagas, tendo em vista o que exige em termos de forma-
ção. A frase acima anotei do quadro de avisos de uma sala de professores, no
meio de tantas outras que já tomei nota ao longo dos anos, como: os livros são
os tijolos, os professores são os pedreiros; a influência do professor atravessa
o tempo; todos são homens, alguns são professores, poucos são mestres; do-
cência é dom. As crises e impasses que rondam a profissão nos últimos tem-
pos fizeram surgir frases novas nos quadros de avisos, e dois anos atrás me
deparei com um cartaz, em letras garrafais, na parede da sala de professoras
(efetivamente todas mulheres) de uma pequena escola de ensino fundamental
na periferia de Porto Alegre, que reproduzia estrofe musical bem conhecida:
“quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professora”.6
Não apenas a frase era provocativa para a parede de uma sala de professoras
do ensino fundamental, como a maioria delas tinha colocado uma caricatura
sua ou um desenho de seu rosto, e expressões de apoio à frase, e desabafos!
Retomo aqui duas ideias já desenvolvidas em Seffner (2016). Professores
e professoras são, em primeiro lugar, servidores públicos, mesmo quando em
instituição privada. Manejam uma política pública, no caso a política pública
de Educação, cujo desenho tem elementos decididos em níveis federal, esta-
dual e municipal. Sua relação principal é com essa política pública. Mas, para
boa parte das pessoas, a função principal dos professores e professoras é de
atendimento às demandas das famílias e dos alunos. Nada mais equivocado.
A criança, quando entra pelos portões da escola, está frequentando um espaço
público, e está diante de uma servidora pública, a professora. As regras são
as regras do espaço público, e a relação com a professora é a relação com uma
figura de Estado. Esse aprendizado é extremamente importante. Assim como
a sociedade faz pressões no sentido de colonizar a escola pública com os va-
lores familiares e religiosos, faz o mesmo com os professores, no sentido de

6 Música Não existe pecado ao Sul do Equador, de autoria de Chico Buarque, mas imortalizada
na voz de Ney Matogrosso. A estrofe original termina com “eu sou professor”; no cartaz
exposto, a expressão era “eu sou professora”.

34 FERNANDO SEFFNER
colocá-los em sintonia com os pais e as mães, e com a moralidade de certas
religiões. Essa sintonia é, inclusive, aceita e assumida por muitos docentes,
em particular mulheres, que se assumem como tias ou segundas mães das
crianças. Há certa confusão entre servidor público e adulto de referência, e
docentes terminam por desempenhar essas duas funções. Claro está que uma
criança pequena, recém ingressando na escola, não vai ter a dimensão exata de
que está diante de uma servidora pública, e o que isso significa. Mas ela pode
já ser ensinada a perceber que aquela professora é também um adulto de refe-
rência, ou seja, não é a mãe, não é uma tia, não é a sua irmã mais velha, não é
da igreja, não é vizinha, não é amiga da mãe ou colega de trabalho da mãe, mas
é uma pessoa de referência – que eu gosto de chamar de um adulto de referên-
cia –, situada no interior de uma instituição pública, a escola. É uma pessoa
a quem a criança poderá contar coisas, e de quem escutará lições, guardando
com ela essa saudável relação de não ser da sua comunidade mais próxima
até aquele momento. No ensino médio, por exemplo, a professora é alguém
com quem o menino poderá comentar seus gostos musicais, sem necessaria-
mente ter que escutar queixas sobre o ruído em seu quarto. Se for professora
de História, poderá, inclusive, comentar algo sobre as tradições musicais, e
em qual delas se insere seu gosto pessoal. Mais ainda, a professora poderá
ajudar o menino a perceber as distâncias entre o gosto musical dela, que é de
outra geração, e o dele, que é muito mais jovem. E a professora poderá fazer
tudo isso sem ficar brigando ou querendo conduzir o gosto musical daquele
menino, pois ele é seu aluno, no meio de tantos outros, e ela não tem que se
preocupar se ele escuta música em volume alto no seu quarto quando os pais
querem dormir. E ela poderá lhe explicar porque não deve escutar música na
sala de aula, por motivos outros que não são os motivos da mãe ou do pai para
situações semelhantes.
Esses elementos fazem parte de um traço essencial da docência, a saber, a
liberdade de ensinar, princípio assegurado na Constituição Federal de 1988,
mas também em constituições anteriores (SEFFNER, 2017a). Dizer que pro-
fessores e professoras têm liberdade de ensinar não significa endossar a afir-
mação que por vezes se escuta de que “ao fechar a porta da sala, quem manda
lá dentro sou eu”. A liberdade de ensinar, essencial para o exercício docente, é
uma liberdade que se encontra moderada por outras liberdades, como ocorre
com todas as nossas liberdades. No caso, a liberdade de ensinar se encontra
moderada pelo direito de aprender dos alunos e alunas, pela gestão democrá-
tica da escola, pela tradição curricular da instituição na qual ensinamos, pelos
procedimentos da ciência que orientam a alfabetização científica, pelo com-
promisso que a escola tem com a alfabetização científica, por decisões coleti-
vas tomadas no âmbito daquela unidade escolar ou daquele sistema de ensino,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 35


pelos direitos constitucionais de igualdade e não de discriminação. E isso tem
a ver com o diálogo com os marcadores sociais da diferença, pelo compromis-
so com o pluralismo democrático em sala de aula; com o respeito às culturas
juvenis, que devem encontrar na escola um lugar de expressão; e com o direito
à antidiscriminação. Mas isso não elimina a importância de que o aluno per-
ceba que aquele servidor público, chamado de professor, goza de autonomia
didático-pedagógica, e assegura que na sala de aula se respeite a pluralidade
de opiniões, outro preceito constitucional. Ensinar, explicar o mundo para as
novas gerações, é tarefa desde sempre sujeita a controles, tensões, disputas.
Mas a liberdade de ensinar – por vezes conhecida como liberdade de cátedra
– é elemento essencial do vínculo pedagógico entre aluno e professor, e abre a
possibilidade de que os alunos e alunas percebam a professora como portado-
ra de uma função verdadeiramente intelectual. Quem defende que professor
não pode ter liberdade de ensinar – é o caso do movimento escola sem partido
– está querendo para seus filhos catequese, e não educação, e que na frente
das crianças esteja um papagaio, e não uma pessoa. Vale dizer que a liberdade
de ensinar é uma modalidade particular da liberdade de expressão, concedida
a uma categoria profissional, no caso, professores e professoras quando no
exercício da função docente, tudo previsto em nosso ordenamento jurídico, e
desde há muito tempo.

A pré-história foi antes de começar os aniversários de Jesus7

E retornamos a pensar a sala de ensino de História. Quero pensar a aula de


História como local único, evitando comparações com outros locais, e evitando
certa noção de que é fora dela que se decide o que nela deve acontecer, ou que o
que nela acontece deve ser o que tal ou qual autoridade e área do conhecimento
decidem. Claro que sei bem que o planejamento, as orientações curriculares e
outros elementos listados nos tópicos acima dão um grau de previsibilidade ao
que acontece ou deve acontecer em uma aula. Mas invisto um pouco aqui na-
quilo que o título deste tópico já anuncia: a aula de História como lugar onde se
ensaiam novidades, com uma linguagem toda própria, como posto no título aci-
ma. Vale lembrar outra letra de música, que enfatiza a particularidade vocabular
e a novidade de certo lugar, evitando estabelecer a priori comparações em que
estes locais, o morro e a sala de aula, saem sempre perdendo, porque sempre
“deveriam ser” alguma outra coisa do que aquilo que estão sendo:

7 Comentário de um aluno do ensino fundamental a propósito do estudo da linha de tempo da


história da humanidade, gentilmente registrado e divulgado pela Profa. Camila Merg, ano
2017, cidade de Porto Alegre.

36 FERNANDO SEFFNER
Tudo lá no morro é diferente [...]
O outro fato muito importante
E também interessante
É a linguagem de lá
Baile lá no morro é fandango
Nome de carro é carango
Discussão é bafafá
Briga de uns e outros dizem que é burburim
Velório no morro é gurufim
Erro lá no morro chamam de vacilação [...]
Papagaio é rádio
Grinfa é mulher
Nome de otário é Zé Mané8

Voltamos ao bem precioso a preservar: um ensino de História com autono-


mia e liberdade de ensinar (o máximo que se conseguir), mas prudente para
sobreviver às turbulências atuais. Retorno à sala de aula de ensino de História
indicando algumas atitudes, pistas e caminhos que me parecem promissores e
produtivos. Começo com uma atitude que me parece forte, mas que precisa ser
assumida por professores e professoras de História, mesmo com as agruras dos
tempos atuais, ou justamente por conta delas. Podemos chamar essa atitude de
“Ensino de História: a complicação necessária”. O ensino de História não é neu-
tro, é fortemente político, e por conta disso podemos dizer que ele se articula
com ideologias e visões de mundo. Lida com temas sensíveis e está profunda-
mente envolvido com a produção e questionamento das posições políticas dos
estudantes. Promove indagações sobre os sentidos do passado e do presente, e
remexe com concepções naturalizadas ou de senso comum sobre aspectos da
formação da nacionalidade brasileira. Dispõe os alunos a questionarem sabe-
res aprendidos no âmbito da família e no interior dos pertencimentos religio-
sos, bem como a se contraporem às opiniões das mídias. O ensino de História
atenta para os movimentos sociais e busca, sim, de modo decidido, influenciar
nas escolhas políticas em que as culturas juvenis estão imersas. E ele faz isso
em nome do pluralismo democrático, da liberdade de expressão, do direito de
aprender e da liberdade de ensinar. Ele se associa nisso à gestão democrática da
escola. Todos esses elementos, já salientamos, estão presentes no ordenamento
jurídico brasileiro, vários deles na própria Constituição Federal de 1988.

8 Música Linguagem do morro, de autoria de Padeirinho e Ferreira dos Santos, cantada por
Chico Buarque e Beth Carvalho, entre outros. Maiores informações em: https://www.letras.
mus.br/beth-carvalho/191091/. Acesso em: 29/01/2018.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 37


E é igualmente importante fazer esta discussão com a qualidade teórica e
metodológica necessária, de modo a enfrentar a guerra que hoje se trava em
torno da presença das humanidades nos currículos escolares. Temos que assu-
mir, de modo decisivo, que todo processo de formação é também um processo
de formação para a cidadania. Isso vale, inclusive, para cursos técnicos, e mais
ainda para a escola básica. Há necessidade de tomar certa distância crítica em
relação ao lugar de onde somos, ao contexto em que vivemos, às emoções que
sentimos (NUSSBAUM, 2015), e essa tarefa é própria das humanidades nos
currículos escolares. A desvalorização das humanidades está presente não só
nas atuais reformas curriculares, mas também em movimentos como o escola
sem partido. Nos últimos anos, tem sido comum pais e estudantes acusarem
professores da área das humanidades de “assédio ideológico”. Não ocorre a
essas pessoas que numa aula de biologia molecular ou mesmo de engenharia
de saneamento também se desenham visões de mundo, se tomam opções polí-
ticas? Em qualquer área do conhecimento e no aprendizado de qualquer tema
se estabelecem tensões entre igualdade e diferença, estão presentes questões
difíceis de resolver. Queremos ser iguais a quem? Queremos ser diferentes
de quem? É nas disciplinas de humanidades, incluída aqui a História, que o
debate dessas questões é feito com profundidade. Essa é uma tarefa da qual o
ensino de História não pode abrir mão.
Nesse mapa de caminhos e pistas, outra linha é pensar um currículo de
História fortemente habitado pela abordagem de temas sensíveis, de passados
vivos. Temas sensíveis são aqueles atravessados por divergências pessoais e
políticas, visões de mundo opostas. Um componente da educação em temas
sensíveis é a capacidade de construir acordos entre indivíduos e grupos cujas
opiniões diferem, estabelecendo um modus vivendi que implica manutenção do
espaço de diálogo na sala de aula. É sinal de maturidade intelectual perceber
que a vida social é composta por grande diversidade de posições, e poucos
momentos de acordo ou consenso. A regra na vida social é o dissenso. Isso
exige saber se pôr na posição do outro, inclusive para melhor conhecer a sua
própria. Na sociedade brasileira, temos esta marca bipolar: nos apresentamos
como sendo diversos ao mundo, mas a diferença não é vista como riqueza
nas relações, ela é sempre um problema, algo a ser eliminado ou diminuído
em nome da “paz social”. Para aprender a lidar de modo democrático com a
diferença, as aulas de História ajudam, quanto mais não seja para que as pes-
soas aprendam a distinguir entre “não gostei” e “tem que proibir”, pois muito
do que não gostamos não se trata de proibir. No planejamento das aulas de
História, temos que assumir que a diversidade é uma questão pedagógica,
diversidade não se resume a atitudes simples de aceitar ou gostar dos diferen-
tes, ela é um aspecto cognitivo e de planejamento. Não é só um valor moral, é

38 FERNANDO SEFFNER
uma forma diferente de pensar e planejar. A inclusão não pode virar uma ação
moral de melhoria de alguns sujeitos, para que fiquem iguais aos outros. A
inclusão tem que afetar o conhecimento escolar. Com isso se assume que o
currículo é campo de tensão entre projetos e práticas. Essa atitude tem grande
importância na relação de professores e professoras com as culturas juvenis.
E vale dizer que temas sensíveis não existem a priori, eles são fruto de uma re-
lação de aprendizado, uma percepção de que temos ali algo que opõe grupos,
revela visões de mundo opostas, exige negociação de saberes.
Por fim, um caminho importante a seguir é pensar que a aula de História
é sempre uma aula de História mundial, qualquer que seja o assunto trata-
do. Das muitas conexões possíveis entre o local e o global, hoje em dia uma
delas nos parece especialmente frutífera: pensar as disputas Oriente versus
Ocidente, e pensar nestes conceitos tão fundantes de nossa matriz cultural:
civilização e barbárie. Já por diversas vezes, registrei no diário de campo cenas
semelhantes à que narro abaixo nas aulas de História:

Turma de ensino fundamental, quinto ano, turno da tarde, classe muito


participativa, todos querem falar, estão adorando a estagiária. Os meni-
nos, ao que parece, por acharem ela muito bonita, e as meninas porque
ela vive insistindo que as meninas vão ser poderosas na vida se estuda-
rem, e as meninas agora deram de repetir essa palavra a toda hora. Ao
falar do exército espartano, a estagiária destacou o grande número de
anos do serviço militar, e a honra que era morrer por Esparta para os
homens. Imediatamente o filme 300 foi lembrado e muitos comentários
foram feitos, em particular pelos meninos, sobre valentia, combates, for-
ça, união. Um menino disse que os vikings também tinham orgulho de
morrer em combate, e todo mundo riu quando ele disse que “naquela
época ninguém morria deitado na cama ou no sofá”. A estagiária então
perguntou: o que é morrer pela pátria? Tivemos várias respostas, todas
enfatizando que era defender o lugar onde a gente nasceu dos inimigos,
era virar herói, era não aceitar ser escravo de outro povo ou de outras
pessoas. Então ela perguntou se alguém ali teria orgulho em morrer pela
pátria. Choveram respostas. Uma parte disse que pelo Brasil não valia a
pena morrer, e muitos começaram a falar mal dos políticos. Uma menina
muito atilada disse que agora tinha o exército, eles é que deviam lutar,
ela se referiu especificamente a um primo que era do exército, ele é que
tinha que lutar, ela não. Os meninos fizeram troça com isso. Novamente
a estagiária, tentando conduzir a conversa que era um tanto ruidosa pelo
excesso de participação, perguntou quem eles achavam que hoje em dia
se dispunha a morrer pela pátria. Tivemos aqui uma quase unanimida-
de, com gente dizendo coisas como os terroristas, os árabes, o exército

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 39


islâmico, aquela gente da religião dos árabes, os caras do deserto, aquela
gente louca, aquela gente crente, os drogados, os que são homens-bom-
ba, os fedidos. E apareceu a palavra tão importante, os bárbaros. Ficou
nítido que eles associaram morrer pela pátria nos dias de hoje com bar-
bárie, o oposto de civilização.

Em qualquer tema que se esteja estudando, noções de barbárie e civiliza-


ção estão operando. Se, por um lado, todos reconhecem a enorme pluralidade
das culturas e dos modos de vida, por outro, todos temos uma hierarquia
para considerar que algumas dessas formas são exóticas, pois humanidade e
civilização são atributos de algumas culturas, e de outras não. Dentro de um
país, é atributo de alguns grupos sociais, de outros não. De algumas religiões,
de outras não. Um exercício interessante é colocar a palavra cultura no plural,
culturas. Mas logo chegamos ao binômio barbárie e civilização, e as hierar-
quias parecem ser feitas de pedra, de tal forma sedimentadas no imaginário.
A palavra civilização tem certo conteúdo moral (TODOROV, 2010), enquanto
a ideia de culturas parece ser mais moralmente neutra. Por um lado, se valo-
rizam culturas, mas, por outro, logo se estão inserindo algumas no campo da
civilização, e, por exclusão, algumas outras no campo da barbárie. Convivem
lado a lado as noções de pluralidade das culturas e unicidade da humanidade,
na forma de civilização, sendo esta a ocidental via de regra. Uma discussão
mais profícua a que já assisti em aulas foi sobre a classificação de certos atos
e ideologias como sendo do campo da civilização ou da barbárie. Por vezes,
os alunos são levados a perceber que traços de sua própria cultura estão pró-
ximos da barbárie. Há todo um trabalho de história a ser feito no sentido de
se perceberem as formas assumidas pela barbárie e pela civilização. Será que
a barbárie é sempre, e por toda parte, a mesma? E ser civilizado foi sempre
a mesma coisa? Civilização, poderia ser dito, é tratar todos os que vivem no
mesmo território do mesmo modo, independentemente de raça, classe, reli-
gião, gênero, orientação sexual, origem urbana ou rural, geração, ser estran-
geiro ou não.
Encerro essas considerações sobre a aula de História enfatizando o que
deve estar claro para quem chegou até aqui: lecionar História é tarefa bastante
complexa. Certamente também bastante polêmica. O ensino de História com-
plica o simples. Ele balança aqueles binarismos ordinários do tipo homem/
mulher, colonizado/colonizador, Oriente/Ocidente, rural/urbano, natureza/
cultura, público/privado, explorado/explorador, e muitos outros polos biná-
rios, típicos dos raciocínios infantis que, ao fim e ao cabo, classificam as coisas
como “boas” ou “más”, e vão dormir satisfeitos, imaginando que assim deram
conta de “explicar” o mundo. O ensino de História insere os alunos e alunas

40 FERNANDO SEFFNER
em uma tradição, e ao mesmo tempo lhes fornece ferramentas para questionar
essa tradição, e modificá-la, se assim lhes parecer adequado. O ensino de His-
tória não obriga a nada, mas questiona muito. No atual momento político que
atravessa a sociedade brasileira, há muitas propostas que buscam transformar
o ensino de História em catequese, indicando a priori quem são os bons, quem
são os maus, e indicando limites muito estreitos para as narrativas históricas.
E desenhando uma narrativa histórica na qual os bons são sempre bons, e os
maus desde sempre foram maus. É tarefa do ensino de História remexer nisso
tudo, e apontar outras direções, a partir de fontes, documentos, estudos, lei-
turas, debates, visitas a locais, coleta de opiniões. O ensino de História aposta
no direito de aprender dos estudantes, e aposta na abertura dos horizontes,
em uma trajetória que todos os jovens devem fazer, ampliando seus conheci-
mentos acerca do mundo, o que, muitas vezes, os coloca em algum conflito
com visões da família, por exemplo. Compreendemos perfeitamente certa feri-
da narcísica que podem sentir pais e mães quando o filho ou a filha retorna da
escola com opiniões políticas diversas daquelas domésticas, mas crescimento
intelectual é isso. Ninguém vai à escola para que lá se repitam os valores
familiares. Se fosse para isso, não se precisaria enviar as crianças à escola. É
absolutamente importante afirmar esse sentido do ensino de História em alto
e bom som na atual conjuntura.

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42 FERNANDO SEFFNER
De lagarta a borboleta:
possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault
para a pesquisa no campo do Ensino de História

Durval Muniz de Albuquerque Júnior1

Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não


ter mais rosto. Não me pergunte quem sou e não
me diga para permanecer o mesmo: é uma moral
de estado civil: ela rege nossos papéis. Que ela nos
deixe livres quando se trata de escrever.
(Michel Foucault. A arqueologia do saber, 2012, p. 20)

Há um uso recorrente do pensamento de Michel Foucault nos estudos no


campo da Educação, na abordagem do espaço escolar, na análise das atividades
de ensino, que leva ao império de um certo niilismo entre os educadores e
professores. Nesses estudos, o Foucault “caixa de ferramentas” aparece, qua-
se sempre, com o mesmo rosto, aprisionado em um dado momento de seu
percurso filosófico, reduzido a alguns de seus livros, de seus textos, a alguns
de seus enunciados e conceitos (AQUINO, 2013; CÉSAR, 2010; CARVALHO,
2013). Nesses estudos prevalece o Michel Foucault historiador do poder, do
poder disciplinar, o genealogista das técnicas de adestramento dos corpos, o
filósofo dos processos de sujeição, aquele que mostrou as aproximações entre
o espaço escolar e as formas arquitetônicas e institucionais dos presídios, das
casernas, dos conventos e dos manicômios.2 Esse uso dos ditos e escritos de
Foucault, tão comum na academia, faz dele um autor que teria um pensamen-
to homogêneo, que teria produzido um sistema fechado de pensamento, cujas

1 Professor permanente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal


de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre e
doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: durvalaljr@gmail.com
2 Ver, por exemplo, Silva (2012) e Seixas (2014).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 43


categorias teriam pretensões universais, podendo ser retiradas do contexto da
análise que fez e transplantadas para a análise de qualquer tema, em qualquer
época e espaços. Um dos intelectuais mais antiacadêmicos é transformado,
assim, no provedor de mais um jargão acadêmico, cuja obra é tomada em con-
junto, como se ele não tivesse feito a crítica da própria noção de obra (FOU-
CAULT, 1992). Seu percurso intelectual costuma ser dividido em três fases
estanques e lineares, como se ele não tivesse feito a crítica a essa concepção
linear, etapista e historicista do tempo (VEIGA-NETO, 2016). Embora tenha
chamado atenção para as armadilhas da função autor, o caráter regulador e re-
pressor que exercia na ordem do discurso, os ditos foucaultianos (“igrejinha”
que ele nunca pretendeu fundar e possivelmente detestaria, reservando para
ela seu riso de mofa) o tomam como esse autor unitário, centrado em torno de
dados temas e procedimentos (GARBINI, 2012, p. 19-30; MUSSETTA, 2009,
p. 37-55). O seu livro de antimétodo, A arqueologia do saber (1969) – aquele
que escreveu para responder as inúmeras incompreensões em torno de seu
livro anterior, As palavras e as coisas (1966) –, que logo na introdução traz a
advertência que coloco em epígrafe, livro que ele abandonou e foi para longe
dele assim que escreveu, é tomado como mais um manual de metodologia,
convocando a todos a aprender e reproduzir seus conceitos abstratos e, nesse
caso, des-historicizados, usando-os como “ferramentas conceituais” para suas
pesquisas, buscando “encaixar” seu tema, suas preocupações no verdadeiro
cipoal conceitual que aí emerge: regularidades discursivas, formações discur-
sivas, modalidades enunciativas, enunciado, função enunciativa, arquivo, a
priori histórico, arqueologia do saber.3 No entanto, muitos desses conceitos
jamais voltaram a ser utilizados pelo próprio Michel Foucault, em suas pes-
quisas posteriores.
Mas o que é mais preocupante nesse uso que se faz do pensamento de
Michel Foucault é o fato de reduzi-lo ao autor do poder, da disciplina, do
adestramento dos corpos e das subjetividades.4 No Brasil, isso talvez se deva
ao fato de Vigiar e punir (1975) ter sido a primeira de suas obras a ter ampla
circulação entre nós; esse seu livro, sobre as prisões, foi aqui editado em plena
vigência do regime autoritário, e, significativamente, transformado por um
subtítulo inexistente em sua edição original francesa em “uma história da vio-
lência nas prisões”. A recepção dessa obra de Foucault entre nós foi facilitada,
talvez, por nela a presença do marxismo no pensamento do filósofo francês ser
mais detectável: noções caras ao marxismo, como classe e ideologia, aparecem

3 Ver: Ribeiro (2010, p. 1-24).


4 Ver, por exemplo, Rossi (2013); Freitas (2017); Neves (2012).

44 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


de modo singular nesse texto do militante do Grupo de Intervenção sobre as
Prisões (GIP). É nesse livro que a escola surge como um espaço disciplinar,
como um espaço destinado à produção de corpos úteis e dóceis, corpos desti-
nados a serem mão de obra para o capital e soldados-cidadãos para os Estados
nacionais. A escola, desde sua arquitetura, seria a materialização do que ele
nomeou de panoptismo, um dispositivo,5 tal como ele compreendia esse con-
ceito, constituído por uma maneira de organização espacial, de gestão dos cor-
pos, por um conjunto de saberes e de relações de poder, por um conjunto de
práticas e de normas, por uma organização piramidal dos olhares e dos gestos,
a qual produzia uma forma particular de governo das crianças e adolescentes.
Tornou-se comum, no campo da Educação, a realização de pesquisas para
confirmar as teses que seriam de Michel Foucault. Mudam-se apenas as esco-
las pesquisadas, o período da pesquisa, o recorte proposto, mas a conclusão já
está dada de saída: a escola disciplina, a escola produz corpos dóceis, a escola
é panóptica, a escola adestra.6 Não importa os aspectos que se estudem: o
currículo, as pedagogias docentes, o material didático, a relação da escola com
o Estado, a legislação escolar, as reformas do ensino, as políticas educacionais,
a relação professor-aluno, o planejamento escolar, a orientação educacional, as
práticas culturais e de lazer nas escolas, a violência escolar, o ensino de con-
teúdos específicos como a educação física ou o ensino religioso, as questões
de gênero, etc., a imagem que se constrói da escola é muito próxima daquela
que o marxismo construiu, notadamente o marxismo althusseriano: a escola
como aparelho ideológico do Estado, como lugar onde se reproduzem a domi-
nação, a exclusão, como lugar de saberes onde se reproduzem poderes, lugar
da produção de uma subjetividade neoliberal, espaço de adoção de políticas
neoliberais, espaço de produção dos corpos disciplinados.7 Eu me pergunto,
sempre, ao participar de bancas de julgamento de teses e dissertações na área
da Educação, na área do ensino, como aquele mestrando ou doutorando, como
aquela professora vai retornar à escola e exercer a profissão docente depois de,
praticamente, concluir que a escola não é o melhor lugar para se estar, que a
escola não é um lugar em que se possa criar algo de novo? Com que estímulo
alguém vai para a sala de aula sabendo que ali é um dispositivo de reprodução
da ordem? Como alguém vai investir sua existência numa tarefa que parece

5 “O dispositivo é a rede de relações que pode ser estabelecida entre elementos heterogêneos:
discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito” (FOUCAULT,
2010, p. 45).
6 Ver, por exemplo, Pastoriza e Del Pino (2015); e Sales e Paraíso (2010).
7 Ver: Freitas e Oliveira (2015); e Mota e Costa (2017).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 45


inglória, amplificando, ainda mais, o martírio pelos baixos salários, pelas in-
findáveis jornadas de trabalho, pelo controle do patrão ou do Estado?
Mas, esse rosto de Michel Foucault é apenas um dos muitos que cons-
truiu para si, na vida e no pensamento. Se Foucault foi um autor significativo
para a filosofia contemporânea por historicizar os seus conceitos, por ir bus-
car no arquivo suas matérias de reflexão, como tratar Foucault e sua obra de
maneira a-histórica? Como não perceber que o autor de Vigiar e punir não é
o mesmo autor da História da sexualidade II: o uso dos prazeres (1984)? Como
tomar os conceitos elaborados por Foucault e dar a eles validade universal, se
eles estavam enraizados historicamente em um dado momento, não apenas
da história europeia, mas da história do próprio pensamento e da vida de seu
autor? Como se pode transformar um filósofo antissistemático em um siste-
ma de pensamento fechado e abstrato, com foros de metodologia científica?
Devemos desconfiar mesmo das continuidades que o próprio Foucault diz
encontrar em seu percurso, quando fala de sua obra, retrospectivamente, em
dadas entrevistas, pois dependendo do momento em que fala, da obra que
acaba de lançar e quer promover, dependendo de quem o entrevista e em que
situação, esses elementos de continuidade se modificam: quando lança Vigiar
e punir, a relação do homem com o poder teria sido a constante de suas obras
(FOUCAULT, 1984, p. 1-14; entrevista a Alexandre Fontana); quando lança
História da sexualidade I: a vontade de saber (1976), teria sido a questão do como
constituir-se em sujeito que sempre o teria preocupado (1984, p. 229-242,
entrevista a Bernard Henri Levi); já quando aparece os dois últimos volumes
da História da sexualidade, teriam sido os modos de relacionar o si consigo mes-
mo, a produção de um sujeito ético que atravessaria toda a sua obra (2004, p.
240-251). Como ele próprio alerta, pouco antes da passagem que transcrevi
em epígrafe, num suposto diálogo com um crítico, um diálogo, como era co-
mum em seus textos, atravessado pela ironia, ele nunca permanecia o mesmo,
por isso pouco lhe interessava o que já havia escrito, não possuía nenhum
compromisso com os próprios conceitos que formulava: os abandonava, recu-
sava, reformulava. Ele estava interessado em se deslocar em relação ao que já
fizera, da imagem que já faziam dele e de seu pensamento. Ele estava sempre
interessado no que ia fazer, não no que fizera, ele buscava sempre ir para lon-
ge de si mesmo, produzir novos rostos. Ele tinha prazer em contrariar, e em
contradizer-se; ele adorava surpreender, causar incômodo, não se deixar apri-
sionar pelo nome que já fizera, pelos temas que já tratara. Tornar Foucault um
autor sistemático e acadêmico é traí-lo, é se tornar o crítico chato que lhe faz
perguntas, inquisidor. no texto brincalhão de A arqueologia do saber, que muitos
transformam num texto sério e aborrecido, numa “caixa de ferramentas”:

46 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


Você não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-se em
relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objeções não
apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia? Você se
prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo que em
você se critica? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu pró-
ximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não,
não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo
rindo. (FOUCAULT, 2012, p. 20)

No livro Impressões de Foucault (2017), do filósofo Roberto Machado – que


foi aluno e amigo do filósofo francês –, no qual registra as memórias de sua
amizade e convivência com Foucault, há uma passagem que diz muito de como
ele era avesso a certo academicismo, a certo pedantismo universitário, como
não tolerava ser enquadrado pelos poderes e saberes circulantes no mundo da
academia. Num jantar oferecido por Machado, em seu apartamento, em dado
momento, um professor lhe perguntou pomposamente: “Queria que você me
informasse de que lugar você fala!”, querendo que ele exibisse os princípios
que autorizavam ou legitimavam a sua maneira de pensar”. Foucault então
respondeu, contorcendo-se de rir: “– Daqui dessa cadeira” (MACHADO, 2017,
p. 50). Um dos capítulos desse livro foi significativamente intitulado: Cobra
que perde a pele (p. 33-56). Um pensador sempre em metamorfose, um ho-
mem fugindo de qualquer rostificação definitiva, um ser capaz de encarar as
desterritorializações físicas e subjetivas inerentes à condição contemporânea,
um desapegado, como o define Roberto Machado, mas, acima de tudo, um
intelectual criativo, que não temia a inovação, a mudança, que fugia do lugar
comum, das consagrações definitivas, que chegou a fugir, em alguns escritos,
do próprio nome de autor, que buscou, em muitas situações, o anonimato, o
risco, o perigo do desconhecido, que nunca temeu romper fronteiras e limites
morais, políticos, epistemológicos, no pensamento e na vida.
Creio que o que primeiro podemos aprender com Michel Foucault é essa
atitude diante da vida e do conhecimento: nunca querer repetir outros ou re-
petir-se. Buscar, de onde se está, em que situação se estiver, em que instituição
se encontrar, a criação do novo, do diferente, do diverso. Evitar o dogmatismo
e o pensamento fácil e assertivo. Manter distância das verdades estabelecidas,
gesto que aprendeu com Nietzsche (FOUCAULT, 1997a). Desconfiar dos po-
deres, gesto que aprendeu com Marx (NEGRI, 2017). Tomar distância e se
manter crítico em relação a qualquer versão de si mesmo, gesto que aprendeu
com Freud (FOUCAULT, 1997b). Ser crítico em relação a qualquer pretenso
fundamento do mundo, da realidade, qualquer ontologia essencialista, gesto
que aprendeu com Kant (FOUCAULT, 2017). Valorizar os acontecimentos, as

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 47


práticas, a materialidade do mundo, gesto que aprendeu com a fenomenologia
(NALLI, 2006). Prestar atenção aos cortes, às rupturas, às descontinuidades,
aos deslocamentos, aos deslizamentos, gesto que aprendeu com Canguilhem,
com Bachelard, com Dumezil (ROUDENISCO, 2006). Levar em conta as es-
truturas, as continuidades de longa duração, as recorrências, gesto que apren-
deu com Lévi-Strauss, com Brandiu, com o estruturalismo (DOSSE, 2013).
Tomar o sujeito e o objeto como construções práticas e discursivas, como pro-
dutos de contingências históricas, como frutos de relações de saber e poder.
Como o pensamento de um autor como Foucault pode contribuir para as
pesquisas no campo do ensino da História, sem cairmos no niilismo de cá-
tedra, que assola os trabalhos feitos a partir de seus escritos, no campo da
Educação, niilismo de cátedra do qual um dia foi acusado por um filósofo
brasileiro, que se prendeu, mais uma vez, a um aspecto de seu trabalho para
dar um veredicto final sobre seu pensamento (MERQUIOR, 1985)? Creio que
devemos, antes de mais nada, alterar nosso modo de nos relacionar com o
pensamento, com a obra de dados autores. Não devemos ter uma relação de
subserviência, de reprodução, de fidelidade a certas formas de pensar. Nem
mesmo Foucault foi fiel a si mesmo. Devemos manter uma relação criativa
com os pensadores que chegam às nossas mãos. Não se trata de repetir con-
ceitos, de buscar aprender as definições dos conceitos e aplicá-los ao estudo
de determinados objetos. Como deixa explícita a démarche filosófica de Fou-
cault, os conceitos devem nascer da própria prática de pesquisa, devem nascer
do arquivo. O arquivo está povoado de conceitos, os conceitos não são apenas
as palavras difíceis e arrevesadas encontradas nas páginas de dados livros.
Os conceitos são históricos e estão na história porque organizam as práticas
dos homens, suas relações e instituições, no cotidiano. Os conceitos vãos às
ruas, às praças, às escolas e aos banheiros. Apropriar-se do pensamento de
um autor não é reproduzir trechos inteiros de seus escritos em inumeráveis
citações e notas de rodapé; não é a cada passo do texto trazer um conceito,
que mais atrapalha a narrativa do que ajuda; não é memorizar seus conceitos e
sair repetindo nas falas e nas aulas. Apropriar-se do pensamento de um autor
é apropriar-se do movimento de seu pensamento, é ter o olhar educado pelas
formas de seu pensamento, é olhar para os sujeitos e objetos com a visada
que ele lhe permitiu formar. O pensamento de Michel Foucault foi produto
do encontro com todos os autores que eu fiz questão de citar acima, foi ainda
produto da troca de ideias e mesmo do antagonismo com importantes pen-
sadores de seu tempo, com quem não deixou de aprender: Sartre, Althusser,
Lacan, Derrida, Deleuze, Guattari, Lyotard, Bourdieu, Virílio, etc.; eles confi-
guram seu próprio pensamento, sem que ele precise estar citando-os a toda
hora (ERIBON, 1996).

48 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


Nesse sentido, há alguns procedimentos que podemos aprender com ele
na hora de fazer pesquisa, inclusive no campo do ensino da História. Em vez
de partirmos de uma dada imagem da escola, uma imagem datada historica-
mente, uma imagem nascida do estudo de uma dada sociedade, presente em
alguns de seus escritos, ir à escola, tomá-la como um arquivo, como um espa-
ço no qual resistências e práticas de criação podem estar acontecendo. A filo-
sofia de Michel Foucault é uma filosofia da prática e da relação. Toda pesquisa,
para ele, começava com uma problematização, com um problema concernente
ao presente, indo, então, em busca de fazer o percurso arqueológico, em ter-
mos de saberes, e o percurso genealógico, em termos de poderes, que configu-
raram historicamente esse dado presente. As problemáticas sempre passavam
pelas seguintes questões: quais as práticas efetivas que aí ocorrem, sejam elas
discursivas ou não discursivas? Já que, para ele, os discursos eram materiais e
práticos, não eram da ordem de um simbólico ou de um imaginário imaterial;
quais as relações configuram essa dada realidade, sejam elas de conhecimento
ou de poder? Ou seja, numa pesquisa sobre o ensino de História, implica se
perguntar: que práticas configuram esse ensino? Que tipo de relações elas
estabelecem entre os agentes escolares? Como essas práticas e relações se
conectam com os saberes e os poderes que as sustentam?
Descritas essas práticas e relações – Foucault não tinha nenhuma vergonha
de descrever, talvez por isso tenha se dito um “positivista feliz” –, há de se
perguntar pela arqueologia e genealogia que as constituíram. Como as práti-
cas atuais no campo do ensino da História atualizam ou rompem com dadas
práticas historicamente recorrentes? Como essas práticas se relacionam com
um arquivo, com um repertório de performances, de saberes, com modelos,
com figuras pertencentes a outros momentos históricos? O que há de efeti-
vamente diferente no que se faz em sala de aula, quando se ensina História,
hoje? De que repertórios, de que arquivos, de que textos, de que saberes essas
práticas advieram e que mudanças e rupturas podem significar? Como se deu
o aprendizado dessas maneiras de se ensinar História? Em que instituições
esse aprendizado se deu e, portanto, quais os poderes que estiveram envol-
vidos na configuração dessas maneiras de ensinar? Que discursos participa-
ram e participam da configuração dos saberes ensinados pelos professores de
História? Como esses saberes foram acessados e como se relacionam entre
si? Que instituições moldam a prática dos professores de História? Quais as
normas, quais os códigos, quais as leis, quais os costumes, quais as tradições
que configuram essas práticas? Quais os usos se fazem do saber histórico, em
sala de aula? Para que e para quem se ensina história, no cotidiano escolar?
Nesse sentido, é fundamental a observação das práticas concretas efetivadas
no cotidiano escolar. Não ter a respeito delas nenhuma imagem a priori, buscan-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 49


do detectar o que nelas há de criativo, de resistente às modelizações e normali-
zações imperantes no espaço escolar. Pesquisas que partem de um pressuposto
muito articulado podem terminar por encontrar sempre o que procuram. Esse
me parece ser o grande pecado das pesquisas feitas no campo da Educação, a
partir do pensamento de Michel Foucault. Como também acontece com aquelas
inspiradas pelo materialismo histórico: vai-se para o campo de pesquisa com
uma prefiguração teórica que inibe a percepção de algo distinto do que previa-
mente se supõe. Ora, o procedimento de pesquisa seguido por Foucault era o
oposto disso, era da pesquisa, era do arquivo que os problemas surgiam, que
os conceitos emergiam, que as hipóteses se elaboravam, já que considerava a
pesquisa um momento em que o pesquisador se perdia de si mesmo, enfrentava
o desconhecido, se aventurava para além dos limites estabelecidos. O momento
de pesquisa era uma deriva, uma viagem, uma aventura a terras estrangeiras, na
direção do fora do já sabido, do já pensado. Parafraseando o que diz acerca da
História em certa passagem de seu texto intitulado “Nietzsche, a genealogia e
a história”, podemos dizer que, para ele, uma pesquisa no campo do ensino da
História, como qualquer atividade de investigação, só será efetiva na medida em
que reintroduzir o descontínuo no próprio ser de quem investiga (FOUCAULT,
1984, p. 27). É um mal começo pesquisas que se iniciam cheias de certezas e
pressupostos, que não são movidas pela curiosidade acerca do desconhecido.
Além das práticas, é decisivo mapear os discursos que circulam na aula
de História, verificar as coerências e incoerências entre discursos e práticas.
Submeter os discursos dos agentes, sejam eles alunos, professores, dirigentes,
a uma análise que não se atenha apenas a seus enunciados, aquilo que dizem,
mas tomando, como propunha Foucault, os discursos como materialidade,
investigando a proveniência e a emergência deles. Investigar a que formações
discursivas eles pertencem. Uma aula de História mobiliza temas, enunciados,
conceitos pertencentes a distintas formações discursivas, a distintos arquivos.
O professor, em sua fala, articula temas, enunciados e conceitos que provêm do
livro didático, da sua formação universitária, mas também daqueles presentes
nos jornais, nos meios de comunicação de massas, nas revistas especializadas
ou não, no cinema, nas redes sociais, na Bíblia ou no material impresso de sua
denominação religiosa, no senso comum, etc. Por isso Foucault escolheu utilizar
a noção de saber e não a noção de ciência, pois, ao contrário da epistemologia,
seus estudos se dedicavam a pesquisar as condições históricas de emergência de
saberes que não adquiriram, necessariamente, o status científico, sem deixarem
de ter relações com o conhecimento científico. Esse caráter compósito da aula
de História faz com que optar por um pensamento como o de Foucault tenha
muito mais pertinência na hora de se escolher uma orientação teórica, do que a
escolha de autores no campo da epistemologia da ciência.

50 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


Como historiadores, é importante verificar as condições históricas que
possibilitaram esses temas emergirem, em que condições históricas dados
enunciados passaram a circular no campo da educação escolar, em que mo-
mento, em que contexto, em que situação dados conceitos apareceram e fo-
ram deslocados para o campo do Ensino de História. Não se trata de pesqui-
sar, apenas, se o ensino de História serve ou não para a formação da cidadania,
mas investigar em que momento e em que condições históricas essa relação,
que não é de modo nenhum obrigatória entre cidadania e ensino de História,
que é contingente e histórica, foi estabelecida (GUIMARÃES, 2016). Que re-
lações de poder, que instituições, que discursos, que saberes produziram essa
relação necessária entre ensino de História e cidadania? E, o mais importante,
com quais conceitos de ensino e de cidadania está se operando aqui? Falar em
ensino e em cidadania não é falar de conceitos óbvios, de objetos neutros e
inocentes; há uma carga política em como se define cada um desses conceitos.
Somente abrindo mão de qualquer ideia de essencialidade, de inerência, de
pertinência desde sempre, de literalidade desses termos, pode-se fazer uma
pesquisa inspirada no pensamento de Michel Foucault. Tudo é histórico, ima-
nente, contingente. O ensino de História não é, essencialmente, voltado para
a construção da cidadania, não há nenhuma relação de inerência, de pertinên-
cia obrigatória entre esses dois termos. Não há nenhuma literalidade sequer
na noção de ensino de História (VASCONCELOS, 2012). O ensinar História
pode significar e ser diversas coisas. Basta ir para a escola e verificar a prag-
mática que esse conceito recobre para se ter certeza disso. É possível que, em
algumas aulas de História, o que menos se ensine seja algo parecido com isso.
Hoje, há professores de História ensinando até a vida eterna, contradição total
com a ideia mesma de historicidade.
Uma pesquisa inspirada no pensamento de Michel Foucault se inicia pela
completa desnaturalização do objeto. Não existem objetos dados, prontos,
à espera do pesquisador. Não existem objetos pertinentes ou impertinentes
a uma dada área do conhecimento, isso é mera repartição de competências
no campo dos saberes, fruto das relações de poder que atravessam o campo.
A delimitação de um objeto, sua definição, é um golpe de força no interior
inesgotável do arquivo, do a priori histórico. Ele já nasce como uma operação
política e implicando, portanto, efeitos de poder. Os pesquisadores no campo
do ensino da História sabem de todas as lutas que foram necessárias para que
esse campo de objetos emergisse, se delineasse, se afirmasse, se legitimasse.
Há quem ainda torça a cara diante das pesquisas nesse campo, diante de sua
própria existência. Sabemos dos enfrentamentos e posições divergentes no
interior do próprio campo e assim é em todos os demais (MONTEIRO, 2014).
Os objetos são criações humanas, são criações realizadas no interior da lingua-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 51


gem específica de cada campo do conhecimento, através do recorte de dadas
séries de discursos e de práticas. O objeto é apenas um arranjo particular de
séries, um ponto para o qual convergem distintas séries. Sim, séries, pois o
método de pesquisa que podemos nomear como sendo o de Foucault seria o
método serial. Que tipos de séries podemos distinguir em uma dada realida-
de? Muitas, quase infinitas, por isso fazemos escolhas. Um objeto pode ser re-
cortado através de uma série temática, ou seja, o objeto pode emergir a partir
da escolha de um dado tema e da exploração da conexão desse tema com te-
mas coexistentes e correlatos. O tema ensino conecta-se com o tema História,
com o tema livro didático, com o tema estratégias pedagógicas, com o tema
aprendizado, etc. Um objeto pode ser recortado através de uma série enuncia-
tiva ou discursiva, um conjunto de documentos, de discursos que se utilizam
do mesmo enunciado: todos os discursos que contêm o enunciado: o ensino
de História se dirige à formação da cidadania; o ensino de História visa formar
seres críticos; o ensino de História serve para formar cidadãos tolerantes com
a diferença; o ensino de História visa formar indivíduos conscientes, etc. Um
objeto pode ser recortado através de uma série conceitual, os discursos e prá-
ticas que se articulam em torno de um dado conceito: educação popular, pe-
dagogia crítica, currículo, narrativa docente, etc. No entanto, o mais comum é
que os objetos conectem distintas séries: temáticas, enunciativas, conceituais.
Além da investigação das séries que compõem um dado objeto, é fundamen-
tal analisar quais as estratégias presidiram esse recorte de objeto. Foucault
considera que os recortes de objeto são, desde o princípio, atitudes políticas,
implica um posicionamento estratégico no interior do campo de pesquisa, das
instituições, do pensamento, do próprio saber. Recortar objetos de pesquisa
é inseparável de assumir posições políticas, éticas, estéticas, epistemológicas.
Uma pesquisa que toma o pensamento de Michel Foucault como inspira-
ção há também de adotar uma postura muito distinta em relação à noção de
sujeito, de agente das ações a que estuda. Ao contrário de eliminar o sujeito,
de que o acusam dadas leituras, Foucault elimina o sujeito como um a priori
dos acontecimentos, do pensamento, da História. O sujeito não vem antes
do que pensa, do que diz, do que vê, do que faz. O sujeito é uma resultante
de suas práticas e de seus discursos. Não há um sujeito professor de História
antes que ele entre em sala de aula e assuma esse lugar de sujeito previamente
configurado, codificado e legitimado. Uma pesquisa no campo do ensino da
História começaria mal se naturalizasse a figura do professor, se não o per-
cebesse como um lugar de sujeito social e culturalmente produzido. A noção
de lugar de sujeito é fundamental no pensamento foucaultiano; ela permite
historicizar as figuras de sujeito, pensar como elas se forjam social e histori-
camente. Permite-nos também fugir da ideia moderna e burguesa do sujeito

52 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


como indivíduo, como portador de uma alma ou de um espírito individual,
solipsista, fechado em si mesmo, o sujeito psicológico e racionalista, o sujeito
como uma consciência soberana e anterior a suas práticas e seus discursos. O
lugar de sujeito professor de História existe socialmente porque emergiu em um
dado momento preciso, ele foi criado a partir de dados discursos e práticas
que o reivindicaram, configuraram e legitimaram, de dadas decisões institu-
cionais; ele implica toda uma codificação – seja legal, seja consuetudinária
– que antecede o momento em que algum indivíduo venha dele se investir.
Ninguém é professor de História antes de assumir esse lugar de sujeito e, ao
fazê-lo, isso implica assumir direitos e deveres para ele estabelecidos legal e
costumeiramente, implica assumir uma cultura desse lugar, uma cultura es-
colar que o define, controla e possibilita. Quando se chega a uma escola para
assumir esse lugar, existem não apenas dadas obrigações, deveres e direitos
que o configuram, mas também expectativas, toda uma cultura escolar que
pressiona no sentido de que o professor novato venha a corresponder ao que
se espera de um professor de História. Imagens de professor de História já
circulam, narrativas já descrevem, figuram, definem o que seria um bom pro-
fessor de História. Mas esse lugar estará permanentemente em jogo, estará
permanentemente se repondo e se refigurando no dia a dia em sala de aula,
através de práticas e discursos, através das relações que estabelece com outros
lugares de sujeito ali distribuídos: alunos, diretores, supervisores, pedagogos,
chefes de disciplina, etc. Os lugares de sujeito pressionam no sentido de uma
dada regularidade de ação, de prática, por estarem assentados não só numa
dada regulamentação e codificação, mas em uma dada cultura, uma dada sim-
bologia, uma dada pragmática, um dado imaginário, uma dada narratividade.
O sujeito é um lugar de prática e um lugar de fala, situado em um dado espaço
e um dado tempo específicos. O sujeito é situacional, pragmático e relacional.
O ser sujeito implica estabelecer relações de agenciamento e/ou de obediência
a algo ou alguém; o ser sujeito implica assumir uma dada prática, realizar uma
dada ação, estar sujeito a um dado evento; ser sujeito é situar-se em face de
algo ou alguém na condição de agente e/ou paciente.
As noções de processos de sujeição e de processos de subjetivação, desen-
volvidos nos últimos anos de vida de Michel Foucault, implicam pensar as
subjetividades, os sujeitos como fabricações históricas, sociais e culturais. Os
sujeitos não são o ponto de partida dos acontecimentos, mas as resultantes
deles. No percurso de socialização de cada um de nós, agem processos de su-
jeição, processos que nos fazem subjetivar, internalizar, incorporar os códigos
sociais, a ordem dominante. A noção de incorporação é aqui essencial porque
o corpo, ao contrário do que ocorre com muitos outros pensadores, tem em
Foucault uma posição central. Em suas análises, o corpo é a superfície sobre

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 53


a qual se inscrevem a história coletiva e a história pessoal. As pesquisas no
campo do ensino da História, que se apoiem nas formulações foucaultianas,
devem estar atentas para as dimensões corporais, desejantes, libidinais, eró-
ticas, éticas e estéticas das práticas docentes e discentes. Quando Foucault
privilegia as relações em seus estudos, ele não se esquece de que qualquer
relação humana põe em jogo os nossos corpos. Ele não esquece que nossos
corpos são vibráteis,8 ou seja, afetam e se deixam afetar pela presença de ou-
tros corpos, humanos ou não humanos. Onde estão dois corpos em relação,
aí estão presentes o poder e o desejo, de modo inseparável. Assim como em
Nietzsche, o poder é inseparável da vontade, do desejo. O desejo de poder e
o poder do desejo habitam todas as relações humanas. O corpo do professor,
assim como o corpo do aluno, é erótico. Aqueles que acham que proibindo de
se falar de gênero e sexualidade na escola, expulsarão o erotismo, a dimensão
libidinal da relação entre professor e aluno, estão redondamente enganados.
Pelo fato de essa dimensão existir é que as discussões em torno de uma ética
profissional se fazem necessárias e urgentes, sem repressões e escamoteamen-
tos. O professor continuará emitindo signos de gênero, continuará propon-
do modelos de masculinidade ou feminilidade, continuará encarnando dada
sexualidade, falando ou não disso em sala de aula. O fato de o professor ser
um corpo erótico não faz dele um abusador ou um estuprador em potencial.
Assim, todos nós o seríamos. Mas sim alguém que precisa tomar consciência
disso, para estabelecer travamentos éticos naquilo que faz.
Um dos aspectos comumente negligenciados nas pesquisas em torno do
ensino, e em ensino da História não é diferente, é, justamente, as performan-
ces corporais nele envolvidas. É dada muita atenção às narrativas, aos discur-
sos, como se o ato de ensinar se reduzisse ao que é dito, ao seu conteúdo,
às suas dimensões semióticas e significantes. Em uma aula de História, há
outras semióticas em ação que podem contribuir para o aprendizado ou para
o desinteresse em torno da matéria. Independentemente do que diz, a voz do
professor é um índice que pode fazer enorme diferença na hora do ensino.
Uma voz agradável ou desagradável aos ouvidos, assim como uma voz alta
ou baixa, rouca ou estridente, pode estabelecer ou não o necessário clima de
empatia, de disponibilidade subjetiva para o aprendizado dos alunos. Um pro-
fessor pode alcançar enorme sucesso pela capacidade de sedução, de encanta-
mento de sua voz. O timbre, o ritmo, a dicção, a musicalidade de uma voz é
uma semiótica a-significante9 em operação em uma aula de História, podendo

8 Para a noção de corpo vibrátil, ver: Rolnik (2006).


9 Para a noção de semiótica a-significante, ver: Lazzarato (2014).

54 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


ser decisiva para o sucesso ou não da empreitada. Não é apenas o que se diz
o que importa, mas como se diz, daí porque não faz sentido, para Foucault,
separar forma de conteúdo. Um professor que domina muito o conteúdo pode
ser um fracasso como professor, por causa de sua performance em sala de aula.
Toda aula é dramatúrgica, teatral, ela envolve todo o corpo e sua capacidade
de produzir afetos. Um professor pode encantar, seduzir, maravilhar, devido
muito mais a como performatiza a aula, do que propriamente pelo que ensina.
A dimensão estética deve ser levada em conta na hora de se avaliar o porquê
do sucesso de um dado professor: desde a estética de seu próprio corpo – in-
cluindo como se veste, como se ornamenta, como gesticula, como se desloca,
como fala, como ri, como produz rostos de assentimento, simpatia, raiva, des-
contentamento, admoestação – até a estética de sua aula, a forma como expõe
a matéria, os recursos que utiliza, a organização que dá à escrita no quadro,
a estética do material que apresenta em sala de aula. Deveríamos levar mais
em conta o fato de que avaliamos sempre se uma dada aula foi agradável ou
não, se um professor nos agrada, se a disciplina é de nosso agrado. Agradar
não tem necessariamente a ver com o conteúdo transmitido, com a eficácia
da argumentação, com a racionalidade da aula; ela tem muito mais a ver com
as dimensões inconscientes, desejantes, estéticas, eróticas, performáticas da
aula. Quando se for tratar das narrativas em sala de aula, é preciso lembrar
que, desde a Antiguidade, os tratados de retórica chamavam a atenção para o
fato de que o sucesso de uma narrativa, de seus argumentos, de sua capacida-
de de convencer passa por sua capacidade de comover, mobilizar emoções, de
produzir afetos. A eficácia de um discurso passa pela performance de quem
o emite, passa pelo modo como investe todo o seu corpo naquilo que emite,
investindo, inclusive, suas paixões naquilo que diz. Um professor que repete
mecanicamente, sem interesse, de forma monótona um dado discurso, dificil-
mente atrairá alguém para o que ensina. Quando os alunos dizem que a aula
de História é chata, sem ter consciência, estão dizendo que a aula desenha
uma figura achatada, sem atrativos, sem reentrâncias, sem relevos interessan-
tes, sem configurações e desenhos atrativos.
Ora, essa dimensão desejante, libidinal, erótica, estética do trabalho do
professor, exigindo dele uma reflexão ética sobre os limites de práticas e de
discursos que devem presidir sua atuação, remete-nos a outra dimensão da
formação das subjetividades e dos sujeitos, segundo o pensamento de Mi-
chel Foucault: os processos de subjetivação. Eles implicam os investimentos
que os sujeitos, consciente ou inconscientemente, fazem na elaboração de si
mesmos. Além de sermos produzidos pela sujeição aos códigos sociais, a uma
dada ordem social, somos também produto dos investimentos que fazemos na
constituição de nós mesmos. Quando decidimos estudar História, quando de-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 55


cidimos ler dado autor, quando preferimos assistir às aulas de dado professor,
quando escolhemos um orientador, um tema de pesquisa, quando decidimos
fazer curso de dada língua estrangeira, quando tomamos a decisão de dominar
a informática, estamos disparando processos de subjetivação, num trabalho de
construção de nós por nós mesmos. Nos processos de subjetivação, podem-se
dar as singularizações, as resistências, a criação dos espaços de liberdade em
relação à ordem dominante. Isso não significa, segundo Foucault, que a resis-
tência não se faça presente, também, nos processos de sujeição. Para Foucault,
a resistência é imanente a toda relação de poder, a possibilidade de resistir
é o que faz dela uma relação; se, numa dada relação, qualquer resistência
for impossibilitada, não se está diante de uma relação de poder, mas de uma
situação de subjugação, de escravidão. Numa pesquisa no campo do ensino
da História, seria muito importante mapear os processos de subjetivação que
esse ensino, que as aulas de História são capazes de possibilitar. As aulas de
História estariam oferecendo matérias de expressão para que os alunos pos-
sam fazer passar os seus desejos, possam construir com essa matéria territó-
rios existenciais para habitar?
A reação que assistimos à presença do ensino da História nas escolas – o
medo-pânico, as posturas reativas diante da presença do discurso dos histo-
riadores no espaço público – deve-se ao potencial desterritorializante desse
conhecimento. O professor de História, ao trazer seus conhecimentos para a
sala de aula, tende a acabar com ideia de eternidade, naturalidade e infinitude
dos territórios existenciais que alunos e seus pais habitam. Ao falar do tempo,
ao se colocar ao lado do caráter corrosivo do tempo, ao afirmar a finitude de
todas as coisas, de todas as dominações, de todos os impérios, de todas as
verdades, de todas as crenças, de todos os deuses, de todos os valores, o pro-
fessor de História seria o relativista em pessoa, aquele que desencava tudo o
que há de diabólico nas coisas, já que diabólico é tudo que separa, segmenta,
divide, dispersa. O professor de História, mesmo proibido de discutir valores,
vai continuar sendo um incômodo em sala de aula, pois os valores entrarão
com ele porta adentro, na maneira como se veste, na maneira como age, na
maneira como se coloca em sala de aula, na maneira como estabelece relações
com seus alunos. É uma falácia ignorante achar que valores, moral, ética se
aprendem através de sermões e discursos paternos. O pai que faz um sermão
no almoço e contradiz o que disse em cada gesto que faz no restante do dia,
está produzindo distintas possibilidades de apreensão de valores, apresentan-
do distintos modelos de subjetividade. Uma direita, quase sempre corrupta
e hipócrita, falando de valores, é uma contradição em termos. Mesmo que
apresente apenas a crônica dos fatos, o professor de História transmitirá aos
alunos a ideia de mudança no tempo, de temporalidade com que trabalha, e

56 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


isso, para subjetividades reativas e reacionárias, conservadoras, que não que-
rem saber de mudanças, que temem as transformações, já será apavorante.
Michel Foucault, pelo contrário, foi um pensador que não temeu a mudan-
ça, que não se incomodava em tornar-se diferente de si mesmo, todo o tempo.
Seja em sua vida pessoal, seja no pensamento, Foucault se arriscava, se lan-
çava ao desconhecido, produzia deslocamentos constantes em relação ao que
havia pensado e como havia vivido. É totalmente inadequado tomar um dado
momento de sua trajetória, o rosto que desenhou naquele momento, e esco-
lhê-lo para representar a totalidade do que pensou e do que foi. A maior lição
deixada pelo professor Foucault é que o pesquisar e o ensinar valem a pena se,
a cada vez, o ensinar e o pesquisar nos tornarem diferentes do que somos, nos
desencaminhar, cortar nossas continuidades e semelhanças. O pensamento
de Foucault é atravessado por uma constante inquietação, por uma alegria
em produzir o diferente, por um riso cortante e irônico diante das figuras do
mesmo, do repetitivo, do rebarbativo, do dogmático, das certezas e verda-
des perenes, dos valores eternos, das dominações com pretensões universais
e atemporais. Foucault possuía uma enorme alegria, até uma crueldade, em
desentocar os poderes de lá onde eles se escondiam, mesmo numa simples
aula de um professor de História. Aí vários poderes e saberes estão atuando,
encarnados no próprio corpo de quem ensina ou de quem é ensinado, em cada
gesto e prática que realizam, em cada discurso que proferem. A rebelião, a
resistência, a singularidade, a criatividade, a transgressão, processos de sub-
jetivação também aí estão colocados. Aí se misturam as narrativas das falas,
dos sinais, dos ícones, dos signos a-significantes, a retórica dos discursos e a
retórica dos gestos. Diferentes e distintas semióticas se articulam e produzem
o inesperado, fazem emergir o não previsto.
Michel Foucault foi um homem e um pensador das metamorfoses, um ho-
mem que não gostava de seu próprio corpo, de seu próprio rosto, um homem
de calva lisa e reluzente, de óculos de aros grossos, de gestos largos, de voz
metálica e envolvente, o homem das blusas de gola rolê, do alisar pelos imagi-
nários na careca brilhante, do riso largo, dos olhos doces e ternos, um homos-
sexual que tinha, inicialmente, enorme vergonha de seus desejos, que tentou
algumas vezes o suicídio, que esteve muito perto de enlouquecer, um profes-
sor encantador, capaz de horas de fala clara e atraente, um polemista feroz, um
homem de coragem diante de qualquer força bruta, um homem irreverente.
Michel Foucault, talvez ele concordasse com esta imagem, foi uma lagarta que
se metamorfoseou em borboleta, não parando nunca de devir outro, um ser
esvoaçante, de muitas e furta-cores, mimetizando-se em cada ambiente que
chegava, interessado em todas as coisas que apareciam à sua frente, borbole-
teando entre um tema e outro, entre um tempo e outro, entre uma disciplina

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 57


e outra, entre um rosto e outro. Michel Foucault, aquela lagarta de pouco pelo
do início da vida, enrolada sobre si mesma, arrastando-se numa melancolia
sem-fim, se tornou uma das mais belas borboletas do pensamento do século
XX. Foi graças ao pensamento que pôde levantar voos, cada vez mais cora-
josos; foi graças ao poder metamorfoseante de seu ensino e de sua pesquisa
que se tornou uma mariposa noturna, corajosamente afrontando a ameaça de
todas as Luzes, o sol negro da linguagem, como o definiu Michel de Certeau
(CERTEAU, 2011). Definindo-o, portanto, por uma figura de linguagem de
que tanto gostava: o oximoro, por trazer a contradição internalizada. Por fim,
ele se tornou cinzas, incinerado por seu próprio fogo, pelo desejo de alturas,
de novos ares, de experimentações do indizível e do invisível.
Mas ele continua, ainda, a oferecer às suas pintalgadas asas, para quem
quiser, com ele, alçar voos, desenhar nos ares novas figurações de si e dos ou-
tros. Ele nos ensinou caminhos, se de ensino é do que se trata, mas ensinou,
acima de tudo, a leveza do pensamento, a beleza da palavra, o sopro da cria-
tividade. Borboleta, ele nunca quis ser seguido ou copiado, ele quis ensinar a
voar, com as próprias asas. Ele ensinou que pensar pode ser leve, desde que se
faça por si mesmo, sem amarrações a sistemas e conceitos prontos. Ele quer
apenas, como uma borboleta, polinizar os nossos pensamentos e os nossos
sentimentos, nos ensinar a olhar de um outro modo, fazer as nossas antenas
se voltarem para outras direções, e pousar em muitos lugares distintos, desde
que exalem aromas de vida e não o cheiro de morte do fascismo, do poder
soberano e da ordem. Que sejamos borboletas – e não lagartas, arrastando-se
por territórios fixos e gastos – na hora de ensinar e pesquisar História. Para-
fraseando o poeta: voar é preciso, viver não é preciso!

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60 DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR


PARTE 2
Ensino de História:
uma incursão pelo campo1

Mauro Cezar Coelho2

Taissa Bichara3

Xô xuá
Cada macaco no seu galho
Xô xuá
Eu não me canso de falar
Xô xuá
O meu galho é na Bahia
Xô xuá
O seu é em outro lugar
Cada macaco no seu galho, Riachão

Cada macaco no seu galho! O provérbio, recorrente em nosso cotidiano,


tornou-se música pela arte do mestre Riachão. Seu uso se presta a situações
diversas que independem das intenções do poeta. Um dos mais recorrentes é
a afirmação de espaços e de hierarquias. Ele pode indicar fronteiras, delimitar

1 Este texto sistematiza a reflexão feita, sob o mesmo título, no XI ENPEH, na Mesa-Redonda
Pesquisa em Ensino de História: balanço de uma produção. Os dados apresentados naquela
oportunidade e aqui reunidos foram construídos a quatro mãos, como expressa a autoria do
texto. Nossos agradecimentos aos organizadores do evento e aos presentes, pelas questões
e ponderações feitas então.
2 Professor associado da Universidade Federal do Pará, onde é professor da Faculdade de
História, do Programa de Pós-graduação em História Social e do Programa de Pós-graduação
em Gestão e Currículo da Educação Básica. Possui Mestrado em História Social da Cultura
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e Doutorado em História Social
pela Universidade de São Paulo (2006). E-mail: mauroccoelho@yahoo.com.br
3 Bacharel e licenciada em História, é mestranda do Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Federal do Pará. E-mail: taissabichara@gmail.com

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 63


competências, apontar restrições.4 O sentido acionado em Cada macaco no seu
galho não é, necessariamente, o que fundamenta uma instituição da cultura
brasileira – as hierarquias que estabelecem lugares, importâncias e, sobretu-
do, privilégios (DA MATTA, 1997, p. 187-260, especialmente). A interpre-
tação de Caetano Veloso e Gilberto Gil5 indica que o destaque é para outro
sentido – “cada um sabe de si”!
Neste texto, porém, é a remissão às hierarquias que inspirou a escolha da
canção como epígrafe. Como apontam as análises sobre os usos do provérbio,
em muitos casos ele é acionado com o objetivo de impor uma ordem, de estabe-
lecer gradações e promover interditos. “Cada macaco no seu galho” quer dizer,
assim, que cada um tem seu lugar e que cada lugar tem uma atribuição – os
lugares não são intercambiáveis e tampouco as posições. Os galhos, nesse caso,
expressam uma hierarquia. É esse sentido do provérbio que pode ser aplicado e
estendido ao universo acadêmico. Conformado por áreas do conhecimento que
disputam importância e demarcado por um conjunto de práticas com significa-
dos e relevâncias distintas, o campo acadêmico é pródigo em galhos.
Trocadilhos à parte, o presente artigo oferece um panorama inicial de um
dos campos que compõem o universo acadêmico. Nosso objetivo é analisar o
que circunscreve o campo do Ensino de História, a partir de um aspecto: sua
produção bibliográfica, expressa em artigos publicados em periódicos especia-
lizados. Com isso, pretendemos sopesar as questões e dilemas que demarcam
um campo (BOURDIEU, 2007, p. 59-73) que só existe em diálogo com ou-
tros, indicando os espaços nos quais seus problemas, preocupações e objeti-
vos são incorporados com maior frequência e em maior número.
A escolha por tais produções se deve ao espaço que adquiriram nos úl-
timos anos, em função da expansão dos programas de pós-graduação e da
instituição de processos de avaliação que valoram a produção de docentes e
discentes neles inseridos.6 Desde então, os significados da formação de qua-

4 Sobre os usos do provérbio, ver: França (2006); Azevedo e Fernandes (2009).


5 A música Cada macaco no seu galho, de Riachão, foi gravada pela Philips (Rio de Janeiro,
1972), tendo por intérpretes Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em compacto simples: Cada
macaco no seu galho/Chiclete com banana.
6 Dados sobre a expansão dos Programas de Pós-graduação podem ser obtidos na publicação
comemorativa pelos 60 anos da CAPES – COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE
PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR – CAPES 60 anos, jul. 2011. A avaliação dos Programas de
Pós-graduação está regulada pelos seguintes instrumentos: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.
Portaria 2.264, de 19 de dezembro de 1997 - Dispõe sobre os requisitos para a validade
nacional dos títulos de pós-graduação stricto sensu. Disponível em: http://capes.gov.br/
images/stories/download/avaliacao/avaliacao-n/2342014-Portaria-MEC-n-2264-1997.
pdf. Acessado em:15/01/2018; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria 5 1.418, de 23 de

64 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


dros, da publicação de resultados de pesquisa, da ministração de conferências,
etc. ganharam outros sentidos, expressos em valores que definem não somen-
te o lugar dos programas, mas afetam também as classificações de cursos de
graduação.7 Eles, sobretudo, concorrem para a construção de um capital sim-
bólico (BOURDIEU, 2004 e 2007), que fundamenta a trajetória profissional
de pesquisadores.
Assim, analisar tal produção pode ser indício importante de como um
dado campo de pesquisa constitui espaços a partir dos quais são estabeleci-
das questões, discussões e correntes que o definem. São essas instâncias do
mundo acadêmico que, desde há três décadas, pelo menos, têm constituído
um campo de pesquisas sobre o Ensino de História (COSTA e OLIVEIRA, p.
147-160, 2007; SCHIMIDT e URBAN, p. 17-42, 2016; RIBEIRO, RIBEIRO JR.
e VALÉRIO, p. 196-221, 2016). Situado na interface das áreas de História e da
Educação, recorrendo a estruturas conceituais suas e de outras áreas do co-
nhecimento, o campo reúne tanto pesquisadores que se dedicam à temática de
modo contínuo e sistemático, quanto aqueles que a visitam ocasionalmente.
Daí a diversidade de discussões que o demarcam e dos dilemas que enfrenta.
A temática, portanto, não é suficiente para caracterizá-lo.
É seu compromisso com a Educação Básica o que o singulariza. As pesqui-
sas sobre o Ensino de História pretendem – via de regra – interferir nos siste-
mas educacionais, com vistas à melhoria das condições de oferta da Educação
Básica e, principalmente, do lugar que nela ocupa a História como disciplina
escolar. Nesse sentido, tais pesquisas guardam uma decisiva diferença daque-
las desenvolvidas nas áreas em cujas fronteiras estão situadas. Em primeiro
lugar, ainda que comprometido com a perspectiva diacrônica, o objetivo final

dezembro de 1998 - Dispõe sobre a classificação dos cursos de Mestrado e Doutorado,


segundo o padrão de qualidade que possuem. Disponível em: http://capes.gov.br/images/
stories/download/avaliacao/avaliacao-n/2342014-PortariaMEC-n-1418-1998.pdf. Acessado
em: 15/01/2018; MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO
DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Portaria nº 013, de 01 de abril de 2002 - Dispõe sobre
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RESOLUCAO-N-7-DE-11-DE-DEZEMBRO-DE-2017.pdf. Acessado em: 15/01/2018.
7 Conforme o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior/SINAES: BRASIL. Lei nº
10.861/2004 - Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/
Lei/L10.861.htm. Acessado em: 15/01/2018.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 65


das investigações não é, apenas, compreender o contexto no qual a História
é ensinada na Escola. Os objetos das pesquisas são perscrutados com vistas
à intervenção no contexto que se analisa, de modo que pesquisador e objeto
compartilhem e participem do processo analisado. Em segundo lugar, mesmo
vinculadas às questões da Educação, as pesquisas do campo não se limitam à
compreensão dos fundamentos teóricos que embasam as práticas educativas
ou de como estas últimas se desdobram na formação de crianças, adolescentes
e adultos inseridos na Educação Básica.
Diante de um campo demarcado por tamanha complexidade, estabelece-
mos um objetivo modesto: verificar como o campo do Ensino de História se
caracteriza, considerando os espaços de produção e de difusão do conheci-
mento. Para tanto, buscamos situar a sua composição e conformação, a par-
tir dos grupos de pesquisa e dos pesquisadores que o compõem. No estágio
atual de nossa reflexão, constatamos que o campo do Ensino de História tem
questões e temas definidos, uma área de atuação na qual tem maior inserção
e um espaço de produção que melhor incorpora sua produção. A diagnose que
realizamos sugere que a inserção de grupos de pesquisa e a produção biblio-
gráfica se dão em diálogo maior com a área de Educação do que com a área de
História. Ao final e ao cabo, fica claro em que galho ele se situa.

O universo da pesquisa

Os dados que analisamos foram retirados do Diretório de Grupos de Pes-


quisa do CNPq.8 O passo inicial foi identificar grupos de pesquisa nos quais
a categoria “Ensino de História” é utilizada para compor seus descritores.
Por meio da consulta à base corrente,9 identificamos 383 grupos de pesquisa,
nos quais o Ensino de História constitui parte de suas preocupações. Todavia,
nem todos os grupos apresentam os dados de modo uniforme, de maneira que
reduzimos o universo a ser pesquisado para 378 grupos de pesquisa que apre-
sentavam informações correlatas, as quais poderiam suscitar a identificação
de padrões.

8 O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico mantém um inventário com


dados de todos os grupos de pesquisa reconhecidos pelas Instituições de Ensino Superior e
nele registrados. Os dados disponíveis no inventário são relativos aos recursos humanos dos
grupos de pesquisa. Ver: http://lattes.cnpq.br/web/dgp.
9 O Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq permite a consulta ao inventário, por meio
de termos de busca (http://dgp.cnpq.br/dgp/faces/consulta/consulta_parametrizada.jsf). A
expressão “Ensino de História” foi utilizada para identificar os grupos de pesquisa que tinham
o ensino de História como um de seus descritores.

66 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


A partir dos dados daquele Diretório, consideramos três dimensões: em
primeiro lugar, as características dos grupos de pesquisa, como composição,
localização, situação institucional, área do conhecimento na qual estão situa-
dos, etc.; em seguida, o corpo de pesquisadores que os compõe, verificando a
formação, tempo de atuação, produção na área, entre outros fatores; depois,
a produção propriamente dita, considerando as temáticas e os suportes de
publicação; finalmente, a formação de quadros – verificando a inserção dos
pesquisadores em programas de pós-graduação e os trabalhos aí concluídos.
Em função do universo estudado, o recorte temporal adotado compreende,
de partida, os trinta anos demarcados desde a data de fundação do primeiro
grupo de pesquisa, segundo os dados disponibilizados no Diretório de Grupos
de Pesquisa do CNPq, e o ano de 2016 – ano anterior ao da coleta e análise dos
dados. No entanto, como consideramos também a atuação dos pesquisadores
para além dos períodos de existência dos grupos de pesquisa (em função de
suas trajetórias de formação e atuação profissional), assumimos que o início
das discussões do campo de pesquisas sobre o Ensino de História é anterior
à emergência dos grupos de pesquisa. Assim, a década de 1970 é assumida
como o ponto de partida de uma discussão sistemática e circunstanciada acer-
ca da História Ensinada e seus desdobramentos – currículo, formação docente
e natureza do saber escolar operado e construído a partir da História.
Com relação a esse recorte e esse universo, a reflexão que construímos
oferece um mapeamento do campo de pesquisas. Assim, os dados que reco-
lhemos são o foco de nossa atenção e, sobre eles, tecemos algumas interpreta-
ções ainda embrionárias, em função do caráter inicial de nossa reflexão. Não
obstante, consideramos que algumas delas são promissoras, especialmente as
relacionadas à produção consolidada e a alguns documentos da área de His-
tória, como os Documentos de Área na Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoa de Nível Superior – CAPES. Assim, é possível sugerir que a conforma-
ção do campo, especialmente no que se refere aos espaços de publicação em
periódicos científicos, reflete o lugar que a discussão sobre ensino de História
ocupa nos cursos de graduação e de pós-graduação em História no Brasil.

A representação nacional

Os grupos de pesquisa que têm o Ensino de História no seu rol de preocu-


pações surgem a partir da década de 1980. Segundo os dados disponíveis no
Diretório, o grupo de pesquisa mais antigo do país, em atividade, é o Grupo
de Pesquisa HISTEDBR – Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade
e Educação no Brasil, da Universidade Estadual de Campinas, fundado em

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 67


1986. Vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação, não figurou solitá-
rio durante muito tempo. Nos anos seguintes, assistiu-se ao aumento do número
de grupos. O crescimento exponencial foi grande, posto que, em 1989, os dados
apontam a existência de três grupos de pesquisa – um crescimento de 200%.
Foi na década de 1990, no entanto, que os grupos conheceram um avanço
decisivo – um salto de 1.325%, partindo de quatro grupos de pesquisa no iní-
cio do decênio, para 53 em 1999. Os anos 2000 assistiram a um crescimento
menor, porém significativo – os 62 grupos que iniciam o século passam a ser
acompanhados por outros 142 grupos. Na presente década, o crescimento ex-
ponencial se mantém – os sete anos iniciais vivenciaram um salto de 62% no
número de grupo de pesquisas. A representação gráfica do crescimento expõe,
de modo ainda mais claro, o avanço que os grupos protagonizaram.

Gráfico I
Crescimento dos Grupos de Pesquisa – Ensino de História

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev./jun. 2017.

O crescimento dos grupos de pesquisa acompanhou, evidentemente, a


oferta de cursos de pós-graduação stricto sensu pelo país. Se, inicialmente, os
grupos se concentraram nas regiões Sudeste e Sul, quanto mais próximos do
tempo presente nos aproximamos, observamos uma maior distribuição dos
grupos de pesquisa pelo país. Em 2016, havia grupos que tinham o ensino
de História como um de seus descritores em todas as unidades da federação.

68 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


Isso não quer dizer, evidentemente, uma distribuição equitativa. Se consi-
derarmos apenas os valores absolutos, estamos diante de distâncias abissais
– enquanto que unidades da federação como Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas
e Rondônia possuem um grupo de pesquisa cada um (segundo o recorte que
delimitamos), estados como Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo
possuem quarenta, no mínimo. Os números, no entanto, não falam por si. Os
dados sugerem que o volume de grupos de pesquisa com que nos ocupamos
acompanha, em cada unidade da federação, o montante de Instituições de
Ensino Superior (IES) nelas existentes.
Os dois gráficos a seguir apresentam dois tipos de dados. O primeiro (Grá-
fico II) situa o volume de grupos de pesquisa pelas unidades da federação; o
segundo (Gráfico III) expõe o volume de IES com grupos de pesquisa em cada
uma delas.

Gráfico II
Grupos de Pesquisa – Distribuição pelas Unidades da Federação

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 69


Gráfico III
IES com Grupos de Pesquisa – Distribuição pelas Unidades da Federação

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

A impressão visual, resultante da comparação dos dois gráficos, confirma o


que apontamos anteriormente: o número de grupos de pesquisa corresponde
ao número de IES presentes em cada uma das unidades da federação e, tam-
bém, ao número de programas de pós-graduação que mantêm. Assumindo
essa perspectiva, no entanto, as diferenças na distribuição de grupos pelo país
se alteram significativamente. Foi o que verificamos ao ponderar os grupos de
pesquisa pelo número de instituições, segundo as unidades em que se situam.
Resultou daí um indicador da média de grupos de pesquisa distribuídos pelos
estados e pelo distrito federal. Vejamos:

Gráfico IV
Índice de Grupos de Pesquisa por Unidade da Federação

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

O gráfico IV apresenta um dado relevante, considerando os dois outros


que o antecedem: as unidades da federação com maior índice de grupos de

70 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


pesquisa não são aquelas nas quais há maior número de grupos. A ponderação
que realizamos, a partir do número de grupos de pesquisa e de IES, permite
verificar as unidades nas quais a incidência de grupos é maior. Os estados de
Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo reúnem o maior número de
grupos (conforme indica o Gráfico II), porém, é nos estados de Mato Grosso
do Sul, Paraíba, Sergipe e São Paulo que, proporcionalmente, há mais grupos
de pesquisa distribuídos pelas instituições. Isso significa dizer que, nesses
estados, as instituições de ensino superior detêm índice maior de grupos de
pesquisa. No estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, três instituições
mantêm 16 grupos de pesquisa, perfazendo uma média de 5,33 grupos por
instituição, enquanto que no estado do Rio de Janeiro, 11 instituições agre-
gam 40 grupos, perfazendo uma média de 3,63 grupos/IES. Esses dados não
apontam curiosidades, mas indícios da importância e da representatividade da
temática Ensino de História nas instituições e dos lugares nos quais ela mais
impacta a estruturação do universo acadêmico.
As instituições a que nos referimos são, majoritariamente (89,92%), pú-
blicas e, via de regra, universidades – elas reúnem 93,63% dos grupos de pes-
quisa identificados. Índices análogos são obtidos quando identificamos os
mesmos grupos pelas áreas do conhecimento nas quais estão inseridos. A
área de Ciências Humanas concentra 97,11% deles. O percentual restante está
distribuído entre as áreas de Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Ciências
Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes. Ao considerarmos a distribui-
ção dos grupos que compõem o universo pesquisado no interior da área de
Ciências Humanas, o quadro que vislumbramos assume tons mais nítidos e
nos informa um pouco mais sobre o campo do Ensino de História.

Gráfico V
Distribuição de Grupos de Pesquisa – Grande Área Ciências Humanas

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev./jun. 2017.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 71


Como se pode observar pelo Gráfico V, a maior parte dos grupos de pesqui-
sa que tem o Ensino de História entre os seus descritores encontra-se associa-
da à área de Educação. Os dados sugerem que as questões relativas à História
Ensinada têm maior espaço na área de Educação do que na de História. Notem
que a diferença não é de somenos importância, pois enquanto a área de His-
tória concentra 30,26%, a área de Educação reúne 62,63% do universo que
recortamos. Tais dados acompanham análises voltadas para o lugar do Ensino
nos cursos de formação de professores de História – nos quais as questões
relativas à Educação assumem lugar secundário.10

Atuação: conformação, produção e temas

Atentemos, agora, mais detidamente, para a conformação desses grupos de


pesquisa. A partir dos dados disponibilizados no Diretório de Grupos de Pes-
quisa, consideramos os pesquisadores e computamos os seguintes dados: área
de formação (considerando o Mestrado e o Doutorado), tempo de formação e
produção bibliográfica. Considerando o campo como um espaço de produção
de conhecimento, inserido em instituições de ensino superior nas quais se dá
a formação de quadros, ponderamos os dados que permitissem perceber os
grupos em ação.
Eles facultam um conjunto variado de relações. Nessa oportunidade, nos
detivemos no dimensionamento do lugar que a temática ocupa nas ações do
grupo, considerando a produção bibliográfica. O primeiro impasse foi, nesse
sentido, o acesso à produção consolidada – expressa em livros, capítulos de
livros e artigos. A disponibilização dos artigos na rede mundial de computado-
res orientou nossa opção por eles, pois, por meio dos resumos e das palavras-
-chave, foi possível distinguir os relacionados à temática de outros campos.
Para alcançar esses dados, identificamos a produção de cada pesquisador
(na forma de artigos) e, nela, os artigos voltados para o campo do Ensino de
História. Decorreu daí um dado intrigante: em 71,65% dos grupos, há apenas
um pesquisador com artigos publicados sobre a temática. Em que pese a im-
portância de outros suportes para a área, o dado é representativo do espaço
destinado ao campo, mesmo em grupos de pesquisa que têm o Ensino de His-
tória como um de seus descritores. Os outros 28,35% dos grupos são aqueles
que possuem mais de um pesquisador com publicação sobre a temática, assim

10 A discussão acerca da formação de professores de História é pródiga. Vamos nos limitar a


apontar algumas contribuições, de forma a situar as discussões em curso: Fonseca (1995);
Caimi (2006); Cerri (2006); Monteiro (2007); Ferreira e Franco (2008); Guimarães (2012).

72 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


distribuídos: dois pesquisadores, 13,65%; três, 5,77%; quatro, 2,62%; cinco,
2,36%; seis, 1,05%; sete, 0,79%; oito, 0,79%; nove, 0,53%; e com mais de dez
pesquisadores, temos 0,79%.11 Os dados são sugestivos: apesar de presente na
descrição de grupos de pesquisa, a temática do Ensino de História é enfren-
tada de modo sistemático por uma parcela ínfima do conjunto selecionado.
Um dos fatores que poderiam concorrer para esse quadro é a conformação
dos grupos de pesquisa com os quais nos ocupamos, considerando a sua pro-
dução. Ao consultarmos os currículos dos pesquisadores, constatamos que as
áreas de formação são as mais diversas (Antropologia, Ciências da Informa-
ção, Ciências Políticas, Ciências Sociais, Economia, Engenharia de Produção,
Filosofia, Física, Geografia, Informática, Letras, Sociologia e Teoria Literária,
entre outros), mas as de Educação e História são aquelas nas quais se forma-
ram a maior parte deles: 43,02% dos pesquisadores concluíram o Mestrado e
48,6% se doutoraram em Educação, enquanto 44,13% são mestres e 44,97%,
doutores em História.12 Ao considerarmos o período de formação, nos depa-
ramos com um quadro que expressa a expansão dos cursos de Pós-graduação
stricto sensu no país.

Gráfico VI
Área de formação dos pesquisadores - Pós-graduação

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

11 Índices resultantes dos dados coletados pelos pesquisadores no Diretório de Grupos de


Pesquisa do CNPq, fev.-jun. 2017. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/web/dgp.
12 Dados resultantes da consulta aos currículos dos pesquisadores disponíveis na Plataforma
Lattes, fev.-jun. 2017. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 73


Conforme se pode verificar, o gráfico leva em conta as décadas em que as
formações ocorreram – razão pela qual não apresentamos os dados da década
em curso. Ele deixa claro ter havido um crescimento exponencial na quali-
ficação de quadros em cursos de Mestrado e Doutorado. A década de 1990
experimenta o maior salto no número de dissertações e teses defendidas (con-
siderando a década anterior), e a década de 2000 vivencia um crescimento
assombroso do número de teses concluídas – deixando claro não apenas o
crescimento dos cursos, mas a qualificação de seus corpos docentes, o que
garantiu a abertura de cursos de doutoramento.13
Tais dados sugerem que os pesquisadores iniciam sua trajetória no campo
a partir da conclusão do curso de Mestrado. Na imensa maioria dos casos de
pesquisadores inseridos nos grupos de pesquisa em estudo e com produção
no campo do Ensino de História, o início da produção bibliográfica se deu
antes do doutoramento. Isso significa que mestrandos, mestres e doutorandos
tiveram sua produção aceita e incorporada em periódicos nos quais a temática
tem espaço e relevância. Conforme os dados que coletamos, a produção de
artigos experimentou uma progressão que não obedece ao mesmo padrão da
formação dos pesquisadores.

Gráfico VII
Formação dos pesquisadores - Progressão - Pós-graduação

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

O crescimento contínuo, desde os anos 1980, promoveu saltos expressivos


na produção: enquanto que naquela década a média de artigos publicados a cada

13 Ver: CAPES, jul. 2011. No que tange à área de História, entre 2000 e 2016, foram criados
cerca de 60% dos cursos de Mestrado e Doutorado acadêmicos existentes e 100% dos
cursos profissionais. Ver: CAPES, Documento de Área, 2017, História, p. 3.

74 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


ano foi de 3,3 artigos, na década seguinte foi de 24,1 artigos/ano e, na posterior, de
97,6. Na década em que estamos, a média é de 217,42 artigos/ano. Um crescimen-
to exponencial que teve início com a produção de mestres, especialmente se con-
siderarmos que, na década de 1970, a média foi de 0,1 artigo/ano. O aumento no
número de artigos publicados é um indício da consolidação do campo. No entanto,
não são eles que ocupam a maior parte dos pesquisadores nos grupos de pesquisa
que têm o Ensino de História como um dos elementos que os identificam.
Levando em conta os mesmos artigos, ponderamos o percentual de pesquisa-
dores envolvidos com a temática em cada um dos grupos identificados. Buscamos
perceber, aqui, o lugar que o tema ocupa nas produções científicas do grupo, ten-
do em vista que a maior parte dos grupos é formada por pesquisadores atuantes
em cursos de formação de professores para a Educação Básica. Os dados que
apresentaremos a seguir, dizem respeito ao período em que há informações sobre
a publicação de artigos em periódicos, compreendendo, portanto, desde o ano de
1974 até 2016. Eles foram construídos a partir de dois procedimentos: em primei-
ro lugar, identificamos todos os artigos editados em periódicos e expressos nos
currículos dos pesquisadores; em seguida, a partir da leitura dos resumos e das
palavras-chave, distinguimos os artigos relativos ao campo do Ensino de História.
Assim, pudemos elaborar um quadro a partir do qual apontamos o montante de
artigos voltados para o campo na produção de cada pesquisador:

Gráfico VIII
Produção científica relativa ao Ensino de História
(em artigos publicados em periódicos) – Grupos de Pesquisa

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados coletados do Diretório de
Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun. 2017.

O gráfico apresenta o volume de produção relativo ao Ensino de História


nos grupos de pesquisa identificados e opera com os grupos de pesquisa em
duas ordens de valores: os blocos apontam o volume de produção (em porcen-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 75


tagem indicada no eixo horizontal) relativo ao número de grupos de pesquisa
(indicado em quantidade no eixo vertical). Temos, então, que 10,58% dos
grupos de pesquisa que têm o Ensino de História entre os seus descritores não
registram qualquer artigo publicado em periódico especializado, no período
recortado. Em 14,02% dos grupos, a produção relativa à temática não ultra-
passa 30% em artigos. Se nos voltarmos para aqueles em que ela é significati-
va, representando entre 2/5 e 3/5 da produção, alcançamos, então, 21,69% do
total de grupos de pesquisa. Os grupos cujas questões relativas ao Ensino de
História estão expressas em, pelo menos, sete de cada dez artigos publicados
representam 53,70%. Os dados sugerem que, apesar de presentes como des-
critores em todos os grupos do universo pesquisado, as questões que mobili-
zam o campo movimentam e estruturam apenas a metade deles.
Os resumos dos artigos e as palavras-chave nos ajudam a conhecer algu-
mas dessas questões. Identificamos um conjunto de temas, abordando questões
como: Aprendizagem, Consciência Histórica, Currículo, Didática da História, Educação
Histórica, Ensino de História, Formação de Professores, História da Educação, Identidade,
e Livros Didáticos. Não é nosso objetivo proceder a um balanço dessa produção.
Vamos nos concentrar na indicação das principais discussões, destacando três
dos temas mais recorrentes. Em primeiro lugar, o Ensino de História, reunindo
um conjunto diversificado de trabalhos: reflexões acerca do campo, apontan-
do sua trajetória e as discussões que o demarcam; estudos sobre o lugar da
disciplina na Educação Básica, suas especificidades, seus limites e possibilida-
des; análises sobre práticas e procedimentos didáticos, envolvendo conteúdos,
recursos audiovisuais e uso de fontes. A seguir, as análises acerca dos Livros
Didáticos, abarcando um grupo também variado de estudos: trajetória do Livro
Didático no Brasil, especialmente a partir da implementação do Programa Na-
cional do Livro Didático; a natureza desse recurso, considerando suas múltiplas
dimensões, como obra histórica, mercado do livro, currículo de fato em muitos
sistemas escolares, suporte de representações; usos que dos livros didáticos são
feitos pelos agentes escolares. Por fim, os estudos sobre a Formação de Professores,
compreendendo, também, abordagens distintas: análise da trajetória dos cursos
de formação de professores de História no país; exame de processos de forma-
ção em cursos de Licenciatura, especialmente dos estágios e práticas de ensino;
reflexões sobre o lugar dos saberes da docência nos percursos curriculares, etc.
Essas temáticas, dentre outras correlatas, têm sido publicadas em periódi-
cos brasileiros, em sua imensa maioria. Identificamos centenas de periódicos,
nos quais os pesquisadores publicaram mais de 1.500 artigos. Vamos nos ater,
na última parte de nossa reflexão, à natureza desses suportes, considerando as
áreas nas quais estão inseridos, a partir do Qualis 2013-2016. Nossa intenção
foi investigar os periódicos frequentados, suas áreas e sua qualificação, de

76 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


modo a reconhecer o prestígio daqueles que mais publicam as temáticas do
campo em cada uma das áreas do conhecimento com as quais se relacionam.
O Qualis constitui um sistema que qualifica periódicos científicos com base
em um conjunto de variáveis que buscam apontar a qualidade da publicação. Itens
como periodicidade, avaliação por pares, diversidade do corpo editorial, indexado-
res, entre outros, são considerados, com o objetivo de indicar os jornais e revistas
científicos com maior representatividade entre os pesquisadores qualificados e
maior inserção nacional e internacional.14 São avaliados todos os periódicos nos
quais docentes de programas de pós-graduação publicaram artigos em dado in-
terstício. Daí resulta uma classificação que ordena os periódicos conforme sua
ordem de importância, em uma gradação que parte do nível mais elementar, nos
quais estão aqueles que não alcançam alguns dos critérios mínimos de qualidade
– identificados pela categoria C – até os mais conceituados, com inserção interna-
cional – identificados pela categoria A1 (CAPES, 2016).
Um movimento necessário foi, então, verificar como eram qualificados os
periódicos nos quais os pesquisadores do universo pesquisado publicaram
seus artigos. A verificação foi necessária em função de dois fatores. O primeiro
deles, porque o Qualis tornou-se um índice que atesta a importância dos pe-
riódicos. Assim, averiguar como são classificados os periódicos acionados pe-
los pesquisadores dos grupos de pesquisa pareceu-nos necessário para apon-
tar a importância das temáticas do campo. Já o segundo, porque os resultados
dessa investigação nos indicariam como se distribui a produção acadêmica em
um campo situado na interface das áreas de História e de Educação. Vamos
começar por este último ponto.

Gráfico IX
Produção relativa ao Ensino de História – Volume de Periódicos da Área de História

Fonte: Quadro formulado pelos autores, a partir dos dados


coletados do Diretório de Grupos de Pesquisa/CNPq, fev.-jun.

14 Sobre o Qualis, ver: Barata (2016). Em relação à área de História, consultar: CAPES, 2016.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 77


2017.

Ao considerarmos os periódicos segundo as áreas nas quais se situam,


constatamos que apenas 1/3 delas (33,54%) se define como jornais ou revis-
tas de História. A questão que nos orientou, a partir daí, foi buscar dados que
pudessem sugerir a razão para essa característica do campo. As análises sobre
o lugar ocupado pela temática do Ensino de História nos cursos de formação
de historiadores – mesmo nas Licenciaturas –15 nos levaram a considerar o se-
guinte: o espaço secundário que a temática ocupa nos processos de formação
de historiadores se reflete na forma como as questões do campo são incorpo-
radas pela área. Senão, vejamos.
Quando consideramos o universo de periódicos, segundo a classificação
que recebem nas duas áreas em cujas fronteiras se situa o campo do Ensino
de História – Educação e História –, constatamos que essas fronteiras variam
de uma área para outra. Ainda que o Qualis compreenda um conjunto de crité-
rios universais, as áreas têm certa autonomia para definir alguns aspectos que
concorrerão com esses critérios no processo de classificação dos periódicos.
A variação que constatamos, portanto, não causa estranheza e nem é objeto
de discussão aqui. Ela nos serve de indício, no entanto, da valorização que a
temática tem em cada uma das duas áreas. Afinal de contas, os periódicos, por
meio de seus editores e conselhos editoriais, formulam políticas de publica-
ção, elegendo temas e conduzindo a seleção de artigos. Nesse sentido é que se
explica o nosso interesse pela diferença na classificação das revistas.
Optamos, então, por recortar, do universo pesquisado, apenas os periódi-
cos que possuem conceitos em ambas as áreas. Assim, poderíamos comparar
os conceitos atribuídos a cada um deles nas duas áreas e verificar em qual
delas as temáticas do campo são mais valorizadas. Por meio desse procedi-
mento, constatamos que, em 19,76% dos casos, a classificação recebida é a
mesma para ambas as áreas – Educação e História. No restante do universo
(80,24%), há diferenças na atribuição de conceitos: em 33,13%, os conceitos
são maiores na área de História do que na de Educação, e em 47,11% ocorre
o inverso – a conceituação de periódicos é melhor na área de Educação do que
na de História.16

15 Sobre essa questão, os autores citados em nota anterior – Fonseca ( 1995); Caimi ( 2006);
Cerri (2006); Monteiro (2007); Ferreira e Franco (2008); Guimarães (2012) – apresentam
panoramas exemplares.
16 Índices resultantes dos dados coletados pelos pesquisadores no sítio do Qualis, fev.-
jun. 2017. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/
veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.xhtml.

78 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


O campo do Ensino de História, pois, apesar de relacionado a duas áreas
do conhecimento, tem maior guarida em uma delas: Educação. Isso fica ainda
mais evidente se considerarmos um outro fator. Os Programas de Pós-gra-
duação encaminham sua produção bibliográfica (livros e capítulos de livros)
para serem avaliados, como parte do sistema de avaliação da pós-graduação.
Essa produção também é objeto de classificação e conceituação, por meio de
conceitos que a identificam segundo ordens de qualidade definidas por cada
área. Para que se tenha ideia do desafio, no quadriênio 2013-2016, foram en-
caminhados 9.306 produtos, entre livros e capítulos, para serem avaliados
pelo sistema. Destes, 2.646 não foram considerados, por razões diversas.17
Em relação aos demais 6.660 produtos, avaliados e conceituados, identifi-
camos aqueles cujo título remetia a algumas das questões do campo. Apesar
dos limites desse procedimento, consideramos que ele seria capaz de apontar
ao menos uma tendência – e o resultado a que chegamos foi o de que ape-
nas 6,44% dos produtos encaminhados por Programas de Pós-graduação em
História voltavam-se para as temáticas do Ensino de História. Faltava, então,
verificar se a tendência encontrava eco em outros suportes da área, já que os
Documentos de Área disponíveis no sítio da CAPES indicam que a tendência
expressa uma orientação.
O mais antigo deles, disponível no sítio, é o Documento de Área 2009.
Nele, não há referência à temática do Ensino de História. A relação dos cursos
de pós-graduação em História com a Educação Básica estaria na formação de
quadros que, por meio de sua atuação, acarretariam a “melhoria do ensino
básico, fundamental, médio e superior” (CAPES. Documento de Área, 2009,
p. 2). O Documento de Área 2013 reconhece que as questões relativas ao
Ensino de História têm sido acolhidas pelos Programas de Pós-graduação em
Educação (CAPES. Documento de Área, 2013, p. 6-7). O mais recente é o Do-
cumento de Área 2017, no qual se registra a inclusão da temática do Ensino
de História pelos Programas de Pós-graduação da área de duas formas: pela
criação de Mestrados profissionais exclusivamente voltados para a questão do
Ensino de História; e pela emergência de linhas de pesquisa comprometidas
com a temática em alguns programas acadêmicos (CAPES. Documento de
Área, 2017, p. 2-3).
Os Documentos de Área expressam o reconhecimento, pela própria área
de História, do caráter periférico da temática no rol de suas preocupações. No

17 Ver: Planilha: de Classificação de Livros 2013; Planilha: de Classificação de Livros 2014;


Planilha: de Classificação de Livros 2015; Planilha: de Classificação de Livros 2016. Todas
dispostas na Página da Área de História. Disponível em: http://capes.gov.br/component/
content/article/44-avaliacao/4639-historia. Acessado em: 18/02/2018.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 79


documento de 2009, não há qualquer menção às questões do Ensino de His-
tória, indicando a sua completa ausência das discussões levadas a cabo pelos
programas da área. O documento de 2013 reitera essa falta, reconhecendo que
os debates acerca do ensino são desenvolvidos prioritariamente nos progra-
mas de Educação. O documento de 2017 enfatiza as posições assumidas pela
área nos balanços anteriores, indicando a novidade da temática e ressaltando,
porém, que ela vem sendo acolhida pela Educação em uma nova modalidade
de formação, distinta daquela desenvolvida nos programas acadêmicos. Nes-
tes, em apenas seis programas há linhas de pesquisa voltadas para as questões
do campo do Ensino de História. Finalmente, essa coerência pode ser perce-
bida, ainda, pelo fato de que, em todos os documentos, as questões relativas
à Educação, quando enfrentadas pelos programas de História, são concebidas
como expressão de sua Inserção Social e não de sua produção intelectual (CA-
PES. Documento de Área, 2009, p. 8; 2013, p. 6-7; 2017, p. 13).
Está claro, então, que a área de História mantém uma postura em relação
às questões do Ensino de História: ele não é considerado como campo priori-
tário de sua atuação, mas como expressão de sua inserção social, a qual, nos
processos de avaliação dos programas, corresponde a 10% do peso total da
nota. Essa postura ajuda a compreender os dados que a nossa diagnose apre-
senta. O campo do Ensino de História está, efetivamente, situado na interface
entre duas áreas do conhecimento: a Educação e a História. No entanto, elas
o percebem de modo distinto.18 Ele é mais valorizado e acolhido pela área de
Educação – não por outra razão, é nela que está situada a maior parte dos
grupos de pesquisa e é nela que está mais bem conceituada a maior parte dos
periódicos que publicam sua produção.

Quebrando galhos

A partir da reflexão desenvolvida por meio dessa diagnose preliminar, tor-


na-se possível melhor conhecer o campo do Ensino de História e também
esclarecer um incômodo: a ausência das temáticas do Ensino de História
nos programas acadêmicos de Pós-graduação em História. O levantamento
e a quantificação da produção dos grupos de pesquisa, assim como a análise
empreendida, pareceram-nos o caminho mais adequado para dar o primeiro
passo em uma reflexão que deve ter continuidade. Tais procedimentos nos
permitiram situar, de modo efetivo, a relação que o campo mantém com a
área de História. Mas, esse é um movimento inicial. É necessário avançar na

18 Ver, a título de exemplo: Coelho e Coelho (2015).

80 MAURO CEZAR COELHO E TAISSA BICHARA


discussão, perscrutando a produção do campo, identificando correntes, pon-
tuando aportes e sopesando o seu impacto naquilo que é mais importante: a
melhoria nas condições de oferta da Educação Básica, sobretudo no aprimo-
ramento da História Ensinada e no seu potencial para a formação de crianças,
adolescentes e adultos.
É importante registrar que a trajetória e os espaços de formação docente
são fundamentais para o desenvolvimento de habilidades e competências que
poderão, de fato, contribuir para que a disciplina cumpra seus objetivos e pro-
pósitos na Educação Básica (COSTA, 2013). Os grupos de pesquisa e o campo
de discussão são espaços de formação que intervêm, direta ou indiretamen-
te, nos processos de formação dos cursos de graduação e de pós-graduação.
Problematizá-los como meio para reflexão sobre um campo de pesquisas é,
também, uma forma de discutir os percursos de formação acessíveis tanto a
alunos de cursos de graduação quanto a seus egressos, inseridos ou não em
Programas de Pós-graduação.
Além disso, a reflexão que oferecemos pretende apontar a necessidade de
se subverterem os limites que separam as áreas do conhecimento, especial-
mente quando se trata de campos de investigação com íntima e intensa rela-
ção com a formação de professores (integrados aos cursos de Licenciatura) e
de crianças, adolescentes e adultos (inseridos na Educação Básica). Incorporar
as questões do ensino de História às preocupações relevantes das áreas com
as quais ele se vincula, garantindo densidade e profundidade às investigações,
é uma forma de intervir na educação ofertada, por meio da investigação siste-
mática e da reflexão abalizada acerca dos problemas, questões, dilemas e desa-
fios que essa educação vivencia e enfrenta. Pois, se nos permitem a subversão
de outro provérbio, um galho só não faz verão!

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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 83


A Pesquisa em Ensino de História no Brasil:
potência e vicissitudes de uma comunidade disciplinar

Sonia Regina Miranda1

Quizás el peligro más grave en la utilización del término


‘Historia’ sea el de su doble contenido: Historia designa a la vez
el conocimiento de una materia y la materia de este conocimiento
Pierre Vilar

Um campo, várias polêmicas

Durante o ano de 2015, enquanto se amplificavam os debates relativos à


primeira versão do documento de História proposto para a Base Nacional Co-
mum Curricular (BNCC), um vasto coro dos descontentes manifestava-se nos
espaços públicos, mídias e redes sociais de modo contrário ao que se apresen-
tava na proposta preliminar do documento proposto pelo grupo de trabalho
da área de História. Um grande debate se abriria até a publicação da segunda
versão, quando, então, o silêncio a esse respeito tomaria conta paulatinamen-
te da cena pública até a versão final, publicada pelo MEC já no contexto do
golpe midiático, judiciário e parlamentar em curso.
Aquela versão preliminar – cujo contorno central propunha para o deba-
te público uma ideia de História baseada mais amplamente na concepção de
“conhecimento de uma matéria”, a que se referiu Pierre Vilar na epígrafe aqui
destacada – acabou sucumbindo mediante uma sequência de golpes a uma
versão final encomendada pelo Estado, que situava os conteúdos que devem

1 Professora titular na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora


(UFJF). Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (1990), doutora em
Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2004), com Pós-doutorado em Didática
das Ciências Sociais pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha-2012). E-mail:
soniareginamiranda@gmail.com

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 85


ser ensinados às crianças e jovens em torno da clássica quadripartição eu-
ropeia, nos termos evocados por Jean Chesneaux (1995). A História enquanto
matéria de um conhecimento sairia vitoriosa mais uma vez, ficando a perspectiva do
conhecimento de uma matéria posta no plano secundário, ou mesmo invisível. Mais
uma vez no debate público, um campo de saber dotado de epistemologia própria
deixou de ser considerado em face da ideia de que a História se remete a conteúdos
selecionados do passado da humanidade. Suspendeu-se também qualquer zona
de renovação de princípios em torno dos quais a pesquisa sobre a História escolar
não só se constituiu, como também projetou uma comunidade particular de in-
vestigadores ao longo das últimas décadas. Foi trazido de volta para o cenário de
uma história escolar o que há de mais conservador no âmbito de uma Educação
voltada para a aprendizagem do Tempo e do procedimento histórico.
As acusações aos formuladores daquela versão inicial eram múltiplas e
provinham de diversos endereços. Vozes públicas regularmente presentes na
grande mídia somavam-se a nomes do plano acadêmico e Associações espe-
cíficas que se juntavam em torno de um mesmo movimento de destruição
radical da proposta. Seus argumentos iam desde a indignação derivada de
uma proposta de ruptura com uma ideia de tempo histórico consagrada pelo
pensamento ocidental – seria o fim de uma História necessária à educação de
nossas crianças e jovens que, imaginem, iam ficar sem estudar História Antiga
e Medieval em suas “completudes”­– até a acusação de que temas fundamentais
estavam sendo sequestrados do suposto “direito à aprendizagem” em nome de
uma proposta por alguns designada “Brasil cêntrica” e “presenteísta”. Os in-
cautos formuladores, segundo os mais exaltados, teriam cometido o absurdo de
apresentar falta de repertório básico, como a Revolução Francesa, por exemplo.
No calor dos debates, havia ainda a sugestão de que os especialistas convidados
– em sua maioria dedicados à investigação da área do Ensino de História stricto
sensu – teriam dado vazão apenas aos seus gostos de pesquisa particulares. No li-
miar dos ataques, surgiam acusações de que o programa era uma das manifesta-
ções mais bem acabadas do lulopetismo, para ficarmos em uma das publicações
com maior amplificação midiática, que utilizaria o Editorial do jornal O Globo e a
voz de um prestigioso historiador para desqualificar radicalmente a versão pre-
liminar da proposta. Supostos pesquisadores do ensino de História eram evo-
cados a partir de um público amplo e inespecífico, já que bastava ter “História”
no nome que já era suficiente para justificar um pertencimento que permitia
discutir os processos educativos. Por detrás disso, há o primado de uma visão
de História admitida exclusivamente como conhecimento a ser transmitido aos
jovens, a partir de uma narrativa estabelecida e consolidada acerca do passado
histórico da humanidade. E mais do que transmitido, avaliado. Aquele denso
debate acenava para algo que me interessa pautar neste texto: os processos de

86 SONIA REGINA MIRANDA


disputa e legitimação por detrás do entendimento do Ensino de História como
campo de atuação profissional e de investigação.
De minha parte e de meu lugar enunciativo enquanto pesquisadora do
campo do Ensino de História, eu me colocaria, desde os primeiros episó-
dios de propulsão de um denso – e algumas vezes violento – debate público, a
favor das intenções gerais impressas na primeira versão daquele documento, o
que não significa dizer que eu não tivesse críticas que poderiam ensejar suges-
tões de ajustamento. Em se tratando de um primeiro documento, era óbvio que
existiam problemas de forma e conteúdo e, nesse sentido, jamais passou pela
minha cabeça que aquela primeira versão consolidava o documento para a sua
constituição final. Para mim, era claro que o grupo de trabalho que se dedicou
à formulação do documento preliminar da BNCC o fizera com compromisso e
clareza, especialmente em relação a um princípio com o qual comungo: a ideia de
que não precisamos mais seguir reforçando um dado código disciplinar canônico
(CUESTA,1998) constituído há mais de um século, já que ele se mostrou incon-
sistente em histórias de escolarização pelo mundo afora. Assentado numa pers-
pectiva totalizante quanto ao tratamento do tempo, num olhar que não consegue
abandonar o progresso como modo de organizar os discursos sobre o passado,
esse formato canônico da disciplina História – associada exclusivamente ao estu-
do de informações de um passado histórico selecionado a partir de uma cultura
histórica instituída – não se coaduna com desafios centrais enfrentados pela so-
ciedade brasileira contemporânea. Eu compreendia, àquela época, que a equipe
teve clareza e coragem no sentido de se opor a esse paradigma de modo evidente.
Também compreendia que aquela equipe havia tomado uma decisão crucial no
processo de estabelecimento de um currículo mínimo nacional: a de priorizar o
tratamento das questões atinentes à Lei 11.645 e suas derivações, num contexto
em que o coro dos descontentes em relação a essa lei se mostrava cada vez mais
caudaloso, e se misturava às pretensões sórdidas e academicamente inconsisten-
tes do Movimento Escola Sem Partido. Eu discordava do argumento reducionista
de que, ao se abdicar de uma grande história europeia, estaríamos assumindo um
ensino de História empobrecido. Ainda que com críticas, eu entendia que aquele
documento não se apresentava como uma alternativa Brasil cêntrica, tampouco
abdicava de outras temporalidades e territorialidades.
Acima de tudo penso, olhando para trás, que o documento possuía potên-
cia e suficiente abertura para ensejar um debate sobre caminhos inovadores
para uma História Ensinada. Além disso, era um documento que trazia pre-
sente, em suas linhas e entrelinhas, a convocação da escola e da sala de aula
diante da dimensão de problematização própria do procedimento histórico, o
que preconizava a revisão de um ensino baseado na centralidade da aula expo-
sitiva e do professor como única autoridade no processo educativo.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 87


Curiosamente, o problema central inerente à formulação da BNCC – a con-
cepção de avaliação em jogo na construção de uma proposta curricular de
cunho nacional – não era objeto do grande debate público, tampouco dos his-
toriadores profissionais que se opunham à quebra dos paradigmas em torno
do ensino. Nesse ponto, ninguém tocava. Tanto em termos de forma quanto
em relação ao conteúdo selecionado, ficava claro no processo de construção
da BNCC que um currículo nacional estava sendo formulado não para se ga-
rantir o ensino, mas a eficácia dos mecanismos de avaliação. Até mesmo o
modo pelo qual os conteúdos eram apresentados nos remetia à proposição de
descritores pertinentes ao modelo da Teoria da Resposta ao Item, metodologia
básica utilizada nos processos de avaliação em larga escala.
Alfredo Veiga-Netto, ao analisar a questão do poder da Avaliação no debate
sobre escola e ensino, nos chama atenção para o que ele denomina “delírios
avaliatórios”. Segundo esse autor, a sanha avaliadora atual acabou por insti-
tuir uma “quebra e reorganização da sequência tradicional nas operações curriculares
(planejamento-execução-avaliação) sendo que tal sequência passa a ser avaliação-plane-
jamento-execução. É a avaliação que preside tanto o como, o que, o para quem planejar
quanto o como, o com quais recursos e o quando executar” (VEIGA-NETO, 2013,
p. 165). É justamente essa inversão de princípios que se situava na base da
desqualificação do trabalho de construção da BNCC, tema que, contudo, se
restringia ao espaço do silêncio, tanto no debate público quanto no acadêmi-
co. Pouca amplificação foi dada ao problema, e especialmente os historiadores
descontentes com o que se desenhava para o ensino de História se distancia-
vam dessa abordagem. O entendimento da gravidade inerente ao modelo de
BNCC em construção mantinha-se restrito aos pesquisadores do campo da
Educação, preocupados com a discussão relativa à construção do saber, for-
mação de professores, cotidiano da sala de aula e, sobretudo, com o tema das
internalidades do ato educativo.
Não podemos também perder de vista que a construção da BNCC, em
meio à sucessão das diversas versões do documento, ocorreria em um contex-
to histórico peculiar, no qual se articulam tensões na sociedade e na academia
que não podem ser ignoradas. Em um debate contemporâneo acerca do lugar
social dos antropólogos no Brasil atual, Márcia Lima evoca algo que produz
sentido também para a nossa comunidade investigativa particular. Segundo a
autora, assistimos, de um lado, a um grande crescimento do conservadorismo
no Congresso e no Executivo – e por que não reafirmar, na sociedade como
um todo – e, de outro lado, aos “resultados das mudanças produzidas pela tímida
redução das desigualdades sociais e raciais, que alteraram o cenário e os atores envolvi-
dos nos espaços de produção de conhecimento” (LIMA, 2018).

88 SONIA REGINA MIRANDA


No mesmo veículo de debate acerca do papel dos antropólogos hoje, Flávia
Biroli destaca algo essencial à compreensão também de nosso lugar acadêmi-
co, no qual lutamos pelo fortalecimento do campo do Ensino de História. A
autora alude a um cenário de grande

reação conservadora atual, que se funda numa noção pouco sofisticada


de objetividade para questionar o caráter do conhecimento produzido, a
autonomia do campo científico e a responsabilidade coletiva envolvida
nos processos educacionais. O Movimento Escola sem Partido se destaca
entre as organizações que têm participado da ofensiva contra o debate
posicionado nas escolas no Brasil. Fundado em 2004 e hoje alinhado a
ações presentes em diferentes países da América Latina contra a agen-
da de gênero, como as ocorridas no Peru, na Colômbia e no México,
nas quais se destaca o slogan “Com mis hijos no te metas” (no caso
brasileiro temos a máxima #meusfilhos,minhasregras), tornou-se mais
presente no espaço político institucional a partir de 2014. O Projeto de
Lei de 2015 (867/15) que tem como objetivo incluir entre as diretrizes e
bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido” é apenas o
mais destacado entre dezenas de projetos em tramitação no Congresso,
que têm em comum o entendimento de que é preciso incluir nas normas
educacionais o direito dos pais de educar seus filhos de acordo com seus
valores morais e crenças religiosas. (BIROLI, 2018, p. 86)

O que vale para o debate recente dos antropólogos sem dúvida vale para
a nossa comunidade disciplinar particular, e, nesse sentido, não podemos ig-
norar o fato de que é no interior da amplificação desse debate que se constrói
a polêmica em torno do documento de História da BNCC. Isso significa dizer
que, em meio a um debate público canalizado para a desqualificação tácita
do saber histórico em consonância com os propósitos do movimento Escola
sem Partido, o debate interno dos historiadores acabaria por produzir um re-
sultado secundário nefasto: o demérito de um campo particular sobre o qual
grande parte das pesquisas a respeito das dimensões de ensino-aprendizagem
da História tem se realizado.
Não me estenderei aqui sobre o que foram o movimento de desmonte
daquele documento da primeira versão e, ainda no governo Dilma Rousseff,
o golpe da segunda versão, que levou à destituição da equipe e à encomenda,
num gesto administrativo, de um documento que não fugisse ao script de uma
cultura histórica canônica e, mais do que isso, que não gerasse dificuldades in-
contornáveis à formulação de itens para avaliação em larga escala. Creio que, a
esse respeito, o artigo-testemunho produzido pelos professores Giovani José
da Silva e Marinelma Costa Meireles oferece contribuições preliminares signi-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 89


ficativas (SILVA e MEIRELES, 2017). Também não me deterei sobre o que foi
a construção das duas últimas versões desenvolvidas já no contexto posterior
ao Golpe de 2016, as quais circunscrevem o ensino de História ao lugar canô-
nico instituído na esteira da formação do Estado Nacional Brasileiro.
A minha posição assumida naquele contexto, bem como a de vários des-
contentes que militaram em favor da destituição daquele documento preli-
minar, nos conduz a pensar naquilo que se dispõe para nós como elemento
central proposto para este texto: uma reflexão em torno do ensino de História
no Brasil ao longo das últimas décadas.
Não podemos ignorar, de um lado, o fato de que houve uma operação
quase orquestrada de desmonte da versão preliminar da proposta de História
e que essa ação foi expandida para além do cenário acadêmico. Todavia, há,
por outro lado, a amplificação de um discurso que busca desqualificar e des-
conhecer a especificidade de um campo no interior do próprio cenário acadê-
mico. Cabe-nos, portanto, buscar refletir: o que significa pesquisar ensino de
História no Brasil?

Chaves de leitura sobre campos, identidades e pertencimentos

Poderíamos evocar inúmeros outros cenários em torno dos quais se podem


capturar distintas operações de desqualificação do saber histórico e de seu es-
tudo, especialmente no âmbito dos discursos midiáticos num contexto de forte
conservadorismo. Por que a polêmica em torno da área de História na BNCC me
pareceu significativa para pensar sobre o campo investigativo do ensino de His-
tória no Brasil? Porque assistimos ali a um discurso de desqualificação oriundo
da própria comunidade de historiadores, a qual, ao desconhecer e desqualificar
um campo de produção de saber e de pesquisa, não favoreceu a redefinição dos
rumos daquilo que se desejava fortalecer: o conhecimento histórico enquanto
elemento essencial ao pensamento e à educação das novas gerações.
Para interpretar esse conflito de saberes e posições, que emanam de lócus
enunciativos diferenciados no interior do debate sobre a construção da BNCC
de História, não podemos perder de vista o fato de que quando discutimos a
questão do que selecionar em História, enfrentamos também um denso deba-
te, que envolve a construção de narrativas acerca de como se compreendem e
se narram a cultura e a temporalidade nas quais estamos inseridos.
Cristhian Laville (1999 e 2011) há tempos já vem nos chamando atenção para
as batalhas narrativas que podem ser percebidas em torno de currículos de Histó-
ria de diferentes partes do mundo e, especialmente, para o quanto a História con-
clamada no debate público aparece francamente divorciada daquilo que tem sido o

90 SONIA REGINA MIRANDA


desenvolvimento epistemológico recente dessa área de conhecimento, tomando-se
por referência seus cânones acadêmicos (LAVILLE, 1999 e 2011). Mais recente-
mente, esse autor viria a nos alertar para a força com que temáticas relativas à
Economia, Religião e Moral são evocadas enquanto barreiras ou territórios de tra-
vessia para seleções e interdições no campo da História Ensinada. No contexto de
escritura de seu texto, diz-nos Laville (2011) que a província de Quebec já enfren-
tava um tenso debate sobre o que ensinar em termos de História, já que haviam
se passado três anos e não se chegava a um ponto de consenso, algo revelador da
luta expressa entre o nacionalismo conservador, presente entre grupos de elite, e a
possibilidade de outras escrituras da História, colocadas nas mãos dos docentes a
partir do movimento de reforma curricular disparado pelo Ministério da Educação.
No interior de suas reflexões, Moral, Economia e Religião emergem como campos
em torno dos quais a História e as seleções em torno do passado se apresentam
enquanto eixos privilegiados no debate público e que nos auxiliam a compreender
não só o campo semântico, mas também a força discursiva de temáticas evocadas
pelo Movimento Escola sem Partido, por exemplo.
Sobre a ampliação do espectro de sujeitos que se agregam ao movimento de opinar
a respeito do que a História escolar deve ensinar, Laville convoca-nos a pensar que,
em função dos processos de escolarização, determinada bagagem em termos de uma
memória histórica nacional foi criada, com credibilidade associada à confiabilidade
da instituição escolar. Por outro lado, segundo o autor, a expansão da experiência
democrática fez com que se ampliasse a prerrogativa de que “todos têm um direito legal à
opinião, em qualquer assunto. Ora, enquanto poucos ousariam se pronunciar sobre uma questão
de ensino de matemática, em História todos se acham competentes. Consequentemente, as guerras
de história escolares implicam números crescentes de veteranos dos saberes escolares” (LAVILLE,
2011, p. 187). Sem dúvida, tal cenário em que muitos se julgam capazes de prescrever
e definir é, hoje, amplificado pelas mídias e redes sociais, e tem provocado paisagens e
telas nebulosas envolvendo o que se ensinar em História, para quem e por qual razão.
Para além desse grande debate que se coloca na esfera pública acerca do que se
ensinar em História a cada tempo, não podemos secundarizar a configuração dos
campos de conhecimento e os embates que se dão no sentido de buscar mecanismos
de legitimação no interior de comunidades específicas, conforme aquilo que foi o
cenário que vimos se desenhar acerca da discussão acadêmica em torno da BNCC.
Em sua tese de Doutorado, Yara Cristina Alvim nos oferece uma contribuição im-
portante no sentido de indicar a possibilidade de enfrentamento teórico dessa proble-
mática a partir de dois grandes cânones: Pierre Bourdieu, através de sua Teoria dos
Campos, e Ivor Goodson, por meio do conceito de comunidade disciplinar (ALVIM,
2017). Trata-se, segundo a autora, de referentes teóricos distintos – e em alguns
contextos, complementares – acerca da possibilidade de compreendermos melhor a
escritura da História Escolar, tomando-se por referência os debates que mobilizam
os sujeitos no interior de seus espaços de enunciação e produção de conhecimento.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 91


A noção de campo científico, conforme a formulação de Bourdieu, apresen-
ta-se como uma ferramenta de identificação daquilo que é possível perceber
quanto às unidades plausíveis que envolvem as áreas de conhecimento (BOUR-
DIEU, 2003 e 2004). Se digitamos essa palavra em buscadores de bibliotecas
universitárias, por exemplo, veremos que em boa parte das áreas, cursos e facul-
dades existe uma necessidade de identificação e qualificação de matrizes dos di-
versos campos de pesquisa, de modo a compreender suas existências, disputas e
construções. Desse modo, tomaremos contato com a construção dos campos da
Educação, Medicina, Linguística, Administração, Economia, Comunicação, Nu-
trição, entre outros, formadores de um vasto território de áreas de conhecimen-
to que, ao se constituírem, também buscam organizar suas regras próprias de
legitimação. A esse respeito, Bourdieu nos apresenta um cenário interpretativo
fecundo para dizer daquilo que comumente utilizamos no interior de uma co-
munidade específica como critério de designação e associação: o pertencimento
a um campo específico de estudos e investigação.
Para esse autor (2003 e 2004), o Campo situa-se como o universo no qual
estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e difun-
dem a arte, a literatura, a ciência. Trata-se de um espaço relativamente autônomo,
de um microcosmo dotado de regras próprias e, consequentemente, de graus de
autonomia. Mas acima de tudo, trata-se de um espaço de jogo, no qual se instaura
uma luta concorrencial. Para ele, o campo científico é um mundo social e, como
tal, faz imposições e solicitações que são, no entanto, relativamente independen-
tes das pressões do mundo social global que o envolvem. De fato, as pressões
externas, sejam de que natureza forem, só se exercem por intermédio do campo,
são mediatizadas pela lógica de cada campo. Sobre as conexões entre o cenário
acadêmico propriamente dito e o mundo social como um todo, Bourdieu associa
a condição de refração de um campo à sua autonomia. Quanto mais autônomo
um campo, maior o seu poder de refratar – e, consequentemente, de expelir ou re-
cusar - aquilo que advém das imposições externas. Nesse caso, se considerarmos
a natureza dos debates relativos à construção da BNCC, assistimos a um campo
múltiplo que se apresentou com baixo potencial de refração, razão pela qual as
decisões finais acerca da natureza do documento foram feitas, em todas as etapas
a partir da versão preliminar, de modo exterior ao campo em disputa.
Bourdieu destaca ainda que uma das maiores dificuldades encontradas pe-
las ciências sociais para chegarem à autonomia é o fato de que pessoas pouco
competentes, do ponto de vista de normas específicas, possam sempre intervir
em nome de princípios heterônomos, sem serem imediatamente desqualificadas.
É o que assistimos, por exemplo, em relação aos desígnios estabelecidos pelo
Movimento Escola Sem Partido acerca daquilo que deve ou não ser estudado nas
escolas, o que se dá sem que os sujeitos enunciadores daquilo que é considerado

92 SONIA REGINA MIRANDA


como legítimo no âmbito do movimento sejam oriundos de cenários acadêmicos,
ocorrendo, na maior parte dos casos, justamente o inverso: uma construção dis-
cursiva ancorada em quesitos notadamente marcados por forte anti-intelectualis-
mo e anticientificismo. Nesse sentido, advoga Bourdieu, todo campo científico é
um “campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse
campo de forças” (2004, p. 22). Mais do que isso, um campo é objeto de luta tanto
em sua representação quanto em sua realidade e, no caso do que assistimos no
campo do Ensino de História, vale dizer que, graças à sua heteronomia, demarca-
-se aquilo que Bourdieu chama de concorrência imperfeita, na qual parece ser lí-
cito para os agentes fazerem intervir forças não científicas nas lutas científicas (p.
32). Desse modo, é possível perceber a presença de vozes tão díspares, as quais se
julgam detentoras de poder enunciativo legítimo para estabelecer o que os jovens
devem ou não estudar em matéria de História nacional ou universal.
A questão das disputas discursivas e da legitimação em torno dos campos
de conhecimento pode ser vista, contudo, com base em referentes construídos
especificamente em torno da problemática educativa. É o que nos conduz ao
universo reflexivo da obra de Ivor Goodson e nos permite fortalecer um olhar
para a questão dos conteúdos escolarizados. O papel dos jogos de interesses
e forças em seu potencial modelador das disciplinas escolares é um tema que
atinge de modo direto as formulações desse autor em seu clássico A constru-
ção social do currículo, e nos conduz a operar com uma categoria similar àque-
la já apresentada no âmbito da sociologia, embora dotada de especificidade: a
ideia de comunidade disciplinar (GOODSON, 1997). Enquanto Bourdieu busca
construir uma matriz sociológica capaz de explicar as relações de tensões e con-
flitos entre os campos na ciência, na literatura e nas artes, Goodson focaliza o
fenômeno educativo e seus sujeitos em suas internalidades e externalidades,
buscando compreender, acima de tudo, a cena escolar e o processo de disputas
que vão desenhando, ao longo do tempo, a história das disciplinas escolares.
De acordo com Yara Alvim,

ainda que a partir de lugares teóricos específicos, o conceito de “comuni-


dade disciplinar” dialoga com aspectos sinalizados por Maurice Tardif em
torno da dimensão coletiva do trabalho docente. A noção de “comunidade
disciplinar” refere-se a uma organização elaborada do conhecimento, que
possui uma história, uma filosofia e um corpo de conhecimento respeita-
do, com regras e um conjunto de autoridades que atribuem legitimação
às atividades que são aceitáveis para a comunidade. (ALVIM, 2017, p. 49)

A perspectiva analítica de Goodson nos auxilia a pensar nas questões que


gravitam em torno da Cultura Escolar, na medida em que suas formulações

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 93


põem foco no papel dos grupos sociais que constroem o currículo, que nunca
é atemporal. O currículo escrito é, segundo ele, o testemunho público e visível
das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas escolares
a cada tempo (GOODSON, 1997, p. 20). A esse respeito, de acordo com ele,
há jogos de interesse e disputas por legitimação que dão forma às disciplinas
escolares e que merecem ser vistos como ação de um conjunto alargado de gru-
pos sociais. Apoiando-se nos estudos da sociologia dos currículos ingleses nos
anos 1960, Goodson passa a se deter sobre o tema das redes comunicativas que
produzem escolhas envolvidas nos programas escolares, nas quais professores
são agentes e porta-vozes de comunidades disciplinares que vão modelando os
currículos. O autor destaca, assim, um papel específico desempenhado por gru-
pos e associações profissionais na configuração dos campos disciplinares.
Há algum tempo, Bernard Charlot, ao abordar aquilo que ele denomina es-
pecificidade do campo da pesquisa educacional, enfatizou o fato de tratarmos
aqui de uma correlação, sob a forma de uma mestiçagem ou hibridismo, de
ações que se dispõem a compreender a conexão entre saberes, políticas e práti-
cas em algo que não é genérico, mas que afeta uma dimensão particular da so-
ciedade: a esfera educativa e, especialmente, a esfera escolar (CHARLOT, 2006).
Trata-se, portanto, de um campo de pesquisa que toma para si, na configuração
de seus objetos investigativos, tal correlação e o faz do interior de um espaço
enunciativo distinto daquele situado no ambiente acadêmico mais geral. Antes
disso, a pesquisa que transforma o fenômeno educativo em objeto se faz com
a escola e/ou demais instituições educativas e raramente é exterior a elas. Ao
desenvolver tal argumento, Charlot nos convida a pensar no fato de que

em um departamento, em uma pós-graduação, e, além disso, nas “ciências da educa-


ção”, constrói-se pouco a pouco uma cultura comum, fortemente inter ou transdisci-
plinar. Essa cultura comum permite que as questões sejam colocadas de outro modo,
produz uma especificidade das pesquisas desenvolvidas nas Faculdades de educação.
Isso me parece poder estabelecer o consenso entre aqueles que dão importância ao fato
de trabalhar no mesmo campo, “a educação”. Quer continuemos a nos definir por uma
disciplina de origem (sociologia, matemática etc.), quer sonhemos com a construção de
uma disciplina específica denominada educação, podemos concordar com essa ideia de
cultura comum e com o fato de que ela introduz uma certa especificidade nas pesquisas
feitas na pós-graduação em educação. (CHARLOT, 2006, p. 9)

Parte dessa especificidade situa-se no fato de que, a despeito de dedicar-se a


uma finalidade e a um conjunto de objetos específicos – a saber, aquilo que deriva
das relações de sentido, práticas e discursos situados no âmbito das instituições
educativas –, ao pesquisar a Educação não é possível prescindir dos campos de
saber oriundos especificamente das áreas que comparecem na instituição escolar.

94 SONIA REGINA MIRANDA


Desse modo, ao investigar o Ensino de História, não só é essencial evocar referen-
tes compreensivos do universo de saberes, políticas e práticas que afetam a cultu-
ra escolar, mas também chamar e dominar os elementos conceituais próprios da
epistemologia da História. O mesmo vale para Matemática, Geografia ou demais
campos que comparecem à escola enquanto saberes específicos.
Em um artigo produzido no início dos anos 2000, Ernesta Zamboni já nos
convocava a pensar no fato de que o tempo presente – que atravessa e modela as
ações desenvolvidas no interior da escola e das suas práticas de ensino – conduz
os profissionais que atuam no ensino de História “a buscar o novo e o universal no
cotidiano, recuperando a memória do homem comum, e procurando novos caminhos de en-
sino, o que faz as concepções de ensino se redimensionarem e não se restringirem às ativida-
des de sala de aula” (ZAMBONI, 2000, p. 109). Essa renovação, assim como tudo
o que dela deriva em termos temáticos – o patrimônio, as mídias, a propaganda,
as políticas públicas –, funciona como mola propulsora da pesquisa em ensino
de História, entendida pela autora, já naquele contexto de quase vinte anos
atrás, como uma pesquisa nova, singular, dotada de escopo e objeto específicos.
Pensar essa convocação de uma comunidade disciplinar e investigativa parti-
cular funciona como uma espécie de documento de identidade e pertencimento,
especialmente em um contexto político e ideológico no qual a ideia de “cidadão
participante”, cunhada por Christian Laville há quase vinte anos, corre o risco de
perder seu lugar para o retorno ao primado do “cidadão súdito”, modelado sob
a égide dos Estados Nacionais. É de cidadãos súditos que os planos curricula-
res e as vozes públicas amplificadas pelas mídias falam na contemporaneidade,
enquanto em nossa comunidade seguimos apostando na força da formação dos
cidadãos participantes. Sem dúvida, nesse contexto em que o temor generaliza-
do em face dos efeitos do exacerbado conservadorismo parece abalar certezas,
reconhecer a força do pertencimento a uma comunidade disciplinar constitui,
sem dúvida, uma arma poderosa diante da batalha de ideias.

Lastros e rastros num espaço uno e múltiplo: o Ensino de História


como comunidade de produção

A escrita que tece este texto se fez no calor de um movimento de reflexão,


disparado no contexto para o qual esta escrita foi convocada: uma encomenda,
por ocasião do XI Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História
(ENPEH), realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano
de 2017. É precisamente no interior dessa comunidade investigativa particular
e em permanente construção – a comunidade dos pesquisadores do Ensino de
História – que eu e centenas de investigadores brasileiros e de outras partes

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 95


do mundo escolhemos para habitar o mundo com nossas profissionalidades.
É nesse domínio – a pesquisa em ensino de História – que se operam nossos
encontros, nossos movimentos em busca de legitimação, nossos mecanismos
de produção de consensos e dissensos. Adotemos a acepção de comunidade
disciplinar ou de campo – a se observar exclusivamente o fio da discussão so-
ciológica –, esse lugar particular que tem funcionado como espaço de alento,
partilha, encontros, conforto, luta, disputa, produção de consonâncias ou não.
Um esclarecimento preliminar se faz necessário, relativo à inserção de as-
pectos de minha própria história no interior da compreensão desse campo de
investigação no contexto do Encontro Nacional de 2017. Há mais de dez anos,
precisamente em 2006, por ocasião do VII ENPEH, realizado na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), a professora Lana Siman construía o desenho
de algo que foi ganhando corpo em nossos encontros anuais: a reflexão sobre a
organização dos grupos de pesquisa em ensino de História, de tal modo que os
grupos de trabalho pudessem funcionar como oásis e espelhos da produção de
diferentes âmbitos de pesquisa. Naquela ocasião, a professora Lana me enco-
mendaria um estudo que compôs o capítulo de abertura dos Anais do VII Enpeh
(MIRANDA, 2006) e que se dedicou a um primeiro mapeamento do emergente
Diretório de Grupos de Pesquisa em ensino de História no Brasil. Naquele con-
texto, o Diretório do CNPq era algo novo e que começava a se delinear como
uma ação em torno da visibilidade dos grupos constituídos.
Se a cultura que levou à expansão reguladora do Lattes pode ser lida como
indício de ações de monumentalização, que se dão em meio à sanha avaliado-
ra de nossas instituições de controle da pós-graduação brasileira, o Diretório
de grupos pode ser lido também como expressões de vontades de memória e
como ações discursivas ancoradas em modos de endereçamento e inscrição
dos sujeitos em cenários relacionais. Em ambos os casos, falamos de formas
pelas quais nos apresentamos nos liames de uma imposição: a das práticas de
avaliação e medição da produção da pós-graduação brasileira. No caso parti-
cular do Diretório de Grupos, a instância de legitimação central não se vincula
somente ao espaço da avaliação stricto sensu – ainda que também possua sen-
tido nessa direção –, mas também a um processo de autonomeação e publici-
zação dos grupos, visando o encontro com uma comunidade maior. O fato é
que os dados produzidos pela observação do Diretório de Grupos de Pesquisa
do CNPq nos servem para dizer da historicidade e da natureza de articulação
nacional e local dos diferentes grupos dedicados à pesquisa em Ensino de His-
tória no país. São indícios que podem ser inquiridos em seus rastros e lastros
e que podem, pela cartografia que geram, nos revelar as pontas desse iceberg
em que militamos – por vezes difusamente, por vezes articuladamente – e os
movimentos e investimentos do campo da pesquisa em ensino de História, de

96 SONIA REGINA MIRANDA


modo direto ou apenas tangencial. Cabe destacar apenas que não é possível
creditar um cenário de precisão absoluta aos dados, tendo em vista que sua
sistematização depende de decisões de seus líderes e das configurações insti-
tucionais, que são variáveis e, sobretudo, dinâmicas.
No ano de 2016, nos meses que antecederam a realização do ENPEH na UFRJ,
sua coordenadora, professora Ana Maria Monteiro, me propôs um novo desafio:
revisitar aqueles dados, após uma década de sua produção original, de modo a
produzir um novo balanço que servisse como balizador das reflexões de nossa
comunidade disciplinar a respeito de si mesma. Desse modo, eu assumiria um
movimento de leitura de novos dados e de releitura dos dados antigos, situando
um cenário que fosse capaz de permitir a uma comunidade particular pensar no-
vamente sobre sua história e formação. Minha aposta se deu no sentido de buscar
um mapa que fosse capaz de produzir fortalecimentos em um cenário particular,
eivado por desafios e ataques a um campo de conhecimento. Um cenário em que,
como já mencionado, nos situamos na linha de frente das perseguições do Escola
Sem Partido; em que assistimos a uma traumática e controversa construção da
BNCC, na qual a História foi alvo de inúmeros debates públicos; ou, ainda, em
que a caça às bruxas e aos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didá-
tico (PNLD) tem se projetado como uma das mais contundentes dentre aquelas
presentes nos debates públicos acerca dessa política pública.
Como eu me desloquei pelos dados que nos são acessíveis pelo diretó-
rio de grupos, especialmente considerando a comparação entre os cenários
de 2005 e 2017? Partindo da plausibilidade interpretativa daquilo que nos é
proposto por Ivor Goodson acerca do tema das comunidades disciplinares,
compreendendo, com base nisso, que é possível reconhecer, há mais de uma
década, a permanência de uma comunidade que, longevamente, vem traba-
lhando no sentido de garantir sua existência e fortalecimento.
Que decisões centrais foram acionadas no processo de recolhimento dos
dados quantitativos e qualitativos disponíveis na base do CNPq? Por um lado,
optei pelo mapeamento da totalidade dos grupos que se autodesignam pes-
quisadores do ENSINO DE HISTÓRIA e apresentam essa palavra exata em
seus descritores. Por outro, busquei um olhar analítico em torno do lócus
enunciativo de tais grupos, que, em geral, localizam-se em Departamentos de
História ou Faculdades de Educação.
Uma primeira questão que se impõe é: onde se situam os pesquisadores
que se designam enquanto tal e afirmam investigar o Ensino de História? Se
tomarmos por referência os dados comparativos entre os dois recortes tempo-
rais assumidos para o estudo – 2005 e 2017 –, chegamos ao seguinte gráfico
inicial:

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 97


Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Consulta em 2017

Em certa medida, esse crescimento exponencial evidenciado na área de


História, ao longo de pouco mais de uma década, revela-se como um mo-
vimento recente em que devem ser considerados os extratos temporais que
podem ser verificados a partir das ferramentas analíticas disponíveis no Dire-
tório de Grupos, conforme pode-se analisar no gráfico abaixo:

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Consulta em 2017

Se ao longo da última década verificou-se um crescimento do número de


grupos de pesquisa designados enquanto tal, essa expansão matemática deu-
-se entre grupos que se identificam como pertencentes à área de História, en-
quanto que os grupos que se reconhecem e se autodenominam como grupos
de Educação alcançaram relativa estabilidade. Cabe-nos pensar, a priori, se não

98 SONIA REGINA MIRANDA


é justamente nesse fator de estabilidade que reside a possibilidade real de in-
vestimento investigativo em um campo específico, no caso, aquele que toma o
ensino de História como objeto de pesquisa.
Sobre esse aspecto, é essencial demarcar a relevância dos efeitos provo-
cados pela expansão das universidades verificada ao longo da última década.
Áreas que há uma década não possuíam nenhum grupo de pesquisa voltado
à investigação do ensino de História, especialmente nas regiões Norte, Nor-
deste e Centro-Oeste, conhecem um crescimento quantitativo exponencial.

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Consulta em 2017

Do mesmo modo, cabe evidenciar a força das instituições universitárias pú-


blicas no abrigo e desenvolvimento desses grupos e, consequentemente, o que
representaria a eventualidade de uma ação exitosa das políticas de desmantela-
mento, em curso, do Ensino Superior público. O gráfico abaixo evidencia tal cená-
rio, que revela que 91% dos Grupos de Pesquisa em Ensino de História se situam
em Instituições de Ensino Superior Públicas e, de um modo geral, articulam o
movimento de formação no âmbito da Graduação e Pós-graduação stricto sensu.

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Consulta em 2017

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 99


Acompanhando a descrição e o espectro de produção e pesquisa produzidos
pelos diversos pesquisadores cadastrados nos distintos Grupos de Pesquisa, ve-
mos que não só os Grupos expressam sua existência enquanto lócus coletivo de
produção de conhecimento e formação de pesquisadores, como também revelam
redes que associam pesquisadores de diversas instituições. Desse modo, os Gru-
pos situam-se, em grande parte dos casos, como lugares de encontro e diálogo em
relações de horizontalidade, muitas vezes reveladas pela existência de estudan-
tes de Graduação, Pós-graduação e profissionais externos à instituição em seus
meios, o que os converte em coletivos de construção. De modo geral, a maioria
dos Grupos, com algumas exceções facilmente localizáveis no mapa dos recursos
humanos, apresenta poucos pesquisadores voltados para o trabalho com o Ensino
de História no interior da instituição que os abriga, o que aponta para o fato de
que os Grupos são, por vezes, os espaços de interlocução possíveis para um ou
dois pesquisadores que, sozinhos, vão formando novos pesquisadores, desde o
segmento da Graduação, a partir desse foco de problematização.
O valor bruto envolvido na informação sobre a existência de 131 grupos lo-
calizados em Departamentos de História e 53 em Departamentos ou Faculda-
des de Educação não significa, todavia, a expressão mais completa e efetiva de
uma comunidade disciplinar. A análise pormenorizada das linhas de pesquisa,
dos Currículos Lattes e da produção dos diferentes pesquisadores, verificada
por meio das produções e orientações acadêmicas, permite-nos aplicar filtros
que ressignificam os números globais apresentados inicialmente, saindo do
espectro do que seria um vasto e inespecífico universo de produção.
Quando associados à verificação das temáticas nas quais o ensino de História
impõe-se como objeto privilegiado de investigação, os números iniciais nos re-
tornam bem mais matizados e com maior precisão, envolvendo aquilo que nos
conduz ao encontro da provocação inicial de Pierre Vilar: o entendimento do
conhecimento de uma matéria, na qual se estabelecem relações com os saberes
envolvendo sujeitos, políticas e práticas que precisam ser compreendidos em sua
dimensão de especificidade e não generalidade. Desse modo, a expressão EN-
SINO DE HISTÓRIA como descritor do Grupo que tem História em seu modo
de designação diz, na verdade, pouco acerca do esforço de investigação no inte-
rior de um campo específico. Ao passarmos à verificação dos modos pelos quais
determinados pesquisadores vêm se dedicando, muitas vezes anos antes de seu
doutoramento, ao Ensino de História como foco central de suas investigações,
compreendemos que há algo muito além de uma nomeação, ainda que admitindo
a força da dimensão simbólica inerente ao ato de nomear. Ao levantar os dados
globais disponíveis na base do CNPq, observei a localização dos grupos na área
de História ou de Educação, sua historicidade a partir do marco fundacional, a
produção acadêmica (exceto anais de eventos) dos pesquisadores doutores que o

100 SONIA REGINA MIRANDA


integram, as orientações e os projetos de pesquisa atuais, tentando, através desses
dados, capturar um mapa geral do Ensino de História por meio dos indicadores
gerados. Busquei, ainda, identificar o ano de doutoramento dos pesquisadores e
o ano de início da produção no campo do Ensino de História, o que nos faz perce-
ber que a especificidade da pesquisa em Ensino de História se dá, na maior parte
dos casos, numa relação direta, através de uma conexão longeva entre o campo e
o pesquisador, muitas vezes anterior ao próprio processo de doutoramento. Ob-
servei também os trabalhos publicados em revistas e capítulos de livros, com
exceção, como acima mencionado, dos anais de eventos – o que ampliaria em
muito o escopo da pesquisa diante da massa de dados –, ainda que estes se abram
como uma trilha interessante de investigação, uma vez que a participação em
eventos nos permite observar os auditórios aos quais o pesquisador se dirige e
nos quais se insere e circula. Além disso, levantei o número de orientações globais
e especificamente voltadas para temáticas referentes ao ensino de História em
nível de Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado, bem como
orientações em cursos lato sensu, de modo a aferir seus efeitos sobre as redes de
ensino. Uma observação particular, nesse caso, cabe ser feita acerca dos trabalhos
de Iniciação Científica, pois, quando nos dedicamos a rastrear os grupos com mais
de uma década de existência, é possível verificar inúmeros estudantes que se ini-
ciaram no campo do Ensino de História na Graduação e seguiram esse percurso
no Mestrado e no Doutorado, o que faz com que, hoje, eles se posicionem, de
modo sistêmico e orgânico, na comunidade investigativa do Ensino de História,
buscando seus eventos específicos e espaços de legitimação. Por último, tentei
visualizar as pesquisas, atualmente em desenvolvimento, cujo foco é o Ensino de
História. Nesse caso, os dados obtidos nos permitem classificar, em diferentes
naturezas, o que denominei de relação com o Ensino de História. Para efeitos de
demonstração do que pretendo evidenciar, classifiquei essas formas de relação
como: direta, indireta, transversal ou descontínua.
Por relação direta, considerei o tipo de conexão em que se verifica a exis-
tência de uma relação de continuidade profissional entre o Doutorado dos
pesquisadores líderes ou associados e o campo temático em questão, o que
faz com que o Ensino de História figure como objeto direto de investigação
e orientação. Por relação indireta, nomeei os grupos nos quais, ainda que o
tema Ensino de História se apresente como descritor de atividades, a produ-
ção, os projetos de pesquisa e as orientações evidenciam que não é o Ensino
de História em sua complexidade o objeto de investigação privilegiado, mas
temas de História que, supostamente, qualificariam os profissionais como
“especialistas” em “Ensino de”, por uma derivação quase que espontânea.
Nesses casos, voltando ao desafio da ambiguidade proposta por Pierre Vilar,
credita-se a atribuição da pesquisa específica à matéria de um conhecimento,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 101


no caso a História, como dado que, por si só, chancelaria essa designação dos
pesquisadores, o que constitui atitude por demais reducionista e simplificadora.
Há ainda os cenários em que a relação pode ser denominada de transversal, ou
seja, o pesquisador dedica-se a temas que predominantemente dialogam com
o universo da cultura política e/ou práticas sociais para as quais a questão do
conhecimento escolar se impõe como tema de análise, no tocante aos impactos
curriculares. É o exemplo dos estudos relativos à questão étnico-racial no Brasil
contemporâneo, que buscam, para efeito de demonstração de aspectos interpre-
táveis, os currículos escolares. Há, por último, a relação que podemos qualificar
de descontínua. Nesses casos, vemos pesquisadores que, sob o ponto de vis-
ta da tríade pesquisa temática, produção acadêmica e orientações, manifestam
uma relação de sazonalidade envolvida em sua trajetória e que o coloca ora no
interior direto de uma comunidade específica, ora como um sujeito exterior a
essa mesma comunidade. Desse modo, o Ensino de História aparece em lapsos,
o que não significa dizer que, em sua atuação cotidiana, essa problemática desa-
pareça do cenário de investimento profissional desse/a pesquisador/a. Todavia,
a expressão visível de suas contribuições para esse campo não é contínua.
O que a síntese derivada da análise de todos os currículos dos pesquisadores
descritos no conjunto dos grupos rastreados nos revela? Uma redução signi-
ficativa em torno dos números globais apresentados, ao lado da expressão de
um resultado revelador de uma comunidade particular, cuja relação com esse
campo investigativo se dá de modo direto. Vejamos a expressão dessa relação
nos dados globais: 58% dos grupos de pesquisa verificados estabelecem com o
campo do Ensino de História uma relação apenas indireta, ou seja, derivada
de atos de nomeação gerais, sem a necessária vinculação de uma produção e/
ou atuação acadêmica cujo foco esteja nos atos educativos e/ou nos processos
de ensino-aprendizagem da História em espaços escolares e não escolares. Em
3% dos casos, verifica-se uma relação descontínua, isto é, a presença de pes-
quisadores e/ou grupos que evidenciam a existência de lapsos em sua pesquisa
nesse campo temático, o que não reduz a importância de suas produções, mas
realça uma relação que não se sustenta temporalmente. Em 12% dos casos – e
esse segmento cresce ao longo dos últimos anos, especialmente em função da
força de pesquisas voltadas sobretudo ao tratamento das questões relativas às
relações étnico-raciais brasileiras –, verificamos uma relação transversal com
o campo. Isso significa dizer que os trabalhos e/ou orientações acadêmicos em
que o Ensino de História se manifesta não constituem um ponto de partida,
tampouco foco privilegiado desses grupos e/ou pesquisadores, mas emergem
como resultados pertinentes à orientação na vida prática, para assumirmos uma
expressão analítica trazida por Jorn Rusen (2001). Em boa parte desses casos,
o campo do Currículo e suas implicações diretas e/ou indiretas no Ensino de

102 SONIA REGINA MIRANDA


História emergem como um eixo voltado a publicações relativas à reverberação
de pesquisas em torno de questões sociais. Somente em 27% dos casos – menos
de 1/3 desse cenário global, portanto – verificamos grupos e pesquisadores nos
quais se evidencia efetivamente uma relação direta com o Ensino de História.
Isso significa dizer que, nesses casos, o tema, o problema e o encontro com o
campo e a construção de scripts teóricos se dão em correlação direta com a com-
preensão dos processos educativos em História.
Quando conseguimos capturar essa complexidade e a trazemos para observar
novamente os dados relativos ao lócus acadêmico dessas pesquisas, os números
originais ganham nova conotação, conforme verificamos no gráfico abaixo. Isso
nos revela, então, o primado dos espaços de Departamentos e Faculdades de Edu-
cação nisso que localizamos como pesquisas diretas – o que não significa desvalo-
rizar a importância dos grupos existentes e sólidos localizados em Departamentos
de História. Mais do que isso, fica claro o quanto a relação indireta – muitas vezes
restrita apenas aos atos de nomeação – se expressa em relação aos Departamentos
de História mais do que em relação aos Departamentos de Educação. Nesse senti-
do, portanto, é que se inicia, a meu ver, o esboço em torno do que representa essa
comunidade disciplinar. Além disso, a partir de um recorte inicial de 184 grupos
genéricos, passei a me deter sobre a observação metódica de 40 grupos nos quais,
efetivamente, o tema se revelou, a partir de sua produção enquanto base de pes-
quisas e ação de formação voltadas ao Ensino de História.

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Consulta em 2017

Quando nos detemos no recorte específico emanado desse cenário de re-


lação direta com o campo, passamos a observar a força formativa dos Grupos
de Pesquisa e os modos como opera, nesses espaços de formação particulares,
a geração de novos pesquisadores preocupados em tomar o Ensino de Histó-
ria como objeto investigativo sistêmico. Para maior visualidade desse aspecto,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 103


busquei cartografar os resultados de formação construídos em função dos ras-
tros produzidos por quatro pesquisadoras selecionadas desse campo, quatro
caminhantes, auscultadas em função de suas caminhadas, a saber: as profes-
soras Ernesta Zamboni, Lana Mara Castro Siman, Ana Maria Monteiro e Selva
Guimarães. A decisão por seus nomes se deu, em primeiro lugar, em virtude de
todas serem pesquisadoras de referência no campo do Ensino de História, re-
conhecidas enquanto tal nacional e internacionalmente. Ernesta Zamboni, por
pertencer ao grupo de profissionais pioneiros no esforço de definir o campo
do Ensino de História como objeto lícito e necessário de pesquisa e perseguir
esse movimento formando diversos pesquisadores que hoje dão sequência aos
caminhos por ela trilhados, inclusive eu mesma. Ana Maria Monteiro, por ser
uma pesquisadora de referência no tempo atual e ter sua posição em destaque
no estado do Rio de Janeiro, local sede do XI Encontro Nacional de Pesquisa-
dores do Ensino de História. Lana Mara Castro Siman e Selva Guimarães fo-
ram escolhidas como pesquisadoras mineiras – estado no qual me situo como
pesquisadora – e que, do interior de diferentes instituições de ensino superior,
também ganharam notoriedade em suas pesquisas e trajetórias como pesquisa-
doras. Para além do elo estabelecido a partir do Ensino de História, essas quatro
professoras destacam-se como pesquisadoras que vêm formando pesquisadores
no campo do Ensino de História em nível de Graduação, Mestrado, Doutorado
e Pós-doutorado. Não é demais dizer que certamente eu poderia ter escolhido
dezenas de outros pesquisadores e pesquisadoras que encarnam também esse
lugar de referência para o campo, e qualquer decisão nesse sentido traria, como
a minha trouxe, um componente de evidente arbitrariedade. Deixo aqui, por-
tanto, o convite para a continuidade dessa cartografia.
Por outro lado, a minha decisão de focar as suas trajetórias enquanto inves-
tigadoras desse campo é também uma forma de tributo e reconhecimento, de
minha parte, pelo que seus caminhos representaram e seguem representando
em termos de inspiração para inúmeros pesquisadores Brasil afora. Para tanto,
acompanhei, por meio dos registros na Plataforma Lattes, o percurso pro-
fissional de todos os pesquisadores formados por cada uma das quatro pro-
fessoras, buscando identificar aqueles que tiveram seus focos voltados para
esse campo e que, em suas inserções profissionais, dão sequência a essa trilha
investigativa. O objetivo desse levantamento foi o de produzir um mapa dos
percursos desses profissionais e, com base nessa cartografia, refletir acerca do
que significa o crescimento potencial desse campo, considerando-se que lida-
mos, neste mapeamento, com apenas quatro sujeitos emblemáticos.

Ernesta Zamboni é graduada em História pela PUC de Campinas, mestre em


História pela USP e doutora em Educação pela UNICAMP. Sua tese doutoral re-

104 SONIA REGINA MIRANDA


lativa aos livros paradidáticos de História foi orientada por Elza Nadai, uma das
pesquisadoras precursoras desse campo investigativo no Brasil. Suas primeiras pro-
duções publicadas no campo do Ensino de História datam de 1986, considerando-
-se o registro no Lattes, embora saibamos, nesse caso, que o Lattes não contempla
o conjunto de sua produção, por ser uma ferramenta de controle formada muito
tempo depois da inserção da professora nesse campo de atuação. Desde o início de
sua inserção como pesquisadora do campo e coordenadora do Grupo Memória da
UNICAMP, Ernesta Zamboni atuou em 45 orientações em todos os níveis, sendo
25 delas voltadas para a formação de mestres, doutores e pesquisadores em cursos
de Pós-doutorado, que tiveram o Ensino de História como objeto direto. O resulta-
do de suas orientações já foi capaz de produzir uma segunda geração de pesquisa-
dores que também seguem, na condição de orientadores, atuando na formação de
novos profissionais do Ensino de História. É o que se observa a partir dos mapas
abaixo, que trazem, respectivamente, a primeira e a segunda geração de pesquisa-
dores formados por Ernesta. Cabe destacar que se encontram localizados no mapa
apenas aqueles pesquisadores que deram sequência à busca sistêmica desse campo,
estando de fora os que se titularam e passaram a investir em outros eixos temáticos.
Como se pode observar, o efeito de penetração dos pesquisadores formados pela
professora Ernesta é notável em diferentes territórios e regiões do país, assim como
em diferentes tipos de instituições de Ensino Superior. No momento, a professora
Ernesta Zamboni está aposentada pela UNICAMP, mas segue atuando e participan-
do de eventos acadêmicos na área do Ensino de História.

Ernesta Zamboni: Ernesta Zamboni:


primeira geração de pesquisadores primeira e segunda gerações

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq e Plataforma Lattes.


Dados consultados em julho de 2017.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 105


A professora Lana Mara de Castro Siman é graduada em Pedagogia, mestre
em Educação pela UFMG e doutora em Didática da História pela Université de
Laval, em Quebec. A graduação em Pedagogia jamais impediu o seu acesso ao
campo da História em teoria e epistemologia, mas, por outro lado, lhe conferiu
elementos que favoreceram a focalização substantiva na problemática em torno
dos processos de aprendizagem e suas mediações. Sua tese doutoral, produzida
no âmbito de um programa em Didática da História, foi orientada por um pes-
quisador internacionalmente conhecido nesse campo, Christian Laville, e dedi-
cou-se a discutir mudanças curriculares e processos de aprendizagem histórica.
Suas primeiras produções publicadas no campo do Ensino de História datam,
segundo seu Lattes, do ano de 1997. Foi professora da Faculdade de Educação
e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG, estando aposentada
desse cargo, apesar de seguir como docente permanente e atuante no Progra-
ma de Pós-graduação da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG. Sua
ênfase investigativa e de orientação se dá no campo das relações entre Memória
Social, Narrativa e Patrimônio. Até hoje constam, em seus registros acadêmicos,
75 orientações em todos os níveis, sendo 44 delas voltadas à formação de mestres,
doutores e pesquisadores em Pós-doutorado, que tiveram o ensino de História
como objeto central de investigação. O resultado de suas orientações, consubs-
tanciado no mapa abaixo, revela uma primeira geração de pesquisadores, a qual
ainda não reverberou na constituição de uma segunda geração em torno do Ensi-
no de História, movimento que, no entanto, encontra-se em curso, em virtude do
processo de localização acadêmica dos profissionais por ela formados.

Lana Siman: primeira geração

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq e Plataforma Lattes.


Dados consultados em julho de 2017.

106 SONIA REGINA MIRANDA


Ana Maria Costa Ferreira Monteiro é graduada em História pela UFRJ, mes-
tre em História pela UFF e doutora em Educação pela PUC-Rio. Realizou está-
gio pós-doutoral na UFRN, sob a supervisão de Durval Muniz de Albuquerque
Jr. Sua tese de doutoramento constitui um trabalho de referência para a com-
preensão da problemática relativa à formação de professores, saberes docentes
e cultura escolar no Brasil, tendo como mote analítico as práticas educativas e
narrativas de professores de História. Suas primeiras produções publicadas no
campo do Ensino de História datam de 1988, bem anteriores, portanto, ao seu
processo de titulação no Doutorado, o que nos permite localizar a dimensão de
uma relação longeva com esse campo. Atualmente, sua atuação se divide entre
a Faculdade de Educação da UFRJ, onde atua também no âmbito da Pós-gradu-
ação, e o PROF-HISTÓRIA. Sua ênfase investigativa e de orientação se dá no
campo do Currículo e nas práticas em torno da História Ensinada. Já efetivou,
até hoje, 66 orientações em todos os níveis, sendo 20 delas voltadas para mes-
tres, doutores e pesquisadores em Pós-doutorado, que tiveram o Ensino de His-
tória como objeto privilegiado de pesquisa. Cartografando suas orientações e
refletindo acerca do processo de formação de pesquisadores, chegamos ao mapa
abaixo que, assim como o anterior, revela o estágio de uma primeira geração que
ainda se encontra em processo de inserção acadêmica.

Ana Maria Monteiro: primeira geração

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq e Plataforma Lattes.


Dados consultados em julho de 2017.

A professora Selva Guimarães possui Licenciatura em Estudos Sociais pela


UFU, Graduação em História pela UFU, Mestrado e Doutorado em História
pela USP, tendo sido orientada por um pesquisador igualmente reconhecido e

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 107


referenciado no campo do Ensino de História: o professor Marcos Silva. Reali-
zou Pós-doutorado em Educação pela UNICAMP, sob a supervisão de Ernesta
Zamboni, e Estágio Sênior em Didactica de las Ciencias Sociales na UAB -
Universidad Autonoma de Barcelona, sob a supervisão de Joan Pagés. Sua
tese doutoral, finalizada no ano de 1996, representa um marco nos estudos
relativos à História Oral e de vida de professores de História no Brasil. Suas
primeiras produções publicadas no campo do Ensino de História datam de
1988, sendo que uma obra de referência para esse campo investigativo no país
– Caminhos da História Ensinada – já se encontra na 13ª. edição. Atua junto ao
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Uber-
lândia, instituição da qual se aposentou em 2017, e ao Programa de Pós-gra-
duação em Educação da UNIUBE. Até o momento de consulta à base corrente
do CNPq, já tinha finalizado 66 orientações em todos os níveis, sendo 29 delas
voltadas para a formação de mestres, doutores e pesquisadores em cursos de
Pós-Doutorado, que tiveram o Ensino de História como objeto de pesquisa.
Tal como o verificado em relação aos dois casos anteriores, sua produção ain-
da não alcançou uma segunda geração voltada à investigação em Ensino de
História e que tivesse uma inserção acadêmica com resultados nessa direção.

Selva Guimarães: primeira geração de pesquisadores

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq e Plataforma Lattes.


Dados consultados em julho de 2017.

108 SONIA REGINA MIRANDA


Cada um dos quatro mapas, observados individualmente, revela-nos aqui-
lo que, na dinâmica dos processos acadêmicos, indica o alcance e a inserção
nacional ou regional dos Programas de Pós-graduação. São dados que dizem,
portanto, da configuração das universidades na articulação com seus entornos
específicos e, especialmente, com seus potenciais de crescimento regionais.
Todavia, quando pensados em seu conjunto, os quadros obtidos nos revelam
algo mais: permitem-nos olhar para a construção e projeção de um campo
investigativo próprio e, consequentemente, estabelecer os fios dessa comuni-
dade disciplinar à qual pertencemos.

RASTROS E LASTROS DE PESQUISADORES DE ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL

Fonte: Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq e Plataforma Lattes.


Dados consultados em julho de 2017.

Para além desse mapa que revela um conjunto promissor e potente, mi-
nhas incursões pela grande base de dados disponível no diretório de Grupos
do CNPq me fizeram compreender que, além dessas quatro profissionais sele-
cionadas para detalhamento de suas produções e potenciais formativos, hoje,
aproximadamente, 380 pesquisadores atuam diretamente com o campo do
Ensino de História. Eles geraram, nos últimos anos, mais de 8.600 orientações
gerais, cerca de 1.600 dissertações, teses e TCC´s, aproximadamente 600 mo-
nografias de especialização, sendo toda essa produção com o foco em Ensino
de História, que computa, ainda, mais de 40 grupos ativos voltados para essa
área específica de investigação. Se colocássemos todos eles em um mapa simi-
lar ao que foi produzido para as quatro professoras selecionadas para esse efei-
to demonstrativo, poderíamos ver um campo plasmado por múltiplos lugares

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 109


e instituições pelo país. Portanto, que elementos eu destacaria nesse percurso
final, à guisa de conclusão?
Muitos são os aspectos que emanam e que seguem latentes a esse amplo
levantamento. Porém, três eixos chamam atenção nessa grande cartografia
produzida e que eu destacaria, de modo especial, neste trabalho. Os dados do
CNPq, embora parciais e restritos em virtude da sua finalidade, nos dão a ler a
respeito de nossa comunidade, com seus grupos e com uma enorme capilari-
dade provocada pelos encontros entre esses grupos. Verificar nossa configura-
ção quantitativa, nossos territórios e expansões não deixa de exercer um efeito
identitário em cada um de nós, que pode ser percebido como pertencente a
algo maior, ainda que essa configuração nos ofereça a compreensão de que,
se muito foi feito, ainda há muito o que fazer. A minha profissionalidade é
tributária de algo maior e mais profundo, construído por aqueles que me an-
tecederam numa luta que é minha e de muitas pessoas. Como sujeito perten-
cente à comunidade investigativa do Ensino de História, eu não existiria sem
Ernesta, Lana, Selva e Ana Maria, do mesmo modo que eu não existiria sem
a existência de muitos outros e outras. Esse movimento analítico, para além
desse traço identitário, me permitiu, acima de tudo, diferenciar aquilo que é
a pesquisa inserida de modo direto ou não em um campo investigativo que
segue necessitando de investimentos teóricos e empíricos, para seguir apos-
tando na necessidade de, com Pierre Vilar, esquadrinharmos de modo mais
consistente o Conhecimento de uma matéria em suas dinâmicas e cotidianos.
Como participante de uma comunidade de lutas e que traz em si uma história
densa de construção, vejo no conjunto de pesquisadores de Ensino de História
a presença de muitos artífices cujos lastros produzem ordem e caos. A ordem
reside na aposta política em torno de nossa área de conhecimento em tempos
sombrios, devastados por ondas quase inacreditáveis de conservadorismos
que parecem não ter fim. O caos se deflagra para nós em nossa multiplicidade
e dispersão, as quais também produzem algo inerente ao caos: a criação de
novas ordens, novos caminhos e possibilidades em nosso modo de estar no
mundo nessa faixa temporal a que pertencemos.
Ao evocar a figura do artífice, Richard Senneth (2009) o designa como al-
guém capaz de despertar em muitos o efeito de sua obsessão particular: aquela
de buscar a perfeição em sua arte a partir de seu esmero criativo, seu engaja-
mento e sua capacidade de criar algo novo. Um novo surpreendente, distinto
do padronizado e estandardizado pela máquina e pela sociedade industrial, pela
lógica comunicativa de uma sociedade lotada de fontes informativas e redes de
produção de simulacros de verdade. Por essa razão, diz-nos Senneth, aquilo que
provém do artífice emociona e produz encontros dos que se orgulham do seu
trabalho (SENNETH, 2009). O artífice representa uma condição humana espe-

110 SONIA REGINA MIRANDA


cial, a do engajamento. Seu trabalho ancora-se em ferramentas que organizam
a experiência imaginativa, sua oficina é lugar de encontro e aprendizagens em
cadeia, seu labor é modelado pela intuição, pela resistência e pela ambiguidade.
Fico pensando que a imagem do artífice pode, talvez, funcionar como uma boa
alegoria para aquilo que representa pensar em nós e em nossa comunidade, que
se reúne tanto em nossos eventos quanto na leitura dos nossos textos. Uma ale-
goria de positividade talvez, em tempos cujas perspectivas de futuro, não sendo
muito animadoras, nos impelem ao encontro e à mobilização que nos fortalece.

Referências bibliográficas

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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 111


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112 SONIA REGINA MIRANDA


Produção sobre Ensino de História
em periódicos acadêmicos brasileiros (1970-2016)

Nadia G. Gonçalves1

Este trabalho é parte de uma pesquisa que tem por objetivo analisar como
o ensino de História vem sendo abordado em periódicos acadêmicos de Educa-
ção, de Ensino e de História, a partir dos anos 1970, até 2020. Neste momento,
será apresentado o levantamento de dados relativo às edições dos periódicos até
2016, com os objetivos de, ao trazer uma caracterização geral dessa produção,
apontar tendências e propor reflexões que podem contribuir para a compreensão
da trajetória da produção acadêmica desse campo de conhecimento no Brasil,
bem como indicar possíveis questões que precisariam ser melhor investigadas.
O início dos anos 1970 demarca, no Brasil, o momento de criação e consoli-
dação de Programas de Pós-graduação e de periódicos acadêmicos, daí ser a re-
ferência temporal inicial da pesquisa, a qual, como mencionado, até o momento
abrange produções acadêmicas publicadas em periódicos até o ano de 2016.
Esse recorte inicial está relacionado à proposta de periodização da História
do Ensino de História no Brasil, apresentada por Maria A. M. S. Schmidt, que,
com base no conceito de código disciplinar, indica quatro períodos mais mar-
cantes nessa produção: “construção do código disciplinar da história (1838-
1931); consolidação do código disciplinar da história (1931-1971); crise do
código disciplinar da história (1971-1984); reconstrução do código disciplinar
da história (1984-?)” (SCHMIDT, 2012, p. 78). Para a autora, o que demarca
os dois últimos períodos são, respectivamente, a Lei 5692/71 e seu impacto
no Ensino de História; e um movimento de “volta ao ensino de História”,
após a ditadura, com a busca de novos referenciais. Também, assume-se aqui
o pressuposto de existência, no Brasil, de um “campo específico do ensino de
História” (p. 76), para o qual se volta essa investigação.

1 Professora associada da Universidade Federal do Paraná, docente do Departamento de


Teoria e Prática de Ensino, do Programa de Pós-graduação em Educação da UFPR e do
Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHIS). Possui Licenciatura
Plena, Especialização e Mestrado em História (UNESP Assis), Doutorado em Educação
(USP) e Pós-doutorado em Educação (UFRJ). E-mail: nadiagg@ufpr.br.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 113


Fontes e procedimentos metodológicos

Como uma pesquisa de estado da arte, a fonte consistiu em periódicos aca-


dêmicos nacionais, constantes no Qualis – CAPES, com classificação mínima
entre A1 e B3, das áreas de Educação, História e Ensino, com a inserção de
artigos sobre Ensino de História.
Os periódicos acadêmicos minimizam as restrições e maximizam as vanta-
gens que Sirinelli ressalta:

As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de


forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subtendem, as
fidelidades que arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão
– pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas.
[...] elas são aliás um lugar precioso para a análise do movimento das
ideias. Em suma, uma revista é antes de tudo um lugar de fermentação
intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo viveiro e espaço de
sociabilidade, e pode ser, entre outras abordagens, estudada nesta dupla
dimensão. (SIRINELLI, 1996, p. 249)

Segundo Prost, se o pesquisador quer que apareçam “contrastes entre gru-


pos e/ou entre períodos, deve constituir seu corpus de textos comparáveis,
distribuídos por várias datas e/ou emanando de vários locutores que possa
considerar como representativos” (PROST, 1996, p. 315). Nesse sentido, os
procedimentos metodológicos foram desenvolvidos a partir da perspectiva de
Prost, que ressalta a necessidade de três características básicas quanto ao ma-
terial pesquisado:

[...] ser contrastivo para permitir comparações, ser diacrônico, ou seja,


estender-se no tempo para permitir recuperar continuidades e viradas;
(e) enfim, ser constituído, senão de textos de organizações que emanam
de locutores coletivos, ao menos de textos significativos, referentes a
situações de comunicação determinadas. (PROST, 1966, p. 323)

Foram aplicados os seguintes filtros na listagem geral de periódicos Qua-


lis: seleção dos periódicos das áreas de Educação, História e Ensino; exclu-
2

são de periódicos internacionais e daqueles nacionais cujo objeto específico


não abrangeria o tema ensino de História; seleção de periódicos que estives-
sem indicados como relevantes (A1 a B3) para ao menos duas áreas das três

2 Disponível em http://qualis.capes.gov.br/webqualis/principal.seam# e acessada em 10/03/2014.

114 NADIA G. GONÇALVES


contempladas na pesquisa, o que resultou em 101 periódicos. A seleção dos
artigos foi feita com base no título, nas palavras-chave e no resumo, a partir
do critério de que o trabalho deveria ter foco central no ensino de História,
independentemente do problema colocado, da abordagem, do recorte ou do
referencial escolhido.

Referenciais

Para a abordagem do problema de pesquisa, e orientando o olhar sobre as


fontes, foi assumida a acepção de campo, no caso científico, como “o universo
no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reprodu-
zem ou difundem [...] a ciência. Esse universo é um mundo social como os
outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas” (BOUR-
DIEU, 2004, p. 20).
Cada agente, durante sua trajetória e em seu habitus, incorpora disposições
duráveis adquiridas e regras desse campo – o que, por sua vez, condiciona suas
representações sobre o mundo e sobre o próprio campo –, que tem relativa
autonomia em relação a pressões externas. Para Bourdieu, “É a estrutura das
relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem
fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura que
determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição”
(BOURDIEU, 2004, p. 23, grifos no original).
Nessa perspectiva, os periódicos acadêmicos constituem instrumentos que
podem ser utilizados pelos agentes do campo, para o fortalecimento de de-
terminado viés e como orientadores do que não deve ser feito, no sentido de
menor aceitação e legitimidade.

Essa estrutura é, grosso modo, determinada pela distribuição do capital


científico num dado momento. Em outras palavras, os agentes (indiví-
duos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determi-
nam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do
peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contra-
riamente, cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se
impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais
frágil. Essa pressão estrutural não assume, necessariamente, a forma de
uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, “influência,
etc.). (BOURDIEU, 2004, p. 24).

Em consonância com as proposições de Bourdieu, as contribuições de Ro-


ger Chartier também serão úteis para esta pesquisa. Chartier (1990) aborda

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 115


a questão das leituras ou dos entendimentos possíveis, a partir da noção de
representação, ou as diferentes formas que uma realidade é dada a ler. Segun-
do ele, as percepções dos sujeitos sociais não são neutras, dependendo do
contexto em que foram elaboradas e constituídas, e derivando delas as suas
práticas, nesse caso, as produções acadêmicas.
Dessa forma, assume-se que essas produções são utilizadas e exercem in-
fluência nas representações e habitus dos agentes, tanto no campo acadêmico,
contribuindo para novas pesquisas, publicações, apresentações de trabalhos,
indicações de leituras para estudantes, ou seja, na sua difusão e consolidação,
quanto em outros campos, como o escolar, na medida em que há um poder
simbólico em operação no reconhecimento de autoridade do campo acadêmi-
co e das produções dele derivadas.

Caracterização da produção sobre Ensino de História

Neste momento, serão trazidos alguns dados quantitativos sobre a pes-


quisa aqui relatada, para uma caracterização geral dessa produção. Não serão
aprofundados detalhes da análise, uma vez que o objetivo é levantar questões
para reflexão acerca dessas características e possíveis tendências, e que a dis-
cussão mais aprofundada de cada um desses aspectos vem sendo exposta em
outros trabalhos apresentados e publicados pela autora, os quais não serão
detalhados aqui.
Dos 101 periódicos (jornais, revistas, etc.) pesquisados, foi consultado um
total de 4.828 volumes, sendo que, destes, 4.364 não contêm artigos sobre
ensino de História. Dos 764 restantes, 464 apresentam trabalhos sobre esse
tema, que foram selecionados para a pesquisa. Assim, de 1970 a 2016, compu-
tamos 1.123 artigos, que, até o momento, compõem o banco de dados

116 NADIA G. GONÇALVES


Esses trabalhos estão assim distribuídos, por década:3

Gráfico 1
Artigos identificados – Ensino de História (1970-2016)

Martins situa no final dos anos 1970 o “surgimento de um novo campo


de estudos dentro das pesquisas históricas – o do ensino de História” (MAR-
TINS, 2002, p. 200), com o início de trabalhos relacionados a experiências em
escolas, editados nos Anais dos Simpósios Nacionais da ANPUH, seguidos por
algumas publicações nos anos 1980,4 nas quais identifica que começam a ser
definidos “o campo teórico e as linhas de pesquisa” para a abordagem do tema.
Além disso, a autora destaca como marcantes, nesse processo, a criação de
dois eventos acadêmicos específicos: o I Encontro Perspectivas do Ensino de
História, realizado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
em 1988, e o I Encontro de Professores e Pesquisadores em Ensino de Histó-
ria, em 1993, na Universidade Federal de Uberlândia. Ela também aborda os
embates, na ANPUH, para que fosse permitida a participação de docentes da
educação básica, graduandos e pós-graduandos, discussão que situa no início
de 1977 e começo dos anos 1980, com reforma estatutária, que, em 1981,
inclui como um de seus objetivos “o aperfeiçoamento do ensino de História
em seus diversos níveis” (MARTINS, 2002, p. 123). Em 1984, essa reforma

3 É importante destacar que embora neste trabalho seja utilizada a palavra “décadas” para
agrupar e analisar os artigos, a última delas ainda não está completa, sempre se referindo ao
período de 2011 a 2016.
4 Como o Cadernos CEDES, n. 10, com dossiê sobre A prática de ensino de história, e os livros
Repensando a História, organizado por Marcos Silva (1984) e O ensino de História – revisão
urgente, organizado por Conceição Cabrini (1986).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 117


foi concluída e registrada, com a inclusão de graduandos e pós-graduandos de
História como possíveis associados. Tais mudanças contribuíram para a maior
inserção dos debates sobre o Ensino de História no âmbito dos eventos da
ANPUH, o que foi sendo consolidado ao longo dos anos 1990.
Essa análise é compatível com os primeiros períodos apresentados no Grá-
fico 1 e com a crescente – mas ainda tímida, se comparada à do século XXI
– produção acadêmica sobre Ensino de História.
Nota-se que, a partir de 1981, começa a aumentar gradativamente o núme-
ro de publicações, o que condiz com a perspectiva de Molina, Cerri, Toledo e
Gonçalves, para os quais o contexto do início dos anos 1980 pode ser conside-
rado marcante para a constituição do Ensino de História, no Brasil, como “im-
portante campo de investigação”, fortalecido pela “expansão dos Programas
de Pós-Graduação em História e em Educação [...] bem como da mobilização
dos professores pesquisadores em torno de eventos organizados para discutir
“caminhos da história ensinada”, o que resultou, nos anos 1990, na “afirma-
ção da história escolar como objeto de pesquisa” (MOLINA et al., 2012, p. 7).
Ainda nos anos 1980, podem ser destacadas como relevantes, para a con-
solidação desse campo, a realização do I Encontro Perspectivas do Ensino de
História FE-USP em 1988, e a do I Encontro de Professores e Pesquisadores
em Ensino de História, em 1993, na UFU (MARTINS, 2002).
No final dos anos 1990, é significativa a expansão dos programas de pós-
-graduação no Brasil: 2.417 em 1999 para 4.660 em 2011, ou seja, praticamen-
te o dobo do número de cursos (CIRANI, CAMPANÁRIO e SILVA, 2015, p.
169). Associada a essa expansão, que impacta no número de artigos publica-
dos, essa tendência é fortemente influenciada pela mudança na avaliação da
CAPES para os programas de pós-graduação a partir de 1998, estabelecendo
notas de 1 a 7 (FONSECA, 2001). O impacto se deu em duas dimensões: na
necessidade de pós-graduandos e orientadores publicarem mais – e a publi-
cação em periódicos bem avaliados no Qualis vai se tornando cada vez mais
valorizada – e, também, na pontuação positiva atribuída a programas com um
periódico acadêmico. Assim, tanto o número de periódicos quanto o de arti-
gos neles publicados, que já vinham se expandindo, crescem exponencialmen-
te no século XXI, o que impacta todas as áreas e se reflete na temática aqui
abordada. Esse crescimento é melhor detalhado no Gráfico 2.

118 NADIA G. GONÇALVES


Gráfico 2
Artigos sobre Ensino de História por ano (1970-2016)

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA


119
Especificamente quanto à produção sobre Ensino de História, a distribui-
ção dos artigos condiz com a periodização de Schmidt (2012) quanto a situar
1984 como marco temporal para a reconstituição desse campo. Porém, pelo
significativo volume de trabalhos e pesquisadores identificados nesta pesqui-
sa, parece que o início do século XXI, sem poder afirmar “os” marcos signi-
ficativo como os utilizados por Schmidt (2012) – no caso do último período,
relacionado à dimensão política e sua influência no currículo escolar –, pode-
ria ser designado como o de consolidação do campo de conhecimento sobre o Ensino
de História.
No Quadro 1, são destacados os periódicos – dentre os investigados – com
maior número de artigos:

Quadro 1
Periódicos com maior número de artigos sobre Ensino de História (1970-2016)
%
Periódico Números Com Artigos
Início números
Pesq. artigo EH
EH
História & Ensino (UEL) 1995 29 29 247 100
Aedos (PPGHIS- UFRGS) 2008 19 08 69 42
Antíteses (PPGHIS UEL) 2008 20 08 55 40
Educar em Revista (UFPR) 1977 73 16 45 22
Revista Brasileira de História (ANPUH) 1981 69 16 37 23
Fronteiras (Campo Grande-UFGD) 1997 24 07 33 29
Cadernos CEDES (UNICAMP) 1980 106 08 32 7

Fonte: pesquisa da autora.

Uma primeira observação é que a revista História & Ensino, da Universida-


de Estadual de Londrina (UEL), é a única que, em todos os números, edita
artigos sobre o tema, embora isso decorra do fato de ser também a única, den-
tre os 101 periódicos pesquisados, que tem como objeto específico o Ensino
de História. Porém, nem todos os artigos nela publicados foram incluídos na
análise, pois, por vezes, foram estampados textos sobre História, mas que não
tratavam do seu ensino.
A revista Aedos, do Programa de Pós-graduação em História da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, também possui uma especificidade: ela
consta nesse quadro, pois, em um de seus números iniciais, publicou os Anais
de um evento local sobre Ensino de História, o que impactou no número total
de trabalhos sobre o tema, apresentado no Quadro 1.
O fato de outra revista da UEL, a Antíteses, estar em terceiro lugar no qua-
dro evidencia que, nessa universidade, há um grupo – ou grupos – que destaca

120 NADIA G. GONÇALVES


o Ensino de História como objeto de pesquisa. Ainda, vale indicar que as
quatro primeiras revistas do quadro são da região Sul, sendo que, na última
coluna, constam as percentagens de números publicados nos quais há, pelo
menos, um artigo sobre Ensino de História.
Em relação às temáticas abordadas nos 1.123 artigos aqui abordados, a
distribuição está apresentada no Gráfico 3 a seguir.

Gráfico 3
Temas identificados nos artigos sobre Ensino de História (1970-2016)

De acordo com a metodologia da pesquisa, cada artigo selecionado foi classifi-


cado em até três temas, conforme seu objetivo, e, por isso, o número total de re-
ferências nesse Gráfico excede o número de trabalhos analisados. Nele, é impor-
tante destacar que alguns temas chamam a atenção pelo alto número de menções:
• conteúdos específicos, que tratam de temáticas ou conceitos específi-
cos ensinados na disciplina;
• recursos didáticos, com foco em recursos produzidos e utilizados para
o ensino de História;
• formação de professores, sempre em relação aos voltados para a disci-
plina de História.

Por outro lado, alguns são pouco abordados, como o caso dos relacionados
à avaliação da aprendizagem em História, o que indica, talvez, uma grande
lacuna nas produções e investigações nesse campo de conhecimento.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 121


Gráfico 4
Temas abordados ao longo das décadas (1970-2016)

Na distribuição dos temas pelas décadas pesquisadas, especialmente quanto


aos temas já mencionados, e na relação com o número de artigos existentes/
selecionados em cada década, é possível identificar que alguns são permanen-
tes como objeto de pesquisa, sendo que, na análise qualitativa, são percebidas
mudanças quanto à problemática. Por exemplo: em conteúdos específicos, nos
anos 1980 e 1990 aparece bastante a preocupação com a história local ou regio-
nal, sendo que outras questões vão sendo introduzidas no século XXI, como a
presença feminina ou questões de gênero, e a temática sobre a África, os afri-
canos, afrodescendentes e os indígenas é mais forte nas duas últimas décadas
pesquisadas. Ou seja, o eixo temático permanece, mas os conteúdos discutidos
variam conforme as preocupações e demandas de distintos contextos.
No Quadro 2, destacam-se as principais temáticas, por década:

Quadro 2
Ênfases temáticas por década – Ensino de História - (%)
Déc. Art. Tema % Tema % Tema % Tema % Tema %
1971- Formação Recursos
12 Disciplina 42 Conteúdos 17 17 Políticas 17 17
1980 de professores didáticos
Formação
1981-
57 Disciplina 28 de profes- 23 Conteúdos 23 Metodologia 19 Currículo 18
1990
sores
1991- Conteúdos Recursos
98 32 19 Disciplina 15 Currículo 14 Metodologia 14
2000 didáticos
2001- Recursos Saberes e Prá- Formação
341 Conteúdos 39 25 18 17 Disciplina 15
2010 didáticos ticas docentes de professores
2011- Recursos Formação
615 Conteúdos 37 21 18 Fontes 17 Disciplina 13
2016 didáticos de professores

Nessa forma de visualização dos dados, outros temas aparecem, uma vez
que estão indicadas no Quadro 2, em relação ao número de artigos selecio-
nados de cada década (segunda coluna), quais as principais temáticas, por

122 NADIA G. GONÇALVES


percentual. Esse olhar é importante, pois, quando se abordam somente os
números absolutos, desconsiderando-se o número de artigos de cada década,
algumas questões se tornam imperceptíveis.
Por exemplo, podemos destacar a preocupação com a “Disciplina” – artigos
com foco na discussão da História como disciplina escolar e em sua função – como
importante ao longo de todas as décadas, ou seja, com relevância quanto à sua
permanência. “Conteúdo” também está presente em todo o período pesquisado.
O tema “Recursos didáticos” também está presente em todas as décadas
(como um dos principais), com exceção dos anos 1980, mas nos anos 1980 e
1990 aparece “Metodologias”, o que pode indicar – questão a ser melhor in-
vestigada – uma ênfase maior, nesse contexto, em como ensinar (e os recursos
entrariam como elemento secundário), em vez de enfatizar quais recursos uti-
lizar (como o livro didático, que é o recurso mais discutido nos artigos). Em
relação à “Formação de professores”, esse tema é menos abordado nos anos
1990, quando ganha destaque a discussão do “Currículo”, que consta nos anos
1980 e 1990 como um dos temas principais – ou seja, mais abordados). Essa é
outra questão a ser discutida, para a qual pode-se levantar a hipótese de que,
no contexto de questionamento dos Estudos Sociais, as especificidades, inclu-
sive epistemológicas, da História e da Geografia no currículo, foram preocupa-
ções significativas para os professores e pesquisadores do tema. Já “Saberes e
práticas docentes” tem presença significativa no início do século XXI.
As principais palavras-chave, utilizadas ao longo do período, estão apre-
sentadas no Gráfico 5 e trazem outras questões:

Gráfico 5
Principais palavras-chave utilizadas nos artigos sobre Ensino de História (1970-2016)

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 123


Com grande destaque, temos as seguintes expressões: “Ensino de His-
tória”; “Ensino e História”; e “História e Ensino”. Elas foram agrupadas no
gráfico, pois houve a compreensão de que os autores tinham uma intenção
comum. Porém, apesar do destaque, é relevante refletir sobre por que menos
da metade (42,78%) dos artigos que abordam o Ensino de História não o
indica nas palavras-chave. Outro tanto (se somados, 15%) utiliza História e
Ensino como palavras separadas, e não necessariamente ambas as palavras no
mesmo artigo.
O número de “Não Consta” é maior nas décadas iniciais da pesquisa,
quando não havia um padrão nas exigências dos periódicos, de modo que,
por vezes, nem os resumos eram solicitados, quanto mais, palavras-chave. No
período de 1970 a 1980, não há qualquer palavra-chave registrada.
Nesse gráfico, e considerando que no século XXI é que está a grande maio-
ria dos trabalhos aqui analisados, várias palavras-chave tratam de conceitos e
caracterizam uma abordagem relacionada à “Educação Histórica”, sendo co-
mum essa expressão aparecer em artigos que não apontam “Ensino de His-
tória” como palavra-chave, podendo indicar – questão que também necessi-
ta de investigação mais aprofundada – uma intenção de caracterizar, desde
ali, a abordagem teórica, mas também poderia significar uma disputa interna
ao campo, conforme Bourdieu, ou de luta de representações, de acordo com
Chartier.
O detalhamento por período é melhor visualizado no Gráfico 6.

Gráfico 6
Principais palavras-chave abordadas ao longo das décadas (1970-2016)

124 NADIA G. GONÇALVES


Pode-se observar como as expressões “Educação Histórica”, “Aprendiza-
gem Histórica” e “Consciência Histórica” são significativas nas duas últimas
décadas da pesquisa, quando as referências a Jörn Rüsen e a outros autores
relacionados a essa perspectiva teórica vão sendo mais frequentemente utili-
zadas nos artigos.
Em “Algo de ensino”, foram agrupadas palavras e expressões outras, que
não as três mais mencionadas e também agrupadas. Por exemplo, nesse se-
gundo grupo estão “História Ensinada” e “História Escolar”, que indicam a
intenção de caracterizar o objeto na relação entre História e Ensino.

Considerações finais

Com base nos dados da pesquisa levantados até o momento (1970-2016),


buscou-se caracterizar alguns aspectos da trajetória geral da produção aca-
dêmica registrada em periódicos acadêmicos acerca do Ensino de História, e
considera-se agora a possibilidade de que, a partir do início do século XXI, co-
meça uma nova etapa dessa trajetória: a de consolidação do código disciplinar
de História no Brasil.
São diversas as possibilidades de organização e análise das informações
dessa fonte, a partir de distintas questões, como:
• por referências bibliográficas e conceitos mobilizados;
• por autores, instituições, programas de pós-graduação e grupos de
pesquisa;
• por eixos temáticos, ao longo do tempo.

Ao longo da fala e do texto, algumas questões foram destacadas como reque-


rendo mais aprofundada investigação acerca do campo e de sua produção, sendo
que ainda poderiam ser lembradas: as disputas por legitimidade de objetos e
referenciais teóricos; a forma como se manifestam nos artigos (como temas,
recortes, fontes, referenciais, palavras-chave); a relação entre os temas, publi-
cações e referenciais; e a participação/trajetória dos autores por instituições,
programas de pós-graduação, grupos de pesquisa e orientadores; entre outras.
Como pode ser percebido, são tantas as demandas e possibilidades quanto
as oportunidades e fontes de investigação para a melhor compreensão dessa
trajetória e dos caminhos de configuração do campo como um “lugar de fron-
teira” entre Educação e História (MONTEIRO et al., 2014, p. 9).
Finalmente, uma sugestão prática para dar mais visibilidade ao campo, in-
clusive em pesquisas sobre repositórios de artigos, seria que pesquisadores do

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 125


ensino de História assumissem a diretriz de sempre indicar essa expressão nas
palavras-chave de suas publicações, o que facilitaria tanto a localização quanto
a demarcação do campo na própria produção acadêmica.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.
CAPES. História e missão. Disponível em: http://www.capes.gov.br/historia-e-mis-
sao. Acesso em: 21 de julho de 2015.
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Di-
fel, 1990.
CIRANI, Claudia B. S.; CAMPANARIO, Milton A.; SILVA, Heloisa H. M. A evo-
lução do ensino da pós-graduação senso estrito no Brasil: análise exploratória e
proposições para pesquisa. Avaliação, Campinas, v. 20, n. 1, p. 163-187, 2015.
FONSECA, Claudia. Avaliação dos programas de pós-graduação: do ponto de vista
de um nativo. Horizontes antropológicos, v. 7, n. 16, p. 261-275, 2001.
MARTINS, Maria C. A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem
legitima esses saberes? Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
MOLINA, Ana H. et al. (orgs.). Apresentação. In: _____. Ensino de História e Educa-
ção: olhares em convergência. V.II. Ponta Grossa: Ed.UEPG, 2012, p. 7-9.
MONTEIRO, Ana M. et al. (orgs.). Apresentação. In: ­­_____. Pesquisa em ensino de
História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad
X/Faperj, 2014, p. 7-13.
PROST, Antoine. As palavras. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.
Rio de Janeiro; Editora UFRJ, 1996, p. 295-330.
SCHMIDT, Maria A. M. S. História do ensino de História no Brasil: uma proposta
de periodização. Revista de História da Educação – RHE, Porto Alegre, v. 16, n. 37,
p. 73-91, mai./ago. 2012. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/
article/view/24245/pdf. Acesso em: 10 de março de 2014.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma
história política. Rio de Janeiro; Editora UFRJ, 1996, p. 231-270.

126 NADIA G. GONÇALVES


Enseñanza de la historia en Argentina:
un panorama de investigaciones y redes

María Paula González1

Introducción

Este trabajo tiene un doble objetivo. Por un lado, presentar un panorama


de las investigaciones en enseñanza de Historia desarrolladas entre 1991 y
2016 en Argentina.2 Por otro, aludir a redes de investigación y cooperación
académicas que se han establecido en los últimos años entre Argentina y Bra-
sil en este mismo campo.
Tal presentación permitirá: i) subrayar que la enseñanza de la Historia
como campo de investigación en Argentina se encuentra en franca expansión
al tiempo que muestra su carácter de espacio de frontera multidisciplinar y
dialógico; ii) realizar un balance e indicar los desafíos a futuro; iii) señalar que
las redes e intercambios establecidos potencian este campo y colaboran en su
consolidación académica.

Investigaciones sobre enseñanza de la Historia en Argentina:


líneas, temas y preguntas
Antes de indicar las grandes líneas de trabajo, cabe señalar que reconstruir
un “estado de situación” de la investigación en Argentina resulta un proyecto
ambicioso y difícil. Esto se debe, entre otras cosas, a que en diciembre de 2016

1 Universidad Nacional de General Sarmiento y Consejo Nacional de Investigaciones Científicas


y Técnicas, Argentina. Graduada en Historia por la Universidad de Buenos Aires y doctora por
la Universidad Autónoma de Barcelona (España) en el Programa de Didáctica de las Ciencias
Sociales. E-mail: mpgonzal@ungs.edu.ar; mpgonzal@campus.ungs.edu.ar.
2 Retomo para ello, en parte, un estudio anterior sobre las investigaciones realizadas entre
1991 y 2011 (GONZÁLEZ, 2014) y uno más reciente que avanzó en el período 2011-2016
(GONZÁLEZ y GONZÁLEZ IGLESIAS, 2017). Se tomaron aquellas que dan cuenta de un
trabajo de análisis de fuentes primarias (entrevistas, encuestas, observaciones) o secundarias
(planes, programas, libros de textos escolares, actas, diseños, legislación) y no se alude a
trabajos de reflexión, relatorías de experiencias ni propuestas de innovación.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 127


se reglamentó la ley de creación de Repositorios Digitales Institucionales de
Acceso Abierto por lo que muchas universidades aún están en proceso de
construirlos.3
Por lo dicho, este panorama se basa en el análisis de un conjunto de re-
vistas. Por un lado, las dos especializadas en el campo que nos ocupa edita-
das en nuestro país: Clío & asociados, la historia enseñada –cuyo primer número
data de1996 y es editada actualmente por la UNL y la UNLP4– y Reseñas de
Enseñanza de la Historia, publicada por la APEHUN desde 2003.5- Por otro,
un conjunto de revistas de Historia6 y de Educación7 incluidas en el núcleo
básico de revistas del CAICyT.8 Este recorte principal se complementa con
otras publicaciones, puesto que la primera revista específica inició su camino
en 1996 y aquí se ha decidido realizar un panorama desde 1991. De este cor-
pus, se sistematizó las investigaciones realizadas en universidades nacionales,
sobre todo relativas al nivel secundario y la formación docente para tal fin.
Así, desde la revisión de las fuentes consultadas, es posible señalar cuatro
grandes líneas de investigación sobre enseñanza de la Historia en Argentina:
a) contenidos y sentidos; b) formación docente; c) enseñanza y profesores; d)
aprendizaje y estudiantes.
Desde luego, no se trata de compartimentos estancos ni excluyentes sino
espacios en los cuales confluyen diversas perspectivas disciplinares, enfoques

3 La ley 26.899 había sido sancionada en diciembre de 2013. Véase: http://repositorios.mincyt.


gob.ar/.
4 Clío & asociados… se encuentra en acceso abierto en los repositorios de la UNLP: http://
sedici.unlp.edu.ar/ y de la UNL: https://bibliotecavirtual.unl.edu.ar/publicaciones. Mariela
Coudannes (2013 y 2016), actual directora por la UNL, ha reconstruido la trayectoria de esta
revista, mientras que Silvia Finocchio (2016) también ha tomado esta publicación como objeto
de análisis.
5 La APEHUN ha puesto a disposición en su página web http://www.apehun.com.ar/index.php/
resenas los ejemplares de Reseñas... en formato pdf.
6 Las revistas de Historia como Entrepasados, Revista de Historia editada hasta 2012; la
Revista de la Escuela de Historia de la UNSa, Trabajos y Comunicaciones - Segunda época
- dela UNLP, Quinto Sol dela UNL Pam,Anuario del IES de la UNICEN han incluido en sus
volúmenes trabajos sobre la enseñanza de esa disciplina y, además, se cuentan entre las
publicaciones del Núcleo Básico de revistas de Revistas Científicas Argentinas de Caicyt.
7 Se han revisado: Propuesta Educativa de la FLACSO, Praxis Educativa de la UNLPam y
Contextos de Educación de la UNRC, incluidas en el núcleo básico de Caicyt.
8 El núcleo básico de revistas “es un proyecto del CONICET que establece un conjunto de
publicaciones científicas y tecnológicas argentinas en los distintos campos del conocimiento
que son sometidas a una evaluación exhaustiva con criterios únicos definidos de calidad y
trascendencia”. Véase: http://www.caicyt-conicet.gov.ar/nucleo-basico-de-revistas-cientificas.

128 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


teóricos y acercamientos metodológicos que, en ocasiones, se entremezclan y
confluyen al abordar diversos problemas y preguntas de indagación. No obs-
tante, las “etiquetas” resultan operativas para ordenar la presentación.9
Los contenidos y sentidos de la enseñanza de la Historia fue la primera
línea en reunir los esfuerzos de diversos investigadores a inicios de la década
del 1990. Y es que, para ese entonces (es decir, después de la última dictadura
y de cara a la reforma educativa en ciernes), las inquietudes en torno a estos
tópicos alentaron el estudio de las propuestas “oficial” y “editorial” para la
enseñanza de la Historia. Varias preocupaciones subyacían en esos trabajos:
por un lado, la distancia entre aquello que transmitía la escuela y lo que la his-
toriografía producía y, por otro, las representaciones identitarias nacionalistas
y chauvinistas presentes en programas y textos.
A partir de esa preocupación inicial, otros trabajos analizaron la propuesta
editorial, integrando miradas de manuales escolares anteriores y/o posterio-
res a la reforma educativa de los años 1990 sobre algunos temas o procesos
puntuales: la Historia Antigua, el siglo XX, la inclusión de la Historia Econó-
mica y Social, la construcción del Estado nacional, el rosismo, el peronismo,
Asia y África, los derechos humanos, la Historia de América, la Historia local
y regional, la guerra de la Triple Alianza, entre muchos otros.
En general, esas indagaciones centraron su mirada en los libros de textos
en sí, o cruzándolos con los textos curriculares, pero muy pocos avanzaron en
la indagación de sus usos en las aulas. Asimismo, los resultados de estos estu-
dios fueron coincidentes en sus conclusiones aun en la diversidad de unidades
temáticas: que los libros de textos escolares anteriores a la reforma tendían al
esquematismo y la fragmentación mientras que los publicados a partir de los
1990 integraban perspectivas historiográficas renovadas que, sin embargo, no
los preservaban de ciertas omisiones y simplificaciones.
Otros trabajos se abocaron al estudio de los contenidos a enseñar, espe-
cialmente a partir del examen de los diseños curriculares generados desde
la Ley Federal de 1993 y sus posteriores modificaciones en algunas jurisdic-
ciones. Más allá de las discusiones (y valoraciones) de las que esos trabajos
daban cuenta (áreas o disciplinas; lo lejano y lo cercano; procesos históricos
y/o problemas, etc.), lo cierto es que todos pusieron de relieve las mutaciones
que implicó la reforma abierta en los 1990 para la enseñanza de la Historia (al
menos en términos normativos), pero también dejaron a la vista una transfor-
mación no exenta de tensiones.

9 Las referencias bibliográficas de las investigaciones citadas pueden ser recuperadas de:
González (2014) y González y González Iglesias (2017).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 129


En esta misma línea, otros trabajos desarrollados más recientemente han
atendido sobre todo a los sentidos de la historia escolar, especialmente en tor-
no a la formación de identidades y ciudadanías, tanto en las representaciones
presentes en la legislación educativa y los diseños como en las lecturas y con-
cepciones de los docentes. También dentro de esta gran línea, podemos ubicar
los trabajos que indagaron la configuración de la Historia como disciplina es-
colar en nuestro país en una perspectiva de más larga duración (aunque son
cuantitativamente menores).
La formación docente fue otro de los temas tempranamente abordados
por este campo. En efecto, en los años 1990 se estudiaron, por ejemplo, las
tradiciones paralelas de formación docente universitaria y no universitaria que
se da en nuestro país.10 En esta misma línea, años después, otros trabajos
indagaron las representaciones de los futuros profesores de Historia en torno
a la propia práctica, al vínculo entre biografía escolar y práctica docente, et-
cétera. Asimismo, otros se ocuparon de conocer y caracterizar el perfil de los
estudiantes de Historia en distintas jurisdicciones e instituciones formativas
teniendo en cuenta variables sociales, económicas y culturales. Como en la
línea anterior, también en ésta se registran estudios que reconstruyen históri-
camente la formación docente en diversas universidades a partir de la revisión
de planes, reformas y debates que se dieron en algunas instituciones.
Una tercera línea se recorta en torno a la enseñanza y los docentes. En
tal sentido, un trabajo pionero a inicios de la década del 1990 indagó los ámbi-
tos que constituyen la práctica docente en Historia. Esta línea de investigación
no tuvo contribuciones del mismo alcance y difusión en momentos inmediata-
mente posteriores a la reforma educativa de los 1990 pero se revitalizó en los
últimos años. Así, se analizaron: las significaciones que los profesores de His-
toria le otorgan a la enseñanza de la Historia –en diversos contextos políticos y
educativos–; los modos en que los diseños curriculares son leídos y traducidos
por los docentes; cómo se plasma la Historia enseñada en las aulas, entre otras
cuestiones. Asimismo, otros trabajos analizaron la enseñanza a partir de los
desafíos de la incorporación de diversos materiales, como el cine. Desde lue-
go, estos no han sido los únicos trabajos concentrados en la enseñanza y los
profesores ya que muchos de ellos se realizaron en torno a la Historia reciente
(como se indicará más adelante).
Otro gran conjunto de investigaciones conforman la línea centrada en el
aprendizaje y los estudiantes. En ella, se destacan sucesivos proyectos que

10 La formación docente no universitaria se da en los Institutos Superiores de Formación docente


(ISFD).

130 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


trabajaron sobre los conocimientos de los niños y las posibilidades de cambio
conceptual, línea que más recientemente se ha abocado a la discusión de las
perspectivas de la evolución del conocimiento y modos de pensamiento. Por
su parte, otros trabajos han indagado el proceso de apropiación de nociones y
narrativas históricas (por ejemplo, en torno al concepto de nación o a procesos
de independencias, conquistas y reconquistas) o las representaciones de los
jóvenes en torno la identidad, la política, la ciudadanía y la Historia. Ambas
líneas, que se ocupan del aprendizaje de los jóvenes y de la enseñanza de la
Historia, observan esos procesos, sobre todo, desde los aportes de la Psicolo-
gía cognitiva y la sociocultural.
También centrada en los jóvenes, aunque en una perspectiva diferente, una
indagación inter-universitaria internacional ha buscado relevar los elementos per-
tinentes al aprendizaje histórico, la conciencia histórica y la cultura política de los
jóvenes latinoamericanos incluyendo también elementos relativos a la enseñanza
en las escuelas (proyecto al que volveré luego por tratarse de una investigaci-
ón producto de una red). En esta línea también podemos ubicar un importante
conjunto de investigaciones que, si bien se ocupan del aprendizaje de niños y
adolescentes, tiene como propósito explícito generar un diálogo con la enseñanza.
Dentro de este grupo, se destacan dos líneas: por un lado, la que ha trabajado el
aprendizaje de los alumnos a partir de la implementación de propuestas didácti-
cas (por ejemplo, basadas en la Historia Oral) y, por otro, la que ha abordado el
aprendizaje de la lectura y escritura en Historia y Ciencias Sociales.
Por cierto, esta reseña en cuatro grandes líneas no desconoce otras inte-
resantes aproximaciones menos visitadas, como los trabajos que propusieron
un acercamiento a la enseñanza y aprendizaje a través de la narrativa histórica,
la exploración de actos escolares, o la Historia con diferentes públicos y en
diversos contextos (por ejemplo, experiencias con talleres para adultos, con
jóvenes en situaciones de encierro, etc.). Sin embargo, esto también demues-
tra una de las características de este campo, esto es, que los mayores esfuerzos
se han concentrado en la enseñanza de la Historia en aulas de secundaria.

Un tema especialmente fértil: la historia argentina reciente

La Historia argentina reciente en la escuela (especialmente el período de la úl-


tima dictadura) merece un apartado especial, puesto que ha sido el tema que más
esfuerzos de investigación ha reunido en el campo. Esto concuerda con el énfasis
de las políticas educativas ya que, como señala Finocchio (2010), la enseñanza y
conmemoración de este pasado cercano ha sido una de las interpelaciones más
fuertes que se ha hecho a los saberes y prácticas escolares en Argentina.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 131


En términos generales, son varias las obras que han analizado los desafíos de
la incorporación de esa porción de la Historia en la escuela así como problema-
tizaron las formas que adquiere su transmisión y la construcción de la memoria
advirtiendo la preeminencia del recuerdo y la condena sobre la explicación.
Como para otros temas, se ha analizado exhaustivamente la propuesta oficial
en diversas jurisdicciones– Córdoba, Provincia de Buenos Aires, Ciudad de Bue-
nos Aires, Río Negro, Santa Fe, etcétera– observando relaciones con el contexto
político y memorial en que los diversos diseños y legislaciones fueron aprobados.
Del mismo modo, ha sido profundamente estudiada la propuesta editorial refe-
rida a la Historia argentina reciente entre la sanción de las leyes Federal 24.195 de
1993 y Nacional de Educación 26.206 de 2006. Estos análisis han mostrado cómo
los contenidos partieron de una notable disparidad, contradicciones y ambivalen-
cias entre los años 1980 y 1990 hasta llegar a una mayor profundización de los
tópicos relativos al pasado reciente en los manuales editados en los últimos años
(en una transformación concomitante a las que se dio en las luchas y políticas de
la memoria en Argentina). En esta misma senda, algunos trabajos dan cuenta de
un análisis diacrónico incluyendo la mirada sobre los contenidos de la Historia
reciente durante la propia dictadura y las transformaciones que fueron viviendo
en sus enunciados desde los años 1980 a la actualidad.
Otros trabajos han apostado por reconstruir e interpretar las prácticas do-
centes en torno a la Historia argentina reciente en secundaria desde la perspec-
tiva de los profesores de diversa antigüedad, inserción institucional y contextos
atravesados por “luchas por la memoria”. En estos trabajos se ha destacado
de qué manera la propia biografía y los posicionamientos éticos y políticos así
como los contextos, las tensiones institucionales y las miradas que tienen los
profesores de los alumnos dejan marcas identificables en las prácticas docentes.
Asimismo, otras indagaciones han analizado el tratamiento de la Historia
argentina reciente en algunos contextos específicos que imprimieron marcas
singulares a esa transmisión y en instituciones puntuales a través de traba-
jos de cariz etnográfico. Así, por ejemplo, se exploraron cómo las dinámicas
escolares –de la escuela en general y de ciertas institucionales en particular–
inciden en la construcción y complejización de la memoria de los jóvenes,
observando tanto las posibilidades como las constricciones.
Otros trabajos han analizado cómo se gestionan y dotan de contenido a
las conmemoraciones escolares en torno a las efemérides de la memoria.11
A través del análisis de un conjunto de discursos pronunciados por docentes

11 Me refiero a actos conmemorativos escolares referidos al pasado reciente, como el del 24 de


marzo que recuerda la fecha del último golpe militar en Argentina.

132 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


en actos conmemorativos así como por intermedio de la observación de car-
teleras en escuelas y carpetas de alumnos, estas investigaciones han reflexio-
nado sobre las memorias en conflicto así como las tensiones que se generan
al interior de las instituciones (especialmente entre docentes y directivos) al
tiempo que han mostrado que las conmemoraciones anclan en la condena al
terrorismo de Estado perpetrado por la última dictadura (aunque como mal
externo a la sociedad víctima, es decir, sin responsabilidad).
En este grupo referido a la enseñanza de la Historia reciente, surgieron
también algunos análisis de materiales que exceden el formato escrito e im-
preso, como los disponibles en Internet generados por programas oficiales
–tales como Conectar-Igualdad y Educación y Memoria del Ministerio de Edu-
cación– así como los usos y apropiaciones docentes de recursos más conocidos
como el cine o de textos como el “Nunca Más”.12
Del mismo modo, se registran estudios que combinan la revisión de ciertas te-
máticas puntuales de la Historia reciente, como la guerra de Malvinas. Sobre esta
cuestión, las indagaciones han advertido la poca relación que se establece entre
guerra y dictadura, las disputas de memoria que conlleva ese tema, así como la
persistencia de representaciones de soberanía de fuerte raigambre escolar.
Otro conjunto de investigaciones han reconstruido las narrativas de los
jóvenes estudiantes de secundaria en torno a la Historia reciente y particu-
larmente la última dictadura. Todos estos trabajos han coincidido en señalar
que el pasado reciente es apropiado y reelaborado por los jóvenes aunque
reproduciendo algunos silencios y omisiones propios de la memoria colectiva.
En este sentido, destacan la condena que mayoritariamente manifiestan los
jóvenes frente al terrorismo de Estado perpetrado por la última dictadura,
pero desde una mirada deshistorizada que no se interroga por las responsa-
bilidades colectivas más amplias que las concernientes a las fuerzas armadas.
Tal relato “ancla” en un consenso básico de la sociedad que dio forma a una(s)
memoria(s) que, con matices, se elaboraron para explicar la última dictadura
desde el retorno a la democracia en 1983. Al mismo tiempo, estos trabajos
señalan que los jóvenes son capaces de advertir y criticar los silencios y las
controversias presentes en las memorias de los adultos y advierten los riesgos
de una repetición ritualizada.
Visto en perspectiva, si para las grandes líneas generales antes reseñadas
se detecta la primacía de ciertos marcos teóricos y metodológicos o la recur-
rencia de algunos objetos y unidades de análisis, las investigaciones centradas

12 Nombre del informe final de la Comisión Nacional por la Desaparición de Personas


(CONADEP) presentado en 1984.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 133


en la Historia reciente en la escuela reúnen y cruzan todas: aquella preocu-
pada por los contenidos y sentidos, la concentrada en la enseñanza y los pro-
fesores, la inquieta por los jóvenes y el aprendizaje y, en menor medida, la
abocada en la formación docente. En efecto, se pueden advertir las diferentes
perspectivas disciplinares (historiografía, pedagogía, didáctica, antropología,
sociología, ciencias políticas), los diversos enfoques teóricos y los disímiles
acercamientos metodológicos dando cuenta de lo multidisciplinar y dialógico
de este campo.
Más aún, en los últimos años, en esta porción del campo en particular se
han dado pasos interesantes en torno al análisis de las prácticas escolares y
docentes y en relación con nuevos materiales didácticos o viejos recursos,
pero vistos desde los usos y apropiaciones de los docentes. Asimismo, son
más los trabajos que, si bien se concentran en los contenidos, los profesores
o los estudiantes, avanzan sobre el resto de las dimensiones señalando las
necesarias interrelaciones.

Redes Argentina-Brasil: tres casos

En los últimos años, una serie de intercambios académicos y redes de co-


operación entre equipos de Argentina y Brasil promovieron el desarrollo de
investigaciones y producciones conjuntas y su divulgación en torno a la en-
señanza de la Historia.
En este sentido, interesa dar cuenta de tres redes: “Projeto Peabiru: Ensino de
História e cultura contemporânea”, “Jóvenes e Historia en el MERCOSUR”, y “Proyec-
to Zorzal”.
Peabiru se inició con la pretensión de constituir una red de pesquisa inte-
rinstitucional reuniendo investigadores de diferentes estados brasileros que
realizaran estudios de maestría, doctorado y posdoctorado ligados al grupo
“Memória, História e Educação” de la Facultad de Educación de la UNICAMP
liderado por Ernesta Zamboni. El diálogo en Brasil entre UNICAMP, UFSC,
UFU y UEL fue ampliado a uno de carácter internacional con investigadores
argentinos dirigidos por Silvia Finocchio desde la UBA y la FLACSO.13
El proyecto puso en relación diversas investigaciones y se situó en la in-
terface de varios campos de conocimiento: Educación, Historia, Antropología
y Sociología. Dichas pesquisas tuvieron como objetivo principal comprender
la dinámica implicada en procesos de construcción de saberes docentes –con

13 Peabiru es un término tupi que alude a un camino indígena construido antes de la Conquista
española y portuguesa y que atravesaba el continente de este a oeste.

134 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


énfasis en los múltiples espacios y procesos culturales que median el saber
histórico en la contemporaneidad– siendo los estudiantes –niños y jóvenes–
los sujetos privilegiados de atención en la investigación.14
Otra interesante red interuniversitaria internacional –coordinada por Luis
Cerri desde la UEPG– inició su camino con un proyecto piloto en 2007 llama-
do “Los jóvenes y la historia”.15 Éste se propuso conocer cómo los alumnos
aprenden Historia –y cómo la enseñan los docentes– en Argentina, Brasil y
Uruguay a través de información empírica recogida por medio de encuestas.16
A esa primera etapa, le siguió otra –esta vez llamada “Jóvenes e Historia en el
MERCOSUR” – en la que estuvieron involucrados Uruguay, Paraguay y Chile
además de Brasil, Argentina y Uruguay. Con un nuevo relevamiento, se llegó
a encuestar a 3.913 estudiantes de 15 y 16 años así como a 288 docentes de
Historia en las escuelas públicas y privadas de los mencionados países entre
agosto de 2012 y mayo de 2013.17
En ambos momentos, las preguntas para los estudiantes involucraron opi-
niones sobre el significado de la Historia, la importancia de sus objetivos, los
tipos de Historia que más les agradan y en las que más confían; la trascenden-
cia que le otorgan a la religión y la política; las prácticas docentes en las aulas;
conocimientos cronológicos de los procesos históricos; interés en períodos
y temas históricos; nociones de pasado y proyecciones para el futuro (tanto
personales como colectivas); tópicos importantes de los contenidos escolares
(por ejemplo, Edad Media, Colonización, Revolución Industrial); sentido de la
Historia; explicación de la riqueza y la pobreza; comprensión de la historicidad;
definiciones de nación, democracia, etc.; papel de la mujer; gobiernos militares y

14 Para más datos de este proyecto así como resultados del mismo puede verse: Zamboni,
Sabino Dias y Finocchio (2014).
15 . Para un panorama del análisis de los resultados de esa primera etapa, puede verse el
dossier en la Revista Clío & asociados, la historia enseñada, n. 14, del año 2010.
16 Los cuestionarios –uno para el profesor y otro para los estudiantes– se basaron en una
adaptación de los que habían sido utilizados en el proyecto europeo Youth and History,
desarrollado por la Standing Conference on History Didactics a mediados de los años
1990, con la participación de 33 países europeos, además de Turquía, Israel y la Autoridad
Palestina. Tal adaptación implicó la supresión de algunas preguntas y la inclusión de otras
nuevas referidas al pasado y presente latinoamericano (por ejemplo, las dictadura de las
décadas del 1970 y 1980).
17 Participaron en esta etapa, investigadores de diversas universidades de Brasil (UEPG,
UDESC, UFT, UFGD, UEA, IFG, FAFIT, UPF, UFRGS, UNEB, UFMG, UFS, UNEMAT, UFMT,
UFMS, UnB, UFU) de Argentina (UNS, UNPSJB, UNGS, UNLPam, UNMdP, UNQ, UNL,
UNLP), de Uruguay (UDELAR), de Paraguay (Instituto Base - Investigación Social) y de Chile
(UAHC).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 135


posicionamiento en problemas políticos contemporáneos. El cuestionario de los
profesores –más breve– fue respondido por los docentes de los alumnos encues-
tados, posibilitando, además, comparar las concepciones y prácticas en las aulas
de éstos con la de sus estudiantes, además de relevar informaciones adicionales
sobre el contexto en que respondieron sus cuestionarios.18
Finalmente, otra red de investigadores y docentes de universidades argen-
tinas y brasileras posibilitó el desarrollo del Proyecto Zorzal que quedó plas-
mado en el sitio web www.proyectozorzal.org.19
Dicho sitio apunta a enriquecer la enseñanza e investigación de los pasados
y presentes compartidos por Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay así como
del resto de países del Cono Sur. Se trata de una iniciativa de investigadores
en Historia y en enseñanza de la Historia de tres universidades sudamericanas
(UNGS de Argentina; UEPG y UNIOESTE de Brasil); la iniciativa tiene la in-
tención de incidir en la formación inicial y continua de profesores de Historia
así como en la práctica docente.
Un conjunto de intercambios académicos iniciados en 2009 desde la UNGS
con las mencionadas universidades brasileñas (y también con otras de otros
países)20 fueron la base de esta iniciativa que fue financiada en el 2015 por el
Programa de Apoyo al Sector Educativo del Mercosur (PASEM).
El sitio se ofrece en las tres lenguas oficiales del MERCOSUR (castellano,
portugués y guaraní) y contiene esencialmente cuatro secciones.
La primera de ellas –“Fuentes”– contiene fotografías, partituras, grabados,
caricaturas, documentación legal y otros muy variados elementos de diversos
orígenes que fueron reunidos por integrantes del equipo, provienen de repo-
sitorios públicos (como la Biblioteca Nacional de Paraguay) o fueron donados
por colegas que los recolectaron oportunamente y que decidieron ponerlos a

18 Podrán conocerse resultados de esta etapa en una publicación de próxima edición (CERRI y
DE AMÉZOLA, en prensa).
19 El nombre del proyecto alude al zorzal colorado, un ave que habita en los países del
MERCOSUR y en otros países del sur de América al tiempo que es el ave nacional de Brasil
(sabiá laranjeira). Se trata de una fauna compartida más allá de las fronteras nacionales por lo
que, como la intención del sitio es trabajar sobre preguntas y problemas comunes de América
latina en el siglo XX, su nombre resultó un buen identificador de los propósitos. Retomo para
esta descripción lo señalado en Bohoslavsky y Gonzalez (2016).
20 Eso fue posible merced a las diversas y consecutivas financiaciones recibidas a proyectos
del área de Historia del Instituto del Desarrollo Humano de la UNGS de las convocatorias del
Programa de Promoción de la Universidad Argentina que se dieron dentro de un programa
mayor (el Programa de Internacionalización de la Educación Superior y Cooperación
Internacional –PIESCI–) de la Secretaría de Políticas Universitarias de Argentina.

136 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


disposición de los interesados. Han sido incorporadas todas las referencias
existentes sobre cada uno de esos materiales, para facilitar el trabajo en las
aulas y en el taller del historiador. En esta sección también se incluyen tres
bibliotecas digitales compuestas por tesis, libros y artículos de revistas: una
sobre el uso del humor para la investigación en historia, otra dedicada al aná-
lisis de la música como fuente histórica y una tercera que detalla a un centenar
de sitios web que contienen documentación primaria.
La segunda sección incluye “Propuestas” de trabajo para las aulas de for-
mación docente en Historia. Esas propuestas usan diversos recursos (humor
gráfico, música, cine, textos legislativos, entrevistas, etcétera) para abordar un
conjunto de preguntas y problemas comunes al pasado y presente de Améri-
ca del sur (populismos, dictaduras, radicalización política, violencia política,
etc.), desde tiempos, espacios, escalas y sujetos diversos. Así, hay propuestas
sobre el vínculo entre trabajadores y líderes populistas de mediados del siglo,
sobre la música en las ligas agrarias de los años 1960 y 1970 o sobre la lite-
ratura actual que intenta representar el horror dictatorial, entre otras. Esas
propuestas han sido desarrolladas con una estructura común que incluye una
discusión bibliográfica, una presentación crítica de los documentos a analizar,
consignas de trabajo para un análisis histórico, historiográfico y de síntesis y
un conjunto de referencias para seguir leyendo en papel y en la web.
La sección “Investigación” pone a disposición los datos de la encuesta “Jó-
venes e Historia en el MERCOSUR” de la que ya dimos cuenta anteriormente.
En el sitio web el visitante puede revisar los resultados de algunas preguntas
realizadas, así como filtrar esa búsqueda según el país, el tipo de escuela, loca-
lidad, etc. Además de la consulta a la base de datos, el sitio pone a disposición
de los interesados un análisis de esos resultados así como una biblioteca con
artículos producidos con la información obtenida a través de las encuestas.
Finalmente, la sección “Videos” pone a disposición una serie de entrevistas
y conferencias. Las entrevistas fueron realizadas a investigadores docentes de
diversas universidades que participaron en el proyecto. En ellas, dan a cono-
cer su trabajo, qué fuentes utilizaron, qué posibilidades y límites tienen esas
fuentes, qué potencialidades encuentran para la formación de profesores de
Historia (aludiendo a la música, las fotografías, el humor gráfico, los debates
parlamentarios, etcétera). En esta sección, también se pusieron a disposición
más entrevistas, charlas y conferencias realizadas por la red.
El financiamiento del PASEM permitió plasmar en proyectozorzal.org el
trabajo elaborado en redes académicas de años anteriores y ponerlo a disposi-
ción de quienes se encargan de formar profesores de historia. El lanzamiento
del sitio le da continuidad a ese proceso y ofrece una vía de ampliación de

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 137


los vínculos que permita continuar pensando prácticas y enfoques acerca de
cómo, por qué y qué investigamos y enseñamos sobre América Latina en el
siglo XX y la actualidad.

Balance y perspectivas

La apretada –y sin dudas incompleta– presentación realizada sobre investi-


gaciones desarrolladas en Argentina y de algunas redes sostenidas por pesqui-
sadores de ese país con colegas de Brasil permite esbozar un balance provisorio
sobre el campo de investigaciones sobre enseñanza de Historia en Argentina.
Una de las primeras constataciones es que este campo crece en Argentina
con especial fuerza en torno a la reforma abierta en 1993, es decir, a partir de
los cambios y las preocupaciones que produjeron las transformaciones polí-
tico-educativas. Así lo demuestran, por un lado, las primeras publicaciones,
muy concentradas en el análisis de los contenidos escolares en consonancia
con el énfasis puesto por aquella reforma en la renovación de los diseños
curriculares, y, por otro, la aparición de la primera revista específica –Clío &
asociados…– a mediados de los años 1990. Asimismo, la llegada de la revista
Reseñas en 2003 confirma el crecimiento y la expansión del área. Tal trayecto-
ria está en consonancia con los desarrollos en otros países de América latina,
donde los procesos de transición democrática y reformas educativas alentaron
el surgimiento de un campo de investigación específico (PLA y PAGÈS, 2014).
En relación con los marcos y referencias –tanto teóricos como metodo-
lógicos–, se advierte la recurrencia de diálogos de varios campos (Historia,
Didáctica, Pedagogía, Sociología, Psicología) en íntima relación tanto con la
formación de grado y posgrado de los investigadores como con su inserción
académica. Más específicamente en relación con los marcos metodológicos,
las indagaciones apoyadas en la Historia y la Didáctica han adquirido contor-
nos más cualitativos y exploratorios, sin definir a priori hipótesis contrasta-
bles con el trabajo empírico. En general, estos trabajos combinan el estudio
de fuentes documentales escritas, la realización de encuestas o entrevistas,
la exploración de fuentes escolares y –en menos casos– la realización de
observaciones de clases. Por su parte, las afiliadas a la Psicología han fo-
mentado acercamientos cuantitativos y cualitativos y pesquisas cuasi-expe-
rimentales. Finalmente, los vinculados a la perspectiva de la Didáctica han
incluido el uso de herramientas como las entrevistas clínicas además de en-
carar estudios a partir de intervenciones didácticas con participación activa
de alumnos y docentes así como el registro y observación de esas instancias.
Visto en perspectiva, el campo de investigaciones sobre la enseñanza de la

138 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


Historia en Argentina puede ser definido como un espacio de frontera, como
una intersección multidisciplinar y dialógica, como un lugar de encuentros y
préstamos para la exploración de contenidos, sentidos, sujetos, saberes, prác-
ticas, materiales, aprendizajes, representaciones, formaciones y contextos.21
En efecto, las diversas líneas esbozadas en anteriores apartados –contenidos,
enseñanza, formación docente y aprendizaje– muestran la confluencia de di-
versas miradas y acercamientos.
También en términos generales es evidente que la Historia reciente (espe-
cialmente la última dictadura) –en tanto contenido escolar– ha reunido mu-
chos esfuerzos de investigación en Argentina; que los textos escolares y curri-
culares han sido los objetos más visitados por las indagaciones; y que se han
estudiado con bastante profundidad las representaciones de los estudiantes
sobre diversas cuestiones (identidad, ciudadanía, política, historia reciente,
conciencia histórica) así como las representaciones, saberes y prácticas de los
docentes de Historia. Además es notorio que las investigaciones sobre las
prácticas áulicas han sido menos numerosas y sistemáticas, explicable por los
problemas teóricos y prácticos que supone su reconstrucción. En tal sentido,
la falta de recursos para sostener trabajos de campo de cariz etnográfico y las
dificultades que conlleva acceder a las aulas hacen que muchos de los esfuer-
zos en esta línea sean necesariamente acotados. A eso, se suma el desafío teó-
rico que supone realizar un ejercicio de interpretación a la altura de la comple-
jidad de lo cotidiano. No obstante, también es indudable que los empeños por
acercarse a las prácticas escolares y docentes han crecido en los últimos años.
Ligado a lo anterior, especialmente en torno a las condiciones y contextos
de investigación, en las publicaciones consultadas para el panorama argentino
convergen distintos tipos de trabajos: los llevados adelante por grupos de in-
vestigadores en proyectos acreditados y financiados por universidades nacio-
nales y, en algunos pocos casos, por organismos estatales de Ciencia y Técnica;
indagaciones que resultan del cruce entre docencia e investigación –marco en
el que se inscriben la mayoría de trabajos sobre formación de profesores-; y
pesquisas individuales de posgrado (tesis de maestría y doctorado, trabajos
finales de especialización, etcétera).
En este plano cabe advertir que son relativamente pocos los proyectos de
investigación que en Argentina han contado con financiación externa a las
propias universidades y, por tanto, con recursos genuinos más allá de salarios
de los investigadores-docentes o pequeñas partidas para participar en con-
gresos o comprar bibliografía. Asimismo, de la exploración realizada se des-

21 Retomo la idea de frontera señalada por Monteiro y Penna (2011).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 139


prende que muchas de las investigaciones se han desarrollado en el marco de
programas de posgrado, es decir, son producto de indagaciones individuales
aunque, por cierto, en diálogo con las indagaciones en equipo.22 Sin embargo,
también se divisa poco entrecruzamiento entre las líneas y perspectivas teó-
ricas así como con escasa recuperación de antecedentes en artículos con los
mismos objetivos u objetos de indagación. A esto se suma que en Argentina
aún son pocas las instancias de intercambio en congresos y publicaciones es-
pecíficas (también de relativa juventud).
Así, este estado de situación –financiamiento externo escaso, formación
de posgrado incipiente, diálogo débil– explica que los esfuerzos de indagación
sobre la enseñanza de la Historia en Argentina sean entusiastas pero exiguos.
A su vez, esto hace que los avances sean más lentos que lo deseado y que no
se hayan alcanzado los niveles de “saturación” que provoquen redefiniciones,
relecturas y saltos cualitativos. Como resultado, encontramos un campo de
investigación con bastantes producciones y con una gran expansión en los
últimos años, pero aún con mucho por avanzar y crecer. Por lo dicho, si el
afán es consolidarse como campo de investigación es de esperar que las ins-
tancias de intercambio ya existentes (publicaciones y jornadas) se fortalezcan
y multipliquen dando pasos decididos hacia el reconocimiento institucional
de organismos de Ciencia y Tecnología; que surjan y se multipliquen nuevos
espacios; que el campo se encamine hacia mayores entrecruzamientos y siner-
gias, hacia más y mejores diálogos, más rigurosos y exigentes, cada vez más
compartidos y sistemáticos.
En este sentido, las redes académicas de cooperación, intercambio e inves-
tigación entre universidades de Argentina y Brasil pueden colaborar decidida-
mente en esa consolidación. En efecto, las que se han dado (que son muchas
más que las reseñadas aquí) se han mostrado potentes y promisorias en las
retroalimentaciones y fortalecimientos generados, por lo que es deseable que
continúen, crezcan y se afiancen para posibilitar más diálogos y más pesquisas
conjuntas.
En cualquier área de investigación, la revisión de los primeros pasos (esto

22 Las investigaciones producto de formaciones de posgrado se han realizado en su mayoría


el marco de Maestrías y Doctorados en Educación, Historia o Ciencias Sociales en nuestro
país o en el exterior. De modo más puntual, algunos investigadores han realizado trabajos
como parte de otras Maestrías –como la de Didácticas específicas ofrecida por la UNL–, en
especializaciones –como la dictada en la UNC “Especialización en enseñanza de las Ciencias
Sociales” –, el “Diploma Superior Enseñanza de las Ciencias Sociales y de la Historia”de
la FLACSO. Más recientemente, en 2016, la UNTREF y la UNR comenzaron a ofrecer la
Maestría en Enseñanza de la Historia en ambas universidades.

140 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


es, las preguntas planteadas, los avances realizados, las condiciones de pro-
ducción, los diálogos y esfuerzos comunes) resulta un ejercicio analítico y
reflexivo de importancia. Para aquellas –como la nuestra– que se han erigido
hace relativamente poco tiempo como un espacio propio pero en el cruce de
varias disciplinas, no solo resulta necesario sino también conveniente puesto
que de una autorreflexión pueden surgir nuevas preguntas y proyecciones.
Finalmente, la posibilidad de pensar todo esto en diálogo con colegas de otros
países permite valorar avances, advertir vacancias, imaginar diálogos y planear
nuevas indagaciones que nos animen a continuar trabajando en el campo de
las investigaciones sobre la enseñanza de la Historia.

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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 141


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Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014.

Abreviaturas de instituciones argentinas

APEHUN: Asociación de Profesores de la Enseñanza de la Historia de


Universidades Nacionales de la República Argentina.
CAICYT: Centro Argentino de Información Científica y Tecnológica
(dependiente del CONICET).
CONICET: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas.
FLACSO: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales.
UBA: Universidad de Buenos Aires.
UNC: Universidad Nacional de Córdoba.
UNGS: Universidad Nacional de General Sarmiento.
UNL: Universidad Nacional del Litoral.
UNLP: Universidad Nacional de La Plata.
UNLPam: Universidad Nacional de La Pampa.
UNMdP: Universidad Nacional de Mar del Plata.
UNPSJB: Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco.
UNQ: Universidad Nacional de Quilmes.
UNR: Universidad Nacional de Rosario.
UNRC: Universidad Nacional de Río Cuarto.
UNSa: Universidad Nacional de Salta.
UNS: Universidad Nacional del Sur.
UNTREF: Universidad Nacional de Tres de Febrero.

142 MARÍA PAULA GONZÁLEZ


Pesquisa em Ensino de História:
desafios contemporâneos de um campo de investigação1

Carmen Teresa Gabriel2

(...) a teoria que é possível elaborar sobre a política


sempre estará marcada pela contingência, pela
historicidade, pelas múltiplas formas através das
quais tudo o que é, poderia ser (ter sido) diferente,
e sê-lo num dado momento.
(BURITY, 2008, p. 36)

Reafirmar a potência político-epistemológica da pesquisa em ensino de


História é o objetivo deste texto. A escolha da preposição em não é aleatória.
Seu uso é proposital para demarcar algumas fronteiras que, ainda que provi-
sórias e contingenciais, entendemos como incontornáveis quando se trata do
reconhecimento da singularidade de um campo de pesquisa cujo foco incide,
ou melhor, interessa-nos fazer incidir, sobre os contextos, sujeitos e objetos
envolvidos nos processos de produção e distribuição do conhecimento histó-
rico validado a ser ensinado nas escolas da Educação Básica. Pesquisar em (e
não sobre) ensino da História traduz um posicionamento nas lutas pela signi-

1 Este texto está diretamente relacionado a dois projetos de pesquisa em desenvolvimento sob
a minha coordenação: Currículo como espaço biográfico: conhecimento, sujeitos e demandas
(CNPq/Pq2/2015, Processo n° 308872/2015-0) e Currículo como espaço biográfico:
conhecimento, sujeitos e demandas em diferentes percursos formativos (Cientista do Nosso
Estado - CNE/FAPERJ, n° do processo E-02/2017).
2 Professora titular de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Atualmente exerce o cargo de diretora dessa mesma instituição. É bacharel
e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, possui Pós-graduação em
Estudos do Desenvolvimento pelo Institut d´Études du Développement - IUED, Mestrado e
Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Realizou Pós-doutorado na Université des Sicences Humaines de Lille 3 (França). E-mail:
carmenteresagabriel@gmail.com.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 143


ficação desse campo, que, como todo campo de conhecimento, é atravessado
por tensões e disputas pela hegemonia de um regime de verdade acerca de um
conhecimento específico. Trata-se, pois, de não confundir ou reduzir o signifi-
cado de campo de pesquisa a seu objeto de investigação.
Essa distinção em relação à escolha de uma ou outra preposição não é
um detalhe e, em função da opção assumida, apresenta desafios que exigem
investimentos diferenciados para o seu enfrentamento. Este texto argumenta
a favor do sentido fixado pela mobilização da preposição “em”, procurando
evidenciar os desafios que essa aposta significa nestes tempos que nos são
contemporâneos. Trago aqui uma interpretação possível a partir de escolhas
de posições políticas e de interlocuções teóricas que configuram a postura
epistêmica pós-fundacional (MARCHART, 2009) que vimos assumindo em
nosso grupo de pesquisa.3
Inscrita em um movimento teórico de radicalização das críticas formuladas
às perspectivas deterministas e essencialistas, a abordagem pós-fundacional
se propõe a enfrentar os efeitos teórico-políticos do reconhecimento do papel
crucial da contingência nas lutas pela significação do social. Em vez de apoiar-
-se em fundamentos últimos e metafísicos ao entrar nessas disputas, o pós-
-fundacionismo opera com a ideia de múltiplas possibilidades sempre abertas
à compreensão dos processos de definição das coisas – sonhos e pedras – e
sujeitos deste mundo. A crítica à ideia de essência tal como formulada nessas
abordagens implica reconhecer-nos, ou melhor, assumirmos as implicações
políticas e epistemológicas de nossa condição de ser na e da linguagem e que
é dessa e nessa condição que pensamos, significamos e agimos no mundo.
Essa postura traz, para a reflexão sobre a produção do conhecimento no
campo das ciências sociais, a dimensão ontológica (RETAMOZO, 2012). O
que está em jogo, afinal, é a complexa relação entre o pensamento, as palavras
e as coisas, entre o signo (significante e significado) e o referente, exigindo

3 Refiro-me ao Grupo de Estudos Currículo, Conhecimento e Ensino de História (GECCEH).


Fundado em 2006, no âmbito do Laboratório do Núcleo de Estudos Currículares (LaNEC/
FE/UFRJ), atualmente igualmente sob a minha coordenação, o GECCEH reúne alunos,
pesquisadores e professores da UFRJ e da Educação Básica – doutorandos, mestrandos e
alunos de iniciação científica, bem como pesquisadores e professores da UFRJ e da Educação
Básica. Ele tem por foco a abordagem discursiva da interface conhecimento, sujeito e poder
em diferentes contextos de formação, em particular na área do ensino de História. Além de
sua inscrição no LaNEC, tem parcerias com diferentes outros grupos de investigação, como
o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH/FE/UFRJ) coordenado
pela Profª Drª Ana Maria Monteiro, o Grupo de Pesquisa Oficinas de História (interinstitucional),
coordenado pela Profª Drª Helenice Rocha, e o Centre Interuniversitaire de Recherches en
Education de Lille (CIREL), do qual participa o Prof. Dr. Christophe Niewiadomski.

144 CARMEN TERESA GABRIEL


um diálogo com as teorizações do discurso que enfatizam o deslocamento da
compreensão da linguagem do texto para a tessitura do real, entendendo a
textualidade para além da linguística. A compreensão desse argumento pres-
supõe perceber uma inflexão na problemática do discurso que emerge, a partir
dos anos 1980, no âmbito das ciências sociais e políticas. Como aponta Burity
(2010), nessas análises, a linguagem sociologiza-se e politiza-se.
Nesse movimento teórico, não se trata de buscar um sentido último, mais
verdadeiro ou oculto das palavras articuladas em um texto quando analisa-
mos algum discurso. O desafio é justamente ficarmos no nível das palavras,
reconhecendo, ao mesmo tempo, que, ao fazê-lo, não estamos apenas com as
palavras. Como afirma Burity (2010), “se não há ação social sem significação”
(BURITY, 2010, p.11), toda significação está inserida – ainda que não na for-
ma estável e definitiva – em um discurso, na materialidade do dito. A luta he-
gemônica se dá, assim, em meio aos processos de significação a cada vez que
se disputa o preenchimento de um significante com efeitos universalizantes
nos sistemas discursivos.
É nessa postura epistêmica pós-fundacional mais ampla que se inscreve a
Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004). Nesse quadro
de inteligibilidade, “toda configuração social é uma configuração significativa”
(LACLAU, 2000, p. 114, trad. livre) resultante do enfrentamento permanente
da aporia da impossibilidade e da necessidade e/ou inevitabilidade de fecha-
mentos prévios que caracterizam qualquer processo de significação. Como
defende Marchart (2009), o pós-fundacionalismo não se confunde com um
antifundacionalismo. Segundo esse autor, não se trata da negação de todo
e qualquer fundamento, mas sim da problematização e desnaturalização do
estatuto ontológico de todo e qualquer fundamento. Não é por acaso que ca-
tegorias como “fundamentos contingentes”, “fronteira”, “hegemonia”, “deslo-
camento”, “descentramento” ou “antagonismo” são consideradas ferramentas
de análise potentes na abordagem discursiva pós-fundacional.
Isso significa que investir na definição de termos como “ensino de Histó-
ria”, “campo de investigação”, “desafios contemporâneos” é explicitar toma-
das de posição em meio aos múltiplos fluxos de sentidos mobilizados em con-
textos discursivos específicos. Contextos esses cujos contornos e limites não
são igualmente delineados previamente. Longe de pretender traçar um retrato
ou mapa dos estudos e pesquisas que têm por objeto o ensino de História, este
texto pode ser visto como um exercício teórico sobre “possibilidades interes-
sadas” em pensar o ensino de História como campo de investigação.
Organizei meus argumentos em três seções. Na primeira seção – Presente
como demanda – explicito um diagnóstico possível do contexto em que a aposta

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 145


sobre a qual se sustentam os argumentos deste texto está sendo pensada, a
partir da leitura política do mundo privilegiada nesta análise. A segunda – De-
mandas do nosso presente – focaliza os perigos e demandas de nosso presente que
interpelam a escola pública e, em particular, o conhecimento histórico escolar,
tendo em vista o pano de fundo esboçado anteriormente. Na terceira e última
seção – Sobre aporias e fronteiras na pesquisa em ensino de História – identifico al-
guns desafios colocados para esse campo face às demandas de nosso presente.

Presente como demanda

(...) há sim uma disputa pelo que há, pelo que está
acontecendo, pelo ‘para onde vão as coisas’. Em suma,
mais do que uma guerra de interpretações do mundo,
uma disputa hegemônica pelo mundo que vivemos.
(BURITY, 2010, p. 2)

A epígrafe escolhida para abrir esta primeira seção e o subtítulo a ela atribuído
dizem tanto do desejo de não estarmos alheios às graves questões sociais de
nosso tempo quanto da aposta nas infinitas possibilidades que temos de propor
leituras para essas questões e, desse modo, participarmos das lutas hegemôni-
cas em torno das verdades produzidas deste e neste mundo. Reconhecer assim
nossa imersão nesses problemas e possibilidades é investir no trabalho teórico,
entendendo que esse é um caminho possível de ação política no fazer pesquisa.
O diálogo com a abordagem pós-fundacional autoriza a explicitação do con-
texto que serve de pano de fundo para as reflexões aqui pretendidas, pressu-
pondo uma tomada de posição em termos das lutas pela sua significação. Para
tal, uma distinção conceitual se faz importante. Com efeito, nessa perspectiva,
o significante “Social”4 se diferencia de significantes como “sociedade” ou “or-
dem social”. O primeiro nomeia o campo da diferença em meio ao qual ocorrem
as infinitas práticas articulatórias que sustentam os processos de identificação/
definição. O Social é a abertura para outros possíveis. Já o entendimento – a
explicitação ou defesa de uma ordem social, de um contexto histórico, de uma
realidade sócio-histórica, de um projeto de sociedade – opera com fechamentos
que apresentam suturas contingenciais desse e nesse Social.
Quando definimos um contexto, estamos discursivamente mobilizando a
lógica da equivalência e a da diferença (LACLAU e MOUFFE, 2004). A pri-

4 A letra maiúscula é um recurso gráfico utilizado por alguns autores que se filiam a essa
abordagem para distinguir o social de sociedade ou de ordem social.

146 CARMEN TERESA GABRIEL


meira permite amenizar, aproximar as diferenças de sentido entre os signi-
ficantes e articular diferentes interesses em jogo. A segunda marca o corte
radical, a fronteira produzindo para fora da cadeia de equivalência o Outro, o
antagônico, que passa a desempenhar a função discursiva de exterior consti-
tutivo. Assim, qualquer leitura política do contexto contemporâneo – ou, se
preferirmos, da realidade histórica ou da realidade educacional – se inscreve
em um jogo da linguagem em meio ao qual se define o que está sendo qualifi-
cado como importante para sua identificação ou caracterização e, desse modo,
participa como momentos da cadeia de equivalência, e o que não está sendo
considerado como importante, necessário, e, como tal, é expelido para fora
dessa mesma cadeia. A fronteira entre o que é/está sendo e não é/não está sendo é
sempre contingencial e precária.
Nessa abordagem, o jogo político se inscreve justamente na disputa pela
demarcação dessas fronteiras, por meio da produção de diferentes dispositivos
que ora reforçam sentidos hegemônicos, ora os subvertem, produzindo outras
hegemonias e outros antagonismos. É justamente nessa perspectiva que os
significantes “político” e “política” (MARCHART, 2009; RETAMOZO, 2009,
2009a) se diferenciam. Enquanto o primeiro nomeia o momento da irrupção
dos antagonismos por meio de demandas5 formuladas em função dos interes-
ses em jogo, trazendo à tona a força da contingência, o segundo se resume na
tentativa de controlá-la, isto é, de estabilizar, universalizar, hegemonizar um
sentido particular em meio às múltiplas possibilidades potencialmente infini-
tas daquilo que está sendo disputado.
Falar em “presente como demanda” significa afirmar a potencialidade de
uma leitura política do social/político. O uso do termo “presente”, de forma
substantivada, tem por objetivo colocar em evidência as dimensões de espa-
cialidade (estrutura, sistema, exterior, interior, limites) e de temporalidade
(contingência, processo, duração, historicidade) mobilizadas pela teorização
do discurso aqui privilegiada para significar uma ordem social determinada.
Essa formulação aponta para um sentido de presente não apenas como pre-
sença, ou como um lugar de ação política entre diferentes grupos de interesse
que se confrontam em cada presente, mas também como um entrelugar, algo
vivo responsável pela mediação imperfeita e inacabada entre passados e futu-
ros, campos de experiência e horizonte de expectativas (KOSELLECK, 1990).

5 O termo demanda pode ser pensado a partir de uma petição/pedido, mas também pode
apresentar-se como uma reclamação/reivindicação. Na primeira forma, inicialmente, não
está presente uma ideia de conflito, o que não quer dizer que esse pedido não possa vir a
transformar-se em reclamação/reivindicação. Nesta, está presente um viés de interpelação
imperativa (LACLAU, 2005; RETAMOZO, 2009).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 147


A articulação entre presente e demanda, tal como aqui formulada, per-
mite igualmente positivar o sentido do significante “crise” mobilizado nas
análises políticas de nossa contemporaneidade. Mobilizar o termo “crise” – da
democracia, do sujeito, das identidades, das instituições públicas , de regimes
de historicidade (HARTOG,1996, 2007), do ensino de História, entre tantas
outras – na perspectiva pós-fundacional significa operar com esse significante
como possibilidade de combate ao esquecimento da contingência dos proces-
sos de significação. Essas crises são interpretadas como produtivas, na medida
em que são entendidas como desestabilizações de sentidos historicamente
hegemonizadas, abrindo assim, a possibilidade da produção de outras hege-
monias, outros antagonismos em meio aos processos de definição desses ter-
mos. Dito de outra maneira, permite reviver, paradoxalmente, o espectro da
modernidade, ou seja, que tudo pode ser diferente.
É, pois, em momentos de crise que é possível assistir a uma erupção de
demandas que traduzem insatisfações e condensam interesses de grupos es-
pecíficos em torno da disputa de significantes suficientemente potentes para
assumir a função discursiva de ponto nodal6 e, desse modo, estabilizar e uni-
versalizar provisoriamente um sentido particular.
Reconhecer as inúmeras crises que marcam nossos tempos é portanto,
afirmar a compreensão de um presente grávido de demandas de igualdade, de
diferença e de qualidade que interpelam nossa ordem social, nossas escolas e
o conhecimento que nelas são produzidos, reelaborados e distribuídos. Tendo
em vista o posicionamento, explicitado anteriormente, sobre o entendimento
do objeto de investigação privilegiado do campo de pesquisas em ensino de
História de forma articulada à Educação Básica, interessa-me investir, na pró-
xima seção deste exercício teórico, na nomeada “crise da escola pública demo-
crática” e, em particular, no que isso afeta o ensino da disciplina de História.

6 Na teorização do discurso laclauniano, “nenhum conteúdo particular traz inscrito em


sua especificidade ôntica seu significado numa formação discursiva. Tudo depende das
articulações diferenciais e de equivalência em que ele está situado” (LACLAU, 2013, p.
141). Nesse viés, a noção de prática articulatória simboliza a articulação estabelecida entre
elementos que, a partir de um “ponto nodal”, imbricam-se entre si, tornando-se momentos em
relação a uma determinada articulação estabelecida e fixando parcialmente determinados
sentidos hegemônicos.

148 CARMEN TERESA GABRIEL


Demandas de nosso presente

(...) não parece que faltam no mundo de hoje


situações ou condições que nos suscitem
desconforto e indignação e nos produzam
inconformismos.”
(SANTOS, 1999, p. 197)

Não é difícil concordar com a afirmação acima, de Boaventura de Sousa


Santos. Entre essas situações, interessa-me focalizar, nesta seção, as que en-
volvem diretamente a distribuição de um dos bens culturais públicos mais de-
sigualmente distribuídos em nossa sociedade: o conhecimento historicamente
acumulado, herdado e relançado pelas diferentes gerações (DERRIDA e ROU-
DENESCO, 2004). Como não se indignar com o fato de o fosso entre aqueles
que podem ter acesso e usufruir dos bens materiais e culturais disponíveis neste
mundo e aqueles que não estão em posição de acessar esses bens (e, muitas
vezes, tampouco de sonhar com eles) continuar aumentando? E, ainda, como
negar, minimizar ou desacreditar discursos nos quais a escola pública, em uma
sociedade desigual como a nossa, ainda possa significar, para muitos, o único
espaço possível para se constituírem como sujeitos e disputarem “novos papéis
num mundo mutante e em crise”? (VEIGA-NETO, 2000, p. 55).
A ênfase nesse tipo de injustiça traz para o debate o lugar da escola públi-
ca nesse processo de “transmissão de tal herança”. Como pensarmos em ou-
tros termos o que alguns discursos nomeiam de “crise da escola”, de maneira
a valorizar os conflitos a partir das demandas sociais que a interpelam? Como
mencionado na seção anterior, o significante “crise” pode ser compreendido, na
abordagem pós-fundacional, como o momento no qual as estruturas, ou me-
lhor, os processos de estruturação deixam maiores espaços para a liberdade.
Esse posicionamento não nos coloca, todavia, em um terreno menos con-
flituoso. Entre os que se indignam com as desigualdades e apostam na escola
pública, não existe consenso sobre a forma de reverter o jogo. A disputa tem
sido travada em torno de termos como “poder”, “saber”, “sujeito”, “cultura”,
“ciência”, “identidade”, “diferença”, “qualidade”, entre outros, que se articu-
lam em cadeias de equivalência para dar sentido à reinvenção da própria luta
política. E aqui utilizo o termo “sentido” tanto na perspectiva da significação
quanto na da direção que se pretende dar a essas lutas. O que está em jogo,
nos debates políticos do campo educacional, é a possibilidade de reinvenção
da escola em outros quadros de significação ou em outros terrenos de luta que
não sejam aqueles da modernidade que a inventou (GABRIEL, 2008, 2016).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 149


Quadros de significação esses que questionam e problematizam justamente
alguns conceitos como “verdade”, “razão”, “conhecimento”, “sujeito”, “eman-
cipação”, tais como mobilizados na fixação do sentido dessa instituição no
âmbito da modernidade iluminista.
Trata-se da disputa pelo controle da fronteira entre as estruturas significa-
tivas do que é e não é escolar. Caberia, então, perguntar-nos: o que queremos
adjetivar como escolar? Onde fixar a fronteira do que é e não é escolar? Qual
o papel da escola na construção de espaços de luta contra a desigualdade e,
simultaneamente, de reconhecimento da diferença? Como o espaço escolar
– lócus de articulação de diferentes demandas – poderia enfrentar o tipo de
injustiça social cognitiva (SANTOS, 2010) acima mencionado? Como, em
tempos de crise das instituições de ensino, nos posicionarmos teoricamente
em relação às lutas hegemônicas pela produção de cadeias de equivalência de-
finidoras de “conhecimento escolar/acadêmico” e “sujeito do conhecimento”?
Essas questões podem ser uma forma produtiva de entrarmos na luta política
por um projeto de escola pública laica e democrática, recebendo e relançando a
herança, reafirmando-a e reinterpretando-a, do lugar de herdeiros, ao infinito.
Que outra maneira, então, de pensarmos a escola, sem ser como um ob-
jeto pleno possível? Os inúmeros nomes e adjetivos – “capitalista”, “laica”,
“democrática”, “de qualidade”, “sem partido” – que atribuímos à escola pú-
blica não deixam de ser indícios dos diferentes discursos que disputam, na
fronteira, o sentido de escolar. O desafio consiste em olharmos a escola sem
buscarmos a sua essência, a sua positividade plena e transparente, mas olhá-
-la por aquilo que o escolar mobiliza no jogo da linguagem, o que ele coloca
para dentro de sua cadeia de equivalência e o que exclui, deixa para fora, seu
exterior constitutivo (a cadeia do “não-escolar”). Importa trabalhar pois, na
margem, nos limites, e analisar as demandas que lhe são endereçadas, fru-
tos de insatisfações e reivindicações de diferentes sujeitos – família, Estado,
movimentos sociais, professores, alunos, pesquisadores – que investem, por
diferentes razões e interesses, na produção de sentidos de escola.
Com efeito, vivemos nessas últimas décadas uma expansão das demandas
em relação à escola pública no Brasil. Às demandas históricas de igualdade
expressas nas lutas pela democratização do acesso – uma escola para todos/
as –, vieram se acrescentar as demandas de diferença de diversos movimentos
sociais que reivindicam o seu reconhecimento no espaço escolar (movimento
negro, movimento indígena, movimento feminista, movimento LGBT). Essas
demandas, que atravessam as lutas hegemônicas em nossa contemporaneida-
de, encontram na escola terreno fértil para as suas articulações. Do mesmo
modo, a estrutura escolar, como formação discursiva, frente a essas demandas

150 CARMEN TERESA GABRIEL


que tensionam suas fronteiras, seus limites, produz deslocamentos e investe
em novos sentidos, reafirma posições.
Atribuir à escola as funções de socialização, de subjetivação e de qualifica-
ção (BIESTA, 2012) implica pensar igualmente a singularidade dos dispositi-
vos por meio dos quais essas funções podem ser exercidas. Entendendo que
as instituições escolares não são as únicas a desempenharem tais funções,
importa sublinhar o que as identifica ou as singulariza quando mobilizadas no
âmbito de uma instituição escolar. Temos argumentado (GABRIEL, CASTRO,
2013; GABRIEL, 2008, 2018) que essa singularização envolve a mobilização
da relação com o conhecimento escolar, considerado como equacionamentos
estáveis resultantes da imbricação e hegemonização de processos de signi-
ficação em torno de significantes, como, por exemplo, “ciência”, “cultura”
e “poder”. Essas imbricações, produzidas em meio a operações discursivas
hegemônicas, têm sido analisadas e denunciadas, há mais de três décadas,
pelos estudiosos do campo do currículo, que oferecem subsídios teóricos con-
sistentes para pensar os processos de produção e de distribuição do conheci-
mento escolar. No que concerne diretamente ao foco deste texto, refiro-me ao
“conhecimento disciplinarizado” (GABRIEL, FERREIRA, 2012) e, de maneira
mais específica, ao conhecimento histórico disciplinarizado na Educação Bá-
sica, reconhecendo o seu potencial heurístico para a reflexão sobre a pesquisa
em ensino de História.
Considerado como crucial na definição do escolar (GABRIEL e CASTRO,
2013), o conhecimento disciplinarizado (GABRIEL e FERREIRA, 2012) é
aqui defendido como marca da condição escolar que, ao assumir o lugar da
fronteira, controla os fluxos dos discursos e faz a gestão das demandas que são
endereçadas a essa instituição. Isso significa reconhecer – ou investir no reco-
nhecimento – que, no processo de fixação de um sentido de escolar, “a relação
com o conhecimento” que se estabelece no âmbito dessa instituição assume
posição de destaque, com potencial para ocupar o lugar de ponto nodal.
Em termos das lutas pela definição do conhecimento histórico escolar, as
imbricações mencionadas anteriormente tendem a ser mais facilmente iden-
tificáveis pela própria natureza desse conhecimento, marcada pela sua dupla
inscrição axiológica e epistemológica. Não é por acaso que os debates curricu-
lares recentes em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dessa
área disciplinar foram marcados por polêmicas que extrapolaram os limites da
comunidade de historiadores e professores de História, com ampla divulgação
pela grande mídia. O que estava (e está) em jogo não era (é) apenas a de-
sestabilização de matrizes historiográficas historicamente hegemonizadas nos
processos de produção do conhecimento escolar. As disputas sobre a seleção

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 151


de certos conteúdos – ou de periodizações – em detrimento de outros tradu-
ziram e traduzem as lutas pela hegemonização de narrativas de brasilidade e
de projetos de sociedade.
As demandas de diferença e de igualdade que interpelam a escola em nos-
sa contemporaneidade encontram no currículo de História um terreno fértil,
um campo político de tensionamento em que são disputados diferentes me-
mórias e projetos, e em que diferentes passados e futuros são articulados. O
apelo à volta às raízes, às origens, formulado no seio dos movimentos sociais
que disputam o cenário político contemporâneo, pode ser visto, por exemplo,
como estratégia discursiva, por meio da mobilização do conhecimento histó-
rico, para reafirmar identidades negadas ou subalternizadas e/ou subverter
narrativas históricas hegemonizadas nessa disciplina escolar.
As questões que envolvem a função política desse conhecimento, evi-
denciam a importância e relevância de pensar a História ensinada como uma
configuração epistemológica e axiológica específica, produzida em condições
singulares que precisam ser melhor compreendidas e exploradas, tanto pelos
pesquisadores quanto pelos professores dessa área.

Sobre aporias e fronteiras na pesquisa em ensino de História

Pois em definitivo o outro é objeto da história, de maneira incontornável.


Ele talvez tenha estado menos no centro da pesquisa histórica quando a
história focalizava mais o acontecimento, ou quando ela era uma história
política ou diplomática. Ele ocupa um lugar mais central devido às novas
preocupações como o estudo das representações ou como o interesse em rela-
ção à subjetividade do outro passado. Dito de outra forma, quando o outro não
é de forma explícita o centro do pensamento epistemológico histórico, uma
concepção do outro, da relação com o outro está, apesar de tudo, presente e
em ação. (DALONGEVILLE, 2001, p. 92, trad. livre, grifos meus)

Esta última seção se estrutura em torno da ideia de que existe um espaço


saturado de discursos diversos e múltiplos que disputam a fixação do signifi-
cado de “ensino da História” e de campo de pesquisa em ensino de História:
discursos do senso comum, da historiografia, da pedagogia, dos estudos da
diferença, da filosofia, da militância, das organizações internacionais, entre
tantos outros. O meu propósito, nesta seção, é evidenciar, nesse espaço dis-
cursos, algumas aporias e fronteiras, nas quais considero instigante investir,
tendo em vista a leitura política de nosso presente brevemente apresentada
nas duas seções anteriores.

152 CARMEN TERESA GABRIEL


Importa sublinhar que, na abordagem discursiva pós-fundacional, a aporia
deixa de ser uma contradição lógica, uma impossibilidade sem lugar próprio,
e passa a ser vista como uma impossibilidade positiva, com função discursiva
na constituição do social. Essa ressignificação nos oferece, do ponto de vista
teórico-metodológico, a possibilidade de operarmos na tensão, não mais por
escolha, mas como a própria condição do pensamento. Assim, na reflexão
aqui proposta, as aporias evidenciadas no processo de significação da História
ensinada na Educação Básica não são apreendidas como tensões entre pares
binários dicotômicos que devem ser superadas. Elas indicam a singularidade
da ambivalência instituinte do conhecimento histórico objetivado como con-
teúdo disciplinar na Educação Básica.
De modo semelhante, cabe destacar o sentido de fronteira no quadro de
inteligibilidade com o qual operamos. Embora reconheça a potencialidade ana-
lítica da expressão um “lugar de fronteira” (MONTEIRO, 2007; MONTEIRO e
PENNA, 2011), mobilizado para sublinhar a condição de entrelugar do ensino
de História entre diferentes campos disciplinares ou áreas de conhecimento,
interessa-me explorar aqui menos a dimensão de interseção/diálogo do que a de
corte radical ou ruptura que o significante fronteira tende igualmente a nomear.
Nessa perspectiva, caberia interrogar: o que colocar para dentro de uma
cadeia definidora desse campo? Que contribuições/filiações? Quais regimes
de verdade? Que problemas de pesquisa e objetos de investigação privilegiar?
E sobretudo: o que seria o outro/o antagônico: aquele que ficaria de fora dessa
cadeia, mas que é simultaneamente condição de sua definição? O que seria
um “não ensino de História”? Qual elemento poderia ocupar essa função dis-
cursiva de fechar, ainda que provisoriamente, o significado de um campo de
pesquisa em ensino de História?
As respostas a essas questões, como venho assinalando ao longo deste
texto, não se encontram previamente prontas, à espera de serem desveladas
e legitimadas. Elas são produzidas contingencialmente por meio de trabalho
teórico permanente na fronteira definidora desse campo de investigação. Dito de
outra forma, esse entendimento pressupõe reconhecer a potencialidade heurística
das tensões que atravessam e instituem o pensamento histórico e, simulta-
neamente, investir no deslocamento e reinvenção de suas fronteiras definidoras,
ainda que contingencialmente. Como já explicitado, se as fixações de sentidos
para os significantes “campo” e “objeto de investigação” não se confundem, suas
respectivas definições estão relacionadas. Afinal, definir um campo de pesqui-
sa em ensino de História implica, igualmente, um posicionamento em meio às
disputas em torno da fixação de um sentido sobre o seu objeto de investigação
privilegiado, isto é, sobre o próprio sentido de “ensino de História”.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 153


Em termos de fronteiras hegemonizadas do campo discursivo “pesquisa
em ensino de História”, as tensões que merecem ser repensadas dizem respei-
to às que envolvem a sua própria identidade, isto é, o lugar que a “pesquisa em
ensino de História” ocupa no conjunto das investigações em ciências sociais,
tendo em vista a sua dupla inscrição em campos disciplinares distintos, par-
ticularmente os da História e da Educação. Como explicitado anteriormente,
este texto, ao mobilizar a preposição em, investe mais na possibilidade de reco-
nhecer um campo de pesquisa singular do que na de considerar, de forma iso-
lada, os diferentes enfoques privilegiados em múltiplos campos de pesquisas.
Assim, em vez de apostarmos na ideia de uma pluralidade de pesquisas sobre
ensino de História, sejam elas de cunho didático, curricular, histórico, socio-
lógico ou filosófico, interessa-nos pensar de outra forma a articulação entre as
contribuições dessas diferentes áreas de conhecimento na constituição de um
campo de pesquisa cujo objeto de investigação privilegiado é nomeado como
“ensino de História”.
Esse entendimento autoriza desestabilizar algumas fronteiras hegemoni-
zadas que tendem a colocar “ensino” em posição subalternizada na cadeia
de definição da “ciência histórica”. Nessa perspectiva, é possível perceber a
presença de discursos que, direta ou indiretamente, enfraquecem ou desquali-
ficam o campo educacional, insistindo em situá-lo no lugar da prática, enten-
dida como um lugar de vazio epistemológico, esvaziado de teoria. Enquanto o
primeiro é percebido como lugar de prestígio, de produção do conhecimento
histórico, o segundo tende a ser significado como um lugar menor, de aplica-
ção do conhecimento produzido pelo/no primeiro. O argumento aqui susten-
tado vai na contramão dessa compreensão. A defesa de um campo de pesquisa
em ensino de História como campo de produção de conhecimento não se apoia
em discursos políticos ou acadêmicos que operam com visões reducionistas
e essencialistas de temas como “didática”, “currículo”, “formação de profes-
sores”, clássicos do campo educacional. Isso pressupõe o enfrentamento com
o desafio histórico de romper com posições hierarquizadas entre os campos
de conhecimento – História e Educação – que dificultam ou impossibilitam
o diálogo entre eles. Como fazer dialogar campos disciplinares posicionados
historicamente por relações assimétricas de poder resultantes de processos de
estruturação, diferenciação e hierarquização dos sistemas de saberes?
Qualquer tentativa de resposta a esse tipo de questionamento pressupõe
explicitar o posicionamento assumido em meio às disputas pela fixação do
próprio sentido de “ensino de História”. Para tal, apoio-me na citação de Da-
longeville (2001) trazida como epígrafe desta seção. Ao afirmar que “o outro é
objeto da história, de maneira incontornável”, sublinhando a sua centralidade
devido ao “interesse em relação à subjetividade do outro passado”, esse autor

154 CARMEN TERESA GABRIEL


traz à tona duas categorias instituintes do pensamento histórico – temporali-
dade e alteridade – que, no nosso entender, desempenham a função discursiva
de corte radical entre o que é/está sendo e o que não é/não está sendo significado
como “ensino de História”.
A primeira categoria – temporalidade – nos remete aos debates teóricos
do campo da História sobre a categoria “tempo” e seu papel como elemento
estruturante do pensamento histórico, bem como ao epicentro de uma das
tensões que atravessam o ensino dessa disciplina desde a década de 1980. Re-
firo-me à problematização da visão linear e progressista do tempo histórico di-
retamente associada à chamada ‘história tradicional’, caída em “desgraça”, há
quase quatro décadas, nos debates teóricos do campo da historiografia escolar.
Uma leitura rápida das propostas oficiais de reforma curricular da disci-
plina de História nos últimos trinta anos aponta a recusa unânime, pelo me-
nos em termos de intencionalidade, nos currículos escolares de uma matriz
historiográfica escolar baseada nessa noção de temporalidade, muitas vezes
chamada de “história narrativa tradicional”.7 As propostas de um ensino de
História “conceitual, “temático”, por “eixos temáticos”, que emergem desde
os anos 1980, são propostas que se querem alternativas a essa matriz, desde
então considerada obsoleta e conservadora.
Essas novas propostas de configuração do conhecimento histórico esco-
lar não resolveram, no entanto, de forma satisfatória, no nosso entendimen-
to, a questão da reelaboração didática do tempo histórico, comprometendo
a própria possibilidade de inteligibilidade desse conhecimento por parte dos
alunos. Essa constatação extrapola uma preocupação de ordem pedagógica
e assume dimensão política quando sabemos que ela se situa em tempos de
intensa presentificação, nos quais a reflexão no e com o tempo torna-se um
referencial crítico importante na produção de outras leituras de mundo.
Com efeito, a inauguração de um novo regime de historicidade a partir da
segunda metade do século XX, identificado, por alguns estudiosos, como uma
verdadeira “crise da historicidade”, traz como um de seus sintomas mais visí-
veis a aceleração do ritmo das transformações, que tendem a esgarçar os fios
das tramas que se tecem entre “espaço de experiência” e “horizonte de expec-
tativa” (KOSELLECK, 1990). Percebidas como uma possibilidade teórica, uma

7 A perspectiva teórica com a qual trabalhamos permite demonstrar que o termo “narrativa” é
comumente mobilizado nas críticas à história “tradicional” como uma metonímia pela qual um
tipo particular de narrativa confunde-se com a própria estrutura narrativa configuradora do
conhecimento histórico. Essa metonímia “fez escola” e deixou consequências profundas que
ainda persistem na compreensão dessa disciplina entre historiadores e professores de História.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 155


condição do pensamento histórico, exercendo, pois, uma função discursiva na
escrita da História, essas duas categorias seriam as guardiãs da historicidade
na qual sujeitos, instituições e práticas sociais estão imersos.
Cada presente traz, pois, a marca dos equacionamentos buscados e dispu-
tados por essa tensão entre experiência e expectativa. A marca do regime de
historicidade contemporâneo carregaria, assim, a ideia de um presente que
se eterniza, fazendo com que os sentidos de termos como “tradição” e “uto-
pia” – tais como hegemonicamente fixados até então – sejam desestabilizados.
Tempos, pois, incertos e paradoxais em suas implicações epistemológicas e
políticas na construção de um quadro de inteligibilidade do mundo.
Refletir sobre os sentidos de temporalidades que circulam no conhecimen-
to histórico ensinado nas escolas da Educação Básica se apresenta, hoje, como
um desafio à espera de um enfrentamento mais consistente, tanto do ponto de
vista teórico quanto do político, permitindo a afirmação da função política desse
conhecimento face às crises e às demandas de nosso presente. Como articular a
noção de processo sem realimentar uma visão monocultural do tempo histórico
(SANTOS, 2006; ARAÚJO, 2014), nem tampouco fragmentar ou pulverizar as
experiências temporais a ponto de negar qualquer possibilidade de produção de
uma síntese do heterogêneo (RICOEUR, 2010) entre passado, presente e futuro?
A segunda categoria – alteridade –, por sua vez, permite acessar os deba-
tes contemporâneos que giram no campo das ciências sociais em torno da
produção de identidade e da diferença. Dito de outro modo, a questão do
outro (IRIGARY, 2002) envolve processos de subjetivação e de identificação
em meio à produção e à afirmação da diferença, evidenciando o papel que
o conhecimento histórico e, em particular, o seu ensino na Educação Básica
desempenha para a compreensão e posicionamento no combate às visões ra-
cistas e preconceituosas na produção de leituras do mundo.
Expressões como “crise das identidades”, “explosão de identidades”, “frag-
mentação de identidades” são utilizadas, em diferentes campos disciplinares,
na tentativa de nomear experiências, vivências, práticas sociais presentes nes-
te mundo que nos é contemporâneo. A escola e, em particular, a disciplina
escolar de História não podem ficar imunes a essas discussões, sob pena de
desestabilizarem discursos em torno dos quais suas respectivas “razão de ser”
foram inventadas e reinventadas ao longo de suas trajetórias. Afinal, a emer-
gência da escola pública e da disciplina escolar História, entre outras, não se
insere em uma pauta política mais ampla de construção dos Estados Nacio-
nais? Nesse processo, são mobilizados sentidos particulares do outro-passado
para a produção de narrativas de brasilidade. Além disso, as demandas de dife-
rença formuladas no seio dos movimentos sociais que participam e ocupam o

156 CARMEN TERESA GABRIEL


cenário político atual da sociedade brasileira mobilizam, de diferentes formas,
as articulações com o passado para reafirmar seus pertencimentos identitários
e se fortalecerem na luta contra o silenciamento dos processos históricos con-
densados nos corpos desses sujeitos. Não é por acaso que memória é igual-
mente um território cada vez mais disputado nos dias que correm.
Essas constatações sobre a interface ensino de História – processos de iden-
tificação e de subjetivação no e com o tempo – produzem efeitos diretos sobre o
processo de seleção e distribuição do conhecimento histórico escolar legitimado
como válido a ser ensinado nas escolas da Educação Básica. Frente às demandas
e exigências do nosso presente, como repensar essa função política atribuída
historicamente à disciplina História? Que perfil de “cidadão” a escola do início
do século XXI pode e deve contribuir para formar? Que concepção de identida-
de a escola deve reforçar, estimular ou até mesmo combater? Como articular,
nas aulas dessa disciplina, nas propostas, nos livros didáticos de História do
Brasil, por exemplo, as tensões de cada presente oriundas do confronto entre as
múltiplas visões do outro-passado e as múltiplas possibilidades de futuro? Que
outros passados, presentes e futuros nos interessam colocar para fora da cadeia
que define um currículo de História democrático e subversivo neste nosso pre-
sente prenhe de demandas? Sabendo, todavia de antemão, que, nesse caso, não
haverá nunca uma única resposta, mas sim disputas para fixar como universais
aquelas pelas quais acreditamos que vale a pena lutar.
Temporalidade, identidade e diferença tornam-se, assim, chaves de leitura
potentes na pesquisa em ensino de História, aguçando o olhar na direção da
construção de um quadro teórico que possa dar conta das razões pedagógica e
histórica que estão em jogo nas definições tanto do objeto quanto do próprio
campo do Ensino de História.
É nessa direção que vimos investindo, no GECCEH, em um quadro teóri-
co híbrido, construído a partir das contribuições dos estudos curriculares de
matriz pós-estruturalista, das abordagens discursivas pós-fundacionais e das
teorizações da História que dialogam com os estudos narrativos e biográficos,
com o intuito de trabalhar, de forma articulada, temporalidade e identidade
na reflexão sobre o campo de pesquisa, aqui privilegiado. Nesse movimen-
to, categorias analíticas como “narrativa” e “identidade narrativa”, tais como
formuladas no âmbito da hermenêutica de Ricoeur (1990, 2010), assumem
lugar de destaque em nossas pesquisas e produções dessa última década (GA-
BRIEL, 2011, 2012, 2014; GABRIEL e MONTEIRO, 2014). Alguns trabalhos
(GABRIEL e COSTA, 2011) buscam focalizar os mecanismos discursivos mo-
bilizados em meio aos jogos de linguagem e aos jogos do tempo na configu-
ração narrativa do conhecimento histórico escolar. Outros (GABRIEL, 2012)

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 157


focalizam as formas de visitar o passado hegemonizadas nas aulas de História
e/ou no material didático utilizado nessa disciplina escolar. Em outras opor-
tunidades (GABRIEL, 2013, 2014; GABRIEL e COSTA, 2010; DOMINGUES
e GABRIEL, 2018), exploramos as identidades narrativas fixadas nos textos
curriculares dessa área de conhecimento, procurando destacar as tensões entre
as narrativas nacionais estabilizadas na historiografia e as narrativas produzi-
das por grupos étnicos cujas histórias tendem a ser silenciadas ou aparecem
de forma subalternizadas nessas tramas discursivas. Mais recentemente, temos
explorado (GABRIEL, MARTINS, 2016) o sentido de sujeito histórico fixado
nos textos curriculares, pondo em evidência a aporia sujeito e estrutura na con-
figuração narrativa legitimada, por exemplo, nos livros didáticos de História.
Nesses enfoques, partimos da compreensão de que a cultura histórica à
qual os alunos e alunas da Educação Básica têm acesso (ou defendemos que
deveriam ter) consiste justamente no entendimento de nossa inscrição como
seres sociais-singulares nos processos permanentes da estruturação tempo-
ral de nossa existência, envolvendo, assim, questões de passado, presente e
futuro reelaborados, contingencialmente, no âmbito de uma cultura escolar.
Nessa perspectiva, como tenho argumentado (GABRIEL, 2015), o conheci-
mento histórico escolar ensinado e aprendido na Educação Básica poderia ser
percebido como resultante de um processo de didatização/curricularização da
“cultura histórica” nas tramas da “cultura escolar”.
Argumento ainda que qualquer tentativa de definição de um campo de pes-
quisa em ensino de História pressupõe o reconhecimento de deslocamentos que
permitam romper com binarismos enraizados, tais como teoria e prática, Histó-
ria e Pedagogia, ciência e valores, e, simultaneamente, dar visibilidade a outras
possibilidades de fechamentos ou suturas impossíveis e inevitáveis para que
qualquer processo de significação se efetive, ainda que de forma provisória.
Essas breves pontuações e provocações não pretendem esgotar, nem tam-
pouco elucidar, quadros teóricos de tamanha densidade. Meu propósito foi
oferecer uma possibilidade de leitura, entre tantas outras possíveis, procu-
rando explicitar os argumentos que a sustentam e que justificam investir em
alguns traçados presentes nos debates do campo de ensino de História face às
demandas de nosso presente. Se concordarmos que “sentidos coletivos con-
vocados em cada elaboração da demanda se convertem, por consequência, em
um espaço analítico de relevância que pode ser investigado de forma rigorosa”
(RETAMOZO, 2009, p. 117), torna-se possível reconhecer, na reflexão aqui
esboçada sobre a pesquisa em ensino de História face às demandas de nosso
presente, uma linha potente a ser explorada para pensar política e, epistemo-
logicamente, esse campo, a partir de um outro lugar epistêmico.

158 CARMEN TERESA GABRIEL


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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 161


Vestígios de leituras e escritas nas rotinas cotidianas do
Ensino de História no Brasil (décadas de 1930-1960)

Cristiani Bereta da Silva1

Introdução

A discussão aqui proposta faz parte de um projeto mais abrangente que


investiga o ensino de História do Brasil no contexto da vigência dos exames
de admissão ao Ginásio (primeiro ciclo do Secundário), nas décadas de 1930
a 1970.2 A pesquisa focaliza as práticas culturais, como as de leitura e escrita
relacionadas ao ensino. Nessa direção, a ideia é pensar tanto a História do Brasil
prescrita e dada a ler aos estudantes e professores do período quanto suas resso-
nâncias entre esses sujeitos, em particular, e a sociedade, de modo geral. O re-
corte temporal é dado pela obrigatoriedade dos exames de admissão ao Ginásio,
instituída com a Reforma Francisco Campos, pelo Decreto no 19.890/1931, que
reformou o ensino Secundário e perdurou oficialmente até a Lei no 5.692/1971,3
que fixou diretrizes e bases para o ensino de 1o e 2o graus.

1 Professora do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e


Profissional em Ensino de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutora
em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003). E-mail: cristianibereta@gmail.com
2 Trata-se do projeto Exames de admissão ao ginásio e o ensino de História do Brasil (décadas de
1930-1970) – Segunda Fase, financiado desde 2013 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), com concessão de bolsa produtividade em pesquisa. A segunda
fase da pesquisa foi aprovada para o triênio 2016-2019 (Processo 310995/2015-9).
3 Os ensinos Primário e Secundário, no decorrer desse período, organizavam-se do seguinte
modo: até 1946, o ensino Primário era mais concretamente normatizado pelos estados e
duravam três, quatro ou cinco anos, a depender do tipo de escola e sua localização (área
de colônia, rural, urbana, etc.). Muito embora tais especificidades na organização desse
nível de ensino tenham se mantido até a década de 1970, o Decreto-Lei no 8.529/1946
definiu finalidades e passou a organizá-las no âmbito federal. Ele foi dividido em dois cursos
sucessivos: elementar (duração de quatro anos) e complementar (duração de um ano).
O ensino Secundário foi organizado por meio da Reforma Francisco Campos (Decreto no
19.890, de 1931), que implantou os exames de admissão e o dividiu em dois cursos seriados:
fundamental (com duração de cinco anos) e complementar (com duração de dois anos), este

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 163


Por quatro décadas na História da Educação no Brasil, estudantes que ter-
minavam o Primário e desejavam fazer o Secundário eram obrigados a se sub-
meter a provas orais e escritas em quatro áreas de conhecimento: Português,
Matemática, História do Brasil e Geografia.4 Muito embora tenham sofrido
mudanças ao longo de sua vigência, em linhas gerais podem-se descrever os
exames de admissão ao Ginásio da seguinte forma: o candidato à matrícula na
1a série do Secundário deveria ter a idade mínima de 11 anos e prestar o exame
na segunda quinzena de fevereiro (uma alteração iria permitir sua realização
em dois períodos: dezembro e fevereiro). A inscrição para o exame deveria ser
feita nas instituições de ensino Secundário (públicas ou privadas) nas quais o
estudante desejasse estudar e envolvia a apresentação de diferentes documen-
tos, como certificados de vacinas, foto 3x4, etc., além do pagamento de uma
taxa (inclusive nas instituições públicas). As provas eram realizadas nessas
instituições e também cabia a elas fixar as vagas existentes para a 1a série, bem
como elaborar as provas, seguindo os programas oficiais. A avaliação também
era de sua responsabilidade, ocorria por meio de uma banca composta por três
professores, sob a fiscalização do inspetor responsável pela instituição.
Esta pesquisa, prevista para ser concluída em 2019, parte do pressuposto de
que os dispositivos de funcionamento desses exames provocaram mudanças tan-
to na organização do currículo quanto nas finalidades de cada disciplina selecio-
nada para os testes: como acima mencionado, Português, Matemática, História do
Brasil e Geografia. Entende-se que essa dimensão é consequente para os estudos
sobre a história das disciplinas escolares ou, ao menos, sobre a conformação de
saberes no interior de uma dada disciplina. Segundo André Chervel, os exames
exercem um papel regulador sobre a disciplina escolar, chegando mesmo a alte-
rar as finalidades inicialmente prescritas pelas políticas educacionais (CHERVEL,
1990). Analisa-se que as escolhas dos conteúdos relativos à História do Brasil
feitas pelas escolas secundárias, a partir dos programas oficiais, contribuíram para
reorganizar o próprio ensino dessa matéria no Primário, haja vista a necessidade
de preparação para os exames, realizada tanto no ensino regular quanto em cur-
sos ministrados especificamente para preparar as crianças.

último exigido para o acesso a alguns cursos superiores. Em 1942, esse nível de ensino
sofreu nova alteração com a Reforma Gustavo Capanema (Decreto-Lei no 4.244). Ele foi
dividido em dois ciclos: um primeiro de quatro anos, chamado de Ginásio, e um segundo
de três anos, chamado de Colegial (com dois tipos de curso: Científico e Clássico). Essa
organização foi alterada pela Lei no 5.692, de 1971, que extinguiu os exames de admissão e
unificou o ensino Primário com o Ginásio, constituindo o Primeiro Grau, com duração de oito
anos, e o Segundo Grau, com duração de três anos.
4 O programa de Ciências Naturais também constava das provas orais dos exames, mas foi
suprimido pela Portaria 681-A, de 30 de novembro de 1942 (BRASIL, 1942).

164 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Neste texto, apresentam-se algumas questões relativas a práticas de escrita e
de leitura relacionadas à história escolar no processo de escolarização de crianças
e jovens na transição do Primário para o Ginásio, mais especificamente o preparo
para os exames que dariam acesso a esse nível de ensino e seu percurso nas décadas
de 1930 a 1960. As fontes históricas inventariadas na investigação citada fornecem
vestígios de que a seleção dos conteúdos, as leituras, as práticas escriturárias e orais
solicitadas para os exames eram próximas daquelas formalizadas no decorrer do
Secundário, como provas escritas e orais, que continham perguntas em torno de
pontos sorteados e também exigência de textos dissertativos. Do corpus documental
amplo e diversificado da pesquisa5 foram selecionadas, para esta discussão, provas
de História escritas por estudantes e localizadas na Escola Estadual de São Paulo.6
Complementares a essas fontes, também foram utilizados outros dois conjuntos
de documentos: um conjunto referente a relatórios a respeito da adoção de livros
e sobre os conteúdos de História selecionados, e outro de memórias sobre os tem-
pos de escola – por meio de entrevistas orais e narrativas escritas – de professoras
aposentadas que estudaram e/ou trabalharam no período recortado. As memórias
indicam pistas sobre os usos dos livros preparatórios para a realização dos exames
de admissão ao Ginásio e outras rotinas de estudo que continham práticas de leitu-
ra e escrita. Tais documentos foram pesquisados em três diferentes escolas: Escola
Estadual de São Paulo (único lugar em que, nos prontuários dos estudantes, consta-
vam provas parciais e exames), Colégio Catarinense7 e Colégio Coração de Jesus.8

5 Fazem parte dele: entrevistas orais, blogs, sites, livros preparatórios para os exames
de admissão ao Ginásio, correspondências e materiais de divulgação das editoras que
publicaram dois dos livros mais vendidos entre as décadas de 1950 e 1970, relatórios de
diferentes escolas sobre os exames, avaliações de História do Brasil e outras áreas realizadas
por estudantes no período, entre outros.
6 São Paulo, capital. Fundado em 1894 como Ginásio do Estado da Capital, foi o primeiro
ginásio público de São Paulo. Ao longo de sua história, teve diferentes nomes e também
endereços. No presente situa-se no centro da capital paulista, junto ao Parque Dom Pedro II.
7 Florianópolis, Santa Catarina. Fundado em 1892 e refundado em 1894 como Ginásio
Catarinense, por iniciativa do poder público estadual. Em 1905, porém, a partir de uma aliança
entre os poderes públicos catarinenses e o alto clero católico, foi entregue à Companhia de
Jesus. “Até o final da década de 1920, o colégio dos jesuítas – que também se chamaria
Ginásio Catarinense – foi o único estabelecimento de ensino secundário oficializado em Santa
Catarina, provocando uma hiper elitização da escolarização média que habilitava e preparava
para o ingresso nos cursos superiores” (DALLABRIDA; CARMINATI, 2007, p. 16).
8 Florianópolis, Santa Catarina. Fundado em 1895 pelas Irmãs da Divina Providência como colégio
feminino. Até 1912 se dedicou exclusivamente à educação primária e pré-primária – o ginásio
passaria a funcionar em 1935 e o científico em 1947, completando o Secundário. A coeducação
passou a ser praticada a partir de 1970 (MARTINI, 2011). Atualmente pertence ao Grupo Bom
Jesus, do Paraná, ligado à Ordem Franciscana, e se chama Bom Jesus Coração de Jesus.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 165


As questões aqui levantadas pertencem ao campo da investigação da histó-
ria das disciplinas escolares (BITTENCOURT, 2003; CHERVEL, 1990), o qual
não pode ser estudado à margem da cultura escolar, compreendida como um
conjunto de práticas, normas, ideias, procedimentos que informam modos
particulares de razão, ação e organização dos diferentes sujeitos que consti-
tuem a instituição escolar num determinado tempo e espaço (JULIA, 2001;
VIÑAO FRAGO, 1995). Tal conceito articula-se também com outras culturas
que lhe são contemporâneas, como a cultura escrita, tal como a proposta por
Castillo Goméz (2002; 2003; 2012), que visa superar a distinção tradicional
entre a história da escrita, por um lado, e a história do livro e da leitura, por
outro, para fazê-las convergir para um espaço comum: o da história social da
cultura escrita, cuja tarefa seria: “el estudio de la producción, difusión, uso y
conservación de los objetos escritos, cualquiera que se a su concreta materia-
lidad – del documento oficial a la carta privada – o soporte – de la tablilla de
arcilla a la pantalla electrónica” (CASTILLO GÒMEZ, 2002, p. 19).
Sobre a história das disciplinas escolares na França, Jean Hébrard destaca
que “historicamente a escola não pode ser considerada o único lugar – nem
o lugar preponderante – onde se constroem e transmitem os equipamentos
intelectuais de uma sociedade” (HÉBRARD, 1999, p. 37), mas ela contribui
para a sua definição, especialmente quando anuncia as normas legítimas do
seu uso, como as formas escolarizadas de leitura e escrita.
Busca-se, assim, trazer algumas questões capazes de contribuir para a investi-
gação histórica da disciplina escolar de História no Brasil. A ideia é dotar de inteli-
gibilidade não apenas os processos de sua constituição e de sua consolidação, mas
principalmente as variadas formas de sua difusão e apropriação num determinado
tempo e espaço. Pesquisas levadas a cabo nas últimas décadas chamam a atenção
para o fato de que a análise de currículos formais, textos normativos ou mesmo
manuais didáticos é capaz de informar apenas uma parte do que se entende por dis-
ciplina escolar. A ampliação do entendimento da história das disciplinas escolares
passa pelo desafio de perceber as práticas escolares para além desses documentos,
buscando vestígios sobre as ações e interações dos sujeitos, especialmente profes-
sores e estudantes, no cotidiano das salas de aula (BITTENCOURT, 2003).

Práticas cotidianas: livros, usos e leituras

Historicamente reiterada pela escola, a presença de lápis, canetas, giz, papéis


(pautados, lisos, impressos), cadernos e manuais indica a íntima relação entre
práticas de escrita e leitura e a invenção da escola moderna. Com menos vestí-
gios encontrados, mas certamente tão importantes quanto, há de se considerar

166 CRISTIANI BERETA DA SILVA


também o lugar da oralidade nas rotinas pedagógicas dessa mesma escola. En-
contrar pistas dessas práticas – orais, escriturárias e leitoras - que faziam parte
do cotidiano das escolas do passado é um desafio para o pesquisador. Muitas
escolas não possuem acervos bem conservados, algumas nem mesmo possuem
acervo de documentos desde sua fundação. Mesmo as escolas mais tradicionais
têm dificuldade em manter seus documentos. A Escola Estadual Paulista é um
caso exemplar. O mais antigo Ginásio público de São Paulo possui centenas de
caixas com documentos de alunos, desde a sua fundação, mas sem apoio pro-
fissional, estrutura adequada, etc. para conservá-los. As caixas com os velhos
papéis, cheios de história, de memórias de seus ex-alunos, sofrem os efeitos do
tempo e ainda resistem ao completo esquecimento guardadas em uma sala jun-
to com outros elementos da cultura material escolar da instituição. Essa escola
foi a única, até o momento, em que foi possível localizar, junto a alguns pron-
tuários, exames e provas desde o início do século XX. Em meio a dezenas de
documentos probatórios da vida escolar do estudante, restaram alguns vestígios
de práticas de escrita, de modos de avaliar e selecionar conteúdos. Os acervos
das duas outras escolas, privadas, Colégio Catarinense e Colégio Coração de
Jesus, estão bem conservados, mas os prontuários não estão disponíveis para
consulta, apenas os relatórios e outros documentos de rotinas administrativas.
Em relação às práticas de leitura, a investigação encontrou vestígios – além
dos relatórios – num conjunto de fontes da pesquisa livremente classificado
de “narrativas e memórias pessoais sobre os exames”. Até o momento fazem
parte desse conjunto 12 blogs,9 quatro sites10 e 14 entrevistas orais realizadas
com professoras aposentadas que tanto fizeram os exames de admissão na
condição de estudantes quanto, já na condição de professoras, a preparação
de crianças para realizá-los. A pesquisa também localizou um livro de história
destinado a crianças chamado Admissão ao ginásio, que mistura ficção e me-
mórias do autor, Carlos Urbim (2008), sobre suas experiências enquanto se
preparava para fazer os exames.
Nessas narrativas orais e escritas, dois livros, que circularam no período,
apareceram de modo significativo.11 São eles:

9 Weblog, ou “diário da web”, é um site da internet cuja estrutura permite atualizações rápidas
por meio de acréscimos de artigos ou posts.
10 Um blog também é um site, mas um site não é um blog. Pode-se dizer que a criação de um
site exige requisitos de programação mais complexos que a de um blog. Além disso, os sites
costumam ser criados para informar produtos/serviços de determinada empresa. Esclarece-
se, porém, que os sites citados neste artigo não se referem a empresas, mas sim a pessoas
físicas que os utilizam como meio para publicizar seu trabalho e também falar de si.
11 Essas narrativas foram exploradas em dois artigos. Ver: Silva (2015; 2016).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 167


• Programa de Admissão, cuja primeira edição foi publicada pela Companhia
Editora Nacional em 1956. Ele é assinado pelos professores Aroldo de Aze-
vedo (Geografia), Joaquim Silva e José de Arruda Penteado (História do Bra-
sil),12 José Cretella Júnior (Português) e Osvaldo Sangiorgi (Matemática).

Figura 1 – Capa Figura 2 – Capa Figura 3 – Capa


Programa de Admissão, Programa de Admissão, Programa de Admissão,
2. ed., 1956. 3. ed., 1957. 5. ed., 1959.

(Acervo pessoal) (Acervo pessoal) (Acervo pessoal)

Figura 4 – Capa Figura 5 – Capa Figura 6 – Capa


Programa de Admissão, Programa de Admissão, Programa de Admissão,
11. ed., 1964. 12. ed., 1965. 26. ed., 1971.

(Acervo pessoal) (Acervo pessoal) (Acervo Livres/FEUSP)*

12 O nome de José Arruda Penteado já não aparece mais na 11a edição do livro, apenas o de
Joaquim Silva (SILVA, 2018a).

* LIVRES – Banco de dados de livros escolares brasileiros, projeto coordenado pela Profa. Dra.
Circe Bittencourt. O acervo pertence à Biblioteca do Livro Didático, localizada na Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo.

168 CRISTIANI BERETA DA SILVA


• Admissão ao Ginásio, da Editora do Brasil S/A, com a primeira edição em 1943.
Seus autores são Aída Costa (Português), Marcius Brandão (Matemática), Au-
rélia Marino (História do Brasil) e Renato Stempniewski (Geografia).

Figura 7 – Capa Figura 8 – Capa Figura 9 – Capa


Admissão ao Ginásio, Admissão ao Ginásio, Admissão ao Ginásio,
25. ed., 1951. 86. ed., 1954. 351. ed., 1961.

(Acervo pessoal) ((Acervo Livres/FEUSP)) ((Acervo Livres/FEUSP))

Figura 10 – Capa Figura 11 – Capa


Admissão ao Ginásio, Admissão ao Ginásio,
458. ed., s/a. 559. ed., s/a.

(Acervo pessoal) (Acervo pessoal)

Ambos os livros organizavam cada área de saber por meio de textos, exer-
cícios e traziam também algumas imagens em preto e branco e coloridas, que
foram aumentando à medida que novas edições eram publicadas. Observa-se
que os exercícios que se seguiam aos textos possuíam a lógica da “fixação”, ou

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 169


seja, memorização das informações. Os questionários são uma constante nos
dois livros preparatórios, e outras atividades, como questões para assinalar e
frases com lacunas para preencher, são recorrentes no Admissão ao Ginásio. O
Programa de Admissão se diferencia por possuir uma seção chamada “Leituras”,
que dá informações adicionais sobre personagens históricos que marcaram
presença nos textos. Datas notáveis e vultos históricos tornaram-se seções
fixas nos dois livros, ao longo de suas edições.

Figura 12 – Programa de Admissão, Figura 13 – Admissão ao Ginásio,


5. ed., 1959, p. 220. 351. ed., 1961, p. 405.

As duas obras tiveram dezenas de edições e milhares de tiragens. Destina-


vam-se a estudantes que estavam no último ano do Primário e aos docentes
que ali atuavam. Aulas particulares nas casas dos professores ou em cursinhos
especializados, concomitantes ao último ano do Primário, eram uma realidade
para aqueles que pretendiam seguir com seus estudos para além do Primário.
Destaca-se que ambos se converteram em índice de memória muito valorizado
por essa comunidade de leitores; alguns guardam seus livros até hoje, como
Anísia Junkes Petri (2015), professora aposentada de Rio do Sul/SC. Outros
solicitam ajuda por meio de comentários em blogs e sites para adquiri-los no
presente (SILVA, 2015; 2016).

170 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Nessas narrativas, o que fica mais evidente é que aqueles que compravam
os livros, mesmo de segunda ou terceira mão, tinham o desafio de estudar
(não apenas ler, mas quase decorar) todo o conteúdo. A professora aposentada
Lea Palmira e Silva, em entrevista, lembra da imponência do seu livro, que lhe
traz lembranças de medo, mas também de orgulho:

Era um livro bem grosso que todo mundo já sabia que era pro exame de
admissão, porque era o livro que a gente tinha que estudar e era um calha-
maço de um livro, era Português, Matemática, Geografia, conhecimentos
gerais, tudo ali, naquele livro, era uma sabatina, e a gente tinha aquela
coisa de estudar, estudar aquele livro pra entrar no Ginásio [...]. O que eu
realmente tenho bem em mente era pavor daquele livro, porque eu acho
que não tinha ninguém que dissesse assim... Não, não tinha, porque um
livro tão pesado que a gente tinha que carregar, e que assim, que dava
aquele pavor não só na gente, mas em todos os colegas. (SILVA, 2013)

Lembranças das provas, dos conteúdos e das práticas de estudo são descri-
tas em detalhes pelo Sr. Teixeira, no site O baú de Macau:

Difíceis eram as provas de Geografia que o Doutor José Olavo preparava. Era
de “tremer nas bases”: de cór e salteado todos os países e capitais de todos
os continentes e nomes e localização dos principais rios, montanhas e cordi-
lheiras. [...] A prova de Geografia era escrita e oral. Na prova oral, 20 pontos
para sorteio e que o candidato falasse tudo do assunto. Na prova escrita 10
perguntas, valendo cinco pontos e uma dissertação de mais cinco. A prova
de História, da mesma maneira, nome dos bandeirantes, navegadores por-
tugueses, localização das tribos indígenas, e muitos outros assuntos. A exa-
minadora, Professora Anaíde Dantas, era simpática, mas exigente. Já a prova
de Português era gramática com análise sintática de uma frase valendo cinco
pontos e uma dissertação com o tema escolhido na hora do exame. O exame
de admissão ao ginásio era um minivestibular. Foram muitas noites de sono
sob a luz do candeeiro ou lamparina e ausência de festas, tudo para estudar e
ter meu sonho realizado. E também tinha as “simpatias” para saber qual seria
o ponto sorteado da dissertação. Escrevíamos os títulos dos pontos em peda-
ços de papel e aleatoriamente jogávamos no quintal e o que a galinha bicasse
seria o ponto escolhido para dissertação. (TEIXEIRA, 2012)

César Tavares, no texto Admissão ao ginásio (turma de 1973), no blog Amigos


de Delmiro Gouveia,13 lembra:

13 Com o objetivo de deixar o texto mais limpo, o endereço completo das páginas citadas,
seguido da data de acesso, estará apenas ao final do texto, na lista de referências.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 171


O livro que estudávamos tinha uma capa azul com umas moças seguran-
do uns livros e em letras garrafais o título ADMISSÃO AO GINÁSIO. Eu
particularmente ficava encantado com as ilustrações: bandeirantes com
suas indumentárias, as batalhas da Guerra do Paraguai (logicamente o
Brasil ganhava todos e os brasileiros eram bonzinhos e o Solano Lopez
o tirano malvado. Anos depois ao ler o livro do Júlio Chiavennato, ‘O
genocídio americano’, caí na real). (TAVARES, 2012)

Em seu livro, Carlos Urbim narra sua história, misturando ficção e memó-
rias, sobre o último ano do Primário, tempo em que se preparava para realizar
os exames de admissão ao ginásio:

Dona Vilma levanta o Admissão ao Ginásio para os alunos verem bem. E


diz com seu jeito suave mas enérgico: – Pois bem, meus queridos, hoje
é nove de março. Até dezembro vocês devem viver agarrados neste livro.
Tudo o que está aqui pode cair nas provas escritas e orais. Carlos já co-
nhece pelo menos as primeiras páginas. O exemplar dele é do ano pas-
sado, que a mãe comprou da vizinha para economizar. Mesmo usada a
edição de 1958 vem com novos textos para leitura, 14 gravuras coloridas
para exercício de composição, notas bibliográficas históricas e pequeno
Atlas Geográfico. (URBIM, 2008, p. 20)

Por meio dessas narrativas é possível pensar práticas que incluem usos e
formas de ler esses livros. Em silêncio, individualmente, mas também em voz
alta, com trechos recitados para a professora; eram lidos na escola, mas princi-
palmente em casa. Isso porque, mais que lidos, eles eram estudados, eram “de-
corados”. Os exercícios, copiados no caderno e resolvidos à exaustão, serviam a
práticas de memorização dos conteúdos. Nota-se, porém, que havia um itinerá-
rio de práticas a ser percorrido por aqueles que se preparavam para os exames
por meio dos livros e cursinhos (SILVA, 2016), os quais se aproximavam da
rotina das práticas do Secundário. Em entrevistas realizadas com ex-ginasianos
de Aracaju, da década de 1950, Tereza Cerqueira da Graça (2002) indica que as
aulas, especialmente as de História, eram expositivas, estruturadas por meio da
oratória do professor. O livro didático deveria ser usado:

em casa para ler e “decorar” as lições. Em sala, somente nas raríssimas


vezes em que precisassem faltar, o livro se prestaria para que os alunos o
lessem na presença do bedel. Ademais, com os esquemas que tinham que
ser copiados e com as explanações, algumas “magistrais”, e ainda com os
exercícios de fixação de aprendizagem e as arguições, não sobrava tempo
para o livro. E mais: existiam poucos livros didáticos. (GRAÇA, 2002, p. 92)

172 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Os narradores, rememorando sua condição de estudantes ou de professo-
res, enfatizam questões como a pressão para passar nos exames, a consequen-
te ansiedade em relação ao volume de conteúdos que precisavam estudar, as
condições nem sempre ideais de estudo e a atribuição de importância à apro-
vação, o que significava a constituição de si como vencedores. Eles parecem
também valorizar o caráter enciclopédico dos livros utilizados na preparação
para os exames de admissão. Veem no tempo passado um período melhor que
o presente em relação à qualidade dos estudos, relacionada imediatamente à
quantidade de conteúdos que se devia estudar.
Além do percurso editorial, o estudo desses livros deve considerar tanto
as estratégias usadas pelos autores e editores para impor uma ortodoxia do
texto, um itinerário de leitura, quanto as inventividades dos leitores (CHAR-
TIER, 1998). Inicialmente destinadas à preparação para os exames de admis-
são ao Ginásio, essas duas obras acabaram tendo outros usos que transcen-
deram o objetivo inicial. Dados sobre sua impressão e circulação, bem como
relatos orais e outros postados em blogs, dão conta de que elas acabaram se
constituindo em material de preparação de aulas (no caso de docentes) e em
material de estudo de alunos que quisessem revisar conteúdos para os exames
curriculares. Há referência de que os livros também foram usados na prepara-
ção para concursos públicos. Ainda há muito que investigar sobre esse campo,
e as questões devem ser aprofundadas, pois as memórias sobre os exames de
admissão certamente trazem indícios dos diferentes usos e significações pro-
duzidas pelas práticas de leitura.

Práticas cotidianas: conteúdos, provas, exames

A indicação de leituras e os conteúdos a serem ensinados no Ginásio fo-


ram localizados em diferentes relatórios. Destaca-se que não havia muitas
diferenças em relação aos conteúdos, propriamente, nas três escolas. Quanto
a isso, há de se considerar que a realização dos exames de seleção, bem como
os finais e parciais, passava pelo controle do Estado, que normatizava, por
meio de portarias específicas, o que deveria ser cobrado. De todo modo, desde
a década de 1930 a fiscalização dos estabelecimentos de ensino, feita por um
corpo de inspetores, controlava também os professores em seu processo de
avaliação dos alunos.
As investigações de Luis Reznik (1992) e Halferd Ribeiro Jr. (2007) indi-
cam que os programas oficiais que prescreviam os conteúdos a serem ensina-
dos no Secundário sofreram poucas mudanças no decorrer de 40 anos. O que
é mais visível é quanto a algumas ênfases: por exemplo, em alguns momentos,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 173


deslocamentos que privilegiavam mais questões relacionadas ao Estado Novo
ou à Independência do Brasil. A pesquisa em diferentes exemplares de livros
adotados e publicados nesse período informa isso. Abaixo, dois exemplos:

Quadro 1
Programa de História do Brasil constante nos livros preparatórios para os exames.
1937 1971
Descobrimento da América; Descobrimento da América. Colombo;
Descobrimento do Brasil. Descobrimento do Brasil. Cabral;
Capitanias Hereditárias; Capitanias Hereditárias;
Os três primeiros governadores-gerais; Os três primeiros governadores-gerais;
Invasão do Rio de Janeiro pelos Invasão do Rio de Janeiro pelos franceses.
franceses. Fundação da Cidade; Fundação da Cidade. Estácio de Sá;
Invasões holandesas; Invasões holandesas. Matias de
Albuquerque. Henrique Dias e Filipe
Camarão;
Entradas e bandeiras; Entradas e bandeiras. Antônio Raposo
Tavares e Fernão Dias Paes;
Inconfidência mineira; Conjuração mineira. Tiradentes;
Transmigração da família real de Portugal Transmigração da família real de Portugal
para o Brasil. D. João VI; para o Brasil. D. João VI;
A Independência e D. Pedro I A Independência. D. Pedro I. José
Sete de Abril. Governos Regenciais. O Bonifácio. Gonçalves Ledo;
Padre Feijó. O segundo reinado e D. Período Regencial. Padre Feijó.
Pedro II; O segundo reinado. D. Pedro II;
Guerra do Paraguai; Guerra do Paraguai. Osório e Caxias;
A abolição do cativeiro e a princesa A abolição do cativeiro. Princesa Isabel.
Isabel; José do Patrocínio e Joaquim Nabuco;
Proclamação da República; Proclamação da República. Deodoro.
Floriano Peixoto. Benjamim Constant. Rui
Barbosa;
Governos republicanos. Governos republicanos. Contribuição ao
Progresso do Brasil.
Fonte: AZEVEDO, Aroldo de; CEGALLA,
Fonte: Editora Nacional. Exames Domingos Paschoal; SILVA, Joaquim;
de admissão aos cursos ginasiais. SANGIORGI, Oswaldo. Programa de
Organizados por professores do Liceu Admissão. 26. ed. São Paulo: Companhia
Nacional Rio Branco. 7. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1971. Acervo do Banco
Companhia Editora Nacional, 1934, p. 9. de Dados de Livros Escolares Brasileiros-
Acervo da autora. LIVRES/FEUSP.

174 CRISTIANI BERETA DA SILVA


O professor Joaquim Silva14 era o responsável pela área de História nesses
dois livros preparatórios para os exames. Em 1930 ele já era um respeitado
professor de História no Liceu Nacional Rio Branco, conforme aponta a pes-
quisa de Arnaldo Pinto Jr. (2010). Sua primeira experiência como autor ini-
ciou por meio de convite feito pela Companhia Editora Nacional para escrever
a parte relativa à História do Brasil para o livro Exames de admissão aos cursos
ginasiais, cuja primeira edição foi publicada em 1931. Segundo Arnaldo Pinto
Jr. (2010), a participação de Joaquim Silva nessa obra acabou por projetar seu
nome em todo o Brasil e credenciá-lo para outras publicações de História da
Civilização e História do Brasil. Deve-se ressaltar que são esses os livros que
mais aparecem como adotados no Ginásio em relatórios dos colégios Catari-
nense e Coração de Jesus nas décadas de 1930 a 1950. A pesquisa de Maria
Angélica Minhoto (2007) sobre os exames de admissão nos anos de 1931
a 1945 levantou uma série de documentos que evidenciam a adoção dessas
obras em diferentes escolas da cidade de São Paulo.
Pelos vestígios encontrados, pode-se supor que havia, entre os pontos se-
lecionados para os exames e provas e os conteúdos ministrados, uma relação
de proximidade bem significativa, pois, afinal, esperava-se que o professor
trabalhasse justamente para que os alunos fixassem os pontos, por meio de
recursos que envolviam cópias de textos do quadro, por vezes leituras em voz
alta e outras leituras silenciosas, além de muitas atividades escritas envolven-
do perguntas e respostas.
Em relação às diferenças entre exames e provas, Wagner Valente (2006),
em sua pesquisa sobre a história da educação matemática, analisa a história
da passagem dos exames às provas no sistema escolar brasileiro. Os exames,
com provas escritas e orais, marcavam as diferentes etapas da escolarização do
estudante, num período em que estudar ainda era para poucos privilegiados.
Os exames eram realizados no final de um ano, assinalando o final de uma
série, e, em caso de aprovação, assegurando a promoção à série seguinte. Sua
avaliação era feita por bancas formadas inicialmente por professores exter-
nos ao estabelecimento de ensino. Atuando também em colégios oficiais, eles
circulavam pelas escolas no período dos exames e recebiam pagamento extra
por isso. Com o crescimento do Secundário, contudo, essa prática se tornaria
inviável. Vale lembrar que, segundo dados levantados por Laurecen Hallewell,
em 1930 as matrículas no Secundário totalizavam 83.000, em 1945 já eram
da ordem de 256.467, chegando em 1960 ao expressivo número de 1.083.827

14 O nome do professor Joaquim Silva foi sinônimo de manuais didáticos de História produzidos
para o Ginásio entre as décadas de 1930 e 1960 (HALLEWELL, 2005; PINTO JR., 2010).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 175


(HALLEWELL, 2012, p. 845 e 859). Mais de um milhão de matrículas em 30
anos. Mesmo que os exames de admissão ao Ginásio tenham se caracterizado
pelo seu caráter elitista e excludente, o fato é que, cada vez mais, as famílias
das camadas populares viam na continuidade dos estudos a chave para a as-
censão social de seus filhos.
Nos anos 1930, com a organização nacional do ensino, mudanças no pro-
cesso de avaliação escolar passaram a ser implantadas, e as provas parciais,
formuladas e aplicadas pelos professores nas salas de aula, passaram a ter
status avaliativo, fazendo=se cada vez mais presentes no cotidiano escolar.
Abaixo, relatório de matéria lecionada e pontos para uma prova parcial no
Colégio Coração de Jesus:

Figura 14:
Matérias lecionadas em maio de 1941.

Fonte: Colégio Coração de Jesus. Relatório do ano de 1941.

176 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Figura 15:
Pontos História da Civilização para a 2a Prova Parcial da 1a Série, 1941.

Fonte: Colégio Coração de Jesus. Relatório do ano de 1941.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 177


A reforma de 1931 elaborou o primeiro programa para as escolas secun-
dárias, estabelecendo currículo seriado e frequência obrigatória. A partir de
então, a História Geral e a do Brasil passaram a constituir uma única discipli-
na: a História da Civilização, incluída nas cinco séries do curso Secundário.
Até 1931, os conteúdos da História Universal e da História do Brasil estavam
divididos em apenas três das cadeiras obrigatórias, o que, no novo sistema,
correspondia a apenas três séries. Após 1931, além de o ensino de História
ganhar em carga horária, foi sendo delimitado o próprio espaço ocupado pela
História do Brasil. Esse processo foi concluído com a Reforma de Gustavo
Capanema, em 1942, em pleno Estado Novo, com o recrudescimento do na-
cionalismo, que separou a História Geral da História do Brasil, aumentando
consideravelmente a carga horária desta última no curso ginasial. Foi a refor-
ma de 1931 também que assinala o boom editorial de manuais didáticos des-
tinados ao Curso Secundário. Para o Curso Primário, o marco dessa produção
é o início da República.
Abaixo apresentam-se três exemplos de exames e provas escritas. É im-
portante observar que esses documentos foram selecionados em um universo
maior, de 30 provas de História, entre 1931 e 1967.

Figura 16: Figura 17:


Exame final – primeira folha. Exame final – segunda folha.

178 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Figura 18:
Exame final – terceira e última folha.

Fonte: Prontuário de Nokiaki Samesima. Exame final, realizado em 12 de dezembro de


1931. Acervo da Escola Estadual Paulista.
Figura 19: Figura 20:
Parte da Prova Parcial de Matemática. Parte da prova Parcial de História.

Fonte: Prontuário de Lázaro Augusto de Mattos Filho, Prova Parcial, 5 de março de 1945.
Acervo da Escola Estadual Paulista.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 179


Figura 21: Figura 22:
Primeira folha da prova. Segunda folha da prova.

Fonte: Prontuário de Julieta Trad. Exame de Segunda Época, de 22 de fevereiro de 1950.


Acervo da Escola Estadual Paulista.

Três provas escritas de História, em três diferentes períodos. No prontuá-


rio de Nokiaki Samesima, encontra-se um exame final de História universal,
para a promoção da 1a para a 2a série ginasial. Observa-se a proposição de duas
atividades: a construção de um texto dissertativo sobre “O papel dos fení-
cios na história da civilização” e três perguntas relacionadas ao Mediterrâneo,
respondidas em três folhas pautadas, oficiais da escola. Na primeira folha,
encontram-se as notas dos três avaliadores e suas respectivas assinaturas, e há
evidência de que uma prova oral foi realizada, na qual o estudante obteve nota
5, mas não há indicação do ponto dessa prova junto ao prontuário.
No prontuário de Lázaro Augusto de Mattos Filho, encontra-se uma prova
parcial, de 5 de março de 1945, como parte das exigências de matrícula para
a 3a série ginasial no então chamado Colégio Estadual da Capital. Observa-
-se que tanto a prova de Matemática quanto a de História foram realizadas
mediante sorteio do ponto, e que elas guardam proximidade com a rotina
do exame de admissão, que ele certamente realizou pouco mais de dois anos
antes. Chama a atenção que a prova de História foi escrita na continuidade do
que parece ser uma carta, resquício, talvez, da atividade proposta na prova de

180 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Português? A prova de História teve o ponto 8 sorteado, que parece ter se des-
dobrado em dois pontos: a e b: “A Rainha Isabel da Inglaterra” e “A Prússia”.
Esses dois pontos geraram, por sua vez, um questionário. Não dá para saber
se foi ditado ou copiado do quadro ou de outro documento. Também temos
um exame de segunda época, de História do Brasil, de Julieta Trad., aluna da 4a
série do Ginásio, realizado em 22 de fevereiro de 1950. Ela requereu o exame
porque fora reprovada nas disciplinas de História do Brasil e também Ciências
Naturais.
A história da cultura escrita permite pensar em algumas conexões nesse
contexto histórico, como as normas e ordenamentos presentes nessas folhas
manuscritas. São testemunhos da cultura escolar e dos agentes que nela inter-
vêm e que a constituem (CASTILLO GOMÉZ, 2012). Observa-se, por exem-
plo, que o aluno Nokiaki se preocupou em fazer um rascunho, e que nele não
teve a preocupação de seguir o itinerário proposto pelas linhas da folha pauta-
da, pois a escrita cursiva é bem menos caprichada nessa parte. A resposta da
questão, a que será alvo da correção, contudo, é escrita respeitando a ordem
das linhas, a organização proposta pela folha. Já as escritas de Lázaro e Julieta
não possuem rascunho e respeitam menos a organização proposta pelas linhas
do papel. Lázaro, muito menos. Ao que parece, o conteúdo das três provas
respeita aspectos formais, segue um itinerário muito provavelmente propos-
to pelas aulas expositivas do professor e pelas leituras. Mas observa-se que
há, sim, uma operação de seleção aí também, já que algumas questões foram
escolhidas para serem privilegiadas na escrita, em detrimento de outras. Há
intervenções das correções em todas as três provas, mas bem mais evidentes
na de Lázaro, em vermelho, destacando as subversões daquele que não seguiu
as regras totalmente. Também os alunos, como leitores do mundo que são,
escapam a ordens específicas, a regras e convenções de como ler, de como es-
crever, escapam às hierarquias em sua peregrinação “através do mundo social”
(CHARTIER, 1998, p. 9).
Com marcas operadas pelo tempo, mas também com marcas de práticas
de escrita, esses vestígios informam como o espaço da folha de papel pautado
foi organizado pelos estudantes, pelos professores e administradores. A for-
ma como classificam e hierarquizam saberes remete “a diferentes habilidades,
usos e posições de poder” (VIDAL, 2009, p. 31) no espaço da escola. Todas as
provas e exames, mesmo com alterações na nomenclatura, no uso da espacia-
lidade do documento, guardam um mesmo rito: sorteio de ponto, dissertação
sobre esse ponto, respostas a perguntas elaboradas em torno do mesmo pon-
to. A diferença está na realização da prova oral, observada apenas nos exames
finais e não nas provas parciais encontradas.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 181


Algumas considerações

Políticas significativas relativas ao ensino de História e o próprio contex-


to de obrigatoriedade dos exames de admissão, especialmente nas décadas
de 1930 a 1950, apontam para um projeto que atribuía ao ensino Secundário a
missão de educar os futuros dirigentes da nação. E ao ensino de História do Brasil
se atribuía a responsabilidade de ensinar um passado comum que estivesse em
consonância com um projeto político cuja preocupação com o nacionalismo e o de-
senvolvimento do “espírito brasileiro” era central, especialmente considerando-se
o projeto estadonovista levado a cabo entre 1937 e 1945. A pesquisa desenvolvida
reuniu dados que apontam para algumas questões importantes, e que requerem
aprofundamento, quais sejam: a) as funções atribuídas ao ensino de História do
Brasil no Estado Novo sofreram poucas mudanças efetivas nas décadas posterio-
res, 1950 e 1960. Isso, porque os fundamentos legais do Secundário, ao menos
entre 1942 e 1961, permaneceram aqueles fixados pela Reforma Capanema (com
algumas alterações a partir do final de 1945); b) em se tratando da permanência de
determinadas tradições, relacionadas à seleção de conteúdos de História a serem
ensinados nas escolas, não se deve menosprezar o controle do Estado brasileiro
quanto à publicação e circulação da produção didática no país, cujo marco é a Co-
missão Nacional do Livro Didático, criada em 1938. Os livros preparatórios para
os exames de admissão passaram pelo crivo do Estado. Avaliados, aprovados e
adotados oficialmente em diferentes redes de ensino, também contribuíram para a
manutenção de discursos fundadores de valores hegemônicos relacionados a uma
determinada memória sobre o Brasil e os brasileiros, em detrimento de outras
possíveis; c) a organização de um ensino de História enciclopédico, factual, euro-
centrado, traduzido pelos livros e pelas rotinas das aulas, provas e exames, é muito
valorizada, ensino este ressignificado como “muito melhor do que o praticado no
presente” nas memórias de toda uma geração de estudantes e professores, que
experienciaram a escolarização ao longo desse período.15
Em se tratando particularmente do objetivo deste texto, relativo às práticas
de escrita e de leitura no âmbito da História ensinada, especialmente consi-
derando-se a transição do Primário para o Ginásio entre as décadas de 1930
e 1960, algumas questões delineiam-se: o que provas e exames de estudantes
de tempos passados podem informar sobre a cultura escolar? Ou sobre as for-
mas de apropriação e difusão do conhecimento histórico escolar no cotidiano
escolar? Segundo Wagner Valente, que se debruçou sobre as provas e exames
da Escola Estadual Paulista, para além de indicar concepções de avaliação domi-

15 Algumas dessas questões foram mais bem desenvolvidas em Silva (2018a e 2018b).

182 CRISTIANI BERETA DA SILVA


nantes num dado momento histórico, tais documentos possibilitam a leitura de
parte do cotidiano escolar, de seleção dos conteúdos, de apropriação das refor-
mas educacionais vigentes, dos programas oficiais, além de permitirem, através
de inventário das notas obtidas pelos alunos, o estudo do desempenho dos estu-
dantes de diferentes épocas escolares numa dada disciplina (VALENTE, 2001).
As provas e exames são efeitos de construção de saberes sobre o estudante.
Bem por isso constituem-se em vestígios privilegiados das relações estabelecidas
entre estudante, professor e escola, considerando-se tais efeitos. Segundo Diana
Vidal, os objetos e produtos da escrita, tomados em sua materialidade, “permitem
não apenas a percepção dos conteúdos ensinados, mas o entendimento do conjun-
to de fazeres ativados no interior da escola” (VIDAL, 2009, p. 31). Os documentos
inventariados pela pesquisa indicam a força de atividades e avaliações centradas
em rotinas que incluíam sorteio de pontos (selecionados dos programas oficiais),
respostas orais e escritas a perguntas, e também temas que deveriam servir para
que os alunos dissertassem, escrevessem sobre eles. Os exames parecem estar
conformados com as rotinas formais dos Ginásios, pois as provas encontradas
guardam semelhanças em se tratando das formas que adquiriam. É preciso lem-
brar que os exames eram regulados por legislação específica, a qual não alterou
substancialmente a forma de avaliação nos quarenta anos em que vigorou.
Os documentos indicam também a força de atividades e avaliações centra-
das em questões dissertativas, na memorização e no cumprimento – ao menos
nas provas e exames – do programa prescrito. Contudo, muito embora sejam
questões dissertativas, o que se percebe é que as questões não são abertas
à opinião dos estudantes. Elas são fechadas, o objetivo é perceber o quanto
o estudante memorizou do tema. Imperam, nas questões, perguntas como:
“quem?”, “qual?”, “onde?”.
Registros de provas, exames, produtos do escrever, ocupam um lugar sig-
nificativo no conjunto das práticas escolares e administrativas da escola. São
vestígios de práticas escriturárias de efeitos de construção de saberes sobre o
estudante. Os objetos da escrita permitem não apenas a percepção dos con-
teúdos ensinados, mas o entendimento do conjunto de fazeres no interior da
escola, de resíduos de práticas de se ensinar História.
Acredita-se que a análise desse conjunto variado de documentos possi-
bilite a compreensão dos mecanismos de seleção de conteúdos de História
situados entre a tradição e as disputas por determinada percepção sobre o
que ensinar, no período histórico recortado. De igual maneira, espera-se que
se possam fornecer indícios sobre o lugar da escrita no processo de ensinar e
aprender História, contribuindo para dotar de inteligibilidade dimensões do
saber histórico escolar e das práticas escolares, numa perspectiva histórica.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 183


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186 CRISTIANI BERETA DA SILVA


Investigar em Ensino de História:
entre fronteiras e limites epistemológicos

Flávia Eloisa Caimi1

Letícia Mistura2

As produções acadêmicas que têm se vinculado ao corpo investigativo en-


tendido como ensino de História, desde cerca de quatro décadas, foram identi-
ficadas, não raras vezes (MONTEIRO, 2007; MONTEIRO e PENNA, 2011),
como pertencentes a um lugar de fronteira epistemológica. O termo, uma ana-
logia que remete à geografia política, pressupõe uma relação de convivência,
disputa e negociação entre as áreas de saber que estão imbricadas tanto na
pesquisa quanto na prática pedagógica do ensino de História.
Monteiro (2007) compreende o Ensino de História como um lugar de fron-
teira entre história e memória, já que este comporta, em situações de ensino
e aprendizagem, interações entre os diferentes níveis do discurso histórico – o
acadêmico, a história pública, a memória e os usos cotidianos da história-me-
mória. Nessa perspectiva, o ensino de História é “lugar de reflexão crítica, de
revisão dos usos do passado, no qual a história é o conhecimento deflagrador
de abordagens, análises, reflexões, novas compreensões” (MONTEIRO, 2007,
p. 16). Mais recentemente, Monteiro e Penna (2011) revestiram o termo de
outro sentido, compreendendo, por meio da necessidade de densidade analí-
tica sobre o que compunha epistemologicamente uma aula de História, que o
ensino de História é também “lugar de fronteira” entre a Educação, a História
e a Retórica. Os autores observam que, de acordo com as análises produzidas,
ensinar História parece carecer das contribuições específicas de cada área de
saber, as quais, articuladas, estão na base da produção do saber histórico en-
sinado. O currículo de História torna-se, portanto, outro “lugar de fronteira”.

1 Professora do Programa de Pós-graduação em Educação e da Licenciatura em História da


Universidade de Passo Fundo (RS). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e com Pós-doutorado pela Flacso-Argentina. E-mail: caimi@upf.br.
2 Licenciada em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre pelo Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista CAPES.
E-mail: leticiamistura@gmail.com.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 187


Assumimos semelhante posição ao observarmos divergências e flexibi-
lizações sobre o termo que efetivamente caracterizariam os pesquisadores
participantes dessa comunidade investigativa que compreende o ensino de
História. Um efeito que aparenta ter como cerne a característica fronteiriça das
pesquisas interessadas nos processos de ensinar e aprender História e nos
lugares acadêmicos que têm ocupado. Entendemos que a reflexão sobre esse
lugar de fronteira deve acompanhar os pesquisadores interessados no ensino de
História como campo investigativo, uma vez que exige uma tomada de posi-
ção no interior do campo. Como observam Monteiro e Penna (2011), ocorre
que pesquisadores, ao assumirem o ensino de História como campo, frequen-
temente acabam tomando parte de uma ou outra área de saber, que orienta
seus pressupostos, ao contrário de reconhecer e atentar aos nexos entre elas.
Assim orientados, os pesquisadores enfatizam, em suas investigações, ora os
referenciais teóricos advindos da História, ora os da Educação, deixando de rea-
lizar importantes articulações teóricas que derivam desse lugar de fronteira,
podendo agir, inclusive, a despeito dele.
Neste estudo, apoiamo-nos igualmente na analogia propiciada pelos
conceitos de fronteira e limite, cunhados no âmbito da geografia política de
Moodie (1965), os quais acompanham cada seção como epígrafes, para ques-
tionarmos do que se trata esse lugar de fronteira que põe em articulação es-
pecialmente os saberes das áreas da Educação e da História, e de que forma
esse lugar pode ser mirado e considerado pela comunidade de pesquisadores
associados ao ensino de História. Aproximando-nos da teoria dos campos
científicos de Pierre Bourdieu (1983, 2004), buscamos problematizar o En-
sino de História não apenas como um campo de produção acadêmica, mas de
produção de discursos consubstanciados em relações de poder.
Na sequência do texto, discutimos a pesquisa em ensino de História entre
áreas do conhecimento, delineando brevemente as presenças e os espaços de
tensão entre a História e a Educação.

A pesquisa em ensino de História entre áreas do conhecimento

[...] grandes Impérios do passado eram mal


definidos em virtude da falta de conhecimento
pormenorizado de terreno e da ausência de sua
exata representação cartográfica. [...] o controle
estatal tem-se expandido até ferir a soberania de
outros Estados quando, então, as linhas divisórias
se tornam necessárias. (MOODIE, 1965, p. 82-83)

188 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


A localização do ensino de História como espaço de interesse investigativo
parece ter sido sempre encontrada entre dicotomias como ensino X pesquisa,
licenciatura X bacharelado, teoria X prática (MESQUITA; ZAMBONI, 2008). Re-
legado à intermediação entre duas grandes áreas – a Educação e a História –,
a possibilidade de as práticas de ensino da História produzirem reflexões no
meio acadêmico passou, durante muito tempo, ao largo de ambas as áreas.
Entendia-se que as questões de ensino competiam exclusivamente aos
profissionais vinculados às questões pedagógicas, dos centros e faculdades
de Educação. O ensino de História seria, então, apenas mais uma discussão
pedagógica sobre o ensino de determinada disciplina. Não diferentemente, as
questões relacionadas ao saber produzido pela ciência histórica, logo, a His-
tória, competiam aos profissionais da academia dedicados à produção da sua
narrativa, sobrando pouco ou nenhum espaço para a visualização desses sabe-
res mobilizados por práticas de ensino. Duas linhas divisórias se impunham,
claramente, ao ensino de História como objeto ou campo de pesquisa.
Como mostram os esforços de Costa e Oliveira (2007), ao historiarem
a construção do ensino de História como objeto de pesquisa no Brasil, foi a
partir dos anos 1970 que se conferiu mais espaço para discussões que trans-
versalizavam e tematizavam o ensino de História, traduzidas em temas como
a formação de professores, o currículo e as práticas pedagógicas. Tal interesse
esteve inscrito em duas conjunturas maiores, que acompanham e se relacio-
nam com essa expressividade: 1) o processo de abertura política e redemocra-
tização do Brasil, após 21 anos de Ditadura Militar (1964-1985); 2) um con-
junto de movimentações renovadoras, em termos teóricos e metodológicos,
na própria teoria da História. Desde então, ainda segundo o estudo de Costa
e Oliveira (2007), o ensino de História como objeto de pesquisa tem se espa-
lhado pelo Brasil, congregando profissionais de vários níveis, estreitando os
laços entre a Educação Básica e o Ensino Superior, construindo uma trajetória
de eventos, grupos de pesquisa institucionais e Grupos de Trabalho (especial-
mente da Associação Nacional de História-ANPUH) e suscitando produções
em três grandes vias: “sobre o livro didático [de História], [...] sobre propos-
tas, currículos formais para esse ensino, leis [...] [e] ainda, sobre experiências
concretas em sala de aula” (COSTA e OLIVEIRA, 2007, p. 155).
Monteiro e Penna (2011) observam que, situados na área da Educação,
os profissionais do ensino de História – pesquisadores ou professores – utili-
zam-se especialmente de referenciais dos campos da Didática e do Currículo.
Deste último, segundo os autores, emprestamos a compreensão do Currículo
como prática cultural de significação, o que implica circunscrevê-lo em um
todo-significante de escolhas, ênfases, disputas de poder. No campo da Didá-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 189


tica os autores encontraram uma via de articulação entre o uso da noção de
saber ensinado (ou saber escolar) e o de alternativas produzidas pela própria
teoria da História, para abrigar e tematizar as questões do ensino e da apren-
dizagem, como a didática da história, por exemplo. No âmbito do saber ensinado,
entende-se que o saber próprio do ensino de História se difere, em estrutura
e epistemologia, do saber científico advindo da ciência de referência: trata-se de
uma construção que implica seleção, manipulação e moldagem dos saberes
disponíveis, com a finalidade de produzir um “saber ensinável”, mobilizado
em/por um lugar específico, a instituição escolar. A Didática da História, na
perspectiva de Jörn Rüsen, vem acrescentar à noção de saber ensinado as carac-
terísticas específicas do conhecimento histórico, como produto-vetor em que
a História como conhecimento exerce uma de suas funções sociais, a de orien-
tação. Para o autor, a teoria da História e os historiadores também precisariam
ocupar-se da Didática da História (RÜSEN, 2011).
Bernard Charlot entende o campo da Educação como uma área de saber,
portadora de uma cultura comum, que agrega seus pesquisadores pelo inte-
resse primeiro nas questões da Educação e nos efeitos da pesquisa em Educa-
ção. Trata-se de um espaço “fundamentalmente mestiço, em que se cruzam, se
interpelam, e por vezes, se fecundam, de um lado, conhecimentos, conceitos
e métodos originários de campos disciplinares múltiplos, e, de outro lado,
saberes, práticas, fins éticos e políticos” (CHARLOT, 2006, p. 9). Para o autor,
a especificidade da Educação é essa mestiçagem, que a faz ser, ao mesmo tem-
po, fraca e forte epistemologicamente, uma vez que sua fraqueza – contornos
pouco definidos, fluidez de conceitos – também pode se constituir em sua
força, baseada na pertinência dessa condição flexível no estudo dos fenôme-
nos aos quais os pesquisadores da Educação prestam sua atenção: complexos,
contraditórios, contemporâneos. Charlot (2006) defende a construção de uma
disciplina com forte especificidade, conceitos e métodos de pesquisa próprios,
que deveria ser arquitetada no enfrentamento dos discursos que inflam, atu-
almente, o espaço da pesquisa em Educação. Esse enfrentamento se deve ao
fato de que, ao substituir a produção de conhecimento por filiação a discursos,
a tarefa de construir objetos de pesquisa – que correspondam efetivamente às
necessidades do campo – é fragilizada.
José D’Assunção Barros, empenhado na difícil tarefa de organizar os va-
riados “campos” que compõem o universo expansivo e complexo de saberes
produzidos pela historiografia, buscou traçar – ao longo e dentro de mudanças
na ciência histórica e por meio de variados olhares críticos de historiadores
preocupados em definir em seara segura – um grande campo histórico, frag-
mentado em dezenas de subdivisões operadas pelas produções desse meio.

190 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


E assim o fez, identificando, entre essas subdivisões, dimensões e enfoques:
História da Cultura Material, por exemplo; abordagens com relação ao tipo
de fontes, como, por exemplo, Arqueologia; e domínios, com relação aos am-
bientes e objetos sociais ou com relação aos agentes históricos, como, por
exemplo, a História Rural. A esse contorno específico de pequenas regiões,
Barros denomina “campo histórico”, ou seja, o espaço acadêmico ocupado por
saberes historiográficos específicos, produzidos sob determinados métodos. É
possível afirmar que o campo histórico tem, em semelhança epistemológica
com a Educação, uma fluidez igualmente característica de objetos, abordagens
e contribuições interdisciplinares. No entanto, o que na Educação é visível por
sua característica de abertura, na História está definido pelos seus contornos e
limites, que, assim expostos por Barros, denominam e designam seus interes-
ses e ajudam a justificá-los (BARROS, 2004, 2005, 2010).
Em outra perspectiva, Mario Carretero remete à intrincada relação de sa-
beres no interior de tudo que é reconhecidamente um saber histórico, o qual
ele entende como diferentes níveis de estruturação do discurso histórico: a
história cotidiana, que mescla elementos de história pública com a memória,
extremamente fluida; a história escolar, constituída por meio das interações
entre os saberes e os poderes (institucionais, políticos) nela implicados; e
a história-conhecimento, produzida metodologicamente no interior de uma
ciência histórica. Trata-se de três vias de sentido para a História, constante-
mente em disputa, todas, inegavelmente, presentes em uma aula de História
(CARRETERO, 2010).
Às distâncias e aproximações entre esses dois domínios de saber (História
e Educação) presentes nos saberes históricos escolares e, portanto, pertinen-
tes à observação de quem os tematiza em pesquisas, Monteiro e Penna (2011)
adicionam o domínio da Retórica, uma vez que as aulas de História são luga-
res de intensas produções narrativas, que articulam poderosas ferramentas de
significação do discurso, como figuras de linguagem, para produzir determina-
dos efeitos por meio do saber histórico escolar. O quadro de interações fron-
teiriças, portanto, se expande largamente, uma vez que não implica apenas
o que o ensino de História e seus pesquisadores julgam necessário pinçar de
cada um dos domínios de saber, mas também formulações, disputas e entraves
internos a cada um desses domínios, que fazem parte (dos) e produzem os fe-
nômenos escolares. Avançamos, portanto, para a elaboração do que podemos
vislumbrar como possibilidade de existência e natureza do campo do Ensino
de História.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 191


Ensino de História: um lugar fronteiriço

[...] fronteiras são zonas ou faixas de território [...].


Encerram área, grande ou pequena, e estão sujeitas
à mudança contínua sempre que a ação humana
lhes altera a natureza e a serventia. [...] em muitos
casos, assumem categoria de regiões geográficas
na medida em que possuam a característica de
individualidade baseada nas respectivas funções
como zonas transitórias. (MOODIE, 1965, p. 82-83)

Em dados de pesquisa expostos por Evangelista e Triches (2006), de acor-


do com a base de dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, em
2004 os grupos e linhas de pesquisa com o título “Ensino de História” sob
a área da Educação chegavam a 51; já sob a área da História, eram 11. Logo,
pode-se inferir que a maior parte das investigações relacionadas ao ensino
de História estava localizada, há mais de uma década, na área de Educação e,
muito provavelmente, no interior de Programas de Pós-graduação em Edu-
cação, afastados do campo da História. No caso, a identidade fronteiriça do
campo estava vinculada, de forma majoritária, ao campo da Educação.
Em janeiro de 2017, numa busca textual pelo mesmo Diretório, os seguin-
tes dados foram por nós encontrados: os grupos e linhas de pesquisa sob o
título “Ensino de História” vinculados à área de Educação somavam 33, ao
passo que chegavam a 53 na área de História. O que significa essa expressiva
diferença? Podemos oferecer algumas pistas, embora sem aprofundarmos essa
discussão. Esse crescimento expressivo de grupos e linhas de pesquisa vincu-
lados à área de História pode se referir a uma abertura dessa área, que passou
a admitir a presença de questões de natureza didática e/ou pedagógica em sua
agenda de estudos e pesquisas. Alocada no campo da História, há uma gran-
de frente de investigação interessada nas questões da aprendizagem histórica
– e não da aprendizagem “da História”. Essa diferença trata-se de marcar a
“aprendizagem histórica” como um processo de operação intelectual acerca do
que é epistemologicamente próprio do e pertencente ao conhecimento histó-
rico. Esse crescimento expressivo na área da História deve-se também às po-
líticas públicas de formação docente, como o Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID) e a criação dos Mestrados profissionais em
Ensino de História, notadamente aqueles vinculados ao ProfHistória. Esses
novos cenários não apenas aproximam, de forma mais enfática, a pesquisa em

192 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


ensino de História do campo histórico, como, em certa medida, a afasta sig-
nificativamente da área da Educação, sendo possível evidenciar, nesse espaço
ocupado por todos esses grupos, o delineamento de uma verdadeira fronteira.
Para Moodie, que categoriza os termos “fronteira” e “limite” no horizonte
da Geografia política, e como apresentado na epígrafe desta seção, “as frontei-
ras relacionam-se às áreas, os limites são lineares pela sua natureza” (MOO-
DIE, 1965, p. 84). Isso significa que essa área ocupada pelas produções inves-
tigativas do ensino de História é identitariamente ocupada, circunscrita a limi-
tes tênues, mas soberanos, uma vez que são “especificamente destinado[s] a
separar”, e “linhas divisórias entre as áreas de jurisdição” (MOODIE, 1965, p.
92), aqui, da História e da Educação. Sua composição, naturalmente, é feita de
derivações de ambos os campos e pode sofrer mudanças contínuas, à medida
que os campos se modificam, atribuindo-lhe diferentes natureza e/ou função.
Pensar no lugar da pesquisa em ensino de História como a ocupação de
uma área física de fronteira entre dois grandes espaços, inchados por sub-
divisões, problemáticas, agentes, disputas, significa também pensar em um
investigador específico, habitante de uma seara ao mesmo tempo autóctone e
estrangeira, em que é preciso se investir de duas epistemologias, reconhecer
os discursos que circundam e inflam ambos os campos, seus agentes, as ins-
tituições vinculadas a eles e aos seus produtos, que alimentam e condicionam
as produções: as investigações do ensino de História. Isso implica, por fim, es-
tar entre duas jurisdições poderosas, conflitivas, nas quais é preciso, ao mes-
mo tempo, posicionar-se firmemente e flexibilizar a posição. Seria possível,
pelo reconhecimento da ocupação de um lugar físico para a pesquisa em ensi-
no de História, entender esse lugar como um “campo” de produção de saber
científico, como a construção da teoria dos campos de Bourdieu (1983, 2004)?

A criação de um “espaço físico” de pertencimento para o ensino de História

Em uma conferência publicada sob o título Os usos sociais da ciência: por


uma sociologia do campo científico, Pierre Bourdieu traça os principais pontos do
que construiu como a sua “teoria dos campos”, pela qual propõe um meio de
compreensão para uma produção cultural localizada em sua própria estrutura
de gênese, pertencimento e por meio da qual se exerce comunicação, sem
que exista o “erro do curto-circuito”, como nomeia a prática de fazer relações
diretas e forçosas entre o texto (a produção de um campo) e o contexto (con-
juntura ou acontecimento histórico/social).
De acordo com o autor, o campo é um “universo intermediário [entre o
texto e o contexto] [...] no qual estão inseridos os agentes e as instituições que

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 193


produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência” (BOUR-
DIEU, 2004, p. 20). É, continua ele, um “espaço relativamente autônomo, esse
microcosmo dotado de suas leis próprias”, observado de acordo com algumas
características que lhe são inerentes: o grau de autonomia, a estrutura das rela-
ções objetivas, os agentes e as relações de posição e forças simbólicas no campo.

Pode ser o ensino de História um campo científico?

Segundo Bourdieu, o grau de autonomia de um campo pode ser caracte-


rizado pela natureza das pressões que sofre externamente e pela forma como
lida com essas pressões, se tem ou não condições de, sozinho, “se libertar
dessas imposições externas e [...] reconhecer apenas suas próprias determi-
nações internas” (BOURDIEU, 2004, p. 21). Já a heteronomia de um campo
“manifesta-se, essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em
especial os problemas políticos, aí se exprimem diretamente. Isso significa
que a politização de uma disciplina não é indício de grande autonomia [...].”
(p. 22). Ainda de acordo com o sociólogo francês, um campo científico se
define também através da definição dos objetos de disputas e dos interesses
específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses pró-
prios de outros campos (BOURDIEU, 1983).
De acordo com essa definição, o lugar ocupado por investigações em en-
sino de História – ou o próprio ensino de História – não poderia ser tomado
como um campo autônomo. Sua natureza é justamente interseccional, depen-
de e está em contínua interface com ambos os campos que ajudam a delimi-
tá-lo. Seus objetos estão estritamente vinculados aos campos com os quais se
relaciona. O ensino de História é, também por sua natureza, essencialmente
político e sensível ao exterior. A especificidade do ensino de História é justa-
mente essa mobilidade entre um saber de referência que, diferentemente de
outros saberes disciplinares, não mais possui estabilidade paradigmática – é,
sim, um espaço dinâmico de interpretação, formulação e explicações provisó-
rias – e os espaços institucionais que exigem e normatizam uma estabiliza-
ção, como o currículo, por exemplo. Embora todo constructo científico seja
por natureza provisório, os saberes históricos têm, em seu âmago, o signo da
provisoriedade, o que, igualmente, não significa que não exista rigor científi-
co em sua produção. Esse descompasso produz justamente os fenômenos de
interesse dos pesquisadores do ensino de História, cujos exemplos são o saber
histórico escolar e as relações de aprendizagem histórica.
Pierre Bourdieu afirma: “todo campo [...] é um campo de forças e um cam-
po de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças.” E continua:

194 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


esse campo de forças existe pela criação de seus agentes e “o espaço só existe
(de alguma maneira) pelos agentes e pelas relações objetivas entre os agentes
que aí se encontram” (BOURDIEU, 2004, p. 23). Ou seja, as relações de poder
entre os agentes de um campo determinam a sua especificidade, o que pode
ou não ser dito pelo grupo, os seus pontos de vista, os seus objetos ou temas.
O lugar ocupado pelos agentes direciona as possibilidades ou impossibilida-
des do campo. O ensino de História, desse modo, poderia ser circunscrito a
um campo, uma vez que existem nele agentes dominantes que, de certa forma,
impõem – mesmo que de forma não expressivamente violenta – condições
de produção. Isso não significa dizer, necessariamente, que existem indivíduos
como agentes, mas que instituições, periódicos e pesquisadores estão imersos
em uma tradição, um capital simbólico de pesquisa, como diria Bourdieu, que
impõe possibilidades e impossibilidades. Essa relação de força simbólica exer-
cida por agentes dominantes em um campo (ou lugar) permite a esse mesmo
campo realizar movimentos de manutenção e transformação – para a sua con-
servação, que também pode significar ortodoxia.

A construção de um lugar de pertencimento ao ensino de História

Mais uma vez, e espelhando a trajetória do ensino de História como campo


de pesquisa, a ele é imposta uma grande tensão, consubstanciada em autonomia
versus heteronomia. Igualmente, de acordo com sua identidade de fronteira, de
comunhões e afastamentos, seu lugar se encontra justamente no entrecruzar de
ambas as condições, o que, de certa forma, permite corroborar seu lugar fron-
teiriço. Uma última colaboração de Pierre Bourdieu pode lançar luz à questão
da configuração do ensino de História como campo – certamente não circuns-
crito como outros – ou lugar de pesquisa. Ele sugere ao Institut National de la
Recherche Agronomique (INRA), instituto de pesquisa ao qual direciona sua
conferência, que, em vez de serem desperdiçadas energias em disputas inter-
nas – as quais podem, no nosso caso, significar posições, aparências, citações,
etc. –, esforços sejam unidos para desenvolver e acentuar o que os faz, institu-
cionalmente, especificidade. Sobre a instituição, ele propõe a “integração dos
diferentes agentes e instituições em um projeto coletivo comum, mediante uma
organização sistemática da circulação da informação” (BOURDIEU, 2004, p.
60). Também confere ênfase ao papel de organização coletiva pela defesa da
autonomia, na construção dos “verdadeiros objetivos comuns”.
De forma semelhante, Bernard Charlot, ao propor a construção de uma
disciplina de referência para as ciências da educação, sugere movimentos de
organização de pontos de partida e de memória do campo. Segundo ele, as

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 195


ciências humanas e sociais, ao contrário das chamadas ciências “duras”, avan-
çam a partir de pontos de partida (renováveis em novos começos), o que po-
deria ser entendido como a não-acumulação de conhecimento dessas ciências
(CHARLOT, 2006). No entanto, a produção científica, de acordo com esse au-
tor, compõe (ou poderia compor) uma memória que seria útil na identificação
e na assunção de pontos de partida específicos da disciplina Educação. A com-
posição de uma memória disciplinar auxiliaria no avanço das pesquisas, uma
vez que facilitaria a visualização do estado do conhecimento, de temáticas
recorrentes, centrais, emergentes, dos resultados estabelecidos em diferentes
recortes (temáticos, espaciais, temporais, metodológicos). Charlot (2006) no-
meia essa iniciativa de composição do campo de “arquivo coletivo da pesquisa
em educação”, e, quanto ao trabalho a ser feito no campo epistemológico,
caracteriza-o como o estabelecimento de frentes de pesquisa.

Considerações finais

Nesse lugar epistemológico e identitário a ser construído para a pesquisa


em ensino de História, a busca da autonomia é certamente um processo com-
plexo e intrincado, como vimos, pela natureza própria do ensino de História
como lugar investigativo. Nesse sentido, propomos uma síntese, à guisa de
conclusão, do que compreendemos ser pauta do ensino de História como cam-
po de pesquisa, pertinente aos interesses e à tomada de posição de todos os
que dele se ocupam e nele produzem. Elencamos alguns principais itens dessa
pauta, nos termos que seguem:
• a perspectiva, ainda necessária, acerca das diferenças entre os proces-
sos históricos, a produção de interpretações e a construção de narra-
tivas sobre eles, tendo em vista a transformação desses elementos em
saber ensinável;
• a circulação imprescindível entre dois grandes domínios de saber – a
História e a Educação –, considerando os desafios que esse lugar de in-
tercâmbio produz. Frente a tais desafios, é preciso posicionar-se e as-
sumir a interlocução entre História e Educação com atitude produtiva;
• o reconhecimento epistemológico dos discursos que povoam ambos
os campos, para que seja possível constituir-se e posicionar-se nesse
lugar de fronteira;
• o entendimento das relações de sensibilidade entre professores e estu-
dantes, tendo em vista as características das interações que se estabele-
cem em sala de aula, o sentido do conhecimento e os modos de ser e es-
tar juntos nesse complexo lugar denominado escola de Educação Básica;

196 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


• a lida com os variados tipos de representação histórica do passado,
que inclui os diferentes níveis de estruturação do discurso histórico
(CARRETERO, 2010), com vistas a identificar as suas especificidades
e pertinências, reconhecer os diversos lugares no conhecimento histó-
rico que circulam em sala de aula, evitando que se caia na armadilha
de pretender um ou outro como legítimo;
• a tentativa de direcionar esforços para os grandes debates do ensino de
História, lugares efetivos de produção de consensos e fortalecimento
do campo, como é o caso da discussão sobre o currículo de História
como arena de disputas.

Enfim, está posto o desafio de apropriar-se, nas pesquisas sobre o ensi-


no de História, do lugar de fronteira como perspectiva, como mirante, assim
como sugerem Monteiro e Penna (2011), para que seja possível legitimá-lo
como um lugar específico de produção, compromissado a assumir sua condi-
ção e natureza, e a produzir posturas teórico-metodológicas fortes e densas,
que correspondam às demandas do nosso tempo.

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198 FLÁVIA ELOISA CAIMI E LETÍCIA MISTURA


Sentidos de “negro” no Ensino de História:
articulações em contextos de referência para a
produção do conhecimento no livro didático

Warley da Costa1

Este artigo está inserido no debate sobre a produção das pesquisas em


ensino de História fomentado, mais precisamente no XI Encontro Nacional
de Pesquisadores do Ensino de História, intitulado “Pesquisas em Ensino de
História: desafios de um campo de conhecimento”, que se realizou em 2017
no Rio de Janeiro.2 Considerando que o campo das pesquisas em ensino vem
se consolidando nas últimas décadas como um espaço potente para afirma-
ção de uma epistemologia particular e como um entrecruzamento importante
entre História e Educação, mobilizo para este estudo um dos desafios en-
frentados nesta arena, fruto das demandas sociais na atualidade: as questões
étnico-raciais. Vale ressaltar que as pesquisas nesse campo têm exigido cada
vez mais aprofundamento teórico-metodológico, assim como perspectiva de
análise mais complexa e refinada frente às mudanças ocorridas no campo do
currículo. Ao mesmo tempo que a educação brasileira tem vivido momentos
de conflitos e tensões resultantes dos embates travados na atualidade acerca
das reformulações curriculares, as disputas no âmbito do currículo têm colo-
cado em xeque o conhecimento que deve ser legitimado para ser ensinado nas
escolas. Como desdobramento, o debate sobre “o quê” e o “como” ensinar na
escola de Educação Básica tem-se acirrado. Frente às tensões, novas questões
referentes à seleção e à uniformização (ou não) dos conteúdos em âmbito na-
cional reemergiram especialmente na esteira de elaboração da Base Nacional

1 Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ. Professora permanente do PPGEH -


Mestrado Profissional; coordenadora do curso de Especialização CESPEB/Ensino de História;
professora de Didática e Prática de Ensino de História; membro do LEPEH (Laboratório de
Estudos e Pesquisas em Ensino de História) e do LaNEC (Laboratório do Núcleo de Estudos
Curriculares) da FE-UFRJ. E-mail: warleydacosta30@gmail.com
2 No Encontro mencionado, a autora foi uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisas em
Diálogo- GPD 2: Didática e Currículo na Pesquisa em Ensino de História.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 199


Comum Curricular (BNCC), quando o sujeito universal volta à cena em um
movimento de apagamento das diferenças. Dessa forma, em meio às mudan-
ças introduzidas e a serem introduzidas pelas propostas curriculares em jogo,
e em nome das conquistas recentes no currículo de História referentes às
abordagens das questões étnico-raciais, reforço a necessidade e a atualidade
do enfrentamento dos desafios epistemológicos do conhecimento histórico
escolar e de como ele vem sendo significado nas propostas curriculares dessa
disciplina, especialmente após a implementação da Lei 10.639/2003.3 Fruto
das demandas políticas que marcam a nossa contemporaneidade e que tra-
zem à tona as configurações hegemônicas das lutas identitárias em disputa
nos currículos escolares, esse debate é profícuo para se pensar o processo de
recontextualização do conhecimento histórico escolar que mobiliza sentidos
de temporalidade, tendo como pano de fundo os embates acerca das relações
étnico-raciais.
Dessa forma, este estudo tem por objetivo contribuir para o fortalecimento
do campo de pesquisa de currículo e questões étnico-raciais no que concerne
às mudanças introduzidas nas últimas décadas nos textos curriculares, apre-
sentando um novo quadro de inteligibilidade para a compreensão dos pro-
cessos de significação e identificação no currículo de História, analisando os
sentidos de “negro” em sala de aula, e considerando as especificidades de
suas experiências temporais. Ancorada na Teoria Social do Discurso (LACLAU
e MOUFFE, 2004),4 em articulação com autores da Teoria da História que
investem no estudo da temporalidade (RICOEUR, 1994, 1997; HARTOG,
1996; KOSELLECK, 2006; DOSSE, 1999), a pesquisa dialoga com a Teoria
da transposição didática (CHEVALLARD, 2009), para pensar as tensões epis-
temológicas e axiológicas que envolvem a produção e a mobilização do co-
nhecimento histórico que, na atualidade, está sendo ensinado na escola. O
acervo empírico para esta pesquisa foi constituído por uma coleção didática
aprovada no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2017) para os anos
finais do Ensino Fundamental, a saber, História.doc. Com base na análise desse
horizonte discursivo, será possível perceber os sentidos de negro mobilizados

3 A Lei alterou o art. 26 da LDBEN 9394/96, tornando obrigatório o ensino de História da África
e da cultura afro-brasileira nos currículos do ensino básico.
4 Ernesto Laclau (1935-2014), teórico argentino, foi professor da Universidade de Essex (Grã-
Betanha), onde ocupou a cátedra da Teoria Política e também coordenou o Programa de
Ideologia e Análise do Discurso. Em 1985, ele e Chantal Mouffe, cientista política que se
dedica aos estudos sobre pós-feminismo, e aos estudos do campo da filosofia da linguagem
e da psicanálise, publicaram o livro Hegemony and socialist strategy. Towards a radical
democratic politics, em que desenvolveram três eixos centrais: a constituição do discurso nas
relações sociais, o posicionamento antiessencialista, e as questões em torno do sujeito.

200 WARLEY DA COSTA


nos processos de significação/diferenciação nas narrativas dos livros didáticos
de História, o que contribui para a ampliação do debate em diferentes esferas
de escolarização, tanto nas escolas do ensino básico quanto na academia, a
partir das diferentes redes de formação inicial e continuada de professores de
História.
Este artigo está organizado em dois eixos de discussão: no primeiro, apre-
sento as principais articulações teóricas utilizadas como suporte para a pes-
quisa documental. No segundo, exponho a análise da coleção didática men-
cionada, a fim de investigar os processos de identificação/diferenciação em
diálogo com a teoria do discurso. Mobilizo também as experiências temporais,
para investir em sentidos de “negro” nas superfícies textuais em análise, im-
bricados no movimento de contextualização didática.

Sentidos de “negro” na história ensinada e as interlocuções teórico-


metodológicas

Neste primeiro eixo de discussão, privilegio as interlocuções teórico-me-


todológicas que considero como alternativas para os problemas da pesquisa.
Elas estão imbricadas com as formas de ler o mundo e com os modos de fazer
pesquisa. O mosaico teórico que pretendo costurar na presente pesquisa está
organizado em três eixos de problematização articulados entre si, definidos a
partir das problematizações que emergiram para esta análise. O primeiro diz
respeito aos processos de significação da diferença/identidade, particularmen-
te no âmbito das questões raciais que buscam compreender como são fixados os
sentidos de “negro” e “não negro” no sistema discursivo específico, o currículo
de História em diálogo com a Teoria do Discurso (LACLAU E MOUFFE, 2004).
Como segundo eixo, destaco, neste diálogo, a temporalidade, que assume uma
dimensão crucial neste estudo. Ela atravessa esse sistema discursivo (ensino/cur-
rículo de História), justificando, assim, o diálogo com autores da teoria da His-
tória, para se pensar em “jogos do tempo” imbricados com “jogos da linguagem”
no contexto escolar (GABRIEL e COSTA, 2011). Autores como Hartog, Ricouer
(1994), Dosse (1997) e Koselleck (2006) trazem contribuições importantes para
a discussão. Por fim, como terceiro eixo, e considerando a especificidade episte-
mológica do conhecimento histórico escolar, aciono para o debate o conceito de
transposição didática (CHEVALLARD, 2009), para se pensar a complexidade do
papel desempenhado pelos saberes no processo de reelaboração didática à luz de
uma abordagem discursiva, no material didático em estudo, frente ao desafio de
implementação dos conteúdos referentes à História da África e dos afro-brasilei-
ros em um currículo reconhecidamente antropocêntrico.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 201


Acredito que a teoria política de Laclau e Mouffe (2004) é potencialmen-
te fértil para se pensar a produção de sentidos de negro, como apresentada
nesta pesquisa, uma vez que o que está em jogo é a criação de processos de
identificação que se fixam contingencialmente nesta arena política: o ensino
de História. Como aposta política, defendo, neste primeiro eixo de problema-
tização, que o ensino de História se coloca como uma possibilidade de enfren-
tamento nos processos de produção de diferença/identidade, particularmente
no âmbito das questões raciais, e nos traz contribuições importantes para o
entendimento de currículo como espaço enunciativo e importante lócus de
produção identitária.
Para iniciar a exposição dos conceitos desenvolvidos por Laclau e Mouffe,
elegi alguns que penso serem inicialmente importantes para este estudo. Por
hora, como porta de entrada para a discussão, me detenho na definição de
discurso como conceito central para o entendimento desse quadro teórico.
A concepção de discurso desses autores se propõe a superar uma visão
meramente representacional da linguagem, partindo do entendimento de que
o significado se define por sistemas particulares de diferença: “algo é o que é
somente por meio de suas relações diferenciais com algo diferente” (LACLAU
e MOUFFE, 2004, p. 92). Para eles, o discurso não se reduz à linguagem, ele
abarca o conjunto da vida humana significativa, práticas econômicas, políti-
cas e linguísticas. O que é concebido como realidade depende da significação
discursiva desses objetos em determinados contextos e ações. Dessa forma, o
discurso é entendido como “um conjunto de elementos nos quais as relações
desempenham um papel constitutivo” (p. 86). O entendimento de social/dis-
curso põe em evidência o papel desempenhado pela prática “articulatória”,
entendida pelos autores não como uma mediação entre identidades positivas
e plenamente constituídas, mas como algo que se constitui por meio dela. Isso
significa que esses elementos não preexistem ao complexo relacional, mas se
constituem por meio dele.
Trata-se, assim, de enfatizarmos que o que está em jogo não é a produção
da identidade/diferença como algo que se esgota, mas, sim, em permanente
processo de construção. A diferença, por essa perspectiva, pode ser entendida
não como algo derivado da identidade, mas como um produto que mantém
estreita ligação com outras identidades: “as afirmações sobre diferença só fa-
zem sentido se compreendidas em suas afirmações sobre identidades” (SILVA,
2000, p. 75). Nesse sentido, a ideia de diferença/identidade é fértil se a con-
cebemos muito mais sob a perspectiva do “tornar-se” ou do “estar sendo”, do
que do “ser”. Visto que está situada no “jogo de modalidades específicas de
poder” (HALL, 2000, p. 109), essa ideia se constitui como um processo que

202 WARLEY DA COSTA


implica relações de exclusão na luta pela fixação de sentidos. Dito de outro
modo, o significado se define por sistemas particulares de diferenças. No caso
desta pesquisa, trata-se não de questionar os binarismos em torno dos quais
ela se organiza (negro/não negro; negro/branco) no texto do livro didático,
mas de problematizar os sentidos fixados (ou não) em relação a uma cadeia
de equivalências. No caso, a categoria identidade, em permanente movimento
de transformação, como fluxos de articulações hegemônicas que alcançam cer-
tos níveis de relativa plenitude temporal, para depois sofrer a rearticulação de
novos ou antigos elementos. A estabilização temporária dos sentidos implica o
fechamento do sistema a partir de uma operação de diferenciação. “Aquilo que é
deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do dentro”; assim,
“a diferença é parte ativa da formação da identidade.” (SILVA, 2000, p. 84).
Como segundo eixo do quadro teórico para o desenvolvimento deste proje-
to, busco, como alternativa, alinhar o mosaico teórico, trazendo contribuições
da teoria da História no que tange à dimensão da temporalidade. Para Gabriel
e Costa,

(...) as lógicas da equivalência e da diferença atuam em um contexto


onde o jogo da linguagem se faz de forma imbricada como o jogo do tem-
po em contexto escolar, onde a temporalidade é uma dimensão central
do discurso, isto é, de uma totalidade estruturada resultante de práticas
articulatórias. (GABRIEL e COSTA, 2011, p. 133)

Assim, entendemos o ensino/currículo de História como um sistema dis-


cursivo e como um terreno no qual se travam lutas identitárias (sentidos pro-
duzidos por meio das lógicas da equivalência e da diferença). Esse tipo de
reflexão traduz um movimento que permite pensar as políticas da diferença
como contextualizadas no tempo histórico e constituídas, contingencialmen-
te, como formas de articulação, produzidas a partir de um presente.
A reflexão no/com o tempo tem marcado o campo da História e tem ocu-
pado um lugar de destaque nos debates epistemológicos. Compreender essa
luta hegemônica por sentidos no/do tempo como um movimento produtivo
para a discussão em torno do conhecimento histórico na perspectiva aqui pri-
vilegiada, visando compreender a significação de passados e futuros, é um
caminho potente para a pesquisa em tela. Pretendo, neste debate, explorar, de
forma articulada, as temáticas da identidade e da temporalidade, considerando
que essa reflexão se situa no terreno da produção do conhecimento histórico.
As reflexões de Ricoeur (1994) sobre a estrutura narrativa do conhecimen-
to histórico, assim como as de Koselleck (2006) acerca das semânticas dos
tempos históricos (1990) e Hartog (1996), a respeito do regime moderno de

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 203


historicidade, são contribuições importantes e que podem ajudar a compre-
ender a natureza epistemológica do conhecimento histórico escolar tão caro
à nossa pesquisa.
Nesse sentido, cabe salientar que a noção de regimes de historicidade,
desenvolvida por Hartog, é bastante produtiva, na medida em que esse con-
ceito se refere a algo mais dinâmico, muito além de corte linear. Para o au-
tor, regimes de historicidade podem ser “entendidos como uma expressão
da experiência temporal, regimes não marcam meramente o tempo de forma
neutra, mas antes organizam o passado como uma sequência de estruturas”
(HARTOG, 1996, p. 2).
Nas palavras de Reis:

O passado é assaltado por interrogações novas, que oferecem respostas di-


ferentes das anteriores. Em cada presente há um esforço de compreensão:
autolocalização pela rearticulação de passado e futuro. São essas autoloca-
lização e organização temporais, originais em cada presente, que possibili-
tam as estratégias de ação. E são múltiplas as representações e respectivas
estratégias de ação que cada presente se oferece (...). (REIS, 2005, p. 11)

Assim, importa pensar nos efeitos das marcas de um regime de histori-


cidade sobre os processos de significação e identificação para pensar políti-
cas de identidade como políticas de localização também no tempo histórico
(GABRIEL e COSTA, 2010). Trata-se, portanto, das conexões entre presente,
futuro e passado na escrita da História (HARTOG, 1996) ou, ainda, de como
essas conexões podem contribuir para o avanço das discussões sobre a inter-
face entre processos de identificação e ensino de História.
Outra categoria analítica que é fulcral para a pesquisa em torno do conhe-
cimento histórico é a noção de identidade narrativa desenvolvida por Paul
Ricouer (1994). Para o autor, a estrutura narrativa é uma condição e elemento
estruturante do conhecimento histórico.
A expressão narrativa histórica implica outro entendimento da noção de
narrativa. Ela se constitui não apenas como um modo possível da escrita da
História, mas também como um aspecto constitutivo desse saber. Gabriel,
citando Moniot, nos ajuda a entender o sentido do termo: “a narração está
no princípio mesmo da História, é uma iniciativa constitutiva, não a prática
de uma prestação de contas, é a contribuição de uma inteligibilidade, não sua
imperfeição” (MONIOT, apud GABRIEL, 2010).
Ricoeur, ao desenvolver reflexões no âmbito da hermenêutica, também
contribui nesse sentido. Em sua obra, chama a atenção para o tempo inventa-

204 WARLEY DA COSTA


do e narrado pelo historiador, que ele chama de “terceiro tempo” na natureza
epistemológica e axiológica do saber histórico. Sua tese central é afirmar a
potencialidade teórica do “tempo narrado”, tanto na historiografia quanto na
ficção. Esse entendimento é potencialmente fértil para se pensar a reconfigu-
ração narrativa no texto analisado, tendo em vista as articulações necessárias
do texto histórico entre presente, passado e futuro.
Considerando que as narrativas históricas presentes no texto curricular em
análise constituem um texto que, como versão escolar, passa por um processo
de reelaboração do conhecimento, a questão da especificidade epistemológica
do conhecimento histórico escolar ganha corpo neste estudo. Nesse sentido,
a apropriação dos estudos que giram em torno da compreensão do proces-
so de construção dos saberes curriculares, com base na epistemologia social
escolar5 (DEVELAY, 1988, 1995; CHEVALLARD, 2009; MONTEIRO, 2002;
GABRIEL, 2003, 2006) para o ensino de História, emerge como uma contri-
buição importante. A defesa de um conhecimento escolar com especificidades
próprias, constituído com um relativo grau de autonomia, que o diferencia do
saber de referência socialmente legitimado, contribui para a reflexão sobre os
desafios para a implementação da História da África e dos afro-brasileiros nos
currículos escolares.
Para a sustentação da argumentação a favor da existência de um saber
histórico escolar diferenciado, busquei o conceito de transposição didática,
desenvolvido por Chevallard (2009), para se pensar a complexidade do papel
desempenhado pelos saberes no processo de reelaboração didática à luz de
uma abordagem discursiva.
Desse modo, ao se analisarem os sentidos de negro/não negro nos tex-
tos dos livros didáticos do ensino básico, em uma perspectiva orientada pela
teoria do discurso, é possível e necessário trazer para o debate as questões
relacionadas à produção, ao consumo e à circulação desse saber escolar. Cabe
ressaltar que os processos de transposição didática constituem processos dis-
cursivos em meio a disputas por fixações de sentidos hegemônicos de saberes
considerados escolares (ou não) e que, nesse movimento, o jogo político con-
figura-se como elemento central nas disputas no campo do currículo.
Assim, importa considerar as contribuições teóricas do autor para pensar
os questionamentos suscitados pela abordagem da epistemologia social esco-
lar, visando compreender a relação do saber escolar com os seus saberes de

5 A epistemologia escolar se refere aos processos de construção de saberes que circulam


na escola, considerando a especificidade de suas condições de produção, transmissão e
circulação.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 205


referência, imbricados no jogo político por sua legitimação, e, por tabela, entender
os mecanismos que entram no jogo político do processo de significação dos sa-
beres escolares em “situações de criações didáticas de objetos” (CHEVALLARD,
2009, p. 47), trazendo as tensões que envolvem os sentidos de objetivação, e de
busca do que é “verdadeiro” e “legítimo” como conhecimento escolar.
Para reforçar essa proposição, posso destacar um primeiro aspecto rela-
cionado à aposta de Chevallard em relação à diferenciação entre os saberes,
atribuindo, assim, um lugar particular ao conhecimento escolar. Para esse
teórico, para que um determinado saber possa ser ensinado, torna-se necessá-
rio estabelecer um distanciamento entre os demais saberes que lhe servem de
referência, em especial o saber acadêmico. Este, ao deixar de ser visto como
a única forma de inteligibilidade de leitura do mundo, permite que o saber
escolar adquira vida própria, relativamente autônoma.
Um segundo aspecto que vale ressaltar são as adaptações e mudanças por
que passam os saberes no processo de transposição didática. O autor destaca
alguns mecanismos de “transformação”6 do saber a ser ensinado que estão
associados à necessidade de uma forma de legitimação/objetivação/sentidos
de verdade dos saberes escolares. Assim, a fixação de sentidos de determinado
conhecimento como acadêmico ou escolar vai além da simples substituição
de um pelo outro. Quando incorporado a uma cadeia de equivalência que fixa
seu sentido de escolar, o conhecimento acadêmico garante, ao mesmo tempo,
a sua recontextualização como conhecimento científico, fazendo com que am-
bos (o acadêmico e o escolar) se configurem como narrativa em âmbito aca-
dêmico ou como narrativa em âmbito escolar. Tanto em sua versão acadêmica
quanto em sua versão escolar, em processo dinâmico de reelaboração, esses
conhecimentos necessitam fixar novos fluxos de cientificidade ante a efetua-
ção da transposição didática.
Trazer como foco o conceito de noosfera (que é a interface entre a socieda-
de e as esferas de produção de saberes – leis de ensino, currículo oficial, po-
lítica do livro didático) explorado pelo autor, permite-me problematizar esse
recorte privilegiado em uma perspectiva do social, em sua incompletude, pois
a noosfera age “como um filtro entre o sistema de ensino e a sociedade em
geral” (CHEVALLARD, 2009, p. 214).

6 Chevallard destaca alguns mecanismos, tais como: a dessincretização – criação de uma nova
síntese pautada em outra racionalidade diferente daquela que deu origem aos saberes –, a
despersonalização – o apagamento de autoria –, a programabilidade – modelo ordenador
do texto do saber em sua dinâmica temporal –, a publicidade – publicização dos saberes a
ensinar –, e o controle social da aprendizagem – controle regulado a partir dos procedimentos
de avaliação e verificação (CHEVALLARD, 2009, p. 71).

206 WARLEY DA COSTA


Desse modo, para a sua própria sobrevivência, o conhecimento escolar necessi-
ta de uma forma de compatibilidade com os grupos de interesse da sociedade. Ele
também precisa de renovação, na medida em que se torna desatualizado. Nessa di-
nâmica, que não se limita ao campo educacional, há a interferência de vários agentes
sociais que influenciam a elaboração e seleção dos saberes veiculados como con-
teúdos dos livros didáticos, exercendo uma significativa influência sobre os conhe-
cimentos a serem ensinados. Do ponto de vista desta pesquisa, identifico a interfe-
rência do processo avaliativo do MEC, que define o que pode ou não ser incluído nos
livros didáticos, e a influência do movimento social representado pelos militantes
do Movimento Negro sobre esse espaço de transposição externa. Vale lembrar que a
pressão exercida por esses grupos possibilitou a inclusão, no currículo, do ensino da
História da África e dos afro-brasileiros, implementado por lei (10.639), assim como
a participação, na elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino de
História da África e dos afro-brasileiros, de vários militantes do movimento.
Para o aprofundamento de nossas análises, ainda na esteira das argumenta-
ções de Chevallard, vale apontar o duplo registro no qual se apoia a disciplina
História, considerando seu alto grau de complexidade: um, de ordem epistemo-
lógica, e outro, de ordem axiológica. Este segundo registro assume centralidade
significativa ao se pensar no processo de didatização da disciplina História, na
medida em que educadores e pesquisadores da área necessitam mobilizar os va-
lores éticos, morais, cívicos, políticos e culturais ao exercerem suas funções: “esse
processo se apresenta de maneira sistemática, muitas vezes, de forma explícita,
estando presente tanto no seio do próprio saber histórico acadêmico como em
todas as instâncias onde se opera a sua reelaboração” (GABRIEL, 2003, p. 180).
Em linhas gerais, podemos dizer que, tanto nas pesquisas acadêmicas
quanto nas esferas externas de produção do saber a ensinar (noosfera), assim
como na sala de aula (transposição interna), o saber histórico é produzido a
partir das escolhas teóricas e axiológicas pelas quais se orientam os diferentes
atores envolvidos em sua produção, como professores, pesquisadores, técni-
cos educacionais, autores de livros didáticos, entre outros.

Narrativas sobre “negro” no livro didático de História e suas


reconfigurações como conhecimento histórico escolar

Uma vez apresentado o arcabouço teórico que tracei como chave de leitura
para este estudo, cabe agora investir na análise propriamente dita. A análise
dos textos dos livros didáticos visa perceber como se desenvolvem, nessa su-
perfície textual, os processos de recontextualização do conhecimento históri-
co escolar, especialmente quando se enfrenta o desafio de implementação dos

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 207


conteúdos referentes à cultura de grupos excluídos historicamente do currí-
culo escolar, como os africanos e afro-brasileiros. O trabalho de transposição
didática efetuado na sala de aula e suas reconfigurações nas leituras e narra-
tivas dos autores de livros didáticos, a identificação dos saberes de referência
mobilizados nesses textos, quando a temática se volta para o “negro”, foram
objetos privilegiados neste artigo. Além disso, o olhar observador esteve vol-
tado para os processos de identificação/diferença que ocorrem nesse “guia”
curricular, assim como para as experiências temporais e as expectativas de
futuro acionadas nessas narrativas em meio aos debates da temática em tela.
A justificativa para o investimento nessa superfície textual como objeto de
estudo, uma coleção didática de História destinada aos anos finais do ensino
fundamental,7 aprovada pelos avaliadores do PNLD 2017 e distribuída gratui-
tamente para os alunos das escolas públicas em âmbito nacional, se dá pelo re-
conhecimento da importância do livro didático e suas múltiplas funções. Muitas
pesquisas têm se debruçado sobre esse material escolar, quer como documento
e guardião de memórias, quer como texto curricular, quer como recurso pedagó-
gico em sala de aula. Vale ressaltar que é um material importante e amplamente
utilizado pelos professores em salas de aula, especialmente após o advento do
PNLD, que permitiu ampla distribuição gratuita. Muitas vezes é empregado pelo
professor como orientação curricular ou até mesmo como instrumento de estudo
e atualização. Dessa forma, pode ser considerado um “objeto cultural complexo”
(MONTEIRO, 2015), visto que possui múltiplas funções.8 Um outro aspecto
que envolve a sua produção é o caráter mercadológico do livro didático, pois sua
edição está condicionada ao crivo avaliativo do PNLD, e essa condição não deve
ser descartada. Uma vez aprovada, sua distribuição tem futuro promissor.
A escolha da coleção História.doc9 como objeto de investigação se deu pela sua
avaliação no Guia 2017. A obra, apesar de manter uma perspectiva cronológica li-
near, busca integrar a História europeia, americana, africana e brasileira, sendo que
a primeira ocupa espaço proporcionalmente majoritário nos seus quatro volumes.
Um aspecto que chama a atenção na resenha da obra inserida no Guia PNLD é que:

O foco da obra é o investimento em uma narrativa que alterna escalas de


microanálise com contextos mais abrangentes da História. Decorre dessa

7 História.doc, autores Daniela Buono Calainho, Jorge Ferreira, Ronaldo Vainfas, Sheila de
Castro Faria. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.
8 Choppin (2004, apud MONTEIRO, 2015, p. 65) identifica quatro funções do livro didático:
referencial, instrumental, ideológica e cultural, e documental.
9 Para o edital de 2017, foram selecionadas 14 coleções destinadas aos anos finais do Ensino
Fundamental.

208 WARLEY DA COSTA


estratégia a opção metodológica de apresentar um personagem ou enredo
particular em diálogo com o contexto mais amplo abordado no capítulo. A
temática da História da África e afrodescendentes, desenvolvida nos quatro
volumes, também acompanha a narrativa microanalítica com destaque para
a abordagem centrada na biografia de alguns personagens importantes na
luta contra a discriminação racial. (BRASIL, 2016 – Guia PNLD, p. 93)

Esse tipo de abordagem, que se apoia na variação de escalas em sua narrativa


microanalítica, é uma estratégia potencialmente fértil para o processo de recon-
textualização didática, pois, ao investir em histórias de vidas individuais, possi-
bilita uma aproximação do estudante com o enredo em destaque. Outro aspecto
que vale ressaltar é a inserção da História da África e afrodescendentes nos qua-
tro volumes, o que revela um esforço dos autores em atender as orientações das
Diretrizes Nacionais para o ensino da História da África e dos afro-brasileiros
(2004), no sentido de serem valorizados os personagens negros da História.10
Outro aspecto a considerar para a escolha da coleção reside na própria trajetória
de seus autores, professores universitários de História reconhecidamente afilia-
dos a uma matriz historiográfica identificada com a Nova História Social.
Como se vê, neste artigo busco estabelecer relações das narrativas dos au-
tores dos livros didáticos com as orientações das instâncias oficiais, o PNLD
(edital 2017), a Lei 10.639/2003 e as Diretrizes Nacionais, que, como mencio-
nado anteriormente, produzem um trabalho de recontextualização didática e
mobilizam saberes de referência para a produção dessas narrativas.
De modo geral, podemos analisar quantitativamente a presença da África
e afrodescendentes na coleção História.doc e nos orientar pelo quadro a seguir:

Volume Unidades/capítulos Referentes ao tema


1. (6º ano) 2/3 Cap. 4 (un. 2) *
2. (7º ano) 5/2 Cap. 13 e 14 (toda unidade 5) *
1. (8º ano) 6/18 Cap. 2 (un. 1) *
Cap. 13 (un. 5)
Cap. 14 (un. 5)
Cap. 15 (un. 5)
Cap. 17 (un. 6)
2. (9º ano) 5/18 Cap. 9 (un. 3)
Cap. 10 (un.3)
Capítulos que tratam da História da África e dos afrodescendentes na coleção História.doc.
*Capítulos dedicados exclusivamente ao tema.

10 Nessa coleção, a História dos povos indígenas aparece em menor proporção, apesar do
esforço dos autores em atender a demanda do edital e da Lei 11.645/2008.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 209


Pode-se observar que, quantitativamente, há um esforço dos autores, como
já comentado, em enfocar os processos de significação/identificação em torno
do significante negro, processos esses que mobilizam, de forma imbricada,
os jogos de tempo e de linguagem, provavelmente buscando atender as exi-
gências do edital do PNLD e, indiretamente, da Lei 10.639/2003. Entretanto,
há de se destacar que, também quantitativamente, há um número reduzido
de capítulos totalmente dedicados ao tema (3) e que, ainda assim, eles se
encontram em meio às narrativas da história europeia. Podemos tomar como
exemplo o volume do 8º ano: dos 18 capítulos, seis tratam do tema, sendo
que apenas um o enfoca com exclusividade, o capítulo 2. Ainda nesse capítulo,
temos: “A África no tempo do tráfico de escravos” – os sentidos de africani-
dade são acionados para explicar a rede comercial do tráfico internacional no
próprio continente africano. Como desdobramentos, nessa superfície textual
temos: O Reino do Congo (O Congo e o comércio de escravos); O Reino de Angola
(Portugueses em Angola); Holandeses: um contratempo. As refigurações narrativas
desse capítulo exibem uma forma de articulação bastante recorrente no con-
texto discursivo dos textos reunidos nos quatro volumes da coleção. Nessas
refigurações, os sentidos de “negro” operam, ao mesmo tempo, em uma ca-
deia que expulsa do seu interior outros sentidos possíveis (de “não negro”),
que, ao serem expulsos, constituem outra cadeia de equivalência e passam a
desempenhar, nesse contexto de lutas identitárias, fixações hegemônicas de
sentidos. Nota-se, pelos fragmentos apresentados, que a vida no Congo e em
Angola está vinculada ao tráfico Atlântico e à expansão portuguesa, além da
presença holandesa; evidenciam-se, assim, configurações narrativas que pri-
vilegiam o viés eurocêntrico, mesmo com o esforço de se mobilizarem fluxos
de sentidos de negro. Ainda assim, essa abordagem é deveras condizente com
as orientações curriculares das Diretrizes Curriculares, as quais apresentam,
como princípio, a condução “ao conhecimento e à valorização da história dos
povos africanos e da cultura afro-brasileira” em uma unidade cujo título é
Colonização Moderna e mercantilismo. Apesar do esforço para valorizar a história
dos reinos do Congo e de Angola, o texto reafirma a incorporação de fluxos
hegemônicos que circulam nos diferentes campos de saber e que servem de
referência à produção do conhecimento histórico escolar.
Ainda considerando esses fragmentos de textos em análise (unidade 1, v.
3, 8º ano), nos quais reconhecemos a permanência de certos arranjos discursi-
vos hegemônicos, vale a pena acionar a discussão sobre as fronteiras possíveis
entre o “particular” e o “universal”, para o entendimento das lutas hegemôni-
cas e a produção de sentidos nesse texto escolarizado. Para Laclau, a universa-
lidade e a plenitude são inalcançáveis “e o particular só existe no movimento
contraditório de afirmar uma identidade diferencial e ao mesmo tempo anu-

210 WARLEY DA COSTA


lá-la por meio de sua inclusão em um meio não diferencial” (LACLAU, 1996,
p. 57). De acordo com ele, o universal é um particular que se universalizou,
e não é outra coisa senão um particular que acessou uma posição dominante.
Nesse caso, há a tentativa de afirmação de uma identidade diferencial como
universal, tentativa esta que, ao incluir a identidade diferencial em um meio
não diferencial, tende a anulá-la como diferença. Assim, em meio às lutas
identitárias, o particular que tenderia a se tornar universal (narrativas sobre
o Continente Africano), deixa de ser o grupo afrodescendente e passa a ser os
grupos culturais historicamente privilegiados nos currículos escolares, empre-
endedores do mercantilismo na modernidade.
Também no que tange aos processos de reelaboração didática efetuados
pelos autores para a produção do texto, objeto de análise deste estudo, rea-
firmo que esses mecanismos de “adaptação” estão associados à necessidade
de uma forma de legitimação/objetivação/sentidos de verdade dos saberes es-
colares. Assim, para Chevallard (2009), no trabalho de transposição didática
os saberes de referência passam por um filtro até se tornarem ensináveis.
O teórico francês privilegia, em seus estudos para a didática da Matemáti-
ca, os saberes acadêmicos como referências; no caso do ensino de História,
essa “transformação” dos saberes tem como referencial, além das disciplinas
acadêmicas, outras disciplinas afins e as práticas sociais (DEVELAY, 1992);
MARTINAND,1986, apud MONTEIRO, 2007). Para Develay, o saber a ensi-
nar, passando por um processo de didatização e escolhas axiológicas, desna-
turaliza a ideia de que o movimento deva ser necessariamente descendente,
ou seja, da academia para a escola. No caso de o saber mobilizado para a
produção do conhecimento escolar “História da África e da cultura afro-bra-
sileira” ter, inicialmente, se voltado para os saberes dos movimentos sociais,
como referência, e não exclusivamente para o saber acadêmico, há a inversão
dessa ordem, histórica e socialmente “naturalizada”, pela qual os saberes das
disciplinas acadêmicas são referências quase exclusivas para a legitimação do
saber escolar. Esse é um traço interessante sobre a forma específica de ges-
tão das demandas da diferença pela escola, na área da disciplina de História,
que deve ser explorado. Tendo em vista a obrigatoriedade da Lei mencionada,
os textos curriculares (propostas oficiais, livros didáticos), vistos então como
terreno fértil para a proliferação das demandas sociais do nosso tempo, con-
figuraram-se como palco de lutas hegemônicas que se refletiram nas práticas
articulatórias mobilizadas pelos agentes envolvidos. No caso da elaboração
das políticas públicas que orientaram as Diretrizes Curriculares Nacionais, os
saberes de referência mobilizados para tornar a história da Cultura africana e
afro-brasileira ensinável tomam como referencial o discurso dos movimentos
sociais que, em disputa, acionam especificamente a dimensão axiológica. Há,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 211


nesses horizontes textuais, a presença de diferentes narrativas que investem
nos sentidos de raça, cultura e “negro”, que se articulam discursivamente,
produzindo interlocuções de diferentes matrizes teóricas em contextos histó-
ricos particulares, que dialogam com sentidos de passados e futuros. O texto
da coleção didática em estudo também recorre a diferentes estratégias para a
elaboração desse conhecimento escolarizado. Os autores, notadamente envol-
vidos em suas práticas docentes, tendem a acionar o saber acadêmico a fim de
ampliar o caminho para a inserção da História da África, ainda que em uma
História de viés eurocêntrico.
A despeito das críticas ao texto, cabe destacar uma estratégia utilizada
pelos autores, uma das motivações para a escolha da coleção, no que se refere
às suas opções teórico-metodológicas: o investimento em uma narrativa que
alterna escalas de microanálise com contextos mais abrangentes da História.
Essa estratégia decorre da opção metodológica de apresentar um personagem
ou enredo particular em diálogo com o contexto mais amplo abordado no ca-
pítulo. É o caso de Sundiata – que “era filho de Naré Famegã, rei do povo Man-
dinga. Tinha paralisia nas pernas e não conseguia andar” –, mencionado logo
no início do Capítulo 14 (V. 2, p. 242) para introduzir a história do Império
do Mali. De fato, essa abordagem aproxima e torna familiar para o aluno leitor
o conhecimento histórico, pois trata-se de um menino com deficiência física
que, apesar das dificuldades, consegue formar um dos mais poderosos impé-
rios daquela parte da África no século XIII. Em relação aos autores da coleção,
pesquisadores afiliados à História Social que privilegiam a variação de esca-
las como uma possibilidade teórico-metodológica, podemos inferir que eles a
acionam como uma referência importante para a produção do conhecimento
histórico escolar. A temática da História da África e afrodescendentes, desen-
volvida nos quatro volumes, também acompanha a narrativa microanalítica,
com destaque para a abordagem centrada na biografia de alguns personagens
importantes na luta contra a discriminação racial, como Nelson Mandela, Mal-
con X, Martin Luther King, Rosa Parker e Abdias Nascimento, entre outros.
Segundo Levi, a abordagem microanalítica possibilita a criação de um en-
redo em que “O leitor é envolvido em uma espécie de diálogo e participa de
todo o processo de construção de argumento histórico” (LEVI, 1992, p. 131).
Dessa forma, observa-se que, sob essa perspectiva, o conhecimento histórico
escolar refigurado nas narrativas dos autores em questão aponta para um pro-
cesso de reelaboração didática, no qual são efetuadas articulações discursivas
que mobilizam fluxos de cientificidade na matriz historiográfica mencionada
e que instigam o leitor a se aproximar da experiência narrada. O fragmento
abaixo é um exemplo dessa afirmação:

212 WARLEY DA COSTA


Rosa Louise McCauley, conhecida apenas por Rosa Prks, era uma mu-
lher negra que morava na cidade de Montgomery, capital do Estado do
Alabama, sul dos Estados Unidos. Trabalhava como costureira. No dia
1º de dezembro de 1055, aos 42 anos, Rosa entrou em um ônibus e
sentou em um lugar vago na parte da frente. Naquela época, pelas leis
do município, aos negros era reservada a parte traseira do veículo. Um
homem branco aproximou-se e exigiu que ela levantasse do banco. Ela
se recusou a sair daquele lugar. Por desobedecer a lei, foi levada a uma
delegacia de polícia, fichada, presa e multada. Sua atitude deu início à
luta da população negra dos Estados Unidos por seus direitos de cidada-
nia e igualdade social. (CALAINHO et al., 2015, v. 4, p. 163)

Nesse caso, é possível perceber a presença dessas estratégias discursivas


dos autores, que buscam aguçar nos leitores os processos de significação/
identificação ao refigurarem o conhecimento histórico escolar no âmbito das
disputas identitárias que marcam a nossa contemporaneidade e ao qual esses
leitores têm acesso através do texto acima. Dessa forma, o leitor participa do
evento narrado, na medida em que ocorrem os processos de identificação e
diferenciação.
Nas palavras dos próprios autores no Manual do Professor, essa intenção
fica clara:

A nossa tentativa de familiarizar os estudantes com o tempo histórico,


seus atores, motivações, angústias e conflitos residiu no recurso de al-
ternância de escalas de observação. Isto significa articular a História, em
perspectiva geral, com enredos muito específicos relacionados a perso-
nagens, ou em menor escala, a episódios. (História.doc, v. 2, p. 269)

Assim, essa abordagem historiográfica possibilita a problematização das ar-


ticulações temporais imbricadas em passados e futuros dos sujeitos e memórias
capturadas no tempo, cujos processos de identificação permitem articulá-los no
presente, quiçá em suas expectativas de futuro (KOSELLECK, 2006).
À guisa de conclusão, podemos dizer que este estudo buscou problemati-
zar a potencialidade política da disciplina História na produção da identidade/
diferença nos currículos escolares, levando em conta os sentidos de “negro”
mobilizados no horizonte discursivo de uma coleção didática.
Dessa forma, cabe considerar, nesta análise, as marcas de fluxos culturais
hibridizados e mobilizados como mecanismos discursivos que produzem/
subvertem as fixações hegemônicas de sentidos de “negro” nesse horizonte
textual.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 213


Como resultado da análise, verifiquei que, apesar da abordagem cronológi-
ca e linear apresentada pelos autores, e apesar da prevalência de uma história
de viés eurocêntrico, há um esforço dos autores em realizar um movimento de
valorização da História da África e dos afrodescendentes.
Como um texto resultante de um processo de reelaboração didática, e
considerando toda a sua especificidade, apresenta como saberes de referên-
cia mobilizados pelos seus autores, preferencialmente, os saberes acadêmicos,
sem deixar, entretanto, de manter certa aproximação com as orientações dos
documentos curriculares (PNLD, Diretrizes curriculares, LDB), incluindo aí a
própria Lei 10.639.
Dessa forma, advogo que as questões abordadas neste estudo, antes de
defender qualquer “verdade” absoluta a respeito da temática, oferecem subsí-
dios para o debate atual no campo do Ensino de História, visto aqui como um
espaço discursivo de hibridização epistemológica. Em linhas gerais, espero
contribuir, a partir das questões que envolvem sentidos de “negro” no currí-
culo escolar, com a apresentação de um novo quadro de inteligibilidade para
a compreensão dos processos de significação/identificação no ensino dessa
disciplina. Perceber, nesse movimento articulatório, como vários fluxos de
sentidos são mobilizados e hibridizados em experiências temporais diferen-
ciadas se faz necessário em tempos de mudanças curriculares e em tempos de
retrocesso político.

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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 215


Em nome da ordem:
as escolas municipais paulistanas na
ditadura civil-militar (1964-1985) e a professora por evocação1

Helenice Ciampi2

A pesquisa “Em nome da ordem: as escolas municipais de ensino de pri-


meiro grau da cidade de São Paulo no período da ditadura civil-militar no Bra-
sil (1964-1985)” foi fruto de um projeto anterior sobre memórias e práticas de
professores de História da rede municipal de São Paulo desenvolvido por mim,
Helenice Ciampi, entre 2007 a 2009, na Faculdade de Educação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A partir das memórias desses
professores, constatou-se a necessidade de eles se reconhecerem na história
do ensino municipal e de inserirem suas histórias individuais e profissionais
na história coletiva da instituição. Em 2010, surgiu o projeto “Em nome da
ordem”, no qual se agregou o pesquisador do Departamento de História da Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP), prof. Dr. Alexandre Pianelli Godoy.
De 2010 a 2012, contamos, na vigência interinstitucional do projeto, se-
diado na PUC-SP, com duas bolsas de Iniciação Científica PIBIC/CNPq a cada
semestre, renovadas, conforme as necessidades da pesquisa, com alunos do
curso de História e Pedagogia. Essa primeira fase foi de coleta, catalogação e
organização do material de pesquisa, e resultou em três grandes blocos docu-
mentais: a) documentos da/sobre a rede/sistema municipal de ensino (decre-
tos, leis e pareceres do Diário Oficial do Município e do Estado de São Paulo;
relatórios de gestão municipal; projetos educativos para a rede; revistas peda-

1 Este artigo constitui parte do texto inscrito na plataforma Sucupira, em 2017, pelos pesqui-
sadores do projeto, acrescido da análise da entrevista da professora Luzilda Pianelli Godoy,
realizada em 2012.
2 Professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atua no Programa de
Pós-graduação em Educação: História, Política, Sociedade, na linha de pesquisa Instituição
Escolar: organização, práticas pedagógicas e formação de educadores, e integra o Grupo de
pesquisa História das Instituições e dos Intelectuais da Educação Brasileira. Possui Mestrado e
Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: heleciampi@uol.com.br

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 217


gógicas e impressos escolares; fotografias de desfiles, fanfarras e comemora-
ções cívicas; plantas aéreas, baixas e topográficas de oito escolas selecionadas;
livros sobre o ensino municipal de São Paulo e sobre a história dos bairros
de São Paulo); b) documentos dos arquivos de oito escolas selecionadas por
amostragem e representativas das diferentes regiões socioeconômicas da cida-
de no período, sendo elas: 1. Escola Mista do Imirim = criação: 30/08/1956.
E. M. Comandante Garcia D’Avila = renomeação 01/04/1969; 2. Escolas
Agrupadas de Vila Brasilina = criação: 16/11/1956. E. M. Marechal Eurico
Gaspar Dutra = renomeação 02/07/1974; 3. Escolas Reunidas de Vila Nova
Cachoeirinha = criação: 24/01/1963. E. M. Tenente Aviador Frederico Gustavo
dos Santos = renomeação 08/04/1969; 4. Escolas Agrupadas Cidade Mãe
do Céu = criação: 11/11/1963. E. M. General Othelo Franco = renomeação
07/04/1969; 5. Escola Alto do Mandaqui = criação: 19/05/1970. E. M. Co-
mandante Gastão Moutinho = renomeação 10/06/1970; 6. E. M. General
Euclydes de Oliveira Figueiredo = criação: 11/11/1970; 7. Escola Municipal
Arpoador = criação: 19/01/1971. E. M. General Alcides Gonçalves Etchegoyen
= renomeação 16/02/1971; 8. Escola Municipal da Vila Dalva = criação:
11/02/1971. E. M. General Álvaro da Silva Braga = renomeação 16/02/1971
(projetos e trabalhos escolares; fotografias de desfiles, festas, fanfarras e co-
memorações cívicas; livro de termo de visitas; atas de reuniões de conselho
de classe e de reuniões pedagógicas; livros de ponto e de matrículas das esco-
las; livros de registro de aquisição e compra de bens; prontuários de alunos;
livros de atas da A.P.M e dos centros cívicos das escolas; além de livros sobre
a história de alguns bairros nos quais se localizam as escolas, produzidos por
membros da comunidade, e de memórias escritas de professores contidas em
revistas dos respectivos bairros); c) documentos orais: transcrição de seis en-
trevistas – com uma professora realocada como funcionária do Departamento
de Orientação Técnica (DOT) do Sistema Municipal de Ensino e responsável
pela organização do seu arquivo (Sidoni Chamoun); com uma ex-aluna (Etel
Cristina Fernandes de Souza); duas ex-professoras de nível I (primário) [Lu-
zilda Pianelli Godoy e Maria Heloísa Alves da Silva]; duas ex-professoras do
nível II (ginásio) [Maria de Lurdes Henriques Pereira de Oliveira e Maria Lúcia
Lima Santi Yuassa] que trabalharam/lecionaram no ensino municipal durante
o regime militar. Ao todo, pudemos contabilizar mais de cinco mil documen-
tos digitalizados, manuscritos e impressos durante esses dois anos de seleção,
coleta e organização do material.
De 2012 a 2014, passamos a analisar o extenso material de pesquisa, e
publicamos, em diferentes anais – de simpósios, congressos e encontros re-
gionais, nacionais e internacionais – e em algumas revistas acadêmicas, os
resultados encontrados, dos quais resultaram três eixos norteadores da pes-

218 HELENICE CIAMPI


quisa: a) arquitetura escolar, currículos e impressos escolares; b) disciplinas
escolares e comemorações cívicas; e c) memórias orais dos sujeitos escolares.
Do eixo “a”, pudemos concluir que a arquitetura escolar municipal acom-
panhou a mudança dos nomes das escolas, isto é, as que tinham sido constru-
ídas entre os anos 1950 e 1960, no início do ensino municipal de São Paulo,
perderam não só os nomes dos bairros que as designavam, tendo sido reno-
meadas com nomes de patronos militares, como também foram modificadas
internamente. Toda a concepção espacial-pedagógica das escolas, as quais, an-
tes, atendiam somente ao ensino primário, foi alterada para oferecer salas para
o ensino ginasial, de modo que essas escolas se readaptaram para a vindoura
escola gratuita de oito anos, o que acarretou inúmeros problemas adminis-
trativos, espaciais e pedagógicos para a direção, professores, pais e alunos.
Por sua vez, nos estabelecimentos escolares construídos entre os anos 1960
e 1970 – também criados ou renomeados com nomes de patronos militares,
na fase de consolidação do ensino municipal como um sistema de ensino e
da Lei 5.692/71, a qual implantava o ensino de primeiro grau em todo país –,
notou-se que as plantas e as fotografias das edificações privilegiavam apenas
os espaços das salas de aulas, diminuindo os destinados a atividades esporti-
vas, recreação ou mesmo à segmentação de atividades que pudessem oferecer
um currículo mais formativo e menos informativo. Os nomes de patronos
militares dessas oito escolas pesquisadas, além de outras que se espalharam
pelo município no período, não tinham a ver apenas com o fato óbvio de es-
tarem relacionados com a ditadura civil-militar, mas, sobretudo, com a defesa
de uma representação da rede de ensino municipal como coesa, burocratica-
mente eficiente e bem organizada, que foi divulgada por meio dos principais
impressos da rede, os quais deveriam convencer a todos que a cidade de São
Paulo estava cumprindo seu papel na manutenção da ordem nacional. Os as-
pectos que então importavam realçar eram a racionalização, a burocratização e
a organização da rede de ensino no oferecimento abundante de vagas em esco-
las para as crianças e jovens pobres da cidade, mas sem atentar ou discutir os
aspectos político-pedagógicos dentro de sua estrutura. Esse era o modelo es-
colar paulistano a ser veiculado por todo o país, inclusive, como mencionado,
por meio da Lei 5.692/71, que se serviu da experiência inicial municipal com
o ensino de oito anos via Instituto Municipal de Educação e Pesquisas (IMEP)
para ser respaldada. É claro que as fissuras e os problemas desse modelo es-
colar de eficiência e organização administrativa apareciam a todo momento,
até na documentação mais formal e institucional, mas tudo era visto como um
processo de melhoria e constante reforma do ensino em prol da cidade e do
desenvolvimento do país “em nome da ordem”.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 219


Saindo do aspecto mais abrangente da rede e do seu significado institucio-
nal, buscamos entender como esse processo reverberou no funcionamento in-
terno das escolas selecionadas e das salas de aulas no período, isto é, de suas
culturas escolares. Desenvolvemos, assim, o eixo “b” de análise e concluímos
que as disciplinas escolares, principalmente aquelas de Humanidades (Estudos
Sociais, História, Geografia, Educação Moral e Cívica e Língua Portuguesa), mas
também de outras, como Matemática, eram esvaziadas em suas finalidades edu-
cativas, isto é, não eram trabalhadas em sala de aula como conteúdos formati-
vos. Prevalecia a memorização de conteúdos, datas e fatos, que pouco ou quase
nada contribuíam para a reflexão dos alunos. As atas dos livros de visitas, escri-
turadas pelos supervisores de ensino, revelavam altos índices de evasão e reten-
ção em algumas escolas, mas sempre culpando as condições de vida dos alunos
e nunca a carência de uma concepção pedagógica da rede. Na falta de finalidades
educativas nas disciplinas escolares e diante de um currículo que prescrevia ape-
nas administrar os alunos dentro das escolas, sobravam tempo e espaço para as
atividades “cocurriculares”, isto é, as de interação com a comunidade, festas re-
creativas, desfiles, fanfarras, comemorações e a organização dos centros cívicos
que ocupavam e concorriam com o calendário das aulas regulares. A profusão
dessas atividades também pouco se relacionava com as disciplinas escolares em
sala de aula, assim como os conteúdos cívicos das disciplinas escolares não dia-
logavam diretamente com as festas e comemorações cívicas que ocorriam nas
escolas. O que pudemos observar, principalmente no que se refere aos desfiles
e às fanfarras, é que tinham o mesmo significado que as atividades de interação
com a comunidade e de lazer para os alunos e a comunidade, isto é, mais de
socialização com o bairro, e menos de defesa ou inculcação de valores cívicos,
conforme apregoava o regime militar. Na análise dos registros fotográficos das
escolas sobre essas atividades “cocurriculares”, fica claro o caráter informal, de
socialização e de diversão que elas adquiriam diante da seriedade exigida dos
valores cívicos ou mesmo perante o esvaziamento das finalidades educativas
das disciplinas escolares e do próprio currículo escolar, meramente burocráti-
co-administrativo. Por isso, denominamos o civismo encontrado nessas escolas
de “civismo cínico” ou “teatro de civismo”, no sentido de farsa ou encenação,
pois os aspectos então importantes eram a socialização e a interação entre a co-
munidade, a escola e o bairro com seus alunos e professores, ou seja, tudo bem
diferente do civismo como um exercício para o “atavismo pátrio” encontrado
nas escolas estaduais primárias e ginasiais de São Paulo na Primeira República,
calcado no lema “pátria, civilização e trabalho” ou no nacionalismo extremado
divulgado nos livros didáticos do período estadonovista de Getúlio Vargas.
Por fim, as memórias das cinco ex-professoras e de uma ex-aluna foram
entrecruzadas com as análises efetuadas anteriormente, das quais resultou o

220 HELENICE CIAMPI


eixo “c” de análise. Utilizamos a metodologia da História Oral temática, bem
como as discussões sobre a memória, a oralidade e a escrita. Cada entrevistada
ou, pelo menos, cada grupo de entrevistadas, mereceu análise pormenorizada,
mas podemos sintetizar as entrevistas nas seguintes conclusões:
a) a entrevista de Sidoni Chamoun, ex-professora e funcionária do De-
partamento de Orientação Técnica (DOT), a quem denominamos de “a pro-
fessora arquivista”, nos revelou as dificuldades e os desafios de trabalhar na
montagem da burocracia do sistema municipal de ensino, ou seja, por dentro
da instituição, sobretudo na formação de professores, como revisora da revis-
ta que representava o sistema, a Escola Municipal, e na organização do acervo
do arquivo do ensino municipal do qual essa pesquisa, em parte, se serviu.
Ela mostrou que, ao lidar com as imposições oficiais do sistema, procurava
se posicionar como sujeito do processo, pois tinha que lidar com normas,
documentos, correções e catalogações, o que fazia por acreditar que aquilo
também era “seu”, por também corresponder à sua trajetória de vida e forma-
ção profissional, e não apenas fruto da impessoalidade da burocracia de um
sistema de ensino;
b) a entrevista da ex-aluna Etel Cristina Fernandes de Souza nos expôs uma
forte relação entre a aluna do passado e a profissional do presente, principal-
mente porque ela é assistente de direção na mesma escola em que estudou na
época do regime militar, a Escola Municipal Comandante Gastão Moutinho,
uma das selecionadas para a nossa pesquisa. Etel, curiosamente, pouco nos
contou sobre o seu período como estudante na escola e a forma como eram
ministradas as aulas por seus professores, mas criticava a escola pelo excesso
de alunos e, por outro lado, a elogiava por ser um lugar onde encontrou sua
estabilidade como adolescente e, depois, no presente, como profissional. Sua
memória oscila entre reproduzir a memória do modelo escolar paulistano de
eficiência e racionalização administrativa e, por outro lado, descontruir essa
memória, ao perceber que o excesso de alunos da escola no passado e a forma
como “administrou” a sua vida profissional no presente não tinham rendido
bons frutos para a sua vida, pois não queria ter se tornado apenas “assistente
de direção”, mas diretora da escola; porém, já considerava muito tarde para
mudar tal situação, ou seja, sua memória individual se embaralhava, mas tam-
bém se confrontava com a memória institucional do ensino municipal;
c) a entrevista com a ex-professora do primário Luzilda Pianelli Godoy
também foi interessante, por nos trazer o modo como os professores lidavam
com as imposições sobre sua prática em sala de aula no período, principal-
mente no que tange ao civismo e sua relação com os conteúdos escolares.
A professora Luzilda Godoy, que lecionou na Escola Municipal Comandante

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 221


Garcia D’Ávilla, também selecionada para a pesquisa, foi vista por nós como
“a professora por e-vocação”, pois suas evocações do passado sempre reme-
tiam ao seu compromisso vocacional com o magistério, não no sentido natura-
lizado do termo, mas no de um aspecto formal, de como lidava com as normas
escolares no período e, ao mesmo tempo, filtrava suas memórias do passado a
partir do presente enunciativo da entrevista. O prazer da “lembrança vocacio-
nada” estava vinculado ao fato de ser e gostar de ser “docente alfabetizadora”,
do prazer de lecionar. Na “recordação evocada”, embora houvesse desprazer
em cumprir as funções daquilo que ficou designado como “coordenadora do
Centro Cívico”, não se separava do prazer em ser uma excelente professora.
É nesse ponto nodal que a lembrança e a recordação entram em tensão com a
memória institucional e da ditadura militar;
d) a última entrevista analisada foi realizada simultaneamente com três
docentes que lecionaram em outra escola selecionada para a pesquisa, a Es-
cola Municipal Tenente Aviador Frederico Gustavo dos Santos; além disso, as
docentes têm em comum o fato de o primeiro nome delas ser “Maria”. Dessa
forma, a entrevista com as “três Marias” foi a mais longa e a mais difícil de ser
interpretada, não só pelo fato de terem sido entrevistadas conjuntamente, mas
também porque elas explicitavam uma “defesa do regime militar”, o que não
foi encontrado nas outras entrevistadas. Pudemos concluir que a “defesa do
regime militar” não se referia à ideologia política do regime, mas à projeção
que faziam de suas trajetórias formativas, que as tornaram professoras bem-
-sucedidas na época da ditadura civil-militar no que diz respeito à autoridade
profissional que tinham na escola municipal, muito embora tal autoridade
fosse calcada no respeito às normas escolares, na boa relação entre alunos,
professores, pais e funcionários, e, sobretudo, no fato de os alunos decorarem
a matéria, mas sem atribuírem qualquer significado à aprendizagem desses
conteúdos. Por outro lado, a projeção também contrastava com o presente,
cujo marco para a “decadência do ensino na atualidade” teria sido, na avalia-
ção das docentes, o governo da prefeita Luiza Erundina do Partido dos Traba-
lhadores (PT), entre 1989 a 1992, pois com a implantação do construtivismo
em sala de aula, houve maior autonomia para os ritmos de aprendizagem dos
alunos, mas retirando do professor a sua autonomia e, também, sua autori-
dade para ensinar de acordo com o que estava acostumado, por tradição. Ou
seja, no regime civil-militar, a memorização de conteúdos sem significado para
os alunos e o respeito à autoridade dos professores sustentavam, na prática
de sala de aula, o “funcionamento interno” do modelo escolar paulistano, de
eficiência e racionalização administrativa, mas sem conteúdo pedagógico pre-
visto para a rede que norteasse suas ações. Com o fim da ditadura militar, o
governo de Luiza Erundina foi o primeiro da Prefeitura Municipal de São Pau-

222 HELENICE CIAMPI


lo a tentar implantar um modelo pedagógico de ensino para a rede, por meio
de cursos, formações em serviço, e de uma reestruturação da carreira docente
que tornasse possível tal modificação no ensino. Entretanto, ocorreram erros,
atropelos e exageros ideológicos em sua proposição, ao serem ignoradas as
tradições docentes arraigadas nas culturas escolares. Tal conflito fica explícito
nas projeções das memórias das docentes e nas suas inversões de expectativas
entre presente e passado, o que não pode ser atribuído simplesmente a uma
defesa ideológica do regime militar.
As análises das entrevistas nos mostram que, embora a memória institucional
do modelo escolar paulistano tenha deitado raízes e ainda seja reproduzida indi-
vidual e coletivamente nos sujeitos escolares, ela também é refratada pelo modo
como esses sujeitos construíram, confrontaram, recriaram e se projetaram sobre
a instituição, porém não apenas pela memória como um mediador ou um filtro
entre o presente e o passado, mas também como uma forma de acesso ao passado
que desafiou a própria escrita da História e os seus silêncios sobre esses sujeitos
que não teriam tido história se não fosse pela voz de sua memória. Dessa forma,
acreditamos que esta pesquisa possa contribuir para os professores perceberem
que o seu protagonismo está para além do discurso do que eles devem ser ou fazer
em sala de aula para serem “bons professores” e das amarras ideológicas que lhes
imputam de antemão o seu “fracasso”; o seu protagonismo, na verdade, reside
na sua própria história de vida pessoal e profissional, que se entrelaça e confere
verdadeiro sentido à história das instituições escolares.
De 2014 até o presente momento, estamos estruturando a pesquisa para a sua
apresentação sob a forma de livro, e captando recursos para que possa ser publica-
do e devolvido à própria rede de ensino municipal de São Paulo e aos seus profes-
sores e alunos, os principais inspiradores e sujeitos-colaboradores deste trabalho.

A professora por evocação

As entrevistas foram realizadas, conforme mencionado, segundo a meto-


dologia de trabalho em História Oral, que privilegia o entrevistado como su-
jeito histórico e reforça a importância de sua experiência pessoal como proces-
so de construção da memória de um determinado grupo. Enquanto criação de
uma fonte histórica, o discurso oral de uma pessoa permite recriar segmentos
da história, seja da vida de uma comunidade, de uma instituição ou até mesmo
do grupo social a que essa pessoa pertence.
Parte-se do princípio de que a entrevista baseada na metodologia de História
Oral é sempre uma fonte criada a partir da interação entre o entrevistado e o entre-
vistador. Este deve ajudar o entrevistado a “ativar” suas lembranças e a estruturar a

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 223


sua narrativa, de modo que ela tenha fluidez. Lembranças são selecionadas a partir
de determinado estímulo, no caso, o roteiro de entrevista (ALBERTI, 2005).
Jacy Seixas busca refletir a respeito do movimento e dos tempos da memó-
ria, “sobre o caráter de descontinuidade que a singulariza e sobre a função aí
inscrita de atualização das experiências outrora vividas” (SEIXAS, 2002, p. 43).
Assim, essa autora quer nos mostrar que a memória “não é estática, nem seu
volume e conteúdos são fixos; ela se movimenta, e esse movimento configura
uma espiral no espaço e no tempo, que se inicia e se atualiza no presente e, de
forma espontânea, e se prolonga em diferentes épocas” (p. 45).
A memória é uma espiral em (ex) tensão, que configura, em seu movimento,
planos diferenciados a serem percorridos pelos sujeitos. Isso significa entender a
tensão existente nos campos ou espaços da memória: isto é, como toda lembran-
ça se transforma à medida que se atualiza e, ao fazê-lo, enriquece e desenvolve a
percepção atual que, por sua vez, atrai outras lembranças complementares.
Podemos compreender então que a memória “constrói um tempo (carre-
gado de afetividade) que, articulado ao seu passado/presente/futuro, reme-
te imediatamente à dimensão espacial. Os tempos da memória designam ao
mesmo tempo lugares de memória: toda memória (individual ou coletiva)
vale-se de lugares (concretos ou simbólicos) para se exprimir, materializar-se.
Esse movimento lhe é, portanto, intrínseco” (SEIXAS, 2002, p. 43).
A intenção é voltar-se para as atividades do professor no sistema/rede
municipal, com ênfase nas suas experiências profissionais, pedagógicas,
e não, unicamente, na sua história de vida. O fato de iniciar-se a entre-
vista com questões que remetem à sua história de vida, é para provocar
uma “viagem no tempo”, recurso que, muitas vezes, desmobiliza discursos
prontos e laudatórios.
A memória,

longe de ser um receptáculo passivo, ou um sistema de armazenagem,


um banco de imagens do passado, é , isto sim, uma força ativa, que mol-
da; que é dinâmica - o que ela sintomaticamente planeja esquecer é tão
importante quanto o que ela lembra - e que é dialeticamente relacionada
ao pensamento histórico, ao invés de ser apenas uma espécie de seu
negativo. (...) Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações
que ela tenha sofrido. Têm estampadas, as paixões dominantes em seu
tempo. (SAMUEL, 1997, p. 44)

A abordagem de Seixas insiste na dimensão reconstrutiva da memória (tal


como foi no passado), enquanto que a de Samuel foca na sua dimensão ativa.

224 HELENICE CIAMPI


Entretanto, para Paul Ricoeur, a dimensão reconstrutiva não pode ser operada
sem o caráter fiduciário da transmissão oral do testemunho. Por sua vez, a di-
mensão ativa da memória não pode ser isolada da sua dimensão reconstrutiva,
uma vez que, no testemunho oral, lembrança e recordação estão em constante
tensão, o que instala o paradoxo da confiança e desconfiança, entre lembrança
e recordação. Cabe ao historiador mostrar os pontos de tensão/interconexão/
intercâmbio entre lembrança e recordação.
Os dois autores, Samuel e Seixas, não fazem a distinção entre lembrança
e recordação, conceitos fundamentais para Ricoeur. Nesse sentido, é Ricoeur
que orientou a análise da entrevista.
Ele faz uma abordagem fenomenológica da memória.3 Para Ricoeur, a
memória é caracterizada, inicialmente, como afecção, o que a distingue da
recordação. Baseado em Aristóteles, constata que a simples lembrança so-
brevém de uma afecção, enquanto a recordação consiste em uma busca ativa.
No plano fenomenológico, dizemos que nos lembramos daquilo que fizemos,
experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular.
Lembranças estão carregadas de afetividade.
O papel desempenhado pela estimativa dos lapsos de tempo enfatiza o
lado racional da recordação: “a busca constitui uma espécie de raciocínio”
(RICOEUR, 2007, p. 38). Para ele,

Não temos nada melhor que a memória para significar que algo acon-
teceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela. Os
falsos testemunhos, (...) só podem ser desmascarados por uma instância
crítica cujo único recurso é opor aos testemunhos tachados de suspeitos
outros testemunhos reputados mais confiáveis. Ora, (...) o testemunho
constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a his-
tória. (RICOEUR, 2007, p. 40-41)

Evocação e vocação da professora Luzilda Pianelli Godoy

Na tarde do dia 28 de abril de 2012, meu colega de pesquisa Alexandre P.


Godoy me buscou para irmos ao bairro paulistano de Santana entrevistar a
professora aposentada, do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de São

3 “Assim, a fenomenologia da memória inicia deliberadamente por uma análise voltada para o
objeto de memória, a lembrança que temos diante do espírito; depois, ela atravessa o estágio
da busca da lembrança, da anamnésia, da recordação; passa-se, finalmente, da memória
dada e exercida à memória refletida, a memória de si mesmo” (RICOEUR, 2007, p. 17-18).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 225


Paulo, Luzilda Pianelli Godoy. Entrou como funcionária pública no primeiro
concurso público aberto pela Prefeitura, em 1969. Até então, todo cargo de
professor era comissionado.4 Segundo Luzilda, depois de “dois meses na Vila
Espanhola II”, ela foi transferida para o Comandante Garcia D’Ávila” (entre-
vista concedida 18/04/2012).5
Terminou o magistério em 1968, iniciando então sua carreira docente, e cur-
sou depois, como complemento, no dizer da entrevistada, Pedagogia entre 1975-
1977, com habilitação para o magistério e administração. Devido a um problema
de saúde, ficou readaptada6 por 12 anos, de 1976 a 1988, período em que traba-
lhou como secretária da escola, “exercitando tudo que aprendi sobre administra-
ção”, afirma a professora. Voltando à sala de aula, trabalhou até 1995.
Luzilda mora próximo ao local em que, hoje, funciona o Centro de Prepara-
ção de Oficiais da Reserva de São Paulo, onde era a sede da antiga fazenda de
Sant’Ana, que deu origem ao bairro. O seu apartamento situa-se no centro de
Santana, a zona mais antiga do bairro. Trata-se de um bairro calmo, limpo, ar-
borizado, com considerável adensamento populacional e o fenômeno da verti-
calização, em virtude da valorização dos terrenos destinados às classes médias
e médias-altas. É hoje um dos principais polos comerciais da Zona Norte da
cidade, conservando, ainda, alguns vestígios de um lugar interiorano.

4 O Decreto nº 7543, de 08/07/1968, instituiu o Concurso Público de Ingresso ao Magistério


Primário Municipal.
5 O nome anterior da E. M. Comandante Garcia D’Ávila era “Escolas Agrupadas” ou “Escola
Mista do Imirim”. Inicialmente, a escola funcionou somente com as 4ª séries iniciais do antigo
primário, dividindo com o estado a utilização do espaço, em virtude do “Termo de Cooperação
Técnica e Administrativa” celebrado pelo governo do estado de São Paulo e pela Prefeitura do
município de São Paulo em maio de 1969. Nesse mesmo ano, foi cedida, em caráter precário,
a sala do gabinete médico para ser usada pela diretoria do Ginásio Estadual (14/11/1969).
O decreto nº. 9373, de 4 de março de 1971, dispôs sobre a permissão do uso de escolas
municipais, no período noturno, para funcionamento de classes do curso secundário estadual,
segundo o mesmo “Termo de Cooperação Técnica e Administrativa”. Ficou estipulado: a
administração dos prédios ficará inteiramente a cargo dos diretores das Escolas Municipais
neles instaladas; não será permitida, em hipótese alguma, a instalação e funcionamento nos
próprios municipais de cantinas ou quaisquer outras atividades comerciais. Segundo o livro
de visitas da escola Garcia D’Ávila, (1963-1985), em 1972 foi cedida ao diretor do Ginásio
do Estado uma sala do prédio do antigo ensino complementar (23/02/1972). Em março, foi
novamente registrada a péssima conservação das salas, causada pela “falta de colaboração”
do Ginásio Estadual Carlos Moraes de Andrade. Diariamente os professores registravam
queixas à direção da escola sobre carteiras, armários, portas danificadas. Alguns professores
se prepararam, junto com os pais, para pintar suas salas de aulas. A demora na aprovação
dos Estatutos da APM dificultava a execução das atividades programadas (25/03/1972).
6 Readaptada: servidor ou funcionário público adaptado em outra função por motivo de saúde.
No caso, a professora Luzilda deixou a regência de classe.

226 HELENICE CIAMPI


Ao entrar na sala de visitas, senti como se estivesse numa viagem no tem-
po, pois me vi num acolhedor apartamento, típico dos anos 1950/1960, com
bar e copos pendurados no seu teto de madeira, muitos bibelôs e uma simpá-
tica cadela tranquilamente deitada em seu cesto, ao lado do sofá. Mas o que
mais me chamou atenção foi o relógio de cuco, de madeira, que, ao longo da
entrevista, batia os minutos e as horas inteiras. Isso tudo registrava um espaço
familiar que oscila entre os descendentes de italianos, do lado paterno, e os da
família originária de Manaus e do Pará, do lado materno. No entanto, era uma
família pequena, fato incomum entre descendentes de italianos e de nortistas.

Helenice: – O que você lembra da sua infância?

Luzilda: – Eu sempre morei aqui na região de Santana. Hoje em dia, as


meninas costumam brincar só de boneca, às vezes nem gostam disso.
Na minha época, eu adorava brincar de casinha, que era o que a maioria
das meninas gostava de fazer. Quando eu comecei a ir para a escola,
começou minha paixão pela profissão de professora. Eu olhava a pro-
fessora e dizia: “Um dia eu vou ser professora!”. Na hora do recreio, eu
brincava com a criançada como se estivesse dando aula, como se fosse
a professora.

Helenice: – E a rua, o bairro, eram tranquilos? Você brincava na rua?

Luzilda: – Não, minha mãe não deixava que eu brincasse na rua. Brin-
cava no quintal com as filhas da vizinha, mas eu era muito presa. Minha
mãe não me deixava sair de casa para brincar. Mas eu ia para a escola a
pé, sozinha. No início, minha mãe levava, depois ela viu que eu podia
fazer isso sozinha e liberou. Mas na rua, eu não brincava não.

Helenice: – O que você lembra do período da escola? São boas lembran-


ças? Algum professor especial que a tenha marcado mais?

Luzilda: – São ótimas lembranças. Eu estudava aqui na Alfredo Pujol,


mais para cima. Era a escola “Barão Homem de Melo”, onde eu fiz o
primário. Não fiz a pré-escola.

Minha infância foi muito gostosa, eu sempre tive muita facilidade para
pegar as coisas. Eu adorava ler, vivia em biblioteca. Era um rato de bi-
blioteca. Meu filho sempre me diz que eu perdi esse vício: “Agora você
não lê mais, mãe”. Na época eu vivia pegando livros na biblioteca. A
maior parte da minha infância, quando eu não estava brincando de ser
professora na escola, ou de casinha com minhas amigas, passei lendo os
livros da biblioteca.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 227


O período do ano de que eu mais gostava eram as férias, porque meus avós
paternos moravam em Piracicaba e lá eu tinha toda a liberdade que não
tinha aqui em São Paulo. Eu podia fazer tudo que queria, brincava na rua,
ia ao parque, andava aonde queria. Minha avó deixava fazer tudo. As portas
das casas ficavam destrancadas sempre. Hoje em dia, a coisa é diferente,
mas naquela época era tão tranquilo que até a criançada podia entrar e sair
à vontade. Jovens saíam e voltavam de madrugada tranquilamente.

Em Piracicaba, nessa época, havia muitos engenhos de açúcar. Tinha a


época da queima de açúcar, passava boiada no meio da rua, carregando
cana. Era uma folia, todo mundo correndo da boiada. Pra mim tudo era
diferente, porque eu não via nada disso em São Paulo.

Helenice: – A sua infância está mais ligada a Piracicaba do que a Santa-


na? Você lembra mais de lá ou não?

Luzilda: – Não, eu também me lembro muito daqui. A diferença é que


aqui as coisas eram mais sérias, mais responsabilidade, e lá, mais brin-
cadeira e diversão. (Entrevista concedida em 18/04/2012)

Luzilda deixa logo bem claros os seus sentimentos em relação à sua vo-
cação para a leitura e a docência, os quais marcam sua memória-lembrança
afetiva, e a sua lucidez na evocação da recordação que alinha, dá sentido e
demarca os tempos e espaços de sua vida. Por isso, há um corte bem nítido
entre a sua geração e a de hoje, entre o cotidiano na capital e no interior, entre
o tempo do estudo e o do lazer.
O interior (Piracicaba) era o paraíso na Terra: liberdade, amigos, engenho,
boiada e diversão. Na capital, o cerceamento de movimentos, proibições, “au-
sência de festas”, poucos amigos. Esses espaços ligam-se a dois tempos de
sua vida. O primeiro, da infância, férias, paz, segurança. E o segundo, da vida
adulta, responsabilidades, de “coisas mais sérias”. A linha que unia esses dois
mundos era o gosto pela leitura, “rato de biblioteca” e a paixão pela profissão
docente, a qual traduz o que ela entende por “vocação”. Na memória-lembran-
ça, Luzilda traz aspectos pessoais e afetivos, revelando a relação vocacionada
que interliga a família, a escola e os espaços vitais de sua vida pessoal e escolar.
Por sua vez, a evocação traz o raciocínio em relação à sua juventude; traz
o vaivém entre as duas cidades, Piracicaba e São Paulo, nas quais realizou sua
formação.
Luzilda: – Quando fui para o ginásio, eu estudei na escola particular e
tive que prestar exame de admissão. Com 10 anos, mudei de escola, por-
que o estado só aceitava o aluno com mais idade, então eu fiz admissão
em um mês e entrei na escola particular “Vitor Viana”, aqui em Santana

228 HELENICE CIAMPI


também. Na época, minha mãe estava com dificuldade para pagar, então
eu prestei exame para bolsa de estudos e fiz todo o ginásio com bolsa.
Eu tirava menção honrosa todos os meses e fui a primeira colocada da
turma do ginásio. E quando terminei o ginásio, fui fazer o que eu queria,
que era dar aula. Eu tenho uma quedinha por medicina, mas tenho mui-
to medo de defunto, então eu pensei: “Como vou fazer medicina se eu
tenho medo dos defuntos?” (risos). Então segui a carreira de professora,
que, para mim, era bem melhor.
Quando fui começar o curso de normalista, meus pais tinham resolvido
ir para Piracicaba. Meu pai pensava em abrir uma livraria, ou qualquer
coisa do ramo. Eu entrei no Sud Mennucci em Piracicaba, que era uma
escola maravilhosa. Eu até tentei entrar na escola agrícola, ensino rural,
para trabalharmos com crianças das áreas rurais, inclusive aprendería-
mos desde a parte de plantação até como lidar com as crianças dessas
áreas. Mas infelizmente, como eu estudei na Vitor Viana e a escola rural
era muito rígida na avaliação e eles tinham apenas 30 vagas, eu não
consegui. Porque mesmo sendo ótima aluna, eu não possuía o grau de
aprendizagem que eles exigiam para o curso. Até fui bem colocada, mas
não consegui a vaga. Era no campus da USP, da escola Superior Luiz de
Queiroz, escola agrícola.
Alexandre: – ESALQ
Luzilda: – A ESALQ era o meu sonho, mas eu não consegui. Então fi-
quei um bom tempo no Sud Mennucci.
Meu pai tentou se estabelecer em Piracicaba. Ele tinha que vender a casa
daqui de São Paulo, mas não conseguiu, por isso acabamos voltando
para cá novamente. Eu continuei o segundo ano de magistério no Co-
légio Salete, que era um ótimo colégio também, mase não vi nenhuma
escola melhor que o Sud Mennucci. Eles tinham salas ambientes, tais
como: salas de desenho, salas específicas para ensino de História ou
Geografia, salas com projetores de slides, salas de música e outras. (En-
trevista concedida em 18/04/2012)

Na memória-lembrança, ótimos colégios, “o Sud Mennucci em Piracicaba,


uma escola maravilhosa”, com excelentes condições materiais e que lhe trou-
xe uma vocação construída concretamente. Na memória-recordação, a evo-
cação explica o primeiro desafio e como o enfrentou: “porque mesmo sendo
ótima aluna, eu não possuía o grau de aprendizagem que eles exigiam para o
curso”. Por outro lado, a ligação entre as duas profissões preferidas. Ambas,
medicina e docência, expressam a preocupação com o próximo, o cuidado com
as pessoas: uma com a saúde física, e a outra com a saúde intelectual.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 229


Luzilda: – Quando eu era criança, pelo fato do meu pai trabalhar na Editora
Abril, ele trazia várias revistas de lá. Eu já comecei a gostar de ler nessa fase.
Depois comecei a frequentar a biblioteca. Cresci com essa vontade de ler e
ser professora, o que, acima de qualquer coisa, era uma vocação. Eu sempre
gostei de fazer tudo muito benfeito. Eu imaginava que meus alunos, logo
no primeiro dia, já gostariam de mim, que aprenderiam fácil, sem nenhum
problema. Quando você é jovem, acaba sendo muito idealista, mas depois
percebe que a coisa não é bem assim. As dificuldades existem.
Os cursos que eu fiz, nas escolas em que estudei, me passaram muitas
técnicas e novidades de aprendizagem, foi uma formação muito boa. E eu
sempre tive facilidade para aprender, era muito observadora e isto me le-
vou a procurar algo mais, a pesquisar e procurar o que havia de melhor no
ensino. Mesmo quando a coordenadora vinha com novas técnicas, novos
autores e novidades, eu nunca fiquei bitolada, procurava aprender e usava
o máximo dentro da sala de aula. (Entrevista concedida em 18/04/2012)

Luzilda traz na memória-lembrança sua paixão pelo magistério (vocação),


e na memória-recordação (evocação), muito esforço e trabalho para desem-
penhar sua profissão, pois gostava de fazer “tudo benfeito”. A opção pela do-
cência é algo desejado pela menina e reforçada pela professora. Lecionar sig-
nificou a realização pessoal e profissional, mas, sobretudo, a formação de sua
identidade e a conquista da autonomia, tanto no passado quanto no presente.
Comentando as dificuldades no início da carreira, Luzilda contrapõe sonho
e realidade, ressaltando não só os limites de atuação em seu cotidiano escolar,
como também o controle dos professores pelos gestores. As dificuldades pes-
soais e profissionais foram enfrentadas com estudo e perseverança na busca
daquilo de quem sabe o que quer.

Helenice: – Quer dizer que você tinha total liberdade para fazer tudo
isso?
Luzilda: – Tinha sim.
Helenice: – E na Prefeitura, você teve oportunidades de fazer curso, de
frequentar alguma formação a mais, tinha muito material? Como era?
Luzilda: – Logo que entrei, senti uma certa dificuldade, tudo era difí-
cil. A Secretaria de Educação mandava os planejamentos e livros indi-
cados por eles, apesar de nos dar liberdade pra trabalhar como querí-
amos dentro da sala de aula, mas seguindo as orientações deles, como
eles mandavam.
Helenice: – Quando você diz “seguir o que eles mandavam”, você se
refere aos planejamentos prontos? Tinha isso?

230 HELENICE CIAMPI


Luzilda: – Sim, vinham planejamentos prontos. Nós tínhamos que tra-
balhar de acordo com o planejamento enviado. A diretora da segunda
escola em que trabalhei era muito rígida. Ela gritava com os professores,
inclusive na frente de alunos, pressionava muito a todos.
Helenice: – Em qual escola você começou?
Luzilda: – Fiquei uns dois meses na Vila Espanhola II, e logo me trans-
feri para o “Comandante Garcia D’Ávila”. Era uma escola muito rígida,
mas aprendi muito. Com o passar dos anos, tudo vai mudando, vão mu-
dando os diretores, os governos e vão chegando novas gerações com a
cabeça mais aberta, e o ensino vai melhorando.
Helenice: – Como eram as reuniões?
Luzilda: No início, eram muito tumultuadas, porque a diretora chegava
a discutir com os professores durante a reunião e teve até professor que
se levantou e se retirou da reunião. Houve uma ocasião em que ela nos
tirou da sala dos professores para nos vigiar melhor, e colocou nossa
turma em um corredor entre a Secretaria e a Diretoria, para ver nossa
chegada, vigiar o livro de ponto e o que era falado. Quando ela ouvia algo
que não estava de acordo, saía da sala dela gritando com os professores.
Em uma dessas vezes, uma professora que estava grávida passou mal e
acabou sofrendo um aborto, devido ao susto que levou.
No começo foi difícil, mas eu não desisti porque esse era o meu sonho.
Dentro da sala de aula, eu me realizava, porque conseguia fazer tudo
aquilo que eu havia aprendido e gostava. Era uma boa alfabetizadora e
assumi também muitas salas de terceira e quarta séries.
Helenice: – Como era a escolha das classes? Você quem escolhia? Como
era essa divisão de séries?
Luzilda: Normalmente era feita uma reunião no início do ano, no pri-
meiro dia, pela ordem de escala, contando pontos que o professor tinha
por tempo de serviço, descontando dias não trabalhados e uma nota que
o diretor dava ao professor. A partir disso se chegava a um resultado
final, às vezes com diferenças de décimos entre os professores, mas que
faziam uma grande diferença, porque cada professor escolhia o período e
a série. A atribuição das classes era feita pela diretora, indo das melhores
(mais aceleradas) até as mais fracas (menos aceleradas).
Helenice: – Como eram denominadas essas classes? Davam-se esses
nomes, “as melhores”, “as piores”, ou tinha uma outra forma?
Luzilda: – Não, era por letra. Por exemplo, era 1ª A, B, C, D, etc. Então a
1ª A era a mais forte, com alunos de fácil aprendizagem, uma classe mais
homogênea. As classes D, E, F, G, etc. eram mais heterogêneas.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 231


Helenice: – Você trabalhou com alguma “A”?
Luzilda: – Eu só peguei “A” uns dois anos. Geralmente, eu pegava clas-
ses medianas. No início, quando a pontuação é muito baixa, geralmente
sobram as classes mais fracas. Mas foi bom. Foi bom, porque trabalhar
com o que é fácil todo mundo sabe, mas quando você trabalha com o alu-
no problema é que você aprende mais com as dificuldades. (Entrevista
concedida em 18/04/2012)

A professora, assim, expressa a hierarquia profissional existente na rede/


sistema municipal nos anos 1970, entrelaçando seu relato com a vida pessoal
das professoras recém ingressadas na carreira, em que se inclui.7
A alfabetizadora ainda aponta a positividade da questão das classes mais
fracas, com alunos problemas, pois é com eles “que você aprende mais”. Ar-
ticula teoria e prática, enfrentando, no cotidiano escolar, as dificuldades de
aprendizagem, isto é, são evocações, recordações nem sempre veiculadas pela
memória institucional.
O modelo escolar paulistano ensejava então a projeção do sistema municipal
de ensino no cenário nacional, assim como se fortalecer junto à rede pública
paulista de ensino. Ressaltava a “gestão para o ensinar”, ou seja, tinha preocu-
pações mais administrativas do que pedagógicas, nesse período de instituciona-
lização e consolidação da rede municipal. Procurou construir uma memória da
rede/sistema municipal de ensino, tendo como principal veículo a Revista Escola
Municipal, que institucionalizava e organizava simbolicamente o sistema muni-
cipal. O objetivo era perpetuar uma “memória sem passado” da instituição.8

7 Em decorrência da Lei Federal 5692/71, ocorre uma progressiva passagem dos serviços
do Iº Grau para a competência dos municípios, ocorrendo, em 1972, a reestruturação do
Departamento Municipal de Ensino. Em 1975, houve a criação da Secretaria Municipal
de Cultura, separada da Educação; a organização do quadro pessoal do ensino, com a
instituição da Carreira do Magistério Municipal; e a instituição do Regimento Comum das
Escolas municipais.
O Livro de visitas da escola ressalta que há ordem, disciplina e entusiasmo na unidade
(07/04/1971). Insiste também na “produtividade” e no funcionamento normal da unidade:
trabalho, ordem e disciplina (27/04/1971). A supervisora solicita, à direção da escola,
providências cabíveis em caso de indisciplina, ou seja, aplicação das sanções dispostas no
Regulamento Interno das Escolas primárias e contatos com os responsáveis. Ao mesmo tempo,
ocorre uma discussão sobre abaixo-assinado de um grupo de pais ao Senhor secretário da
Educação e Cultura, no qual esse grupo reclama de ações da diretora: não permissão do uso
dos banheiros da escola pelos alunos e venda de material didático na escola. Foi registrada a
advertência à diretora contra a venda de livros didáticos na instituição (05/08/1971).
8 Ver: “Em nome da ordem: as escolas municipais de primeiro grau na cidade de São Paulo no
período da ditadura militar 1964-1985”, artigo de Helenice Ciampi e Alexandre Pianelli Godoy,

232 HELENICE CIAMPI


Chama atenção a referência às classes heterogêneas, revelando a diversi-
dade de procedência do alunato da cidade de São Paulo, que crescia e recebia
pessoas de todos os estados da federação, além das do interior do estado.

A alfabetizadora e o civismo cívico

A rede municipal de ensino, situada em bairros pobres e periféricos, dava


verdadeiras aulas cívicas in loco, durante os ensaios de desfiles cívicos, sobre-
tudo os do Sete de Setembro.9

Helenice: – E daquela época que você fala do início, como é que fica a
questão das comemorações cívicas, das paradas, você participou disso?
Luzilda: – Sim, cheguei a ser escolhida como diretora do Centro Cívi-
co. Todos os dias, tínhamos que participar do hasteamento da bandeira
nacional ao som do hino, programávamos as comemorações cívicas, in-
clusive os desfiles da Semana da Pátria e outros desfiles a que éramos
convidados.
Helenice: – Você participou?
Luzilda: – Sim, por dois anos.
Helenice: – E a fanfarra?
Luzilda: – Tinha uma fanfarra excelente, regida pelo “Chocolate”.
Helenice: – Quem era o “Chocolate”?
Luzilda: – O “Chocolate” era o regente da fanfarra, ele era sensacional,
todos os anos a escola ganhava entre as primeiras.
Helenice: – E os ensaios se faziam fora do horário das aulas?
Luzilda: Fora do horário das aulas, numa hora em que a quadra da es-
cola estivesse livre, porque, inclusive, os alunos treinavam evoluções.
Helenice: – O treino, ensaio, era a partir de agosto, para acontecer em
setembro?

apresentado no VII Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado na Universidade


Federal de Mato Grosso, no período de 20 a 23 de maio de 2013. Consultar o artigo de
Alexandre Pianelli Godoy: O “modelo escolar paulistano” na revista Escola Municipal (1968-
1985), História da Educação (UFPel), v. 17, p. 101-128, 2013.
9 A participação da Prefeitura do Município de São Paulo nos desfiles de 7 de setembro ocorre
desde 1977, dentro da programação elaborada pelo Comando do IIº Exército, com variação da
temática, anualmente. O hasteamento solene da bandeira realizava-se na última sexta-feira
de cada mês, junto ao pátio do Gabinete do Prefeito, com a participação de escolas de 1º e 2º
graus e de Educação Infantil. Revista Escola Municipal, ano XIV, n. 10, p. 30-31, dez. 1981.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 233


Luzilda: – Não, o treino era o ano inteiro; geralmente, no começo do
ano, em menor número, mas quando ia chegando mais ou menos no
meio do ano, os treinos se intensificavam. (Entrevista concedida em
18/04/2012)

As festas escolares permitem a interação não apenas dos estudantes, mas


de toda a comunidade, que, nesse momento, “habita” o espaço escolar (SOU-
ZA, 2000). Essas cerimônias foram (são) verdadeiros rituais, os quais se defi-
nem não apenas pela repetição, em moldes um tanto “formais”, mas, sobretu-
do, por se configurarem em uma mediação entre o cotidiano e o extraordiná-
rio. Os rituais servem, nas diferentes sociedades, para promover a identidade
social e construir seu caráter. São eles que nos permitem tomar consciência de
certas cristalizações sociais mais profundas de nossa sociedade.
Se as comemorações cívicas fazem parte da memória histórica do período
da ditadura militar, o “Chocolate” faz parte da lembrança dos sujeitos que,
como Luzilda, compunham a memória afetiva da comunidade escolar. Circe
Bittencourt, na sua análise sobre as festas cívicas, no início do período repu-
blicano (1917-1939), procura recuperar a construção da memória histórica
produzida junto e para a instituição escolar fora do âmbito específico da sala de
aula (BITTENCOURT, 1990).

A escola, sob a ótica do nacionalismo vigente, era a instituição funda-


mental criada pela ‘nação’ para formar o cidadão, possuindo, portanto,
tarefas específicas que permeavam o conjunto das disciplinas com seus
conteúdos e métodos. A escola paulista não era diferente das demais, de-
vendo, então, cuidar de transformar o caboclo, o imigrante e o operário
em cidadãos brasileiros. (BITTENCOURT, 1990, p. 165)

O significado das festas cívicas, tão valorizadas no período da ditadura


militar (1964-1985), apresentava algo novo: elas não eram apenas uma conti-
nuidade da afirmação do Estado brasileiro, tendo em vista o caráter naciona-
lista do modelo escolar paulistano, mas articulavam o nacional com o local,
ou seja, da sociedade de massas paulistana com a diversidade populacional
da metrópole que se formava. Esse modelo escolar integrava e construía uma
memória de pertencimento à cidade e à rede municipal que se ampliava pelo
dispositivo de controle, dando uma aparente liberdade de planejamento às es-
colas e ao seu corpo docente, ao mesmo tempo em que diluindo a ausência de
ações pedagógicas mais eficazes. Esse processo, que enfatizava o espetáculo
do civismo, fez com que as disciplinas escolares perdessem suas finalidades
educativas, transferindo-as para as comemorações, desfiles, fanfarras e Centro

234 HELENICE CIAMPI


Cívico. É de se notar o esmero na preparação de semanas cívicas num calendá-
rio planejado para todo o ano letivo.10
Outra fonte rica em registros sobre as comemorações cívicas são os livros
de Visitas. Esses focalizam questões administrativas, pedagógicas, além de
ocorrências, as mais variadas, na unidade de ensino. Certamente, a natureza
dos registros depende do “olhar” da supervisora para com o cotidiano escolar.
Mas, mesmo assim, podemos perceber a dinâmica escolar, identificando, na
“forma escolar”, peculiaridades da cultura de cada escola. Porém, independen-
temente da especificidade de cada escola, os livros registram, com certa regu-
laridade, as orientações pedagógicas, a atuação dos centros cívicos (criados
pela portaria D.M.E de 16/10/1970) e as comemorações cívicas, com destaque
para o “31 de março” e “Semana da Pátria”.11

Comentários finais

Em seu testemunho, Luzilda articula memórias pessoais, profissionais e


institucionais. Esta última revela a oscilação do sistema municipal entre a
liberdade em sala de aula, devido à precariedade de controle institucional, e a
centralização na busca de uma eficiência gerencial, os “planejamentos pron-
tos”, mencionados na entrevista que se remete ao modelo escolar paulistano.
Na sua fala tranquila, percebemos a tensão que se configura nos campos
da memória. Transforma-se na recordação, mas se mantém na lembrança. O
prazer da lembrança “vocacionada” está vinculado ao fato de ser e gostar de
ser “docente alfabetizadora”, ao prazer de lecionar. Na “recordação evocada”,
embora houvesse desprazer em cumprir as funções daquilo designado como
“coordenadora do Centro Cívico”, não se separava do prazer de ser uma exce-

10 As fontes visuais consultadas, por exemplo, no Centro de Multimeios da Secretaria Municipal de


Educação da cidade de São Paulo, apresentam, todas, registros do Desfile da Independência
do Brasil e Hasteamento da Bandeira Nacional. Nos desfiles estão presentes a banda militar,
as fanfarras escolares, o coral de alunos e grupos de escoteiros, registrando a importância
dessa agremiação no período.
11 Livro de visitas da E. M. Garcia D`Avila. Orientações quanto à comemoração do “31 de março”,
a qual deverá ser levada a efeito no dia 29/03/1972 sem suspensão das aulas (25/03/1972).
Em 1974, são registradas as orientações para as festividades da Semana da Pátria (22/08/
e 04/09/1974). E conversa com os professores sobre o coquetel de encerramento do 20º
aniversário do Ensino Municipal, que seria no dia 05/11/1976 (11/06/1976). “A escola enviou
representantes nas comemorações da Semana da Pátria e ao desfile cívico, ‘arrancando do
público aplausos pela conduta irrepreensível dos educandos. Os professores desenvolveram
palestras sobre o grande feito da Independência e o amor e respeito que devem existir pelos
símbolos nacionais. Parabéns a todos pelo brilhantismo da Semana da Pátria” (06/09/1977).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 235


lente professora. É nesse ponto nodal que lembrança e recordação entram em
tensão com a memória institucional e a da ditadura militar.
Luzilda, na tensão entre afetos e responsabilidade, na memória-lembrança,
reatualiza o passado, nele acreditando, e na memória-recordação procura or-
denar e significar suas memórias no presente. A lucidez da entrevistada é uma
racionalização, pela memória-recordação, da experiência recontada, porém, é
a memória-lembrança que parece trazer, por meio da afetividade, a lucidez da
experiência vivida.
A noite terminou com uma “comemoração”, um delicioso jantar, capri-
chosamente preparado por Luzilda e prazerosamente degustado por nós: seu
marido, filho e entrevistadora.
Comemora-se institucionalmente quando se quer romper definitivamente
com o passado, como no caso da recordação comandada. Comemora-se afe-
tivamente quando há um reconhecimento afetivo do passado. Na percepção
e análise desses espaços de conflitos que coexistem, residem a história e o
trabalho do historiador.

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236 HELENICE CIAMPI


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CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 237


Qual o lugar da diferença na pesquisa em Ensino de História?

Cinthia Monteiro de Araujo1

O grupo de pesquisa Diferir – Diferenças e Interculturalidades no Ensino de


História, criado em agosto de 2016, reúne estudantes de Graduação, graduados/as,
especialistas, mestrandos/as e mestres interessados/as em discutir a temática
da diferença no ensino de História.2 Mobilizados por distintas abordagens, os/
as integrantes do Diferir desenvolvem ou desenvolveram pesquisas individu-
ais sobre o tema, em sua maioria sob a minha orientação, em nível de Gradu-
ação, Especialização ou Mestrado. Em articulação com suas pesquisas, todos e
todas participam da pesquisa coletiva, coordenada por mim e intitulada “Por
outras histórias possíveis. Interculturalidades, igualdades e diferenças em dis-
cursos curriculares de História”.
A construção desse projeto de pesquisa se apoia em três premissas propos-
tas e defendidas em pesquisa anterior (ARAUJO, 2012). São elas:
– a permanência de uma organização curricular marcada por uma perspec-
tiva temporal linear e progressiva é parte de uma tradição disciplinar que tem
resistido aos processos de mudança vividos pelo ensino de História;
– essa tradição disciplinar traz marcas do regime moderno de historicidade;
– é possível construir uma crítica a essa tradição moderna por meio da
sociologia das ausências e da sociologia das emergências.
Essas premissas já apontam para os pressupostos teóricos que balizam as
reflexões que vêm sendo realizadas pelo grupo de pesquisa, articulando cate-
gorias de análise do campo do currículo, da teoria da História e da sociologia

1 Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ. Coordenadora


do Programa de Pós-graduação em Ensino de História, núcleo da UFRJ (PPEGEH/UFRJ -
ProfHistória). Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH) e
do Laboratório do Núcleo de Estudos Curriculares (LANEC) da FE-UFRJ. Doutora em Educação
pela PUC-Rio, onde também cursou o Mestrado em Educação. E-mail: caraujo.ufrj@gmail.com.
2 Desde sua criação, o grupo tem tido formações diferentes. Atualmente, está formado por sete
graduandos, dois graduados, quatro mestrandos e dois mestres. Dessa forma, incluindo-me
agora na conta, somos 16 integrantes.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 239


de Boaventura de Sousa Santos. Entendendo o ensino de História – campo de
investigação acadêmica no qual essa pesquisa se insere – como um “lugar de
fronteira” (MONTEIRO, 2005), a discussão apresentada aqui realiza o esforço
de estabelecer um diálogo entre esses diferentes campos de conhecimento.
No âmbito do currículo, seguimos Gimeno Sacristán (2000), quando este
o afirma como uma prática complexa, que pode ser analisada a partir de âmbi-
tos formalmente diferenciados. Essas múltiplas dimensões, que estabelecem
relações e condicionamentos mútuos, serão mobilizadas aqui de forma arti-
culada a partir da dimensão pré-ativa do currículo escrito, conforme nomen-
clatura adotada por Ivor Goodson (1995). A visão dicotomizada – e dicotomi-
zante – das diferentes instâncias de produção do currículo tende a ventilar a
ideia de que, dada a dinâmica do “currículo como prática”, o “currículo como
fato” é irrelevante. Para Goodson, ainda que haja alguma dicotomia entre as
instâncias, ela pode ser entendida como parte de um debate contínuo entre as
mesmas, o que não significa sugerir um vínculo direto entre elas, tampouco
ignorar a possibilidade de uma subverter totalmente a outra. Acreditando na
importância dessas relações, creio ser possível, através da análise de políticas
de currículo para a História escolar em sua dimensão pré-ativa, compreender
determinadas escolhas presentes até hoje no ensino dessa disciplina.
Nessa direção, interessa-me analisar políticas de currículo para o ensino
de História em busca de padrões de estabilidade que contribuem para a ma-
nutenção da tradição disciplinar, bem como de sinais de alternativas à tradi-
ção. Goodson defende que as subculturas disciplinares formam comunidades
epistemológicas com uma diversidade de tradições. “Essas tradições iniciam
o professor em visões amplamente diferentes sobre as hierarquias do conhe-
cimento e sobre os conteúdos, o papel dos docentes e as orientações peda-
gógicas globais” (GOODSON, 2001, p. 174). Para o autor, o estudo dessas
tradições é fundamental para compreender as subculturas disciplinares e deve
se pautar pelas forças que lhes são subjacentes.

A disciplina escolar como sistema e prática institucionalizada propor-


ciona, assim, uma estrutura de ação. Mas a disciplina em si faz parte de
uma estrutura mais ampla que incorpora e define os objetivos e possibi-
lidades sociais do ensino. Porque a definição da disciplina escolar como
discurso retórico, conteúdo, forma organizacional e prática institucio-
nalizada faz parte das práticas de distribuição e de reprodução social.
(GOODSON, 1997, p. 31)

Por essa razão, a disciplina escolar precisa ser analisada considerando-se


sua inclusão num cenário social mais amplo, “como um bloco num mosaico

240 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


cuidadosamente construído” (GOODSON, 1997, p. 31). Assim, será possí-
vel compreender o papel social da disciplina escolar, que, muitas vezes, se
relaciona com “os misteriosos mecanismos de estabilidade e persistência na
sociedade” (ibidem, p. 31-32).
Defendo aqui que a organização curricular, baseada numa perspectiva
temporal linear e progressiva, sobrevive como tradição disciplinar no ensi-
no de História porque pode ser entendida como uma categoria institucional
que resiste a mudanças organizacionais. É esse movimento que estará em tela
no trabalho de análise dos discursos curriculares de História que se colocam
como principal objeto dessa pesquisa.
Segundo Goodson (2001), o estudo das tradições disciplinares deve focar
as intenções e forças que lhes são subjacentes. Interessa-me, portanto, reco-
nhecer aspectos que possam ser identificados como relevantes nos processos
de constituição das tradições, aspectos que subjazem como forças condiciona-
doras de hierarquias e de propostas de organização dos conteúdos históricos
nos currículos escolares, que acabam constituindo padrões de estabilidade
disciplinar.
Para compreender os processos de mudança e estabilidade curriculares,
é preciso analisar as relações entre as demandas internas e as configurações
externas, de modo a ser possível “desenvolver pontos de vista sobre a mu-
dança organizacional e sobre as mudanças em categorias institucionais mais
amplas” (GOODSON, 1997, p. 30). Entendendo a perspectiva temporal linear
e progressiva como uma categoria institucional que tem resistido a mudanças
organizacionais no ensino de História, argumento a favor da permanência de
marcas do regime moderno de historicidade como imperativo para a estabili-
dade dessa tradição no ensino de História.
Segundo Hartog (1996), os regimes de historicidades podem ser entendi-
dos como “uma expressão da experiência temporal”, são formas de significar
e organizar essa experiência.

Trata-se de um enquadramento acadêmico da experiência (Erfahrung)


do tempo, que, em contrapartida, conforma nossos modos de discorrer
acerca de e de vivenciar nosso próprio tempo. Abre a possibilidade de e
também circunscreve um espaço para obrar e pensar. Dota de um ritmo
a marca do tempo, e representa, como se o fosse, uma ‘ordem’ do tem-
po, à qual pode-se subscrever ou, ao contrário, e o que ocorre na maio-
ria das vezes, tentar evadir-se, buscando elaborar alguma alternativa.
(HARTOG, 1996, p. 2)

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 241


Para esse autor, o regime moderno de historicidade, inaugurado em fins do
século XVIII, encontra seu fim no emblemático ano de 1989, não sem antes ser
questionado e criticado, pois “um regime certamente não é uma entidade metafísi-
ca, que desce dos céus, mas antes um arcabouço durável, que é desafiado tão logo
se torna predominante ou simplesmente funcional” (p. 7). A ideia que defendo é
que, no âmbito da tradição disciplinar no ensino de História, o regime moderno
ainda é predominante e, como configuração externa, se articula às demandas inter-
nas da disciplina de forma a garantir a permanência da tradição em tela.
Nenhuma tradição em si é essencialmente negativa e precisa ser necessa-
riamente superada. As ideias de processo e totalidade presentes nessa tradição
disciplinar me parecem importantes para a inteligibilidade do saber histórico es-
colar. No entanto, a perspectiva que percebe o tempo histórico a partir de uma
aceleração que produz uma diferença temporal excludente, igualando processo a
progresso e totalidade a unidade, impressa na narrativa eurocêntrica de tempora-
lidade linear, estabelece relações assimétricas que hierarquizam as diferentes ex-
periências históricas. A crítica e as possibilidades de construção de alternativas a
essa característica da tradição disciplinar serão construídas, nesta pesquisa, tendo
como interlocutor privilegiado o sociólogo português Boaventura de Sousa San-
tos. A escolha se justifica pelas possibilidades de construção de uma alternativa
baseada no princípio da interculturalidade que sua perspectiva apresenta.
A partir de reflexões teóricas e epistemológicas geradas no projeto de pes-
quisa “A reinvenção da emancipação social”,3 Santos chegou a conclusões
que passaram a direcionar estudos subsequentes. Elas podem ser assim resu-
midas: a experiência social mundial excede em número e diversidade aquilo
que a tradição científica e filosófica ocidental conhece e considera relevante;
essa riqueza vem sendo desperdiçada e desse desperdício se nutrem as teorias
que afirmam não haver alternativas; não adianta recorrer à ciência social tal
como a conhecemos para dar credibilidade às experiências, pois é ela mesma
responsável por esconder ou desacreditar as alternativas.
O autor defende que, para uma crítica a esse cenário de desperdício da ex-
periência, é necessário propor uma nova racionalidade, e esse movimento vem
sendo chamado por ele de crítica à razão indolente, na defesa de uma razão
cosmopolita. Como fundamentos da nova razão, ele indica três procedimentos
metassociológicos: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e
o trabalho de tradução (SANTOS, 2006).

3 O projeto coordenado por Santos, e desenvolvido entre janeiro de 1999 e dezembro de 2001, foi
realizado em Angola, África do Sul, Brasil, Colômbia, Portugal e Índia e tinha por objetivo estudar
alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo global construídas em âmbito local.

242 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


De acordo com Santos (2008), o modelo de racionalidade ainda hegemôni-
co entre nós tem sua referência na ciência moderna, que se constituiu a partir
da revolução científica do século XVI. Esse modelo se coloca como global, ao
negar caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem
por seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas.
Segundo Santos, a crise do paradigma moderno é produzida em seu in-
terior, e se funda no próprio desenvolvimento do conhecimento científico.
Cientistas nos campos da astrofísica, mecânica quântica, matemática, quími-
ca e biologia apresentam teorias que refutam as principais crenças da ciência
moderna, desde as leis da física newtoniana até a eternidade, estabilidade e
previsibilidade da matéria e da natureza. Dessa crise, desponta o questiona-
mento dos conceitos de lei e do princípio de causalidade, tal como estavam
colocados, e o questionamento do próprio conteúdo do conhecimento cientí-
fico, a partir da relação que se estabelece entre sujeito e objeto, “uma relação
que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os es-
tanques e incomunicáveis” (SANTOS, 2008, p. 54). Da mesma forma que in-
dica os sinais da crise, Santos sugere que um novo paradigma está por surgir.

Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria
revolucionada pela ciência, o paradigma científico (o paradigma de um
conhecimento prudente) tem que ser também um paradigma social (o
paradigma de uma vida decente). (SANTOS, 2008, p. 60)

No entanto, enquanto esse paradigma emergente não se estabelece como


dominante, ainda se podem sentir os efeitos da racionalidade moderna no des-
perdício da experiência. A permanência do regime moderno de historicidade,
entendido como elemento que subjaz à tradição disciplinar estudada aqui, pode
ser reconhecida como um dos efeitos dessa racionalidade no ensino de História.
A crítica que Santos apresenta, dirige-se a quatro características da racio-
nalidade moderna, que chama de indolências da razão.4 Nesta pesquisa, me
interessa explorar a razão metonímica e a proléptica, as quais o autor conside-
ra como formas fundacionais da razão ocidental.

4 As quatro formas de se manifestar a indolência da razão são: Razão impotente: “não se exerce
porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria”;
Razão arrogante: “não sente a necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente
livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar sua própria liberdade”; Razão
metonímica: “se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a
descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima”;
Razão proléptica: “não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o
concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente” (SANTOS, 2006, p. 95-96).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 243


Na perspectiva da razão metonímica, prevalece a ideia de totalidade única
e homogênea, fora da qual não há outras formas de existência.5 Uma única
lógica organiza o movimento do todo e das partes e, se houver alguma varia-
ção no movimento de alguma das partes, isso não afeta o movimento do todo,
pois é visto como uma particularidade ou um desvio. “Nenhuma das partes
pode ser pensada fora da relação com a totalidade” (SANTOS, 2006, p. 98), e,
por isso, sua existência se restringe a uma única totalidade.
Segundo Santos, a forma mais bem-acabada de totalidade para a razão me-
tonímica é a dicotomia, estrutura que torna os termos inexistentes fora dela
e que esconde hierarquias sob relações aparentemente horizontais. Acredito
que também é possível afirmar que a narrativa historiográfica – sob a influên-
cia do regime moderno de historicidade e, portanto, na ótica da razão ociden-
tal – também assumiu formas de uma totalidade própria à razão metonímica.
À singularização semântica que transformou a História num coletivo singular

que expressa a inclusão de toda a humanidade em um único processo


temporal, corresponde a sua transformação em objeto de teorias políti-
cas e filosóficas que imaginam poder apreender o passado, o presente e
o futuro como uma totalidade dotada de sentido previamente definido.
(JASMIN, 2006, p. 11)

Esse sentido foi dado pela ideia de progresso, categoria que passou a mani-
festar determinação sobre o tempo, tempo que se tornou “transcendente à na-
tureza e imanente à história” (KOSELLECK, 2006, p. 55). Para Santos, a ideia
de progresso – assim como a de revolução – é fruto de um dos movimentos da
razão metonímica, que reduz a multiplicidade de tempos ao tempo linear.6
A totalidade histórica, dessa forma, pode ser entendida como unitária, pois a
trajetória progressiva do tempo linear exclui a possibilidade de existência fora
dela, criando experiências inexistentes, particulares ou desviantes. Da mes-
ma forma, a totalidade histórica pode ser entendida como homogênea porque
uma única lógica – a lógica da história como processo contínuo e crescente
de aperfeiçoamento – organiza o movimento do todo e das partes. É possível
pensar que uma totalidade em si pressupõe certa homogeneidade, já que a
articulação necessária entre as partes exige, de alguma forma, uma perda na

5 O sentido de existência empregado pelo autor, e compartilhado neste texto, se aproxima


muito mais da perspectiva de uma significação válida e positiva do que de uma concepção
ontológica de materialidade.
6 O outro movimento da razão metonímica é a redução da multiplicidade de mundos ao mundo
terreno, através dos processos de laicização e secularização (SANTOS, 2006).

244 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


especificidade das partes que passam a compor o todo. O que é problemático
aqui é que essa característica, no modelo marcado pelo regime de historici-
dade moderno, implica uma homogeneidade excludente, uma totalidade que
produz a não existência.

Não há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são vários
as lógicas e os processos através dos quais a razão metonímica produz
a não existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo li-
near. Há produção de não existência sempre que uma dada entidade é
desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de modo
irreversível. O que une as diferentes lógicas de produção de não existên-
cia é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional.
(SANTOS, 2006, p. 102)

A lógica de produção da não existência, que dá único sentido e direção


à História, é chamada por Santos de monocultura do tempo linear,7 e tem
sido formulada de diversas maneiras – progresso, revolução, modernização,
desenvolvimento, crescimento, globalização – igualmente capazes de produzir
formas sociais de inexistência.

Trata-se de formas sociais de inexistência porque as realidades que elas


conformam estão apenas presentes como obstáculos em relação às reali-
dades que contam como importantes (...). São, pois, partes desqualifica-
das de totalidades homogêneas que, como tal, apenas confirmam o que
existe e tal como existe. São o que existe sob formas irreversivelmente
desqualificadas de existir. (SANTOS, 2006, p. 104)

Para o autor, apesar de desacreditada e exaustivamente criticada, a razão


metonímica é ainda dominante. Defendo que a tradição no ensino de História,
sob as marcas do regime moderno de historicidade, tal como analisada aqui,
tem contribuído para a manutenção desse processo de construção da inexis-
tência, operado pela razão metonímica através da monocultura do tempo li-
near. No entanto, a própria lógica interna a esses processos permite pensar na
possibilidade de alternativas.
Partindo das certezas de que a compreensão do mundo excede em muito a
compreensão ocidental do mundo, de que essa compreensão tem relação dire-

7 Razão metonímica gera cinco modos de produção de não existência (monoculturas racionais):
a monocultura do saber e do rigor do saber, a monocultura do tempo linear, a monocultura
da naturalização das diferenças, a monocultura da escala dominante, e a monocultura dos
critérios de produtividade capitalista (SANTOS, 2006).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 245


ta com as concepções de tempo e temporalidade, e de que a concepção de tem-
po ocidental dominante tem por principal característica contrair o presente e
expandir o futuro, Santos propõe uma racionalidade que faça o movimento
inverso: expanda o presente e contraia o futuro.

Para expandir o presente, proponho uma sociologia das ausências; para


contrair o futuro, uma sociologia das emergências. (...) Em vez de uma
teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz
de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e dispo-
níveis sem destruir a sua identidade. (SANTOS, 2006, p. 95)

Suas propostas apoiam-se no questionamento dos fundamentos da razão


metonímica, ou seja, promover a proliferação das totalidades, fazendo a tota-
lidade proposta pela razão metonímica coexistir, e reconhecer a heterogenei-
dade das totalidades e a independência de suas partes, que podem constituir
outras totalidades simultaneamente. Segundo o autor, para uma crítica efeti-
vamente radical à modernidade ocidental, é preciso questionar o mecanismo
fundamental de sua reprodução: a redução da realidade ao que existe na lógica
da razão metonímica. Para ele, o processo de desenvolvimento da ciência a
coloca num dilema, já que é primorosa em apontar a cegueira de teorias pas-
sadas, mas incapaz de assumir a própria. Dessa forma, “a consciência de nossa
cegueira, que somos forçados a exercer enquanto desvelamos a cegueira dos
outros, deve estar no centro de uma nova atitude epistemológica” (SANTOS,
2009, p. 61). Essa nova atitude sugere a valorização de uma pluralidade de
conhecimentos e práticas, já que nenhuma delas isoladamente garante uma
orientação confiável.
A essa nova atitude epistemológica, Santos dá o nome de epistemologia
do Sul, entendendo-a como a busca de conhecimentos e critérios de validade
de conhecimentos que deem visibilidade e credibilidade às práticas cognitivas
das classes, povos e grupos sociais que historicamente têm sido oprimidos
pelo colonialismo e o capitalismo global.8 A epistemologia do Sul pretende,
portanto, denunciar o epistemicídio9 e promover a justiça cognitiva como pré-
-requisito para a justiça social, pois

8 É importante destacar que, nessa expressão, o Sul é entendido como metáfora de todo
processo de exploração e invisibilização sofrido por países, grupos socioculturais e indivíduos,
tanto no Sul quanto no Norte geográfico. Para o autor, tanto o Norte global geográfico quanto
o Sul global geográfico contêm em si mesmos o Sul epistemológico.
9 Santos chama de epistemicídio o processo de destruição de muitas formas de saber,
especialmente aquelas próprias dos povos que foram objeto do colonialismo ocidental.

246 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


oferece instrumentos analíticos que permitem, não apenas recuperar co-
nhecimentos suprimidos ou marginalizados, como também identificar
as condições que tornem possível a construção de conhecimentos de
resistência e de produção de alternativas ao capitalismo e colonialismo
globais. (SANTOS, 2009, p. 13)

Esses instrumentos são forjados por meio da sociologia das ausências e da


sociologia das emergências.
A sociologia das ausências quer identificar o âmbito de produção das inexistên-
cias efetuadas pela razão metonímica, para que as experiências produzidas como
ausentes possam ser libertadas das relações e passem a ser consideradas como al-
ternativas às experiências hegemônicas, a partir da discussão de sua credibilidade.

Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe
é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como
uma alternativa não credível ao que existe. (...) Fá-lo, centrando-se nos
fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade meto-
nímica. (SANTOS, 2006, p. 102)

Entendendo a tradição no ensino de História como um dos âmbitos de pro-


dução de não existência através da monocultura do tempo linear, esta pesqui-
sa pretende operar com a sociologia das ausências, questionando os processos
de produção na narrativa historiográfica. Esse questionamento oferece como
alternativa a construção da ecologia10 das temporalidades.11
De maneira geral, as ecologias propostas pela sociologia das ausências não
pretendem defender a aceitação do relativismo, entendido como ausência de
critérios de hierarquias entre as experiências construídas como não existen-
tes. “Pretende apenas que elas deixem de ser atribuídas em função de um só
critério que não admite ser questionado por qualquer outro critério alternati-
vo” (SANTOS, 2006, p. 105).

A questão não está em atribuir igual validade a todos os tipos de sa-


ber, mas antes em permitir uma discussão pragmática entre critérios
de validade alternativos, uma discussão que não desqualifique à partida

10 No âmbito da sociologia das ausências, Santos define ecologia como “prática de agregação
da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e
heterogêneas” (SANTOS, 2006, p. 105).
11 Aos modos de produção de inexistência da razão metonímica, a sociologia das ausências
oferece cinco tipos de ecologia: a dos saberes, a das temporalidades, a do reconhecimento,
a das transescalas e a das produtividades. Na tese, dedico atenção à primeira.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 247


tudo o que não se ajusta ao cânone epistemológico da ciência moderna.
(SANTOS, 2006, p. 108)

A ecologia das temporalidades, mais especificamente, contrapõe-se à mo-


nocultura do tempo linear e afirma que essa é apenas uma das concepções
do tempo e não a única possível. Segundo Santos, sua primazia, localizada
na primazia da modernidade ocidental, nunca eliminou outras concepções de
tempo, que, mesmo no Ocidente, conviveram com a ideia de tempo linear,
ainda que subjugadas, subalternizadas e construídas como inexistentes.

Uma vez tais temporalidades sejam recuperadas e dadas a conhecer, as


práticas e sociabilidades que por elas se pautam tornam-se inteligíveis
e objetos credíveis de argumentação e de disputa política. (SANTOS,
2006, p. 110)

Ao conceber o futuro pela monocultura do tempo linear, a razão indolente


se mostra como razão proléptica. Tendo o progresso atribuído sentido e dire-
ção à história, e sendo sem limites, o futuro se mostra infinito, daí a afirmação
de essa ser a razão do alargamento do futuro. A crítica dessa razão se faz atra-
vés da contração desse futuro irreversível, ao torná-lo objeto de cuidado, subs-
tituindo-se a ideia mecânica de determinação (progresso) pela ideia axiológica
do cuidado. “O futuro não tem outro sentido e direção senão os que resultam
desse cuidado” (SANTOS, 2006, p. 116).
Se a sociologia das ausências promove a dilatação do presente, ao ampliar
o sentido de contemporâneo dentro da simultaneidade, a contração do futuro
se constrói a partir da sociologia das emergências.

A sociologia das emergências consiste em substituir o vazio do futuro


segundo o tempo linear (o vazio que tanto é tudo como é nada) por um
futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas
e realistas, que se vão construindo no presente através das atividades de
cuidado. (SANTOS, 2006, p. 116)

Enquanto a sociologia das ausências age sobre as alternativas disponíveis


no espaço de experiência, a sociologia das emergências age sobre as alter-
nativas possíveis no horizonte de expectativas e visa criar práticas e saberes
suficientemente fortes para fornecer alternativas credíveis aos modelos hege-
mônicos. “A sociologia das emergências é a investigação das alternativas que
cabem no horizonte das possibilidades concretas” (SANTOS, 2006, p. 118).
Desse modo, a sociologia das emergências atua sobre o Ainda-Não, em suas
dimensões de potência (capacidade) e potencialidade (possibilidade).

248 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


O Ainda-Não é a categoria mais complexa, porque exprime o que existe
apenas como tendência, um movimento latente no processo de se mani-
festar. O Ainda-Não é o modo como o futuro se inscreve no presente e o
dilata. (SANTOS, 2006, p. 116).

A forma de agir da sociologia das emergências sobre o que existe apenas


como potência e potencialidade é através do movimento de ampliação sim-
bólica dos saberes, práticas e agentes. A ampliação simbólica é uma atenção
excessiva às pistas e aos sinais do que ainda é tendência ou possibilidade, que
opera por dois procedimentos: tornar menos parcial o nosso conhecimento
das condições do possível, conhecendo melhor o que pode ser reconhecido
como pistas ou sinais do possível nas realidades investigadas, e tornar menos
parciais as condições do possível, fortalecendo tais pistas ou sinais.
A razão cosmopolita, que, segundo Santos, é a que supera a razão indolen-
te, prefere imaginar o mundo melhor a partir do presente.

Por isso propõe a dilatação do presente e a contração do futuro. Aumen-


tando o campo das experiências, é possível avaliar melhor as alternativas
que são hoje possíveis e disponíveis. Essa diversificação das experiências
visa recriar a tensão entre experiências e expectativas, mas de tal modo
que umas e outras aconteçam no presente. O novo inconformismo é o
que resulta da verificação de que hoje e não amanhã seria possível viver
num mundo muito melhor. (SANTOS, 2006, p. 135)

Como fundamentos da razão cosmopolita, a sociologia das ausências e a


sociologia das emergências criam novas articulações entre espaço de experiên-
cias e horizonte de expectativas, e, dessa forma, possibilitam novas configura-
ções para o tempo histórico.
A razão metonímica, associada à razão proléptica, alimenta uma concepção
de história como totalidade unitária e homogênea, acelerada por um tempo li-
near progressivo. Essa perspectiva cria assimetrias entre os tempos históricos
a partir dos processos de produção de não existências. A opção pela sociologia
das ausências e pela sociologia das emergências, como instrumentos de crítica
aos efeitos da indolência da razão sobre a tradição disciplinar, presente no
ensino de História por força da permanência de marcas do regime moderno de
historicidade, cria a possibilidade de constituição de outras histórias possíveis
a partir de uma concepção intercultural.12

12 Tenho desenvolvido e aprofundado a perspectiva intercultural no ensino de História em outros


textos já publicados e alguns ainda no prelo. Ver: Araujo (2013, 2014 e 2016).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 249


Acredito que o caráter pluricultural das sociedades latino-americanas, oriun-
do de sua formação sócio-histórica, exige a ampliação da reflexão sobre elas no
sentido de estudar e compreender essas sociedades na diversidade de interpre-
tações das experiências humanas. Daí se tornar cada vez mais imperiosa a ne-
cessidade de investimento no diálogo intercultural, tanto no âmbito da produ-
ção de conhecimentos quanto das práticas socioeducativas, que precisam estar

(...) alimentadas por uma sensibilidade intercultural, o que supõe, entre


outras coisas, que cada um de nós cultive e promova valores de curio-
sidade profunda, respeito e valorização das visões de mundo, valores e
interesses e saberes dos demais. (MATO, 2009, p. 89)

Nessa direção, quero defender a perspectiva da interculturalidade crítica


para apoiar práticas socioeducativas. Conforme Vera Maria Candau,

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação


para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes gru-
pos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que en-
frenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes
grupos socioculturais nas nossas sociedades. (CANDAU, 2009, p. 166)

Dessa forma, a educação intercultural oferece centralidade às relações en-


tre os diferentes e distintos sujeitos – individuais e coletivos –, buscando uma
produção plural de sentidos a partir do enfrentamento e da negociação, do
contato e do confronto. Considerando a possibilidade de construção de diálo-
gos interculturais na perspectiva defendida aqui, sua tarefa, portanto,

(...) não é adaptar, ou mesmo simplesmente possibilitar a mútua compreen-


são das linguagens. É, antes, possibilitar a emergência dos múltiplos signifi-
cados, provocando a reflexão sobre os seus fluxos e cristalizações e os jogos
de poder aí implicados. (...) A finalidade é a invenção da possível transfor-
mação de relações hierarquizadas e excludentes em relações de reciprocida-
de e de inclusão; de saberes fragmentados e disciplinarizados, em saberes
que busquem, além das distinções, as interconexões, a desestabilização de
dicotomias, substituindo bifurcações hierárquicas por redes de diferenças
cruzadas, múltiplas e fluidas. (AZIBEIRO e FLEURI, 2008, p. 7)

É nesse sentido que acredito que o saber histórico escolar pode se tor-
nar um espaço de diálogos interculturais, os quais, por meio do contato e do
confronto, sejam capazes de favorecer a expressão de múltiplos significados e
promover a reflexão sobre os fluxos (de significação) a partir do desvelamento
das assimetrias que geram inexistências e desestimulam emergências.

250 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


Sendo assim e apoiada por esse desenho conceitual, a pesquisa vem se
desenvolvendo em torno de três questões iniciais, que deverão se expandir e
multiplicar no decorrer da própria investigação.
1. Entendendo o saber histórico escolar como espaço de diálogos cultu-
rais possíveis, como mobilizar a noção de tempo para promover con-
tatos e confrontos culturais de modo a favorecer a reflexão sobre os
diferentes processos de significação cultural?
2. Entendendo a interculturalidade como um conceito que pode ser adje-
tivado com fins de atender a diferentes projetos políticos e defendendo
uma perspectiva intercultural crítica, quais são os usos e sentidos para
as noções de igualdade e diferença disponíveis e possíveis nos currícu-
los de História?
3. Entendendo a necessidade de multiplicar as narrativas sobre o passa-
do, ampliando simbolicamente as experiências históricas disponíveis
e possíveis, qual o papel do ensino de História na construção de uma
ecologia de saberes?
Frente a essas proposições investigativas, os primeiros movimentos reali-
zados pelo grupo no âmbito da pesquisa coletiva foram: o estudo sistemático
de toda a literatura referente ao desenho conceitual proposto e o exercício de
buscar ampliação para esse desenho; e o levantamento de pesquisas realizadas
no campo do Ensino de História que tenham como foco/objeto de investiga-
ção a temática da diferença.
Para realizar esse levantamento, escolhemos como espaço privilegiado de
coleta de dados os simpósios nacionais da Associação Nacional de História
(ANPUH). Essa escolha se deve ao amplo reconhecimento dessa instituição
como representante profissional e acadêmica dos diversos profissionais da
área de História do país. Desde sua criação, em 1961, a associação vem am-
pliando sua base de associados, que, hoje, inclui, além dos professores univer-
sitários, os professores da Educação Básica, profissionais atuantes em arqui-
vos públicos e privados e em instituições de patrimônio e memória. Essa di-
versidade de espaços de atuação do profissional de História, refletida no corpo
social da associação, também parece indicar um reconhecimento do potencial
de produção de conhecimento histórico em todos esses espaços, por todos
esses profissionais. A cada dois anos, a ANPUH realiza o Simpósio Nacional
de História, considerado pela própria instituição como “o maior e mais impor-
tante evento da área de História no país e na América Latina”.13 Os encontros
se organizam em torno de atividades acadêmicas e culturais que discutem e

13 Conforme publicação no site oficial da ANPUH (https://anpuh.org.br/index.php/quem-somos).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 251


divulgam conhecimentos na área. As principais atividades do evento, as quais
envolvem maior tempo da programação e maior número de participantes, são
os Simpósios Temáticos (ST), sugeridos por associados da ANPUH, conforme
calendário apresentado pela organização geral do evento, por meio de inscri-
ção de propostas que constam, geralmente, da apresentação e justificativa de
uma temática ou abordagem de pesquisa. Uma vez aceitos pela organização,
os ST recebem inscrições de trabalhos de pesquisadores de todo o país. Esse
formato de definição de arranjo dos ST me parece bastante rico de referências
sobre as tendências de pesquisa na área de História.14
O levantamento realizado pelo grupo obedeceu ao recorte temporal de
2003 a 2015 e resultou na montagem de um banco de dados com informações
sobre os sete simpósios nacionais realizados nesse período, e a identificação
de pesquisas e pesquisadores que tratam do tema do ensino de História e
diferenças. O processo de reconhecimento das pesquisas selecionadas teve
início com a análise dos títulos e resumos dos ST, de modo que atendessem a
pelo menos um dos campos semânticos estabelecidos como critério de busca.
Uma vez selecionados os ST, a mesma metodologia foi aplicada na seleção
de pesquisas apresentadas. Os campos semânticos foram definidos a partir
das discussões conceituais no grupo e envolviam a construção de descritores
que pudessem mapear o recorte desejado pela pesquisa. Foram estabelecidos
como campos semânticos e descritores para seleção dos ST e das pesquisas:
“Ensino de História” (Educação Escolar; Formação Docente; História do Ensi-
no de História) e “Identidades/Diferenças” (Multiculturalismo(s); Intercultu-
ralidade(s); Diferença(s); Diversidade(s); Identidade(s); Gênero(s); Raça(s);
Religião(ões); História Africana e Afro-brasileira; História Indígena). Uma vez
aplicados os descritores, foram feitas as seleções de pesquisas que atendiam
aos dois campos semânticos.
Nos sete simpósios nacionais analisados, foram apresentados 628 ST, e, des-
tes, 181 foram selecionados pela aplicação dos descritores, atendendo a pelo me-
nos um dos campos semânticos. Podemos afirmar que quase 30% dos ST pro-
postos pelos pesquisadores da ANPUH nesses anos tinham alguma relação com
o ensino de História ou com o tema das Identidades/Diferenças. Nesse universo,
foram apresentados 5.430 pesquisas, sendo 1.056 (19,45%) correspondentes ao
campo semântico “Ensino de História”, e 2.767 (50,96%) ao campo semântico

14 As pesquisas em ensino de História receberam atenção bastante diferenciada na trajetória


de consolidação da ANPUH, mas vêm ganhando espaço e crescendo em participações
na mesma medida em que se consolida como campo de pesquisa. Da mesma forma, vem
crescendo a participação da ANPUH nos debates e demandas públicas sobre o tema da
História escolar. Para uma visão sobre esse tema, veja Barreiro e Giavara (2018).

252 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


das Identidades/Diferenças. Entretanto, aquelas pesquisas que atenderam a des-
critores dos dois campos semânticos somaram apenas 285 (5,25%).
Os resultados ainda estão sendo analisados pelo grupo, a partir de distin-
tos recortes e abordagens. Preliminarmente, é possível afirmar que, apesar
da crescente participação das pesquisas/pesquisadores em ensino de Histó-
ria nos simpósios nacionais da ANPUH, essa presença ainda é tímida. Ainda
mais tímida é a presença de pesquisas que investem no tema das identidades
e diferenças no ensino de História, apesar de esse tema não estar ausente nas
pesquisas da área, representando mais da metade das identificadas pela nossa
pesquisa. Por ora, é possível afirmar que o lugar da diferença na pesquisa em
ensino de História precisa ser ampliado e, mais ainda, precisam ser defendidas
a urgência e a necessidade desse movimento, especialmente se considerarmos
os cenários sociais e políticos marcados por tendências cada vez mais conser-
vadoras, intolerantes e preconceituosas.

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254 CINTHIA MONTEIRO DE ARAUJO


O documentário Os guardiões da Lagoa:
a universidade no espaço do quilombo

Carlos Augusto Lima Ferreira1

Introdução

A formação inicial e continuada de professores tem sido o foco das atenções


de pesquisas no campo da Educação, como pode ser conferido em várias revistas
especializadas e em eventos científicos como a Reunião da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e o Encontro Nacional de
Didática e Prática de Ensino (ENDIPE). Consideramos fundamental compreen-
der as necessidades da formação de professores, de modo a legitimar práticas que
constituem as identidades docentes. Para atingirmos tal objetivo, o projeto intitu-
lado “O ensino de História, Geografia e Letras através da cidade: entre histórias e
memórias de Feira de Santana”2 teve como meta a ampliação das relações entre a
universidade e a escola, tanto no que diz respeito à formação dos futuros profes-
sores, quanto às inúmeras possibilidades de aprendizado e atualização nos pro-
cessos de formação continuada docente. Nesse sentido, a proposta contemplou
duas dimensões: a inicial e a continuada de um mesmo processo, o formativo.
Tal necessidade se justifica a partir dos dilemas que enfrentamos cotidiana-
mente, seja nas salas de aula, junto aos licenciandos nas várias disciplinas pe-
dagógicas que ministramos, seja no cotidiano das escolas, em que acontece o
desenvolvimento dos estágios supervisionados. Em igual medida, elaboramos
propostas concretas de imbricamentos interdisciplinares, visando necessaria-
mente a articulação de saberes em salas de aulas do ensino básico.

1 Professor titular do Departamento de Educação e do Mestrado e Graduação em História, da


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Doutor em Educação pela Universidade
Autônoma de Barcelona (UAB). Coordenador do Pibid Interdisciplinar História, Geografia
e Letras/UEFS (2014-2016). Coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Formação de
Educadores (LIFE-UEFS). E-mail: caugusto@uefs.br.
2 Subprojeto do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid Interdisciplinar:
História, Geografia e Letras).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 255


Buscamos, então, construir uma parceria entre a Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS) e as escolas da rede pública, capaz de possibilitar o
desenvolvimento de novas posturas pedagógicas nos fazeres e saberes que en-
volvem o ensino de História, Geografia e Letras de forma interdisciplinar nos
ensinos Fundamental e Médio, tanto por parte do licenciando que ingressa na
escola, quanto do professor que ali está atuando. Nessa perspectiva, compre-
endemos que:

A interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém


sua individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão
das múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade e traba-
lha todas as linguagens necessárias para a constituição de conhecimen-
tos, comunicação e negociação de significados e registro sistemático dos
resultados. (BRASIL, 1999, p. 89)

Para que ocorra a interdisciplinaridade, não se discute eliminar as discipli-


nas, e sim colocá-las em permanente diálogo, percebendo-as dentro de suas
trajetórias históricas e culturais, necessárias às práticas do processo de en-
sino-aprendizagem. Portanto, é importante deixar claro que ao se abraçar a
interdisciplinaridade como metodologia no desenvolvimento do projeto, não
significa abandonar as disciplinas, nem ser professor “pluriespecializado”,
mas, sobretudo, qualificar um olhar sobre a realidade escolar.
Rachel Soihet (2003) lembra o quanto foi significativa a ampliação das
possibilidades de abordagem, a partir da interdisciplinaridade. Ao destacar os
teóricos que se dedicam à história cultural, ela comenta que:

(...) o surgimento de uma área comum de pesquisa entre antropólogos


e historiadores tornou-se possível quando os primeiros passaram a inte-
ressar-se pelos processos de mudança social, percebendo que seus objetos
de estudo não eram imutáveis e estáticos, e os historiadores passaram a
valorizar os comportamentos, crenças e cotidianos dos homens comuns,
tradicionalmente considerados irrelevantes. (SOIHET, 2003, p. 17)

Portanto, para maior consciência dessa realidade, para que os fenômenos


complexos sejam observados, vistos, descritos e entendidos, torna-se cada vez
mais importante a confrontação de olhares plurais na observação da situação
de aprendizagem. Desse modo, buscou-se a articulação entre teoria e prática,
visando aprofundar a reflexão sobre os aspectos teóricos e didáticos da inter-
disciplinaridade na formação docente.
A constituição dessas articulações entre os alunos e os professores das
escolas integrantes do projeto, os professores formadores da UEFS e as comu-

256 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


nidades atendidas pelas escolas, apesar de essas articulações já existirem na
UEFS, acontece, porém, de forma ainda pontual, nos momentos de estágios
supervisionados ou nos formatos de projetos de extensão.
É preciso, sobretudo, inverter a lógica que permeia os cursos de formação
das licenciaturas, a qual, não raramente, toma o espaço das práticas docentes
da escola básica como espaços únicos e exclusivos do erro e de todas as dificul-
dades inerentes à educação. Conceber as salas de aulas da escola básica apenas
como espaços de pesquisa e formação é possibilitar que os alunos não perce-
bam e/ou concebam esses espaços, aprioristicamente, como espaços apenas
das experimentações daqueles modelos também criados pelas Instituições de
Ensino Superior. Todavia, o que se quis foi oportunizar o exercício da reflexão
e da produção de saberes no universo da escola.
Pressupomos, assim, que as práticas desenvolvidas especificamente em
sala de aula pelos docentes de História, Geografia e Letras tenham estabeleci-
do um intercâmbio permanente e dialógico com as demais práticas culturais
e sociais. A proposta visou, antes de tudo, a mudança de perspectiva da aca-
demia em relação às epistemologias de ensino das áreas em questão. Mais do
que a proposição de metodologias e ações pontuais direcionadas da academia
para os ambientes escolares, o nosso objetivo foi propor mudanças que impli-
cassem, necessariamente, modificações epistemológicas significativas.
Por isso, a necessidade de entendermos de que maneira o domínio teórico-
-metodológico do ensino de História, Geografia e Letras interferiu na relação
de ensino-aprendizagem na sala de aula.
Quanto a essa questão norteadora, foi preciso levarmos em consideração o
papel da teoria e da prática na formação docente, do fazer docente em Histó-
ria, Geografia e Letras. Vivenciar a realidade da escola é tão importante quanto
vivenciar a realidade da universidade, pois ambas interferem profundamente
na formação do docente. Como poderemos formar professores, se muitos alu-
nos e alunas em formação se comportam como espectadores que vão interferir
num processo que é, equivocadamente, visto como externo a eles?
Pretendíamos, com o projeto, ampliar o número de estudos nesses cam-
pos, uma vez que, embora a UEFS mantenha, ultimamente, maior diálogo
com a sociedade, ainda existe grande carência de estudos, seja daqueles que
contemplem questões ligadas ao ensino e à formação de professores, seja em
relação ao mapeamento das manifestações da cultura escolar.
A respeito da cultura escolar, Forquin, citado por Monteiro, afirma:

A escola, mais do que um local de instrução e transmissão de saberes,


passou a ser considerada como um espaço configurado e configurador de

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 257


uma cultura escolar, onde se confrontam diferentes forças e interesses
sociais, econômicos, políticos e culturais. (FORQUIN, apud MONTEI-
RO, 2003, p. 12)

A incorporação de novos sujeitos aos processos de investigação e a conse-


quente ampliação da ação da universidade nos espaços sociais podem favore-
cer não apenas uma formação acadêmico-profissional mais ampla e mais sen-
sível às demandas da sociedade, como também possibilitar uma maior e mais
qualificada produção de conhecimento sobre a escola, a formação continuada
e ações efetivas no sentido de melhoria das atividades ligadas à docência, quer
seja na universidade, quer seja na Educação Básica.3
Além disso, uma questão fundamental que justificou o projeto interdisci-
plinar, no contexto da universidade, tem sido a apregoada, mas muito pouco
praticada, indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão. A despeito de
ser divulgada aos quatro cantos, a indissociabilidade acontece de forma muito
incipiente em algumas atividades ou sob a forma de projetos, cursos, eventos,
frequentemente desvinculados e sem condições de integração. No caso dos
cursos aqui elencados (História, Geografia e Letras), isso é quase nulo. A
UEFS, a exemplo de demais universidades brasileiras, tem se caracterizado
pela desvinculação entre pesquisa, extensão, ensino e pós-graduação.
Salvo um ou outro caso, não se pensa em propostas integradas: pensa-se
ensino, ou extensão, ou pesquisa, pouco se refletindo ou se investindo na
integração das ações desenvolvidas na universidade. Dessa forma, faz-se ne-
cessário repensar a relação entre a universidade e a sociedade. Para além da
formação de profissionais e de pesquisadores, a dimensão extensionista deve
ganhar relevo, não isoladamente, mas, haja vista a importância da divulgação e

3 O PIBID-UEFS já se constitui em uma presença marcante na universidade e nas escolas


parceiras, despertando grande interesse pedagógico e político-educacional. A inserção
dos licenciandos no cotidiano das escolas, além de impactar positivamente na sua
formação, dinamiza e impulsiona a qualidade do trabalho naqueles espaços educacionais,
proporcionando ricas experiências metodológicas e o uso de novas tecnologias, com práticas
docentes inovadoras e interdisciplinares.
Alguns, indicadores positivos já podem ser evidenciados: além do envolvimento
acadêmico e do comprometimento efetivo dos licenciandos, com consequente elevação
do desempenho nas atividades formais do curso e na vida universitária de um modo geral,
verificam-se também indicadores favoráveis no ambiente escolar em que o PIBID atua,
como a redução dos índices de evasão; a motivação de todos os envolvidos no processo;
o interesse pela pesquisa científica; uma maior integração da escola com a comunidade
(sobretudo, participação dos pais na vida escolar dos filhos); a implantação ou reativação
de espaços pedagógicos, como laboratórios didáticos, biblioteca, salas de leitura, ambientes
culturais e de lazer (Relatório Institucional PIBID-UEFS. Grifo nosso).

258 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


socialização, como um desdobramento, ou melhor, parte integrante do ensino
e da pesquisa. Disso depende a própria legitimidade da universidade. Como
aponta Nádia Gaiofatto Gonçalves, em seu instigante texto Indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão: um princípio necessário:

São ainda muitos os desafios para a implementação efetiva do princípio


da indissociabilidade como elemento integrador e essencial, que perpasse
a Universidade, inclusive não se limitando à graduação. Porém, deve-se
lembrar que o habitus e as regras dos campos são condicionados e condi-
cionantes, situados social e historicamente, mas também são dinâmicos,
e, portanto, constituem possibilidades de mudança para o fortalecimen-
to de uma prática educativa e de uma política de formação nas quais a
indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão seja um princípio
necessário, no duplo sentido da expressão. (GONÇALVES, 2015, p. 1252)

Isso posto, consideramos que a integração ou indissociabilidade entre en-


sino, pesquisa e extensão configura um salto qualitativo na relação entre a
universidade e a sociedade, oportunizando uma rica troca de experiências e
aprendizagens, notadamente a interlocução com outras formas de saber, para
além do conhecimento científico. Ademais, o projeto ao qual vinculamos a
proposta, destaca-se pelo seu aspecto de intervenção na formação do estu-
dante.
Nesse sentido, o projeto interdisciplinar pôde representar um papel crucial
no que diz respeito ao processo de “fazer a Universidade”, na medida em que
possibilitou, além dos aspectos já mencionados anteriormente, a instituição
de um espaço para discussões acerca das práticas da História da Geografia e
de Letras. Essas discussões inscreveram-se no âmbito das mudanças ocorridas
nos campos das teorias específicas de cada curso.
A formação de parcerias e de intercâmbio de experiências, com outras ins-
tituições e, principalmente, com os profissionais dos ensinos Fundamental e
Médio, e a abertura de um campo de investigação/sistematização acerca dos
sujeitos, saberes e práticas que configuram o fazer/aprender História, Geogra-
fia e Letras na microrregião em que se insere a UEFS foram fundamentais para
um programa de iniciação à docência.
Em um território mais restrito, o projeto interdisciplinar nos auxiliou na
definição qualificada e consistente de objetos de estudos e/ou propostas de in-
tervenção para os trabalhos monográficos de final de curso, uma vez que, para
além da tutoria, foram oportunizados o contato e a troca de conhecimentos
com a equipe multidisciplinar do projeto e com os sujeitos que constituíram
a realidade a ser estudada.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 259


Os reflexos e a relevância das ações da nossa proposta interdisciplinar im-
plicaram um ensino pautado por compromissos de natureza epistemológica,
pedagógica e ético-social – o que significou cuidar, representar, defender, as-
sistir ao estudante, com acompanhamento e orientação sistemática. Tal me-
diação pedagógica possibilitou ao estudante:
• desenvolver a autoconfiança, potencializando as capacidades individu-
ais e coletivas;
• compreender e estimular os mecanismos de superação das dificulda-
des individuais e coletivas;
• desenvolver o manejo de conflitos e de comunicação entre colegas e
responsáveis pelo ensino;
• assumir responsabilidade sobre a própria aprendizagem e desenvolvi-
mento pessoal;
• ampliar a visão de mundo, do seu papel e das suas responsabilidades
sociais.
Além disso, evitamos a especialização precoce dos estudantes já na Gradua-
ção, favorecendo o desenvolvimento de habilidades de resolução de problemas
e pensamento crítico, promovendo a independência em relação às necessida-
des de aprendizagem, possibilitando a articulação entre ensino, pesquisa e
extensão na sua vida profissional, num processo interdisciplinar e múltiplo de
experiências (DIAS, 2009).
O projeto pretendeu:
1. visualizar a escola pública de Feira de Santana como lugar de produ-
ção e troca de conhecimentos e saberes, ampliando o debate com os
cursos de Licenciatura em História, Geografia e Letras da Universida-
de Estadual de Feira de Santana (UEFS), buscando renovar as práticas
educativas da escola contemporânea, com especial ênfase no ensino de
História, Geografia e Letras;
2. proporcionar aos alunos e professores envolvidos no projeto um am-
biente de reflexão interdisciplinar (História, Geografia e Letras) no
sentido de buscar alternativas para seu ensino, tanto no que se refere
aos conteúdos da disciplina quanto nas estratégias de trabalho;
3. produzir materiais didáticos para o ensino de História, Geografia e Letras
que: a) atendam as demandas contemporâneas propostas para a educa-
ção escolar (construída a partir do encontro de culturas que interagem na
escola); b) e com a utilização de diferentes linguagens (música, jornais,
filmes, documentários e outras) em sua confecção; c) e apropriação das
novas tecnologias disponíveis no ambiente escolar para o ensino.

260 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


O projeto, portanto, se apresentou como importante e relevante espaço
para conhecermos com mais profundidade a realidade da escola feirense. Ade-
mais, contribuímos com novas abordagens teóricas e práticas para o fazer dos
professores do ensino médio e fundamental, bem como discutimos concep-
ções de História, Geografia e Letras a partir de novos problemas, novos obje-
tos e novos documentos, como a produção de documentário, valorizando his-
tórias e ações inovadoras dentro do âmbito temático aqui apresentado. Nessa
perspectiva, oportunizamos a professores e alunos a leitura de fontes diversas,
partindo de sua realidade, do seu tempo e do seu espaço, familiarizando-os
com outras práticas da docência.
Tais aspectos foram desenvolvidos em escolas públicas da cidade de Feira
de Santana: Instituto de Escola Edelvira de Oliveira, Colégio Estadual Edith
Machado Boaventura, Colégio Estadual Durvalina Carneiro, Colégio Estadual
Professora Maria José de Lima Silveira e Escola Municipal José Tavares Car-
neiro (local da produção do documentário). Para tanto, os graduandos em
História, Geografia e Letras desenvolveram projetos interdisciplinares, tendo
como tema principal: Histórias e Memórias de Feira de Santana.
Importante cidade de médio porte brasileira e baiana, Feira de Santana tem
uma relação confusa e difusa com a sua história e memórias urbanas, o que
oferece um leque de possibilidades para projetos interdisciplinares, pois vive
em constante crise identitária. Como seus espaços citadinos possuem forte
memória hegemônica e também sombreiam memórias potentes de signifi-
cados, o projeto pode permitir o afloramento de memórias tradicionalmente
silenciadas. Dessa forma, a cidade é conteúdo de ensino e viabilidade de pes-
quisa. De acordo com Ana Fani Alessandri Carlos, a cidade, com sua paisa-
gem decorrente, “espelha diferenças colocando-nos no nível do aparente e do
imediato. Num tempo determinado, revela vários momentos passados que, na
articulação com o novo, reproduzem uma paisagem peculiar, em que a história
tem um papel importante” (CARLOS, 2005, p. 81).
É o caso, por exemplo, da não valorização do patrimônio arquitetônico e
espacial da cidade de Feira de Santana, que “derruba” sua memória, para que
o comércio se manifeste de maneira mais intensa. Buscamos mostrar, de ma-
neira geral, como, através da cidade, foi e é possível trabalhar o ensino de His-
tória, Geografia e Letras; e, de maneira específica, como, através das memórias
e histórias de Feira de Santana, foi e é possível trabalhar com Identidade e Ci-
dadania na formação dos educandos. Nesse sentido, as memórias, tanto indi-
viduais quanto coletivas, foram compreendidas como substratos importantes
da História, Geografia e Letras, o que possibilitou o entendimento da história
dos lugares e valorização das pessoas através das memórias, consequentemen-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 261


te adquirindo um caráter de vivência, constituída e reconstituída cotidianamente
pelas pessoas do lugar. Importante compreender que a memória é, além de tudo,
um espaço de disputa, sobretudo entre os grupos hegemônicos, e que possibilitar
a recuperação de uma memória até então negligenciada é ampliar a leitura sobre
o passado: “nos países democráticos, a possibilidade de acessar o passado sem
submeter-se a um controle centralizado é uma das liberdades mais inalienáveis,
ao lado da liberdade de pensar e de expressar-se” (TODOROV, 2002, p. 140).
O desenvolvimento do projeto se deu, como já mencionado, na microrre-
gião de Feira de Santana4 em que se insere a UEFS, o que tem se mostrado
essencial para o processo de formação de cada um dos integrantes do progra-
ma de iniciação à docência, que contou com a participação de quinze estudan-
tes de Graduação em História, Geografia e Letras e três professoras da escola
básica. É nesse contexto que nasce a produção do documentário Os guardiões
da Lagoa,5 realizado em 2016 e pensado nas nossas reuniões de trabalho.
Assim, tomamos a Escola Municipal José Tavares Carneiro, que tem um IDEB
de 2,4, com 787 alunos matriculados e situada no distrito de Maria Quitéria,
Feira de Santana-Bahia, como lócus da elaboração do documentário, executa-
do em conjunto com a TV Universitária Olhos D’Água da UEFS.

A pesquisa e o planejamento: o documentário Os guardiões da Lagoa6

O quilombo da Lagoa Grande, no distrito feirense de Maria Quitéria, situa-


-se em torno dessa lagoa e se configura como espaço de resistência, conforme
orienta a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

4 Localizada na zona de planície entre o recôncavo e os tabuleiros semiáridos do Nordeste


baiano, distando 108 km da capital Salvador, foi fundada em 18 de setembro de 1873. Faz
parte da Mesorregião Centro Norte Baiano e Microrregião Feira de Santana. Fazem parte de
sua região metropolitana os municípios limítrofes de Santa Bárbara, Santanópolis, Tanquinho,
Candeal, Antônio Cardoso, São Gonçalo dos Campos, Santo Amaro da Purificação, Coração
de Maria, Anguera, Serra Preta, Ipecaetá, Amélia Rodrigues e Conceição do Jacuípe. Possui
uma área de 1.363 km², densidade de 428,86 hab./km², clima tropical semiárido. O município
de Feira de Santana ocupa um contingente populacional inferior apenas a Salvador, e daí o
status de segundo município do estado da Bahia, com população estimada pelo IBGE, em
2016, de 622.639 habitantes.
5 O desenvolvimento e o planejamento do documentário Os guardiões da Lagoa, realizado
no ano de 2016, fizeram parte do projeto maior denominado Pibid Interdisciplinar “O ensino
de História, Geografia e Letras através da cidade: entre histórias e memórias de Feira de
Santana” e da atividade “Lagoa Grande, minha terra quilombola”, desenvolvida na escola.
6 Para visualizar o documentário, acesse o YouTube da TV Olhos D’Água: https://www.youtube.
com/watch?time_continue=5&v=Z_xr3JTQzyg.

262 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


Comunidades Tradicionais, ao caracterizar essas comunidades como “espaço
necessário à vivência de práticas comunitárias e ancestrais e à reprodução cultu-
ral, social e econômica dos Povos e Comunidades Tradicionais” (BAHIA, 2014).
Espaço comunitário organizado de forma coletiva, o quilombo, a partir da
lagoa, não apenas constitui uma relação produtiva, como também de preser-
vação, partilhando elementos ambientais, culturais, religiosos e históricos, ou
seja, a história de vida de homens e mulheres que souberam escrever a própria
história. A comunidade é formada por indivíduos que, desde o início, viven-
ciaram embates no que se refere à luta pela terra e tiveram o decisivo apoio
do Movimento de Organização Comunitária (MOC) na criação da Associação
Comunitária de Maria Quitéria (ACOMAQ), no ano de 1974. A lagoa, que,
por vezes, é chamada de mãe por moradores ribeirinhos, trouxe grandes bene-
fícios para a população quilombola.
Desse modo, ao pensarmos na Comunidade Quilombola de Lagoa Gran-
de, visualizamos a lagoa como um elemento simbólico e fundamental para a
sua história. Em vista disso, as atividades foram planejadas numa perspectiva
interdisciplinar que envolve os saberes das áreas de História, Geografia e Li-
teratura. “A orientação para o enfoque interdisciplinar na prática pedagógica
implica romper hábitos e acomodações, implica buscar algo novo e desconhe-
cido” (THIESEN, 2008, p. 550).
De qual forma poderíamos explorar essas relações? Como compreender as
relações dos personagens reais com a lagoa? O documentário colocou em evi-
dência o despertar das memórias dos sujeitos que se relacionavam diretamente
com a lagoa. Sujeitos que utilizam instrumentos de trabalho, cantam os versos
que atravessam o tempo e traduzem, de forma singular, a lida com a terra.
As imagens não brotam do nada, e, portanto, foram necessários pesquisa e
planejamento para a elaboração do documentário. Tivemos, então, uma ofici-
na realizada pelo cineasta da TV Universitária Olhos D’ Água, André Santana.
Elaborar um documentário, como nos diz Barry Hampe,

É um exercício de construção de um modelo. Um roteirista é um arqui-


teto de filmes. Por isso é importante o roteirista participar do processo
desde o início. O roteirista faz o mesmo tipo de pesquisa para um docu-
mentário, que um escritor teria que fazer para um artigo em uma revista.
Visitar as locações, falar com as pessoas, obter os fatos – o quem, o que,
o quando, o onde, o porquê e o como de cada evento a ser documentado.
Deve conseguir, também, algumas informações básicas, como uma lista
de pontos históricos, uma lista de pessoas a serem filmadas, de lugares,
e de eventos que devem ser filmados. (HAMPE, 1997, p. 1-2)

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 263


Estávamos prontos para a produção do documentário, e, para a sua execu-
ção, construímos os seguintes passos:
• PRIMEIRO PASSO - Oficina com estudantes bolsistas ID e professoras
da Escola José Tavares com André Santana, cineasta e editor da TV
Universitária Olhos D’ Água sobre como produzir um documentário.
• SEGUNDO PASSO - Oficina desenvolvida para a produção de uma
proposta e os objetos a serem trabalhados no documentário.
• TERCEIRO PASSO - Determinar a proposta e os objetos.

A partir da realização das oficinas, decidimos que o nosso documentá-


rio seria poético e participativo, apresentando também características de
documentário observativo. Segundo Bill Nichols, no seu livro Introdução ao
documentário (2005), o modo poético evidencia a subjetividade e se preo-
cupa com a estética. Há uma valorização dos planos e das impressões do
documentarista a respeito do universo abordado. Em relação à construção
do texto, podem-se usar poemas e trechos de obras literárias. Já o modo
participativo, como o próprio nome indica, é marcado por mostrar a par-
ticipação do documentarista e sua equipe. Assim, ele torna-se um sujeito
ativo no processo de gravação/filmagem, pois aparece em conversa com a
equipe e provoca o entrevistado para que este fale. No modo observativo, o
documentarista busca captar a realidade tal como acontece. Para isso, evita
qualquer tipo de interferência que caracterize falseamento da realidade.
Apenas há o registro dos fatos, sem que o documentarista e sua equipe
sejam notados. Dessa maneira, há pouca movimentação de câmera, trilha
sonora quase inexistente e não há narração, uma vez que as cenas devem
falar por si mesmas (NICHOLS, 2005, p. 141).
O documentário diferencia-se das narrativas puramente ficcionais por sua
relação mais direta com pessoas, comunidades, crenças e valores. Dessa for-
ma, possui características próprias que interferem no modo de estruturação
e no uso dos elementos argumentativos e estéticos desse filme e, por conse-
guinte, nas escolhas de uso do material sonoro. Aqueles que produzem esse
gênero de filmes se colocam às voltas, em um momento ou outro, com ques-
tões relacionadas às representações que fazem da realidade, ou o modo como
falam de pessoas, grupos, instituições, etc. (PESSOA, 2011, p. 19).
O documentário é uma modalidade de produção cinematográfica que em
muito se aproxima do jornalismo e se caracteriza pelo compromisso de trazer
elementos da realidade, possibilitando debates, abrindo espaço de discussão,
construindo e desconstruindo olhares. Por conseguinte, vem a ser um veículo
para contextualizar e aproximar as pessoas do lugar em que vivem.

264 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


Assim, acreditamos que a produção do documentário colocou em destaque
as vozes de sujeitos historicamente marginalizados, e, além disso, nos permi-
tiu enveredar pelo estudo da história local, frequentemente ausente dos cur-
rículos escolares, o que se evidencia ainda mais quando se trata de discussões
sobre comunidades quilombolas.
Por conseguinte, contribuímos, também, para recuperar a memória cole-
tiva. Joel Candau, em sua obra Memória e identidade, ao se debruçar sobre essa
temática, destaca que a expressão “memória coletiva” é “uma representação,
uma forma de metamemória, quer dizer, um enunciado que membros de um
grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos
os membros desse grupo” (CANDAU, 2011, p. 24). Para o autor, é a partir
do compartilhamento das memórias que são construídas as identidades, que
também são representações. Assim, a história oral é de fundamental impor-
tância para legitimar a construção das identidades.
Os depoimentos orais não constituem tão somente fontes para a elucida-
ção de acontecimentos do passado, ou um recurso para preencher lacunas da
documentação escrita. Aqui, ganham importância as vivências e as represen-
tações individuais. As experiências constitutivas das trajetórias dos homens
e mulheres são recordadas, restauradas e registradas a partir do encontro do
narrador com o pesquisador. A história oral de vida compõe uma possibilidade
de transmissão da experiência via narrativas (FONSECA, 1997, p. 39).
Inserir, entender e analisar a educação escolar quilombola como um es-
paço de discussão e formação, no contexto da escola, é contribuir para uma
discussão ainda incipiente, e em processo, mas absolutamente necessária ao
currículo da Educação Básica.
O documentário teve por objetivo:
• reapropriar as vivências dos moradores locais durante o processo de
utilização da lagoa enquanto principal recurso natural da comunidade
até a sua degradação;
• evidenciar essas memórias a partir da oralidade dos sujeitos, reafirman-
do sua identidade e a importância da revitalização da lagoa;
• mostrar as relações da Comunidade de Lagoa Grande a partir da pers-
pectiva dos antigos moradores.

A elaboração do documentário

Descrição dos objetos


Os objetos são elementos importantes para a elaboração do documentá-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 265


rio, pois a partir deles é que iríamos rememorar conjunturas vividas pelos
sujeitos da Comunidade Quilombola de Lagoa Grande. Em vista disso, foram
elencados alguns objetos que consideramos importantes para a construção do
trabalho: a Lagoa Grande, as fotografias, os sujeitos ou personagens reais, os
cânticos de trabalho, bem como os instrumentos de trabalho.
• LAGOA - A Lagoa Grande da Comunidade Quilombola foi a gran-
de norteadora do documentário, pois, a partir da relação entre a co-
munidade e o espaço físico em questão analisamos e recriamos as
memórias relacionadas à lagoa. Além disso, nos foi possível explorar
desde os aspectos ambientais até os simbólicos, uma vez que o pró-
prio nome da comunidade carrega grande representatividade para os
sujeitos envolvidos.
• FOTOGRAFIA - A fotografia é importante mecanismo de recordação
e alcance da memória dos sujeitos, principalmente quando focalizadas
pessoas de idade mais avançada e que, portanto, por muitas vezes,
precisam desses mecanismos para recordar as histórias que mais mar-
caram as suas vidas. Assim, a fotografia foi um rico recurso para a
construção do documentário em questão.
• INSTRUMENTOS DE TRABALHO - Os instrumentos de trabalho
também são recursos de alcance da memória, pois ajudam a remeter
às relações de trabalho entre os sujeitos e os espaços que envolvem
a lagoa, ou mesmo, remeter à própria lagoa. Assim, a tarrafa e a vara
de pesca foram os principais instrumentos de trabalho usados para
rememorar as lembranças com relação à lagoa, visto que a principal
atividade na comunidade é a pesca.
• CANTIGAS DE TRABALHO - As cantigas são uma realidade nas rela-
ções de trabalho da Comunidade Quilombola de Lagoa Grande e se con-
figuram como uma rica possibilidade de alcance das relações culturais
e simbólicas dos sujeitos com o trabalho, com o outro e com a comu-
nidade. Por conseguinte, as cantigas de trabalho foram manifestações
da cultura local de grande importância na construção do documentário.
• PERSONAGENS REAIS - Os moradores antigos da Comunidade Qui-
lombola de Lagoa Grande foram nossas grandes fontes de informação,
trazendo à tona as memórias orais e visuais de sua história. Nessa
fase, mereceram especial destaque os griots7 da comunidade, que nos
contaram suas vivências e relações com a lagoa.

7 Indivíduos que detêm a memória do grupo e funcionam como difusores dos saberes e fazeres
da tradição; sábios da tradição oral que guardam a história da comunidade.

266 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


Quisemos, nas “Estratégias de Abordagens”, apresentar um documentá-
rio que passasse ao espectador a visão do cotidiano. Para que esse objetivo
fosse atingido, montamos estratégias de captação e organização das imagens,
e, juntamente com o enredo da história e conhecimento pessoal do grupo,
realizamos um documentário que mostra os espaços e a comunidade em sua
labuta diária!
Lagoa - A lagoa constituiu o pano de fundo para as entrevistas com os
moradores mais antigos da comunidade, e os takes alternam a imagem da la-
goa em si com o seu todo, inclusive com foco no entrevistado. Usamos fotos
antigas, intercalando-as com as entrevistas, como meio de intervenção entre
as falas dos moradores, e também filmamos o estado da lagoa agora, fazendo
uma ponte entre o passado e o presente. As filmagens dos pescadores foram
utilizadas em flashes nos momentos em que os moradores estavam contando
suas memórias.
Fotografia - Trabalhamos a fotografia como meio de retratar a história dos
moradores e da lagoa. Assim, fotos do período abordado foram apresentadas
aos entrevistados como estratégia de alcance da memória e, nesse momento,
elas foram expostas no documentário por meio do recurso de aproximação das
imagens em transição com os depoimentos.
Personagens reais - Os personagens reais Sr. Pedro, Sr. Cassiano, Sr. Ilário
e Dona Maria, entre outros, estiveram presentes através das suas narrativas.
Vale ressaltar que essa etapa do documentário esteve intrinsecamente relacio-
nada às demais, uma vez que o objetivo da produção era recuperar as memó-
rias da lagoa, ressaltando a idade das pessoas como um critério determinante,
para que as lembranças mais antigas fossem contadas. Em vista disso, bus-
camos evidenciar ou dar visibilidade aos aspectos cotidianos de suas vidas.
A entrevista com os griots da comunidade ocorreu com a reunião de diversas
gerações, para valorizar a sabedoria daqueles que mantêm, a partir da oralida-
de, a fonte de saberes e ensinamentos para a existência e preservação de suas
memórias.
Cantigas - Ao fim das falas dos moradores, as cantigas de trabalho e sambas
de roda foram exibidos em um espaço curto de tempo, para que pudéssemos
demonstrar, inclusive, de que maneira os moradores locais sustentam a sua
economia com a agricultura e ressignificam as suas manifestações culturais
como forma de resistência da cultura da comunidade.
Instrumentos de trabalho - Durante as entrevistas, os moradores exibiram
os instrumentos que utilizam na pesca, tais como a tarrafa e a vara de pescar,
enquanto reconstituíam esse momento que se perdeu ao longo dos anos, em
função das constantes estiagens na área da lagoa.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 267


Entrevistando os personagens, entre eles a parteira, o griot, o morador mais
antigo, a engenheira agrônoma, das primeiras universitárias da comunidade,
o documentário revela o Quilombo do Lagoa como um forte traço identitário
quilombola, que, ao longo dos anos, luta para ser reconhecido e superar e
desconstruir a imagem pejorativa dos quilombos, junto com os preconceitos e
o racismo. Ali, encontramos homens e mulheres em busca das suas heranças
culturais e interessados em propagar valores e expressões do seu povo.
A narração - O propósito da narração é contar ao espectador o que ele pre-
cisa saber e que pode não conseguir captar diretamente das imagens. O texto
foi construído pelas professoras supervisoras e os estudantes bolsistas de Ini-
ciação à Docência. Escolhemos a professora Adriana Pedreira de Souza, para,
com a sua voz suave, narrar as partes do documentário em que se fez necessá-
ria a construção textual.
A narração foi elaborada de forma direta e em linguagem simples, de fácil
entendimento, para todos os que tenham acesso ao documentário. Entende-
mos, por isso, que as imagens foram, naquele contexto, a evidência visual do
documentário e deveriam falar por si só. Para nós, elas contaram a história,
mais do que o texto, e, nesse caso, muitas passagens do documentário pres-
cindiram de texto. A narrativa dos depoentes e as imagens falaram por todo o
contexto do que registramos. Na criação do documentário, tivemos o imenso
cenário da Lagoa Grande com a ideia de que “Uma imagem vale mais que mil
palavras”. Pode ser uma frase de efeito, mas um documentarista deve abraçá-
-la literalmente.

Concluindo

O projeto Interdisciplinar proporcionou o desenvolvimento de atividades


no espaço escolar, com diálogo enriquecedor entre as várias áreas do conhe-
cimento (História, Geografia e Literatura). Nessa perspectiva, observamos
avanços significativos em nossa prática pedagógica, possibilitando um novo
olhar sobre a produção do conhecimento em História Local, Identidade, Me-
mória e Cidade.
Durante o ano de 2016, as atividades foram aprimoradas. Acreditamos que
desenvolvemos novos conceitos, aprofundamos outros e estreitamos laços. As
atividades foram participativas, com a contribuição da Comunidade Quilom-
bola de Lagoa Grande, comunidade escolar e graduandos. Pudemos utilizar
as linguagens fílmicas e a oralidade dos griots da comunidade. Acredito que
melhoramos o trabalho ano após anos, mas, acima de qualquer outro aspecto,
aprendemos muito uns com os outros. Cada graduando e estudante da escola

268 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


foi ouvido, a comunidade trouxe falas preciosas, a exemplo de Isabel, morado-
ra de Lagoa Grande: “Gratidão pró, por você abraçar a nossa comunidade”.
No projeto, enfrentamos um desafio: discutir a formação num contexto in-
terdisciplinar. Essa abertura foi muito especial, pois lidar com vários estudan-
tes com personalidades diferentes e “expressões didáticas” também diferen-
tes, levou-nos a um jeito novo de educar e de nos educar. Até porque, quando
aprendemos a ouvir, vivenciamos uma prática educativa coerente e capaz de
realmente servir à educação formativa e transformadora.
Os quilombolas de Lagoa Grande tinham algo a dizer, e contribuímos para
que sejam ouvidos! Os guardiões da Lagoa foi um documentário criado, pensado
e produzido pelo PIBID Interdisciplinar da UEFS, juntamente com a esco-
la José Tavares. Formamos e nos constituímos um grupo: o coordenador, as
professoras supervisoras e os estudantes bolsistas de iniciação à docência à
frente! Aventuramo-nos e nos lançamos ao desafio de estar pelo Quilombo de
Lagoa Grande vivendo com os estudantes o dia a dia da comunidade, na pers-
pectiva de, juntos com os quilombolas, registrar seu cotidiano. Um documen-
tário que, com as narrações dos sujeitos quilombolas, levou-nos a encontrar
antigos habitantes do quilombo; os sinais da escravidão; as transformações da
natureza, aí incluída a lagoa; as crianças; os fazedores de farinha, como a em-
blemática casa de farinha; os conhecedores dos segredos da lagoa: Srs. Ilário,
Pedro e Caciano e D. Maria Ferreira, a parteira, Isabel, a representante da ala
jovem, entre outros.
Contamos com a preciosa ajuda deles! Precisamos editar e organizar esse
material, para que as vozes dos quilombolas cheguem a todos os lugares daqui
e do mundo, por que não?! Foi a nossa fantástica viagem pelas memórias do
quilombo que nos fez mergulhar na mágica descoberta de um tempo passado,
com sons, espaços e acontecimentos que nos comovem, um tempo do qual
todos formamos parte, e no qual encontramos, ainda hoje, os vestígios de
outrora!
Aprendemos muito com o projeto, tanto em relação aos aspectos positi-
vos quanto aos negativos, e sabemos que, apesar da uma longa caminhada,
muito temos que trilhar. Melhoramos como profissionais e nos renovamos
com o aprendizado dos envolvidos no projeto; ouvimos e nos refizemos a cada
reunião, a cada orientação, discussão teórica e vivência na produção do docu-
mentário com os quilombolas e também com as professoras supervisoras, que
nos ensinaram que, no espaço da Escola Básica, há vida, há produção de um
saber, e que a escola, mesmo que tenha um mundo de problemas, está viva e
pulsante.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 269


Referências bibliográficas

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270 CARLOS AUGUSTO LIMA FERREIRA


Os saberes dos professores sobre os conhecimentos que ensinam:
trajetórias de pesquisa em Ensino de História

Ana Maria Monteiro1

Introdução

A questão do conhecimento escolar tem sido objeto de estudos no campo


do currículo no Brasil, desde o final da década de 1980, como desdobramento
de pesquisas voltadas para a compreensão, em perspectiva histórica, do desen-
volvimento dessa área em nosso país, tanto no que se refere ao pensamento
curricular quanto em relação à busca do entendimento sobre o porquê e como
determinado conhecimento é ensinado ou não em dado momento histórico.
Nesse contexto, o Núcleo de Estudos de Currículo, atual LaNEC, da Fa-
culdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem
se constituído em um espaço importante de atuação.2 De um lado, foram
desenvolvidas pesquisas voltadas para a análise das influências da teoriza-
ção estrangeira na constituição do pensamento curricular no Brasil. Estudos
referenciados em modelos externos foram questionados, ao mesmo tempo
que se buscava instrumental teórico que desse conta de análise que conside-
rasse mediações, interações e resistências entre sujeitos e saberes envolvidos

1 Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Laboratório de Estudos


e Pesquisas em Ensino de História/LEPEH, pesquisadora do Laboratório do Núcleo de Estudos
Curriculares/LaNEC e do Grupo de Pesquisa Oficinas da História. Professora do Programa
de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação (PPGE/FE) e do Programa de
Pós-graduação em Ensino de História (PPGEH/IH – ProfHistória) da UFRJ. Possui Mestrado
em História pela Universidade Federal Fluminense e Doutorado em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Realizou Pós-doutorado na Universidade Federal de
Pernambuco. E-mail: anamont@ufrj.br.
2 O Núcleo de Estudos de Currículo (NEC) foi criado em 1989, na Faculdade de Educação
da UFRJ. Em 2018, teve sua denominação mudada para Laboratório do Núcleo de Estudos
Curriculares – LaNEC, por exigências relacionadas à forma da organização institucional
da universidade. Em 2012, foi criado o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de
História (LEPEH), que reúne pesquisadores em ensino de História e alguns integrantes do
LaNEC que se voltam para essa área de conhecimento disciplinar.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 271


nas opções curriculares (MOREIRA e MACEDO, 1999; LOPES e MACEDO,
2002).3
De outro lado, pesquisas voltaram-se para as disciplinas escolares, bus-
cando responder ao desafio levantado por estudos pautados na perspectiva
crítica que denunciava a escola e as práticas curriculares como conformadoras
e reprodutoras de hierarquias e desigualdades sociais. Que opções, seleções,
ênfases e silenciamentos foram efetivados no âmbito das políticas e práticas
curriculares? Quais as repercussões dessas práticas no contexto social mais
amplo?
A análise dos currículos e das disciplinas escolares na perspectiva sócio-
-histórica, realizada principalmente com base no instrumental teórico de Ivor
Goodson (1995, 1997), contribuiu de forma significativa para a melhor com-
preensão de processos de seleção cultural e de suas repercussões sociais. Pa-
drões de estabilidade e mudança no desenvolvimento curricular – definição,
ações, modificações, permanências – têm sido investigados a partir do enten-
dimento de que o currículo é construído por sujeitos históricos que disputam
recursos, status e territórios (GOODSON, 1995, 1997) com implicações polí-
ticas e sociais mais amplas.
Nesse sentido, os estudos em História do currículo demandaram a arti-
culação da perspectiva histórica com a sociológica, de forma a dar conta do
desafio de compreendê-lo como um conjunto de conhecimentos selecionados
e de práticas e rituais associados a esses conhecimentos.
Aprofundando essa abordagem, desde a década de 1990, no âmbito do
NEC/UFRJ, têm sido realizadas pesquisas para compreender a criação e a con-
solidação dos currículos em instituições específicas, o que exige considerar
aspectos contingentes à cultura escolar (FORQUIN, 1993) em determinado
espaço-tempo, com influências e impactos específicos decorrentes das ações e
relações entre sujeitos em diferentes contextos.4
No âmbito dos estudos sobre as disciplinas escolares, foram desenvolvidas
investigações sobre a constituição dos conhecimentos escolares a elas perti-
nentes, nas quais pesquisadores demarcaram posicionamentos estratégicos

3 Essa problemática continua a ser objeto de estudos e reflexões. Em 2015, foi objeto de vários
debates no XI Colóquio sobre Questões Curriculares, VII Colóquio Luso-Brasileiro; I Colóquio
Luso-Afro-Brasileiro de Questões Curriculares, que foi realizado na Universidade do Minho,
em Braga, Portugal, em setembro de 2014. Os textos podem ser lidos em Morgado et alii
(2015).
4 Com esta perspectiva, teses dissertações foram desenvolvidas no âmbito do NEC; entre
outras: FERREIRA, 2005; FONSECA, 2008; PENNA, 2008; SANTOS, 2009; SOARES, 2009;
MASSENA, 2010; DELMÁS, 2012.

272 ANA MARIA MONTEIRO


na explicitação desse conceito – conhecimento escolar – como referente a uma
construção epistemológica própria e original da cultura escolar (LOPES, 1999;
MONTEIRO, 2002; GABRIEL, 2003). Considerando essa cultura constituída
por processos de transposição didática (CHEVALLARD, 1991), ou de media-
ção didática (LOPES, 1999) e de disciplinarização (GOODSON, 1997), esses
estudos voltam-se para a investigação do processo de elaboração epistemoló-
gica desse conhecimento que articula elementos do conhecimento científico
respectivo com saberes dos alunos, dos docentes e de práticas sociais de refe-
rência para uma construção original.
Inaugurando essa linha de investigação, a pesquisa de Lopes (1999) abriu
perspectivas ao analisar a potencialidade das contribuições de autores da
Sociologia do Currículo (YOUNG, 1971), da Epistemologia (BACHELARD,
1996), da História da Educação e das Disciplinas Escolares (JULIÁ, 2002;
CHERVEL, 1990) e do campo da Didática (CHEVALLARD, 1991; FORQUIN,
1993) para a melhor compreensão dos processos de constituição dos conhe-
cimentos escolares, reconhecendo sua especificidade e originalidade cultural
e epistemológica.
Ao operar no âmbito de uma interpretação pluralista e descontinuísta da
cultura, essa proposta favoreceu o desenvolvimento de pesquisas inovadoras
para a superação do mito do descompasso entre conhecimentos escolares e
científicos, ampliando as possibilidades de compreensão dos processos envol-
vidos na dinâmica sociocultural escolar e o potencial de ação política implícito
nas práticas escolares.5
Mais recentemente, nos anos 2000, pesquisadores do NEC/LaNEC têm
se voltado para o estudo das contribuições de autores que apostam na abor-
dagem discursiva para a pesquisa das questões curriculares, o que tem possi-
bilitado investigar o currículo como discurso, espaço de produção de saberes
e subjetividades, regulação de poderes (FERREIRA, 2013). A obra de Michel
Foucault (1981, 1996, 2000) tem oferecido contribuições potentes nesse sen-
tido, e também as de Thomas Popkewitz (1994, 2001).
Focalizando o currículo de História, na pauta de perspectivas pós-funda-
cionais e das teorizações do discurso de Ernest Laclau (1996, 2005) e Ernest
Laclau e Chantal Mouffe (2004), Gabriel tem investigado questões pertinen-
tes ao conhecimento escolar/conhecimento disciplinarizado, considerando a

5 Em sua proposta, a análise realizada, além de contribuir para desnaturalizar o conhecimento


escolar, abriu perspectivas para compreender a ação dos professores nesse processo, ação
esta comumente ignorada ou silenciada pela racionalidade técnica ainda hegemônica em
muitos estudos realizados até então.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 273


especificidade dos processos de reelaboração didática (GABRIEL, 2003) e da
enunciação discursiva (GABRIEL, 2008, 2013, 2015; GABRIEL e MORAES,
2014; FERREIRA, GABRIEL e MONTEIRO, 2014).
Em outra vertente de pesquisa, as questões relacionadas ao conhecimento
escolar em História têm sido investigadas na busca de compreender a relação
dos docentes com os saberes que ensinam, considerando a originalidade e a
especificidade epistemológica dessa construção da cultura escolar (MONTEI-
RO, 2002, 2007a, 2007b, 2010, 2012, 2015, 2016; MONTEIRO e PENNA,
2011; MONTEIRO e RALEJO, 2018).6
Neste texto, discutimos sobre a forma como, em nossas pesquisas, temos
operado com o instrumental teórico desenvolvido por Shulman (1986, 1987,
2004) para a análise dos saberes dos professores sobre os conhecimentos
históricos que ensinam. O diálogo com esse autor tem apresentado grande
potencial heurístico para a investigação dessa relação na perspectiva de abor-
dagem do missing paradigm,7 ou seja, dos saberes elaborados pelos docentes
para o desenvolvimento do ensino de uma disciplina escolar – em nosso caso,
a História. Sobre esse diálogo, expomos aspectos que consideramos contribui-
ções relevantes desse autor e a forma como foram articuladas, com referen-
ciais de autores do campo do Currículo e da Teoria da História, definidores do
quadro teórico mais amplo de pesquisas por nós desenvolvidas, possibilitando
a criação de ferramenta teórica potente para a pesquisa dos saberes docentes
sobre a disciplina ensinada.8
Na primeira parte, fazemos uma breve síntese sobre as pesquisas volta-
das para a investigação da relação dos professores com os saberes que foram
desenvolvidos nos Estados Unidos e em alguns outros países, ao longo da
segunda metade do século XX.
Na segunda parte, discutimos como, a partir da pesquisa de doutoramento,
construímos a pesquisa “A história ensinada: saber escolar e saberes docentes
em narrativas da história escolar” (2010-2013) e, posteriormente, a pesquisa

6 O significante “relação” é utilizado neste contexto para se referir a ações realizadas pelos
professores para tornar possível a aprendizagem dos saberes ensinados, ações estas que
também os afetam na constituição de suas subjetividades como docentes. Essa relação será
analisada com mais profundidade nas partes 3 e 4 deste texto.
7 O conceito missing paradigm (paradigma ausente) é utilizado por Shulman, em seu artigo de
1986, para se referir à ausência de pesquisas que focalizem a relação dos docentes com os
saberes que ensinam (SHULMAN, 1986, 1987).
8 Em nossas pesquisas, temos buscado estabelecer diálogo com autores do campo do
Currículo e com aqueles que produzem reflexões sobre a Teoria da História, disciplina de
referência em nosso trabalho docente e pesquisas (MONTEIRO, 2010).

274 ANA MARIA MONTEIRO


“Tempo presente e ensino de História: historiografia, cultura e didática em
diferentes contextos curriculares” (2014-2016), por mim coordenadas, com
seus objetivos, referenciais teóricos e metodologia. Na terceira parte, apre-
sentamos um resumo sobre as contribuições da obra de Lee S. Shulman e
colaboradores para a investigação da relação dos professores com os saberes
que ensinam no contexto das pesquisas realizadas para a investigação de uma
knowledge base da/para/com a docência.
Na quarta parte, com base em narrativas constituídas nas entrevistas com
professores participantes das pesquisas, o uso do conceito conhecimento do
conteúdo pedagogizado,9 tradução utilizada por nós para o conceito peda-
gogical content knowledge – PCK (SHULMAN, 1986), é analisado. Esse conceito
refere-se à operação teórica realizada na criação de categoria de análise para a
investigação de construções feitas pelos docentes no ensino de uma disciplina
escolar, e que considera a originalidade e especificidade epistemológica dessa
criação.
Nas considerações finais, discutimos possibilidades abertas por esse diálo-
go para a realização de pesquisas no campo do Currículo e do ensino de His-
tória, assim como alguns desdobramentos recentes desses estudos em nosso
grupo de pesquisa.

1. As pesquisas sobre a relação dos professores com os saberes10

A atuação dos professores no ensino foi objeto de interesse e atenção em


diferentes programas de pesquisa em Educação, sobretudo a partir da segun-
da metade do século XX, tendo apresentado grande expansão nas décadas de
1980 e 1990 na América do Norte, com repercussões em outros países e no
Brasil.
Em grande parte, buscava-se atender a demandas do campo educacional
para encontrar alternativas que pudessem contribuir para melhorar o desem-
penho de professores e escolas na educação das novas gerações, de forma a
viabilizar avanços e usufruir as benesses do desenvolvimento científico. Du-

9 A categoria de análise Pedagogical Content Knowledge, criada por Lee Shulman (1986) e
que busca dar conta da síntese proposta por esse autor entre conhecimento e pedagogia,
tem sido traduzida para a língua portuguesa como Conhecimento Pedagógico do Conteúdo.
Em nossas pesquisas, considerando a opção teórica que defendemos, temos operado com a
tradução Conhecimento do Conteúdo Pedagogizado.
10 Nesta parte, a discussão atualiza comunicação originalmente apresentada no GT 04 Didática,
na 26a Reunião Anual da ANPEd em 2003.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 275


rante muito tempo, essa relação foi focalizada, nas pesquisas educacionais,
pelo ângulo das características pessoais e naturais dos docentes ou da efici-
ência dos métodos de ensino.11 O foco sobre os saberes é uma perspectiva
relativamente recente.
Posteriormente, as pesquisas voltaram-se para os processos cognitivos do
professor nos diferentes momentos de sua atuação: planejamento, ação, ava-
liação, reflexão na e sobre a prática. O foco de abordagem deixou de ser “o que
fazem os docentes” para se voltar, efetivamente, para o que sabem os docentes.
O professor passou a ser reconhecido como um profissional dotado de razão,
que toma decisões e faz julgamentos no complexo contexto da sala de aula;
um autor que pensa, julga.
Percebe-se, assim, o deslocamento do enfoque: da pesquisa sobre desem-
penho, eficiência e eficácia para a investigação dos saberes dos professores,
saberes especializados, próprios, como em outras profissões. A questão dos
saberes passava então a se apresentar vinculada à profissionalização. Além de
cumprir papel estratégico na formação de professores, serviria, também, para
a constituição de um núcleo de saberes que contribuiria para a socialização
profissional (GAUTHIER, 1998, p. 60).
Nessa perspectiva, inaugurou-se nos Estados Unidos um amplo movimen-
to de pesquisa sobre a knowledge base, o “repertório de conhecimentos”, ou
seja, o conjunto de saberes, de conhecimentos, de habilidades e de atitudes
necessários para o professor realizar seu trabalho num determinado contexto
de ensino (GAUTHIER, 1998, p. 61).
Shulman (1987), ao fazer uma avaliação do programa knowledge-base, co-
menta que a tendência predominante, no início de suas atividades, tinha por
base a ideia de que a “base de conhecimento” era constituída de habilidades,
de conhecimentos das disciplinas e de habilidades pedagógicas gerais, o que,
no seu entendimento, trivializava o ensino, ignorava sua complexidade e redu-
zia suas demandas. Consequentemente, desenvolveu um programa de pesqui-
sas que investigava as operações realizadas pelos professores no processo de
ensino, em que a mobilização dos saberes a serem ensinados ocupava um lu-
gar central, o que contribuiu para a consolidação da corrente do knowledge-base
numa perspectiva compreensiva dos conhecimentos e ações dos docentes.

11 Assim, por exemplo, os programas de pesquisa desenvolvidos nas décadas de 1950 e 1960
nos Estados Unidos associavam a eficiência do ensino a certos traços de personalidade
do professor, buscando identificar atributos característicos de personalidade ou de
comportamento – interesse, entusiasmo, imparcialidade, capacidade para acolher os alunos,
etc. Outros focalizavam métodos de ensino e sua eficácia, na perspectiva conhecida como
processo-produto. Ver: Gauthier (1998).

276 ANA MARIA MONTEIRO


A instituição do conceito pedagogical content knowledge por Shulman (1987,
1986) criava, assim, uma ferramenta teórica para ser utilizada na investigação
do missing paradigm nas pesquisas educacionais, ou seja, que possibilitava a
investigação das construções realizadas pelos docentes para ensinar a matéria.
As pesquisas sobre os saberes dos professores mereceram grande atenção
também no Canadá, França, Inglaterra e Portugal, sendo que os trabalhos de
Perrenoud (1996, 1993), Tardif, Lessard e Lahaye (1991), Gauthier (1998);
Tardif (2002),12 Nóvoa (1995, 1992), entre outros, focalizaram os saberes
considerando a profissionalização numa perspectiva fenomenológica. O con-
ceito “saber dos professores” – “saberes docentes” – foi cunhado e afirmava
seu potencial heurístico para a análise das questões pertinentes a esse campo.
Com a publicação do trabalho “Os professores face ao saber. Esboço de uma
problemática do saber docente”, de autoria de M. Tardif, C. Lessard e Lahaye,
em 1991, na revista Teoria & Educação, o conceito “saber docente” foi divulgado
como ferramenta teórica no Brasil.
Essas novas orientações tornaram-se mais presentes na segunda metade
dos anos 1990 e suscitaram os primeiros estudos e análises – teses, trabalhos
em congressos e publicações – que buscavam articular proposições desses
autores com aquelas de autores brasileiros para a investigação de questões
educacionais brasileiras (GERALDI et alii, 1998; LELIS, 2001; LUDKE, 2001,
entre outros).
Como é possível concluir, o esgotamento do modelo da racionalidade téc-
nica e das abordagens psicologizantes, que concentravam a atenção nos pro-
cessos de aprendizagem, despertou renovado interesse pela busca da com-
preensão dos processos envolvidos no ensino. Articulado às contribuições da
Sociologia do Currículo e considerando a especificidade da cultura escolar e
dos saberes dos professores como profissionais dotados de subjetividades e
intencionalidades, o conceito de saber docente passou a ser utilizado como
ferramenta teórica que busca dar conta dessa problemática, considerando as
demandas dos alunos para a aprendizagem. Ao tomar por base o entendi-
mento da originalidade dos saberes produzidos, mobilizados e comunicados,
esse conceito abre, também, possibilidades de se considerar a docência como

12 No artigo, intitulado “Saberes profissionais e conhecimentos universitários: elementos


para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em
relação à formação do magistério”, produzido para conferência proferida no Programa de
Pós-graduação da PUC-Rio, em outubro de 1999, Tardif faz interessante discussão sobre os
pressupostos teóricos das pesquisas em andamento, analisando mudanças paradigmáticas
em curso (TARDIF, 2002, p. 245-278).

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 277


“lugar de autoria”,13 espaço-tempo do fazer curricular de docentes que atuam
na Educação Básica.
O conceito pedagogical content knowledge tem desafiado pesquisadores na busca
de melhor compreensão e maior precisão na sua configuração, para tornar pos-
sível a sua utilização nas diferentes áreas disciplinares e produzir contribuições
relevantes para os currículos das licenciaturas. Em artigo publicado em 1989,
GROSSMAN, WILSON e SHULMAN desenvolvem discussão e análise mais de-
talhada sobre a constituição do pedagogical content knowledge- PCK14 e defendem
a relevância de sua mobilização nas pesquisas e na formação de professores. 15

2. As pesquisas sobre os conhecimentos dos professores


no ensino de História

Em minha trajetória de pesquisa, Monteiro (2002, 2005, 2007, 2010,


2012, 2013, 2015, 2016), temos focalizado, primordialmente, a relação dos
professores de História com os saberes que ensinam e que dominam para en-
sinar.16 Essa análise tem sido realizada no contexto de perspectiva teórica que
reconhece a especificidade epistemológica dos saberes produzidos nas aulas
de História no âmbito da cultura escolar. Como metodologia, produzimos re-
gistros de observações de aulas, aulas estas que são analisadas utilizando-se o
conceito “saber histórico escolar” do campo do Currículo (FORQUIN, 1993)
articulado com noções de tempo, narrativa histórica, documento e contexto
histórico, da Teoria da História, na busca da compreensão dos processos de
reelaboração didática desenvolvidos.17 Em um segundo momento, entrevis-
tamos os/as professores/as para que opções e encaminhamentos no ensino

13 Este conceito, criado no contexto de nosso grupo de pesquisa com base nas contribuições de
Foucault, nos ajuda a pensar as ações docentes nas aulas, considerando-as na perspectiva
discursiva. Ver: Monteiro e Ralejo (2018); Ralejo (2018).
14 A partir deste momento utilizaremos a abreviação PCK, do conceito em língua inglesa, para a
ele nos referirmos.
15 O artigo também foi publicado em língua espanhola (GROSSMAN, WILSON e SHULMAN,
2005), em dossiê voltado para estudos e pesquisas sobre “O conhecimento para o ensino”
organizado por Antonio Bolivar (BOLIVAR, 2005).
16 Na pesquisa de doutoramento (MONTEIRO, 2002, 2007), investigamos a prática docente de
quatro professores de História para analisar as construções do saber escolar e os saberes
docentes por eles mobilizados.
17 Nesta pesquisa, realizamos um deslocamento em relação a posicionamento defendido em
2001, pois não operamos com o conceito de competência conforme Perrenoud (1999), e
sim com autores que mobilizam o conceito de saber/conhecimento escolar (FORQUIN, 1992,
1993; CHEVALLARD, 1991; DEVELAY, 1995; LOPES, 1999).

278 ANA MARIA MONTEIRO


– a história ensinada – sejam explicitados. Para esta análise dos saberes dos
docentes sobre os saberes que ensinam, utilizamos a categoria pedagogical con-
tent knowledge (SHULMAN, 1986), traduzida por nós como “conhecimento do
conteúdo pedagogizado”, que, como mencionado, tem se apresentado muito
potente para essa investigação.
A categoria “narrativa histórica” (BURKE, 1992; RICOEUR, 1997; HAR-
TOG, 1998) foi mobilizada na perspectiva que a considera como constituinte do
discurso historiográfico, sendo que, nas pesquisas em pauta, foram focalizadas
as construções de narrativas históricas no contexto do saber histórico escolar,
considerando as especificidades em relação ao conhecimento acadêmico de refe-
rência. É importante ressaltar, também, que a análise sobre os saberes foi reali-
zada considerando sua mobilização pelos professores, o que implica reconhecer
uma “autoria” nos processos efetuados e sua atuação como narradores.
Ao encerrar a pesquisa realizada para o doutoramento, verificamos que
seus resultados indicavam a possibilidade de aprofundamento da investiga-
ção. Realmente, foi possível identificar e analisar construções originais do
saber escolar no ensino de História, no contexto do “currículo interativo”
(GOODSON, 1995), ou do saber ensinado (CHEVALLARD, 1991), e registrar
as explicações, reflexões e justificativas dos professores sobre suas opções e
encaminhamentos, considerando as contribuições teóricas de Shulman (1987,
1986) sobre o “conhecimento do conteúdo pedagogizado”.
Concluímos que o instrumental teórico de Lee S. Shulman, articulado
àquele utilizado para a investigação das construções do saber escolar em
História (LOPES, 1999; DEVELAY, 1995; FORQUIN, 1992, 1993; MONIOT,
1993; CHEVALLARD, 1991; MONTEIRO, 2002), poderia ser melhor explora-
do em outras situações em sala de aula, aprofundando a potencialidade desse
constructo na pesquisa em ensino de História, área em processo de constitui-
ção, que apresentava poucos trabalhos que utilizavam essa categoria para sua
investigação,18 ou seja, em diálogo com autores da área da Educação, especial-
mente do campo do Currículo e da Didática.19

18 Destacamos, entre as iniciativas inovadoras, o trabalho de Gabriel (2006, 2003), que realizou
a pesquisa sobre os processos de didatização na perspectiva de uma epistemologia social
escolar (GABRIEL, 2003, 2008), avançando em relação às pesquisas que se voltavam para
o ensino considerando aspectos metodológicos, com ênfase em elementos técnicos, ou que
focalizavam a aprendizagem na perspectiva psicologizante.
19 Estudos realizados em Programas de Pós-graduação da área da História utilizavam,
preferencialmente, referenciais teóricos e metodologias próprias desse campo. Nessa
perspectiva, situam-se trabalhos que se fundamentam nas contribuições de Jörn Rüsen e
que investigam a educação histórica, a aprendizagem histórica e a formação da consciência

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 279


Temos defendido que a área de ensino é um “lugar de fronteira” (MON-
TEIRO, 2007; MONTEIRO e PENNA,2011), no qual referenciais teóricos da
área da Educação e, no caso, da História precisam ser articulados de modo que
possamos ter categorias de análise capazes de dar conta dos desafios a serem
enfrentados para a sua compreensão.
Cabe destacar que, na perspectiva assumida, incluir a discussão sobre o uso
do conceito de “narrativa histórica” para a investigação da História ensinada im-
plicou considerar a construção discursiva realizada. Essa discussão se articulou
àquela feita para a análise das lógicas explicativas desenvolvidas, o que reafir-
mou a importância de se considerarem aspectos pertinentes ao conhecimento
histórico: construções conceituais, contextualizações, exemplificações.
Desse modo, mobilizamos o conceito de “narrativa histórica”, do âmbito
da Teoria da História, que, ao ser articulado com aqueles do campo educa-
cional, pudesse iluminar aspectos de uma prática social que necessariamente
articula saberes de dois campos distintos, processo fundamental para a cons-
tituição de um saber no âmbito de uma “epistemologia social escolar” (GA-
BRIEL, 2008).20
Essas considerações nos levaram a reconhecer, nas aulas desses professo-
res, construções narrativas não lineares, que articulavam acontecimentos com
aspectos de ordem estrutural, para configurar contextos que tornassem signi-
ficativos os conteúdos estudados. Essas contextualizações remetiam a situa-
ções atuais do cotidiano dos alunos, de forma a possibilitar a familiarização, o
estranhamento e a ruptura com o senso comum, e a volta a ele numa perspec-
tiva renovada e crítica. Assim, as construções discursivas inter-relacionavam e
articulavam sujeitos e práticas com referenciais temporais, possibilitando aos
alunos a atribuição de sentidos ao estudado.
Esse aspecto tem sido reconhecido por nós como um diferencial do saber
ensinado em relação ao saber acadêmico. Neste, o investigador formula pro-
blemas, hipóteses, mas não tem certeza sobre os resultados da pesquisa, que
podem ou não confirmar suas hipóteses. No ensino, de antemão, o professor
define seus objetivos e constrói sua aula para oferecer subsídios aos alunos,
de modo que eles aprendam aquilo que ele considera válido e necessário. As
apropriações diferenciadas dos alunos podem ser objeto de um controle maior

histórica (BARCA e SCHMIDT, 2009; SCHMIDT, 2017; SCHMIDT e URBAN, 2016), mas que,
diferentemente de nosso posicionamento teórico, desenvolvem diálogo restrito com autores
do campo da Educação.
20 As possibilidades da articulação dos conceitos saber escolar e saberes docentes, em
diferentes perspectivas teóricas, são discutidas por Monteiro (2001; 2007).

280 ANA MARIA MONTEIRO


ou menor através dos processos de avaliação, mas um sentido está dado. As-
sim, no ensino de História, às diferentes versões que podem ser elaboradas
pelos historiadores sobre os objetos de estudo, agregam-se concepções dos
professores e apropriações dos alunos. Terreno de grande complexidade. Os
sentidos que orientam as construções dos professores nas suas aulas, por sua
vez, interferem e contribuem para a leitura de mundo e para a configuração de
realidades. Sem negar a existência de uma realidade, o conhecimento histórico
permite compreendê-la de diferentes formas, reconhecendo a possibilidade da
mudança, superação de sua circunstância, a negação ou resistência a poderes
constituídos. Dizer a palavra é transformar o mundo… Esses professores, ao afir-
marem que história é processo e que história é construir conceitos, sintetizam, de
certa forma, essa compreensão.
Ensinar, etimologicamente, significa fazer conhecer pelos sinais (CHERVEL,
1990), portanto, implica promover, orientar um processo em que os alunos es-
tarão desenvolvendo ideias a respeito dos acontecimentos, dos fenômenos, das
transformações sociais, da História; ideias com diferentes significados, que se ar-
ticulam umas às outras ao serem transmitidas e/ou recebidas, no âmbito de um
processo mais geral, que é o da produção de sentido. Narradores e narrativas.
Considerando relevante a continuidade dessa linha de investigação, desenvol-
vemos a pesquisa intitulada “A história ensinada: saber escolar e saberes docentes
em narrativas da história escolar” (2006-2010), cujo objetivo geral era analisar
diferentes construções criadas e utilizadas por professores em aulas de História,
em livros didáticos ou outros documentos de referência, de forma a caracterizar a
estrutura narrativa configurada nessas construções do saber escolar.21
A realização da pesquisa implicou, além de aprofundamento da análise,
mudanças na metodologia. Ficou definido, após debates no grupo de pesquisa,
que iríamos ouvir estudantes de História para identificar “professores marcan-
tes”, ou seja, profissionais indicados por ex-alunos por terem desenvolvido
um trabalho por eles reconhecido e cujas aulas possibilitaram a atribuição de
sentidos ao ensinado. Esses professores são lembrados, em momentos poste-
riores das vidas desses ex-alunos, como referências importantes para a opção
profissional que fizeram ao cursar a educação superior (MONTEIRO, 2015).22

21 Nessa pesquisa, identificamos, nas construções desenvolvidas nas aulas, as apropriações


realizadas pelos professores, bem como marcas dos autores dos livros didáticos nas
construções desenvolvidas nas aulas.
22 A resposta a um questionário possibilitou a identificação de quatro professores, sendo dois
de escolas públicas e dois de escolas privadas, entendidos, na definição desses estudantes,
como marcantes, na opção pelo curso de História.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 281


Localizados os professores e aceito o convite para participar da pesqui-
sa, foram realizadas entrevistas em dois momentos. Inicialmente, buscamos
conhecer aspectos de sua história de formação e atuação profissional. No se-
gundo momento, após a observação das aulas, buscamos compreender, por
meio de entrevistas semiestruturadas, aspectos relacionados às opções feitas
e às explicações desenvolvidas para o ensino da História. Nesta pesquisa, para
essa análise utilizamos contribuições de autores da nova retórica (REBOUL,
2004; PERELMAN, 2004; PERELMAN & OLBRECHTS TYTECA, 1996) arti-
culadas à proposta de Shulman em relação ao PCK, e que se constituíram em
ferramentas potentes para a compreensão dos saberes mobilizados nas aulas
e entrevistas.23
Posteriormente, realizamos a pesquisa “Tempo presente e ensino de His-
tória: historiografia, cultura e didática em diferentes contextos curriculares”
(2011-2016), operando com o referencial teórico e metodologia da pesquisa
anterior, articulados com autores da área da Teoria da História que nos ofere-
ceram contribuições para a discussão da noção de tempo presente no ensino
de História (FERREIRA, 2012; DOSSE, 2005, 2012; HARTOG, 2013).24

3. O diálogo com Lee S. Shulman:25 saberes dos professores de


História sobre os conhecimentos que ensinam

A trajetória profissional de Lee Shulman, além de marcada pela preocu-


pação com a qualidade do ensino e da aprendizagem, tem se destacado pelo
estudo sobre a especificidade da atividade docente. Interessado em investi-
gar o desenvolvimento do conhecimento profissional na formação docente e
na prática profissional, o autor desenvolveu pesquisas sobre como os profes-
sores mobilizam o conteúdo da matéria ensinada, como o transformam em

23 Sobre os resultados, ver: Monteiro (2009; 2010; 2012) e Monteiro e Penna (2011).
24 Os resultados desta pesquisa estão publicados em Monteiro (2012, 2015).
25 Graduado em Filosofia e Psicologia, com Mestrado e Doutorado em Psicologia pela
Universidade de Chicago, Lee S. Shulman iniciou sua atividade profissional docente no ano
de 1963, como professor de Psicologia Educacional e de Educação Médica na Michigan State
University. Nessa instituição, fundou e dirigiu o Institute for Research on Teaching (IRT), onde
desenvolveu projetos de investigação com vistas à melhoria da qualidade do ensino e formação
de professores. Em 1982, ingressou na Stanford University School of Education, onde atuou
como professor e pesquisador. Foi presidente da American Educational Research Association/
AERA (1984-85) e presidente da Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching (1997-
2008). Lee Shulman recebeu inúmeros prêmios em função de suas contribuições para a
pesquisa educacional. (Fonte: GAIA, CESARIO e TANCREDI, 2007, p. 145-146).

282 ANA MARIA MONTEIRO


representações didáticas e as utilizam no ensino. A permanência nesse foco
de investigação, de forma sistemática e consistente, confere ao professor Lee
Shulman um reconhecimento nacional e internacional pelos estudos por ele
desenvolvidos.
Shulman (1986) chama atenção para o fato de que o ensino não se reduz a
uma atividade tal como preconiza o modelo da racionalidade técnica, cujo en-
tendimento é de uma ação docente como “transmissão” de conhecimentos. O
ensino, segundo o autor, é regido por um tipo de conhecimento intimamente
ligado à ação, à prática, e, nesse sentido, atribui importância às investigações
sobre o que conhecem os professores e o como chegam a conhecê-lo.
Dedicado à investigação sobre as dimensões do conhecimento profissional
docente, especificamente sobre o conhecimento da matéria ensinada e o co-
nhecimento pedagógico, Lee Shulman, em 1986, refere-se a um missing para-
digm: como já mencionado, a inexistência de investigações relativas ao conhe-
cimento da matéria dos conteúdos ensinados: “como professores empregam
o conhecimento que detêm sobre a matéria a ser ensinada para criar novas
explicações, representações, esclarecimentos?” (SHULMAN, 1986, p. 8).
Para a pesquisa sobre os domínios e categorias do conhecimento da maté-
ria na mente dos professores, Shulman (1986, p. 9) propõe três categorias de
conhecimento como base para a tomada de decisão do professor no momento
da prática pedagógica, quais sejam: (a) o conhecimento da matéria ensinada,
dos conteúdos, (b) o conhecimento curricular e (c) o conhecimento pedagógi-
co da matéria ensinada ou dos conteúdos.
O primeiro estaria para o que, comumente, reconhecemos como conhe-
cimento do conteúdo formal e teórico proveniente das investigações das áre-
as específicas. Refere-se à quantidade e organização do conhecimento por si
mesmo na mente do professor. Mas, o autor destaca, para bem conhecê-lo
é preciso ir além do conhecimento dos fatos e conceitos, sendo necessário
compreender os processos de sua produção, representação e validação, um
domínio de natureza epistemológica. Mais do que saber, é preciso compreender
a matéria que vai ser ensinada, para poder criar formas para o seu ensino.
Citando Schwab (1978), ele distingue a estrutura substantiva e a sintática. A
primeira se refere à forma como os conceitos básicos e princípios da disciplina
são organizados para incorporar os fatos. A estrutura sintática da disciplina
constitui um conjunto de modos pelos quais a veracidade ou falsidade, valida-
de ou invalidade são estabelecidos. Possibilita determinar o que é legítimo ou
ilegítimo em um domínio disciplinar (SHULMAN, 1986, p. 9).
Além disso, a maneira como essa compreensão é comunicada faz os alunos
perceberem o que é essencial e o que é periférico de tudo aquilo que é ensi-

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 283


nado, o que é verdadeiro e válido no campo, bem como expressa um conjunto
de atitudes e valores que influenciam a compreensão dos alunos. “Quem sabe
faz, quem compreende ensina” (SHULMAN, 1986, p. 4).
O segundo, o conhecimento curricular, refere-se ao “conjunto de programas
elaborados para o ensino de assuntos específicos e tópicos em um nível dado,
a variedade de materiais instrucionais disponíveis relacionados a estes progra-
mas” (1986, p. 9-10).
Com base nesse trecho, parece-nos que Shulman entende o saber acadêmico
e o saber escolar como expressões de um mesmo saber. Não utiliza o conceito de
transposição didática, cuja formulação é contemporânea ao seu texto, nem tra-
balha com a concepção a ele subjacente. O conceito de conhecimento escolar de
Chevallard (1991), Develay (1995, 1992), Forquin (1993, 1992) e Lopes (1999),
utilizado por nós (MONTEIRO, 2002, 2007), é concebido com epistemologia di-
ferente daquela do saber de referência, o que não é considerado por Shulman
(1987, 1986). Esse conceito é citado como referente a um conhecimento que um
professor precisa dominar para ensinar, da mesma forma que um médico precisa
conhecer os remédios disponíveis para serem receitados. Seria como uma seleção
feita do saber de referência para definir o que precisa ser ensinado. Assim, con-
cluímos que o autor não problematiza a historicidade do conhecimento curricular.
O conhecimento pedagógico dos conteúdos, conforme a proposição de Shulman,
não se refere a técnicas de ensino, mas a construções cuja elaboração para o en-
sino necessita de um domínio do campo disciplinar, articulado com pedagogia.26
Considerando a conceituação desse autor, é possível compreender que seu foco
é o conhecimento a ser ensinado conforme construído na mente dos professores,
mobilizado pelos professores por meio da pedagogia, e não o conhecimento a ser
ensinado como currículo. Shulman não utiliza o conceito de saber escolar na con-
cepção com a qual operamos. Na criação pelo professor do “conhecimento pedagó-
gico do conteúdo”, esse conhecimento articula e sintetiza “currículo” e “pedagogia”
na forma de compreender de autores ingleses, tais como Young (2013).27

26 Embora nas duas pesquisas citadas tenhamos traduzido e operado com o conceito de
“conteúdos pedagogizados”, releituras e reflexões mais recentes nos levam a concordar que a
tradução “conhecimento pedagógico dos conteúdos” é coerente com a proposta de Shulman.
27 “Pedagogia no sentido que estou usando neste artigo, refere-se àquilo que os professores
fazem, e fazem os alunos fazerem; no entanto, ensino não é apenas uma atividade prática (ou
um ofício, como afirmam alguns políticos em inglês). O ensino depende tanto do conhecimento
que os professores têm do assunto, do conhecimento que eles têm sobre determinados
alunos e de como eles aprendem – e o conhecimento que informa o que eles exigem que
seus alunos façam. Em contraposição, embora o currículo refira-se ao conhecimento que os
alunos têm o direito de saber, ele não inclui a experiência dos alunos” (YOUNG, 2013, p. 22).

284 ANA MARIA MONTEIRO


Em artigo de 1987, Shulman aprofunda a análise da ação do professor no
ensino, considerando-a um processo de racionalização pedagógica: citando
Fenstermacher (1986, apud SHULMAN, 1987), ele defende que o objetivo
da formação de professores “não é doutrinar ou treinar, mas formá-los para
serem capazes de pensar racionalmente e de forma consistente sobre o que fa-
zem ao ensinar e agir com habilidade” (p. 13). Para a análise desse processo de
racionalização pedagógica que inclui a relação com o conhecimento da maté-
ria, ele apresenta os seguintes momentos: compreensão, transformação, instrução,
avaliação, reflexão e nova compreensão (p. 15-19)28.
O primeiro e o segundo momentos são especialmente estratégicos em suas
proposições. Para Shulman, ensinar é antes de tudo compreender. O professor
precisa compreender os objetivos, as estruturas da matéria ensinada, como
uma ideia se relaciona a outras da mesma matéria de ensino, e com aquelas de
outras matérias também. E mais: além de compreender o conjunto de ideias
a ser ensinado, é preciso compreender os objetivos educacionais envolvidos
em sua ação. Mas não é só compreender conteúdos e objetivos. Segundo esse
autor,

a chave para distinguir a “knowledge base” para o ensino localiza-se na


interseção de conteúdo e pedagogia, na capacidade do professor de
transformar o conhecimento de conteúdo que ele ou ela possuem em
formas que são pedagogicamente poderosas e adaptadas às variações de
habilidades e conhecimentos prévios apresentadas por seus alunos.29
(SHULMAN, 1987, p. 15)

Para a transformação, Shulman (1987, 2004) identifica quatro momentos:


• Preparação: interpretação e análise crítica dos textos, estruturação e
segmentação, desenvolvimento de um repertório curricular e clarifi-
cação dos objetivos.
• Representação: uso de um repertório representacional que inclui analo-
gias, metáforas, exemplos, demonstrações, explicações e outros.
• Seleção: escolha entre um repertório instrucional que inclui modos de
ensinar, organizar, controlar e organizar.

28 Ao longo dessas páginas (15-19), o autor desenvolve a explicação de cada um desses


momentos.
29 “But the key to distinguishing the knowledge base of teaching lies at the intersection of content
and pedagogy, in the capacity of a teacher to transform the content knowledge he or she
possesses into forms that are pedagogically powerful and yet adaptative to the variations in
ability and background presented by the students.” Tradução da autora.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 285


• Adaptação e adequação às características dos estudantes: consideração
das concepções, preconceitos, equívocos, dificuldades, linguagem, cul-
tura e motivação, classe social, gênero, idade, atitudes, interesses, au-
toestima e atenção. (SHULMAN, 1987, p. 15; 2004, p. 236)

É importante destacar que Shulman, ao valorizar o momento e o ato da


compreensão do professor, início e fim do processo, reconhece que o saber a ser
ensinado não é um dado objetivado, pronto e acabado. O processo de ensino
começa quando o professor se aproxima do objeto a ser ensinado e se apro-
pria dele, o que vai gerar sua compreensão. É a partir dela que vai elaborar
e desenvolver as formas e encaminhamentos mais pertinentes para o ensino
dos estudantes envolvidos. Ao considerar o papel do professor e sua relação
com o conhecimento, Shulman possibilita um avanço para o entendimento da
complexidade das mobilizações realizadas na docência.
Considerar a ação de transformação do professor sobre o objeto de ensino
configura uma distinção em relação ao conceito de “transposição didática”
(CHEVALLARD, 1991) e “saber escolar” (FORQUIN, 1993, 1992), ferramen-
tas teóricas importantes para a pesquisa do ensino e que focalizam o “saber”,
o “conhecimento” e suas transformações durante o processo de “transposição
didática”, orientadas pela dimensão educacional.30
A articulação desses dois constructos teóricos, realizada por nós, ao operar
com o conceito proposto por Shulman e traduzido por nós como “conteúdo pe-
dagogizado”,31 possibilita a criação de uma ferramenta teórica mais complexa
por dois motivos: considera-se a ação do professor como sujeito de sua cons-
trução, reconhecendo aspectos relacionados à sua subjetividade e ao seu fazer
na produção dos saberes escolares a serem ensinados, e estes são entendidos,
simultaneamente, como criações originais da cultura escolar decorrentes dos
processos de didatização (transposição didática) e de pedagogização, diferen-
ciados em relação aos saberes acadêmicos e cuja produção pode ser objeto de
análise.

30 Na pesquisa de doutoramento, desenvolvi análise crítica ao conceito de transposição didática,


mas considero que este se constitui em importante instrumento teórico para a análise da
didática em perspectiva epistemológica (MONTEIRO, 2007, p. 81-102).
31 Ao utilizar a tradução “conhecimento do conteúdo pedagogizado” (CCP), reconhecemos que
o conteúdo foi transformado, reelaborado, didaticamente e epistemologicamente, por essa
pedagogização (no sentido em inglês do termo) realizada pelo professor. São duas operações
simultâneas e, portanto, de alta complexidade.

286 ANA MARIA MONTEIRO


4. Os conhecimentos sobre os conteúdos pedagogizados
na história ensinada

No segundo momento de realização das entrevistas da pesquisa “A história


ensinada: saber escolar e saberes docentes em narrativas da história escolar”,
foi possível obter explicações dos professores sobre os saberes ensinados em
suas aulas de História. Nessa oportunidade, o nosso objetivo era investigar a
relação dos professores com os saberes, através da análise da construção efeti-
vada para o ensino. Para essa análise, operamos com a perspectiva de articular
o conceito de conhecimento escolar em História com o conceito de “conheci-
mento do conteúdo pedagogizado” de Shulman. As explicações e justificativas
dos professores sobre o que ensinaram configuravam, assim, uma empiria
utilizada para a investigação sobre o CCP no ensino de História.
Apresentamos, a seguir, um trecho de entrevista com um professor que abor-
dou o tema Colonização do Brasil para uma turma de 6a série (atual 7º ano).32

A intenção principal é mostrar para eles como é que começou a socieda-


de brasileira, a origem, quais são as nossas origens, de onde foi que nós
viemos; a ligação com o português, o que trouxe os portugueses para
cá... que, se no lugar dos portugueses tivessem vindo outros povos, nós
teríamos consequentemente um futuro diferente. Aí, automaticamente,
normalmente, o aluno pergunta: “Ah, seria melhor ou seria pior?”. Não,
a minha questão não é de ser melhor; acho que poderia ser melhor em
algumas coisas e seria pior em outras. A questão aí não é questionar
qual a melhor colonização que a gente podia ter... só mostrar para o
aluno que... de onde vêm as nossas origens, o que trouxe os portugueses
para cá; mostrar, contextualizar o máximo possível que os portugueses
vieram porque aquele momento histórico permitiu que eles saíssem na
frente. Naquele momento histórico não foi a França, não foi a Inglater-
ra... porque França e Inglaterra, naquele momento, estavam envolvidas
- um dos motivos, estavam envolvidas - na Guerra dos Cem Anos, não
tinham condição de competir com Portugal no conhecimento da navega-
ção pelo Oceano Atlântico.

No registro acima, identificamos na narrativa do professor uma expressão


do conhecimento da matéria ensinada em sua estrutura substantiva, “como as
ideias são articuladas para incorporar os fatos” – no caso, o início da coloniza-

32 Entrevista realizada em 28 de março de 2007 em uma escola localizada no município de São


Gonçalo, na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 287


ção portuguesa no Brasil. Uma elaboração para o ensino que necessita de um
domínio do campo disciplinar em perspectiva epistemológica. De acordo com
Shulman, no processo de racionalização pedagógica, o professor precisa com-
preender como uma ideia se relaciona a outras ideias da mesma matéria de en-
sino, e com ideias de outras matérias também. O professor explica claramente
sua compreensão sobre o tema e o que busca que seus alunos aprendam, seus
objetivos com o ensino daquele conteúdo: compreender a historicidade dos
acontecimentos, a construção humana e a contextualização, o complexo re-
lacionamento que se apresenta como campo de possibilidades, entre as quais
algumas se realizam a partir das opções e embates entre os diferentes grupos
sociais.
Na parte seguinte, identificamos o trabalho com a estrutura sintática da
matéria, do conteúdo disciplinarizado, como os conhecimentos são justifica-
dos, validados, o que é legítimo na lógica da disciplina escolar História.

Então têm que entender que não é o destino, que não é a sorte. Essa é a
minha preocupação principal. Eu nem sei se estou certo ou errado como
professor, mas a minha preocupação principal é esta: mostrar para o alu-
no que não é sorte, que não é destino, que não é azar, que não é aquilo
que os gregos chamavam de teodisseia - a influência de deus na História.
Não é nada disso. As coisas acontecem do jeito que acontecem porque os
homens assim optaram por isso. Aí você já tenta contextualizar, ou seja,
se o nosso presente é consequência direta desse passado, o nosso futuro
é consequência direta daquilo que a gente vai fazer hoje. O foco principal
é isso, é mostrar para o aluno que o nosso presente foi uma construção
e que futuro também pode ser uma construção. Agora, se vai ser melhor
ou se vai ser pior, depende do quanto a gente está disposto a mudar isso.

Em outro trecho, a compreensão do professor sobre o tema é complementa-


da: não é sorte nem destino, é a ação humana, a gente faz a história que não é
resultado de uma escolha divina. Ou seja, ele trabalha a historicidade do social:

E tentar tirar do aluno, que é uma coisa... Eu confesso que isso me in-
comoda, é uma coisa que me incomoda tanto no aluno mais jovem, no
adolescente, quanto no adulto. É uma coisa que me incomoda: é acredi-
tar que História é consequência da vontade de Deus, entendeu? E muita
gente, por incrível que pareça, acha que isso é verdade. “Ah, isso é von-
tade de Deus.” Já tive aluno em prova de 7ª série... o aluno escreveu na
prova: “Os motivos que levaram à Revolução Francesa é porque estavam
determinados no destino que a Revolução Francesa (...).” Outro respon-
deu que os acontecimentos históricos são frutos da vontade divina.

288 ANA MARIA MONTEIRO


Nesses exemplos, podemos compreender encaminhamentos escolhidos
para realizar o processo de transformação, ou seja, “a transformação do conhe-
cimento de conteúdo que possui em formas que são pedagogicamente pode-
rosas e adaptadas às variações de habilidades e conhecimentos prévios de seus
alunos” (SHULMAN, 1987, p. 15): a crítica à concepção fundamentalista que
leva o aluno a acreditar que “História é consequência da vontade de Deus”.
Argumentos foram construídos e utilizados na realização da preparação, repre-
sentação, seleção, adaptação e adequação às características dos alunos.

(...) eu tive que conversar com os dois, um menino e uma menina, de-
pois da aula, e mostrar para eles que esse tipo de resposta não serve.
Eles perguntaram: “E por que não serve, professor?”. Eu disse: “Não
serve porque desse jeito você explica tudo sem precisar estudar nada”.
Tudo, se você tudo argumentar que é a vontade de Deus, ou é influen-
ciado pelo destino, você simplesmente não precisa estudar nada e você
explica tudo. Por que é que a Terra gira em torno do Sol e não ao con-
trário? Porque foi a vontade de Deus. Por que é que o Sol é amarelo?
Porque é a vontade Deus. Por que a Terra é o terceiro planeta a contar do
Sol? Porque estava escrito no destino. Por que o Brasil é o 5° maior país
do mundo? Porque Deus quis assim. “Quer dizer, você vai explicar tudo
baseado na vontade de Deus e não precisar estudar nada.”

E continua:

(...) O meu aluno sabe que eu não sou religioso, todo mundo no meu
trabalho sabe que eu não sou. Então olha só a situação: eu fui obrigado
a citar a Bíblia para o aluno, para convencer o aluno de que ele estava
errado. Agora, eu citando a Bíblia chega a ser uma..., eu que não sou
religioso tenho que lançar mão da Bíblia para mostrar para o aluno que
ele está errado. O que é que eu falei pra ele? Eu falei o seguinte: “Olha,
se não me falha a memória, tem um versículo bíblico que diz o seguinte,
que Deus deu ao homem o quê? O livre-arbítrio. Se o homem tem o li-
vre-arbítrio, ele é responsável pelas suas atitudes. Se existe um Deus, eu
não acredito que ele queira um ser humano, tipo um fantoche. Um ho-
mem, ele tem livre-arbítrio para se responsabilizar pelas suas atitudes,
pelas suas decisões. Então, o tipo de resposta que você deu na prova não
só não é uma resposta correta porque é uma posição passiva, conformis-
ta, acomodada, de gente que não quer estudar, que não quer pesquisar,
como entra em contradição com aquilo mesmo que vocês dizem que
acreditam. Porque vocês são pessoas religiosas, que acreditam na Bíblia,
vocês estão caindo em contradição com o que vocês acreditam. Então,

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 289


vocês não conhecem bem o livro em que vocês dizem acreditar. Porque
a própria Bíblia diz que o homem tem o livre-arbítrio. Quer dizer, eu fui
obrigado a lançar mão de um mecanismo pouco ortodoxo, que não faz
parte (...).

Nessa parte, o professor explica como teve que recorrer à própria Bíblia –
livro de referência e conhecimento dos alunos por motivos religiosos – para
argumentar e justificar sua compreensão sobre os processos históricos. O
princípio do livre-arbítrio foi utilizado para fundamentar a compreensão de
que os homens fazem a História, que os acontecimentos não são resultado do
destino ou da vontade de Deus. Ele buscou, nas referências culturais dos alunos,
a base para a construção dos argumentos, para desenvolver sua explicação
sobre a historicidade dos acontecimentos históricos. Podemos reconhecer,
aqui, o uso da técnica argumentativa da interação por convergência33 (PE-
RELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 534-535) quando ele remaneja
um argumento bíblico, de outro contexto discursivo, para fundamentar uma
explicação racional das ações humanas.
Nesse sentido, reconhecemos aqui, além do movimento de adaptação e
adequação às características dos alunos, a mobilização de técnica argumentativa,
forma de representação – “interação por convergência” – para possibilitar a
compreensão dos alunos, tomando por base a sua própria racionalidade.
Ou seja, tempos do processo de “transformação” do conhecimento que
o professor possui para o ensino adequado aos alunos no contexto em pau-
ta – conhecimento do conteúdo pedagogizado, conteúdo este que expressa
uma produção do conhecimento escolar, contingente, que articula fluxos dos
conhecimentos científicos e pedagógicos para tornar possível a compreensão
dos alunos em relação ao saber ensinado.
Com esses exemplos, acreditamos poder demonstrar a forma como opera-
mos com os conceitos de Shulman para analisar a relação dos professores com
os saberes que ensinam. A explicação e justificativa do professor nos demons-
tram, também, a construção realizada para o ensino e na qual a dimensão
pedagógica, educativa, permeia todo o processo de sua elaboração. Não é uma

33 Se vários argumentos distintos redundarem numa mesma conclusão, seja ela geral ou
parcial, definitiva ou provisória, o valor conferido à conclusão e a cada argumento será com
isso acrescido, pois parece pouco verossímil que vários raciocínios inteiramente errôneos
conduzam a um mesmo resultado. Essa interação entre argumentos isolados convergentes
pode resultar de sua simples enumeração, de sua exposição sistematizada, ou ainda de
um “argumento de convergência” explicitamente alegado. A força desse argumento não é,
praticamente, jamais ignorada (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 535).

290 ANA MARIA MONTEIRO


demonstração baseada em metodologia de pesquisa para comprovar uma hi-
pótese, mas um processo formativo no qual uma memória é construída sobre
a História – e, ao mesmo tempo, alguns valores e visões de mundo são ques-
tionados e outros defendidos. Podemos verificar aqui, também, um exemplo
que expressa algumas das dificuldades presentes no ensino de História: a ra-
cionalidade pedagógica constituída por fluxos de cientificidade é apresentada
e disputada com outras narrativas na busca da compreensão da historicidade
dos acontecimentos cotidianos.

Considerações finais

A realização da investigação sobre a relação dos professores com os sabe-


res em perspectiva, que articula questões relacionadas aos processos educati-
vos àquelas específicas da epistemologia do conhecimento objeto de ensino,
tem se confirmado muito profícua. Nesse sentido, reconhecemos que as con-
tribuições teóricas de Shulman (1986, 1987), expressas nos conceitos que nos
permitem compreender os conhecimentos dos professores sobre os saberes
que ensinam, apresentaram grande potencial heurístico em nossa pesquisa.
Embora oriundo de campo diverso daquele que orienta nossa elaboração
teórica – a Sociologia do Currículo, a Teoria da História e a Epistemologia –, o
instrumental do autor nos possibilitou investigar a relação em tela e, também,
o conhecimento dos docentes sobre as construções realizadas – conteúdos peda-
gogizados –, ou seja, uma construção que sintetiza e reelabora o conhecimento
no processo de ensino. Shulman utiliza o termo “pedagógico” e não “didatiza-
do”, provavelmente por seu pertencimento teórico ao contexto norte-america-
no de produção intelectual, no qual as discussões sobre a didática, de matriz
teórica europeia (francesa e alemã), não tiveram muita penetração.34
Os nossos estudos têm indicado possibilidades de operar/atuar com os
conceitos propostos pelo autor, uma vez que estes se confirmaram pertinen-
tes com a análise realizada no âmbito de uma epistemologia social escolar
(GABRIEL, 2008). Reconhecemos, também, as possibilidades desse diálogo,
que, de alguma forma, recontextualiza as contribuições de Shulman ao hi-
bridizá-las com as contribuições de autores que operam com a perspectiva
sociológica – a relação dos docentes com a cultura escolar ou a cultura da

34 Marcelo (1993) propôs o uso da tradução “conhecimento didático do conteúdo” para a


categoria “conhecimento pedagógico do conteúdo” de Shulman. Bolivar (1989) discute as
implicações dessa tradução e do uso dessa categoria em que a referência a Marcelo é
explicitada.

CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTÓRIA 291


escola – e a epistemológica – o saber escolar em história, o saber histórico
escolar. Acreditamos que desenvolvemos uma postura de “apropriação crítica
e criativa da produção de autor de outro país para buscar propostas compatí-
veis com a realidade brasileira” (MOREIRA e MACEDO, 1999, p. 23). Assim,
entendemos que não se trata de processo simples de transferência educacional, e
sim de apropriação “criativa e crítica”, pois reconhecemos limites – a simples
aplicação do conceitual pode resultar em identificação de exemplos a serem
utilizados em estudos de caso de natureza pragmática –, e acreditamos que de-
senvolvemos possibilidades a partir do diálogo estabelecido com os autores
do campo do Currículo no Brasil, em que vêm sendo realizadas pesquisas ino-
vadoras a partir de investigações que se baseiam em abordagens discursivas
referenciadas às perspectivas pós-estruturalistas (GABRIEL, 2015; GABRIEL
e FERREIRA, 2012).
Cremos que, nessa pesquisa, o diálogo com Shulman propiciou perspecti-
vas inovadoras que nos encaminham, atualmente, para o aprofundamento dos
estudos no campo da análise retórica – no diálogo com Meyer (1998) e Perel-
man & Olbrechts-Tyteca (1996) – e da análise das construções realizadas em
articulação com as contribuições de autores da Teoria da História, entre eles
Hartog (1998, 2013), Koselleck (2006), Ricoeur (1997), para a investigação
da narrativa histórica no ensino de História.
Outro desdobramento com grande potencial refere-se à investigação da
relação dos docentes com os saberes, na busca da compreensão desse processo
como produção discursiva. Nesse sentido, temos estudado as contribuições de
Foucault (1981, 1996, 2000) sobre a “arqueologia” da constituição e emergên-
cia de saberes, buscando entender regras de enunciação que orientam como
“arquivo” as produções discursivas de professores em suas aulas.
Em nosso grupo de pesquisa – GEHPROF35 –, temos desenvolvido in-
vestigações que operam com o instrumental teórico aqui discutido. Azevedo
(2011), Brainer (2012), Penna (2013), Façanha (2017), entre outros, con-
tribuem para o reconhecimento de que o diálogo com a obra de Shulman
apresenta grande potencial para a pesquisa que articula seus referenciais com
aqueles que se voltam para o conhecimento escolar.
Os resultados têm se mostrado promissores e de grande valia nos cursos
de formação de professores, em que as áreas do Currículo, da Didática e da
Formação Docente se interpenetram e dialogam. No momento atual, entende-

35 Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de História e Formação de Professores (GEGPROF),


vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História (LEPEH/FE), este
último registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.

292 ANA MARIA MONTEIRO


mos que as contribuições das abordagens discursivas podem aprofundar nossa
compreensão a respeito dos saberes dos professores sobre os conhecimentos
que ensinam, enunciados que produzem sentidos sobre a História ensinada e
constituem subjetividades.

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Ensino de História: Sujeitos, saberes e práticas


Ana Maria Monteiro, Arlette Medeiros Gasparello
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Características deste livro:
Formato: 15,5 x 23,0 cm
Mancha: 11,5 x 19,0 cm
Tipologia: IowanOldSt BT 9,5/13,5
Papel: Ofesete 90g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
1ª edição: 2019

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