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Ouvindo o Brasil: o ensino de história pelo

rádio - décadas de 1930/40


Newton Dângelo

Universidade Federal de Uberlândia

Resumo

Este artigo analisa projetos, relatórios e publicações a respeito da radiodifusão educativa no


Brasil, entre as décadas de 1930/40, discutindo particularmente imagens e símbolos da História
do Brasil a serem distribuídos pelas ondas do rádio, elaborados por intelectuais e técnicos do
governo.

Palavras-chave: Rádio; Ensino; História do Brasil.

O debate educacional realizado no Brasil nas décadas de 1920, 30 e 40, começando pela
movimentação de educadores e outros intelectuais em torno das reformas de ensino regionais,
passando pelo Manifesto dos Pioneiros de 1932 e pelas investidas do Ministério da Educação e
Saúde em torno da nacionalização do ensino, fornecem-nos elementos significativos para
reconstituir projetos, ações e discursos que, apesar de se autoproclamarem enquanto
redefinidores do papel e da estrutura escolar, mostraram-se carregados de interesses, atitudes e
realizações no campo mais ampliado da intervenção social.

O acompanhamento das articulações do movimento da Escola Nova, sobretudo de alguns de


seus participantes que investiram no controle e na produção de sons e imagens do Brasil, por
meio do rádio e cinema educativos, surpreendeu iniciativas de "regeneração nacional" pela via
educacional, a qual implicaria na construção de saberes e linguagens "apropriadas" e de
padrões técnicos de funcionamento destes instrumentos.

Este trabalho procurou investigar o alcance destas iniciativas no âmbito da radiodifusão


educativa, por intermédio da análise de projetos, relatórios e publicações de época, partindo da
fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro em 1923 e acompanhando tentativas de
regulamentação do rádio em geral sob tais parâmetros educacionais, até meados dos anos 40,
com o funcionamento do Serviço de Radiodifusão Educativa - SRE - do Ministério da Educação
e Saúde.

Apesar da localização de apenas alguns fragmentos gravados, procuramos constituir um


caminho de pesquisa que extraísse das falas oficializantes e idealizantes do papel do rádio um
campo de tensões sócio-culturais, sobretudo a partir dos desejos de disciplinarização da música,
de padronização da língua e de elaboração de símbolos com o ensino da História "Pátria".

Os desafios, portanto, nasceram com a própria escolha do material de pesquisa, uma vez que
teríamos que nos concentrar em referências escritas de intenções e idealizações, por não
dispormos de um corpus documental de programas radiofônicos. Este conjunto de documentos,
por sua vez, foram basicamente colhidos dos arquivos Gustavo Capanema e Lourenço Filho do
CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil -
compostos de decretos, projetos, relatórios e correspondências, de referências contidas na
revista Cultura Política e nos textos "Rádio e Educação" de Ariosto Espinheira (1934) e "A
História do Brasil em Cinco Lições" de Roberto Macedo (1943)2.
Os discursos e projetos vislumbrados nestas leituras, provenientes de textos preservados em
arquivos oficiais e de participantes do governo Vargas, como ministros, colaboradores ou
defensores de uma investida regulamentadora do Estado sobre a diversidade de manifestações
culturais, informam uma linguagem sacralizadora da educação e práticas de censura e controle.

O cruzamento desta documentação trouxe à tona a articulação de grupos e indivíduos para


efetivar uma missão educativa para o rádio, com a organização, desde a década de 20, de
associações de radiodifusão, abertura de estações por grupos privados, fundação de
rádio-escolas, troca de experiências com outros países e edição de revistas especializadas3.

Nesse campo de atuação, figuras como Roquette-Pinto, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho,
Gustavo Capanema, Paschoal Lemme, Venâncio Filho, Jônathas Serrano, entre outros,
circulavam com freqüência a fim de dar direção ao funcionamento da radiodifusão nacional e de
moldá-la sob parâmetros técnicos e filosóficos da Escola Nova. Como princípios reguladores
das emissões, destacam-se, para além da censura aos "elementos nocivos à radiodifusão", os
apelos à sua uniformização e o desejo de convencimento dos ouvintes (escolares ou não), via
recursos sonoros, para uma audição e absorção voluntária de valores morais e imagens mentais
de autodisciplina e de amor à pátria e ao trabalho.

No que se refere à produção e irradiação de aulas sobre a História e especificamente da História


do Brasil, defrontamo-nos com uma série de procedimentos, extraídos de informações sobre o
conteúdo e o formato dos programas, que indicam um conjunto de ações sendo testadas e
implementadas, com ou sem sucesso, para uma racionalização da leitura a ser feita sobre o
passado e o presente do Brasil. Pode-se vislumbrar esse contexto de racionalização sob duas
formas, quais sejam, a da linguagem que procurava fixar uma História francamente adequada
aos interesses de corporativização e de difusão do nacionalismo na sociedade e a técnica de
irradiação, responsável, segundo os envolvidos nestes projetos, por uma padronização e
controle sobre as formas de ensinar a História do Brasil pelo rádio.

A linguagem, nessa perspectiva, encontra-se elaborada nos símbolos a serem absorvidos nas
lições, pela determinação e identificação dos sujeitos que "aparecem" no desfile dos
acontecimentos históricos e sobretudo nas imagens onipresentes do Estado enquanto condutor
da História, fornecendo indícios da criação de uma oficialização da História a ser estudada nos
bancos escolares e apreendida nos espaços públicos de sociabilidade ou no cotidiano
doméstico atingido pelo rádio. Numa outra dimensão, as técnicas de irradiação, responsáveis
pela assimilação destas imagens e valores, pode ser lida nas constantes referências aos modos
de transmissão, nos modelos adequados de programas para sensibilizar alunos e professores
ou na relação íntima que se construía entre o presente triunfante do Estado Novo, a
materialização do progresso na história, vivenciada nas manifestações públicas, discursos e
comemorações de datas nacionais, em simbiose com um passado reconstituído para a sua
legitimação.

Embora a documentação procure realçar a separação entre técnica e política, modos de


transmissão e conteúdo (ainda que a mensagem seja tratada com maior importância que as
informações a serem absorvidas), traçaremos um percurso no sentido de problematizar esta
separação, tratando estes dois componentes de maneira articulada junto às fontes. De qualquer
modo, a desmontagem desta linguagem oficial e homogeneizante torna-se necessária, a fim de
que sejam repostos os conflitos sócio-culturais, presentes e passados, que ela mesma procura
encobrir, sobretudo no que se refere aos papéis desempenhados por professores e alunos na
apreensão/produção de conhecimentos sobre a História do Brasil4.
Na percepção de Ariosto Espinheira, em Rádio e Educação, a dramatização deveria ser o
programa mais indicado para "impressionar" os ouvintes nos cursos de história pelo rádio.
Segundo o autor, esta modalidade seria capaz de atingir a imaginação para integrar o ouvinte ao
ambiente histórico simulado nos microfones.

Estes efeitos reforçam significativamente a preocupação com hábitos a serem sugestionados,


mais que o próprio conteúdo pedagógico, especialmente na busca de uma nacionalidade. O
próprio autor caminha nessa perspectiva, acenando com o caráter "ilustrativo" das audições às
aulas ministradas pelo professor5. A este restaria atrair os alunos para a História com o uso de
livros didáticos, mapas e quadros intuitivos devidamente preparados e indicados para a
absorção dos mitos, heróis e valores nacionais e aos conferencistas do rádio caberia a criação
das cenas, induzindo os alunos ao local e época narrados, conferindo ao técnico a atribuição
das montagens e efeitos apropriados6:

Bem apresentadas, estas scenas virão mesmo tornar a vida de outrora tão familiar
aos alumnos que elles poderão aproximal-a, na sua imaginação, da sua propria
vida e estabelecer comparações preciosas para a conservação destes dados na
memoria7.

O sentido a ser preenchido com o ensino de História dispensa o ato de aproximar/interpretar


realidades para motivá-lo a participar dos fatos e do cotidiano na condição de sujeito. Pelo
contrário, os alunos seriam preparados para, mesmo não participando, sentirem-se sujeitos. O
recurso ao cotidiano de povos distantes no tempo e no espaço se encarregaria de impregnar na
sua memória um ambiente familiar em que as vidas são traçadas em torno de personalidades
que "fizeram a história e conduziram o povo ao seu destino". O passado torna-se o exemplo a
ser seguido, consagrado e memorizado enquanto senso comum. Contudo, Espinheira
reconhece as falhas desse método, indicando-nos os limites dessa concepção de ensino de
História pelo rádio:

Para muitos, as reconstituições deste genero parecerão por vezes artificiaes; ellas
exigem em todo o caso muita imaginação. De uso constante nos paizes
germanicos e anglo-saxões ellas parecem contar com sympathia nos paizes
latinos8.

Como se vê, a decoração de nomes e fatos, mesmo traduzida na remontagem do cotidiano de


"um escolar da idade Media; uma Olympiada; uma eleição na Cidade de Roma; a loja de um
barbeiro em Roma", encontrava dificuldades de recepção. Entretanto, mesmo diante desses
sinais de falta de sintonia, não podemos negar a vitalidade desse enfoque narrativo e
cronológico, paralelamente à produção de livros e à determinação de currículos oficiais, feitos
sob encomenda pelo Ministério da Educação e Saúde para sacralizar a noção de História como
algo distante enquanto conteúdo, mas muito próximo enquanto criação de hábitos e valores
sócio-culturais, sublimação de conflitos e identificação com uma vida coletiva imaginária na qual
o aluno não seria convidado a agir enquanto sujeito9.

Como exemplo, Espinheira nos aponta alguns fragmentos de aulas radiofônicas direcionados à
absorção dessas sensações:

História - Esta materia pode ser dada sob a forma de narrativa, descripção ou
dramatisação, obedecendo mais ou menos ao seguinte programa. (...) a vida de um
povo selvagem: habitação, alimentação, vestuario. Falta de associação e auxilio
mutuo. As grandes populações actuaes: os edificios, os moveis, o commercio, os
armazens, as fabricas, o dinheiro, meios de locomoção e communicação.
Espetaculos publicos, as festas, o esporte. (...) a familia, os povos, as autoridades,
as leis o exercito e a marinha10.

Os sujeitos diluídos no drama são predeterminados numa história dividida entre o atraso e o
progresso, sendo o primeiro grupo, característico de povos em que o atraso é medido pela
ausência de "associação e espirito mútuo", atribuições perseguidas pelos povos civilizados do
presente - a década de 30. Este é identificado como o progresso material, possibilitado pela
indústria e distribuído pelos meios de comunicação, com papéis definidos pelas instituições,
consagradas pelas autoridades, leis e forças armadas.

O sentido do cotidiano oferecido por Espinheira é aquele em que o povo e as autoridades se


encontram e se aproximam nos espetáculos e obras públicas. O público e o privado se
confundem, a fim de que o ouvinte obtenha, como produto, a efetivação imaginária da nação
que trabalha, festeja e caminha harmoniosa e pacificamente na direção do progresso e do
bem-estar.

Pleiteava-se, para a radiodifusão educativa, a elaboração de cenas de uma multidão civilizada


no presente, em contraposição à desorganização de tempos passados. Ficando em casa, os
ouvintes, atingidos nacionalmente por uma rede de rádio, juntar-se-iam a essa multidão,
recebendo impressões irradiadas das ruas e dos estádios, em comemorações cívicas
preparadas para saldar os mitos fundadores da nação, os heróis que realizaram os anseios de
liberdade em nome do povo, o 07 de setembro, o 15 de novembro, o 19 de novembro, o 13 de
maio e o 1º de maio. Ocorre, portanto, uma articulação dessas celebrações pelo rádio educativo
ao ensino de História, bem como à organização dos dispositivos de censura e produção de
manifestações cívicas nos anos 30 e 40.

A idealização de uma identidade sócio-cultural e psíquica, como componente desse


nacionalismo, encontra-se "didaticamente" expressa em "A História do Brasil em Cinco Lições",
de Roberto Macedo11. Ao gravar o livro em discos, o autor colocava à disposição do rádio um
conjunto de imagens e metáforas, percorrendo a formação da nação como algo conquistado
passo a passo, coletivamente. Nesse percurso, todos os sujeitos, com funções e atos
devidamente ordenados, corroboram para o triunfo do progresso, com o estabelecimento do
Estado Novo no século XX.

A narração é intercalada por alguns períodos curtos, concluindo ou anunciando uma versão
definitiva sobre o emaranhado de fatos e nomes próprios de padres, governadores-gerais,
heróis, presidentes e intelectuais: "o interesse alheio nos foi útil"; "Desabrocham os primeiros
amores célebres"; "Fica o Brasil entregue a si próprio".

Na primeira citação, temos um exemplo de recurso importante utilizado no texto para


imprimir-lhe uma atmosfera de cumplicidade. Ao usar a 1ª pessoa do plural, todos são lançados
em defesa do território e à construção da riqueza nacional. Mas ao mesmo tempo, todos são
submetidos à condução antecipada de alguns personagens, enfileirados nos cinco séculos,
traduzindo o anseio popular e sensibilizando-se com as suas vontades e limitações. A sensação
de movimento na história permitiria ao ouvinte imaginar um passado dinâmico, repleto de ação,
atos heróicos e realizações de governantes, mas nunca o suficiente para abalar o clima de paz e
ordem ao final de cada século. O encadeamento dos séculos, por sua vez, preconiza a idéia de
que a nação ainda não se completara, quando situações tidas como novas são logo depois
desfeitas, num processo que vai "banindo tradições bolorentas e caminhando para as claridades
do século XX"12.
A paz seria um dos pilares fundadores da nação e a matriz criadora dos demais valores e
hábitos junto aos brasileiros, o que explicaria a sua índole pacífica e hospitaleira: "O brasileiro é
bom, e o Brasil convidativo". A representação do "Brasil" procura moldá-lo como uma entidade
com vida própria, além do bem e do mal, respondendo a um valor de unificação e diluição de
antagonismos, sempre que são mencionados episódios com alguma violência. As guerras, os
conflitos étnicos e as invasões estrangeiras são vencidas por líderes heróicos, comandando
grupos mal equipados, mas superando o inimigo em nome do amor à pátria. A pátria e o
sentimento de esforço, doação e colaboração se realizam pela defesa da família em momentos
ameaçadores.

Em outras palavras, sem o outro não haveria o nós. Ao contrário de trabalhadores nacionais e
imigrantes, escravos, índios, mulheres e mesmo a categoria povo, a construção da nação
percorre um caminho em que todas as diferenças dão lugar a uma comunidade de valores,
nascida de raças diferentes mas imbuídas da mesma vontade. O múltiplo é recambiado na
geração do uno, no qual todos se integram à mesma tradição para assumirem papéis de uma
massa de figurantes na encenação da memória nacional. Nós e o Brasil, portanto, simbolizam a
pátria una e indivisível que vence todas as lutas para reafirmar o espírito de ordem e de paz que
formaria o caráter do brasileiro: "(...) lutamos pela Independência com exclusivo intuito de
emancipação civil, sem deixar margem para ódios futuros"13.

Nessa mesma perspectiva, os escolanovistas afirmaram a sua missão educacional, apontando


para um sentido de unidade pré-existente na índole brasileira, a ser exercida e massificada.
Segundo a fala de Lourenço Filho, em 1939, o projeto educacional do governo tinha como

fito capital homogeneizar a população, dando a cada nova geração o instrumento


do idioma, os rudimentos da geografia e da história pátria, os elementos da arte
popular e do folclore, as bases da formação cívica e moral, a feição dos
sentimentos e idéias coletivos, em que afinal o senso da unidade e de comunhão
nacional repousam14.

A projeção da pátria como família ou, dito de outra forma, "a pátria mãe gentil" esteve bastante
presente nos discursos e projetos nacionalizantes no período abordado, ganhando destaque no
Estado Novo quando da discussão do Decreto-Lei 3.200, de 1941, sobre o Estatuto da Família.
Nele foi declarado o apoio do Estado à procriação e proliferação da família por meio do
casamento, unindo desse modo os valores cristãos ao controle do Estado sobre a família, o qual
destinaria o papel da mulher, a educação da família e a política populacional. Elaborado pelo
Ministério da Educação e Saúde, embora o projeto não tenha sido aprovado por discordâncias
no próprio governo, a idealização da família harmoniosa como núcleo do sentimento da pátria já
vinha sendo objeto de intervenção nos vários departamentos do MES, sobretudo através da
censura aos meios de comunicação que "atacassem" a família. A preocupação do ministro
Capanema incorporava-se ao raio de ação do SRE (Serviço de Radiodifusão Educativa), do
INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo) e do próprio DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda), traduzindo-se em termos de memória histórica nos livros e aulas radiofônicas, por
intermédio do espírito de conciliação e da geração dos brasileiros como fruto de amores
devidamente despidos de sensualidade, de desejos individuais ou de qualquer forma de
violência sexual: "Desabrocham os primeiros amores célebres, fontes das mais antigas
mestiçagens na família brasileira: os casais Diogo Alvares e Paraguassú, João Ramalho e
Bartira, Jerônimo de Albuquerque e Arcoverde"15.

Assim, a moralização dos hábitos por meio da História do Brasil fica expressa no percurso
traçado por Macedo. O Brasil - a "Pátria-Mãe" - nasce em 1500, cresce e amadurece nos
séculos seguintes, até chegar à fase adulta no Estado Novo. O uso das metáforas procura criar
um ambiente de conciliação e paz, no qual todos os sentidos devem convergir para a adoração
da nação16.

No texto "Observações para uma experiência de Radiodifusão Educativa", de 1937, encontrado


no arquivo Gustavo Capanema, os fins da radiodifusão procuram também "prevenir" a nação de
sentimentos estranhos para:

Elevar o povo a uma concepção de vida mais harmoniosa e mais humana: faze-lo
compreender os laços que unem os povos e desperta-lo para um espirito de
compreensão universal; quebrar o isolamento em que vivem milhões de brasileiros
(...) despertar o sentimento de nacionalidade e de solidariedade humana17.

A partir desse objetivo, o SRE organizaria campanhas contra:

a- a excessiva dispersão dos grupos demográficos, fazendo com que muitos dos
seus elementos vivam em completo isolamento social, o que provoca muitas vezes
profunda degradação física e moral;

b- a falta da legalisação da familia pelo casamento e registro civil dos filhos;

c- a ação dissolvente de certos filmes cinematograficos nos centros de pouca


cultura;

d- a falta de divisão, de demarcação e de legalisação das proprie-dades;

e- a ignorancia ou confusão de pesos, medidas e valor da moeda;

f- a ignorancia das nossas coisas;

g- o pessimismo em se tratando das coisas e dos homens do Brasil;

h- a desadaptação dos nossos homens do interior após o serviço militar;

i- a falta de cumprimento dos deveres cívicos como o voto e o serviço militar;

j- o desinteresse pelo bem estar coletivo18.

Numa listagem de trinta e três itens, dentre estes selecionados, foram admitidos tantos
"desvios", que indicam muito mais um efêmero nacionalismo do que a capacidade dos
instrumentos de comunicação "civilizarem o Brasil". As entrelinhas deste discurso realçam
grupos sociais dispersos, autônomos, que vivem sem os tentáculos do Estado, sem registro,
assistindo a filmes sem o carimbo do M.E.S e que não são atingidos pelos meios formais de
sociabilidade e de diversão. Interessa-nos, porém, a apreensão dessas diferentes iniciativas
para a propagação da nação homogênea, as quais iam bem mais além da Legislação
Trabalhista, do atrelamento dos sindicatos ao Estado ou da própria nacionalização do ensino.
Ao lado de "ensinamentos morais e cívicos", de aulas sobre higiene e de combate ao álcool e
sobretudo noções técnicas sobre o trabalho, o S.R.E indica o ensino de História Pátria a fim de
propagar junto ao público analfabeto da cidade e do campo o modelo de nação produtiva,
devidamente legitimada pelo discurso unificador das tradições e da memória coletiva.

A manipulação que Macedo realiza em relação ao passado procura introduzir essa versão
desqualificante acerca do trabalhador: passível de preparação para o trabalho organizado e
diluído no ideal comum de progresso da nação, a massa de sujeitos anônimos só adquire o
direito de aparecer na história quando submetidos à liderança indiscutível de intelectuais e
políticos. Nesse sentido, a recuperação da Independência do Brasil e do sistema político
instaurado logo após, parece indicar a justificativa para o status quo do momento da edição do
livro: "Homens eminentes, compreenderam que o Brasil não estava em condições de escolher
pelo voto seus dirigentes"19.

Da mesma forma, o autor sacraliza o Estado Novo e a sua peculiaridade:

Em 1930 uma revolução, ampla e profunda, procura banir os velhos métodos e em


1937 fica instituido um regime sui generis, filiado à democracia autoritária, sob a
denominação de Estado Novo. (...) Plasmando os fundamentos de uma civilização
própria desmentiu os preconceitos pseudo-científicos de que os povos mestiços
não podem progredir20.

Um outro aspecto da construção da identidade nacional refere-se ao tratamento dispensado aos


índios, negros e imigrantes na narração. Os índios somente aparecem quando "desabrocham os
primeiros amores célebres" para a miscigenação ou durante a catequese, vista como um
processo de educação natural e pacífico.

A comunhão entre brancos, negros e índios, realizada pelo autor para "vencer os inimigos", se
faz naturalmente ou pela derrota dos grupos rebeldes. Os índios sucumbem diante do
"desbravamento" dos bandeirantes e os negros de Palmares pela ação de "Domingos Jorge
velho, sertanista bravio" que "exterminou os foragidos". A resistência é então submetida ao
espírito nacional, restando aos "rebeldes" a possibilidade de recuperação: "o negro tinha
capacidade de reação e de associação, podendo, pois, ser assimilado à sociedade pelo fator
educativo"21.

O negro retorna ao século XX para integrar-se ao "sentimento brasileiro" de bondade e justiça:


"(...) O Brasil, que não contribuiu para a instituição da escravatura em seu território, incorporou
esse elemento inferiorizado à comunhão nacional e está pouco a pouco promovendo a sua
redenção, pela cultura, a sua diluição pela preponderância do sangue branco". Nota-se nessa
afirmação uma aproximação explícita ao arianismo germânico. Para além de campos de
concentração, o fascismo canalizaria o ódio racial, o medo e a violência para as instâncias
mentais, a fim de se plasmar a cumplicidade quanto aos inimigos a serem expurgados. No
Brasil, o "fator educativo" se revelaria como um importante instrumento para simultaneamente
diferenciar e absorver negros, índios e mestiços, os quais seriam galgados à civilização apenas
quando submetidos ao trabalho industrial, à música comportada e ao se desfazerem de suas
identidades linguísticas.

Nesse processo de "seleção natural" via educação, a figura do imigrante sequer aparece no
texto de Macedo, num momento em que os únicos brancos estrangeiros absorvidos foram os
antigos "agressores" franceses, holandeses e portugueses que, derrotados, "preferiram ficar no
Brasil do que voltar à pátria de origem".

Quanto à ocupação do território, Macedo exalta o papel dos bandeirantes, verdadeiros heróis
anônimos, "enfrentando miasmas, feras, selvagens (índios)", a fim de lançarem "os fundamentos
da penetração do progresso e a grandeza territorial do Brasil". Curioso notar a recuperação
desse mesmo discurso sobre a unificação territorial nas décadas de 30 e 40, denominado
"Marcha para o Oeste". A imagem desbravadora das bandeiras imprimia, segundo Cassiano
Ricardo, um dos articulistas da revista Cultura Política, publicação divulgadora do Estado Novo,
o espírito de comunhão racial, cultural, política e econômica a ser conquistado. Colocava-se a
nação em movimento para abrigar a todos os brasileiros, estendendo-se as fronteiras agrícolas
(e recrutando mão-de-obra para a indústria) e estabelecendo-se sistemas de comunicação à
distância para "levar o Brasil aos brasileiros". Na bandeira todos são soldados disciplinados que
lutam contra o desconhecido, guiados por um incansável comandante. O sentido de participação
coletiva no movimento, efetuada com obediência e disciplina, conduziria a massa anônima, mas
militarmente organizada, à integração nacional22.

O segundo elemento que cumpre destacar na elaboração da nação pelas "Cinco lições" é a
idealização do herói para personificar o sentimento brasileiro. Na sua narração, Macedo procura
traduzir o anseio de liberdade como um desejo de homens especiais, num processo em que se
cruzam a teologia e a metafísica.

Nessa linha de pensamento, determinados conflitos são desqualificados, justamente por


acomodarem revoltosos desorganizados e violentos, cujo desfecho desnudava ações
repressivas também violentas por parte do Estado. Sobre o motim do "maneta", contra os
comerciantes portugueses da Bahia, o autor descreve o líder como um "homem resoluto" que
"encabeça desatinado movimento popular, mais impulso de irritação coletiva que revolta
propriamente dita." Entre os movimentos citados, aquele que encarna, segundo o autor, o
espírito nacional é a Inconfidência Mineira:

(...) o mais grandioso, o que fala mais nitidamente em independência, o que visa
objetivos de alcance moral, político e social, é a Inconfidência Mineira, ou, mais
propriamente, a conspiração de Tiradentes, porque foi esse obscuro alferes o
verdadeiro heroi da tragédia. Grande homem na morte, Joaquim José da Silva
Xavier resumiu, ele só, quasi três séculos de evolução nacional e representou os
anseios que quatro milhões de criaturas não tinham o desassombro de exprimir
com a mesma altaneria23.

Note-se nesta exaltação a imagem traçada sobre Tiradentes: de personagem secundário,


obscuro, ele se entrega para salvar os demais e torna-se herói. O espírito de humildade aparece
pela aceitação da morte, como Cristo na cruz ao morrer em nome de todos os homens.

A escolha de Tiradentes como herói da República, segundo José Murilo de Carvalho, em A


Formação das Almas, unificaria monarquistas, jacobinos (radicais) e liberais republicanos,
justamente por resgatar valores morais disseminados na religiosidade cristã. Essa imagem,
esculpida e retratada por artistas e escritores, trazia um homem de alma boa e conformado com
o seu destino, num cenário em que a multidão curiosa aguarda o enforcamento, aproximando
esse evento da crucificação.

Por outro lado, outros episódios, como a execução de Frei Caneca, foram marcados pela
violência e derramamento de sangue, cenas que Macedo não aprovaria na audição de suas
"Cinco Lições". Conforme Carvalho, Frei Caneca morrera como

herói desafiador, quase arrogante, num ritual de fuzilamento. Foi um mártir rebelde,
acusador, agressivo. Não morreu como vítima, como portador das dores de um
povo. Morreu como líder cívico e não como mártir religioso, embora, ironicamente,
se tratasse de um frade24.

A moldagem de Tiradentes como símbolo da pátria, a partir da sua caracterização religiosa,


imprimia ao civismo e à história do Brasil uma dimensão pacificadora, de colaboração de
classes e de convergência de interesses, atribuindo ao Estado - um dos agentes multiplicadores
desses símbolos pelo rádio, cinema e manifestações cívicas - o papel de "guia condutor das
massas":

Tudo isso calava profundamente no sentimento popular, marcado pela religiosidade


cristã. Na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se, ele operava a unidade
mística dos cidadãos, o sentimento de participação, de união em torno de um ideal,
fosse ele a liberdade, a independência ou a república. Era o totem cívico. Não
antagonizava ninguém, não dividia as pessoas e as classes sociais, não dividia o
país, não separava o presente do passado nem do futuro. Pelo contrário, ligava a
república à independência e a projetava para o ideal de crescente liberdade futura.
A liberdade ainda que tardia25.

O terceiro componente do nacionalismo resgatado no texto de Macedo diz respeito à criação da


figura do inimigo.

A guerra contra o "intruso" instaura-se no plano de uma nação que já ensaia a consciência de si
mesma. Narradas em forma dramática, conforme sugestão indicada por Espinheira em 1934, as
guerras contra os invasores estrangeiros no século XVII apresentam-se como recurso
aglutinador das raças para combater o inimigo comum: " Foi aí que nasceu o espírito brasileiro:
o branco, o índio e o negro, somados na desgraça". A guerra, apesar de seu conteúdo violento,
comporta o sentimento de defesa do território e de instauração da ordem e da paz.

No Brasil da década de 40, em que pese a adesão oficial aos "aliados" e a reconhecida
afinidade com o nazi-fascismo26, a configuração de um canal formal entre o Estado e os
ouvintes para dizer a guerra, operaria o espírito de patriotismo, divulgando impressões heróicas
sobre os Pracinhas da FEB nos campos da Itália e ao mesmo tempo sedimentado a proliferação
de "exércitos" de crianças e jovens em desfiles cívicos e dos soldados do trabalho, disciplinados
e produzindo para o "esforço de guerra". O essencial, portanto, não era definir o inimigo, mas
criar a necessidade de sua existência, utilizando-se da guerra para a descaracterização de
conflitos sociais e subjacentemente produzir a corporativização da sociedade.

As solenidades de comemoração da Independência do Brasil na década de 40 cumpririam essa


atribuição ao serem irradiadas obrigatoriamente para todo o país. Num dos seus discursos
transmitidos pelos microfones da "Hora do Brasil", notamos como Getúlio Vargas buscava uma
sintonia junto aos ouvintes para que esses se sentissem "lutando pela pátria":

A Semana da Pátria neste ano de 1942 assume o caráter de um movimento de


mobilização geral das forças morais e materiais da nação. Serve para conclamar os
brasileiros ao cumprimento de obrigações penosas impostas por circunstâncias
incontroláveis para as quais não concorremos, mas a que temos de fazer frente
com quantas energias possamos dispor (aplausos). (...) Militarmente teremos de
completar a mobilização para fazer face às necessidades efetivas da guerra
(aplausos). No setor econômico, chefes de empresa e operários cerram fileiras em
torno do governo e, estou certo, em benefício coletivo ninguém poupará esforços
ou bens (aplausos). (...) Seremos implacáveis no combate aos invasores e aos
seus agentes (aplausos) infiltrados traiçoeiramente no meio das nossas populações
laboriosas.(...) Em relação aos criadores de boatos e derrotistas de qualquer
nacionalidade nenhuma complacência existirá (aplausos), serão segregados do
meio social, reduzidos à condição de suspeitos e declarados indignos da cidadania
brasileira27.
O inimigo desenhado pelo discurso não é apenas a nação agressora, mas todos aqueles que
deixam de colaborar moral e tecnicamente para o "fortalecimento da nação". Efetivam-se no
plano do "esforço comum" as corporações e os papéis a serem desempenhados, conduzidos
pela figura paterna e onipresente do chefe da nação. Ambientada num cenário preenchido por
uma "muldidão frenética", com aplausos e gritos interrompendo e "dando" voz às figuras
anônimas, devidamente ordenadas ao lado de milhares de estudantes uniformizados, a
manisfestação busca traduzir uma atmosfera de consenso em torno da produtividade e da
identificação dos "sabotadores" do trabalho.

A partir desses elementos podemos novamente recuar ao sentido de defesa da pátria narrado
por Macedo, ao tratar das invasões estrangeiras no século XVII. Se, para o autor, "o interesse
alheio nos foi útil", naquele momento, nada mais comum que imprimir à guerra um dimensão
aglutinadora para sedimentar o caráter nacional e destruir resistências internas28.

Assim, diante das incursões realizadas sobre as conexões entre o rádio e o ensino de História
nos anos 30 e 40, emerge um quadro de investidas articuladas de intelectuais, educadores,
membros do Estado e técnicos da radiodifusão, no sentido de experimentar e divulgar uma só
linguagem sobre a memória histórica, tornando previsíveis os canais de apreensão do passado,
reelaborado segundo os interesses oficiais.

Como a maior parte das fontes estudadas são provenientes desses arquivos oficiais, as falas
procuram induzir o leitor a imaginar um movimento coeso, entusiasmado e vitorioso, mostrando
esperanças de que as experiências não efetivadas pudessem ser entendidas e concretizadas
pelas "novas gerações".

O uso da tecnologia para atingir grupos sociais que se encontravam distantes da escolarização
e da vida urbana industrial, bem como para submeter professores e alunos a processos de
ensino/aprendizagem sob controle, mostrou-se muito menos um "recurso auxiliar de ensino" do
que instrumento de intervenção social. Pretendia-se, com estas ações regulamentadoras,
desfazer o perfil recreativo, de lazer e de informação do rádio para a construção de uma "escola
sem professores", na qual o professor fosse um mero aplicador de programas curriculares e
subordinado aos sons do civismo e do patriotismo.

Todavia, apesar de não termos nos aproximado diretamente das impressões e reações de
professores e alunos sobre estas experiências, notamos a presença, em alguns fragmentos, de
uma falta de sintonia nesse processo. Na medida em que os dirigentes e intelectuais
procuravam dar forma racional e padronizada à educação, centralizando e legislando sobre as
práticas educativas, buscava-se também eliminar as indeterminações dos espaços de produção
e apreensão de saberes. Ao rádio educativo coube a elaboração deste modelo, no sentido de
habituar speakers e professores ao mesmo padrão de linguagem sobre as imagens e sensações
adequadas de como "falar e ouvir o Brasil".

Considerações Finais

A continuidade dos encontros entre pesquisadores sobre o ensino de História tem demonstrado
a viabilidade e a importância deste campo de estudos. Ao mesmo tempo em que abre a
possibilidade de releituras sobre a História do Brasil por outras fontes e perspectivas de análise,
a recuperação de práticas educacionais ligadas ao ensinar e aprender História realiza um
encontro nada tranqüilo entre o historiador, a sua profissão e o seu passado.

Neste percurso, são tecidos conflitos sócio-culturais do espaço escolar mas que dizem respeito
sobretudo às disputas pela apropriação de saberes e linguagens, à construção de enfoques
narrativos que procuram homogeneizar o passado e às práticas sociais que procuraram
estabelecer campos alternativos de como interpretar o passado e o presente sobre si mesmos.
Em termos de espaço escolar, a pesquisa contribui para a melhoria do ensino, requalificados a
partir de sua interação, ao oferecer "espelhos" que introduzam indagações, novas investigações,
revisões, reflexões na sala de aula e reflexões sobre a sala de aula.

No que se refere ao conteúdo deste texto, embora não desprezemos a perda de importância das
estações radioeducativas e a multiplicação de imagens televisivas nos últimos tempos, a
produção de uma memória sacralizada, heróica e nacionalizante sobre o Brasil continua sendo
exercida sob novas roupagens.

A separação entre o fazer e o aprender História, por exemplo, típica das aulas livrescas e
decorativas, ainda preserva muitas características das "Cinco Lições" de Roberto Macedo, o que
vem realçar a necessidade de insistentes incursões na construção de saberes e linguagens
institucionalizados no ensino da História. Apesar de distantes, mais de cinqüenta anos,
deparamo-nos com duas situações que podem exemplificar a incorporação desta leitura
tradicional.

O primeiro programa deste ano (1998) da TV Globo da série Telecurso 2000, apresentado por
Zezé Macedo, introduz uma linguagem até certo ponto inovadora, fazendo referências à
investigação, ao espírito de "detetive" do historiador, ao "método investigativo" e às fontes
históricas, as quais não seriam apenas as dos arquivos oficiais, mas todas as formas de
registro, ou de que "tudo pode ser fonte". Em seguida, afirma que "todos fazem história", "você
está construindo a história hoje". Para realçar esta suposta participação do aluno, aparece uma
curiosa tele-aluna, passageira de um táxi, que "achava que a história fosse uma coisa muito
distante", sendo respondida pelo motorista que a "história está em todo lugar", passando a
mostrar as construções antigas e os nomes de ruas.

A narradora, então, reafirma o espírito da aula e passa a mostrar uma linha de tempo da História
do Brasil, de 1500 aos nossos dias, e para "facilitar a investigação" organiza a história em
etapas e com um "tema em comum a toda a nossa História - a liberdade: assim, "lutamos contra
os portugueses e deixamos de ser colônia"; "lutamos para acabar com a escravidão";
"proclamamos a República para que todos tivessem emprego e pudessem votar".

O que a princípio pode ser visto como novidade - dada a qualidade de imagens e efeitos e à
introdução de frases soltas para aproximar a história da realidade dos telespectadores - serve
na verdade como reforço a condicionamentos bastante antigos para a reprodução de mais
espectadores, uma vez que a produção da história fica remetida à função exclusiva do "detetive"
ou especialista que anuncia os grandes fatos e das montagens visuais que procuram atrair o
aluno e transformar o ensino de História em alguma coisa menos chata. O recurso à primeira
pessoa do plural procura diminuir esta "distância", para que todos se sintam atados pelas
mesmas origens, "lutas" e destinos.

A técnica, nesse sentido, alimenta a preservação de comportamentos passivos diante da história


e da produção da memória, introduzidos nos lares neste primeiro momento por um programa
específico e que já consta de projetos federais e estaduais para oferecimento às escolas por
meio da multiplicação de instalação de vídeos e antenas parabólicas.

Na mesma linha, só que de maneira explicitamente preconceituosa, podemos citar o livro


didático "Alegria de Saber", de Integração Social, dirigido à quarta série do ensino fundamental e
largamente adotado pelas escolas mineiras. Já na capa, crianças índias felizes aguardam a
chegada das caravelas portuguesas e no capítulo "Um pouco da história do nosso povo", as
raças são descritas nas suas origens e atribuições: "os negros vieram trabalhar para os
portugueses"; "os imigrantes vieram para trabalhar (...), construíram suas casas, criaram
cidades e foram, pouco a pouco, misturando-se ao povo brasileiro". No item seguinte "Nossos
costumes e tradições", são listadas as "contribuições "de cada grupo: "os índios nos ensinaram
a dormir em redes"; "os negros nos deixaram a dança, a música e instrumentos musicais"; "os
brancos portugueses nos trouxeram a religião católica, as comidas, os costumes, a maneira de
construir as casas, cidades, igrejas e a língua portuguesa." Como se vê, o espírito civilizatório
da democracia racial apontado por Macedo em 1943 a partir da educação e incorporação dos
negros e índios à comunhão nacional, é referendado por intermédio destas passagens. As
"contribuições" parecem significar mais concessão dos brancos do que miscigenação racial. A
"geléia geral" advinda dessa pasteurização da cultura, sustenta-se pelo caráter de exotismo
atribuído às diferenças étnicas e sociais e à despolitização das relações de trabalho, quando
supostamente africanos e imigrantes europeus resolveram trabalhar no Brasil.

Estes exemplos, em meio ao crescimento da indústria editorial de livros didáticos e à


banalização da história do cotidiano por livros paradidáticos, inserem-se num contexto de
investidas do Estado para a racionalização do trabalho escolar, sobretudo a partir dos anos 80.
Em Minas Gerais, além da produção de propostas curriculares sem a realização de discussões
ampliadas ou a participação dos professores, a Secretaria Estadual de Educação continua
procurando implementar o Programa de Qualidade Total na Educação. Este programa, entre
outras propostas, pretende transformar a relação professor/aluno em professor/cliente, na qual a
produtividade possa ser medida pelo aumento das promoções dos alunos, numa escola que
funcione diminuindo os "desperdícios" e na qual haja uma revitalização das funções de
supervisores e orientadores. Como componente deste processo, têm sido aplicadas avaliações
padronizadas para todo o Estado, procurando medir e conhecer o aprendizado dos alunos e o
trabalho realizado pelos professores, exemplificados nas seguintes questões:

Na sua opinião, o que tem dificultado o processo ensino-aprendizagem, referente à História, na


8ª série do Ensino Fundamental é principalmente:

a - a falta de interesse e/ou indisciplina na sala de aula;

b - a falta de conhecimento e/ou domínio da matéria pelo pro-fessor;

c - a carência de recursos humanos (principalmente profes-sores), equipamentos,


materiais e recursos didáticos;

d - o número excessivo de alunos na sala de aula;

e - a falta de assimilação, pelos alunos dos conteúdos dados nas séries


anteriores29.

A questão procura muito mais apreender informações sobre as atividades dos professores e da
relação professor-aluno, do que propriamente diagnosticar as "dificuldades" de aprendizagem,
as quais estão obrigatoriamente presentes, autonomamente, em qualquer sala de aula. Ao aluno
cabe o exercício de manifestar-se se gosta ou não do professor, procurando redimensionar
papéis, afetividades e insatisfações, canalizando a educação e a responsabilidade pelos seus
fracassos aos professores. Numa outra dimensão, a avaliação busca testar os conhecimentos
históricos do aluno, entre os quais nos deparamos com o seguinte:

Em 1937, o processo democrático no Brasil foi perturbado pelo seguinte fato:


a - o Tenentismo.

b - a "política dos governadores".

c - a implantação do Estado Novo.

d - a instalação do regime militar30.

Nesta prova, a história percorre marcos consagrados, partindo da colonização até chegar à
questão sobre o Plano Real e aos seus "efeitos positivos". O Estado Novo é então tratado como
"perturbação" desse destino do povo brasileiro. O que é buscado nas entrelinhas destas
questões são as habilidades de memorização dos alunos, a fim de testar e averiguar possíveis
"estrangulamentos" do que se convencionou tratar como a história a ser ensinada nas escolas.

Tais iniciativas, portanto, compõem um quadro de nova centralização do sistema educacional,


de busca de padrões educativos e sobretudo de efetivação de novos instrumentos de controle
sobre práticas educacionais, em nome da "qualidade do ensino". Historicizar estas práticas
implica, pois, num rompimento dos silêncios produzidos, no diálogo com experiências vividas
mas esquecidas em nome de um senso comum insistentemente reposto na veiculação de
saberes sobre a história do Brasil.

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