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Introdução
Qualquer tentativa de estudar a vida musical brasileira antes de 1808 esbarra com alguns
problemas, sendo um deles a falta de imprensa, no período anterior à vinda de D. João VI.
A criação da Imprensa Régia, possibilitou o surgimento de jornais e livros feitos no Brasil.
Com o aparecimento dos periódicos, as atividades musicais puderam então ser registadas
com maior precisão.
Do ponto de vista educacional, com “o afastamento dos jesuítas, em 1759, [...] o Estado
português implementa uma reforma educacional que cria os chamados professores régios
e regulamenta os métodos de ensino em Portugal e no Brasil” (Amorim, 2017, p. 44). Os
elementos iluministas à época visavam desenvolver um progressivo processo de laicização
do ensino, facto reforçado no Brasil com a chegada da família real. Durante o período
joanino [1808-1821] no Brasil, foram tomadas as primeiras medidas para o controle efetivo
do Estado sobre a educação (Cardoso, 2008 citado por Amorim, 2017, p. 44). Sob o
domínio de Portugal, o ensino brasileiro foi-se constituindo a partir das deliberações régias,
que controlavam o desenvolvimento intelectual do país. Com a transferência da corte para
o país em 1808, o Rio de Janeiro passou a atrair estrangeiros que chegavam como
pesquisadores, naturalistas, comerciantes, professores, médicos ou mercenários,
estimulados pela curiosidade científica, pela possibilidade de ganho e, também, pelo
exótico, pelo diferente (Cardozo, 2012). Foi nesse período que a educação começou a se
institucionalizar no país, ainda que para poucos, com a presença da educação musical.
Uma educação do espírito, do corpo e da inteligência, que, no conjunto de suas lições, para
além de definir línguas, cálculos ou nomes a serem ensinados, por seu caráter elitista, tinha
como finalidade ensinar especificamente aos ‘filhos da boa sociedade’, aos futuros
cidadãos do Império, as formas distintas de interpretar e se comportar no mundo (Garcia &
Silva, 2021, p.3).
No currículo a que nos referimos, o aprendizado musical era associado a uma educação
do corpo. Ainda que por vezes designada ‘ginástica’, não era diretamente associada à
prática de exercícios físicos, mas a uma espécie de ‘harmonia dos gestos’, a uma educação
musical corporal que buscava o refinamento das atitudes distintivas da ‘boa-sociedade’, de
apresentação diante de pares (Garcia & Silva, 2021, p. 18). O acesso a atividades reportadas
a uma designada ‘alta cultura8’ seria distintivo na hierarquia social, como destacado:
8 O termo ‘alta cultura’ é utilizado historicamente para classificar diferentes tipos de cultura. A
música erudita europeia recebia esta denominação, enquanto a música popular recebia a
denominação de ‘baixa cultura’. O próprio termo ‘cultura’, afastando-se do seu significado
inicial de ‘crescimento ou cultivo’ de um povo, passou, em determinado momento, a ser
sinônimo de progresso.
Esses alunos, aos quais se destinam esses “saberes nobres” são também, muito
frequentemente aqueles cuja origem social é mais elevada e cujos pais foram criados na
mesma cultura acadêmica. É por isso que a manutenção das hierarquias simbólicas
existentes no interior do mundo escolar parece ir no sentido da conservação social (Young,
1971 apud Forquin, 1992, p. 42).
Não podemos deixar de ver nesta significação uma forte relação com a Antiguidade
Clássica, contexto em que a educação tinha o sentido de aprimoramento da natureza
humana. Conforme aponta Carvas-Monteiro (2015, p. 44), a “música na Antiguidade”
compreendia as “três artes do movimento: a palavra, o canto e a dança”. Na “polis grega,
a arte (e desde logo a música e a poesia) tinha uma grande importância na educação e
formação dos jovens, cuidando de toda a espécie de manifestações artísticas”, sendo a
“cultura geral do período helenístico (…) tanto no ensino privado como no público”
(Carvas-Monteiro, 2014, p.178).
Na mesma tradição, foi criado, em 1841, o Conservatório de Música do Rio de Janeiro9,
oficializado em 1848. Estamos no início do chamado ensino conservatorial, que foi buscar
o modelo das escolas de música francesas. Sua oferta era prioritária para aqueles que, por
sua posição na sociedade, podiam vir a ocupar cargos na administração pública. Devemos
notar a preocupação diminuída, desde cedo, do Governo para com esta instituição, o que é
relatado no artigo do periódico ‘O Brasil’:
Entre os innumeros contrastes que todos os dias se notam n’esta terra fecunda de anomalias,
tem muito distincto logar o contraste entre a aptidão dos Brasileiros em geral para a musica,
e a nenhuma attenção que o governo há prestado aos progressos d’essa bela manifestação
artística dos mais ternos affectos do coração humano. Todos os interesses, ainda os mais
insignificantes e mesquinhos, têem encontrado calorosos defensores em as nossas camaras,
no entanto a musica, cuja influencia civilizadora de ninguém é desconhecida, ainda não
encontrou uma voz eloquente e generosa que defendesse seus interesses. [...] A musica tem
sido entregue a seus destinos; hoje só é licito gozar de seu ensino ás pessoas abastadas que
podem pagar mestres, ao povo nada se concede; coma, beba, vista-se, pague impostos, que
mais quer? (“Conservatorio de Musica”, 1841, p. 4)
Um aluno que atravessa todo o seu tempo de escola escarrapachado na carteira, ou que
responde com insolência às menores observações, não está em condições de acompanhar
proveitosamente um ensino. Apresenta o perigo de contaminar o conjunto da classe,
mormente se dotado de aptidão para organizar a desordem. Aluno como esse deve ser
imediatamente expulso da aula, quer provisória quer definitivamente (RBEP, 1944, p. 239).
A Educação Musical, como disciplina escolar, é parte desse processo que objetiva
disciplinar e construir o cidadão ideal, conforme referem as instruções relativas ao ensino
do canto Orfeônico nas escolas secundárias:
O ato ministerial declara que aquele ensino tem as seguintes finalidades: a) estimular o
hábito do perfeito convívio coletivo, aperfeiçoando o senso de apuração do bom gosto: b)
desenvolver os fatores essenciais da sensibilidade musical, baseados no ritmo, no som e na
palavra; c) proporcionar a educação do caráter em relação à vida social por intermédio da
música viva; d) incutir o sentimento cívico de disciplina, o senso de solidariedade e de
responsabilidade no ambiente escolar (RBEP, 1946, p. 360).
Nesse sentido, salta aos olhos a importância que o estudo das artes deveria ter para aquela
parcela da ‘boa sociedade’, cujos filhos eram estudantes do Colégio, ao se considerar que,
assim como latim e francês, as suas lições estavam entre as mais importantes em número
de alunos matriculados, totalizando 194, no ano de 1848 (Garcia, Silva, 2021, p. 3).
A música na República
Foi em meio a mudanças sociais e políticas, com a renovação de ideias e de sistemas
filosóficos e discussões sobre projetos sociais, econômicos e políticos para o Brasil, que a
República se instituiu. Politicamente, era necessária alguma forma de conduzir o país que
não entrasse em colapso com as inúmeras ideias da Europa e Estados Unidos; nesse sentido,
os argumentos e conceitos de teorias estrangeiras não foram adotados aleatoriamente,
“havia um critério político de seleção”, de modo que se conduzisse para “desvendar linhas
mais eficazes de ação política” (Alonso, 2000, p. 39). Em tal contexto, a música na escola
estava alinhada com a divulgação dos ideais de construção da nação republicana.
A promulgação do Decreto n° 27 de 12/3/1890, juntamente com a Reforma Caetano de
Campos, inaugurou em São Paulo o ensino de música na escola primária do país.
A educação musical, por meio de suas práticas, assumia essas funções. Transfigurada
em uma aparência de canto coletivo, o sentido do fazer musical assumia novos significados,
estabelecendo uma ‘vontade de verdade’ que é mantida pelas instituições sociais. Essa
vontade de verdade, segundo Foucault, se estabelece por meio da exclusão do sujeito,
interferindo no seu modo de ser, de compreender e interpretar a realidade.
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um
suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura
de práticas como a pedagogia. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem
dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado,
distribuído, repartido e de certo modo atribuído.
Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma
distribuição institucional, tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando
de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção (Foucault,
2014, p.16-17).
O canto coral é de caracter erudito, seus componentes devem ser músicos, pelo que o
numero de cantores é mais ou menos reduzido; o orpheão é de índole popular, seus
membros não precisam saber musica, pelo que é representado por immensas massas de
vozes, contando-se, não raro, por milhares.
O canto orfeônico caracteriza-se por ser uma prática musical de amadores de diversos
setores sociais, executando um repertório menos difícil tecnicamente do que o destinado a
músicos profissionais (daí a tradição de se fazer arranjos e adaptações) e realizando
apresentações públicas regulares de cunho cívico e moralizador. Se o início do orfeonismo
foi destinado a trabalhadores e escolares, as sociedades orfeônicas proliferaram-se
posteriormente, passando a abrigar outros setores sociais.
[...] o canto coletivo, com o seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no
momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na
comunidade, valorizando no seu espírito a ideia da necessidade de renúncia e da disciplina
ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de
solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das
grandes nacionalidades (Santos, 2010, p. 73).
Conclusão
A partir das condições enunciativas que apontam no presente para um ensino de música
colocado em um lugar de menor prestígio, frente a outros conhecimentos escolares,
buscamos encontrar indícios que nos dessem pistas dessas práticas contemporâneas. Por
meio das rupturas e emergências não lineares aqui relatadas, que salientamos os modos de
disciplinar os indivíduos e seus mecanismos através da escola e do ensino de música.
Ressaltamos que, em todos os períodos, as formas organizadas de controle, instrução e
vigilância fizeram parte de um processo de individualização que se caracterizou de
diferentes maneiras nos tempos em que foram se constituindo. Essas formas de
individualização, que lançavam sobre o indivíduo um novo sistema de controle e poder,
reconfiguravam as relações e estabeleciam padrões e normas em meio a sistemas de
pensamento. Assim, em cada período histórico, conforme apontamos, o nascimento de uma
nova episteme11 ou estrutura geral de pensamento impunha certa padronização sobre os
modos de agir daquele período e, consequentemente, sobre o espaço escolar.
11 Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada
época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente
a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se
situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a
repartição desses limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar
defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou
A constituição de uma nova episteme é um processo que acontece enquanto se
modificam os padrões de comportamento que reestruturam as práticas de uma sociedade
ao criar uma normalidade. Essa nova normalidade se constituía como ‘verdade’ enquanto
vinha a se estabelecer de acordo com as necessidades e mudanças de cada período. Eram
essas mudanças de ‘regimes de verdade’ que determinavam o que poderia ou não ser dito,
poderia ou não ser aceito em determinado tempo.
Por verdade, não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer
aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e
se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’; entendendo-se também que não se
trata de um combate ‘em favor’ da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel
econômico-político que ela desempenha (Foucault, 2009, p. 159).
Na escola, isso pôde ser visto enquanto a utilização do termo ‘disciplina’, passou a
assumir uma nova significância: uma vez que antes remetia para vigilância e repressão das
condutas, no final do século XIX remete para ‘matéria’ ou ‘conteúdo’ a aprender: “Não é
por acaso que o termo ‘disciplina’ designa ao mesmo tempo a imposição de certos hábitos
materiais e morais e o sistema de conhecimentos a adquirir” (RBEP, 1944, p. 238). No
currículo, o termo acabou por ter implicações diretas, tornando os conhecimentos em
conteúdos limitados, pontuais. Esta economia reduz a sua complexidade e, também, a
realidade cultural em que a escola se encontra integrada. São os conteúdos considerados
socialmente válidos que passam a ter primazia. Afinal, conforme afirma Goodson et al.
(1998, p. 10), “é preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões
com a inclusão ou exclusão na sociedade”.
Sendo o currículo um dispositivo pelo qual se validam os saberes, aquilo que o integra
se faz verdadeiro, enquanto aquilo que ele exclui se torna desnecessário. Dessa forma,
torna-se tão importante a presença da disciplina no currículo escolar. A normatização do
conteúdo disciplinar no currículo passa a configurar um saber como sendo válido,
importante ou útil. É nesse contexto que a música, a despeito do lugar que ocupa hoje no
currículo e na sociedade brasileira, teve seu fazer delimitado através de um cerceamento
de ideais políticos ou de formas estruturadas de poder que, tal como nas demais disciplinas
escolares, definiram a sua função na escola. Sendo assim, estar ou não presente na sala de
aula ou na legislação produz o seu valor social ou particular, tornando-a mais ou menos
válida socialmente.
Identificamos aqui que a presença da música no currículo escolar brasileiro é delineada
não por uma história linear, mas por uma história de protagonismos e apagamentos
resultantes de investidas políticas, sociais e culturais a fim de alcançar objetivos em meio
às relações entre saber e poder. E isso, que atravessa as diversas disciplinas escolares
situadas nos diferentes espaços geográficos ou tempos históricos, também se relaciona com
a necessidade humana de controle, o qual Michel Foucault nos chamou atenção em seus
estudos. Dessa forma, antes de olharmos para a importância dos saberes nos diferentes
lugares ou tempos, precisamos olhar para aqueles que controlam a sua presença naquela
estrutura social, naquele contexto político e, por conseguinte, os contextos que delinearam
a sua presença na legislação vigente. Assumimos que a Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos (RBEP) é uma boa fonte empírica para a realização dessa tarefa.
ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas (Foucalt,
2019, p. 214).
Referências