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I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte.

12 a 15 de abril de 2016
Salvador – Bahia

Realização:
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia – UFBA, através do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas – PPGAC e do Núcleo de Estudos em Teatro Popular; GT Etnocenologia da
ABRACE, PNPD/CAPES.

Parceria:
Instituto de Artes da UNESP.

Coordenação Geral:
Eliene Benício Amâncio Costa e Fabio Dal Gallo.

Comissão Científica:
Eliene Benício, Maurílio Rocha, Miguel Santa Brígida, Gilberto Icle, Graça Veloso, Tatiana Motta,
Fernando Mencarelli.

Comissão Organizadora:
Eliene Benício, Fabio Dal Gallo, André Araújo, Filipe Dias, Agamenon de Abreu.
Monitores: Natalyne Pereira, Sérgio Reis, Cláudio Antônio, Marília Galvão.

Produção e Comunicação:
Coordenação: André Araújo.
Divulgação ABRACE: Frederico Ramos.

Produção Visual:
Agamenon de Abreu

Equipe do Teatro Martim Gonçalves:


Coordenação: Ubirajara Freitas
Técnicos: Luís Alberto Gonçalves, Cláudio Serra
Monitores: Gabriel Liber, Nei Duarte, Silas Oliveira

Secretaria da Direção:
Secretária: Maria Eugênia Simões Farias
Apoio: Leandro dos Reis, Arthur Hertz, Ramon Reverendo, Joaquim Torres, Walter Encarnação

Secretaria da Pós-Graduação:
Secretários: Leandro Dias e Vitor Pereira
Apoio: Rita de Cássia Santos e Varenka Araújo

Logística e Contabilidade:
Coordenação: Elia Alderete
Apoio coffee-break: Isabela Pinheiro e Vera Lúcia Silva
Sumário

Apresentação ........................................................................................................................... 007


Programação ........................................................................................................................... 009
Coordenadores e Participantes das Mesas de Comunicações ................................. 011
Convidados e suas Conferências ....................................................................................... 013
Mesas de Comunicações ..................................................................................................... 019
Eventos Artísticos ................................................................................................................. 035
Grade de Programação ......................................................................................................... 037
Comunicações:
PROCESSOS CRIATIVOS: UMA ABORDAGEM NA GÊNESE DA CRIA-
ÇÃO DE FIGURINISTAS DE TEATRO EM SALVADOR/BA
Agamenon Bomfim de Abreu .................................................................................................. 039
HÔXWA À LUZ DA ETNOCENOLOGIA: A PRÁTICA CÔMICA KRAHÔ
Ana Carolina Fialho de Abreu .............................................................................................. 046
ODO IYA! A CONSTRUÇÃO DO CORPO-CENA NO ESPAÇO SAGRA-
DO DO CANDOMBLÉ
Ana Claudia Moraes de Carvalho .......................................................................................... 057
RITUAL, FESTA E NAÇÃO: ALGUMAS ACEPÇÕES CHAVE PARA
PENSAR O MARACATU-NAÇÃO
Cássia Batista Domingos ......................................................................................................... 064
ETNOCENOLOGIA, UMA PROPOSTA MÉTODO-GRÁFICA-CALEI-
DOSCÓPICA
Cláudia Suely dos Anjos Palheta ............................................................................................. 072
ARTIGO: A DANÇA DO GUERREIRO ALAGOANOE SEUS ENTRE-
MEIOS MULTIRREFERENCIAIS
Cláudio Antônio Santos da Silva ............................................................................................ 081
OBSERVAÇÕES SOBRE A CAMINHADA BRINCANTE NA FESTA DE
SÃO MARÇAL EM SÃO LUÍS/MA
Danielle de Jesus de Souza Fonsêca .......................................................................................... 093
ELOMAR FIGUEIRA MELLO, TROVADOR DO SERTÃO MEDIEVO
Eduardo Cavalcanti Bastos ...................................................................................................... 104
CONTANDO SHAKESPEARE – DO XVI PARA O XXI
Érica Carneiro da Rocha Lopes e Marcos Leonardo Teles de Macêdo ..................................... 117
A ADVERBIALIZAÇÃO DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE DA ESPETA-
CULARIDADE APONTADA NOS ESTUDOS DE ARMINDO BIÃO
Filipe Dias dos Santos Silva .................................................................................................... 123
ATRIZ-BRINCANTE –EXPERIMENTAÇÕES CÊNICAS A PARTIR DA
BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO
Flávia Cristiana da Silva ........................................................................................................ 131

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 5


TRICKSTER E AS DUPLAS CÔMICAS CÊNICAS
Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos ....................................................................................... 139
A PRÁTICA DA TENSEGRIDADE COMO TREINAMENTO E MATRIZ
DE CRIAÇÃO NO GRUPO DE PESQUISA EM TEATRO VAGABUN-
DOS DO INFINITO
MárciaChiamulera e Leonel Henckes ....................................................................................... 150
INTERFACES COM O GRUPO ANTAGON: INFLUÊNCIAS DA COR-
PORALIDADE EM CENA NO BAIXO SUL DA BAHIA
Marilia Galvão Costa .............................................................................................................. 161
GUARDA-ROUPA ENCANTADO: ESPETACULARIDADE DAS ROU-
PAS DE CABOCA DO TERREIRO ESTANDARTE DE REI SEBASTIÃO,
OUTEIRO, PARÁ
Otávia Feio Castro .................................................................................................................. 167
ARTISTA-ETNO-PESQUISADOR E SUAS CONTRIBUIÇÕES TEORI-
CO-METODOLOGICAS PARA O CORPO EM CAMPO
Rafael Cabral ......................................................................................................................... 172
O REINADO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM CARMO DO
CAJURU, MG: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
Ramon Santana de Aguiar e José Heleno Ferreira ................................................................... 180
ORAÇÃO DO SANTO GOZO: RISO E BUFONARIA, TRAJETÓRIA E
EXPERIÊNCIA
Sávio Farias e Nykaelle Barros ............................................................................................... 185
UMA EXPERIÊNCIA COM TEATRO NAS RUAS DE PERIPERI
Sergio dos Santos Reis e Prof. Dr. Osvanilton de Jesus Conceição ............................................. 194
CORPO-FRETADO, CORPOS-FRETE, EQUIPE-FRETE:
CORPOS ESPETACULARES DO CORTEJO FÚNEBRE DO FRETE EM
CURUÇÁ-PA
Valéria Fernanda Sousa Sales ................................................................................................ 200
MÁSCARAS EM PAUCARTAMBO (PERU) - PRIMEIROS DIÁLOGOS
Vilma Campos dos Santos Leite .............................................................................................. 208

6 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


I ENCONTRO NACIONAL DE
ETNOCENOLOGIA: o estado da
arte.

A Etnocenologia foi criada na Universidade Paris VIII em 1995, liderada por Jean-Marie Pradier; esta
chegou ao Brasil em 1997, através do Prof. Dr. Armindo Bião, fundador do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da Bahia, e da ABRACE – Associação Brasileira de
Pesquisa em Artes Cênicas. O próprio Armindo Bião propôs, também, a criação na ABRACE do GT
Etnocenologia.

O GT Etnocenologia da ABRACE tem realizado encontros voltados às apresentações das pesquisas em


andamento nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras. Diante da vasta produção aca-
dêmica no Brasil, nestes quase vinte anos da Etnocenologia no Brasil, e da criação da ABRACE, interes-
sa-nos avaliar como a disciplina etnocenologia apresenta-se nas pesquisas produzidas, e em quais regiões
do Brasil ela se configura como lastro da pesquisa acadêmica.

Considerando o crescimento da área da pesquisa e da pós-graduação em artes cênicas, no Brasil, bem


como a ampliação de seu horizonte teórico-metodológico, foi oportuna a realização do “I Encontro Na-
cional de Etnocenologia: o estado da arte”, o qual buscou avaliar o desenvolvimento da referida disciplina
no Brasil.

O evento teve como objetivos:

1. Reunir pesquisadores e interessados em Etnocenologia;


2. Promover o intercâmbio local, nacional e internacional da pesquisa acadêmica;
3. Fortalecer a colaboração do GT Etnocenologia da ABRACE com as pesquisas em etnoceno-
logia desenvolvidas nas universidades brasileiras;
4. Produzir material de reflexão para a pesquisa em artes cênicas que tem como campo de saber,
a disciplina etnocenologia.

E, para finalizar, considerando o momento de encontro do GT Etnocenologia foi realizada homenagem


ao professor Armindo Jorge de Carvalho Bião!

Eliene Benício e Fabio Dal Gallo


Coordenação Geral do I Encontro Nacional de Etnocenologia

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 7


8 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
PROGRAMAÇÃO
TERÇA-FEIRA: 12 de abril
Manhã:
08:30 às 10:00 - Credenciamento
10:00 às 10:30 - Mesa de Abertura - com homenagem ao Prof. Dr. Armindo Jorge de
Carvalho Bião (post mortem)
10:30 às 11:00 - Coffee break
11:00 às 12:00 - Conferência: Prof. Dr. Gilberto Icle (UFRGS)

Tarde:
14:00 às 16:00 - Mesa de Comunicações 01 – Coordenação: Profa. Dra. Evani Tavares
16:00 às 16:30 - Coffee break
16:30 às 17:30 - Conferência: Prof. Dr. Miguel Santa Brígida
17:30 às 19:00 - Intervenção Artística: “Entremeios Dez-figurações” – Cláudio Antônio
+ conversa com o público

QUARTA-FEIRA: 13 de abril
Manhã:
08:30 às 10:30 - Mesa de Comunicações 02 – Coordenação: Profa. Dra. Eliene Benício
10:30 às 11:00 - Coffee break
11:00 às 12:00 - Conferência: Prof. Dr. Fernando Mencarelli

Tarde:
14:00 às 16:00 - Mesa de Comunicações 03 – Coordenação: Prof. Dr. Fabio Dal Gallo
16:00 às 16:30 - Coffee break
16:30 às 17:30 - Conferência: Prof. Dr. Jorge da Graça Veloso
17:30 às 19:00 - Intervenção Artística – “Brosogó, Militão e o Diabo” – Carlos Alberto e
estudantes de licenciatura + conversa com o público

QUINTA-FEIRA: 14 de abril
Manhã:
08:30 às 10:30 - Mesa de Comunicações 04 – Coordenação: Prof. Dr. Lindolfo do Amaral
10:30 às 11:00 - Coffee break
11:00 às 12:00 - Conferência: Profa. Dra. Suzana Martins (UFBA)

Tarde:
14:00 às 16:00 - Mesa de Comunicações 05 – Coordenação: Prof. Dr. Sérgio Farias
16:00 às 16:30 - Coffee break
16:30 às 17:30 - Conferência: Profa. Dra. Alexandra Dumas - (UFS)
17:30 às 19:00 - Leitura dramática do texto “A Máscara e a Sombra: L’Arte della Corti-
giana” Joice Aglaé + Conversa com o público (Roberto Tessari e Joice
Aglaé)

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 9


SEXTA-FEIRA: 15 de abril
Manhã:
08:30 às 10:30 - Mesa de Comunicações 06 – Coordenação: Profa. Dra. Isa Trigo
10:30 às 11:00 - Coffee break
11:00 às 13:00 - Conferência: Prof. Dr. Roberto Cuppone (Universidade de Gênova)

Tarde:
14:00 às 16:00 - Conferência: Prof. Dr. Renzo Guardenti (Universidade de Florença)
16:00 às 16:30 - Coffee break
16:30 às 18:30 - Conferência: Prof. Dr. Roberto Tessari (Universidade de Turim)
18:30 às 19:00 - Mesa de Encerramento

10 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


COORDENADORES E
PARTICIPANTES DAS MESAS DE
COMUNICAÇÕES:
MESA 01
ETNOCENOLOGIA: TEATRALIDADE E ESPETACULARIDADE
Coordenadora: EVANI TAVARES DE LIMA
Participantes:
1. Ana Claudia Moraes de Carvalho (UFPA)
2. Keila Andréa Cardoso dos Santos (UFPA)
3. Danielle de Jesus de Souza Fonsêca (UFPA)
4. Flávia Cristina da Silva (UFBA)
5. Valéria Fernanda Sousa Sales (UFPA)

MESA 02
ETNOCENOLOGIA: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS
Coordenadora: ELIENE BENÍCIO AMÂNCIO COSTA
Participantes:
1. Lindolfo do Amaral (UFBA)
2. Cláudia Suely dos Anjos Palheta (UFPA)
3. Filipe Dias dos Santos Silva (UFBA)
4. Rafael Cabral (UFPA)

MESA 03
ETNOCENOLOGIA E O ESPAÇO URBANO
Coordenador: FABIO DAL GALLO
Participantes:
1. Iara Sydenstricker (UFRB)
2. Alda Fátima de Souza (UESB)
3. Carolina Mahecha Quintero (UFBA)
4. Sérgio dos Santos Reis (UFBA), Osvanilton de Jesus Conceição (UFBA)

MESA 04
ETNOCENOLOGIA: ESPETACULARIDADE DOS OBJETOS CÊNICOS
Coordenador: LINDOLFO DO AMARAL
Participantes:
1. Otávia Feio Castro (UFPA)
2. Agamenon Bonfim de Abreu (UFBA)
3. Cauê Rocha Santana Souza (UFBA)
4. Marília Galvão Costa (UFBA)

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 11


MESA 05
ETNOCENOLOGIA: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
Coordenador: SÉRGIO COELHO BORGES FARIAS
Participantes:
1. Ramon Santana de Aguiar (UEMG), José Heleno Ferreira (UEMG)
2. Evani Tavares de Lima – (UFSB)
3. Cássia Batista Domingos (UFBA)
4. Leonel Henckes (UFBA), Márcia Chiamulera (UFRS)
5. Cláudio Antônio Santos Da Silva (UFBA)

MESA 06
ETNOCENOLOGIA: A MÁSCARA E O CÔMICO
Coordenadora: ISA TRIGO
Participantes:
1. Vilma Campos dos Santos Leite (UFU)
2. Ana Carolina Fialho de Abreu (UFBA)
3. Sávio Farias (UFBA), Nykaelle Barros (UFRN)
4. Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos (UFAL)
5. Érica Lopes (UFBA), Leonardo Teles (UFBA).

12 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


CONVIDADOS E SUAS
CONFERÊNCIAS
(Por ordem de apresentação)

1. Conferência de GILBERTO ICLE (UFRGS):


Título: ETNOCENOLOGIA DA PRESENÇA: QUESTÕES PARA A PESQUISA!
Resumo: O que pode a Etnocenologia na Pesquisa das práticas performativas? Esta intervenção
procura localizar três “coisas” que a Etnocenologia pode fazer na prática da pesquisa, entre tantas
outras, especialmente naquelas que se debruçam sobre práticas performativas. A primeira delas diz
respeito à superação da ideia de “homem de gosto”, constituída ao longo da solidificação da mo-
dernidade no mundo euro-americano. A segunda trata da superação da hermenêutica como único
modo de pesquisar. A terceira se plasma na noção de verdade, superando a objetividade e discutin-
do as possibilidades daquilo que não se pode apreender. Essas três “coisas” são discutidas a partir
do pensamento de Agamben, Gumbrecht e Foucault. Enfim, trata-se de refletir sobre a potência
da Etnocenologia na pesquisa contemporânea.

Currículo Mínimo: Gilberto Icle é graduado em Artes Cênicas (1992), mestre em Educação (2000)
e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Realizou estágio de
pós-doutorado em Etnocenologia na Université Paris 8, na França. Atualmente é professor adjunto
no Departamento de Ensino e Currículo e professor permanente no Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professor colaborador no Progra-
ma de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Foi criador e editor da Revista
da Fundarte. Foi criador e coordenador dos cursos de graduação em Artes (teatro, dança, música,
artes visuais) da UERGS/FUNDARTE. É editor associado da Revista Educação & Realidade e
editor-chefe da Revista Brasileira de Estudos da Presença (www.seer.ufrgs.br/presenca). Tem expe-
riência na área de Artes (Teatro e Dança), com ênfase em Pedagogia Teatral e Pedagogia do Ator,
atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, educação, trabalho do ator, pedagogia teatral,
discurso, antropologia, performance, etnocenologia. Possui artigos e livros publicados sobre teatro
e educação e produção artística como ator e diretor de teatro. É coordenador do GETEPE-Gru-
po de estudos em educação, teatro e performance (www.ufrgs.br/getepe), no qual dirige e atua a
UTA-Usina do Trabalho do Ator (www.utateatro.com.br), grupo de criação e investigação teatral.
Foi coordenador do GT-Etnocenologia da ABRACE (2011-2013). É coordenador do Programa de
Pós-graduação em Educação da UFRGS no mandato 2015-2016. Bolsista de Produtividade nível
1D do CNPq.

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2. Conferência de MIGUEL SANTA BRÍGIDA (UFPA):
Título: QUEM SABE É QUEM FAZ, VIVE E SENTE: SABER inCORPORado, EXPE-
RIÊNCIA ENCARNADA E A SABEDORIA DOS PRATICANTES NA CONSTRUÇÃO
EPISTÊMICA DA ETNOCENOLOGIA.
Resumo: A indissociabilidade entre a teoria e a prática como instância fundante dos parâmetros
da etnocenologia, enquanto etnociência das artes e formas de espetáculos, revela no transcurso da
tríade metodológica trajeto-objeto-afeto novas imersões do corpo do artista-etno-pesquisador na
construçâo de métodos diferenciados dos fluxos paradigmáticos vigentes para a investigação das
práticas espetaculares brasileiras em sua polifonia e polissemia.

Currículo Mínimo: Miguel Santa Brígida é jornalista (Comunicação Social/UFPA-1984). Ator


e Diretor (CAL - Casa das Artes de Laranjeiras/RJ-1987.)Mestre (2003) e Doutor(2006) em Ar-
tes Cênicas (UFBA/PPGAC). Pós-Doutor em Artes Cênicas (UNIRIO/PPGAC-2010). Professor
permanente e Vice Coordenador do PPGArtes (ICA/UFPA). Professor da Escola de Teatro e
Dança da UFPA dos Cursos Técnicos e Graduação em Teatro e Dança. Líder do TAMBOR - Gru-
po de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia (CNPq-2008). Coordenador do GETNO - Grupo de
Estudos em Etnocenologia (UFPA). Consultor Ad Hoc (CAPES) em Etnocenologia. Coordena-
dor do Encontro Paraense de Etnocenologia (2012, 2014, 2016).

3. Conferência de FERNANDO ANTÔNIO MENCARELLI (UFMG):


Título: A PRATICA ARTISTICA DO PERFORMER E OS SABERES INDIGENAS:
APROXIMAÇÕES CRIATIVAS E EPISTEMOLOGICAS NA CENA BRASILEIRA
Resumo: Uma espécie de dinâmica virtuosa tem aproximado, no Brasil, práticas artísticas cênicas
e saberes indígenas, proporcionando trocas diretas ou contaminações conceituais e práticas entre
povos indígenas e artistas. No contexto das denominadas viradas epistemológica e ontológica,
o pensamento antropológico contemporâneo tem tido marcante influência na produção artísti-
ca mais recente no Brasil. A etnocenologia, em seu movimento epistemológico, contribui para a
compreensão dessa aproximação do conhecimento indígena, em sua centralidade no fazer, com as
práticas artísticas cênicas.

Currículo Mínimo :Fernando Mencarelli é Professor Titular da UFMG, pesquisador CNPq, pes-
quisador Fapemig (Bolsa do Programa do Pesquisador Mineiro) e diretor teatral. Doutor e mestre
pela Unicamp, na área de História Social da Cultura, com trabalhos sobre a história do teatro
brasileiro. Pós-Doutoramento em Teatro, no Laboratório ARIAS/CNRS-Universidade Sorbonne
Nouvelle/Paris III, França. Professor na graduação em Teatro e na pós-graduação em Artes da Es-
cola de Belas-Artes da UFMG. Membro do Comitê de Assessoramento do CNPq na área de Artes
(2013-2016). Diretor artístico associado do Centro Internacional de Teatro Ecum (SP). É membro
da equipe de organização da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

14 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


4. Conferência de JORGE DAS GRAÇAS VELOSO (UFG):
Título: PARADOXOS E PARADIGMAS: A ETNOCENOLOGIA, OS SABERES E SEUS
LÉXICOS.
Resumo: Trata-se este de uma reflexão sobre os processos de consolidação da Etnocenologia
como uma nova área de saberes sobre a cena na contemporaneidade. Desde sua criação, em coló-
quio realizado na Maison des Cultures du Monde, em Paris, em 1995, os pesquisadores ligados a
esta nova etnociência, como passou a ser definida, tem se deparado com um de seus maiores de-
safios: o estabelecimento de seu corpus de investigação, seu objeto de estudos. Já nos embates ini-
ciais, para a formulação de seus escritos de fundação, diversas foram as abordagens, o que resultou,
em vários momentos, em acaloradas disputas intelectuais. Para se chegar ao consenso epistemoló-
gico de que a disciplina iria estudar as Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Orga-
nizados – PCHEO, nomes como Jean Duvignaud, Cherif Khaznadar, Jean-Marie Pradier, Rafael
Mandressi e Armindo Bião, dentre outros, passaram pelo envolvimento em intermináveis, e muitas
vezes duras, discussões teóricas. Ao ponto de, com o passar do tempo, chegarmos à conclusão de
que a Etnocenologia teria pelos menos duas vertentes distintas: uma francesa, cujas referências
principais ficaram em Pradier, e outra, brasileira (inicialmente baiana), centralizada na figura de Ar-
mindo Bião, precocemente falecido em 2013. E mesmo a definição de Práticas e Comportamentos
Humanos Espetaculares Organizados deixou de ser algo que contemplava a todos nós. Assim, re-
fletindo sobre o corpus teórico metodológico da Etnocenologia, este trabalho se propõe também
a discutir a questão da utilização de um léxico próprio e referente a cada manifestação investigada,
como estratégia de reconhecimento da alteridade.

Currículo Mínimo: Graça Veloso (Jorge das Graças Veloso) é ator, diretor teatral e dramaturgo.
Com pós-doutorado em Arte e Cultura Visual (2014) pela Universidade Federal de Goiás – UFG,
tem doutorado (2005) e mestrado (2001) em Artes Cênicas, ambos pela Universidade Federal da
Bahia – UFBA. Graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UNICEUB –
1978) e Licenciatura em Artes Cênicas (Faculdade Dulcina, 2006), é docente no Departamento de
Artes Cênicas nos Programas de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes (VIS), Artes Cênicas (CEN)
e ProfArtes da Universidade de Brasília. Pesquisador em Etnocenologia, é autor de A Visita do
Divino; Benedito e, em parceria com Jove Benedito Veloso, Memória Recontada, todos pela The-
saurus Editora, e Bendito Divino Consagrado (no prelo). Contato: jorgegracaveloso@gmail.com.

5. Conferência de SUZANA COELHO MARTINS (UFBA):


Título: PESQUISAS EM ETNOCENOLOGIA E SUAS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS E
TEÓRICAS
Resumo: Esta comunicação tem por objetivo viabilizar os dados quantitativos de projetos de
pesquisa, em níveis de mestrado e doutorado, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
- PPGAC/ UFBA, os quais abordam objetos diversos e têm como suporte teórico a Etnoceno-
logia. Desde fundação do PPGAC, em 1997, que a linha de pesquisa “Matrizes Estéticas na Cena
Contemporânea” busca contemplar a diversidade de objetos de pesquisa que tenham como suporte
teórico os estudos da Etnocenologia. Esta comunicação traz um mapa atual das dissertações de
mestrado e teses de doutorados sob a orientação dos seguintes professores: Armindo de Carvalho
Bião, Eliene Benício, Suzana Martins, Daniela Amoroso e Érico Oliveira.

Currículo Mínimo: Suzana Martins. Graduada em Licenciatura em Dança (1973) e em Dançarino


Profissional (1972) pela Universidade Federal da Bahia. Cursos de pós-graduação: mestrado em

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 15


Dança na Educação - Temple University (1980) e doutorado em Dança na Educação - Temple Uni-
versity (1995). Suzana realizou dois estágios pós-doutoramento, como a seguir: no programa CO-
DARTS - Amsterdã, Holanda e na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica da
Lisboa, Portugal. Além de lecionar nos cursos de Licenciatura em Dança e bacharelado da Escola
de Dança, da UFBA, Suzana possui experiências artísticas/ profissionais diversas, tais como: foi
dançarina profissional dos seguintes grupos de dança da UFBA: Grupo de Dança Contemporâ-
nea (GDC), Odundê e Grupo de Dança Experimental e ainda dos grupos folclóricos Oldumaré
e Baiafro. Suzana possui experiência profissional na área de Artes, com ênfase em Corpo e Criati-
vidade, atuando principalmente nos seguintes temas: dança, cultura afro-brasileira, metodologias,
etnografias e outros. No biênio 2013/2015, ela foi Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFBA.

6. Conferência de ALEXANDRA GOUVÊA DUMAS (UFS):


Título: QUANDO O INSTANTE CÊNICO PERMANECE: PESQUISAS ETNOCENO-
LÓGICAS E REGISTROS AUDIOVISUAIS
Resumo: O desenvolvimento, o acesso e o manuseio de novos equipamentos que permitem o re-
gistro do instante espetacular, proporcionaram o arquivamento e este a possibilidade de apreciação
posterior ao momento da apreciação das cenas. A utilização de aparelhos que possibilitam me-
morizar o efêmero das apresentações espetaculares fez com que as condições de análise e estudos
fossem aprofundadas e ampliadas. Desta forma, o estreitamento entre o nascimento de disciplinas
acadêmicas voltadas para os estudos dos eventos espetaculares, a criação de espaços para realização
de pesquisas, a exploração de material audiovisual no processo de realização e até como produto
final da pesquisa pode ser vista como uma consequência desse contexto cultural e tecnológico.
Pretende-se nessa comunicação observar o desenvolvimento das tecnologias e a sua relação com
pesquisas voltadas para o campo da Etnocenologia.

Currículo Mínimo: Pós-Doutora pela Université Paris- Ouest Nanterre. Doutora em Artes Cê-
nicas/ Arts du Spectacle pela Universidade Federal da Bahia/ Université Paris Ouest- Nanterre.
Professora Adjunta do Núcleo de Teatro da Universidade Federal de Sergipe. Membro do grupo de
pesquisa ARDICO- UFS (Arte, Diversidade e Contemporaneidade) e associada ao CRILUS- Uni-
versité Paris Ouest (Centre de Recherches Interdisciplinaires de la Culture Lusophone).

7. Conferência de ROBERTO CUPPONE (Universidade de Gênova – Itália):


Título: MÁSCARA E CANOVACCIO: A HERANÇA DA COMMEDIA DELL’ARTE

8. Conferência de RENZO GUARDENTI (Universidade de Florença – Itália):


Título: COMEDIA DELL’ARTE NA FRANÇA E TEATRO DAS FEIRAS

9. Conferência de ROBERTO TESSARI (Universidade de Turim – Itália):


Título: O CHARLATÃO: UMA PONTE ENTRE O XAMÃ E O ATOR. ESPETÁCULOS
DE RUA E MEDICINA NA EUROPA DOS SÉCULOS XII AO XVIII.
Resumo: Conferência centrada no desenvolvimento do Ciarlatano/Charlatão, uma figura muito
conhecida das praças dos séculos XII à XVIII, a qual misturava nas suas vendas teatro, medicina
e poções de cura. Renegado pelos médicos e odiado pelas companhias profissionais de teatro, o
Ciarlatano se mostra uma figura emblemática, uma verdadeira ponte entre o médico, o curandeiro

16 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


e o ator. Suas aparições em praças da Europa eram espetáculos que prendiam a atenção do público
por meio de vários subterfúgios, incluindo a verdadeira medicina e o curandeirismo popular se
utilizando da atuação, muitas vezes, de atores comicos dell’arte.

Currículo Mínimo: Professor no Departamento de Línguas e Literatura Estrangeira e Culturas


Modernas da Universidade de Torino/ITA. Conferencista e dramaturgo, publicou muitos estudos
sobre a Commedia dell’Arte, dramaturgia e artes do espetáculo (concepção, iluminação, cenário)
do séc. XVIII, bem como sobre os principais protagonistas do teatro do séc. XX: de Pirandello à
Carmelo, de Luca a Tadeusz Kantor.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 17


18 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
MESAS DE COMUNICAÇÕES
MESA 01
ETNOCENOLOGIA: TEATRALIDADE E ESPETACULARIDADE
Coordenadora: EVANI TAVARES DE LIMA
Comunicações:
1. Ana Claudia Moraes de Carvalho (UFPA)

Título: ODO IYA! A CONSTRUÇÃO DO CORPO-CENA NO ESPAÇO SAGRA-


DO DO CANDOMBLÉ

Resumo: O presente artigo mostra um estudo sobre o corpo enquanto processo de cria-
ção artística, construído epistemológica e metodologicamente com base na Etnocenolo-
gia. Visa compreender o fazer ritual de uma comunidade de Candomblé Ketu, em Be-
nevides-Pará, pela alteridade. Por meio desse estudo, noções de corpo foram propostas:
corpo-templo, da relação com as entidades; corpo-cena, na construção do corpo da atriz;
e em sua derivação enquanto corpo-encostado, pela força cósmica das entidades, apa-
drinhando o trabalho artístico, resultado das pesquisas realizadas nos espaços sagrados
dos terreiros. Assim, a Metodologia Circular, maneira de pensar e organizar a pesquisa
etnocenológica pela vivência da atriz e de seu corpo na comunidade, contribui para o es-
tudo sobre Ritos Espetaculares, que abriga o desenvolvimento de noções etnocenológicas
construídas a partir da relação com o outro e de seu fazer enquanto prática sagrada.

Palavras-chave: Etnocenologia; corpo; processo de criação; alteridade.

Currículo Mínimo: Possui graduação em Pedagogia e pós-graduação em Psicopedagogia


Preventiva pela Universidade do Estado do Pará e pós-graduação em Estudos Contempo-
râneos do Corpo pela Universidade Federal do Pará. Atualmente é Coordenadora Pedagó-
gica e professora de Educação Inclusiva na EEEM Alexandre Zacharias de Assumpção/
SEDUC e mestra em Artes pelo Instituto Ciências das Artes/ICA- UFPA. Trabalhou
como instrutora de dança-teatro com a crianças do projeto de Iniciação Artística da Fun-
dação Curro Velho. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em teatro e dança. É
atriz e bailarina da Companhia Atores Contemporâneos e da Companhia Brasileira de
Cortejos. É membro do Grupo de Pesquisa em Etnocenologia e Carnaval - TAMBOR.
Atualmente trabalha como professora e orientadora convidada no PARFOR/UFPA, no
Curso de Graduação em Teatro e é a Primeira Porta-Bandeira da Escola de Samba Rosa
da Terra Firme. Contatos:aninhamoraesatriz@gmail.com

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 19


2. Keila Andréa Cardoso dos Santos – (UFPA)

Título: ESPETACULARIDADE NA FESTA DE SÃO COSME E SÃO DAMIÃO


NO TERREIRO DE MINA DOIS IRMÃOS

Resumo: A festa de São Cosme e São Damião, comemorada no dia 27 de setembro, em


Belém do Pará, acontece de acordo com preceitos provenientes de uma tradição afro-reli-
giosa específica – o Tam¬bor de Mina –, constituída de ritos, crenças e narrativas míticas,
que per¬meiam o imaginário dos adeptos e devotos dos santos gêmeos. O Tambor de
Mina é uma manifestação afro-indígena praticada no estado do Pará, na qual são cultu-
ados voduns, orixás, caboclos, encantados, nobres, reis, rai¬nhas e erês. Nesse universo
ritualístico, insere-se o centenário Terreiro de Mina Dois Irmãos, no qual pesquisou-se a
espetacularidade – noção epis¬temológica fundamental da Etnocenologia, ciência que es-
tuda as práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados (PCHEOS) – da
festa de São Cosme e São Damião e do comportamento de alguns erês. O presente texto
apresenta descrição e reflexão sobre diversos momentos da festa, suas personagens, ações
e interação, inclusive com o público (convidados).

Palavras-chave: São Cosme e São Damião, Festa, espetacularidade, Etnocenologia.

Currículo Mínimo: Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PP-


GArtes) da UFPA (2012); Especialista em Semiótica e Cultura Visual, pelo ICA/UFPA
(2008); Graduada em Letras pela UFPA (2005). Atriz, professora e diretora de teatro. Tra-
balha, desde 2011, na Fundação Curro Cultural do Pará, em Belém (PA), como técnica na
área de Gestão Cultural em Teatro. Integrante dos Grupos de Pesquisa GETNO (Grupo
de Estudos em Etnocenologia), coordenado pelo Prof. Dr. Miguel Santa Brígi¬da, e CI-
RANDA (Círculo Antropológico da Dança), coordenado pela Profª Drª Giselle Guilhon,
ambos da UFPA. Coordenadora e Diretora do GeMte – Grupo Experimental de Teatro.
Contatos: sodrach@hotmail.com

3. Danielle de Jesus de Souza Fonsêca (UFPA)

Título: OBSERVAÇÕES SOBRE A CAMINHADA BRINCANTE NA FESTA


DE SÃO MARÇAL EM SÃO LUÍS/MA

Resumo: O presente trabalho aborda questões relacionadas à Festa de São Marçal ou


Encontro de Bois do João Paulo, como também é conhecida a festa que acontece anual-
mente no dia 30 de junho, no bairro do João Paulo, em São Luís – MA. A festa acontece
em formato de cortejo, onde os brincantes se deslocam pela principal avenida do bairro.
O deslocamento, apesar de possuir um trajeto retilíneo, característico da configuração
festiva do bairro João Paulo, apresenta muitas curvas e passagens inventivas, poéticas e
espetaculares, mobilizando outras instâncias simbólicas que são ressaltadas neste estudo.
A partir das etnografias realizadas nos anos de 2013 a 2015, foi possível compreender
aspectos dos agenciamentos e afetações ocorridos na festa, principalmente no que diz
respeito à espetacularidade dos brincantes no momento da caminhada e das paisagens que
são criadas a partir desses deslocamentos.

Palavras-chave: Festa de São Marçal; Caminhada; Brincante; Espetacularidade.


20 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Currículo Mínimo: Mestre em Arte contemporânea pela Universidade de Brasília. Li-
cenciada em Educação Artística, hab. em Artes Cênicas pela Universidade Federal do
Maranhão. Professora de Arte da rede estadual de ensino. Integra o Grupo de Pesquisa
Drao Teatro da (In)Constância. Secretaria de Educação do Estado do Maranhão. daniel-
lejfonseca@yahoo.com.br

4. Flávia Cristina da Silva – (UFBA)

Título: ATRIZ-BRINCANTE - experimentações cênicas a partir da brincadeira


do Cavalo Marinho

Resumo: Este trabalho é um relato que sintetiza uma pesquisa de mestrado sobre um pro-
cesso de investigação artística, fundamentada nas experiências geradas pelo encontro com
a brincadeira do Cavalo Marinho da zona da mata norte de Pernambuco (OLIVEIRA,
2006). O objetivo foi identificar elementos presentes neste folguedo que pudessem contri-
buir para a minha investigação laboratorial em experimentações cênicas. Para isso, fez-se
necessário conhecer mais profundamente a brincadeira e o seu contexto numa intensa
troca entre pesquisadora, brincadores e pessoas que participam direta e indiretamente do
Cavalo Marinho. Paralelamente, dediquei-me a um processo laboratorial individual, que
tentou identificar, na interface entre teatro e Cavalo Marinho, algumas características que
estariam no elo entre a brincadeira e o jogo (HUIZINGA, 2010) no meu fazer artístico,
o que chamo de Atriz-Brincante.

Palavras-Chave: Cavalo Marinho; Processo de Criação; Atriz-Brincante.

Currículo Mínimo: Flávia Cristiana da Silva, também conhecida como Flávia Gaudên-
cio, possui experiência como atriz, professora de teatro e pesquisadora. É graduada em
Licenciatura em Teatro pela UFBA, especialista em Arte Educação: cultura brasileira e lin-
guagens artísticas contemporânea pela Escola de Belas Artes – UFBA e mestre em artes
cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênica – UFBA. Ênfase na área de
pesquisa em manifestações da cultura popular para treinamento do ator e criação cênica.
flaviagaldencio@hotmail.com

5. Valéria Fernanda Sousa Sales (UFPA)

Título: CORPO-FRETADO, CORPOS-FRETE, EQUIPE-FRETE: CORPOS


ESPETACULARES DO CORTEJO FÚNEBRE DO FRETE EM CURUÇÁ-PA.

Resumo: As relações de alteridade com o frete – ritual fúnebre da povoação São João do
Abade, em Curuçá-PA –, que identificou corpos espetaculares do cortejo (corpo-fretado,
corpos-frete, equipe-frete), bem como sua organização (Dona do frete) e nomenclatura
(frete) dada pelos participantes do mesmo, que entendem o ritual como “uma mudança
de casa” (casa-cemitério). A artista-pesquisadora-participante que envolveu um corpus de
conhecimento na busca por possíveis origens do frete (História de Curuçá, Funeral Bar-
roco, tradições fúnebres...), participou e integrou o ritual, identificou participantes fixos,
momentâneos, regras, simbologias... Experienciou o corpo exausto (para acompanhar e
registrar o fenômeno) e alterado pela ingestão de cachaça... São elementos presentes na
investigação que resultou na dissertação “Lágrima e cachaça: a espetacularidade do corte-
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 21
jo fúnebre do frete em São João do Abade, Curuçá-PA”, pesquisa realizada no Programa
de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/ICA/UFPA) sob a orientação da Drª Giselle
Guillhon e coorientação do Dr. Miguel Santa Brígida.

Palavras-chave: Corpos Espetaculares, Cortejo fúnebre, Curuçá-PA.

Currículo Mínimo: Mestra em Artes (PPGARTES/ICA/UFPA-2014), Especialista em


Língua Portuguesa (UFPA-2005), Aperfeiçoada em Historicidade Étnico-Racial na Ama-
zônia (SEDUC-PA/DEDIC/COPIR- 2010), Graduada em Letras (UFPA-2002), Técnica
em Teatro (ETDUFPA- 2001), Atriz, Professora da SEDUC-PA, Acadêmica imortal da
ACLAC (Academia Curuçaense de Letras, Artes e Ciências), Acadêmica correspondente
e Delegada Cultural da ASBAERJ (Academia Soberana Brasileira de Artes do Estado do
Rio de Janeiro), Integrante do TAMBOR (Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnoceno-
logia/ CNPq), do GETNO (Grupo de Estudos de Etnocenologia) e colaboradora do CI-
RANDA (Círculo Antropológico da Dança/ CNPq). Contatos: vsfsales79@gmail.com

MESA 02
ETNOCENOLOGIA: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS
Coordenadora: ELIENE BENÍCIO AMÂNCIO COSTA
Comunicações:
1. Lindolfo do Amaral – (UFBA)

Título: “RODA A GIRA, GIRA A RODA”: O IMBUAÇA EM CENA.

Resumo: A pesquisa de linguagem do Imbuaça, um dos mais antigos grupos de Teatro


de Rua do Brasil. A estética, a dramaturgia e seu elenco formado por atores negros que
utilizam a Cultura Popular como base para construção dos seus espetáculos.

Palavras-chaves: circularidade, literatura de cordel, culturas subalternas.

Currículo Mínimo: Lindolfo Amaral, integra o Grupo Imbuaça desde 1978, onde desen-
volve várias ações. É ator, já dirigiu alguns espetáculos, é também professor do curso de
teatro. Estudou em Havana(Cuba), na Escola Internacional de Teatro da América Latina
e Caribe (1993) e na Escola Internacional de Antropologia Teatral,com o Diretor Eugenio
Barba (1994). Ministrou oficinas de Teatro de Rua em quase todos os Estados brasileiros.
Dirigiu espetáculos fora do Imbuaça, dentre eles, “Uma canção de Guerreiro”(1995);
“Baldroca” (2004) e “Friztmac” (2014), para a Companhia Joana Gajuru (Maceió/AL).
“Opera do milho” (1997, 1998 e 1999), para a Secretaria de Estado da Cultura/SE. Co-
ordenou o Ponto de Cultura nosso palco é a rua, do Grupo Imbuaça (2005 a 2006); Foi
um dos responsáveis pela elaboração do Projeto de criação do curso de Licenciatura em
Teatro, da Universidade Federal de Sergipe (2006) Foi Diretor do Teatro Tobias Barreto,
no período de 2007 a 2010 Fez Mestrado (2005) e Doutorado(2013), no Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, tendo a Profa. Dra.
Eliene Benício Amâncio, como sua orientadora. Atualmente é bolsista do CNPQ e faz
Pós-doutorado no PPGAC/BA.

22 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


2. Cláudia Suely dos Anjos Palheta (UFPA)

Título: ETNOCENOLOGIA, UMA PROPOSTA MÉTODO-GRÁFICA-CALEI-


DOSCÓPICA

Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta metodológica para a disciplina etnoceno-
logia por meio da criação de um gráfico, feito a partir da composição tri-partida da palavra
etnocenologia e o significado constituinte das três composições do vocábulo na compre-
ensão da disciplina, tendo o caleidoscópio como referência construtiva para o referido
gráfico, onde o pesquisador valoriza teorias, referências, experiências pessoais, trajetos,
trajetórias e emoções em convocações, ações e reverberâncias reveladoras de sua pesqui-
sa. A proposta, aqui chamada de método gráfica caleidoscópica, objetiva proporcionar
ao pesquisador a possibilidade de que, além de realizador de sua pesquisa, seja também
o construtor de seus próprios métodos, deslocando-o de um lugar em que o mesmo se
vê diante da pesquisa para colocá-lo imerso na própria pesquisa, deixando-se cercar da
pesquisa por todos os lados, enxergando-a não somente como uma meta a ser alcançada
mas como uma experiência a ser vivida.

Palavras-chave: artes, artes cênicas, etnocenologia, metodologia de pesquisa em artes.

Currículo mínimo: Mestre em Artes PPGARTES/UFPA. Doutoranda do Programa de


Pós-graduação em História da UFPA. artescarnavalescas@gmail.com

3. Filipe Dias dos Santos Silva (UFBA)

Título: A ADVERBIALIZAÇÃO DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE DA ESPE-


TACULARIADE APONTADA NOS ESTUDOS DE ARMINDO BIÃO.

Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão acerca da espetacularidade, noção es-
tudada pela etnocenologia, perspectiva disciplinar que se dedica à apreciação das Práticas
e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO). Três categorias de
análise dos fenômenos espetaculares, propostas por Armindo Bião, são abordadas: subs-
tantivamente, adjetivamente e adverbialmente espetacular. Dedica-se maior atenção às
duas últimas categorias, as quais apresentam certa dificuldade de caracterização dos seus
respectivos objetos, visto que se referem às práticas em que o espetacular, apesar de ne-
cessário, não se constitui uma finalidade. Ressalta-se a importância do estudo da categoria
adverbial, não tratada pela vertente francesa da etnocenologia. Conclui-se que os estudos
de Armindo Bião apontam uma adverbialização das três categorias por ele propostas, o
que leva ao entendimento de que a espetacularidade pode ser atribuída às circunstâncias
que dão especificidade aos comportamentos humanos, a partir do momento em que estes
comportamentos se destinam ao olhar de um ou mais espectadores.

Palavras-chave: etnocenologia, espetacularidade, adjetivamente espetacular, adverbial-


mente espetacular.

Currículo Mínimo: Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Ar-


tes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Contatos: dss.filipe@
gmail.com
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 23
4. Rafael Cabral (UFPA)

Título: ARTISTA-ETNO-PESQUISADOR E SUAS CONTRIBUIÇÕES TEO-


RICO-METODOLOGICAS PARA O CORPO EM CAMPO.

Resumo: As produções teórico-prática acerca da etnocenologia indígena no Estado do


Pará – Brasil, fortalecem e valorizam as diferentes formas de comunicação corporal desta
etnia e seus atravessamentos que reverberam nas produções acadêmicas. Neste sentido o
corpo do artista da cena torna-se indissociável à produção acadêmico e artística em seus
afetos e desafetos constituintes na vida. Esta abordagem possui resultados teórico-meto-
dológicas para o artista-etno-pesquisador em campo e seu envolvimento do corpo metodo-
logicamente ao estado da arte mergulhado na cosmovisão indígena da etnia mebengokre.

Palavras-chave: Artista-Etno-Pesquisador; Estado da Arte; Etnocenologia; Etnia Me-


bengokre

Currículo Mínimo: Rafael Cabral é graduado em Teatro pela Universidade Federal do


Pará. Especialista em Filosofia da Educação – UFPA. Mestrando em Artes – UFPA. Filia-
do ao Grupo de Pesquisa TAMBOR – UFPA.

MESA 03
ETNOCENOLOGIA E O ESPAÇO URBANO
Coordenador: FABIO DAL GALLO
Comunicações:
1. Iara Sydenstricker (UFRB)

Título: REVITALIZAÇÃO E DESVITALIZAÇÃO DO CORPO E DA CIDADE:


O CASO DO RIO VERMELHO

Resumo: Baseada no slogan “Salvador, primeira capital do país”, a atual gestão do mu-
nicípio, capital do Estado da Bahia, busca inseri-lo numa economia global especulativa
a serviço de processos de gentrificação, voltados para seu consumo turístico e o atendi-
mento do setor da construção civil. Nesse contexto, o artigo versa sobre o projeto “Nova
orla”, com ênfase num dos mais boêmios e plurais bairros de Salvador, o Rio Vermelho.
Inaugurado em janeiro último, o projeto pretende impor uma nova maneira de se estar
no espaço, conformada pela expulsão de ambulantes e sua substituição por quiosques
pré-moldados, pelos desenhos de calçadas, pistas automotivas e praças. Serão analisadas
as relações entre corpo e espaço a partir da nova estética urbanística do local, confron-
tando processos de resistência, constrangimento, aprisionamento e subversão do corpo
e da cidade antes e depois das obras. Em síntese, analisa-se a relação comportamento e
espacialidade.

Palavras-chave: cidade; corpo; gentrificação; cidadania.

Currículo Mínimo: Doutora em Artes Cênicas e pós-doutora em Letras (UFBA). Coor-


dena a linha de pesquisa “Cidades capitais: dramaturgias, encen(ações) e escrituras”, no
âmbito do Grupo de Pesquisa “Caminhos da criação e espaço semiótico: cenas e escritu-
ras” (CECULT/UFRB). Contatos: iarasyd.audiovisual@gmail.com
24 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
2. Alda Fátima de Souza (UESB)

Título: PETRÔ: OS CAMINHOS DO SALVADOR EM SALVADOR

Resumo: Esta comunicação parte da análise do processo de montagem, bem como a


apresentação do espetáculo “Paixão em Salvador” ocorrida em 2005, dirigida pelo ator
e professor Carlos Petrovich. Os dados e informações foram colhidos à época durante a
disciplina TIO – Trabalho Individual Orientado, ministrada pelo professor Carlos Petro-
vich e concluída com o professor Sérgio Farias, dentro do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFBA. Durante o processo de encenação foi possível perceber os
caminhos epistemológicos trilhados pelo diretor, conhecido como Petrô, que o condu-
ziram a um percurso histórico de massacre das minorias sociais (negros e índios), assim
evidenciados na concepção teatral que reúne o sincretismo religioso na Bahia, através da
história do Cristo Ressuscitado. A análise tem como referencia, ainda, a observação direta
das reações do público que frequentou o Dique do Tororó no período das apresentações
do espetáculo de 20 a 24 de março de 2005.

Palavras- Chave: Encenação – Sincretismo – Religião

Currículo Mínimo: Alda Fátima de Souza é professora do fluxo de História do Teatro


e coordenadora do Colegiado de Licenciatura em Teatro da na Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia. Coordenadora do Programa de Extensão Artes Circenses em Movi-
mento da UESB. Possui Licenciatura em Teatro pela Escola de Teatro da UFBA, mes-
trado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
É membro e presidente do Colegiado Setorial de Circo do Estado da Bahia e membro
suplente do Conselho Estadual de Cultura. Contatos: aldasouza.laborda@gmail.com.

3. Carolina Mahecha Quintero – (UFBA)

Título: ESTÉTICAS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA PARA A FORMAÇÃO


DE PÚBLICOS NAS CIDADES DE SALVADOR E BOGOTÁ.

Resumo: Para abranger a temática da estética da dança contemporânea desde uma pers-
pectiva sociocultural, nesta pesquisa realizou-se uma análise comparativa dos discursos
estéticos de companhias ativas nesta linguagem artística das cidades de Salvador (Bahia) e
Bogotá (Colômbia). Por tanto, para se aproximar à realidade destes contextos locais como
construtora de um habitus neste gênero da dança estudaram-se as agrupações soteropo-
litanas “Companhia Jorge Silva”, “Companhia de Dança Corpo Sísmico” e “Companhia
Liga do Corpo”, em comparação com as companhias bogotanas “Cortocinesis Danza
Contemporânea”, “Colectivo Carretel Danza” e “Tercer Piso Danza”. Assim a partir de
categorias como origem dos grupos, métodos de ensino e técnicas da dança, conceito de
corpo, percepção do espaço-tempo e conceitos de composição coreográfica estabelece-
ram-se diferenças e semelhanças na maneira como estes elementos são articulados por
cada grupo, para gerar uma relação com o espetador que permite a formação da plateia
desde a própria proposta artística.

Palavras-chave: Estética, dança contemporânea, habitus, plateia.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 25


Currículo Mínimo: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia. Línea de pesquisa “Dramaturgia, História e Recepção”.
Orientadora: Profa. Dra. Antônia Pereira Bezerra. Bolsista da Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Artes Cénicas, com ênfase em
Dança Contemporânea, pela Universidade do Distrito Francisco José de Caldas (2011).
Cientista Política da Universidade Nacional de Colômbia sede Bogotá (2004). Contatos:
carolina_mahechaquintero@yahoo.es

4. Sérgio dos Santos Reis (UFBA), Osvanilton de Jesus Conceição (UFBA)

Título: UMA EXPERIÊNCIA COM TEATRO NAS RUAS DE PERI PERI

Resumo: Apresentamos uma reflexão sobre o ensino de Teatro no contexto não formal,
a partir da leitura de alguns escritos, como Bertolt Brecht, Gerd Bornheim, Henry Giroux,
Paulo Freire e outros autores, sobretudo quanto às ações do intelectual transformador.
Tomando por base as histórias de vida dos participantes das oficinas de teatro realizadas
como parte prática da pesquisa, trazemos contribuições para a discussão entre a validade
dos saberes e as relações entre conhecimentos e saberes de senso comum, científicos e
escolares. Traz também o relato das oficinas de teatro promovida pelo coletivo Artitude
de Rua que desde 2010 vem sendo realizada com os moradores da Nova Constituinte
culminando com mostras cênica na Trezena de Santo António de Dona Nice no bairro de
Periperi, subúrbio ferroviário, da periferia de Salvador, numa proposta de trabalhar com
não-ator a oficina conta com técnica de interpretação, trabalho de corpo e voz, improvi-
sações, estudo de diferentes estéticas e montagem cênica com finalidade de por meio da
Arte-Educação proporcional formação integral do indivíduo e sua sensibilização.

Palavras-Chave: Teatro, Cultura, Ensino, Popular.

Currículo Mínimo: Sérgio Santos Reis – Aluno especial do PPGA/UFBA. Licenciado


em Teatro pela Universidade Federal da Bahia. Contatos: sergiolumumba@gmail.com
Osvanilton de Jesus Conceição – Mestre pelo Instituto de Artes da UNICAMP e Doutor
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA. Contatos:osvaniltonconcei-
cao@yahoo.com.br

MESA 04
ETNOCENOLOGIA: ESPETACULARIDADE DOS OBJETOS CÊNICOS
Coordenador: LINDOLFO DO AMARAL
Comunicações:
1. Otávia Feio Castro (UFPA)

Título: GUARDA-ROUPA ENCANTADO: ESPETACULARIDADE DAS ROU-


PAS DE CABOCA DO TERREIRO ESTANDARTE DE REI SEBASTIÃO, OU-
TEIRO, PARÁ.

Resumo: Além de contribuir para os estudos Etnocenológicos na Amazônia, acredito


que esta pesquisa contribui para que nós Figurinistas escutemos o chamado da Etnoceno-
logia, o de estar junto com o fenômeno, o de ir e viver como espectador o contexto de uso
das roupas, para não incorrer em desrespeitos ao sagrado. Partindo de costuras afetuais
26 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
entre trajeto e objeto – em andamento no Ppgartes da Ufpa – estuda a espetacularidade
das roupas das entidades Herondina e Maria Légua, do panteão da religião afro-brasileira
Tambor de Mina. Utilizadas pela mãe-de-santo e zeladora do Terreiro Estandarte de Rei
Sebastião – localizado na Ilha de Outeiro, no Pará – nos dias das festas para essas entida-
des denominadas Cabocas, as roupas contribuem para a Espetacularidade, pois há toda
uma organização prévia, inclusive em relação a escolha do que vestir nesses dias especiais
para os que estão dando passagem às suas entidades.

Palavras-chave: Roupa de Caboca. Espetacularidade. Tambor de Mina. Etnocenologia.

Currículo Resumido: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Univer-


sidade Federal do Pará, com bolsa CAPES. Participante do grupo de pesquisa TAMBOR
- Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia, da UFPA. Figurinista formada na
ETDUFPA. Contatos: otavia.feio@gmail.com

2. Agamenon Bonfim de Abreu (UFBA)

Título: PROCESSOS CRIATIVOS: UMA ABORDAGEM NA GÊNESE DA


CRIAÇÃO DE FIGURINISTAS DE TEATRO NA BAHIA ATUAL.

Resumo: O figurino de teatro tem um papel relevante no fazer teatral e exige uma elabo-
ração que não se restringe unicamente em vestir o intérprete. Esta pesquisa, em andamen-
to, visa entender os percursos criativos e vivências de quem faz figurinos em Salvador/
BA. Através dos caminhos sinalizados pelas autoras Cecília Sales, Sônia Rangel e Fayga
Ostrower, sobre processos de criação, bem como de entrevistas já feitas com cinco figu-
rinistas baianos, procuro entender melhor os processos não só para uma melhor comuni-
cação dos fazeres, como para o suprimento de registros dos fazedores das artes cênicas na
Bahia. Das vivências em realizações de peças, balés e shows musicais, durante dezesseis
anos de trabalho no Teatro Castro Alves, percebi a complexidade e extensão do assunto
que nesta arte necessita ser pesquisado. Observo como o figurinista trabalha, enfocando
a gênese do seu processo criativo, e entendo melhor o estado da arte e suas diferentes
facetas.

Palavras-chave: Processos; figurino; criação; etnocenologia

Currículo Mínimo: Agamenon Bomfim de Abreu, de nome artístico Agamenon de


Abreu é Bacharel em Desenho Industrial, com Habiitação em Programação Visual pela
Universidade Estadual da Bahia e Pós-Graduação em Fundamentos do Ensino da Arte
pelo Faculdade de Arte do Paraná. É ator, cenógrafo, figurinista e membro fundado do
grupo de teatro Viapalco, há dezoito anos. Foi coordenador do Centro Técnico do Teatro
Castro Alves durante dezesseis anos e atualmente é mestrando do PPGAC da UFBA.
Contatos: agamenonabreu@gmail.com

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 27


3. Cauê Rocha Santana Souza (UFBA)

Título: TEATRO ÓPTICO: UM ESTUDO DA ETNOCENOLOGIA VOLTADA


PARA OBJETOS ÓPTICOS.

Resumo: Sabe-se que no sec. XVIII e XIX, artistas populares, conhecidos como lanter-
nistas viajantes, carregavam consigo a lanterna mágica, ferramenta usada para contação
de histórias e fantasmagorias. Criadas para uso do objeto que por sua vez tinha a simples
capacidade de projetar. A performance de um lanternista viajante, se modifica no se rela-
cionar com tecnologias, dramaturgia e cinema. É proposto aqui uma nova relação entre
a dramaturgia com a performance e esses objetos ópticos que antecedem o cinema. A
possibilidade de interatividade na performance com a lanterna mágica, em fruição com
histórias e corpo das encenações presentes na cultura popular. A pesquisa irá na direção
de histórias e tradições da cultura popular brasileira, tendo como metodologia os ensina-
mentos da etnocenologia, para aproximação com o teatro do nego fugido, as celebrações
do zapiapunga e histórias indígenas, para uma montagem brasileira da performance de um
lanternista viajante contemporâneo.

Palavras Chaves: lanterna Mágica, cultura popular, interatividade etnocenologia

Currículo resumido: Aluno especial PPGAC. Contatos: cauerochasantana@gmail.com

4. Marília Galvão Costa (UFBA)

Título: Interfaces com o Grupo Antagon: Influências da Corporalidade em Cena


no Baixo Sul da Bahia.

Resumo: A pesquisa procura estudar a relação entre o corpo e a convivência cultural


colaborativa a partir do intercâmbio artístico entre o Grupo Antagon e a comunidade de
Camamu do Baixo Sul na Bahia. Verificando o olhar da cultura local, no intuito de enten-
der a corporalidade nos processos criativos quando aplicados na encenação do espetáculo
Porto dos Sonhos no projeto Escuna Criativa do Grupo alemão Antagon. Seguindo o
estudo no processo de construção e composição da corporalidade do grupo Antagon
e da troca com a comunidade de Camamu. Num espetáculo que trata de um espaço co-
nhecido pelos aventureiros como ponto de encontro entre a esperança e a igualdade, traz
a imagem de um Barco que surge e com ele vestígios de um passado em diálogo com a
esperança de um futuro melhor.

Palavras-chave: Corporalidade; Convivência; Intercâmbio; Cultura.

Currículo Mínimo: Licenciada em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Aluna


especial na Disciplina Saltimbancos Urbanos pelo Programa de Pós Graduação em Artes
Cênicas. Contatos: senhoradosventos@gmail.com

28 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


MESA 05
ETNOCENOLOGIA: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
Coordenador: SÉRGIO COELHO BORGES FARIAS
Comunicações:
1. Ramon Santana de Aguiar (UEMG), José Heleno Ferreira (UEMG)

Título: O REINADO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM CARMO DO


CAJURU, MG: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Resumo: As festas do Reinado/Congado são práticas culturais centenárias presentes em


Minas Gerais. Caracterizam-se por forte apelo comunitário e religioso, mantendo identi-
dade predominantemente afro-brasileira. São grupos comunitários que, através dos feste-
jos estabelecem laços culturais e de pertencimento. De caráter intergeracional, a memória
oral torna-se o principal instrumento de perpetuação dessa prática cultural com fortes
elementos cênicos: a musicalidade, a indumentária, o caráter ritualístico, a dramaturgia
cantada. Em julho de 2015, os proponentes desta comunicação iniciaram trabalho de
pesquisa junto ao Reinado citado com o objetivo de conhecimento, registro e análise dos
festejos anuais sob a ótica cênico ritualística e relações com a comunidade. Essa primeira
fase está concluída e é o objeto da comunicação. Em 2016 o projeto continua objetivando
o registro sonoro e escrito dos cantos entoados e entrevistas com os capitães das guardas
de congado envolvidas para aprofundamento da pesquisa no que tange às origens e remi-
niscências dos festejos.

Palavras-chave: Reinado, tradição, afro descendência.

Currículo Mínimo: Ramon Santana de Aguiar: Pedagogo. Doutor em Artes Cênicas


(UNIRIO-2011). Professor UEMG. Pesquisador do Grupo de Estudos do Espaço Teatral
e Memória Urbana (UNIRIO), CEMUD (UEMG), IELT (Lisboa) e associado ABRACE.
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) - ramon.aguiar@uemg.br
José Heleno Ferreira: Filósofo. Mestre em Mídia e Conhecimento (UFSC-2001). Profes-
sor UEMG. Pesquisador CEMUD (UEMG). Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) - jose.ferreira@uemg.br

2. Evani Tavares de Lima – (UFSB)

Título: PROCESSOS INVESTIGATIVOS E CRIAÇÃO A PARTIR DE LEGADO


CULTURAL NEGRO DESCENDENTES - RELATO DE EXPERIÊNCIA.

Resumo: Nesta Comunicação, proponho apresentar um pequeno relato das práticas que
venho desenvolvendo, ao longo dos meus estudos, em torno de elementos da perfor-
mance artística negra, desde o mestrado, com a proposição da capoeira angola como
treinamento para o ator, passando pelo pos-doc, durante o qual foram desenvolvidas e
aplicadas algumas ideias, e pelo exercício da docência, na Universidade Federal do Sul da
Bahia, onde também venho realizando trabalhos nessa mesma perspectiva. Será, portanto,
uma fala ilustrada por exemplos de toda ordem, inclusive, em performance.

Palavras chaves: performance; performance artística negra; processo investigativo.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 29


Currículo mínimo: Evani Tavares é atriz, formada pela Escola de Teatro da UFBA
(1993), tendo atuado com diretores como Cacá Carvalho, Francisco Medeiros, Gabriel
Vilela e Ewald Hackler Desde 2015 - Professora Adjunta em Artes do Instituto de Hu-
manidades, Artes e Ciências- IHAC (UFSB). Desde 2015 - Coordenadora (pró-tempore)
do curso de Licenciatura em Artes da UFSB, IHAC/Itabuna. Pós-doutorado em Artes
Cênicas PPGAC/UFBA/CAPES (2011-14). Projeto: Contribuições da Performance Ne-
gra para o Teatro Brasileiro. Doutorado em Artes pela Universidade Estadual de Campi-
nas (Unicamp) – 2010. Tese: Um Olhar sobre o Teatro Negro do Teatro Experimental
do Negro e do Bando de Teatro Olodum. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia, (UFBA) - 2002. Dissertação: Capoeira angola como treinamento para o
ator (2002). Prêmios: Mobilidade Artística e Cultural (SECULT-BA, 2012), FULBRIGHT
(University of Michigan - 2007-08); Ford Foundation-IFP (2006-09). Cursos criados es-
tão: Poética negra em Cena (teórico-prático); Pesquisa em elementos da performance
artística negra (teórico-prático) e Teatro Negro como uma experiência poscolonial. Con-
tato:evanilima@ufsb.edu.br e evanitavares@yahoo.com.br

3. Cássia Batista Domingos (UFBA)

Títulos: RITUAL, FESTA E NAÇÃO: ALGUMAS ACEPÇÕES CHAVE PARA


PENSAR O MARACATU-NAÇÃO

Resumo: Esta comunicação se dedica a esclarecer algumas noções caras as estudos da et-
nocenologia, tais como ritual e festa, além da acepção de nação, importante para compre-
ensão das práticas do maracatu-nação nesse contexto epistemológico. Portanto, é objetivo
desse texto relacionar essas noções advindas de diversas áreas do saber a uma tradição
cultural espetacular que acontece, com grande expressividade, nas ruas da cidade do Re-
cife. O maracatu-nação é fonte de inspiração para o trabalho cênico desenvolvido pelo
grupo Maracatu Nação Pernambuco, que foi objeto da minha dissertação de mestrado,
concluído neste ano corrente. Dessa forma, faz-se relevante pensar a referida tradição
cultural como ritual, como festa e como nação, considerando que estas qualidades estão
imbricadas na vida, em curso, do maracatu-nação, assim como que elas se transformam
no corpo desse objeto ao mesmo passo que o espaço-tempo se transforma.

Palavras-chave: ritual, festa, nação, maracatu-nação.

Currículo Mínimo: Doutoranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em


Artes Cênicas (PPGAC)/UFBA. Bolsista CAPES. Contatos:cadomingos3@hotmail.com

4. Leonel Henckes (UFBA), Márcia Chiamulera (UFRS)

Título: A PRÁTICA DA TENSEGRIDADE COMO TREINAMENTO E MA-


TRIZ DE CRIAÇÃO NO GRUPO DE PESQUISA EM TEATRO VAGABUN-
DOS DO INFINITO

Resumo: Abordamos neste trabalho a experiência prática de utilização da Tensegrida-


de (prática de preparação xamânica) no treinamento do ator no Grupo de Pesquisa em
Teatro Vagabundos do Infinito entre 2005 e 2008. A Tensegridade se fundamenta no
princípio-base de relação entre forças contrárias, operando através de elementos de ten-
30 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
são contínua e elementos de compressão descontínua, com vistas ao máximo de eficiên-
cia e economia. Os “Passes Mágicos”, uma das matrizes práticas da Tensegridade, são
sequências de movimentos que operam através do princípio de tensão e relaxamento.
Quando utilizados no treinamento para o Ator, possibilitam tanto a preparação corporal
- centrando-se nos processos de sinestesia e ampliação da percepção - quanto a criação
cênica, através da transformação das qualidades do movimento. Intentamos discutir neste
trabalho, portanto, uma via de abordagem sobre o treinamento do ator em um contexto
de investigação cênica contemporânea.

Palavras-chave: Tensegridade, Treinamento do Ator, Preparação Corporal, Etnocenologia

Currículo Mínimo: Leonel Henckes - Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Fe-
deral da Bahia (2015) com bolsa CAPES. Realizou estágio doutoral na Freie Universi-
tät Berlin (2013) com bolsa PDSE/CAPES. Bacharel em Artes Cênicas (2007/UFSM).
Membro do Grupo de Pesquisa Pé na Cena – Poéticas de Atuação e Encenação (UFBA).
Atualmente é ator e produtor na LH Produções Artísticas ME e na Melanina Acentua-
da Produções ME. Grupo de Pesquisa Pé na Cena - Poéticas de Atuação e Encenação
(UFBA). Contatos: leohenckes@gmail.com

Márcia Chiamulera - Doutora em Cinema, Música e Teatro pela Universidade de Bolog-


na (2014/2) com bolsa de estudos resultante do programa europeu Monesia; mestre em
Ciências Sociais (2010/UFSM) e bacharel em Artes Cênicas (2007/UFSM). Atualmente
é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - UFRGS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Contatos: marciachiamu@gmail.com

5. Cláudio Antônio Santos Da Silva (UFBA)

Título: O GUERREIRO ALAGOANO: CORPO E PEDAGOGIA MULTIRRE-


FERENCIAL.

Resumo: Pesquisa de Mestrado com encenação que revela as matrizes estéticas do Guer-
reiro de Alagoas e seus Entremeios. Descreve o processo de criação em Dança no forma-
to de Solos Performances com os Entremeios, estruturados a partir de minha trajetória,
como pedagogo e dançarino, num fazer artístico fundamentado na percepção sobre o
corpo, a cena e sua pedagogia. Os Entremeios estão localizados no texto do professor
Armindo Bião (2009), transversalizados nesse estudo por outros saberes, evidenciando o
caráter da memória, da tradição e da contemporaneidade. Destaco a Etnocenologia (Bião,
Pradier e Duvingnaud) e seu caráter transdisciplinar, permitindo aproximações conceituais
na perspectiva Multirreferencial do objeto (Ardoino, Barbier, Coulon, Lapassade, Borba e
Macedo). A pesquisa científica e artística perpassa a Etnopesquisa Crítica Multirreferencial
(Macedo), relacionados aos conceitos de bricolagem e autorização, da Filosofia Cínica (Di-
ógenes, Cazé) e a Dança Pessoal (Cesaroli), eixos norteadores deste processo de pesquisa.

Palavras-Chave: Guerreiro Alagoano. Etnocenologia. Multirreferencialidade. Etnopes-


quisa
Currículo Mínimo: Aluno especial do PPGAC- UFBA. Contatos:claudiokyo@yahoo.
com.br; ciacinicadanca@gmail.com
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 31
MESA 06
ETNOCENOLOGIA: A MÁSCARA E O CÔMICO
Coordenador: ISA TRIGO
Comunicações:
1. Vilma Campos dos Santos Leite (UFU)

Título: MÁSCARAS EM PAUCARTAMBO (PERU) - PRIMEIROS DIÁLOGOS

Resumo: Esta comunicação aborda especificamente estudos bibliográficos e iconográfi-


cos sobre as máscaras que são utilizadas durante a Festa de Nossa Senhora Del Carmem
comemorada de 15 a 19 de julho na cidade de Paucartambo - Peru. A reflexão está inse-
rida no contexto de uma pesquisa de pós-doutoramento em curso intitulada Brincantes
mascarados da cultura popular: possibilidades para a formação do artista cênico na con-
temporaneidade e subsidia a próxima fase da investigação que consistirá em uma imersão
em campo durante o mês de julho. Nesse processo tem sido possível fazer algumas asso-
ciações dessas máscaras com outras máscaras de tradição teatral como as provenientes da
Commedia dell’Arte, aliando oficinas práticas de utilização das mesmas. Um dos maiores
desafios tem sido como utilizar as máscaras latinas em contexto diverso da cosmogonia
andina, com uma apropriação que possa considerar a alteridade presente em cada cultura.

Palavras chave: Cultura Popular, Máscaras, Formação do Artista Cênico.

Currículo Mínimo: Doutora em História INHIS-UFU; Mestre em Artes ECA-USP. Pa-


lhaça atuante no Projeto Pediatras do Riso. Bolsa de Pós doutorado PNPD/CAPES sob
a supervisão da Profa. Dra Suzi Frankl Sperber; IA-UNICAMP. Professora do curso de
Graduação em Teatro, Mestrado em Artes Cênicas e Mestrado Profissional em Artes.
Participante do Grupo de Pesquisa GEAC, palhaça no Pediatras do Riso (Extensão Ufu)
e NUPEPA/TRUPE DE TRUÕES. IARTE-UFU.
Contatos: leitevilma2008@hotmail.com

2. Ana Carolina Fialho de Abreu (UFBA)

Título: HÔXWA À LUZ DA ETNOCENOLOGIA: A PRÁTICA CÔMICA


KRAHÔ

Resumo: Fruto da pesquisa de mestrado “Hôxwa à luz da etnocenologia: a prática cômi-


ca Krahô”, o artigo apresenta o hôxwa, cômico ritual Krahô que se localiza no estado do
Tocantins, Brasil, sob a perspectiva da etnocenologia. Para tanto, foi realizado um traba-
lho de campo e uma etnografia do ritual Pàrti ou Jàt jô pĩ (Festa da Batata), onde o hôxwa
é “protagonista”, observada sua “atuação” no dia a dia da comunidade e a apresentação
da “brincadeira” no I Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases. A revisão da
literatura se baseia em conceitos e teorias das Artes e da Antropologia. Aparecem em des-
taque autores e mestres indígenas como: Ismael Ahpracti Krahô, Getúlio Cruacraj Krahô,
Pedro Peño Krahô, Melatti, Lima, Lévi-Strauss, Bião, Pradier e Oliveira. Por fim, este pro-
cesso prático e reflexivo demonstra que o hôxwa, pertence e entrecruza os três subgrupos
da etnocenologia, sendo, portanto, um fenômeno substantivo, adjetivo e adverbial.

Palavras-chave: Comicidade; Hôxwa; Ritual; Etnocenologia.
32 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Currículo Mínimo: Palhaça e diretora teatral. Doutoranda e Mestra em Artes Cênicas,
pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia -
UFBA. Bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral e Interpretação
pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel of Clowning pelo Nouveau Clown
Institute (NCI), Espanha. Faz parte do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão
em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT). anacarolinaabreu1886@
gamail.com

3. Sávio Farias (UFBA), Nykaelle Barros (UFRN)

Título: DO BUFÃO E SEUS TIPOS: TRAJETÓRIA E EXPERIÊNCIA EM


ORAÇÃO DO SANTO GOZO

Resumo: Este trabalho objetiva refletir sobre a figura do bufão e seus tipos como abor-
dagem prática de atuação a partir do experimento cênico intitulado Oração do Santo
Gozo, do grupo Bufões de Olavo. Tal experimento é um desdobramento artístico criado
coletivamente a partir de estudos teóricos e práticos acerca da figura do bufão, que vem
sendo desenvolvidos nos processos criativos do grupo. Opta-se, enquanto metodologia,
pela análise do trajeto artístico de membros do grupo, buscando entender de que forma a
criação desses tipos se interseccionam com as vivências/experiências dos seus criadores.
Os tipos de bufão marcam sujeitos sociais excluídos pela regra, norma e padrões vigentes,
como mendigos e prostitutas. Tais tipos oferecem aos artistas-bufões a possibilidade de
explorar cenicamente o espaço social de abjeção que tais tipos ocupam, podendo ser rela-
cionadas, por fim, às experiências vividas pelos integrantes do grupo.

Palavras-chave: bufão; processo criativo; experiência; atuação cênica.

Currículo Mínimo: Sávio Farias - Mestrando em Artes Cênicas no Programa de Pós-


-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFBA. Integrante do Grupo de Pesquisa
Teatro: Tradição e Contemporaneidade (cadastrado no CNPq), na linha de pesquisa Cena
e Contágio e do grupo artístico Bufões de Olavo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Contatos: savioffarias@gmail.com
Nykaelle Barros - Mestranda em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas (PPGARC) da UFRN. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatro: Tradição e Con-
temporaneidade (cadastrado no CNPq), na linha de pesquisa Cena e Contágio e do grupo
artístico Bufões de Olavo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES. BarrosUniversidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Contatos:. nykabarros@hotmail.com

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 33


4. Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos (UFAL)

Título: TRICKSTER E AS DUPLAS CÔMICAS CÊNICAS

Resumo: Esta comunicação aborda especificamente o percurso transcorrido na pesquisa


da minha tese defendida recentemente: O Dueto Cômico: da Commedia dell’Arte ao
Cavalo Marinho, com estudos bibliográficos e iconográficos sobre o conceito do mito da
figura do trickster e as máscaras que formam as duplas de zanni da commedia, passando
pelas duplas de palhaços circenses e da cultura popular brasileira. A identificação ocorre
no âmbito das funções ritualísticas, festiva e religiosa, cada qual com sua peculiaridade,
partindo para o foco principal de análise que é o estudo dos arquétipos cômicos populares
aqui estudados na sua presença em duplas: uso da interpretação teatral; momentos dança-
dos; constante presença musical e ritmada; uso de máscara (no rosto ou corporal); caracte-
rizações corporais; transmissão de forma hereditária; preparação física; o nível energético
constante na apresentação; uso da técnica da improvisação (tanto a criada e estudada,
quanto a surgida do imprevisto e a soggetto), entre outros temas.

Palavras chave: Duplas Cômicas, Cultura Popular, Máscaras, Formação do Artista Cê-
nico.

Currículo Mínimo: Doutor e mestre em Teatro pelo IA-UNESP. Professor do curso


de Graduação em Teatro Licenciatura, Coordenador de Assuntos Culturais e Diretor do
Espaço Cultural da UFAL. Contatos: ivanildopiccoli@hotmail.com

5. Érica Lopes (UFBA), Leonardo Teles (UFBA).

Título: CONTANDO SHAKESPEARE – DO XVI PARA O XXI

Resumo: O processo de adaptação de três peças de Shakespeare – o popular do século


XVI – para o popular no contexto atual, considerando, em especial, a tradição oral e a
cultura nordestina, é o foco de estudo deste artigo, o qual analisa o trabalho desenvolvido
pelo Grupo Boralí de Teatro com os textos de Hamlet, Noite de Reis e Muito Barulho por
Nada, que resultaram num espetáculo infanto-juvenil com primeira temporada realizada
em fevereiro de 2016 em Salvador/BA.

Palavras-chave: Shakespeare – teatro popular – adaptação.

Currículo Mínimo: Érica Lopes – Aluna especial do PPGAC/UFBA. Licenciada em Te-


atro pela Universidade Federal da Bahia, Pós-graduanda em Psicologia Social pelo CIEG
e Aluna Especial do Mestrado em Artes Cênicas – PPGAC/UFBA. Integra o Grupo
Boralí de Teatro.Contatos - ericacrlopes@gmail.com
Leonardo Teles – Licenciando em Teatro pela Universidade Federal da Bahia. Integra o
Grupo Boralí de Teatro. Contatos: teles.leonardo.12@gmail.com

34 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


EVENTOS ARTÍSTICOS
1. BROSOGÓ, MILITÃO E O DIABO – espetáculo de teatro de rua (pátio da Escola de Teatro)

Direção Artística: Carlos Alberto Ferreira

Currículo Mínimo: Carlos Alberto Ferreira é encenador, performer, ator, produtor teatral e, atu-
almente, professor por tempo determinado da Escola de Teatro da UFBA. Doutorando e Mestre
em Artes Cênicas pela UFBA (2012-2014). Graduado em Artes Cênicas Licenciatura e Bacharelado
com ênfase em Direção Teatral e Interpretação, pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
(2006-2011). Realiza pesquisas teórico/prática como encenador/ator na área de montagem de tex-
tos contemporâneos.
Informações: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4299769J6

Sobre o espetáculo: O espetáculo “Brosogó, Militão e o Diabo” do cordelista Patativa do Assaré,


conta a história de Brosogó, um miçangueiro, que durante suas viagens, vendendo suas mercado-
rias, conheceu um grande fazendeiro por nome de Militão. A história acontece em torno de um
acordo feito entre as personagens, fazendo com que a atmosfera do espetáculo ganhe espaço para
fantasia, música e cordel durante a encenação.

FICHA TÉCNICA:

Encenador/professor: Carlos Alberto Ferreira;


Autor do Texto: Patativa do Assaré;
Assistência de Encenação e trabalho com máscara: Cecilia Retamoza;
Elenco: Céia Correia, Damares Reis, Daddi Limah, Felipe Calicott, Ingrid Lago, Mércio Santa-
na, Pretha Sousa e Silas Menezes;
Direção Musical: Ronald Vaz;
Músicos: Samantha Pureza, Ronald Vaz, Fabiane Leal e Shandra Andere
Figurino: Leonardo Telles

2. ENTREMEIOS DEZ FIGURAÇÕES – espetáculo de dança

Direção e performance artística: Cláudio Antônio Santos da Silva

Currículo Mínimo: Possui trajetória de dançarino/ intérprete/criador/professor/pedagogo/pes-


quisador. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas e Dança Licenciatura
pela Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Educação e Artes com ênfase em
Currículo, Métodos e Técnicas de Ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação,
Arte, Cultura, Lazer e Cidadania. È criador do grupo: Cia Cínica Dança, desde 2008, que prioriza
uma linguagem particular em Dança Contemporânea, a partir do estudo da Filosofia Cínica, da Et-
nocenologia, da Pedagogia Multirreferrencial e dos estudos contemporâneos sobre o corpo. Vem
desenvolvendo o projeto de pesquisa em criação coreográfica/espetáculo: Entremeios - Dez Figu-
rações - investigação a respeito da técnica e da poética do corpo em Dança Contemporânea a partir
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 35
da pesquisa sobre a prática espetacular: O Guerreiro de Alagoas. Atualmente é Mestre em Artes
Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Escola de Teatro, da Universidade
Federal da Bahia, e desenvolveu o projeto com encenação na linha de pesquisa: Matrizes Estéticas
Contemporâneas: O Guerreiro Alagoano: Uma Pedagogia Multirreferncial, sob orientação da Profª
Drª Suzana Maria Coelho Martins, ano 2013-2015.

Sobre o “Entremeios Dez Figurações: Neste processo de pesquisa e criação com os Entremeios,
no formato de curtos solos performances intitulado: Entremeios: Dez Figurações, o subtítulo, Dez
Figurações, tem sentido ambivalente, indica o ato de “desfiguração” para fazer outra reconfigura-
ção; um texto que surge a partir de outro; uma reconstrução semântica; uma nova configuração.
Também, refere-se à linguagem coloquial dos brincantes, na qual encená-los, significa ”botar figu-
ras”, e ainda, a quantidade de dez Entremeios que escolhi para a conclusão dos solos performances
neste processo/ projeto/pesquisa/espetáculo. Todos os solos performances coreografados são
composições do intérprete criador Cláudio Antônio, ator-dançarino, graduado pela Escola de Dan-
ça da UFBA, licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas-UFAL e Mestre em
Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

3. Leitura dramática - texto “A Máscara e a Sombra: L’Arte della Cortigiana” + Conversa com
o público (Roberto Tessari e Joice Aglaé)

Autoria e Performance artística: Joice Aglaé Brondani

Currículo Resumido: Joice Aglae Brondani é pós-doutora (CAPES Processo BEX 6818/14-5).
Realizou PRODOC-CAPES no Instituto de Artes da UFU. Doutora e Mestre pelo PPGAC-U-
FBA. Fundadora da Cia Buffa de Teatro (1998-BRA) e Bottega Buffa CircoVacanti (2010-2014-
ITA). Idealizadora do projeto de pesquisa e intercâmbio cultural “Teatro-Máscara-Ritual” (2010-
...). Atriz e Diretora Teatral ministra cursos no Brasil e no Exterior. Autora de livros e artigos sobre
sua área de pesquisa.

Sobre a Leitura Dramática: A dramaturgia foi escrita a partir da pesquisa de pós-doutorado (CA-
PES, Proc. Nº BEX6818⁄14-5) da pesquisadora, atriz, diretora e autora, a qual tem como estudo
principal os caráteres das máscaras femininas da commedia dell’arte italiana, focando na máscara
da Cortigiana e fazendo conexões através do universo do imaginário com a mitologia e arquétipo
da cultura tradicional brasileira da Orixá Iansã⁄Oyá e das Pombogiras. Tendo como inspiração para
a pesquisa histórica das comediantes, o livro de Roberto Tessari “Commedia dell’arte: la Maschera
e l’Ombra”.

36 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


GRADE DE PROGRAMAÇÃO -
I Encontro Nacional de Etnocenologia
(12,13,14 e 15 de abril de 2016)

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 37


38 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
PROCESSOS CRIATIVOS: UMA
ABORDAGEM NA GÊNESE DA
CRIAÇÃO DE FIGURINISTAS DE
TEATRO EM SALVADOR/BA
Agamenon Bomfim de Abreu1
Pesquisa de Mestrado pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas UFBA
Linha: Poética e Processos de Encenação
agamenonabreu@gmail.com

Resumo: O figurino de teatro tem um papel relevante no fazer teatral e exige uma elaboração que não
se restringe unicamente em vestir o intérprete. Esta pesquisa, em andamento, visa entender os percursos
criativos e vivências de quem faz figurinos em Salvador/BA. Através dos caminhos sinalizados pelas au-
toras Cecília Sales, Sônia Rangel e Fayga Ostrower, sobre processos de criação, bem como de entrevistas
já feitas com cinco figurinistas baianos, procuro entender melhor os processos não só para uma melhor
comunicação dos fazeres, como para o suprimento de registros dos fazedores das artes cênicas em Sal-
vador/BA.

Abstract: The theater costume plays an important role in the theatrical make and requires a preparation
that is not restricted only to wear the actor. This research in progress aims to understand the creative
paths and experiences of those who make costumes in Salvador / BA .Through the paths marked by
the authors Cecilia Sales, Sonia Rangel and Fayga Ostrower on creative processes , as well as interviews
already made five costume designers Bahia , seeking to better understand the processes not only for bet-
ter communication of the doings , as for the supply of records of the doers of the performing arts in
Salvador / BA .

Palavras-chave: Processos; figurino; criação; etnocenologia

Keywords: Processes; costume; creation; ethnoscenology

1
Agamenon Bomfim de Abreu, de nome artístico Agamenon de Abreu é Bacharel em Desenho Industrial, com
Habilitação em Programação Visual pela Universidade Estadual da Bahia e Pós-Graduação em Fundamentos do
Ensino da Arte pelo Faculdade de Arte do Paraná. É ator, cenógrafo, figurinista e membro fundado do grupo de
teatro Viapalco, há dezoito anos. Foi também coordenador do Centro Técnico do Teatro Castro Alves durante
dezesseis anos e atualmente é bolsista pelo PPGAC da UFBA.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 39
INTRODUÇÃO

O olhar etnocenológico tem me guiado por caminhos promissores dentro da pesquisa que sigo de-
senvolvendo no mestrado. Sinto-me contemplado, mexido e remexido, bem como responsável por fazer
parte do rol de pesquisadores cujo conhecimento seja calcado no entendimento de si e do outro, nesta
mão dupla.
O trajeto que tenho feito ao longo destes anos de existência, tem definido este meu objeto de pesquisa
e me feito sujeito conhecedor de mim mesmo.
Sendo ator, designer, pai, palhaço, o ato de fazer figurino me troxe questões que vão além do mero
exercício de vestir o ator/personagem para entrar em cena. Desde criança sempre tive fascínio pelos
figurinos dos anjos que sobrevoavam as procissões na minha cidade, Ibiquera, na Chapada Diamantina,
Bahia. Os cetins, as organzas, os tules, bem como os arminhos aplicados nas asinhas dos anjinhos eram
costurados por minhas tias e mulheres amigas da família. Diariamente eu sentia necessidade físca de
mexer/criar algo, seja de barro, de papel, de lixo, madeira, pedra, tinta ou qualquer potente material em
que pudesse resultar algo de novo – um objeto qualquer, um desenho, uma esculura, um novo brinquedo
ou simplesmente manipular algum material. Desde criança também criava textos, organizava ensaios,
fazia modelagens, brincava de bonecas (escondido dos olhares dos adultos), fazia acrobacias, dançava e
sonhava ser ator.
Na escola, no período classificado como ginásio, criava as histórias, orientava a movimentação em
cena e “arrumava” o figurino que os meus colegas iriam usar na encenação, como trabalho de sala de aula-
atuar, dirigir e providenciar/projetar cenários e figurinos sempre foram elementos intrínsecos à realização
do meu teatro. Este movimento, que para mim passou a ser muito natural, me fez querer, cada vez mais,
trilhar por caminhos que me levassem ao teatro, sem saber ainda ao certo o que era isto.
Já morando em Salvador, aos 17 anos, inseri-me como ator, através de uma audição, na Cia Refletor2
do Diretor Joilson Nunes, com o espetáculo “O Consertador de Brinquedos”, texto de Stella Leonardos,
encenado no Teatro do ICBA (Instituto Cultual Brasil Alemanha), um espaço com palco em formato
semi arena, no qual fizemos temporadas nas tardes de sábados e domindos durante dois meses. Neste
espetáculo de estreia, numa estrutura considerada profissional/comercial (com bilheteria, cachês, etc.)
“O Consertador de Brinquedos”, no Teatro do ICBA, um dos momentos que mais me deixou curioso
em todo o processo da montagem foi o embate com o profissional responsável pelos figurinos da peça,
quando o mesmo expôs os desenhos/croquis que havia pensado para cada personagem. A partir deste
episódio, comecei a ficar instigado com a criação e projeção do visual da cena. Nos ensaios, começava a
me dedicar e experimentar todas as diversas formas de comunicação que o espetáculo pudesse proporco-
nar, bem, sobretudo ficava atento à potente póetica do devir seja para o personagem, seja no cenário e no
figurino – ainda que eu não fosse responsável por estes dois últimos. Sempre gostei de ensaios, e quando
estes são recheados de experimentos e visualidades, neste sentido, comungo com o pensamento da Atriz
e Doutora em Teatro, Sônia Rangel:

Ensaio também é uma palavra aconchegante que habita a intimidade do espetáculo nas artes
cênicas. Gosto dela especialmente por causa dessa memória. Em muitas das encenações das
quais participei, como atuante ou como espectadora, nos ensaios se situava para mim a melhor
parte e não no produto acabado. Estou buscando “nos ensaios” um sentido de permanência.
(RANGEL, 2009, p. 107)

2
A Cia de Teatro Refletor foi criada pelo educador, ator e diretor Joilson Nunes, no final da década de 80, com
o intuito de realizar espetáculos destinados ao público infanto-juvenil. Entre os espetáculos da Cia, o último a ser
montado foi “História de Lenços e Ventos” de Ilo Krugli, uma remontagem do própio grupo, já nos anos 2000.
40 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
A vontade por conhecer mais todo o visual da cena e, em particular, o figurino, foi aumentando ao
longo dos anos, sobretudo na ocasião em que fiz parte do corpo técnico dentro do Centro Técnico do
Teatro Castro Alves. Neste período, o contato com muitos figurinistas, cenógrafos, aderecistas, costurei-
ras, carpinteiros, serralheiros e maquiadores, me emprenharam de possibilidades e inquietações sobre os
processos de fazimentos, bem como de criações associadas às artes cênicas. Criar figurinos e cenários,
bem como ler, manipular croquis, projetos de outros cenógrafos e figurinistas foi um trabalho recorrente
dentro daquele universo da engenharia do espetáculo e que ainda executo com vontade e afinco. Entre-
tanto, uma questão sempre me inquietava e me inquieta:
Quem são estes figurinistas que fazem tudo isto? Que força criadora é esta que lhes fazem optar por
um caminho visual em detrimento de tantos outros? Como começam os seus processos? Onde e como
registram? Como os outros saberão, terão acesso às suas criações?
Recorro então às palavras de Cecíclia Salles quando ela pontua:

Os críticos genéticos juntam-se a todos aqueles que se sentem atraídos pelo processo criativo e
fazem dessas pegadas, que o artista deixa de seu processo, uma forma de se aproximar do ato
criador e, assim, conhecer melhor os mecanismos construtores das obras artísticas. (SALLES,
2008, p. 21)

A tríade Sujeito/ Trajeto/ Objeto, para mim passa ter uma nova ordem, a qual elucida questões das mi-
nhas angústias enquanto pesquisador e profissiona das artes cênicas – TRAJETO – OBJETO - SUJEITO.
O trajeto que trilhei e continuo trilhando, fez-me definir o objeto da pesquisa, a qual me faz defrontar o
sujeito que sou. Acredito que, ao pesquisar os processos criativos de figurinistas em Salvador/BA, focado
no fazimento direcionado aos bastidores do teatro, direta ou indiretamente contribuo também com a
memória do teatro e, em particular, da referida cidade soteropolitana. Espero também acrescentar infor-
mações aos fazeres neste campo do teatro o quais ainda é carente de olhares aos engenheiros/fazedores
dos que estão atrás da cena.

CAMINHOS EM BUSCA DAS VESTES – COMO MANDA O FIGURINO

O teatro é uma fonte rica de informações que transcende todo o “ritual” que é comunicado ao pú-
blico. Desde seus primórdios, o homem, ao fazer e se comunicar teatralmente se vale de diversos meios
para que a sua mensagem seja transmitida de forma “completa”. Assim, todos os elementos que entram
em cena e, sobretudo, aqueles ligados ao corpo do ator, vão elucidar e contribuir com o que está sendo
feito com o uso ou não de um texto. Para o senso comum, um figurino de teatro é feito apenas para dizer
algo sobre a personagem. Em certo aspecto e, de fato, numa primeira visão pode-se levar isto em conta,
porém, as funções de um figurino vão além de qualquer superficial percepção.
O figurino passa a ter este papel relevante no fazer teatral na medida em que ele faz parte da enge-
nharia do espetáculo, e como tal, exige um pensar/elaborar que não se restringe unicamente em vestir o
intérprete. Segundo Patrice Pavis (1999), “o figurino conquista um lugar muito mais ambicioso; multiplica
sua função e se integra ao trabalho de conjunto em cima dos significantes cênicos” (p. 168). Neste sen-
tido, as dimensões que o figurino carrega, sua pluralidade e potencial de comunicação terá sempre a sua
completude no olhar e inferência de quem vê/observa. Residir no plano das palavras é limitar a fruição
artística, sobretudo nos termos da visualidade cênica, em que o que está “eleito” visualmente se conecta e
se completa na apreciação de quem observa/participa do ato no momento em que ele acontece. O texto,
em seu sentido semiótico, segundo BONFITTO (2007), diz respeito à própria obra analisada em seus
aspectos constitutivos. Ele defende ainda que as relações intertextuais são portanto aquelas que envolvem
os elementos que “tecem” a trama (p. 111).

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 41


O figurinista ao realizar a sua atividade e performa. Performar o figurino, portanto, é também ampliar
a capacidade de composição da obra cênica em que o grande e plausível intento seja expressar, comunicar
o pensamento e conceitos do peformer em detrimento da realização artística. O figurinista passa também
a imprimir a sua visão e ideia de mundo, sua cultura, suas vivências - ações traduzidas em um fazer ar-
tístico, cuja performatividade terá duas vertentes de conceitos defendidos pelas filósofas Maria Lúcia de
Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (2006), a respeito da nossa relação com o mundo em que
vivemos, que pode ser dividida em prática e estética. A relação prática, para o figurino, está no seu caráter
pragmático. A relação estética, que o profissional do figurino estabelece, tem relação direta com a forma
da obra criada à qual também poderá se confundir com a função pragmática, na medida em que cumprirá
o papel na realização artística.
O ato de pensar o figurino de teatro é uma tarefa que está embutida em si, não só a gestação de uma
ideia, como de um desvelar uma espertize fundamental para este ofício. O profissional que se encarrega
deste processo criativo tem a missão de somar, diminuir, multiplicar e dividir as espectativas do diretor,
ator, produtor ou de toda a equipe que estará compondo. As relações estabelecidas nos processos de
construção de um espetáculo determinam os resultados esperados pelos componentes da cena teatral,
fruto de processos poéticos. Um diretor poderá ter uma idea genérica ou específica de como será cada
personagem de uma peça de teatro ou qualquer acontecimento cênico. Os estudos empreitados no senti-
do da realização artística, no caso específico das vestes do protagonista ou dos coadjuvantes, deverão ob-
ter uma linhagem, uma linguagem, ou até mesmo uma unidade, dentro do que está sendo elaborado pela
direção e os demais integrantes do produto cênico. Neste processo, o figurinista pode e deve influenciar
e ser influenciado pelas ideias e relações estabelecidas desde o primeiro contato com o texto/roteiro, ou
ainda nas primeiras conversas sobre o trabalho que se queira realizar.
O artista encarregado de pensar a roupa que será assumida por cada ser da cena terá também que agir
em conjunto com o diretor e de todos os demais componentes da montagem teatral. Precisa acrescentar
aos próprios pensamentos/criações do que está sendo desenvolvido na medida em que, em certos casos,
tem-se um pensamento claro do que se quer e de como será o figurino. Neste aspecto, cabe ao figurinista
também, abrir mão da exclusividade da sua participação no referido processo, o que exigirá uma postura
de abertura de “espírito”, a qual pode contribuir com a fluidez do trabalho em conjunto. Por outro lado,
também é válido pontuar que o ”desapego” e confiança deva ser assumido por todos na equipe. Daniela
Thomas, em depoimento a Rosane Muniz (2004) destaca, como fator de primeira preocupação, a relação
dos figurinos que pensa/executa e os atores que vestem; para Thomas, “o texto pode ser maior do que
a pessoa e o grande barato do palco é que o ator te convence de que tem capacidade para falar aquelas
palavras. Com o figurino acontece a mesma coisa. O ator precisa saber vestir a roupa” (p.135).
A experiência, as vivências, bem como o estilo de vida, vai determinar, preponderantemente, o modo
como cada um se posiciona e percebe o mundo. Todos, e não somente relativos à área artística, respon-
sáveis por criar algo, o fazem a partir de vivências e intuições próprias. Larrosa esclarece muito genuina-
mente a respeito do sujeito da experiência:

(...) seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do aconte-
cer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura (LAROSSA, 2002, p.24).

Das enxurrada de ideias que o figurino possa demandar, cabe ao figurinista também ter elementos e
subsídios concretos e visão do essencial para elucidar e expressar melhor a comunicação do entendimen-
to de cada personagem. A multiplicação e divisão pode ser aplicada nesta mesma lógica. Um figurinista
multiplicará as ideais engendradas pelo processo, aplicando, na prática, seus conhecimentos acerca de
composições, formas, cores, texturas bem como o gerenciamento dos passos a serem seguidos na execu-
ção do figurino na totalidade de sua construção. Aqui também poderá residir a atitude de diminuição e/

42 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


ou divisão das ideias, na medida em que as mesmas possam “sobrepor” tanto o conceito geral da obra
quanto a previsão orçamentária. Com esta visão, Fayga Ostrower (2014) afirma que o potencial criador
elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-consciente do homem, e se faz presente nos múl-
tiplos caminhos em que o homem procura captar e configurar as realidades da vida (p. 27).
O figurinista se desdobra, muitas vezes, e não se limita apenas ao pensar/criar os vestes das persona-
gens, como também em outras dimensões do processo de execução do figurino. Este trabalho se estende
também em produção executiva, desde a eleição e compra do material necessário, processo que pode ser
determinante também na criação e resultado final, como também de outros elementos que comporão o
trabalho como em adereçaria.
Seria ingênuo e limitado afirmar que o visual de uma cena teatral seja composto e interpretado apenas
por cenário, figurino, adereços, maquiagem e luz. Um espetáculo, uma performance, uma dança “necessi-
ta” de algo que salta além do material físico, além ainda do fisico do ator/performer – os elementos que
o circunda, que o soma - a visualidade. Esta, se completa na visão e na presença da platéia, na energia
corpórea do ator, bem como na interação de todos os elementos concretos na e da realização cênica.
Deste conjunto, deste “emaranhado” de texturas, cores, luzes, sombras e energias se forma a Gestalt do
visual da história que acontece na reciprocidade palco-platéia.
Rudolf Arhnhein (1984) defende que nossas experiências e ideias tendem a ser comuns mas não pro-
fundas, ou profundas mas não comuns.

Temos negligenciado o dom de comprender as coisas através de nossos sentidos. O conceito


está divorciado do que se percebe, e o pensamento se move entre abstrações. (...) daí sofrermos
de uma carência de ideias exprimíveis em imagens e de uma capacidade de descobrir signifi-
cado no que vemos. É natural que nos sintamos perdidos na presença de objetos com sentido
apenas para uma visão integrada e procuremos refúgio num meio mais familiar: o das palavras.
(ARHNHEIN, 1984, p. introdução).

Residir no plano das palavras é limitar a fruição artística, sobretudo nos termos da visualidade cênica,
em que o que está “eleito” visualmente se conecta e se completa na apreciação de quem observa/parti-
cipa do ato no momento em que ele acontece. O texto, em seu sentido semiótico, segundo BONFITTO
(2007), diz respeito à própria obra analisada em seus aspectos constitutivos. Ele defende ainda que as
relações intertextuais são portanto aquelas que envolvem os elementos que “tecem” a trama (p. 111). Nas
“entrelinhas” do figurino estão impregnadas da bagagem de vida de quem o realiza. Neste ponto, como
acessar/entender/apreender o produto da criação do profissional que imagina o figurino?

CAMINHAS EM BUSCA DE QUEM VESTE – GÊNESES CRIATIVAS

Na busca por conhecer o processo criativo de figurinistas aqui em Salvador, bem como o entendi-
mento dos seus processos de trabalho na engenharia do espetáculo, tenho encontrado valiosas conexões
e sinalizações, com o meu labor também. Esta pesquisa tem me apontado caminhos bastante distintos e
com valiosos potenciais de entedimento do realizar de cada profissional. Como no texto da artista plástica
Fayga em que ela afirma:

(...) as formas de percepção não são gratuitas nem os relacionamentos se estabelecem ao aca-
so. Ainda que talvez a lógica de seu desdobramento nos escape, sentimos perfeitamente que
há um nexo. Sentimos também que, de certo modo somos nós o ponto de referência, pois ao
relacionarmos os fenômenos nós os ligamos entre si e os vinculamos a nós mesmos. (FAYGA,
2014, p.9)

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 43


Tenho mergulhado, em entrevistas com figurinistas soteropolitanos, os seus processos genéticos, os
quais, de forma muito fluida, acabam por me remeterem ao meu processo enquanto profissional da área
também. A etnografia tem me dado grandes e valiosas contribuições na metodologia a ser aplicada para
a atual pesquisa.
Descobrir “filigranas” no texto, posturas e falas dos personagens, coreografias, compartilhamentos
com os colegas de cenas, sempre são enriquecedores e fundamentais no meu processo enquanto profis-
sional e amante da arte atuação como aderecista, figurinista e coordenador técnico no Centro Técnico do
Teatro Castro Alves, Salvador/BA, me deram a real dimensão dos processos de criação e execução do que
podemos classificar como a engenharia do espetáculo – elaboração e soluções técnicas para cenografia,
figurino, adereçaria e maquiagens de efeitos. Ingressei nesta casa de espetáculos, como estagiário de ade-
reçaria, quando estudava Desenho Industrial pela Universiade Estadual da Bahia, a convite da fundadora
do referido Centro Zoíla Barata3, lá passei 16 anos, dos quais os seis últimos, como coordenador técnico,
em que teria que executar os projetos de cenário, figurino e adereços de vários profissionais de teatro
(Zuarte Júnior, Moacyr Gramacho, J. Cunha, Gilson Rodrigues, Márcio Meireles, Miguel Carvalho, Diana
Moreira, Sônia Rangel, Euro Pires, Roberto Laplagne, Rino Carvalho, Edwald Hackler e muitos outros)
apoiados pela instituição. O encontro, com a maioria dos referidos artistas eram regulares uma vez que
eles tinham que detalhar os seus projetos para que eu, que coordenava as equipes de execução, pudesse
encontrar, em conjunto com os funcionários da casa, a melhor maneira de realização dos apoios. Esta ex-
periência me rendeu “tônus” profissional e fez enxergar e conhecer os percursos pelos quais ia trilhando
a produção teatral para peças, balés, óperas e shows musicais em Salvador, Bahia.
Hoje sigo atuando em espetáculos teatrais: ora como figurinista, ora como cenógrafo e aderecista, ora
como ator, e muitas vezes em todas estas funções, integralmente. A dedicação e entrega nestas tarefas é
árdua; o prazer em criar/descobrir e o cumprimento do ofício dentro de determinados prazos, bem como
a limitação de recursos materiais, técnicos e financeiros, muitas vezes se mesclam e não me fazem perder
de vista os reais objetivos – o processo, o espetáculo e o espectador.
Os processos de criação sempre me inquietaram. Em todos eles, busco fontes de inspiração, soluções
encontradas e referenciais. À medida que ia realizando os figurinos que assinava, percebia a necessida-
de de pesquisar e conhecer outros profissionais da área para compartilhamento de técnicas, bem como
referências do profissional em questão. Da imerção em muitos cursos, worshops e discussões a respeito
do objeto figurino vinha sempre o questionamento: onde se encontram estes profissionais? Como ver,
acessar o que já foi realizado? Como este processo era realizado nos anos anteriores? Quem eram estes
profissionais? Como se formavam e se formam? Que materiais e processos utilizavam nos seus trabalhos?
A partir desta inquietação tem me feito rumar em busca de aprofundamentos e contatos mais diretos com
os realizadores do figurino da cena. Das entrevistas realizadas, tem ficado um valioso e fecundo registro
não só de uma espertize no fazer das vestes para os personagens no teatro, como também o gerenciamen-
to de um sistema de trabalho como um todo.
É notório que há ainda pouco registro sistemático dos profissionais que contribuíram e contribuem
com os espetáculos realizados nos palcos soteropolitanos. Espaços como o setor de Documentação e
Pesquisa do Teatro Castro Alves e o Memorial Castro Alves, faz um registro das peças produzidas neste
teatro anualmente, em que catalogam a equipe envolvida, através dos folders, publicações de jornais e
revistas, fotografias, etc. Ainda assim, pouco se tem dos processos de feitura dos elementos da cena, bem
como dos seus idealizadores, isto toma uma dimensão ainda maior quando pensamos nos espaços que
tem uma produção contínua de espetáculos como a Escola de Teatro da UFBA (Cia de Teatro da UFBA),
o Teatro Vila Velha (Bando de Teatro Olodum e a mais recente Universidade Livre de Teatro), bem como

3
Zoíla Barata – Atriz, diretora de Teatro, maquiadora e figurinista. Responsável pela implantação do Centro Téc-
nico do Teatro Castro Alves, Salvador/BA – setor responsável pela execução de projetos de figurinos, cenografia
adereçaria e estudos de maquiagens teatrais. Foi também a fundadora, atriz e diretora da Cia Teatral Época.
44 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
de outros espaços alternativos de Salvador como a Casa Preta (Grupo Vilavox), a sede da Outra Cia de
Teatro, o espaço “Puxadinho no passeio Público” (Filhos da Rua), bem como a gama de grupo teatrais
de relevante e potente atuação nas regiõe periféricas de Salvador/BA.
Tem sido estimulante pesquisar os artistas envolvidos no labor do teatro, uma vez que esta ação é in-
corporada ao meu cotidiano de trabalho. Sinto a responsabilidade da contribuição relevante desta pesquis
para a memória e pesquisa do teatro baiano soteropolitano. Os anos vividos no Grupo Viapalco4 dentro
do qual atuo também como cenógrafo, figurinsta e ator fundador, há dezoito anos, me impulsionaram
nesta busca por conhecer e entender métodos de criação e execução, somando-se a um método próprio
de soluções de questões associadas ao visual do espetáculo, em especial, o figurino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisar processos focados em criação tem me feito confrontar e rever meus processos também
enquanto fazedor do labor teatral. Nestas buscas, tenho me deparado com profissionais cujos caminhos,
mesmo que muitas vezes não se tangenciam com os meus, acabam ampliando enormemente os campos
de atuação de todos que se enveredam nas gêneses criativas. A cada dia, a cada montagem de uma nova
peça, novos processos surgem, bem como novos personagens/figurinistas passam a desempenhar seus
papéis, novos vestígios a serem perseguidos, novas pesquisas a serem emplementadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. 5ª Edição. Livraria Pioneira Editora, São Paulo: 1974.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas figu-
ras, cores, números. Tradução, Vera da Costa e Silva... [et al.]. José Olympio Editora: Rio de Janeiro, 1988.
FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Editora da Unicamp, Campinas,
SP, 2003.
FRANCO, Aninha. O teatro na Bahia através da imprensa: século XX. Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA, 1994.
____________. A casa da minha alma. Texto dramatúrgico. Salvador: Teatro XVIII, 2003.
MUNIZ, Rosane. Vestindo os Nus: figurino em cena. Rio de Janeiro: Ed.Senac Rio, 2004.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processo de Criação. Petrópolis, RJ: Ed.Vozes, 30 ed , 2014
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.
RANGEL, Sonia Lucia. Trajeto Criativo. Lauro de Freitas, BA: Solisluna Editora, 2015.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. – São Paulo: Ed. SENAC São Paulo,
1999.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar editores,1998.
SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3
ed, São Paulo: EDUC, 2008.

O Grupo Viapalco de Teatro foi fundado no ano de 1998 por estudantes de Comunicação Social e Design da
4

Universidade Estadual da Bahia, após um curso extensivo com o diretor e também fundado do grupo João Lima.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 45
HÔXWA À LUZ DA
ETNOCENOLOGIA: A PRÁTICA
CÔMICA KRAHÔ
Ana Carolina Fialho de Abreu1
Universidade Federal da Bahia
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas
anacarolinaabreu1886@gmail.com

RESUMO: Fruto da pesquisa de mestrado “Hôxwa à luz da etnocenologia: a prática cômica Krahô”,
o artigo apresenta o hôxwa, cômico ritual Krahô que se localiza no estado do Tocantins, Brasil, sob a
perspectiva da etnocenologia. Para tanto, foi realizado um trabalho de campo e uma etnografia do ritual
Pàrti ou Jàt jô pĩ (Festa da Batata), onde o hôxwa é “protagonista”, observada sua “atuação” no dia a dia da
comunidade e a apresentação da “brincadeira” no I Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases. A
revisão da literatura se baseia em conceitos e teorias das Artes e da Antropologia. Aparecem em destaque
autores e mestres indígenas como: Ismael Ahpracti Krahô, Getúlio Cruacraj Krahô, Melatti, Lima, Lévi-
-Strauss e Bião. Por fim, este processo prático e reflexivo demonstra que o hôxwa, por sua complexidade e
diversidade, pertence, entrecruza e potencializa os três subgrupos da etnocenologia, sendo, portanto, um
fenômeno substantivo, adjetivo e adverbial.

Palavras-chave: Comicidade; Hôxwa; Ritual; Etnocenologia.

ABSTRACT: These are further writings originated in a Masters research “Hôxwa à luz da etnocenolo-
gia: a prática cômica Krahô” (“Hôxwa under Ethnoscenology scope: the comic practice of Krahô”), the
article presents hôxwa, Krahô comic ritual located in Tocantins (Brazil), under the perspective of Eth-
noscenology. In order to do so, fieldwork has been done, along with ethnography on the ritual Pàrti ou
Jàt jô pĩ (Potato Festival), in which hôxwa features. His “act” has been observed on a daily basis within his
community, as well as his ludic performance at the First International Clowns Meeting in Cataguases (I
Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases). Theory for this work is based on indigenous such
as Ismael Ahpracti Krahô, Getúlio Cruacraj Krahô, Melatti, Lima, as well as Lévi-Strauss and Bião. This
practical/reflexive process shows that hôxwa, for its complexity and diversity, belongs, crosses and poten-
cializes the three subgroups of Ethnoscenology, being a substantive, adjective and adverbial phenomena.

Key-Words: Comic; Hôxwa; Ritual; Ethnoscenology.

1
Palhaça, diretora teatral e professora-artista. Doutoranda e Mestra em Artes Cênicas pelo Programa de Pós Gra-
duação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Bacharel em Artes Cênicas com habilitação
em Direção Teatral e Interpretação pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel of Clowning pelo Nouveau
Clown Institute (NCI), Espanha. Faz parte do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneida-
de, Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT).
46 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
INTRODUÇÃO

Quando o mundo era novo, não tinha hôxwa. Antigamente o Krahô não tinha fogo, não tinha
planta nenhuma. Comia cupim, pau pubo. No princípio não tinha abóbora, nem esse movimento na
roça, foi Caxêkwyj - uma estrela que veio do céu quem trouxe as sementes e as frutas. Aí apareceu
a abóbora que depois virou hôxwa. A estrela virou uma moça que ensinou os índios a comer as
frutas, a bacaba, o buriti, o milho e os legumes e desde então nós temos a abóbora, a mandioca, o
inhame, a batata... Tudo que planta na roça foi a estrela que ensinou
(Transcrição do filme “Hotxuá” de Sabatella e Cardia, 2012: 7 min e 24 seg).

O tema deste artigo é o fenômeno da comicidade junto aos Krahôs, do estado do Tocantins, Brasil,
que gira em torno do hôxwa, sob a perspectiva da etnocenologia. O sujeito-objeto deste trabalho, fruto da
pesquisa de Mestrado defendida em 20152, se converte, a partir deste olhar, em ator-social e construtor
de conhecimento. Trata-se do líder ancião dos hôxwas da aldeia Manoel Alves Pequeno, Ismael Ahpracti
Krahô3 (ver figura 1) e da multiplicidade de vozes e corpos que ele representa, de um mundo diverso de
vida, de uma pluralidade de ver e pensar as relações entre homem e natureza, entre corpo e mente que
rompe fertilmente com o pensamento hegemônico e com as referências de comicidade reveladas dentro
deste modelo.

FIGURA 1- Hôxwa Ismael Ahpracti Krahô e parte da sua família na aldeia Manoel
Alves Pequeno. Foto: Arquivos pessoais. Data: 07/07/ 2015.

2
ABREU, Ana Carolina. Hotxuá à luz da etnocenologia: a prática cômica Krahô. Dissertação (Mestrado). Escola de
Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/
ri/17916.
3
Minha aproximação com o hôxwa Ismael Ahpracti Krahô se deu através do trabalho de campo realizado na VII
Aldeia Multiétnica, Chapada dos Veadeiros, Goiás (julho de 2013), onde pude observar a “interferência” do hôxwa
no ritual de Iniciação das Crianças Krahô, chamado Pemp’kahààc; na IX Feira Krahô de Sementes Tradicionais na
aldeia Krahô, Tocantins (outubro de 2013) e no I Encontro Internacional de Palhaços de Cataguases, Minas Gerais
(dezembro de 2013), atividade que fez parte da pesquisa de Mestrado. Bem como pela observação e participação
no ritual onde o hôxwa é “protagonista”: Pàrti ou Jàt jô pĩ, em maio de 2014 e julho 2015 na aldeia Krahô Manoel
Alves Pequeno.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 47
A escolha de uma pesquisa em Artes Cênicas surgiu das minhas experiências artísticas adquiridas
como palhaça, especificamente por meio da oficina do bufão chileno Andrés Del Bosque, chamada Bufão
Ritual, que participei em 2010. A metodologia proposta é fruto das experiências e pesquisa de Del Bosque
com diversos povos originários especialmente na América Latina que possuem “personagens”4 cômicos
rituais. Assim, o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa foi uma pergunta aflorada de
uma lacuna: e no Brasil, há evidências deste fenômeno?
Descobre-se que não apenas entre os Krahô, mas também entre os Apinajé, os Krahô Canela (To-
cantins), os Suyá (Mato Grosso), os Kaxinawa (Amazonas) e os Kaiapó (Mato Grosso e Pará)5. Quiçá
em outros povos indígenas? Além disso, a pesquisa também se justifica pela necessidade em aprofundar
um ponto pouco abordado em pesquisas teóricas e em escolas de teatro no País: o universo cômico em
distintos ambientes sociais e culturais. Neste caso, especificamente, numa sociedade indígena. Chama-se
atenção para o fato de que todas as culturas e sociedades até hoje conhecidas têm a comicidade e cômicos
em seu seio, entretanto, como explica Gilberto Mazzoleni (1989/90) em algumas sociedades esses cômi-
cos são “institucionalizados”, reconhecidos, “instituídos” pela comunidade, fazem parte dos seus modos
de vida e têm importância vital.
O objetivo desta investigação é produzir na academia, no teatro e na sala de aula, visto que o trabalho
serve também como subsídio para professores e artistas, a presença de culturas que estão sempre ausen-
tes. Problematiza-se esta ausência e se busca dar espaço para sujeitos que foram negados, escravizados
e subjugados. Assim, se estabelecem zonas de contato e conflito entre os diversos modos de existir, de
“atuar”, de vivenciar a comicidade e mostrar os diferentes valores intrínsecos a prática cômica em dife-
rentes culturas, ampliando assim, nossos modelos estéticos e éticos.
Neste ponto se ressalta a profunda diferença entre abordar cultura no singular e cultura no plural,
como assinala o antropólogo peruano Rodrigo Montoya Rojas (2010). Isto se dá através da inevitável ne-
cessidade de precisar o que se entende por essa palavra que é usada em diversos âmbitos. O conceito que
acredito condizer com a perspectiva etnocenológica e com os aprendizados que vivenciei entre os Krahô
é a de Edward Taylor (1871), onde o modo de viver, pensar e sentir são primordiais e incluiu milhares
de povos, nações e línguas em todo o mundo (independente se sabem escrever ou não). Cultura a partir
desta referência é ricamente sinônimo de conhecimento, crenças, arte, lei, costumes e outras capacidades
e hábitos adquiridos pelo homem e pela mulher como membros da sociedade.
O segundo objetivo da pesquisa é fortalecer a superação das concepções estereotipadas presentes no
senso comum a respeito dos povos indígenas como meio de combater o desconhecimento, a intolerância
e o preconceito em relação a eles. Segundo Paulo Freire (2013), não existe justificativas genéticas, socio-
lógicas ou históricas para explicar a superioridade da branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as
mulheres, dos patrões sobre os empregados, dos não indígenas pelos indígenas: “qualquer discriminação
é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfren-
tar” (FREIRE, 2013, p.59). Assim, a boniteza de ser gente, segundo o autor, se acha, entre outras coisas,
na possibilidade e no desejo de brigar por essas causas, respeitando assim a autonomia, a identidade dos
povos indígenas, dos educandos e educandas, bem como a autonomia de si mesmo.
Acentua-se também a escolha em não chamar o hôxwa nem de palhaço, nem ao menos de palhaço
sagrado ou bufão ritual, como se palhaço fosse a palavra que generalizasse todas as categorias de práticas
da comicidade. Refiro-me a ele, como é chamado pela sua comunidade, ou seja, hôxwa. Trata-se de não

4
Neste trabalho quando se atribui algum adjetivo ou léxico teatral ao cômico ritual, especificamente ao hôxwa,
como a palavra “protagonista” e “personagem”, se coloca entre aspas, visto que seu uso se dá, como assinala
Armindo Bião (2009), de forma metafórica. Este cuidado é necessário porque as palavras e a linguagem foram e
continuam sendo um instrumento de poder.
Mais informações sobre os “personagens” cômicos rituais destes povos indígenas podem ser encontradas em:
5

Abreu (2015), Lima (2013), Lagrou (2006) e Seeger (1987).


48 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
tomar exclusivamente as nossas referências culturais ocidentais como paradigmas para a classificação de
outras experiências. A palavra palhaço, segundo Mário Fernando Bolognesi (na banca de defesa da minha
dissertação de Mestrado), não tem mais de 600 anos, a cultura Krahô, antes da chegada dos colonizadores
não se sabe exatamente, mas segundo historiadores, como Pedro Paulo Funari e Ana Piñon (2014, p.16)
a presença indígena no Brasil e na América Latina como um todo é imensurável, de tão grande e multifa-
cetada. “A ocupação pelos indígenas do que viria a ser o território brasileiro data, ao menos, de doze mil
anos atrás (...)” (FUNARI, 2014, p.30). Ou seja, chamar o hôxwa de palhaço é forçar uma nominação, é
querer dominar o que se estuda, visto que, nominar significa também dominar.
Neste sentido, deve-se ter cuidado, portanto, para não substantivar o que é adjetivo. Afinal, existem
semelhanças entre o hôxwa e o palhaço ocidental, mas o hôxwa não é bobo da corte, embora tenha seme-
lhanças com aquilo que o bobo da corte fazia, não é sátiro embora faça muita coisa que os sátiros faziam,
não é palhaço embora faça muita coisa que os palhaços fazem. Além disso, suas raízes são distintas, inclu-
sive opostas, no caso do palhaço ocidental, sua formação é forjada no seio de uma sociedade capitalista,
classista, cristã, cuja comercialização é a base fundamental para sua sustentação econômica.
A curiosidade na pesquisa de campo que se deu simultaneamente à pesquisa teórica, ou seja, o difícil
trabalho de conciliar a prática e a teoria foi de suma importância para a formulação do problema e da
hipótese do trabalho. Diante da complexidade e pluralidade da manifestação do hôxwa do povo Krahô,
em diferentes espaços e momentos, como seria possível classificá-lo como pertencente a um dos três
conjuntos ou subgrupos da etnocenologia (objetos substantivos, adjetivos e adverbiais)?
Para melhor compreensão da problemática, se descreve os três conjuntos desta disciplina, partindo
dos objetos substantivos que seriam aqueles criados, pensados e produzidos pelas comunidades nas quais
ocorrem, “(...) com atos explicitamente voltados para o gozo público e coletivo, enquanto atos concretos
de realização reconhecível por todos como “arte”, em seu sentido o mais gratuito e simplificado, tendo
como função precípua o divertimento, o prazer e a fruição estética” (BIÃO, 2009, p. 52). Bem como, em
última instância, o conforto comunitário, menos compromissado com outras esferas da vida social.
Segundo, os fenômenos adjetivamente espetaculares, denominados como ritos espetaculares. Com-
preende o campo dos “rituais religiosos e políticos, dos festejos públicos, enfim, dos ritos representativos
ou comemorativos” (BIÃO, 2009, p. 53). Nesse grupo de objetos, ser espetacular seria uma qualidade
complementar, como afirma Armindo Bião, imprescindível para sua conformação, mas não substanti-
vamente essencial. Em outras palavras, ser espetacular, nesta categoria, é uma qualidade simplesmente
acessória, embora intrínseca.
Diferenciar esses dois grupos (substantivos e adjetivos), nos alerta o autor, é um exercício teórico-con-
ceitual complexo e delicado, sendo cabível considerar a possibilidade de interfaces, de cruzamentos e de
transgressões de fronteira e “sempre que assim for o caso, nomear e descrever esse pertencimento talvez
duplo, ou não claramente uno” (BIÃO, 2009, p. 53). Neste ponto, eu apresento a hipótese da pesquisa:
o hôxwa pertence e entrecruza não somente essas duas categorias, mas também a terceira, os objetos
espetaculares adverbiais, que são os fenômenos da rotina social, consideráveis espetaculares, a depender
do ponto de vista de um espectador, a partir de atitude de estranhamento que os tornaria extraordinários
para um pesquisador.
Nesse trajeto ainda muito jovem da etnocenologia, de acordo com Bião, nada pode ser considerado
como definitivo e a criação dos subgrupos é: “(...) sem dúvida, de uma primeira proposição de organiza-
ção, que poderá ser revista a partir das críticas e aportes que porventura apareçam e serão bem-vindos”
(BIÃO, 2009, p. 11). Neste caso, a crítica que faz este trabalho se dá não pela organização dos subgrupos,
mas pelo risco por parte do pesquisador ou pesquisadora em incorrer ao etnocentrismo no trabalho de
distribuição dos atores sociais, dos fenômenos culturais complexos em um determinado conjunto.
Bião estimula os pesquisadores a adentrarem nesta aventura conceitual e metodológica que deve ser
guiada pelo corpo que habita o ritual, portanto, busquei abrir meus sentidos, mente e coração para es-
cutar, observar e participar da diversidade cômica ancestral expressada pelo hôxwa, autor de sua própria
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 49
história e de seu conhecimento que tem intrínseca relação com o mundo Krahô, para enfim, estabelecer
um diálogo entre sua história e a etnocenologia.

DESENVOLVIMENTO

Atualmente, a população Krahô é de aproximadamente 3.000 pessoas, vivendo em 28 aldeias. Encon-


tram-se no estado do Tocantins, em um território localizado próximo das cidades de Itacajá e Goiatins,
entre o rio Manoel Alves Pequeno e Vermelho, no nordeste do estado. O termo Krahô é reconhecida-
mente uma nominação externa do grupo, eles se autodenominam mehi, cuja tradução feita por eles pró-
prios para o português é “nós mesmos” ou “nossa carne”. Dessa forma, antagonizam-se com os cupen,
nome utilizado para identificar os “não indígenas”. Após sofrerem um massacre no início da década de
quarenta, empreendido por fazendeiros locais, os Krahôs tiveram, em 1951, por pressão do Governo
Federal, suas terras demarcadas pelo Estado de Goiás. Atualmente o território representa a maior área de
cerrado contínua, preservada no Brasil, cerca de 302.000 hectares.
Segundo o indigenista Fernando Schiavini (2006), a vontade do colonizador de exterminar os povos
nativos desta terra era tão forte, que essa mesma história é ensinada nas escolas, absurdamente, colocan-
do-os sempre no passado. “Isso faz com que a grande massa da população praticamente desconheça a
existência atual de cerca de cento e oitenta línguas indígenas faladas no país, pelos povos que resistiram
ao extermínio” (SCHIAVINI, 2006, p. 14)6.
Conhecido por rir muito, o povo Krahô tem, entre suas tarefas cotidianas, a caça, o plantio e o riso.
Eles consideram que a alegria é um elemento-base de sua sociedade, e os hôxwas, para cumprir essa tarefa,
usam a força do riso, da doçura e do escárnio. Dentre suas funções, instauram o avesso, falam o que os
outros calam, ensinam o certo ao agir de forma errada, desmistificam o erro, fortalecem a autoestima
e unem o grupo através da alegria, do abraço e da conversa, garantindo a sobrevivência de sua cultura
milenar.
Segundo o Krahô Getulio Cruacraj, o hôxwa é um grande guloso. Se você tem carne na sua casa, ele
não sai de lá enquanto não comer tudo e que ele não se importava, porque hôxwa tem direito. Se fosse
outro ele não gostaria. O que acontece é que o hôxwa não estaria roubando, estaria brincando. Cruacraj
enfatiza que a lei do hôxwa é diferente. Por isso ele pode fazer qualquer coisa, entrar e sair de qualquer
lugar e namorar qualquer mulher da aldeia7. Vale a pena ressaltar que os hôxwas e suas brincadeiras apare-
cem no dia a dia da comunidade e também no ritual.
Se trata do ritual Pàrti o jàt jô pĩ, também conhecido como Festa da Batata, que ocorre normalmente
no mês de maio, período que marca a colheita da batata doce. O termo é constituído pelos elementos pàr,
que significa “tronco”, mais o sufixo aumentativo ti. Pode ser traduzido, pois, por “tronco grande”. Já o
termo jàt jô pĩ, é formado pelos elementos: jàt (batata-doce), jô (elemento de ligação) e pĩ (que significa
madeira ou árvore); é, pois, o “tronco ou tora da batata-doce”. Este é o único momento do ano em que
todos os hôxwas da aldeia se pintam, se reúnem no centro do kà (patio) e representam suas “esquetes”
cômicas (ver figura 2). Os movimentos feitos pelo líder hôxwa (ancião) – no caso da aldeia Manoel Alves
Pequeno, pelo líder Ismael Ahpracti– são reproduzidos pela fila de adultos, jovens e crianças hôxwas e
imitam a flor da abóbora (ver figura 3).

6
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, foram identificadas
305 etnias e mais de 200 línguas faladas por estes povos. Além disso, 900.000 indivíduos se autodeclararam indíge-
nas no Brasil.
Essas declarações do Getulio Cruacraj se encontram na dissertação de Mestrado da antropóloga Ana Gabriela
7

Morim Lima (2010).


50 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
FIGURA 2- Hôxwas y Hôxwarés e FIGURA 3- Hôxwas entrando no kà (Pátio Central)
Ritual Pàrti o jàt jô pĩ (Festa da Batata). Fotos: Arquivos pessoais. Data: 06/05/2014.

Na sequência, a transcrição de um relato sobre o mito que “originou” o rito Pàrti o jàt jô pĩ, feita por
Ismael Ahpracti no dia 11 de dezembro de 2013 durante o Seminário de Comicidade, realizado no I En-
contro Internacional de Palhaços de Cataguases, atividade que fez parte da pesquisa. Este relato contribui
para que possamos conhecer detalhes importantes sobre o hôxwa e, consequentemente sobre os diferen-
tes modos de viver e existir do povo Krahô.

Nós come milho, nós come batata, nós come abóbora, nós come croá, cana, essas coisas, tudo
nós come, então, teve uma aldeia, e plantando aqueles frutos, depois de fruto, formou, e não
comeram aquele fruto, e mudaram, porque que mudaram? Deixaram a roça plantada, essas fru-
ta, tudo dentro da roça, porque eles plantaram banana, plantaram abóbora, plantaram inhame,
plantaram várias coisas que nós come, dos frutos que nós come, e aí saíram, mudaram. Aí veio
um índio, e foi lá, mas quando chegou lá, já viu, encontrou já com as fruteiras fazendo esse
movimento, fazendo essa alegria, só que o rapaz, quando chegou e viu pra mode ele aprender
como é que ficou, por que de primeira não disse nada, não existia esse palhaço dos mehin né,
só por causa da fruta que saiu, pra fazer isso agora, aí de lá pra cá veio. Então, entrou dentro
de uma casa, até, dentro da minha casa,(...). Então o cara chegou entrou, e viu que tava movi-
mentando, e tava esse movimento só das frutas mesmo, aí chegou e ele, enquanto ele não viu
pro rapaz que chegou, ele ficou só olhando e, entrou e subiu lá no alto, naquele girauzim, lá em
cima. Então, escutando aquele cantiga, das fruteiras que estão fazendo a arrumação, e escutan-
do, só escutando, mas aí ele saiu fora pra saber como é que ia fazer esse movimento que vai
acontecer. Então, ele ficou escutando, ouvindo como é que é, quando terminou, o batata viu,
achou o rapaz que entrou, ele falou com os outros frutos: - Olha não sei quem é que entrou
dentro dessa casa, não sei quem é, mas eu vou ver quem é que ta aí em cima. (...) Olhando pra
cima, o rapaz estava olhando pra baixo, aí o rapaz pensou:- O que é isso? Será que é um...nós
saímos todo mundo e ta acontecendo assim, uma ação aqui? No krinkapé só as aldeias mesmo,
não tem gente, como é que pode fazer isso? E aí, o batata já respondeu o rapaz:- Olha, você
pode descer, eu quero contar pra você, você é igual eu, você ta escutando o nosso movimento,
né, eu vou explicar como é que é, eu vou explicar pra você. (...) - Olha, você plantou nóis, den-
tro da roça, os frutos que tem aqui, ta tudo fazendo arrumação aqui, você fez só plantar nóis,
largaram nóis e saíram pra plantar outra aldeia, como é que é isso? Então, nós combinemos,
e nóis estamos fazendo essa festa. Agora é pra você chegar lá na onde está os outros e chegar
lá você vai explicar como é que é.(...). Então a abóbora diz que é hôxwa, a abóbora diz que é
hôxwa por que você vê, tem abóbora branca, tem aquela abóbora rajada, essas cor aí. Então,
a abóbora contou que, depois fez assim e assim. E aí o rapaz ficou ajuntando como é que é.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 51
Então tá bom. Já que ele já tinha gravado, já tinha tudo na cabeça, e ele ficou queto aí, gravou
tudo. As cantigas, tudo ele gravou tudo. O movimento que ele tava olhando aí eles fizeram o
coro, fizeram a brincadeira, como que nós faz também, depois disso, e aí ele viu que foi assim.
O hôxwa saiu da fruta, por que a abóbora é hôxwa, a batata e a abóbora, e agora eu vou acabar
de contar. E aí ele foi, quando chegou lá, na aldeia, de volta, onde o povo tava, aí ele falou as-
sim: - Olha, é isso e isso e isso, nós plantemo a roça, nóis saímos de lá, dexemo a roça plantada,
e nóis saímos de lá e não cuidemos de colher, mas eu vi a festa, era do frutos que fazia lá dentro
mesmo da roça, na aldeia. Fez essa aldeia, fez esse tora, cortaram tora mesmo, por que é uma
madeira muito pesada que eles fazem, então eles fizeram, eles brincaram, o batata contou tudo
pra mim que é pra nóis fazer agora assim, e daí pra frente é pra nóis fazer isso.E com isso, o
que a gente já sabe, ganha aquele nome, que é hôxwa, e ele já vai ficando aprendendo, como
é que é, ele vai brincando, desde pequeno, desde os seis anos pra frente, ele já vai começar a
brincar, por que ele é hôxwa, o tio dele é hôxwa, O hôxwa saiu dessas fruteiras, da planta que
nóis come, então, é isso aí (AHPRACTI, 2012, depoimento, grifos da autora)8.

Segundo Lévi-Strauss, as histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem signifi-
cado, absurdas, mas pode-se dizer, apesar de tudo, que elas reaparecem por toda a parte. O antropólogo
sugere que devemos descobrir se existe um pouco de ordem atrás dessa aparente desordem, ao mesmo
tempo, nos alerta sobre a inexistência de um verdadeiro término na análise mítica, isto é, os mitos e seus
temas se desdobram ao infinito. “O pensamento mítico, totalmente alheio à preocupação com pontos de
partida ou de chegada bem definidos, não efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer.
Como os ritos, os mitos são intermináveis” (LEVI-STRAUSS, 2004, p. 26). Neste sentido, se compreen-
de que o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada, interpretada e
reinterpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.
Desta maneira, segundo a antropóloga Ana Gabriela Morim Lima, o mehi que viu o movimento da
festa poderia ser considerado um wajacá (pajé), que viu, ouviu, aprendeu e lembrou-se de tudo. Ensinou
aos outros que, desde então, fazem a festa todo ano. Nota-se, portanto, o papel central conferido aos sen-
tidos para a apropriação do conhecimento, “(...) o desenvolvimento da visão, da audição, do olfato e do
táctil são imprescindíveis aos processos de aprendizado relatados no mito e transmitidos no ritual e por
meio de práticas cotidianas” (LIMA, 2013, p. 11-12). Para a pesquisadora, as plantas são animadas e per-
sonificadas, percebidas através de uma estética que atribui significações simbólicas e morais, traduzindo
uma experiência multissensorial e de trocas de perspectiva entre humanos e plantas. No ritual, as plantas
são personificadas e os hôxwas brincam com a humanidade que as anima. Vale lembrar que a brincadeira
provoca medo, invariavelmente, acompanhado por um riso ao mesmo tempo assustado e excitado.
Desta forma, se percebe que o corpo do hôxwa é o canal máximo de sua expressão, das emoções, da
sua lógica (ilógica) e de sua graça. O hôxwa atua com o corpo e com a capacidade de ver o mundo às aves-
sas. Contudo, a imitação é feita à maneira do hôxwa que está aprendendo, em outras palavras, cada hôxwa
imprime no seu corpo a brincadeira e imprime à brincadeira suas próprias características.
O ator-pesquisador Ricardo Pucetti, integrante do Lume- Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Tea-
trais da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, esteve presente na aldeia Krahô para participar
da gravação do documentário Hotxuá, dirigido por Letícia Sabatella e Gringo Cardia em 20049. Segundo

8
O depoimento de Ismael Ahpracti Krahô se encontra na dissertação de mestrado: (ABREU, 2015, p.151).
9
A estreia do documentário cujo título é Hotxuá se deu em 2011. A maneira com que os Krahô escrevem a palavra
é hôxwa. As demais palavras do léxico Krahô dispostas no trabalho foram buscadas nos livros didáticos Krahôs,
lançados recentemente (2015). Os livros contam com a organização do professor da Universidade Federal do To-
cantins, Francisco Edviges Albuquerque. Entretanto, algumas palavras que utilizo não foram encontradas nestes
livros e assim, estão escritas como as escreveu Melatti nos anos 70. Ou seja, elas provavelmente estão escritas de
maneira que não condiz com a realidade atual, a partir do protagonismo Krahô na escritura de sua própria língua.
52 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Pucetti, o hôxwa “não é um personagem, mas uma função social que alguns escolhidos têm o privilégio de
possuir” (FERRACINI, 2006, p.158). Esta função é passada pelo nome, que segundo Schiavini é o maior
legado que os Krahô possuem.

Tradicionalmente, quando uma pessoa transmite um de seus nomes a uma criança, geralmente
seu sobrinho ou sobrinha, está passando toda a tradição de inúmeras gerações, além das funções
rituais que ele exerce na sociedade. Como os Krahô não possuem bens, o nome é o maior patri-
mônio que a pessoa possui e deve tentar enriquecer durante sua vida (SCHIAVINI, 2006, p. 11).

Juntamente com o nome pessoal de seu ketj (padrinho) ou tyj (madrinha), o indivíduo herda uma série
de relações sociais, como passar a pertencer a uma das metades do par wacmejê/catàmjê (verão/inverno)
e a ter os mesmos amigos formais daquele (a) que o (a) nominou. As relações do ipantuw (sobrinho ou
sobrinha), com seu ketj ou tyj, estabelecidas no “batizado”, são desenvolvidas desde cedo. Como contou
Ismael Ahpracti, a partir dos seis anos de idade eles já são vistos juntos nos ritos, onde desempenham os
mesmos “papéis”. Para o antropólogo Julio Cesar Melatti (1976), o nome é como um personagem que,
através dos tempos, vem sendo encarnado por atores diversos.

Ao invés de pessoa, seria mais apropriado fazer corresponder aos nomes pessoais craôs a
noção de personagem. Cada nome pessoal seria como que o nome de um personagem. A
sociedade craô seria constituída por um conjunto de personagens que, tais como os do teatro,
seriam eternos, fadados a repetirem sempre os mesmos atos. Os atos e as relações desses per-
sonagens seriam somente aqueles transmitidos junto com os nomes pessoais. Embora eternos
tais personagens seriam encarnados por atores diversos, que se sucederiam no tempo (ME-
LATTI, 1976, p. 145).

Assim, se o inxu (pai) ou inxe (mãe) de um craré (criança), seu ketj (padrinho), ou tyj (madrinha) ou seu
wejxum (avô) ou sua wejcahaj (avó) que lhe der o nome for hotxuá, a criança adquire, em suma, a função
social de “fazer rir”, de “brincar” e será conduzida/ensinada desde pequena a “interpretar” este “papel”
na aldeia. Vale lembrar que se a criança for uma menina e sua tyj ou a pessoa que lhe der o nome for
hôxwa, ela será uma hôxwa mulher, ou seja, este “papel”, diferente de muitos outros, pode ser vivido por
homens e mulheres. Entretanto, não é porque a pessoa recebe o nome de hôxwa que ela obrigatoriamente
se apresenta como tal: “Não se trata de um “dado pré-determinado”, mas uma “potencialidade dada” que
vem a ser “atualizada” ou não pelos atores” (LIMA, 2013, p. 9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo para a análise da hipótese, a princípio acreditei que o pertencimento múltiplo aos subgrupos
da etnocenologia (objetos substantivos, adjetivos e adverbiais) se daria simplesmente a partir do local
onde o hôxwa estivesse “atuando”. Ou seja, na cidade um fenômeno espetacular substantivo, na aldeia
durante o ritual adjetivo, e no dia a dia da comunidade adverbial. Entretanto, ao lançar um olhar atento,
com uma espécie de “lupa” nos diversos momentos e contextos, ao dialogar com Ismael Ahpracti e com
a comunidade na aldeia, se demonstra que o entrecruzamento dos subgrupos da etnocenologia e suas
características se dão, de forma clara e difusa em cada contexto e local.
Desta forma, a análise ultrapassa o lugar da manifestação e se aprofunda no hôxwa, em seu corpo,
suas ações e em tudo o que ele almeja revelar. Não se trata também de identificar os subgrupos a partir
da nomeação de etapas como “preparar, ritualizar e brincar”, por que os Krahô não utilizam esse tipo de
classificação e separação.
Assim, conclui-se que a “brincadeira” do hôxwa Ismael Ahpracti no Encontro Internacional de Palha-
ços é de forma clara, substantivamente espetacular, um ato pensado e produzido para o gozo do público,
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 53
não excluindo o fato de que as ações do hôxwa, vistas na cidade também podem ser vistas no ritual e na
aldeia; e também, de forma difusa, adverbialmente espetacular, quando se pensa na presença de Ismael
Ahpracti como um todo. Ou seja, ao se considerar o dia a dia do Encontro, a partir de fenômenos da
rotina social, consideráveis espetaculares, a depender do ponto de vista de um espectador, de uma atitude
de estranhamento, que os tornaria extraordinários. Em outras palavras, o hôxwa Ismael Ahpracti não foi
hôxwa somente no momento da “apresentação”, ele é hôxwa. Foram presenciadas em vários momentos
diversas de suas brincadeiras, seja no almoço, durante uma conversa, na rua e etc.
As rotineiras brincadeiras de Ismael Ahpracti, ou seja, a espetacularidade adverbial se mostrou, além
do Encontro na cidade de Cataguases, na Aldeia Multiétnica, na Feira de Sementes Krahô, no dia a dia na
comunidade Krahô e também durante o ritual. Em muitos momentos “interferindo” de forma cômica
e estimulante até mesmo em instantes “sérios”, como por exemplo, no momento em que as mulheres
cantavam no kà (pátio central), desde a madrugada até o amanhecer do dia; durante o “cortejo” onde
se lançava as batatas doces; e no “embate” entre as metades no centro do kà. Também em momentos
de descontração, quando os homens passavam “roubando” das mulheres seus cupentxês (tecidos que as
Krahô usam amarrado ao redor da cintura), no momento em que os hôxwas estavam se pintando e se pre-
parando para a “brincadeira” no centro do kà e nas transições entre os diversos momentos de descanso
e de pausa no ritual.
Nestas ocasiões citadas, o hôxwa aparece brincando, fazendo piada, criticando com ironia e humor algo
que não está sendo feito do jeito correto, como por exemplo, fazendo graça com as mulheres que erravam
a letra da canção que estava sendo cantada, com aquelas que não foram ao kà cantar e com os homens
que ficaram dormindo ao invés de ir para o pátio neste momento. Também incentivando os participan-
tes do ritual, divertindo, imitando, parodiando as pessoas, estimulando os que se cansavam e até mesmo
interferindo por interferir, brincando por brincar, porque o hôxwa tem o direito10.
No ritual, conclui-se que se trata de um objeto adjetivamente espetacular, onde o espectador é também
participante, o que não anula, sob meu ponto de vista, a distinção em vários momentos entre “atores”,
“espectadores”, “protagonistas” e “coadjuvantes”. Mas, se trata também de um fenômeno substantivado
que transpassa de forma difusa o ritual, quando, por exemplo, Ismael Ahpracti se veste escondido dentro
de uma das casas com uma máscara de macaco e uma peruca preta (que ele comprou na Rua 25 de Março).
Além disso, ele se enrola numa lona, coloca um saco nas costas e aparece de surpresa no meio do “cortejo”
(ver imagem 4), onde estão sendo cantados diversos cânticos e onde estão sendo atiradas as batatas.

FIGURA 4- Ismael Ahpracti Krahô meio ao ritual Pàrti ou Jàt jô


pĩ (Festa da Batata). Fonte: Arquivos pessoais. Data: 06/05/2014.
10
A etnografia que realizei do ritual que dialoga com etnografias realizadas anteriormente como a de Melatti (1976)
e Lima (2010) está disposta na íntegra na minha dissertação, anteriormente citada.
54 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
De forma difusa, pois, esta “interferência”, se assemelha à espetacularidade adverbial, já dita anterior-
mente como um fenômeno que também está presente no ritual em vários momentos, de diversas formas.
Porém, mesmo se tratando de uma “brincadeira”, que para muitos é rotineira, neste momento específico,
as suas características excedem o fenômeno adverbialmente espetacular da rotina social no ritual. Ismael
Ahpracti vestiu um personagem, criou uma fantasia, não era “ele mesmo” brincando, mas ele fantasiado,
interferindo propositalmente. Trata-se de um ato anteriormente pensado, tendo como função o diverti-
mento, o prazer e a fruição estética do “público”, ou seja, não se trata de uma ação rotineira espetaculari-
zada pelo olhar do pesquisador, por isso, a considero como substantivamente espetacular.
Desta forma, no ritual se pode observar o cruzamento de todos os subgrupos da etnocenologia, de
forma clara em alguns subgrupos (adjetivo e adverbial) e difuso em outro (substantivo). Na cidade se
entrelaçam a espetacularidade substantivada e adverbial, considerando o dia a dia do Encontro, a “pa-
lhaceata” e a apresentação da “brincadeira” por Ismael Ahpracti na praça; por fim, a espetacularidade
adverbial, presente em todos os contextos, vista por mim, pesquisadora, em diversos momentos no dia a
dia na aldeia, na cidade e também no ritual.
Atenta-se que o objetivo deste trabalho não é rotular, classificar, dar nome ou colocar o hôxwa dentro
de “caixas”, padronizando-o. Pelo contrário, a tentativa de provar que ele se trata de um fenômeno es-
petacular substantivado, adjetivado e adverbial, potencializa a discussão acerca dos léxicos, dos conceitos
da etnocenologia, que podem ser uma ferramenta a favor do etnocentrismo, caminho contrário ao obje-
tivado pela disciplina quando usados de forma superficial. Este pertencimento triplo indica, portanto, a
complexidade, pluralidade e peculiaridade do hôxwa e as possibilidades de interfaces e cruzamentos destes
subgrupos.
Finalizo sinalizando que a reflexão etnocenológica, bem como a filosófica segundo Caudillo e Ibáñez
(2015, p.29) devem continuar na busca pela superação dos hábitos coloniais interiorizados desde o pas-
sado histórico, como uma forma de redescobrir e combater o pensamento hegemônico. Este esforço
exige um re-aprender a pensar, assim, busca-se adentrar nos símbolos, nos imaginários, nas memórias, nas
práticas e ritos de outras culturas, não como objetos a serem conhecidos, mas sim como a voz vivente de
outros sujeitos que ainda são invisibilizados em nosso país.
Por isso a necessidade de atravessar as fronteiras culturais construindo pontes para as criações mútuas,
para as traduções e reinvenções conceituais e para a construção de uma utopia para além do pensamento
moderno. Ressalto que este trabalho prático-teórico continua em desenvolvimento e que o trânsito entre
a cidade e a aldeia, a universidade e os saberes indígenas continuarão sendo fonte de conhecimentos,
ideias, conflitos e problematizações. Afirmo que mesmo eu prolongando a minha permanência nas al-
deias Krahô, nunca chegarei a dispor de dados completos sobre o rito pesquisado, porque não sou uma
Krahô e não há uma relação entre cada rito e um só mito, “(...) na verdade há um grupo de mitos e um
grupo de ritos, mas cada um desses ritos se relaciona com todos os mitos e cada mito também se relacio-
na com todos os ritos” (MELATTI, 1978, p. 338).
Entretanto, acredito ser possível desestabilizar o “chão terraplanado onde o colonizador se permite
mover sem nunca pedir licença e sem tropeçar” (LEPECKI, 2003, p.8) e problematizar o redimir do ho-
mem ocidental ao seu passado via uma “celebração” da “cultura” do até ontem colonizado. Para que se
dance, brinque, jogue, ria e cante o problema do equilíbrio nada firme nem liso da história.

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56 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


ODO IYA! A CONSTRUÇÃO
DO CORPO-CENA NO ESPAÇO
SAGRADO DO CANDOMBLÉ
Ana Claudia Moraes de Carvalho1
Universidade Federal do Pará
aninhamoraesatriz@gmail.com

Resumo: O presente artigo mostra um estudo sobre o corpo com ênfase no processo de criação artís-
tica, construído epistemológica e metodologicamente com base na Etnocenologia. Visa compreender
o fazer ritual de uma comunidade de Candomblé Ketu, em Benevides-Pará, pela alteridade. Por meio
desse estudo, a partir das pesquisas realizadas nos espaços sagrados dos terreiros, noções de corpo foram
propostas: corpo-templo, da relação com as entidades; corpo-cena, na construção do corpo da atriz; e em sua
derivação enquanto corpo-encostado pela força cósmica das entidades apadrinhando o trabalho artístico.
Assim, a Metodologia Circular, maneira de pensar e organizar a pesquisa etnocenológica pela vivência da
atriz e de seu corpo na comunidade, contribuiu para o estudo sobre Ritos Espetaculares, que abriga o
desenvolvimento de noções etnocenológicas construídas a partir da relação com o outro e de seu fazer
enquanto prática sagrada.

Palavras-chave: Etnocenologia; corpo; processo de criação; alteridade.

Abstract: This article shows a study of the body with emphasis on the process of artistic creation, a
work that was built epistemological and methodologically based on Etnocenologia. It aims to understand
the ritual in a community of Candomblé Ketu in Benevides Pará, by otherness. Through this study, from
research in the sacred spaces, body concepts were proposed: body-temple - the relationship with the en-
tities; body-scene - the body of the actress in construction; and its derivation as a body-leaning through
the cosmic force of the entities sponsoring the artwork. The Circular methodology that founded the way
of thinking and organizing the etnocenológica research by the experience of the actress and her body in
the communit, it was the method that contributed to the study of Rites Spectacular, which houses the
development etnocenológicas notions built from the relationship with the other and do while your sacred
practice.

Keywords: Etnocenologia; Body; creation process; otherness.

1
Possui graduação em Pedagogia e pós-graduação em Psicopedagogia Preventiva pela Universidade do Estado
do Pará e pós-graduação em Estudos Contemporâneos do Corpo pela Universidade Federal do Pará. Atualmente
é Coordenadora Pedagógica e professora de Educação Inclusiva na EEEM Alexandre Zacharias de Assumpção/
SEDUC e mestra em Artes pelo Instituto Ciências das Artes/ICA- UFPA. Trabalhou como instrutora de dança-
-teatro com as crianças do projeto de Iniciação Artística da Fundação Curro Velho. Tem experiência na área de
Artes, com ênfase em teatro e dança. É atriz e bailarina da Companhia Atores Contemporâneos e da Companhia
Brasileira de Cortejos. É membro do Grupo de Pesquisa em Etnocenologia e Carnaval - TAMBOR. Atualmente
trabalha como professora e orientadora convidada no PARFOR/UFPA, no Curso de Graduação em Teatro e é a
Primeira Porta-Bandeira da Escola de Samba Rosa da Terra Firme.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 57
INTRODUÇÃO

A pesquisa que venho relatar fez parte do processo de formação acadêmica do curso de Mestrado em
Artes pela Universidade Federal do Pará. Os estudos iniciaram no ano de 2012 com as idas aos terreiros
de Candomblé na cidade de Belém do Pará. Meu interesse pelo campo religioso se deu pelo conhecimen-
to de que os filhos de santo quando se iniciam, pintam seus corpos em oferenda aos orixás.
Os primeiros contatos com o Candomblé aconteceram quando ainda nem tinha oficialmente entrado
no curso de Mestrado em Artes. Após as visitas iniciais fui, pela primeira vez, jogar búzios para pedir
permissão e realizar a pesquisa no terreiro Yle Ase Oba Okuta Ayra Yntyle, localizado em Benevides,
região metropolitana de Belém. Além da permissão concedida, soube que meus orixás de cabeça eram:
de frente Yemanjá, depois Xangô e Yansã. Coincidentemente, a Yaô que estudei para essa pesquisa é de
Yemanjá Ogunté. O cavalo de Yemanjá, como são chamados no terreiro, Marckson de Moraes, também
é artista da cena e Yaô desde 2012.
A casa do Yle Ase Oba Okuta Ayra Yntyle cultua o Candomblé e a Umbanda, detalhe muito impor-
tante em minha trajetória como pesquisadora. São dois terreiros em um mesmo espaço. Pai Lucino Abay-
tan, de Oxun, é o Babalorixá da casa. As pesquisas foram intensas e transformadoras, construíram meu
trajeto enquanto atriz-pesquisadora-participante. As primeiras visitas ao terreiro me causavam temor,
fruto do desconhecimento e preconceito católico impregnado em mim. Contudo, a primeira saída de
santo que participei foi impactante e transformadora. A energia que emanava do espaço era contagiante.
Depois dessa experiência, outras vieram para me conduzir à descoberta de um mundo novo.
Esse estudo tem como base epistemológica a Etnocenologia, princípio metodológico-filosófico-ético,
para a construção do conhecimento pela alteridade, onde teoria e prática são indissociáveis. Além disso,
o meu corpo, como a própria pesquisa nesse processo, revela a diferenciação do estudo etnocenológico,
com base na ancestralidade do Candomblé e de sua cosmologia.
Inicialmente a pintura com o efun, pintura sagrada, foi o que me chamou atenção para a pesquisa. En-
tretanto, o efun é uma parte do ritual de iniciação ao Candomblé, de nação Ketu, que ampliou meu cam-
po de investigação e de afetividade. Do campo sagrado do terreiro foi possível construir, artisticamente,
dois processos cênicos intitulados Flor de Efun e Iyá – Rainha do Mar, reafirmando a arte em meu corpo
como sagrada, onde a separação entre sagrado e profano não existe, assim como os rituais dionisíacos.

DESENVOLVIMENTO

A aproximação com o Candomblé me oportunizou a elaboração de noções de corpo sobre o fenôme-


no estudado. Da relação do filho de santo com sua entidade, sob a força cósmica e ancestral do corpo que
recebe o orixá, dei o nome de corpo-templo, um corpo sagrado, único, especial. O corpo-templo é escolhido
por seu orixá, por isso nem todas as pessoas podem ser templo de um orixá. A imagem a seguir revela
de forma singular esse corpo escolhido por sua entidade:

58 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Fonte: Guy Veloso
Nota: Corpo-templo revelação da relação cósmica e ancestral
do cavalo com seu orixá. Benevides/Pa- 2002.

Yaô significa noviça, noiva do orixá, a Yaô antes da feitura de santo2. É chamada de abiã. Passa por um
processo de liminaridade (TURNER, 1974), durante 21 dias, em que aprende os preceitos, orikis3, danças
sagradas e todo ritual de feitura para culminar no dia da festa pública, onde será apresentada para a comu-
nidade, dando seu grito de orunkó4, anunciador de um novo membro da comunidade. O ritual de feitura é
secreto, somente pessoas autorizadas da casa podem participar do mesmo. À comunidade cabe a cerimônia
pública, a alegria de saber que a história do Candomblé se perpetua através de mais um filho que se inicia.
Verger (2012, p. 29) relata de forma poética o processo de liminaridade das Yaôs na saída de santo:

Após a iniciação, os iyaworisa têm neles, em estado latente, as divindades que, para manifestar-
-se, aguardam certas condições favoráveis. (...) Sacrifícios lhe são oferecidos; os iyawo toma-
ram o cuidado de purificar seus corpos através de banhos de decocção de folhas, a assistência
aguarda com fervor a chegada dos deuses; a orquestra chama os Orisa com insistência; as
iyaworisa cantam e dançam em círculo, em torno da sala, e são tomadas pelos ritmos familiares.
Tudo concorre para determinar o transe, para fazer com que as iyawo se identifiquem com
seus deuses, para provocar nelas o mesmo estado de embriaguez sagrada e de inconsciência em
que elas mergulham no momento de sua iniciação.

A iniciação ao Candomblé também é chamada de Feitura de Santo.


2

Cantos e poesias sagradas que são entoados nas festas de santo.


3

Grito do Orixá que revela seu nome na comunidade do Candomblé. Significa um renascimento na religião.
4

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 59


Após a iniciação, a Yaô segue por um tempo os preceitos próprios de sua feitura originando assim o
corpo-comunidade5 (CARVALHO, 2011). Essa noção de corpo estruturei em outro estudo de pesquisa sobre
pinturas corporais artísticas no Auto do Círio6, cabendo a todo e qualquer corpo social específico de uma
comunidade. Assim sendo, o corpo-comunidade apresenta a simbologia de um povo através de comporta-
mentos característicos para representar uma festa, um ritual, um preceito, uma feitura na sociedade. Nas
práticas humanas espetaculares encontramos muitos corpos-comunidade, em especial nos Ritos Espetacula-
res, onde há uma relação indissociável entre o fazer social e o religioso.
O corpo-templo da Yaô apresenta quatro saídas do roncó, quarto sagrado do recolhimento, no dia da
festa pública. Cada saída do roncó representa parte da cosmogonia do Candomblé renovada no ritual.
A primeira saída apresenta a pintura branca do Efun para agradecer Oxalá, pai dos orixás; a segunda
saída traz o Efun com as cores de seu orixá; ambas as saídas apresentam adoxo, espécie de cone sagrado
colocado estrategicamente no centro da cabeça da Yaô, por onde receberá seu orixá; na terceira saída do
roncó, a Yaô substitui o adoxo pelo Íle, penas brancas de pombo, neste momento há o ápice da festa com
o grito do orunkó; a quarta e última saída traz adereços e vestuário litúrgico, a Yaô traz seu orixá tal como
se apresenta em sua mitologia:

Fonte: Ana Moraes


Nota: Saídas da Yaô do roncó na festa pública de feitura de santo, repre-
sentação do corpo-templo na comunidade de Candomblé-Ketu.
5
Noção de corpo apresentada originalmente na pesquisa de Especialização sobre o estudo da Body Art no Auto
do Círio.
6
Espetáculo em forma de cortejo que é apresentado como Projeto de Extensão da Universidade Federal do Pará
na festividade do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, no Centro Histórico de Belém.
60 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Para conseguir recolher as informações necessárias à pesquisa, estruturei uma metodologia baseada
na roda do xiré, roda sagrada do Candomblé, e sua circularidade, intitulando de Metodologia Circular. Nela
agrupei ciências correlatas à Etnocenologia; noções autorais sobre corpo na e da pesquisa. A Metodologia
Circular é um pensamento epistemológico que está em constante movimentação circular, facilitando o
compartilhamento de informações e troca de saberes um pelo outro. Traz o objetivo da própria roda, da
circularidade, de perpassar olhares, sentimentos e coletividade, diversas vezes no mesmo ponto. A Meto-
dologia Circular se inspirou na roda do Candomblé e sua comunidade a fim de desenvolver essa pesquisa
do espaço sagrado para a cena.
A partir da vivência com o Candomblé e sua comunidade pude obter material cênico para montar dois
solos, processo criativo de corpos artísticos que intitulei corpo-cena, como resultado das pesquisas sobre o
corpo no ritual de iniciação.
O primeiro solo foi realizado com base no corpo da Yaô na festa pública e suas saídas do roncó. Con-
sistia em uma Yaô que demonstrava o estado da arte de minha pesquisa. Não seguia um padrão único,
revelava propositalmente uma mistura de informações e simbologias adquiridas na primeira etapa da
pesquisa. A esse primeiro solo nomeei de Flor de Efun. Foi apresentado no Espetáculo O Auto do Círio,
em 2012. Flor de Efun trazia informações sobre a simbologia do ritual de iniciação, o corpo da Yaô, sua
dança, sua incorporação, sua relação com o orixá. Abaixo imagem sobre o solo no cortejo:

Fonte: Gitano Studio


Nota: Corpo-cena Flor de Efun, no Espetáculo
O Auto do Círio. Belém/Pa. Março/2012.

O segundo solo intitulado Iyá – Rainha do Mar - apresentei no mesmo espetáculo no ano de 2013.
Trazia artisticamente o corpo de uma Yaô de Yemanjá Ogunté modificado pela presença do orixá. Para
Suzana Martins (2008), sua vestimenta litúrgica é composta de branco, prata e azul, marcando em sua
roupa traços da influência europeia/portuguesa. Entretanto, quis trazer no solo a continuação de meus
trabalhos com a pintura corporal. Assim, minha Yemanjá trazia pintura ameixa com pedrarias pratas e
seu vestido branco com prata. Consistiu na apresentação da dança suave de Yemanjá com os movimentos
frenéticos do guerreiro Ogun, marcando arquétipos dos dois orixás. Para Martins (2008), essa dualidade
entre o masculino e o feminino, como divindade da água e da terra, é a principal característica da dança
de Yemanjá Ogunté. Abaixo a imagem do solo Iyá – Rainha do Mar:

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 61


Fonte: Guy Veloso
Nota: O corpo-cena trazendo o resultado da pesquisa
sobre o corpo e sua relação com a entidade no
Candomblé. O Auto do Círio. Belém/Pa. 2013.

No corpo-cena que apresentei, nos dois solos artísticos, havia um diferencial que só descobri depois. As
apresentações no Auto do Círio chamavam atenção do público de maneira impactante. A meu ver, era
apenas trabalho de treinamento de atriz, muita pesquisa e experimentação em meu corpo. Entretanto, em
uma visita a uma festa, já não mais de Candomblé, mas de Umbanda, me foi revelado que todas as vezes
que trato de questões religiosas na arte não estou só. Quando me é concedido a permissão de pesquisar
e experimentar em meu corpo algo que transcende nossa capacidade humana, de fato, não estou só. A
partir dessa revelação, pude compreender que nos solos artísticos que apresentei sobre a Yaô de Yemanjá
Ogunté existia em mim um corpo-encostado, apadrinhado pelo orixá, numa espécie de proteção ao meu
fazer artístico. Essa revelação fez toda a diferença para perceber que algo a mais existia positivamente
em mim quanto a vê mais próxima, pela arte e pela vida, de uma coletividade irmanada. A função social
da arte em disseminar o saber sagrado dos rituais para a sociedade foi a grande relevância dessa pesquisa
fincada na Etnocenologia e em suas reverberâncias embasadas na alteridade dos povos.

CONCLUSÃO

O corpo-encostado traduz parceria, alteridade e irmandade para o bem comum de uma comunidade ainda
discriminada pelo preconceito. A construção do corpo-cena no espaço sagrado do Candomblé me revelou
um estado de embriaguez sagrada Verger (2012), uma forma diferenciada de fazer arte, não para a tole-
rância mas para o respeito. Quando no início desse texto informei a importância de saber que o terreiro
de Pai Luciano Abaytan cultuava tanto o Candomblé quanto a Umbanda, foi porque em meados a pes-
quisa de Mestrado descobri que meu pai (in memoriam) era cavalo de Pena Verde, entidade da Umbanda.
O fato de ser filha de um cavalo fez com que eu procurasse o caminho de uma ancestralidade negada
a mim. Atualmente adenso minha pesquisa sobre o corpo-cena no espaço sagrado da Umbanda, que na
região amazônica é de grande influência em diversas comunidades. Isso garante que meu trajeto etno-

62 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


cenológico se conecte ainda mais comigo mesma, agregando com isso à organização metodológica do
trajeto-projeto-objeto e AFETO de Santa Brígida (2015), a construção epistemológica de minhas pes-
quisas posteriores. Assim como o corpo-encostado foi uma valorosa aquisição para minha vida, a pesquisa
que iniciei nos Ritos Espetaculares, e que darei continuidade, me fez compreender que a arte tem além
da função de alimentar a alma, também a de revelar, pela alteridade com os povos, a importância social
e ancestral de perpetuar esteticamente os saberes comunitários, seja na contemplação de um corpo-templo,
seja na construção de um corpo-cena, seja no apadrinhamento do corpo-encostado.

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I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 63


RITUAL, FESTA E NAÇÃO:
ALGUMAS ACEPÇÕES CHAVE
PARA PENSAR O MARACATU-
NAÇÃO
Cássia Batista Domingos1
Universidade Federal da Bahia
cadomingos3@hotmail.com

Resumo: Esta comunicação se dedica a esclarecer algumas noções caras aos estudos da etnocenologia,
tais como ritual e festa, além da acepção de nação, importante para compreensão das práticas do ma-
racatu-nação nesse contexto epistemológico. Portanto, é objetivo desse texto relacionar essas noções
advindas de diversas áreas do saber a uma tradição cultural espetacular que acontece, com grande expres-
sividade, nas ruas da cidade do Recife. O maracatu-nação é fonte de inspiração para o trabalho cênico
desenvolvido pelo grupo Maracatu Nação Pernambuco, que foi objeto da minha dissertação de mestrado,
concluída em 2015. Dessa forma, faz-se relevante pensar a referida tradição cultural como ritual, como
festa e como nação, considerando que estas qualidades estão imbricadas na vida, em curso, do maracatu-
-nação, assim como que elas se transformam no corpo desse objeto ao mesmo passo que o espaço-tempo
se transforma.

Palavras-chave: ritual, festa, nação, maracatu-nação.

Abstract: This paper is dedicated to clarify some valued notions to the ethnoscenology studies, such as
ritual and celebration, besides the meaning of nation, important for the understanding of the maraca-
tu-nação practices in that epistemological context. Therefore, the approach aims to relate these notions
arising from different areas of knowledge to a spectacular cultural tradition that happens with great ex-
pressiveness, in the Recife city streets. The maracatu-nação is a source of inspiration for the scenic work
of the group Maracatu Nação Pernambuco, which was the subject of my dissertation, completed in 2015.
So, it is relevant to think that cultural tradition as a ritual, as celebration and as a nation, considering these
qualities are connected in life, ongoing, maracatu-nação, so as they turn into the body of that object, at
the same pace, there are space-time changes.

Keywords: ritual, party, nation, maracatu-nação.

Doutoranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC)/UFBA. Bolsista
1

CAPES.
64 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Este texto se dedica a esclarecer algumas noções como: ritual, festa e nação. O objetivo desta expla-
nação é fornecer alguns subsídios para se pensar o maracatu-nação, tradição cultural do Recife que é
fonte de inspiração para o trabalho do grupo cênico Maracatu Nação Pernambuco, este, objeto de pesquisa
da minha dissertação de mestrado, intitulada “Maracatu Nação Pernambuco: das ruas para o palco – um
olhar sobre a trajetória” (2015).
O estudo dessas acepções dentro do contexto da referida dissertação é importante porque a trajetória
do Maracatu Nação Pernambuco parte do interesse dos seus componentes pelo universo ritual e festivo dos
maracatus-nação. Assim, considero de suma relevância enveredar pelas noções de ritual, festa e nação
para compreender aspectos da estrutura e do funcionamento da tradição do maracatu-nação na atualida-
de, bem como as circunstâncias socioculturais nas quais ela esteve/está envolvida.
Vale destacar que o maracatu-nação é uma tradição viva, portanto, seus rituais, as características da fes-
ta e o sentido de nação, estão em constante transmutação e em constante relação com o ambiente e seus
processos de transformação. Isto gera uma complexidade que está em pensar objetos culturais, uma vez
que estes não estão estáticos no tempo/espaço, eles se atualizam a cada momento, trocam com o meio e
reagem às mudanças do contexto.

RITUAL, FESTA E NAÇÃO

As noções sobre as quais me proponho a fazer uma sucinta explanação - ritual, festa e nação – darão
um suporte referencial para pensar o maracatu-nação. A começar pela noção de ritual, que permeia di-
versas esferas das atividades humanas. Como exemplifica Gillo Dorfles (1965), os ritos podem ter caráter
sacro, bélico, político..., mas também de diversão, lúdico, artístico, psicopatológico, tecnológico, etc. Se-
gundo este autor, os ritos acontecem por meio de comportamentos motores;

(...) executados por tadição [sic] ou superstição, por devoção ou por hábito, por adequação a
um costume, a uma lei, a uma norma extrínseca ou intrínseca, generalizada ou somente fami-
liar, individual, ocasional, devem considerar-se, em todo caso, elementos rituais que, pelo sim-
ples facto de serem praticados, repetidamente executados, determinam a verificação de uma
circunstância absolutamente particular (...) (DORFLES, 1965, p. 59).

Logo, os rituais são ações concretas que acontecem em espaços delegados para tal, pois esses lugares
são:

(...) locais privilegiados, dentro dos quais é obrigatório seguir um ritual de que estão imbuídos
e de que não poderíamos libertar-nos mesmo que quiséssemos: as estações, os terminais dos
aeroportos, os correios, as instalações sanitárias (DORFLES, 1965, p. 61).

Assim também, alguns objetos são acompanhados de um ritual preciso para Dorfles (1965). Por exemplo,

O telefone não é mais do que um dos muitos objetos – dos mais típicos e conhecidos – que
são acompanhados de um ritual preciso: “Está lá?”, “Quem fala?”, “Alô!”, etc,; a maneira de
empunhar o auscultador, de girar o disco, de apoiar o auscultador no aparelho (DORFLES,
1965, p. 61).

Embora Gillo Dorfles ressalte o caráter geral dos rituais na vida cotidiana, com frequência os ritos são
associados ao sagrado, às práticas religiosas, ao mito. De fato, os mitos estão imbricados numa relação
com o sagrado, pois, como explica Mircea Eliade (2011) os mitos descrevem a irrupção do sagrado, ou
do sobrenatural, no mundo através de uma história sagrada. Ainda para Eliade (2011) os protagonistas
dos mitos são geralmente Deuses e Entes Sobrenaturais e eles fazem parte de narrativas sobre a origem
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 65
do Mundo, dos animais, das plantas e dos homens, como também os acontecimentos primordiais que
converteu o homem à sua condição de ser mortal, sexuado, social, obrigado a trabalhar para viver e con-
dicionado a trabalhar sob determinadas regras.
Contudo, os rituais também estão relacionados à forma de representação desses mitos dentro de um
contexto de culto ou de celebração religiosa. Sobre isto, Johan Huizinga explica:

O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama,
isto é, uma vez mais, um ato, um ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma
de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento
cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representa” não expri-
me o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina;
porque aqui “representação” é realmente identificação, a repetição mística ou a reapresentação do
acontecimento. O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente
reproduzido na ação. Portanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a
uma verdadeira participação no próprio ato sagrado (HUIZINGA, 2012, p. 18).

Todavia, Dorfles (1965) estabelece a distinção entre rito e mito baseada no elemento motor do rito
que, para ele, se caracteriza por uma atividade corpórea específica e intencionada. Mas Eliade (2011) rea-
proxima rito e mito ao indicar que o mito é “vivido” ritualmente quando ele é narrado cerimonialmente,
ou quando se faz um ritual para o qual ele, o mito, serve de justificação.
Entretanto, o significado de um ritual para uma sociedade ou grupo específico é mutável com o passar
do tempo e com as transformações das circunstâncias. Alguns exemplos disto são dados em um texto
que analisa os rituais da monarquia britânica, quando David Cannadine (2014) ressalta, por exemplo, que
mesmo um ritual como o de uma coroação, que sempre se repete da mesma forma, pode ter seu signifi-
cado alterado profundamente dependendo da natureza do seu contexto.
Continuando sua explanação, Cannadine (2014) explica que a própria execução do ritual é dinâmica e
elástica, pois ele pode ser ora bem executado, ora mal executado, pode ser cuidadosamente ensaiado ou
realizado de qualquer maneira, os participantes podem se mostrar mais ou menos interessados, e assim
por diante. Assim também, um mesmo ritual pode significar coisas diferentes para pessoas e/ou épocas
diferentes.
Outro ritual de coroação, esse mais pertinente ao tema desta pesquisa, pode ser exemplificado pelo o
ritual de coroação das rainhas dos maracatus-nação. A esse respeito, Isabel Guillen (2007) informa que
esta prática ritual persistiu ao longo do século XX, ainda que esporadicamente. A autora explica que o
maracatu-nação é permeado por uma série de rituais e que estes estão envolvidos em uma pluralidade
simbólica e de significados.
Assim como Cannadine (2014), Guillen (2007) acredita que ao tratar dos rituais deve-se levar em
conta as mudanças históricas e não tomá-los como se fossem sempre os mesmos. A partir disto, a
autora atenta que “É possível pensar que tanto nas práticas quanto no universo simbólico as coroações
podem significar aspectos muito diferentes, dependendo do momento histórico em que se esteja discu-
tindo” (GUILLEN, 2007, p. 182).
Contudo, para Guillen (2007), a coroação, de modo geral, se constitui como uma cerimônia de con-
firmação do poder real que requer ritos particulares. A respeito das recorrências nos rituais de coroação
das rainhas do maracatu-nação, a autora destaca o caráter sacralizador destas cerimônias que, tradicional-
mente, são realizadas por padres, pais de santo ou mães de santo. Outros sinais desse teor sacralizador
do ritual está na importância da rainha ser uma mãe de santo para assumir tal papel num maracatu-nação,
assim como os lugares escolhidos para o ritual, como por exemplo: Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
Pátio do Terço (onde acontece a Noite dos Tambores Silenciosos do Recife e onde já moraram impor-
tantes mães de santo) e terreiros de Xangô.

66 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Esses lugares estão impregnados de carga simbólica para os maracatus- nação. Todavia, os lugares do
ritual, os realizadores da cerimônia e a formação religiosa dos coroados, são elementos que trazem uma
carga de reconhecimento para o ritual:

Ainda que muitas vezes eivado de um caráter “pantomímico”, a coroação permitia que reis e
rainhas de maracatu fossem reconhecidos como tal não só pelos de sua “nação”, mas também
pelos poderes constituídos que permeavam a relação dos maracatus com a sociedade de forma
mais geral, podendo ser compreendido como uma performance do poder dos reis e rainhas de
maracatu (GUILLEN, 2007, p. 199).

Quando Guillen fala de um “caráter pantomímico” da coroação, ela se refere a alguns rituais nos quais
seu significado poderia ser reduzido a um jogo cênico, nos casos, por exemplo, em que os reis pertencen-
tes ao Xangô se submetem à uma benção na Igreja Católica por uma questão de reconhecimento social.
A autora ressalta ainda que “para as nações de maracatu, a coroação é tida como um ritual de reconheci-
mento e sacralização do poder real” (GUILLEN, 2007, p. 200).
Por falar em jogo cênico e pantomima, Patrice Pavis (2011) contribui para a discussão com a sua noção
de Ritual da Encenação:

Além da história, sempre problemática, de uma filiação da arte ao rito, é preciso observar que o
ritual impõe “aos actantes” (aos atores) palavras, gestos, intervenções físicas cuja boa organiza-
ção sintagmática adequada é o aval de uma representação bem sucedida (PAVIS, 2011, p. 346).

Logo, o ritual estando ou não relacionado à uma carga mitológica, religiosa ou sagrada, a perpetuação
do evento pode levá-lo a ser considerado uma tradição para um determinado grupo, como é o caso da
coroação das rainhas nos maracatus- nação. Porém, um ritual pode desaparecer quando algumas tradições
são modificadas:

Naturalmente, nem seria preciso acrescentar que, se num hipotético amanhã, a união do sexos
se efectuasse de modo diverso, não já com a actual característica de exclusividade (pelo menos
temporariamente), e a instituição do matrimônio entre dois indivíduos desse lugar a um novo
tipo de poligamia, também o elemento ritual iria progressivamente desaparecendo e perderia
toda a razão de ser, tal como já aconteceu com muitas práticas cerimoniais, anteriormente liga-
das à maturidade dos sexos, aos ritos da fertilidade, etc (DORFLES, 1965, p. 58).

Desse modo, algumas práticas culturais ritualizadas podem deixar de existir através das mudanças de
hábitos e/ou de ideologias das sociedades e assim dar lugar a novos rituais. Um bom exemplo de prática
ritual que se transforma ritualmente, e que agrega novos ritos ao seu domínio, são as festas. De caráter
alegre, as festas agregam pessoas em celebrações extracotidianas;

A festa começa por ser divertimento e, sublinhemo-lo já, divertimento muitas vezes gratuito:
reunião de pessoas com seus fatos (vestimentas) novos, ou fantasiadas, mascaradas com cha-
péus e fitas. Por toda a parte, as cores e as decorações fazem a alegria dos olhos e colocam
esse dia de júbilo à margem da rotina e do ritmo da vida cotidiana (HEERS apud OLIVEIRA,
2006, p. 68).

Entretanto, Érico Oliveira discorda de Jacques Heers quando este usa a expressão “divertimento gra-
tuito”, pois “em toda e qualquer realização festiva, seja ela qual for, há sempre um vínculo com a realidade
de seus praticantes. Mas, o caráter de divertimento realmente é característica vital da festa, assim como do
jogo” (OLIVEIRA, 2006, p. 68).

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 67


Johan Huizinga (2012) atribui à festa um espírito de alegria e de liberdade delimitado em um universo
próprio, cujo valor é temporário. O autor ainda trata da tênue relação entre o jogo e a festa:

Existe entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma
eliminação da vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente,
pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos
encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a
festa e o jogo tem em comum suas características principais (HUIZINGA, 2012, p.25).

Sobre a menção feita por Johan Huizinga, a respeito da festa que pode ser séria, José Ramos Tinhorão
pode contribuir com a sua análise das festas que ocorriam na época do Brasil Colonial, pois;

Festas de caráter coletivo – tal como hoje a do carnaval, por exemplo


– eram inconcebíveis ao tempo da chegada ao Brasil de portugueses oriundos de uma Europa
mal saída do controle teocrático da sociedade, através do conceito de responsabilidade pessoal
ante ao pecado, que impunha aos cristãos vigilância permanente contra os impulsos pagão-dio-
nisíacos herdados do mundo antigo (TINHORÃO, 2000, p. 7).

Naquele momento, segundo Tinhorão (2000), as festas públicas não estavam primordialmente rela-
cionadas à fruição do impulso individual em prol de um momento lúdico mas, antes, estavam atreladas à
ocasião de sociabilidade festiva propiciada ora pelo Estado, ora pela Igreja Católica. Entretanto, o autor
atenta que as pessoas terminavam por “transformar em diversão pessoal o que lhes era apresentado como
evento oficial ou de devoção” (TINHORÃO, 2000, p. 8).
Nesse sentido, Lúcia Lobato traz para a noção de festa o seu caráter transgressor dos poderes regentes:

Já em sua origem latina a palavra festus significava a celebração de falsos deuses. Ou seja,
desde seu surgimento o termo revela seu caráter transgressor do poder ao inverter os valores
celebrando e conclamando o falso, o que não era considerado verdade. No clima das festas há
um mundo real, um mundo imaginário e um momento orgiástico que se realizam num mesmo
contexto recortado do cotidiano, desafiando o regulamento oficial, as regras, os códigos, a
moral e o modelo (LOBATO, 2011, p. 8).

Mesmo existindo regras dentro da estrutura das festas, são características importantes deste tipo de
prática ritual a ludicidade e a utopia, como atenta Lobato (2011), pois mesmo em um tempo e em um
lugar delimitados, a festa está imbricada na realização do desejo.
No entanto, apesar da ludicidade, do caráter utópico e da potencial realização de desejos, elementos
presentes no contexto das festas e da vida cotidiana não estão separados por uma distinção entre o que
é ou não é real. Mesmo porque:

(...) a festa instala-se na verdade do efêmero e do simbólico, como se um mundo transversal


mantivesse contato, direto ou indireto, com a vida corrente e que, durante seu período de
realização fosse a própria vida; uma outra vida que suspende, provisoriamente, mas não total-
mente o real, simplesmente transmuta-o, sublima-o, reorganiza-o e liberta-o das convenções
pré-estabelecidas (OLIVEIRA, 2006, p. 71).

Desse modo, a festa está conectada com a vida corrente do seu contexto histórico e social. Trazendo
mais uma vez Tinhorão (2000) para esta discussão, este autor argumenta que durante o período colonial
no Brasil, as festas estavam relacionadas à velha fórmula “religião-espetáculo”, que só começou a per-
der força a partir do surgimento das diversões públicas voltadas aos desejos da burguesia, ao longo do

68 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Segundo Império, tais como: as festas carnavalescas de rua, os bailes públicos e os espetáculos do teatro
musicado.
Porém, estas novas formas de festa, sobretudo as do carnaval de rua, ainda trazem marcas dos moldes
coloniais, pois são:

(...) as marcas da velha tradição, que não se desintegrava sem passar às novas formas de di-
versão citadinas seus traços mais ostensivos: a organização processional dos futuros blocos,
ranchos de carnaval e escolas de samba, e a vocação para as encenações coletivas, através da
armação de enredos e do uso de fantasias (TINHORÃO, 2000, p. 133).

No universo das festas carnavalescas de rua, em Recife e Região Metropolitana, está o maracatu-na-
ção, que é fonte de inspiração para o trabalho desenvolvido pelo grupo que é objeto desta pesquisa, o
Maracatu Nação Pernambuco. Embora o grupo tenha a palavra “Nação” no seu nome, entendo que o
significado do termo “nação” é diferente para uma nação de maracatu. Conforme chama a atenção As-
censo Ferreira:

O maracatu não é “Clube” – é “Nação...”


- Nação Porto Rico!
- Nação Cambinda Velha!
- Nação Leão Coroado! (FERREIRA, 1951, p. 16).

Os maracatus do Recife e Região Metropolitana costumam usar a terminologia “Nação” em seus


nomes. Mesmo alguns grupos percussivos - ou de maracatu espetáculo – também usam “Nação” para
compor o nome das suas agremiações, como é o caso do grupo pesquisado neste trabalho. Contudo, a
designação “nação” faz alusão aos grupos de negros que vieram escravizados ao Brasil e que eram orga-
nizados em grupos denominados de nações.
A respeito disso, Ivaldo Lima atenta que:

A “nação” do período escravista, no entanto, não poderia ser vista ou considerada como um
grupo étnico homogêneo, mas uma forma pela qual vários povos foram agrupados e organi-
zados, levando-se em conta o porto por onde eram embarcados, bem como as afinidades e
compartilhamento de práticas, dependendo da perspectiva em que observa o processo de cria-
ção dessas nações, sejam elas do ponto de vista dos traficantes e senhores, seja ela do escravo
(LIMA, 2013, p. 68).

Portanto, Lima (2013) explica que as divisões desses negros escravizados por denominações de nações
não refletiam, necessariamente, a origem de nascença daquelas pessoas, pois:

O grupo étnico ao qual o escravo pertencia era levado em conta em alguns casos, quando da
identificação da nação do indivíduo, mas, grosso modo, o caráter definidor das nações no Bra-
sil era mesmo o porto de embarque, a marca que garantia a procedência do “produto” vendido
no “novo mundo” (LIMA, 2013, p. 70).

Um pouco adiante, Lima (2013) esclarece a diferença entre “grupo de procedência” e “grupo étnico”.
O autor explica que, no sentido aqui exposto, o “grupo de procedência” não seria um grupo efetivamente
existente no continente africano – neste caso seria um “grupo étnico” -, mas um grupo que foi embarca-
do para o Brasil num determinado porto, onde foi classificado como uma nação “a” ou “b”.
Diante da pluralidade étnica existente dentro das nações que chegavam ao Brasil, Lima (2013) reflete
que uma nação que é denominada como nagô em Pernambuco tem características diferentes das
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 69
nações nagôs de Alagoas, Paraíba e Sergipe, por exemplo. Segundo o autor, “Mesmo nas “nações religio-
sas” da atualidade predomina a diversidade, e inexistem relações que possam ser vistas como originadas
de um único grupo étnico” (LIMA, 2013, p. 72).
Logo, Ivaldo Lima (2013) afirma que a discussão sobre a criação das nações é, acima de tudo, política.
Então;

Assim sendo, entendo que “nação”, inicialmente uma identidade atribuída no âmbito do trá-
fico Atlântico, acaba sendo incorporada pelos grupos organizados no cativeiro e servindo
como ponto de referência tanto para o reforço de antigas fronteiras étnicas e territoriais, como
para o estabelecimento de novas configurações identitárias, sejam elas étnicas, ou não (SOA-
RES, M. apud LIMA, 2013, p. 74).

Em suma, ao longo do tempo o sentido de nação foi sendo recriado dentro dos próprios grupos,
assim como na sociedade de modo geral. Ivaldo Lima (2013) expõe que no decorrer da segunda metade
do século XIX, a maioria das nações deixaram de ser usadas como autorreferência étnica ou identitária,
pois, com o fim do tráfico de escravos, a população passa a chamar de “africanos” os escravos oriundos
da África, em oposição aos negros escravizados nascidos no Brasil.
Mas é válido ressaltar ainda que “Essa África imaginária permite, em outras palavras, cruzar o abismo
produzido pelo tráfico. Essa África ainda é fundamental para a constituição das identidades dos maraca-
tus-nação na atualidade, pois constitui o mito de origem” (LIMA, 2013, p. 80).
Assim também Guerra-Peixe (1980) considera o termo “nação” como referente aos grupos constituí-
dos de diversas origens africanas, os quais eram administrados por governador negro. Todavia, é preciso
considerar a grande diferença existente entre a concepção de nação do passado e a concepção de nação
da atualidade. Além disso, “se os terreiros constituem nações, os maracatus também o fazem, mas com
sentidos diferentes em muitos aspectos” (LIMA, 2013, p. 15).

CONCLUSÃO

Vale reiterar que o maracatu-nação possui rituais – tanto de ordem religiosa como de ordem não
religiosa -, participa de um universo de festa e se constitui como nação. Assim, esse fenômeno pode ser
considerado uma tradição das ruas do Recife e Região Metropolitana, que passa por constantes transfor-
mações dentro de um contexto cultural que também se transmuta.
Também deve-se considerar que há uma pluralidade de maracatus-nação, logo, cada grupo é dotado de
especificidades e possui uma dinâmica própria, mesmo tendo referências comuns com os demais grupos
de um passado que legitima a tradição. Portanto, essa relação entre o passado e a atualidade permeia a vida
dos maracatus-nação, essa é uma estratégia de manutenção dessa tradição cultural que segue realizando
antigos rituais, como o da coroação da rainha do maracatu, mas percebe as vantagens de divulgar suas
atividades nas redes socais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANNADINE, David. Contexto, execução e significado do ritual: a monarquia britânica e a “invenção


da tradição”, c. 1820 a 1977. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições.
São Paulo: Paz e Terra, 2014. P. 135-216.
DORFLES, Gillo. Novos ritos, novos mitos. Lisboa: Giulio Eirnaudi Editore, 1965. 247 p.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. 179 p.
FERREIRA, Ascenso. O maracatu. In: BORBA FILHO, H (org.). Danças pernambucanas: é de Tororó:
Maracatu. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1951. P. 13-32.

70 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


GUERRA-PEIXE, César. Maracatus do Recife. São Paulo, SP: Irmãos Vitale, 1980. 171 p.
GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Rainhas coroadas: história e ritual nos maracatus- nação do Recife.
In: LIMA, Ivaldo Marciano de França; GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Cultura afro-descendente no Recife:
maracatus, valentes e catimbós. Recife: Bagaço, 2007. P. 179–202.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012. 243 p.
LIMA, Ivaldo Marciano de França. Mas, o que é mesmo maracatu nação? - Salvador: EDUNEB, 2013.
154 p.
LOBATO, Lúcia. Algumas proposições para investigar as festas. In: LOBATO, Lúcia e OLIVEIRA,
Érico José de (Orgs.). Caderno do GIPE-CIT: grupo interdisciplinar de pesquisa e extensão em contempo-
raneidade, imaginário e teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro/Escola de Dança.
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Salvador, n. 26, p. 7-11, 2011.1.
OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ou-
tro (Condado – PE). Recife: SESC, 2006. 632 p.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2011. 323 p.
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000. 176 p.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 71


ETNOCENOLOGIA, UMA
PROPOSTA MÉTODO-GRÁFICA-
CALEIDOSCÓPICA

Cláudia Suely dos Anjos Palheta1

Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta metodológica para a disciplina etnocenologia por meio
da criação de um gráfico, feito a partir da composição tripartida da palavra etnocenologia e o significado
constituinte das três composições do vocábulo na compreensão da disciplina, tendo o caleidoscópio
como referência construtiva para o referido gráfico, onde o pesquisador valoriza teorias, referências,
experiências pessoais, trajetos, trajetórias e emoções em convocações, ações e reverberâncias reveladoras
de sua pesquisa. A proposta, aqui chamada de método-gráfica-caleidoscópica, objetiva proporcionar ao
pesquisador a possibilidade de que, além de realizador de sua pesquisa, seja também o construtor de seus
próprios métodos, deslocando-o de um lugar em que o mesmo se vê diante da pesquisa para colocá-lo
imerso na própria pesquisa, deixando-se cercar da pesquisa por todos os lados, enxergando-a não somen-
te como uma meta a ser alcançada mas como uma experiência a ser vivida.

Palavras-chave: artes, artes cênicas, etnocenologia, metodologia de pesquisa em artes.

Abstract: This paper presents a methodology for ethnoscenology discipline through the creation of a
chart, made from the tri-starting composition of ethnoscenology word and the constitutional significan-
ce of the three words compositions in understanding the subject, taking the kaleidoscope as constructive
reference to the proper graphic, where the researcher value theories, references, personal experiences,
paths, trajectories and emotions in calls, actions and revealing reverberations of its research.The propo-
sal, here called method graphic kaleidoscopic, aims to provide the researcher the possibility that, as well
as director of his research, is also the builder of their own methods, moving it from one place in which
it is faced with the research to put it immersed in the research itself, leaving surrounding research on all
sides, seeing it not only as a goal to be achieved but as an experience to be lived.

Keys words: arts, performing arts, ethnoscenology, research methodology in arts.

1
Mestre em Artes PPGARTES/UFPA. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da UFPA.
72 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
MEU TRAJETO NA ETNOCENOLOGIA

Retomando a história que me reúne a “etnociência das artes e formas de espetáculos”, lembro que
desde a primeira vez em que o professor Miguel Santa Brigida2 me apresentou à Etnocenologia, ela já veio
acompanhada pelo número três. Na ocasião, as três primeiras colocações feitas por Santa Brígida acerca
da disciplina foram que ela foi proposta pelo encontro do pensamento de três pesquisadores: Jean-Marie
Pradier, ChérifKhaznadar e Armindo Bião3; que sua nomenclatura se constituía em três partes, Etnocenolo-
gia. Disse ainda que,tomando a etnocenologia como teoria de base para a construção de sua tese de dou-
torado4, propôs o conceito de artista-pesquisador-participante, onde “o pesquisador assume e reafirma a
associação do conhecimento científico com o conhecimento artístico como premissa etnocenológica no
universo acadêmico” (SANTA BRIGIDA, 2006, p. 28).
O segundo contato foi em 2011 como aluna ouvinte da disciplina no curso de Licenciatura em Teatro
da Escola de Teatro e Dança da UFPA, quando, no terceiro mês de convivência, minhas atividades de
docente coincidiram com o horário e não pude dar continuidade às aulas. Participei da organização dos
dois Encontros de Etnocenologia realizados em Belém5, em rasos voos de observações em configuração
semelhante à proposta por Edith Derdyk (2001), me colocando no ponto de vista da ave de rapina, que
enquanto voa e observa a presa, observa também o espaço, as possibilidades de ação e toda a imagem da
cena do voo da qual é parte integrante, ultrapassando a si mesma; ainda que esteja ave de rapina, situan-
do-se no lugar da caça e do próprio voo.
No momento em que realizei a integralização dos cursos do doutoramento em História Social da
Amazônia/UFPA, transitando pelos caminhos da História com minhas pesquisas em artes, especifica-
mente sobre as artes carnavalescas, escolhi Etnocenologia como disciplina regular realizada no PPGAR-
TES/UFPA, novamente ministrada por Miguel Santa Brígida, e fiz desta escolha o meu campo de pouso
para vê-la de perto, andar em sua companhia e mergulhar na diversidade de suas abordagens.

REIVENTANDO A FORMA

O interesse de Santa Brigida pelo número três está presente em suas atividades artísticas, em suas pesquisas
de mestrado e de doutorado e se estende para a sala de aula do professor; assim ele dá início às aulas apresen-
tando a composição tripartida da palavra ETNO CENO LOGIA, em um gráfico que agrega, em cada uma
destas partes componentes da palavra, as significâncias, os caminhos e as abrangências da disciplina.
Na apresentação do gráfico teórico dividido em colunas, Santa Brigida expressa o incômodo que a
forma “quadrada” vem causando nele e nos pesquisadores envolvidos com a Etnocenologia, como se a
forma em uso já não fosse condizente com os designíos propostos e vivenciados pela disciplina; relatou
ainda as experiências anteriores desenvolvidas em turmas de graduação, especialização e mestrado, lan-
çando como desafio para a turma6 a proposição de outra forma. O desafio feito pelo professor chegou
a mim como o primeiro suspiro após o pouso, em que o corpo se ajeita, a cabeça se levanta e se dá o
primeiro passo. A seguir apresento o gráfico, em forma de colunas, utilizado pelo professor em suas aulas
expositivas:

No ano de 2008, no Instituto de Ciências da Arte.


2

A fundação do Centro Internacional de Etnocenologia, em Paris no ano de 1995, marca a criação da disciplina.
3

O maior espetáculo da Terra: o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro como cena contemporânea na Sapucaí
4

5
No I e no II Encontro Paraense de Etnocenologia, realizado em 2012 e 2014 respectivamente, pelo grupo de
pesquisa TAMBOR (Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia), do qual faço parte, fui membro da organi-
zação, cenógrafa e palestrante.
Turma de Etnocenologia, primeiro semestre / 2015 - PPGARTES-UFPA.
6

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 73


Figura 1 - Gráfico teórico metodológico usualmente apresentado por Santa Brígida em suas aulas.
Em sua pesquisa de mestrado, Ana Cláudia Moraes de Carvalho7 apresentou um outro formato de
gráfico, que chamou de “proposição metodológica de pensamento circular, inspirada na roda do Xiré -
roda ancestral do Candomblé – em que as teorias fundamentais de sua pesquisa “vão e voltam no círculo,
enriquecendo a estrutura da investigação” (CARVALHO, 2012, p.15).
A proposição da pesquisadora gerou a figura circular apresentada a seguir, que “representa um pensa-
mento metodológico que está em constante movimentação, fazendo com que noções teóricas perpassem
diversas vezes uma pela outra trocando informações e contribuindo para novas reflexões a respeito do
objeto estudado” (CARVALHO, 2012, p.17).
Observando o gráfico proposto pela pesquisadora, é possível perceber que se trata de um gráfico
metodológico desenvolvido especificamente para a sua pesquisa, e que a partir de uma organização de
método, a autora chegou a novas propostas teóricas para a etnocenologia, com os conceitos de corpo-
-comunidade, corpo-tempo e circularidade das preposições, detalhadas no gráfico apresentado a seguir:

7
OdôIyá: da Espetacularidade do Yle Ase Oba OkutaAyraYntyle ao Corpo-Cena.
74 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Figura 2 - Gráfico Metodológico da Pesquisa de Ana Moraes Carvalho (2014)8

A autora defende que o círculo facilita a prática do olhar e o convívio. O círculo foi a forma encontra-
da pela autora de ver e rever a sua pesquisa e ao rever, ver uma nova possibilidade. Ao questionar o que a
etnocenologia propõe como novidade, Adailton Santos (2012) apresenta como opção “uma maneira ge-
nuína, diferenciada, de encarar os mesmos objetos, já conhecidos, e adquiridos pelos mesmos processos
em curso nas disciplinas já dadas” (SANTOS, 2012, p. 15), o que Santa Brígida, em artigo que aborda a
dimensão simbólica do número 3 (três), chama de “ampliar o modo de olhar”9.
Minhas intenções na constituição de uma nova forma é que a mesma possa ser absorvida por diversas
abordagens de pesquisa e que possa permitir a visualização de muitas possibilidades para os modos de
olhar propostos por Santa Brígida (2015).
Partindo da premissa de que a etnocenologia é uma disciplina em construção, para a qual já foram
inventadas muitas “possibilidades epistemológicas” (SANTOS, 2012, p. 11), e acreditando que as exposi-
ções de teorias em gráficos são elementos fundamentais à compreensão das disciplinas, tomo como pon-
to de partida para a reformulação da forma gráfica do quadro teórico apresentado pelo professor Santa
Brígida em suas aulas, a Teoria da Formatividade, de Luigi Pareyson (1993), onde “‘formar’ significa ‘fazer’,
inventando ao mesmo tempo ‘o modo de fazer’, ou seja, ‘realizar’ só procedendo por ensaio em direção
ao resultado, e produzindo deste modo obras que são ‘formas’” (PAREYSON, 1993, p. 13).

8
LEGENDAS: 1. Etnografia: campo de investigação que se aproxima da Etnocenologia pelo reconhecimento
da diversidade humana, como meio de interseção metodológica. 2. Etnocenologia: base teórico-metodológica e
afetiva da pesquisa para a criação cênica, onde o estudo do corpo é a força motriz desse trajeto, situando o campo
de investigação estético – sensorial nas artes e formas de espetáculo. 3. Espetacularidade: organização de ações
e do espaço em função de se atrair e prender a atenção e olhar de parte das pessoas envolvidas. [...] consciência
reflexiva. (BIÃO, 2009, p. 35). 4. Corpo-Comunidade*: corpo representativo da ancestralidade da comunidade;
símbolo social afro – religioso. 5. Corpo-Templo*: corpo sagrado, símbolo do Candomblé, um corpo modificado
pela força cósmica do Orixá. 6. Experimentação cênica: a cena na construção de um trabalho artístico cuja fonte
foi a espetacularidade de um corpo festivo, no ritual de iniciação ao Candomblé. 7. Circularidade das Preposi-
ções*: a noção da pesquisa de corpo inteiro, onde tudo gira, na comunidade do Candomblé para as entidades e a
perpetuação de sua mitologia.
SANTA BRÍGIDA, Miguel. O número 3: sua dimensão simbólica e metodológica na pesquisa em artes cênicas.
9

Artigo apresentado em sala. 2015


I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 75
Convoco os dois conceitos apresentados por Luigi Pareyson em sua teoria: a forma formante, que en-
fatiza o fazer e a forma formada, como resultado do processo que a formou, para exercitar a libertação do
gráfico em colunas em prol de uma outra forma, uma que possa vir a partir na própria composição da pa-
lavra etnocenologia,como está no gráfico das colunas, afim de manter a compreensão permitida pelo refe-
rido gráfico, mas que se apresente em um formato que traga para a visualidade o dinamismo da disciplina.
Preservando a composição tripartida, retirei da linearidade a palavra etnocenologia e a conduzi à
forma gráfica ou “representação geométrica” (SANTA BRIGIDA, 2015) formada pelo número três:
o triângulo. Dividi a palavra em sua constituição significativa e coloquei as três partes em cada lado do
triângulo, tendo cada lado do triângulo a função de agregar as particularidades constituintes propostas na
epistemologia da disciplina.
Entretanto, a enorme quantidade de informações agregadas à proposição tripartida de etnocenologia,
fez da representação triangular uma imagem confusa e emaranhada, bem distante do que pretendia. Saí
do gráfico em colunas e me vi diante de um grande emaranhado. O que me conduziu a outra tríade, já
conhecida e bastante utilizada em minhas pesquisas: ordem-desordem-reordenação, presente na teoria da
complexidade de Edgar Morin (2005). A complexidade revelada pelos “traços inquietantes do emaranhado,
da ambiguidade, da incerteza [...] a complexidadeenquanto tecido de constituintes heterogêneas insepara-
velmente associadas” (MORIN, 2005, P. 13). Pensando na constituição da etnocenologia me parece ser
inevitável que ela nos conduza a desafiantes emaranhados, a ações, interações, retroações, aos acasos no
caminho da pesquisa (Morin, 2005).
Os acasos que pulam para dentro de nossas investigações podem vir a ser os agentes de ricas contribui-
ções à pesquisa e o emaranhado pode ser o território destes acasos.
Na sequência apresento o gráfico nomeado emaranhado, afim de elucidar visualmente o que alcancei
como resultado do exercício.

Figura 3 - Gráfico Teórico Proposto – EMARANHADO


76 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Determinada a enfrentar o emaranhado do gráfico revelado no primeiro exercício de construção
da forma triangular, ciente de que tal enfrentamento era um necessário obstáculo construtivo em meu
objetivo, olhei e re-olhei muitas vezes para o emaranhado até perceber que o que se apresentava dian-
te de mim não era mais um gráfico teórico. Como acontece com a revelação de métodos a partir do
próprio campo de investigação, o emaranhado tornou-se campo e revelou não somente um gráfico
teórico rearrumado como eu pretendia e sim um gráfico de método, um método gráfico, compreendendo
o gráfico como um organizador-desorganizador-reordenador para diversas abordagens de pesquisa em
etnocenologia. A conclusão da forma do método-gráfico revelou – para além do esclarecimento visual
desejado – a figura de um caleidoscópio. É a forma formante como reveladora da forma formada, ain-
da que, no que se refere a esta proposta metodológica, será sempre forma formante (Pareyson, 1993),
ou seja, forma em processo de construção.
Unindo as intenções conscientes, as observações e reobservações, os exercícios sobre o papel e a ação
reveladora da própria forma, este ensaio chegou ao gráfico apresentado a seguir, denominado método-grá-
fico-caleidoscópico.

Figura 4– Método-gráfico-caleidoscópico

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 77


LEGENDAS:

Absorvendo as teorias, materiais, informações, observações que chegam pela ENTRADA, o pesquisa-
dor, ao realizar a pesquisa, exercita o seu MOVIMENTO em torno de si mesmo enquanto olha e reolha
o que o cerca e provoca REVERBERÂNCIAS que são a própria pesquisa, produzida pelo pesquisador.
Toda essa combinação de ENTRADAS, MOVIMENTOS DO PESQUISADOR E REVERBE-
RÂNCIAS deram vida e voz à própria forma, enquanto forma formante (Pareyson, 1993) e conduziram
este estudo para uma outra forma a partir do triângulo ETNO CENO LOGIA, a forma do caleidoscó-
pio. O caleidoscópio chega para esta proposição trazendo mais duas trilogias.
A forma do elemento-caleidoscópio é composta por três paredes de espelho, cada uma para uma parte
da nossa palavra (etnocenologia), dentro do qual são colocadas peças de formatos e cores diferentes (as
convocações do pesquisador para o seu estudo) e que, quando acionados em movimentos circulares pela
ação humana (o pesquisador), revelem desenhos gráficos e formas da pesquisa que são a própria pesquisa.
As formas reveladas no giro do caleidoscópio têm tudo a ver com os elementos coloridos colocados,
“ou convocados” para dentro do triângulo, por isso o pesquisador etnocenológico constrói suas proposi-
ções a partir de ações vivenciadas diretamente em seu particular experimento de pesquisa, o que dá o ca-
ráter único e particular de sua pesquisa, bem como modifica as entradas e reverberâncias do método-gráfico.
Não fosse a forma caleidoscópica fascinantemente animadora para esta proposição, a palavra em si é
carregada de significações que completam esta proposta. Caleidoscópio derivade três palavras gregas: καλός
(kalos), que quer dizer belo ou bonito, είδος (eidos), que quer dizer imagem ou figura e σκοπέω (skopeō),
que significa olhar no sentido de observar.10 Caleidoscópio é um mecanismo que forma belas imagens a
se observar.

10
Fonte: Aulete Digital
78 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
O objetivo da apropriação do significado da palavra caleidoscópio em prol desde método-gráfico é
que os acionamentos feitos pelo pesquisador em seus triângulos caleidoscópios, na tríade entradas-movi-
mentos-reverberâncias, provocam misturas, forçam o olhar e o reolhar para as mais diferentes formas criadas
pelo acionar do caleidoscópio revelando a visão da própria etnocenologia. A proposilçao método-gráfica-ca-
leidoscópica é a imagem reveladora da etnocenologia.

Ver etnocenologia - bela imagem a se observar

O artista-pesquisador-participante, beneficiado por sua pessoa artista, não age apenas no giro do
caleidoscópio. Ele é construtor e reconstrutor de seu caleidoscópio, ao trazer experiências pessoais, tra-
jetos, trajetórias e emoções para a construção de suas investigações. Suas convocações são as partículas
coloridas colocadas na confecção do objeto caleidoscópio, que, a partir dos movimentos impressos sobre
o mesmo, resultarão na forma visual da pesquisa. Chamo mesmo de forma visual pela intenção de que a
Etnocenologia seja uma disciplina que possamos enxergar como tanto deseja um pesquisador na elabora-
ção do trabalho – ver a pesquisa, ver a sua formação, olhá-la a tal ponto que nela possa tocar.
A construção de caleidoscópios metodológicos etnocenológicos pretende ser exercícios de organização, desor-
ganização, reorganização, para o alcance do conhecimento inter, multi e transdisciplinar (Morin, 2005). A
proposição de Edgar Morin para um conhecimento polissêmico inter e transdisciplinar aqui é convocada
para reafirmar o caráter acolhedor da etnocenologia, aberta a diálogos, em interseções e comportamentos
transdisciplinares com os mais diversos campos do conhecimento em sua constituição.
Reolhar o emaranhado do gráfico resultante no primeiro exercício até olhá-lo com olhos semicerra-
dos permitiu não exatamente um novo gráfico, mas uma outra função para a mesma forma. Diante das
duas formas resultantes, agora faço da primeira – gráfico teórico (emaranhado) – a prancha de suporte,
o desenho original no papel opaco e dou ao segundo gráfico (caleidoscópio) a transparência do overlay11,
unindo os dois gráficos, originalmentegerados a partir de um objetivo comum, para que possamos per-
ceber que o primeiro – já existente em formato coluna, tendo sido aqui modificado em sua forma e não
em seu conteúdo – se tornou suporte imprescindível à existência do segundo relevado no exercício de
reorganização do primeiro.
A sobreposição dos gráficos emaranhado e caleidoscópio, a partir da técnica overlay e a ação do pesquisador
ao se colocar no centro do triângulo, não como centro de sua pesquisa, mas como sujeito convocador de
entradas e acionador de teorias em favor de suas reverberâncias, faz com que este pesquisador entenda
a necessidade de olhar não somente aquilo que está à sua frente, mas necessariamente tudo que está ao
seu redor.
Longe de querer enquadrar a disciplina em um método, o que iria contra as características de dinamis-
mo da mesma, o que essa proposta pretende é ilustrar “a familiaridade dos pesquisadores com os fatos
estudados” (SANTOS, 2012, p.73), dando ao pesquisador os lápis e pincéis para que desenhe seus trajetos
na busca do conhecimento sobre seus objetos de estudo.
A proposta método-gráfica-caleidoscópica, além de reforçar o fato de que o pesquisador é construtor de
sua própria pesquisa, de seus próprios métodos – estes podendo ser acionados pela própria pesquisa – é
também o acionador que não vê a sua pesquisa de frente, mas sim, deixa-se cercar da pesquisa por todos
os lados, saindo do lugar do DIANTE DE e se colocando imerso, em um lugar EM, fazendo da pesquisa
não uma meta a ser alcançada, mas uma experiência envolvente.
O lugarEM, que imerge o pesquisador em sua pesquisa, requer mais do que uma decisão metodológica
predefinida. Requer a compreensão das importantes categorias enumeradas por Armindo Bião (2007), no
âmbito epistemológico da disciplina, a propósito do sujeito da pesquisa:

Técnica de sobrepor um desenho sobre o outro desenho com o objetivo de criar um terceiro desenho.
11

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 79


“Alteridade – A categoria de reconhecimento pelo sujeito de um objeto humano (no caso
da etnocenologia), distinto de si próprio; Identidade – A categoria de reconhecimento da
especificidade do sujeito em relação à alteridade. Identificação – A categoria de momentâneo
reconhecimento do sujeito, em parte ou no todo, na alteridade. Diversidade – A categoria que
permite ao sujeito reconhecer a coexistência das diferenças humanas. Pluralidade – A catego-
ria que, como à anterior, dá ao sujeito condições de reconhecer a coexistência das, reafirme-se,
múltiplas e variadas diferenças humanas. Reflexividade – A categoria referente ao sujeito que
dá conta de sua capacidade de pensamento e teorização (reflexão), espelhando as semelhanças
e diferenças reconhecidas em sua relação com os objetos, suas identidades e identificações
(BIÃO, 2007, p.46-47)

O “reconhecimento da especificidade do sujeito em relação à alteridade”, proposto na categoria identi-


dade é revelador do sujeito artista-pesquisador-participante; do seu papel desempenhado na pesquisa, para
a pesquisa e enquanto a própria pesquisa. São caríssimos exercícios de trajeto, em que perceber os rastros
deixados por suas convocações (entradas), por suas ações (movimentos) enriquecem sobremaneira suas
reverberâncias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BIÃO, Armindo. Anais do V Colóquio Internacional de Etnocenologia. Programa de Pós-Graduação em Artes


Cênicas – PPGAC. Salvador, 2007
BIÃO, Armindo. Aspectos Epistemológicos e Metodológicos da Etnocenologia: por uma cenologia geralin Etnocenolo-
gia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador, BA. P&A Gráfica e editora, 2009
CARVALHO, Ana Claudia Moraes de. OdôIyá: da Espetacularidade do Yle Ase Oba OkutaAyraYntyle ao Cor-
po-Cena, 2014. Dissertação apresentada ao PPGARTES/UFPA. Belém, 2014
DERDYK, Edith. Linha do horizonte: por uma poética do ato criador. São Paulo: Escuta. 2001
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005
PAREYSON, Luigi. Estética. Teoria da Formatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993
SANTA BRÍGIDA, Miguel. O maior espetáculo da terra: o desfile das escolas de samba como cena contemporânea na
Sapucaí. Tese de doutorado, PGAC/UFBA, 2006.
SANTA BRÍGIDA, Miguel. O número 3: sua dimensão simbólica e metodológica na pesquisa em artes cênicas. Artigo
apresentado em sala. 2015
SANTOS, Adailton. A etnocenologia e seu método: pesquisa contemporânea em artes cênicas. Salvador: EDUFBA,
2012

Fontes:

Aulete Digital

80 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


ARTIGO: A DANÇA DO
GUERREIRO ALAGOANOE
SEUS ENTREMEIOS
MULTIRREFERENCIAIS
Cláudio Antônio Santos da Silva1

RESUMO: O presente artigo discorre sobre resultados da pesquisa com a Dança do Guerreiro de
Alagoas que culminou no processo de criação do espetáculo: Entremeios: Dez Figurações, investigação
cênica com criação de solos performances, que envolvedança contemporânea e dança tradicional, a par-
tir do estudo sobre a prática espetacular: o Guerreiro de Alagoas e seus Entremeios (Bião, 2009). Nesta
trajetória da pesquisa, o Guerreiro Alagoano e seus Entremeios multirreferenciais, tornaram-se projeto
com dissertação e encenação no Curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da
Bahia- UFBA, nível de Mestrado, ano de 2013 a 2015, na linha de pesquisa: Matrizes Estéticas na Cena
Contemporânea, sob orientação da professora Dra. Suzana Maria Coelho Martins, tendo por objetivo
geral descrever as matrizes estéticas e históricas que perpassam o Guerreiro de Alagoas e discorrer sobre
o processo criativo em Dança contemporânea com os Entremeios.

PALAVRAS CHAVE: Guerreiro Alagoano; Entremeios; Etnocenologia; Multirreferencialidade; Auto-


rização.

INTRODUÇÃO

Este texto foi tecido na busca de procedimentos estéticos entre a tradição e a contemporaneidade, por
meio da investigação a respeito da técnica e da poética do corpo na dança do Guerreiro Alagoano e seus
Entremeios, aliada à pesquisa sobre o corpo, a partir das suas inscrições num saber fazer local. Recorro
para isto à Etnocenologia (Bião, Duvignaud, Khaznadar) , assim como a Etnopesquisa (Macedo), pois
ambas propõem-se destacar parte os sujeitos que precisam falar, que foram esquecidos e apagados pelo
poder dominante e pelo etnocentrismo. Ambas possuem aportes transdisciplinares, reivindicando um
lugar acolhedor e possível para o pesquisador/artista/criador/reinventor de caminhos.

Pedagogo graduadopela Universidade Federal de Alagoas, Performer, Ator e Dançarino graduado pela Escola de
1

Dança da Universidade Federal da Bahia e Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 81
Essa escrita pretende ser um referencial para artistas, educadores e pesquisadores das artes cênicas
em geral que possuem como ponto de interesse para suas criações referenciais artísticos que perpassam
a tradição e a contemporaneidade. Este fazer, ou, esta organização de ideias revisitam uma coerência ao
juntar partes, tecer e transitar por meio inusitados e coerentes, respeitando inclusive as incoerências.
Nos últimos anos, na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, eu estou à frente da Companhia Cínica
Dança, e venho atuando como profissional da pedagogia e do movimento em oficinas e cursos livres para
estudantes de dança e na educação para pessoas com necessidades especiais. Meus trabalhos artísticos e
educacionais priorizam a busca de uma autorização (Ardoino) em dança cênica contemporânea, ou ir ao
encontro do caminho do co-autorizarmos, que remete ao convite para podermos tecer o nosso próprio texto.
O processo de criação que reverberou no meu treinamento pessoal com os Entremeios do Guerreiro
Alagoano estão atrelados os referenciais sobre o corpo e os processos criativos em dança contemporânea.
Destaco, ainda nessa relação do corpo e sua pedagogia, os estudos sobre a dança Butoh (Hijikata, Ono,
Baiocchi, Greiner) o que direcionou ir ao encontro da minha dança pessoal (LUME).
O caminho da Multirreferencialidades propõe bricolaraproximações conceituais entre os eixos teóricos pre-
sentes na Etnocenologia e na Etnopesquisa Crítica Multirreferencial, o que faz indagar a seguinte ques-
tão: Como a Multirreferencialidade, a Etnocenologia e a Etnopesquisa, por meio de seus vários eixos
teóricos podem contribuir na formação do artista/professor/pesquisador?
Em Armindo Bião encontramos a seguinte definição para a Etnocenologia:

Proposição de uma nova disciplina (...). Aproximada, e não apenas etimologicamente da pers-
pectiva clássica e matricial da reflexão sobre a variabilidade humana no espaço e no tempo, de-
nominada em 1787 de etnologia (...) a etnocenologia se inscreve na vertente das etnociências,
e tem como objeto, as práticas e os comportamentos humanos espetaculares organizados, os
PCHEOs, que compreende as artes do espetáculo, principalmente o teatro e a dança, além de
outras práticas espetaculares não especificamente artísticas ou mesmo sequer extracotidianas.
(BIÃO, 1996, p. 07)

A Etnocenologia possui como início de sua fundação o Manifesto da Etnocenologia, tendo como
marco inicial o dia 17 de fevereiro de 1995, na França. O manifesto foi escrito pelo Centro Nacional de
Etnocenologia em parceria com a Maison desCulturesdu Monde que tinha como presidente o sociólo-
go Jean Duvignaud; da Unesco, coordenada por SherifKhaznadar e do Laboratório Interdisciplinar de
Práticas Espetaculares da Universidade Paris 8, Saint Dennis, sob coordenação do professor Jean Marie
Pradier. Ela tem no Brasil o grupo Interdiscisplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade (GIPE-CIT), fundado por Armindo Bião, responsável por três colóquios reali-
zados no Brasil em 1997, 2007 e 2009 contextualizando a Etnocenologia da seguinte maneira:

É neste mesmo zeitgeist que se inserem outras perspectivas aparentadas. Assim, aí também se
conformam o interesse dos estudiosos do campo das ciências humanas pelo espetáculo e pela
teatralidade na vida cotidiana, as etnociencias, para a etnometodologia, os estudos da perfor-
mance e a antropologia teatral. Neste contexto, a etnocenologia tem contribuído para a amplia-
ção dos horizontes teóricos da pesquisa científica e artística, de um modo geral e, de um modo
mais específico, para o trabalho dos pesquisadores dedicados às arte do espetáculo. Nessas
artes, não estão somente o teatro, a dança, o circo, a opera, o happening e a performance, mas
sim, também, outras práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados, dentre
os quais alguns rituais, os fenômenos sociais extraordinários e, até, as formas de vida cotidiana,
quando pensadas enquanto fenômenos espetaculares. (BIÃO, 2007, p.22).

Partindo da observação da dança do Guerreiro em sua construção etnográfica, devemos situá-la como
uma prática espetacular originária e praticada, exclusivamente, no Estado Nordestino de Alagoas, embora

82 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Théo Brandão tenha dado indícios dela ter sido praticada em outros Estados, possivelmente enquanto
Reisados, assim, além de ser tipicamente alagoana esta dança era originalmente um Reisado.
O Estado de Alagoas abarca, historicamente, povos das etnias indígenas, portuguesas, africanas, fran-
cesa e holandesa. O território alagoano é permeado por dados históricos e culturais na História do Brasil
e também contempla valioso patrimônio imaterial, como, por exemplo: o “Guerreiro Alagoano”. A capi-
tal Maceió2, local de realização empírica da pesquisa é conhecida pela sua natureza que abarca suas lagoas
e praias. O povoado que deu origem a Maceió surgiu num engenho de açúcar. Antes de sua fundação, em
1609, morava na Pajussara, Manoel Antônio Duro, que havia recebido uma sesmaria de Diogo Soares,
alcaide-mor de Santa Maria Madalena. As terras foram transferidas depois para outros donos, e, em 1673,
o rei de Portugal determinou ao Visconde de Barbacena, a construção de um forte no porto de Jaraguá
para evitar o comércio ilegal do pau-brasil.
O Guerreiro Alagoano contextualiza-se em diversas matrizes estéticas, tendo em sua formação outras
práticas espetaculares como: o Pastoril, a Dança dos Congos, os Caboclinhos. Ainda, segundo registros é
uma dança dramática “nova”, e, é uma compilação de várias danças, mas precisamente, uma junção de vá-
rios personagens e partes dos Reisados Alagoanos e dos Caboclinhos. Neste sentido Abelardo Duartediz:

Os pontos de contato dos Guerreiros com os seus dois principais fornecedores de argumen-
tos, partes ou cenas alegóricas – O ‘Reisado” e os “Caboclinhos” não se mostram apenas na
temática, mas incidem ainda na música, na dança, na indumentária”. (Duarte. 1974, p. 316).:

Temos a primeira referência sobre o Guerreiro Alagoano com Arthur Ramos em 1935, no livro: O
Folk-Lore Negro do Brasil. Já Pedro Teixeira, pesquisador alagoano, complementa que o Reisado do
Engenho Boa Sorte foi convidado a se apresentar na cidade de São Paulo, no ano de 1945, sendo acres-
cidas novidades às Peças. Nessa apresentação o episódio da guerra com os personagens digladiando-se
com todo furor rítmico, ganhou personalidade e passou a ser reconhecida e classificada inicialmente fora
do Estado de Alagoas com o nome de Auto dos Guerreiros, e, aos poucos, o reconhecimento foi legiti-
mando o novo Auto.Por outro lado, o mestre Théo Brandão (1976:03) elucida a mistura sofrida por este
“brinquedo” e diz que: “Em Alagoas o auto sincretizou-se com outro folguedo, o Auto dos Congos ou
Reis de Congos, sendo também um Reisado, passou a apresentar maior riqueza e encanto em sua indu-
mentária, em sua música e coreografia, tornando-se assim, diferente em certos aspectos das versões de
outros Estados”.
É importante destacar o fator de elementos do Reisado na formatação e na caracterização da dança do
Guerreiro. Sendo o Guerreiro, portanto, um Reisado é uma dança dramática popular de cunho religioso
que celebra o nascimento do menino Jesus. Mário de Andrade, já citado, é quem vai situar etimologica-
mente a formação da palavra Reisados: “A Reisada é portuguesa, o Reisado é brasileiro. (Idem, P.45)
A principal característica do Reisado é a farsa do boi, que se apresenta como um dos “entremeios” ou
“entremezes”, onde o boi dança, brinca, é morto e depois ressuscitado.

“È curioso constatar que em grande número das nossas danças dramáticas se dá morte e
ressurreição da entidade principal do bailado. No Bumba-meu -boi, nos Caboclinhos, nos
cordões de Bichos amazônicos, ainda nos Congos, nos Cucumbis e nos Reisados isso aconte-
ce. Se trata duma noção mística primitiva, encontrável nos ritos do culto vegetal e animal das
estações do ano, e que culmina sublimemente espiritualizado na morte e ressurreição do Deus
dos cristãos”(Idem., 1982, p. 25)

2
Estes dados estão disponíveis em http://biblioteca.ibge.gov.br/visuaformaçlizacao/dtbs/alagoas/maceio.pdf
. Acesso em 14/11/2012.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 83
Um dos pontos significativos da cultura tradicional alagoana é a transição que passou o Reisado, até
se transformar em Guerreiro. O professor Pedro Teixeira Vasconcelos, situa muito bem esta transição:

Paulatinamente, o Reisado foi se modificando. Podemos chamar esta modificação de miscige-


nação. Foram incluindo no folguedo figuras de outras modalidades de danças. Primeiramente
vieram dois meninos que traziam bandeirinhas e se postavam na frente, executando os difíceis
passos da complicada coreografia; no final da guerra funcionavam como apaziguadores, cru-
zando as bandeirinhas com a espada do mestre cantando: “ Tenha mão, meu secretário,/ Lem-
bremos de pelejar/ a bandeira brasileira/ nós teremos de honrar.”” (Vasconcelos, 2001, p .17)

O autor citado também aponta o surgimento de outros personagens no Reisado: o Capitão General,
da Chegança; a Borboleta do Pastoril; o Ìndio Peri, que aparece no Auto dos Caboclinhos, que por sua
vez, é o personagem principal no romance o Guarani de José de Alencar; a Lira, também das Caboclinhas;
a Rainha, figura de diversos folguedos; a Sereia, figura muito discutida a respeito de sua entrada na brin-
cadeira. A mistura era fato, ao ponto de existir duas modalidades de Guerreiro: o Guerreiro Tradicional e
o Guerreiro Abaianado, para depois transformar-se no que é atualmente: Dança do Guerreiro Alagoano.

Quis misturar-se um pouco o “Baianá” quanto as jornadas. Apareceram repentistas e improvi-


sadores que criavam peças na hora, desprezando as antigas e tradicionais. Poucos conservavam
a tradição e o Reisado foi se modificando a ponto de, hoje em dia, estar dividido em duas
categorias: Guerreiro Tradicional e Guerreiro Abaianado. (Idem. p. 20)

Quando penso na configuração da dança do Guerreiro surgindo de um Reisado, “bricolado” com o


Auto dos Congos, os Caboclinhos, o Pastoril, e outras danças dramáticas, é bom situar também, que no
século XVIII, já havia registros da junção de algumas danças dramáticas com números diferentes num
mesmo cortejo. Na cidade do Rio de Janeiro e na Bahia, durante a celebração do casamento de D. Maria I,
em 1760, se tem registros dessa mistura na ocasião das bodas da rainha. No cruzamento destes elementos
provenientes destas diversas culturas há elementos míticos os quais são referenciais bastante determinan-
tes nestas três principais matrizes estéticas constitutivas da dança do Guerreiro Alagoano.
A brincadeira do Guerreiro de Alagoas possui como tema central o assunto da guerra, como seu pró-
prio nome indica. A guerra é a metáfora do poder, da conquista e da luta dentro do espírito que rege as
danças dramáticas populares do tipo chamado Reisados, no entanto, o episódio da guerra origina-se do
Auto dos Congos. Então, percebo que a marca alagoana dos Reisados é que no Estado, ele misturou-se
ao Auto dos Congos, que por si próprio já era um Reisado.
Pelo cruzamento do Guerreiro com os seus mais importantes contribuidores: os Reisados, ao Auto
dos Congos, que por si também era um Reisado, o Pastoril e os Caboclinhos, a maioria de suas partes ou
cenas alegóricas não coincide apenas na temática, mas na sua música, nas suas dinâmicas corporais, na sua
indumentária, contudo, adverte Duarte:

O auto absorveu, como ficou dito, elementos dos “Reisados” e dos “Caboclinhos”. Mas no
trabalho sincrético inverteram-se os papéis de alguns figurantes dos Caboclinhos e a admiti-
ram-se outros dos Pastoris, o que criou a mais esdrúxula composição, de vez que essa inversão
não estabeleceu nenhuma lógica no desenvolvimento temático. Fica-se diante de um drama
quase sem nexo, aparentemente ligados os fatos por um ilógico enredo ( Idem, 1974, p.317)

O drama do Guerreiro, também é estruturado com uma semelhança aos Reisados e Caboclinhos, di-
ferindo pela quantidade de figurantes, pela riqueza nas vestimentas e nas músicas.
Os Caboclinhos sugerem as danças de origem indígena, também chamadas de Dança dos Caboclos
que aparecem na região Nordeste. Mario de Andrade elucida que: “A parte propriamente dita dramática do

84 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


bailado, bem como as músicas, Varian bastante de lugar pra lugar” (Idem, 1982:179). Ainda sobre os Caboclinhos,
encontramos nota do mestre Theo Brandão sobre o “Auto dos Caboclinhos”, editado em Maceió, Ala-
goas, em 1952, onde o autor transcreve peças desse auto popular, opinando que, apesar do nome, “Cabo-
clinhos” e da sua aparência ameríndia, essa dança dramática é de origem ou influencia negra.
O Pastoril é a mais conhecida e difundida dança dramática de Alagoas. É uma fragmentação do Pre-
sépio, sem os textos declamados e sem os diálogos. É constituído apenas por jornadas soltas, canções
e danças religiosas ou profanas, de épocas e estilos variados. Sua origem está relacionada aos Presépios
encenados na Itália, Espanha, Portugal e França no Século XVI, estruturando-se a partir dos autos por-
tugueses antigos, guardando a estrutura dos Noéis de Provença (França). È dividido entre dois cordões
o azul e o encarnado.
Neste processo de investigação cênica com os Entremeios eu descrevo a performance do corpo do
brincante do Guerreiro Alagoano, fundamentada na minha memória corporal e nas matrizes estéticas que
a permeiam na função de sua memória corporal pensada como uma continuidade.
Enquanto caráter Multirreferencial do Guerreiro de Alagoas, como propõe Jacques Ardoino, teórico da
Multirreferencialidade, conceito que ele desenvolve elucidando que nos fenômenos educativos e artísti-
cos nos diz que:

Assumindo a hipótese da complexidade, até mesmo da hipercomplexidade, da realidade a qual


nos questionamos, a abordagem Multirreferencial propõe-se a uma leitura plural de seus obje-
tos (práticos e teóricos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto visões específicas
quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em função de sistemas de referências
distintos, considerados, reconhecidos explicitamente como não-redutiveis uns aos outros, ou
seja, heterogêneos, a distinguir e a especificar, forçada a reconhecer suas heterogeneidades, as
óticas, como as linguagens descritivas correspondentes, apropriadas a objetos-sujeitos-proje-
tos.” (ARDOINO, 1998, p.16)

Os conceitos multirreferenciais utilizados nesta abordagem são: a bricolagem, a autorização e a multirreferen-


cialidade. A bricolagem é definida para Ardoino da seguinte maneira:

Essa noção é quase entendida de maneira pejorativa. Alguns raros usos, contudo, tendem a
reabilitá-la, em parte, no nível da técnica e da ciência. A etimologia ensina-nos que, se a acep-
ção atualmente dominante permanece aquela de pouca importância (entendida aí no sentido
livre), houve, na passagem de sentido mais técnico (jogos que exigem habilidade, péla, bilhar),
outra designação constante de pequenos trabalhos manuais pouco remunerados. As ideias de
esperteza e astúcia ficam aí geralmente ligadas. Usar de subterfúgios é, contudo, essencialmen-
te ir aqui e lá, eventualmente procurar obter pelo desvio, indiretamente, aquilo que não se pode
esperar mais diretamente. (ARDOINO, 1998, p.30)

A autorização equivale ao ato de nos autorizarmos: “Autorizar, quer dizer, a intenção e a capacidade
conquistada de tornar-se a si mesmo seu próprio co-autor, de querer se situar explicitamente na origem de
seus atos, e por conseguinte, dele mesmo enquanto sujeito.” (Idem, 1998, p.28); E a multirreferencialidade
que propõe observar o objeto nas suas heterogeneidades.
Os conceitos de: bricolagem, a autorização e a multirreferencialidade numa perspectiva do objeto e suas
heterogeneidades articulam-se aos conceitos da filosofia Cinica (Diógenes, Cazé) que são: a autarqueia,
ser capaz de autogerir-se, a parresia, liberdade para falar e agir, a anaideia, a ação e desfigurar a moeda, onde
desfigurar remete a uma des/re/construção do que está posto, buscando outras tessituras para o texto
numa espécie de pragmatismo3 cínico incorporados na minha vida e na minha prática artística.

Pragmatismo é uma doutrina filosófica cuja tese fundamental é que a ideia que temos de um objeto qualquer
3

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 85


O meu espetáculo de dança por meio do título Dez Figurações, apresenta sentido ambivalente: des-
figurar é equivalente a criar outro texto. Nesse sentido remete ao autorizar-se multirreferencial, ou seja, ao
tornar-se autor, o que direcionou para eu tecer da minha maneira meu processo criativo. Assim desfigurar e
autorizar relaciona-se também ao conceito de desfigurar a moeda do Cinismo, que significa: cunhar outra mo-
eda, ou outro texto. Ainda no sentido ambivalente do subtítulo do espetáculo: Dez Figurações, no cotidiano
dos brincantes, é comum utilizar a expressão “botar figuras”, que corresponde ao ato de encená-los.
Atualmente os Entremeios na dança do Guerreiro Alagoano não são mais encenados, tendo acesso a
estes solos de dança apenas por meio de registro documental escrito, não tendo a noção de como eram
feitos, passaram a ser um processo de criação autoral, no qual estão sendo recriados a partir de meu re-
ferencial de corpo e das referências que o Entremeio propunha, como: a música, o seu título somado ao
repertório e experimentação de corporalidades pelo artista. O fato curioso do sumiço dos Entremeios é
a característica de que os solos eram criados a partir do referencial de corpo do brincante, o que muito
estimulou o surgimento do trabalho cênico: Entremeios: Dez Figurações.
Nestes referenciais para a construção do trabalho cênico destaco o texto intitulado: Sobre quatro entre-
mezes portugueses e a palavra Bião, no qual Armindo Bião o autor nos diz que o entremez ou Entremeio é:

Considerado frequentemente como gênero menor, de caráter apenas complementar, posto


que historicamente associado a divertimentos entre os pratos de um banquete, ou destinado a
ser apresentado – entre ou – após – peças do teatro dito sério, o entremez, pode ser classifica-
do como um subconjunto da literatura Dramática do gênero cômico, podendo ainda ser iden-
tificado ao chamado teatro ligeiro, incluindo, constantemente, números músicais. Vale ainda
que se registre que os entremezes, no mundo lusófono, não se restringem à sua identificação
com o teatro de cordel lisboeta, dos séculos XVIII e XIX, podendo ser encontrados, antes e
depois destes séculos em contextos diversos. (BIÃO, 2009, pag.135).

A partir da leitura do texto citado de Armindo Bião (2009) percebi a importância dos Entremeios do
Guerreiro Alagoano e dos entremezes portugueses. Relevante a descoberta do texto citado por adentrar
no universo da pesquisa dos entremezes portugueses e encontrar referências destes como contribuidores
na formação da cena teatral no Brasil. Podendo assim, contextualizar os Entremeios que eu escolhi para
serem coreografados nesta perspectiva de importância, ressignificando o processo de criação ao qual
estava vivenciando.
No espetáculo: Entremeios: Dez Figurações apresento até o momento quatro solos de dança nos
quais estão contidos cinco Entremeios: a Borboleta e o Zabelê organizados numa única coreografia:
Borboleta/Zabelê, a Sereia, o Fúria e o Louco faltando cinco Entremeios a serem coreografados para
compor o total do projeto, o qual pretendo dar continuidade no processo de encenação e aprofundá-los
enquanto objeto de pesquisa num futuro curso de doutoramento. Todos os quatro solos coreografados
são composições de minha autoria, e, enquanto artista invoco elementos do meu universo cultural, pesso-
al e autobiográfico, incorporando o meu interesse pela dança pessoal, o Butoh e pela prática espetacular
do Guerreiro Alagoano, construindo um dicionário corporal e resignificando a pesquisa de campo reali-
zada com Mestres desta prática espetacular em linguagem de dança contemporânea.

nada mais é senão a soma das ideias de todos os efeitos imaginários atribuídos por nos a esse objeto, que passou
a ter um efeito prático qualquer. O pragmatismo é um pensamento filosófico criado, no fim do século XIX, pelo
filósofo americano Charles SandersPeirce (1839-1914), pelo psicólogo William James (1844-1910) e pelo jurista
Oliver Wendell Holmes Jr (1841-1935), que opondo-se ao intelectualismo, considera o valor prático como critério
da verdade.Ser partidário do pragmatismo é ser prático, ser pragmático, ser realista. .Disponivel em http://www.
significados.com.br/pragmatismo/. Acesso: 20 Fev 2015.
86 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Neste sentido, a respeito de minha poética de criação em dança venho aplicando o conceito de dança
pessoal4 proposta pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – LUME, da Universidade Estadual
de Campinas. Para Cesaroli pesquisador das ações do grupo e da prática do LUME a respeito do termo
dança pessoal ele nos diz que:

O termo “dança pessoal” vem de “treinamento pessoal” e tenta dissolver um sentido mais
“mecânico”, de exercício que pode estar embutido na palavra “treinamento”, e introduzir uma
dimensão fluídica, orgânica, viva, através da palavra “dança”. Já o termo “pessoal” tenta evocar
o sentido de não preestabelecido, não predeterminado, portanto, algo pessoal do individuo,
criado por ele, algo a ser encontrado por ele durante o treinamento. (CESAROLI, 2010, P. 80)

Dessa minha experiência resultou um trabalho independente e contemporâneoque se utiliza das po-
tências desses lugares de identidades entre os quais transitoquestionando os limites sutis dessas figura-
ções/desfigurações da minha memória corporal. É nessa sensibilidade do não lugar e do entre-lugar5 e
da educação pelo movimentoque construo as figuras do imaginário particular e vigoroso das coreografias
com os Entremeios indagando e experimentando o caminho da transdisciplinaridade6 como aponta Gil-
bert Durand:

Não insistirei sobre as diferenças entre “pluridisciplinaridade”, “interdisciplinaridade”, ”trans-


disciplinaridade” e “multidisciplinaridade”. Digamos, para sermos breves e resumir, que a pri-
meira trata da justaposição de disciplinas diversas em um ensino; a segunda não se contenta
unicamente em justapor, porém provoca a colaboração de disciplinas plurais no estudo de um
objeto, de um campo, de um objetivo; a terceira – mais ambiciosa – tenta extrair dessa colabo-
ração um fio condutor, uma filosofia epistemológica. Gostaríamos de mostrar aqui que estas
diversas multidisciplinaridades, reinvidicam legitimamente um lugar na descoberta, prefería-
mos dizer “criação” científica. (DURAND, 1988, p.85).

A transdisciplinaridade está presente nesta pesquisa, e, através dela, esse processo de construção dos
solos com os Entremeios propõe trajetos e referenciais que possam contribuir na formação do artista
cênico contemporâneo. Os Entremeios coreografados estão contextualizados nessa pesquisa por meios
de cruzamentos de informações corporais. Assim, os resultados dessas experiências estéticas diferentes
se configuram nesse projeto com a criação destes solos de dança.
O processo artístico da construção dos solos foi estruturado a partir de minha trajetória atuando
como pedagogo e dançarino construindo um fazer artístico que une: Corpo, Pedagogia e Filosofia. O tri-
ângulo: Corpo, Pedagogia e Filosofia estão presentes em meus estudos práticos e teóricos sobre o corpo
e a dança, na percepção sobre o corpo e a cena, o que direcionou para a Etnocenologia (Pradier, Duvig-

4
In. O Lume no Contexto do teatro de pesquisa do Século XX. Dissertacao Escola de comunicação e Artes da
Universidade Federal de São Paulo. 2010. Disponível em: file:///C:/Users/PROFESSOR/Downloads/Ceraso-
li_Umberto_Dissertacao_Final%20(1).pdf Acesso em 28 mar 2015.
5
“Por não-lugar designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação
a certos fins (transporte, trânsito, comércio, etc) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços, pois os
não-lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só dizem respeito indiretamente
a seus fins: assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária”.
In. Marc Augé. Não Lugares. Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia
Pereira. Papirus. Campinas.1994.
6
“Multidisciplinaridades e Heurística” de Gilbert Durand com tradução de Roberto Sidnei. In: Multirreferenciali-
dades nas Ciências e na Educação. Joaquim Barbosa (Org.). Editora da Universidade Federal de São Carlos - UFS-
CAR. São Carlos. 1988
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 87
naud e Bião); a Pedagogia que indicou o caminho da Multirreferencialidade nas Ciências e na Educação
(Ardoino, Barbier e Coulon) e a Etnopesquisa Crítica e a Multirreferencial (Roberto Sidnei Macedo); e a
filosofia Cínica de Diógenes, praticada junto às proposições do meu grupo: a Cia Cínica Dança.
A professora IldeleteMuzart Fonseca, em seu livro Memória das Vozes: Cantoria, Romanceiro e Cor-
del, cita o historiador francês Pierre Nora, como co-fundador de um conceito que inspirou uma nova
visão de memória, o de “´lugar de memória”, sendo assim, ela contextualiza:

A definição parece a priori muito ampla: “Um lugar de memória, em todos os sentidos da pala-
vra, inclui desde o objeto mais material e concreto, eventualmente geograficamente situado, até
o mais abstrato e intelectualmente construído” Mas qualquer “objeto” não se torna necessa-
riamente um lugar de memória. Para que ele assuma esta dimensão, é preciso dar-lhe vida, cor
e sentido. Tal façanha pode ser conseguida colocando placas comemorativas em monumentos,
celebrando festas em homenagem a batalhas ou tratado de paz, etc. (Fonseca, 2006, p.15)

Dessa maneira, podemos falar na existência de uma corporalidadena dança do Guerreiro de Alagoas
que é construída durante os ensaios pelos seus elementos simbólicos na sua estruturação cênica. A atua-
ção do corpo no Guerreiro Alagoano e a percepção de sua corporalidade na cena perpassa o pensamento
de que o corpo do dançarino, brincante ou ator criador disponibiliza informações em diálogo com o que
ele vivencia em constantes trocas com oambiente. Nestas trocas estão os signos que se corporificam em
movimentos e frases coreográficas.
Estes fenômenos espetaculares são construídos por vozes imbuídas numa memória coletiva conforme
destaca Fonseca:

Essas vozes constroem uma memória que se afirma consensual, formada a partir das memó-
rias de grupos e comunidades bem como de alguns aspectos da memória “oficial”, uma me-
mória, portanto, movediça, às vezes disforme, desigual e desequilibrada, quase por obrigação.
Uma memora coletiva que se transforma ao se transmitir de geração em geração, afirmando a
preeminência de um espaço físico e de um tema, o sertão. (Ibid, 2006, p. 18)

Dinâmicas corporais e suas metáforas

Na dança do Guerreiro a configuração se estrutura em ricos e variados sapateados, onde cada brin-
cante incorpora o seu modo de dançar utilizando improvisos. O jogo dramático enunciado na estrutura
espacial constitui-se numa variante de duas filas, como no Pastoril, em sentido paralela, onde os movi-
mentos são de pequenos deslocamentos para um lado e outro.
Segundo o Mestre Manoel Venâncio, a brincadeira sempre começa com a abertura do divino. “Todos
salvem o oratório, onde deus fez a morada e a hóstia consagrada”, neste momento une o grupo e louva
pedindo proteção ao Padre Cícero, considera este momento para o agradecimento. Esta ação funciona
como uma preparação do corpo e carrega o significado do agradecimento pela vivência da brincadeira
que irá se iniciar.
Neste estudo da dança do Guerreiro foi possível identificar as seguintes dinâmicas corporais. “a mar-
cha”,“o boa noite”, ”o abri-te divino”, “olhar para o céu”, “ o passeio” , “ ai que frio ai que calor” , “ a
despedida” , “o combate”, todas elas associadas à metáforas corporais.
Estas dinâmicas foram intituladas na observação dos passos de dança associados às músicas e aos seus
movimentos correspondentes. Por exemplo. “A marcha” equivale ao deslocamento dos brincantes pelo
espaço “arrastando” os pés no chão, o que pode estar relacionado com a tradicional Folia de Reis, quando
os brincantes vão de porta em porta para avisar o nascimento de Jesus; O “boa noite” é um pequeno
balançar de um lado para o outro, permanecendo no lugar, cumprimentando a plateia; O “Abri-te divi-
no” é o movimento de ajoelhar-se; O “Olhar para o céu” é o movimento que corresponde a um passo
88 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
de valsa olhando para cima enquanto desloca-se pelo espaço; “o Passeio” é o “tropé” sapateado com
deslocamento. “Que frio ai que calor” sapateiamterminando de gente para um parceiro com o corpo
inclinado para trás com os dois pés batendo no chão parecido com uma umbigada; “A despedida”
significa o deslocamento pelo espaço sapateando em todas as direções que estejam o público. Há ainda
“O combate” diálogo corporal entre duplas simulando uma luta com espadas na mão, havendo deslo-
camentos pelo espaço, exige atenção, agilidade e astúcia para executá-lo. Os brincantes devem ser bons
espadachins, significando metaforicamente a luta entre a vida e a morte.
Os Entremezes também são encontrados no Bumba-meu-boi, por meio de seus brincantes e figuran-
tes. A palavra entremez em sua etimologia é citada pelo professor Armindo Bião, partindo do dicionário
Houaiss como: “encenação de jograis ou de bufões realizadas entre um curso de pratos e outro, nos ban-
quetes; peças curtas; intervalo; aquilo que preenche esse intervalo; farsada; alimento entre as refeições;
entretenimento entre os atos de uma peça de teatro” (HOUAISS apud BIÂO,2009, p.135).
Neste conhecimento sobre o entremeio reside a característica de uma dança ou de uma performance
organizada pelo próprio indivíduo que atua num processo de criação autoral, preparando seus persona-
gens partindo de suas informações corporais, e eu diria, multirreferenciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DOS CASULOS ÀS BORBOLETAS

Quando iniciei a pesquisa de Iniciação Científica PIBIC/CNPq com o Guerreiro (2005/2006), havia
um total de 07 grupos atuando. No período de realização da pesquisa de Mestrado (2013/2015), havia
apenas 03 grupos de Guerreiro na cidade de Maceió que vivenciam a brincadeira. São grupos de resistên-
cia, que produzem, sobretudo, utilizando a criatividade, a autoria, para suprir e negociar as perdas e as fal-
tas, tanto de recursos financeiros, como técnicos operacionais para a distribuição de seu produto artístico.
Em questões estéticas a dança do Guerreiro Alagoano perdeu um número considerável de peças, en-
tremeios e embaixadas, estão deixando de serem encenadas, no entanto, uma característica do Guerreiro
é a sua narrativa poder abrir a possibilidade de adaptação e negociação para a criatividade e a impessoali-
dade, ocasionando na maioria das vezes, uma obra de autoria, onde cada mestre ou brincante constrói a
sua brincadeira a partir de referenciais daquelas que eles vivenciaram.
Os aspectos que chamaram a atenção sobre esta prática espetacular, o Guerreiro Alagoano, como en-
foque nos Entremeios como dispositivos para a criação, a partir da pesquisa de campo, é o caráter de sua
tradição enquanto renovação e memória, quando acessada em coletividade na contemporaneidade que
está no sentido próprio de existir legitimando–se nesse tempo agora.
O Guerreiro é uma prática que se mantém renovada devido às condições que lhe são dadas, ela já
nasce renovada, bricolada por partes de outras brincadeiras.Os grupos de Guerreiro atuais resistem a
todo tipo de dificuldades, mas existempor si só, na sua finalidade própria de ser “Guerreiro por natureza”
afirmando-se como prática ancestral. Fazer a brincadeira do Guerreiro é a coisa mais importante para os
brincantes e Mestres. Nesse sentido, os Mestres de Guerreiro realizam sua autarqueiacínica7 e são capazes
de se autofinanciar, mantém a brincadeira com seu próprio dinheiro, se autogerenciam. O Mestre André
Joaquim retira duzentos reais da sua venda de peixe para manter os ensaios com o grupo de Guerreiro
Mensageiro Padre Cícero, de quinze em quinze dias. Todos os Mestres, ou, quase todos, retiram dinhei-
ro do seu próprio bolso para a compra de material, e assim, confeccionar os chapéus e os figurinos, ou

7
Aurtarqueia conceito Cínico que indica ser capaz de autogerenciar-se independente do Estado.
Significado de Autarquia. s.f. Política. Tipo de governo em que uma pessoa ou um grupo de pessoas detém o
poder completo sobre uma nação; autocracia.Filosofia. De acordo com a filosofia grega, condição de satisfação
intrínseca, estado em que o individuo se encontra plenamente satisfeito, independentemente, dos fatores externos
que o rodeiam; autarcia. (Etm. do grego: autárkeia, pelo francês: autarcie ou artarchie). Dicionário Aurélio Online.
Disponível em http://www.dicio.com.br/autarquia. Acesso.19 Abr.2015.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 89
então contribuem com dinheiro para o pagamento da passagem de ônibus de alguns brincantes quando
precisam se deslocar para uma apresentação ou ensaio.
O fenônemo da dança do Guerreiro é tradicional porque seu enredo, figurino, letras, músicas, danças
e Entremeios existem, e resistem e existem nesse lugar de memória, mantem-se reinventando-se enquan-
to fazer. O fenômeno do Guerreiro é contemporâneo porque é feito pelos grupos humanos que vivem
nesse tempo, mas que ao mesmo tempo, revivem por meio de suas memórias, os seus lugares de memórias
na personificação desses figurantes em figuras.
Outro ponto que destacorefere-se às matrizes estéticase históricas que perpassam a dança do Guerrei-
ro, que por sua vez, são informações da história e da formação étnica do povo alagoano e brasileiro são
encontradas em metáforas na dança do Guerreiro. No que se refere às suas matrizes étnicas formadoras
temos, como já foi dito, as matrizes índigenas, as afro-brasileiras e as europeias, onde personagens reais
da história, como, Zumbi dos Palmares, os reis e rainhas africanos escravizados, a rainha Ginga Baldi,
a princesa Isabel, a luta entre cristãos e mouros estão implicitos em metáforas no enredo do Guerreiro.
Cabe frisar nesse contexto de informação e formação sobre a dança do Guerreiro Alagoano que a
mesma é advinda dos Reisados, assim como os Reisados são originários da brincadeira do Boie o boi ad-
vindo dos Cordões de Bichos Amazônicos (Mário Andrade, 1986). Nesse sentido, o Guerreiro comporta
uma contemporaneidade barrocaassumindo partes de várias brincadeiras, as Peças, os Entremeios, as
Embaixadas, os etnotextos, chamando minha atenção em particular, as curtas representações dramatiza-
das, figuras ou Entremeios.
Em questões políticas culturais e patrimoniais, materiais e imateriais, há de se reconhecer a ausência
do Estado, a falta de apoio com as práticas espetaculares como o Guerreiro que precisam de reconhe-
cimento e legitimização da brincadeira. No entanto, deve-se reconhecer a prática da autarqueia que gera
uma produção artística independente da função apoiadora do Estado. Nesse sentido, a cultura popular
sabe muito bem manter-se viva e produtiva, seus artistas exercem essa autarqueia, como muitos criadores
contemporâneos, pois, antes do fomento sempre existiu a Arte.
No Guerreirosuas práticas abarcam sujeitos inventores e mantenedores de sua própria criação, autores
que sabem como a prática deve ser feita fazendo-a, e na prática o seu fazer reiventa-se, reestrutura-se de
acordo com o seu pensamento e a sua concepção poética (Pareyson, 1986). Neste sentido, cabe destacar
a inclusão de uma rabeca acústicano lugar de uma sanfonana banda do Guerreiro Mensageiro Padre Cí-
cero como reinvenção vinda do Mestre André Joaquim. A sanfona que era do Mestre Manoel Venancio,
e, portanto, herança do Mestre André desapareceu, ficava dificil toda vez que havia ensaio procurar uma
sanfona. Nesta anaideia (ação) reside a parresia (liberdade de falar e de agir), assim como reside o ensina-
mento cínico de Diógenes, quando por falta de moradia vai morar num barril de vinhopara continur a
existir exercitando na sua própria Cínica filosofia.
Nestes fazeres Cínicos destaco a memória viva do Mestre Benom Pinto e do Mestre André Joaquim-
que são os responsáveis pelos dois mais atuantes grupos de Guerreiros em Maceió: o grupo Treme Terra
de Alagoas e o grupo Mensageiro Padre Cícero. Esta pesquisa possibitou conhecer suas histórias e seus
lugares de memórias. Como relevância desse estudoconsidero mais que oportuno dar vozes aos brincantes e
praticantes do Guerreiro Alagoano, sujeitos que permanecem quase invisiveis na Região Nordeste, pois
muito pouco se fala nos ambientes escolarizados, nas Universidades e nas Academias de Artes.
Esse lugar especial é destacado pela Etnocenologia, pois, essas práticas espetaculares são dotadas de
um complexificadosaber (Morin, 2003). A dança do Guereiro é pura fruição estética que educa, informa, re-
ferencia muitos campos de saberes transdisiciplinares.Deve-se considerar que esta pesquisa impulsiona
e destaca a história alagoana como uma cultura relevante para a formação do povo brasileiro com suas
matrizes étnicas e históricas que indicam para a mesticagem como fator relevante nessas encruzilhadas
de etnias. Tornam-se encruzilhadas mestiças, encruzilhadas multirreferenciais que perpassam a tradição e
a contemporaneidade e revive lugares na memória dos/nos seus fazeres.Parto de um princípio multirrefe-
rencial (Ardoino, 1982) de encenação por cada referência que o Entremeio sugere. Para Artaud (1984, p.
90 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
108): “(...) precisamos antes de mais nada de um Teatro que nos desperte: nervos e coração“, o que seria
para ele devolver ao Teatro, aqui eu incluo, devolver a Dança, seus poderes especificos de ação e a sua
linguagem. Para ele: “tudo que atua é uma crueldade” (Idem, p.109)e essa idéia levada ao extremo deve ser
considerada necessária ao Teatro e a Dançaque devem ser renovados. Neste sentido invoco uma Dança
da Crueldade, a qual a linguagem deve ser renovada como possibilidade da expressão dinâmica no espaço
mulirreferencial de atuação do ator/dançarino.
As corporalidades dos diferentes temas dos solos no espetáculo, a encenação enquanto busca da
linguagem da cena com a sua bricolagem músical, a busca pela luzideal e real, a roupa na cena e a sala de
ensaio com os objetos: as máscaras, os acessórios, o cenário, o espetáculo, o dançarino e o público são re-
configuradas em reflexões acerca dessas figurações da memória corporal que desembocou nas cinco Figuras
encenadasdas dez figurações a serem desfiguradas. Considerando a encenação como um coletivo de ações
de indivíduosrecai o olhar do encenadorcomo a outra mão, o duplo, a outra face da moeda.

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92 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


OBSERVAÇÕES SOBRE A
CAMINHADA BRINCANTE NA
FESTA DE SÃO MARÇAL EM SÃO
LUÍS/MA
Danielle de Jesus de Souza Fonsêca1
Secretaria de Educação do Estado do Maranhão
daniellejfonseca@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho aborda questões relacionadas à Festa de São Marçal ou Encontro de
Bois do João Paulo, como também é conhecida a festa que acontece anualmente no dia 30 de junho, no
bairro do João Paulo, em São Luís – MA. A festa acontece em formato de cortejo, onde os brincantes
se deslocam pela principal avenida do bairro. O deslocamento, apesar de possuir um trajeto retilíneo, ca-
racterístico da configuração festiva do bairro João Paulo, apresenta muitas curvas e passagens inventivas,
poéticas e espetaculares, mobilizando outras instâncias simbólicas que são ressaltadas neste estudo. A
partir das etnografias realizadas nos anos de 2013 a 2015, foi possível compreender aspectos dos encon-
tros e afetações ocorridos na festa, principalmente no que diz respeito à espetacularidade dos brincantes
no momento da caminhada e das paisagens que são criadas a partir desses deslocamentos.

Palavras-chave: Festa de São Marçal; Caminhada; Brincante; Espetacularidade.

Abstract: The present paper approaches matters related to Saint Martial’s Festivity or Encontro de Bois
do João Paulo, as is also known the celebration that happens annually on June 30th, in the neighbou-
rhood of João Paulo, São Luís - MA. The celebration happens as a parade, as the players walk on the
main avenue of the neighbourhood. The stride, even though it is on a straight road, typical of the festive
configuration of João Paulo, figures many curves and inventive, poetic and spectacular routes; mobilising
other symbolic instances highlighted in this study. From ethnographic research carried out from 2013 to
2015, it was possible to comprehend aspects of the contacting and affectations occurred in the merri-
ment, mainly concerning the spectacularity of the players in the moment of the walk, and the landscapes
created from this displacement.

Key words: Saint Martial’s Festivity; Walk; Player; Spectacularity.

1
Mestre em Arte contemporânea pela Universidade de Brasília. Licenciada em Educação Artística, hab. em Artes
Cênicas pela Universidade Federal do Maranhão. Professora de Arte da rede estadual de ensino. Integra o Grupo
de Pesquisa Drao Teatro da (In)Constância.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 93
Introdução

O presente texto tem como base a pesquisa de mestrado defendida no ano de 2015, pelo Programa
de Pós-graduação em Arte, da Universidade de Brasília/UnB. A dissertação intitulada Tem mascarado na
Festa de São Marçal: o brincante de Pai Francisco no Bumba meu boi em São Luís/MA, buscou compre-
ender os modos de atuação dos brincantes de Pai Francisco – que se apresentam mascarados – na Festa
de São Marçal ou Encontro de Bois do João Paulo2, como também é conhecida a festa que acontece
anualmente no dia 30 de junho, no bairro do João Paulo3, em São Luís/MA.
Para este momento, a escrita discutirá questões pontuadas de forma introdutória na dissertação e que
agora ganham força analítica, sobretudo no que tange a caminhada como espetacularidade na festa de São
Marçal, assunto a ser tratado neste artigo. O direcionamento temático acerca da caminhada foi se mos-
trando relevante à medida que leituras sobre os formatos das festas brasileiras foram sendo feitas, acio-
nando o interesse em desenvolver uma análise mais detalhada acerca das práticas caminhantes nas festas.
A partir das etnografias realizadas nos anos de 2013 a 2015, foi possível compreender aspectos dos
agenciamentos ocorridos na festa de São Marçal, principalmente no que diz respeito à espetacularidade
do brincante. Em busca de uma reflexão acerca das possibilidades que a caminhada oferece como cria-
ção, busquei articular os processos de construção e visualização assumidas pelo corpo, do corpo e no
corpo brincante nas espetacularidades existentes na cena.
A especificidade do contexto presenciado é observada quando se tem a prática de considerar essa situa-
ção singular como produção de subjetividades, onde os brincantes reinventam outros espaços, tempos e for-
mas de estar no mundo. É preciso pensar no momento festivo como instante inventivo, ao se colocar frente
ao outro, o brincante assume uma atitude que visa ao encontro como razão e potência para se estar na festa.
Cabe, portanto, com essa iniciativa, colaborar com o registro e a difusão das pesquisas realizadas no
campo da Etnocenologia – que estuda as práticas de comportamentos humanos espetaculares e orga-
nizados (PCHEOS) – e criação de um espaço de troca de experiência instigante que contribua para o
desenvolvimento das pesquisas na área, que olhem para o fenômeno de investigação na sua inteireza. O
texto busca apresentar uma descrição e reflexão sobre os diversos momentos do Encontro dos Bois, suas
ações caminhantes, interações entre os brincantes, inclusive com o público.

A Festa de São Marçal: devoção, corporalidades, celebração e encontros no bairro do João Paulo

A festa de São Marçal ou Encontro de Bois é uma celebração que reúne milhares de pessoas no bairro
do João Paulo, no dia 30 de junho4. A festa é reservada para o desfile dos grupos de Bumba meu boi do
sotaque de Matraca5. Essa especificação a respeito dos envolvidos é de suma relevância, porque são eles

2
Apesar dos termos Encontros de Bois e Festa de São Marçal ser equivalentes, o uso deste último é mais usual
entre os brincantes e frequentadores da festa.
3
A festa acontece na Avenida São Marçal, que recebeu este nome por conta de um decreto municipal.
4
O encontro se inicia nas primeiras horas do dia e o seu final ocorre somente quando o último grupo de Bumba
boi encerra sua participação, o que acontece por volta das 22h.
5
O sotaque de matraca – ou da Ilha – é proveniente da região metropolitana de São Luís (São Luis, Raposa, São
José de Ribamar e Paço do Lumiar). A maioria dos grupos deste sotaque é proveniente dos bairros periféricos e
contém forte presença de brincantes afromaranhense. Distingue-se pelos pandeirões, tocados posicionados em
cima do ombro; e as matracas, dois pedaços de madeira que são batidos entre si. A sonoridade e o bailado dos
brincantes são mais lentos, mas com um ritmo muito marcado. Os brincantes dançam em roda em volta do boi,
do amo, dos vaqueiros e da mãe Catirina e pai Francisco. Outros personagens característicos deste sotaque são:
cabloco de pena, índia, burrinha, cabloco de fita.
94 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
que dinamizam e reelaboram a festa, levados por motivações variadas para sua presença no Encontro de
Bois. Neste contexto festivo, os brincantes se voltam para agradecer ou pagar promessas a São Marçal,
sendo essa uma das formas encontradas pelos brincantes/devotos para homenageá-lo (MARTINS, 2007).
Antes de comentar mais detalhadamente sobre a festa de São Marçal é importante levar em conside-
ração os principais fazedores da festa e que dão sentido a ela, que são os grupos dos Bois6 de Matraca
e seus brincantes. O momento festivo expõe as visualidades, diversidades estilísticas e sonoridades ca-
racterísticas dos grupos, bem como atualizações e práticas que são reinventadas no decorrer da festa. É
relevante comentar que as reinvenções produzidas pelos Bois perpassam todo o universo da brincadeira,
não se localizando apenas na festa de São Marçal.
No Maranhão, o Bumba meu boi é uma brincadeira bastante esperada no período junino e recebe esse
nome genérico por conter, como elemento principal, um boi. Como produção material e de significados,
a brincadeira elabora formas diversas de celebração, criando particularidades e adequações de acordo
com o seu lugar de ocorrência.
O Boi de Matraca é uma manifestação realizada principalmente por pessoas que, em sua maioria,
residem na região rural ou na parte periférica da Ilha de São Luís. No contexto social da brincadeira, o
perfil dos brincantes é composto por pessoas de origem simples, as quais, quase sempre, trabalham em
condições informais de trabalho, como feirantes; ou, em outros casos, desempenham funções que exigem
muito esforço físico, como a profissão de pedreiro.
Apesar de o cotidiano dessas pessoas exigir seções diárias de energia e força para execução de suas
atividades, a disponibilidade do brincante para se dedicar ao Boi ultrapassa qualquer impedimento que
o impossibilite de brincar. Nesse sentido, Joana Oliveira, ao pesquisar as tarefas rotineiras das pessoas e
sua relação com as atividades no Boi, aponta que “é importante lembrar que a própria brincadeira está
relacionada com o período de descanso do trabalho pesado e cotidiano. [...] isso é paradoxal, já que a
brincadeira exige preparo” (2006, p. 74). Nos termos explicitados, é nítida a presença do Boi em muitas
dimensões da vida dos brincantes. Essas pessoas se organizam de maneira muito intensa a cada etapa da
vivência boieira, o que leva a crer que essas mobilizações são compreendidas como um prolongamento
de suas existências, carregadas de afetos, fé e potências.
Cabe a partir de agora mencionar aspectos da Festa de São Marçal, onde destaco informações relacio-
nadas ao seu histórico e à religiosidade maranhense, sobretudo, a católica7, que será discutido no intuito
de compreender a relação do Boi de Matraca com a festa de São Marçal.
São poucas as fontes encontradas em dissertações e teses que dão informações importantes acerca
do histórico da festa de São Marçal (ALBERNAZ, 2002; SANCHES 2003; BARROS, 2007; MARTINS,
2007). Mas mesmo entre esses trabalhos, nota-se que há divergências sobre o seu começo, existindo pelo
menos duas versões que se sobressaem ao relatar as comemorações iniciais8.

6
Na capital maranhense, a manifestação cultural Bumba meu boi é conhecida por algumas denominações, mas
na presente pesquisa utilizarei os termos: Bumba meu boi, Bumba boi, Boi e brincadeira em concordância com as
pessoas integrantes do universo pesquisado que utilizam essas expressões para nomear o que fazem.
7
A prática religiosa da brincadeira não se restringe ao catolicismo, a encantaria maranhense também está presente
na dimensão boieira. Para mais informações sobre a encantaria maranhense, ver o trabalho pioneiro e que é refe-
rência no estudo das religiões afro-maranhenses da antropóloga maranhense Mundicarmo Ferreti, intitulado Desceu
na Guma: o caboclo do Tambor de Mina no processo de mudança de um terreiro de São Luís, a Casa Fanti-Ashanti.
8
Outro relato, pouco difundido, para o começo das apresentações seria que o evento teria sido um pretexto para
prolongar a temporada junina na capital maranhense.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 95
A primeira versão relata que o pedreiro José Pacífico de Morais, popularmente conhecido por Bicas,
ao visitar um arraial situado no bairro do Anil, ficou tão encantado ao ver a apresentação dos Bois que
decidiu convidá-los para dançar no ano de 1928 no bairro do João Paulo9.
A outra variante aponta que o início do Encontro de Bois10 é fruto das proibições e medidas repres-
sivas que culminaram na instituição de limites territoriais e simbólicos, estabelecidas desde a primeira
metade do século XIX, que autorizava apenas a prática boieira11 longe do Centro da cidade. Neste caso,
o João Paulo “se constituía como o único arraial longe do mundo rural e próximo das zonas urbanas”
(BARROS, 2007, p. 145). Desse modo, o bairro incorporava, na época, o sentido de desafiar os limites
espaciais e simbólicos ao se apresentar como zona de fronteira (ALBERNAZ, 2002).
Na maioria dos grupos, o Boi é dedicado a São João. Os devotos brincantes se voltam para agrade-
cer ou pagar promessas ao santo, sendo essa uma das formas encontradas por eles para homenageá-lo.
Outros santos também recebem homenagens e são recebidos com festa no mês de junho como é o caso
de Santo Antônio, celebrado no dia 13; de São Pedro, comemorado no dia 29; e de São Marçal cuja festa
ocorre no dia 30.
Sobre a inclusão de São Marçal como padroeiro da festa12, este ocorreu a partir da década de 1980,
atribuindo à festa o caráter de celebração religiosa. A partir dessa nova dimensão simbólica que, de cer-
to modo, já existia e sustentava as tramas da festa, o Encontro passou a se configurar como espaço de
combinação celebrativa, unindo fé e diversão à festa boieira mais representativa para os Bois do sotaque
de Matraca.
As relações que são criadas a partir da devoção a São Marçal são compostas de situações que carecem
de um olhar mais atento, devido a uma situação curiosa e, por vezes, conflitante, diz respeito ao fato de São
Marçal, apesar do nome, não ser considerado santo, posição bem diferente dos demais santos juninos cita-
dos, como Santo Antônio, São João e São Pedro. É interessante compreender que a relação de São Marçal
com as práticas brincantes subverte por completo qualquer tipo de oficialização ou pressupostos canôni-
cos seguidos pela Igreja Católica para atribuir santidade a alguém. Por conseguinte, a menção de São Mar-
çal como santo respeita a vontade dos brincantes em reverenciá-lo como divindade protetora escolhida.
Neste sentido, a história da festa no João Paulo se confunde com a própria história dos Bois de Ma-
traca. Desse modo, pode-se constatar que “a festa tem uma dupla importância: ressaltar a história da re-
sistência dos realizadores do folguedo às perseguições policiais, e, atualizar os símbolos internos do ciclo
do bumba boi” (ALBERNAZ, 2002, p. 53).
Destaco que participar da festa é a maior demonstração de respeito e compromisso pelo local que
acolheu a brincadeira em tempos difíceis para o Boi. No Encontro de Bois, aspectos relacionados às
produções artísticas e simbólicas merecem destaque ao evidenciarem os tipos e meios de contatos, cami-
nhadas, visualidades, acolhidas, conflitos, saberes, corpos, jogos, negociações e encontros que trilham o
território festivo e boieiro.

9
No período citado, qualquer festa pública teria que solicitar alvará de licença para sua realização.
Com base nas leituras acerca dos períodos de proibição, controle e restrição dirigidos ao Boi, a presente pesquisa
10

considera os estudos que sinalizam esse contexto de resistência, como sendo o motivador da existência das práticas
de se brincar Boi no bairro do João Paulo.
Boieiro é a denominação que se dá tanto a quem integra o grupo de boi, como para os que acompanham a
11

brincadeira (ALBERNAZ, 2002, p. 49).


Uma situação curiosa diz respeito ao fato de São Marçal, apesar do nome, não ser considerado santo, posição
12

bem diferente dos demais santos juninos, como Santo Antônio, São João e São Pedro. É interessante compreender
que a relação de São Marçal com as práticas brincantes subverte por completo qualquer tipo de oficialização ou
pressupostos canônicos seguidos pela Igreja Católica para atribuir santidade a alguém. Por conseguinte, a menção
de São Marçal como santo respeita a vontade dos brincantes em reverenciá-lo como divindade protetora escolhida.
96 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
É caminhando que se brinca: aspectos da espetacularidade em São Marçal.

A questão da caminhada tem uma dimensão relevante nesta escrita, especialmente por apontar modos
do existir na espacialidade festiva. Acerca dessa existência inventiva e provisória, a noção de espetaculari-
dade é inserida na discussão por fazer parte da caminhada como acontecimento. A partir dessa perspecti-
va, a espetacularidade do brincante, é colocada em relevo pela escolha epistêmica da Etnocenologia como
abordagem. Sobre o termo espetacularidade Armindo Bião a destaca como “[...] interações humanas
organizadas e extra cotidianas, inerentes a cada cultura” (2009, p.35). A interação humana se realiza em
ações, que postas em distinção entre o que fazem e os que observam, onde sujeitos se movimentam e se
organizam em função do outro.
A escolha pela abordagem etnocenológica se deve por proporcionar um viés de análise que leva em
consideração a cultura local e suas práticas simbólicas dentro do seu próprio contexto de produção. Além
disso, é igualmente importante ater-se ao fato de que a festa de São Marçal, dada a sua complexidade, não
se encaixa em acepções genéricas, sendo, portanto, necessário situá-la no espaço e no tempo dos sujeitos
envolvidos nela. Desse modo, busca-se compreender os elementos que compõem o fenômeno a partir
do afastamento de noções etnocêntricas, por não levarem em consideração a importância do outro e de
seu contexto de elaboração.
A alteridade, um dos princípios basilares da etnocenologia, é uma necessidade, por possibilitar conhe-
cimento e respeito pela existência do outro, sendo esse contato mediado pelo próprio sujeito, destacando
suas dimensões enquanto sujeito histórico e cultural, relação esta que não é isenta de conflitos e afeta-
ções. Desse modo, o professor Graça Veloso (2009, p.23) comenta que a perspectiva etnocenológica visa
à compreensão das “[...] construções materiais do ritual, suas significações religiosas, as interações delas
advindas e, principalmente, seus aspectos estéticos, de espetacularidade”.
Como categoria de interesse da etnocenologia, a festa e, neste estudo, a caminhada, são compreen-
didas como fenômenos que intensificam os sentidos e significados referentes ao corpo, à alteridade, à
partilha e ao encontro. A caminhada pode ser também observada como uma possibilidade estética por
excelência devido às suas múltiplas expressões e rituais, assim como as práticas culturais e simbólicas que
nela se manifestam.

Imagem 1 - Início do cortejo do Boi. Foto: Danielle Fonsêca. Junho de 2014.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 97


A configuração da festa de São Marçal ocorre em formato de cortejo, os brincantes se deslocam pelo
corredor da avenida que mede de 300 a 400 metros e, na maioria das vezes, o percurso tem duração apro-
ximada de 3 ou 4 horas, devido à grande quantidade de pessoas (brincantes e público) que acompanha a
festa. Da mesma forma, Miguel de Santa Brígida ao pesquisar sobre os desfiles das escolas de samba do
Rio de Janeiro, observa que

As narrativas que caminham, se deslocam, passam aos nossos olhos, trabalhando simbolica-
mente o tempo e o espaço, constroem espetacularidade singulares [...]. Não podemos esquecer
que as narrativas de rua traduzem em suas práticas e poéticas não só uma questão estética,
mas também uma ética, uma moral e uma política, enfim, uma maneira de viver em sociedade
(2008, p. 41).

Desse modo, o cortejo revela uma maneira diferenciada de festejar. O deslocamento, apesar de pos-
suir um trajeto retilíneo, característico da configuração festiva do João Paulo, apresenta muitas curvas
e passagens inventivas, poéticas e espetaculares, mobilizando outras instâncias simbólicas. A condição
movente garante aos praticantes o compartilhamento de vivências, a atualização e efetivação de outras. A
caminhada surge como campo de interações artísticas, jogos e possibilidades de cena e “revela-se, então,
como um estilo especial da espetacularidade popular brasileira” (BRÍGIDA, 2008, p.2). Como potência
analítica, poética e discursiva, a caminhada, no contexto estudado, assume também uma dimensão espe-
tacular na festa.
O caráter espetacular do cortejo com as suas diversas formas de interação e produção simbólica e es-
tética, aponta para a festa de São Marçal como momento significativo de construção e efetivação de uma
sociabilidade bem específica. Há aqueles que desfilam, aqueles que observam sem locomoção, outros
acompanham, independente da intenção e prática festiva, todos integram a festa.

Imagem 2 – Foto de satélite de uma parte do bairro João Paulo.


Fonte: http://wikimapia.org/#lang=pt&lat=-2.543926&lon=-44.272435&z=17&m=b

Antes de iniciar o cortejo, os grupos se concentram na Avenida Kennedy –representada pela linha
azul (Ver imagem 2). O início do desfile acontece na esquina do 24° Batalhão de Caçadores, designado
pelo círculo preto. A ordem de entrada dos Bois na avenida é previamente acordada em reunião anterior.

98 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


A disposição dos grupos se realiza em sequência, um após o outro, com certa distância do Boi anterior,
para que não haja nenhum tipo de interferência que possa atrapalhar o desfile em curso. A participação do
grupo se encerra na Praça Ivar Saldanha – círculo vermelho na imagem 2 –, onde há um palco montado
para entrega de um o troféu dado pela organização da festa para agradecer a participação do grupo. O ato
marca o encerramento da participação do grupo na Festa de São Marçal, uma espécie de fechamento do
ciclo festivo junino daquele ano.
Ao falar sobre o caminhar, não se pode desconsiderar a potência encontrada no repouso, no ficar pa-
rado. A pausa, dentro do contexto festivo pesquisado, é então percebida como situação vital que permite
ao brincante dar continuidade à cena, à caminhada. Isso, entretanto, não significa pensar que na pausa
não há criações ou feituras, muito pelo contrário, outras relações inventivas são estabelecidas e comple-
mentares a cena.
Portanto, a caminhada é compreendida como um conceito movente que visa a promoção de encon-
tros. Neste aspecto, o deslocamento estudado não se localiza apenas na festa de São Marçal, mas deve ser
atravessado por toda a prática da pesquisa, no intuito de adotar atitudes que levem em conta o diálogo
com outras instâncias argumentativas e interdisciplinares.
Lançar-se ao encontro, mover-se para existir e caminhar para brincar exige atravessamentos que só
ocorrem quando o corpo esta em movimento, que se desloca em sentidos variados ao desenhar marcas
singulares, deixando rastros durante a sua passagem. A festa só começa a existir quando se caminha, os
deslocamentos levam ao contato com paisagem festiva que não esta concluída, o brincante tem a oportu-
nidade de compor e acrescentar à cena já existente outras afetações e modos de existência.

Visualidades etnografadas: o que vi quando a caminhada atravessava a avenida.

A partir de agora concentro o relato no meu percurso de inserção do campo, com base nas etnografias
realizadas nos anos de 2013 a 2015. Nessas imersões foi possível compreender aspectos dos encontros
e afetações ocorridos na festa, principalmente no que diz respeito à espetacularidade dos brincantes no
momento da caminhada e das paisagens que são criadas a partir desses deslocamentos festivos.
No ano de 2013, optei por realizar uma caminhada pela Avenida São Marçal no dia 29 de junho. A
escolha desse dia para a visita deu-se por dois motivos: por ser a véspera da festa e pelo feriado do dia de
São Pedro. Com o feriado, o fluxo de carros e ônibus diminui na Avenida São Marçal e, com o comércio
local fechado, a quantidade de pessoas também é reduzida. Aproveitando a calmaria do dia e as condições
propícias para ajustes e acertos, os organizadores e demais colaboradores realizam os últimos detalhes
para o Encontro de Bois que acontece no dia seguinte.
Meu deslocamento até o bairro na véspera da festa significou uma boa oportunidade para conhecer a
dimensão festiva que vai afetando o bairro antes mesmo de seu início oficial. Retomando a ideia da ca-
minhada como proposta estética e, neste caso, de certo modo, etnográfica, minha passagem pela avenida
buscava situar peculiaridades presentes nesse espaço preparativo que antecede a festa, momento esse que
era resultante de um processo de múltiplos agentes. Nesse sentido, observei que a existência do evento
começava a ocupar não só os espaços físicos, como também o próprio corpo de quem já se preparava
para a festa, antecipando os seus efeitos simbólicos e expressivos. Destaco que meu corpo também foi
contaminado por essa energia que já atravessava o tempo e o espaço na avenida.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 99


Imagem 3 - Avenida São Marçal momentos antes do início da festa. Foto: Danielle Fonsêca. Junho de 2014.

Na etnografia de 2014 optei por comparecer cedo ao João Paulo para acompanhar as primeiras horas
da manhã do dia 30 de junho13, quando cheguei percebi que na avenida o tempo se expande, adquirindo
outras qualidades e usos. Tais fenômenos acionam comportamentos e interações envoltos de múltiplos
interesses, o que caracteriza a bricolagem festiva de São Marçal.
A questão climática é outro aspecto relevante no Encontro de Bois por interferir, de certo modo, na es-
petacularidade dos brincantes. O horário da festa, que se inicia a partir das seis horas da manhã e se estende,
na maioria das vezes, até as primeiras horas do dia seguinte, permite a circulação de um grande quantitativo
de pessoas, dentre elas brincantes, público e vendedores que transitam pela festa em horários diversos.
No entanto, é visível que o quantitativo maior de pessoas ocorre no período compreendido entre
meio dia e seis horas da tarde. Um dos motivos para essa concentração pode estar relacionado ao fim do
horário de trabalho, já que algumas empresas e repartições públicas costumam dar expediente apenas pela
manhã no dia da festa14. Isso acaba limitando a participação do público ao período vespertino e noturno.
É importante ressaltar que o horário vespertino é marcado por intensa exposição solar e este aspecto foi
analisado por afetar diretamente a espetacularidade do brincante. As condições climáticas da festa foram vis-
tas como momentos a serem evitadas pelos grupos, isso reflete na espetacularidade do brincante, que se uti-
liza de mais pausas na sua caminhada, além de buscar sombra nas árvores expostas no canteiro da avenida.
A maioria dos Bois chega pela manhã ao João Paulo desejando iniciar o mais cedo possível o cortejo.
No entanto, isso não garante ao grupo a entrada imediata no desfile. Os grupos chegam à festa sem ho-
rário definido para sua entrada na avenida, pois dependem do tempo utilizado pelo Bumba boi anterior
para começar o seu desfile, com isso os brincantes podem passar por um longo período de espera.
Uma das alternativas encontradas pelos brincantes para driblar a monotonia da espera e aproveitar o
tempo disponível é observar os desfiles que estão acontecendo na festa. Assim, de uma forma descontra-
ída, o Encontro convida o brincante – com a mesma intensidade com que chama o público – a percorrer
a avenida. Variadas são as intenções que levam o brincante a caminhar na festa, a seguir menciono uma
delas por ter sido observada durante a etnografia.

Esta foi a única vez que eu consegui comparecer antes do início da festa, por volta das 5h00 da manhã. Nas
13

demais etnografias minha chegada se dava por volta das 07h30.


14
No dia 30 é dado ponto facultativo nas repartições públicas municipais de São Luis.
100 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Enquanto percorria o cortejo do Boi de Panaquatira em 2013, observei que no grupo havia dois brin-
cantes de Pai Francisco em cena. O jogo dos dois fluía de tal maneira que, em vários momentos, um pa-
recia complemento do outro, pois ali nenhum estava se sobrepondo ao outro, demonstrando a afinidade
cênica que perpassava a situação espetacular.
Ao surgir uma oportunidade, conversei com um deles e perguntei acerca dessa particularidade15, a
resposta dada foi que o Pai Francisco do Boi do Maiobão – da esquerda – foi convidado por ele para
participar do desfile. A partir da resposta dada pelo brincante, compreendi que o jogo praticado por eles
era sustentado pela relação de amizade existente entre os dois, sendo esse o motivo principal que os unia
no desfile do Boi de Panaquatira.

Imagem 4 – Dois Pais Francisco e burrinha no cortejo do Boi de Panaquatira. Foto: Danielle Fonsêca. Junho de 2013.

A cena descrita apresenta recortes de uma cartografia da festa, que devido a sua amplitude e dimen-
sões ganha, a cada ano, novas paisagens, detalhes e contornos. Portanto, novas formas de conhecer e
interagir na festa são experimentadas, resultando em objeto privilegiado para análise da sociedade e dos
grupos em situação festiva.
Comparecer com seu batalhão pesado16 na Avenida São Marçal tem um simbolismo muito forte para o Boi,
expressando sentidos variados como a consolidação e o fortalecimento das relações de solidariedade entre os
grupos do sotaque de Matraca; a atualização dos símbolos representativos para a festa e o Boi; o agradecimento
a São Marçal pelas apresentações; e a renovação do pedido endereçado ao santo para o outro período junino.

Geralmente cada Boi possui apenas um brincante de Pai Francisco.


15

Termo muito utilizado pelos brincantes do sotaque de Matraca para designar as pessoas que integram este sotaque.
16

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 101


Conclusão

A caminhada do brincante na festa de São Marçal foi o pensamento que guiou a proposição deste
texto, sobretudo os aspectos que envolvem a sua espetacularidade no decorrer do deslocamento.
Busquei enfatizar na minha escrita a abordagem do espaço festivo de São Marçal ao destacar seus
aspectos relacionados a sua história, bem como os aspectos históricos, estéticos e sociais dos grupos de
Bumba meu boi do sotaque de matraca, que foram discutidos no intuito de compreender a relação desse
sotaque com a festa e quais são as produções que surgem a partir deste encontro. Tais práticas fizeram
do Encontro de Bois a celebração da cultura boieira, marcada por contrastes e desafios sofridos pelos
brincantes que vêem no Boi a possibilidade de praticar sua fé, colocando em destaque as expressões ar-
tísticas e religiosas presentes na brincadeira como momentos que são partilhados pelos grupos de Bois e
pela sociedade maranhense.
O propósito deste texto foi de apresentar alguns apontamentos do que foi visto na festa, a partir disto
compreendi que a espetacularidade do brincante e sua caminhada ganham amplitudes consideráveis no
decorrer da festa. Esse fato é decorrente das ações e mobilizações que o brincante desenvolve, ao longo
de anos de experimentações, ao se dispor para a feitura da brincadeira e para a participação na festa.
Ano após ano, o Boi se reinventa, criando novas poéticas e resignificando outras. A esse respeito,
observei como a multiplicidade de processos de criação desenvolvida no momento da caminhada revela
uma cartografia singular e rica de dimensões analíticas. A festa foi compreendida como espaço no qual o
brincante cria e se reelabora a todo instante, executando ações e improvisando no decorrer de sua apre-
sentação, resultando assim em uma tessitura gestual própria.
Encerro, por hora, sem pretensões conclusivas, com a impressão de que o estudo conseguiu, de certa
forma, propor reflexões ao discutir como o encontro de Bois oportuniza os mais diversos olhares, capa-
zes de revelar nuances das produções simbólicas e estéticas presentes nessa estrutura festiva, bem como
as elaborações contidas no Boi do sotaque de Matraca.

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I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 103


ELOMAR FIGUEIRA MELLO,
TROVADOR DO SERTÃO
MEDIEVO.
Eduardo Cavalcanti Bastos1

RESUMO: A presença mítica e arquetípica dos trovadores medievais no cancioneiro ocidental e con-
temporâneo, a partir dos anos 60, e seu acontecimento na Cantoria do Brasil. Através de aspectos teatrais
e performáticos, observa-se a apropriação, por artistas da canção, conhecidos comumente como poe-
tas-cantadores, de elementos simbólicos do período medieval. Este acervo de símbolos produz um per-
former imbuído num modo próprio de arte musical, expressando em suas obras matérias memoriais de
intensa conotação medieva. Nessa inscrição memorial de um vasto simbolismo da Idade Média se projeta
um campo onírico onde modos de existência são friccionados com a estética cancioneira. Dessa forma,
esses artistas da canção podem ser considerados como novos trovadores, admitidos em certa vocalidade
que os legitima dentro de uma linhagem de arquétipos do trovador. No Brasil, o novo trovador tem sua
presença marcada no espaço mitificado do Sertão. Nesse contexto, a vida e obra cantadores como Elo-
mar Figueira Mello remonta o cenário através do qual é possível compreender as chaves de um aconteci-
mento poético-musical que recria e prolonga aspectos do trovadorismo da Idade Média, fornecendo ao
sertão uma imagem de lugar ancestral a guardar os valores desse período.

Palavras-chave: Idade Média. Trovador. Cantoria. Maravilhoso. Poetas-cantadores.

ABSTRACT: The mythical and archetypal presence of medieval troubadours in the western contem-
porary repertoire of songs, after the 60s, can be called Cantoria in Brazil. Through theatrical and perfor-
mative aspects, one can note an appropriation by song artist or poet-singers, as they are more commonly
known, of symbolic elements from medieval times. This collection of symbols produces a performer
imbued with a unique musical signature, conveying in his pieces memorial content with intense medieval
connotations. This memorial inscription, carrying a vast symbolic reference to the Middle Ages, projects
a dreamlike field in which modes of existence are confronted with the cancioneira aesthetics. Thus, these
artists of the song can be considered new troubadours, admitted in certain vocal stratum that validates
them within a lineage of troubadour archetypes. In Brazil, the new minstrel has marked his presence in
the mythicized land of the Brazilian Sertão. In this context, the life and work of singers such as Elomar
Figueira Mello rebuilds the scenario by which one can understand the keys to a poetic-musical event that
recreates and extends aspects of medieval troubadour lyricism, conferring to the backcountry the quality
of an ancestral place where values of this period are stored.

Keywords: Middle Ages. Troubadour. Poet-singers.

1
Doutor em Artes Cênicas, professor do Centro da Universidade Federal do Oeste da Bahia.
104 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Precipitada e tênue é a linha de confronto entre o observador e o observado quando estão sobrepos-
tos olhares e lugares, análise e interpretação. De sobremaneira se torna desafiante transpor as revelações
trazidas pela obra de Elomar Figueira Mellose o intento é descobrir sobre quais esteios se assentam tan-
tos levantes memoriais e imaginários, sejam estes medievais ou de outro fundamento na constituição de
um espaço sertanejo subjetivado por ele. Nesse contexto, a busca não está em resolver a proposição do
sertão medieval e elomariano, pois essa revelação já é bastante precisaquando constatamos em suas canções
os temas cavaleirescos. Os múltiplos contextos em sua obra e o conhecimento geral do temário medieval
apontam facilmente para isso. O desafio é apreender o artista na repercussão de suas múltiplas vozes
nesse trajeto e perceber como elas trabalham por engajá-lo numa construção desses vastos arquétipos
medievais, percebendo sobre que matrizes e condições estéticas se deslocam autor e obra para compor
um sertão intempestivo. O acontecimento do poeta-cantador Elomar, dessa forma, apresenta a espetacu-
laridade, enquanto fenômeno, de evidente interesse para tantos pesquisadores e público afeito à sua obra
a integrar a proposição medieva no espaço do sertão. A ativação deese espaço parece restaurar a imagem
de uma comunidade esquecida e ancestral para ativar outra, conveniente às suas formas de sonho e poé-
tica para a geografia da caatinga.
Nesse sentido, a apreensão deste sertão movediço, ou seja, desse lugar a mover-se com seus atores inver-
tendo as formas de ver está além das condições analíticas e experienciais da obra porque responde a um
apelo de “agir contra o tempo, portanto sobre o tempo [...] em favor de um tempo que virá” (PÉLBART,
2003, p. 187). O esteio desse instante, tempo remoto,masfixado no agora, está na voz de Elomar como
corpo vocal em espetacularidade, assumido num personagem trovador, numa perspectiva movimentada
dentro de uma oralidade, sim, mas para além de qualquer intencionalidade doprocesso de transmissão
oral ou de afirmação da expressão vocal. Em sua atuação é possível observar a intencionalidade de espe-
táculo em toda sua dimensão cotidiana.
Para Zumthor (1990), o conceito de vocalidade surge como uma noção antropológica, não historiada,
mas relativa aos valores atribuídos à voz integrada ao texto (ZUMTHOR, 1990, p. 102). Essa intenção
direta incorporada ao texto, ou seja, feita através da voz, possui o único objetivo de ser performática, pos-
suir expressão cênica também atribuída ao instante (COHEN, 2004, p. 28). Voltamos, assim, à situação de
uma voz autoenunciativa de cantadores quando dizem: “– somos trovadores!” ou do público: “– eles são
menestréis!”. Mas, como sabemos, o tempo dos trovadores é em si, outro acontecimento.
Longe de discursar exaustivamente sobre as fontes da Idade Média e suas heranças, é bastante, neste
instante, apenas ressaltá-las como um evento do passado que na atualidade produz marcas intensas na
obra de Elomar e em muitos outros artistas e acontecimentos artísticos pulsantes a partir de meados dos
anos 60 do séc. XX até o final dos anos 80 do mesmo século. A Idade Média não pode ser, mesmo de
longe, concebida como fonte originária, berço de nascimento ou qualquer expressão empregada como
referencial para as situações da contemporaneidade. O nosso esforço é tentar perceber o eco que essas
vozes antigas oferecem aos eventos presentes (ZUMTHOR, 1987, p. 23). Então, é possível falar, até certo
ponto, de um prolongamento da Idade Média, entendida entre o século IX e começo da era industrial
(ZUMTHOR, 1987, p. 25), sendo possível acrescentar, ainda, variados saltos até a contemporaneidade.
E nesses saltos observamos, no geral, a particularidade dos anos 70 até a atualidade, permitindo assim
compreender alguns novos eventos.
Mas por que uma fricção tão efusiva e diletante dos artistas da canção com a Idade Média?
Em primeiro lugar, porque, talvez, ela forneça um aporte imaginário de elementos estratégicos para
planejar a fuga das realidades cotidianas opressoras dos modos poéticos de existência. Em segundo,
esses mesmos elementos carregam encantamentos e sedução pelos valores que oferecem na intenção
de “maravilhar”, com suas lendas, criaturas, mundos imaginários e imagens de suntuosas belezas. Nesse
encontro com enredos fantásticos, depara-se com a hesitação entre o natural e o sobrenatural (SAUDA-
NE, 2012, p. 05), ativando imagens de um mundo que também é o nosso. Nesse contexto, nos importam
as indicações que apontam o universo de figuras e narrativas do “lado de lá”, tais como a representação
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 105
religiosa do maravilhoso bíblico, desde a figuração do diabo e do apocalipse, atravessando as histórias
de Jó e do Leviatã (SAUDANE, 2012, p. 18). E assim como a nossa visão da Idade Média não renuncia
jamais ao seu vasto repertório antigo e exótico, que nutre a imaginação embutida no maravilhamento
(BALTRUSAITIS, 2008, p. 07), Elomar, como homem medieval deste tempo, evolui para além da ordem da
vida, ou do realismo, engajando valores deslocados num medievo evangélico, salvacionista, recorrente de
poético-musicalidade composta sobre a moral cristã.
O uso frequente, por exemplo, de um temário de simbologias cavaleirescas por este cantador nos
reposiciona para o sertão dedicado à outro tempo, imaginário, provocando-nos o impacto pela incursão
de imagens medievas.

O Rapto de Juana do Tarugo2


(Elomar Figueira Mello)

Infrenteifôsso muralha
E os ferros dos portais
Só pela graça
Da gentil senhora
Filtrando a vida pelos grãos
De ampulhetas mortais
D’além de Trás-os-Montes venho
Por campo de justas
Honrando este amor
Me expondo à Sanha Sanguinária
De cortes cruéis
Infrentei vilões no Algouço
E em Senhores de Biscaia
Fidalgos corpos
De almas brunhidas
Não temo escorpiões cruéis
Carrascos vosso pai
Enfreado à porta do castelo
Tenho o meu murzelo
Ligeiro e alazão
Que em lidas sangrentas
Bateu mil mouros infiéis
O Senhora dos Sarsais
Minh’alma só teme
Ao Rei dos reis
Deixa a alcova vem-me à janela
Ó Senhora dos Sarsais
Só por vosso amor e nada mais
Desça da torre Naíla donzela
Venho d’um reino distante,
Errante e menestrel
Inda esta noite
E eu tenho esta donzela

2
Canção disponível para acesso na internet.
106 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Minha espada empenho
A uma deã mais pura das vestais
Aviai pois a viagem é longa
E já vim preparado para vos levar
Já tarda e quase o minguante
Está a morrer nos céus
O Senhora dos Sarsais
Minh’alma só teme ao Rei dos reis
Deixa a alcôva vem-me à janela
O Senhora dos Sarsais
Só por vosso amor e nada mais
Desça da torre, Juana tão bela
Naíla donzela, Juana tão bela
(MELLO, 1979, faixa 03, Disco II).

A Idade Média oferece a luta, a resistência, a chevalerie, a heráldica, a hierarquia, a corte, o rústico e,
enfim, um grande fluxo de elementos simbólicos e míticos suficientes para reelaborar reações ao mundo
agônico da atualidade. Em uma de suas representações trovadoras a história da Idade Média exibe a figura
do trovador-cavaleiro Bertrand de Born, considerado hábil trovador medieval, uma das grandes figuras
do Trobar, altivo “poeta, cavaleiro e guerreiro, senhor, no séc. XII, das terras e do castelo de Hautefort.
Bertran de Born, senhor de Hautefor é conhecido como um poeta de espírito vivo e original, com uma
língua concisa e afiada, e sobretudo como o maior poeta lírico medieval da guerra. » (GOUSTINE, 2009,
p. 12). Da mesma forma Elomar, enquanto cavaleiro de suas terras na Gameleira3, povoado conquistente,
evoca a angústia cantada, resvalada em formas combativas, usando muitas vezes a memória das parábolas
evangélicas para degladiar com as realidades mundanas. Isso significa que esses valores são estratégicos e
alternativos para um grupo se opor aos quadros críticos e criar suas condições de enfrentamento. Espe-
cialmente, para este cantador, contra a sociedade tecnocrata e hedonista. Uma voz poética aglutina esses
elementos e convoca um grupo para ressoar em conjunto. Com essa voz, o fator coesivo e estabilizante
do grupo social vagueia através de seus artistas no espaço, tempo, integrada no discurso comum sendo,
para eles, uma “referência permanente e certa” (ZUMTHOR, 1987, p. 155). E essa voz cumpre final-
mente a sua função mais precisa: exaltar esta comunidade, dando-lhe, segundo Zumthor, consentimento
e resistência.
Então, estamos diante de uma espécie de luta em retirada, tal como um plano de fuga, dirigido ao
sertão, espaço de recolhimento e de construção das fortalezas poéticas. Nesse front, Elomar se apresenta
como arauto, fundador de um acontecimento artístico inspirando outros cantadores para certa revolução
estética e cultural.

João Paulo (entrevistador): A herança medieval e ibérica, presente em vários trabalhos, nos
coloca face a face com uma parte de nossa identidade de povo, que teimamos em negar em
nome de outras referências mais modernas. Conservar pode ser uma forma de revolucionar?
Elomar: O que seria a contra-revolução (sic). Isto é, já que a pretensa revolução alcunhada por
eles de anti-cultura(sic) consta tão-somente em negar os valores clássicos [...] E neste roldão
vão-se os valores, as belas coisas e tudo que presta, ficando em seus lugares um imenso lixo
de desvalores humanos, artístico espírito-culturais e mais, saído de bocas de esgotos e cloacas
de tudo que é tipo de incompletos, deficientes, incompetentes e cretinos impostos a ferro pela
opinião de outra súcia [...] (MELLO, 2008, p. 66).

Povoado situado à 19km do município de Vitória da Conquista.


3

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 107


O nascimento de um sertão imaginário e elomariano

Em cercanias catingueiras, o poeta-cantador Elomar Figueira Mello demarca o território por onde
avança sua obra cancionada. Nesse sentido, a paisagem elaborada projeta um lugar mítico, onde o sacro e
o sertanejo ocupam uma espécie de projeção sobre seu repertório. Esse cenário se ergue contra a invasão
de outras pluralidades artísticas na cultura do sertão, ou como bem quer este cantador: na cultura sertane-
za, e, por outro lado planeja a autoafirmação de uma nação sertaneja. É um platô de combate.
Existe, em grande parte de seu cancioneiro, um caráter belicoso ativado na atração pelas lutas, desafios,
sofrimentos e rancor em face das injúrias do mundo. Toda essa ambiência, embora grave, não é capturada com
pesar pelos ouvintes atentos. Sua composição musical e poética parece revelar um trânsito afável, denso, mas
com leveza na execução das composições. Aí está um importante apoio estético qualitativo de sua criação: tal
como um réquiem4, embora triste, almeja finalmente a consolação. Não incita o desespero ou a angústia, mas
outras formas para desconcertar a padronagem de belezas provenientes da musicalidade do sertão
Em outros episódios do acervo litero-musical de Elomar, o lugar sertanejo se apresenta através de
um levante moral, cujo simbolismo é exaltado como manifesto civilizatório, chegando a propô-lo como
estandarte da cultura nacional, promulgando acordos utópicos com a “identidade brasileira”. São propo-
sições deveras complexas inseridas num amplo debate, cujos divisores de água despontam, desde começo
do século XIX, na reinterpretação do popular pelos grupos sociais e na própria construção do Estado
Brasileiro (ORTIZ, 2006, p. 08).
Theophilo Braga, na introdução de Cantos Populares no Brasil de Silvio Romero, em 18835, já aludia à
pesquisa deste autor sobre o folclore do Brasil que dividia a população brasileira em habitantes das matas,
das praias, margens de rio, das cidades e dos sertões (ROMERO, 1883, p. XXII). Nesse sentido, atende-se
aqui a uma dimensão da identidade nacional reconhecida pela diferença, pautada, em muitos casos, por
inequívocos exageros. Parte dessa representação polêmica, como exemplo, está identificada na relação
com o homem sertanejo. Em Os Sertões, de Euclides da Cunha, há o reconhecimento da bem conhecida
fortaleza atribuída ao nordestino, tal qual um titã, sob a égide do discurso subalternoda época: “O serta-
nejo é antes de tudo, um forte” (CUNHA, 2004, p. 146).

Um exemplo claro de continuidade dessa tradição é o livro de Euclides da Cunha sobre Canu-
dos. O nordestino só é forte na medida em que se insere num meio inóspito ao florescimento
da civilização europeia. Suas deficiências provêm certamente desse descompasso em relação
ao mundo ocidental, sua força reside na aventura de domesticação da caatinga. Procura-se des-
sa forma descobrir os defeitos e as vicissitudes do homem brasileiro (ou da sub-raça nordes-
tina) vinculando-os (sic) necessariamente às dificuldades ou facilidades que teria encontrado
junto ao meio que o circunda (ORTIZ, 2006, p.18).

Ver o sertão como espaço mítico é imprescindível para sua compreensão enquanto território extrema-
mente complexo e apresentado como lugar separado do plano comum da civilização, como território apto
para a imagem medieva, disposto a modos particulares de vida. Lugar para costumes e tradições ligados
ao passado, sem qualquer contemplação para um futuro de inovações, o seu porvir apoia-se em tão sim-
plesmente reviver elementos de sua história mais antiga ou de culturas remotas. É assim na produção
literária e audiovisual do passado sobre o sertão e assim continua em muitas obras da atualidade.

4
sm (latrequiem) 1 Repouso. 2 Liturg. Ofício que se faz pelos mortos: Missa de réquiem. 3 Cantochão ou músi-
ca do ofício de defuntos. Disponível em : <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=
portugues-portugues&palavra=r%E9quiem>. Acesso em: 25 nov. 2012.
5
Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/02459210#page/7/mode/1up>. Acesso
em: 30 nov. 2012.
108 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
A partir do marco trazido por Os Sertões, de Euclides da Cunha, um novo discurso regionalista é ins-
taurado. Com a crise do paradigma naturalista e dos padrões tradicionais de sociabilidade, no século XX,
uma nova reflexão sobre cultura, etnia e identidade nacional é convocada (GUERREIRO, 2007, p. 221).
Tendenciosamente, em seguida, prolifera-se uma ficção sobre o sertão. Nesse sentido, este lugar assume
seu papel mítico, fornecendo através dessas produções os modelos da conduta humana, proporcionando
a significação e “valor à existência” (MIRCEA, 2010, p. 08). O sertão “real” a ser revelado a partir de
então é o sertão romanceado, atravessado, em certos momentos, por um sertão atemporal, desejante de certa
perspectiva principesca e castelar.
Dom Quixote transfigura os moinhos em gigantes (CERVANTES, 2004, p. 75) porque estes últimos
não resistem ao olhar alegórico do cavaleiro. O espaço ocupado pela imagem completa uma espécie de
real dotado de potências, ou seja, esse campo mítico integra por sua vez dois estados de existência: o que
sonha e o que vive. É ideia e sentido, tempo e memória, lógica e absurdo, ilusão e revelação. O artista-
-sertanejo,feito trovador, está condicionado em vida ao seu próprio personagem sertanejo, atadoao seu
território mitificado, aos seus moinhos e aos seus gigantes. Encontra-se aí toda sorte de condições psí-
quicas no trânsito cotidiano desse ente sobrenatural no caminho de sagrá-lo como personagem do drama
para além do humano, figura deslumbrante, exaltada fora da imagem de seu tempo. A crença em si sob a
condição da imagem é seu impulso vital. Desse modo, Dom Quixote é a fulguração do-Ente artista. O che-
valier Dom Quixote, segundo Ariano Suassuna, é a figura bravia cuja coragem será a de viver atrás de um
sonho, “por mais ridículo que possa parecer”, e essa também é uma representação do homem cantador
sertanejo (SUASSUNA, 2012, n.p.). Sendo assim, o sertão assume sua brisuridade6 (DERRIDA, 2006, p.
81) e se projeta como sonho e realidade concebidos numa paisagem reelaborada de si mesmo, possuindo
como pano de fundo, para esses cantadores, o medievo.
Nessas fendas culturais, esse território sertanejo – ou sertânico – e elomariano, aqui entendido como lugar
de muralhas renitentes da cultura rural e inimigo dos grandes centros urbanos, tenta buscar a dimensão
popular num território de resistência, buscando a inserção de “seu” povo, de propor uma nova linguagem
na composição da variante sertaneza.
A música sertaneja de Elomar não vem do povo, quase não se referencia em cânticos populares tradi-
cionais do sertão, não caminha em direção a este. Ao contrário, ela demanda a recepção poética letrada,
em certos casos indicada por variáveis eruditas para compreender a literatura musical que propõe. Mesmo
a sua variação dialetal sertaneza, presente nas letras de suas canções, não pode ser encontrada, na atualidade,
em meio ao povo comum da região. Mas, embora essas características estejam presentes, existe na obra
de Elomar, intencionalmente, a vontade de fazer desse sertão, elitizado, um lugar do popular. É provável
atribuir esse sentido uma vez que Elomar utiliza personagens e costumes do povo sertanejo para temati-
zar a sua produção, mas finalmente essa dimensão se coloca distante de atingir a recepção desse mesmo
povo ou de fornecer-lhe características reais.
O movimento inicial para promulgar um sertão popularizado parece vir do ciclo do romance de 1930,
que por sua vez remonta à literatura de meados do século XIX e início do século XX onde se destaca a
literatura de cordel. Nesse sentido, Elomar, através de sua constituição sertaneja, recolhe “de sua vivência
e na memória popular a matéria para criar sua obra” (GUERREIRO, 2007, p. 222), muito embora venha
também a frequentar a literatura tradicional brasileira e manifestar uma admiração por Os Sertões (GUER-
REIRO, 2007, p. 223) e ainda aderir ao temário da literatura de cordel, desdobrando-o, em grande parte,
na sua obra O Auto da Catingueira, onde podemos encontrar versificações perfeitas em estilo, métrica e
rima exatos do estilo Parcela7 e estrofe com 11 versos, de sete pés, com distribuição de rimas em A B A

6
“A brisura marca a impossibilidade para um signo, para a unidade de um significante e de um significado, de
produzir-se na plenitude de um presente ou de uma presença absoluta” (DERRIDA, 2006, p. 85).
Ver Glossário.
7

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 109


B C D C D C C D:

Já quinun cie ei quem sô


Dê xo meu cun vi te fei ( to )
Pra qual qué dos cantadô
Dos qui si dá pru respei ( to )
Qui a qui prua ca suis te ( ja )
Nessafunção dia li gri( a )
A pra quito dos mi vê ( ja )
Pu xo al toa can to ri( a )
Cue ssa vio la di pe le ( ja )
Qui quan no nun ma taa le ( ja )
Cantado di a rre li (a )
(MELLO, 1984c, faixa 01)

Mas, em meados do século XX, o sertão encontra o grande momento de captura estética e difusão,
através de importantes obras aglutinadoras para a ideia de um grande sertão. Na condição social imposta pe-
las dificuldades da sua geografia fincadas em constantes secas, o sertão, no passado, imperativamente, foi
o lugar extremo de transposição da penúria, banditismo de cangaceiros e coronéis, proselitismo religioso
e bazófia dos vaqueiros. Essas características são exaltadas e elevadas ao clímax internacional em obras
como: o romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa, em 1956, e o poema Morte e vida Severina
de João Cabral de Melo Neto, em 1955, e os filmes O Cangaceiro de Lima Barreto em 1953 e Deus e o diabo
na terra do sol de Glauber Rocha em 1964; e ainda na música de Luiz Gonzaga a partir da década de 1950.
A partir da década de 70, uma nova estilística do sertão é curiosamente remontada: o encontro do
temário sertanejo com o medieval. Reinos, príncipes e cavaleiros são convocados para o rascunho de uma
nova história para os sertões. Aqui se inscrevem, destacadamente, Ariano Suassuna e Elomar Figueira
Mello, autores cujas obras recorrem a uma farta referência de elementos simbólicos do medievo, embora
produzam emoções divergentes. Exemplo disso são os autos criados por eles: enquanto o Auto da Catin-
gueira de Elomar é dramático e melancólico, o Auto da Compadecida de Ariano – 1955 – é repleto de ação
e humorismo.
Mas o motivo pelo qual a mítica de um período medieval influencia a criatividade de artistas e li-
teratos nos anos 70 constitui ainda um acontecimento a ser percebido cuidadosamente, uma vez que
este evento, como já vimos, é recorrente no mesmo período em diversas partes do mundo ocidental.
Nesse contexto, estão incluídos, por exemplo, a alemã Lenny Kuhr; o português Zeca Afonso; o es-
cocês Donovan; o inglês Nick Drake; o americano Don Mclean e os grupos franceses: LesTroubadours
d’Eygalieres e LesTroubadours, com Franca diRienzo, Don Burke e Jean-Claude Briodin, além de muitos
outros envolvidos nessa estilística.
De acordo com Zumthor (1990), talvez essa evocação medieval tenha conduzido, progressivamente,
uma sociedade agônica que busca as múltiplas apropriações deste tempo para resolver seus extremos:

J-DF: Por que o interesse atual por tudo que toca a Idade Média?
PZ: Eu acho que esse fenômeno não é dissociado de um interesse renovado pelas histórias
(durante os anos cinquenta, vivíamos inteiramente no presente). Estamos em uma sociedade
onde os grandes mitos, as religiões, não oferecem mais apelo senão a uma minoria dentre nós.
Mas então, por que a Idade Média? Por que não a Antiguidade ou o século XVIII? Eu acho
que, de modo intuitivo, bruto, sentimos certa analogia entre o nosso tempo e a imagem que te-
mos da Idade Média: uma sociedade em plena mutação, instável e, ao mesmo tempo, excessiva.
E uma das analogias mais marcantes é que apesar de toda nossa inovação técnica encontrare-

110 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


mos, na verdade, um mundo da voz. Esta é a confraternização com o universo medieval que
sinto muito profundamente8 (ZUMTHOR, 1990, p. 99).

Cartografias imaginárias no sertão medievo de Elomar: Pátria Véa do Sertão

Cavandante eu sou
Por este reino sem fim
Meu cavalo voou
Procurando o lugar
Que minha vó cantava pra mim
Eu menino do São Joaquim
Cavaleiro do São Joaquim9
(MELLO, 2008, p. 33)

A cantoria é uma nominação ao agrupamento musical surgido nos anos 70 no Brasil, cuja obra funda-
dora pode ser considerada Das Barrancas do Rio Gavião de Elomar Figueira Mello, em 1973. Ela se difere
da tradicional cantoria nordestina dos violeiros repentistas10 e tem na figura de Elomar uma espécie de
arauto fundador. Entretanto, este cantador nunca fez qualquer proposição para criar qualquer movi-
mento e não podemos afirmar o agrupamento desses cantadores nestes anos como tal. Diferentemente,
Ariano Suassuna, para o levante do Movimento Armorial, realiza sua missão de agenciamento e pesquisa
culturalpara compor o seu manifesto. O documento trará o agrupamento político, acadêmico e popular.
Como não existe na cantoria um representante catedrático, tal qual Suassuna em relação ao Armorial, as
colaborações para reconhecimento de Elomar Figueira Mello ao status quo de apologista – fundador – de
movimento de cantadores são recebidas de comum acordo através dos depoimentos destes. Entretanto,
deve-se reconhecer esse desabrochar apenas como uma nova poética sertaneja seguida por outros canta-
dores, graças a ele e a partir dele.
Esse agrupamento produzirá, desde aquela época, uma confraria ainda a reforçar a nova nação serta-
neja pretendida por Elomar, através de um cancioneiro de forte apelo memorial e imagético para idealizar
um Reino do Sertão. Mas as cenas que se erguem em apoios estéticos recorrentes na obra de Elomar não
terão, portanto, uma só face dentro da ideia medievalista. Essas cenas virão da colagem de vários modelos
a suscitar o medieval através das leituras que as correntes estéticas e os modos de operação da cultura
sertaneja fizeram desse tempo.
Sertão medieval, renascentista, barroco, romântico e árcade?
De tal modo, para sondar os quadros multifacetados dessa releitura, é preciso conhecer as partes
que se friccionam: o contexto de um temário medieval, a ideia de um sertão e um artista sertanês. Nesse
sentido, o sertão, em sua obra, é montado a partir de um olhar afetado por um imaginário, por sua vez

8
J-FD: Commentexpliquerl’actuelintérêtpour tout cequitouchéauMoyenÂge?
PZ: Je pense que cephénomène n’est pasdissociable d’unregain d’intérêtpourl’histoires (alors que, durantlesan-
néescinquante, onvivait tout entierdanslepresent). Nous sommesdansunesociétéoù les grands mythes, les religions
n’offrent plus de recoursqu’àuneminoritéd’entre nous. Mais alors, pourqoileMoyenÂge? Porquoipasl’Antiquité ou
le XVIII e siècle? Je pense eneffet que, de façonintuitive, sauvage, nousressentons une certaineanalogie entre notre
époque et l’image que nousavonsduMoyenÂge: une sociétéenpleinemutation, instable et enmêmetempsexcessive.
Et l’une de cesanalogieslesplusfrappantes, c’estqu’àtraverstoutes nos innovationstechniques, nousretrouvonseffec-
tivementun monde de lavoix. C’estlà une confraternitéavecl’univers medieval que jeressens três profondément
(ZUMTHOR, 1990; 99).
“Cavaleiro do São Joaquim”. Canção de Elomar Figueira Mello (MELLO, 2008, p. 33).
9

10
Essa diferenciação está evidenciada no capítulo 3 desta pesquisa.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 111
pertencente a quem faz e a quem olha. O olhar patológico percorre a obsessão pela multiplicidade para
um começo de elaboração, análise e compreensão estética (DURAND, 2002, p. 18). Subjetivamente,
este olhar patológico nada mais seria transversalizar a maneira de observação onde é possível produzir
imagens e sentidos alucinantes de um real pré-estabelecido e viciado pelos sentidos comuns de todas as
coisas. Diante dessa reflexão, o sertão não encolhe ante o avanço da civilização “modernizadora”, como
se supunha, mas cresce e se expande no imaginário: “O sertão está em toda parte” (ROSA, 1984, p. 07).
Logo, “uma fenomenologia do imaginário deve, antes de tudo, entregar-se com complacência às imagens
e seguir o poeta até o extremo das suas imagens sem nunca reduzir esse extremismo, que é o próprio
fenômeno do elã poético”. (DURAND, 2002, p. 25).
Não está aqui, nesse instante, uma proposta para estabilizar ou montar estatutos para o imaginário,
mas para poder abordá-lo com razoabilidade, não se pode confiar, nem recorrer, aos limites da própria
imaginação, e sim desenvolver “um repertório quase exaustivo do imaginário, normal e patológico em
todas as camadas culturais que a história, as mitologias, a etnologia, a linguística e as literaturas nos pro-
põem [...]” (DURAND, 2002, p. 18).

Elomar já revela sua mistura do “romanceiro medieval com toadas em terças plangentes e can-
ções de cordel”. Conforme definia o poeta e compositor Vinícius de Moraes na contra-capa,
(...) Poeta e leitor dos autores de cavalaria, Alexandre Dumas, Robert de Vize e Gaspar Sanz,
Elomar recupera, com suas instigantes modulações vocais, o elo perdido entre o nordeste e
a Idade Média, expresso na literatura de “A Pedra do Reino” de Ariano Suassuna. (BASTOS,
2014, p. 337).

O sertão elomariano é sertão filosófico combinado com os costumes normativos da cultura rural: pana-
ceia de memórias esparsas no tempo e lugar. Apresenta-se como um mundo fulgurado por uma estética
específica: a cancionada. Essa proposição poética e musical abre resultantes sensíveis, privilegiando a his-
tória de outro sertão, produzindo outra “física” a atravessar o corpo inteiro do artista. Algo que não vem
da paisagem, na ideia de Ponty (2006)11, mas a ela se mistura e completa sendo a música o componente
fundamental para isso. O fato de haver uma poético-musicalidade na contextualização desse sertão, ou-
tro espaço de compreensão e de recepção da cultura sertaneja se faz presente. Um espaço destituído de
fundamento ou origem. O sertão musicado dentro da obra e da vida de Elomar é montado a partir de
muitos retalhos, cuja composição formará um conjunto adereçado de brasilidades, mas com elaborações
de um velho mundo ausentes da história brasileira.
De muitas formas, numa revelação atual existe aí um revestimento extemporâneo, intempestivo12. E
será nesse intempestivo que o medievo é colocado. A ideia de extemporâneo, é importante esclarecer,
está aqui por simplesmente se opor àquilo outro que é glorificado no seu tempo (PÉLBART, 2003, p.
187). É preciso caminhar explorando essa variável tão complexa e difícil que toma a razão e subjetividade
e as confunde. Em Pélbart (2003), “a interpretação do passado, de qualquer maneira, deve sempre vir de
uma força do presente, mas igualmente de uma luta contra o presente”. Esta afirmação reproduz a his-
tória, cuja proposição limpa o terreno para aquilo que se está a construir com os engenhos instintivos da
criação, se de um lado a história, frequentemente, quer se apresentar como “exercício científico, insosso,
neutro, objetivo” (PÉLBART, 2003, p. 190) a arte quer ser a criação do presente. Isso quer dizer que se a

O problema é compreender estas relações singulares que se tecem entre as partes da paisagem ou entre a paisa-
11

gem e mim enquanto sujeito encarnado, e pelas quais um objeto percebido pode concentrar em si toda uma cena,
ou tornar-se a imago de todo um segmento de vida (PONTY, 2006, p. 84).
12
O conceito de intempestivo elaborado por Nietzsche está num dos textos mais citados por Deleuze: Segunda
Consideração Intempestiva, ou Extemporânea conforme a preferência dos tradutores (a tradução francesa diz: Considéra-
tionsinactuelles), de 1874, e é intitulada Da utilidade e desvantagem da história para a vida (PÉLBART, 2005, p. 186).
112 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
história suporta ser transformada em obra de arte, em criação, ela pode despertar os instintos e não ani-
quilá-los. Será preciso um tempo fundador, desembaraçado de uma tradição, um tempo desobrigado a se
curvar diante do assim foi. Elomar, e diversos outros poetas-cantadores, com sua obra funda esse tempo, e,
contra aspectos tirânicos do real, convoca um passado através da obra de arte para potencializar a imagem
do sertão. Um tempo será fundado num espaço movente e de geografia incerta.
Para além do decalque do geográfico e propor centros regionais, neste caso – Minas e Bahia –, terri-
tórios de grande presença de cantadores, é possível abrigar um ponto de orientação mítico a posicionar
livremente a constituição de um espaço sertanejo. Isso nos livrará, até certo ponto, desse mapa obriga-
tório e se apoiará livremente numa outra ideia simbólica de território, outra “Pátria”, de acordo com a
poética de Elomar. Ora, mesmo “o viés do regional conduz [...] a uma extensão de grupos hegemônicos
e capitalísticos que compreendem as ‘culturas regionais’ segundo um ‘realismo utópico’” (BOURDIEU,
2005, p. 119). Diante desses aspectos, o regional se mantém como monumento para conjugação sertaneja
diante de uma condição de criação histórica, e esta dimensão histórica é multiforme.

A noção de região, antes de remeter à geografia, remete a uma noção fiscal, administrativa,
militar (vem de regere, comandar). Longe de nos aproximar de uma divisão natural do espaço
ou mesmo de um recorte do espaço econômico ou de produção, a região se liga diretamente
às relações de poder e sua espacialização; ela remete a uma visão estratégica do espaço, ao seu
esquadrinhamento, ao seu recorte e à sua análise, que produz saber. Ela é uma noção que nos
envia a um espaço sob domínio, comandado. Ela remete, em última instância, a regio (rei). Ela
nos põe diante de uma política de saber, de um recorte espacial das relações de poder. Pode-se
dizer que ela é um ponto de concentração de relações que procuram traçar uma linha divisória
entre elas e o vasto campo do diagrama de forças operantes num dado espaço (ALBUQUER-
QUE JÚNIOR, 2001, p. 25).

O que existe, de acordo com este tema, é um jogo aplicado entre cientistas – geógrafos, historiadores,
etnólogos, economistas, sociólogos –, cujo trabalho identifica-se com o espaço e contempla uma política
de regionalização e movimentos regionalistas (BOURDIEU, 2005, p. 108). Para Bourdieu (2005), o dis-
curso regionalista é performativo, ou seja, tem em vista impor como legítima uma definição das fronteiras
e conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e, como tal, desconhecida – contra a definição
dominante, posturalmente legitimada, que a ignora:

As lutas13 a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (es-
tigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradouros que
lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas
pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a
definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer grupos
(BOURDIEU, 2005, p. 113).

O esforço por consolidar o aspecto regional propõe definitivamente a construção mental de um nacio-
nal, mesmo se este nacional for um outro alheio à razão política do primeiro. São conceitos abstratos que
procuram, a partir da generalização intelectual, dar conta de experiências afetivas para inscrever um novo

Bourdieu argumenta que os debates em torno da noção de região – no que encerra “etnia” e “etnicidade” – estão
13

imersos em diálogos confusos. A princípio, para o sociólogo, termos como “etnia” e “etnicidade” são considerados
eufemismos eruditos que substituem, de algum modo, a noção de “raça”. Esta confusão é resultante das submis-
sões dos categoremasdo senso comum, emblemas ou estigmas à crítica lógica. Reforça ainda, justificando o problema, que
“os princípios práticos do cotidiano” devem ser substituídos pelos “critérios logicamente controlados e empirica-
mente fundados na ciência” (BOURDIEU, 2005, p. 112).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 113
território. E nesse quadro será retinta a Pátria Véa do Sertão14. Uma pátria saudosista, medieva, repleta de
arquétipos extemporâneos, bíblica, proselitista e mítica.

Lá bem atrás, eu escolhi o que cantar. Decidi que cantaria primeiramente em louvor de quem
me ensinou a cantar, isto é, meu Deus Criador, Javeh, o Senhor dos Exércitos de Israel. E, por
conseguinte cantar as vicissitudes do coração do homem a partir de minhas circunstâncias em
minha pátria – o sertão, pelo que entendi que isso só seria possível se o fizesse na língua de cá,
por uma questão de inteireza, fidelidade, na variante linguística étnica, ou seja, no dialeto ou
vernáculo sertanês. (MELLO, 2008, p. 105 / 106)

A movência nesse espaço sertanejo e patriótico figura, como já vimos, a disposição fugidia deste canta-
dor. Elomar, seja na obra seja em vida, assumirá os arquétipos de cavaleiro errante, nômade ou peregrino,
dependendo do contexto da cena, mesmo da cena cotidiana. Por meio desse temário, realiza-se enfim
seu projeto de fuga bem elaborado, no qual o sentimento errático, peregrino, através do devir nomadista,
figura também a presença do trovador, ou menestrel, em busca de reinos para cantar, numa saída vacante
pelo mundo, como “Tresloucado cavaleiro andante a vasculhar estrelas de extintos céus” (MELLO, 1983,
faixa 04).
Seu discurso está tomado por uma mágoa dos grandes centros e das culturas contemporâneas. Cons-
tantemente revela o desejo de um autoexílio, sendo a manutenção dessa fala o seu verdadeiro transir, sem
jamais realizar a fuga definitiva. Esse mapa de retirada, por mais que revele o destino de suas fazendas
insólitas, nunca é um trajeto findado, portanto, é igualmente belo e poético na manutenção do plano de
fuga, como um discurso performático alimentando a figuração mítica sobre si. Ao que parece, este artis-
ta figura o desejo profundo em exibir um destino a um recôndito sacro, lugar de sua retirada. Mas essa
clausura, sacromaquia15, nunca está desencontrada e totalmente perdida de um outro, ela existe, justamente
porque faz parte de um discurso performático disposto necessariamente à presença entre vivos, à neces-
sidade do outro. “Esta errância é sempre um vetor de socialização de encontro com o Grande outro seja
qual for o nome que lhe damos16” (MAFFESOLI, 1997, p. 35).
Nessa perspectiva, existe um certotratado de nomadologia realizado por Elomar, e, por mais que o
sertão se apresente como território separado e afirmativo, ele é justamente o lugar para abrigar aquele
que deseja se desterritorializar. O sertão é o espaço subjetivo para o nômade, o vacante, o errante e o
peregrino. O nômade “[...] é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele
faz da própria desterritorialização um território subjetivo” (PELBART, 2003, p. 20) e um ponto de fuga.
Enquanto o movimento do mundo se ordena através de uma história, a obra desse cantador se empenha,
a todo instante, em realizar a sua nomadologia numa espécie de, segundo Peter Pal Pélbart, “imperfeição
memoriada”, tal como relata Elomar::

14
A Pátria Véa do Sertão é uma titulação atribuída pelo próprio Elomar ao espaço fronteiriço de sua obra e exis-
tência.
15
Tornar-se clausura. A sacromaquia é um conceito que apareceu no espetáculo homônimo da Companhia Bala-
gan de Teatro. Os termos de sacromaquia – sacro (em latim: sagrado) e maquia (em grego: esforço para tornar-se) –
foram tomados como imagens simbólicas, presentes na própria acepção da palavra. A escritura cênica, fundamen-
talmente imagética, icônica, foi organizada a partir dos elementos que constituem o espaço do mosteiro, isolado e
reduzido, que serviu de metáfora para o enclausuramento físico, para os cantos evocativos, as narrativas poéticas e
as dinâmicas que ritualizam e concretizam a prática espiritual. Disponível em: <http://www.ciateatrobalagan.com.
br/espetaculos/sacromaquia/>. Acesso em: 14 maio 2013.
16
“Cetteerrance est toujoursvecteur de socialization, de rencontreavecle Grand autre, quell que soitlenomqu’on-
luidonne.” (MAFFESOLI, 1997, p. 35)
114 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Estou cada vez mais imerso na Saia Austral da Chapada da Diamantina, no mesozóico semiári-
do do epicentro da periplanície de Brumado, Livramento, Paramirim, Lagoa Real, Bahia, terra
brasilis. Mas, o cantador é parceiro da sua arte e não pode fixar pouso. Por isso, deixo o meu
chão para cantar o meu canto de menestrel com a malungada da cidade nestes dias do nosso
Senhor [...] (MELLO, 2001, n. p.)17.

Ainda assim se integra a este contexto o mito do cavaleiro errante, ou seja, qual for o outro nome
que possamos dar. O nomadismo parece se inscrever na natureza humana, seja ela individual ou social,
e, embora o possamos descobrir na ficção ou na poesia do amor cortês, nas canções de gesta, ou nas
digressões das culturas e seus emblemas, não importando quais forem essas figuras que o desenham, essa
errância está no imaginário coletivo.

O Nomadismo permanece como um sonho grávido que lembra a configuração, e, portanto,


relativiza o peso mortal do instituído. Este relativismo mina a grande crença no progresso in-
definido, e lembra que este retorno não pode existir se não for atravessado pelo retorno regular
de uma forma de “retrocesso” ou “regressão”. Volta para formas arcaicas que acreditávamos
ter ultrapassado, mas que, de uma maneira mais ou menos consciente, continuam ainda a tocar
formas imaginárias e coletivas de ser. Às vezes, esse “retrocesso” não é só nostálgico ou sim-
plesmente memorial. Ele vai ser expresso de modo paroxístico. Os vários movimentos mile-
naristas são, a partir desse ponto de vista, informativos. Na maioria das vezes, eles trabalham
para fazer ressurgir o aspecto estranho, estrangeiro, nômade onde uma cultura é enriquecida18
(MAFFESOLI, 1997, p. 38).

Esse adjunto cultural é uma proposição no devir sertanejo, marcadamente errante, lugar de migrações,
mas paradoxalmente lugar também de fincar raízes. Vontade de refúgios e sensação melancólica da vida,
mirando sempre a estrada, o mito peregrino das caravanas: “Faz um ano em janeiro/ Que aqui pousou
um tropêro/ O cujo prometeu/ De naderradêra lua/ Trazer notícia tua/ Se vive ou se morreu/ Derna
aquela madrugada/ tenho os olhos na istrada/ E a tropa não voltou” (MELLO, 2008, p. 31). Tal face
intransigente do cantador diante do mundo que contempla e digere, por onde se desloca em vias fugidias,
de apropriações medievas, finalmente absorvemos na proposição adentro dessa complexidade, repleta de
contradições, em linhas rosianas: “O senhor tolere, isto é o sertão” (ROSA, 1984, p. 07).

Texto de apresentação de Elomar Figueira Mello, Disponível em: <http://www.elomar.com.br/index.html>.


17

Acesso em: 23 jul. 2006.


18
Le nomadisme reste um rêveprégnant que rappellel’instituant, et par là relativize lapesanteurmortifère de l’ins-
titué. Cetterelativisationfragilisela grande croyanceauprogrès indefini, et rapelle que celui-ci ne peutpasexisters’il
n’est pastraversé par lerégulierretour d’une forme de “regrès”, ou de “régrédience”. Retouraux formes archaïches
que l’onavaitcruesdépassées, mais qui, d’une manièreplus ou moins consciente, continuent à tarauderlesimaginaires
et lesmanières d’êtrecollectifs. Parfoisce “regrès” n’est passeulementnostalgique ou simplementcommémoratif. Il
vas’exprimersous forme paroxystique. Les divers mouvementsmillénaristessont, de ce point de vue, instructifs. La
plupartdutemps, ilss’emploient à faire ressortir l’aspectétrange, étranger, nomadedon’t une culture est pétrie (MA-
FFESOLI, 1997, p. 38).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 115
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116 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


CONTANDO SHAKESPEARE –
DO XVI PARA O XXI
Érica Carneiro da Rocha Lopes – UFBA1
Contato: ericacrlopes@gmail.com
Marcos Leonardo Teles de Macêdo - UFBA2
Contato: teles.leonardo.12@gmail.com

RESUMO: O processo de adaptação de três peças de Shakespeare – o popular do século XVI – para o
popular no contexto atual, considerando, em especial, a tradição oral e a cultura nordestina, é o foco de
estudo deste artigo, o qual analisa o trabalho desenvolvido pelo Grupo Boralí de Teatro com os textos de
Hamlet, Noite de Reis e Muito Barulho por Nada, que resultaram num espetáculo infanto-juvenil com primeira
temporada realizada em fevereiro de 2016 em Salvador/BA.

PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare – teatro popular – adaptação.

ABSTRACT: The adaptation process of three Shakespeare plays to the popular in the current context,
considering, in particular, the oral tradition and the northeastern culture, is the focus of this article , whi-
ch analyzes a job developed by Boralí Theater Group.

KEY-WORDS: Shakespeare - popular theater - adaptation.

1. INTRODUÇÃO

O desejo de fazer e pesquisar teatro popular move o Grupo Boralí de Teatro, que foi formado em
abril de 2015 por quatro artistas - professores - pesquisadores, egressos e alunos do curso de licenciatura
em teatro da Universidade Federal da Bahia. Nessa perspectiva, para a primeira montagem do grupo,
manifestou-se a vontade de trabalhar com a tradição oral, a contação de histórias para o público infanto-
-juvenil. Mas, contar o que?
Pensando em tradição e em teatro popular, surge a figura de Shakespeare. O bardo inglês – hoje acla-
mado nome da literatura e do teatro, mundialmente famoso – cuja fruição se tornou, no correr da histó-
ria, privilégio das elites, foi o grande popular da sua época. Decidimos, então, adaptar Shakespeare para
a contação de histórias, trazer o popular inglês do século dezesseis para a linguagem e estética popular
do nordeste no século vinte e um. E assim se inicia o processo criativo sobre o qual discorreremos nesse
artigo.

1
Licenciada em Teatro pela Universidade Federal da Bahia, Pós-graduanda em Psicologia Social pelo CIEG/Fun-
dação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências e Aluna Especial do Mestrado em Artes Cênicas – PPGAC/
UFBA. Integra o Grupo Boralí de Teatro.
Licenciando em Teatro pela Universidade Federal da Bahia. Integra o Grupo Boralí de Teatro.
2

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 117


2. O PROCESSO

Para a compreensão do trabalho proposto pelo Grupo Boralí de Teatro, é importante conhecer o que
o grupo entende por teatro popular. Augusto Boal (1975) categoriza o teatro de acordo com a perspecti-
va do seu discurso. Para ele, o teatro popular, fala da perspectiva do povo, independente de para quem e
como isso é dito, Já o teatro que fala da perspectiva das classes dominantes, visa à manutenção de uma si-
tuação vigente de opressão e é o categorizado como teatro anti-povo, ainda que o povo seja seu receptor.
Segundo o autor, o que caracteriza o teatro como popular, ou não, é o posicionamento político-ideo-
lógico do seu discurso. Para ele, o mundo pode ser encarado nos espetáculos de duas formas, sendo uma
que fortalece o status-quo e outra que apresenta a possibilidade da mudança. Essa última é a visão do teatro
popular, o teatro que se coloca ao lado do povo na perspectiva de rompimento com situações opressoras
naturalizadas.

[...] o mundo pode ser visto e apresentado de duas maneiras: uma procura consolidar as re-
lações sociais existentes [...] a outra maneira de ver a realidade é mostrá-la em permanente
transformação, mostrar suas contradições e o movimento dessas contradições em direção à
libertação dos homens. (BOAL, 1975, p.25)

É com esse direcionamento que o Grupo Boralí de Teatro pensa suas atividades. E, seguindo essa di-
retriz, optamos por Shakespeare e pela contação de histórias para o desenvolvimento do primeiro projeto
de montagem do grupo, intitulado “Boralí contar histórias: uns casos do bardo”.
Shakespeare foi um dramaturgo considerado essencialmente popular no século XVI. Toda sua produ-
ção dramática visava a discussão acerca das relações de poder na sociedade, o lugar da política e os valo-
res nas relações interpessoais. Suas perspectivas sobre o comportamento humano foram tão amplas que
suas obras apresentam uma legitimidade e frescor até os dias de hoje. Diante destas premissas, vimos em
sua dramaturgia uma oportunidade de pôr em prática nosso desejo de discutir, junto ao público jovem,
questões referentes ao lugar do sujeito na sociedade, suas escolhas e responsabilidades, além de resgatar
elementos da nossa cultura popular.
A decisão por montar um espetáculo de contação de histórias, buscou valorizar a tradição oral, através
da qual histórias reais e fictícias, mitos, lendas, fé, luta e resistência são passados adiante.
A tradicional arte de contar histórias apresenta inúmeras nascentes, desde a cultura oriental à cultura
africana. Bernat (2008, p.1) salienta a relevância do contador de histórias na cultura africana: “O griot é
o mestre da palavra, é ele que não permite que a cadeia de transmissão dos conhecimentos fundamentais
de uma vida se apague.”.
Esta se tornou a nossa principal referência, no que se refere ao aspecto técnico/metodológico, para a
preparação do espetáculo. Todos os atores passaram por um período de formação com o artista/pesqui-
sador Toni Edson – Mestre em teatro pela Universidade Federal da Bahia e professor da Universidade
Federal de Alagoas – que atualmente desenvolve sua pesquisa de doutorado sobre a arte tradicional afri-
cana de contar histórias.
O embasamento central para a vivência foi a experiência e pesquisa do Prof. Toni Edson acerca dos
djelis ou griots, contadores histórias na África Ocidental. Durante a formação, conhecemos um pouco mais
sobre a tradição oral na região e tomamos contato, através de textos e audiovisual, com Sotigui Kouyaté,
griot que se tornou muito conhecido principalmente por sua atuação com Peter Brook no teatro .
Neste período, tomamos contato com aspectos teóricos e práticos do tema abordado, experimenta-
mos procedimentos de construção de narrativas a partir de jogos e exercícios onde a escuta corporal se
desdobrava em diversos sentidos, como físico, visual, interno e externo, aproveitando as características
pessoais de cada um e construindo aos poucos a figura do ator/contador em cada participante.
Outro aspecto importante neste processo foi a busca por uma contação onde a história afetasse intima-

118 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


mente o contador, em outras palavras, “contar aquilo que te toca”. Esta idéia nos provocou de modo a per-
cebermos a contação de histórias como um acontecimento de troca íntima entre o contador e o ouvinte.
Neste sentido, as possibilidades criativas de como dialogar e afetar o espectador multiplicaram-se,
despertando em nós o desejo de utilizar outros recursos narrativos na montagem, como, por exemplo, a
exploração da musicalidade na cena.
A musicalidade esteve presente neste processo em quase todos os dias de encontro. O ritmo corpó-
reo/vocal foi explorado através de exercícios na tentativa de descobrir novas dinâmicas e produções de
significâncias para a arte de contar histórias. Neste sentido, deve-se também a este processo a forte influ-
ência musical no trabalho final, desde as canções, no sentido literal, até a musicalidade do corpo.
Para a aproximação da proposta com a cultura popular nordestina atual, o caminho escolhido foi o
folclore. Passamos, então, a pesquisar elementos do universo folclórico nordestino a fim de encontrar
possíveis entrelaçamentos a serem experimentados, desenvolvidos e selecionados na construção do espe-
táculo. Desta maneira, chegamos aos elementos efetivamente utilizados na composição cênica.
Esses entrelaçamentos ficaram evidenciados na ambientação da peça (que acontece em regiões do
sertão nordestino), no cenário e figurino (através do couro, da chita e do retalho, além de adereços), e
na musicalidade. Esta última, um traço bastante marcante da montagem, pois está presente em todo o
espetáculo, sempre carregando informações relevantes para a compreensão da história ou propostas de
reflexão acerca dos temas propostos. Foram colocados em evidência ritmos característicos, como o sam-
ba de roda, o forró, e paródias de canções populares, como Escravos de Jó.
Importante salientar também a preocupação com a linguagem na adaptação dos textos para o formato
proposto. Alguns critérios foram considerados nessa adaptação: a apropriação da história pelos contado-
res, a síntese do enredo de forma a facilitar a compreensão do conto narrado, a apropriação de termos
regionais e aproximação da forma de falar local e coloquial, e a utilização de um linguajar simples e claro
para o público infanto-juvenil. A intenção, além de estabelecer o elo com a cultura local, era garantir a
acessibilidade do produto a ser apresentado para todos os públicos, sem limitar essa fruição a uma platéia
com formação acadêmica favorecida.
Como resultado de todo este processo criativo, surgiu o espetáculo “Boralí contar histórias: uns casos
do bardo”, no qual os quatro integrantes do Grupo Boralí de Teatro revezam-se em cena recontando três
peças shakespearianas: as comédias Noite de Reis e Muito Barulho por Nada e a mais famosa tragédia,
“Hamlet”. São aproximadamente 45 minutos completamente bordado por uma forte musicalidade e
identidade regional.

3. CONSIDERAÇÕES

As três histórias são encenadas com o propósito de aproximar o espectador infanto-juvenil ao ponto
de vista de Shakespeare sobre o comportamento humano, brincando com elementos do nosso folclore
de modo a projetar um universo imaginário, reflexivo e poético.
O espectador torna-se testemunha de histórias cômicas e trágica nas quais os encontros, desencontros
e conflitos revelam as fraquezas, vícios e virtudes facilmente detectadas na sociedade contemporânea.
Neste aspecto, percebemos as inúmeras possibilidades e desdobramentos que esta dramaturgia oferece
a fim de provocar a reflexão crítica social no encontro entre a cena e o espectador, independente da sua
idade, referência cultural ou social, fazendo valer o título “universal” que a obra de Shakespeare possui.

4. REFERÊNCIAS

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I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 119
AAC%20GARSON%20BERNAT%20-%20O%20olhar%20do%20griot%20sobre%20o%20oficio%20
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Departamento de Artes Cênicas / ECA. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993.

ANEXO – IMAGENS DO ESPETÁCULO

Foto: Gabriela Lopes

120 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Foto: Gabriela Lopes

Foto: Gabriela Lopes

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 121


Foto: Ingrid Lago

122 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


A ADVERBIALIZAÇÃO DAS
CATEGORIAS DE ANÁLISE
DA ESPETACULARIDADE
APONTADA NOS ESTUDOS DE
ARMINDO BIÃO
Filipe Dias dos Santos Silva1
Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC)
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
dss.filipe@gmail.com

RESUMO: O presente artigo propõe uma reflexão acerca da espetacularidade, noção estudada pela et-
nocenologia, perspectiva disciplinar que se dedica à apreciação das Práticas e Comportamentos Humanos
Espetaculares Organizados (PCHEO). Três categorias de análise dos fenômenos espetaculares, propos-
tas por Armindo Bião, são abordadas: substantivamente, adjetivamente e adverbialmente espetacular. De-
dica-se maior atenção às duas últimas categorias, as quais apresentam certa dificuldade de caracterização
dos seus respectivos objetos, visto que se referem às práticas em que o espetacular, apesar de necessário,
não se constitui uma finalidade. Ressalta-se a importância do estudo da categoria adverbial, não tratada
pela vertente francesa da etnocenologia. Conclui-se que os estudos de Armindo Bião apontam uma ad-
verbialização das três categorias por ele propostas, o que leva ao entendimento de que a espetacularidade
pode ser atribuída às circunstâncias que dão especificidade aos comportamentos humanos, a partir do
momento em que estes comportamentos se destinam ao olhar de um ou mais espectadores.

Palavras-chaves: etnocenologia, espetacularidade, adjetivamente espetacular, adverbialmente espetacular.

ABSTRACT: This article presents a study about the spetacularity, notion studied by ethnoscenology,
disciplinary perspective that studies the Practices and Human Behaviour Spectacular Organized. Three
categories about spetacularity analysis, proposals by Armindo Bião, are discussed: the substantive, adjec-
tival and adverbial forms of the human spectacularity. We give more attention to the last two categories,
which present problems to characterize their objects. In these forms, the spetacularity is necessary, but
isn’t a finality. We point out the importance of the study of the adverbial category, because it isn’t studied
by the French hillside of the ethnoscenology. We conclude that the Armindo Bião studies show us that
the spetacularity sould be understood how the circumstances that give specificity to human behavior,
when these behaviors are directed to appreciation of others.

Keywords: ethnoscenology, spetacularity, adjectival spetacularity, adverbial spetacularity.

1
Ator, cantor, professor e pesquisador. Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Desenvolve pesquisa de doutorado em Artes Cênicas pelo mesmo pro-
grama.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 123
O presente artigo é fruto e parte da dissertação de mestrado defendida por mim no ano de 2015 no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, a qual recebeu o título
de “Preparar, rezar e sambar – a Reza de Brejões-BA sob a perspectiva da etnocenologia” (SILVA, 2015).
A investigação se debruçava sobre uma manifestação cultural de cunho religioso que acontece no Recôn-
cavo Sul da Bahia, conhecida como Reza. Sob a orientação de Daniela Amoroso e com o apoio financeiro
do CNPQ, pude me dedicar ao estudo da espetacularidade da manifestação, percebida sob diferentes
pontos de vista: no preparar da manifestação, na celebração religiosa e na formação de uma roda de sam-
ba em frente ao altar. Nesse percurso, pude refletir um pouco sobre as categorias de análise do espetacular
propostas por Armindo Bião – de maneira mais especifica, as categorias dos objetos adverbialmente e
adjetivamente espetaculares –, reflexões essas que compartilho com vocês neste momento.
As manifestações culturais, como um todo, são interações humanas que podem ser estudadas em di-
versos campos do conhecimento. Minha condição de artista fez com que eu buscasse, dentro de minha
área (as Artes Cênicas), uma perspectiva que me permitisse investigar a Reza de Brejões sob o ponto de
vista do espetacular, apreciando as diversas formas de expressões artísticas que podem ser observadas no
contexto da pesquisa.
A etnocenologia apresenta-se como um campo do saber que possibilita esse tipo de pesquisa dentro
das Artes Cênicas. Trata-se de uma perspectiva disciplinar que surgiu em 1995 com a publicação do Mani-
festo da Etnocenologia, na França, como resultado de uma parceria entre a Maison des Cultures du Monde e
do Laboratório Interdisciplinar de Práticas Espetaculares da Paris8-Saint Denis. Seu pilar epistemológico,
à época, proposto como provisório, mantém-se até hoje como principal eixo norteador das pesquisas
realizadas neste campo de estudo: as práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados
(PCHEO)2.
Segundo Jean-Marie Pradier (1998), as palavras “comportamento” e “práticas”, constantes no pilar
epistemológico, têm a intenção de sublinhar a dimensão corporal do fenômeno humano observado, pois
a disciplina tem como objeto o estudo de um ou mais indivíduos, considerando suas dimensões físicas,
psíquicas, biológicas e espirituais, bem como seu entorno social.
Pradier acentua que o “espetacular” da etnocenologia deve ser entendido sempre de forma adjetival,
visto que o termo “espetáculo” pode subentender um objeto que tem delimitações, como um objeto
finito, enquanto o espetacular reside na intensidade sensorial do objeto com relação ao seu meio, bem
como na relação estabelecida entre os indivíduos. O autor explicita que a intenção da disciplina é estudar
as relações humanas no tocante à potencialidade de suas formas de expressão.
No entanto, Pradier acrescenta que o termo “organizado” dessas práticas “permite distingui-las das
manifestações expressivas espontâneas” (PRADIER, 1998, p.10). Mais tarde, o autor reitera que deve-
mos entender por espetacular “uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço,
de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais do cotidiano”
(PRADIER, 1999, p.24).
Chérif Khaznadar (1999) relata que a opção pelo nome etnocenologia ocorre na tentativa de desviar-
-se dos estudos que se concentrassem no campo do teatro, excluindo outras formas artísticas. Todavia, a
escolha por um termo mais complexo (do que etnoteatrologia) proporciona assuntos para “elocubrações
semiológicas” que, em certo ponto, pode incorrer no risco de desviar a discussão do objetivo inicial, a
ponto de um universitário americano assimilar a disciplina à “divagações de dois mendigos embriagados
no cais de um metrô” (KHAZNADAR, 1999, p.57), na época da publicação do manifesto.

2
Segundo o professor Gilberto Icle, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em posicionamento pro-
ferido durante o encontro, pesquisas recentes apontam a utilização da expressão “práticas performativas” como
delineamento do campo dos estudos da etnocenologia. No entanto, as PCHEO, como apontei, constituem, ainda
hoje, a definição utilizada pela maioria dos pesquisadores no Brasil.
124 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Contudo, o rumo das discussões, bem como a escolha pelo termo, convergiram num conceito de in-
dependência e de resistência à uniformização, ratificando ideais antietnocentristas na medida em que se
afasta de padrões europeus e americanos.
A utilização do prefixo “etno” no nome da disciplina, conforme afirma Pradier (1998) não se destina
ao estudo do “exótico” ou de formas expressivas esquecidas/minimizadas. Ao contrário:

ela obriga a relativizar as obras e práticas espetaculares ocidentais explicitando sua especifi-
cidade cultural. Assim agindo, o propósito desta disciplina é contribuir para um melhor co-
nhecimento da natureza do homem, participando da teoria geral do “espetacular humano”
(PRADIER, 1998, p. 12)

A ideia proposta de tentar contribuir no melhor conhecimento da natureza do homem, associada à


sua forma de ser e de agir no espaço, ao mesmo tempo, indo de encontro aos preconceitos etnocentris-
tas, deixa aberta uma lacuna quando exclui, desse processo, as formas de expressão cotidianas, fixando o
campo de estudos apenas no “espetacular organizado”.
As formas espetaculares cotidianas, deslocadas de um evento organizado para o olhar coletivo, podem
revelar potencialidades artísticas que venham a contribuir com o entendimento “dos atores sociais” em
situações de representação. A maneira de falar, de andar, de se emocionar e de trabalhar, em ações banais
do cotidiano, pode proporcionar ao pesquisador ferramentas fundamentais para entender o desempenho
corporal de um mesmo indivíduo em situação espetacular. Por exemplo: o gestual dos braços na hora de
contar uma anedota pode revelar bastante a respeito do uso que uma sambadeira faz dos seus braços no
momento em que ela assume o centro da roda de samba, dançando para o olhar de muitos outros.
Por outro lado, se a etnocenologia tem como um de seus objetivos contribuir para um melhor conheci-
mento da natureza humana, acredito que estudar as formas de expressão cotidianas torna-se fundamental
para uma disciplina que tem como uma de suas premissas a interdisciplinaridade. Certamente, o olhar de
um pesquisador artista sobre um comportamento humano pode manifestar nuances que pesquisadores
de outras áreas poderiam não atentar.
O conhecimento que o artista das artes cênicas desenvolve acerca da expressão vocal e da expressão
corporal, ao longo de sua formação, darão a este pesquisador um importante cabedal de investigação
a partir de seu próprio corpo, ao tentar desvendar as técnicas usadas pelos sujeitos observados numa
pesquisa de campo. Quais as técnicas corporais utilizadas para executar a ação de empunhar a enxada no
trabalho rural? Qual a região da caixa de ressonância corporal que um indivíduo faz uso ao impostar a
voz para cantar, para gritar ou para contar uma piada? Os resultados obtidos na investigação do artista
pesquisador podem ser colocados a serviço de outros campos de estudo, como a antropologia, a sociolo-
gia, a psicologia, a história, a comunicação etc. Afinal, “o que as etnociências podem ter como perspectiva
comum é a busca da compreensão dos discursos dos diversos agrupamentos sociais sobre sua própria
vida coletiva, inclusive e, talvez, principalmente, suas práticas corporais” (BIÃO, 2009, p.97).
Nesse debate, Armindo Bião (2009) propõe o estudo das formas cotidianas como uma das categorias
de análise do espetacular, dando a elas o nome de expressões “adverbialmente espetaculares”:

Tentamos defini-lo como as formas cotidianas que são repetidas rotineiramente num mes-
mo espaço, com pessoas caracterizadas em papéis sociais(educador/ educando, vendedor/
cliente, médico/ paciente, sacerdote/ fiel, transportador/ transportado, esportista/ tran-
seunte/ banhista, etc.), reconhecíveis socialmente por seus figurinos, adereços e posturas
corporais, por suas formas de expressão vocal e gestual, reveladoras de estados de consci-
ência e de corpo, simultaneamente de teatralidade e espetacularidade, conforme definido
acima. (BIÃO, 2009, p. 94)

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 125


Segundo o autor, o espetacular dos objetos de estudo das expressões adverbialmente espetaculares se-
ria dado pelo olhar do pesquisador, um estudante ou um mero observador, provocados por uma espécie
de estranhamento e consequente distanciamento. Essa categoria de estudo dos objetos não está prevista
no manifesto da disciplina, não sendo tratada por teóricos como Jean-Marie Pradier e Chérif Khaznadar.
Porém, ao abrir essa porta para novos estudos, Armindo Bião cria uma tonalidade brasileira para a etno-
cenologia.
Alexandra Dumas (2005) reflete que o espetacular, enquanto conceito de estudo da etnocenologia,
encontra-se no eixo relacional entre pesquisador e objeto, excluindo deste sua natureza fixa e incluindo-o
como agente formador da percepção específica de cada pesquisador sobre a pesquisa. Tal relação, advin-
da de contatos culturais, é fato gerador de inúmeras particularidades que não devem transformar-se em
ações valorativas. Dumas pondera:

Quando Pradier conceitua espetacular, de certa forma, ele também considera o caráter de
particularização de cada pesquisa, no sentido de pensar que os objetos e sua percepção passam
pela relação e por uma via cultural. Se para identificar o que é comportamento espetacular o
autor remete a uma oposição à ação banal, subentende-se que esta percepção e posterior con-
ceituação passam pelo crivo cultural. O que parece espetacular ou banal numa determinada
cultura pode não ser numa outra. Ou mesmo o que parece trivial para uma determinada pessoa
pode ser espetacular para outra. (DUMAS, 2005, p.4)

Não seria estranho, então, que Armindo Bião, baiano, filho de uma mulher da Zona da Mata e de um
homem do Agreste, “exposto desde criança através da vizinhança e da convivência com pessoas de di-
versas classes sociais a manifestações da cultura chamada afro-baianas” (BIÃO, 2009, p. 141), em contato
com os comportamentos especulares vistos no dia a dia em Salvador, propusesse a categoria de estudo
dos objetos adverbialmente espetaculares.
Sob esse ponto de vista, sinto-me seduzido a concordar com o posicionamento de Alexandra Du-
mas: a definição do espetacular entendida por Pradier como uma oposição a uma ação banal passa pelo
crivo cultural dele próprio. Acredito que a etnocenologia deva abranger, em seu campo de pesquisa, as
estratégias de expressão utilizadas pelos indivíduos no momento em que ele se relaciona com o outro.
Cabe ao pesquisador observar o entorno físico e social que compõe cada ação específica e justificar essa
espetacularidade.
Eu tomo como exemplo a situação de alguém que se propõe a provocar o riso em situações corriquei-
ras do dia-a-dia. O professor Armindo Bião, entretanto, vai mais a fundo, exemplificando muitos outros
papéis sociais em que existe uma distinção clara entre aquele que desempenha a ação e aquele que assiste
(logo, uma situação relacional): “educador/ educando, vendedor/ cliente, médico/ paciente, sacerdote/
fiel, transportador/ transportado, esportista/ transeunte/ banhista, etc” (BIÃO, 2009, p.94).
Por mais banais que possam parecer, as ações cotidianas podem constituir o que Pradier contorna
como objeto da etnocenologia: “um evento complexo que implica em um ou mais indivíduos considera-
dos em sua inteireza biológica, física, espiritual e social” (PRADIER, 1998, p. 9). Dessa forma, acredito
que, ao incluir as expressões adverbialmente espetaculares, estaremos, concomitantemente, fortalecendo
a escolha pelo emprego do prefixo “etno”, propondo-nos o exercício de “relativizar as obras e práticas
espetaculares ocidentais explicitando sua especificidade cultural” (PRADIER, 1998, p.12).
Por outro lado, gostaria de sinalizar a discussão acerca da dificuldade percebida no que diz respeito à
separação entre as categorias substantivamente, adjetivamente e adverbialmente espetacular anunciadas
por Armindo Bião (2009), em função das tantas interfaces existentes entre elas; um exercício de discussão
conceitual/teórica/prática que eu não seria capaz esgotá-la neste trabalho, ainda que esta fosse minha
intenção.

126 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Neste ponto, proponho visitar a conceituação dada pelo autor para os objetos adjetivamente espeta-
culares. Bião (2009) afirma que:

Também seriam objetos de interesse da etnocenologia, o que denominei de ritos espetacu-


lares, ou, dito de outra forma, aqueles fenômenos apenas adjetivamente espetaculares. Esses
fenômenos [...] envolvem, em sua realização, também concreta e coletiva, formas sociais de
representação, aparentadas às do teatro e às da ópera, por exemplo, formas de padrões corpo-
rais ritmados, como os compartilhados com a dança e a música cênica; formas de brincadeira
comunitária; assim como certos folguedos, e formas de ações coletivas, envolvendo o prazer
do testemunho do risco físico, como as artes circenses, por exemplo. É o campo dos rituais
religiosos e políticos; dos festejos públicos; enfim dos ritos representativos ou comemorativos
– na terminologia de Émile Durkheim. Nesse grupo de objetos, ser espetacular implicaria uma
qualidade complementar, imprescindível, decerto, para sua conformação, mas não substantiva-
mente essencial. (BIÃO, 2009, p. 52-53)

O delineamento dos objetos adjetivamente espetaculares proposto por Bião (2009) subentende um
vasto universo de pesquisa: compreende uma gama de interações humanas em que existem “formas so-
ciais de representação” (BIÃO, 2009, p.52). Nesses acontecimentos coletivos, o espetacular seria muito
mais uma qualidade (ou característica) do que um objetivo principal, tais como, por exemplo, os tantos e
diversos ritos cívicos e religiosos praticados de Norte a Sul do Brasil.
No que diz respeito à configuração desse objeto adjetivamente espetacular, gostaria de chamar atenção
para alguns pontos mencionados por Bião, na citação acima. Em primeiro lugar, atento ao fato de que
esta categoria refere-se aos fenômenos de realização concreta e coletiva, diferente dos objetos adverbial-
mente espetaculares, em que um único sujeito pode se tornar objeto de estudo pela sua espetacularização
através do olhar do pesquisador.
O adverbialmente espetacular não exclui as relações interpessoais estabelecidas no cotidiano como
professor/aluno, vendedor/cliente etc. de seu campo de estudos. Contudo, cria a possibilidade de um
pesquisador estudar um único indivíduo. Na Bahia, especificamente em Salvador, é comum observar
determinados comportamentos espetaculares em contextos cotidianos.
Nesse sentido, acredito que seja válido compartilhar uma experiência pessoal que evidencia o que está
sendo sublinhado. Certa vez, eu estava distraído no ônibus quando um vendedor de balas de gengibre
chamou minha atenção pela forma como se apresentou naquele ambiente. Era um rapaz de aproxima-
damente trinta e cinco anos. Não havia nada em suas roupas ou suas características físicas que pudessem
chamar a atenção de alguém gratuitamente. Todavia, ele adentrou no ônibus entoando uma música com
o ritmo que lembrava um samba, cuja letra nunca esqueci: “Olha, barato é / Só não compra quem não
quer / Olha, barato é / Minha gengibre de mel é / Comprar por comprar / Compra em qualquer lugar
/ Mas se comprar na minha mão / Você vai me ajudar / Olha, barato é...”
Assim como esse rapaz do ônibus prendeu minha atenção, fazendo-me comprar suas balas de gen-
gibre por adotar um comportamento espetacular que atraiu meu olhar, gerando certa admiração pela
irreverência, muitas outras figuras podem ser encontradas nas ruas da capital baiana, algumas delas já
reconhecidas e estudadas3 como Romilda Anunciação, vendedora de flores no Pelourinho, ou João do
Camarão, vendedor de camarão na praia do Porto da Barra. No entanto, para efeito de estudo do adjetiva-
mente espetacular, essas pessoas não se adequariam nesta categoria, visto que são indivíduos que, apesar

3
A esse respeito, ver: ARAÚJO, Fábio C. Lobato. “Palhaços de rua”: Transcorpografia na performance de dois
vendedores de rua em Salvador. 2006. 210f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Escola de Teatro, Uni-
versidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/9615/1/DissertacaoComSeg.pdf
Acesso: 20/03/2015
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 127
de estarem inseridos em um contexto social, destacam-se muito mais por seus desempenhos individuais.
Essas pessoas podem até apresentar, em sua desenvoltura, padrões corporais ritmados ou certa impos-
tação vocal que levem o seu interlocutor a compará-lo a um artista de dança, do teatro ou do circo, como
mencionado por Bião, mas descontextualizadas de um rito espetacular específico, o que o descaracteriza-
ria enquanto adjetivamente espetacular.
No fundo, este experimento de tentar entender as sutilezas que diferenciam as categorias passa pela
busca de esclarecer, através de reflexões, aquilo que pode não estar tão bem delineado na observação
da realidade social que nos rodeia. Se, numa situação fictícia, eu alocasse um dos indivíduos acima men-
cionados para um desfile cívico em comemoração à independência da Bahia, por exemplo, poderíamos
estudá-lo enquanto adjetivamente espetacular, uma vez que este se encontraria no contexto concreto,
coletivo, de representações sociais e pertencente a um rito comemorativo?
Não é minha intenção, nem pretensão, responder essa questão. Desejo tão somente provocar a re-
flexão acerca do quão delicadas são estas questões de delineamentos conceituais, sobretudo atentar para
o seguinte fato: qualquer que seja o objeto de estudo, para a etnocenologia, sua espetacularidade estará
diretamente relacionada ao contexto pelo qual esse objeto está envolto, bem como ao olhar que o espec-
tador estabelecerá (BIÃO, 2009).
Ainda assim, penso que objetos de estudo compreendidos entre as classes gramaticais do substan-
tivo e do adjetivo apresentem uma aproximação maior, se comparados ao estudo do adverbialmente
espetacular. Aliás, essa preocupação já foi apontada por Bião (2009, p. 53). Enquanto os dois primeiros
encontram-se relacionados a situações em que existe uma distinção mais clara entre, metaforicamente,
artistas e espectadores, em acontecimentos pensados, realizados por uma coletividade para o olhar de
muitos outros; no terceiro, essa relação encontra-se mais difusa, ligada ao dia a dia e a comportamentos
individuais que sobressaltam a determinadas situações.
O substantivo e o adjetivo, sob o ponto de vista morforlógico, muitas vezes se confundem pelas fle-
xões de gênero e número às quais estão sujeitos. Por exemplo: se eu expuser as palavras “fiel” e “baiano”
(escolhidas de forma aleatória) deslocadas de um contexto, ficará difícil perceber qual delas exerce a fun-
ção de substantivo ou adjetivo. Mas, se eu digo: “o baiano fiel” ou “o fiel baiano”, estará evidente qual
palavra está modificando o ser (característica sintática do adjetivo); no primeiro caso, baiano funciona
como substantivo, já no segundo, fiel exerce esta função.
Algo parecido ocorre com a categorização etnocenológica dos objetos sugerida por Bião (2009). Ini-
cialmente, o autor propôs as três categorias como formas cotidianas, ritos espetaculares e artes do espe-
táculo, atribuindo a elas, mais tarde, as classes gramaticais de advérbio, adjetivo e substantivo, respecti-
vamente (BIÃO, 2009, p. 51). Enquanto as formas cotidianas ocupam um lugar mais ou menos distinto
das outras duas categorias, os ritos espetaculares e as artes do espetáculo podem, em algum momento,
confundirem-se com maior facilidade.

É certo que distinguir, de modo perfeito, esses dois primeiros grupos, um de objetos substan-
tivamente espetaculares e outro de objetos adjetivamente espetaculares, é um exercício teóri-
co-conceitual complexo e delicado. No entanto, consideremos, como é hábito na construção
epistemológica, e mesmo na comunicação humana mais comezinha, poder distinguir, desde
um ponto de vista apenas teórico, esses dois grandes grupos e admitir a possibilidade de inter-
faces, de cruzamentos e de transgressões de fronteira, e, sempre que assim for o caso, nomear
e descrever esse pertencimento, talvez duplo, ou não claramente uno. (BIÃO, 2009, p. 53)

A sugestão do autor de pensar nesse duplo pertencimento poderia, em um primeiro momento, sanar a
preocupação de não situar um objeto exclusivamente em uma dessas categorias. Apesar disso, um pouco
antes, ao versar sobre o que seriam as artes do espetáculo, compreendidas por substantivamente espeta-
culares, Bião (2009) expande a abrangência do termo:

128 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Nessas artes, não estão considerados somente o teatro, a dança, o circo, a ópera, o happening
e a performance, mas, sim, também, outras práticas e comportamentos humanos espetaculares
organizados, dentre os quais alguns os rituais, os fenômenos sociais extraordinários e, até, as
formas de vida cotidiana, quando pensadas enquanto fenômenos espetaculares. (BIÃO, 2009,
p. 47)

Se as formas da vida cotidiana, porque pensadas enquanto fenômenos espetaculares, puderem ser
consideradas como artes do espetáculo, estará criada a possibilidade de um triplo pertencimento, ou não
claramente duplo. Para Bião (2009) a espetacularização daquilo que é visto em cena passa pelo crivo do
espectador em definir os limites tão tênues entre o cotidiano e o extracotidiano. Dessa relação, ainda
segundo ele, surgiria uma tensão que “caracteriza todas as práticas espetaculares, constituindo-se terreno
propício para os conflitos que promovem e provocam a ação” (BIÃO, 2009, p. 124).
Ou seja, quanto mais tentarmos esmiuçar essas categorias, perceberemos que elas possuem um de-
nominador comum que poderia ser entendido como o gerador das tensões: o olhar do espectador que
espetaculariza determinado acontecimento, definindo o que seria cotidiano ou extracotidiando. Nesse
sentido, Daniela Amoroso é assertiva em sua sinalização: “De qualquer maneira, é o olhar de quem assiste
que revela o quão espetacular é uma prática” (2010, p. 3).
A título de conclusão, gostaria de propor mais uma interrogação para que a categorização proposta
por Bião continue sendo discutida, repensada, revivida e atualizada. Quando o professor faz uso de três
classes gramaticais para nomear essas categorias, adiciona a elas, em certos momentos, o sufixo “mente”:
adverbialmente, adjetivamente e substantivamente.
Ora, o sufixo “mente”, na Língua Portuguesa, é o responsável pela formação de advérbio. Sendo, na
verdade, o único sufixo que exerce essa função de adverbializar um adjetivo. O advérbio, por sua vez, tem
por função explicitar uma circunstância em que determinada ação ocorreu, dando maior especificidade
à ação verbal.
Isso me faz pensar que essas categorias têm por objetivo exprimir uma circunstância espetacular de
determinado movimento social, seja ele substantivo (como algo que se denomina e/ou se entende espe-
tacular), adjetivo (tendo o espetacular como uma característica, não como uma finalidade) ou advérbio
(em que o espetacular seria uma especificidade de uma circunstância).
Dessa forma, deixo uma pergunta no ar: seria o espetacular uma circunstância que dá especificidade às
interações humanas? Acredito que caiba a cada pesquisador responder a essa pergunta com o olhar que
irá dedicar aos seus objetos, que são tantos e diversos, espetacularizando-os. Afinal, conforme Jean-Marie
Pradier (1999, p. 28), “Existem tantas práticas espetaculares no mundo que se pode razoavelmente supor
que o espetacular, tanto quanto a língua e talvez a religião, sejam traços específicos da espécie humana”.

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130 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


ATRIZ-BRINCANTE –
EXPERIMENTAÇÕES CÊNICAS
A PARTIR DA BRINCADEIRA DO
CAVALO MARINHO
Flávia Cristiana da Silva1
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
flaviagaldencio@hotmail.com

RESUMO: Este trabalho é um relato que sintetiza uma pesquisa de mestrado sobre um processo de
investigação artística, fundamentada nas experiências geradas pelo encontro com a brincadeira do Cavalo
Marinho da zona da mata norte de Pernambuco (OLIVEIRA, 2006). O objetivo foi identificar elementos
presentes neste folguedo que pudessem contribuir para a minha investigação laboratorial em experimen-
tações cênicas. Para isso, fez-se necessário conhecer mais profundamente a brincadeira e o seu contexto
numa intensa troca entre pesquisadora, brincadores e pessoas que participam direta e indiretamente do
Cavalo Marinho. Paralelamente, dediquei-me a um processo laboratorial individual, que tentou identificar,
na interface entre teatro e Cavalo Marinho, algumas características que estariam no elo entre a brincadeira
e o jogo (HUIZINGA, 2010) no meu fazer artístico, o que chamo de Atriz-Brincante.

PALAVRAS-CHAVE: Cavalo Marinho; Processo de Criação; Atriz-Brincante.

INTRODUÇÃO

Apresento, através deste relato, a experiência de uma relação com a brincadeira do Cavalo Marinho
da Zona da Mata Norte de Pernambuco estabelecida pelo afeto, encontro, conhecimento, troca. Para
discorrer sobre o mesmo, peço licença aos leitores para apresentar rapidamente a minha experiência no
teatro que está totalmente imbricada com a pesquisa desenvolvida no mestrado, através do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas, na Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA).
A centelha que alimentou este trabalho de pesquisa nasceu ainda na graduação quando fazia o curso de
Licenciatura em Teatro na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Durante este período, atuando como
arte-educadora, tive a oportunidade, paralelamente, de trabalhar na função de atriz com alguns diretores,
artistas, grupos de teatro, pesquisadores, o que despertou em mim, além do interesse em conhecer e ex-
perimentar diversas estéticas teatrais, o desejo de investigar treinamentos para o ator nos quais pudesse
buscar um caminho pessoal para criação cênica.

1
Flávia Cristiana da Silva, também conhecida como Flávia Gaudêncio, possui experiência como atriz, professora
de teatro e pesquisadora. É graduada em Licenciatura em Teatro pela UFBA, especialista em Arte Educação: cul-
tura brasileira e linguagens artísticas contemporânea pela Escola de Belas Artes – UFBA e mestre em artes cênicas
pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênica – UFBA. Ênfase na área de pesquisa em manifestações da
cultura popular para treinamento do ator e criação cênica.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 131
A investigação que desejava, ainda nebulosa do que seria concretamente, encaminhava-me ao contato
com os meus desejos como artista, das minhas inquietações e trajetória diante de um processo de experi-
mentação e criação para a cena.
Foi no ano de 2006 que, ao me deparar com a brincadeira do Cavalo Marinho, reconheci algumas
figuras2 deste folguedo presentes na minha meninice e isso remeteu-me a uma memória autobiográfica
revelando lembranças armazenadas na minha experiência afetiva. Damásio3 (2000, p.285) ressalta que a
memória autobiográfica “contém as memórias que constituem a identidade, juntamente com aquelas que
ajudam a definir nossa individualidade”. O autor afirma que recordar acontecimentos vividos no passado
denota o registro de uma história de vida do indivíduo.

Figura do Cavalo Marinho La Ursa.


Foto: Ioná Brito

E foi a partir daí que surgiu o meu interesse por uma aproximação maior pela pesquisa sobre as ex-
pressões da cultura tradicional brasileira, especificamente o Cavalo Marinho. Este desejo foi fortemente
enraizado quando percebi que o meu corpo era repleto de memórias e que a pesquisa não envolve só
o “objeto” de investigação, mas também está imbricada no pesquisador e na percepção que o mesmo
tem sobre si e sobre o mundo. É um processo de troca de aprendizado tanto do indivíduo que o realiza,
quanto da sociedade na qual está envolvida.
Neste mesmo ano, descobri que o Cavalo Marinho é uma manifestação popular rural de Pernambuco
e da Paraíba, que faz parte do ciclo natalino. É um folguedo que está ligado ao contexto da monocultura
da cana-de-açúcar. Conduzido por música, teatro e dança, possui cerca de 63 episódios e 75 figuras que
dançam, interpretam e se comunicam com o público improvisando. Nela existe um vasto repertório de

2
Figura é um termo utilizado pelos próprios brincadores do Cavalo Marinho que vem (re)presentar uma perso-
nalidade através de um humano, animal, boneco ou ser do imaginário coletivo (irei falar um pouco mais à frente).
Se quisermos fazer um paralelo com as artes cênicas, podemos chamá-la de personagem.
3
“António Rosa Damásio (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1944) é um médiconeurologista, neurocientistaportuguês
que trabalha nos estudo do cérebro e das emoções humanas.” Disponivel: pt.wikipedia.org/wiki/António_Damá-
sio. Acessado em: 06-04-2013.
132 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
poesias, músicas, danças, gestos e não há distinção de idade para se brincar, tendo participantes idosos,
adultos, adolescentes e crianças. Essa manifestação é encenada durante uma noite inteira repleta de ges-
tos, corporalidades específicas, vitalidade, vigor físico com habilidades e beleza que impressiona.
A partir daí, adentrei neste universo. Mas, o caminho de pesquisa obrigou-me a fazer escolhas, o que
me levou a refletir sobre a direção que queria seguir. E com o alinhavar do tempo, ela foi se delineando
gradativamente. Contudo, defini que iria investigar em laboratório individual alguns elementos presentes
no teatro e na brincadeira do Cavalo Marinho, como por exemplo, corpo, jogo, comicidade, improviso,
entre outros, para experimentações de criação cênica.
Durante a pesquisa, participei de alguns encontros de Cavalos Marinhos na Casa da Rabeca, no bair-
ro Cidade Tabajara em Olinda-PE. Este é um encontro que acontece todo ano no dia 25 de dezembro,
dia do natal, há mais de vinte anos. Também envolvi-me em oficinas com mestres do Cavalo Marinho,
brincadores e pesquisadores desta tradição. Além disso, fiquei hospedada durante alguns meses, espaça-
damente, na cidade de Condado-PE, onde fica localizado o Cavalo Marinho Estrela de Ouro, aprendendo
e convivendo no cotidiano da comunidade.
Com isso, pude entender sobre o contexto sociocultural da localidade, da brincadeira, conhecer mais
‘de perto’ os brincadores, mestres e todo suporte que lhes é dado pelas suas famílias. Pude compreender
mais um pouco sobre o corpo deste brincador, a relação entre trabalho e brincadeira, os processos de
aprendizagem no brincar, entre outros.
Inicialmente, busquei refletir sobre o que mais me impressionou inicialmente durante o processo de
observação do folguedo do Cavalo Marinho. O corpo. Neste caso, o corpo sendo o lugar de toda travessia
da experiência humana.
A brincadeira do Cavalo Marinho e o seu contexto são os alimentos do corpo e do espírito dos brin-
cadores, como revela mestre Inácio Lucindo4 um dos mais antigos mestres deste folguedo, quando diz
que o corpo que dança a brincadeira do Cavalo Marinho é o mesmo corpo utilizado no trabalho do corte
da cana. Afirma que “até pra trabalhar no roçado tem que ter o corpo e postura apropriada”. E reforça
explicando este corpo de forma poética:

O corpo da gente, é o corpo para trabalhar, é o corpo para se dançar, é o corpo pra você girar,
até pra vestir a roupa você tem que ter o corpo leve... Tudo isso é movimento, tudo isso é ins-
trução, tudo isso é quem trabalha na cana, tudo isso é quem trabalha no campo.

Este mestre revela que a maioria dos brincadores do seu tempo exerce ou exercia trabalhos braçais que
exige corpos fortes e resistentes. Com isso, faz relação entre o corpo e o mundo, através da experiência
contextualizada e corporalizada. É nesse mundo vivencial que se comunica com a experiência, ligada ao
cotidiano, a um corpo vital que passa uma noite inteira dançando, cantando, tocando, enfim, brincando.
Desta forma, entendo o corpo como possuidor de uma história de vida, que se alimenta de experiên-
cias criativas, como afirma Acselrad (2002, p.98) “O corpo é o eixo de relação com o mundo. É o lugar
onde se constituem e propagam as significações que fundam a experiência individual e coletiva”.
A partir desta visão, observo o corpo do brincador como forma significante, atrelado à experiência
individual e coletiva num intercâmbio de relações com o mundo que cria e recria sua história e seu lugar.
Sendo assim, este corpo nunca está separado do ambiente em que vive e dificilmente pode ser compre-
endido sem uma atenção ao seu contexto e as suas relações.
Após os momentos vivenciados do universo do Cavalo Marinho, começo a trabalhar numa prática
individual durante oito meses. Nesta fase do laboratório, solitária e autônomo, fui experimentando o que
tinha vivenciado nas oficinas como, por exemplo, a dança, a música, a atmosfera da brincadeira. Na pro-

4
Fala de mestre Inácio Lucindo na oficina Cavalo Marinho em São Bernardo do Campo (São Paulo), no dia 04
de maio de 2011.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 133
cura de uma autonomia pessoal, estava sempre buscando descobrir possibilidades diversas para criação
cênica e também interessada em investigar uma unidade para o meu trabalho incluindo a relação com o
jogo, corpo, voz, espaço.
Trabalhando com a dança do Cavalo Marinho, percebi algumas equivalências com exercícios de en-
cenadores do teatro ocidental, como por exemplo, equilíbrio precário, enraizamento, corpo extracotidia-
no, concentração de energia no koshi, dilatação corporal, precisão, entre outros. Nas experimentações
buscava sempre uma tridimensionalidade corporal na intenção de potencializar a percepção do espaço,
projetando as partes do corpo em diversas direções.

SOBRE CAMINHOS, TRILHAS, DESDOBRAMENTOS

Dando seguimento a pesquisa, foquei-me na reflexão e prática sobre as sensações que a brincadeira
causou em mim a partir das memórias, vivências e metáforas observadas no contexto da comunidade do
Cavalo Marinho e, também, como as dinâmicas corporais das figuras escolhidas me deram subsídios para
a criação cênica durante o laboratório.
Com isso, criei a partir das minhas memórias e do universo da brincadeira do Cavalo Marinho cenas
curtas. Surgiram três experimentações de criação cênica que as intitulei de Chegando à brincadeira, Me-
mória da Cana e Andanças em Processo.

Foto: Alessandra Nohvais

A primeira improvisação neste fluxo, que intitulei Chegando à Brincadeira, surgiu através das minhas
lembranças e memórias, das sensações que tive ao ver pessoalmente a brincadeira do Cavalo Marinho
pela primeira vez.
Na experimentação em sala de ensaio a memória de momentos vividos foi essencial para a criação da
cena, através do mergulho nas lembranças que liberou corporalmente tudo que senti, sentia e sinto, de
experimentar movimentos e entender como a brincadeira reverberava em mim.
Algumas memórias da comunidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco se misturavam com as
memórias vividas na minha infância, como, por exemplo, o cheiro forte da cana-de-açúcar queimada, a
sensação do tempo dilatado, a poeira subindo com um vento forte, as estrelas brilhando no céu, a brin-
cadeira no chão de terra.
Em experimentação, a música foi essencial na reconstrução das imagens e sensações revisitadas através
do meu corpo. Neste momento, também vieram se fundir memórias de Condado-PE e as minhas mais
recentes. Lembrei-me do dia em que conheci um açude desta comunidade. A imagem que tenho deste
momento é do rio rodeado de mato, em cujas águas refletiam-se as nuvens e o azul do céu iluminado.
134 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Senti na improvisação a sensação de entrar naquela água gelada, a mesma do município de Ibicoara-BA,
local que frequentei recentemente.
Visitando as memórias vividas, sentia-me remetida a outro espaço, outro tempo criado por mim, a
momentos lúdicos preenchidos de um estado de jogo. Na improvisação o jogo surgia como um aconte-
cimento vivo, uma potência de geração de sentidos, trazendo o acaso, o fluxo e a ludicidade, através das
experiências vividas com fluidez e concentração.
Desta forma, a improvisação realizada fazia com que o meu corpo reverberasse ações dançadas, já
que não existia um roteiro pré-definido, apenas palavras soltas. O importante para mim, no momento de
improviso, era deixar as palavras se materializarem no meu corpo, sem a intenção de criar personagens.
E tudo ia acontecendo sem nada previamente pensado ou definido.
A construção da improvisação Chegando à Brincadeira foi preenchida de memórias do vivido que se
transformou em poesia corporal através de releituras, recheadas de imagens, lembranças e sensações.
Encarei este momento de experimentação como uma melodia de significados e afetividade, como diz
Barba (1994, p.119): “A memória é a canção que cantamos para nós mesmos. É a vereda de hieróglifos e
perfumes com os quais nos aproximamos de nós mesmos”.

Foto: Alessandra Nohvais

A segunda improvisação, intitulada Brincando com a Memória da Cana, surgiu através de diversas ações
presentes na brincadeira do Cavalo Marinho e, também, a relação do corpo do trabalho e da brincadeira.
Algumas delas foram: trotar do cavalo, trabalhar no roçado, cortar cana, pegar um “moio” de cana, cavar
um buraco na terra, também algumas como enraizamento dos pés, ouvir o espaço, amassar a terra, sentir
o ritmo, ampliar o olhar, entre outras. Elas se constituíram na relação com a brincadeira e no convívio
com a comunidade de Condado-PE, através da música, canto, dança, indumentária, local onde acontece
a brincadeira, a culinária, a fala, a forma de pensar e de se relacionar com o mundo.
Esta improvisação começou a surgir a partir da reflexão sobre os movimentos da dança do Cavalo
Marinho. Qual a relação do movimento do trabalho cotidiano com o movimento da brincadeira? A brin-
cadeira do Cavalo Marinho está diretamente ligada ao universo rural de Pernambuco e Paraíba. Portanto,
seria totalmente pertinente fazer a relação da dança com o trabalho no roçado.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 135
Comecei a pensar como era a vida de um boia-fria e relacioná-la a algumas metáforas escutadas no
contexto do Cavalo Marinho como, por exemplo, ditas por Aguinaldo Silva5 “(...) é cair um balde de água
fria em cima de mim”, “(...) ele joga muito duro”. Assim, foi surgindo a improvisação Brincando com a
Memória da Cana.
Essa improvisação se estabeleceu através da vivificação do universo simbólico desencadeando um
fluxo de memórias, imagens e sensações ligadas à experiência com a brincadeira do Cavalo Marinho e seu
contexto.
Depois de ter experimentado esses dois momentos, comecei a observar mais atentamente as figuras
presentes na brincadeira do Cavalo Marinho. Escolhi dois figureiros para uma observação verticalizada.
São eles: Fábio Soares e Aguinaldo Silva, ambos fazem parte do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, do
mestre Biu Alexandre. A seleção se deu pela dedicação à brincadeira e pela precisão e apuro técnico per-
cebido no botar figuras6.
A partir disto, selecionei três figuras colocadas por estes figureiros para direcionar minha atenção no
trabalho prático e teórico. São elas: Seu Ambrósio, Véia do Bambu e Mané Taião. A escolha não se deu
por uma hierarquia de importância, mas sim, através das minhas memórias (imagéticas e musculares) e
afetos, que foi se fortalecendo ao longo da pesquisa de maneira sensível e objetiva. E também pela diver-
sidade de suas dinâmicas corporais. Domenici (2009, p.9/10) explica o que seria dinâmica corporal ao se
referir a dança do Bumba-Meu-Boi do Maranhão:

A dança emerge de um jogo: novas qualidades de movimento emergem no intervalo de tempo


em que o brincante explora determinada dinâmica corporal no seu “jogo”, enquanto vai mati-
zando os movimentos em pequenas variações e criando uma paleta muito peculiar de estados
tônicos no corpo. (...) Uma dinâmica corporal inclui vários matizes e pequenas variações do
movimento, que podem ser de acentuação rítmica, de tonicidade corporal, ou mesmo de de-
senho do corpo no espaço. A diferença é que a idéia de passo isola padrões de movimento,
enquanto a idéia de dinâmicas corporais os agrupa em ‘famílias’ que se organizam de forma
interligada.

Existe uma grande diversidade de dinâmicas corporais na brincadeira do Cavalo Marinho. Com isso,
investigo nas três figuras escolhidas dinâmicas de momentos que para mim se tornam propulsora para
um estado tônico apropriada à expressão e criação artística.
As dinâmicas corporais se deram não pela simples investigação das formas corporais possíveis de
aplicação no estudo em sala de trabalho, mas sim pela individualidade das figuras que revelam a unicidade
de cada uma delas. Pensando assim, as qualidades de dinâmicas dessas figuras são estruturais e repletas
de significado expressivo, cujo trabalho proporciona experimentações que contribuem para o desenvol-
vimento da minha experiência vivida de forma intensa para a criação.
Após o intenso trabalho com as figuras escolhidas, veio a vontade de construir uma nova figura basea-
da na corporalidade destas, passando pela dança do Cavalo Marinho, dinâmicas corporais das três figuras
e minhas memórias pessoais e com o folguedo.
A experimentação deste processo de criação estava pautada na palavra brincadeira. Era importante
pôr em prática um caminho de desdobramento corporal significativo, envolvendo a sutileza dos gestos,
do jogo, das diversas dinâmicas corporais em diálogo com alguns objetos cênicos, com o público, com o
espaço na busca de compreender, na prática, o estado de brincadeira.

5
Entrevista com Aguinaldo Silva realizada em São Bernardo do Campo-São Paulo, no dia 14-08-2012.
6
Botar figuras é um termo utilizado pelos brincadores do Cavalo Marinho para designar a ação de quem faz a
figura.
136 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Para ter um apoio colaborativo na criação da cena e por ter tido outros encontros felizes em trabalhos
artísticos, convidei Érico José7 para auxiliar-me na direção da cena curta. A escolha deste diretor também
se deu pelo acompanhamento da minha pesquisa prática e teórica, sendo o orientador desta pesquisa,
onde assistiu algumas vezes as minhas experimentações em sala de trabalho. Em seguida, convidei Viní-
cius Lirio8 para fazer a assistência de direção, pelos afetos e competência comprovada na área artística.
A descoberta e composição da criação de uma nova figura se deram de forma crescente. Iniciou-se
com a sobreposição das três figuras escolhidas do Cavalo Marinho numa dinâmica de combinações e
alternâncias. Busquei através das dinâmicas corporais de Seu Ambrósio, que é um negociante, inserir no
meu corpo a agilidade de um vendedor de variedades. Outro fator importante foi a atenção dada às mãos,
as quais em alguns momentos revelavam os gestos da própria ação que desejava.
Já da Veia do Bambu, busquei trazer o universo do carnaval como força ativa de criação. Referente à
avidez sexual desta figura, procurei transformá-la, através de potência corporal, em empatia com o públi-
co. Neste processo de descoberta, a carnavalização e o cômico estavam sempre presentes, pois, como são
características peculiares ao folguedo do Cavalo Marinho, buscava espaço para o caráter festivo e a alegria
do riso. Assim, procurei causar em mim uma ruptura das normas sociais e das hierarquias, a que se refere
Bakhtin (1993, p.9) quando fala do carnaval da Idade Média e do Renascimento:

Essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre
os indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em si-
tuações normais. Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública,
francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação,
liberados das normas correntes da etiqueta e da decência.

E nesta relação, surgiram algumas dinâmicas corporais de Mané Taião. Assim investiguei, dentro de
uma ingenuidade disfarçada, na direção do trabalho do duplo sentido na venda dos produtos, o que é pe-
culiar às três figuras. O que também encontrei em comum às figuras e trabalhei para adquirir foi exercitar
os diversos níveis espaciais (alto, médio e baixo), dando ênfase às qualidades dos movimentos; à tridimen-
sionalidade do corpo no espaço; à comicidade revelada em vários momentos da brincadeira.
Assim, fui compondo o corpo desta figura que dei o nome de Frô, na improvisação intitulada Andan-
ças em Processo. As improvisações a revelaram uma mulher bastante popular que, ao se sentir à vontade
nos lugares por onde passa, vai até as pessoas vender seus produtos. Nesta venda ela conta histórias, dá
outras conotações aos seus produtos, cria outras formas de convencer o cliente a comprar, etc.
Embora o corpo desta figura tenha surgido através da construção de algumas dinâmicas corporais de
outras três figuras, procurei dar-lhe unidade, isto é, compreendi que esta deve ser parte de um conjunto,
nada pode ser visivelmente fragmentado, e sim uma orquestração corporal dentro de um estado de brin-
cadeira desta atriz-brincante. Percebo que o resultado da construção gerou um corpo latente de intensi-
dade festiva ganhando dimensão, intensificando e disseminando este corpo-voz de Frô pelo espaço. E foi
assim que se findou esta última fase da pesquisa.

Érico José é ator e encenador. Tem experiência na área de artes, com ênfase em encenação e direção de ator.
7

Atualmente é professor adjunto 2 da Universidade Federal da Bahia.


8
Vinícius Lirio é ator, encenador e professor de teatro. Tem experiência na área de artes cênicas, com ênfase em
encenação e arte-educação. Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Uni-
versidade Federal da Bahia.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 137
Figura Frô
Foto: Alessandra Nohvais
Todos esses momentos laboratoriais foram desenvolvidos através da vivência corporal individual.
Esse percurso foi construído a partir da interlocução da pesquisadora no campo das investigações da arte
do espetáculo e do diálogo com memórias coletivas e individuais que envolveram mestres e brincadores
do Cavalo Marinho. Tudo isso com o objetivo de pensar caminhos possíveis para uma atriz-brincante.
Esta pesquisa aponta um caminho percorrido e possível. A ideia desta Atriz-Brincante é justamente
assinalar a riqueza do diálogo entre elementos do teatro e do universo do Cavalo Marinho. Portanto, colo-
co-me no lugar de uma Atriz-Brincante, quando me encontro no rompimento das fronteiras entre teatro
e cultura popular, nos limites entre apresentar e vivenciar, teatro e dança, jogo e brincadeira. Afinal, para
mim a grande contribuição neste processo foi a possibilidade de me enxergar num espaço de cruzamento
dessas duas culturas (teatro e Cavalo Marinho), cujas influências se articulam no meu trabalho artístico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ACSELRAD, Maria. “Viva Pareia!” A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza – uma abordagem antropológica
da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator – dicionário de antropologia teatral. São Paulo/
Campinas: Hucitec/UNICAMP, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993.
DAMÁSIO, António. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2000.
DOMENICI, Eloisa Leite. A pesquisa das danças populares brasileiras: questões epistemológicas para as artes cêni-
cas. In: Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade. Nº 23. Salvador: Universidade Federal da Bahia – Escola de Teatro/Escola de
Dança, 2009.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
OLIVEIRA, Érico José Souza de. A Roda do Mundo Gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro
(Condado-PE). Recife: SESC, 2006.
138 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
TRICKSTER E AS DUPLAS
CÔMICAS CÊNICAS
Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos1
UFAL2
ivanildopiccoli@hotmail.com

RESUMO: Esta comunicação aborda especificamente o percurso transcorrido na pesquisa da minha


tese defendida recentemente: O Dueto Cômico: da Commedia dell’Arte ao Cavalo Marinho, com estudos bi-
bliográficos e iconográficos sobre o conceito do mito da figura do trickster e as máscaras que formam as
duplas de zanni da commedia, passando pelas duplas de palhaços circenses e da cultura popular brasileira.
A identificação ocorre no âmbito das funções ritualísticas, festiva e religiosa, cada qual com sua peculia-
ridade, partindo para o foco principal de análise que é o estudo dos arquétipos cômicos populares aqui
estudados na sua presença em duplas: uso da interpretação teatral; momentos dançados; constante pre-
sença musical e ritmada; uso de máscara (no rosto ou corporal); caracterizações corporais; transmissão
de forma hereditária; preparação física; o nível energético constante na apresentação; uso da técnica da
improvisação (tanto a criada e estudada, quanto a surgida do imprevisto e a soggetto), entre outros temas.

Palavras chave: Duplas Cômicas, Cultura Popular, Máscaras, Formação do Artista Cênico.

TRICKSTERAND DOUBLES COMIC PERFORMING:

ABSTRACT: This paper specifically addresses the route passed in search of my recently defended
thesis: Duet Comical: the Commedia dell’Arte to CavaloMarinho, with studies bibliographic and icono-
graphic of the concept on the myth of the trickster figure and shades that masks the doubles Zanni of
commedia, through the double of circus clowns and Brazilian popular culture. The identification takes
place within the ritualistic functions, festive and religious, each with its peculiarity, starting for the main
focus of analysis is the study of the popular comic archetypes studied here in his presence in pairs: use
of theatrical interpretation; danced times; constant presence musical and rhythmic; use mask (on the face
or body); body characterizations; transmission of hereditary form; fitness; the constant presentationin
the energy level; use of improvisation technique (both created and studied, as the arising of unforeseen
and soggetto), among others.

Keywords: Doubles comic, Popular Culture, Masks, Scenic Artist Training.

1
Doutor e mestre em Teatro pelo IA-UNESP;
Professor do curso de Graduação em Teatro Licenciatura, Coordenador de Assuntos Culturais e Diretor do
2

Espaço Cultural da UFAL.


I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 139
Comecei minha pesquisa da tese defendida recentemente: O Dueto Cômico: da Commedia dell’Arte
ao Cavalo Marinho (UNESP- SP)procurando conhecer um conceito que unia as ambiguidades, os ele-
mentos “duplos” em um só ser, único e “duplo”, deparei-me genericamente com o conceito do mito do
trickster, que é de natureza dupla: animal e humana, maléfica e benéfica, sublime e grotesca, infantil e adul-
ta (ou infantil no adulto), astuta e tola, cômica, paradoxal, contestador, transgressor, ridícula, engraçada,
desobedientes e obscena.
As definições e traduções mais encontradas de trickster em português sugerem: malandro, embusteiro,
malicioso, ardiloso, velhaco, atraente, arteiro, pregador de peças, ilusionista; adjetivos que descrevem
apenas um de seus aspectos, sem mencionar o seu importante lado de crenças, ritos, mítico, místico e
sagrado, mais relacionados aos povos e culturas nativas.
O termo trickster foi criado pelos mitólogos anglo-saxões e pode ser derivado da antiga palavra francesa
“triche”, do verbo tricher ou tricherie, que designava: trapaça, mentira, furto, engano, falcatrua, velhacaria (BA-
LANDIER, 1982, p.25). Também pode ser derivado do inglês “trick” que significa: truque e estratagema.
Importa saber que o termo trickster tem sido utilizado para definir tanto uma divindade ou semi-divin-
dade, quanto um herói ou criatura que aparece em quase todas as narrativas mitológicas e ou folclóricas
do mundo, tais como: deus ou orixá da encruzilhada3, dos entroncamentos, das bifurcações, do comércio,
um agente do caos, representante maior das malícias, a representação física do aleatório. “No entanto,
eles variam muito de cultura para cultura, revelando dimensões sociais e religiosas distintas das culturas
em que eles são encontrados”4 (CHRISTEN, 1998, p.ix, tradução nossa).
Trickster é o termo que nomeia também aquele que aparece em estado de representação, aquele que
quebra as regras (como aquele que rouba o fogo de Deus, como a lenda de Hermes), portador de conhe-
cimento superior (também como aquele que consegue até ludibriar a natureza). “Esses personagens mul-
tifacetados têm sido e continuam a ser fontes de entretenimento, agentes de mudança social, e espelhos
de convicção religiosa para suas audiências”5 (CHRISTEN, 1998, p.ix, tradução nossa).
Dentre as aparições de trickster podem ser citadas: Mercurius, Hermes e Prometheus, na Grécia e Roma
antiga; Eshu, Elegba, em yorubáAnansi, na África; Loki, na mitologia nórdica; Exu, e por vezes Erê nos
ritos brasileiros da Umbanda e do Candomblé. Muitas vezes, assumem a imagem ou representação de
muitos animais, como: Ture, uma aranha na Azande, África Central, ou ainda, neste mesmo continente,
visto também como uma lebre. Há também a representação simbólica de seres humanos, os quais rece-
bem o crédito de portarem consigo: comida, água e fogo. São vistos também como brutos, incestuosos,
desrespeitosos e egoístas, podendo constantemente enganar as pessoas, roubando delas o mais precioso
para fazer o que quiserem em seu próprio benefício.
Um interessante estudo das aparições mais diversas de tricksters comparadas aos cômicos e clowns,
já citado neste trabalho e usado como referência, é o livro de KimberlyA. Christen, Clowns & Tricksters:
AnEnciclopediaofTraditionandCulture, onde o autor explica e enumera mais de 187 possibilidades de apari-
ções de cômicos ou tricksters no mundo e os define afirmando que:

A visão etnocêntrica dessas figuras como primitivas foi dado peso por explicações psicológicas
e funcionais que os viam simplesmente como “válvulas de liberação de tensão” de culturas
“inferiores”. Na verdade, porque eles eram vistos como simples entretenimento, clowns e
tricksters não foram estudados seriamente por muitas décadas. Os relatórios dessas “grotes-

3
É comum também encontrar estudos comparando-o ou assemelhando-o aos Exus brasileiros da Umbanda
(Xangô) e ou do Candomblé.
4
Do original: However, they vary greatly from culture to culture, revealing distinct social and religious dimensions of the cultures
in which they are found. (CHRISTEN, 1998, p. ix)
Do original: These multifaceted characters have been and continue to be sources of entertainment, agents of social change, and
5

mirrors of religious conviction for their audiences (CHRISTEN, 1998, ix).


140 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
cas” personagens “selvagens” podem ser encontrados nas obras de primeiros missionários e
colonizadores que datam no século de 1600. Mas não foi até meados do século XIX, com o
surgimento do discurso antropológico na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos que as catego-
rizações foram desenvolvidas6. (CHRISTEN, 1998, p.ix, tradução nossa).

Sabemos que esse recente estudo e classificação também definem essas figuras míticas como: glutão,
obsceno (por vezes é referenciado como portador de falos propositadamente aumentados e visíveis),
presentes em momentos de transição, situações de distúrbios e mudanças, cujas frequentes peripécias
cômicas liberam tensões e revelam desordem para que seja reconstruída uma nova ordem. Assim como
“a maioria das citações do papel da figura do tricksters, suas ações são imprevisíveis e o lugar que ocupa
na sociedade é tênue”7 (CHRISTEN, 1998, p.xiii, tradução nossa).
Os tabus que estabelecem interdições e proibições, sobretudo os religiosos e sexuais, são facilmente
violados pelo trickster como indivíduo, já que isso não ocorreria no comportamento de um grupo. Isso
é melhor explicado por Vitor Turner, quando diz que o trickster pode destruir a ordem social e que os
tabus “são quebrados por intermédio de um indivíduo, real ou imaginário, que, assim procedendo, con-
verte-se, a um só tempo, em vilão e herói, realizando aquilo que todos, secretamente, gostariam de fazer”
(TURNER, 1972, p. 576-82).
De forma geral a figura do cômico, aqui estudada como clowns ou tricksters, sozinho ou em dupla,
pertencem às

[...] histórias e performances que são caracterizadas pela sua natureza de improviso. Em outras
palavras, os personagens são bem conhecidos, mas cada vez que as histórias são contadas ou
executadas em cena o enredo pode mudar, deixando em aberto à possibilidade de um número
infinito de performances e contos. Clowns e Tricksters estão sempre recebendo em si mesmos
problemas, causando estragos, e perturbando eventos. Um dos temas mais comuns é a com-
pleta desconsideração dos clowns e tricksters para os costumes sociais e religiosos. Eles, muitas
vezes, fazem coisas para trás, fora de ordem, ou na ordem inversa. Eles usam do engano, da
ilusão, da ambiguidade para enganar as pessoas e para segui-los ou fazer o que eles querem.
Clowns e Tricksters são assim, trapaceiros frequentemente representados como “não-huma-
nos” ou seres humanos que não agem corretamente; eles resumem o comportamento antisso-
cial.8 (CHRISTEN, 1998, p.xiii, tradução nossa)

6
Do original: The ethnocentric view of these figures as primitive was given weight by psychological and functional explanations that
saw them as simply “tension-releasing valves” of “lower” cultures. In fact, because they were seen as simple entertainment, clowns and
tricksters were not studied seriously for many decades. Reports of these “grotesque,” “savage” characters can be found in the works
of early missionaries and settlers dating as far back as the 1600s. But it was not until the mid-nineteenth century with the rise of
anthropological discourse in Britain and the United States that the categorizations were developed. (CHRISTEN, 1998, p.ix).
Do original: As with most trickster figure, his actions are unpredictable and the place he holds in society is tenuous. (CHRIS-
7

TEN, 1998, p.xiii).


8
Do original: Trickster and clown stories and performances are characterized by their impromptu nature. In other words, the
characters are well known, but each time the stories are told or performed the scene and plot may change, leaving open the possibility
for endless numbers of performances and tales. Clowns and tricksters are forever getting themselves into trouble, causing havoc, and
disrupting events. One of the most common themes is the clown’s or trickster’s complete disregard for social and religious mores. They
often do things backward, out of order, or in reverse order. They use deception, illusion, and ambiguity to trick people into following
them or doing what they want. Clowns and tricksters often represent “nonhumans” or humans who do not act properly; they epitomize
antisocial behavior. (CHRISTEN, 1998, p.xiii).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 141
Em 1868, o termo trickster apareceu no livro de Daniel Brinton “The Mythsofthe New World”, e em 1893
o antropólogo R. M. Stephen relatou as travessuras de cômicos (clowns ou tricksters) nas cerimônias Hopi
representados pelas figuras Kachinas. Mais relatórios foram feitos a seguir, a partir de antropólogos que
estudam culturas nativas americanas, especialmente os do sudoeste dos Estados Unidos, onde figuras
cômicas (clowns e ou tricksters) são predominantes. Nestes estudos, estes termos são usados para se referi-
rem, principalmente, às figuras do nativo americano retratados nos mitos e rituais, o qual agia de forma
absurda, grosseira, e com pouco respeito às normas sociais.
Precedido por esses estudos, em meados da década de 1900, antropólogos começaram a prestar mais
atenção aos cômicos, clowns e ou tricksters, dentro de culturas nativas americanas, com foco em sua dupla
condição de brincalhões, sagrados e profanos, vistos como heróis da cultura.

Franz Boas e Robert Lowie, dois antropólogos respeitados, definem o tricksters como um
personagem mitológico cujas características são “de transição”. Boas e Lowie desacreditam
da ideia de que tricksters são antecessores dos heróis da cultura, denotando um palco cultural
mais primitivo. Citando vários casos em que tricksters incorporados em traços de heróis cul-
turais e outros, em que os mitos de origem composta de ambos os personagens, Lowie e Boas
foram os primeiros a estudar caracteres “tricksters” como uma categoria autônoma.9 (CHRIS-
TEN, 1998, p.x, tradução nossa)

A antropóloga ElsieClewsParsons estava entre os estudiosos que perceberam ser demasiado simplista,
nos números de cômicos nativos em cerimônias Zuni,Hopi e Navajo, a definição de cômicos como “fa-
bricantes de prazer” (“delightmakers”), obscurecendo o seu papel de especialistas de rituais e curandeiros.
Ela defendeu um entendimento dos cômicos Hopi e do Zuni como “sagrado” (“sacred”).
Juntamente com Ralph Leon Beals, Parsons estudou as cerimônias Yaqui. Identificou uma caracte-
rística distinta nesses cômicos, ou seja, que exibiam ambos comportamentos, sagrados e profanos. Para
Parsons e Beals esses personagens eram muito mais do que simples “animadores”, os viam como repre-
sentações complexas de ideais culturais e religiosos.
Paul Radin também foi um dos primeiros estudiosos a usar o termo10 trickster para descrever, em sua
análise antropológica, o ciclo heroico dos índios norte-americanos da etnia Winnebagos. Em seus estu-
dos (RADIN, 1956, 1972 e 1990), identificou a existência de um ciclo que possui quatro tipos de heróis:
- o Trickster (brincalhão e com impulsos infantis);
- o Hare (civilizador e salvador);
- o Red Horn (forte e com poderes sobre-humanos) e
- os Twins (dupla de irmãos gêmeos, sendo um, o conciliador e o outro, o provocador).
Para a cultura indígena norte-americana estudada por esse autor, o trickster iniciaria tal ciclo. Esse ser
muito semelhante a outros estudados por ele na África era representado pelos índios como um animal
(coiote, coelho ou corvo), por não ter adquirido ainda a forma humana, ao que o pesquisador e médico
Henderson acrescentou que “ao final de sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um
homem adulto” (HENDERSON, 1979, p.112).

9
Do original: Franz Boas and Robert Lowie, two well-respected anthropologists, defined a trickster as a mythological character
possessing “transitional” characteristics. Boas and Lowie discredited the notion that tricksters must be predecessors to culture heroes
and that they thus denoted a more primitive cultural stage. Citing several cases in which tricksters embodied the traits of culture heroes
and others in which myths of origin contained both characters, Lowie and Boas were the first to study “trickster” characters as an
autonomous category. (CHRISTEN, 1998, p.x).
Antes dele e mesmo sua referência foi um artigo escrito em 1885 por Daniel G. Brinton’s “The Hero-Godof
10

The Algonkins as a Cheatand Liar”, que o tratava como uma figura religiosa, e passa por Radin a ser uma caricatura
do homem com uma libido intensa
142 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Radin defende a ideia de que os tricksters são precursores de heróis culturais, e apoiados depois por
Jung, reforçam a visão de que nas culturas onde estes cômicos aparecem como personagens primitivos,
inferiores e infantis, os tricksters ocorrem em um estágio primitivo no desenvolvimento cultural. Traba-
lhando a partir desse pressuposto, eles afirmam que os personagens tricksters são “primitivas” represen-
tações do bem e do mal. Radin em seus estudos foi criticado por sua caracterização psicológica simplista
da “figura do tricksters”.
Esse herói trapaceiro, malicioso, cômico, além de ser retratado nos mitos de povos indígenas, tam-
bém aparece na Literatura de forma geral, em relatos mitológicos, históricos e folclóricos associados aos
bufões, bobos de corte, cômicos, palhaços, cômicos brincantes da cultura popular ou ainda, de todos
aqueles personagens reais ou fictícios que tem permissão de zombaria, de ruptura da ordem estabelecida,
“quebrando aparências e desfazendo ilusões” (BALANDIER, 1982, p.25). O número de figuras e perso-
nagens associados aos tricksters e clownsatualmente em todo o mundo pode ser incontável. Em muitas cul-
turas, estas figuras não possuem nomes específicos, desta forma, qualquer personagem mítico ou animal
pode assim ser considerado, por assumir uma vida trickster (tricksterlike) ou qualidades clownescas (clownlike).
Para o pesquisador Radin o trickster é

[...] um e ao mesmo tempo dois, criador e destruidor, doador e negador, ele que engana os
outros e que está sempre enganando a si mesmo. Ele não quer nada conscientemente. Em
todas as vezes que ele é obrigado a se comportar, age por impulsos, pois não tem controle. Ele
não conhece nem o bem e nem o mal, mas é responsável por ambos. Ele não possui nenhum
valor, moral ou social, está à mercê de suas paixões e apetites, mas através de suas ações todos
os valores passam a existir. Ele é uma figura genital(izada), sem missão para além de satisfazer
o seu principal querer: fome e sexo (RADIN, 1956, p. XXIII, tradução nossa).
A esmagadora maioria de todos os chamados mitos tricksters na América do Norte dá conta
da criação da Terra, ou pelo menos da transformação do mundo, e tem um herói que é sempre
errante, que está sempre com fome, que não é guiado por concepções normais de bem ou de
mal, que está sempre pregando peças nas pessoas por terem jogado sobre ele temas altamente
sexuados. Em quase todos os lugares onde ele aparece há alguns traços divinos, que variam de
tribo para tribo. Em alguns casos, ele é considerado como uma divindade real, em outros está
intimamente ligado com as divindades, em outros ainda, ele pode ser um animal generalizado
ou um ser humano, ambos os sujeitos à morte11 (RADIN, 1956, p.155, tradução nossa).

Radin, nesta passagem, está expandindo um conceito primeiramente desenvolvido por Franz Boas
que afirmava que os traços de caráter que compunham o que Radin chamaria de tricksters tinham uma
interpretação anterior ao contraditório, eram refletidas num estágio de desenvolvimento em que esses
traços de caráter não tinham sido separados (BOAS, 1940, p.474). Assim, a ambivalência e a dualidade do
trickster eram, na verdade, pertencentes a um único caráter indivisível.

11
Do original: Trickster is at one and the same time creator and destroyer, giver and negator, he who dupes others and who is always
duped himself. He wills nothing consciously. At all times he is constrained to behave as he does from impulses over which he has no
control. He knows neither good nor evil yet he is responsible for both. He possesses no values, moral or social, is at the mercy of his
passions and appetites, yet through his actions all values come into being. He is a genitalized figure with no mission beyond that of
satisfying his primary wants, hunger and sex (RADIN, 1956, p. xxiii)
Do original: The overwhelming majority of all so-called trickster myths in North America give an account of the creation of the
earth, or at least the transforming of the world, and have a hero who is always wandering, who is always hungry, who is not guided
by normal conceptions of good or evil, who is either playing tricks on people of having them played on him and who is highly sexed.
Almost everywhere he has some divine traits. These vary from tribe to tribe. In some instances he is regarded as an actual deity, in
others as intimately connected with deities, in still others he is at best a generalized animal or human being subject to death (RADIN,
1956, p.155).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 143
Uma das funções do trickster era a de “adicionar desordem na ordem e assim formar um todo, para
tornar possível, dentro dos limites fixados do que é permitido, uma experiência do que não é permitido”12
(RADIN, 1956, p.185, tradução nossa).
Veremos adiante, como as duplas cômicas, sujeitos desse estudo, se comportam exatamente seguindo
esse pensamento; somente com a desordem e o caos conseguem impor ordem ou estabelecer uma nova
ordem.
Outros relevantes estudos de referência sobre a figura do trickster são os de Lewis Hyde (2010), que
atualiza o mito até os artistas modernos, como por exemplo, os artistas das artes plásticas; e também, os
estudos de Bassil-Morozow (2011), que relaciona a citada figura ao universo cinematográfico.
Podemos fazer uma breve aproximação do mito do trickster com figuras semelhantes na cultura popu-
lar brasileira, apenas como titulo de ilustração e aproximação imediata desse universo, como: Saci-Pererê;
curupira; Macunaíma; Pedro Malasartes, entre tantos outros, como os diversos mitos indígenas.
Quando Jung estuda o mito do trickster, tratando do arquétipo da ‘Sombra’, o aprofunda afirmando
que “O ‘trickster’ é um ser originário ‘cósmico’, de natureza divina-animal, por um lado, superior ao ho-
mem, graças à sua qualidade sobre-humana, e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez incons-
ciente” (JUNG, 2000. p.259).
Entendemos o trickster então, como um “duplo” complementar unindo opostos pelo riso, humor, tole-
rância, ingenuidade e malandragem; sendo ele o infrator das normas, um astuto ou tolo, ou ainda, os dois
em um; apresentando consciência dos propósitos de suas ações, ou agindo apenas por instintos, e sendo
inconsequente. Todos esses elementos serão referenciados nesta tese sobre as “duplas de cômicos”, de
forma unida ou separada, mas, doravante usarei a terminologia já clássica de primeiro e segundo cô-
micos.
Ainda de forma ampla, os tricksters e os cômicos não são meramente engraçados, eles também são
terríveis, usando seu poder para assustar as pessoas e força-las a dar-lhes coisas. Clowns e tricksters usam
frequentemente o seu estado ambíguo para tirar vantagem das pessoas. Além disso, eles muitas vezes
assumem o papel de comentaristas sociais, constrangendo pessoas que tenham quebrado uma das regras
da sociedade. Também zombam daqueles que estão no poder, como funcionários do governo, padres e,
autoridades sociais ou de rituais. Esta zombaria destina-se a destacar o abuso de poder ou jogo realizado
para recuperar esse poder. Como artistas e comentaristas políticos, clowns e tricksters têm um papel primá-
rio nas sociedades das quais emergem, e o que os definem, além disto, é precisamente esta capacidade de
manter papéis aparentemente paradoxais. (CHRISTEN, 1998, p. xiv, versão nossa).
Temos a lembrança clara dessas características também nas cenas dos zanni da Commedia dell’Arte,
personagem que transgride as regras de seus patrões (vecchi ou magníficos e enamorados), e muitas vezes
não cumprindo ou invertendo seus sentidos. Tal relação, é típica também dos palhaços/clowns de Circo,
seja ele Branco ou Augusto, pois infringem as regras, na maneira como se vestem, em sua inadequação
e não pertencimento social, na forma como brincam com a norma/regra/lei estabelecida e riem dela e
de si mesmos, e ainda, pela zombaria que fazem com o Mestre de Pista. Todas essas caraterísticas cômi-
cas estão presentes também nos Mateus e Bastiões do Cavalo Marinho, que desde o momento que são
“contratados” pelo Capitão, zombam de seu mestre e ainda tentam assumir o seu poder e auto se ridicu-
larizam. É possível identificar essas características quando esses personagens, ao tentar criar e manter a
ordem causa uma série de desordens na brincadeira da noite de sambada.
Todos esses cômicos, aqui estudados, são ambíguos e imprevisíveis, em parte ou na sua totalidade
possuem as características desse ser uno que foi definido e referenciado até aqui como trickster, seja na
sua visualidade como máscara social, ou em suas atitudes e comportamentos, sempre com o objetivo
principal de fazer o possível para sobreviver, como vencer sua fome, por exemplo. Como consequência,

12
Do original: “to add disorder to order and so make a whole, to render possible, within the fixed bounds of what is permitted, an
experiment of what is not permitted” (RADIN, 1956, p.185)
144 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
acabam divertindo seus observadores pelo reconhecimento de suas (in)capacidades. E por vezes, ainda
causam o riso por conta do apelo sexual.
Acompanhando os estudos de Jung observamos que ele percorre a história para citar alguns casos que
considera de reais tricksters. Para esta tese, suas afirmações enriquecem as referências para o entendimento
das duplas cômicas aqui estudadas, como demonstrado na passagem que segue:

[...] figura alquímica de Mercúrio; por exemplo, sua tendência às travessuras astutas, em parte
divertidas, em parte malignas (veneno!), sua mutabilidade, sua dupla natureza animal-divina,
sua vulnerabilidade a todo tipo de tortura e - lastbutnotleast - sua proximidade da figura de um
salvador. Graças a essas propriedades, Mercúrio aparece como um daemonium ressuscitado
dos tempos primordiais, até mesmo mais antigo do que o Hermes grego. Os traços “trickste-
rianos” de Mercúrio têm alguma relação com certas figuras folclóricas sobejamente conhecidas
nos contos de fada: Dunga, o João Bobo e o Palhaço que são heróis negativos, conseguindo
pela estupidez aquilo que outros não conseguem com a maior habilidade. (JUNG, 2000. p.251)

A semelhança de traços “tricksterianos” entre Mercúrio e o Palhaço, acima citada pelas palavras de Jung,
nos permite estabelecer um paralelo ao comportamento das duplas cômicas, que podem ser vistas como
herói negativo quando são consideradas figuras com condutas reprimíveis, ou ainda, podem provocar es-
tranhamento e indignação, mas também são simpáticas, cômicas e promovem identificação. As principais
duplas estudadas nesse texto, citadas anteriormente, primeiro e segundo cômicos, ou seja, zanni, Clown
Branco e Augusto, ou Mateus e Bastião estão retratados exatamente neste conceito de heróis invertidos
ou anti-heróis.
As diferenças entre os tipos de heróis constituem um amplo campo de pesquisa. O herói (por destino,
coragem, astúcia, dignidade e com ações extraordinárias provocando a catarse) é aquele da mitologia e das
tragédias “com faculdades e atributos que estão acima daqueles simples mortais [...] é uma personagem
elevada ao nível de semideus” (PAVIS, 2007 p.193). O herói pode ser épico, trágico ou dramático.
O anti-herói é o “duplo” do herói, irônico e grotesco. “Aparece como a única alternativa para a descri-
ção das ações humanas [...] em Brecht o homem é sistematicamente desmontado, reduzido a um ser cheio
de contradições [...] ele deve parasobreviver, disfarçar-se de bufão ou de criatura derrisória” (PAVIS, 2007
p.194) e com destino determinado pela sociedade onde vive. É aquele que age segundo motivações que
não são moralmente associadas ao bem. Paradoxalmente, pode ser também a negação de determinados
valores, como no exemplo claro de D. Quixote, que é um herói picaresco.
Sem me alongar aqui no estudo dos heróis e suas classificações foco nas duplas cômicas que são cons-
tituídas destes heróis negativos ou heróis humildes. Essa dupla também é composta, como afirmou Jung
em seus estudos sobre o período medieval, quando cita as diversas festas obscenas e eclesiásticas que por
séculos subverteram a ordem em períodos de carnaval. Mas apesar de serem sempre banidas e reformu-
ladas, ressurgiam com o uso de elementos que faziam com que seus membros parecessem verdadeiros
cômicos ou mesmo tricksters, como cita o próprio Jung: “reapareceram no palco profano da comédia ita-
liana sob a forma de tipos cômicos, frequentemente caracterizados como fálicos, que divertiam o público
impudico com chistes gargantuescos. O cinzel de Jacques Callots preservou essas figuras clássicas para a
posteridade” (JUNG, 2000. p.255).

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 145


Imagens 1,2,3 e 4: Sequencia de “BallidiSfessania” de 1622 aparecem as personagens idealizadas por Jacques Callot para essa
dança típica do Renascimento chamada Sfessania, e que são atribuídas também como caracterizações dos primeiros cômicos
dell’arte
O aprofundamento do estudo de Jung no que se refere ao universo medieval, e muito interessa a este
texto por tratar-se da fonte do Renascimento e do período precedente a todos os personagens-tipos-más-
caras da Commedia dell’Arte aqui estudadas, e ainda, por referenciar o universo clownesco, o que nos remete
de imediato, a meu ver, ao entendimento da cultura popular brasileira.
O psicanalista irá também acrescentar mais adiante em seu texto que partindo da “personificação
coletiva como o ‘trickster’ é [ele se torna] produto de uma soma de casos individuais, podendo ser re-
conhecida pelos indivíduos isoladamente, o que não ocorreria se se tratasse de um produto individual”
(JUNG, 2000. p.257). E que ele possui movimentos constantes sendo que “[...] o ‘trickster’ continua a
ser uma fonte de divertimento que se prolonga através das civilizações, sendo reconhecível nas figuras
carnavalescas de um Polichinelo e de um palhaço. Este motivo é a razão importante para que continue a
manter sua função” (JUNG, 2000. p.260).
De fato “[...] é por meio dos tricksters e clowns que vemos as culturas lidarem com a modernida-
de. Tricksters e clowns são na maioria das vezes, as vozes de mudança e os instigadores da reforma”.
(CHRISTEN, 1998, p.xv, tradução nossa)
A partir deste ponto utilizarei essas referências do mito de trickster para apresentar a divisão nas duplas
cômicas.
As “duplas cômicas”, como foram designadas até aqui, têm origem em um ser único, o trickster, ou
devem ter surgido do duplo do próprio criador. Para efeito de estudos, como dito antes optei por dividir
as duplas cômicas cênicas em primeiro e segundo cômico. Termos estes já utilizados em estudos de

146 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


tipologias do melodrama, da comédia etc. Resumidamente o primeiro cômico, aqui chamado apenas de
malandro e esperto, oposto de seu parceiro segundo cômico, o ingênuo e excêntrico, que é sempre mais
sensível e risível. Ambos, para sua função cômica em dupla, dependem um do outro, exatamente por suas
diferenças e complementariedades. Em muitas duplas, onde as relações entre o primeiro cômico e o se-
gundo estão bem estabelecidas, os papéis podem até ser intercambiáveis, que não alterará a caracterização
dos tipos, nem o entendimento do público, e ainda resultará em mais um efeito de comicidade.

O Zanni geralmente aparece em parelha. É esperto e malicioso, ou bonachão e estúpido e, em


ambos os casos, glutão, Usa uma meia máscara feita de couro, barba descuidada, um chapéu
de abas largas e, no cinto de suas calças largas e bufantes, uma adaga de madeira sem fio, Os
sucessores de Zanni constituem legião - Brighella e Arlecchino, Tuffaldino, Trivellino, Co-
viello, Mezzetino, Fritellino e Pedrolino. São Hanswurst. Pickle-herringe Stock fish, e todos os
inumeráveis tipos locais de bufões do campo ou da cidade, O Pulccinella de Acerra transfor-
mou-se em Punch na Inglaterra, Polichinelle na França. Petrushka na Rússia, e algumas de suas
características sobrevivem no Kasperl alemão. (BERTHOLD, 2000, p.355)

Na sociedade em que a procura básica da vida é o alimento, assim adaptável a qualquer mercado pelo
puro instinto de sobrevivência como tão bem coloca Dario Fo em seu livro Manual Mínimo do Ator, falan-
do dos servos. Esses zanni personificam a figura do camponês do norte da Itália medieval e renascentista
(principalmente, como representante pela cidade e região de Bergamo) que foram viver e procurar trabalho
nas cidades maiores, como era o caso da famosa República Sereníssima de Veneza (Veneza é portuária e
sempre acolheu muitos trabalhadores em seus pesados serviços de transporte de sacas de mercadorias e na
construção civil em evolução). Os servos do “interior” sem nenhuma condição material tenderiam a ficar
sem nenhumasustentação social em épocas de crises agrárias ou peste, e estavam destinados a morrer de
fome. Claramente sem condições de ascensão social, viam-se obrigados a migrar para os centros comer-
ciais. Eles representam o arquétipo da categoria social do empregado, servo, serviçal ou escravo.
Muitas vezes, em alguns estudos, como o de fisiognominia, essas personagens estão relacionadas e
assemelhadas aos animais ou são definidas com características e adjetivos típicos de alguns animais, acen-
tuados na confecção das máscaras de couro que os representavam na Commedia dell’Arte. Assumem, outras
vezes, realmente traços e formas físicas animalescas (macaco,
urso, raposa, cachorro etc.). Como anteriormente faço referen-
cia ao estudo de Jung, que trata dos arquétipos, que aqui asso-
ciamos às duplas cômicas de servos. O autor também faz uma
associação entre esses arquétipos aos animais.
A caracterização visual dessa máscara-arquétipo ou tipo so-
cial é feita em seus primórdios e utilizou-se de uma roupa muito
simples, composta de um tecido típicamenteusado pelos campo-
neses, uma espécie de algodão cru grosso e resistente, sem colo-
ração, sendo bege esbranquiçado quando novo e com manchas e
rasgos quando usado. Na sua versão masculina era composto de
blusões compridos e largos, com calças também largas e o uso
de um cinturão de barbante ou couro.
Bastante presente nas descrições e representações pictóricas
e visuais é o uso de máscaras, ou melhor, da meia máscara de
couro, geralmente na cor preta, muitas vezes com narizes pon-
tiagudos, angulares, aduncos ou simplesmente próximos aos ani-
mais quais faz referência. Imagem 5:Zanni BeppeNappa. Óleo sobre tela.
Museu Teatral no Scala de Milão. Fonte: MOLI-
NARI, 1985, p.126
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 147
Também é frequente nas imagens que representam esses primeiros empregados serem retratadoscom
uma barba descuidada, que muitas vezes os associavam a seres demoníacos ou assustadores.

Imagens 6 e 7 : Máscaras de Zanni de Donato Sartori

Como adereços sempre presentes nas imagens e descrições, há os chapéus, que no princípio eram
com duas pontas separadas, voltadas para frente (bicórneo) e ou com abas. Podiam também ser de outros
modelos, quando usados e doados pelos seus patrões por não serem mais úteis a eles.
Outro elemento sempre constantenas representações de zanni é o uso de algum instrumento ou objeto
que pudesse proteger-lo, como uma adaga de madeira com ou sem fio de corte, bastões, como o carac-
terístico batocchio (característicos dos segundos cômicos), ou mesmo colheres de pau, furtadas de alguma
cozinha ou que realmente lhe era material de trabalho, como as famosas colheres grandes de madeira de
mexer a polenta.
Estudos de Tessari, Bragaglia, Molinari, Camporesi, Taviani, Fo, entre outros, nos revelam que esses
traços provêm de suas origens como derivação do vestuário e comportamento dos camponeses e de
pessoas humildes; outras caraterísticas podem ser associadas, como veremos adiante, àquelas máscaras
tipos que possuem sinais de origem demoníaca e que a vestimenta branca era associada à lembrança das
almas dos mortos, principalmente quando apareciam em bandos (estes sempre associados aos Pulcinelas
– ‘pulcineladas’ e Arlecchinos- ‘arlecchinadas’).
Os zanni podiam aparecer em duas categorias, identificado pela esperteza ou por uma ingenuidade e
de pensamentos mais simples, quer seja masculino, quer seja feminino, mas sempre enquadrados em uma
desta “dupla” forma de aparição e função.
Esta relação em “dupla” foi explicada por diversos autores aqui já citados, e, para exemplifica-la, es-
colho aqui um trecho do texto FruttiDelleModerneComedieedAvisi a Chi Le Recita, de 1628, escrito por Pier
Maria Cecchini:

É algo muito necessário e muito devido nas comédias que, após a parte de um servo esperto e
inteligente, que espirituosamente maneja sem bufonarias a fabula, que seja sucedido pelo outro
totalmente diferente, a qual, representando um desajeitado e ignorante, aparece ainda ter um
jeito de não saber, de não entender ou não poder dizer o que lhe é ordenado; é onde então
nascem graciosos equívoco, ridículos sem proposito e outras artificiosas ridiculosos, os quais,
levadas à cena por quem é bastante capaz, formam uma parte bem apreciada. (CECCHINI; in
TESSARI, 2013 p.115, tradução nossa)13

Do original: È cosa molto necessaria e molto dovuta nella comedia che, dopo la parte di un servo astuto ed ingeg-
13

noso, il quale spiritosamente attendi senza buffonerie al maneggio della favola, che ne succedi un altro totalmente
148 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; trad. de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ªed. São Paulo: Perspec-
tiva, 2007.
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tiva, 2003.
RADIN, Paul. Les winnebagos et leur cycle du fripon. In: RADIN, Paul et al. Le fripondivin: unmytheindien. Ge-
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RADIN, Paul. The Trickster: A Study in American Indian Mythology. New York: Schocken Books Inc, EUA,
1972. (Tambémdisponívelem: <http://www.amazon.com/The-Trickster-American-Indian-Mythology/
dp/0805203516/ref=pd_sim_b_4?ie=UTF8&refRID=18DRE9XFETTGZ7E265JR>. Acessoem 22
nov. 2014).
RADIN, Paul. The Winnebage Tribe.Universityof Nebraska Press.EUA. 1990. (Também disponível em: <http://
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London: The Macmillan Co./The Free Press/Collier-Macmillan Publishers, 1972. Disponível em:
<http://www.encyclopedia.com/doc/1G2-3045000845.html#D>. Acesso em: 20 nov. 2014.

dissimile, il qual, rappresentando un goffo ed ignorante, paia anche tale con il fìnger di non sapere, di non intendere
o di non poter dire quello che li viene ordinato; onde poi naschino graziosi equivoci, ridicolosi spropositi ed altre
artificiose goffagini, le quali, portate in iscena da chi è ben capace di quest’ordine, forma una parte di gran gusto
(CECCHINI; in TESSARI, 2013 p.115).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 149
A PRÁTICA DA TENSEGRIDADE
COMO TREINAMENTO E
MATRIZ DE CRIAÇÃO NO
GRUPO DE PESQUISA EM
TEATRO VAGABUNDOS DO
INFINITO1
Márcia Chiamulera2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
marciachiamu@gmail.com

Leonel Henckes3
leohenckes@gmail.com

RESUMO: Abordamos neste trabalho a experiência prática de utilização da Tensegridade (prática de


preparação xamânica) no treinamento do ator no Grupo de Pesquisa em Teatro Vagabundos do Infinito
entre 2005 e 2008. A Tensegridade se fundamenta no princípio-base de relação entre forças contrárias,
operando através de elementos de tensão contínua e elementos de compressão descontínua, com vistas
ao máximo de eficiência e economia. Os “Passes Mágicos”, uma das matrizes práticas da Tensegridade,
são sequências de movimentos que operam através do princípio de tensão e relaxamento. Quando utili-
zados no treinamento para o Ator, possibilitam tanto a preparação corporal - centrando-se nos processos
de sinestesia e ampliação da percepção - quanto a criação cênica, através da transformação das qualidades
do movimento. Intentamos discutir neste trabalho, portanto, uma via de abordagem sobre o treinamento
do ator em um contexto de investigação cênica contemporânea.

Palavras-chave: Tensegridade, Treinamento do Ator, Preparação Corporal, Etnocenologia

1
Site do grupo: http://w3.ufsm.br/vagabundos/Vagabundos%20do%20Infinito.htmConsultadoem:
22/05/2016.
2
Doutora em Cinema, Música e Teatro pela Universidade de Bologna (2014/2) com bolsa de estudos resultante
do programa europeu Monesia; mestre em Ciências Sociais (2010/UFSM) e bacharel em Artes Cênicas (2007/
UFSM). Atualmente é professora substituta do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS.
3
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2015) com bolsa CAPES. Realizou estágio douto-
ral na Freie Universität Berlin (2013) com bolsa PDSE/CAPES. Bacharel em Artes Cênicas (2007/UFSM). Mem-
bro do Grupo de Pesquisa Pé na Cena – Poéticas de Atuação e Encenação (UFBA). Atualmente é ator e produtor
na LH Produções Artísticas ME e na Melanina Acentuada Produções ME.
150 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
THE TENSEGRITY PRACTICE AS A TRAINING AND A MATRIX OF CREATION IN THE
VAGABUNDOS DO INFINITO THEATRE RESEARCH GROUP

ABSTRACT: Weapproachthis work the practicalexperience of usingTensegrity (practiceshamanicpre-


paration) in actor training in the ResearchTheatre Group “Vagabundos do Infinito” between 2005 and
2008. The Tensegrityisbased on the principle from relationshipbetweenopposingforces, operatingthrou-
ghcontinuoustensionelements and discontinuouscompressionelements with a view to maximum effi-
ciency and economy. The “MagicalPasses”, one of the practical arrays of Tensegrity, are sequences of
movementsthat operate by the principle of tension and relaxation. Whenused in training for the Actor,
enableboth the bodypreparation - focusing on synesthesiaprocesses and expansion of perception - as the
sceniccreationthrough the transformation of the movementqualities. Wetrydiscuss in this work istherefo-
re a means of approach to actor training in the context of contemporaryscenicresearch.

Key-words: Tensegrity, Actor Training, BodyPreparation, Etnocenology

A busca do guerreiro implica renúncia àquilo que constitui a individualidade do ser. (...) Ele procura,
pela vontade, esquecer para ser, ou apagar a própria história.
Alix de Montal, 1988, p. 112

A configuração teórico-prática abordada pelo grupo de pesquisa em teatro Vagabundos do Infinito4,


entre os anos de 2005 e 2008, explorou as relações possíveis entre o treinamento xamânico e o treinamen-
to do ator. Entre as práticas abordadas pelo grupo podemos citar os Passes Mágicos, os Sonhos Lúcidos,
a Espreita e a Recapituação, práticas estas diretamente ligadas à preparação xamânica e, além destas, artes
marciais de tradição chinesa, Tai Chi, e treinamento com bastão. Embora cada uma das práticas indicadas
conste de elementos diferenciáveis, podemos inferir que a Tensegridade resume, em seus princípios, as
diversas práticas. Em outras palavras, a Tensegridade, desde a perspectiva da preparação xamânica, ob-
jetiva a redistribuição de energia e, em consequência, a ampliação da percepção e destreza física. Estas
qualidades no indivíduo seriam possíveis a partir da soma das práticas, muito embora cada uma delas, por
si só, trabalhe neste sentido.
Para os fins deste artigo, nos deteremos no conceito de Tensegridade e suas implicações teórico-meto-
lógicas a partir da prática dos chamados Passes Mágicos. Neste sentido, ressaltamos o caráter experiencial
que origina esta reflexão e, ao mesmo tempo, os desdobramentos e implicações reflexivas que vão sendo
expandidos e reformulados em nossa percepção sobre uma prática concluída.

4
O ‘Vagabundos do Infinito’, com sede na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/BR), sob orientação
do professor Paulo Márcio da Silva Pereira, operou tanto na dimensão de pesquisa quanto de criação, partindo
da investigação denominada “Uma Relação da Preparação Xamânica com a Preparação do Ator” resultando nos
espetáculos “Noites em Claro” e “Vida Acordada”. É interessante notar, no entanto, que ao interno do grupo
de pesquisa cada participante pode sistematicamente desenvolver uma abordagem teórico-prático, resultando em
sub-projetos e criações cênicas. Os autores aqui referidos desenvolveram as seguintes pesquisas: Chiamulera, M.
“A Desconstrução do Ator para Construção de um Personagem” (2006) e “Ator em desconstrução: um processo
de transformação como possibilidade de criação” (2007) e Henckes, L. “O Corpo Mágico” (2007).Além de atuar
nos espetáculos em comum do grupo, cada integrante pode realizar a criação de um espetáculo solo: Chiamulera,
M. “A Super Mãe Porra Louca” (2006) e Henckes, L. “O Horla” (2006).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 151
Nos interessa discutir portanto, a Tensegridade ao interno do treinamento do ator, enfocando sua
ação nas dimensões do corpo e da percepção e, ao mesmo tempo, destacar a possibilidade criativa contida
nas práticas, ou seja, da tensegridade enquanto matriz de criação, focalizando por conseguinte, o conceito
de eficácia relacionada à criação cênica.
A prática da Tensegridade no contexto de uma cultura xamânica diz respeito, sobretudo, à possibilida-
de prática de redistribuição da energia. Na preparação do xamã, é imprescindível a destreza e prontidão
física e mental, aspectos que estariam ligados diretamente ao domínio da percepção.
O xamanismo, em termos gerais, pode ser considerado um fenômeno mágico-religioso constituído
pela experiência extática e pela magia, que se adapta de modo variável às diversas estruturas religiosas.
Segundo Mircea Eliade, o xamanismo, “strictu sensu é, por excelência, um fenômeno religioso, no sentido
amplo deste termo” e que, no entanto, pode coexistir com outras formas de religião.5 No xamanismo,
o xamã é a figura dominante, às vezes chamado de mago, feiticeiro, medicine-man, pode ser também um
sacerdote, um místico, um poeta, cabendo a ele as funções de cura ou execução de milagres extraordi-
nários; ele “é o especialista em um transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para
realizar ascensões e descensões infernais.”6 O xamã é o mediador entre os homens e os deuses celestes
ou infernais, é “o grande especialista da alma humana; só ele a “vê”, pois conhece sua forma e destino”.7
O sentido do êxtase xamânico pode ser considerado como reatualização do illud tempus, ou seja, a origem
do tempo onde reencontram o instante mítico e paradisíaco de antes da “queda”, antes da ruptura das
comunicações entre Céu e Terra reestabelecendo a condição humana através dos mitos, símbolos e ritos,
reproduzindo uma situação primordial.
A preparação xamânica pressupõe uma morte simbólica do futuro Xamã. Conforme Eliade, certos
sofrimentos físicos serão traduzidos como forma de morte simbólica, esta abrange o despedaçamento
do corpo, uma experiência extática que pode ser realizada através dos sofrimentos da “doença-vocação”,
ou das cerimônias rituais ou ainda, através de sonhos. Embora haja variações, os conteúdos dessa expe-
riência extática, quase sempre comportam os seguintes temas: “despedaçamento do corpo seguido pela
renovação dos órgãos internos e das vísceras; ascensão ao Céu e diálogo com os espíritos e as almas dos
xamãs mortos; revelações diversas de ordem religiosa e xamânica.”8 A análise de Eliade indica que essa
longa preparação, envolvendo um renascimento simbólico do corpo e dos órgãos, é uma “renovação to-
tal”, ou seja, marca a “superação da condição humana, profana e portanto, a libertação”. Em alguns tipos
de meditação a visualização e redução ao estado de esqueleto têm por fim “antecipar a obra do tempo”,
isto é, “reduzir, pelo pensamento, a Vida àquilo que ela realmente é: uma ilusão efêmera em perpétua
transformação”. Todos os procedimentos pelos quais o xamã passa (rituais, provas, etc.) têm por objetivo
maior “esquecer a vida passada”9 e renascer para uma nova, para novas realidades.10
Do ponto de vista antropológico, podemos assimilar tais procedimentos enquanto técnicas corporais,
partindo da conceituação de Marcel Mauss, o qual as define como: “as maneiras pelas quais os homens

5
ELIADE, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. Trad. Beatriz Perrone-Moysés e Ivone Castilho Be-
nedetti. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 20.
6
Idem., p.17
7
Idem p. 20.
8
Idem., p. 50.
9
Idem, p. 80-83 passim.
10
Recordamos imediatamente a experiência de Artaud e por ele descrita, em tal grau similares a esta condição,
enfim, de contestação de um corpo subjugado aos conceitos da medicina, para qual haveria apenas um nascimento
e uma morte. Aprofundaremos este argumento em seguida.
152 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.”11 Neste sentido, cabe
ponderar que o corpo tanto é locus onde se desenvolvem os aspectos da cultura e, ao mesmo tempo, é
ferramenta através da qual estes aspectos podem se desenvolver. Sobre um olhar antropológico, o transe
xamânico, assim como outras formas de cura rituais, induzem à um jogo de caráter multissensorial, no
qual as modalidades de sensação, de interação social e atribuição de significados se convertem em expe-
riência efetiva, concreta e corpórea. O fundamento destas técnicas - dadas culturalmente, apropriadas,
transmitidas e/ou reelaboradas - consiste em sua eficácia, qualidade esta que se relaciona intrinsicamente
à construção de uma realidade, à alteração da percepção e à uma forma de crença. A técnica corporal,
neste caso, diferencia-se de outros atos eficazes, justamente por não se ater ao ato mecânico, mas por
envolver, tout court, aspectos físicos, químicos e psicológicos, em suma, a consideração de um “homem
total”12 em um ambiente cultural.
A Tensegridade, sob a ótica do antropólogo Carlos Castaneda, é um complexo sistema de movimentos
nos quais emprega-se, para sua execução, a contração e o relaxamento integral dos tendões e músculos do
corpo, objetivando, em primeira instância, a redistribuição de energia.

Tensegridade é um termo de arquitetura, que significa a propriedade das estruturas reduzidas


que empregam elementos de tensão contínua e elementos de compressão descontínua de uma
tal maneira que cada elemento opera com o máximo de eficiência e economia13.

Do ponto de vista funcional-corporal, a Tensegridade opera na relação direta entre estabilidade e movi-
mento, evidenciando a ação muscular na conexão do inteiro organismo. Seus princípios, quando abordados
desde o campo da biomecânica, sugerem o máximo de eficácia com o mínimo esforço e indicam a compre-
ensão do organismo enquanto estrutura global. Neste sentido, pode-se verificar as relações entre o esqueleto
ósseo como elemento de compressão ao passo que os tecidos corporais organizados e pré-tensionados
distribuem as forças que agem no sistema, resultando na distribuição contínua e uniforme de tensão.14
Mais do que uma análise fisiológica, nos interessa destacar as propriedades da Tensegridade pensadas
em relação à preparação do Ator. Abordamos por conseguinte, os chamados Passes Mágicos que se estru-
turam em sequências de movimentos que trabalham intermitentemente sobre as diferentes partes corpo-
rais sempre conectados à respiração. Os Passes Mágicos, seriam movimentos aprendidos em sonhos por
xamãs do antigo México, e que na modernidade foram batizados de Tensegridade, designando portanto
suas propriedades de execução – tensão + integridade. Cada postura o cada movimento do corpo teria
sido organizado em uma sequência pelos antigos xamãs ou feiticeiros na crença de que quanto maior o
grupo, maior seu efeito de saturação no indivíduo e maior a necessidade de utilização da memória deste
para recordá-los.

Mauss, Marcel. As Técnicas do corpo. In.: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p. 401
11

12
A ideia de fato social total, assim como a de homem total, desenvolvido por Marcel Mauss, pressupõe que um
fenômeno deve ser apreendido na sua totalidade, analisando-se as dimensões do comportamento humano, não só
a nível biológico ou fisiológico, mas também social e sicológico. Esta idéia permite ligar o individual ao social, em
experiências concretas, considerando a sociedade localizada num espaço e tempo determinados e os indivíduos
presentes nela.
Castaneda, Carlos. Passes Mágicos. Trad. Beatriz Penna. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 1998, p. 18.
13

14
Para uma abordagem destes princípios aplicados em campo médico, veja-se: Fonseca, Sergio T.; SILVA, P. L. P.
; Ocarino, Juliana M. ; SOUZA, T. R. ; Fonseca, H.L . Veste baseada em tensegridade para otimização da postura
e movimento. 2011, Brasil. Patente: Privilégio de Inovação. Número do registro: PI11062363, data de depósito:
23/12/2011, título: “Veste baseada em tensegridade para otimização da postura e movimento” , Instituição de
registro:INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Consulta: http://www.google.com/patents/WO-
2013091061A1?cl=pt
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 153
Uma vez alcançado o objetivo de saturação através dos grandes grupos de movimentos, os feiticeiros
passaram ao objetivo oposto: fragmentar os grandes grupos em segmentos simples podendo ser pra-
ticados como unidades independentes. A prática dos movimentos em grandes grupos implica no uso
da memória cinestética, que por sua vez gera uma segunda qualidade: a inibição do diálogo interno. O
diálogo interno seria um modo como reforçamos nossa percepção de mundo e a mantermos fixa em um
determinado nível de eficácia e função. Inibir o diálogo interno, então, traria a possibilidade ampliação da
consciência e alteração da percepção cotidiana.
Em grandes linhas portanto, podemos afirmar que a Tensegridade apresenta-se como uma possi-
bilidade prática de redistribuição de energia, colaborando para um equilíbrio energético psicofísico e
agindo sob a possibilidade de rompimento dos parâmetros da percepção normal, uma vez que a prática
conduz o praticante a um nível de consciência em que os parâmetros da percepção normal e tradicional
são cancelados ao contempo em que a possibilidade de percepção é expandida. Castaneda se refere aos
“parâmetros normais de percepção” como a visão adquirida através da indução pela cultura e pelo meio
ambiente social, uma vez que a totalidade do comportamento humano é regido pela linguagem, os seres
humanos aprenderam a reagir ao que ele chamava de comandos sintáticos, que são “fórmulas elogiosas
ou depreciativas construídas” na linguagem, como por exemplo, as reações de cada indivíduo ou a omis-
são desta perante determinadas situações.15
O propósito da Tensegridade portanto, se fundamenta no desafio de ruptura dos limites provisórios
derivados dos comandos sintáticos para alcançar outros estados de consciência e percepção. Os Passes
Mágicos, agindo em contrações e relaxamentos dos músculos, num jogo de alteração do equilíbrio e
posturas e sobre a dinâmica respiratória, criar portanto um estado particular no corpo, um estado que
não é cotidiano, mas amplificado, de circulação da atenção e energia proporcionando a possibilidade de
descondicionamento da percepção.
É interessante notar como este princípio se apresenta, em maior ou menor grau, nos trabalhos de di-
versos de nossos referentes teatrais, tais como Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba.
Em Artaud, podemos destacar o poder da linguagem/corpo e o estado da percepção aguçada que
desconstrói os conceitos médicos sobre loucura. A percepção da mútua influência nas categorizações
equivalentes a “interno” e “externo, processo e ação, homem e mundo, cultura sociedade, sustenta-se
em uma cadeia de inter-relações contínuas que, para ser construída, passa por um processo dialético. Das
propriedades de um conceito fixado e aceito culturalmente depende a “visão de mundo” de um indivíduo
que, por sua vez, forja um modo de viver imbricado naquela realidade e a partir dos dados apreendidos16.
Da perspectiva de Artaud, esta fronteira torna-se tênue, e ao que é chamado de realidade “interna” e
“externa” nada mais são do que “fenômenos”, fenômenos de linguagem, no sentido amplo do termo,
“manifestações da existência em múltiplos níveis.”17
Podemos analiticamente discorrer, neste sentido, sobre a morte simbólica no processo de preparação
dos xamãs, sobretudo no que se refere à imagem de despedaçamento corporal, mas também podemos
aproximarmo-nos às qualidades proporcionadas pela prática de Passes Mágicos, como a inibição do diá-
logo interno e o desmantelamento de conceitos fixos. Nas palavras de Artaud:

15
Castaneda, 1998, p. 36.
O conceito de visão de mundo, implica em uma forma de percepção e comportamento frente à situações da vida
16

cotidiana ou da realidade concreta. Clifford Geertz, assim define: “a imagem [que um povo] elabora de como são
as coisas, a idéia mais geral de ordem” a “imagem de um efetivo estado das coisas especificamente emolduradas
(moldadas) para ir de acordo com o modo de viver” (ethos) Geertz, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro:
Guanabarra Koogan, 1989; p. 114.
17
Quilici, Cassiano Sydow. AntoninArtaud: Teatro e ritual. São Paulo: Annablume, 2004, p. 82
154 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Lembro de ter feito eu mesmo a minha encarnação aquela noite, ao invés de tê-la recebido de
de um pai e de uma mãe [...] [E quanto à morte] não além de um estado de passagem [...] con-
siderando por bem esta vida daqui, me recordo de ter morrido pelo menos 3 vezes realmente
e corporalmente, uma vez em Marselha, uma vez a Léon, uma vez no México e uma vez no
hospital de Rodez na angústia de um eletroshock.18

E neste sentido, argumenta Ruffini, “Se nascemos e morremos uma vez por todas, se entre a vida e
a morte se vive atormentados pelas doenças e por qualquer outra calamidade, é apenas porque se aceita
viver com o corpo da sociedade”19 e óbvio então, que o processo de morte sublinha a possibilidade de
renascimento, de uma renovação física / espiritual, de uma nova configuração energética.
Em sua conferência preparada para o Viex-Columbier, em 1947, Artaud estabelece como fio con-
dutor de seu pensamento a noção de “fachada” – um corpo de fachada, que se relaciona ao “delírio de
reinvindicação” contra um “funcionamento silogístico” de uma anatomia construída pela sociedade. Em
seu estudo sobre Artaud, Franco Ruffini esclarece: “O corpo da sociedade, com sua anatomia incorreta,
é um corpo de “funcionamento silogístico”. Aceita as perguntas e as responde por nexos de dedução. Os
órgãos e, no complexo, o organismo, foram construídos para este último objetivo: impedir a liberdade.”20
O corpo de fachada, portanto, é a forma inversa de um corpo que vive sob “as leis da poesia e da músi-
ca” e que, em última instância, corresponde àquilo que está por trás da fachada, dos conceitos rígidos, da
percepção ingessada de um corpo objeto do automatismo em acordo com as leis criadas e impostas pela
sociedade.
De modo semelhante Grotowski perpassa esta questão argumentando sobre o poder da linguagem
e orientando o próprio trabalho para o “descondicionamento da percepção”, sobretudo no Teatro das
Fontes. Neste termos, a proposição de Grotowski é bastante clara:

O princípio é sempre aquele da coniunctio oppositorum. O nosso adomesticamento tem, evi-


dentemente, a função de permitir a possibilidade de existência da civilização em que vivemos.
A civilização tem fortes desvantagens, mas nós estamos abituados a elas e, até o momento em
que as desvantagens não são descobertas completamente, é a nossa civilização. Não se propõe
de sair da civilização e voltar ao estado de natureza que existia antes, não é real. Mas é possível
buscar um equilíbrio, um segundo polo. Se estamos em um estado de adomesticamento, de
civilização, é necessário buscar também o estado em que cai o processo dos hábitos, da depen-
dência em que nos encontramos, de desnaturalização. No fundo é o problema da não recitação.
A situação é análoga àquilo que chamamos des-trainig, des-treinamento. Mas para poder fazer
o des-training, nós fizemos um tanto de treinamento, nos treinamos muito. É possível renun-
ciar alguma coisa, apenas quando a possuímos.21

Na fase do Teatro das Fontes, instaura-se uma pesquisa acerca da origem das fontes, a partir da hipó-
tese de que alguma coisa permanece constante em todas as épocas, “aquilo que precede as diferenças”22.
Alguns dos pontos centrais nesta fase são a “sensação do Eu” enquanto projeção de imagem e busca de

Artaud, Ouvrecompletes, XII p. 227 e pp. 232-33 apudRuffini, Franco. Craig, Grotowski e Artaud. Teatro in stato
18

di invenzione. Bari: Editori Laterza, 2009; p. 123. Tradução para finsdidáticos.


Ruffini, Franco. Craig, Grotowski e Artaud. Teatro in stato di invenzione, 2009: 123. Tradução para finsdidáticos.
19

Idem., p. 123-124. Tradução para finsdidáticos.


20

Grotowski, J. Vent’anni di attività. A cura di Ugo Voli. In: Sipario – Trimestrale monografico di Teatro; n. 404,
21

1980, p. 36. Tradução para finsdidáticos


Grotowski, J. Dalla compagnia teatrale all’arte come veicolo. In: Opere e Sentieri II. Jerzy Grotowski. Testi 1968 - 1998. A
22

cura di Antonio Attisani e Mario Biagini.Roma: Bulzoni Editori, 2007; p. cit.: 96.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 155
si no outro (princípio da identidade) e consequente estado de solidão23, o descondicionamento da percep-
ção e existência de uma mind structure, entendida como estruturação da mente (of the mind) no processo
de educação: “é aquilo que foi feito através da educação e das experiências, através da linguagem, através
de tudo aquilo que está ao nosso redor […] é a estrutura que aparece como produto da educação.”24
Enquanto prática interna, citamos Motions, uma sequência de movimentos praticada pelos participan-
tes do Teatro Laboratório que, fundamentalmente, conduz à cinestesia e saturação corporal. A partir
desta prática, podemos tecer a argumentação no reconhecimento das similaridades com os Passes Mági-
cos, tanto no aspecto estrutural - de movimento/respiração - quanto no aspecto resultante - a circulação
da atenção (ou energia). A definição de Thomas Richards é pertinente para elucidar a proximidade entre
Motions e Passes Mágicos:

com exceção da “posição primária”, Motions é um ciclo de alongamentos e rotações. Os alon-


gamentos são simples (é possível ver algumas similaridades com o Hatha Yoga, mas é algo di-
ferente) e há três ciclos de alongamentos/posições. Cada ciclo é um específico alongamento/
posição executado quatro vezes, uma vez na direção de cada um dos quatro pontos cardeais.
Separando cada ciclo tem-se um alongamento chamado Nadir/Zenith, um alongamento veloz
para baixo seguido de um outro veloz para cima.25

Já a posição primária é descrita como uma posição ativa, uma posição de alerta, a partir da qual todo
o corpo seria capaz de reagir, para qualquer direção e em qualquer situação. Esta posição é descrita por
Grotowski sob forma de comparação com certas posições do corpo dos caçadores: “uma certa posição
do corpo na qual a coluna vertebral está um pouco inclinada, os joelhos um pouco flexionados, posição
sustentada na base do corpo desde o complexo sacro-pélvico”.26
A posição primária, assim como descrita acima é idêntica à posição “Ligar” realizada antes de cada
sequência dos Passes Mágicos. Esta posição tem por característica a atitude de alguém que se prepara para
saltar e suspende sua ação antes de tirar os pés do chão. Os joelhos são flexionados e o peso do corpo é
deslocado para os metatarsos dos pés. O tronco se mantém levemente inclinado à frente e braços formam
um ângulo de 90º nas laterais do tronco. Além disso, o “intento” também perpassa uma das séries chama-

23
Quando Grotowski fala do Eu, fala do indivíduo dividido e, portanto, critica a projeção de si no outro. Enquanto
solidão, Grotowski se refere a quando nos esforçamos em deixar cair a máscara social, os papéis, os personagens
sociais, isso nos rende extremamente sós. “Somente duas pessoas solitárias podem realmente encontrar-se. Há
uma espécie de homeostase, de equilíbrio, entre a solidão e o contato. [...] deve existirumadialéticaentre contato
e solidão.” Grotowski, J. Vent’anni di attività… op. cit.: 38. Tradução para fins didáticos. A respeito cfr. Chiamu-
lera, Márcia. L’immagine riflessa. Una lettura antropologico-culturale del teatro di Grotowski. La (de)costruzione
dell’identità del Performer tra Parateatro e Teatro delle Fonti.Bologna: UniBo, 2014. Publicada em formato digital
em: http://amsdottorato.unibo.it/6452/ e em: www.gianfrancobertagni.it/Discipline/corpo.htm
Grotowski, J. Tecniche originarie dell’attore. Texto sobre forma de ‘dispense’ (organização de Luisa Tinti) Università
24

di Roma – Istituto del Teatro e dello Spettacolo, 1982; p. 146. Traduçãopara finsdidáticos.
Richards, Thomas. Al Lavoro con Grotowski sulle Azioni Fisiche. Milano: Ubulibri, 1993; p. 63. Itálico do autor.
25

Tradução para fins didáticos.


26
Grotowski, Jerzy. Tu es le fils de quelqu’un. In: Opere e Sentieri II. Op. cit. p. 70. Neste trecho Grotowski não se
refere à posição primária, mas a descrição reporta, sob forma de pergunta, porque caçadores de diversas tribos
adotam similar posição? E a discussão gira em torno de “uma certa posição primária do corpo humano” ligado à
“energia primária e “como - através diversas técnicas elaboradas nas tradições - buscou-se o acesso a este antigo
corpo do homem”. Ademais, embora sejam poucas as passagens em que Grotowski cita explícitamente Castaneda,
podemos encontrar diversas referências à noções, termos e mesmo práticas descritas por Castaneda e relativas à
preparação do xamã. A este propósito citamos especificamente o trabalho de Fanti, Elena. “Castaneda e Grotowski”
.In.: Culture Teatrali, Intorno a Grotowski. N. 9, autunno 2003. pp. 77 – 106. Traduçãopara finsdidáticos.
156 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
da “Tigre de Dente de Sabre”, que tanto na forma quanto na imagem remetem ao caçador e ao próprio
animal na dramática situação de espreita entre caça/caçador.
Através desta breve exposição, nosso objetivo é lançar luz sobre a amplitude da técnica e de suas pro-
priedades no corpo e, para além da técnica, das possibilidades de trabalho que se abrem a partir destas
sequências de movimentos, sendo reconduzidas, em última instância, à formas que precedem nosso atual
estado de cultura e que se mostram eficazes para o trabalho do ator.
Um ulterior aspecto relevante no tangente à revisão bibliográfica se refere ao trabalho dedicado à
Antropologia Teatral, no que Barba chamou de “técnica extracotidiana do corpo”, ou seja, a existência
de interações entre o relaxamento e a contração dentro do corpo que, em situação de representação é
amplificada e resultaria numa outra qualidade que não cotidiana, um estado de presença. A “técnica extra-
cotidiana do corpo” pressupõe, de acordo com Barba, a aplicação do máximo de esforço para o mínimo
de resultado, objetivando uma qualidade de presença necessária ao ator em cena, o que podemos imedia-
tamente elaborar sobre a fórmula de tensão + integridade.
Em termos experienciais, podemos destacar pelo menos três aspectos suscitados através da prática de
Passes Mágicos: o primeiro sob forma de redistribuição da energia e saturação da memória cinestética,
o segundo diz respeito a desestabilização de automatismos psicofísicos e, o terceiro, está relacionado ao
próprio movimento, que foi utilizado na criação de partituras-base para o treinamento do ator.
A estratégiaadotada no Grupo de Pesquisa “Vagabundos do Infinito”, comrelaçãoaosPassesMágicos,
partiu do aprendizadodassériesatravés de vídeo-aulasdisponibilizadas por discípulos do antropólogo Car-
los Castaneda. Foramelas: 1) redistribuindo a energia dispersa, série composta por nove passes; 2) série
para preparar o intento. Esta sérieédivididaemquatropartesquemoem, agitam, reúnem e redistribuem a
energia. 3) o tigre do intento e 4) 12 movimentosbásicos para reunir energia.Uma vez aprendidas em seus
mínimos detalhes, passamos a executá-las com intento e propósito apropriados afim de experimentá-las
como Passes Mágicos que são.
Através dos Passes Mágicos e da saturação ocasionada pela sua prática, pode-se chegar à uma forma
de redistribuição da energia e consegue-se obter quatro qualidades concomitantes: a inibição do diálogo
interno, a possibilidade de silêncio interior, a ampliação da capacidade de direcionamento da atenção e a
fluidez do ponto de aglutinação27. Estas três qualidades se conectam à uma eficácia do corpo entendido
como organismo total e ultrapassa o treinamento estritamente físico. Esta perspectiva se revela valiosa
para o ator, tanto no sentido de sua preparação como, sobretudo, de performance, no sentido de eficácia.
Cabe ponderar, para além da obviedade, a necessidade de um treinamento para o ator que não se arreste
aos limites físicos.
Ao que parece os Passes Mágicos tornam-se uma possibilidade prática de redistribuição de energia, o
que, segundo Castaneda, leva também à intensificação da consciência, conduzindo os praticantes a deixar
cair a máscara da socialização, ou seja, abandonar os comandos sintáticos. Segue uma anotação do diário
de bordo em 09 de março de 2006:

Hoje, antes de iniciar o treinamento, respirei e intentei parar tudo (o fluxo de pensamento) para
dar início ao aquecimento. Concentrei-me na execução de cada movimento (Passes Mágicos)
com o intento de quebrar e mover a energia; sentia mãos e braços tocando o ar e fazendo-o
movimentar-se. A partir daí, os Passes fluíram [...]. Quando concluí a execução dos Passes, quis
dar alguns passos, me sentia estranha e ao mesmo tempo revigorada, algo tinha acontecido
naquele espaço de tempo, durante o deslocamento percebia o que era ‘passado’. Neste mesmo
dia ao finalizar o trabalho, também com uma das seqüências de Passes Mágicos, fomos indu-
zidos pelo professor a caminhar pela sala. Então comecei a percorrer o espaço sem pensar em
nada, sentindo apenas meus pés no chão. De repente estranhei o vazio e tentei pensar em algo,

Castaneda, 1998, p. 126. O ponto de aglutinação, segundo Castaneda, seria um ponto fundamental para trans-
27

formar a energia em dados sensoriais, e, depois interpretá-los. (Castaneda, 1998, p. 16)


I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 157
mas estava bloqueada, era como se o ‘pensamento’ fosse algo concreto e não pudesse entrar
na minha cabeça. Senti que ao refazer os Passes, estes, cada vez, tornam-se novos. Descubro
um novo percurso sobre a seqüência já gravada pelo corpo, mas a sensação de revitalização é
constante”.
Registro ainda um pensamento acerca deste acontecimento que me ocorreu depois de ter fina-
lizado o trabalho: “O homem luta contra as forças naturais da renovação pela idéia (e defesa)
de fixar um sentido ao que não tem [necessariamente] um único sentido”.28

Dispensando comentários à respeito da transcrição do diário de bordo, sublinhamos apenas o efeito


de saturação da memória corporal e consequente “fluidez” ou estado de silêncio, aspectos que, do nosso
ponto de vista, são fundamentais na preparação do ator.
Tanto Stanislavski, quanto Grotowski, por exemplo, buscavam em suas estratégias de preparação,
afastar o ator da consciência analítica que se manifesta numa mente discursiva e fria que bloqueia a facul-
dade de adaptação e invenção própria do corpo em ação, segundo Nunes (2009). A autora fala em criar
condições de “silêncio” de modo que pensar se torna agir e vice-versa.

Pode-se pensar não na ausência de consciência, mas num tipo de consciência “pré-reflexiva”,
mais imediata e menos mediada por verbalizações internas, e distribuída no organismo como
um todo. O corpo, neste sentido, não é um objeto técnico, mas um estar no mundo.29

Esta perspectiva de corpo no âmbito das práticas corporais para preparação de performers leva a uma
mudança de paradigma que passa a entender o corpo como conhecimento ao invés de se pensar em
conhecimentos sobre o corpo. Nesse sentido, o trabalho através desta “consciência pré-reflexiva”, que
remete a metáfora do “corpo mágico” e ao estado de fluxo30, sugerem um lugar de pesquisa prática rela-
cionada com a experiência de uma qualidade de atenção e presença na qual a comunicação e as relações
dialógicas se estabelecem menos pelos códigos de linguagem e mais pela transmissão de uma carga sensí-
vel que gera um ciclo de afetos ou afeições31 entre sujeito e sujeito e sujeito e objetos de atenção.
No versante da criação cênica, partindo das mesmas estruturas de movimentos, operou-se inicialmen-
te na neutralização das sequências de Passes Mágicos, isto é, na retirada de toda e qualquer qualidade de
movimento e a regularização da respiração, executando-as como partituras de movimentos. Também
foram trabalhadas neste mesmo sentido a criação de partituras de movimento a partir de exercícios com
o bastão e em duplas. O mesmo procedimento foi aplicado neste exercício, antes removendo o objeto e,
contemporâneamente, fixando as sequencias agora individuais.

28
Esta anotação foi extraída dos diários de bordo da atriz e pesquisadora Márcia Chiamulera.
29
NUNES, Sandra Mayer. As Metáforas do Corpo em Cena. São Paulo: Annablume, 2009, p. 177
30
A metáfora do corpo mágicocomopresençaconsciênte no trabalho do performer e o estado de fluxocomoqua-
lidade de atenção resultante do treinamentopsicofísico a partir de práticasdiversas, entreelasospassesmágicosabor-
dadosnesteartigo, sãotemastratados pelo pesquisador Leonel Henckes em sua pesquisa de mestradodesenvolvida
no PPGAC/UFBA. HENCKES, Leonel. Corpo fora do lugar: movimento fluxo e desordem entre treinamento
psicofísico e construção cênica. Salvador/BA: E-livro. EDUFBA, 2015. Disponível em: http://repositorio.ufba.
br/ri/handle/ri/18031
31
A teoria dos afetos (AffektTheory) é abordada na filosofia e por pesquisadores das artes performativas com diferen-
tes definições e entendimentos. Tomamos aqui a perspectiva pioneira de Spinoza em sua obra “Ética” que entende o
afeto como as afecções do corpo que aumenta e diminui a potencia de agir desse corpo. Nesse caso, Spinoza entende
que as afecções são o corpo sendo afetado pelo mundo, o encontro entre dois corpos, corpos que se relacionam e
são afetados um pelo outro. Ademais, tomamos o entendimento do pesquisador alemão Hans-Dieter Ernst que
define o conceito de Affektcomo “uma qualidade de relação entre percepção e ação.” (ERNST, 2012, p. 16)
158 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Uma vez fixadas em seus mínimos detalhes, as partituras foram experimentadas a partir de “qualidades
de movimento”. À diferença das qualidades de movimento pré-estabelecidas por Laban, as qualidade de
movimento elencadas e sugeridas pelo professor Paulo Márcio, incluem voz/sons, máscara, mãos (mu-
dras) e posições diferenciadas dos pés e qualidade de ataque e defesa. Além destas, utilizamos as seguintes
qualidades, descritas em pares opositivos: força / suavidade; expanção / contração; lento / rápido; peso
/ leveza; e ainda: deslocamentos, ondulação, saltos, repetição, elástico.
Com estas variantes ou possibilidades, passamos a experimentar as sequencias de movimento que
estavam já gravadas no corpo e, aos poucos, passamos a jogar com os movimentos, desconstruindo-os,
alterando a sequência, selecionando fragmentos, trabalhando com diferentes qualidades para cada parte
do corpo e/ou diferente movimento/qualidade em cada parte do corpo.
Esta etapa de criação, como sabemos, não é totalmente desconhecida dos processos de criação cênica.
O diferencial neste caso, acreditamos, esteja ligado diretamente ao tipo de movimento. Além disso, pode-
-se destacar o fluxo de criação que, de certo modo, ainda se conectava à memória corporal, ou seja, uma
memória que trazia à tona inevitavelmente um fluxo de trabalho igual ou muito próximo àquele descrito
no diário de bordo, após a prática dos Passes Mágicos, o de uma sensação de ‘vazio’.
Ao desenvolver este trabalho, utilizamos o termo “ator-guerreiro” para referirmo-nos ao ator com a
diferenciação que buscávamos. Neste ponto percebemos outro fator em comum entre as práticas descri-
tas e o trabalho do ator, sendo que, para este último, a atenção, a concentração e o silêncio interior podem
ser considerados estados particulares de seu trabalho. O silêncio interior, portanto, um estado buscado
através da prática de tensegridade, e por outras técnicas, dentre as quais a meditação, nos permitiu cons-
tatar a validade de tais procedimentos e assegurando, inclusive, uma validade à noção de Ator-guerreiro.
De igual modo, o processo de pesquisa e seus resultantes nos confirmaram não apenas a eficácia quer
corporal, quer simbólica de tais técnicas, mas nos permitiram uma aproximação e ressignificação de no-
ções quais “desnudamento” e “descondicionamento” (Grotowski), “despejar os inqulinos” (Decroux) ou
“criar o vazio” (Dasté).
Ao longo do período de desenvolvimento da pesquisa, o Grupo de Pesquisa em Teatro “Vagabundos
do Infinito” criou 4 espetáculos-solo (“Horla”, “A Super Mãe Porra Louca”, “Temos Todas a Mesma
História” e “Através do Espelho”) estreados no ano de 2007 no Teatro Caixa Preta da Universidade
Federal de Santa Maria – RS. Também, foram montados dois espetáculos coletivos (“Noites em Claro”
e “Vida Acordada”), ambos com direção de Paulo Márcio, coordenador do projeto. As obras foram
apresentadas em Santa Maria/RS e Porto Alegre/RS. Duas delas (“A Super Mãe Porra Louca” e “Temos
Todas a Mesma História”), circularam por cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo
realizando temporadas e participando de festivais de teatro.
A pesquisa, coordenada pelo Prof. Paulo Márcio e registrada como projeto de ensino, pesquisa e
extensão do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria, gerou, também,
4 monografias de conclusão de curso de Bacharelado em Artes Cênicas – Interpretação Teatral com
pesquisas individuais, derivadas do projeto geral, comunicadas e publicadas em anais de congressos e
encontros nacionais de pesquisa.
Ainda que não possamos assegurar a igualdade do efeito da prática de tensegridade às noções acima
nominadas, senão através da literatura (já que o mais próximo que podemos atualmente é trabalhar com
discípulos daqueles mestres citados), podemos recorrer às marcas de uma experiência vívida e que, de
certo modo e não obstante o tempo, ainda está gravada em nossos corpos/mentes.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 159


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160 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


INTERFACES COM O GRUPO
ANTAGON: INFLUÊNCIAS DA
CORPORALIDADE EM CENA NO
BAIXO SUL DA BAHIA

Marilia Galvão Costa1


Universidade Federal da Bahia
senhoradosventos@gmail.com

RESUMO: A pesquisa procura estudar a relação entre o corpo e a convivência cultural colaborativa
a partir do intercâmbio artístico entre o Grupo Antagon e a comunidade de Camamu do Baixo Sul na
Bahia. Verificando o olhar da cultura local, no intuito de entender a corporalidade nos processos criativos
quando aplicados na encenação do espetáculo Porto dos Sonhos no projeto Escuna Criativa do Grupo
alemão Antagon. Seguindo o estudo no processo de construção e composição da corporalidade do grupo
Antagon e da troca com a comunidade de Camamu. Num espetáculo que trata de um espaço conhecido
pelos aventureiros como ponto de encontro entre a esperança e a igualdade, traz a imagem de um Barco
que surge e com ele vestígios de um passado em diálogo com a esperança de um futuro melhor.

Palavras-chave: Corporalidade; Convivência; Intercâmbio; Cultura.

ABSTRACT: The research aims to study the relationship between the body and collaborative cultural
coexistence from the artistic exchange between Antagon Group and Camamu community of the Lower
South Bahia. Checking the look of the local culture in order to understand the physicality in the creative
process when applied in the spectacle staging Port of Dreams project in the German schooner Creative
Group Antagon . Following the study in the construction process and composition of the corporeality
of Antagon group and exchange with the Camamu community. A show that is a space known for adven-
turous as a meeting point between hope and equality , bears the image of a boat comes and with it traces
of a past in dialogue with the hope of a better future.

Keywords: Corporeal ; Coexistence ; Exchange; Culture

1
Licenciada em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Aluna especial na Disciplina Saltimbancos Urbanos
pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 161
INTRODUÇÃO

A intensa experiência como coreografa, atriz e diretora geram imenso prazer e eterna curiosidade.
Essa curiosidade toma maior corpo no encontro da disciplina de etnocenologia na Universidade Federal
da Bahia UFBA-PPGAC com o saudoso Dr. Armindo Bião, como aluna especial no final da graduação
em Licenciatura em Dança. Passei a infância brincando em colônia de pescas a beira mar, pois também
tinha referencia familiar nessa atividade.
O desejo nesse artigo na pesquisa em curso inicial é de levantar a relação entre o corpo e a convivência
artística educativa e cultural, a partir do intercâmbio artístico entre o Grupo Antagon e a comunidade de
Camamu do Baixo Sul na Bahia. Verificando o olhar da cultura local, no intuito de entender a corporali-
dade nos processos criativos quando aplicados na encenação do espetáculo Porto dos Sonhos no projeto
Escuna Criativa do Grupo alemão Antagon. O grupo Antagon Teatro Ação, foi fundado em 1990 por
Bernhard Bub e tem influências do Butho, Grotowski e Eugenio Barba. Nas criações do grupo, vida e
trabalho estão intimamente ligados: as pessoas trabalham e vivem juntas em uma comunidade organi-
zada em Frankfurt em Main - Alemanha recebe artistas do mundo todo, como também o grupo viaja e
se instala por períodos para trocas culturais e criações artísticas, apresenta suas produções em espaços
públicos (uma das marcas do grupo) há 26 anos percorrendo o mundo. O grupo busca encontrar as raízes
ritualísticas das artes cênicas, através de uma pesquisa que envolve o teatro físico com foco na expressão
corporal e o uso de espaços urbanos não convencionais para exposição de temas que tocam a realidade
social atual.
O projeto Escuna Criativa tem em sua realização, a parceria do Grupo Antagon e o grupo Soteropo-
litano Vila Vox. É resultado de um mapeamento anterior pelo Projeto Baixo Sul em cena que promoveu
intercâmbios entre jovens artistas do território de Valença em 2011e 2014.
O Projeto Escuna Criativa traz um barco construído tipo escuna de 28 metros na região de Camamu,
litoral baixo Sul da Bahia com o objetivo de circular com artistas pela costa brasileira realizando oficinas,
performances, espetáculos, encontros temáticos, ações educativas que fomentam o desenvolvimento só-
cio cultural da população. Uma população no qual o artesanato é uma forte característica de produção e
comércio.
Num período de quatro anos o processo criativo foi construído através da coletividade, oficineiros e
participantes conviveram juntos dentro de uma área de construção de barcos artesanais no Distrito de
Cajaíba do Sul.
O teatro está totalmente ligado ao processo de democratização. A etimologia da palavra vem do grego
e significa ‘local de se ver’, um espaço público onde se podem revelar e discutir as questões essenciais da
vida e preparar a pessoa para desenvolver reflexões, questionamentos exercendo seus direitos e deveres
de cidadão. A relação do humano na prática teatral é tão profunda que a própria palavra pessoa vem de
‘persona’, cujo significado é a máscara grega usada pelo ator. (ROSENBERG, 2001).
Ao perceber o corpo na dança verifica-se que a dança popular é uma linguagem corporal que se utiliza
do movimento e de ações corporais, a partir de uma técnica estabelecida pela cultura, tornando-se espe-
cífica e singular, pois retrata os costumes e determinadas maneiras que fazem parte do contexto históri-
co-sócio-cultural das pessoas que a praticam. O espetacular está presente na espontaneidade e no modo
com que os brincantes participam de suas práticas seja para homenagear, celebrar ou agradecer, onde o
canto, a música, o movimento e o gestual encontram-se interligados. A dimensão espetacular presente
nos movimentos executados pelos brincantes é clarificada pelo conceito de Pradier (apud GREINER;
BIÃO, 1999, p. 24), que diz que espetacular é a: “forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de
agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais
do cotidiano”.
A partir desse entendimento da espetacularidade, o interesse em pesquisar torna mais presente acerca
do grupo teatral alemão Antagon e seu intercâmbio artístico com a Comunidade do Baixo Sul em Cama-
162 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
mu na Bahia, verificando como se dá a troca de vivências cênicas e corpóreas numa interface de culturas
distintas.
Com o propósito de investigar as relações de comunicações e aprendizado no espetáculo Porto dos
Sonhos do Projeto Escuna Criativa do Grupo Antagon, apresento alguns questionamentos disparadores:
Como se revela no corpo em cena, a obra Porto dos Sonhos que tem como tema o mito da sociedade
igualitária e da democracia racial num barco. Qual o significado histórico cultural que um barco pode re-
presentar para a população da costa do dendê? Como esse elemento reverbera nos processos de constru-
ção das corporalidades no Projeto Escuna Criativa do grupo Antagon? Talvez não encontre a principio
da pesquisa em curso, as respostas, talvez até mesmo as perguntas se modifiquem no percurso.

Desenvolvimento

A cena contemporânea dos últimos decênios vivência um panorama de produção multiforme, mar-
cado pelo hibridismo, heterogeneidade, fragmentação e transversalidade de formas e discursos. Esse
caráter plural torna-se visível também nos modos de ação dos criadores e na oferta peculiarmente vasta
de técnicas e metodologias de trabalho tanto em processos e produtos artísticos.
Ao longo de todo o século XX, a reconsideração de certezas (FÉRAL, 2004) foi condição vivenciada por
todas as artes do espetáculo que, perdendo suas evidências, foram forçadas a se redefinirem. Tendo como
mais recuados acontecimentos as intervenções multidisciplinares das vanguardas estéticas do início do
século XX, novas formas de escrita cênica, marcadamente fronteiriças e mutantes, não cessaram de se
desdobrar num sem-número de experiências na cena contemporânea.
Assim, se a transgressão de fronteiras não é fato recente, a fluidez e insistência com que as artes da
cena a vem efetuando é, no entanto, fenômeno que merece destaque e, sobretudo, investigação. Por isso
o interesse investigativo no grupo alemão Antagon Theater AKtion, um grupo independente de teatro
performático para espaços públicos como já mencionado. Um teatro dos novos tempos, na trilha das
origens do teatro tradicional esquecido. O grupo recebe artistas do mundo todo, como também o grupo
viaja e se instala por períodos para trocas culturais e criações cênicas em comunidades a exemplo do Pro-
jeto Escuna Criativa no litoral baiano em Camamu. Fora da lógica convencional da encenação textual que
ocorre a partir da palavra, o Grupo Antagon explora a linguagem corporal como forma de comunicação.
Traçar uma análise investigativa dos processos de construção desse grupo dilata o olhar no estudo
das corporalidades da dimensão cênica em espaços não convencionais construída pelo grupo Antagon,
realizando oficinas e encenações com intercâmbio artístico de relações cênicas corporais e apresentações
em todo litoral. Camamu é uma das mais antigas cidades brasileiras, inicialmente a região era habitada por
índios Macamamus, a sua origem remonta a 1560 quando jesuítas ergueram a capela de Nossa Senhora
de Assunção de Macamamu dando origem a aldeia. Em 1693 a aldeia foi elevada a condição de vila e
recebeu o nome de Camamu. E elevada a condição de Cidade em 1891. Hoje uma das principais fontes
de comercio é o turismo e o artesanato, barcos artesanais são construídos na costa dos pescadores. A
principal atividade é a pesca de subsistência, realizada de forma artesanal.
Entre os bens associados aos manguezais do Sul da Bahia, destacam-se os recursos pesqueiros (Field-
man, 2001). O uso destes é realizado, basicamente, por dois grupos de pessoas: um formado por aqueles
que desenvolvem atividades de pesca como profissão e, o outro, composto por aqueles que encontram
nessa atividade fonte alternativa de subsistência, porém de importância significativa.
Diante da importância do intercâmbio com a proposta da Escuna Criativa como transgressão de
fronteiras na encenação dos interpretes do corpo, observo a necessidade de tornar mais inteligíveis as
fronteiras entre objeto e corpo, estimulando o debate sobre a corporalidade nas construções compartilha-
das, contribuindo para o olhar critico e compreensivo nas perspectivas do fazer teatral que contemplem a
construção colaborativa na interculturalidade e problematizem discursos que patrocinam alguns centros
de produção artística.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 163
A ponte do oprimido: uma conexão Freire-Boal

Buscando os autores Augusto Boal (2005, 2009) e Paulo Freire (1987), percebe-se conexões teórico-
-politicas e sociais a respeito de oprimidos e opressores.
Partindo do princípio que a linguagem teatral é uma linguagem utilizada pelos indivíduos, no seu dia a dia,
todos podem desenvolvê-la e fazer teatro, ampliando as suas possibilidades de expressão e atuação social.
A ‘Árvore do Teatro do Oprimido’ é um recurso imagético importante para se perceber a pluralidade
de técnicas e a riqueza enquanto metodologia de libertação. Cada ramo da árvore corresponde a uma
técnica desenvolvida pelo autor. Os jogos e exercícios de ativação sensorial e desmecanização do corpo,
fazem parte dos ramos desta árvore e cada um serve funções concretas. A seiva que alimenta a árvore é
a Estética do Oprimido e no seu topo temos a promoção de ações sociais concretas e continuadas – a
transformação da realidade.
O Teatro do Oprimido assenta em três grandes princípios, que são as suas propostas mais fortes: a
reapropriação dos meios de produção teatral pelos oprimidos, a quebra da quarta parede que separa o
público dos atores e a insuficiência do teatro para a transformação social, isto é, a necessidade de ele se
integrar num trabalho social e político mais amplo.
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, com dois momentos: Um, em
que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão se comprometendo, na pratica, com a sua
transformação; e outro, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do opri-
mido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.

Conclusão

Ao analisar atividades artísticas de troca e intercâmbio entre cultura distintas amplio o olhar em ob-
servar nessa rede, o âmbito sócio, educativo cultural que se constrói ao longo desse processo. Trazer a
Pedagogia do oprimido na relação do Antagon e a Comunidade de Camamu numa construção coletiva
do espetáculo Porto dos sonhos que retrata a realidade da região litorânea da costa do Dendê é desvelar
e expandir o ser na sua totalidade e na sua relação de troca em estar a serviço da própria transformação.
Tecendo redes de construções de dramaturgias a partir da leitura das corporalidades que se estabelece
no uso de técnicas de teatro fisico de rua, dinamizado por um grupo alemão para comunidade baiana.
Observo a importância de se investigar durante o percursso, quais as maneiras que a etnocenologia e a
pedagogia podem auxiliar a pesquisa, a partir das orientações teóricas e metodológicas que ela aponta: a
união de teoria e prática, criação e crítica, estranhamento e distanciamento; a análise que surge da refle-
xão sobre a diversidade cultural dos diversos grupamentos humanos e as potencialidades expressivas que
deles podem emergir, sempre observando o combate ao etnocentrismo.

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ção de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HALL, Edward T. A dimensão oculta. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”. In: A Interpretação
das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
BIÃO, Armindo ; GREINER, Christine, (Orgs.). Etnocenologia: Textos Selecionados. São Paulo: Anna-
blume, 1998, 24p.
ROZEMBERG; Educação com Exercício da Diversidade: Coleção Educação para Todos. Brasília, 2004.

Anexos

Escuna Criativa Baixo Sul - Bahia

Oficinas de Dança e Teatro com a comunidade e o grupo Antagon em Camamu- Bahia

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 165


Espetáculo Porto dos Sonhos Baixo Sul -Bahia

Espetáculo Porto dos Sonhos Baixo Sul- Bahia

166 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


GUARDA-ROUPA ENCANTADO:
ESPETACULARIDADE DAS
ROUPAS DE CABOCA DO
TERREIRO ESTANDARTE DE
REI SEBASTIÃO, OUTEIRO, PARÁ
WARDROBE CHARMED: SPECTACULAR YARD OF
THE CABOCA CLOTHING SEBASTIÃO KING BANNER,
OUTEIRO, PARÁ
Otávia Feio Castro1
Universidade Federal do Pará
otavia.feio@gmail.com

RESUMO: Além de contribuir para os estudos Etnocenológicos na Amazônia, acredito que esta pesquisa
contribui para que nós Figurinistas escutemos o chamado da Etnocenologia, o de estar junto com o fenô-
meno, o de ir e viver como espectador o contexto de uso das roupas, para não incorrer em desrespeitos ao
sagrado. Partindo de costuras afetuais entre trajeto e objeto – em andamento no Ppgartes da Ufpa – estuda
a espetacularidade das roupas das entidades Herondina e Maria Légua, do panteão da religião afro-brasi-
leira Tambor de Mina. Utilizadas pela mãe-de-santo e zeladora do Terreiro Estandarte de Rei Sebastião
– localizado na Ilha de Outeiro, no Pará – nos dias das festas para essas entidades denominadas Cabocas,
as roupas contribuem para a espetacularidade, pois há toda uma organização prévia, inclusive em relação a
escolha do que vestir nesses dias especiais para os que estão dando passagem às suas entidades.

Palavras-chave: Roupa de Caboca. Espetacularidade. Tambor de Mina. Etnocenologia.

ABSTRACT: Besides contributing to the Etnocenológicos studies in the Amazon, I believe that this
research contributes to us Costume Designers listen to the call of Etnocenologia, the living with the phe-
nomenon, to go and live as a spectator the context of use of the clothes, not to incur in disrespect to the
sacred. Starting from afetuais seams between path and object - in progress in Ppgartes UFPA - studying
the spectacle of the clothes of Herondina entities and Maria Légua, the pantheon of african-Brazilian
religion Drum of Mine. Used by the mother-of-saint and caretaker yard Banner King Sebastian - located
in Outeiro Island, in Pará - in the days of holidays for these entities called Cabocas, clothes contribute
to the spectacular because there is a whole prior organization, including regarding the choice of what to
wear these special days for those who are giving way to their bodies.

Keywords: Caboca Clothes. Spectacular. Drum of Mine. Etnocenologia.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará, com bolsa CAPES. Dis-
cente do Curso Técnico em Cenografia da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Participante do grupo de pesquisa
TAMBOR - Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia, da UFPA. Figurinista formada na ETDUFPA.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 167
INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultante e também ampliação da Comunicação apresentada no dia 14 de abril


de 2016 – durante o I Encontro Nacional de Etnocenologia: o Estado da Arte – na mesa Etnocenologia:
Espetacularidade dos Objetos Cênicos, coordenada pelo Professor Lindolfo do Amaral.
A comunicação e agora o presente artigo são desdobramentos da pesquisa em fase de finalização no
Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará, a qual
objetivou compreender a espetacularidade das roupas utilizadas pela mãe-de-santo e zeladora do Terreiro
Estandarte de Rei Sebastião, localizado na Ilha de Outeiro em Belém do Pará. Neste terreiro de Tambor
de Mina, as roupas em questão são utilizadas nos rituais públicos, nos dias em que se realizam festas para
as entidades Herondina e Maria Légua, as quais são respectivamente Chefa e Contra-chefa da mãe-de-
-santo Mariinha de Jesus Costa Feio, que é minha Tia.
O Tambor de Mina é uma religião de matriz africana que teve seu desenvolvimento no Maranhão,
através dos negros que foram trazidos ao Brasil para serem escravizados no século XIX, a Mina “tem na
incorporação uma forma sensível de comunicação com o sobrenatural e, no contato direto entre filho
e pai ou mãe-de-santo [...].” (FERRETTI, 1985, p. 37). E chega em terras paraenses através de fluxos
migratórios – tanto de vinda quanto de ida – conforme Luca (2010), os religiosos maranhenses vêm para
Belém atraídos pela economia gomífera, assim como, entre as décadas 70 e 80 do século XX, alguns reli-
giosos paraenses foram até o Maranhão, em busca de iniciação na religião.
No entanto, é importante frisar que embora tenha ocorrido esse fluxo entre os estados, a Mina para-
ense e a Mina maranhense se aproximam e se distanciam, assim como os Terreiros de Mina da cidade de
Belém que não são homogêneos, o que me leva na condição de pesquisadora atentar o leitor para o fato
de que o discorrido aqui pertence a realidade vivenciada junto ao Terreiro Estandarte de Rei Sebastião,
o que não quer dizer que seja a mesma realidade que possa vir a ser encontrada nos demais Terreiros de
Mina de Outeiro ou de Belém.
Ainda de acordo com Luca (2010, p. 66) o que é comum a todas as Casas “é a presença das mesmas
categorias de entidades. O panteão cultuado é construído a partir de um imaginário comum perpassado
por um elemento chave que é a mestiçagem”. Para esta pesquisa, se incorpora a divisão por ela apresenta-
da do panteão mineiro paraense, dividido em duas categorias: Divindades e Encantados, estas categorias
também se dividem: Divindades são os Voduns (associados a ancestrais negros) e os Orixás (representam
as forças da natureza, antigos reis ou heróis divinizados), e os Encantados são os Nobres Gentis Nagôs
ou Senhores de Toalha (correspondem à nobreza europeia) e Cabocos (entidades mestiças de várias na-
cionalidades). Encantados são – na maioria – descritos “como seres (pessoas, bichos) que tiveram vida,
mas que não passaram pela experiência da morte [...]” e habitam as Encantarias localizadas “em lugares
geográficos específicos, como matas, rios, praias, formações rochosas” (LUCA, 2010, p. 67)
Por esta pesquisa estar assentada na Etnocenologia, procurei na medida do possível usar o dialeto ou-
vido nas festas, como o caso da palavra Caboco, em que a grafia original é Caboclo, mas que os religiosos
chamam de Caboco, por isso em vez de falar aqui de Roupas de Cabocla, estou falando em Roupas de
Caboca.
Os Cabocos, subcategoria a qual pertencem Dona Herondina e Dona Maria Légua se organizam em
famílias (codoenses, juremeiros, surrupiras, turcos e bandeirantes), é importante salientar que os Cabocos
têm a mobilidade entre as famílias, Dona Herondina é geralmente associada à família dos turcos e Dona
Maria Légua à família dos codoenses, o que pode se diferenciar de acordo com a versão dos religiosos.
Assim como os mineiros dão passagem a suas entidades nos momentos de transe, acredito que os
que como eu escolhem falar – no universo acadêmico – sobre algo relacionado a essa prática religiosa,
também estão dando passagem, só que nossa incorporação é através de nossa escrita (como este texto) e
nas exposições orais (como foi o caso da Comunicação).
Portanto, é hora de dar passagem.
168 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
HORA DE DAR PASSAGEM

As relações de trajeto-afeto-objeto que me costuram à esta pesquisa são de ordem familiar e artística.
Familiar tanto pelo fato de Mariinha ser minha tia, como familiar pelo fato de o Universo de estados alte-
rados de consciência estar presente em minha vida desde meu primeiro dia da atual existência, pois apesar
de não ser praticante da religião, convivi e convivo com muitas pessoas que carregam os seres invisíveis
consigo e que ou em Terreiros ou em suas próprias casas dão passagem para estes. E a ordem artística se
dá pelo fato de quando criança ter ganhado uma porção de miçangas que vieram do Terreiro que hoje é
o local onde desenvolvo a pesquisa e foram essas miçangas que despertaram em mim a criação artística e
me deram noção de cores e formas, e meu encontro com essas miçangas desembocam no que sou hoje,
uma Figurinista que se inquietou quando viu e vestiu as roupas de Mariinha pela primeira vez.
As roupas desta pesquisa são utilizadas por Mariinha nos dias em que realiza festas para celebrar suas
Cabocas. Assisti a duas festas no ano de 2015: em agosto se realizou a de Dona Herondina e em dezem-
bro se realizou a de Dona Maria Légua. Para tanto, por opção pessoal não tirei fotos da mãe-de-santo
incorporada, até porque em conversa informal ela já havia me dito que suas Cabocas geralmente não
apareciam nas fotos, então por isso, por sugestão dela, as fotos com as roupas seriam feitas comigo as
vestindo, pois segundo ela não haveria problema.
Optei para este artigo trazer apenas uma roupa, a que foi utilizada no dia 05 de dezembro de 2015.
Esta mesma roupa já havia sido utilizada em festa anterior e foi utilizada novamente.

Fotografia 1: Roupa de Maria Légua


Fonte: acervo pessoal (2015).
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 169
Segundo Mariinha, a roupa de Maria Légua é sempre marrom e tem que ser de tecido leve, pois a Ca-
boca não gosta de tecidos pesados e nem muitos acessórios como lenços e sandálias, geralmente usa um
chapéu mais rústico, como este da imagem. No entanto, na festa em que tive a oportunidade de participar,
Maria Légua não ficou por muito tempo com o chapéu, pois era bem agitada, andava apressada de um
canto a outro do Salão de Bailar.
A roupa acima parecia ser do agrado de Maria, pois a leveza do tecido permitia que ela bailasse e
andasse pelo salão em um ritmo acelerado. Talvez um tecido pesado dificultasse seu bailado. Mas com
esta roupa, podíamos embalados pelas doutrinas entoadas, acompanhar a Caboca, que comumente é as-
sociada à família dos Codoenses, os quais “representam a imagem do negro que vigora no Pensamento
Social Brasileiro do século XIX” (LUCA, 2010, p. 70), e possuem forte ligação com gado, tanto é que as
doutrinas desta família falam “de sela, do ato de laçar boi e outras atividades desse gênero” (idem).
Partindo do léxico proposto por Bião (2007, p. 44), espetacularidade seria quando o indivíduo tem a
consciência mais clara do olhar do outro e para isso se organiza. No caso das festas de Mina, tudo é or-
ganizado pela mãe-de-santo e zeladora do Terreiro de maneira consciente: as cores da decoração (faixas
e balões), as comidas e bebidas, assim como as oferendas feitas à entidade festejada naquele dia, e nesta
organização incluo a roupa que será utilizada para receber a Caboca. A espetacularidade contribui para
a manutenção viva da cultura, sendo inerente a cada uma “que a codifica e transmite” mantendo assim
“uma espécie de respiração coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas envolvidas pos-
sa se tratar de um hábito cotidiano”, nesse caso, o ambiente terreiro é algo cotidiano para os praticantes,
ainda mais, quando estes moram ao lado do espaço, como é o caso da Mariinha. No entanto, não é coti-
diano o uso das roupas que nem a da foto.
A feitura das roupas, conforme meu entendimento, atende ao Mito relacionado a determinada Cabo-
ca: sua forma de encante, o que fazia antes de ter se Encantado, como se comporta quando está no corpo
de seu filho, o que a mãe-de-santo conhece a respeito das entidades, pois só quem dá a passagem, ou seja,
só o praticante, sabe o que pode agradar ou desagradar, como no caso, a ausência de acessórios por parte
da Mãe nesse dia, a leveza do tecido, a discrição das rendas. Tudo previamente organizado.
Em situações do cotidiano, ou de Teatralidade, quando não tem a noção tão clara a respeito do olhar
do outro, Mariinha gosta de usar cores vibrantes, calças coladas, brincos, pulseiras e colares. Mas em dias
de Festa se organiza tanto para os que com ela bailam, como para os visitantes não-praticantes, e para
sua Caboca.
O encontro com essas roupas foi uma experiência estética que me rasgou o cotidiano, por me instigar
a mergulhar na Mina, com vistas a compreender o processo de criação daquelas roupas que me tocaram
quando as toquei, pois enquanto experiência estética as roupas nos fazem experimentar “um inevitável
colapso, isso porque o sujeito que éramos foi desacomodado daquele lugar que costumava habitar.”
(PRECIOSA, 2007, p. 65).
Deste desassossego por querer compreender as roupas, tenho refletido sobre a importância da Etno-
cenologia para o fazer daqueles que trabalham com roupas, em especial a nós Figurinistas, pois muitas
vezes somos chamados a propor roupas religiosas para serem usadas em seu contexto efetivo como o
Terreiro. Mas também somos chamados a propor figurinos que remetam à determinada religião para al-
guma cena teatral ou em âmbito audiovisual, neste caso a roupa de Caboca se transmuta em Figurino, e é
importante se ter a noção de que a mãe-de-santo, que em situação cênica é personagem, é uma figura que
é presente nas religiões de matriz africana e que estas não são homogêneas, assim como não é homogêneo
as vestimentas no interior das próprias religiões, como já disse sobre o Tambor.
É bom que nós atentemos para essa série de particularidades que envolve um sistema religioso, por
isso penso que o chamado da Etnocenologia, o de ir e viver junto ao fenômeno é uma coisa primordial
para o processo artístico dos Figurinistas, tanto para seu aprendizado, quanto para ser o porta-voz de
uma cultura, trazendo em seu trabalho, a sabedoria dos praticantes, com o intuito de preservação e ma-
nutenção de uma cultura, assim como respeito a ela, produzindo “formas e teorias capazes de desvelar a
170 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
diversidade das práticas espetaculares contemporâneas, reconhecendo valores e a originalidade deles na
produção do conhecimento simbólico” (SANTA BRÍGIDA, 2007, p. 199).
Penso então que unindo Etnocenologia ao seu trabalho, o Figurinista pode pensar na existência de um
Figurinista-Etnocenológico, aquele que se deixa ir junto ao fenômeno, a fim de aprender e apreender com
ele, pois a profissão do Figurinista se caracteriza pela “interdisciplinaridade, pelo cruzamento de muitas
vozes” (ABRANTES, 2012, p. 79), e são essas muitas vozes que precisamos refletir em nosso trabalho,
aliando responsabilidade estética e ética junto às culturas que pesquisamos. A espetacularidade que en-
contro nas roupas de Caboca tem me ensinado a costurar essa Figurinista-Etnocenológica.

CONCLUSÃO

As vozes se calam, o som dos tambores cessa, as bebidas e cigarros findam, a casa volta para sua orga-
nização cotidiana, mas a roupa não é desfeita, fica ali guardada num simples baú de madeira, aliás, é uma
caixa a qual batizei de Baú e que agora chamo de Guarda-Roupa Encantado. Os Cabocos desencostam
e voltam para as suas moradas, deixando como testemunhas de suas passagens, aquelas roupas que vesti-
ram seus filhos no momento em que esses estavam em transe.
A Mina tem me ensinado sobre possibilidades, pois o que é visto ou vestido em um Terreiro de Mina,
pode não ser o mesmo do que é visto e vestido em uma mesma entidade de outro Terreiro de Mina.
Então, o apresentado por mim tanto na Comunicação como neste Artigo, é uma particularidade de onde
falo, do Terreiro Estandarte de Rei Sebastião, daquela Mãe que escolhe o que vestir, pois só ela sabe o que
vai agradar ou não as suas Cabocas.
Eis que chega a hora do desencosteiro da figurinista que agora se reconhece como Figurinista-Etno-
cenológica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANTES, Samuel. Diário do figurinista: o traje de cena. In: VIANA, Fausto; MUNIZ, Rosane (Orgs.).
Diário de Pesquisadores: Traje de Cena. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2012. p. 73-86.
BIÃO, Armindo. Um léxico para a Etnocenologia: Proposta Preliminar. In: BIÃO, Armindo (Org.). Anais
do V Colóquio Internacional de Etnocenologia. Salvador: Fast Design, 2007. p. 43-49.
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Gráficas do Estado – SIOGE, 1985.
LUCA, Taissa Tavernard de. “Tem branco na Guma”: a nobreza europeia montou corte na encantaria
mineira. 2010. 259f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
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PRECIOSA, Rosane. Produção estética: notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. 2. ed. São Paulo:
Editora Anhembi Morumbi, 2007.
SANTA BRIGIDA, Miguel. A Etnocenologia como desígnio de um novo caminho para a pesquisa aca-
dêmica – ampliação do modo e do lugar de olhar a cena contemporânea. In: BIÃO, Armindo. Anais do V
Colóquio Internacional de Etnocenologia. Salvador: Fast Design, 2007. p. 199-203.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 171


ARTISTA-ETNO-PESQUISADOR
E SUAS CONTRIBUIÇÕES
TEORICO-METODOLOGICAS
PARA O CORPO EM CAMPO
CABRAL, Rafael1
Universidade Federal do Pará
rafarcabral@hotmail.com

RESUMO: Este ensaio apresenta produções teórico-prática acerca da etnocenologia indígena no Estado
do Pará – Brasil. Neste sentido o corpo do artista da cena torna-se indissociável à produção acadêmico
e artística. Esta abordagem possui resultados teórico-metodológicas para o artista-etno-pesquisador em
campo e seu envolvimento do corpo metodologicamente ao estado da arte mergulhado na cosmovisão
indígena da etnia mebengokre.

Palavras-chave: Artista-etno-pesquisador; Estado da Arte; Etnocenologia; Mebengokre

ABSTRACT: This paper presents theoretical and practical productions about indigenous Ethnosceno-
logy in the State of Pará - Brazil. In this approach the artist’s body from the scene becomes inextricably
linked to academic and artistic production. This approach has theoretical and methodological results for
the field-ethno-researcher and artist involvement body methodologically the state of the art steeped in
indigenous worldview of Mebengokre ethnicity.

Keywords: Artist-ethno-researcher; State of art; Etnocenologia; Mebengokre

INTRODUÇÃO

O processo de colonização do Brasil existente até hoje, forja uma representatividade de lideranças
indígenas no panorama global que sobrepuja aspectos unívocos da vida indígena como: dança, canto,
pintura etc, universalizando assim, seus saberes e práticas culturais.
O processo de silenciamento étnico existente ao longo da história, faz com que matrizes culturais
indígenas fossem silenciadas. Conflitos agrários, étnicos e políticos, favorecem o processo de desapa-
recimento de matrizes indígenas. Neste movimento, aldeias pertencentes outrora à realidade ancestral
de suas matrizes culturais, deixam de lado, na maioria das vezes, suas crenças, hábitos e costumes, em
favor de práticas eurocêntricas, pressionando seus ethos na mudança de seus diferentes contextos para as
realidades no qual a cultura ocidental está inserida. É importante destacar que esta abordagem parte do
ponto do vista do contexto local situado no sul do Estado do Pará, entre aldeias pertencentes ao tronco
linguístico Jê de etnia Mebengokre, porém presente na questão indígena do Brasil.

1
Rafael Cabral é graduado em Teatro pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Filosofia da Educação
– UFPA. Mestrando em Artes – UFPa. Filiado ao Grupo de Pesquisa TAMBOR – UFPa. Bolsista CAPES.
172 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
A partir desse momento estaremos falando do contexto indígena no estado do Pará que apresenta
conflitos e processos de resistência e de políticas que acabam privilegiando atores ilícitos que corroboram
para o silenciamento à grupos indígenas. A questão indígena apresenta bastante complexidade em seus
contextos, onde cada etnia possui sua própria cosmovisão, criando aspectos que são peculiares à deter-
minados agrupamentos.
Aos praticantes dos fenômenos, é capaz, por meio das artes do corpo possibilitar experiências múl-
tiplas do contato dos próprios praticantes ou de experimentações artísticas que estejam ligadas à um
discurso de sobrevivência e reconhecimento étnico, entendendo não apenas o percurso criativo da obra
enquanto processo, mas da responsabilidade e troca com determinada cultura. Este contato possibilita
também a aproximação estética nesse percurso indissociável à teoria e a pratica em artes cênicas.
Quando pensamos na Etnocenologia indígena na Amazônia estamos buscando algo peculiar e diverso
presente em nossa corporeidade, em nosso contexto como amazônidas na diversidade étnica pertencen-
tes à múltiplos grupos indígenas habitantes no cenário paraense e brasileiro. Esta busca, parte também
por uma necessidade de reconhecimento por meio de práticas espetaculares indígenas no cotidiano de
nossas vidas.
A etnocenologia indígena na Amazônia tenta construir um diálogo corpo à corpo que se intensifica
a cada mergulho em campo. Este dialogo altera derivações e reflexões sobre posicionamentos éticos,
estéticos e políticos do qual um artista-etno-pesquisado necessita ter atenção ao compreender o fenôme-
no que está inserido e sua contribuição à produção do conhecimento cientifico e ao grupo no qual está
aproximado.
A compreensão da cosmovisão da etnia mebengokre veio a tona por meio do diálogo com as artes
cênicas, entendendo tensões existentes na vivencia dos processos criativos, onde fragmentos da cultura
brotam como forma de intuição e percepção da dimensão simbólica que mergulhamos nossos corpos.
A partir da experiência necessária em determinados contextos, o artista-etno-pesquisador incorpora ele-
mentos da vivencia em campo como discurso na construção da ações performativas.
Nós, artistas das artes cênicas, estamos vivenciando experiências que alteram consciente e inconscien-
temente nossos corpos para realizar determinadas atividades em nossos processos de criação, atentos à
determinadas funções biológicas, psicossomáticas e espirituais para adentrar um processo criativo em
decorrência da proposta em ação. O mergulho corporal em diferentes praticas culturais possibilitam a
“dilatação” de seu próprio corpo, percebendo o corpo como ficção, que altera seu modo de se relacionar
e de estar no mundo em diferentes contextos.
O artista-etno-pesquisador é um curioso nato, vivência, troca e mergulha corporalmente em contex-
tos diversos no objetivo de compreender como os corpos são organizados em seus diferentes contextos.
O corpo é ficção, apresenta-se em formas diversas e organizado para o olhar do outro, análogo ao seu
contexto especifico. Poderia dizer no contexto etnocenológico que o artista-etno-pesquisador é o etnoce-
nólogo. Porém nem todo etnocenólogo é um artista-etno-pesquisador, pois assim precisará em seu per-
curso dialogicamente relacionar, teoria e pratica, em seus mergulhos, emersões e proposições dialógicas,
alterando o corpo, espaço e tempo, criando metodologias por meio da experiência corporal no mergulho
em campo.
O artista-etno-pesquisador é um praticante e um vivenciador de diversos movimentos corporais que
o compõe ao longo de seu trajeto. Seu percurso de investigação traduz seu rigor cientifico em sua es-
crita, logica e deontológica, que desagua em suas publicações, sensibilizando por meio de suas artes em
diferentes contextos à diferentes testemunhas. Assim, trazendo preponderantemente ao corpo e a escrita
proposições teórico-metodológicas na intuição artística dos contatos afetuosos em campo, aterrizados
na escrita.
Os procedimentos artísticos e científicos que brotaram ao longo desses últimos anos de investigação
e reconhecimento como indígena e amazônida, tiveram um papel fundamental para o autoconhecimento
e reconhecimento étnico. Assim, fortalecendo meu discurso como descendente indígena no ativismo
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 173
etnocenológico na Amazônia por meio de financiamentos de projetos culturais, escritos juntamente com
indígenas, favorecendo o intercâmbio de práticas espetaculares em espaços de difusão cultural, assim
como, publicações em revistas cientificas e apresentação de experimentos performativos. Esse movi-
mento possibilita uma teia de sentidos para entender a responsabilidade e a troca afetuosa necessária no
trabalho com comunidades indígenas.
Este percurso acompanha o momento de crise e virada epistemológica que estamos vivenciando na
academia no reflexo da vida, onde as comunidades até então “analisadas” por pesquisadores, propõe e
constroem epistemologias de seus próprios contextos.
Neste esforço labaniano irei apresentar a partir desse momento alguns trabalhos importantes para
mim em meu trajeto artístico-cientifico à luz da etnocenologia indígena na Amazônia realizados na Uni-
versidade Federal do Pará, alguns publicados e outros em processo de publicação acadêmica, mostrando
reflexões e proposições teórico-metodológicas que serviram de base para compreender aspectos da com-
preensão da corpografia2 em campo, construção autoral a partir do mergulho etnocenológico em aldeias
indígenas. Promovendo percepções e recepções únicas como artista-etno-pesquisador mergulhado cor-
poralmente/metodologicamente na cosmovisão indígena Mebengokre.

DESENVOLVIMENTO

A indissociação entre teoria e pratica constrói dimensões éticas, estéticas e políticas em minhas propo-
sições nas artes no trajeto cultural que me encontro. Tais proposições construo ao longo de meus contatos
com os parentes mebengokre em ações performativas aproximados ao contexto global, criando reflexões
em nossas formas de sentir o mundo ocidental e se reconhecer como indígena. Este movimento propor-
ciona um reconhecimento e a valorização de seus modos peculiares sendo únicos, criando assim resistên-
cias do modo de se apresentar ao olhar do outro sem sobrepujar ou se envergonhar de seus contextos.
Assim tentarei descrever ações que ocorreram em diferentes espaços que entrecruzam nas escritas e
em ações artísticas e educativas: Assim, a criação da noção de treinamento corporal para atores a partir
de quadro pinturas corporais indígenas (karpran ok, pintura de jabuti; krori ok, pintura de onça; kukoj
ok, pintura de macaco, akrê ok, pintura de gavião) me ajudaram a compreender a relação mítica e mística
existente na reiteração dos comportamentos animais vivido nas aldeias. As pinturas corporais comunicam
mensagens escritas no corpo, simbolicamente. Essa função está escrita no corpo indígena que altera seu
personagem social para viver outro, enquanto a pintura está em seu corpo.
A partir da ideia, inicialmente dos fatores labanianos, destacamos qualidades de movimento presentes
em determinados corpos, percebendo assim tensões existentes com a qualidade de movimento animal,
importante para criar noção de corpo, comunicação, espaço/tempo, possibilitando artistas do corpo ao
mergulho na dimensão simbólica indígena.
O corpografismo3 apareceu no mergulho metodologicamente da imersão corporal em campo, tornando-
-se um procedimento metodológico de tradução artística na tríade “pintura corporal – animal – qualidade
de movimento”, favorecendo assim a compreensão do modo de conversão para uma abordagem didática

2
Como a etnografia, a corpografia possui uma linha ainda em construção, propondo assim uma abordagem
onde corpo é o centro de reflexão e proposição teórico-prática e teórico-metodológica. Esta proposição parte da
reflexão de Lux Vidal na obra “Grafismo Indigenas: Antropologia Estética” – 1992, sobre corpografismo: corpo-
-forma plástica; grafismo-comunicação visual. Assim entendendo o corpografismo como processo metodológico
constituinte de uma abordagem corpografica.
3
A partir da proposição de Lux Vidal, 1992, corpo-forma plástica, grafismo-comunicação visual, proponho no trabalho
de conclusão de curso em teatro na universidade federal do Pará o termo corpografismo. Entendendo assim a comu-
nicação visual a partir do corpo na compreensão das pinturas corporais traduzidas em movimento ao treinamento
corporal ao final da graduação em teatro – 2013.
174 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
corporal de aspectos do corpo da vida indígena. Assim, representado pela ideia que nos tomou sobre
a dimensão simbólica existente nos grafismos indígenas da etnia mebengokre localizada no sul do Pará
(CABRAL 2013).
Este trabalho teve desdobramentos em escolas da rede pública do Estado do Pará no objetivo de levar
o ensino da cultura indígena e especificamente da cosmovisão da etnia Mebengokre à espaços do ensino
regular, proporcionando a vivencia do corpo, inseridos no contexto étnico em aproximação aos conteú-
dos pertencentes à abordagens iconográficas e corpográficas das pinturas indígenas. Desse modo, con-
textualizando na pratica corporal e reflexiva aspectos pertencentes à cosmovisão indígena, aproximando
aos conteúdos que ligam e fortalecem a produção de conhecimento por meio da contextualização, pen-
sando a partir do contexto indígena a reflexão de paradigmas ontológicos legitimados pela colonização
europeia e americana.
Ao longo desse trajeto, propus uma ação performativa como resultado da disciplina “corpo e per-
formance na atuação cênica” ministrada pelo professor Dr. Cesário Augusto Pimentel no Programa de
Pós Graduação em Artes. A ação artística denominada Círculo de Pykatoti investiga a partir das danças
Mebengokre alterações do corpo e da consciência por meio de giros em círculos (macrocosmo) e giros
em meu próprio eixo (microcosmo), no objetivo de testar a dilatação de tempo e espaço em meu corpo
e na recepção do público.
O Círculo de Pykatoti é um trabalho em processo e possui peculiaridade de transformação a cada
estado e na organização para o olhar do outro em determinados espaços de apresentação. Cada apresen-
tação, dispara reflexões pertinentes de nosso contato com o espaço e com o tempo. Essa performance
foi realizada três vezes até o momento da produção deste ensaio. Alguns materiais se alteraram ao longo
das apresentações, mas a pintura de Kapran Ok – pintura de gavião, é necessário para tal conexão e voo.
A relação entre artista e espectador se altera ao longo das experimentações em diferentes espaços, ficando
aberto às testemunhas participarem ativamente do ato, mas ao longo das três apresentações isso ainda
não ocorreu.
A primeira demonstração aconteceu no jardim do Programa de Pós- Graduação em Artes - PPGArtes
da Universidade Federal do Pará - UFPa, possibilitando a conexão da natureza e aos movimentos circu-
lares que tanto meu tronco e minhas pernas realizavam nos movimentos circulares, intencionando mani-
pulações energéticas no espaço e tempo. O Espaço do jardim do PPGArtes possui algumas arvores e no
local onde foi realizado a ação não possuía cobertura, estando a lua, as estrelas, as plantas e as pessoas,
juntas e atentas à ação. O público ficou na posição da frente à ação que estava acontecendo, ao longo dos
giros em velocidade constante a partir de um determinado momento

Figura 1. Primeira Apresentação – momento estático no giro microcosmo.


Foto: Martin Perez
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 175
A segunda demonstração aconteceu no Teatro Claudio Barradas também em Belém do Pará. A plateia
ficou disposta em círculo. Porém não consegui dispersar a energia gerada ao longo dos giros constantes
o que me levou a reter tais energias que estavam no local. Eu penso que o contato com a natureza e a
liberação de vida, de energia pelas plantas, favorece uma filtração de tais energias, não retendo-as. Isso
fortalece os pressupostos da dança indígena Mebengokre e suas conexões com a terra e com o espaço
em determinado tempo e espaço.

Figura 2. Segunda apresentação - giro macrocosmo. Foto: Breno Filo

Nessa segunda ação percebi que o tempo é fundamental para esta performance, pois produz diferentes
estados em mim e no público, levando ao transe. Os movimentos repetitivos em um determinado tempo
“incomoda” o público, onde na maioria das vezes constrange a testemunha da ação, pois os mesmo vão
à performance com ideia pré-concebida de representação tradicional do teatro. Para os desafiadores do
tempo, esta ação causa uma sensação de vertigem que possibilita criar imagens que são re-interpretadas
em diferentes perspectivas.
Esta performance ritual sugere ao espaço, um “altar”, localizado no chão, contendo frutas, tabaco, maracá
e mandioca. Cada material contém uma rede de conexão com elementos que usualmente manipulo quando
estou em campo. Estes materiais possuem forte relação para mim. Senti a necessidade de coloca-los em cena.
Os elementos da natureza (agua, fogo, ar e terra) foram apresentados e ativados, nessa apresentação,
em cada ponto de localização cardeal no espaço da performance. O local dificultou a troca e dispersão
energética que deveria ser liberada. É possível que a acumulação energética neste trabalho favorece uma
absorção desnecessária e perigosa posteriormente em meu corpo.
A terceira apresentação foi realizada no Campus-Guamá da UFPa, na Faculdade de Artes Visuais no I
Mostra internacional FOCAR. Este evento foi realizado pelo Instituto de Educação da UFPa. O espaço
de apresentação favoreceu algo que ando refletindo e me propondo a investigar na construção em pro-
cesso deste rito de limpeza corporal e do espaço. É possível que as ideias nesse momento aterrissem e ao
longo dessa e de outras escritas, possivelmente, eu possa identificar elementos que ando acrescentando
intuitivamente além dos já mencionados, amadurecendo assim, ações repetidas e reiteradas.
176 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Figura 3. Terceira apresentação - macrocosmo (salão). Foto: Romana Melo.

Figura 4. Terceira apresentação - no altar. Foto: Romana Melo.

A apresentação começou dentro de um salão de arte com portas de vidro de modo que conseguíamos
ver o lado de fora do espaço. No lado de fora possuía uma mangueira grande e um tajá4. Na saída lateral do
espaço existiam muitas arvores também no qual elegi o pé de uma dessas arvores para terminar a ação ritual.
A ação começou dentro do salão, o público saindo de uma sala onde estava ocorrendo a apresentação
de outro trabalho anterior ao meu. O público sai da sala e se direciona ao salão ao encontro da perfor-

4
O tajá “curado”, ou seja, trabalhado nos segredos e mistérios da bruxaria nativa, constitui-se num inestimável
auxiliar e protetor do seu possuidor, podendo ser usado para atrair a felicidade, o amor, a sorte na caça e na pesca,
prendendo o ente amado através do amor e do sexo.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 177
mance, onde eu estava girando em torno de três velas brancas e uma maracá. Devido o tempo previsto
pelo evento precisei minimizar o tempo dos giros. Na velocidade constante em movimento circular pre-
cisei chegar ao estado de alteração do corpo realizado nas apresentações anteriores, fazendo com que eu
começasse a performance minutos antes do público adentrar o salão. O estado de agitação das partículas
energéticas do espaço, captura e manipula, energias dispersas, concentrando-as no círculo, tanto minhas
energias como as energias das testemunhas do momento.
Esta apresentação foi realizada por aproximadamente vinte minutos com o público assistindo. Após
ficar girando em círculos (macrocosmo) por quinze minutos em média, manipulando tais energias que
estavam no espaço, percebi pessoas incomodadas com a ação, inquietas, risos forçados, nervosos. Então
logo após o tempo dos giros fui me direcionando para o centro e começando os giros em torno do meu
próprio eixo (microcosmo) facilitando minha alteração e a alteração do espaço e do tempo.
Logo após, pego as três velas e entrego à três pessoas “aleatoriamente” que estavam posicionadas ao
longo do círculo. Logo após, pego o maracá e peço para as pessoas que estavam com as velas acompanha-
rem para o lado de fora, onde, anteriormente, já havia colocado uma vela na raiz de uma grande arvore
cortada. O público inevitavelmente vai para fora também, participando e seguindo ao rito. Eu não havia
sentido ainda tanta conexão como a experiência desse dia. As forças da natureza estavam conectadas à mi-
nhas induções, mente aberta e segura do que estava propondo: um rito de limpeza dos corpos e do espaço.
Ao chegar na arvore junto com as três portadoras das velas, pedi para que estas colocassem suas velas
no pé da arvore e acendessem emanando pensamentos e fluidos energeticamente positivos. Logo após
acender, comecei um cântico de repetição da palavra krana ti oiê5. Ao cantar, um vento forte começou a
rodear o espaço, um vento inexistente antes do momento desta ação. Nesse fluxo, o tajá que estava no
lado aposto de onde estávamos, começou a balançar muito forte, alguns cachorros que estavam em bai-
xo do tajá, saíram correndo e latindo em direção oposta, sem avançar ou atacar, um sinal minucioso da
energia que estávamos criando no espaço e no tempo ritual.
Percebo a importância preponderante da escolha do espaço e do tempo, que me ajudam a dispersar
energias desnecessárias impregnado nas pessoas e do próprio espaço. À exemplo, da segunda apresen-
tação, devido o espaço ser fechado, em minha compreensão, sem acesso a natureza, energias ficaram no
espaço e foram absorvidas pelo meu corpo, me causando febre, dor de cabeça e mal estar logo após a
apresentação. Esses sinais são bastante significativos para mim, me intui possibilidades de manipulação de
um campo energético relacionando com a alteração do espaço e do tempo por meio de um movimento
repetitivo, alterando espaço e tempo.
Com isso, este trabalho é importante em meu percurso investigativo de poéticas e modus operandi em
artes. Nossa colonização foi bastante abrupta nos tornando seres sensorialmente cegos, diferentemente
dos povos da floresta. O campo de experiência que na ciência dos homens chama de “metafisico” é um
campo de conexão cotidianamente vivenciado pelos indígenas, entendendo sua constituição cósmica no
adensamento de materiais “invisíveis” aos olhos e que está intimamente relacionado ancestralmente ao
modo de vida de diversas sociedades indígenas que fortalecem e valorizam suas práticas e comportamen-
tos espetacularmente organizados.
Outra ação foi a instalação performativa “Etnocenologia Mebengokre: fragmentos mebengokre” ex-
posta no Museu da UFPa. Esta instalação possui cinco fragmentos: 1- dez fotos em tamanho 15x21 em
papel fosco de partes de corpos da comunidade de Apexty de etnia mebengokre; 2- nove desenhos em
folha de papel na representação das pinturas corporais produzidos por mulheres indígenas da aldeia de
Apexty; 3- um cocar amarrado em um flecha posicionada de cabeça para baixo cotejando liquido ver-
melho, pingando em um colar posicionado no chão; 4- um vídeo de trinta segundo de Hopkran (filho
do cacique de Apexti) brincando com seu macaco de estimação; 5- movimentos realizados por mim no

5
Este cântico, segundo os Mebengoke representa a parte intelectual e desenvolvimento “cognitivo” do ser, pos-
sibilitando reflexões dos que escutam e atenção ao que se pensa e ao que se emana.
178 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
espaço da instalação de acordo com a noção do treinamento corporal descrito anteriormente.
Assim tais ações representam meu percurso como artista-etno-pesquisador, mergulhado corporal-
mente e metodologicamente na cosmovisão indígena mebengokre, indissociando teoria e pratica na cons-
trução de discursos ligados ao autoconhecimento, compreendendo como processos éticos, estéticos e
políticos se organizam nesse universo como pesquisador e como indígena no cenário amazônico da
produção do conhecimento ao nível da Graduação e Pós Graduação na Universidade Federal do Pará.

CONCLUSÃO

A indissociação entre teoria e pratica promovem o fortalecimento e valorização de discursos artístico-


-cientifico à luz da etnocenologia indígena na Amazônia. Tais movimentos minimizam conflitos étnicos
na legitimação do protagonismo indígena no Estado do Pará.
Os aspectos logico e deontológico fazem com que a produção e proposições teórico-metodológicas
no cenário amazônico possibilitem a identificação de demais pesquisadores em artes cênicas, proporcio-
nando o diálogo na aproximação de conhecimentos de nossas matrizes culturais, silenciadas ao longo do
processo da colonização.
Assim proposições artístico-cientifica possibilitam processos criativos em artes promovendo a mili-
tância no ativismo etnocenologico indígena na Amazônia, diminuindo atritos socialmente construídos
ao longo do processo massivo da colonização euro-americana por meio de reflexão, experimentação e
divulgação artística.

BIBLIOGRAFIA

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I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 179


O REINADO DE NOSSA
SENHORA DO ROSÁRIO
EM CARMO DO CAJURU,
MG: TRADIÇÃO E
CONTEMPORANEIDADE
Ramon Santana de Aguiar1
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)
José Heleno Ferreira2
Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG

RESUMO: As festas do Reinado/Congado são práticas culturais centenárias presentes em Minas Ge-
rais. Caracterizam-se por forte apelo comunitário e religioso, mantendo identidade predominantemente
afro-brasileira. São grupos comunitários que, através dos festejos estabelecem laços culturais e de per-
tencimento. De caráter intergeracional, a memória oral torna-se o principal instrumento de perpetuação
dessa prática cultural com fortes elementos cênicos: a musicalidade, a indumentária, o caráter ritualístico,
a dramaturgia cantada

Palavras-chave: Reinado, tradição, afro descendência.

A Irmandadede Nossa Senhora do Rosario é a maior e mais antiga forma de expressão religiosa e
cultural afro-brasileira, de iniciativa comunitária, do município de Carmo do Cajuru, e configura-se entre
as mais importantes do estado de Minas Gerais.
Realizada todos os anos no mês de outubro pela Irmandade de N. S. do Rosário desde 1883, esta
festa popular conta hoje com mais de 132 (cento e trinta e dois) anos comprovados de efetivo exercício.
Porém, há indícios orais que os festejos são mais antigos. Esta inferência faz-se devido à idade estimada
de uma bandeira de N. S. do Rosário (aproximadamente 300 anos). Bandeira essa, que acompanhou o
reinado em sua antiga trajetória. Hoje, depois de ter passado de mãosem mãos durante várias gerações,
permanece guardada como relíquia, sob a tutela do Capitão General da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário, o senhor Eli Benedito. Também, as reminiscências coletivas de festejos guardadas na oralidade
confirmam esses indícios aproximando do que Walter Benjamin (1996) considera“narrativa de reminis-
cências”. Segundo esse filósofo:

1
Ator, Diretor, Pedagogo. Doutor em Artes Cênicas (UNIRIO-2011). Professor UEMG. Pesquisador do Grupo
de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana (UNIRIO), CEMUD (UEMG), IELT (Lisboa) e associado
ABRACE.
2
Filósofo. Mestre em Mídia e Conhecimento (UFSC-2001). Professor UEMG. Pesquisador CEMUD (UEMG).
180 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em
geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades de
forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. (p.211) (...)
O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.
(Benjamin:1996, 214)

A memória dos festejos está presente e é divulgada oralmente entre todos os participantes e entre
gerações. Famílias inteiras unidas pelo sangue, pela religião e pelo tempo congregam as reminiscências da
Irmandade do Rosário de Carmo do Cajuru.
Os festejos,em geral, têm início na última semana de setembro, quando é erguida a “bandeira de aviso”
marcando também o início da novena aos santos padroeiros: São Benedito, Santa Efigênia, Senhora das
Mercês, Senhora Aparecida e a soberana Senhora do Rosário.
A grande celebração acontece durante 4 (quatro) dias após o término da novena e atrai uma grande
quantidade de visitantes locais, regionais e até de lugares mais distantes. Todos vêm movidos pela fé e
beleza da festa.
Muitos “reinadeiros”3, ou “soldados”, têm residência fixada nos mais variados locais, dentro e fora do
nosso estado, aumentando ainda mais a alegria no reencontro com os patrícios. Uma profusão de batuca-
das e entonação de hinos, surgidos em todas as direções que tomam conta da pequena cidade de Carmo
do Cajuru que tem aproximadamente 21.000 habitantes (IBGE: 2010).
Os cantos de “ponto” realizados pelos capitães de cada “guarda”4 são um espetáculo à parte, exibindo
grande percepção, capacidade de síntese, inteligência e rapidez de raciocínio nos reveses da cantoria.
No manejo dos instrumentos, percebem-se os vestígios dos hábitos dos trabalhos de outrora (escra-
vos) ou dos instrumentos de seus algozes. Nos trejeitos e movimentos corporais da dança, ficam expostos
os sinais do mais profundo e primitivo contato com o sagrado, diferenciado das práticas rituais cotidianas.
A história do Reinado de N. S. do Rosário está tão entranhada na cultura local, que se confunde com
a própria memória e história do desenvolvimento da cidade. Seus devotos ao longo dos anos veem nar-
rando e desenhando o verdadeiro significado do que seja “resiliência, resistência e abnegação” através da
preservação da memória e consequentemente dos festejos.
O historiador e pesquisador Michael Pollak (1992) em seu artigo “Memória e esquecimento” comenta que:

(...) a memória é (se torna) um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto indi-
vidual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstru-
ção de si. (Pollak: 1992, 204)

Além do vivido individualmente por cada participante, também há histórias comuns que são guarda-
das por todos na oralidade. Em entrevistas realizadas junto a membros da comunidade5, estes relataram
histórias, memórias, reminiscências que possibilitaram melhor entendimento dos festejos e sua reverbera-
ção na comunidade. Porém, nem todas as histórias foram vividas pelos seus narradores. Algumas foram
ouvidas. Nesses casos, as versões contadas pelos narradores precisam de pontos em comuns para que as
reminiscências se completem.
Assim, no movimento da construção da história da Irmandade, em suas diversas memórias individu-
ais constroem a memória coletiva. Essa dinâmica e seus resultados comprovam que as histórias narradas
pertencem ao espaço do corpus coletivo que venceu as teias do tempo e que estavam silenciadas, o que

3
Denominação dada aos participantes ativos da festa.
4
As guardas são grupos de reinadeiros que protegem as “coroas”.
5
Pesquisa docente realizada pelos autores com apoio PAEX / UEMG / 2015.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 181
não quer dizer esquecidas.
Para sediar a festa do reinado, a Irmandade conseguiu erguer uma igreja, cuja citação encontra-se no
livro de tombo nº 1, fl 39, da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, “Construída por iniciativa do
então Tesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Cap. Antônio Batista Leite Júnior, no ano
de 1883”. Todavia, numa inscrição ao topo do arco que divide a nave principal da capela mor, está grafada
a data de 1776, que contradiz com a primeira informação.
A igreja de Nossa Senhora do Rosário foi construída na periferia do então arraial, em um grande ter-
reno doado, às margens da estrada que dava acesso a Congonhas do Campo.
A Irmandade é constituída de um terno de Congo, dois de Catupé e três guardas de Moçambique, sen-
do que os ternos são responsáveis pelo trabalho sem coroa, visitas, cumprimento de promessas, atuando
no preparo para a festa e em todo o decorrer do reinado. Dentre as entrevistas realizadas, uma foi com
um capitão de guarda. Este confirmou que as guardas fazem o cortejo das coroas, guardam e a conduzem
durante a congada, ao longo do ano e nas visitas. Durante as visitas realizadas e nos dias da festa, pode-se
constatar que os cantos de louvação e descrição durante os festejos evocam santos, licenças, mitologia,
religião ou simplesmente narram os acontecimentos. Não há registro escrito desses cantos cabendo à
oralidade e a tradição a perpetuação de seus versos.
Ao longo dos anos a festa sofreu mudanças em decorrência das mais variadas dificuldades e do pró-
prio desenvolvimento sociocultural local. Por volta da década de 1960, um período de desencontros
internos e profundo descontentamento com posturas exclusivas de representantes “oficiais” da Igreja, a
Irmandade ficou seriamente abalada e se dividiu, ponto em risco a continuidade da festa de sua padroeira.
No primeiro momento houve um enfraquecimento, contudo, um fator importante deu impulso e
novo ânimo aos festejos: a presença das mulheres, que antes se restringia às Rainhas do Congado. A parti-
cipação das mulheres nesse período foi muito significativa, pois elas não vieram sozinhas. Elas trouxeram
também as crianças pequenas, a exemplo do que ainda se vê hoje. Vale o destaque que essa história ainda
permanece na oralidade e é repassada de geração em geração sem nenhum registro escrito.
As crianças que desde muito cedo acompanham seus pais, imprimem o reinado em suas mentes e
corpos de forma incisiva e determinante, garantindo a sobrevivência dessacultura. O desmembramento
de parte dos componentes da irmandade poderia ter sido desastroso. Dessa divisão, foram aparecendo
aos poucos outras e outras irmandades, que na ocasião da festa anual, se somam a outras tantas guardas
visitantes de cidades vizinhas, aglomerando um grande número de “congadeiros” na cidade.
Embora essa cultura centenária faça vicejar o mistério e a impenetrabilidade, são vários os desafios que
se apresentam para garantir a sua continuidade. Por um lado, está a dificuldade dos “griôs”6 em conscien-
tizar e proteger seus descendentes da massificação cultural, do simulacro, e da intransigente globalização
e ao mesmo tempo garantir o repasse das reminiscências culturais daquele grupo social. Por outro lado, a
dificuldade em viabilizar recursos financeiros compatíveis com as necessidades mesmo sendo o reinado
de N. S. do Rosário, uma festa de justificada importância. Ela é um elo direto com o passado do município
e o país e traz frescor para o presente, atualizando elementos reveladores de nossa história. Ele (o reina-
do) ainda permanece, no cenário da cultura local, um componente periférico, que não alcançou o status
de vetor importante do nosso processo de desenvolvimento.
O projeto corrobora para proteger essa festa tão rara e cara para identidade de Minas Gerais e do Bra-
sil, é sem dúvida, uma necessidade premente e um ato de cidadania considerando as diretrizes nacionais
de preservação e valorização da cultura afrodescendente. É notória que a maioria da população reinadeira
pertence à classe menos favorecida, aquela que ainda não alcançou a totalidade dos bens sócias e culturais,
que luta com dificuldade contra as desigualdades socioeconômicas, mas que, ainda assim resiste.
Vale a lembrança que após aprofundamento nas discussões sobre a preservação da festa do Reinado
de N. S. do Rosário, o Conselho Municipal do Patrimônio Artístico e Cultural de Carmo do Cajuru -

6
Designação dada aos membros que guardam a história oral da comunidade.
182 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
COMPHAC decidiu pelo seu registro de patrimônio imaterial do município, através da 91ª ata do dia
19/07/2013. Através desse registro, O COMPHAC reconheceu a importância desta festa como compo-
nente da cultura de Carmo do Cajuru.
Apesar do reconhecimento e registro de patrimônio imaterial a Irmandade recebe pouco apoio do
poder público local, contando para a manutenção da festa e de suas atividades, quase que exclusivamente,
com as doações dos membros da própria irmandade. Durante as reuniões presenciadas pelos pesquisa-
dores deste projeto, essa ação pode ser constatada. Em todas as reuniões houve o momento de arreca-
dação financeira onde todos os participantes contribuíam em espécie de acordo com suas possibilidades.
Também, houve momentos de arrecadação organizada coletivamente como, por exemplo, a realização de
festas e bazares.
No processo de construção das reminiscências do Reinado, são reinventadas as memórias orais da
comunidade possibilitando – de maneira lúdica - às gerações mais jovens e para os espectadores alheios
àquele imaginário se inserirem na história contemporânea da cidade e da sua comunidade afro-brasileira.
Esta (a comunidade) é detentora de um conhecimento histórico riquíssimo constituído e carregado de
tradição. Nesse sentido, a festa e o seminário se tornam relevantes ao evidenciar seus processos históri-
cos, sociais e educativos formais e não-formais presentes no Reinado.
O Reinado possui uma identidade com saberes implícitos configurando-se como uma ação simbólica.
Nesta perspectiva os estudos realizados junto ao Reinado constataram os festejos como ação simbólica e,
no estudo de caso da Irmandade de Carmo do Cajuru uma manifestação cultural “viva”, em um contexto
histórico e social específico e vibrante:

(...) esse é o conceito de cultura semiótico se adapta especialmente bem. Como sistemas en-
trelaçados de signos interpretáveis (...), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser
atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os
processos: ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inelegível
- isto é, descritos com densidade. (Geertz: 1989:10)

Estudar movimentos sociais e artísticosque restauram uma possível rede de relações necessárias à
manutenção de um grupo ou comunidade (Certeau, 1995) possibilita constatar as possibilidades de in-
venções e reinvenções populares.
O Reinado em Carmo do Cajuru para além dos objetivos religiosos e “artísticos” busca manter prin-
cípios culturais e reminiscências pertencentes a grupos étnicos historicamente desvalorizados. O Reinado
contribui para a construção de identidades coletivas permitindo que a comunidade envolvida possa for-
mular seus quadros de referência através de narrativas constituídas em ações espetaculares.

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184 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


ORAÇÃO DO SANTO GOZO:
RISO E BUFONARIA,
TRAJETÓRIA E EXPERIÊNCIA
Sávio Farias1
Universidade Federal da Bahia – UFBA
savioffarias@gmail.com
Nykaelle Barros2
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
nykabarros@hotmail.com

Resumo: Este trabalho reflete sobre a figura do bufão e seus tipos como abordagem prática de atuaçãoa
partir do experimento cênico intitulado Oração do Santo Gozo, do grupo Bufões de Olavo.Tal experimento
é um desdobramento artístico criado coletivamentea partir de estudos teóricos e práticos acerca da figura
do bufão, que vem sendo desenvolvidos nos processos criativos do grupo. Opta-se, enquanto metodo-
logia, pela análise do trajeto artístico do grupo, buscando entender de que forma a criação desses tipos
se interseccionam com as vivências/experiências dos seus criadores. Os tipos de bufão marcam sujeitos
sociais excluídos pela regra, norma e padrões vigentes, como mendigos e prostitutas. Tais tipos parecem
ofereceraos artistas-bufões a possibilidade de explorar cenicamente o espaço social de abjeção que tais
tipos ocupam, podendo ser relacionadas, por fim, às experiências vividas pelos integrantes do grupo.

Palavras-chave: bufão; processo criativo; experiência; grupo.

Abstract: This paper reflects on the figure of the buffoon and its types as practical approach acting from
the scenic experiment entitled Oração do Santo Gozo, group Bufões de Olavo. This experiment is an artistic
off shoot created collectively from theoretical and practical studies on the buffoon figure, whichhasbeen-
developed in thecreative processesofthegroup. Weopt, as a methodology for the analysis of the artistic
care erof the group, seeking to understand how to create these types intersect with the experiences of
its creators. The types of buffoon mark social subjects excluded by the rule, normand existing standards
such as beggars and prostitutes. These types seem to offer artists-buffoons the possibility of exploring
the scenically abjection social space such types occupy and may be related to the experiences of the grou-
pmembers.

Keywords: buffoon; creativeprocess; experience; group.

1
Ator, palhaço e performer. Mestrando em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC) da UFBA. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatro: Tradição e Contemporaneidade (UFPB) e do grupo
artístico Bufões de Olavo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
2
Atriz, palhaça, performer e professora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas (PPGArC) da UFRN. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatro: Tradição e Contemporaneidade
(UFPB) e do grupo artístico Bufões de Olavo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 185
INTRODUÇÃO

O grupo Bufões de Olavo surgiu em 2010, em João Pessoa, formado pelo diretor José Tonezzi, pro-
fessor do curso de Teatro na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e por cinco atores3, que na época
eram alunos da graduação no referido curso. A palhaçaria e a bufonaria são temas principais das pesquisas
do grupo. Em seu repertório, o grupo possui duas produções, o espetáculo Clown Bar (2010), resultante
dos estudos e experimentos realizados pelo grupo sobre a figura do palhaço e Oração do Santo Gozo (2012),
performance resultante das primeiras pesquisas acerca da figura do bufão e seus tipos, além de um ter-
ceiro espetáculo que atualmente encontra-se em processo de criação, que dá continuidade às práticas de
bufonaria desenvolvidas no grupo.
No artigo “Dos pés ao nariz: relatos de uma trajetória formativa”(2012), escrevemos sobre a trajetória
inicial do grupo, a sua origem, a experimentação da técnica de palhaço, o primeiro espetáculo do grupo
Clown Bar e seus desdobramentos. Apontamos como as vivências do grupo refletiam de maneira forma-
tiva na trajetória artística e pessoal dos pesquisadores. Naquele momento, optamos por escrever coleti-
vamente a fim de que a reflexão ali proposta buscasse atender a ideia de estender ao grupo a atividade
de escrever de maneira reflexiva sobre as pesquisas artísticas desenvolvidas por meio de procedimentos
técnicos, criação e apresentação de espetáculos, etc. Já no referido texto consideramos a abertura de nos-
sas pesquisas para a prática da bufonaria:

Desde que começamos a pesquisar o universo do bufão (disfunção corporal, carnavalização


na Idade Média, etc.) idealizamos uma ação prática neste sentido. O primeiro experimento
realizado foi uma ida do grupo ao carnaval de Olinda, em fevereiro de 2012, caracterizados de
bufões, remontando as festas realizadas no carnaval medievo, onde bandos de bufões toma-
vam as ruas no período do carnaval. Esse experimento foi realizado com o intuito de analisar
a relação do bufão com a sociedade contemporânea, bem como contribuir na construção das
personas bufonescas de cada ator. (TONEZZI, LIRA, BARROS, FARIAS, 2012, p. 165)

Após o experimento no carnaval de Olinda, iniciamos no grupo uma série de oficinas nas quais bus-
camos experimentar todos os tipos de bufão que encontramos nas pesquisas bibliográficas e oficinas
realizadas externamente ao grupo, conforme nos detalharemos no decorrer deste artigo. Essas oficinas
foram de extrema importância na medida em que serviram de alicerce na construção do experimento
cênico Oração do Santo Gozo.
Os tipos de bufões estão referenciados em fenômenos e/ou sujeitos sociais que fogem às regras, nor-
mas e morais vigentes (conforme trataremos a seguir). Por isso, talvez, apresentem comportamentos que
interessam ou perturbam ou olhar. Aí estaria a sua possível espetacularidade. A bufonaria se vale destes
tipos e de seus comportamentos (vestimentas, gestualidades, etc.) para se configurar como uma prática
de atuação cênica, considerando os aspectos e as características que lhes são peculiares, heterogêneas,
próprias.
A tentativa de lançar um olhar etnocenológico sobre essa prática – a arte de bufão – é investida aqui
pela clara interface entre a Etnocenologia, enquanto uma disciplina que se vale das manifestações espe-
taculares e seus desdobramentos (DUMAS, 2010), com a bufonaria, que leva em conta os comporta-
mentos sociais de sujeitos que se encontram às margens da sociedade, e desta forma, permitem conter
em si elementos espetaculares. Ademais, buscaremos aqui refletir sobre o dito experimento traçando a
trajetória do mesmo com autores e conceitos que nos permitem entender de que maneira a sua criação e
as experiências proporcionadas por tal tem possibilitando a expansão de nossa formação como pessoas
e artistas críticos à luz do riso, do bufão e da experiência.

3
Angélica Lemos, Flávio Lira, João Brandão, Nykaelle Barros e Sávio Farias.
186 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
O RISO, O GROTESCO E O BUFÃO

Rir é uma das mais peculiares habilidades dos seres humanos. Uma capacidade nata desta espécie, o
ato de rir traz em si um vasto campo de significados. Muito já foi dito sobre o riso, e elencamos aqui,
dentre as várias características desta ação humana, duas essenciais: o riso é coletivo e cultural. Na história
das culturas, o riso pode ser constatado como algo sagrado ou profano, livre ou restrito. Em Elogio do Riso,
Jorge Larrosa (2003) defende que o riso possa ser pensado como um componente do pensamento sério
da sociedade moderna. Aprofundando-se nesta questão, o autor aponta que o riso deve estar para além
do entretenimento, do lúdico, da negação da realidade e do moralismo. Sugere ainda que o riso deveria
ocupar espaços sacralizados e demasiadamente formais, tais como igrejas, tribunais, museus e salas de
aula, ambientes considerados sempre muito sérios.
Larrosa observa que personagens como o pícaro, o bobo e o bufão são figuras que se utilizam do riso
para parodiar, imitar ou inverter a retórica e a linguagem, pois “o riso mostra a realidade de um outro
ponto de vista” (2003, p. 178). Entretanto, o ato de rir não está limitado apenas à esfera cotidiana e so-
cial da humanidade, mas ocupa importante lugar também nas expressões artísticas, sobretudo no teatro.
Aristóteles, em sua Arte Poética, é o primeiro teórico da arte teatral ocidental a pontuar as propriedades
da representação dramática em dois segmentos, a tragédia e a comédia. Os escritos sobre a tragédia es-
tão disponíveis para o conhecimento e reflexão dos estudiosos das artes dramáticas, entretanto, o que
o filósofo grego escreveu sobre a comédia não pode mais ser acessado, pois perdeu-se no tempo. Isso
fortaleceu a prevalência da tragédia e contribuiu significativamente para o tratamento da comédia como
uma arte inferior ou menor àquela, pelo menos no campo das teorias literárias e dramáticas. Entretanto,
apesar das severas restrições sociais impostas ao riso, continuamos rindo até os dias de hoje. Ainda somos
capazes de rir.
Para dar prosseguimento a reflexão aqui proposta, buscaremos nas linhas que se seguem levantar ques-
tões pertinentes à figura do bufão e suas potencialidades cênicas. Assim, faremos uso da opção de relatar
uma experiência vivenciada junto ao grupo para tentar relacioná-la com as ideias a serem levantadas, bem
como buscar fundamentos que dialoguem com os apontamentos também feitos por Jorge Larrosa acerca
da experiência, do saber da experiência e, sobretudo, do riso.
Em 2012, o espetáculo Clown Bar foi selecionado para participar do Festival Internacional de Teatro
Universitário de Blumenau (FITUB), que estava em sua vigésima quinta edição. Em comemoração a esta
ocasião, a equipe do festival organizou um Cabaré Memória, e convidou os grupos participantes a apresen-
tarem performances na realização deste evento. Decidimos inscrever Oração do Santo Gozo para integrar
a programação. A performance havia sido criada anteriormente para o Festival de Poesia Encenada, do
SESC de João Pessoa, que reúne curtas encenações de poemas. À época, para a criação deste trabalho, o
grupo havia começado as investigações teóricas e práticas sobre o bufão e seus tipos e resolvemos expe-
rimentá-las na cena, com um poema de mesmo nome, de autoria de Flávio Lira, também ator do grupo.
Nos nossos estudos, encontramos registros do bufão em diversas civilizações, desde os mais remotos
povos. Este personagem habita os rituais, as feiras, os palácios, em toda parte se fazendo necessária esta
figura contraditória e irreverente. De aparência disforme, gestos exagerados, comportamento anárquico,
o bufão representa o pensamento do povo, uma vez que é capaz de dizer o que ninguém diz.
O grotesco também sempre fez parte das civilizações. Pode-se observar desde a antiguidade, na mi-
tologia grega, com seus seres disformes, deuses com chifres, nas lendas onde sereias habitam os mares,
centauros cujo corpo é metade homem metade touro, seres híbridos, identificados nas mais distintas
culturas. A China com seus dragões capazes de causar terror e admiração, a Índia com o deus-elefante Ga-
nesha, o Egito e seus deuses metamorfoseados, com a cabeça de alguns animais, como o falcão, o chacal, a
íbis. Muitos exemplos são possíveis de obter ao olhar o passado, que comprovam a hibridez das formas,
a inserção do disforme no imaginário das pessoas, convivendo com elas ao lado do “perfeito”. Mas não
podemos encontrar uma definição do “perfeito” ou “belo” que possa estar adequada às diferentes cultu-
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 187
ras e tempos históricos. Somente a partir do Século XIX o grotesco passa a ser apresentado como uma
categoria estética (HUGO, 1988).
Esta estética desafia o mundo simétrico de Vitrúvio, que afirmava que estas formas não poderiam
existir, eram apenas imaginação, sonhos absurdos. Obviamente o homem a inspirar Leonardo Da Vinci
a desenhar o homem perfeito (O homem Vitruviano, obra de 1490, considerada o cânone das proporções),
não poderia estar satisfeito com um mundo desordenado, proposto pelas formas encontradas nas grutas
escavadas em Roma e em outras regiões da Itália. Em fins do Século XV, foram feitas escavações nestas
regiões, de onde surgiram pinturas antigas, com desenhos de plantas e animais, mesclando-se e formando
uma ornamentação até então pouco vista. As imagens mostravam cabeças de homens com flores saindo
dos tímpanos, forma humana metamorfoseada com a natureza, provocando desproporção. Por terem
sido encontradas em grutas (grotta em italiano), surge o nome grotesco.
O grotesco está presente na nossa cultura, nas relações entre sujeito e objeto. Mas não devemos con-
fundir esta categoria estética com o mero olhar desprezado sobre as coisas. O grotesco, ao mesmo tempo
em que provoca horror, nojo e choque, deslumbra, eleva, desperta interesse. É uma maneira diferente de
apreciação, um novo modo de olhar a realidade e a arte que dela parte. O bufão é uma forte representação
deste universo grotesco.

TIPOS DE BUFÃO

Através de evento realizado pelo Grupo Teatro de Anônimo (o Encontro Internacional de palhaços
Anjos do Picadeiro, 2010), uma das autoras deste artigo, Nykaelle Barros teve a oportunidade de co-
nhecer o mestre Andrés Del Bosque. Chileno residente em Madri, Espanha, ele aplicou uma oficina de
bufonaria, onde apresentou o Bufão Ritual: ser tradicional das feiras e da corte, que andava em bando e
exibia sua deformidade, enquanto recitava e cantava com graça e ternura. Autor, diretor, ator e professor
de diversas universidades chilenas, Andrés se formou com Enrique Buenaventura e foi discípulo de Phi-
lipe Gaulier, Antônio Fava e VladymirKriukov. Professor de clown e de bufão, nas aulas, Andrés enfatizou
a importância das contradições no trabalho do bufão. Se este se apresenta disforme, suas palavras devem
ser sublimes, se ao contrário aparece com uma imagem sóbria, suas palavras devem conter a deformidade
em seu interior.
Ele classifica três tipos de bufão: o deformado fisicamente, o excluído socialmente e o bufão branco.
O deformado insere anões, corcundas, e exageros corporais, como bundas e peitos gigantes, magreza
esquelética, gordura em demasia, todo o corpo que aparece deformado, ampliado em suas proporções,
melhor dizendo, um corpo desproporcional. Estes seres chocam pela sua aparência incomum (dentro da
percepção do que é tido como comum socialmente), sua imagem provoca asco, terror, piedade, repúdio,
e a tudo isso muitas vezes se agrega o riso, por demonstrarem um corpo que incomoda e parece estar
desconfortável em si mesmo, que desarticula o olhar pela complexidade de suas formas.
Andrés pontuava que este bufão precisa contrapor a sua imagem, recitando belos poemas, cantando
canções suaves e se munindo de um lirismo especial que torna a deformidade de fato cômica. Pois o que
nos fará rir, é exatamente a contradição, a desconexão entre um corpo horrendo e uma bela voz, a deses-
truturação das partes. O bufão vive entre a fronteira do bem e do mal, da vida e da morte, no limiar dos
opostos. Como um elo que sustenta as forças contrárias que regem o universo.
Um segundo tipo bufonesco, como coloca Andrés, é o excluído, o marginalizado, aquele que está fora
dos cânones socialmente aceitos. Estes seriam as prostitutas, os travestis e os mendigos. Homens vestidos
de mulher, mulheres que vivem da venda do próprio corpo, e aqueles que sobrevivem de esmolas: todos
pertencentes a um mundo à margem. Deslocados e repudiados pelo povo. Seu visual também é bem
característico. As prostitutas e os travestis exageram na maquiagem e nas vestes extravagantes, um visual
também desproporcional, sujo, desarticulado, com ênfase na obscenidade e têm em seu discurso uma ode
ao submundo e à liberdade sexual. Os mendigos usam da sua miséria para atacar a sociedade, destituir a
188 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
ordem e blasfemar contra o poder. Demonstram-se menos contraditórios, porém sua imagem não chega
a ser tão agressiva quanto a do primeiro tipo apontado.
E por fim o terceiro tipo, o bufão branco. Ele difere bem dos outros tipos, pois sua imagem é absolu-
tamente limpa, solene, sublime. Pode ser um traje comum, cotidiano, ou até mesmo vestir-se com esmero,
sofisticação. Enquanto os outros pretendem chocar através da imagem, este se mostra agradável e con-
vida a um encontro sério. Porém, seu discurso é tão ou mais disforme do que se possa imaginar. Sua de-
formidade é interna, as vísceras de uma sociedade doente aparecem nas suas palavras. Ele é contra todos
os padrões: critica a política, a religião, e toda forma de poder. É revolucionário e rebelde, seu discurso
é feroz e sem piedade. Não perdoa os céus nem os deuses e todo assunto pode servir de escárnio. Pode
haver agressividade no comportamento, bem como graciosidade em um texto absurdamente grotesco.
Em um exercício realizado em aula, Andrés propôs que os bufões brancos (alunos vestidos de maneira
bem suave e cotidiana), aparecessem diante do público assumindo serem soropositivos. Improvisada-
mente, um discurso sobre a doença foi desenvolvido criticando de maneira satírica o preconceito sobre
ela. Debochando da própria condição, colocando como algo absolutamente positivo e requerendo o
amor e o toque do público. Beijando e abraçando os espectadores com amor e felicidade. Este é apenas
um exemplo de discurso a ser trabalhado nesta linha.
Em outros estudos, como nos trabalhos da pesquisadora Beth Lopes (2005), outras duas figuras apare-
cem nesta classificação. Os bufões míticos, que seriam as bruxas, os xamãs e toda sorte de seres divinos.
E os bufões fantásticos que seriam seres de imagem metamorfoseada de homem e animal, de homens
máquinas, corpos cibernéticos e corpos coisificados. Outros estudos ainda apontam bufões místicos: os
proféticos, que seriam os grandes interlocutores espirituais, os líderes religiosos.
Percebemos que existe uma grande variedade de tipos de bufão, tornando cada tipo peculiar em sua
composição. Para a criação da performance, experimentamos alguns tipos. A cena se desenvolve da se-
guinte maneira: uma atriz em trajes de prostitutas e um ator em trajes de mendigo entram pela plateia, ele
pedindo esmolas para “livrar-se da sanidade” e ela oferecendo sexo em troca de dinheiro. Após um curto
período de interações com o público, ambos decidem ir à porta da igreja, tentar conseguir seus objetivos.
Neste momento, ouve-se um trecho de um canto gregoriano e estão em cena mais três atores, um vesti-
do de papa e outro de coroinha, e também uma atriz em trajes exóticos de braços abertos em analogia a
Cristo, mas com alguns preservativos cheios de leite, na região dos seios e do púbis, representando assim
a “Santa do Gozo”. Um texto em gramelot, que alude ao idioma alemão é falado pelo bispo ou “papa” (que
na época da criação da performance era o Bento XVI, natural da Alemanha) e traduzido simultaneamente
pelo coroinha. A tradução falada é a primeira parte do poema que dá nome ao trabalho. O momento se-
guinte é quando o mendigo dá continuidade ao poema com um texto parodiado da oração do pai nosso,
enquanto simula uma masturbação e ao fim ergue uma caixa de leite. O papa e o coroinha reverenciam à
santa, e ao virarem de costas para o público, estão de calcinhas fio-dental. A santa pega a caixa de leite e
derrama sobre os religiosos, o mendigo e a prostituta, enquanto, todos, felizes e trocando abraços, cantam
a oração de São Francisco. E todos saem de cena cantando e banhados pelo leite derramado.

Oração do Santo Gozo

Meu sexo preenche tua boca que quase se esgota, te molha.


Derrete em meus lábios
Escorre em minha boca,
Ó liquido sagrado!
Desperdiça, me usa, me lança, dança.
No teu colo me aconchego.
Minha pele exala só desejo.
O tesão deve ser compartilhado.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 189
Viva a partilha!!!!
Pão nosso de todo dia me pega hoje, perdoai nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que
tanto gozam. Não nos deixei negar a tentação, apenas me livrai de todo mal,
Solidão, na mão, amém.

Tivemos a ideia de inserir um símbolo da cruz suástica na nádega do ator Sávio Farias, que no expe-
rimento assume os trajes do papa, para o momento em que fazemos a reverência à Santa. Uma alusão
ao fato de que o Papa Bento XVI serviu ao exército nazista durante sua juventude. Nas apresentações,
muitos momentos eram pontuados pelo riso do público, inclusive este, mais pelo “fio-dental”, do que
pela cruz suástica, cremos nós.
Quando estávamos no FITUB, descobrimos que Blumenau é a cidade de maior influência alemã do
Brasil. Muitos moradores descendem de imigrantes alemães, o que influenciou sobretudo a arquitetura
da cidade. Naquela edição do festival havia, na mostra internacional, um grupo de Telaviv, Israel, que
participava com uma adaptação de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Assim, durante o Cabaré
Memória, estavam na plateia muitos moradores de Blumenau, bem como os participantes do festival, den-
tre eles o grupo israelense, todos judeus.
Da cena, foi-nos possível perceber que durante o seu desenrolar, todos riam em diversos momentos.
No instante em que viramos de costas para a plateia e a cruz suástica é mostrada, e logo em seguida, quan-
do tivemos de novo o público diante dos nossos olhos, percebemos a surpreendente reação das pessoas,
principalmente dos israelenses que demonstraram uma mista expressão de surpresa atônita.
Para além dos julgamentos de valores, morais e/ou religiosos, e das questões próprias da recepção da
arte, queremos agora tentar falar um pouco sobre a experiência proporcionada pelo momento e pela arte,
para além também das coincidências deste fato. Da nossa experiência de só perceber e fazer a ligação
entre esses fatos já na cena, durante a apresentação, como se ao mesmo tempo que estava dentro dela,
pudesse ter uma visão de fora, do todo.
. A partir do par “experiência/sentido”, Jorge Larrosa envereda na exploração dessas palavras e a
faz por acreditar que as palavras são capazes de produzir sentido, “e, às vezes, funcionam como potentes
mecanismos de subjetivação” (2002, p. 21). Estendo aqui essa produção de sentidos não só a palavra, mas
também à cena e a tudo que contém texto, a tudo que pode ser lido, às imagens.

Por isso, as atividades como considerar as palavras, inventar palavras, jogar com palavras, im-
por palavras, proibir palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não
são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como da-
mos sentidos ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as
coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o
que nomeamos (LARROSA, idem).

Quando explora a palavra experiência, Larrosa a contrapõe com “informação” e “opinião”. Pontua
que cada vez mais as pessoas não experienciam “o que nos acontece” pelo acúmulo demasiado de infor-
mação e de opinião, acrescidas a falta de tempo e o excesso de trabalho. Entretanto, parece-me possível
afirmar que a arte ainda se configure como um lugar onde a experiência e o sentido possam ser viven-
ciados.
Ao extrair os radicais da palavra experiência, Larrosa traz as ideias de travessia, de passagem, de pe-
rigo, de pirata e também de estrangeiro, de estranho e de existência. O bufão, em geral, é um ser que
sempre anda em bando. A banda de bufões, navega num barco, atravessando lugares, pessoas, situações e
sentidos. Visualizamos assim, o bufão como o pirata que diz Larrosa. Os bufões-piratas, que “contém in-
separavelmente a dimensão da travessia e perigo” (p. 25). Estrangeiros que perpassam sobre terras desco-
nhecidas em busca de formação ou de transformação, de si, dos outros, do todo. Acreditamos ainda que

190 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


a arte (e neste caso, as artes da cena) seja um mecanismo capaz de proporcionar experiências inesperadas,
travessias perigosas, de juntar no tempo e no espaço artistas e públicos tão distintos em suas histórias,
em confluência e comunhão. Larrosa diferencia ainda a experiência do experimento. Oração do Santo Gozo
pode ser considerado um experimento cênico como outro qualquer. Já foi apresentado outras vezes sem
trazer “sentidos” e experiências tão amplos para nós que a fazemos. Mas as experiências significativas
independem de qual experimento se faça. O experimento pode ser um meio para a experiência, mas não
é a experiência em si, pois “se o experimento é genérico, a experiência é singular” (p.28), assim como
são singulares os sujeitos a quem ela acontece, sobretudo a maneira como acontece, sejam eles artistas,
bufões, piratas, plateia, observadores. A experiência é um saber.

CONCLUSÕES

Para retomar a interface da bufonaria com a Etnocenologia, tomaremos o que diz Alexandra Gouvea
Dumas (2010):

Na perspectiva de pensar uma organização para os objetos espetaculares da etnocenologia,


Armindo Bião propõe uma classificação em três conjuntos: objetos substantivos (artes do
espetáculo), adjetivos (ritos espetaculares) e adverbiais (formas cotidianas). No último grupo,
o autor coloca em evidência o olhar do pesquisador sobre o objeto como viabilizador de uma
interpretação do que seja ou não espetacular (p. 03).

Em nosso olhar de pesquisadores das artes da cena, sobretudo da bufonaria, podemos perceber que a
presença da figura do bufão atravessa/perpassa a organização proposta por Armindo Bião (2007) acerca
dos objetos da Etnocenologia. Substancialmente, o bufão e sua arte tem aparecido diversas vezes e em
vários momentos na história das artes (do espetáculo), desde as figuras mitológicas e divindades gregas e
romanas, nos bobos de Shakespeare ou nos personagens derrisórios de Beckett, dentre outras. De manei-
ra adjetiva, os ritos espetaculares trazem seres grotescos e também bufonescos desde os rituais primitivos,
a carnavalização e também nas sociedades modernas, vide os tipos de bufão, conforme já elencados neste
artigo, uma vez que cabem nesta classificação os “rituais religiosos e políticos, dos festejos públicos, en-
fim dos ritos representativos ou comemorativos” (BIÃO, 2007, p. 27).
Para o terceiro grupo de objetos da Etnocenologia, ainda conforme Bião, a espetacularidade dos
fenômenos se daria por meio do olhar do pesquisador. No experimento cênico Oração do Santo Gozo,
colocamos em cena tipos de bufões que aos nossos olhos possuem caráter espetacular e também pos-
sibilidades de diálogos com o tema do poema cujo experimento é a sua encenação: a relação entre o
profano e o divino dada por meios das figuras escolhidas, como a prostituta que pode ser referenciada
desde Maria Madalena, atravessando outras mulheres adúlteras da história e do cotidiano da sociedade;
o bêbado-mendigo, toda sua sujeira, blasfêmia e inconsciência, também outro tipo comum no cotidiano
e em personagens sociais presentes na bíblia, no teatro ou simplesmente na memória social de pequenas
e grandes comunidades; e por fim, os profetas religiosos, que como os outros também contém inúmeras
referências adicionadas a que é feita ao Papa Bento XVI, conforme já narrado.
Nos estudos e processos criativos do grupo Bufões de Olavo, desde as experimentações feitas a par-
tir da figura do palhaço, traçamos um caminho que visou a descoberta e construção do palhaço a partir
das características físicas e intelectuais de cada ator/atriz, ou seja, sempre a partir de si. Assim, os tipos
construídos apresentam muitas similaridades com quem os representa. No trabalho com o bufão, temos
buscado seguir este percurso à luz da ideia de que a técnica de bufão (a sua máscara) permite ao intérprete
experienciar o lugar de abjeção social que os tipos de bufão se inserem, principalmente se tratando dos
bufões excluídos. Parecem possibilitar também experiências substanciais na formação artística e pessoal
daqueles que trabalham com esta técnica e temáticas.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 191
Oração do Santo Gozo no 25º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau, 2012 (Foto
de RadainRubinstain)
192 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FURB, Blumenau, 2012.
BIÃO, Armindo. Um trajeto, muitos projetos. In: Artes do corpo e do espetáculo: questõesde etnocenologia. Salva-
dor: P& A, 2007, pp. 21-42.
DUMAS, Alexandra G.. Etnocenologia e comportamentos espetaculares: desejo, necessidade e vontade.
In: VI Congresso da ABRACE, 2010, São Paulo. Anais da Abrace. São Paulo: UNESP, 2010.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profrana: danças, piruetas e mascaradas. BeloHorizonte: Autêncica, 2003.
________________. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In:Revista Brasileira da Educação.
No. 19, Jan/Fev/Mar/Abr, Rio de Janeiro: ANPED, 2002.
LIRA, Flávio. Oração do Santo Gozo, João Pessoa, 2012 (poema não publicado).
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988.
LOPES, Beth. A blasfêmia, o prazer, o incorreto. Revista Sala Preta. No. 05. São Paulo: USP, 2005.
TONEZZI, J.; LIRA, F.; BARROS, N; FARIAS, S. Dos pés ao nariz: Relatos de uma trajetória formativa.
In: O Mosaico: R. Pesq. Artes, Curitiba, n. 8, p. 157-166, jul./dez., 2012.
RUBINSTAIN, Raday. Oração do Santo Gozo. 25º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blume-
nau – FITUB, Blumenau, SC, 2012 (arquivo do grupo Bufões de Olavo).

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 193


UMA EXPERIÊNCIA COM
TEATRO NAS RUAS DE PERIPERI
Sergio dos Santos Reis
Licenciado em Teatro pela Universidade Federal da Bahia
sergiolumumba@gmail.com

Prof. Dr. Osvanilton de Jesus Conceição


Universidade Federal da Bahia
osvaniltonconceicao@yahoo.com.br

RESUMO: Com este artigo apresentamos uma reflexão sobre o ensino de teatro no contexto não
formal, a partir da leitura de alguns autores e dashistóriasde vida dos participantes da oficina de teatro
realizada no ano de 2015 como parte práticado trabalho de conclusão de curso intitulado,Uma Pedagogia
de Teatro Popular: Um estudo de caso na Comunidade da Nova Constituinte e no Colégio Estadual Padre Palmeira.

Palavras-Chave: TeatroPopular, Teatro de Rua, Periperi.

ABISTRACT: Witch these article to show a reflexion about Theatre teachingin context no formal, from
reading samethingauthors and history live of the participants of theatre workshop happening in 2015
agelikepart practical of the conclude work course witch title: Uma Pedagogia de Teatro Popular: Um estu-
do de casona Comunidade da Nova Constituinte e no ColégioEstadual Padre Palmeira.

Key words: Popular Theater, Street Theater, Periperi.

Pautados nas possíveis relações entre o saber empírico e conhecimento cientifico trazemos o relato
das oficinas de teatro que foram promovidas pelo Coletivo Artitude de Rua que desde 2010 realiza oficinas
de artes com os moradores da Nova Constituinte.A oficina de teatrofoi direcionada para não-atores efoi
desenvolvida a partir da utilização de jogos e improvisações teatrais, técnicas de interpretação teatral,
estudo de diferentes estéticas e montagem cênica com finalidade de, por meio da arte-educação,propor-
cionar asensibilização e a formação integral do indivíduo.
A oficina culminou comuma mostra cênica que teve participação na Trezena de Santo António de
Dona Nice no Bairro de Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador. Esta trezena é realizada ao longo de
duas décadas e reuni pessoas de diferentes grupos culturais a exemplo do grupo de rezadeiras, do Grupo de
SambaE.T. e, recentemente, o ColetivoArtitude de Rua que surgiu em 2006 com as experiências dos mutirões
culturais que aconteceram no Bairro de Mussurunga.
Com o objetivo de promover o acesso aos bens culturais, às práticas artísticas e a divulgação das
produções dos artistas locais, utilizando-as como pretexto para ações comunitárias com intervenções de
multiplicidade artística, o ColetivoArtitude de Rua passou a atuar em outros bairros da Cidade de Salvador
dentre os quais destaco o Bairro de Periperi, especificamente a Comunidade Nova Constituinte na arti-
culaçãoda atividade teatral na referida trezena.

194 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Além do desejo de promover ações comunitárias, o retorno para Periperi também foi impulsionado
por memorias afetivas que estão ancoradas em vivencias estabelecidas desde a infância quando a minha
avó Eliza me levava para veranear nos períodos de férias. Periperi está localizado entre os Bairros de Cou-
tos e Praia Grande, no subúrbio ferroviário de Salvador, seu nome é de origem indígena e está associado
à multiplicação da planta junco em planície alagada, onde desemboca o Rio Paraguari.
É possível chegar a Periperi através da Avenida Suburbana, pela BR 324 ou de trem, desfrutando de
uma belíssima paisagem do Subúrbio e de parte da Baía de Todos os Santos. Periperi originou-se de uma
fazenda em meados do século XIX e durante o século XX tornou-se um bairro conhecido por ser uma
importante estância para veraneio e moradia para aposentados, que se recolhiam para descansar à beira
do mar, após anos de serviço. Periperi deu início a seu crescimento desenfreado a partir da construção do
trecho que liga a Calçada á Paripe.
No passado Periperi tinha um forte aspecto interiorano com brejos nos quais os sapos coaxavam em
plena luz do dia; com ruas de barro onde jumentos passeavam livres e eu, junto com outras crianças,
brincava de pique esconde, pega-pega, e outras brincadeiras, que povoam a minha memória, a exemplo
das cabanas que armávamos embaixo de um grande dendezeiro que ficava no fundo da casa de Tia Delzu.
O aniversário de Tia Delzu acontecia no dia primeiro de janeiro, data em que é realizada, na Praia de
Boa Viagem, a Festa do Nosso Senhor dos Navegantes. Próximo ao Forte Monte Serrat, na Ponta do
Humaitá, Tia Delzu estendia uma imensa lona e, com ela, armava uma tenda onde familiares e amigos
comemoravam o seu aniversario e, simultaneamente, a chegada do novo ano.Neste evento familiar, além
de sambar, tomar banho de praia e desfrutar da fartura de comida e bebida, tínhamos uma visão privile-
giada da chegada da imagem de Nosso Senhor dos Navegantes, esta trazida pela galeota em um cortejo
de barcos.
Coincidências ou conexões, algumas festas populares da Cidade de Salvador acontecem na mesmo dia
em que minha família também festeja o aniversario de alguns de seus membros. Como exemplo cito o
aniversario de minha mãe, que acontece no dia dois de fevereiro, data em que, aqui em Salvador, no Bairro
do Rio Vermelho, se organiza uma festa popular em homenagem ao Orixá Iemanjá.
Outra memória afetiva que se encontra presente no trajeto até a Comunidade Nova Constituinte no
Bairro de Periperi fica a cargo das lembranças da época em que meu pai era diretor do Bloco Carnavalesco-
GueriGueri que foi fundado pelos operários da Petrobras. Durante toda a minha infância, acompanhei o
GueriGueri que sempre saia nas festas populares da cidade. Ainda hoje, lembro-me de suas participações
na lavagem da escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim e no desfile no qual se comemora a Independên-
cia do Estado da Bahia, o “Dois de Julho”.
Essa memória afetiva particular ganhou novos sentidos à medida que encontrei um ambiente cultu-
ralmente rico composto por grupo de rezadeiras, grupos de samba e outros grupos artísticos. Assim,
articulei meu trajeto pessoal com diversos aspectos da coletividade que permeiam esses grupos e entendi
a dinâmica que prevalece no cotidiano da Comunidade da Nova Constituinte.
De acordo com o entendimento pautado nas características desta comunidade desenvolvi uma peda-
gogia teatral em conformidade com as especificidades deste contexto, ou seja, juntamente com alguns
integrantes destes grupos, identifiquei as lideranças comunitárias; aproveitei o potencial criativo dos não-
-atores e, desta forma, utilizei uma linguagem teatral que possibilitou o acesso a todos os participantes.
Os encontros e ensaios foram na sala ou na varanda da casa de Dona Nice, diante das imagens dos
santos, os únicos de instâncias mais elevadas de quem poderíamos esperar algum apoio e proteção até o
dia da apresentação que foi na Trezena de Santo Antônio que é realizada no mesmo local. O processo
criativo foi desenvolvido em vinte e quatro encontros noturnos, e, por se tratar de um elenco formado
por trabalhadores, que se reuniram depois de seus respectivos trabalhos. Durante todo o período da ofici-
na, Dona Nice vinha mais cedo da feira e preparava um lanche que, às vezes, era o jantar dos integrantes
do grupo.É bonito ver pessoas que amadureceram e que convivem com uma geração mais nova a renovar
as energias pela arte e participação coletiva.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 195
A princípio, a ideia dos participantes foi construir um texto teatral que contasse a história do bairro,
e que envolvesse fatos e acontecimentos da vida cotidiana dos mesmos, porém por temer não conseguir
elaborar um texto em curto período, resolvemos trabalhar com referência no texto dramático Sociedade de
Consumo de autoria do ator e diretor Orlando Martins, criado para teatro de bonecos de luva. O texto é
uma comédia de costume que narra o dia-a-dia de uma família que vive o conflito da prática do consumo
alienado e um consumo consciente.
O tema suscitou um debate, e então, abrimos uma roda de conversa a respeito de linha de cartões
de crédito e o assédio de mídias como propagandas na televisão, outdoor. Discutimos sobre prioridades
e futilidades no momento das compras, o endividamento e seus reflexos na vida familiar. A discussão
se acirrava à medida que os participantes identificavam em seu cotidiano algumas práticas de consumo
alienado, que refletiam em colocações como “– Sobre sociedade de consumo! Entende que não devemos
gastar muito, economizar para objetivos como, saúde, estudo, educação e gastar com o necessário.”1
No processo criativo foi utilizada a técnica de teatro de bonecos do Grupo Pirilampo2 que tem na voz
e na oralidade seus principais recursos para a interpretação com bonecos, e exige do ator o domínio do
tema central e suas relações com outros temas, possibilitando que os mesmos criem um repertorio de
ações para serem desenvolvidas diante da necessidade de improviso. A intenção é trabalhar o texto, esgo-
tando as possibilidades de entendimento do mesmo sem que os atores se tornem dependentes do dialogo
escrito e assim,travem a ação criativa, o improviso e a continuação da cena.
Citado por Ana Maria Amaral (1996, p.166), Roger Daniel Bensky afirma: “não fazer no teatro de bo-
necos, distinção entre o teatro popular e teatro erudito e sim uma expressão artística que refletira quem
a realiza”. Com base no pensamento de Benskypodemos afirmar que há influências do texto dramático
Sociedade de Consumo sobre a estética da encenação realizada na Comunidade da Nova Constituinte.
Para Bensky, na dramaturgia para bonecos encontramos dois aspectos fundamentais: a caricatura so-
cial ou satírica, e a poético maravilhoso, aspectos também evidentes no texto trabalhado pela experiência
no conflito entre a prática do consumo alienador ou um consumo consciente, representados respectiva-
mente pelas personagens Idalina e Moacir. Enquanto a primeiro pretende a transformação social através
da exacerbação dos defeitos humanos, como pode ser visto no consumo alienado e doentio da persona-
gem Idalina, provocando o riso, torna manifesta certas forças anárquicas, propõem inversão de valores, a
exemplo do empregado contra o patrão ou ridicularizando o patrão. A segunda pretende a transformação
do universo, imersão no mundo irreal, provocando liberação do poético, propondo a desintegração do
material, pois, modificando-se a realidade, é que se chega ao fantástico.
No poético fantástico, destaca-se a música como um recurso que exerce uma importante função nos
âmbitos metodológico, dramatúrgico e estético. Na metodologia muitos entraves na relação entre os par-
ticipantes foram revolvidos com a realização das músicas do repertorio que favoreciam o surgimento de
um ambiente fértil para o acontecimento dos ensaios que, geralmente, eram acompanhados por instru-
mentos percussivos, garrafas e pratos. Outra atividade que fomentava um ambiente favorável aos ensaios
com os textos era a realização dos cortejos como um exercício do que se pretendia para a apresentação.
Nos aspectos dramáticos e estéticos, encontramos nas experiências de vida dos participantes da ofi-
cina de teatro, um rico material para a construção dramatúrgica em contraponto a uma sociedade con-

1
Fabiana Santos, questionário respondido para pesquisa no trabalho de conclusão de curso.
2
Grupo de teatro de bonecos, bonecões e animação de festas, atuante em espaços alternativos, seu público du-
rante a década de 90, foram os passageiros dos ferry-boate na travessia Salvador/Itaparica, os estudantes de cursos
preparatórios para concursos como os vestibulares entre os anos 2000 a 2010, abordando sempre temas didáticos,
período em que atuei no grupo que predominantemente teve como fonte financiadora a animação de festas, como
aniversários e peça sobre encomenda. , dirigido por Orlando Martins, discípulo do mestre bonequeiro Antônio
Mendes, diretor teatral do grupo Teatro de Gente, e foi vice-presidente da Associação de Teatro de Bonecos da
Bahia (ATBB) nos anos 80.
196 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
sumista, como propõem o texto trabalhado. Assim, fatos históricos, notícias e músicas que permeavam
o imaginário dos participantes foram inseridos no texto de modo que, as experiências vividas puderam
impulsionar as ações das personagens.
As cenas e partituras cênicas criadas e construídas abordaram temas como, violência contra a mulher,
misoginia e a Lei Maria da Penha, cenas inspiradas em recortes de revistas e em dramaturgias pessoais
como relata uma das participantes da oficina:

– Com papel, caneta, pessoas que tenham humildade e participação, uns relatórios sobre mi-
nha vida fazem uma peça teatral, desta forma só tenho que mudar para uma coisa melhor,
também tem importância para que as pessoas venham entender o que passa da vida para o
teatral, pois elas entendem melhor a realidade quando sentadas assistindo teatro.3

Outro aspecto em destaque da metodologia é que, ao propor a compreensão do texto por partes, a
construção do processo criativo rompeu com o entendimento linear do texto, levando os atores a per-
ceber diferentes possibilidades de finalização do mesmo. Deste modo, os atores foram direcionados a
desenvolver uma atitude corporal simultânea a necessidadede compreensão de cada cena, suportando o
fato do texto ser literalmente cortado em pedaços, permanecendo vivo cada um desses pedaços.
Assim como o trabalho com o texto, foi proposto aos atores a decomposição dos gestos, como forma
de promoção do entendimento de suas próprias ações nas cenas. Para isso, foram utilizados alguns jogos
do Teatro do Oprimido. Dentre os jogos utilizados, cito como exemplo o jogo em que os atores provocados
por uma imagem criam uma etátua, congelandonuma ação. Em seguida, um ator por vez deverá com-
pletar a ação anterior, formando um quadro de gestos estáticos. O quadro move-se a partir de um estalo
de dedos, executando o futuro da ação, ou seja, a ação seguinte, todos simultaneamente. Realizamos três
ações futuras e com três estalos de dedos regressam à primeira ação. Ao final, os atores acumulam sete
possibilidades de ações a serem realizadas.
Em meio a uma verdadeira confusão, as ações de alguns participantes convergiram aparentemente
para o mesmo objetivo, o que fazia parecer ter um sentido predeterminado, ao menos para quem assistia.
Nesse momento, refletimos sobre as possibilidades de ressignificação de um mesmo gesto no ambiente
cênico e, não obstante, também reafirmamos a possibilidade de mudança de atitude na cena. Como apon-
ta Ingrid Koudela (1991, p.103):

O gesto é, segundo Benjamin, “um elemento de uma atitude”. Por meio da interrupção, o
gesto tem “um começo e um fim” passíveis de serem fixados individualmente (...) a atitude,
enquanto tal, se encontra na corrente viva”. À medida que o gesto se constitui o material do
teatro épico seu uso apropriado leva à mudanças de atitude.

A intenção na construção das cenas de O Consumado é a quebra temporal e o estranhamento brech-


tiniano, e tirar o atuante, e no caso da experiência, o expectador do olhar habitual para um olhar atento
e racional, pois, a partir das memórias relatadas pelos participantes da oficina, não só, experimentamos
alterações nas atitudes das personagens, mais também na dramaturgia em queao comparar os bens de
consumo ofertado pelo mercado do país, antes e depois da ditadura militar, o consumismo da persona-
gem Idalina, em conflito com o consumo consciente de Moacir, seu marido, levaria o casal, que se ama,
ao desquite no tribunal. E para sanar as diferentes opiniões, em uma disputa de argumentos, foi realizada
uma enquete com a plateia, provocando-a a influenciar na decisão da juíza.

Trecho extraído de um questionário que foi respondido pela participante da oficina de teatro, Milena Ferreira.
3

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 197


A respeito da dramaturgia um participante da oficina de teatro tece a seguinte opinião:

– O texto tem que está relacionado com a sociedade, para que ações como esta, (referindo-se
a Trezena) tenham mais apoio politico, social, pesquisa do assunto que esta sendo abordado
e leva para o povo a cultura, critica a sociedade, mostrando a realidade da vida, do cotidiano,
para compreender e se defender do sistema.4

A metodologia se aproxima bastante da forma de trabalho adotada pela Companhia de Teatro Popular
da Bahia, na qual atuei por mais de dez anos, dentre outras modalidades teatrais, como o teatro voltado
para o publico de trabalhadores das empresas e indústrias do Estado da Bahia. Com base nesta vivência
intuir que os atores que atuam para trabalhadores das fabricas, indústrias e canteiros de obras, precisam
adequar o seu gestual e a sua organização textual de modo a tratar com propriedade, em curto espaço de
tempo, os temas abordados, inevitavelmente eles reservam um grande volume de informações geradas
nas diversas possibilidades trabalhadas, em uma só situação, utilizadas em improvisações ou descartadas
devido a velocidade em que técnicas e normas de segurança, saúde e meio ambiente evoluem.
Nesta mesma companhia busquei apoio para a encenação com a participação da atriz Clea Cardoso
no espetáculo que foi realizado com os participantes da oficina de teatro na Comunidade da Nova Cons-
tituinte. Nesse momento, ficou evidente que o didatismo do processo tem o mesmo peso que a questão
estética, a qualidade da encenação, por entender que uma não funciona sem a outra para o alcance do
Teatro Popular que a experiência pretende, neste caso do trabalho com o teatro nas ruas de Periperi.
Além de prover materiais para a criação das personagens e composição das cenas, as experiências
de vida dos participantes também me apontaram caminhos para o trabalho corporal em que tracei um
paralelo entre a poética comum ao teatro de bonecos e a expressão corporal dos atores.No tocante ao
trabalho corporal dos atores destaco a comicidade majoritariamente presente em seus corpos e em suas
vivências. Tal observação me levou a acessar Henri Bergson (2001, p. 7) que diz:

Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. [...] O riso não tem maior inimi-
go que a emoção. Quero com isso dizer que não podemos rir de uma pessoa que nos inspire
piedade, por exemplo, ou mesmo afeição: é que algum instante será preciso esquecer essa
afeição e calar essa piedade. Numa sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se
choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente sensíveis harmonizadas
em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se prologasse em ressonância sen-
timental, não conheceria nem compreenderia o riso.

Com base nessas afirmações procurei por intermédio dos jogos e improvisações teatrais, entender a
função social do riso e a coesão social que o mesmo provoca. Posto que, como também aponta Bergson
“Somos cúmplices, nosso riso é sempre em grupo, contagiante, quantas vez já não se disse que o riso do
espectador, no teatro, é tanto mais longa quanto mais cheia está a sala?”(Idem).
A partir destas exposições reflito sobre as paixões das personagens, Idalina e Moací, que, de tão me-
cânicas se tornam risíveis típico de personagens “tipo” da cultura cômica popular, reproduzindo aqui, o
que era feito nas comédias de Aristófanesna Grécia e na Comédia Dell’art,5 articulado com os elementos de

4
Trecho extraído de um questionário que foi respondido pelo participante da oficina de teatro, Ailton Villaça.
5
Suas origens exatas são desconhecidas porém os primeiros registras datam entre o século XV e XVI, na Itália,
país que ainda mantinham viva a cultura do teatro popular da antiguidade clássica, a “Commedia dell’arte” vem se
opor a Comédia Erudita, se afirmando até o século XVII. Também foi chamada de “Commediadell improviso” e
“ Comedia Soggeto”. Suas apresentações eram feitas pelas ruas e praças públicas, ao chegarem em uma cidade pe-
diam permissão para se apresentar, em suas carroças ou praticáveis, pois eram raras as possibilidades de conseguir
um espaço cênico adequado. Ela se fundamenta no seguinte parâmetro: A ação cênica ocorria no improviso dos
198 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
tempos remotos do teatro de bonecos como um meio de expressar fazeres e saberes, de diferentes povos
e seus costumes, sejam eles de marionete, títere ou bonecos rústicos. Sendo pré-textos para uma investi-
gação do homem em sua multiplicidade, seu contexto social e seu percurso de desprazeres, o boneco e o
riso foram e continuarão sendo um meio de construir um próprio “ser” melhor, ou leia, mais habilidoso,
refletindo, consequentemente, na realidade que o cerca.
A apresentação seguiu os moldes do teatro de rua, feito um circulo e trabalhado com os princípios de
triangulação, preparando o grupo para cena aberta (arena), tecnicamente houve problemas de visibilida-
de e acústica, os ensaios muitas vezes incomodavam os vizinho, já que ocorriam ali mesmo na porta de
Dona Nice,o que nos obrigou a trocar de lugar diversas vezes, para a quadra de futebol ou no asfalto da
rua, sugerindo o questionamento da separação nítida entre ator e espectador, a sala de espetáculo e a cena
aberta e a relação do estado e seus cidadãos, sobre a falta de espaço para lazer na comunidade, recorda
uma das participantes.

_ A exposição dos exercícios em espaço aberto me deixa pressa, eu não me saio muito bem nos
exercícios na rua. Tenho medo de levar um pancada. (Lembra) A mulher de meu primo tomou
uma bolada no rosto e desmaiou, foi horrível, ninguém tinha intenção, foi uma brincadeira, é
sério.6

Os ensaios na rua sempre aglomeravam pessoas, proporcionando aos atores algumas noções da rela-
ção palco/plateia, como as possibilidades de improviso e interação, a principio, os atores tinham dificul-
dade com a interpretação, também se sentiam inibidos, mas eram logo influenciados pelos atores mais
dispostos e assim superavam as dificuldades, no final do ensaio, abrimos a roda e ouvíamos a opinião do
público.
As vivências dos atores com a presença do público reforçaram o caráter popular do teatro realizado
na experiência da Comunidade da Nova Constituinte e, do mesmo modo, sugeriu a reflexão sobre o
comportamento humano e a sociedade.Assim, vimos na Etnocenologia um potente aporte teórico me-
todológico para a continuidade das reflexões e proposições teatrais em comunidades e outros contextos
não formais nos quais predominam expressões e saberes que contam histórias do povo.

Referências:

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos, Objetos. 3ª Ed. – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1996. (Texto & Arte; 2).
BERGSON, Henri. O Riso. 2ª ed. Rio de Janeiro,RJ: Zahar editores, 1983
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: Um Jogo de Aprendizagem. Perspectiva / Editora da Universidade de
São Paulo, 1991.

atores, que passavam a serem autores dos diálogos apresentados, seguiam apenas um roteiro que se denominava
Canovecci, possuindo total liberdade de criação, os personagens eram fixos e muitos atores desta estética de teatro
viviam seus papeis até a morte.
Roda de conversa realizada na oficina de teatro ano de 2015.
6

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 199


CORPO-FRETADO, CORPOS-
FRETE, EQUIPE-FRETE:
CORPOS ESPETACULARES DO
CORTEJO FÚNEBRE DO FRETE
EM CURUÇÁ-PA
Valéria Fernanda Sousa Sales1
SEDUC-PA
vsfsales79@gmail.com

Resumo: As relações de alteridade com o frete – ritual fúnebre da povoação São João do Abade, em
Curuçá-PA –, que identificou corpos espetaculares do cortejo (corpo-fretado, corpos-frete, equipe-frete),
bem como sua organização (Dona do frete) e nomenclatura (frete) dada pelos participantes do mesmo,
que entendem o ritual como “uma mudança de casa” (casa-cemitério). A artista-pesquisadora-partici-
pante que envolveu um corpus de conhecimento na busca por possíveis origens do frete (História de
Curuçá, Funeral Barroco, tradições fúnebres...), participou e integrou o ritual, identificou participantes
fixos, momentâneos, regras, simbologias... Experienciou o corpo exausto (para acompanhar e registrar o
fenômeno) e alterado pela ingestão de cachaça... São elementos presentes na investigação que resultou na
dissertação “Lágrima e cachaça: a espetacularidade do cortejo fúnebre do frete em São João do Abade,
Curuçá-PA”, pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/ICA/UFPA)
sob a orientação da Drª Giselle Guillhon e coorientação do Dr. Miguel Santa Brígida.

Palavras-chave: Corpos Espetaculares, Cortejo fúnebre, Curuçá-PA.

Abstract: The relationship of alterity with frete - Funeral ritual of São João do Abade in Curuçá-PA -
which identified spectacular procession bodies (body-fretado, bodies-frete, team-frete), as well as your
organization ( Dona do frete) and nomenclature (frete) given by the participants of it, who understand
the ritual as “moving house” (home-cemetery). The artist-researcher-participant involved a corpus of
knowledge in the search for possible sources of frete (History Curuçá, Funeral Baroque, funeral tradi-
tions ...), participated and joined the ritual, identified fixed participants, Momentary, rules, symbologies. ..

1
Mestra em Artes (PPGARTES/ICA/UFPA-2014), Especialista em Língua Portuguesa (UFPA-2005), Aperfei-
çoada em Historicidade Étnico-Racial na Amazônia (SEDUC-PA/DEDIC/COPIR- 2010), Graduada em Letras
(UFPA-2002), Técnica em Teatro (ETDUFPA- 2001), Atriz, Professora da SEDUC-PA, Acadêmica imortal da
ACLAC (Academia Curuçaense de Letras, Artes e Ciências), Acadêmica correspondente e Delegada Cultural da
ASBAERJ (Academia Soberana Brasileira de Artes do Estado do Rio de Janeiro), Integrante do TAMBOR (Grupo
de Pesquisa em Carnaval e Etnocenologia/ CNPq), do GETNO (Grupo de Estudos de Etnocenologia) e colabo-
radora do CIRANDA (Círculo Antropológico da Dança/ CNPq).
200 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
experienced the weary body (to track and record the phenomenon) and amended by the rum intake ... are
elements present in the investigation that resulted in dissertation “Teardrop and cachaça: the spectacle of
the funeral procession of frete in São João do Abade, Curuçá-PA “, research conducted at the Graduate
Arts Program (PPGARTES / ICA / UFPA) under the guidance of Dr. Giselle Guillhon and co-super-
vision of Dr. Miguel Santa Brigida.

Keywords: Spectacular Bodies, Funeral Procession, Curuçá -PA.

O INÍCIO DA CAMINHADA

Na infância, meus caminhos estavam entrelaçados entre Curuçá e Icoaraci2. As férias eram em Curuçá
com banhos de mar, amigos, muitas frutas, peixes e histórias de visagem. Em Icoaraci, o retorno à escola
e obrigações. No Ensino Médio me encantei pela Literatura e a Segunda Geração Romântica, o Mal do
Século. Mergulhei nas histórias de Álvares de Azevedo, Lord Byron, Edgar Allan Poe e os poemas de
Charles Baudelaire. Segui este caminho no Curso de Letras, produzindo duas pesquisas, uma que resultou
no meu TCC e outra em uma comunicação para o ENEL3 que aconteceu na UCSAL, Salvador em 2002.
Em 2005 fui trabalhar em Curuçá e me reconheci como parte daquele lugar que é a origem de meus fa-
miliares maternos. No ano de 2009 trabalhando na povoação São João do Abade conheci o frete em uma
tarde em que fui instigada a sair da sala de aula para saber que frete era este que ia passar, eu já imaginava
uma mudança de casa, com um caminhão levando objetos para o novo lar. Para a minha surpresa eram
pessoas que carregavam um caixão para o cemitério no centro de Curuçá. Foi um momento de encontro
com o meu medo da morte, que não existia na literatura.

FIGURA 1: Participantes fixos e momentâneos acompanham o frete.


Fonte: pesquisa de campo, fotografia da autora, 2012.

Distrito de Belém.
2

Encontro Nacional dos Estudantes de Letras.


3

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 201


No mestrado em 2012 escrevi o frete como meu fenômeno de pesquisa, mas ao mesmo tempo me
questionava como iria vencer os meus medos para investigar algo que eu achava estar tão distante de mim.
Então busquei estudos na Etnocenologia e pesquisadores que me ajudassem a pensar neste fenômeno.
A pesquisa se definiu como qualitativa de cunho etnográfico, com entrevistas não estruturadas, além de
pesquisa bibliográfica e documental. Situei-me como artista-pesquisadora-participante, criei uma relação
com o meu fenômeno de pesquisa e continuo na temática da morte enquanto festa.
Para ver os corpos espetaculares do frete foi necessário conhecer os elementos que o compõe, suas
simbologias, regras e principalmente dar conta de acompanhá-lo durante seu cortejo fúnebre. Mas a
pesquisa pedia um conhecimento histórico sobre o município de Curuçá e suas relações com rituais de
morte, além das religiões dos abadienses. O frete é um fenômeno que não está a nossa disposição, ele só
acontece se for para alguém considerado um amigo na povoação e se for organizado pela Dona do frete
e sua equipe. Foi uma investigação que mexeu com meus medos, tradições e conhecimentos sobre rituais
fúnebres.

CURUÇÁ-PA

O município de Curuçá – distante de Belém cerca de 130 km – originou-se de uma missão jesuítica,
tendo sua emancipação política no ano de 1757 e posteriormente passou a Villa Nova d’El Rey (FER-
REIRA, 2002). Curuçá teve seu início passando pela povoação São João do Abade e se fixou próximo a
um braço de mar, onde hoje está o centro da cidade e a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Local que
até a metade do século XIX presenciou o Funeral Barroco que através de seu cortejo acompanhado por
familiares e conhecidos do morto, párocos e a Cruz da Fábrica (estandarte com o símbolo da administra-
ção das igrejas), seguia para o sepultamento na igreja ou em seu Ádro (ao lado ou atrás).
Com a Política Higienista estabelecida no Brasil, foram criados cemitérios longe do centro da cidade
pela preocupação de contaminação dos fiéis que participavam dos rituais católicos nas igrejas. Fazendo
uma pesquisa no livro de óbitos nº 2 de Curuçá (1826-1872) encontramos um lugar que viveu a escravi-
dão, a presença de indígenas e portugueses. Há registro de sepultamento de anjos escravos (recém-nas-
cidos escravos (1839))4, mamelucos (índios-brancos), cafuzos (índios-negros), índios, escravos (preta,
mulata) e donos de escravos.
O cemitério de Curuçá é o São Bonifácio (criado em 1855) para onde se destinam curuçaenses faleci-
dos das localidades Curuperé, Valério, São João do Abade, Muriá, Pedras Grandes, Arapiranga. Ele tem
grande valor para a Arte Funerária, destacando-se por seus túmulos de estilos, particularidades e icono-
grafias que propiciam leituras de uma sociedade curuçaense do século XIX (CAMPOS, 2014). Um lugar
de memória que recebe amigos e familiares de falecidos, principalmente na Iluminação (02 de novembro)
quando as pessoas irão acender velas (iluminar) à noite nos túmulos, reencontrar parentes, contar como
foi o ano para o falecido, tomar manicuera5, comprar flores para enfeitar os túmulos, comer churrasco,
vatapá, beijo de moça, tomar cerveja, deixar as crianças no pula-pula... Um arraial na frente e uma festa
dentro do cemitério.

O FRETE

A povoação São João do Abade fica distante do centro de Curuçá cerca de 5 km, lugar de um povo em
trânsito pelo mar, para os pescadores, e pela PA-136 para ir trabalhar, estudar, passear para o centro de

4
A Lei do Ventre Livre é de 1871.
Bebida feita com o sumo da mandiocaba (mandioca doce) que é fervido e servido com arroz ou pedaços de
5

macaxeira cozida.
202 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Curuçá ou outros municípios como Marapanim e Terra Alta. Abade de um povo corajoso que diz que lá é
“para viver não para morrer”, que no ano de 1984 disse não ao projeto do ex-vereador Oscar Araújo que
queria um cemitério na povoação. O povo invadiu o terreno destinado ao cemitério, construindo casas
e hoje é um bairro conhecido como Sertão. A ação dos abadienses lembra o movimento da Cemiterada
que Salvador-BA presenciou em 1836 quando as irmandades destruíram o Campo Santo por não aceita-
rem que seus mortos não fossem mais sepultados nas igrejas e sim em um cemitério longe do centro da
cidade (REIS, 1991). Abade até agora (2016), não possui cemitério e pelo que parece vai demorar muito
para ser distrito de Curuçá, pois além do cemitério, não tem uma demarcação oficial (pela prefeitura), só
a do povo que escolheu a ponte (em um braço de mar) para dizer onde começa ou termina a povoação.
Para o povo que é feliz vivendo em abade, o lugar escolhido como sagrado – e que mantêm a morte
distante deles –, é o cemitério São Bonifácio. Quando uma pessoa morre em Abade e é considerado um
grande amigo, pessoa boa, conhecida, bom vizinho... Os familiares do falecido entram em contato com
a Ana Lúcia Farias6 para cuidar do corpo morto (dar banho, aplicar formol e vestir), organizar o velório
e o cortejo fúnebre. A família fica responsável pelos rituais religiosos e receber as pessoas para o velório.
Como é um momento muito difícil para os familiares do morto, os amigos se solidarizam neste momento
fazendo companhia no velório, doando alimentos e acompanhando o frete – como este funeral, orga-
nizado pela Ana Lúcia, é conhecido e reconhecido por quem sempre acompanha este ato de Amizade.
A Ana Lúcia é conhecida no frete por seu papel social Dona do frete, ela organiza: O velório chaman-
do sua equipe de mulheres que tomam conta da cozinha para preparar os alimentos que foram doados,
fazem mingau de milho e arroz, café, bolo, salgados, arroz com galinha, vatapá, peixes assados, carne co-
zida... Os homens que jogam baralho e dominó na frente da casa para distraírem as pessoas da dor, tanto
quanto para que os visitantes permaneçam lá e a família enlutada não fique só neste momento.
No dia seguinte acontece a coleta para comprar as bebidas e o povo acompanhar o cortejo fúnebre.
Amigos, familiares e a equipe do frete assumem a função de levar o morto da sua antiga casa para sua
nova morada. Eles se dividem para carregar o morto em um percurso masculino e feminino, espaço
demarcado por quatro homens que saem da antiga casa com o morto, depois homens se revezam para
levar seu amigo até o Ponto da Mangueira7 para que as mulheres assumam o cortejo levando o caixão até
a porta do cemitério e novamente os quatro homens que o tiraram da casa, agora entrem com ele em sua
última morada.

FIGURAS 2 E 3: Homens e mulheres dividem o cortejo do frete para levam o caixão até o cemitério
Fonte: Pesquisa de campo, fotografias da autora, 2013.

Curuçaense de 45 anos, Agente Comunitário de Saúde (ACS).


6

Lugar onde existia uma grande mangueira, aproximadamente 3 km do Abade para o cemitério São Bonifácio.
7

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 203


No São Bonifácio não entram bebidas, nem bagunça, é o momento da despedida. A família faz suas
homenagens ao ente querido e ao final do sepultamento todos retornam cansados da caminhada, em sua
maioria com corpos alterados pela ingestão de bebidas alcoólicas (geralmente cachaça e vinho) e exaustos
da dor da despedida. Visualmente o cortejo vem com pessoas em bicicletas, outras levando e acompa-
nhando o caixão, algumas em motos e um ônibus com poucas pessoas (idosos e crianças).

A ARTISTA-PESQUISADORA-PARTICIPANTE DO FRETE

A Etnocenologia em seu significado de ETNO – sentido de diversidade cultural – CENO – para além
do corpo biológico, indo para o espaço espetacular que ele se estrutura, os participantes do fenômeno
em uma situação relacional na cena – e LOGIA, relacionando aprendizagem no ambiente dos pratican-
tes (BIÃO, 2009c), proporcionou-me olhar para o frete através de seus participantes, que o reconhecem
como frete – uma nomenclatura dada por Ana Lúcia Faria, que o entende como o momento que estas
pessoas estão sendo fretadas (contratadas) para levar o caixão ao cemitério. Sendo que Ana Lúcia é reco-
nhecida como Dona do frete, por organizar o mesmo.
Enquanto artista-pesquisadora-participante (BRÍGIDA, 2007) vivi o frete em uma relação de alteri-
dade com aquele contexto cultural que me exigia coragem para enfrentar o meu medo de ver o cadáver;
uma preparação física para acompanhar um cortejo em que homens e mulheres ou caminhavam rápido
ou corriam com o caixão; além de experimentar métodos para registrar o fenômeno. Para acompanhar e
analisar o frete foi necessário olhá-lo em seus corpos: dimensão espacial (percurso), estrutural (velório,
cortejo e sepultamento) e significado dentro de uma simbologia abadiense (regras, mitologia, tradição,
divisão por gênero, funções).
Nos primeiros momentos, acompanhada da Ana Lúcia, eu era apresentada à família enlutada
e tentava desmontar a minha estranheza em registrar aquele momento, conversar e comer no velório.
Para minha surpresa, sempre fui bem-vinda e até virou status o frete ser registrado por mim. Era eu
em contato com o frete, depois eu afetada por ele e ele por mim. No velório: fotografava, fazia registro
dos rituais religiosos, conversava e anotava curiosidades. No cortejo: fotografava, filmava e registrava as
conversas dos corpos alterados, as pessoas que davam dinheiro para comprar bebidas, o momento em
que os homens trocavam e brigavam para levar o caixão, as mulheres assumindo o cortejo, participantes
consumindo vinho e cachaça, a hora do sepultamento...

Figuras 4 e 5: A artista-pesquisadora-participante leva o caixão e fica no “bar”.


Fonte: Pesquisa de campo, fotografias de Jadson Costa, arquivo da autora, 2014.

204 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Para registrar os participantes fixos, momentâneos, a equipe do frete, a Dona do frete, as simbologias
que cada momento possui ou até de que forma o caixão deveria ser levado, as regras estabelecidas para
o frete... Eu chegava exausta! No maior frete que eu vivi (SALES, 2014) fique com as pernas inchadas,
impossibilitada de andar durante dois dias, então como resolver este problema para conseguir registrar os
fretes que estavam por vir? Precisei rever o material coletado até aquele momento e percebi (e ouvi) que
muitos ingeriam vinho ou cachaça para aguentar a caminhada... Decidi viver o frete somente com regis-
tros sensoriais... Vi e conversei com o morto, comi e ouvi histórias no velório. Dei coleta para as bebidas
do cortejo, ingeri cachaça e percebi meu corpo alterado na rua, levei o caixão no momento das mulheres,
fiquei no “bar” (fora do cemitério) bebendo e retornei para Abade no ônibus junto com os abadienses.
No dia seguinte ao frete, não senti dores, nem ressaca.

CORPOS ESPETACULARES DO FRETE

A partir das relações de alteridade com o frete, percebo-o como um macroevento, que ultrapassa a rotina,
sendo extracotidiano, Espetacular (BIÃO, 2009d), em que existem participantes fixos (familiares, amigos) e
momentâneos (transeuntes e pessoas que assistem de suas casas o frete passar). Dentro de sua nomencla-
tura FRETE temos a legitimação de quem faz e participa do mesmo (BIÃO, 2009a), com o significado
de transportar o morto para sua nova morada (casa-cemitério). A Ana Lúcia Farias, que dá o nome a este
fenômeno, exerce nele o papel social DONA DO FRETE, pois o organiza e estabelece-lhe regras: o per-
curso é dividido em feminino e masculino; não pode entrar com bebidas alcoólicas no cemitério, que é
um campo santo; não pode exagerar na bebida, causar brigas e confusões; regras infringidas há a punição
com a ausência em dois fretes.
Além do frete e Dona do frete (nomenclaturas estabelecidas pelos participantes do fenômeno), classi-
fico três corpos espetaculares: CORPO-FRETADO, o corpo morto que é levado para sua nova morada
em um ritual de passagem de vivo (morador do Abade) para morto (morador do São Bonifácio), sendo
ele alguém muito querido na povoação e que muitos fazem questão de acompanhá-lo na sua última pas-
sagem por aquele lugar. Para quem não tem uma boa convivência em Abade, não há frete, há enterro (o
caixão vai no carro da funerária, só com os familiares acompanhando). CORPOS-FRETE, os homens e
mulheres que carregam o caixão nos 5 km até o cemitério, eles foram “fretados” (contratados) como um
carro para fazer a mudança de residência (casa-cemitério). E a EQUIPE-FRETE que são os homens e
mulheres chamados pela Dona do frete para exercerem funções no velório (tomar conta da cozinha, fazer
comidas e bebidas, jogar baralho e dominó, servir os visitantes) e no cortejo (levar o caixão, fazer coleta,
comprar e servir as bebidas).

Figuras 6 e 7: Corpos espetaculares no cortejo do frete.


Fonte: pesquisa de campo, fotografias da autora, 2012-2014.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 205
Os participantes do frete nos microeventos cotidianos, na Teatralidade (BIÃO, 2009d), interagem no dia-
-a-dia com uma consciência mais ou menos clara do olhar do outro, sendo estes pescadores, professores,
agentes comunitários de saúde, estudantes, donas de casa, garis, comerciantes, peixeiros. Já na Espetaculari-
dade, que é a consciência reflexiva, clara do olhar do outro e de seu olhar para apreciar a alteridade (BIÃO,
2009b, p. 93), eles são carregadores de caixão, garçons e garçonetes, visualizados em seus corpos sóbrios
ou alterados pela ingestão de vinho ou cachaça, que correm, gritam e interagem entre si na rua.

A PESQUISA CAMINHANTE

O frete passou por minha vida para mudá-la, não era só aquele corpo-fretado que mudava de casa,
levado pelos corpos-frete e comandado pela Dona do frete. A minha mudança de Icoaraci para Curuçá se
concretizava naquele momento, era a mudança que me chamava e, quem me guiou neste caminho foi a Et-
nocenologia, conduzindo-me a viver este fenômeno em toda a sua estrutura, regras, simbologias e história.
O mergulhar em documentos, bibliografias e entrevistas que me contaram que Curuçá vive outras relações
com os rituais fúnebres antes do século XIX e como herança, permanece o frete e a Iluminação. Conhe-
cimentos necessários para se discutir a amizade por alguém que queremos acompanhar até seu último
momento, a maneira como essa despedida se dará e que formas utilizaremos para esquecer a dor da perda.
Mudei de casa, de concepção e recepção de rituais fúnebres, mudei meus medos, amigos se mudaram
durante a pesquisa do frete8. Foram muitas mudanças, muitas caminhadas em uma pesquisa que me insti-
ga sempre e me convida a caminhar com ela. O frete me convidou novamente, não mais para conhecê-lo,
agora é o momento da volta. No ano de 2016, durante os fretes que aconteceram no carnaval, mistura-
dos aos blocos carnavalescos, o retorno a Abade foi caminhando, dançando e bebendo, acompanhados
de carros ou bicicletas som. O bloco que retorna com os corpos-frete recebe o nome inspirado em seu
fundador (o corpo-fretado), o primeiro a sair foi o ENTERRA ELA, depois foi o ENTERRA PINTO,
de um senhor conhecido como Pinto e por último foi o ENGOMA ELA, de uma senhora que vendia
tacacá . Sendo assim, retornarei a Abade acompanhando a volta do frete em sua pesquisa caminhante!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. Um léxico para a etnocenologia: proposta preliminar. In:
____________. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Prefácio de Michel Maffesoli. Salvador: P &
A gráfica e Editora, 2009a, p. 33-43.
_____________. Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma cenologia geral.
In: ____________. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Prefácio de Michel Maffesoli. Salvador: P
& A gráfica e Editora, 2009b, p 89-94.
_____________________________. Estética performática e cotidiano. In: ___________. Etnocenologia
e a cena baiana: textos reunidos. Prefácio de Michel Maffesoli. Salvador: P & A Gráfica e Editora, 2009c,
p. 123-139.
______________. Teatralidade e espetacularidade. In: _________. Etnocenologia e a cena baiana: textos
reunidos. Prefácio Michel Maffesoli. Salvador: P & A Gráfica e Editora, 2009d, p. 161- 168.
BRÍGIDA, Miguel de Santa. A Etnocenologia como desígnio de um novo caminho para a pesquisa
acadêmica – ampliação do modo e lugar de olhar a cena contemporânea. In: BIÃO, Armindo Jorge de
Carvalho (org.). V Colóquio de Etnocenologia. Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós Graduação
em Artes Cênicas. Salvador: Fast design, 2007, p. 199-203.
CAMPOS, Kleber Douglas Neves de. Arte Funerária: eternização social no cemitério São Bonifácio de

8
O maior frete que vivi foi do ex-vereador Oscar Araújo, meu pesquisado, que se transformou em amigo durante
a pesquisa e companheiro de fretes.
206 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
Curuçá/PA. 2014. 57 f. Monografia (Licenciatura em Artes Visuais- PARFOR). Universidade Federal do
Pará- Instituto de Ciências da Arte, Castanhal, 2014.
FERREIRA, Paulo Henrique dos Santos. Fragmentos históricos de Curuçá. 1ª Edição, volume 1. Castanhal-
-Pará: Graf-Set, 2002.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
SALES, Valéria Fernanda Sousa. Lágrimas e cachaça: a espetacularidade do cortejo fúnebre do frete em São
João do Abade, Curuçá-PA. 2014. 117 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal do
Pará, Instituto de Ciências da Arte, Belém do Pará, 2014.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 207


MÁSCARAS EM PAUCARTAMBO
(PERU) - PRIMEIROS DIÁLOGOS
Vilma Campos dos Santos Leite1
IA-UNICAMP2; IARTE-UFU3
leitevilma2008@hotmail.com

Resumo: Este texto aborda especificamente estudos bibliográficos e iconográficos sobre as máscaras
que são utilizadas durante a Festa de Nuestra Senhora Del Carmem comemorada de 15 a 19 de julho na cida-
de de Paucartambo - Peru. A reflexão está inserida no contexto de uma pesquisa de pós-doutoramento em
curso intitulada Brincantes mascarados da cultura popular: possibilidades para a formação do artista cênico na contem-
poraneidade e subsidia a próxima fase da investigação, que consistirá em uma imersão em campo durante o
mês de julho de 2016. Nesse processo tem sido possível fazer algumas associações dessas máscaras com
outras máscaras de tradição teatral, por exemplo, as provenientes da Commedia dell’Arte, aliando oficinas
práticas de utilização das mesmas. Um dos maiores desafios tem sido como utilizar as máscaras em con-
texto diverso da cosmogonia andina, com uma apropriação que possa considerar a alteridade presente
em cada cultura.

Palavras chave: Cultura Popular, Máscaras, Formação do Artista Cênico.

Abstract: This text approaches especifically bibliographic and iconografic studies about masks that are
used during the party of Nuestra Señora Del Carmen celebrated in July, from fifteenth to nineteenth in Pau-
cartambo city, Peru. The reflexion is inserted in the context of a postdoctoral research entitled Brincantes
mascarados da cultura popular: possibilidades para a formação do artista cênico na contemporaneidade and subsidizes
the next phase of the research, that’ll be consisted of an immersion in field in July 2016. In this process
it has been possible to do some associations of these masks with others traditional drama masks, for
example, from the Commedia dell Arte, allying practical workshops of use of the masks. One of the main
challenges has been how to use the masks in different contexts of andian cosmogony, with an appropria-
tion that can consider the otherness present in each culture.

Key-words: Popular culture, masks, formation of the scenic artist.

1
Doutora em História INHIS-UFU; Mestre em Artes ECA-USP. Palhaça atuante no Projeto Pediatras do Riso.
2
Bolsa de Pós doutorado PNPD/CAPES sob a supervisão da Profa. Dra Suzi Frankl Sperber;
3
Professora do curso de Graduação em Teatro, Mestrado em Artes Cênicas e Mestrado Profissional em Artes.
Participante do Grupo de Pesquisa GEAC, palhaça no Pediatras do Riso (Extensão Ufu) e NUPEPA/TRUPE DE
TRUÕES.
208 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
1. O cronograma das comemorações de Nuestra Señora Del Carmen e de como cheguei às
máscaras utilizadas nessa festa

Em fevereiro de 2011, fiz um laboratório de dez dias com o Grupo Yuyachkani na cidade de Lima
(Peru) e foi a primeira vez que eu ouvi falar nas máscaras que são utilizadas anualmente de 15 a 19 de
julho durante a comemoração da Festa de Nuestra Señora Del Carmen na cidade de Paucartambo, localizada
nas cordilheiras a aproximadamente 100 Km de Cusco (Peru) .
A festa começa por volta do meio dia do dia 15, onde grupos de personagens saem brincando com as
pessoas, dançando, cantando e falando em falsete. Os grupos de dançarinos vão se reunindo, trocando
seus figurinos e vestindo suas máscaras em diversos lugares da pequena cidade. No meio da tarde todos
os grupos se dirigem para a frente da igreja e a comemoração vai até a noite.
O dia principal do festejo é o dia 16 de julho. Inicia ainda de madrugada com a missa e depois dela os
grupos apresentam suas coreografias no adro da igreja. No final da manhã, vão para o bosque e depois para
a praça onde inicia uma procissão. Alguns dos grupos seguem a noite reunindo-se na praça ou nas casas.
No dia 17 de julho, depois das missas, cada grupo vai visitar no cemitério os fundadores e outros
dançarinos falecidos. Lá tiram suas máscara e dançam estando presente um misto de alegria e de tristeza.
Logo depois, fazem o batismo de novos componentes dos grupos e ainda no mesmo dia fazem a visita
à cadeia. Em décadas anteriores o prédio da cadeia ficava no caminho em que eles passavam, mas na
década de oitenta houve uma mudança de endereço e o prédio foi afastado do centro. Os grupos enten-
deram que seria importante que os presos continuassem a ter acesso à festa e por isso mantém a visita a
esse lugar. Há uma outra procissão (um pouco mais curta do que o dia anterior) com o objetivo de chegar
até a ponte Carlos III, com a bênção dos quatro pontos cardeais. Logo depois, acontece uma guerrilha
com batalhas e disputas e ao final um cortejo fúnebre dos vencidos com a escolha dos dirigentes para o
próximo ano.
Em 18 de julho continuam os atos litúrgicos, missas e bênçãos com a entrega dos cargos para o pró-
ximo ano e a imagem retorna para a igreja. Finalmente no dia 19 de julho, quando há uma diminuição
grande dos participantes que precisam retornar de suas viagens, acontece as últimas cerimônias com pre-
sentes e comidas. É quando se retiram os figurinos da festa e realizam as últimas reuniões de cada grupo
com uma avaliação de como foi o período.
De acordo com a raiz quéchua, ou seja, da língua que era utilizada pelos habitantes nesta região do Peru
antes da colonização dos espanhóis, tambo é lugar de descanso e depósito de alimentos, enquanto Paukar
foi um general Inca.
O grupo Yuyachkani utiliza máscaras e danças de várias festividades populares peruanas em seu tra-
balho cênico e não só de uma localidade em específico como Paucartambo. Tal escolha do grupo de se
embrenhar em sua própria cultura ancestral, mas sem deixar de estar conectado com o seu presente, pode
ser compreendida a partir do seu próprio nome, também com origem quéchua, já que yuyachkani significa
“estou pensando, eu estou lembrando”.

Figura 1 - Teresa Ralli, uma das atrizes do grupo, em uma exposição na casa Yuyachkani com máscaras que representam a
realidade andina do país. http://larepublica.pe/impresa/ocio-y-cultura/11097-teresa-ralli-el-machismo-es-un-traje-que-se-
-saca-jirones-y-duele-y-no-solo-lo-visten-los-hombres - acesso em 14 de maio de 2016.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 209
Embora as máscaras que o grupo utiliza tenha sua inspiração em tradições andinas, é um trabalho
extremamente contemporâneo (figura 1). Depois desse primeiro contato com Yuyachkani, fui alimentan-
do o desejo de estudar máscaras presentes em festividades localizadas, mas com o intuito de efetuar um
diálogo com o tempo presente e para além do seu espaço de origem.
Com esse propósito, iniciei em abril de 2016 a pesquisa de pós doutorado intitulada Brincantes mascara-
dos da cultura popular: possibilidades para a formação do artista cênico na contemporaneidade e elegi a Festa de Nuestra
Señora Del Carmen como foco principal de estudo. Essa escolha se justifica porque venho percebendo, a
partir das leituras de textos e de imagens, um sincretismo que me parece interessante para trabalhar ceni-
camente enquanto docente envolvida com a formação de artistas e de professores de teatro.
Por mais que o culto dessa santa esteja ligado a uma tradição católica, que chegou com a dominação
espanhola, há uma singularidade local vinculada à identidade mestiça dos paucartambinos que revela a
presença de etnias diversas como índios, espanhóis e mestiços. Quem são os estrangeiros e os nativos?
A migração e o nomadismo parecem-me ser recorrentes em outras manifestações da cultura popular e as
máscaras de Paucartambo parecem-me potentes para fortalecer o trabalho com esse tema.
Para que se tenha uma ideia da potencialidades que vislumbro nas máscaras dessa festividade, apre-
sento no próximo item a) um recorte de imagens de algumas das máscaras da festa coletadas a partir de
registros disponíveis em sítios eletrônicos e b) uma breve apresentação das mesmas a partir da pesquisa
da antropóloga Gisela Cánepa Koch. A autora no final dos anos oitenta e durante os anos noventa, fez
uma significativa recolha de material e uma análise minuciosa sobre como acontece a representação e a
constituição de identidades a partir da prática dessa festa.
Segundo Koch, a máscara dentro desse contexto andino, “não constitui uma prática arcaica, exótica ou
pitoresca, mas sim uma estratégia local para existir dentro de uma grande imagem global” (Koch, 1998,
pag. 6). A meu ver, essa realidade me possibilita fazer algumas associações entre essas máscaras e as de
outras tradições, especialmente teatrais, como por exemplo, as provenientes da Commedia dell’Arte, con-
forme o terceiro item desse texto. No quarto item, finalizo compartilhando as primeiras experimentações
cênicas que tenho realizado até o momento com essas máscaras e os próximos passos.

2. Algumas das máscaras paucartambinas

Figura 2 - Qhapaq ch’unchu in


http://landofwinds.blogspot.com.br/2013/04/qhapaq-chunchu.html - acesso em
14 de maio de 2016.

210 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


A máscara de Qhapac ch’unchu (figura 2) representa os habitantes da selva amazônica desde os tempos
pré-hispânicos. Estes povos são oriundos de zonas que foram conquistadas pelos Incas e que integraram
a região do Antisuyu. Tais representações são consideradas protagonistas nesse festejo. Os Qhapac ch’unchu
são os guardiões da santa e seus dançantes prediletos. Segundo a tradição, se esse grupo de personagens
não estiver presente, a virgem empalidece e não será um bom ano. A dança é realizada por jovens entre
19 e 31 anos e eles (ou seus pais) devem ser nascidos em Paucartambo.

Figura 3 - Qhapaq Qulla in


https://www.flickr.com/photos/24467740@N05/ - acesso em 14 de maio de 2016.

Por sua vez, a disputa pela santa e que acontece durante os festejos tem como duplo um outro grupo
de personagens os Qhapaq quolla (figura 3), que representam os comerciantes do altiplano (Qullasuyo). Nos
cantos, que esses dançantes interpretam em quéchua durante a festa, fazem menção aos sacrifícios para
chegar a Paucartambo durante a festa e a tristeza de se despedir e só voltar no ano seguinte. Os Qhapaq
quolla devem participar também das festividades de Quyllur Rit’y4 que acontece uma semana antes de Cor-
pus Christi em Ocongate (Quispicanchis), também pertencentes a Cusco. Participar durante três anos seguidos

4
Ritual cujo símbolo é a imagem de Cristo, mas seu objeto é a integração do homem com a natureza, associado
com a fertilidade da terra e da adoração das montanhas e deuses tutelares. Há uma peregrinação de pastores, co-
merciantes e curiosos até o santuário de Sinakara. Segundo a crença, o Menino Jesus (ou Quyllur Rit’y) fez amizade
com uma criança indígena, Marianito Mayta. Quando os pais encontraram a criança indígena vestida em ricos trajes
avisaram o pároco, Pedro de Landa, que intentava capturá-la. Este não obtém êxito e no lugar da pequena criança
índia apareceu uma pedra com a imagem do Señor de Qoyllur Ri’ti . In https://www.cuscoperu.com/pt/festivais-e-eventos/
maio-junho/senor-de-qoyllur-rit-i - acesso em 15 de maio de 2016.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 211
da peregrinação ao Santuário de Quyllur Rit’y é também a condição para ser aceito nas festividades de
Nuestra Señora Del Carmen. Há uma semelhança entre os passos desses dançantes mascarados e as llamas,
animais típicos dessa região.

Figura 4 - Qhapaq negro in


https://www.youtube.com/watch?v=rluC-Vai7c4 - acesso em 14 de maio de 2016.

Os Qhapac negro (figura 4) rememoram os homens que foram trazidos da costa da Bolívia e escravizados
para trabalhar em minas de ouro e prata em Paucartambo. Em seus cantos em quéchua e em espanhol fa-
zem referência ao sofrimento e à devoção que têm a Nuestra Señora Del Carmen. Os membros desse grupo
também são paucartambinos, ainda que morem fora de Cusco. Existe uma seleção bem rigorosa feita por
pessoas que dançam há mais de quinze anos e uma grande lista de espera para poder participar desse grupo.

Figura 5 - Saqra in
http://www.padycollection.com/danzas/saqra/ - acesso em 14 de maio de 2016.

212 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Saqra (figura 5) em quéchua significa diabo, mas esta palavra tem uma conotação bem diversa do sentido
que o cristianismo dá a ela. Representa alguém travesso, podendo ser associado a animais como gato,
cachorro, galo, entre outros. Eles sobem nos tetos, nas sacadas, nos postes e cobrem seu rosto quando a
imagem da santa passa em procissão diante deles. Também não podem entrar na igreja e por mais que fa-
çam movimentos acrobáticos contam com a proteção da santa sem qualquer tipo de acidente até o térmi-
no da festa. Segundo a tradição os Sakra chegaram ao povoado para construir uma ponte depois chamada
Carlos III e inaugurada em 1775, depois que muitos homens haviam caído no rio na construção dela.

Figura 6 -Majeños in http://www.myperu.org/traditional_dances_majeno.html - acesso em 14 de maio de 2016.

Os majeños (figura 6) são muito alegres e se divertem com as pessoas da plateia, representando os que
comerciavam vinhos, aguardentes e outros produtos do vale de Majes em Arequipa. Há uma mulher que
também acompanha esse grupo de majeños. Eles aparecem montados a cavalo e levando garrafas de licor
na mão e com alguns burros de carga com barris de álcool que seguem o grupo. Assim como os perso-
nagens apresentados até aqui possuem prestígio na festa.

I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 213


Figura 7 - Chukchu in http://america.pink/chukchu_989853.html - acesso em 14 de maio de 2016.
Originalmente os chukchu (figura 7) representam as pessoas de Paucartambo que iam trabalhar na selva
em fazendas de Q’usñipata e contraíam a malária e que atualmente trazem à tona outras doenças como o
câncer e a AIDS. Esses personagens se relacionam com o público atirando retalhos, farinha e um líquido
amarelo que eles mesmos preparam como se fossem contagiar o público. Nesse grupo, há a represen-
tação de um médico e de enfermeiros. Possuem um figurino mais simples se comparados aos grupos
mencionados anteriormente e seus participantes são pessoas mais jovens ou estudantes.

Figura 8 - Siklla ou dotorcitos in https://www.youtube.com/watch?v=5gTtpyO71Eg - acesso em 14 de maio de 2016.

214 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte


Os skiklla ou dotorcitos (figura 8), que é uma das máscaras que pretendo aprofundar nos estudos, repre-
sentam autoridades ou advogados locais que são considerados corruptos ou abusivos, especialmente com
a população indígena. Há a representação de um julgamento em quéchua e em castelhano num tom satíri-
co. É possível várias versões para o figurino que é mais simples. No desenvolvimento dessas personagens
há bastante espaço para improvisação, apesar de haver uma manutenção do argumento central da dança.

3. Leituras sobre as máscaras de Paucartambo e associações com as Máscaras da Commedia


dell’Arte:

Como enunciei no título desse texto começo aqui os primeiros diálogos, pois se trata de uma pesquisa
que está em seu estágio bem inicial. Só os próximos passos do estudo é que permitirão chegar a uma
análise mais pormenorizada.
Segundo Roberto Cuppone5 a expressão Commedia dell’Arte é nascida no decorrer de 1700 para defi-
nir algo bem complexo e que existia já há vários séculos. Inicialmente, quando dita pelos franceses, era
apenas uma indicação do teatro feito por italianos na própria França. Na sua origem italiana significa
espetáculos realizados por aqueles que exerciam seu ofício no palco. Não se falava de um gênero, mas de
comédias específicas, aquelas feitas por atores profissionais. Essa prática de teatro também foi chamado
como Commedia all’ improviso.
Ainda segundo esse pesquisador, em francês as palavras “arte” e “comedia” entre os idos de 1830 tem
um sentido muito diferente do significado italiano. A palavra arte não faz referência a nada nobre, muito
pelo contrário evoca o mais popular e ela está mais ligada à carroça do que ao espetacular. E a palavra
comedie em Francês quer dizer teatro, mas não propriamente arte.
Facilmente podemos encontrar a vertente popular e mascarada como ponto de intersecção entre a fes-
ta de Nuestra Senhora Del Carmen em Paucartambo e a Commedia dell’Arte. Enquanto tal, a Commedia dell’Arte
foi alvo de sérias críticas de homens letrados. Como nos lembra Roberto Tessari (2013):

A Commedia dell’Arte, então, é julgada pela elite cultural-acadêmica do século XVI como um
repugnante fenômeno de hibridização entre entidades que não deveriam se misturar e confun-
dir-se, quanto mais, unir-se intimamente, até gerar novas espécies fenomênicas de desperdício
de desprezível miscigenação. Mas quais seriam essas entidades? Se Guarini não o diz, Rossi não
consegue se conter, citando ao menos duas: as máscaras (Zanni, Pantaloni, etc), e aqueles que
- ainda no Medievo tardio e no início do séc. XVI - eram utilizados para animar as próprias
técnicas performativas (os bufões”).6

Muitas distinções, contudo, podem ser feitas entre as máscaras da Commedia dell’Arte e as de uma ma-
nifestação como a Festa de Nuestra Senhora del Carmen. Começando por uma perspectiva antropológica,
ou seja, antes mesmo de um estudo mais específico como o que é o teatro ou a teatralidade, é possível
lembrar com Susan Harris Smith que a Commedia dell’Arte é uma atividade espetacular de cunho satírico
e grotesco (Smith, 1984). Percebo também nas descrições sobre algumas máscaras paucartambinas uma
forte crítica e sátira.
Obviamente, embora as duas manifestações com personagens críticos e mascarados, possuem más-
caras de natureza diferente. Retornando à classificação das máscaras segundo Smith, além da tipologia

Anotações da Palestra de Ruberto Cuppone intitulada “Máscara e cannovaccio: a herança da Commedia dell
5

Arte proferida em 15 de abril de 2015 no I Encontro Nacional de Etcenologia realizado na Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
TESSARI, Roberto. Commedia dell’Arte e rituais não cristãos in Scambio Dell Arte Commedia dell’Arte e Cavalo
6

Marinho org. Joice Aglae Brondani, Salvador: Teatro-Máscara-Ritual - Interculturalidade, 2013, p.44 .
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 215
espetacular como as da Commedia Dell’Arte, existem outros tipos de máscara como as do ritual, do mito, as
imagens do sonho ou conflitos e as máscaras sociais. Em Le masque du rite au théâtre, Odette Aslan e Denis
Bablet seguem terminologias similares.
As máscaras de Paucartambo estão inseridas nesse ambiente ritualístico. Os seus participantes não
estão apresentando uma peça, mas sim vivenciando uma experiência, por mais que haja uma audiência.
Ainda que as máscaras de Commedia Dell’Arte remetam a espetacularidade e ao espetáculo também
possui elementos que remetem à máscara enquanto ritualidade. Recordo Roberto Tessari quando afirma
que: “A commedia all’improviso era, de algum modo, devedora de suas fortunas, também, para um público
em cujo âmbito sobreviviam residuais traços de um imaginário esparso de ritualismos não cristão e de
aspectos conturbantes (TESSARI, 2013, p.53).
No entanto, ainda que exista uma grande distância entre esses dois tipos de máscara, é necessário
ainda mergulhar nos estudos, especialmente da Etnocenologia para compreender tais máscaras, uma vez
que essa disciplina considera o estudo dos comportamentos humanos como singularmente organizados
destacando no amplo universo das expressões humanas aquelas que se diferenciam pela espetacularidade
(PRADIER, 1995) e ainda que é possível seguir adiante com reflexões das práticas espetaculares no mun-
do como traços específicos da espécie humana (PRADIER, 1999, p.28).
Além de Jean-Marie Pradier, entendo que há uma contribuição desse campo a partir dos escritos de
Armindo Bião quando afirma que o estético pode ser “compreendido simultaneamente como o âmbito
da experiência e da expressão sensoriais e dos ideais de beleza compartilhados ” (BIÃO, 2007)
Na Commedia dell’Arte vemos tipos sociais que emergem de um momento de advento do mundo mo-
derno e de algumas profissões. Para ficar em apenas três exemplos de máscara, destaco que Pantalone é um
mercador, Dottore um médico ou advogado e Capitano, um militar. As máscaras dessa modalidade teatral
estão vinculadas ao mundo dos patrões de um lado e do outro, dos empregados, ou servos.
Na breve descrição que fiz no item anterior também é possível identificar categorias profissionais.
Também sem seguir adiante nas várias máscaras desse tipo e que podem ser encontradas na festa de
Nuestra Senhora del Carmem, cito só dois casos, os Qhapaq quolla que são comerciantes que chegam a Pau-
cartambo para suas vendas e os Skiklla ou Dotorcitos representam advogados.
De um lado temos então os ofícios e os papeis que as máscaras assumem diante de uma sociedade e de
outro temos também características distintas e singulares em cada tipo. Na Commedia dell’Arte os zannis, ou
empregados se diferenciam em uma característica humana, por exemplo, Arlequino é o faminto, enquanto
Brighella é o esperto. Em Paucartambo temos em Majeno a figura de um bêbado e o Saqra um ser esperto,
brincalhão e que faz acrobacias.
Apesar de haver formalizado a pesquisa de pós-doutorado só no ano de 2016, desde o momento em
que conheci as máscaras peruanas comecei a fazer algumas incursões a ela. Assim, em 2012 atuei em um
espetáculo chamado Sobre o Murmúrio do rio (dir. Antonio Correa Neto, dramaturgia Luiz Carlos Leite)7
em que utilizei duas máscaras de Qhapac Ch’unchu. Naquele momento eu não tinha informações mais
detalhadas sobre os tipos representados por cada máscara, mas ainda assim elas funcionaram em cena. Eu
e um outro ator da montagem realizávamos dois barqueiros com cada um com uma máscara de Qhapac
Ch’unchu no rosto em uma cena e, em outra, como objetos na sombra, uma vez que as dois exemplares
que eu adquiri com o grupo Yuyachkani na minha primeira visita em 2011 ao Peru eram construídos em
tela. Esse material permitiu um efeito muito interessante na projeção. Partimos só da forma da máscara,
ou seja, do seu material e do que poderíamos explorar, independentemente da narrativa que a máscara
poderia trazer ou de seu contexto de origem.
Nos anos de 2014 e 2015, ao fazer alguns experimentos em sala de ensaio com estudantes do grupo
de pesquisa que conduzo no curso de teatro na Universidade Federal de Uberlândia, já tinha algumas

7
O projeto foi contemplado no edital de Produção Cultural da Pro-reitoria de extensão (PROEX) da Universida-
de Federal de Uberlândia.
216 I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte
indicações sobre os nomes e as características das máscaras. Percebi que eu e o grupo estávamos ainda
muito preocupados em trazer à tona o imaginário da cultura peruana e no meu entender essa apropria-
ção foi menos potente se comparada com a que realizei em 2012 com o espetáculo Sobre o murmúrio do
Rio. Por exemplo, buscávamos peças de figurino ligados ao universo andino. Na própria busca por uma
musicalidade, trouxemos músicas em flautas de bambu e os ritmos que são bem característicos do Peru.
Então comecei a me perguntar - Como desconstruir essas imagens mais relacionadas à cultura do Peru?
Como nos abrir para outras possibilidades de utilização cênica de uma máscara andina?

Figura 9 e 10 - Oficina de Confecção de Máscaras - Jan a Março de 2016.

Em alguns momentos chegamos a atuar de maneira estereotipada. No ano de 2015 foi realizado o
evento VI Interfaces Máscara e tivemos a oportunidade de receber Donato Sartori e Paola Pizzi em pales-
tras durante a programação. Ao termos acesso ao como a família Sartori retomou a criação de máscaras
de couro da Commedia dell’Arte, esculpinado-as, surgiu nos participantes do grupo de pesquisa o desejo de
experenciar uma oficina de criação de máscaras.
Essa atividade ocorreu durante o primeiro trimestre de 2016 ( imagens 9 e 10). Foi um longo processo
que passou pela observação de um tipo humano para estimular a criação de uma máscara própria, tirar o
molde do rosto, trabalhar em argila, fazer a papelagem, pintar, recortar e colocar a máscara no rosto em
exercício cênico.
Depois da oficina que ministrei ao grupo levando-os a utilizarem a máscara criada, percebi um outro
engajamento em cada um e me parece que essa experiência marca a trajetória do grupo e que irá interferir
nas próximas experimentações que faremos com as máscaras de Paucartambo em um jogo cênico.
I Encontro Nacional de Etnocenologia: o estado da arte 217
Contudo, só pretendo retomar a utilização das máscaras paucartambinas no rosto dos atores do gru-
po depois da imersão em campo vivenciando a festa no próximo mês de julho de 2016, pois parece-me
fundamental perceber se as máscaras descritas a partir da pesquisa de Koch no final dos anos oitenta e
noventa sofreram grandes alterações. Tenho dúvidas que como é a configuração atual das máscaras.
Acredito que preciso vivenciar a festa como um todo indo além dos livros, vídeos e fotos que venho
apreciando desde o meu primeiro contato com a existência dessas máscaras andinas. É esse um passo
fundamental para avançar na compreensão de tais máscaras, conduzindo experimentos cênicos a partir
de um conhecimento mais aprofundado sobre a cosmogonia e a natureza presentes nesse instrumento.
São máscaras praticamente desconhecidas entre nós, embora o meu objetivo não seja propriamente fa-
zer um estudo filológico, antropológico ou histórico das máscara e sim, colocá-las em diálogo com o aqui
e agora. Mesmo em máscaras teatrais que são mais difundidas atualmente, como as da Commedia Dell’Arte
busco as conexões com o presente e com o local de exercício, independentemente de sua origem estar
distantes no tempo há três ou quatro séculos e no continente europeu.
Com a vivência in loco das máscaras utilizadas na Festa de Nuestra señora del Carmen pretendo continuar
buscando aproximações e ou distanciamentos com máscaras utilizadas cenicamente, como as da Comme-
dia dell’Arte.

Referências

ASLAN, Odette e BABLET, Denis. Le Masque du rite au théâtre. Paris: CNRS, 2005.
BIÃO, Armindo. Um trajeto, muitos projetos. In : Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnoce-
nologia. Salvador: P& A, 2007.
KOCH, Gisela Cánepa. Máscara, Transformación e Identidad en Los Andes La Fiesta de La Virgen Del Carmen.
Lima: Pontificia Universidad del Peru, 1998.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
PRADIER, Jean- Marie. Etnocenologia. In : BIÃO, Armindo e GREINER, Christine. In: Etnocenologia:
textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
PRADIER, Jean-Marie. Ethnoscénologie, manifeste. In : Théâtre-Public 123, maio-junho, 1995.
SARTORI, Amleto e Donato. A arte mágica. São Paulo: É realizações, 2013.
TESSARI, Roberto. Commedia dell’Arte e rituais não cristãos in Scambio Dell Arte Commedia dell’Arte e
Cavalo Marinho org. Joice Aglae Brondani, Salvador: Teatro-Máscara-Ritual - Interculturalidade, 2013.

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