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MANUEL ALVES DE SOUSA JUNIOR

TAUÃ LIMA VERDAN RANGEL


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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03


E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08:
AVANÇOS, CONQUISTAS E DESAFIOS

2023
© Dos Organizadores - 2023
Editoração e capa: Schreiben
Imagem da capa: Menelaw Sete
Revisão: os autores
Revisão técnica: Manuel Alves de Sousa Junior
Conselho Editorial (Editora Schreiben):
Dr. Adelar Heinsfeld (UPF)
Dr. Airton Spies (EPAGRI)
Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS)
Dr. Deivid Alex dos Santos (UEL)
Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF)
Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai)
Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes (UENP)
Dra. Ivânia Campigotto Aquino (UPF)
Dr. João Carlos Tedesco (UPF)
Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE)
Dr. José Raimundo Rodrigues (UFES)
Dr. Klebson Souza Santos (UEFS)
Dr. Leandro Hahn (UNIARP)
Dr. Leandro Mayer (SED-SC)
Dra. Marcela Mary José da Silva (UFRB)
Dra. Marciane Kessler (UFPel)
Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ)
Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL)
Dr. Odair Neitzel (UFFS)
Dr. Valdenildo dos Santos (UFMS)
Dr. Wanilton Dudek (UNIUV)

Esta obra é uma produção independente. A exatidão das informações, opiniões e conceitos
emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e fotografias é de exclusiva
responsabilidade do(s) autor(es).

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89896-000 Itapiranga/SC
Tel: (49) 3678 7254
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


V789 20 anos da Lei n° 10.639/03 e 15 anos da Lei n° 11.645/08: avanços, conquistas
e desafios. / Organizadores: Manuel Alves de Sousa Junior, Tauã Lima Verdan
Rangel. – Itapiranga : Schreiben, 2023.
226 p. ; e-book

E-book no formato PDF.


EISBN: 978-65-5440-094-7
DOI: 10.29327/5200565

1. Educação inclusiva. 2. Lei n° 10.639/03. 3. Lei n° 11.645/08. 4. História e


Cultura Afro-Brasileira e Indígena. I. Título. II. Sousa Junior, Manuel Alves de.
III. Rangel, Tauã Lima Verdan.

CDU 376
Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782
SUMÁRIO

MENELAW SETE, O PICASSO BRASILEIRO!...........................................6


Jacy Ramos
Manuel Alves de Sousa Junior
PREFÁCIO .................................................................................................9
Jobson Jorge da Silva
APRESENTAÇÃO ....................................................................................10
Manuel Alves de Sousa Junior
Tauã Lima Verdan Rangel
UM ESPELHO COBERTO NÃO TEM O QUE REFLETIR:
REFLEXÕES ACERCA DAS LEIS Nº. 10.639/2003 E 11.645/2008
NA ATUALIDADE BRASILEIRA.............................................................13
Ana Carla Ferreira dos Santos
20 ANOS DA LEI Nº. 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI Nº. 11.645/08:
UMA BREVE ANÁLISE DAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES
DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO........................................................28
Laryssa da Silva Machado
CULTURA ÉTNICA NA ESCOLA: REVISÃO DA VIVÊNCIA DE
EDUCADORES DO ESTADO DO PIAUÍ, DURANTE O PROCESSO
DE ENSINO APRENDIZAGEM................................................................45
Andressa da Silva Queiroz
Sebastião Fortes de Oliveira Júnior
FORMAÇÃO DOCENTE E GESTORA NA ERER:
OS OUTROS COLONIAIS PASSARAM PELA PORTA?...........................59
Dayana da Silva Ferreira
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA E SUAS MULTIPLAS FACETAS.....71
Rosana Fátima de Arruda
Malsete Arestides Santana
Nilvaci Leite Moreira de Magalhães
SAIR DO PAPEL: FORMAÇÃO DE PROFESSORAS PARA UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA.................................................................83
Ananda da Luz Ferreira
NO PRATO TEM HISTÓRIA: A ALIMENTAÇÃO COMO
PROPOSIÇÃO PEDAGÓGICA PARA O ENSINO DAS
RELAÇÕES ÉTNICOS RACIAIS...............................................................98
Roziane Costa Conceição
Marcos José Soares de Sousa
A IMPORTÂNCIA DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL...................................................................109
Elimeire Alves de Oliveira
Letícia da Silva Nogueira
Melissa Maria Alves de Oliveira
Tiago Moreno Lopes Roberto
Sileno Marcos Araujo Ortin
O ENSINO DE HISTÓRIA PAUTADO NA CULTURA
AFRO-BRASILEIRA................................................................................120
Jackson Adair Gonçalves
“OS SONS QUE VÊM DAS RUAS” PARA AS SALAS DE AULA:
EPISTEMOLOGIAS SOCIAIS NEGRAS EM SOCIOLOGIA NO
ENSINO MÉDIO......................................................................................130
Reinaldo José de Oliveira
Iuri Nobre dos Santos
A LEI 10.639/03 NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA PROPOSTA
LITERÁRIA PARA AS AULAS DE INGLÊS...........................................145
Ewerton Batista-Duarte
DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA AFROGÊNICA NA
ELABORAÇÃO DE ENUNCIADOS E ALTERNATIVAS DAS
PROVAS DE ESPANHOL DO ENEM......................................................158
Gabriela Rodrigues Botelho
A DECOLONIZAÇÃO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA NO MUNICÍPIO DE
SÃO PAULO.............................................................................................175
Tiemi Okimura-Kerr
DIRETRIZ CURRICULAR E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
ANÁLISE DA LEI Nº. 11.645/08 NO CURRÍCULO PAULISTA.............184
Anselma Garcia de Sales
Átila Ferreira da Rocha
“ENTREMUNDOS”: AS HISTÓRIAS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO
INFANTIL NA PERSPECTIVA DA LEI N°. 11.645/2008........................201
Ricardo de Mattos Martins Cunha
Kerollainy Rosa Schütz
Adriana Aparecida Belino Padilha de Biazi
POVOS INDÍGENAS: CONHECER PARA VALORIZAR.......................213
Gerusa Citadin
Vanessa Mariot Pedro Crozetta
Renata Righetto Jung Crocetta
POSFÁCIO...............................................................................................219
Patrícia da Silva Soares
SOBRE OS ORGANIZADORES..............................................................223
MENELAW SETE, O PICASSO BRASILEIRO!

A coleção Questões raciais, educação e brasilidades é composta por três livros


e foi pensada para trazer debates importantes e necessários sobre as relações ét-
nico-raciais. O primeiro volume aborda diversos pontos que atravessam a educa-
ção em suas mais variadas faces. O segundo volume traz capítulos que abordam,
exclusivamente, as leis n° 10.639/03 e 11.645/08, que completam 20 anos e 15
anos, respectivamente, neste ano de 2023. O terceiro volume elenca textos que
abrangem muitos pontos sociais das questões raciais, além de trazer um viés vol-
tado para a biopolítica e necropolítica, conceitos importantes que nos ajudam a
refletir sobre a sociedade brasileira.
O artista homenageado nesta coleção é Menelaw Sete. Algumas de suas
obras ilustram as capas desta coleção. Registrado com o nome civil de Jorge
do Nascimento Ramos, Menelaw nasceu em 01 de agosto de 1964 no bairro
de Pirajá em Salvador/BA, lugar histórico, onde a cultura Afro-brasileira pul-
sa. Em 1970, foi alfabetizado, ainda criança, já demonstrava talento para as
Artes Plásticas, através de desenhos e esculturas que criava. Em 1974, morando
no Subúrbio Ferroviário de Salvador, conheceu Almiro Borges, artista plástico
baiano, que se tornou seu mestre. Aos 18 anos ingressou na Marinha do Brasil
e foi morar no Rio de Janeiro/RJ. Em 1987, após cinco anos de serviço militar,
decidiu dedicar-se à pintura. Pediu demissão da Marinha, retornou a Salvador e
começou a dedicar-se a sua paixão: a pintura artística. Em 1990 realizou a sua
primeira Exposição, na Panorama Galeria de Artes. Em 1994 inaugurou seu
primeiro atelier no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador.
Menelaw, que é reconhecido artisticamente como o “Picasso brasileiro”,
tem como estilo de pintura, o cubismo Afro-brasileiro. Ele utiliza a temática
africana como ponto central de suas produções em todas as suas expressões
artísticas. O termo “Picasso brasileiro” foi atribuído ao artista no ano de 1999,
na cidade estadunidense de Atlanta, por Maiga Saidou, galerista burkinabé, ra-
dicado nos Estados Unidos. Maiga viu uma grande aproximação entre a arte de
Menelaw e a arte de Pablo Picasso, pintor espanhol que, entre os anos de 1907
e 1910, assim como muitos artistas e intelectuais europeus, demonstrou grande
interesse pela arte africana. Foi nessa época que Picasso, influenciado pela arte
africana, desenvolveu o estilo cubista, sendo um dos precursores desse movi-
mento europeu.
Com 35 anos de arte, Sete levou o seu trabalho para o Brasil e para o mun-
do. Já ocorreram inúmeras exposições em todo o Brasil. No exterior, ele já expôs

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
A������, C��������� � D�������

na Holanda, Alemanha, Bélgica, Espanha, Portugal, Dinamarca, Inglaterra,


Estados Unidos, Marrocos, França e a sua mais recente exposição no Museu
Cité Miroir em Liége, na Bélgica, totalizando mais de 50 mostras internacionais.
Como artista transcultural, no ano de 2018, gravou o filme A Origem, do
cineasta francês Pierre Meynadier; na Itália gravou o filme Documentário Um
Baiano Pirandelliano do cineasta italiano, Eduardo Veneziano, no ano de 2016.
Em 2009 gravou o Filme Documetário Colors of a Creaive Culture, de David
Zucker, cineasta estadunidense. Em sua trajetória, o artista possui registros de
momentos relevantes, como a presença de Bill Clinton em seu atelier, no ano de
2013, e a citação de Oscar Niemeyer, que escreveu o quanto gostou de sua obra.
O artista traz em sua história algumas honrarias: a Bahia rendeu-lhe ho-
menagens, concedendo-lhes a Comenda Tomé de Souza, maior honraria conce-
dida pela Câmara Municipal de Salvador. No ano de 2010, com a obra Pulando
Corda, adquiriu o Selo da Drouot, Paris, renomada Casa de Leilão Francesa.
Em 2012, o artista recebeu o Título de Professor Ilustre, pela Escola Superior de
Belas Artes de São Francisco, em Córdoba na Argentina. No dia 14 de agosto
do ano de 2015, em Sciacca Terme, localizada na Sicília na Itália, foi inaugurada
a Sala Museu Menelaw Sete no Complexo Monumental Sant`Anna, honraria
concedida pelo Governo italiano.

FIGURA 01: Menelaw Sete é reconhecido artisticamente como o “Picasso brasileiro”.

FONTE: Acervo pessoal do artista.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Como percebemos, Menelaw Sete tem uma completa afinidade, tanto em


sua vida quanto em sua obra, com temas afro-brasileiros, tendo total relação
com as temáticas envolvidas na coleção Questões raciais, educação e brasilidades.
Desejamos a todos uma boa leitura e um bom desfrute das obras que ilustram as
capas dos livros da coleção e demais obras do artista que podem ser conferidas
no Instagram @menelawsete ou no site http://menelawsete.com.br/.

Jacy Ramos
Assessora de Menelaw Sete
Especialista em história e cultura afro-brasileira
Licenciada em artes e em pedagogia

Manuel Alves de Sousa Junior


Doutorando em educação (UNISC). Bolsista CAPES/PROSUC
MBA em história da arte
Especialista em confluências africanas e afro-brasileiras
Historiador
Organizador da coleção

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PREFÁCIO

A discussão sobre as Leis nº. 10.639/03 e nº. 11.645/08 configura a mate-


rialização de políticas públicas de Estado que visam objetivamente a inclusão de
cidadãos negros e indígenas na máquina pública brasileira. Acerca deste tema,
apontamos para pesquisas e contribuições didáticas e pedagógicas desenvolvi-
das por pesquisadores, professores e outros aprofundadores do tema.
A questão principal que se trata aqui é a quantificação dos impactos dessa le-
gislação na vida, carreira profissional, ascensão social e econômica de todos aqueles
que se utilizam desta política para romper barreiras históricas e racistas em nosso país.
Nesse contexto, as pesquisas interdisciplinares ampliam a percepção da rea-
lidade, pois incorporam diversos olhares sobre os fenômenos estudados, assim, co-
nexões interdisciplinares constituem-se de estudos que por várias vertentes abordam
as ligações entre as temáticas analisadas nos capítulos que compõem essa coletânea.
As conexões entre educação, território e políticas públicas são constructos
epistemológicos que não se limitam a pontos em comum entre esses assuntos,
mas são acoplamentos que contemplam concomitantemente uma unidade e
uma totalidade para se analisar os fenômenos da pesquisa.
Nessa obra os autores são provenientes de áreas diversas, porém aqui es-
ses múltiplos saberes se interconectam e constroem um vultuoso repertório de
análises, métodos e sínteses que no conjunto potencializam a elaboração de no-
vos conhecimentos para ampliação de outros estudos com o objetivo coletivo de
apresentar os impactos positivos e os avanços históricos causados pelas Leis nº.
10.639/03 e nº. 11.645/08.
Nessa conjuntura, é relevante destacar como nosso país tem se desenvol-
vido a partir da valorização dos excluídos socialmente e sobre quais aspectos a
descentralização da distribuição dos recursos e a inclusão de comunidades po-
pulacionais antes excluídas pode favorecer o nosso desenvolvimento. É a partir
desse cenário que nossa obra contempla os anos de progresso social, no sentido
de incluir povos originários e afrodescendentes, em políticas afirmativas que têm
mudado o quadro e a cor das elites intelectuais, econômicas e políticas do Brasil.

Jobson Jorge da Silva


Doutorando em Ensino pela RENOEN/UFRPE. Mestre em Educação.
Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura.
Licenciado em Letras Língua Portuguesa e Língua Inglesa e em Pedagogia.
Professor concursado da rede estadual de Pernambuco na área de Língua Portuguesa.

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APRESENTAÇÃO

As leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008 acabaram de fazer 20 e 15 anos,


respectivamente, de suas publicações, com a finalidade de definir a obrigatorie-
dade do ensino de história e cultura afro-brasileira em 2003 seguido também da
história e cultura indígena em 2008, ambas alterando a lei n°. 9394/96 - Lei de
diretrizes e bases da educação brasileira. Ou seja, foi necessário que se instituís-
sem leis para que a história e cultura dos povos que fundaram este país, seja de
forma autóctone e ancestral, seja por sequestro e sangue, fossem conhecidas e
ensinadas nas escolas pelo Brasil.
Quem é professor de ensino básico e possui um mínimo de letramento ra-
cial sabe que tais leis ainda estão distantes de serem cumpridas em sua totalida-
de, já que a lei de 2003 traz “Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” (BRASIL,
2003, n.p) e a lei de 2008 acrescenta os “povos indígenas brasileiros” (BRASIL,
2008, n.p). Em que pese, seja inegável que ao longo destes anos tenham ocorrido
avanços significativos na área, também é reconhecido que ainda está distante de
serem cumpridas a contento, seja por falta de formação continuada de profes-
sores, seja por falta de letramento racial ou por problemas de estrutura, dentre
outros tantos que perpassam a educação básica brasileira.
Em muitas escolas, o cumprimento das leis restringem-se ao novembro
negro com a consciência negra em 20 de novembro onde ocorrem geralmente
palestras e ao chamado dia do índio em 19 de abril, em que muitas escolas
ainda trabalham com o estereótipo de fantasiarem as crianças com cocar e saia
de palha dançando e batendo com a mão na boca. Os negros e indígenas preci-
sam e merecem ser abordados nas escolas como símbolo de luta e resistência,
como povos vivos que ainda são, merecem ser tratados na história sem roman-
tização, a educação precisa discutir sobre racismo e preconceito, precisamos ser
antirracistas.
São inúmeras as possibilidades de uma educação antirracista que contem-
ple as leis supracitadas e que podem ser aplicadas em todos os níveis de educa-
ção, desde a educação infantil até a superior. Por mais que saibamos que uma
rotina da gestão escolar seja cheia de demandas e responsabilidades, instituir
uma educação antirracista é fundamental para a formação de cidadãos para a
vida, um dos principais objetivos das escolas. Desse modo, professores, coorde-
nadores pedagógicos, diretores e demais profissionais das escolas precisam se

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

dedicar e correr atrás de estratégias para promover uma educação antirracista


não estererotipada ao longo de todo ano e não apenas em novembro para negros
e abril para indígenas.
Este volume conta com 16 capítulos que versam sobre diversos aspectos
das leis em debate em suas mais variadas interfaces, de modo a despertar nos
leitores sentimentos e olhares possíveis sobre as reflexões e problematizações
que o tema merece.
A partir de matizes diversificados, heterogêneos e perspectivas crítico-re-
flexivas, os debates promovidos neste livro trazem à tona, enquanto elemento
central a reunir os diálogos entre os autores, os desafios que circundam e locali-
zam as relações étnico-raciais no Brasil. Tal como os capítulos que constituem
os três volumes desta coleção, há que se reconhecer a complexidade da temática,
ao mesmo tempo, multifacetada, compreendendo os mais diversos segmentos e
produzindo uma série de despertamentos que fazem pensar acerca da constru-
ção das relações de poder no mundo contemporâneo e em especial no Brasil, en-
quanto um projeto de opressão e de exploração de determinados grupos étnicos.
Desejamos a todos uma boa leitura e que os textos ajudem os leitores a
refletir sobre os mais diversos pontos das questões raciais no Brasil e no mundo.
A sociedade precisa entender que aprender e discutir sobre esses temas contri-
bui para um melhor entendimento do mundo contemporâneo, sob vários as-
pectos, em prol de um aumento de cultura antirracista universal em detrimento
aos muitos tipos de racismo ainda existentes, enraizados no seio da sociedade.
Agradecemos a cada leitor pelo seu tempo, disponibilidade e interesse, e convi-
damos a ajudarem na difusão e compartilhamento desta obra.

Manuel Alves de Sousa Junior


Biólogo, Historiador,
Doutorando em Educação pela Universidade de Santa Cruz,
MBA em História da Arte, Especialista em Confluências africanas e afro-bra-
sileiras e as relações étnico-raciais na educação. Professor do IFBA - Campus Lauro de
Freitas. Membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Diferença na Educação/UNISC,
Bolsista PROSUC/CAPES.

Tauã Lima Verdan Rangel


Estudos Pós-Doutorais em Sociologia Política pela UENF.
Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais, Bacharel em Direito
e Licenciado em Pedagogia. Coordenador de Pesquisa, Extensão, Inovação e
Internacionalização pelo Centro Universitário Redentor
(UniREDENTOR – Afya)

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº. 9.394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacio-
nal, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasí-
lia: Casa Civil, 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/2003/L10.639.htm. Acesso em: 06 jan. 2023.
BRASIL. Lei n°. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de
20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Casa Civil, 2008. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm.
Acesso em: 06 jan. 2023.

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UM ESPELHO COBERTO NÃO TEM
O QUE REFLETIR: REFLEXÕES ACERCA
DAS LEIS Nº. 10.639/2003 E 11.645/2008
NA ATUALIDADE BRASILEIRA
Ana Carla Ferreira dos Santos1

INTRODUÇÃO

As narrativas podem expressar sentimentos, períodos, situações, momen-


tos em que a vivência de um indivíduo, de um pequeno ou grande grupo per-
passou. Trazem em si, a oportunidade de um fato único fazer parte da memória
coletiva, enquanto muitos outros o deixam de ser. O seu teor tanto é capaz de
ser revelador, como serve de referência para endossar conhecimentos antigos ou
novos. As narrativas são capazes de evidenciar circunstâncias, como também
podem ser questionadas, refutadas ou ocultar outras ocorrências.
Independentemente da carga de seu conteúdo, elas têm potencial em
função de sua abordagem para problematizar a historiografia oficial, em algum
tempo. Ponto em que guarda sua zona de perigo, diante das memórias que fo-
ram silenciadas ou contadas, por uma vertente unilateral. O caminho adotado
na historicidade do Brasil retém uma enorme lacuna quanto à cultura afro-bra-
sileira, africana e dos povos originários.
Numa sucessão de apagamentos, que fomentaram e permitiram que ima-
ginários fossem criados, em relação a estas populações com reflexos negativos
que continuam as afetar nos dias atuais. Ideias foram criadas, perpetuadas com
ações cotidianas que atingem a cidadania de seus descendentes quer sejam dos
povos originários ou dos africanos pretos escravizados no Brasil.
Temos na sociedade brasileira uma engrenagem, que se ajusta ao longo
do tempo estrategicamente ao manter um modelo excludente para esses descen-
dentes, onde não lhes cabe a cidadania plena na prática, embora apregoada em
nossa Constituição Federal. As situações que emergem deste modelo têm enges-
sado e exterminado vidas por séculos, das mais variadas formas, com prejuízos
sem fim.
Neste texto, toma-se por base o ano de 2023 que nos proporciona a

1 Mestra em Cultura e Territorialidades (PPCULT-UFF). E-mail: f.ana.carla@gmail.com

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

temporalidade de duas décadas passadas para se avaliar e refletir a lei n°


10.639/2003 e de quinze anos, em sua atualização com a lei n° 11.645/2008,
no que tange respectivamente a implementação à educação das relações étnico-
-raciais, ao versar sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e
indígena nas escolas, através do reconhecimento da importância dessas matrizes
na formação da sociedade brasileira.
No contraponto de um país de base colonial escravocrata, que por sécu-
los praticou ações com cunho de apagamento e sufocamento das culturas dos
povos originários e afro-brasileiros. Pretende-se com a escrita do artigo abordar
os aspectos pelos quais às leis 10.639/2003 e 11.645/2008 ainda necessitam ser
exploradas e reiteradas como ferramentas antirracistas na atualidade brasileira.

O PESO DA MISCIGENAÇÃO E SEUS EFEITOS DELETÉRIOS EM


TEMAS SILENCIADOS PELO BRASIL

O desconhecimento minimiza os ganhos, maximiza as perdas, enaltece


o eterno cativeiro da desinformação e dificulta as ressignificações provenien-
tes do conhecimento. Reforça os abismos que fortalecem o preconceito, oculta
as identidades, a diversidade de culturas, demoniza o desconhecido e amplia o
preconceito.
Além de abrir espaço para imaginários inconsistentes, mentiras e as mais
variadas invenções que aumentam a discriminação e opressão contra o que se de-
termina como diferente, e se repete constantemente, ao longo de séculos, quanto
ao que se refere a cultura e história de negros e povos originários no Brasil.
No livro: O perigo de uma história única, a escritora Chimamanda Ngozi
Adichie (2019, p. 26) nos ensina que: “A história única cria estereótipos, e o pro-
blema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos.
Eles fazem com que uma história se torne a única história”.
A unilateralidade de uma história branca em detrimento do silenciamento
das histórias africanas, afro-brasileiras e dos povos originários criaram raízes
profundas na prática do racismo no Brasil, cujos malefícios não têm data para
findar. Numa lacuna na qual as leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008 podem
ofertar para gerações de educadores e educandos, outros referenciais e assim,
reescrever a história brasileira ao ressignificá-la.
As cicatrizes deixadas pela ausência da diversidade de referenciais res-
soam numa reverberação que só quem é afetado compreende, contudo não isen-
ta que pessoas beneficiadas pelos efeitos do racismo brasileiro não colaborem
para que ele seja combatido. A grande questão é quem está disposto a renunciar
a privilégios?
Nesta mesma linha de raciocínio, por outro lado, é o conhecimento que
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

dialoga, oportuniza e funciona como um passaporte que habilita e define quem


somos na ordem geopolítica e distingue no mundo quem têm as melhores pers-
pectivas e terá possibilidade de contar sua história. Com este pensamento, a
oportunidade de se consertar os descompassos do passado devem ser estabeleci-
dos no momento presente e passam necessariamente pela escola.
Por uma escola antirracista que conte a nossa história negra e dos povos
originários em suas aulas, que reconhece a importância e dá um futuro digno
aos nossos descendentes, para seguirmos em nosso trilhar visibilizados no pre-
sente, a partir da valorização de nossa existência e resistência.
Neste ensejo, trago como exemplo e ponto de reflexão minha experiência
como uma mulher preta, professora, eterna aprendiz num contexto em que du-
rante todo o meu ensino fundamental, médio e universitário, não tive acesso nos
moldes formais como os que me foram repassados outros conhecimentos ao que
prega às Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008. Não fui contemplada com a
discussão racial, nem a autores pretos, nem de povos originários, num contexto
racializado em sala de aula. Sei o quanto foi limitado, por muitos anos, o meu
olhar mais crítico da situação que eu estava inserida dentro do meu próprio país.
Em meu percurso na construção de um aprendizado no que conflui para
a Lei n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008 foi trilhado por conta própria através
de muita leitura e incursões em quilombos e reservas indígenas, onde criei a
oportunidade de contato com realidades distintas da minha, e que em muito
auxiliaram a compreensão da realidade dessas populações dentro e fora de áreas
urbanas.
Além de ampliarem minha percepção frente à pluralidade de culturas,
etnias e outros modos de ser. Antes e em paralelo, ao chegar a cursar o mestrado
e ter todo acesso e escolha por um viés que incluísse o conhecimento, os saberes
dos povos originários, africanos e afrodiaspóricos, busquei aprender uma língua
indígena e uma africana, respectivamente: o ze’egete e o yorùbá, para apreender
outras percepções culturais que me fizeram repensar o que tinha aprendido até
então como língua portuguesa falada no Brasil. Até entender o quanto esta lín-
gua nos aprisiona em função de sua origem europeia, e o quanto a variabilidade
inclusa tanto das línguas dos povos originários e africanos, enriquece e pode
permitir que nos identifiquemos mais como brasileiros.
Pensar sobre as Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008, envolve rever
grande parte dos diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir de dois importantes referentes, atra-
vés do estudo da História da África e dos africanos, além da luta dos negros e
dos povos originários do Brasil. Em pontos que tratam da cultura negra e ori-
ginária brasileira e seus componentes na formação da sociedade nacional, ao

15
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

apresentar suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes


à História do Brasil.
Conhecimento que recai diretamente no respeito às suas identidades, per-
tencimento e importância na configuração do Brasil e que deve ser refletida em
todas as instâncias de nossa sociedade de forma digna e justa, não sub-repre-
sentada ou ausente nas esferas de poder e situações que apresentem qualidade e
representatividade. O impacto desse conhecimento se reflete na luta antirracista
e no caminho que busca uma sociedade mais equânime.
A aplicabilidade das Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008 se insere
num panorama onde não podemos recuar, mas só avançar quanto à questão ra-
cial. Ela parte da necessidade de se reconhecer que o racismo está presente nos
discursos e nas práticas do cotidiano e perpassa os bancos escolares e é de suma
importância para a promoção de uma educação antirracista.
Onde a escola, como um espaço de vivência e sociabilidade, deve acolher
as diferenças, a pluralidade, sem hierarquização de vidas e comunidades. Assim,
valorizar as histórias que vem de vielas, becos, roças, quilombos, aldeias, luga-
rejos, enfim de outras complexidades de territórios marginalizados que abarcam
a totalidade do Brasil e que envolvem relações de poder e disputas identitárias
e territoriais que não habitam os livros didáticos, mas pertencem ao nosso país.
O geógrafo Milton Santos (1999, p. 19) em: “O território e o saber local:
algumas categorias de análise” ao pensar sobre a territorialidade como um atri-
buto do território ou de seus ocupantes, nos traz quanto ao saber local ensina-
mentos que reforçam a importância de não se ignorar os saberes dos territórios.
Porque o saber local, que é nutrido pelo cotidiano, é a ponte para a pro-
dução de uma política – é resultado de sábios locais. O sábio local não é
aquele que somente sabe sobre o local propriamente dito; tem de saber,
mais e mais, sobre o mundo, mas tem de respirar o lugar em si para poder
produzir o discurso do cotidiano, que é o discurso da política (SANTOS,
1999, p. 19).

Histórias afro-brasileiras e de povos originários que trazem narrativas


onde ecoam estratégias de sobrevivência, resistência que envolvem pessoas não
pertencentes a grupos dominantes de poder no Brasil. Neste sentido, a esco-
la deve ser o meio que apresenta a riqueza da diversidade existente das várias
culturas e histórias que constituem o Brasil em seu corpo coletivo e não mais
perpetuar silenciamentos e construir uma nova sala de aula.
O espaço para a existência e necessidade das Leis n°. 10.639/2003 e n°.
11.645/2008 envolve temas silenciados na sociedade brasileira, sob o chamado
Mito da Democracia Racial, ou seja, sob o véu de que no Brasil não existe racis-
mo. Neste sentido, trabalhar a temática racial implica necessariamente em expor
tensões e relações conflituosas que estruturam nossa história e estão presentes
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

em todas as nossas instituições, inclusive as escolares.


A força do papel da escola envolve o entendimento de que precisamos ter
brasileiros críticos com a sociedade em que vive. Que não naturalize apagamen-
tos, que se incomodem com o que não entendem ao invés de ter ódio e precon-
ceito gratuitos frente ao desconhecido.
A escola é o primeiro elo contínuo com o mundo social e ela pode mudar
e ajudar no combate de perpetuar falsas compreensões através de uma educação
plural. E um dos primeiros passos é apresentar a configuração do povo, da so-
ciedade em que o aluno está inserido e o aprendizado desta realidade não pode
ser distinta da que ele vivencia em seu dia a dia.
Vivemos em uma sociedade racista e reconhecer isso implica, em perceber
nossas fragilidades, contradições e alinhavar novas tessituras para trazer narrati-
vas que foram apagadas. Contexto em que a competência da escola para discutir
questões ligadas à formação humana, incluindo as raciais torna-se fundamental.
Precisamos dialogar sobre essas tensões, esses conflitos que, vividos de forma
subjetiva e pessoal, refletem uma trama política e social.
O Mito da Democracia Racial sempre foi um peso, um entrave no en-
tendimento da necessidade de se abordar a temática. As tentativas de esquiva,
minimização e silenciamento são frequentes na História do Brasil. Várias ini-
ciativas dos movimentos sociais ao trazer essa pauta foram ignoradas, adiadas e
arquivadas. Nunca houve equiparação de representatividade legislativa para os
sujeitos sociais dos grupos minorizados mesmo quando em maioria, como os
negros no Brasil.
O conjunto prático teórico aqui articulado também é uma proposta de
reconfiguração das percepções que construímos no âmbito da intelectuali-
dade não branca e do movimento negro sobre a dominância social de uma
minoria sobre uma maioria. É uma estrutura prático-teórica para a ilustra-
ção das práticas de dominação e, que, ao nos reinserirmos no espaço de
combate reafirmando-nos como minorias, estamos secundando a suposta
«maioria» que seria composta pelos dominantes brancos, eurocêntricos,
héteros, controladores do capital financeiro, colonizadores de nossa men-
te, corpo e espírito (SANTOS, 2020, p. 40).

O pensador Richard Santos (2020), em seu livro: Maioria minorizada –


um dispositivo analítico de racialidade, aborda os elementos que na sociedade
brasileira reforçam o entendimento do que seria uma maioria minorizada a par-
tir das características e das relações entre os dominantes e dominados.
O vocábulo miscigenação associado ao Brasil envolve o constructo de um
imaginário onde, por muitos anos, a aura da harmônica convivência unia povos
de três raças: branco, negro e índio como formadores de uma nação. Entretanto,
a existência dessa tríade étnica, privilegiou e valorizou aspectos culturais de

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

somente um grupo étnico e permitiu a exclusão sociocultural dos demais grupos.


A distância da realidade causada com a vivência entre os indivíduos com-
ponentes de cada grupo no mesmo território só era transmitida pela população
branca. Esta por conseguinte, era a condutora oficial das narrativas e quem de-
tém o poder numa estrutura de dominação.
Neste sentido, foi passado tanto para o interior de nossa sociedade e para
o exterior do Brasil o Mito da Democracia Racial, com ausência de conflitos.
Internamente, a vivência do dia a dia, nunca foi condizente com este discurso
para os descendentes dos povos originários nem para os descendentes dos afri-
canos negros escravizados.
Os povos originários e os escravizados, bem como seus descendentes tive-
ram suas culturas sufocadas, reprimidas. Bem como, suas identidades castradas
em nome de um Brasil idealizado no qual eles eram indesejados e onde os refle-
xos desta rejeição são demonstrados ainda em nossa atualidade.
Na época, o pessoal perguntava se eu era indígena e eu não respondia; mas
depois criei coragem: sou indígena, sim! De pai e mãe! é triste e por isso
teve todo um problema de eu esconder, uma dificuldade muito grande de-
pois que aconteceram assassinatos na minha aldeia. Então, eu tinha todo
esse medo, pois, quando acontece essas coisas assim, eles buscam a família
toda. E aí minha vó tirou todos da aldeia que restou e ficaram escondidos
(PACHAMAMA, 2018, p. 100).

O trecho acima traz parte do relato da fala de Potira Krikati Guajajara,


habitante da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro sobre sua identidade e perten-
cimento diante da chance de sobrevivência. Fomos regidos por uma base que
almejava uma ideologia de igualdade que chegaria com o fim desses grupos e
subsequente fusão no que seria a embranquecida nação brasileira.
Mesmo que esse plano tivesse dado certo, essa nação homogeneizada por
vias, no mínimo, ultrajantes, subjugadoras e em grande parte à força, num con-
texto de violação sexual, não poderiam ser proclamadas como um exemplo a ser
seguido, como de fato se sucederam.
Do Brasil Colônia ao Brasil República, os brasileiros da terra, os gentios
foram excluídos da cidadania brasileira. A oferta de oportunidade de recortes
para a partir de dados, estudos e observação de se analisar as disparidades so-
ciais quanto à igualdade possibilita o entendimento que os grupos minorizados
de não-brancos no Brasil sofrem e são prejudicados em vários setores em nossa
sociedade quanto aos direitos e benefícios.
Num dos dados mais recentes, o lamentável quadro da fome, em junho
de 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional – Rede PENSSAN, divulgou os resultados do II Inquérito Nacional
sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

(II VIGISAN). Quanto à fome no Brasil, os dados revelam que 33,1 milhão de
pessoas no Brasil estão passando fome.
Segundo os dados, temos a revelação dos níveis de agravamento da fome
nos vários segmentos sociais, sem considerar as lacunas em relação aos dados
de povos originários, populações quilombolas e tradicionais. Com os recortes de
gênero, raça/cor, escolaridade e local de moradia.
O referencial fornecido, apresenta os contrastes com as políticas públicas
que tiraram o país do Mapa da Fome da ONU, em 2014, e que agora apresen-
tam retrocessos e entram em condição de alerta. Neste sentido, os dados que são
estatísticos, mostram quem no atual momento está sendo mais prejudicado e
revelam que a fome tem cor e gênero, dentre outros fatores, como nos informa.
A fome tem cor
Neste segundo inquérito, fica evidente, mais uma vez, que a fome tem
cor. Enquanto a segurança alimentar está presente em 53,2% dos domi-
cílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, nos lares com
responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%. Em outras pa-
lavras, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem
com restrição de alimentos em qualquer nível. Comparando com o 1º
Inquérito Nacional da Rede PENSSAN, de 2020, em 2021/2022, a fome
saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos
(MALUF, 2022, s.p.).

A Rede PENSSAN, através de Maluf (2022), nos apresenta os dados que


traduzem uma situação que vem de um quadro de apagão de dados oficiais e
de negligência das autoridades que permanece, enquanto o contexto de fome e
Insegurança Alimentar nos seus diversos aspectos está crescente e com níveis
mais estarrecedores. O crescimento da pobreza é associado à inflação dos preços
dos alimentos e ao desmonte de políticas efetivas que acentuam as desigualda-
des e levam à miséria grupos sociais e regiões historicamente mais afetadas, a
fome traz o flagelo de crianças, mulheres e da população negra.
A discriminação que estas pessoas recebem, longe da visão mais roman-
tizada, embora existente de que são indivíduos que atacam indivíduos, envolve
uma estrutura excludente, onde os mínimos direitos para serem adquiridos são
advindos de anos de muita luta e que se contrapõe a privilégios que não os
englobam.
Em caráter de exemplificação, se abordarmos a situação evidenciada e
apresentada amplamente pela imprensa, no início do ano de 2023, para o Brasil
e o mundo das condições a que estavam submetidos os povos originários da
etnia yanomami do estado de Roraima em função das terras em que vivem e
os conflitos com os garimpeiros. Já percebemos que em detrimento ao que se
refere às Terras Indígenas, a Constituição Federal de 1988, ainda estabelece que:

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes (art. 231, §2º); temos muito o que avançar em relação aos direitos dos
povos originários.

DA CONSTITUIÇÃO À EDUCAÇÃO: OS PASSOS ANTECEDENTES


DAS LEIS N°. 10.639/2003 E N°. 11.645/2008

Os caminhos metodológicos para uma análise podem ser vários, o adota-


do para o desenvolvimento da escrita deste trabalho, neste ponto, toma por base
o teor da Constituição Federal de 1988, no que envolve os negros e povos ori-
ginários para servir como um referencial cronológico no entendimento do esta-
belecimento das Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008, respectivamente vinte
anos e quinze anos depois. O intuito também é de se aproximar do contexto que
oportunizou a implementação das supracitadas leis para melhor compreensão
de sua importância.
A temporalidade nos oferta a possibilidade de observar o desenvolver de
um fato, um fenômeno, uma situação ao longo do tempo, bem como sua rele-
vância, seu poder de ação, sua abrangência, visibilidade, conhecimento, dentre
outros fatores que nos permite uma avaliação mais consistente e próxima da
realidade.
Pretende-se com esta metodologia balizar as limitações e os impulsos que
a Constituição Federal possibilitou na implementação das Leis n°. 10.639/2003
e n°. 11.645/2008, no campo das desigualdades, a partir da educação como uma
necessária ferramenta antirracista. Onde ambas ainda estão bem distantes do
ideal e do planejado.
Por fim, trazer uma contextualização contemporânea onde o componente
histórico de nossa formação social não deixa dúvidas quanto à predominância
de pessoas negras e originárias entre os sujeitos segregados. Em que se mostram
a permanência de pensamentos através de ações racistas que se perpetuam no
Brasil. Numa gama de situações que refletem tanto pelo viés do desconhecimen-
to das histórias afro-brasileiras e dos povos originários quanto por fortalecimen-
to de subjetividades racistas, adquiridas ao longo da vida das pessoas e reforçada
pelos mais diferentes aspectos.
O Brasil passou por sete Constituições, a saber: 1824, 1891, 1934, 1937,
1946, 1967 e a de 1988, para somente nesta última trazer em seu teor valores que
transmitam o entendimento que a Carta Magna possa ser chamada de cidadã.
Contudo, no que se refere à relevância da cultura e história dos afro-brasileiros e
povos originários no país, ainda era insuficiente o reconhecimento constitucio-
nal. Cabe ressaltar que uma ausente determinação quanto à educação associada
à questão racial não se trata de o tema não ter sido pleiteado para ser definido.
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

Temos na vertente da retomada da democracia, que o Movimento Negro


foi de papel crucial na luta por direitos para os negros no processo antecedente
da Constituição Federal de 1988. Suas pautas pleiteavam direitos provenientes
da grande lacuna vigente desde a Abolição da Escravatura num contexto de
liberdade sem cidadania.
Vale recordar que a Abolição, além de dificuldades econômicas, criou
imensos problemas psicossociais para o negro brasileiro. Excluída a via-
bilidade de um modo de vida rural auto-suficiente, o negro se converteu
numa mão-de-obra em eterna disponibilidade, flutuando, sem definição,
entre o campo e a cidade.
A marginalização socio-econômica do negro já se tornava evidente no
final do século XIX através da sistemática exclusão do elemento de cor
pelas instituições (escola, fábrica, etc) que possibilitariam a sua qualifi-
cação como força de trabalho compatível com as exigências do mercado
urbano. Esta “desqualificação” não era puramente tecnológica (isto é, não
se limitava ao simples saber técnico), mas também cultural: os costumes,
os modelos de comportamento, a religião e a própria cor da pele foram
significados como handicaps negativos para os negros pelo processo socia-
lizante do capital industrial (SODRÉ, 1998, p. 13-14).

O professor Muniz Sodré (1998) nos ensina ao apresentar elementos


quanto às condições que foram impostas aos negros no Brasil no contexto da
pós-abolição. Donde deduz-se facilmente uma fantasia de abolição, sem qual-
quer planejamento de inclusão para os ex-escravizados quanto ao trabalho, mo-
radia e suas manifestações culturais.
Na luta do Movimento Negro nos antecedentes da constituição de 1988,
os vários estudiosos que alimentavam os argumentos diferiam do cenário brasi-
leiro tradicional preso a práticas racistas, desconhecimento racial e arraigados
ao Mito da Democracia Racial e que negam o racismo em si. Mesmo assim,
passos importantes foram dados e a pauta do racismo pela primeira vez fez parte
das discussões do texto constitucional.
Numa perspectiva, onde a luta e a pressão de movimentos sociais apon-
tou que era necessário trazer esta valorização da história e cultura afro-brasi-
leira como ensinamento formal dentro das salas de aula para que se tenha o
aprendizado da mesma forma que se tem de valores de outros povos pela via
educacional.
Por outro lado, a Constituição de 1988, evidenciou a necessidade de rever
e ampliar a legislação ordinária vigente até então relacionada aos povos indíge-
nas. Com isso abriu-se um caminho para incluir novos temas no debate jurídico.
A década de 90 proporcionou a apresentação de projetos de lei com a finalidade
de regulamentar dispositivos constitucionais e adequar a antiga legislação, ainda
com visão integrativa da população indígena aos moldes da constituição vigente.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Na especificidade em relação à população indígena, temos que com a


Constituição Federal de 1988 estabeleceram-se novos paradigmas nas relações
entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos originários. Os direitos cons-
titucionais dos povos originários estão expressos num capítulo específico da
Constituição sob o título VIII, “Da Ordem Social”, capítulo VIII, “Dos Índios”,
bem como em outros dispositivos ao longo de seu texto e de um artigo do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias.
Ressalto que faço a opção do uso restrito dos termos “índio”, “indíge-
na” e suas variantes somente para manter a integralidade das referências nas
citações, ao contexto da época do entendimento, ou a associação específica a
alguma terminologia em minhas alusões utilizo povos originários, ao entender
que esta terminologia abarca a diversidade de etnias existentes em nosso país.
Para não reforçar e evitar uma nomenclatura entendida erroneamente, que não
condiz com a diversidade étnica desses povos no solo brasileiro, além de possuir
forte cunho pejorativo.
O preconceito racial aqui é entrelaçado com o social e o linguístico (na-
quilo que quero chamar aqui de racismo linguístico, e que se desenha atra-
vés do linguicídio, ou seja, do extermínio do outro não branco) fica mais
aparente se nos detivermos nas políticas linguísticas. O fato da maioria dos
brasileiros (ou seja, as pessoas negras) estar condicionadas às formas mais
precárias de educação linguística tem razão de ser diretamente implicada
por políticas linguísticas impostas para populações afro-brasileiras e indí-
genas (NASCIMENTO, 2019, p. 14).

Tal atitude tem o intuito de buscar uma prática que se esquive do racis-
mo linguístico tão característica da língua brasileira adotada no Brasil e que se
encontra incrustrada em nosso idioma no uso cotidiano e sem questionamento
como nos ensina o autor Gabriel Nascimento (2019).
As pensadoras descendentes de povos originários, Kowawá Kapukaja
Apurinã e Bruna Jeguakai Nhandeva Charrúa a respeito de autodenominações
nos dizem que:
Nós, povos autodenominados, somos únicos, e é por isso que temos pa-
lavras diferentes para definir cada autodenominação, pois somos inúme-
ros – com costumes e línguas próprias diferentes entre si – e cada uma
das palavras ancestrais utilizadas diz algo único sobre determinado povo,
a cosmovisão, a cultura e os entendimentos de mundo. Somos Charrúa,
Apurinã, Guarani Nhandeva, entre outros. E não cabe aqui a generali-
zação, que é um dos caminhos mais comuns dos racismos sistêmicos e
estrutural (APURINÃ; CHARRÚA, 2022, p. 176).

Estes novos preceitos constitucionais, asseguraram aos povos indígenas o


respeito ao seu modo de ser, à sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições. Pela primeira vez, reconheceu-se aos povos originários do Brasil o
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

direito à diferença; isto é: de serem indígenas e de permanecerem como tal inde-


finidamente. Segundo o caput do artigo 231 da Constituição: “São reconhecidos
aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL,
1988, n.p.).
Também lhes foi assegurada a utilização das suas línguas e processos
próprios de aprendizagem no ensino básico, como expresso no artigo 210, §2º,
instaurou-se assim uma pioneira realidade no campo da educação escolar. Além
disso, a Constituição permitiu que os índios, suas comunidades e organizações,
como qualquer pessoa física ou jurídica no Brasil, tenham legitimidade para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
O diferencial do entendimento em relação a estes direitos comparado às
constituições anteriores, apresentam-se com duas grandes inovações concei-
tuais: uma é o abandono de uma perspectiva assimilacionista, que enxergava
os indígenas como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. “O
país era descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém em
transição. Essas passando por um processo acelerado de cruzamento, e depura-
das mediante uma seleção natural (ou quiçá milagrosa), levariam a supor que o
Brasil seria, algum dia, branco” (SCHWARCZ, 1993, p. 16).
Dentro da realidade brasileira não faltam exemplos quanto aos caminhos
buscados pelo pensamento brasileiro quanto ao embranquecimento da popula-
ção pelos mais distintos vieses, perpassados pela morte de negros e povos origi-
nais e chegadas de imigrantes, predominantemente, brancos.
No Brasil como nos ensina Lilian Schwarcz (1993) ao comentar a tese “Sur
les métis au Brèsil”, apresentada em sua participação no Primeiro Congresso
Universal das Raças, em 1911, realizado em Londres. Seu autor, o professor e
antropólogo João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional de Belas
Artes, no início do século XX, por muito tempo idealizou-se pelas mais distintas
vertentes de expressão um país que findaria ao embranquecimento.
O mestre em Relações Étnico-Raciais, Claudio da Silva Costa (2021, p.
27) em sua dissertação de mestrado: “ João Batista de Lacerda: “redução ét-
nica” na Primeira República do Brasil (1889-1930) ” nos traz muito sobre o
pensamento de Lacerda e a compreensão brasileira quanto à questão racial ao
apresentar: “(...) os estudos desenvolvidos por Batista de Lacerda, no Museu
nacional, embasados, evidentemente, na literatura científica vigente ao fim do
século XIX e início do século XX fornecem os dados de compreensão da cons-
trução do seu pensamento social e racial.”
O autor Skidmore também nos trouxe que:

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

A elite acreditava que a resposta estava na miscigenação, combinada com


a alta mortalidade (natural) afro-brasileira. Em outras palavras, os brasi-
leiros brancos estavam apostando basicamente na mistura de raças, um
processo que horrorizava os norte-americanos brancos, para gradualmente
tornaram-se o equivalente da raça superior (SKIDMORE, 1998, p. 112).

Ainda na mesma seara, a outra mudança pela via constitucional é que os


direitos dos indígenas sobre suas terras são definidos enquanto direitos originá-
rios, isto é, anterior à criação do próprio Estado. Situação decorrente do reco-
nhecimento do fato histórico de que os indígenas foram os primeiros ocupantes
do Brasil. Estes fatos coadunam com a relevância das Leis n°. 10.639/2003 e
n°. 11.645/2008 quanto à inclusão da cultura e história dos povos originários e
afro-brasileiros que sofreram e ainda sofrem diretamente com as invasões, pela
luta pelo direito à terra ter o direito de ver o ensino de suas temáticas dentro dos
currículos escolares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tempo nos permite avaliar e reforçar que a sociedade brasileira consti-


tuída pela pluralidade ainda carece de corrigir diferenças históricas, disparida-
des de tratamentos discriminatórios em função principalmente da cor de pele,
sem ignorar outros atravessamentos e interseccionalidades.
Neste sentido, lutar, ampliar e atualizar com todos os recursos que o
contexto político-sócio-econômico e tecnológico ofertar são posicionamentos
os quais devemos envidar todos os esforços para se fazer efetivar às Leis n°.
10.639/2003 e n°. 11.645/2008. Principalmente, se partirmos do princípio de
que o conhecimento atua na subjetivação do sujeito, deste modo, ocultar narra-
tivas implica em tirar meios pelo qual a pessoa possa criar sua identidade e ter
pertencimento cultural e sentir-se cidadão do território em que vive.
Assim, a base legal das reivindicações mais fundamentais dos povos origi-
nários e negros no Brasil, quanto ao conhecimento e valorização de suas histó-
rias ainda necessitam de ser cumprida de forma plena na luta de seus direitos e
garantia de existência dentro de nossa sociedade. É um desafio posto, que cabe
a todos abraçar, é um processo lento, que se condiciona a conscientização da
nossa sociedade. No qual o êxito depende do grau de comprometimento de cada
um de nós que acreditam e atuam nessa questão.
Diante do apresentado neste trabalho, temos que as leis n° 10.639/2003 e
n° 11.645/2008 ainda são uma possibilidade real de construção de uma socieda-
de democrática, equânime e inclusiva, a partir da implementação de um modelo
a partir de práticas pedagógicas de educação antirracista. Num contexto de re-
conhecimento da pluralidade nacional e esforço para reduzir as desigualdades

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

persistentes no Brasil quanto às questões raciais. E, no avanço da luta antirracista


ao disseminar conhecimento sobre a cultura africana e afro-brasileira e originá-
ria aos brasileiros. Seus efeitos conjugam aprendizado, respeito, reconhecimento
da história, da resistência e dignidade da população negra e originária do Brasil.
Durante esses últimos vinte anos de existência da Lei n°. 10.639/2003,
na realidade e sua adoção convive com diferentes gerações de educadores que
não foram formados com o esperado para a prática dessa lei. Com educadores
que não acreditam na importância da lei, com educadores que se esquivam ou
dão mínima ênfase na aplicabilidade do pregado pela lei. Com escolas que não
abraçaram o papel transformador da lei, com alunos que passaram por bancos
escolares neste período e nunca ouviram falar dessa lei, com professores que
foram silenciados, ignorados quando tentaram enfatizar a lei.
Contudo, há também boas experiências e trocas pautadas no conteúdo
da lei; produção de projetos que ajudam num percurso antirracista. Criação de
materiais didáticos e pesquisas antirracistas. O fator que ainda está invariável é
o contexto racista de nossa sociedade, com vários casos de interferência de pais,
dirigentes de escolas que discordam do conteúdo a ser apresentado aos alunos
por puro preconceito e desconhecimento.
As Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008 têm um papel de contra narra-
tiva de não existência ao contar histórias apagadas e que possibilitam a recriação
de um passado individual e coletivo e que oferta pontos de referência diversos
que permitem o crescimento de nossa sociedade. E, assim, saem de uma zona de
silenciamento ao deixar de habitar o desconhecido.
Há muito que se aprender com as intersecções étnicas em detrimento a
uma folclorização da diversidade que foi massificada no Brasil, minimizando
e subalternizando culturas ao manter histórias negras e dos povos originários
como um resíduo preso a um passado, como se elas não fizessem parte do pre-
sente. Numa linguagem mais atual é preciso e possível iconizar, viralizar novas
imagens no imaginário coletivo num viés educativo para lidar com outras refe-
rências, novas narrativas de povos que foram silenciados, mas que tem discursos
e representações de relevância nacional.

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
ALVES, Vittoria. Operação contra o garimpo: questões de segurança in-
terrompem resgate de animais em terra Yanomami. 2023. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/brasil/operacao-contra-garimpo-questoes-
-de-seguranca-interrompem-resgate-de-animais-em-terra-yanomami-25657813.

25
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

html. Acesso em: 9 fev. 2023.


APURINÃ, Kowawá Kapukaja; CHARRÚA, Bruna Jeguakai Nhandeva. Os
corpos coletivos contracoloniais e a resistência ancestral. In: FONSECA, Da-
goberto José (org). As mentiras do ocidente. São Paulo: Selo Negro, 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
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20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação na-
cional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário
da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRASIL. Lei nº. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº.. 9.394, de
20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11
mar. 2008.
COSTA, Claudio da Silva. João Batista de Lacerda: “redução étnica” na Pri-
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MALUF, Renato S. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
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26
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições


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SKIDMORE, Thomas E. Uma História do Brasil. São Paulo: Paz e Terra,
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27
20 ANOS DA LEI Nº. 10.639/03 E 15 ANOS
DA LEI Nº. 11.645/08: UMA BREVE ANÁLISE
DAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES DO
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Laryssa da Silva Machado1

INTRODUÇÃO

É sabido de todos que o Brasil é um país multirracial, fundado oficialmen-


te pelos brancos europeus a partir da exploração do trabalho de determinados
grupos sociais e raciais, como os indígenas, habitantes originários das terras, os
africanos - trazidos pra essas terras de forma obrigatória através do cativeiro - e
seus descendentes. Esses foram utilizados como trabalhadores escravos por sé-
culos. O fim da escravização desses grupos étnicos apresenta datas diferentes,
sendo 1758 para os povos indígenas e 1888 para os africanos e crioulos. Após
séculos de exploração a cultura desses grupos continuou marginalizada e es-
tigmatizada entre os brasileiros e o ambiente escolar é um dos espaços onde a
discriminação se perpetua.
A escola brasileira, por muitos anos, ensinou a História de um ponto de
vista peculiar: heróis masculinos, brancos e cristãos. A visão dos europeus e
seus descendentes era traço marcante. Indígenas, africanos e crioulos sempre
estigmatizados, retratados como inferiores, pertencentes a uma cultura atrasada
diante da grandiosidade dos brancos colonizadores. Porém, tanto nas pesquisas
acadêmicas, quanto na realidade escolar, a perspectiva majoritariamente branca
vem perdendo espaço para outros grupos. As “culturas brasileiras” começaram
a ter destaque, ainda que de maneira tímida, nas reflexões históricas dentro da
academia e nas salas de aula (FERNANDES, 2005). O currículo mais euro-
cêntrico continua a vigorar, porém indígenas e africanos passaram a ganhar
destaque.
Os avanços no sentido de modificar definitivamente essa realidade eu-
rocêntrica dos currículos escolares começaram a pouco mais de 20 anos, com
a promulgação da lei 10.639/03, que torna obrigatório, nas escolas de ensino

1 Doutoranda em História pela UFES, historiadora, professora de história da rede munici-


pal de Marataízes-ES, especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Edu-
cação Profissional e do Trabalho pelo IFES, mestre em História pela UFES, bolsista da
Fapes, membro do Laboratório História, Poder e Linguagens e do Instituto Histórico e
Geográfico de Itapemirim e Marataízes.

28
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

fundamental e médio, oficiais e particulares, “o ensino sobre História e Cultura


Afro-Brasileira” (BRASIL, 2003). Posteriormente, a lei 11.645/08 é aprovada,
onde amplia a primeira, sendo “obrigatório o estudo da história e cultura afro-
-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008). Historicamente, sabe-se que 20 anos são
relativamente pouco tempo para uma real mudança estrutural na mentalidade e
costumes da sociedade. Porém, a promulgação dessas leis representam avanços
inéditos na história do ensino brasileiro. Pensar sobre elas e reconhecer seus
avanços são fundamentais na luta para novas conquistas e espaços dentro dos
currículos escolares.

BREVE HISTÓRICO SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL

A educação formal brasileira está intimamente ligada às instituições ca-


tólicas que chegaram ao Brasil junto com os colonizadores. Os colégios dos
jesuítas, que vigoraram como instituição de ensino dos séculos XVI ao XVIII,
e foram instalados nas colônias europeias nas Américas, ministrava o ensino de
história, que era transmitido em latim e era voltado para o estudo dos autores
das Humanidades Clássicas. Segundo Circe Bittencourt (2018, p. 129), o estu-
do dos autores da Antiguidade destacava “as diferenças entre os ‘humanos’ de
forma a justificar as práticas de guerras de extermínio de indígenas, da escravi-
zação de africanos e da controversa ‘escravização de índios’”. Após a expulsão
dos religiosos da colônia portuguesa, as reformas do Marquês de Pombal de
1759 inauguraram mudanças na educação da época, com o ensino sendo trans-
mitido em língua materna e a constituição de um ensino autônomo de História
(BITTENCOURT, 2018).
O Ensino de História no Brasil se concretizou como disciplina escolar
em 1837, com a criação do Colégio D. Pedro II. Nesse mesmo ano foi criado o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, responsável pelo estudo acadêmico
da História brasileira. Kátia Abud (2004, p. 31) analisa a criação das duas ins-
tituições no mesmo ano, sendo uma voltada para formar os filhos da nobreza
brasileira, que governaria o país, e a outra destinada a desenvolver estudos a
fim de formar uma identidade nacional. Nesse período, a escola secundária vai
dividir seus estudos de História entre as Humanidades Clássicas e Humanidades
Modernas.
A organização das ciências ocorrida no século XIX fez com que o ensino
de História se situasse como conhecimento científico e era necessário que o es-
tudante aprendesse a História da Antiguidade, a História Moderna e a História
do Brasil, do ponto de vista elitista europeu (BITTENCOURT, 2018). Após a
Proclamação da República o padrão do ensino histórico permanece, com ên-
fase na definição de identidade nacional e no protagonismo da elite brasileira
29
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

(SCHMIDT, 2012).
O governo Vargas, iniciado em 1930, inaugurou o Ministério da Educação
e da Saúde Pública e reformulou o sistema educacional do país. Em 1931 foi
elaborado o primeiro programa para as escolas secundárias que tinha na dis-
ciplina História da Civilização a unificação entre o ensino de História Geral e
História do Brasil. O conteúdo ministrado apresentava a civilização europeia
como altamente desenvolvida. Os portugueses haviam ampliado o território
com os bandeirantes que ultrapassaram Tordesilhas e, após 1822, mantiveram
um Estado unificado, diferente das colônias espanholas. O cidadão brasileiro
ideal, descendente desse português colonizador, reconhecia-se nesse conteúdo,
enquanto os demais que não se incluíam nesse estereótipo eram discriminados
(ABUD, 2004).
Na década de 1960, sob o governo militar, o ensino das disciplinas de
História e Geografia sofreram grande golpe, pois perderam espaço na grade cur-
ricular. Os Estudos Sociais substituíram as duas disciplinas em 1964 (SCHMIDT,
2012). Os conteúdos de História foram diluídos e o ensino se transformou em
uma listagem de fatos sem caráter científico (ABUD, 2004). Nos anos entre 1964
e 1984, quando vigorou a Ditadura Militar brasileira, inúmeros professores de
História foram perseguidos e censurados, uma vez que nem todos concordavam
com a imposição dos Estudos Sociais (SCHMIDT, 2012).
As mudanças políticas ocorridas no Brasil na década de 1980 deram novo
fôlego à educação brasileira. Com o fim da Ditadura Militar houve um cres-
cimento do movimento de “volta do ensino de História” na educação básica
(SCHMIDT, 2012, p. 86). Mas foi apenas no governo do sociólogo Fernando
Henrique Cardoso que as leis da educação brasileira foram reconstruídas. Um
grande avanço nas legislações educacionais foi a criação da Lei de Diretrizes e
Bases (LDB), criada em 1996. Esta produziu os novos currículos da educação
básica e possibilitou a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s)
em 1998. Esse novo modelo educacional era estendido a todas as escolas, in-
clusive às indígenas e quilombolas. Novos conteúdos históricos foram inseridos
na base curricular das escolas, baseados no compromisso com a formação da
cidadania e democracia (BITTENCOURT, 2018).
Também merece destaque o “Programa Nacional de Direitos Humanos”,
elaborado pelo Ministério da Justiça em 1996, que estimulava uma série de
ações para valorização da população negra brasileira, inclusive com a criação de
material didático sobre a história e luta dos negros brasileiros (FERNANDES,
2005). A LDB colocou pela primeira vez o indígena e o afro-brasileiro no currí-
culo escolar, mas tal medida não foi suficiente para uma mudança significativa
na reparação histórica educacional necessária. Por conta disso, nos anos de 2003

30
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

e 2008 mudanças nessa legislação tornou a educação afro-brasileira e indígena


uma realidade visível nas escolas brasileiras.

OS 20 ANOS DA LEI 10.639/03 E OS 15 ANOS DA LEI 11.645/08:


AVANÇOS NOS CURRÍCULOS E NAS MENTALIDADES

No ano de 2003, logo nos primeiros dias de mandato, o presidente Luiz


Inácio Lula da Silva, primeiro operário eleito presidente do Brasil, promulga a
Lei nº. 10.639, onde institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira nas escolas públicas e particulares da educação básica. A mudan-
ça na LDB é considerada um novo marco no ensino brasileiro e foi fruto das
lutas dos movimentos sociais ligados a essa temática. O texto da nova lei traz a
seguinte redação:
Altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretri-
zes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e
dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida
dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá
o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, res-
gatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão mi-
nistrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)”
“Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’.”
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque (BRASIL, 2003).

Pela primeira vez reconhecia-se diante da lei a importância de se estudar


sobre a contribuição dos negros para a formação do Estado Brasileiro. Esse es-
tudo ia desde o passado de seus antepassados africanos, através da História da
África, passando pela importância da cultura negra brasileira em áreas diversas
como economia, política e sociedade nos conteúdos de História do Brasil, até a
31
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

atualidade. Também se instituiu o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da


Consciência Negra” em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares.
Cinco anos depois a lei é alterada, novamente pelo presidente Lula da
Silva, tornando-a mais abrangente. Foi acrescida a História Indígena como obri-
gatória no currículo da rede de ensino brasileira. No novo texto, promulgado em
2008, a lei apresenta a seguinte redação:
Altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei
no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensi-
no a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mé-
dio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-
ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas
no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na for-
mação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo es-
colar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras.” (NR)
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad

Circe Bittencourt ressalta que a aprovação dessa lei, pela primeira vez, co-
locou a cultura africana, negra e indígena brasileira nos currículos escolares ain-
da muito eurocêntricos. Mas, “anunciam uma formação política e cultural para
o exercício de uma cidadania social com vistas a um convívio sem preconceitos
e democrático” (BITTENCOURT, 2018, p. 142). Outro ponto importante dessa
lei é a interdisciplinaridade. Não se criou uma nova disciplina, se acrescentou
aos currículos de História do Brasil, Educação Artística e Literatura, principal-
mente, as temáticas relacionadas a essas culturas (FERNANDES, 2005). Porém,
as demais disciplinas também terão que trabalhar essas temáticas.
A promulgação dessas leis provocou uma verdadeira transformação nos

32
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

currículos escolares e também na formação dos docentes. Cursos de graduação


tiveram que alterar seus currículos para se adequar às novas demandas. O mes-
mo ocorreu com a indústria literária, uma vez que os livros didáticos precisavam
inserir os novos conteúdos relacionados aos negros e indígenas brasileiros. A
formação dos docentes para atender às novas demandas ainda é um desafio
enfrentado por essa legislação. Muitos professores e escolas limitam a educação
afro-brasileira e indígena apenas ao dia 20 de novembro. Também existe o pro-
blema do racismo estrutural e outras práticas discriminatórias que são invisibili-
zadas em sala de aula ao invés de serem enfrentadas.
O fato é que a mudança nessa legislação inseriu personagens antes su-
balternos nos currículos escolares. Nos vinte anos de aprovação da lei muitos
avanços já foram observados nas múltiplas escolas brasileiras. Mas é preciso
saber que ainda é preciso insistir no tema. A colonização brasileira por cinco
séculos colocou a cultura europeia e de seus descendentes como superior, evo-
luída e vencedora nas disputas históricas. Ainda se percebe isso no cotidiano das
relações sociais. Os negros e indígenas continuam discriminados, uma vez que
essas mudanças estruturais, infelizmente, levam séculos para acontecerem. Mas
é preciso que pequenos passos sejam dados e as últimas décadas revelaram que
esses avanços já conseguiram algumas mudanças sociais.

OS NEGROS NO ESPÍRITO SANTO E A IMPORTÂNCIA DESSAS


LEIS NO CURRÍCULO CAPIXABA

O Espírito Santo, um dos 27 estados da federação brasileira, foi uma das


primeiras Capitanias Hereditárias da colônia portuguesa na América. E, como
todo território que iniciou sua colonização ainda no século XVI, os povos que
formaram essa população eram os indígenas (verdadeiros donos das terras), eu-
ropeus e africanos escravizados. Mas, por que os negros capixabas contemporâ-
neos parecem invisibilizados em nossa cultura atual?
Em uma simples pesquisa no Google2, sobre a “origem da população

2 Links da pesquisa. Acesso em 20 de fevereiro de 2023. https://www.google.com/sear-


ch?q=origem+da+popula%C3%A7%C3%A3o+capixaba&oq=origem+da+popula%-
C3%A7%C3%A3o+capixa&aqs=chrome.2.69i57j33i22i29i30l6.15487j0j7&sourceid=-
chrome&ie=UTF-8
h t t p s : / / w w w. g o o g l e. c o m / s e a r c h ? q = c u l t u r a + c a p i x a b a & o q = c u l t u r & a q s =-
chrome.0.35i39j69i57j0i131i433i512j69i61j69i65l3j69i61.1919j0j7&sourcei-
d=chrome&ie=UTF-8
https://www.google.com/search?q=festas+culturais+famosas+no+espirito+san-
to&sxsrf=APq-WBtbm-a-O8QX681l5YOljVkhc-4fpQ%3A1645269692506&ei=v-
NIQYp6oHrve1sQP8Iy5SA&oq=festas+culturais+famosas+no+espi&gs_lcp=Cgxnd-
3Mtd2l6LXNlcnAQAxgAMgUIIRCgAToECAAQQzoFCAAQgAQ6BggAEBYQH-
joICCEQFhAdEB5KBAhBGABKBAhGGABQD1j5HmCELGgAcAF4AIABwQ-
SIAbkekgEMMC4xMC4yLjEuMi4xmAEAoAEBwAEB&sclient=gws-wiz-serp
33
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

capixaba”, “cultura capixaba”, “festas culturais capixabas”, as menções aos in-


dígenas, ainda que de forma genérica e pouco destacada, são visíveis. A panela
de barro e a moqueca capixaba tornaram-se símbolos culturais, mesmo com o
massacre da população e cultura indígenas. Outros povos e culturas que apare-
cem relaciona-se aos imigrantes europeus, italianos, alemães, pomeranos e suas
festas tradicionais: Festa da Polenta, Festa da Sanfona, Festa do Morango.
Mas, onde estão as festas e manifestações culturais e religiosas dos negros
capixabas? O jongo, o ticumbi, o congo, o Candomblé e a Umbanda? Cadê os re-
gistros dos quilombos e das revoltas de cativos ocorridas por séculos de coloniza-
ção e império escravocratas? A invisibilidade é explicada pelo professor Cleber
Maciel (2016, p. 120) como “perseguições, incompreensões, intolerâncias e des-
truição da maioria [das] práticas culturais africanas”. Porém, ainda que com
uma visão pessimista, como salientam Leonor Araújo e Osvaldo Martins de
Oliveira (2016, p. 23), Maciel reforça que “tais práticas culturais [...] chegaram
até os dias atuais, mesmo que modificadas, sincretizadas e/ou fundidas em ou-
tras [...]” (MACIEL, 2016, p. 120).
É importante salientar que, nas últimas décadas, tanto trabalhos acadê-
micos e mudanças curriculares educacionais, quanto atuações de instituições
políticas e sociais, buscaram dar maior visibilidade à cultura e resistência afro-
-brasileira e capixaba. Porém, ao retornarmos nosso pensamento à cultura e fes-
tas tradicionais capixabas, é como se o Darwinismo Social do século XIX ainda
estivesse presente. Sandro José da Silva, no prefácio da 2ª edição do clássico da
historiografia negra capixaba, “Negros no Espírito Santo”, do professor Cléber
Maciel, discute as ideias vigentes na política brasileira no fim do Oitocentos, em
relação aos ex-cativos recém abolidos em 1888 (SILVA, 2016).
As discussões sobre os negros, considerados estrangeiros no Brasil no fi-
nal do século XIX e início do XX, baseavam-se no Darwinismo Social e na
Eugenia. O futuro da nação recém-formada em 1889 era discutido e a população
afro-brasileira é desconsiderada nesse processo. Os ex-escravizados e seus des-
cendentes deveriam participar de um projeto de assimilação biológica e cultural
a fim de apagar os traços sociais e biológicos africanos.
Sandro da Silva (2016, p.38) descreve que as questões negras tinham status
de ciência higienista do Estado brasileiro, além de serem discutidas como ques-
tões políticas e econômicas. Tais projetos de limpeza pública e hierarquia racial
baseavam-se três premissas: “a extinção do tráfico de africanos escravizados, o
genocídio e etnocídio dos indígenas e o financiamento público da imigração de

https://www.google.com/search?q=de+onde+vieram+as+pessoas+do+espirito+san-
to&oq=de+onde+vieram+as+pessoas+do+espirito+santo&aqs=chrome..69i57j69i64.
22768j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8
34
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

brancos europeus”. O Espírito Santo participa de todas essas políticas do Estado


brasileiro, sendo um dos territórios que mais recebeu imigrantes, com núme-
ro significativo após a abolição da escravidão em 1888 (FRANCESCHETTO;
VENTORIM, 2022).
Infelizmente, é como se esse histórico se mantivesse vivo, como se os ca-
pixabas ainda vivessem sob a premissa do Darwinismo Social, da eugenia e da
higienização racial. No site oficial do Governo do Estado do Espírito Santo, a
justificativa para a imigração europeia no século XIX é a ausência de braços
para a mão de obra nas lavouras.3 Mas e os milhares de africanos e descendentes
que aqui viviam e trabalhavam, seja como cativos, seja como libertos? Esse dis-
curso mascara e ajuda a reforçar os ideais racistas dos séculos XIX e XX.
Atualmente, o Espírito Santo é um dos estados mais racistas e violentos
para negros e pardos do Brasil. Segundo o Portal Geledés, o estado é o segundo
mais perigoso para negros no Brasil (LOUREIRO, 2014). Esses dados alarman-
tes também foram analisados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o
Ipea. Entre 1996 e 2010 (não foram encontrados estatísticas mais recentes sobre
o assunto), o Espírito Santo matou 65 negros para cada 100 mil habitantes. Esses
assassinatos diminuem a expectativa de vida dos homens negros em 2,97 anos.4
Em relação ao racismo, o estado capixaba está entre os 10 primeiros co-
locados no ranking nacional. No ano de 2019 o Espírito Santo ocupou a sétima
colocação, com 105 registros de racismo e uma taxa de 2,6 para cada 100 mil
habitantes. Já em 2020 foram 80 casos absolutos, ocupando o oitavo lugar e uma
taxa de 2,0 por 100 mil habitantes, o que o coloca na quinta colocação (DAL
GOBBO, 2021). Contraditoriamente, a maior parte da população declara-se pre-
ta ou parda segundo dados do IBGE (ALDESCO; TETE, 2020).
Quanto aos indígenas, a população foi reduzida consideravelmente desde

3 “O Brasil, em particular, precisava de braços para movimentar suas riquezas, uma vez que
seu sistema de produção escravista começava a definhar. A proibição do tráfego de escra-
vos a partir de 1850, fez com que houvesse, na opinião dos proprietários de terras, uma
escassez de mão-de-obra, o que poderia prejudicar a economia Nacional. A partir da che-
gada dos imigrantes, no século XIX, o Espírito Santo ganha nova configuração geográfica.
As barreiras naturais apresentadas, principalmente pela Mata Atlântica, serão rompidas e
o interior, sobretudo o norte do Estado, até então intocado, recebeu novos habitantes. O
Espírito Santo recebeu imigrantes de diversas partes da Europa, principalmente da Alema-
nha e da Itália que, junto com os portugueses, africanos e indígenas aqui residentes deram
os traços principais da cultura capixaba.” (VENTORIM, Luciano. Colonização. Governo
do Estado do Espírito Santo – site oficial. Disponível em: https://www.es.gov.br/historia/
colonizacao. Acesso em 20 de fevereiro de 2022.)
4 Sem autor. Pesquisa apresenta dados sobre violência contra negros. IPEA – Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/igualdadera-
cial/index.php?option=com_content&view=article&id=730 e https://www.ipea.gov.br/
portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/131119_tx_homicidio_uf.pdf. Acesso em 20
de fevereiro de 2022.
35
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

o início da colonização. André Ghizelini e Elisa de Almeida (2020) relatam que


havia na Capitania do Espírito Santo cerca de 160 mil indígenas. No Censo de
2010 esse número foi reduzido a 9.585 indivíduos. A cultura indígena, por sua
vez, é um forte atrativo turístico no estado. Nomes de cidades como Marataízes,
Itapemirim, Piúma, Guarapari, Itaúnas, Guriri, só pra citar alguns lugares famo-
sos no litoral capixaba, são de origem indígena. A moqueca capixaba e a arte de
se fazer a panela de barro, dois Patrimônios Imateriais,5 são atrações turísticas e
marcos da cultura espírito-santense. Mas pouco se conhece sobre a história e a
cultura desses povos originários.
Sendo assim, por que o Espírito Santo ainda é um estado tão racista? Se a
maioria da população autodeclara-se preta e parda, por que a cultura e festivida-
des negras não aparecem em destaque na mídia e nas rotas turísticas capixabas?
A cultura capixaba, como de todo o país, coloca a imigração e a cultura europeia
como destaque. Por isso as Leis 10.639/03 e 11.645/08 são tão importantes para
os negros, pardos e também os indígenas capixabas. Estes que por tanto tempo
tiveram suas histórias subjugadas à cultura eurocêntrica agora ganham espaço
nos livros didáticos e currículos escolares, como será analisado a seguir.

O CURRÍCULO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO 20 ANOS APÓS


A LEI Nº. 10.639/03 E 10 ANOS APÓS A LEI Nº. 11.645/08

As Orientações Curriculares do Estado do Espírito Santo são a base


curricular de praticamente todos os municípios do estado. Estas estão disponí-
veis online em página própria: https://curriculo.sedu.es.gov.br/. Não apenas as
escolas da rede estadual como as redes municipais de educação seguem as dire-
trizes curriculares estaduais, o que não impede que elas adequem seus conteúdos
à realidade local. Em mapa localizado no site é possível ver os municípios que
aderiram ao currículo estadual.
A apresentação da página traz o seguinte texto:
O Currículo do Espírito Santo é uma conquista na busca de políticas públi-
cas que promovam melhorias na qualidade da Educação Básica do nosso
território. Elaborado em regime de colaboração entre Estado e municípios,
6
representados, respectivamente, pela Secretaria de Estado da Educação
e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, torna-se um
referencial que alinha as necessidades educacionais próprias do Espírito
Santo à Base Nacional Comum Curricular. Esse referencial deve nortear as

5 Ofício das Paneleiras de Goiabeiras: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/51. Mo-


queca Capixaba: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/51
6 Para distinguir as diferentes referências relacionadas ao Espírito Santo, após as citações
serão utiizadas após as referências as seguintes letras: A, para o site do currículo, B para o
Currículo do Ensino Fundamental II e C para o Currículo do Ensino Médio.
36
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

ações de ensino-aprendizagem nas escolas, suas propostas pedagógicas, a


seleção de material didático, bem como pautar as avaliações e os processos
formativos para gestores e professores. Assim, disponibilizamos, neste site,
o documento curricular da Educação Infantil e do Ensino Fundamental já
finalizado, o documento de transição curricular de 2020, recursos produzi-
dos e selecionados por professores especialistas da Secretaria de Educação
do Estado e dos Municípios, bem como materiais em fase de construção,
referentes à etapa do Ensino Médio (ESPÍRITO SANTO, 2020a).

O texto revela que o currículo capixaba foi construído a partir da cola-


boração entre representantes da União, estado e municípios capixabas e que
deve nortear as ações de ensino-aprendizagem nas escolas de Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Médio. Aqui serão analisados os conteúdos presentes na
disciplina de História desde os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino
Médio. Esse recorte foi escolhido, pois, nessas séries as alunas e os alunos têm
professores específicos formados em História. Também será abordado o mate-
rial didático disponibilizado na página sobre Educação das Relações Étnico-
Raciais. A ideia é verificar quantos conteúdos abordam a temática proposta nas
Leis 10.639/03 e 11.645/08 e quantos ainda focam no ensino eurocêntrico da
História.
No Ensino Fundamental II, o Volume 7 do currículo é dedicado aos co-
nhecimentos de Ciências Humanas e Ensino Religioso. As Ciências Humanas
compreendem as disciplinas de História e Geografia. Segundo o documento, “O
Currículo do Espírito Santo considera que a área de conhecimento das Ciências
Humanas deve contribuir para que todos desenvolvam as noções de temporalida-
de, espacialidade e diversidade” (ESPÍRITO SANTO, 2020b, p. 65). Outro ponto
importante que o Currículo destaca é que os objetivos de aprendizagem dessas
áreas se integram com a Educação Infantil. Os campos temáticos e do cotidiano
destacados são: a comunidade, o município, o Espírito Santo, o Brasil e o mundo.
As Ciências Humanas procuram ir fundo naquilo que é mais peculiar em
nós e talvez, por isso, mais difícil de ser desvendado: a nossa humanidade.
Trilhar esses caminhos é desfazer preconceitos e não se contentar com
olhares superficiais. A História busca compreender o que aconteceu com a
humanidade no passado e suas implicações no presente. A Geografia bus-
ca entender e perceber as transformações ocorridas no passado pelas ações
e relações humanas. Todas as relações resultam em configuração espacial
específica, dentro de um contexto histórico e geográfico único (ESPÍRITO
SANTO, 2020b, p. 65).

Na parte específica sobre o componente curricular de História, fica cla-


ra a importância desse conteúdo para a formação do sujeito autônomo, que é
capaz de perceber o singular e o coletivo. A formação histórica contribui para
que o estudante do ensino fundamental respeite e identifique as diferenças e

37
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

semelhanças, rupturas e permanências no tempo e espaço, retornem ao passado


para compreender o presente e consiga identificar continuidades e alternâncias
dos acontecimentos históricos (ESPÍRITO SANTO, 2020b).
A tabela 01 a seguir apresenta o Objeto de Conhecimento e se as
Habilidades que contemplam a História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e
Indígena nas séries finais do Ensino Fundamental.

Tabela 01: Currículo de História do Ensino Fundamental II


Habilidades com
Ensino de História
Série Objeto de Conhecimento
Africana, Afro-brasi-
leira e Indígena
A questão do tempo, sincronias e diacronias: reflexões sobre o
Não
sentido das cronologias.
Formas de registro da história e da produção do conhecimento
Não
histórico.
As origens da humanidade, seus deslocamentos e os processos de
Sim
sedentarização
A invenção do mundo clássico e o contraponto com outras
Sim
sociedades
O Ocidente Clássico: aspectos da cultura na Grécia e em Roma Não
As noções de cidadania e política na Grécia e em Roma Não
6º ano
A passagem do mundo antigo para o mundo medieval. A frag-
Não
mentação do poder político na Idade Média.
O Mediterrâneo como espaço de interação entre as sociedades
Sim
da Europa, da África e do Oriente Médio.
Senhores e servos no mundo antigo e no medieval Escravidão
e trabalho livre em diferentes temporalidades e espaços (Roma
Sim
Antiga, Europa medieval e África) Lógicas comerciais na Anti-
guidade romana e no mundo medieval.
O papel da religião cristã, dos mosteiros, e da cultura na Idade Média Sim
O papel da mulher na Grécia e em Roma, e no período medieval Não
A construção da ideia de modernidade e seus impactos na
concepção de História A ideia de “Novo Mundo” ante o Mundo
Sim
Antigo: permanências e rupturas de saberes e práticas na emer-
gência do mundo moderno
Saberes dos povos africanos e précolombianos expressos na
Sim
cultura material e imaterial
Humanismos: uma nova visão de ser humano e de mundo Re-
Não
nascimentos artísticos e culturais
7º ano
Reformas religiosas: a cristandade fragmentada, o papel da igreja
Não
e da inquisição na organização social nas colônias.
As descobertas científicas e a expansão marítima Sim
A formação e o funcionamento das monarquias europeias: a
Não
lógica da centralização política e os conflitos na Europa.
A conquista da América e as formas de organização política dos
Sim
indígenas e europeus: conflitos, dominação e conciliação.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

A estruturação dos vicereinos nas Américas Resistências indíge-


nas, invasões e expansão na América portuguesa. As rebeliões
e resistências coloniais (Mascates, Emboabas, Confederação
dos Tamoios, Quilombo dos Palmares, Queimados, Sapê do
Norte - ES) As invasões holandesa e francesa e a decadência da Sim
produção açucareira. As missões jesuíticas e a exploração das
drogas de sertão. O processo de colonização do território capi-
xaba. Economia canavieira, mineradora, tropismo, organização
7º ano administrativa da colônia, sociedade, arte e cultura colonial.
As lógicas mercantis e o domínio europeu sobre os mares e o
Não
contraponto oriental
As lógicas internas das sociedades africanas. As formas de
organização das sociedades ameríndias A escravidão moderna e Sim
o tráfico de escravizados
A emergência do capitalismo Não
A questão do iluminismo e da ilustração Não
As revoluções inglesas e os princípios do liberalismo Não
Revolução Industrial e seus impactos na produção e circulação
de povos, produtos e culturas. O movimento operário, os socialis-
Não
mos, as transformações tecnológicas e sociais Segunda Revolu-
ção Industrial, a emergência de novas potências no século XIX.
Revolução Francesa e seus desdobramentos Não
Rebeliões na América portuguesa: as conjurações mineiras e
Sim
baiana.
Independência dos Estados Unidos da América independências
na América espanhola • A revolução dos escravizados em São
Sim
Domingo e seus múltiplos significados e desdobramentos: o caso
do Haiti.
Independência dos Estados Unidos da América independências
Sim
na América espanhola
Os caminhos até a Independência do Brasil Sim
8º ano A tutela da população indígena, a escravidão dos negros e a
Sim
tutela dos egressos da escravidão
O Brasil do Primeiro Reinado. O Período Regencial e as contes-
tações ao poder central. O Brasil do Segundo Reinado: política e
Sim
economia. A Lei de Terras e seus desdobramentos na política do
Segundo Reinado.
Territórios e fronteiras: a Guerra do Paraguai. A economia
cafeeira e suas conexões com os países industrializados e o movi- Sim
mento republicano no Brasil.
O escravismo no Brasil do século XIX: plantations e revoltas
de escravizados, abolicionismo e políticas migratórias no Brasil Sim
Imperial.
Políticas de genocídio e extermínio do indígena durante o
Sim
Império
Nacionalismo, revoluções e as novas nações europeias. Sim
Uma nova ordem econômica: as demandas do capitalismo
industrial e o lugar das economias africanas e asiáticas nas Sim
dinâmicas globais

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Os Estados Unidos da América e a América Latina no século


Sim
XIX
Pensamento e cultura no século XIX: darwinismo e racismo. O
8º ano discurso civilizatório nas Américas, o silenciamento dos saberes
indígenas e as formas de integração e destruição de comunidades Sim
e povos indígenas. A resistência dos povos e comunidades indíge-
nas diante da ofensiva civilizatória
Experiências republicanas e práticas autoritárias: as tensões e
disputas do mundo contemporâneo. A proclamação da Repúbli- Não
ca e seus primeiros desdobramentos
A questão da inserção dos negros no período republicano do
pósabolição Os movimentos sociais e a imprensa negra; a cultura
Sim
afro-brasileira como elemento de resistência e superação das
discriminações
Primeira República e suas características Contestações e dinâmi-
Sim
cas da vida cultural no Brasil entre 1900 e 1930
O período varguista e suas contradições A emergência da vida
urbana e a segregação espacial O trabalhismo e seu protagonis- Sim
mo político
A questão indígena e quilombola durante a República (até 1964) Sim
Anarquismo e protagonismo feminino: lutas e conquistas de
gênero e pelo respeito à diversidade e minorias no Brasil e No Não
Espírito Santo
O mundo em conflito: a Primeira Guerra Mundial A questão da
Não
Palestina A Revolução Russa A crise capitalista de 1929
A emergência do fascismo e do nazismo A Segunda Guerra
Não
Mundial: Judeus e outras vítimas do holocausto
9º ano O colonialismo/ Partilha/ Neocolonialismo na África e Ásia.
As guerras mundiais, a crise do colonialismo e o advento dos Sim
nacionalismos africanos e asiáticos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a questão dos Direi-
Sim
tos Humanos
O Brasil da era JK e o ideal de uma nação moderna: a urbaniza-
Não
ção e seus desdobramentos em um país em transformação
Os anos 1960: revolução cultural? A ditadura civil-militar e
os processos de resistência. As questões indígena e negra e a Não
ditadura
O processo de redemocratização A Constituição de 1988 e a
emancipação das cidadanias (analfabetos, indígenas, negros,
jovens etc.) A história recente do Brasil: transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais de 1989 aos dias atuais. Os Sim
protagonismos da sociedade civil e as alterações da sociedade
brasileira A questão da violência contra populações marginaliza-
das O Brasil e suas relações internacionais na era da globalização
O mundo pós-guerra Fria, suas mudanças e permanências.
Redemocratização do Brasil, transformação e manutenção das
estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais dos anos
Sim
1990. Era digital: desafios das novas mídias e globalização e
imediatismo. O Brasil contemporâneo e suas conexões com a
história regional e do tempo presente.
Fonte: Espírito Santo, 2020b.

40
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

Já no Ensino Médio, a História está associada à necessidade de atender a


formação dos sujeitos capazes de realizar uma leitura crítica do mundo, contex-
tualizada com sua realidade. Este componente curricular é apresentado como
ciência e procura apresentar um conjunto de eventos, dinâmicas, circunstâncias
e sujeitos históricos (ESPÍRITO SANTO, 2020a). A Tabela 02 mostra os con-
teúdos de História para o Ensino Médio e suas habilidades que contemplam
a História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena. Com a Reforma do
Ensino Médio aprovada em 2017, a disciplina de História só aparece como com-
ponente curricular no 2º ano.

Tabela 02: Currículo de História do Ensino Médio


Habilidades com
Ensino de His-
Série Objeto de Conhecimento tória Africana,
Afro-brasileira e
Indígena
História, Tempo e Narrativa Sim
Origens da humanidade. Organização Política, Estados e Impérios. Sim
Saberes e conhecimentos de diferentes comunidades, povos e socieda- Sim
des.
2º ano
As mudanças nas formas de trabalho e as transformações ambientais, Sim
sociais, econômicas e políticas. Políticas e relações de poder.
O Espírito Santo, o Brasil e o mundo diante dos desafios de respeitar Sim
os direitos humanos, ambientais, políticos, religiosos econômicos e ter-
ritoriais.
Recursos naturais e relações sociedade natureza. Sim
Imperialismo, conflitos bélicos, econômicos e ideológicos mundiais Sim
nos séculos XIX, XX e XXI.
A relação entre indivíduo e sociedade. Sim
3º ano
Trabalho, tecnologia e relações de poder. A República no Brasil, seus Sim
desafios, conflitos e desdobramentos no presente.
O Espírito Santo, o Brasil e o mundo diante dos desafios de respeitar Sim
os direitos humanos, ambientais, políticos, e econômicos e territoriais.
Fonte: Espírito Santo, 2020a.

Como se percebe, ao analisar as duas tabelas, que as Orientações


Curriculares do Estado do Espírito Santo possuem inúmeras habilidades que
contemplem as leis 10.63/03 e 11.645/08. No Ensino Fundamental II apenas
os conteúdos relacionados especificamente a eventos da história europeia, com-
preendidos como parte da História Geral, deixam de contemplar a temática.
Já no Ensino Médio todas as temáticas estão relacionadas às leis. No mais, os
conteúdos são abrangentes no que diz respeito a História e Cultura Africana,
Afro-Brasileira e Indígena.
Quanto aos materiais didáticos, o governo do estado disponibiliza online

41
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

E-books com o conteúdo. No link “Educação das relações étnico-raciais” es-


tão disponíveis as obras “Educação das Relações Étnico-Raciais e Modalidades
Indígena e Quilombola” e “Raízes: Educação das Relações Étnico-Raciais”.
Isso facilita a vida do docente ao buscar recursos na elaboração de suas aulas.
Apesar de o documento curricular demonstrar que a Rede de Ensino do
Estado e Municípios do Espírito Santo está de acordo com a legislação, sabe-se
que, no “chão da escola” muita coisa é diferente. Nem sempre o docente que
ministra essas aulas possui formação adequada para abordar os conteúdos e as
temáticas ou não possui sensibilidade suficiente para entender a dimensão que
essas habilidades possuem no cotidiano da comunidade escolar. Apesar de o
currículo trazer a abordagem, muitas escolas e professores só trabalham o tema
no vinte de novembro em eventos que, muitas vezes, reforçam os estereótipos
racistas. Outra questão é o tempo corrido das aulas, que nem sempre possibilita
aos alunos e docentes discutirem os assuntos de forma mais profunda.
De qualquer maneira, o currículo capixaba procurou abraçar a população
negra e indígena que, mesmo sendo maioria da população, é tão invisibilizada
em sua cultura. Só da presença desses temas no currículo já demonstra um avan-
ço nas discussões que geraram as leis. Nos primeiros vinte anos da mudança da
LDB é necessário entender que muito ainda precisa ser feito para que a História
e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena e a Educação das Relações
Étnico-Raciais sejam algo comum e corriqueiro do cotidiano e não uma temáti-
ca obrigatória. Espera-se que nos próximos vinte anos outros avanços já tenham
se estabelecido na sociedade e que essas discussões sejam um caminho sem volta
ou curvas.

REFERÊNCIAS
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História do Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe (org.) O
saber histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
ALDESCO, Aldo; TETE, Gleyson. Maioria no ES é descendente de africanos:
Pretos e pardos são mais de 50% dos capixabas, aponta o IBGE. Assembleia
Legislativa do Estado do Espírito Santo. 26 de dezembro de 2020. Disponível
em: https://www.al.es.gov.br/Noticia/2020/12/40200/maioria-no-es-e-des-
cendente-de-africanos.html. Acesso em 20 fev. 2022.
ARAÚJO, Leonor; OLIVEIRA, Osvaldo Martins. Apresentação à Segunda
Edição. In: MACIEL, Cleber. Negros no Espírito Santo. Vitória, (ES): Arqui-
vo Público do Estado do Espírito Santo, 2016, p.20-27.
BITTENCOURT, Circe Fernandes. Reflexões sobre o ensino de História. En-
sino de Humanidades: Estud. av., v. 32, n. 93, mai.-ago. 2018. Disponível em

42
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

https://www.scielo.br/j/ea/a/WYqvqrhmppwbWpGVY47wWtp/?format=p-
df&lang=pt. Acesso em 19 fev. 2023.
BRASIL. Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº. 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação na-
cional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário
Oficial da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRASIL. Lei nº. 11.645/08, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, e dá outras providências. Diário Oficial da
União. Brasília, DF, 10 mar. 2008.
COLONIZAÇÃO. Governo do Estado do Espírito Santo – site oficial. Dispo-
nível em: https://www.es.gov.br/historia/colonizacao. Acesso em 20 fev. 2022.
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do ranking nacional. Século Diário. 16 de julho de 2021. Disponível em:
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FERNANDES, José Ricardo Oriá. Ensino de História e Diversidade Cultu-
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FRANCESCHETTO, Cilmar; VENTORIM, Luciano. Projeto Imigrantes
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GHIZELINI, André A. Michelato; ALMEIDA, Elisa Monfradini. A formação
do território capixaba: ocupação e conflitos em cinco séculos de disputas. Si-
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LOUREIRO, Gabriela. Os 10 piores estados do Brasil para ser negro, gay ou
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43
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

MACIEL, Cleber. Negros no Espírito Santo. Vitória, (ES): Arquivo Público


do Estado do Espírito Santo, 2016.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. História do Ensino de
História no Brasil: uma proposta de periodização. Revista História da Educa-
ção, v. 16, n. 37, mai.-ago. 2012, p. 73-91. Disponível em https://www.redalyc.
org/pdf/3216/321627346005.pdf. Acesso em 19 fev. 2023.
SILVA, Sandro José. Prefácio: Negros no Espírito Santo – Cleber Maciel. É
preciso gritar a Liberdade. In: MACIEL, Cleber. Negros no Espírito Santo.
Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016, p.28-45.

44
CULTURA ÉTNICA NA ESCOLA:
REVISÃO DA VIVÊNCIA DE EDUCADORES
DO ESTADO DO PIAUÍ, DURANTE O PROCESSO
DE ENSINO APRENDIZAGEM
Andressa da Silva Queiroz1
Sebastião Fortes de Oliveira Júnior2

INTRODUÇÃO

O processo de desenvolvimento social do ser humano se inicia durante a


infância, mediante as relações estabelecidas com aqueles que o cercam. E, é no
espaço escolar onde a criança terá acesso aos mais diversos fatores que poderão
auxiliar na construção de uma identidade racial, bem como o desenvolvimento
de uma percepção acerca das diferenças raciais (CAPRINI; BECALLI, 2018).
Neste sentido, conforme pontuado por Libâneo (2010), o ambiente ao
qual o individuo está inserido é de extrema importância para a construção do seu
caráter, sendo a família o primeiro grupo em que a criança inicia este processo de
socialização. Porém, é no ambiente escolar que se conhece outros grupos sociais
e acontece a continuidade da aprendizagem, lugar cuja função é proporcionar às
crianças maiores estímulos para auxiliá-los em seu desenvolvimento enquanto
seres sociais.
E, por meio da promulgação da Lei n°. 10.639/2003, se têm a inclusão
dos estudos da História e Culturas Africanas e Afro-brasileiras em todos os cur-
rículos escolares, o que acaba por contribuir para um cenário de fomento de uma
educação antirracista. Desta forma, instituições de ensino passam a ter a obri-
gatoriedade, no que tange o planejamento de ações voltadas para a implantação
de uma diversidade étnico-racial, durante o processo de ensino e aprendizagem.
Entretanto, embora a implantação de tal lei signifique um grande avanço
para a educação, autores como Pereira (2015), chamam a atenção para a prática
de tais objetivos no ambiente escolar, onde em alguns casos, não existe uma
1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí; Es-
pecialização em Metodologia de Ensino de História (UNIASSELVI); Especialização em
Administração Escolar, Supervisão e Orientação (UNIASSELVI); E-mail: andressa.quei-
roz379@gmail.com.
2 Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí; Es-
pecialização em História e Cultura Afro-Brasileira (UNIASSELVI); Especialização em
Educação, Cultura e Diversidade (UNIASSELVI); Docente da educação básica da rede
estadual de São Paulo–SP; E-mail: sebastianfortes@hotmail.com.

45
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

preparação, por parte dos


professores, para lidar com a temática das relações étnicas raciais. Sendo
assim, colocar em prática as metas e objetivos de tal lei, pode se tornar uma
tarefa difícil de ser cumprida.
Nesse sentido, mediante ao que foi exposto, pesquisar e elaborar trabalhos
que tratam de temas tão relevantes, como a relação do ambiente escolar com
as questões étnico-raciais, é de extrema importância para que se possa verificar
como tal discussão vem sendo abordada e trabalhada em sala de aula. Busca-
se sob essa prerrogativa verificar se os apontamentos encontrados mediante a
revisão literária, realmente se alinham à prática docente de alguns educadores.
Sendo que por meio de questionários aplicados, com docentes da área
de história, filosofia e pedagogia, pode ser verificado, embora em escala redu-
zida e/ou aproximada, como alguns educadores do estado do Piauí abordam
tal temática. Enquanto objetivo, o presente trabalho teve por intuito verificar
como as relações étnico-raciais vêm sendo abordadas em escolas do estado
Piauí, mediante relatos acerca da experiência de docentes durante o processo de
ensino-aprendizagem.
O uso do questionário foi essencial para verificar os instrumentos utiliza-
dos pelos educadores, para abordar as questões étnicas raciais durante o proces-
so de ensino, bem como compreender a relevância da Lei nº. 10.639/2003 no
que tange o processo de ensino-aprendizagem.

METODOLOGIA

O presente artigo possui a finalidade de realizar uma pesquisa de cunho


exploratória, acerca da discussão em torno das relações étnico-raciais no am-
biente escolar. Para a elaboração do trabalho foi realizada uma pesquisa biblio-
gráfica, bem como a aplicação de um questionário com 5 (cinco) professores da
rede pública de ensino de algumas regiões do estado piauiense. A escolha pelo
questionário se deu em decorrência de sua objetividade, além de ser um método
de investigação que possibilita respostas mais diretas, com foco na temática a ser
trabalhada (MARCONI; LAKATOS, 2003).
Desta forma, para construção do trabalho, a aplicação do questionário foi
realizada com docentes de 6 (seis) municípios do estado do Piauí, sendo estes:
Luzilândia, Valência do Piauí, Joaquim Pires, Lagoa do Sítio, União e Teresina.
Onde se pôde verificar, como destacado, em escala reduzida e/ou aproximada,
a maneira como se delineia a práxis pedagógica de alguns professores do estado
do Piauí ao abordarem a temática.
Além disso, para construção do referencial teórico foram consultados li-
vros com abordagens relativas à temática étnica racial no contexto escolar, além
46
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

de consulta nos bancos de dados: Google acadêmico e Scielo, no intuito de co-


letar artigos, teses, e dissertações acerca do tema escolhido.

REVISÃO DE LITERATURA

As discussões em torno das relações étnico-raciais têm ganhado cada vez


mais espaço dentro do campo político-educacional, tal fato pode ser visto como
um resultado a implantação da Lei n°. 10.639/2003, que levou a alteração dos
artigos 26-A e 79-B da Lei nº. 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Tais leis surgem mediante a necessidade de eliminar situações
de desigualdades raciais. Onde, segundo Gomes e Jesus (2013, p. 22), a impli-
cação desta lei sinaliza para “avanços na efetivação de direitos sociais educacio-
nais e implica o reconhecimento da necessidade de superação de imaginários,
representações sociais, discursos e práticas racistas na educação escolar”.
Porém, os autores também indicam algumas lacunas em relação aos re-
sultados oficiais originados pela nova lei. Em um estudo publicado dez anos
após a criação da lei n°. 10.639, Gomes e Jesus (2013) apontam para a falta de
transparência em relação aos resultados obtidos mediante a implantação dos
novos recursos.
Muito pouco ainda se sabe sobre o contexto nacional de implementação
dessa alteração da LDB e demais orientações legais que a regulamentam
na gestão do sistema de ensino e no cotidiano das escolas. Os pesquisado-
res que atuam no campo das relações étnico-raciais e educação concordam
que, embora estejamos prestes a completar dez anos da referida alteração,
ainda temos informações pouco precisas sobre o nível de sua implementa-
ção e o grau de enraizamento da mesma (GOMES; JESUS, 2013, p.22).

Gomes (2011) também pontua que, embora a lei seja de extrema impor-
tância para as discussões em torno da Educação das Relações Étnico-Raciais
(ERER), é necessário que haja uma mudança além das práticas pedagógicas.
Complementando a mesma lógica, Silva e colaboradores (2023, p. 25), afirma
que “é preciso conhecer essa história e estudar acerca da diversidade de meto-
dologias que nos permitem didatizar os conhecimentos no contexto das nossas
áreas de atuação na Educação Básica”.
Com a legislação educacional dos últimos trinta anos, objetivado resga-
tar essas heranças, os instrumentos para o processo de ensino-aprendizagem ao
abordar as questões étnicas raciais se fizeram necessários, mas como existir a
práxis apesar do ainda presente preconceito que sobrepõe à valorização? Como
o educador poderá transpor as dificuldades de compreensão se o educando
não conhece e valoriza a própria história envolta na ancestralidade de origens
africanas?

47
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Segundo Freitas (2019, p. 18) “a pluralidade inserida no âmbito escolar


traz à tona as verdades, que muitas vezes são escondidas e excluídas por não
serem reconhecidas, proporcionando um maior entendimento por parte dos alu-
nos afrodescendentes”. Neste sentido, o aluno, conseguirá entender e valorizar
a suas identidades.
O desafio imposto ao escolher e colocar em prática os instrumentos peda-
gógicos com esse objetivo são: Primeiro, superar o preconceito social em relação
às heranças africanas; segundo, buscar atingir a compreensão a respeito da his-
tória ancestral e terceiro, tornar os educandos agentes conscientes da mudança
social a respeito do próprio passado.
Dentre os instrumentos que podem ser usados para atingir esses objeti-
vos, se pode lançar mão de atitudes vindas do antirracismo e descolonização,
isso com o intuito de desconstruir os preceitos estéticos e culturais impostos
pela mentalidade eurocêntrica, de maneira mais direta, a produção de cartazes e
apresentações orais com temáticas que exaltem a afro brasilidade.
Ainda em relação às vantagens originadas da Lei n°. 10.639/03, Silva
informa que:
As Leis 10.639 e 11.645 representam mais um passo nas políticas de ações
afirmativas e de reparação para a educação básica, por possibilitarem a
realização de debates antirracistas no país, bem como, a concretização do
ensino da história dos povos indígenas e afro-brasileiro nos currículos e
espaços escolares (SILVA, 2002, p. 160).

A fala de Silva (2022) diz respeito também à Lei n°. 11.645/08, que torna
obrigatório o ensino da História e Cultura Indígena nos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, juntamente com a História
e Cultura Afro-Brasileira. Esta lei é de suma importância para a valorização dos
povos indígenas, gerando discussões em torno da cultura, religião e dos costu-
mes indígenas.
Entretanto, conforme apontado por Oliveira (2006), além da legitimida-
de de tais leis, é necessário que haja meios para que os objetivos mencionados
possam ser colocados em prática. Desta forma, é preciso que o profissional da
educação esteja preparado para trabalhar a temática das relações étnicas raciais
em sala de aula. Uma vez que, Freitas (2019, p.18) elucida que “ainda existem
muitos equívocos a serem esclarecidos a respeito do movimento negro, pois há
uma crença de que a manifestação sobre a questão racial não interfere nas es-
colas, ou seja, se restringe apenas as pessoas do movimento afrodescendentes”.
Neste sentido, além do desejo em trabalhar e apresentar a discussão ra-
cial, o professor, deve entender sobre o assunto, para que tais equívocos não
sejam cometidos, e consequentemente deslegitimar uma conquista adquirida à

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

custa de muitas lutas, por direitos conquistados há décadas. Para tal, a formação
continuada pode ser um dos primeiros passos para a preparação durante o pla-
nejamento escolar. Tal fato se faz necessário, pois, em alguns casos, há profes-
sores que durante a graduação não viram ou tiveram contato com tais assuntos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tendo por pressuposto, verificar como alguns professores de determina-


dos municípios do estado do Piauí estão trabalhando a temática entorno das
relações étnicas raciais, foi aplicado um questionário composto por 13 questões,
onde os professores foram questionados, acerca da experiência e conhecimento
acerca do tema em destaque. Desta forma, os sujeitos da pesquisa foram pro-
fessores da educação básica, atuantes nas disciplinas de História, Filosofia e
Pedagogia.

Perfil dos participantes da pesquisa

Os professores, que aceitaram participar da pesquisa, lecionam no estado


do Piauí e possuem formação acadêmica no estado. Abaixo, seguem organi-
zados no quadro 1 os dados acerca do perfil dos participantes envolvidos na
pesquisa.

Quadro 1: Perfil dos Professores Participantes

Tempo de Cidades em
Nome Especialização
experiência na Formação que lecionam
fictício na temática
área atualmente
Graduação em
Licenciatura
PG 2 anos Joaquim Pires Não possui
Plena em
Filosofia
Sim, EAD
Licenciatura pelo Centro
PK 18 anos Teresina e União
Plena em História de Formação
Antonino Freire.
Licenciatura
PB 2 anos Valença do Piauí Não possui
Plena em História
Licenciatura
Plena em Física; Valença do Piauí
PJ 20 anos Não possui
Pedagogia; e Lagoa do Sítio
Espanhol.
Licenciatura
PL 13anos Plena em Luzilândia Não possui
Geografia
Fonte: Autoria própria

49
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Como pode ser observado, mais da metade dos participantes possuem


mais de 10 (dez) anos de experiência em sala de aula, com exceção dos parti-
cipantes G e B, ambos com 2 (dois) anos. Além disso, a grande maioria possui
formação na área de História, e aqueles que não possuem formação na área,
atualmente, são responsáveis pela disciplina de História, com exceção do parti-
cipante G, que atua na disciplina de Filosofia.
Observa-se também, que os professores (as) com o maior período de ex-
periência atuam em mais de um município. Outro ponto a ser observado diz
respeito à formação continuada, aos quais os participantes, com exceção da par-
ticipante K, informarão não possui qualquer tipo de especialização na temática
ética racial. Entretanto, dos 5 (cinco) participantes, 4 (quatro) possuem especia-
lização em outras áreas. Desta forma, observa-se que os participantes possuem
algumas similaridades a serem observadas.

ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PROCESSO


DE ENSINO-APRENDIZAGEM

O questionário aplicado, muito além de verificar a experiência do partici-


pante em sala de aula, teve por objetivo observar o perfil do mesmo no que tange
à sua preparação acadêmica acerca da temática pesquisada. Tentando assim,
observar como tais condições podem, ou não influência no processo de plane-
jamento das aulas e nos resultados que serão obtidos mediante tal proposta de
ensino.
Desta forma, o questionário se inicia com questões como: tempo de ser-
viço, área de atuação, formação acadêmica, e o município em que presta servi-
ço. Mediante tais questionamentos, foram obtidos os resultados disponíveis no
quadro 1. Em seguida os participantes foram questionados acerca do desejo em
realizar cursos de formação continuada acerca das relações étnicas raciais, onde
ambos responderam possui interesse em realizar uma especialização na área.
Quando questionados acerca de seu entendimento sobre “diversidade ét-
nico-racial”, os participantes frisaram a importância de tal discussão no que tan-
ge a vivência em sociedade. Segundo a participante K, o tema é de fundamental
importância, pois, no Brasil, principalmente em razão das diferentes origens dos
grupos que compõem a nossa formação e identidade, o respeito e conhecimento
acerca da origem e identidade do próximo é um dos principais caminhos para
uma boa convivência em sociedade.
O participante G chama a atenção para a relação de tais conteúdos com a
realidade de grande parte da população brasileira, uma vez que, “tais discussões
remetem a nossa própria história, a nossas raízes. Levando em conta a formação
social e cultural da sociedade brasileira que tem historicamente em suas raízes
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

a cultura afrodescendente”. Por sua vez, quando questionada, a participante B,


informou que:
O mundo inteiro é formado por povos diferentes e devemos além de prezar
o respeito às diferenças, buscar a união entre todos os povos para manter o
equilíbrio e a paz. Nas escolas esse conhecimento deve ser ensinado e in-
centivado desde cedo para que se crie a cultura do respeito e da harmonia
independente, de cor, religião, língua etc.

Enquanto que, a participante J afirma que tal assunto diz respeito à “união
de pessoas com diferentes origens, histórias, idiomas, religião e cultura”. Por sua
vez, a participante L afirma se tratar de um “assunto muito diversificado, por
ter uma miscigenação de vários povos e valores e cultura e diversos segmentos
para a sociedade de podemos cita os três grandes grupos étnicos: os indígenas,
os africanos e os europeus”.
Mediante tais respostas observa-se que os cinco participantes possuem
conhecimentos parecidos em relação ao que é “diversidade étnico-racial”. Onde
foram apontados elementos que dizem respeito à identidade racial e a participa-
ção da escola neste processo de aprendizagem. E, assim como a fala da partici-
pante B, Silva e Araújo (2014), também acreditam que o conhecimento acerca
da diversidade étnica racial é um tema a ser trabalhado nas escolas.
A escola é responsável pelo processo de socialização no qual se estabele-
cem relações diversificadas. Além disso, é um espaço que ministra o co-
nhecimento baseado em valores éticos e democráticos, pois a formação
consciente do indivíduo está sob a responsabilidade da mesma. É nesse
ambiente que a criança desenvolve a capacidade de questionar e passa a
ter consciência de sua identidade e a qual grupo pertence. Por isso, a escola
deve está preparada para lidar e trabalhar com tais diversidades (SILVA;
ARAÚJO, 2014, p. 04).

Gomes e Jesus (2013), falam a respeito de um conhecimento vago acerca


da diversidade racial, onde o processo de ensino aprendizagem tende a sofrer em
decorrência do conhecimento superficial de gestores e docentes no que diz respei-
to às relações étnico-raciais, bem como a história da África. Para Melo (2016) em
termos qualitativos, as metodologias didáticas e conteúdos programáticos ainda
seguem sem abordar de modo mais incisivo as heranças culturais e materiais afri-
canos, mesmo está exercendo influência direta por mais de trezentos anos, conse-
quência da diáspora forçada causada pelo tráfico colonial de africanos.
Com as leis que instituíram a obrigatoriedade do ensino de história e cul-
tura afro-brasileira, indígena e cotas sociais, os educadores passaram a ter ampa-
ro legal para colocar em prática metodologias que abordem a temática. Porém
de que maneira instrumentalizar confrontando todo um sistema educacional
colonial?

51
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Ao serem questionados acerca dos principais obstáculos para a implan-


tação de conteúdos em torno da temática (étnico-racial), alguns participantes
elucidaram para o material escasso em relação ao tema. Como é o caso da parti-
cipante J, que aponta “as dificuldades em obter recursos didáticos e financeiros,
e a necessidade de qualificação dos professores para trabalhar o tema”.
Por sua vez o participante G, aponta que
A implantação dos conteúdos referente ao assunto abordado têm vários
obstáculos. Onde se pode observar: a própria comunidade que até certo
ponto ainda tem dificuldades e preconceito referente a cultura afro; outro
obstáculo a se observar é o próprio sistema educacional que necessita re-
forçar a abordagem do tema nas instituições ensino.

Ou seja, em concordância com o posicionamento de Silva e Tavares


(2018), é necessário que a escola seja um espaço de cultivo de uma boa relação
entre todos, agindo na busca por mudanças que possam auxiliar na quebra de
preconceitos, e auxiliando no conhecimento entorno das diversidades. Porém,
é necessário que as instituições de ensino disponibilizem tempo e material para
trabalhar o tema. Conforme pontuado pelas participantes J e B, que afirmam
existir uma falta de conhecimento geral acerca do tema, bem como tempo e
conteúdo limitado para se trabalhar a temática.
Desta forma, a participante K, também critica o atual sistema de ensino
brasileiro, onde, segundo a mesma, “a perspectiva colonial presente na elabora-
ção dos livros didáticos apresentam a temática de maneira reduzida e sem levar
em conta pesquisas recentes e participação de especialistas nessa área”. Neste
sentido, se observa que “na escola, os currículos mantêm os negros à margem da
História, como se fossem invisíveis e não tivessem contribuído para a formação
política, social, cultural e econômica do Brasil” (MELO, 2016, p. 05).
Sendo assim, se não conhecermos e estudarmos a história dos nossos an-
cestrais africanos, como poderemos entender e valorizar as heranças deixadas à
custa de muita resistência? Os registros históricos apontam para a perpetuação
de um ciclo cujos pontos são: desvalorização, depreciação e esquecimento.
Quando questionados acerca de alguns aspectos da cultura brasileira, que
pudessem relacionar a cultura africana, ambos os participantes citaram a culiná-
ria, a música, a dança e a religião. Porém, não mencionaram exemplos que pu-
dessem ser associados aos determinados aspectos, com exceção da participante
L, que citou a capoeira, o batuque, o Olodum e a música africana (samba). Tal
fato demonstra que embora haja um conhecimento acerca de aspectos pertinen-
tes à cultura africana, alguns educadores podem ter algumas dificuldades em
falarem sobre quais aspectos podem ou não ser associados à cultura africana.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

CONHECIMENTO ACERCA DA LEI Nº. 10.639/2003

Com a reivindicação não apenas de profissionais da educação, mas tam-


bém de grupos sociais e políticos diversos, se objetivou que com o respaldo legal,
a história de determinados grupos que fizeram e fazem parte da cultura brasilei-
ra, fossem incluídos na grade curricular obrigatória do ensino básico. Tais con-
frontos foram organizados pelo “movimento negro, sendo este um movimento
social brasileiro antigo, na qual, foi originado pelos quilombos, que reivindica a
liberdade e autonomia, direitos esses que foram conquistados mediante anos de
lutas” (SILVA; TAVARES, 2018, p. 03).
Mesmo a LDB representado um avanço bastante significativo na profis-
sionalização da práxis docente, com a exigência de formação específica para
atuação e o aperfeiçoamento contínuo dos educadores, alguns conteúdos e suas
respectivas temáticas não foram acolhidas em seu texto final.
Desta forma, a lei promulgada em 2003 foi o primeiro passo em direção
a um conteúdo programático mais democrático e inclusivo, versou sobre a obri-
gatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, alguns já estudados
em determinadas instituições de ensino, porém em caráter facultativo, logo não
obrigatório.
Onde, por meio da Lei n°. 10.639/2003, ficou determinado que:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
AfroBrasileira.
§ 1º. O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá
o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§Os Conteúdos referentes à História e cultura Afro-brasileira serão mi-
nistrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas
de educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O
calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’ (BRASIL, 2003).

Desta forma, no intuito de verificar o conhecimento dos participantes,


foi questionado o nível de entendimento em relação ao conteúdo apresentado
na Lei nº. 10.639/03 das Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e Ensino da História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, e se
os mesmos poderiam mencionar alguns aspectos apresentados no documento.
Mediante tal questionamento, o participante G, informou não possuir um
conhecimento aprofundado, porém, o mesmo compreende que a lei estabelece
a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas instituições de ensino

53
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

tanto da rede pública quanto da privada. Por sua vez, a participante K, chama
atenção para a inclusão de datas comemorativas, afirmando que:
A lei apresenta importantes direcionamentos para o ensino e trabalho do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e indígena, tornado- obrigató-
rio. Além disso, apresenta datas significativas que devem ser inseridas do
calendário escolar como o 20 de Novembro Dia da Consciência Negra.

A participante L teve um posicionamento semelhante ao apresentado


pela participante K. Por sua vez, a participante B, afirma ter lido o documento,
porém, não conseguia se lembrar do conteúdo presente no documento. É pos-
sível verificar, que alguns participantes possuem um conhecimento vago acer-
ca do documento. A participante J, por exemplo, afirma se tratar de uma lei
onde se “torna obrigatória inclusão do ensino de história da África e da cultura
afro-brasileira”.
Desta forma, apenas o conhecimento prévio do conteúdo apresentado no
documento, pode não ser suficiente durante o processo de aprendizagem dos
alunos. Neste sentido, as principais indagações em torno da necessidade de pro-
mulgação da lei que se levanta são: Como superar a discriminação e o racismo
estrutural se estes são operacionalizados na sociedade e o preconceito muitas ve-
zes impede o ensino e a aprendizagem? De que maneira se podem desconstruir
os padrões eurocêntricos de cultura presentes na sociedade brasileira?
Sem dúvidas, a inclusão de um conteúdo voltado para a discussão da
diversidade étnico-racial, é o primeiro passo na busca por uma educação iguali-
tária. Desta forma, Moraes e Pereira (2014) defendem que a discussão acerca da
diversidade e respeito ao próximo, no que tange às relações étnicas raciais, deve
fazer parte do conteúdo de formação docente.
Em concordância, Santana e colaboradores (2022, p.104) aponta que:
Os conteúdos propostos nos cursos de formação de professores contri-
buirão para diminuir os expressivos índices de desigualdades raciais na
educação brasileira, de modo que as pesquisas enfatizam o despreparo
dos profissionais da educação para lidar com as situações de racismo no
cotidiano escolar.

Macedo (2017) também elucida que, a formação continuada se faz neces-


sária, para todos os professores, independente do tempo de serviço. Na reali-
dade, o autor, aponta que em alguns casos, professores com mais tempo de car-
reira tende a não se atualizarem sobre tais temáticas, desta forma, é necessário
que haja maiores incentivos para que esses professores possam se interessar pela
temática.
Desta maneira, Santos (2011) afirma que, além de implantações de leis e da
formação dos profissionais, é necessária uma mudança no material pedagógico,

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

mais especificamente nos conteúdos presentes nos livros didáticos, mediante a


implantação de conteúdos com foco na diversidade étnico-racial. E, mediante
os relatos dos participantes, é possível observar que o conteúdo presente no livro
didático não possui material suficiente para trabalhar o tema em questão, desta
forma, o material utilizado se faz mediante pesquisa realizada pelos professores.
Conforme pode ser observado, mediante a fala da participante K:
Já utilizei músicas, filmes e trabalhei com a produção de fanzines que
são publicações caseiras sobre temas referentes a História da África, bem
como apresentações de danças, culinária, sociedade e situação dos povos
originários do Brasil.

A participante B, afirma utilizar “documentários, comparações usando


imagens, discussão de situações atuais envolvendo o preconceito e discrimina-
ção”. Em sua fala, o participante G afirma que: “Para abordagem do ensino
étnico racial eu costumo utilizar como forma metodológica aula expositiva, li-
vros didáticos referentes à abordagem, vídeos, fotos, filmes, slides, etc”. Já as
praticantes J e L informaram que fazem uso da pesquisa e coleta de dados.
Ou seja, fica sobre obrigação do professor pesquisar e coletar o material
didático a ser usado em aula, e, embora seja parte da função do educador, é
essencial que as instituições de ensino auxiliem na construção de um material
adequado para tal temática. Onde em alguns casos, o professor terá que pagar,
com o próprio dinheiro, para desenvolver um material didático coeso com a
discussão étnica racial.
Além disso, quando questionados, em uma escala de 1 a 5, acerca de
como avaliariam o material disponível para a discussão das relações étnico-ra-
ciais, os participantes avaliaram em níveis de 1 a 2, no que tange o sentimento
de satisfação acerca do material disponível nas instituições aos quais lecionam.
Uma avaliação relativamente baixa, o que demonstra o nível de insatisfação dos
participantes.
Neste sentido, é necessário que haja incentivos para o planejamento de
um material didático que contenha um conteúdo inclusivo, e que possa facilitar
o entendimento do aluno sobre o tema. Desta forma, é essencial que as políti-
cas públicas estejam envolvidas em tal discussão, auxiliando de forma legal e
financeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado teve por objetivo verificar como as discussões das rela-
ções étnicas raciais estão sendo abordadas no âmbito escolar, tendo como fonte
de análise, questionário aplicado com professores de diferentes municípios do
estado do Piauí. Em que se buscou analisar dois pontos de importância, sendo
55
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

estes: Abordagem das relações étnico-raciais no processo de ensino-aprendiza-


gem; Conhecimento acerca da Lei nº. 10.639/2003.
Por meio destes dois pontos de debate, foi possível verificar como alguns
educadores do estado do Piauí vêm trabalhando a temática em sala de aula.
Através da experiência dos participantes, foi possível verificar que, assim como
compreendido através da revisão literária, o contato inicial com o conhecimento
acerca das relações étnicas raciais é comum entre os educadores e até mesmo de
interesse, porém, devido à falta de uma formação na área e os escassos recursos
didáticos, tal temática acaba por não ser trabalhada de maneira satisfatória.
Assim, se perceber que a colonização não se restringiu a um sistema eco-
nômico, ecoou em todos os âmbitos da organização social brasileira, sendo a
educação atingida pela mentalidade em várias frentes, de modo que a principal
delas foi o acesso e permanência nas instituições de ensino, há muito tempo
predominado pelas classes sociais mais abastadas.
E, embora ainda seja um tema que necessita de maiores observações e dis-
cussões em seu entorno, a implantação da Lei n°. 10.639/2003 foi o início para
a consolidação de um ensino igualitário, onde os lados são ouvidos e tratados
de forma igual. Além de abrir margens para diversas outras discussões, como
o caso da necessidade de cursos de formação continuada sobre a diversidade
étnico racial.

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ca9a4bc40bd3f29cfabaa2a5492504ec.pdf. Acesso em: 15 fev. 2023.

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FORMAÇÃO DOCENTE E GESTORA NA ERER: OS
OUTROS COLONIAIS PASSARAM PELA PORTA?
Dayana da Silva Ferreira1

INTRODUÇÃO

O presente artigo enuncia uma das discussões centrais na perspectiva da


efetivação das Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008: a formação docente, for-
mação gestora e dos funcionários e apoio dos espaços formais. Inserida inicial-
mente na LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - nº. 9394/1996), a
Lei n°. 10.639/2003 foi promulgada no dia 09 de janeiro de 2003, pelo então
presidente recém-empossado, Luiz Inácio Lula da Silva, como herança de lutas
vinculadas aos múltiplos movimentos negros coexistentes no cenário temporal
dos anos 70 (século XX) e a posteriori. Segundo Pereira e Silva (2016), as entida-
des e os grupos de mobilizações sociais negras vislumbraram contornos estatís-
ticos pautados em análises sócio-históricas desde, principalmente, o momento
do pós-abolição até as principais ações político-militantes dos intelectuais que
provocaram o surgimento das leis. Como fatores relevantes, tais estudiosos vão
elencar os dados numéricos correlacionados à evasão e ao fracasso escolar como
enunciadores de um contexto microssocial hostil, estereotipado e opressivo aos
discentes negros.
A partir das formulações de Da Silva Kern (2017), os estudos eugênicos
pautados entre os séculos XIX e XX, sua difusão estrutural-social e consequentes
políticas governamentais moldaram a percepção da sociedade quanto à neces-
sidade de um projeto de mestiçagem vinculado ao ideário de nação civilizada e
próspera. O olhar biopsicossocial sobre agrupamentos negros, suas capacidades
cognitivas e desenvolvimentos educacionais norteiam até a contemporaneidade
os imaginários formativos dos gestores e professores que lidam como alunos
afrodiaspóricos nas escolas públicas brasileiras, juntamente aos demais profis-
sionais da Educação acríticos.
A teorização do “Movimento Negro Educador”, diante de inúmeras
ações e interpretações sociológicas atreladas à produção intelectual da Profa.
Dra. Nilma Lino Gomes (2019), nos permitiu compilar múltiplas contribuições,

1 Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade


Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGEdu-UNIRIO); Bolsista-estagiária (DS - CA-
PES) no Grupo de Estudos Ambientais desde Sur - GEASur; E-mail: dayana.ferreira@
edu.unirio.br.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

concepções e processos sociais, perante a necessidade de compreensão das des-


valorizações e apagamentos impetrados pelas estruturas político-relacionais às
epistemologias negras, suas re-existências, suas resistências e seus perfis socioe-
ducativos antirracistas. Esse novo lócus analítico, historicamente fermentado
por práticas sociais burlescas, alimentou gerações e gerações de herdeiros da afro-
brasilidade com narrativas outras, ideais de mobilidade socioeconômica e cons-
truções de re-existências educacionais pautadas para as relações étnico-raciais.
Algumas perguntas nortearam minhas escolhas de pesquisa e trajeto for-
mativo atrelado à Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER): primei-
ramente, por que a necessidade de uma lei para se vislumbrar uma educação
harmônica? Qual a relação entre a educação antirracista e as novas perspec-
tivas de uma sociedade globalizada/ informatizada? O que não tínhamos an-
tes que temos agora para tal convocação educativa? E os indígenas, por que só
foram alçados ao processo normativo em 2008? Qual é a importância de uma
formação docente social, inicial e continuada antirracista? Ao iniciar o texto
pela primeira pergunta, a partir de breves e concisas explicações que definem
a necessidade de regulação para a implementação de educação antirracista em
território nacional, as demais perguntas serão resgatadas ao longo dos próximos
itens, relacionando-as ao tema suleador: formação dos profissionais educadores
para as novas demandas deste tempo histórico. Os 20 anos de promulgação da
Lei n°. 10.639/2003 nos traz questionamentos acessórios: há quantas andam a
efetividade de aplicação das diretrizes antirracistas? Avançamos, estacionamos
ou necessitamos de novos debates? A política educacional antirracista adentrou
às lógicas dos poderes institucionais? Tais perguntas vão desbravar caminhos
sobre as formações docentes, as barreiras ao processo e as tentativas de se esca-
lar a dinâmica social colonizada para fins de uma performance educativa mais
equânime.
O título, intencionalmente provocativo, alude à expressão popular: “meter
o pé na porta”, em diálogo aos movimentos sociais e educacionais antirracistas,
seu caráter ativista-militante (muito questionado e combatido nos espaços aca-
dêmicos e governamentais) e a importância dos desdobramentos correlatos à
DURBAN 2001, na conferência contra o racismo promovida pela Organização
das Nações Unidas (ONU). A Conferência Mundial contra Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, ocorrida diante de uma
conjuntura pós-ditatorial na América Latina e demais contextos político-sociais
planetários, atribui compromissos ao Estado brasileiro quem culminam, dentre
outras ações afirmativas estatais, nas diretrizes curriculares para uma educação
antirracista na Educação Básica (CARDOSO; SANTOS; 2022). Este foi o pé
que impediu a porta de fechar... Entre brechas e arrombos, desde configurações

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

normativas a ações efetivas, a ERER tem determinado novos comportamentos


nas escolas (ora por pressões político-pedagógicas, ora por demandas das comu-
nidades racializadas). O conceito de outros coloniais (QUIJANO, 2005), trazido
ao longo da escrita, é basal para entendermos a sociedade brasileira descoloni-
zada, porém arraigada de colonialidades.

METODOLOGIA

A escrita do artigo será pautada na metodologia de revisão bibliográfica,


elencando publicações vinculadas à formação docente, à formação gestora e às
políticas públicas curriculares para tais intenções formativas na perspectiva do
cumprimento da ERER. Como ponto de partida, as bases de artigos e demais
publicações acadêmicas utilizadas serão Scielo e Google Acadêmico.
Outras pesquisas complementares foram realizadas nas bases supracita-
das, periódicos, revistas, bibliotecas e sites informacionais com o objetivo de
acionar conceitos basilares para análise pretendida e dar robustez teórico-prática
às afirmações/negativas/incertezas sobre a temática tratada.

REVISÃO DE LITERATURA

As análises sócio-históricas do período de 1452 (surgimento da Bula Dum


Diversas) até os dias de hoje nos permite delinear compreensões acerca da nossa
conjuntura social racializada, as disputas situacionais por poderes e narrativas.
Conforme descrito por Nilma Lino Gomes:
A discussão e a inclusão da diversidade cultural e étnico-racial na forma-
ção de professores(as) participa desse processo tenso. Dentro de contexto
mais amplo, o enfoque específico sobre o segmento negro da população
enfrenta uma situação, no mínimo, peculiar: os(a) próprios(as) formado-
res(as) de professores(as) revelam total desconhecimento sobre os proces-
sos educativos implementados pela comunidade negra, bem como sobre as
diferentes formas e níveis de inserção dos negros na educação escolar, ao
longo da história da educação brasileira. Processos que não são uniformes
e sofrem variações no tempo e no espaço (GOMES, 2012, p. 98).

A necessidade de uma formação técnica escolar surge no cenário de uma


efetiva implementação da ERER, a partir das perspectivas legais apresentadas
através das diretrizes modificadoras da LDBEN: as Leis n°. 10.639/2003 e n°.
11.645/2008. Ao pensar sobre o aprendizado jurídico do “cumpra-se”, a inser-
ção da História, Cultura e Arte da África, das afro-brasileiros e dos indígenas
(pindorâmicos) atravessou planejamentos escolares, projetos educativos e con-
teúdos curriculares, diante de uma enorme resistência dos atores escolares às
justificativas raciais que movimentam tais ações pedagógicas e normativas. Tal

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

imposição reflete inúmeras ações inconvenientes, mal formuladas e, por vezes,


reforçadoras de racismos velados em formatos artísticos e/ou cômicos.
Aqui trago uma experiência, enquanto apoio educacional em escola pú-
blica de nível fundamental, dentre muitos outros relatos de profissionais da esco-
la básica que pude acompanhar. A prática do projeto pedagógico de culminân-
cia, geralmente em sábados letivos, tornou-se ferramenta comum para justificar
o cumprimento das determinações da ERER. Em sábado letivo esvaziado, em
data próxima ao Dia da Consciência Negra, turmas da escola em questão reu-
niram-se para realizar algumas exposições, apresentações, rodas de conversas e
atividades correlatas ao tema proposto. Uma turma em específico apresentou a
música baiana “Negâ Maluca, negâ maluca, doida, doida, doidá!” (CRISTINA,
2010). A proposta gera um estranhamento de minha parte, contudo pensei sobre
a possibilidade de ser uma abordagem recriada, crítica. Eram poucos alunos,
dado o esvaziamento normal de atividades extracurriculares aos fins de semana
em cidade praiana, estando centralizada no palco uma menina negra retinta.
Todos cantavam e dançavam, porém somente a menina preta foi destacada dos
demais, caracterizada com uma peruca black power e, ao final da música, entoou
a plenos pulmões: “Eu sou uma Negâ Maluca!”.
Muitas interpretações e consequências podem ser extraídas de tal episó-
dio, mas atenho-me à questão da docência. Em muitos momentos pude acom-
panhar a turma e a professora responsável. Uma docente com três turnos de
trabalho, em dois municípios, que atuava como contratada, o que significa dizer
ganhar menos e ter menos direitos trabalhistas assegurados pelo poder público e
ter excessiva carga laboral. Guedes (2017), descreve no artigo A interatividade e a
sobrecarga de trabalho docente no Ensino Médio: reflexões sobre a atividade de professores
da rede estadual do Rio de Janeiro “a sobrecarga do trabalho docente... enfatiza
aspectos que podem desvalorizar o trabalho do professor, revelando condições
de trabalho precárias, não saudáveis e que comprometem a qualidade do traba-
lho docente” (GUEDES, 2017, p. 17). Com isso, busco chamar atenção para
uma rede de sobrecargas que vendam secretária de Educação, gestão, supervisão
(coordenação) escolar, orientação educacional e, em última instância, os docen-
tes para a necessidade de maiores aprofundamentos, estudos, atualizações e en-
tendimentos conjunturais para uma produção curricular contínua e condizente
às expectativas da ERER.
Estando a formação inicial alijada de disciplinas ou composições cur-
riculares que permitam a inserção de conteúdos obrigatórios sobre ERER na
grade formadora da pedagogia e das licenciaturas, algumas faculdades garan-
tem o acesso às disciplinas eletivas/optativas, sendo a escolha discricionária por
parte do estudante universitário. Gomes & Jesus arrematam o fio condutor aqui

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

proposto para um avanço em relação aos processos educacionais desejados:


A aprovação e a paulatina implementação dessa legislação, fruto das pres-
sões sociais e proposições do movimento negro brasileiro, juntamente com
os demais aliados da luta antirracista, sinaliza avanços na efetivação de
direitos sociais educacionais e implica o reconhecimento da necessidade
de superação de imaginários, representações sociais, discursos e práticas
racistas na educação escolar. Implica, também, uma postura estatal de
intervenção e construção de uma política educacional que leve em con-
sideração a diversidade e que se contrapõe à presença do racismo e de
seus efeitos, seja na política educacional mais ampla, na organização e
funcionamento da educação escolar, nos currículos da formação inicial e
continuada de professores, nas práticas pedagógicas e nas relações sociais
na escola (GOMES; JESUS, 2013, p. 22).

As políticas educacionais e curriculares têm seus meandros produzidos


pelos momentos históricos, políticos, econômicos e sociais de um país e das
influências externas sobre ele, não sendo diferente para o surgimento da Lei n°.
10.639/2003, com posterior complementação pela Lei n°. 11.645/2008. Diante
de um amplo contexto sócio-histórico que vai abordar movimentos abolicionis-
tas, movimentos civis, direitos humanos e direitos jurídico-constitucionais, acio-
no um fato de relevante influência nas erupções socioeducacionais ocorridas
no início do século XXI no Brasil: A 3ª Conferência Mundial de Combate ao
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada
pela Organização das Nações Unidas, em Durban, África do Sul.
Em reunião do GT quilombolas e mulheres negras, na Conferência
Durban+20 foi notório entre os ali presentes (que também estiveram em Durban)
a importância de tal evento, mediante presença massiva de pessoas do movimen-
to negro brasileiro e demais países da América Latina. Esta ação pontual aliada
a diversas outras transmutou a realidade educacional, em primeira instância,
por vias legais. A importância desta reunião se confirma nos ditos do Prof. Dr.
Richarlls Martins ao Radis FIOCRUZ:
O legado mais positivo é ter possibilitado uma mobilização única de ato-
res e atrizes sociais que conseguiram introduzir em âmbito global a pauta
racial como elemento fundamental para pensar democracia e desenvolvi-
mento. Em âmbito nacional, este legado segue forte até hoje e pode ser
percebido no protagonismo dos movimentos negros, com especial desta-
que para o movimento das mulheres negras, nas discussões sobre os desa-
fios nacionais. A centralidade do tema racial hoje é ressonância do proces-
so de construção e posterior da Conferência de Durban” (DOMINGUEZ,
2021, s.p.).

Durban, como afetuosamente se apelida o marco histórico, remonta às


movimentações que precisaram ser efetuadas em terrenos sociopolíticos lo-
cais e internacionais, ao inserir interpretações de intelectuais antirracistas nas
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

dinâmicas socioespaciais e apresentar um novo lócus social sobre afrodiaspóri-


cos/povos originários.
E agora, estamos a empurrar mais um bocado esta porta, a fim de escan-
cará-la para nossas demandas educacionais e sociais? Como parte da força po-
tencial necessária para tais processos socioeducacionais, a formação docente (ou
do discente) torna-se um grande desafio a ser encarado. As novas narrativas his-
tóricas pautadas nas mobilizações e lutas dos povos indígenas, afrodescendentes
e demais grupos étnicos pormenorizados pelas legitimidades institucionais bus-
cam trazer outros olhares para a conjuntura social brasileira, desvelando argu-
mentos e pseudociências racializadas a partir de intencionalidades estruturantes
geradoras de outros coloniais. A formação do formador-docente, do professor
da Educação Básica, das equipes diretivas e consultivas ainda estão alinhadas
com a perspectiva eurocêntrica, conforme descrito a seguir:
Mesmo com a existência de leis como a 10.639/03 e a 11.645/08, cujo
objetivo é levar o conhecimento, a cultura e história das populações afro-
-brasileiras e indígenas à escola, ainda percebemos uma grande resistência
dos espaços escolares em transformar sua estrutura, que continua eurocên-
trica” (RIBEIRO; GAIA; RODRIGUES, 2020, p. 20).

Os autores supracitados vão colaborar para análises pertinentes aos escri-


tos de Aníbal Quijano, sociólogo de origem indígena, peruano e intelectual teó-
rico-crítico. Quijano (2005) tratou de expor suas composições teóricas sobre as
colonialidades e consequentes conformações sociais advindas desta herança do
colonialismo. Este diferencia o colonialismo como presença político-territorial,
enquanto elabora a colonialidade como resultante sócio-histórica mantenedora
de um arranjo racista e hierarquizante, ocorrida a partir do processo de “retirada
oficial” dos governos coloniais. Os outros coloniais configuram-se como grupos
étnicos determinados como inferiores à raça branca, através de inserções sociais
(ciências, costumes, comportamentos etc.) produtoras de gradação, hierarquiza-
ção e, por conseguinte, desigualdades étnico-culturais evidentes.
A mescla do componente racial a outros fatores reflete, se assim posso
dizer, de maneira coerente os ensinamentos contidos nos processos educadores
formais e informais, espelhando para o espaço escolar nossas tendências precon-
ceituosas e discriminatórias. Isto perpassa gestores, docentes, discentes e demais
atores envolvidos no fazer-escola. A Educação para as Relações Étnico-raciais,
enquanto campo teórico-metodológico, apresenta-se gradualmente como uma
das alternativas viáveis à criação de novos formatos sociais e educativos. É
importante salientar o “gradual” de acordo com as continuidades e rupturas
históricas, pois no presente momento passamos por uma reestruturação polí-
tica e governamental, após cenários de desmontes e apagões institucionais,

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

principalmente atrelados ao governo de extrema-direita do ciclo 2018 - 2022.


Em conformidade às concepções de macros e micro contextos da socie-
dade, a ERER encontra-se tensionada entre diversas formas de se pensar a vida,
de se agir esta existência e de se pautar o relevante. Ao acionar o conceito de
diferença colonial de Walter Mignolo (2020, p. 192) “[atua] através da história
do sistema-mundo moderno/colonial, traz para primeiro plano a dimensão pla-
netária da história humana silenciada por discursos centrados na modernidade,
pós-modernidade e civilização ocidental”, compreendo os encontros amórficos
entre Estado, poderes e grupos sociais interseccionalizados como uma comple-
xidade relacional importante para fins de elaboração, inserção e implementação
de modelos formativos antirracistas para os corpos técnicos escolares. As for-
mas com as pessoas se relacionam com as determinações jurídicas, aplicações e
prescrições variam de acordo com suas heranças comunitárias, capacidades de
compreensão, crenças pessoais, favorecimentos subjetivos, dentre outros fatores.
Como se diz no jargão jurídico: “Tem lei que não pega”! Talvez o caminho seja
uma “Pedagogia da Vergonha”? Uma “Pedagogia da Exposição”? Intuo que
sim. Mas somente isso? Acho que não.
Aqui, já gostaria de pensar sobre maneiras de engajar o fazer-saber escolar
antirracista. Entretanto, aborda a modificação referente a n°. 11.645/2008 tem
sido algo que ressoou fortemente durante meus estudos sobre tais legislações.
Mas afinal de contas, onde estavam as pautas indígenas em 2003? Ao acom-
panhar leituras e palestras sobre tal questão, deparei-me com uma análise que
agrega conhecimentos sobre esse caminho. Nas elaborações de Silva (2000), no
artigo: Escolas em Movimento: trajetórias de uma política indígena de educação, ao
analisar os eventos produzidos por um movimento de professores indígenas, em
Roraima, no período de 1988 a 1999, explicitou:
Ficou latente nos debates o fato de as escolas indígenas não estarem con-
seguindo responder satisfatoriamente aos problemas atuais das comunida-
des, uma vez que o Estado tem abafado/sufocado/controlado novas ma-
neiras de entender e construir os processos de educação escolar. Prevalece,
ainda, a concepção de escola indígena como “adaptação” aos modelos
historicamente dominante de instituição escolar. (SILVA, 2000, p. 4).

A preocupação histórica das comunidades indígenas e dos professores


mobilizados (a época) circundava em torno da preservação das práticas, modos
e culturas destes agrupamentos, cotidianamente bombardeados por influências
eurocêntricas que descaracterizava (e ainda o fazem) suas heranças ancestrais.
Esse processo de resistência interna preconiza ações inicialmente voltadas para
políticas educacionais que pudessem garantir às comunidades pindorâmicas
o direito à preservação de suas raízes, culminando em um posterior adentra-
mento aos contextos gerais da educação escolar básica. A partir daí, a lei n°.
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

11.645/2008 complementa a LDBEN juntamente à Lei n°. 10.639/2008, inse-


rindo o ensino de História, Cultura e Artes indígenas na Educação Básica.
Ainda trago a relevância do momento sócio-histórico atrelado ao apare-
cimento das mídias sociais. A mídia tem sua nítida influência sobre comporta-
mentos e ditas verdades. A aparição das redes sociais, conforme Silva e Nunes
(2016) descrevem: “O ativismo digital conseguiu atuar estrategicamente em um
contexto da comunicação convencional e gerou outras formas de produzir in-
formação, auxiliando no exercício da cidadania da população negra” (SILVA;
NUNES, 2016 p. 17), capilarizou o acesso e a difusão de informações por usuá-
rios com interesses temáticos comuns, interligados por configurações algorítmi-
cas e por pautas específicas. Todos passam a ter direito aos seus espaços de ex-
planações e trocas com alta velocidade de compartilhamentos. A desconfiança
de narrativas únicas encampa um processo de produção de novas histórias, de
exemplos e, esquematicamente, de apropriação analítica das estatísticas sociais
brasileiras para fins de exposição das nossas incoerências. Neste sentido, o uso
das ferramentas digitais para a militância negra (e outras) tornou-se fundamen-
tal para o espalhamento das propostas e ações voltadas às reformulações educa-
cionais das leis em estudo.
Feito estes breves adendos, recorro a heretópicos devires para acionar-
mos possíveis, pensáveis e (quem sabe) desejáveis maneiras da formação técnica
escolar tornar-se pluriversada em constructos étnico-racialmente equilibrados.
Ao vislumbrar alguns ditos de Nilma Lino Gomes (2003), nos primórdios da
legislação, identifiquei algumas sugestões correlatas aos pressupostos caminhos
para a construção dos processos formativos e a ERER: a) representatividade e
outras histórias, valorando as contribuições coletivas dos povos africanos e seus
descendentes; b) obrigatoriedade de disciplinas sobre ERER na formação ini-
cial do quadro técnico; c) formação complementar e continuada para todos os
educadores escolares; d) um olhar atento do poder público ao cumprimento das
legislações, incluindo pessoas racialmente críticas; e) constância na implementa-
ção e abordagem das formulações teórico-práticas sobre a ERER.
Neste ano, a Lei n°. 10.639/2003 completou 20 anos de existência. E
as notícias irão chegar aos poucos, a partir das publicações e análises dos pes-
quisadores do campo. Entretanto, as notícias iniciais não são as melhores. Em
entrevista para a Folha de São Paulo, representantes de movimentos negros e
intelectuais como a Prof. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalvez e Silva, Frei Davi
do Educafro, a Prof. Dra. Givânia da Silva do Conaq, dentre outros, explici-
tam suas dúvidas/expectativas quanto aos engajamentos sociais e os processos
de inserção da lei. A análise atribui ao movimento negro maior contribuição
diante da implementação da ERER no contexto escolar formal, sofrendo com

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

limitações e descumprimentos do que está previsto junto à LDBEN. E ainda,


um distanciamento dos órgãos estaduais e municipais diante de um regimento
trazido pela esfera federal, com debates nada ou pouco producentes na perspec-
tiva da mudança de rotas sociais brasileiras (LACERDA, 2023).

CONSIDERAÇÕES IN LOCO

Conforme anteriormente mencionado, propõem-se alguns caminhos de


atuação nos moldes da ERER, visando a formação continuada docente na pers-
pectiva de uma educação intercultural e étnica. Em linhas gerais, a formação
inicial que preze tal abordagem surge, timidamente, nos currículos formativos
docentes, elencada principalmente em disciplinas optativas ou eletivas. Por ten-
sões narrativas, a escolha discricionária permite a manutenção do desconhe-
cimento de contextos socioeducacionais vinculados às realidades dos futuros
profissionais da Educação Básica Um exemplo disso é a utilização de materiais
folclóricos ou estereotipados sobre negros e indígenas, além da predominância
de fenótipos alvos nos personagens veiculados nos materiais didáticos-concei-
tuais. Recai sobre a formação continuada, está sob a égide das secretarias de
educação e suas conformações político-pedagógicas, a responsabilidade por tra-
zer concepções teórico-metodológicas concernentes à implementação das dire-
trizes curriculares presentes nas Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008. Estas
secretarias, em grande parte, encontram-se superficialmente inteiradas sobre as
normativas e orientações pedagógicas produzidas sobre a ERER. A visibilização
da ERER na formação inicial/continuada e a disputa pelos territórios curricu-
lares predominantemente hegemônico, como ferramentas de ressignificação dos
dados escolares e novas experimentações socioeducacionais, é um campo de
batalha dialogicamente complicado. Muitos educadores evitam a temática por
questões de proteção no que tange às relações comunitárias escolares ou por não
crença nas concepções teóricas racializadas.
A formação de professores e gestores antirracistas permeia inúmeras va-
riáveis sociais, históricas, psicológicas, educacionais e culturais (dentre outras)
que escapam à previsibilidade de assimilação, interpretação e difusão dos con-
teúdos propostos pelas Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008. Entender como
essas relações se dão em espaços de práticas curriculares bem-sucedidas, mal-
-sucedidas ou nulas (se é que isso é possível), através de pesquisas, observações
e recálculos de trajetórias tornar-se um instigante e pertinente desafio para os
pesquisadores da área. Como vivência pessoal, percebo que a participação, a in-
tegração e a colaboração de educadores antirracistas nos coletivos educacionais
tem possibilitado a criação de espaços de resistências, de aprendizados, de aco-
lhimentos psicológicos e da construção de argumentos que legitimem as leis. O
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

caminhar das Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008 ainda é longo, pedregoso
e incerto, porém, apesar de todos os pesares, os corpos resilientes ao proces-
so constituidor da nação brasileira mantém-se na luta por novas conformações
sociais que contemplem novas realidades mais que visíveis, quem sabe, mais
memoráveis.

REFERÊNCIAS
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de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacio-
nal, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
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gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 3 mar. 2020.
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº. 10.639, de 9 de ja-
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incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: Presidência da
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69
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

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https://www.scielo.br/j/cp/a/bd3MYbqJmmdnwDdzwRQjWNm/?lang=pt.
Acesso em: 1 mar. 2023.

70
RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA E SUAS
MULTIPLAS FACETAS
Rosana Fátima de Arruda1
Malsete Arestides Santana2
Nilvaci Leite Moreira de Magalhães3

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta uma análise bibliográfica das produções cientí-


ficas (mestrado e doutorado) desenvolvidas na UFMT e disponibilizadas no
Repositório/UFMT, além de olhar para os grupos de pesquisas cadastradas no
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para
a busca, elegemos a temática Lei n° 10.639/03 e relações étnico-raciais, de modo
que a abordagem da pesquisa qualitativa teve o recorte temporal de 2003 a 2022,
sendo selecionadas 39 dissertações e 06 teses.
A proposta é fazer um levantamento das pesquisas da pós-graduação de
mestrado e doutorado desenvolvidas na Universidade Federal de Mato Grosso
e disponibilizado no Repositório da Instituição com foco na temática “Lei n°.
10.639/03” e “relações étnico-raciais”, em que o campo de investigação é da
Área da Ciências Humanas e Educação. A análise do trabalho levou em conta
o resumo, o ano e a Instituição, tendo em vista que as temáticas se conectam,
interagem entre si.

CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

A pesquisa bibliográfica fora realizada durante um mês, por meio do


Repositório da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em que se bus-
cou dissertações e teses que se vinculassem as temáticas “Lei n° 10.639/03” e
“relações étnico-raciais”, entre os anos de 2003 e 2022. Em 2003 foi o ano que se
impôs uma política curricular de inclusão de conhecimentos sobre a cultura afro
brasileira, na perspectiva do protagonismo negro em todas as formas de mani-
festações, contudo, demandou programas, projetos e ações que interpelavam por
formação de professores, fosse na formação inicial, continuada e como objeto de

1 Mestra. Secretaria Municipal de Educação Cultura Esporte e Lazer de Várzea Grande.


rosanaarrudaead@gmail.com
2 Mestra. Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá. malsetesantana@gmail.com
3 Doutora. UNEMAT. nilvacimagalhaes@gmail.com

71
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

pesquisa da pós-graduação, no sentido de entender a conjuntura didático peda-


gógica que se dava ou se daria como prática antirracista imposta pela Lei.
A desconstrução das estruturas ideológicas perpetuadas perpassa pelo
como as produções acadêmicas se interessam e investigam as relações raciais
e as facetas do racimo na escola. A Lei é resultado de conquista do povo negro
que exigiu do Estado o reconhecimento, reparação e valorização da cultura afro-
-brasileira, a começar pela educação. A Educação das Relações Étnico-Raciais é
parte do que se impõe a Lei n° 10.639/03 no currículo brasileiro.
Olhar os dados implica considerar que no Brasil o racismo atua fortemen-
te nas estruturas sociais, gerando a partir das diferenças culturais, desigualdades.
Neste aspecto, é pertinente afirmar que a estrutura social do Brasil está pauta-
da em dois pilares: o racial e de classe, sendo que a influência de ambos tem
sido determinante na colocação do status quo na vida da pessoa negra. Então, é
basilar fazer uma breve retrospectiva histórica do racismo e suas facetas e das
políticas públicas que inserem no currículo escolar a educação antirracista, pois
a intensão do artigo é construir um panorama da dimensão qualitativa e quan-
titativa das teses e dissertações investigadas, os campos de atuação que os pes-
quisadores tem mais atuado, as lacunas e as intersecções dos achados, pois são
conhecimentos que fortalecem o campo teórico das pesquisas acadêmicas e as
subvertem em prol do que estabelece a Lei n° 10.639/03.
No levantamento teórico sobre racismo buscamos os teóricos Skidmore
(1976), Santos (1983), Nogueira (1985), Schwarcz (1993), Munanga (2010),
Costa (2009), entre outros, que discutem as teorias racistas, a condição do negro
no Brasil e as influências das teorias nas desigualdades sociais. Para Skidmore
(1976), as teorias raciais se incorporaram ao cenário brasileiro por influência eu-
ropeia e americana como forma de justificar a exploração dos negros e indígenas
e, assim, firmar o fortalecimento da nação, além de ser instrumento de poder do
branco como superior, ao excluir e negar aos negros e indígenas seus direitos
civis. O autor destaca que a construção de raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro se deu a partir de teorias racistas, e destaca três escolas que se desen-
volveram no Brasil: a teoria da poligenia, a teoria do determinismo climático e
a teoria social darwinista que, por investidura da elite brasileira, se estabelecem
e, hoje, refletem suas mazelas.
Porém, o modelo de estrutura escravocrata e imperialista, de pensar a
sociedade brasileira no final do século XX, se apresentaram insuficiente e novas
configurações liberalistas se apresentaram e, com elas, surgiram os movimentos
anti-imperialistas e abolicionistas redesenhando uma nova organização para a
sociedade.
Em 1888, é assinada a Lei Áurea, libertando os escravizados que estavam

72
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

na senzala. Para além, o movimento abolicionista reagia à escravidão com a


compra de liberdade e ações organizadas de fugas, mas no dia 14 de maio de
1888, um dia após a assinatura da Lei Áurea, os direitos civis, a inclusão social e
de cidadania à população negra não se efetivou. Ao contrário disso, os negros se
viram à mercê de uma realidade muito cruel e exclusiva, a margem da sociedade
(SANTOS, 2005).
O mito da democracia racial, uma das facetas racista que se apresentou
no início do século XX, nas configurações republicanas, ao tempo que exercia
função simbólica de valor e estratificação, denotou relação igualitária de ascen-
são social e educacional. O que implica na relação social à meritocracia, todos
têm os mesmos direitos e oportunidades, contudo, só não supera os empecilhos
aqueles que se limitam, não se esforçam. Nessa narrativa, camuflam a falta de
equidade através das políticas universais, ou seja, desconsidera o racismo, ao
tempo que o reforça (SANTOS, 1983). Assim, a educação, percebida pela po-
pulação negra como um caminho de ascensão, não dava conta de responder aos
anseios da militância e intelectuais negros. A escola era mais uma instituição
que perpetuava a desigualdade racial do que permitia a ascensão social tão dese-
ja (SANTOS 2005; COSTA, 2006).
A partir da percepção, da militância e intelectuais negros, da política do
branqueamento4 nos livros didáticos que reproduziam a discriminação racial
e evidenciavam uma história de invisibilidade e de permanente luta pela liber-
dade, se construiu inúmeros manifestos de denúncias, protestos e propositivas
de pedagogias antirracistas, com o objetivo de erradicar o preconceito, a discri-
minação e o racismo nas relações sociais, e fora após muitas reivindicações do
movimento negro, que se alterou o currículo escolar brasileiro.
A lei n° 10.639/03 alterou a LDB n° 9394/96, estabelecendo à inclusão
no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira.” Em 2008, a lei n° 11.645/08 complementa a lei nº
10.639/03 e faz incluir o termo indígena, redefinindo a escrita para “História e
Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena.”
A lei n° 10.639/03, o Parecer do CNE/CP 03/2004, a Resolução CNE/
CP 01/2004 e as Diretrizes (2004), são resultados de medidas educacionais que
buscam “assegurar o direito à igualdade de condições de vida e cidadania, assim
como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasi-
leira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos

4 Da Mata (1987) apud Jesus (2010, p. 46) a tese do branqueamento significa “Se constitui
na mais poderosa força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente
sua sociedade e individualizar sua cultura”. Essa fábula hoje tem a força e o estatuto de
uma ‘ideologia dominante’: um sistema totalizado de ideias que interpenetra a maioria
dos domínios explicativos da cultura.
73
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

brasileiros.” (BRASIL, 2004).


Os dados do IBGE (2021), IPEA (2022), que acompanham as políticas
universais na educação e em outros setores, indicam condições adversas que im-
pedem a ascensão da população negra, indicando políticas de ação afirmativa.
A Lei n° 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais são resultados de mu-
danças na forma de fazer políticas públicas, de universais para focais, reconhe-
cendo as desigualdades raciais e sociais. Para Oliveira e Sacramento (2010, p.
240), se configura como políticas públicas focais as “[...] pautadas na equidade
racial como princípio” e de ação afirmativa as que “[...] têm o propósito de repa-
rar injustiças cometidas pela sociedade, contra determinados grupos colocados
em situação de inferioridade” (OLIVEIRA; SACRAMENTO, 2010, p. 242).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(DCNERER) assegura a política de reparação, de reconhecimento e valoriza-
ção, indicando que as ações pedagógicas têm como referência o pensamento
filosófico e pedagógico, o princípio da consciência política e histórica da diver-
sidade, o fortalecimento de identidades e de direitos, e ações educativas de com-
bate ao racismo e da discriminação da população negra em ambiente escolar.
Nesse sentido, o tripé ensino, pesquisa e extensão do currículo das
Instituições Superiores se tornam basilar para o processo de formação de pro-
fessores, pois interpelam à reflexão significativa, emancipatória e transforma-
dora. Para Fazenda (2008), o docente em formação compreende a necessidade
de saber, saber fazer e saber ser. E o conhecimento da prática pedagógica se for-
talece na práxis. Munanga (2008) ressalta a importância do ensino da História
da África e da Cultura afro-brasileiro tanto a brancos quanto a negros, como
forma de evidenciar socialmente a contribuição dos negros para a emancipação
nacional do Brasil e desmitificar os preconceitos e discriminação reproduzidos
há séculos, sob o olhar e controle eurocêntrico. O autor propõe o resgate da
memória coletiva através da educação, pois diz que com educação, é possível
transformar as estruturas eurocêntricas consolidadas em nossa sociedade, que
nos gestos, atitudes, comportamentos reforçam a ideia de preconceitos, estereó-
tipos e discriminação contra os negros. Ainda, afirma que a educação é um
forte instrumento emancipatório “capaz de oferecer tantos aos jovens como aos
adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade
e inferioridade entre grupos humanos, introjetados pela cultura racista na qual
foram socializados” (MUNANGA, 2008, p. 13).
Nesse mesmo raciocínio, Oliveira e Sacramento (2010, p. 262), coloca que
as mudanças curriculares em educação para as relações étnico-raciais na educa-
ção básica têm “caráter permanente e sistemático, com base em pressupostos

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

que asseguram a atuação competente dos profissionais docentes”. Nesse aspec-


to, a Resolução CNE/CP 01/2004 no Artigo 3º, parágrafo 2º e no Artigo 5º,
sinalizam de quem é a responsabilidade e compromisso pela formação e ensino-
-aprendizagem, vejamos:
Artigo 3º[...]
§ 2° As coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de
estudos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de
estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes
curriculares. (BRASIL, 2004, p. 01).
Art. 5º Os sistemas de ensino tomarão providências no sentido de garantir
o direito de alunos afrodescendentes de frequentarem estabelecimentos de
ensino de qualidade, que contenham instalações e equipamentos sólidos e
atualizados, em cursos ministrados por professores competentes no domí-
nio de conteúdos de ensino e comprometidos com a educação de negros
e não negros, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que
impliquem desrespeito e discriminação (BRASIL, 2004, p. 02).

As Diretrizes Curriculares Nacionais buscam na escola, em especial, na


figura do professor, a responsabilidade de “estabelecer conteúdos de ensino, uni-
dades de estudos, projetos e programas abrangendo os diferentes componentes
curriculares” e quanto à formação inicial e continuada, chama a responsabilida-
de à Educação Superior, no sentido de dar o suporte teórico pertinente à questão
étnico-racial.

OS RESULTADOS DA PESQUISA

O artigo em questão compila numa abordagem qualitativa as produções


acadêmicas (dissertações e teses) sobre as relações raciais e as facetas do racimo
na escola nesses quase vinte anos da Lei n° 10.639/03, como mostra o quadro
abaixo:

Quadro 01: Dissertações e teses por gêneros, área de conhecimento


e ano que foram produzidas

Ano Dissertação Masc. Fem. Tese Masc Fem Área De Conhecimento


2003 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2004 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2005 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2006 1 - 1 - - - Ciências Humanas e
Educação
2007 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

2008 - - - - - - Ciências Humanas e


Educação
2009 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2010 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2011 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
2012 3 - 3 - - - Ciências Humanas e
Educação
2013 2 1 1 - - - Ciências Humanas e
Educação
2014 1 1 - - - Ciências Humanas e
Educação
2015 6 1 5 1 - 1 Ciências Humanas e
Educação
2016 6 1 5 - - - Ciências Humanas e
Educação
2017 5 1 4 1 - 1 Ciências Humanas e
Educação
2018 6 4 2 - - - Ciências Humanas e
Educação
História e Geografia
2019 4 1 3 2 1 1 Ciências Humanas e
Educação
História e Geografia
2020 2 1 1 2 - 2 Ciências Humanas e
Educação
2021 3 - 3 - - - Ciências Humanas e
Educação
2022 - - - - - - Ciências Humanas e
Educação
FONTE: Elaboração própria.

Observe que no Quadro 1 foram analisadas quarenta e cinco produções


acadêmicas, entre Dissertações e Teses, sendo 39 (trinta e nove) dissertações e
06 (seis) teses. A maioria das pesquisas são desenvolvidas pelas mulheres; das 39
(trinta e nove) dissertações, 29 (vinte e nove) são produzidas por mulheres e 10
por homens. Das 06 (seis) teses, somente uma é produção masculina. Os anos
de maiores produções dissertativa estão entre 2015 e 2018, de modo que entre
2019 e 2020 somam o maior volume de teses. De 2003 a 2011 não identificamos
produções acadêmicas que remetessem ao campo de procura, somente em 2006
encontramos uma dissertação. Contudo, Gonçalves (2015), ao traçar a biografia
do NEPRE/UFMT, cita outras pesquisas desenvolvidas na pós-graduação, no
Instituto de Educação
76
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

As 45 (quarenta e cinco) produções estão vinculadas a Universidade


Federal de Mato Grosso, ao Instituto de Educação, nas linhas de pesquisas
Organização Escolar, Formação e Práticas Pedagógicas (Grupo: Tecnologias da
Informação e Comunicação na Educação); e, Movimentos Sociais, Política e
Educação Popular (Grupo: Movimentos Sociais e Educação e Relações Raciais
e Educação). As produções, na sua maioria, estão ligadas as linhas de pesqui-
sa do Movimentos Sociais, Política e Educação Popular (Grupo: Movimentos
Sociais e Educação e Relações Raciais e Educação), espaços onde as temáti-
cas são mais recorrentes e aos quais os professores fazem parte do Núcleo de
Estudos e Pesquisa em Relações Raciais e Educação.
Entre as dissertações pesquisadas estão: Leite (2006); Santana
(2012);Nascimento (2012); Marques (2012); Magalhães (2013); Paulino
(2013); Arruda (2014); Mendes (2015); Ribeiro (2015); Godoi (2015); Ferreira
(2015); Silva (2015); Oliveira (2015); Céspedes (2016); Perotoni (2016); Vieira
(2016); Carvalho (2016); Nunes (2016); Lobo (2017); Dias (2017); Costa (2017);
Campos (2017); Moreira (2017); Mendes (2018); Silva (2018); Costa (2018);
Périgo (2018); Sodré (2018); Neves (2019); Penha (2019); Santana (2019); Lima
(2020); Felipe Teixeira (2020); Cunha (2021); Freitas (2021);Santos (2021). As
teses são de Gonçalvez (2015); Guimarães (2017); Batista (2019); Magalhães
(2019); Silva (2020); Paz (2020.
Ao avaliar o resumo das produções, muitas por meio do método de revi-
são sistemática de Davies, fizemos a leitura dos títulos, resumos, palavras-chaves
e dividimos as discussões em três grupos: a Lei n° 10639/03; o currículo escolar
e a formação de professores.
Os títulos se apresentam com a intensão de instigar a percepção do leitor
para problemáticas sobre a implementação da Lei n° 10.639/03, nos territórios
quilombolas em instituições de Educação Básica e Ensino Superior, articuladas
as dimensões pedagógicas de uma educação antirracista. Ainda, formação de
professores é tido como objeto de reflexão e instrumento de transformação e
enfrentamento do racismo. Nesse sentido, as políticas públicas de ação afirma-
tiva tecem a base da fundamentação e sucesso da implementação da Lei nos
ambientes educacionais (GONÇALVES, 2015).
A temática religiões de matrizes africanas, na perspectiva da LDB, apa-
rece em apenas uma dissertação (VIEIRA, 2016), e revela a resistência de pro-
fessores em trabalhá-la como objeto de conhecimento, manifestação cultural,
quando a intolerância religiosa impede que as estratégias de eliminação do racis-
mo aconteçam. O tema é de extrema relevância, mas representa uma categoria
que precisa de mais pesquisas e investigações para reduzir as fragilidades me-
todológicas, no sentido de fortalecer o arcabouço teórico e argumentativo a ser

77
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

disponibilizado para estudo e aplicação no currículo escolar.


As palavras-chaves que mais reverberaram entre as produções foram: ra-
cismo, quilombo, educação escolar quilombola, relações raciais e étnico-raciais;
educação escolar, políticas públicas (ações afirmativas), identidade, formação
docente, alunos negros, narrativas e Lei n° 10.639/03.
Os documentos oficiais em torno da Lei n° 10.639/03 interpelam para
as instituições educacionais a necessidade de reestruturação escolar, tanto no
discurso como na prática, de forma a reorganizar o currículo, no que concerne
a inclusão de ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira e no de-
senvolvimento de políticas públicas voltadas as formações de professores. Nesse
sentido, as pesquisas vinculam o currículo às questões étnico-raciais, educação
escolar quilombola, desempenho escolar, identidade e políticas públicas e ação
afirmativas. Para Lopes e Macedo (2011), toda prática curricular está envolta
de relações culturais, sociais que interagem com os envolvidos num processo
educativo emancipatório, porém, há de se considerar a existência do modelo de
reprodução de ideologia e hegemonia de poder, que absorve o processo educati-
vo e infere na relação o interesse do dominador.
Nessa perspectiva, as produções acadêmicas apontam para a preocupação
dos pesquisadores com o currículo, o que nos faz compreender que o currículo
escolar, na tendência progressista, “passa a ser pensada como um processo so-
cial, preso a determinações de uma sociedade estratificada em classes, uma dife-
renciação social produzida por intermédio do currículo.” (LOPES; MACEDO,
2011, p. 29). Assim, o currículo escolar tem poder, poder de significar, de dar
sentidos e homogeneizar o que tem definido como prática pedagógica e forma-
ção de professor.
Para a inclusão dos conteúdos curriculares da história e contribuições da
cultura afro brasileiro e africana, é preciso que o professor tenha os conhecimen-
tos e saberes pertinentes ao currículo, fundamentação teórica crítico-social, re-
flexão teórico prático, considerando os conflitos sociais e a subjetividade. Além
disso, o professor precisa das competências para articular os conteúdos propo-
nentes do currículo e intervir intencionalmente em práticas discriminatórias e
preconceituosa do ambiente escolar e social, configurando em ações que des-
configurem as desigualdades (LIBÂNEO, 1984).
Para quebrar a hegemonia de poder e ideologia que perpassa sobre o cur-
rículo, é preciso avançar ir além do aceitar a diversidade como um desafio, é to-
mar a decisão, responsabilizar e inferir sobre o currículo, de forma a contemplar
as histórias, o conhecimento étnico-racial subjugado a margem da sociedade.
(GOMES, 2011). Para Gomes (2011), a implementação da Lei nas escolas pú-
blicas, reflete sobre as condições reais (política, social, física e de formação de

78
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

professores) de práticas educativas sobre relações étnico-raciais, em detrimento


ao que as Diretrizes colocam como prática pedagógica, e discorre que
A implementação da Lei n.º 10.639/03 depende não apenas de ações e
políticas intersetoriais, articulação com a comunidade e com os movimen-
tos sociais, mudança nos currículos das Licenciaturas e da Pedagogia, mas
também de regulamentação e normatização no âmbito estadual e muni-
cipal, de formação inicial, continuada e serviço dos profissionais da edu-
cação e gestores (as) do sistema de ensino e das escolas (GOMES, 2011,
p. 24).

Como se vê, a maior dificuldade de implementar a lei está na criação de


políticas que criem recursos públicos para maior investimento na formação ini-
cial e continuada dos professores, nas produções de materiais didáticos e para-
didáticos, na perspectiva da lei. As produções pouco incidem sobre a formação
como assunto principal, porém, em face ao combate ao racismo e a construção
de uma pedagogia antirracistas, a tese de Gonçalves (2015) explana a biografia
do NEPRE/UFMT e expõe a política curricular da Universidade na construção
de uma base formativa sobre a formação de professores na formação continuada
e na pós-graduação. Para Gomes e Silva (2011, p. 14), o desafio para a formação
é articulá-la à temática das relações étnico-raciais, afirmando ser pertinente es-
tudos que focalizam “as histórias de vida, o desenvolvimento profissional, a for-
mação de professores reflexivos e de novas mentalidades.” Essa abordagem tem
se mostrado relevante nas pesquisas e discussões de caráter pedagógico, relativo
à construção da identidade, valores, ética, religião, relações de gênero, de raça e
de trabalho, ou seja, as questões étnico-raciais se fortalecem quando articulada à
formação de professores e às práticas educativas escolares e não escolares.
Desse modo, a formação de professores proposta nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para as relações raciais, nos interpelam a ir além de apren-
der teorias e técnicas, de atender a alguns princípios das Diretrizes Curriculares
Nacionais, mas a ter formação integral5, de modo a desenvolver consciência da
própria competência pedagógica e intencionalmente inferir na desnaturalização
de práticas e teorias que não tem como princípio o respeito à diversidade.
Por isso, é preciso avançar, ir além do aceitar a diversidade como um desa-
fio, é tomar a decisão, responsabilizar e inferir sobre o currículo conhecimentos
pertinentes as relações étnico-raciais (GOMES, 2011).

5 SEVERINO, Antônio Joaquim. Formação docente: conhecimento científico e saberes


dos professores. 2011. Argumenta sobre a formação integral considerando três esferas:
trabalho, vida social e cultura simbólica, baseada em projetos educacionais sustentados na
prática profissional.
79
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No tocante ao estudo, a Lei nº 10.639/03, as relações étnico-raciais, as


políticas públicas e a formação de professores, são os elementos que delineiam
os apontamentos das pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT). Para a formação inicial e continuada, é preciso decisões po-
líticas que reflitam de fato no campo educacional, pois, quando atendida nas
dimensões necessárias, multiplicam-se em possibilidade de ascensão social e re-
conhecimento da identidade racial.
Enfim, a prática educativa sobre a questão racial está envolta a uma série
de articulação de ações políticas e pedagógicas, que devem ser definidas em po-
líticas públicas tanto no âmbito da ação federal, estadual, municipal até chegar
ao plano tácito da escola, atendendo a Lei n° 10.639/03 e a outros documentos
que favorecem a formação de professores e inclusão de conteúdos da história e
cultura afro brasileira e africana.

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Educação, Cuiabá, 2016.

82
SAIR DO PAPEL:
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS PARA UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
Ananda da Luz Ferreira1

INTRODUÇÃO

É possível desenvolver uma educação antirracista por intermédio das


Literaturas Infantis? Quais livros usar nessas práticas pedagógicas? Todo livro é
bom? Como desenvolver um projeto sem perder o literário? Essas foram ques-
tões que atravessaram o projeto Karingana wa Karingana que desenvolveu ofici-
nas de formação com professoras da Educação Infantil (EI), no Extremo Sul da
Bahia, no intuito de promover práticas pedagógicas antirracista a partir do uso
de Literaturas Infantis. Para a materialização das oficinas houve uma necessida-
de de investigar os saberes prévios das professoras participantes da oficina, então
foram aplicados questionários e entrevistas para que os resultados contribuíssem
para o planejamento da ação formativa. O formato de oficina e não curso foi
pautado na perspectiva apresentada por Candau (1999) que afirma promover
participação e aproximação, além de proporcionar trocas de saberes entre os/as
participantes, por ser um espaço de construção coletiva de saberes. O formato
oficina corroborou com a proposta da ação que era ofertar formação a partir das
lacunas apresentadas pelas docentes durante as investigações prévias, além de
sensibilizá-las à temática. Nóvoa (1988, p. 115) reflexiona que as formações de
professores devem dialogar com suas histórias de vida, “é evidente que o adulto
tem que construir a sua própria formação com base num balanço de vida (pers-
pectiva retrospectiva) e não apenas numa óptica de desenvolvimento futuro”;
foi, na concepção da formação, preocupação que os conhecimentos comparti-
lhados dialogassem de forma crítica com as práticas das docentes dentro e fora
da escola.

DE QUEM ESTAMOS FALANDO?

A formação foi realizada na Escola Municipal de Educação Infantil


Contos de Fadas. O espaço educacional, segundo o censo de 2018, tinham 170

1 Doutoranda em Difusão do Conhecimento (DMMDC – UFBA/UNEB/IFBA). Mestra


em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER-UFSB). Pedagoga com especialização n’O
Livro Para Infância (Casa Tombada). e-mail: anandaluzananda@gmail.com

83
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

crianças, entre 4 e 6 anos, matriculadas e 22 funcionárias entre concursadas e


contratadas, destes 9 eram professoras. A estrutura da escola, até dezembro de
2019, não possuía biblioteca e nem sala de leitura, o pequeno acervo de livros
era organizado em uma sala que acolhia secretaria, direção, sala de professores e
atendimento aos responsáveis; outros poucos livros em sala de aula, no armário
das professoras e/ou caixas de leitura.
Nas análises das entrevistas e questionários, constatamos que o perfil das
professoras, acolhidas pela formação, eram de profissionais mulheres, concursa-
das, graduadas em pedagogia e com especialização na área de Educação. Todas
as entrevistadas responderam ter mais de 10 anos de experiência na Educação
Básica, mas a maioria apontou ser a primeira atuação na EI. Apenas 2 disseram
ter mais de 10 anos de experiência na EI.
Ao responderem o questionário sobre conhecer a Lei n°. 10.639/032, so-
mente 2 professoras disseram não conhecer a lei e 2 responderam abordar a
temática com frequência para suas aulas. Entretanto, nas entrevistas demonstra-
ram que as ações nem sempre eram de cunho pedagógico e sim de intervenção
em conflitos entre as crianças, como confirma a fala da professora Sara3:
A gente faz no cotidiano, a gente sempre faz com eles quando surge ape-
lido. A gente vive [a temática] no dia a dia com eles, sempre. Mostro que
tem a pessoa branquinha, a moreninha, a pretinha, mostro para ninguém
se sentir desprezado. Para todos se sentirem iguais (Entrevista, 2018)

Essa declaração evidencia uma interpretação equivocada da legislação e do


que é uma educação para as relações étnico-raciais. É importante compreender
que não é o espaço de ações pontuais, onde se trata do conflito racista somente na
hora que acontece, mas sim o espaço que trabalha diariamente a diversidade para
promover, de fato, uma educação transformadora e dialógica. Deve-se pensar as
ações cotidiariamente para que as crianças reflitam criticamente que não há igual-
dade e sim diferenças a serem respeitadas em sua essência e, principalmente, que
se tenha acesso e visibilidade as histórias e culturas dos povos negros e também
indígena; e de forma interdisciplinar. É no cotidiário4 que realizamos uma educa-
ção antirracista, nas práticas pedagógicas diárias e não ano a ano, nas datas co-
memorativas ou em intervenções de conflitos racistas é apresentando as diversas

2 Lei que modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) trazendo a obri-
gatoriedade do ensino de histórias e culturas africanas e afro-brasileiras. Em 2008, foi modifi-
cada pela Lei n° 11.645/08 que acrescenta história e cultura dos povos indígenas brasileiros.
3 Os nomes das professoras foram trocados para preservar suas identidades.
4 “Cotidiário porque tem que ser diariamente, não de ano a ano, como brincava com as
palavras a professora Azoilda Loretto Trindade quando, em suas aulas na graduação de
Pedagogia, nos colocava a urgência de debater as relações étnico-raciais na nossa área de
atuação.” (FERREIRA, 2019, p. 20).
84
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

narrativas sobre a nossa história, não somente a perspectiva do colonial.


Há 20 anos foi incorporada na LDB a obrigatoriedade do ensino de histó-
ria e cultura africana e afro-brasileira na Educação. Apesar dos avanços nas dis-
cussões, formações, pesquisas e produções de materiais didáticos, é notório que
há muito que se fazer sobre a implementação da lei. A legislação traz um res-
paldo importante para quem já concretizava uma educação antirracista, como
também evidencia o debate na sociedade que é um aspecto de grande relevância.
Pois, como pontuado pelas professoras, a maioria conhece a obrigatoriedade da
temática, mesmo que não a façam:
Quebrar o silêncio reinante sobre a temática das relações etnicorraciais foi
uma das maiores conquistas dessa lei. O silêncio é pernicioso, com conse-
quências terríveis quando impera na escola. A escola tem responsabilida-
des, não pode se omitir nem se calar. Eleger o silêncio traz consequência
(PEREIRA, 2013, p. 12)

Necessita-se que caminhemos para além da lei; resultantes de pesquisas,


estudos, lutas e articulações políticas dos movimentos sociais, principalmente o
movimento negro (GOMES, 2017). Mas é urgente sair do papel e adentrar todas
as salas de aula para garantir que as ações e saberes sobre as culturas e histórias
africanas e afro-brasileiras sejam realizadas por todos/as educadores/as, pois
é um direito da criança conhecer sua própria história, de modo que os afro-sa-
beres, o reconhecimento da contribuição e presença histórico-cultural negra no
Brasil, pulsem para além do dia 20 de novembro – Dia da Consciência Negra. É
importante que as histórias da população negra sejam para além da escravidão,
que os príncipes e as heroínas possam ter muitas caras. Enfim, para que todo o
povo brasileiro se sinta representado nos espaços escolares e todas as professoras
tenham possibilidades de emergir outras epistemologias, para assim, construir
uma educação antirracista.
Nessa direção, foi relevante conhecer como pensa e quais as trajetórias
das educadoras que iriam participar das oficinas, para que os conhecimentos
trocados pudessem realmente dialogar de forma crítica e transformadora com
suas práticas dentro e fora da escola. Para constituir uma formação que eviden-
ciasse os conhecimentos não acessados pelas professoras em suas trajetórias,
bem como provocá-las à necessidade de buscar novos conhecimentos que vão
além dos que foram apresentados nas oficinas. Assim, a formação foi realizada
em duas etapas: a primeira ocorreu em dois turnos, no matutino e no vespertino,
para acolher a disponibilidade de horário das professoras, na escola e contou
com a presença de todas as professoras e outras funcionárias que tiveram inte-
resses, um total de 14 pessoas; a segunda oficina foi realizada na Universidade
Federal do Sul da Bahia, em um único turno, com 13 pessoas.

85
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

A PRIMEIRA OFICINA

Para o desenvolvimento da oficina foi necessário criar estratégias de sen-


sibilização das professoras sobre a necessidade de abordar a temática, visto que
a maioria não tinha conhecimento da lei, bem como demonstrava que não sabia
como trabalhar o tema em sala de aula. A dificuldade de abordar a temática
em seus planejamentos ficou perceptível na fala da professora Roberta quan-
do questionada sobre o porquê de não trabalhar histórias e culturas africanas e
afro-brasileiras: “De repente é o como vou trabalhar, uma deficiência minha, na
minha formação”. Apesar de reconhecer as ausências de conhecimentos, o não
saber como fazer é reflexo de uma falta de instrução sobre o tema, quanto menos
souber sobre o tema menor a possibilidade de intervir:
Procura-se instrumentalizá-los/as decodificarem as vozes, os silêncios, os
silenciamentos e as práticas discriminatórias produzidas e reproduzidas
dentro da escola, por meio das quais se limita a formação de pessoas crí-
ticas e reflexivas, que respeitem e explorem a riqueza das diferenças, recu-
sando-se a transformá-las em desigualdades (SILVA, 2001, p. 67).

Diante das informações recolhidas nas entrevistas e questionários, foi no-


tório que os saberes sobre as relações étnico-raciais permeavam o pensamento
comum, carregado de preconceitos provenientes de nosso contexto histórico
que ao invés de combater reiteram o racismo. Convidando para refletir sobre
isso, a primeira oficina foi estruturada e ocorreu em quatro etapas. No primeiro
momento foi realizada uma brincadeira: Adivinha quem é?, na qual eram apre-
sentadas características de pessoas famosas do cenário nacional e internacional
para as professoras responderem a primeira pessoa que viesse na cabeça, como,
por exemplo: “Escritora importante de literatura infantil, fez doutorado, profes-
sora universitária, tem publicações em diferentes espaços. Quem é?”. Todas as
pessoas que participaram da oficina, tanto de tarde quanto de manhã, respon-
deram Cecília Meireles ou Ana Maria Machado quando a resposta correta era
Kiusam de Oliveira. Ou quando apresentei Ruth de Souza, que fez teatro em
Havard e que atuou em numerosas peças teatrais, novelas e filmes, além de ter
frequentado a região devido a sua casa em uma praia próxima, ouvi de uma
professora: “Nossa!!! E ela era minha vizinha na praia, nunca imaginei”. Todas
as personalidades apresentadas nas brincadeiras, quando reveladas, causavam
surpresa, desconhecimento ou vaga lembrança, comprovando que os espaços de
protagonismos são raramente associados às pessoas negras.
A dinâmica teve o intuito de sensibilizar as professoras sobre o porquê de
não ter pessoas negras em destaque na sociedade, ressaltando que essas ausên-
cias ocorrem mesmo existindo profissionais com sólida formação e uma ampla
atuação em sua área. Assim, emergiu o debate sobre a importância e urgência
86
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

das escolas desconstruírem o racismo presente na sociedade que ao invisibilizar


corpos, torna o espaço sem diversidade, o que é ruim para todas as crianças,
sejam elas negras ou não, pois, como Cavalleiro (2017) apresenta em seus estu-
dos sobre infâncias negras, as representações preconceituosas são internalizadas
sem serem questionadas e se consolidam socialmente:
uma imagem desvalorativa/inferiorizante de negros, bem como a valorati-
va de indivíduos brancos, possa ser interiorizada, no decorrer da formação
dos indivíduos, por intermédio dos processos socializadores. Diante disso,
cada indivíduo socializado em nossa cultura poderá internalizar represen-
tações preconceituosas a respeito desse grupo sem se dar conta disso, até
mesmo se dando conta por acreditar ser o mais correto (CAVALLEIRO,
2017, p. 19-20)

Com a brincadeira foi possível perceber o quanto o racismo é institucio-


nalizado no país, pois constitui desigualdades pautadas na raça e permeiam ins-
tituições que vão de grandes empresas privadas. O Geledés produziu um docu-
mento em conjunto com a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Centro
Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea) (2016, p. 17), em que é possível
constatar como o racismo institucional opera: “de forma a induzir, manter e
condicionar a organização e ação do Estado, suas instituições e políticas públi-
cas – atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a
hierarquia racial.”. Com a atividade realizada ficou explícito que cada uma das
personalidades apresentadas na brincadeira não tem visibilidade em suas áreas
de atuação, “uma morte em vida: a invisibilidade” (TRINDADE, 2014, p. 09).
A brincadeira reflete o racismo nas instituições escolares e como as crianças pre-
cisam se ver de forma positivada para se sentirem pertencentes à escola. Trata-se
de pensar nessas instituições como um lugar de bem-estar, em que outras rela-
ções de afetos vão se constituindo, principalmente na EI que “representa um
primeiro passo na sociedade” (VANDENBROECK, 2013, p. 15).
No segundo momento, no debate sobre representatividade, suas ausên-
cias e como essas práticas fortalecem a construção do racismo, foram distribuí-
das imagens que demostravam práticas racistas e de resistência ao racismo em
várias esferas sociais. Fomentou-se o debate da construção social do racismo
e a necessidade de repensarmos os currículos escolares, pois “aprendemos a
ser racista, a reproduzir e produzir o racismo, logo, se é assim, também pode-
mos aprender a não ser racista, a não produzir e a não reproduzir o racismo”
(TRINDADE, 2008, p.46). As imagens trouxeram reflexões sobre o quanto a
escola não está descolada da sociedade e sobre o próprio fazer pedagógico, ou
até mesmo sobre suas atitudes na sociedade, reconhecendo-se a necessidade de
transformação, pois, como Cavalleiro (2001, p. 10) destaca devemos pensar e
repensar nossas práticas “para que as escolas brasileiras não sejam as últimas a
87
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

banir de seu cotidiano o racismo, a discriminação e o preconceito”. Ainda por-


que há possibilidades de mudanças reais quando a escola se sensibilizar que está
ligada à vida e as educadoras se conscientizarem que tudo perpassa pelo direito
das crianças à educação, os saberes devem ser críticos ao lançar olhares de como
a sociedade funciona, para que assim haja objetivamente mudanças (FREIRE,
2000; 2001). Freire (2000) também diz que as transformações na vida das crian-
ças e, consequentemente, na sociedade só são possíveis se todas acessarem uma
educação de qualidade, sejam ricas ou pobres, negras ou não negras, qualquer
criança acessando seu direito de bem aprender.
As reflexões ficaram visíveis nas falas das professoras, ora apontando que
não se atentavam ou não questionavam ocorridos similares às situações postas
pelas imagens, ora reconhecendo o quão racista é quando se calam. Quando as
professoras trazem suas experiências para a formação, reconhecendo precon-
ceitos, abrindo-se à problematização para repensar ações educativas que dialo-
guem com as diversidades, é um avanço. Munanga (2005) traz a reflexão de que
uma das atitudes mais importantes para todas as pessoas é o reconhecimento
do racismo em nós e na sociedade, pois só quando compreendemos em nós o
racismo, reflexo social, podemos mudar atitudes para então contribuir na trans-
formação da sociedade. Com isso, durante o debate foi colocada a importância
de que as professoras revisitassem suas ações e avaliassem-nas constantemente
para desconstruir práticas racistas, reconhecendo-as e compreendendo como se
consolidaram histórica e culturalmente.
Partindo desse debate mais amplo, as educadoras foram convidadas a re-
fletir o currículo da EI em diálogo com os Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros
(VCAB) sendo “possibilidades de matrizes africanas ressignificadas pelo modo
de ser dos brasileiros” (TRINDADE, 2010, p. 13). Ou seja, tudo que os po-
vos africanos, sequestrados do seu continente, trouxeram e reconstruíram como
“princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características
[...] que se constituíram e se constituem num processo histórico, social e cultu-
ral.” (TRINDADE, 2014, p. 132)
Em suas reflexões sobre a educação para a primeira infância, Trindade
(2010; 2014) faz um convite para redescobrirmos a África e percebermos o quan-
to desse continente plural temos em nossos múltiplos modos de ser Brasil. Os
VCAB propostos para reflexão por Trindade são: circularidade, ancestralida-
de, oralidade, religiosidade, energia vital, ludicidade, memória, territorialidade,
comunitarismos, musicalidade e corporeidade e convidam para uma educação
pautada nas diversidades, principalmente na EI onde as crianças têm como um
de seus direitos o autoconhecimento: “conhecer-se e construir sua identidade
pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus

88
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

grupos de pertencimento” (BRASIL, 2018). São 6 direitos de aprendizagem e


desenvolvimentos que estruturam as práticas pedagógicas da EI: conhecer-se,
brincar, participar, explorar, expressar e conviver que estão em consonância
com o “construir significados sobre si, os outros e o mundo social e natural”
(BRASIL, 2018). Todos os direitos têm diálogos com os VCAB. O brincar, por
exemplo, tem muito da corporeidade, pois a criança percebe seu corpo em diálo-
go com outros corpos, também podemos ver a ludicidade que envolve a alegria
e o gosto pelo riso (TRINDADE, 2008; 2010; 2014).
Ao lermos os direitos das crianças na BNCC5 não há como ignorar as
relações étnico-raciais, pois existem modos de conviver e brincar na sociedade
carregados de memórias ancestrais e valores vindos da África perpassando por
todos os direitos. Além dos direitos, a BNCC foi estruturada em campos de
experiências6 que dialogam com os VCAB. É relevante sublinhar que a orienta-
ção de uma educação antirracista está destacada em outros documentos oficiais,
como nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica (DCNEB),
sendo apresentada como uma das condições para organização do currículo:
2) O combate ao racismo e às discriminações de gênero, socioeconômicas,
étnico-raciais e religiosas deve ser objeto de constante reflexão e interven-
ção no cotidiano da Educação Infantil. As ações educativas e práticas coti-
dianas devem considerar que os modos como a cultura medeiam as formas
de relação da criança consigo mesma são constitutivos dos seus processos
de construção de identidade (BRASIL, 2013)

Na etapa final e quarta parte da oficina, foi apresentada a proposta de


que as Literaturas Infantis de temáticas Afro-Brasileiras e Africanas ou com per-
sonagens negras sejam uma estratégia para a efetivação da Lei n°. 10.639/03.
Compartilhou-se a importância das literaturas e dos livros levados para as pro-
fessoras conhecerem. Os livros escolhidos para a oficina cumpriram o papel de
ampliar o conhecimento de obras literárias sobre a temática produzida, visto que
na biblioteca da escola o número era limitado. No questionário aplicado antes
das oficinas, foi solicitado que cada professora citasse pelo menos 3 obras infan-
tis com temática africana e/ou afro-brasileiras que conhecessem, sendo: Menina
Bonita do Laço de Fita com 6 citações; O Cabelo de Lelê com 2 citações; As Tranças
5 Base Nacional Comum Curricular (BNCC) documento normativo para a educação brasi-
leira, pública e privada, sobre a elaboração curricular e sua obrigatoriedade.
6 “Considerando que, na Educação Infantil, as aprendizagens e o desenvolvimento das
crianças têm como eixos estruturantes as interações e a brincadeira, assegurando-lhes os
direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se, a organização cur-
ricular da Educação Infantil na BNCC está estruturada em cinco campos de experiências,
no âmbito dos quais são definidos os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Os
campos de experiências constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as
experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural.” (BRASIL, 2018, p. 38).
89
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

de Bintou, Sumaúma, Obax, Negrinho do Pastoreio, Saci Pererê, Maculelê, Histórias


Africanas, A cor da vida e Bruna e a Galinha de Angola cada um com 1 citação; e 9
respostas sem preenchimento. Fale ressaltar serem 9 professoras, contabilizando
27 respostas.
Outro critério estava pautado em escolher livros que não trouxessem a
figura do negro estereotipada, como no caso do Negrinho do Pastoreio, obra citada
pelas professoras. Para isso, foram selecionados livros que não apresentassem a
pessoa negra como escravizada, como empregada doméstica, em situação de
violência, idiotizado ou a África somente em molde colonial, como provoca
Lima (2005). A escolha foi por livros que mostravam, tanto na narrativa como
nas imagens, representatividade positiva.
Para problematizar e exemplificar o que seria um livro que reforça pre-
conceitos, as professoras foram convidadas a analisar obras infantis que de-
monstram esses estereótipos. Desde preconceitos evidentes ou em detalhes que
passam muitas vezes despercebidos. Tudo isso pautado na reflexão de que a
produção literária, é óbvio, não fica alheia aos padrões historicamente (re)cons-
truídos e veiculados pelos grupos hegemônicos (OLIVEIRA, 2014), principal-
mente após a Lei n° 10.639/03, que ampliou o número de produções literárias
infantis sobre a temática para atender ao mercado. Se, por um lado, foi bom para
revelar escritores/as negrosas, por outro devemos estar atentos para as obras na
totalidade, elaborando uma leitura crítica das imagens e do texto:
O volume de obras cresceu significativamente nos últimos anos.
Certamente, desse conjunto, muitas obras servirão para instigar os alunos
a novos voos no campo da leitura e, quiçá, à revelação de novos talentos
de uma vertente infantil negro-brasileira. Sem nos iludir, é preciso que o
senso crítico acenda suas luzes em face dessa produção, pois o racismo
não dá trégua e não poupa as crianças (CUTI, 2010, p. 144).

Findamos a primeira oficina com uma brincadeira cantada a partir de


uma história que pontuou a importância das narrativas orais. A história foi ins-
pirada na música/brincadeira Guerreiros Nagôs7 que é uma versão da cantiga po-
pular Escravo de Jó onde, ao invés de “escravo” o negro é descrito como guerreiro.
Ao invés de ficar parado, com o corpo estático em círculo mexendo só as mãos,

7 Conheci a música ainda na graduação, durante uma aula, pela voz da professora Azoilda
Loretto Trindade, no início dos anos 2000, que convidou para brincar e refletir sobre as le-
tras e os corpos brincantes. Para a formação foi realizada buscas em diversas plataformas/
fontes e não foi encontrado a versão Guerreiros Nagôs. Porém, é de grande importância
registrar aqui, visto que fez parte da oficina, sendo referenciada para construir uma refle-
xão acerca da música “Escravo de Jó”. A música é assim: “Guerreiros Nagô / Jogavam
Caxangá / Salta! / Gira! / Deixa o Zabelê ficar / Guerreiros com guerreiros / Fazem
zigue zigue zá! Guerreiros com guerreiros / Fazem zigue zigue zá!”

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

as participantes da brincadeira cantam e dançam fazendo o que a letra indica,


dialogando com corporeidade e musicalidade.

SEGUNDA OFICINA

A segunda oficina ocorreu de forma dialógica com a primeira. Para isso


foi considerado que a maioria das professoras apresenta histórias diariamente
para as crianças, principalmente porque há o momento da leitura deleite indica-
do pela Secretaria Municipal de Educação e deve ocorrer diariamente, no início
das aulas. Mesmo realizando as leituras com frequência poucas professoras co-
nhecem e apresentam literaturas de temáticas africanas e afro-brasileiras. Assim,
discutimos sobre as muitas formas de acessarmos as histórias e outros modos
delas adentrarem as salas de aula, além dos livros. A oficina iniciou apresentado
que as histórias no continente africano e em suas diásporas eram, em sua maio-
ria, passadas de forma oral. Referenciou-se as/aos contadoras/es de histórias no
intuito de provocar que as histórias estão para além dos livros. Também foi pon-
tuado a importância de distinguir contação de histórias e mediação de leitura e
que uma prática não invalida a outra.
Diante desse debate, as professoras foram provocadas para valorizar a
oralidade presente em todos os seres humanos, inclusive nos mais velhos, e re-
conhecer que a escola tem muito a aprender com quem não está dentro dela.
Há muitos/as mestres/as dos saberes que têm muito a compartilhar sobre as
suas experiências; “um mestre contador de histórias africano não se limitava a
narrá-las, mas poderia também ensinar sobre numerosos assuntos” (BÂ, 2013, p.
174). Desse modo, atentar-se aos muitos modos de contar história faz com que
as professoras também permitam que as crianças contem suas histórias e que
os/as mais velhos/as de sua comunidade compartilhem suas histórias. Ainda
porque, quando transferimos a reflexão de Bâ (2013) para o nosso contexto, car-
regado de saberes, memórias e valores africanos por ser um espaço de diáspora,
valoramos os/as mais velhos/as acessando suas histórias vividas. Esse debate
provocou o quão é possível convidar as pessoas da cidade, do bairro ou da rua
para compartilhar saberes: moradores/as antigos/as, a avó de um/a aluno/a,
o/a erveiro/a, a pessoa da roda de samba, um/a líder comunitária; pois são
ações de grande importância na construção da identidade individual, coletiva e
cultural das crianças, porque as histórias estão em diferentes espaços, para uma
educação que valoriza as diversidades epistemológicas é importante evidenciar
esse ponto.
Algumas professoras trouxeram as suas memórias sobre histórias ouvidas
e como esses momentos são de afetos. Uma delas trouxe sobre os “causos” de
terror que ouvia na infância, sempre de noite em torno de um adulto, outra
91
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

contou: “Lembro a cena, embaixo do abacateiro ou na rede, dele [o avô] contan-


do história. Esse meu gosto pela leitura, eu penso que foi através do que meu avô
lia e contava para mim”. Sabemos a importância dos livros e como ele pode ser
um território de encontros de muitas histórias, inclusive de histórias da tradição
oral. Porém, o corpo que viveu a história é um ato performático, porque só esse
corpo carrega as marcas inscritas dessa história vivida, experienciada. O debate
da contação de história se deu pelo fato, também, do acesso restrito às literaturas
que trouxessem personagens negras, culturas e histórias com temáticas africanas
e afro-brasileiras. Pelo fato de haver apenas uma biblioteca pública e não possuir
livraria na cidade, suplementarmente à investigação, antes das oficinas, foram
catalogadas, na única biblioteca pública da cidade, 63 títulos de literatura infan-
til que trouxessem temáticas. Eles estão disponibilizados em uma plataforma
virtual8 com código da biblioteca para que qualquer pessoa possa ter acesso mais
facilmente a esse repertório
No terceiro momento debatemos a importância das histórias de temática
africanas e afro-brasileiras estarem presentes durante todo o ano letivo. Uma
forma disso acontecer é o planejamento ser realizado interdisciplinarmente, o
que exige que a professora se torne uma professora pesquisadora, ainda porque,
ser educadora é estar aliada ao hábito da pesquisa; sendo uma docente pesqui-
sadora (FREIRE, 1996), da busca de conhecimentos. Sem contar que, como já
foi reconhecido por todas as professoras, existem ausências na formação no que
tange às relações étnico-raciais, pois, mesmo quem respondeu ter tido acesso ao
tema, mencionou ações pontuais: uma palestra no ano que a Lei n°. 11.645/08
foi promulgada, ou seja, 15 anos atrás, ou uma professora na graduação que
apresentou a legislação e falou pontualmente sobre o tema.
No quarto momento debatemos a importância das histórias infantis com
personagens negras para fazermos de nossas salas de aulas espaços promotores
de diversidade; onde possibilitamos “às crianças negras afirmar-se como prota-
gonista de sua história, valorizando suas origens e, acima de tudo, tendo em suas
mãos a escrita desta nova história” (QUINTALHANO; CARDOSO; GOMES,
2017, p. 13). Mas também, para podermos possibilitar às crianças não negras o
reconhecimento do espaço de protagonismo diverso, a professora Mercedes fez
a colocação de que trabalha sempre reconto com os estudantes, mas nunca teve
acesso a reconto com personagens negras. Foi o momento em que partilhamos
livros como: A princesa e a ervilha, Pretinha de Neve e sete gigantes, Belas bananas,
Cinderela e Chico Rei, Rapunzel e o Quibungo e Joãozinho e Maria. Diante do debate
das ausências de fazeres pedagógicos para EI , aproveitamos para compartilhar
experiências de projetos/aulas na primeira etapa da Educação Básica em que

8 Disponível em https://itanomode.blogspot.com/
92
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

ocorrem ações interdisciplinares. Debatemos possibilidades de ações de dife-


rentes educadores e compartilhamos referências para as professoras se inspirar
constantemente em outras práticas, como os planos de aulas dos sites Gélede e
Ceert.
Na última etapa da formação foram apresentados cerca de 50 títulos de
livros infantis de literatura com personagens negras e/ou temática afro-brasileira
e africana, selecionados a partir dos mesmos critérios da primeira oficina. As
professoras foram convidadas a explorarem os livros e escolherem uma obra
para trabalhar em sala de aula. Nessa etapa houve compartilhamento de ideias
e saberes entre todas as participantes, sendo pontuado, a todo o momento, a
importância de que as ações fossem construídas a partir das provocações com
tudo que foi trabalhado nas duas oficinas, ou seja, como suscita Nóvoa (1988,
p. 116), “consciência contextualizada”. Onde os saberes que circulam/se parti-
lharam nesses dois dias estimulem práticas pedagógicas antirracistas, mas que
principalmente as professoras pudessem refletir sobre as suas trajetórias como
professoras e como pessoas, pois os caminhos de formação são “simultaneamen-
te intelectual e afectivo” (DOMINICÉ, 1988, p. 153).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os projetos realizados pelas professoras compuseram um produto edu-


cacional realizado pela ação, transcritas em um caderno de práticas existentes
e realizadas pelas professoras após as oficinas formativas. Foram realizados 9
projetos, mas somente 6 fizeram parte do caderno de prática, pois, para com-
por o material elencamos critérios, com as professoras, que foram: 1) ser uma
prática antirracista pautada no debate que o projeto sugeriu; 2) a professora ter
realizado o planejamento e um relato de experiência (oralmente ou escrita) das
ações em sala de aula; 3) participar das avaliações sobre o desenvolvimento do
projeto; e 4) a ação pedagógica não ignorar o literário da obra e usar o livro só
para fazer atividades. Diante disso, 3 projetos não compuseram o caderno de
práticas por diferentes motivos: uma professora não entregou o planejamento
o relato de experiência das atividades, nem participou das avaliações realizadas
após o projeto porque estava em processo de transferência de unidade escolar;
outra professora não conseguiu desenvolver um projeto antirracista, pois havia
na obra a palavra erê, sendo ela praticante de uma igreja neopentecostal, o ra-
cismo se materializou toda vez que tentava dialogar com a obra; e por fim, uma
professora não conseguiu recorrer ao livro para visibilizar a história construindo
uma prática conteudista e não dialógica com os aspectos culturais apresenta-
dos na obra. As outras 6 professoras desenvolveram práticas pedagógicas que
envolveram tanto a promoção da leitura com a valorização da cultura e história
93
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

africana e afro-brasileira. O caderno de práticas faz parte do acervo da escola e


da Universidade Federal do Sul da Bahia para consulta pública.
É importante a compreensão de que as oficinas realizadas fomentaram a
realização de práticas antirracistas na educação para a primeira infância. Isso
não significa que todas as professoras que dela participam são e se tornarão an-
tirracistas, pois isso dependerá das ações que vão para além desse projeto, mas é
inegável que as oficinas afetaram as docentes e provocou o repensar nas práticas
pedagógicas e de vida. Porém, torna-se antirracista é antes de tudo é uma ação
de todas as horas, exige acessar saberes outros e que ainda não foram ofertados,
necessita-se de uma formação constante e nutrir-se de histórias outras, sobre os
diferentes nomes que construíram esse país e foram invisibilizada. Construir
uma educação antirracista exige políticas públicas de formação de professores,
ainda porque, as oficinas comprovaram que, ao ofertar debates formativos e
acesso aos saberes, é possível construir uma pedagogia para diversidade, pois,
das 9 professoras, apenas 2 não desenvolveram práticas pedagógicas antirracis-
tas. Para constatar a importância das formações para professores, trago três falas
das professoras durante a avaliação do projeto:
Quanto a relacionar o tema, as princesas, achei muito interessante. E
quando partiu para a construção do cartaz da boneca os meninos ficaram
encantados. Eles ficaram assim: “Tia quer dizer que não só tem princesa
branca igual à Cinderela?” (Entrevista P., 2018)

No dia que você começou a fazer aquelas perguntas [a brincadeira das perso-
nalidades negras Advinha quem é?] que eu não soube responder uma sequer,
eu fiquei me questionando: gente, se eu fizer uma pergunta desse tipo para
os meus alunos, mesmo nas idades deles, mas eu já tive alunos maiores, se
eu fizer uma pergunta para os maiores, eles vão saber responder? Eu não
soube responder. Então comecei a pensar nessa questão do valorizar, eu
já tinha esse olhar, mas nessa hora eu comecei a pensar ainda mais sobre
o quanto nós somos mal-informados. Em relação a tantas coisas que tem
a nosso redor, está ali a informação, todos os dias, e a gente não sabe, não
é só porque a gente não tem acesso é porque a gente não tem interesse.
(Entrevista S., 2018)

A dificuldade se deu porque a gente não trabalhava muito [relações étnico-


-raciais], e outra coisa, alguns anos atrás foram trabalhados esse assunto
étnico-racial, só que eu estava fora de sala de aula. Ficou a desejar isso
[formação] em mim. (Entrevista B.B., 2018)

Com as falas das professoras, as experiências nas oficinas e o resultado


das práticas pedagógicas evidenciam que uma Pedagogia Antirracista só é possí-
vel em uma educação para a diversidade cotidiária, onde todas as práticas sejam
promotoras de criatividade, alegrias e respeito. Nesse projeto, utilizamos a lite-
ratura infantil porque ela carrega uma força humanizadora capaz de transportas
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

quem lê para outros universos e, ao vivenciar outras culturas e modos de vida,


reelabora o seu, como aponta Debus (2017). Quando construímos a tessitura
entre uma educação antirracista a partir da literatura na EI, devemos ponderar
que as crianças estão exercitando e experimentando suas formas de se relacionar
com o coletivo. É importante entender que, nesse espaço, a criança está cons-
truindo a sua identidade e para isso, no diálogo com a diversidade e consigo
mesmo, torna-se necessário legitimar o quão importante é fortalecer uma educa-
ção antirracista; pois a construção identitária da criança se constrói na relação
dialética entre a criança e os grupos sociais que encontrará ao longo da vida.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
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97
NO PRATO TEM HISTÓRIA:
A ALIMENTAÇÃO COMO PROPOSIÇÃO
PEDAGÓGICA PARA O ENSINO DAS
RELAÇÕES ÉTNICOS RACIAIS
Roziane Costa Conceição1
Marcos José Soares de Sousa2

INTRODUÇÃO

De que forma promover reflexões sobre as situações de preconceito con-


tra afrodescendentes no ensino de História de modo a tornar o processo en-
sino-aprendizagem mais significativo e atendendo as determinações da Lei n°
10.639/2003? Esse questionamento nos orienta no presente trabalho, buscan-
do fornecer uma possibilidade dinâmica para potencializar o interesse pelas
relações étnico-raciais se utilizando da temática da alimentação no ensino de
História nos anos finais do ensino fundamental.
O trabalho com alimentação para discussão sobre relações étnico-raciais
no ensino da História foi pensado como temática para este artigo diante das
inquietações relacionadas ao ensino de História e os conflitos na sala de aula
ocasionados devido a presença inerente da pluralidade étnica dos nossos alunos.
Nesse sentido é realizada uma reflexão sobre formas de ensino que promovam
empatia através daquilo que se come.
O alimento enquanto dinâmica social possibilita observarmos as transfor-
mações e permanências através das práticas alimentares em regiões e sociedades
distintas e com isso problematizar diversas questões sociais, culturais e étnico-ra-
ciais que fazem parte do cotidiano de todos, pois como afirma a autora Schmidt
e Cainelli (2004), as aulas de História ganham mais sentido para os educandos
quando problematizadas com questões que consideram suas representações e
saberes.
Ponderar sobre as vivências dos alunos, seus saberes sobre sabores, as
relações estabelecidas no contexto em que estão inseridos torna possível como

1 Mestra em Ensino de História pelo PROFHISTÓRIA - UESPI, Campus Parnaíba-PI.


Professora efetiva da Rede Pública do Estado do Maranhão e Professora efetiva da Rede
Municipal de São João do Sóter-MA. E-mail: roziane1504@gmail.com
2 Mestre em Ensino de História pela UEM/PR. Especialista em Educação do Campo-UE-
MA. Professor da Rede Municipal de Codó e Coelho Neto-MA. E-mail: mcoj1979@hot-
mail.com

98
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

mostra Medeiros (2005, p. 69) “problematizar desde a produção do alimento e


sua preparação para o consumo até as variadas formas de distribuição dos ali-
mentos”. É nesse momento de aproximação que pode ocorrer, segundo Flávia
Caimi (2006) momentos reflexivos para educandos e professores, uma vez que
nesse processo de ensino-aprendizagem é de extrema importância considerar o
contexto em que ambos estão inseridos.
Considerando o exposto, nosso objetivo é construir uma sequência didáti-
ca para o ensino da História por meio da alimentação com enfoque nas relações
étnicos-raciais para além das abordagens tradicionais que levam em considera-
ção somente a história dos grandes personagens da História do Brasil e se prende
às questões políticas e econômicas.
Temos como objetivo analisar a alimentação como abordagem alternativa
para tratar as relações étnico-raciais no ensino da História reconhecendo a diver-
sidade cultural descentralizando abordagens tradicionais. Buscamos investigar o
conceito de sequência didática, com o intuito de analisar como a alimentação
dialoga com a História e pode ser utilizada para colaborar na efetivação da lei
n° 10.639/2003, por fim elaboramos uma sequência didática abordando as rela-
ções étnico-raciais com enfoque na alimentação.

SEQUÊNCIA DIDÁTICA, ALIMENTAÇÃO E LEI Nº. 10.639/2003:


DIÁLOGOS

A origem do termo sequência didática, segundo Adair Gonçalves e


Mariolinda Ferraz, “surgiu em 1996, nas instruções oficiais para o ensino de
línguas na França, quando pesquisadores viram a necessidade de superação
da compartimentalização dos conhecimentos no campo do ensino de línguas”
(GONÇALVES; FERRAZ, 2016, p. 126), o que possibilitou que outras áreas
do conhecimento pudessem fazer adaptações para trabalhar seus conteúdos.
Nesse cenário internacional têm notoriedade os estudos realizados pelo grupo
de Genebra, nos quais se destacam Jean-Paul Bronckart, Bernard Schneuwly
e Joaquim Dolz. Segundo Natanael Cabral, todas “[...] as investigações foram
concebidas e realizadas com autorização do Departamento de Didáticas de
Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade
de Genebra - UNIGE e, teoricamente, sob os pressupostos do Interacionismo
Sócio-Discursivo - ISD.” (CABRAL, 2017, p. 32). O grupo buscava diminuir as
dificuldades derivadas da produção da língua escrita.
No Brasil, as Sequências Didáticas, segundo Maria Augusta Reinaldo e
Maria Auxiliadora Bezerra (2019), surgiram como projetos nos documentos ofi-
ciais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS) para o ensino fundamental
e passaram a orientar o estudo dos textos por meio de gêneros. Mas, foi com o
99
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

autor Antoni Zabala (1998) que o termo Sequência Didática foi bastante divul-
gado no Brasil através da obra “A Prática Educativa: como ensinar”. Para o autor,
sequência didática é:
Uma maneira de encadear e articular as diferentes atividades ao longo
de uma unidade didática. Assim, pois, poderemos analisar as diferentes
formas de intervenção segundo as atividades que se realizam e, principal-
mente, pelo sentido que adquirem quanto a uma sequência orientada para
a realização de determinados objetivos educativos. As sequências podem
indicar a função que tem cada uma das atividades na construção do co-
nhecimento ou da aprendizagem de diferentes conteúdos e, portanto, ava-
liar a pertinência ou não de cada uma delas, a falta de outras ou a ênfase
que devemos lhe atribuir (ZABALA, 1998, p. 20).

Em nossa sequência didática escolhemos trabalhar com questões proble-


matizadoras para refletir sobre os assuntos relacionados às diferenças étnicas
e como a sociedade lida com dilemas históricos. A sequência didática proble-
matizadora se difere da sequência didática tradicional por ser “organizada em
torno de um tema e de uma questão, também confere visibilidade a cada aula e a
sua estrutura didática, articulando todas as estratégias em torno dessa questão”
(ROCHA, 2015, p. 11). Assim, nos possibilita levantar inúmeras possibilidades
de trabalho, uma vez que as heranças sociais e culturais são latentes na sociedade
atual, permitindo que seja feita uma abordagem levantando questões-problemas
em que o aluno pode discutir sua realidade e não somente ouvir informações
repassadas pelo professor:
ao ensinar os conteúdos de história, sem uma problematização e sem
relacioná-los com o presente, estaremos caindo na armadilha do “con-
teudismo”, fazendo do aluno um depósito de informações sem sentido
atribuído, e, assim impossibilitando-os de questionar a sua realidade e se
posicionar criticamente (SANTOS; BASTOS, 2017, p. 5).

Considerando o intuito de aproximar o aluno do conteúdo histórico,


de forma prática e significativa, a sequência didática se mostra apropriada por
permitir analisar a realidade dos educandos de forma diversificada, pois serão
consideradas características alimentares na realização das várias atividades ao
longo do desenvolvimento da sequência.
A alimentação e a História segundo Massimo Montanari mantêm estreita
relação pois a comida é cultura quando produzida, preparada e consumida, pois
faz parte de um processo de escolhas do ser humano, sendo representada por
seus valores econômicos e nutricionais e nesse sentido: “a comida se apresenta
como elemento decisivo da identidade humana e como um dos mais eficazes
instrumentos para comunicá-la”. (MONTANARI, 2010, p. 16). Fica eviden-
te que aquilo que nos alimenta faz parte de um grupo de atividades que o ser

100
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

humano realiza em contato com a natureza.


A sequência didática para o Ensino de História da América Portuguesa
que foi aqui produzida, destina-se especialmente aos professores de História, foi
elaborada a partir de bibliografias e documentação histórica. Na sequência estão
disponíveis atividades sobre duas temáticas da América Portuguesa contendo
informações sobre o período, sugestões de utilização de alimentos e referências
bibliográficas sobre alimentação, considerando o tema das relações étnico-ra-
ciais no ensino que podem ser trabalhadas a partir da alimentação, atendendo
ao que preconiza a Lei n°. 10.639/2003 que modificou a LDB nº. 9394/1996
estabelecendo o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas es-
colas públicas e privadas de Ensino Fundamental e Médio. A referida normativa
também determina o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência
Negra no calendário escolar. O artigo 26 da LDB nº. 9394/1996 com a mudança
passou a vigorar da seguinte forma:
Art.26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura
Afro-Brasileira.
Parágrafo 1º - O conteúdo programático a que se refere o caput deste arti-
go incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à História do Brasil.
Parágrafo 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira
serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em especial, nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras.
Art.79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia
Nacional da Consciência Negra” (BRASIL, 2003, s/p).

Entendemos que essa legislação tem o objetivo de servir como uma ferra-
menta reparatória para a ausência de protagonismo negro na história do Brasil
refletindo em muitos alunos o sentimento de negação de suas raízes africanas,
pois a mesma por séculos foi ofertada como algo negativo e vergonhoso. Os
estereótipos concebidos através da história, colocaram a população negra como
subserviente e incapaz de conduzir seu destino sem a tutela do senhor. Sabemos
na prática que essa mentalidade foi disseminada com o claro propósito de fo-
mentar o imaginário de que determinados povos não são dotados de inteligência
e, portanto, necessitados de tutela. Como nos afirma Silvio Almeida (2018), ao
descrever as origens do ”racismo estrutural” no Brasil.
Optamos por construir uma sequência didática (SD), por acreditar que
é uma proposição pedagógica adequada para a realização de um trabalho que
preza pelo sucesso do aluno viabilizados por modos criativos e inovadores de
ensino.

101
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

A sequência didática foi pensada para se adaptarem ao 7° ano do Ensino


Fundamental. Para sua construção, foi utilizado como base o Documento
Curricular para o Ensino Fundamental do Maranhão, onde constam os objetos
de conhecimento a serem trabalhados em sala de aula, em comunhão com as
determinações da BNCC (2017). Sem a intenção de linearidade, a sequência
didática aborda o início da colonização da América Portuguesa, a sociedade
açucareira e a escravidão africana no Brasil, portanto, no contexto do domínio
colonial português na América, sendo o milho, a mandioca, o açúcar e o feijão
usados no desenvolvimento das atividades.
As proposições aqui elencadas não têm o objetivo de oferecer um trabalho
pedagógico fechado e rígido em que o docente deve se prender exclusivamente
ao que é fornecido na sequência didática, mas, sim, mostrar possibilidades de
ensino em que o professor pode usar sua autonomia e criatividade para articular
as características alimentares locais aos saberes históricos oficiais, promovendo
o conhecimento das diferentes heranças culturais do Brasil.
A sequência didática é dividida em número de aulas distintas, pois a abor-
dagem sobre sociedade açucareira e a escravidão africana têm maior número
de atividades devido à complexidade do tema. Não foi estabelecido um roteiro
fixo para a realização de todas elas, pois são atividades diversas para o desenvol-
vimento das aulas. Isso mostra flexibilidade para que cada professor possa, de
acordo com seu contexto, adaptar as propostas de cada etapa do processo. As
atividades sequenciadas são compostas por imagens, textos, mapas, alimentos e
outras fontes.
Também podem ser realizadas atividades em grupos e individuais em que
os alunos entram em contato com os alimentos e outras fontes. Isto permite que
tragam para sala de aula seus conhecimentos, dando dinamismo às aulas de
História, pois concordamos com Maria Auxiliadora Schmidt (2020, p. 56), ao
afirmar que “Na sala de aula se realiza um espetáculo cheio de vida e de sobres-
saltos. Cada aula é uma aula”. Na sequência didática, cada etapa foi construída
para fazer com que o aluno viva esse espetáculo.

CONSTRUÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA: PANFLETO A


FAVOR DA LIBERDADE

A escravidão africana na América Portuguesa é a temática para trabalhar


com os alunos, conforme quadro 01 e as questões problematizadoras são: a te-
mática do açúcar pode ser articulada às questões de exploração e discriminação
racial relacionadas aos afrodescendentes?

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

Quadro 01 – Exemplo de plano de sequência didática

Área de Conhecimento: Ciências Humanas Componente Curricular: História


Ano: 7° Ano Tempo de realização: 4 aulas de 50 min

Caracterizar o tráfico transatlântico de escravos, usados pelo viés da


lógica mercantilista europeia;
Discutir a construção do racismo no Brasil, assim como a
Objetivos resistência e a luta dos movimentos negros;
Reconhecer o protagonismo e a importância dos africanos e
afrodescendentes na História do Brasil;
Valorizar a composição multiétnica da sociedade brasileira.

O tráfico de escravizados; a chegada de africanos à América


Portuguesa; o trabalho dos africanos escravizados; valorização e
Conteúdos:
afirmação das identidades afro-brasileiras; aspectos alimentares dos
africanos escravizados

A organização do poder e as dinâmicas do mundo colonial


Unidade temática
americano
As lógicas mercantis e o domínio europeu sobre os mares e o
Objeto do contraponto oriental;
conhecimento Resistências, invasões e expansão na América portuguesa;
A escravidão moderna e o tráfico de escravizados.
(CG1) Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos
e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito
ao outro e os direitos humanos com acolhimento e valorização
da diversidade de indivíduos e de grupos sociais seus saberes,
identidades e culturas e potencialidades sem preconceitos de
qualquer natureza.
(CECH6) Construir argumentos, com base nos acontecimentos
das Ciências humanas, para negociar e defender ideias e opiniões
que respeitem e promovam os direitos humanos e a consciência
socioambiental, exercitando a responsabilidade e o protagonismo
voltados para o bem comum e a construção de uma sociedade justa
Competências
democrática e inclusiva.
(CCH4) Interpretar e expressar sentimentos, crenças e dúvidas
com relação a si mesmo e aos outros e as diferentes culturas, com
base nos instrumentos de investigação das ciências humanas,
promovendo acolhimento e a valorização da diversidade de
indivíduos e de grupos sociais Viva Seu saber, identidades vidas
culturas e potencialidades vírgulas sem preconceitos de qualquer
natureza.
(CEH4) Identificar interpretações que expressem visões diferentes
sujeitos, culturas e povos com relação ao mesmo contexto histórico,
e posicionar-se criticamente com base em princípios éticos,
democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

103
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

(EF07HI10) Analisar, com base em documentos históricos,


diferentes interpretações sobre as dinâmicas das sociedades
americanas no período colonial.
(EF07H13) Caracterizar a ação dos europeus e suas lógicas
mercantis visando ao domínio no mundo atlântico.
Habilidades
(EF07HI10) Analisar, com base em documentos históricos,
diferentes interpretações sobre as dinâmicas das sociedades
americanas no período colonial.
(EF07HI15) Discutir o conceito de escravidão moderna e suas
distinções em relação ao escravismo antigo e à servidão medieval.

Material utilizado Datashow, vídeos, reportagens impressas, capas de revistas.

Qualidade na elaboração do panfleto para combate às situações


Avaliação
análogas à escravidão.
Fonte: Elaboração própria, 2023

Os africanos escravizados que foram trazidos de forma compulsória para


realizar variadas atividades têm papel essencial na atividade de exploração da
cana-de-açúcar, no período colonial, inclusive na lavoura do produto foram
fundamentais.
A vida dos africanos escravizados na América Portuguesa era de grande
sofrimento o mesmo já começava durante a travessia da África para a América
nos navios negreiros. Essa questão é demonstrada com a exibição de um vídeo
sobre o lucrativo comércio para os portugueses. O vídeo é exibido para a turma
e, em seguida, é aberta uma roda de conversa para discussão sobre as percepções
dos alunos acerca das características da escravidão vistas no vídeo. Também,
para diversificar o debate entre alunos e a professora(or) numa perspectiva dos
discursos atuais de resistência, podem ser utilizados slans3.
Durante o diálogo é importante salientar que a alimentação dos escraviza-
dos, durante a travessia dos navios negreiros, tinha como base a farinha e que era
apenas uma refeição por dia, mostrando as relações de desigualdade e explora-
ção do povo africano, desde o seu sequestro na África até a sua comercialização
em terras americanas. Nesse sentido, a mandioca se tornou importante para os
portugueses, pois além de alimento, muitas vezes servia de moeda de troca no
litoral africano.
Após a chegada dos escravizados à América, lhes eram delegadas

3 O slam é uma competição de poesia falada criada nos Estados Unidos por Marc Smith,
mais especificamente em Chicago nos anos 1980 e trazido ao Brasil em 2008 por Roberta
Estrela D’Alva. As batalhas de poesia falada seguem algumas regras: poesias autorais de
até três minutos sem a utilização de objetos cênicos e sem acompanhamento musical.
Corpo e voz são elementos fundamentais! As notas são dadas por um júri popular que
é escolhido no momento da competição. Esta normalmente ocorre em três fases: geral,
semifinal e a final, que revela o poeta vencedor daquela edição.
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

exaustivas tarefas, que poderiam ser tanto no campo como nas cidades (domés-
ticos). Segundo Silva e Araújo:
Os escravizados do campo eram extremamente mal vestidos, e muitos não
tinham contato direto com seu senhor, apenas com o feitor. Os escravos
domésticos tinham roupas melhores e contato direto com o senhor e sua
família. Os escravos urbanos trabalhavam em diferentes ofícios (SILVA;
ARAÚJO, 2022, p. 44).

No caso do engenho, os escravizados trabalhavam em todas as etapas da


produção açucareira, desde o plantio até a fabricação do açúcar. Trabalhavam
de maneira exaustiva e eram castigados com violência, quando não cumpriam
as atividades determinadas, erravam na execução da tarefa ou tentavam fugir;
muitas vezes a punição era ficar sem comida. Além de ter uma alimentação
insuficiente e de má qualidade, ainda tinham que realizar todos os trabalhos
impostos por seu “dono”.
Todas as questões levantadas em sala de aula sobre escravidão estão am-
paradas pela normativa nº. 10.639/2003, que surgiu com o intuito de combater
a invisibilidade e o silenciamento imposto ao povo negro e seus feitos no Brasil
que vão além dos trabalhos impostos pelo regime de escravidão a que foram
submetidos. É válido ressaltar que:
Os conteúdos e temas referentes à lei, deve sempre ter como base a história
da África, visto que parte significativa do racismo vivenciado pela popu-
lação negra tem como referência os estereótipos e os preconceitos que os
povos africanos foram e são alvo ao longo da história (SOUZA; FELIPE,
2019, p. 55).

Além do trabalho na lavoura açucareira, é importante que os alunos co-


nheçam a existência de outras tarefas realizadas pelos escravizados nas áreas
urbanas e, nesse caso, tem destaque os trabalhos realizados por mulheres, as
doceiras, as amas de leite, que alimentavam os filhos e filhas das senhoras e as
negras de ganho, que praticavam o comércio ambulante vendendo mercadorias
em tabuleiros. Estas últimas vendiam comida na rua e repassavam parte dos
ganhos para seus proprietários.
Após o contato com a temática, a professora organiza um slam. Para tan-
to, a turma é dividida em grupos e estes criam suas “poesias de resistência”, que
serão apresentadas por um componente de cada grupo. Esse momento pode ser
acompanhado por profissionais da escola, pois é necessário um júri para avaliar
as batalhas e definir um grupo vencedor.
A sequência tem continuidade com a apresentação, na lousa, da imagem
da jornalista Maria Júlia Coutinho em uma capa de revista sobre o protagonis-
mo feminino negro no Brasil. Os alunos são instigados a falar sobre o conteúdo

105
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

da manchete e discutir com os colegas sobre como o negro é tratado no país


atualmente, refletindo sobre a manchete e o conhecimento prévio que eles têm
sobre o assunto.
Questões como racismo, cotas raciais, preconceito e protagonismo ne-
gro podem ser discutidas, inclusive a matéria com o chef de cozinha Moacir
Santana pode ser mostrada. Nela ele conta sua trajetória e fala como é ser um
chef negro no Brasil, onde a predominância é de homens brancos. Para acessar
a matéria pode ser usado um QR code ou projetado na lousa com um datashow.
Em seguida é exibido, na televisão ou data show, o documentário sobre
Quilombo dos Palmares, disponível em: https://youtu.be/vuT6mSdMVSs,
com destaque para Zumbi dos Palmares. O conhecimento sobre as formas de
resistência durante a América Portuguesa contribui para superação da ideia de
que os escravizados foram passivos durante a escravidão, o que não é verdade
pois houve, sim, muita luta e resistência.
O vídeo deve ser exibido entre os minutos 12:20 até 22:28 para ilustrar
uma importante forma de resistência à escravidão na América Portuguesa. Após
a exibição questionar os alunos sobre como eles imaginam que os moradores
dos quilombos se alimentavam e esclarecer que em Palmares a sobrevivência
do quilombo provinha da agricultura, com destaque para o feijão, a batata, o
milho, o melaço, a mandioca e suas variações, como a farinha, que eram os prin-
cipais itens produzidos. Eles devem escrever um breve relato sobre a experiência
de Palmares para embasar historicamente a produção do panfleto.
A turma é dividida em cinco grupos e cada um destes recebe uma repor-
tagem impressa com notícias recentes, com QR code, para que os alunos possam
acessar individualmente a reportagem sobre situações análogas à escravidão, por
meio do aparelho celular. Porém, os alunos que não dispuserem do meio de
acesso podem formar duplas com aqueles que possuem o celular como possibi-
lidade de obter as informações.
Os grupos são orientados a fazer a leitura das reportagens que receberam
para discutir entre eles as causas da situação análoga a escravidão mostrada em
diferentes lugares. Dentre as informações, devem observar que uma das razões
que levam ao aprisionamento são as dívidas adquiridas com o custeio da ali-
mentação. Nessa situação, os trabalhadores recebem o alimento e outros itens
de subsistência, quando estão contratados, e, depois, precisam pagar o que con-
sumiram. Cada grupo apresenta as principais considerações sobre a reportagem
lida e, no final, produz um panfleto com o objetivo de combater o tráfico de
pessoas e a exploração, em situação análoga à escravidão, em uma perspectiva
de valorização à liberdade e à dignidade de todos com direito ao alimento.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou entender como a alimentação pode ser utilizada


como fonte documental e gustativa para discutir as relações étnico-raciais no
ensino de História, no ensino fundamental II e, para tanto, entre demais consi-
derações, destaca que, além de ser um ato necessário à sobrevivência humana, a
temática também pode colaborar para o desenvolvimento de aulas mais dinâmi-
cas e de qualificação do ensino de História na educação básica, trazendo à tona
as vivências dos alunos.
Portanto, com esse propósito o estudo teve base em pesquisa bibliográ-
fica e documental, na qual foram analisados os trabalhos já publicados sobre
sequência didática e alimentação na História e feitas as devidas reflexões acerca
de como trabalhar relações étnico-raciais utilizando a alimentação.
Definidos esses parâmetros, a compreensão do tema demandou a análise
do conceito de sequência didática. Ficou evidente que a abordagem pode con-
tribuir para desvendar particularidades da história que podem ser utilizados no
aprimoramento do ensino da disciplina em estudo.
Em seguida, procurou-se identificar como a alimentação pode ser rela-
cionada à História para discutir as relações étnico-raciais. A análise permitiu
concluir que a alimentação e a História são carregadas de intercâmbios sendo
possível tratar diversos assuntos da sociedade brasileira, inclusive.
Por fim, foi feita uma investigação de como trabalhar em sala de aula as
relações étnicas utilizando uma sequência didática que contemple a alimentação
brasileira. Foi concebida, portanto, uma sequência abordando a temática e cons-
tata-se, com isso, que é possível levar as relações étnico-raciais para a sala de aula,
por meio da alimentação, e tornar a história mais próxima da realidade do aluno.

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107
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

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ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: ArtMed.,
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108
A IMPORTÂNCIA DE UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Elimeire Alves de Oliveira1
Letícia da Silva Nogueira2
Melissa Maria Alves de Oliveira3
Tiago Moreno Lopes Roberto4
Sileno Marcos Araujo Ortin5

INTRODUÇÃO

Conforme preceitua nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º “Todos


são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988).
Diante dessa garantia constitucional, todos brasileiros, independentemente de
qualquer condição, deveriam possuir e usufruir de todos os direitos, mas infe-
lizmente não é o que ocorre na prática, pois “o mito da democracia racial além
de ser uma grande falácia social, acabou por expor a realidade velada e sutil da
desigualdade no Brasil” (OLIVEIRA; CARVALHO, 2018, p. 228).
Segundo Oliveira e Carvalho (2018), a desigualdade racial no Brasil atin-
ge a maioria da população negra no país, a qual sofre desvantagens em todos os
âmbitos da sociedade, seja político, jurídico, econômico, acadêmico, além de se-
rem as principais vítimas de homicídios, conforme aponta o Atlas da Violência
2021, no ano de 2019 os negros representaram 77% das vítimas de homicídios
(IPEA, 2021).

1 Graduada em Direito (UNIFEV). Graduada em Pedagogia (Faculdade de Antônio Au-


gusto Reis Neves). Graduada em Letras (UNIFEV) Especialista em Gestão Escolar (UNI-
CAMP). Especialista em Tutoria Em Educação à Distância e Docência do Ensino Supe-
rior (Faculdade FUTURA - Grupo Educacional FAVENI) Mestre em Ensino e Processos
Formativos (UNESP). Advogada. Docente e Coordenadora do Curso de Pedagogia na
Faculdade FUTURA. E-mail elimeire.alves@gmail.com.
2 Graduanda em Pedagogia (Faculdade FUTURA). Email: lehnhandeara@gmail.com
3 Graduanda em Pedagogia (Faculdade FUTURA). Email: Melissaolviveira@gmail.com
4 Graduado em Psicologia (UNIFEV); Especialista em Saúde Mental (FUTURA); Mes-
tre em Psicologia e Saúde (FAMERP); Doutorando em Ciências da Saúde (FAMERP);
Professor do Curso de Psicologia (UNIRP); Professor e Gestor de Políticas Acadêmicas
(Faculdade FUTURA). Email:tiagomorenolopes@hotmail.com
5 Graduado em Administração (UNIFEV), Especialista em Marketing, Recursos Humanos
e Gerência (UNIFEV), Especialista em Programa de Implementação e Gestão em Edu-
cação à Distância (UFF), Coordenador de curso de Administração, Mestre em Ciências
Ambientais (UNIVERSIDADE BRASIL) E-mail: sileno@faculdadefutura.com.br

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

É uma realidade que causa medo, insegurança, e sentimento de impuni-


dade, fruto do processo de escravização, que naturalizou essa violência, quando
muitos dos africanos foram arrancados de sua pátria e vieram servir de mão-de-
-obra escrava, em condições subumanas, mediante um sistema de exploração
e dominação naturalizado, cernes do colonialismo, conforme Quijano (2007
apud OLIVEIRA; CANDAU, 2010) Esse processo de naturalização se arrastou
e, infelizmente, se arrasta até os dias atuais, de forma direta, com atitudes discri-
minatórias escancaradas ou veladas.
Para mudar essa realidade, há que se conscientizar a população, não ape-
nas com imposições legais, pois essas, embora sejam conquistas muito impor-
tantes, não mudam simplesmente a concepção cultural arraigada nas relações
sociais. É necessário, antes a mudança de pensamento e comportamento, enfim,
uma mudança ética, fruto da conscientização interna, num trabalho educacio-
nal desde a base, com as crianças.
Já existe no Brasil estudos sobre as relações étnico-raciais, os quais vem
ganhando espaço no mundo acadêmico, a partir da denominada “pedagogia de-
colonial”, que segue um enfoque crítico que defende uma proposta de educação
que torna viável pensar a pluralidade étnica do Brasil pela superação da visão de
um país hegemonicamente branco no qual vigora a supremacia de um currículo
eurocêntrico e pelo reconhecimento, valorização e incorporação da cultura afri-
cana e afro-brasileira no currículo prescrito.
Embora já exista a previsão legal de um trabalho voltado ao resgate da
cultura africana no currículo oficial brasileiro, esse tema só é abordado no en-
sino fundamental e no ensino médio. No entanto, esse trabalho teria grande
significado a partir da educação infantil, que compreende a faixa etária de zero
aos cinco anos de idade, pois é quando as crianças vão interiorizando valores,
como respeito e amizade, conforme Codello (2021). Sendo assim, é fundamen-
tal que nas escolas de educação infantil sejam trabalhadas habilidades importan-
tes como o combate ao preconceito e o racismo, de forma apropriada para essa
faixa etária, de forma a contribuir para que essas crianças cresçam e se relacio-
nem de maneira saudável, com respeito às diferenças e que sejam inseridas em
uma sociedade que não faça valer o racismo estrutural, já que é na infância que
começa a ser moldado o caráter (CODELLO, 2021). Assim, a escola pode con-
tribuir para romper o racismo estrutural, enraizado dentro da própria cultura.
Desta forma, é importante que os professores, principalmente da educa-
ção infantil, planejem suas práticas pedagógicas, educando para o respeito às
diferenças culturais, de modo que também as crianças negras se sintam parte in-
tegrante da sala de aula, do espaço escolar e da vida social. O presente trabalho
justifica-se por oportunizar uma reflexão mais aprofundada sobre importância

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Avanços, Conquistas e Desafios

de trabalhar a questão do racismo na educação infantil, visto ser esta etapa mui-
to importante no desenvolvimento do ser humano, a partir de um trabalho cons-
ciente e direcionado por parte dos educadores, com práticas que irão possibilitar
a formação de um cidadão pleno, começando pela releitura de suas aulas, nas
quais não sejam reforçadas ideias racistas e preconceituosas.
O objetivo geral desta pesquisa é demonstrar a importância de um tra-
balho educacional de combate ao racismo iniciado na educação infantil. Para
tanto, seus objetivos específicos são: conceituar o que é racismo estrutural; con-
ceituar que é preconceito racial, apresentar, de forma sucinta as ideias subjacen-
tes da pedagogia decolonial; levantar as principais leis que tratam do racismo
e preconceito racial e verificar quais atividades que podem ser trabalhadas na
educação infantil para conscientização e combate ao racismo.
Este trabalho, conforme Lakatos e Marconi (2002), trata-se de uma pes-
quisa de cunho bibliográfico, cujas fontes de pesquisa foram livros e artigos
indexados em sites de busca acadêmica, como Google Acadêmico, com os des-
critores: Educação antirracista; Racismo estrutural; e Pedagogia Decolonial.
Foram selecionados artigos que tiveram relevância para o tema estudado e des-
cartados os que não eram pertinentes ao objeto de estudo, além de conteúdos
audiovisuais para compreensão do tema.
Trata-se, ainda, de uma pesquisa de natureza qualitativa, cuja metodolo-
gia é de caráter exploratório, pois seu foco é estudar e interpretar, subjetivamen-
te, o objeto analisado. Além disso, é uma pesquisa descritiva, que busca avaliar
e descrever estudos já realizados sobre o fenômeno pesquisado.

PRECONCEITO RACIAL E RACISMO ESTRUTURAL

Embora preconceito e racismo sejam considerados como sinônimos, para


alguns autores, como Silvio Luiz de Almeida (2018), são termos distintos. Para
ele, preconceito é fruto de uma construção histórica e social sobre determinados
grupos ou indivíduos, já o racismo trata-se de “[...] uma forma sistemática de
discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de
práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilé-
gios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, p. 25).
Segundo Porfírio (2022), o preconceito racial é caracterizado pela convic-
ção da existência de indivíduos com características físicas hereditárias, traços de
caráter e inteligência e manifestações culturais superiores a outros pertencentes
a etnias diferentes. O preconceito racial está diretamente ligado à discrimina-
ção, podendo ocorrer de maneira direta ou indireta, atingindo em sua grande
maioria pessoas negras e pardas, que sofrem uma grande desigualdade social em
relação às pessoas brancas.
111
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

É preciso ressaltar que preconceito racial, também chamado racismo, é


uma violação aos direitos humanos, embora naturalizado desde o tempo da es-
cravidão, em que a supremacia e o domínio de brancos sobre negros eram feitos
de forma escancarada, resultando numa história de sociedade permeada pela
violência e desigualdade.
Também para Gabriel (2019), o racismo é uma classificação histórica,
criada por pessoas brancas, para determinar o processo de dominação de povos
negros, sendo que o preconceito racial já existe no Brasil há muitas décadas e
que ainda se faz presente nos dias atuais, como o “país da segregação racial
não declarada” (DOMINGUES, 2005, p. 165). O racismo nada mais é do que
subjugar uma pessoa pelo seu estereótipo, sem ao menos conhecê-la, o que ca-
racteriza a seriedade do preconceito racial no Brasil, uma vez que é um país
que possui uma grande porcentagem de miscigenação. Conforme levantamento
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) realizada
em 2021 pelo O IBGE, 43,0% dos brasileiros se autodeclararam como brancos,
47,0% como pardos e 9,1% como pretos (BRASIL, 2023)
De acordo com Gabriel (2019), existem três tipos mais frequentes do racis-
mo no Brasil: o crime de ódio ou discriminação racial; o racismo institucional;
e o racismo estrutural. O Crime de ódio ou discriminação racial direta são os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional, previstos na Lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989. Já o ra-
cismo institucional é aquele que ocorre na sociedade, como a exclusão dos sujei-
tos negros em alguns espaços sociais, como no poder político e na mídia, onde
geralmente são compostos em sua maioria por pessoas brancas; já as pessoas
negras tendem a ficar com o pior destaque, como em abordagem policias, em
que mais de 75% dessas ações são feitas em negros. O racismo está presente na
cultura, em vocabulários, piadas, comentários, dentre outros, que passam quase
que imperceptíveis, por ser natural entre a população. Ou seja, embora a prática
de racismo possua diversas nuances, há três formas que se sobressaem, sendo o
racismo estrutural, o racismo institucional e crime de ódio, o que demonstra que
houve um desenvolvimento na sua estrutura ao longo dos anos
O racismo estrutural, que é de ordem cultural, está presente nas nossas
origens, quando os negros foram arrancados de sua pátria mãe e forçados a ser-
vir como mão de obra escrava, não como pessoas, mas como objetos, e a partir
dessa banalização o racismo se adentrou para as instituições que foram sendo
organizadas na sociedade brasileira, como o trabalho, escolas, saúde, moradia
e se materializando nos crimes de ódio, que se fazem presentes no cotidiano
de maneira corriqueira, se apresentando em formas de discriminação, de for-
ma velada, mascarada, mesmo que existam leis que incriminem e punam tais

112
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

condutas.

O ENSINO DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA A PARTIR DA


VISÃO DA PEDAGOGIA DECOLONIAL

O conceito decolonial, ou descolonial, nasce a partir do discurso da co-


lonialidade, que “seria uma estrutura de dominação que submeteu a América
Latina, a África e a Ásia, a partir da conquista.” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010,
p. 19). Conforme os autores, a partir dessa dominação, além da invasão do terri-
tório físico, houve também uma subalternização da cultura dos dominados pela
negação e esquecimento dos seus processos históricos.
A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão
mundial do poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação
racial/étnica da população mundial como pedra angular deste padrão de
poder (QUIJANO, 2007, p. 93 apud OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 19).

Conforme expõe Oliveira e Candau (2010), na visão do sociólogo argen-


tino Quijano, o conceito de raça não tem sustentação em processos biológicos,
mas seria uma invenção que surgiu no século XVI, em que se juntou cor e raça,
e que serviu de base para divisão tanto social, do ponto de vista do trabalho,
cultural e do conhecimento, atuando como um elemento de inferiorização das
pessoas não europeias, pela negação do seu legado cultural, em que foram sub-
jugados os povos indígenas e africanos numa categoria de seres irracionais
e primitivos, pertencentes a uma “outra raça” (QUIJANO, 2007, p. 93 apud
OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 20).
Santos e Meneses (2010) equiparam a dominação colonial à dominação
epistemológica, pelo aniquilamento dos saberes dos povos e nações colonizados,
pela supressão e inferiorização de outras formas de saber que não as europeias.
Circula no imaginário popular a crença de um povo passivo, com pouco ou ne-
nhuma cultura.
Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava
e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de
onde essas pessoas foram tiradas a força. Disseram-me que a população
negra era passiva e que “aceitou” a escravidão sem resistência. Também
contaram que a princesa Isabel foi sua grande redentora. [...] O que não
me contaram é que o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, em
Alagoas, perdurou por mais de um século, e que se organizaram vários le-
vantes como forma de resistência à escravidão, como a Revolta dos Malês
e a Revolta da Chibata. Com o tempo, compreendi que a população negra
havia sido escravizada, e não era escrava - palavra que denota que essa
seria uma condição natural, ocultando que esse grupo foi colocado ali pela
ação de outrem (RIBEIRO, 2019, p. 5).

113
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Assim, a Pedagogia decolonial surge como um contraponto dessa pers-


pectiva, em que se propõe a interculturalidade como forma de romper com o
processo de manutenção da colonialidade e do eurocentrismo, expandindo, dan-
do voz e visibilidade a esses povos que foram subalternizados durante séculos,
que trazem marcas discriminatórias e de marginalização, mas que muito contri-
buíram para a formação da cultura brasileira, podendo até mesmo ser conside-
rados a essência do povo brasileiro. Configuram-se em iniciativas que abordam
a história na perspectiva epistemológica afro-brasileira, em contraposição à epis-
temologia colonizadora. Santos, Pinto e Chirinéa (2018, p. 958) afirmam que
A expressão epistemologia afro-brasileira refere-se aqui às reflexões, teo-
rias e arcabouços de saberes e cosmovisões organizados por povos afro-
-brasileiros e que são, em sua maioria, omitidos ou ‘sub-representados’ nas
instâncias oficiais de transmissão de conhecimentos.

Trata-se de uma possibilidade de pensar e praticar um currículo que consi-


dere a contribuição de outros povos, que não somente os europeus, valorizando
elementos do legado africano na cultura brasileira.

PRINCIPAIS LEIS QUE TRATAM DO RACISMO

Os primeiros passos para a mudança no comportamento discriminatório


já foram dados na legislação. Vale ressaltar que a Constituição Federal do Brasil
de 1988, a Lei Maior de todo sistema legal, prescreve no artigo 3, inciso XLI,
que são objetivos fundamentais da nossa República “promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”; alertando no artigo 5º, inciso XLI, que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, consideran-
do a prática do racismo crime inafiançável. É, portanto, esse o amparo constitu-
cional de todas as demais leis que penalizam a discriminação.
O Código Penal Brasileiro também considera crime condutas discrimi-
natórias e racistas. Tipificada, no art. 140, §3, como injúria qualificada quan-
do alguém ofende a dignidade e o decoro de outrem, utilizando “de elementos
referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência” (BRASIL, 1940). Além disso, a Lei nº. 7.716/1989,
no seu art. 20, traz a definição dos crimes resultantes de preconceito de raça ou
de cor, que são: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito
de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” (BRASIL, 1989). Desta
forma, existe uma extensa legislação para punir atos discriminatórios e racistas.
No que tange ao sistema educacional, a Lei de Diretrizes e Bases, artigo
26 § 4, prevê a promoção do ensino da História do Brasil, a partir de uma visão
multicultural, em que se considera a contribuição das diferentes culturas e etnias
114
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

para a formação do nosso povo, em especial das matrizes indígena, africana e


europeia. Embora haja muito a ser feito em termos curriculares, esse foi um
importante passo. Além disso, a Lei 10.639/2003 trouxe a obrigatoriedade de
incluir no currículo oficial do ensino fundamental e médio, dos estabelecimen-
tos públicos e privados, a temática História e Cultura Afro-Brasileira de forma
transdisciplinar, especialmente nas áreas de Educação Artística e de Literatura
e História Brasileiras.
Para tanto, já em março de 2004, homologa o Parecer 03/2004, as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais,
antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o ra-
cismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta
perspectiva, propõe A divulgação e produção de conhecimentos, a forma-
ção de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de
seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indíge-
nas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na constru-
ção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus
direitos garantidos e sua identidade valorizada (BRASIL, 2004, p. 10).

Trata-se de um grande avanço ao analisarmos a trajetória de negação e


exclusão de culturas formadoras do povo brasileiro. No entanto, partindo do
pressuposto de que é na infância que o caráter começa a ser formado, a questão
que se coloca é porquê não trabalhar, de forma adequada à idade, comportamen-
tos que vão sendo interiorizados desde a infância.
Tramita atualmente no Senado Federal o Projeto de Lei n°. 288, de
2022, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues, filiado ao Partido Rede
Sustentabilidade do Amapá, que visa alterar o artigo 26 da Lei de Diretrizes e
Bases nº. 3694/1996, em que se determina a “obrigatoriedade de os currículos
da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio abordarem o
combate ao racismo e outros.”, com a seguinte redação:
Art. 26....................................................................................................
§ 9º Conteúdos relativos aos direitos humanos, ao combate ao racismo e à
prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente
e a mulher serão incluídos, como temas transversais, nos currículos de que
trata o caput deste artigo, observadas as diretrizes da legislação correspon-
dente e a produção e distribuição de material didático adequado a cada
nível de ensino (BRASIL, 2022, n.p.).

Ou seja, já existe uma preocupação de incluir a temática desde o início da


educação obrigatória, que é na educação infantil, vislumbrando uma mudança
curricular a ser implementada, bem como políticas de formação docente com ba-
ses teóricas que fundamentem essas ações pedagógicas no chão da sala de aula.
115
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

TRABALHAR O RACISMO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Conforme posto, a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira


está prevista somente a partir do ensino fundamental. Muito interessante se-
ria essa conscientização a partir da educação infantil, pois, conforme Professor
Wagner Codello (2021), está comprovado cientificamente que as crianças até
os 7 e 8 de idade recebem forte influência do meio social, sobretudo das pes-
soas com as quais convivem, seja pelos exemplos, ideias ou posturas, que vão
moldando e estruturando suas ideias, pensamentos e caráter, pavimentando o
caminho que irão trilhar na vida.
Vale ressaltar, conforme o autor, que é na educação infantil que são for-
mados importantes conceitos, que, embora não façam sentido prático naquele
momento para a criança, irão fazer na fase em que a criança terá capacidade
cognitiva para estabelecer conexões, o que geralmente ocorre a partir dos 9 anos.
Machado e Araújo (2021) afirmam que a criança que possui em sua in-
fância o cuidado, afeto, nutrição e a interação dos adultos com incentivos e brin-
cadeiras na fase de 0 a 6 anos de idade, pode desenvolver seu cérebro ao poten-
cial máximo, em contraproposta, fatores de risco, como preconceito, violência,
desnutrição e falta de acesso à educação de qualidade fazem um efeito reverso.
Em um país que o racismo é estrutural e a pobreza tem cor, crianças
negras sofrem para conseguir a construção da autoimagem positiva, uma vez
que são associadas a estereótipos negativos, trazendo consequências perversas
para seu desenvolvimento integral, tanto afetivo como cognitivo. E o ambiente
escolar, depois da família, se constitui num dos espaços sociais que a escola que
a criança mais permanece, se tornando um lócus privilegiado para desenvolver
não apenas as competências cognitivas, mas também as sociais.
No entanto, infelizmente, na escola o racismo também acontece, de ma-
neira velada, e muitas vezes a pessoa o pratica sem ao menos perceber, exemplo
disso é ensinar que o lápis “cor de pele” é rosa claro, falas como “não faça ser-
viço de preto”, são bem comuns, além de atos que são cometidos por pessoas
adultas e reproduzidos pelas crianças, conforme posto:
A despreocupação com a questão da convivência multiétnica, quer na
família, quer na escola, pode colaborar para a formação de indivíduos
preconceituosos e discriminadores. A ausência de questionamento pode
levar inúmeras crianças e adolescentes a cristalizarem aprendizagem ba-
seadas, muitas vezes, no comportamento acrítico dos adultos a sua volta
(CAVALLEIRO, 2012, p. 20).

Por isso, no trabalho de sala de aula é preciso a abordagem do tema racis-


mo, para que haja uma conscientização de valores, envolvendo respeito e ami-
zade e uma das maneiras de trabalhar e conscientizar esse “tabu” na educação

116
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

infantil são atividades adequadas para essa etapa de ensino. Os documentos nor-
teadores do Currículo da Educação Infantil, que são as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (Resolução CNE/CEB n°. 5, de 17 de de-
zembro de 2009) e a Base Nacional Comum Curricular, destacam que os eixos
que devem estruturar as práticas pedagógicas nessa etapa são as interações e
a brincadeiras.
Assim, com as brincadeiras, encenações e as narrativas, como a contação
de história, é possível utilizar para a interpretação das narrativas bonecas e
fantoches negros como protagonistas, que podem ser recursos pedagógicos ade-
quados para fazer com que os alunos percebam que não existe um grau maior
de importância entre os diferentes sujeitos que compõem a sociedade, que pode
haver alternância nos papeis de destaque, assim como no contexto social.
Livros infantis como O Cabelo de Lele; Meu Crespo é de Rainha; Os Nove
Pentes da África, são leituras que possibilitam repensar o negro numa outra pers-
pectiva. É muito importante um trabalho criterioso de seleção dos livros que se
pretenda trabalhar, para que o negro não seja associado a personagens margi-
nais da história. Também são positivas as feiras culturais com a participação dos
pais e da comunidade externa, para trabalhar o tema de forma integrada, com
projetos relacionados à cultura negra, como capoeira, danças, jogos, brincadei-
ras, músicas, culinária, contação das origens históricas, integrando a prática à
parte teórica, para dar vida e sentido aos valores que se pretende desenvolver.
O professor pode assumir uma prática pedagógica emancipatória, ao pos-
sibilitar aos alunos a liberdade de ser quem são, trazendo conteúdos e metodolo-
gias que mostrem o quanto o povo negro sofreu e sofre até hoje, porém ressaltar
tudo aquilo que já foi conquistado até aqui e que todo o aluno tem o poder de
mudar a sociedade não praticando o racismo, defendendo seus direitos e deveres
enquanto cidadãos, conscientizar que cada um tem o poder para mudar o con-
texto atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da presente pesquisa, foi possível concluir que a inserção da


temática da cultura africana no currículo da educação infantil é importante e
necessária, tendo em vista que é nesta fase que a criança adquire e interioriza
diversos valores e é quando seu caráter começa a ser moldado.
Muito embora haja vasta legislação no âmbito penal que tipifica o racismo
e preconceito como crimes, além de legislação educacional que prevê a trabalho
de conscientização acerca dessas condutas, ainda não foram medidas capazes
de mudar a cultura brasileira, o que demonstra a necessidade de um trabalho
educacional de base, desde a mais tenra idade, para que o racismo estrutural
117
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

deixe de se tornar uma prática corriqueira.


Assim, agindo na contraposição do preconceito, a partir de uma pers-
pectiva da Pedagogia decolonial, é importante que seja proposto um trabalho
intercultural, onde as várias culturas que compõem o caldo cultural brasileiro
tenham vez e voz no espaço social.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
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119
O ENSINO DE HISTÓRIA
PAUTADO NA CULTURA AFRO-BRASILEIRA
Jackson Adair Gonçalves1

INTRODUÇÃO

O que muito tem se verificado em livros didáticos escolares é a falta de


material dedicado à cultura africana no Brasil, e mais, pouco estimulado a temá-
tica pelos professores em sala de aula.
Os negros sempre fizeram parte da cultura brasileira, mais de 52 % da
população brasileira tem descendência africana, e mesmo assim, as perspectivas
de ações ou projetos que culminem em um diálogo nos educandários ainda é
muito raro.
Nota-se que esse assunto não é só de ser trabalhado com alunos do ensi-
no médio, alunos das séries iniciais do ensino fundamental devem receber uma
formação, pois, com base na lei n° 10.639 de 2003, institui na educação básica o
estudo da cultura afro-brasileira e indígena (BRASIL, 2003).
Ainda, temos o marco da Consciência Negra, data em 20 de novembro,
como forma de resgatar a historicidade da cultura afro, porém, inúmeras vezes
passa-se desapercebido nos educandários.
É notório destacar as lideranças que ainda lutam pela igualdade de gênero
e raça no Brasil, e temos um exemplo aqui no Estado do Rio Grande do Sul,
que é a professora Fabrícia Ferreira, que hoje concilia seu trabalho na Secretaria
Estadual de Educação (SEDUC-RS), com o trabalho de Miss Africana e, em
suas ações busca reforçar essa temática nos educandários, chamando a atenção
dos professores da importância em se falar dos movimentos negros e do papel
que esse povo teve e tem, na desenvoltura do país.
Enfim, a luta é diária, são negros violentados, espancados, discriminados
diariamente no país, é necessário repensar dentro da disciplina de história, em
dialogar com os alunos a questão inter-racial, os valores e respeito, e trazer à tona,
toda essa cultura fantástica brilhante na Bahia, para todos os cantos do país.
O trabalho se dividiu em subtítulos para facilitar a compreensão dos lei-
tores, e ao mesmo tempo, para trazer ao debate questões essenciais de serem
trabalhados no ensino didático.
1 Licenciatura em Sociologia, Filosofia e Ciência da Religião. Mestrando em História pela
Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutor Honoris Causa em Ensino Religioso. Profes-
sor da Rede Estadual do Rio Grande do Sul. Email: jacksonadair2009@gmail.com

120
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

SINCRETISMO RELIGIOSO: UMBANDA E CATOLICISMO

A religião afro-brasileira, muito difundida pelos negros vindos da África


no período colonial, é até hoje um legado de bravura e resistência, até porque
os negros encontraram na fé motivos para enfrentar os obstáculos e sofrimentos
que sofriam e sofrem até os dias atuais, sendo vítimas de desrespeito em seus
templos e terreiros.
Segundo Bezerra (2020, n.p.) destaca que o sincretismo religioso “se ca-
racteriza pela união de elementos culturais, religiosos e ideológicos distintos que
formarão uma nova cultura, religião ou sociedade.”
Ainda Bezerra elenca que:
O cristianismo nasceu do judaísmo, e um dos pilares desta crença, a Torá,
faz parte do conjunto de livros sagrados cristãos, a Bíblia. Igualmente,
a grande festa judaica, a Páscoa, está presente no cristianismo, após ser
ressignificada pelos cristãos. [...] Da mesma forma, a Igreja Católica to-
mou elementos da administração o Império Romano absorvendo sua or-
ganização. Um exemplo é a instituição de um líder máximo, o Pontífice.
Este título, no entanto, vem da religião politeísta romana e pertencia ao
sacerdote de mais prestígio do Colégio Pontifical (BEZERRA, 2020, n.p.).

Esse sincretismo entre a Umbanda e o catolicismo é muito importante


para a sociedade pois, o Estado é laico, livre para todos os pensamentos e mani-
festações religiosas. Essa sintonia se dá pelos atos de caridade, de amor, de culto
aos orixás e dos momentos de aproximação à espiritualidade através do líder
religioso da casa. O catolicismo já tem uma missa mais tradicional, pautadas na
Bíblia e no monoteísmo, que trazem aspectos de Roma, sabendo que hoje em
dia o catolicismo também originou outros movimentos católicos.
A Umbanda é uma religião brasileira, de matriz africana, onde ocorrem
diversos sincretismos. Esta crença tem elementos do kardecismo, do candomblé,
da religião indígena, do catolicismo, entre outros cultos. O sincretismo ocorre
tanto em nível doutrinal com elementos do monoteísmo, reencarnação e figu-
ras a serem cultuadas, como no aspecto exterior, pois suas celebrações ocorrem
numa Casa ou Terreiro (BEZERRA, 2020).
As religiões de matrizes africanas, como a Umbanda, sofreram e ainda
sofrem discriminação por parte de pessoas e ou religiões, essa perseguição vem
de longos tempos, quando o Brasil ainda era Colônia de Portugal. O preconcei-
to pelos cultos das entidades (orixás) nesse período, vinham dos fazendeiros e
escravocratas, que tinham como única religião o catolicismo.
Guimarães reflete sobre o assunto:
Sem autonomia e com o catolicismo, advindo dos portugueses, como
religião dominante na época, os negros trazidos ao Brasil em navios

121
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

negreiros eram impedidos de manifestar as crenças nos Orixás, cujo culto


era apontado como heresia e feitiçaria por escravocratas e fazendeiros de
várias regiões do país. Na tentativa de defender a religiosidade e a iden-
tidade de um povos, eles mantiveram a crença através dos Otás [pedras].
[...]Assim, cada Orixá tinha sua pedra - colocada dentro imagens que re-
presentam os santos católicos - reverenciada sem a opressão dos senhores.
Desta forma, deu-se início ao sincretismo religioso, através da associação
dos orixás aos santos católicos, e funcionando como uma maneira de li-
vrar-se dos castigos e perseguições religiosas da época. Assim, quando se
cultuava Santa Bárbara, estava se referindo à Iansã; ao rezar para Nossa
Senhora da Conceição, falavam com Iemanjá (GUIMARÃES, 2018, n.p.).

O autor Guimarães (2018) bem retrata o período colonial, onde as reli-


giões afro-brasileiras eram discriminadas e não aceitas, até porque os portugue-
ses dominavam o país com as catequeses trazidas pelos padres jesuítas, e tudo
que fosse contra a vontade religiosa portuguesa, seria heresia ou pecado.

O ENSINO RELIGIOSO COMO REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA


DA CULTURA RELIGIOSA DAS MATRIZES AFRICANAS

A escola é um espaço de socialização de saberes, de democracia, onde


crenças, raças, etnias se encontram, formando várias culturas diversificadas no
ambiente escolar. Em regiões do país, a educação do campo é voltada para indí-
genas, que aprendem conhecimentos e trocam ideias dentro de suas línguas com
professores especializados.
Também vale relembrar que a Constituição, no parágrafo único ao artigo
1º dispõe que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre-
sentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Deste modo,
a sociedade se encontra devidamente legitimada a exigir de seus representantes
o cumprimento dos preceitos constitucionais acima descritos mediante a formu-
lação de políticas públicas, dentre elas as fiscais, que garantam a implementação
e a eficácia dos objetivos perseguidos na Constituição Federal nos seus preceitos
fundamentais (GOLDSTAJN, 2012).
O ensino religioso é essencial nos educandários de todas as escolas do
país, não apenas como uma mera disciplina, mas sim como uma disciplina ca-
paz de mostrar ao aluno que religião não é uma só, ou uma ideologia, é algo
que vai além, é também diálogo e reflexão acerca das diferentes manifestações
religiosas presentes na historicidade do Brasil e na modernidade atual.
Denota-se que durante o estudo e a própria vivência em sala de aula,
percebe-se que uma parte da sociedade pensa que o ensino religioso é ligado a
doutrina católica ou que seria o ensinamento de uma determinada religião.
O professor como mediador de todo conhecimento, deve sempre ter a
convicção que durante seus debates e reflexões, os alunos que ali estão presentes
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

são oriundos de famílias católicas, evangélicos, umbandistas, espíritas, entre ou-


tras, por isso deve destacar a importância de dialogar e aceitar o convívio e so-
cialização de todos.
O ensino religioso é uma disciplina muito importante no ambiente esco-
lar, visto que agrega valores e reflexão sobre o meio espiritual aos educandos,
não como uma ferramenta doutrinária, mas sim como uma forma dos alunos ve-
rem o mundo de forma diferente, principalmente no que tange às diferenças so-
ciais e religiosas. Nesse contexto analisando épocas remotas, nota-se que os bons
costumes e valores que antes eram ensinados em casa, estão se perdendo, não
só sob influência da mídia, mas pela correria do trabalho do dia a dia, ou seja,
vive-se no capitalismo, onde tudo depende do trabalho e do sistema econômico.
Nesta análise, Gaertner afirma:
A sociedade na qual vivemos hoje é muito diferente daquela em que nos-
sos pais e avós viveram em suas juventudes. Os valores e costumes que
antes guiavam a geração anterior não são mais os mesmos. Em alguns ca-
sos, chegam a ser contraditórios atualmente. É preciso educar essa geração
para que valores como responsabilidade, lealdade, coragem, ética, sabedo-
ria e respeito continuem unânimes e essenciais para a nossa convivência
enquanto sociedade. Seja qual for a sua origem e sua cultura, valores éticos
devem ser os mesmos para todo mundo, no Brasil, nos EUA ou no Japão.
O melhor meio de estimular este pensamento é com a educação do ensino
religioso (GAERTNER, 2017, p. 01).

Conforme destacado pelo autor Gaertner (2017), a nova geração deve


ser educada para uma melhor vida em sociedade, pautada com os valores de
responsabilidade, ética, sabedoria, entre tantas outras, que aos poucos estão se
perdendo. É notável que a escola busque criar um momento para que os alunos
reflitam sobre suas ações em casa, no ambiente onde vivem, na própria escola,
com os amigos, enfim, o ensino religioso tem o papel de estimular para que esses
conceitos e atitudes venham a melhorar, e de certa forma, trazer benefícios para
a vivência em sociedade.
Ainda Gaertner frisa:
Hoje em dia, é cada vez mais comum presenciarmos pessoas mais indivi-
dualistas e, em certos níveis, egoístas com o mundo a sua volta. O apren-
dizado de valores como os que são passados com o ensino religioso tem a
chance de mudar este paradigma, uma vez que o foco é na formação de um
cidadão inserido dentro de uma sociedade. Aprender a viver de modo cola-
borativo e saber que todos têm a mesma importância, bem como direitos e
responsabilidades, dentro de uma sociedade, faz com que as atitudes e ações
dos alunos sejam mais coletivas, em prol de um bem maior. É preparar as
pessoas para se doarem mais ao próximo (GAERTNER, 2017, p. 01).

Neste contexto fica evidente o estímulo que o ensino religioso oferece

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

para a vida do jovem educando, que aprenderá a ser mais participativo e colabo-
rativo frente a socialização de saberes e atitudes perante o seu próximo, fazendo
com que o ambiente social seja mais harmonioso e igualitário entre todos. É
essencial que a disciplina ensino religioso seja coordenada por um docente ca-
pacitado, que realmente debata essas questões e busque a interação recíproca
entre os educandos.
O ensino religioso traz muitos benefícios para quem está formando as
suas raízes e conceitos. Incluir esse tipo de disciplina nas escolas é poder trans-
formar e multiplicar estes benefícios em algo muito maior, que atingirá um nú-
mero mais avantajado de pessoas, espalhando a palavra e os valores religiosos e
éticos em uma sociedade que se tornará bem mais justa. (GAERTNER, 2017).
Segundo Serafim ressalta que:
O ensino religioso não trata de uma área de temas transversais, mas, acima
de tudo, é uma área de conhecimento necessário em sintonia com os pila-
res da educação que busca aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser.
Tem como objetivo “propiciar a aprendizagem significativa dos elementos
básicos que compõem o fenômeno religioso, analisando as diferentes ma-
nifestações do Sagrado a partir da realidade do educando, subsidiando
na formação dos questionamentos existenciais, contribuindo de forma in-
terdisciplinar e transdisciplinar no exercício da cidadania e do convívio
social, ético e pacífico e, promovendo o diálogo inter-religioso, o respeito
às diferenças com o outro e com a natureza” (SERAFIM, 2012, p. 01).

Nesse contexto, o autor nos apresenta o real significado do ensino religio-


so nos educandários que é a formação pautada na aprendizagem significativa
através da análise das diferentes manifestações religiosas, buscando aproximar o
educando do conhecimento, e que através disto aprenda a respeitar ainda mais o
“sagrado religioso” de cada colega em sua classe. Para isso, o docente necessita
estar capacitado e saber aplicar as lições tomando como base a ética e respeito a
todas as manifestações religiosas.
De fato, o Brasil é um país rico em culturas religiosas em diferentes esta-
dos e cidades, e desde a colonização até sua independência já existiam rituais
religiosos, bem como crendices e benzeduras, que fazem parte da espiritualidade
brasileira. Hoje em dia, o ensino religioso não é catequese, mas sim um estudo
centrado nas religiões existentes, ou seja, o conhecer do sagrado, uma releitura
de todo o campo espiritual vivenciado pelas pessoas.
Ainda Serafim relembra a historicidade do ensino religioso:
No decorrer da história educacional do Brasil, houve várias tendências
sobre a forma de conhecer o transcendente. Das três concepções de ensino
religioso que existem no Brasil, no que se refere ao termo “religião”, a
mais recente situa-se na visão de uma “releitura” (do latim: “relegere”,
significa: re-ler) a respeito do fenômeno religioso, que se caracteriza pelo

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

conhecimento hermenêutico, a partir do convívio social, no saber de si,


e não como catequese (“reelegere”, quer dizer: re-escolher), como um
povo escolhido, embora haja uma aceitação muito forte e atuante sobre as
questões éticas ou vivência de valores (“religere”, isto é, religar a pessoa à
Deus) (SERAFIM, 2012, p. 01).

Frisa-se que a disciplina de ensino religioso não está no educandário para


converter ou mudar a religião dos alunos, mas sim, fazer com que os estudantes
conheçam a historicidade das outras culturas religiosas que fizeram parte da
história do Brasil ou que ainda fazem parte. É um momento de rever o papel que
a espiritualidade pode ocupar na vida do educando, não só com a parte teórica,
mas também de se criar momentos de reflexão sobre as coisas boas que a vida
proporciona através da fé em algo sagrado.
Para isso, como já destacado, o profissional que atua com a disciplina de
ensino religioso deve manter o foco no saber de sua classe, passando os conheci-
mentos e desfrutando da participação de seus alunos. A disciplina não é pensar
em seu salário ou fazê-la uma extensão de uma determinada religião, mas sim,
buscar conhecer cada uma, com carinho, amor e atenção.
Segundo Morais destaca:
Enquanto o Ensino Religioso for compreendido como o espaço do qual as
Tradições Religiosas se utilizam para manter o proselitismo religioso, ao
fazerem da escola uma extensão da instituição religiosa, buscando novos
adeptos, ou transformando a disciplina Ensino Religioso num cabide de
empregos para seus fiéis, mantendo ou reforçando seus salários, esse tipo
de atitude evidencia-se que não é a disciplina de Ensino Religioso a pro-
blemática. O problema é a competência pedagógica dos que orientam o
processo de ensino-aprendizagem na instituição (MORAIS, 2014, p. 01).

A parte pedagógica institucional deve sempre acolher da melhor forma os


estudantes, visto que cabe acompanhar se os docentes realmente estão cumpri-
mento seu papel que é formar educandos éticos e criar aulas que primam pela
diversificação cultural.
Nas escolas brasileiras, o Ensino Religioso (ER) é um componente cur-
ricular do Ensino Fundamental e nessa perspectiva, o conceito de religião não
deve atender a compromissos religiosos específicos. A escola é um ambiente de
aquisição de conhecimento e, exatamente por isso, é um espaço que permite
organização, condução e desenvolvimento dessas diferenças (SILVA, 2014).
Para que o ensino religioso realmente tenha seu significado no âmbito
escolar, bem como na vida social e espiritual do aluno, é imprescindível que o
docente tenha uma formação comprometida com o saber, além de uma postura
ética e que em sala de aula vise destacar ações e atividades que envolvam todas
as manifestações religiosas. Ainda, uma formação específica acadêmica, seja

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

na graduação ou pós graduação em ensino religioso, dará um melhor norte na


desenvoltura das atividades em sala de aula.
Em relação aos conteúdos a serem trabalhados na disciplina de ensino
religioso, Silva destaca:
O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) acom-
panha, organiza e subsidia o esforço de professores, associações e pesquisa-
dores para efetivar o Ensino Religioso como componente curricular a partir
dos seguintes eixos e conteúdos a serem trabalhados nas escolas: a) Culturas
e tradições religiosas: o desenvolvimento de temas que decorrem da rela-
ção entre cultura e tradição religiosa, destacando a ideia transcendente da
visão tradicional e atual; b) Teologias: analisar as múltiplas concepções do
transcendente com destaque para a descrição das suas representações nas
tradições religiosas, doutrinas e crenças que orientam a vida do fiel, etc.;
c) Textos sagrados e tradições orais: aprofundam o significado da palavra
sagrada no tempo e no espaço, com destaque para a autoridade do discurso
religioso; d) Ritos: buscam o entendimento das práticas celebrativas contem-
plando, por exemplo, a descrição das práticas religiosas e identificando os
símbolos mais importantes das tradições religiosas; e) Et hos: consiste em
analisar a vivência crítica e utópica da ética humana a partir das tradições re-
ligiosas considerando o relacionamento com o outro (SILVA, 2014, p. 169).

O autor Silva (2014) enfatiza algumas temáticas a serem trabalhadas den-


tro da disciplina de ensino religioso, buscando abordar contextos reflexivos e
que realmente tragam contribuições na vida estudantil e profissional do aluno.
Salienta-se que essa linhagem de pensamento destacada pelo autor em que frisa
alguns conteúdos, são sugestões que podem e devem ser incluídas no plano de
aula do docente em ensino religioso pois, traz neutralidade e eficiência na abor-
dagem espiritual e religiosa em sala de aula.

A DISCIPLINA DE HISTÓRIA COMO PAPEL FUNDAMENTAL NO


TRABALHO DO RESGATE DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

A disciplina de história vem fazer esse resgate cultural do povo afrodes-


cendente no Brasil, através de seus legados, vivências, contribuições e a partici-
pação do negro em diferentes setores da sociedade. O negro na história não foi
aquele visto somente como escravo, mas sim como “ser humano” que ajudou a
escrever a história do país. Sem suas comidas, suas vestimentas, seus saberes, sua
liderança e sua garra frente aos seus patrões que os maltratavam, não existiria
essa miscigenação de culturas e nosso Brasil não seria “rico” de tantas inven-
ções, criatividades e conhecimentos.
Compreender as relações estabelecidas no interior da sociedade brasileira
é importante para que se possa entender as desigualdades raciais e sociais do
Brasil. Assim, o ponto inicial desta desigualdade parece estar sedimentada nos

126
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

estereótipos socialmente construídos sobre o negro escravizado. Estas imagens


negativas foram se constituindo com tal força que se formou ao longo dos anos
um fosso considerável de desigualdade entre a população negra e a população
branca (CASTRO et al., 2009).
Conforme os autores Castro e colaboradores (2009) fica nítido que o país
brasileiro ainda existe escravidão, ainda existe racismo, preconceito, e é a partir
deste momento que a disciplina de história toma como base formar os educan-
dos com um pensando voltado realmente ao saber crítico, ou seja, mostrar a
força do povo afro-brasileiro tem desempenhado durante séculos, para mostrar
que todos os seres humanos são iguais, não é a cor da pele que vai mudar a
capacidade intelectual do sujeito ou o cargo que ele vai ocupar na sociedade.
Rever e estudar as matrizes africanas é cultuar a raça brasileira, é valorizar os
antepassados que lutaram contra a escravidão, para tornar uma sociedade livre,
onde todos possam ser iguais, conforme a Constituição Brasileira estabelece.
Para Castro e colaboradores frisam que:
A criação de espaços de luta em favor da igualdade racial no Brasil per-
passa os séculos, desde a formação de quilombos (XVI) até a criação de
instituições e/ou associações no início do século XX. No início desse sé-
culo tem-se a criação de diferentes espaços com o objetivo de dar maior
visibilidade à população negra. Na década de 1930 e 1940 podemos assi-
nalar, respectivamente, a criação da Frente Negra Brasileira que defendia
a educação como caminho para a promoção da igualdade racial no país,
e o Teatro Experimental do Negro (TEN) que objetivava inserir no teatro
brasileiro o negro como tema, intérprete e criador. Na década de 1950
surge a Associação Cultural do Negro (ACN) que teve como proposta a
construção de uma ideologia para o negro brasileiro. Na década de 1960
e 1970, acontecimentos fora do Brasil como a luta dos negros estaduni-
denses por direitos civis, as lutas de independência dos países africanos
e, internamente, a ditadura militar no Brasil, espalharam a semente da
militância negra (CASTRO et al, 2009, p. 11.631).

Os movimentos dos negros na atualidade vem a somar pelos seus direitos,


que é continuar lutando pelos seus cultos livres sem ameaças ou discriminação,
e também por direito a cursar o ensino superior e participar ativamente nas po-
liticas públicas que os favoreçam em todos os segmentos, seja saúde, educação,
moradia, enfim.
Denota-se nessa caminhada vários filósofos, sociólogos negros que tem
conquistado seu espaço social e que podem debater na mídia a reflexão sobre a
ancestralidade africana no país. No Rio Grande do Sul, um dos grandes nomes é
a Miss Afro Plus Size Brasil, Fabrícia Ferreira, professora, natural de Espumoso/
RS, que tem intensificado suas ações com palestras escolares e formação de
professores no Estado a respeito da importância da cultura afro-brasileira na

127
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

historicidade local, regional e nacional. Fabrícia pretendo neste ano de 2022


criar projetos em parceria com professores sobre a história da cultura afro no
país, além de visitar municipios e criar palestras com essa finalidade. Como Miss
Afro Plus Size Brasil, sua meta é cada vez mais dialogar seja em entrevistas para
a mídia, seja com professores, alunos e comunidade, sobre a valorização do ne-
gro na modernidade e que a descriminação é crime e deve ser denunciada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensino religioso tem tomado muitas vezes proporções erradas nos edu-
candários enquanto disciplina do saber, visto que, o docente não tem uma pre-
paração necessária para atuar neste campo, seja por não ter formação na área
de ensino religioso, ou por muitas vezes tentar pregar uma doutrina religiosa em
sua classe.
Denota-se que muitos docentes da área, não pensam na formação sólida
do estudante, mas sim apenas em passar um texto qualquer e ganhar seu dinhei-
ro no final do mês. Para isso, busca-se profissionais capacitados, e que o setor
pedagógico das escolas deem atenção às atividades desempenhadas por seus
docentes, visando verificar se realmente as temáticas e planos de aula estejam
sendo desenvolvidos da forma correta.
O ensino religioso é muito mais que uma disciplina, busca formar no alu-
no seu caráter de respeito frente às diferentes manifestações religiosas, e levar ao
aluno conhecimento prévio sobre historicidade, espiritualidade e saber frente às
diferentes manifestações culturais religiosas.
A umbanda, religião de matriz africana, tem sido destaque no Rio Grande
do Sul pela devoção em Iemanjá, orixá que tem suas festividades no mesmo dia
que Nossa Senhora dos Navegantes. Denota-se que também é uma religião his-
tórica, que tem suas raízes fixadas nos terreiros e casas, principalmente de Porto
Alegre, e que foi trazida por escravos no período colonial no Brasil.
A fé e devoção é nítida em todos os festejos, sejam eles na Umbanda ou
no Catolicismo, porém os traços da historicidade religiosa sobrevive aos séculos,
passando de geração para geração, e os cultos sendo um portal com a espiritua-
lidade, emanando luz e prosperidade aos seus devotos e fiéis.
Já a disciplina de história necessita fazer esse resgate histórico da cultura
afro-brasileira, tendo em vista a obrigatoriedade através das Leis n°. 10.639/2003
e n°. 11.645/2008, tanta cultura herdada pela cultura negra que muitos alunos
não conhecem, tantos monumentos no próprio Estado do Rio Grande do Sul,
na Bahia ou no Rio de Janeiro que são marcas do legado afrodescendentes que
não são debatidos em aula. É notório a falta de atualização por parte dos docen-
tes e da inclusão por mais que seja lei nos currículos educacionais.
128
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº. 9.394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacio-
nal, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasí-
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nível em:http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/
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129
“OS SONS QUE VÊM DAS RUAS”
PARA AS SALAS DE AULA: EPISTEMOLOGIAS
SOCIAIS NEGRAS EM SOCIOLOGIA NO
ENSINO MÉDIO
Reinaldo José de Oliveira 1
Iuri Nobre dos Santos2

INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objetivo abordar a música e a sociologia, em


especial, a cultura musical como um instrumento teórico metodológico para
o ensino de Sociologia no ensino médio no Recôncavo Baiano. Para melhor
delineamento, a experiência teórica metodológica da música negra e diaspórica
como instrumento de ensino aprendizagem na disciplina de sociologia será in-
terpretada com as narrativas de um egresso do curso de Informática no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, Campus Governador
Mangabeira, posteriormente, o mesmo na condição de discente do curso de
Ciências Sociais da UFRB e das ideias e reflexões de um docente do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, Campus Catu.
A música das Américas, Latino-americana, brasileira, baiana e do
Recôncavo da Bahia, tem como base a história da civilização africana e afro-
-brasileira, ou seja, da diáspora que atravessou o Oceano Atlântico, de forma
forçada na condição de mercadoria, escravizado para edificar a estrutura so-
cioeconômica, política e cultural dos territórios do Novo Mundo. Em particular,
nos municípios da Bahia e do Recôncavo, a musicalidade e o som dos tam-
bores, atabaques, pandeiros e dos instrumentos de percussão são componentes

1 Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem
experiência nas áreas de Sociologia e Antropologia, com ênfase em estudos sobre a Cidade
e o urbano, Globalização, Relações Étnico Raciais, Diversidade, Identidades e Subjetivi-
dades, atuando principalmente nos seguintes temas: cidade, memória, políticas públicas,
saúde, relações étnico raciais e território. Realizou o pós-doutorado (2008-2013) do Pro-
grama Nacional de Pós-Doutorado da CAPES
2 Graduando do Curso Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB). Atualmente dedica suas pesquisas na Ciência Política,
Antropologia, Educação, Envelhecimento e Movimentos Sociais. Integrante dos grupos
de pesquisas: Serviço Social na Educação (GTSSEDU), Núcleo De Pesquisa em Inter-
seccionalidade, Interculturalidade, Gênero e Coletivos Sociais (2021) Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Psicologia e Interdisciplinaridade em Saúde (2022), Sociedade Brasileira
Contemporânea: Cultura, Democracia e Pensamento Social (2022).

130
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

identitários da cultura social da população, que é em sua maioria negra.


É importante destacar que a Bahia é um território negro, sendo um espaço
de maioria negra, a capital do estado e os municípios do Recôncavo, as culturas
locais foram banhadas nos sons, na música e na cultura africana e afro-brasileira.
Segundo Oliveira (2020), nas cidades negras do Brasil e da Bahia, o “som
que vêm das ruas”3 Representa as bases das identidades sociais e das territo-
rialidades, que em mais de três séculos de trabalho escravo edificou as urbes e
o desenvolvimento nacional. Desde o início do escravismo, o canto dos escra-
vizados representava uma esperança de liberdade, luta e resistência. Nos dias
de hoje, esta herança está presente no chão das cidades negras que é o cimento
dos territórios que enfrentam o racismo, o preconceito, a discriminação e as
desigualdades.
No espaço da sala de aula, a música como um instrumento de análise
sociológica será importante para que as relações de ensino e aprendizagem de
docentes e discentes, desenvolvam o pensamento crítico. Aqui, no corpo do tex-
to, buscaremos retratar as narrativas e as experiências discente e docente, por
intermédio das reflexões sociológicas, das epistemologias sociais e da música
negra e diaspórica.
A hierarquia dos objetos legítimos, legitimados ou indignos é uma das
mediações através das quais se impõe a censura específica de um campo
determinado que, no caso de um campo cuja independência está mal afir-
mada com relação às demandas da classe dominante, pode ser ela própria
a máscara de uma censura puramente política (BOURDIEU, 1998, p. 35).

A sociologia no ensino médio, desde 2009/2010, está regularmente inscri-


ta na grade curricular das instituições públicas e privadas. Mesmo que a socio-
logia não tenha a mesma apresentação de tempo e espaço, como as disciplinas
de matemática, química, física, história e geografia, seu papel é central para a
promoção do pensamento crítico e interdisciplinar.
Organizamos nossas reflexões em três momentos: o primeiro, a experiên-
cia teórica metodológica da sociologia e a música negra em sala de aula do en-
sino médio, posteriormente, a passagem para o ensino superior com a iniciação
da graduação Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira; o segundo, as narrativas e refle-
xões sobre o ensino e aprendizagem da docência no ensino médio no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, campus Catu; o terceiro,
nossas considerações, apontando os avanços e contribuições que alcançamos
com a música negra em sala de aula, a produção crítica docente-discente da

3 O som que vêm das ruas” é um título e uma importante produção intelectual de José Ra-
mos Tinhorão (2013) sobre a cultura e a musicalidade brasileira.
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

sociologia no ensino médio.

A MÚSICA NEGRA E DIASPÓRICA DO RECÔNCAVO NO ENSINO


DE SOCIOLOGIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Ao expor o conceito de existências afro diaspóricas trazemos a referên-


cia a subsistência humana encontradas ao longo do Atlântico negro, que são
complexas, abrangentes e entreposto por marcadores sociais, culturais, territo-
riais, políticos, raciais, étnicos, econômicos. Para Paul Gilroy (2001), a ideia de
Atlântico negro é estruturada levando em consideração o espaço e o tempo.
No contexto das conexões sociopolíticas no Brasil, essas proporções fo-
ram consagradamente sucedidas, concebendo uma série de arbitrariedades es-
tabelecidas em uma discrepância sociocultural, o que leva a população negra a
resgatar as características e conceitos de raça na perspectiva social e política, a
fim de possibilitar ações afirmativas e de retratação no contexto científico, so-
cial, político, econômico e cultural.
O conceito de diáspora naturalmente está ligado a uma difusão pressiona-
da, na preponderância das vezes, por motivos políticos, religiosos, econômicos.
Mas também é manuseado para serem manipuladas populações que vivem fora
do seu lugar de origem. É importante ressaltar que para Gilroy (2001), a noção
de uma população que reside fora do seu lugar de origem não se aplica aqui,
sendo que o Atlântico negro, englobando além da África, a Europa, o Caribe e
as Américas, ao longo dos procedimentos coloniais e das suas existências pós-
-coloniais passou a se caracterizar como um novo local de origem.
Sendo assim, é uma educação musical de conexão e inclusão afro, pois re-
quisita a inclusão, o enquadramento de referências de matriz africana que foram
invisibilizadas nos processamentos de ensino de música em âmbitos escolares,
mas diaspórica por se relacionar, dialogar, trocar, permitir-se e reinventar-se ao
se esbarrar num ponto de fronteira com outras referências.
A música, componente existente no cotidiano de Cachoeira foi vigorosa-
mente abraçada pela população como mecanismo de exterioridade e afirmativa
identitária, numa cultura onde a riqueza musical é comemorada durante todo o
ano, sendo introduzida nas mais variadas épocas: o Samba de Roda, a Capoeira,
o Bumba-meu-boi, as fanfarras, o reggae e a Esmola Cantada, por exemplo,
são manifestações que resistem ao tempo e acontecem durante todo o ano, em
diferenciadas festividades. A popular Festa de Nossa Senhora da Ajuda é um
desses momentos, em que músicos das filarmônicas locais se juntam em meio
aos mandús e pessoas fantasiadas para proporcionar um carnaval na cidade.
Estas referências culturais foram apreendidas na condição de estudante do en-
sino médio e, posteriormente, com a finalização da educação básica, ocorreu a
132
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

aprovação no curso de Ciências Sociais da UFRB.


A afrocentricidade é um pensamento na compreensão que institui o negro
como sujeito e intermediário da sua própria história, epistemologias e futuro. É
essencial que em um currículo vivo, conectado com o contexto, comunidades e
alunos sejam capazes de analisar acerca de quem somos. É inaceitável que de-
fronte de tantas culturas, raças e etnias o currículo e as práticas educativas sejam
fundamentados em conceitos eurocêntricos que coagem os alunos em vários
aspectos, principalmente o estético, racional e científico.
O pensamento de bell hooks (2013), que dialoga com Paulo Freire (1998),
nos faz perceber que é necessária uma educação como prática da liberdade, uma
educação que promova a emancipação do sujeito e da sua autonomia. Fomos
ensinados a obedecer, fomos ensinados que o belo é o branco e o cabelo liso, que
o berço da civilização é a Grécia e consequentemente a Europa.
É necessário muito empenho para que se desenvolva um ensino afrocen-
trado nas escolas. Primeiramente é preciso descolonizar o pensamento, rejeitar
a imposição de padrões eurocêntricos e valorizar as histórias e culturas africa-
na, afro-brasileira e indígena, por tantos anos subjugadas e ignoradas. Segundo
Nogueira (2010) o ensino afrocentrado é “O que se traduz no campo da educa-
ção através da ênfase no ponto de vista que situa os povos africanos e a popula-
ção afrodescendente como agentes e não coadjuvantes”.
Trata-se de reeducar o pensamento, de educar as crianças, jovens e ado-
lescentes para que aos poucos, de maneira gradativa eles se empoderem, a se
reconhecerem e se orgulhar de sua bagagem ancestral, das suas características
físicas, da sua descendência africana e da sua negritude. A pedagogia da di-
ferença, da população negra, LGBTQIA+, mulheres e as demandas sociais
que não recebem o mérito da escola e da educação, gradativamente, as ações
e pensamentos vêm refletindo na organização escolar: a construção do currí-
culo pautado em concepções da diversidade e equidade; do projeto político
pedagógico que proporcione a construção social e coletiva de uma educação
interdisciplinar; o desenvolvimento do pensamento crítico em torno dos sa-
beres sociais, populares, negros e indígenas; a introdução de instrumentos
técnicos científicos da rede digital, como o facebook, instagram, pod casts, tik tok,
youtube e audiovisuais.
As Leis n°. 10.639/2003 e n°. 11.645/2008, tornam obrigatório o ensino
da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica. Em
Cachoeira e nas cidades negras da Bahia e do Brasil, o racismo, o preconceito,
a discriminação e as desigualdades estão presentes no espaço escolar. Estas leis,
gradativamente, têm promovido as transformações nos territórios das urbes e
das escolas, sobretudo do ambiente escolar com a desconstrução dos valores

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

da branquitude. A cultura e a musicalidade negra nas cidades brasileiras e seu


manuseio sociológico no espaço da escola são meios importantes para que a
legislação alcance seus objetivos, dentre eles, promover a educação para a diver-
sidade e a equidade.
A Lei n°. 10.639/2003, no próximo ano completará vinte anos, impor-
tantes avanços foram conquistados na educação e na sociedade com a obriga-
toriedade de ações afirmativas no âmbito da educação. Esta lei, lentamente,
tem proporcionado que a universidade e a escola, descontextualiza o mérito do
conhecimento baseado em valores que ressaltam o masculino, o branco euro-
cêntrico e a educação capitalista que mantém os trabalhadores sob domínio, de
alienação e do consumo desenfreado (VIANA, 2019).
A legislação que vêm promovendo o debate em torno da diversidade étni-
co racial, dos direitos e da equidade, ainda não alcançou todas as escolas em sua
plenitude com qualidade e de forma certeira, por isso visa promover no espaço
da sala de aula a descolonização, a educação antirracista e o pensamento crítico.
Acreditamos que esse é um ideal a ser construído e que está em vias de se efeti-
var, haja vista a introdução da música e da cultura afro-brasileira e indígena na
educação básica para a promoção de novas epistemologias sociais em torno da
democracia e da cidadania.
Em Cachoeira, cidade negra do Recôncavo da Bahia, a musicalidade e
a cultura afro-brasileira estão nas ruas, nas praças, nas igrejas católicas como a
Irmandade da Boa Morte, nos terreiros de candomblé, nas filarmônicas e fan-
farras, no samba de roda e no fazer cultural dos jovens, crianças e adolescentes
que estão na escola.
Temos que levar em consideração também que estamos nos referindo a
uma cidade que, em expressões populacionais, é uma das mais negras do Brasil.
É fundamental retratar ainda que durante séculos foi sujeitada ao sistema domi-
nante das elites brasileiras, a cultura negra, em Cachoeira, se encobriu, reestru-
tura e reorganizou de forma com intuito de levar a sucessivas gerações suas es-
truturas culturais dinâmicas. Salientando de forma clara através do candomblé,
religião muito importante na região.
É neste contexto que no início dos anos 70, Cachoeira vive uma condição
de evolução intelectual que influenciou os jovens a procurarem uma reflexão
crítica sobre si mesmos e sobre as suas identidades. A Casa Paulo Dias Adorno,
sob a direção do antropólogo Roberto Pinho e da Associação de Estudantes
pré-universitários de Cachoeira, apresentaram-se nos espaços onde a juventude
local tinha acesso a informes, leituras e debates sobre política e diversas lingua-
gens artísticas
A cidade de Cachoeira, de incomparável beleza arquitetônica e

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

importância historiográfica para o país, está situada a 110km de Salvador. De


acordo com o censo demográfico 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), sua população chega a 32.035 habitantes numa área territo-
rial de 395 km² (IBGE, 2010). Em Cachoeira, 87% da população é negra (pretos
e pardos), segundo dados do IBGE, 2010.
A cidade negra e musical cujo ethos oportunizou o aparecimento de diver-
sos artistas, ao ponto de chamar a atenção dos tropicalistas, entre eles, Gilberto
Gil e Caetano Veloso, da vizinha cidade de Santo Amaro. O reggae recebeu em
Cachoeira um cenário intensamente oportuno para se instituir. Além da acei-
tação étnico-racial, o ritmo contou com outras razões para emergir. Nos dias
atuais, seus músicos mais renomados são Edson Gomes, Sine Calmon e Nengo
Vieira.
No começo da década de oitenta, quando nasce o grupo Os Remanescentes,
os fundadores constituem moradia em Cachoeira. Assim, Nengo Vieira, Valéria
Vieira, Marco Oliveira, Sine Calmon e Tim Tim Gomes (in memorian), come-
çam a trabalhar juntos até metade da década dos anos 90. Nessa época estabele-
cem explanações por quase todo o território do Recôncavo Baiano.
Com a finalização das atividades musicais do Grupo Remanescentes,
Nengo Vieira, Marco Oliveira, Sine Calmon e TinTim Gomes seguem carrei-
ra solo. Logo em consequência, |Nengo formou a Banda Tribo D’Abraão e
TimTim (in memorian) Banda Manassés. Marco Oliveira chegou a formar com
Sine Calmon o grupo Sojah, mas um tempo depois encerram e seguiram em
carreira solo. Marco fundou a Banda Dystorção e Sine a Morrão Fumegante.
Em 1998, a sua música Nyabinghi Blues foi uma das músicas mais executadas
durante o verão baiano.
Acima, a breve contextualização local da música, do reggae e da cultura
negra em Cachoeira e no Recôncavo, inscreve no território os reflexos que estas
expressões alcançam na escola, no passado e na etapa atual, a permanência de
um histórico de lutas, resistências e conquistas mediadas com as forças subjeti-
vas que sustentam a ideia de território (OLIVEIRA, 2013).

A OBSERVAÇÃO DOCENTE: O DIÁLOGO ENTRE MÚSICA E


SOCIOLOGIA NO EXERCÍCIO DOCENTE NA SALA DE AULA

No ano de 2019, exercemos a docência no ensino de sociologia do Instituto


Federal De Educação, Ciência E Tecnologia Baiano campus Catu. Lecionamos
para as turmas dos primeiros, segundos e terceiros anos dos cursos de ensino
médio e técnico, o conteúdo da sociologia clássica e contemporânea.
Para compor o aprendizado dos alunos, fizemos uso de instrumentos téc-
nicos da aula expositiva, do filme enquanto audiovisual, das redes sociais e da
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

música, sobretudo das músicas trazidas pelos alunos para a sala de aula.
O docente formado em Ciências Sociais, no espaço da escola, precisa ter a
dimensão que o ambiente escolar é múltiplo, diverso, rico e de constantes trans-
formações sociais porque o universo escolar é um reflexo dos acontecimentos
que se passam na sociedade, na cidade, no contexto do mercado de trabalho, no
bairro e no cotidiano social dos alunos e seus familiares.
O professor, para o desenvolvimento de sua função, precisa estar em cons-
tante produção: além de professor, é necessário proferir a função de pesquisa-
dor no dia a dia da sala de aula, problematizar os principais fatos, fenômenos
e quadros sociais dos contextos local, regional, nacional e global; à frente da
sala de aula, a docência precisa desenvolver o pensamento crítico dos principais
autores, conceitos, temas e ideias; esse é o papel da disciplina no espaço docen-
te-discente, desenvolver a desnaturalização da sociedade, como, por exemplo,
problematizar e discernir a violência urbana, as desigualdades de classe social,
gênero, etnia raça, opção sexual e afetiva, o desemprego e os temas que estão
inscritos na vida social são decorrentes das relações sociais das formas simples
e complexas; o manuseio de instrumentos teórico metodológicos para fins de
melhor andamento da disciplina em sala de aula, para isso é essencial o contato
e o manuseio de técnicas sociais, culturais e políticas que protagonizem o aluno
em sala de aula; dentre os instrumentos técnicos, as redes sociais, o facebook, o
instagram, o youtube e os meios digitais, são materiais de apoio para a docência
desenvolver o pensamento crítico e tecer as principais questões da sociologia
clássica e contemporânea (SILVA, 2017; ARROYO, 2014).
Miguel Arroyo (2014), nos chama atenção que na educação básica, as
transformações e a pesquisa são essenciais no exercício docente. Para o autor,
precisamos pensar que estamos lidando com sujeitos sociais que são diversos,
não estamos lidando simplesmente com a juventude, estamos em contato com
as juventudes, no plural e em uma dimensão da diversidade de comportamentos
sociais e culturais. Dentre os diferentes segmentos, a sociologia precisa estar
atenta para os jovens que vivem a violência simbólica e física e as desigualdades
em suas múltiplas faces; não é o jovem que detém o mérito socioeconômico, po-
lítico e cultural, é a juventude que representa a histórica desigualdade de classe
social, gênero, etnia e raça.
Nas escolas públicas da Bahia, sobretudo na capital, região metropolita-
na, no Recôncavo, na região do Sisal e demais territórios, em sua maioria é o
jovem negro que carrega o fardo da violência simbólica e física, as desigualdades
e o racismo estrutural. A docência e a instituição escolar não podem se fechar
para esses estudantes e privilegiar o mérito.
De acordo Bourdieu (1998) As mudanças morfológicas do sistema de

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

ensino, em todo o mundo, ocasionaram a substituição da eliminação brutal pela


eliminação branda, diluída no tempo e adiada para níveis superiores de escola-
ridade. Esse mecanismo de exclusão, chamada no livro citado de “exclusão do
interior”, é vivenciada pelos indivíduos que a sofrem como “traição”, “desapon-
tamento”, perda das expectativas mais caras desencadeadas pelas promessas de
escolarização para todos.
Portanto, o que Pierre Bourdieu (2002), conceitualmente desenvolveu em
sociologia da educação nos proporciona desenvolver ações e reflexões nas prá-
ticas da música e o ofício sociológico; o capital social, o habitus e a rede social
são importantes para a problematização da produção de conhecimento (formal
e informal).
No IFBAIANO, campus Catu, o ensino compreende as disciplinas do mé-
dio e do técnico. É um arcabouço de conhecimento técnico e social que alunos e
professores lidam no cotidiano que, em geral, necessitam de planejamento, troca
de saberes, críticas, de constantes diálogos sobre o currículo e o andamento das
atividades.
Para o transcorrer das atividades, das avaliações e do ensino aprendiza-
gem, reiteramos, é central pensar nos saberes e práticas dos alunos que vivem as
desigualdades e as violências. O conflito existe nesse ambiente, e é satisfatório
para compor a dialética, a transformação das relações docente e discente.
No caso particular da disciplina de sociologia no ensino médio, mediante
as percepções constituídas, o diálogo com professores, coordenadores e alunos,
nossas aulas teóricas e práticas foram realizadas com o uso e manuseio de ins-
trumentos técnicos e sociais. Nas aulas que promovemos para conhecer as ideias
dos autores clássicos e contemporâneos, solicitamos que os alunos se organi-
zassem em grupos, posteriormente, o tema desigualdades, raça, etnia e gênero,
foram definidos para serem tratados nas aulas posteriores. Informamos que os
grupos deveriam trazer para a sala de aula uma música que retratasse o atraves-
samento social do cotidiano deles.
Nas aulas com os primeiros, segundos e terceiros anos, obtivemos uma
variedade de gostos e estilos musicais; o samba, o reggae, o rap, o axé music, o
pop, o forró, a mpb, o jazz, blues, rock, enfim, as expressões culturais e sociais
do local, regional, nacional e global. Desde a primeira apresentação até o último
grupo, intercalamos com o diálogo, buscando compreender o que a letra e o
texto trabalhado em sala de aula, traziam de diálogo, crítica e entendimento do
tema proposto. Sobressaiu, na maioria dos grupos, a música negra e da diáspora,
sobretudo do Recôncavo da Bahia, banhada no dendê, nos terreiros de matriz
africana e afro-brasileira. As atividades foram desenvolvidas em quatro aulas
com as três séries do ensino médio. As expressões musicais nos proporcionaram

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

conhecer melhor o pensar, o agir e o ser dos jovens negros da região de Catu,
Alagoinhas e cidades vizinhas.
Tivemos a oportunidade de conhecer músicas, cantores e cantoras de
grande riqueza em capital social que desconhecemos. Além dessa característica
destacada, avaliamos que a escola não tem a dimensão do capital social que os
estudantes e jovens negros trazem para a instituição escolar, que é incipiente-
mente desenvolvido em sala de aula.
Conforme Oliveira(2020) Nos territórios do Brasil e da diáspora africana,
a política antinegro não impediu que parte da civilização humana se inscrevesse
na cultura e na história das cidades. Nascidades do Recôncavo, Salvador, São
Paulo, Rio de Janeiro, o universo do samba, dofunk, do rap e da música negra
está nas ruas, praças, avenidas, no dia a dia dosterritórios negros enfrentando o
racismo e a segregação. Nas cidades negras e dadiáspora, os cantos negros edi-
ficaram quase tudo durante os 388 anos de escravismo e no decorrer do século
XX.
Dentre os inúmeros gostos e estilos musicais, uma música nos chamou a
atenção, da qualidade e do nível do capital social que a letra atravessa no quadro
social e cultural.
Oh, yeah
Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara, eu me sinto vivo
A partir de agora, considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues
Eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto, era do demônio
E depois virou branco e foi aceito
Eu vou chamar de Blues
É isso, entenda, Jesus é
blues
Falei mesmo
Eu amo o céu com a cor mais quente
Eu tenho a cor do meu povo, a cor da minha gente
Jovem Basquiat, meu mundo é diferente

Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente


eu choro sempre que eu lembro da gente
lágrimas são só gotas, o corpo é enchente
exagerado, eu tenho pressa do urgente
eu não aceito sua prisão, minha loucura me entende
baby, nem todo poeta é sensível
eu sou o maior inimigo do impossível

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

minha paixão é cativeiro, eu me cativo


o mundo é lento ou eu que sou hiperativo?
me escuta, quem ‘cê acha que é ladrão
e puta?
vai me dizer que isso não...
não te lembra cristo?
me escuta, quem ‘cê acha que é ladrão e prostituta?
vai me dizer que isso não te lembra cristo?
vai me dizer que isso não te lembra cristo?
eles querem um preto com arma pra cima
num clipe na favela, gritando cocaína
querem que nossa pele seja a pele do crime
que pantera negra só seja um filme
eu sou a porra do mississipi em chama
eles têm medo pra caralho de um próximo obama
racista, filha da puta, aqui ninguém te ama
jerusalém que se foda, eu tô à procura de wakanda
ha! (BACO EXU DO BLUES, 2018).

Acreditamos que a música acima, de Baco Exu do Blues, era de conheci-


mento geral dos estudantes dos três anos do ensino médio, assim como a maio-
ria das músicas que foram apresentadas. As apresentações foram todas media-
das pelos estudantes que utilizaram os instrumentos técnicos, como caixa de
som, celular e computador para expor os “Sons que vêm das ruas” para as salas
de aula.
“Os sons que vêm das ruas” para as salas de aula, conforme destacamos
acima, é um instrumento social rico em informação, conhecimento, ideias, re-
flexões e epistemologias sociais, de material sociológico e interdisciplinar que
os docentes, em geral, devem trabalhar em sala de aula. Em particular, nós,
enquanto docentes, esperávamos que as músicas e os diálogos com os discentes
fossem satisfatórios. Nos enganamos, foi muito mais do que satisfatório, foi de
uma riqueza de troca de saberes, de diálogos e de observação crítica que ficou
perceptível nos olhos, nos sorrisos e nos semblantes que demonstravam reflexões
e a busca pela desnaturalização da vida social.
A música negra e os seus variados estilos são complexos e de uma nature-
za da diáspora que está presente nas Américas. A presença nas cidades negras é
marcante de características que estão inscritas nas relações entre música e socio-
logia; a musicalidade, a saúde mental, o arcabouço cultural, a memória ances-
tral e as identidades negras, em geral, são conexões que diferenciam e ligam os
diferentes territórios negros no Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos,
no Caribe e no mundo.
Diáspora é uma palavra de forte cunho histórico, antropológico, social,
geográfico, político, filosófico, do universo da complexidade, inscrita na história
da civilização humana. No caso específico da diáspora africana, ela se processou
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(Organizadores)

na globalização mercantil dos séculos XVI até o final do XIX, tendo à frente a
Europa com a exploração física e social da África para compor a mão de obra
escrava no Novo Mundo para fins de abastecer e desenvolver o continente euro-
peu. Posteriormente, esta diáspora foi a base do desenvolvimento do capitalismo
na Inglaterra e no mundo. No Brasil, durante mais de três séculos, a mão de obra
escravizada abasteceu com todo tipo de mercadoria o mercantilismo europeu e
o início do capitalismo.
Segundo Stuart Hall (2003), a diáspora africana no contexto moderno
está ligada ao passado e esse passado pode vir a ser o amanhã. Para o autor,
essa diáspora inscrita nos territórios do mundo, no Brasil, na Bahia e na região
do Recôncavo, compreende relações de poder construídas pelas diferenças e as
identidades culturais. No caso da Bahia, as identidades se constituem de forma
material e subjetiva com as músicas, danças, alimentos e comportamentos da
população que vive e cultua o candomblé que se incorporou no local e nacional.
O músico, compositor, griô, pesquisador e Doutor Honoris Causa conde-
corado pela UFRB, Mateus Aleluia, registra as inscrições do candomblé em suas
músicas. Segundo ele, a Bahia e o Brasil foram banhados no dendê e na cultura
africana e afro-brasileira.
Em O Atlântico Negro, de Paul Gilroy, a questão da música representa, por
exemplo:
Examinar o lugar da música no mundo Atlântico negro significa observar
a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso
simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as rela-
ções sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única,
na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental.
Desejo propor que o compartilhamento das formas culturais negras pós-
-escravidão seja abordado por meio de questões relacionadas que conver-
gem na análise da música negra e das relações sociais que a sustentam. Um
procedimento particularmente valioso para isso é fornecido pelos padrões
distintivos do uso da língua, que caracterizam as populações contrastantes
da diáspora africana moderna e ocidental (GILROY, 2001, p. 161).

A música negra e diaspórica acima, de Baco Exu do Blues, foi apresenta-


da em uma das salas do primeiro ano; com a letra em mãos, fomos conversando,
parágrafo por parágrafo e relembrando os autores clássicos e contemporâneos.
Dentre eles, os autores que tocam no tema desigualdades de classe social, gêne-
ro, etnia e raça.
Citamos a reflexão do professor Kabengele Munanga (2003), sobre a ideia
de raça e racismo na sociedade brasileira. A ideia de raça é uma construção so-
cial, que no decorrer do século passado foi incorporada nas ações e reflexões dos
movimentos sociais negros no enfrentamento do racismo. Segundo Munanga
(2003), raça comporta características identitárias, sociais, étnicas e está em
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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

constante metamorfose social. O racismo na sociedade brasileira atua na produ-


ção de privilégios e méritos para a população branca de todas os estratos sociais,
logo, é a população negra que recebe a maior carga dos efeitos da segregação
racial e das desigualdades (OLIVEIRA, 2020; 2016).
No espaço da educação e da escola, o racismo está presente na produção
do conhecimento de base eurocêntrica, branca, masculina e que beneficia o mé-
rito dos estratos sociais de maior capital social, econômico, cultural, científico
e tecnológico.
Seguindo o diálogo com os alunos, a música Bluesman, retrata a cultu-
ra africana, afro-brasileira e diaspórica: nas Américas, na América Latina, no
Brasil, na Bahia e nas periferias, predomina a cultura que perfez as identidades
nacionais em torno do jazz, blues, rock, rumba, salsa, rap, funk, samba, axé
music, a música dos negros cantada nas senzalas, nos terreiros de candomblé e
umbanda, nas favelas, nos morros, periferias e quebradas da diáspora africana.
A importância desta perspectiva fica ainda mais perceptível em face de
que o currículo, como afirma Arroyo (2013), é um território em disputa, pois é
o espaço central das mais infraestruturas da função da escola.
Na época, perguntamos aos alunos quem era Baco Exu do Blues, recebe-
mos a informação que o sujeito da música é um cantor do rap. Consultando os
meios digitais, obtivemos mais informações: o nome artístico do cantor, Baco é
o deus grego do vinho, Exu é a divindade que abre os caminhos na religião can-
domblé e blues é o estilo musical protagonizado por negros dos Estados Unidos.
Baco Exu do Blues é um jovem, cantor, escritor e compositor baiano, natural de
Salvador, cidade negra, que tem a centralidade das lutas e conquistas empreen-
didas pelos movimentos sociais negros, o movimento de mulheres negras, de
jovens e da cultura hip-hop que atuam no combate ao racismo e em potenciali-
dades para inscrever o direito à cidade para a igualdade e a equidade, principal-
mente para a população negra.
“Os sons que vêm das ruas”, trazido por Baco Exu do Blues, Emicida,
Racionais Mcs, Linniker, Isa, Negra Lee, dos jovens negros e negras para as
escolas, bailes, baladas, festas e comemorações da juventude, foram banhados
na música dos terreiros de candomblé, da diversidade étnico racial das culturas
brasileiras, latina, do caribe e norte-americana, como o rap, o jazz e o blues.
Como ressalta Tinhorão (2013) no livro Os sons que vêm da rua, “o pre-
gão sinaliza uma tendência conclusiva para transformar-se em música, uma vez
que o divulgador, ao ir descobrindo aos poucos as diversas possibilidades da
inflexão da sua voz, acaba sistematicamente cantando em bom sentido os nomes
dos artigos que tem para vender ou que deseja comprar.
A globalização contemporânea, aproxima as culturas negras do mundo

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

no território global e local, com destaque para as potencialidades que se de-


senvolvem no pedaço, na quebrada e nas escolas que os estudantes estudam.
Por intermédio da música, da dança, das artes e da cultura negra, sim, é pos-
sível superar a violência simbólica e o capital social que privilegia o mérito e a
branquitude.
O que está em jogo ainda não é a realização de investigações sistemáticas,
cuidadosas e demoradas sobre a realidade educacional brasileira. Mas, es-
tabelecer uma ligação definida entre o que fazemos e o que deveríamos
fazer [...] [é preciso] ter a coragem de improvisar – de extrair de suas ex-
periências diretas, do conhecimento do senso comum [...] reflexões que
permitam alargar a nossa compreensão da realidade e do sentido das “exi-
gências da situação” (FERNANDES, 1966, p. 15-16).

As atividades desenvolvidas em sala de aula, tendo como recurso teórico


metodológico da música em diálogo com a sociologia, nos proporcionou impor-
tantes avanços no ofício sociológico do ensino médio. Conforme registramos
acima, a música como instrumento teórico metodológico para fins de aprendi-
zagem e construção de conhecimento deve ser abordada pelas áreas de história,
geografia, língua portuguesa, filosofia, sociologia, línguas estrangeiras (inglês,
francês, espanhol) e nas ciências exatas e biológicas. Particularmente, na socio-
logia, a experiência confirmou que a escola não pode estar privada do capital
social, cultural e político dos estudantes e do território local. A cultura e o ter-
ritório são importantes aliados que a escola tem para inscrever uma pedagogia
diferente do que temos hoje, de práticas e saberes negros, populares, indígenas e
sociais que lutam por uma educação com equidade.
Silva (2017), analisaram a música como meio teórico metodológico no
ensino de geografia na região do Sisal, estado da Bahia. Segundo os autores, a
música protagonizou no ensino de geografia a promoção de cenários democrá-
ticos na educação escolar: a didática para a produção e troca de saberes e práti-
cas de docentes e discentes; a música possibilitou desenvolver ideias, conceitos
e reflexões acerca dos temas que são trabalhados no ensino de geografia, por
exemplo, as concepções de espaço, paisagem, território, territorialidade e lugar;
a musicalidade proporcionou conhecer a urbanização brasileira que os alunos
vivenciam na realidade e no espaço escolar, como a segregação racial e urbana;
a produção musical, local, regional, nacional e global, em especial, a música
negra e da diáspora, viabilizou a superação teórica metodológica, a produção
e busca de saberes e práticas interdisciplinares e a persistência do pensamento
crítico discente e docente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

142
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

A cultura e a música que são cultuadas na Bahia, na capital Salvador, na


região metropolitana, na região do Sisal e no Recôncavo, conforme destacamos
no corpo do texto, é o capital social de base afro-brasileiro que está no território
e que os alunos levam para a sala de aula e nos ambientes da escola.
“Os sons que vêm das ruas” para as salas de aula, devem ser levados para
todas as escolas da educação básica. No ensino médio, conforme acima relata-
do, a música é um instrumento teórico metodológico que proporciona o diálogo
com a sociologia clássica e contemporânea.
No diálogo da sociologia contemporânea, identificamos que a musicali-
dade negra tem alcançado o papel do enfrentamento do racismo, o fortalecimen-
to das identidades dos jovens negros que vivem a violência física e simbólica nos
espaços sociais.
Portanto, a sociologia deve pensar o ofício sociológico com o protagonis-
mo na sala de aula da educação básica e sua intervenção social, pensando na
força que a juventude exerce na cultura e na musicalidade, o pensamento dos
clássicos e contemporâneos e as novas práticas teóricas metodológicas mediadas
com as redes digitais e on line que precisam ser direcionadas para a superação
das dificuldades, a formação de professores e o desenvolvimento do pensamento
crítico.

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nal, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasí-
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20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Casa Civil, 2008. Disponível em:
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

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144
A LEI 10.639/03 NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
UMA PROPOSTA LITERÁRIA PARA AS
AULAS DE INGLÊS
Ewerton Batista-Duarte1

INTRODUÇÃO

Os livros didáticos de língua inglesa disponibilizados na educação bási-


ca brasileira ainda privilegiam a literatura canônica do colonizador e das potên-
cias imperialistas, de modo que os estudantes e professores acabam por serem
expostos, quase que unicamente, a textos literários de autores estadunidenses
e britânicos (COSTA, 2017; BATISTA-DUARTE; NAVAS, 2022). Tal consta-
tação se une a outros estudos interdisciplinares, evidenciando, assim, o caráter
eurocêntrico dos currículos e materiais didáticos inseridos na educação básica
do Brasil.
Sabemos que o livro e outros materiais didáticos servem de apoio ao
trabalho docente. Entretanto, ao professor é garantida a liberdade para fazer
diferentes escolhas no âmbito do processo de ensino-aprendizagem. Marcos le-
gais, como a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº. 9.394/1996, asseguram o
pluralismo de ideais e a liberdade de aprender e ensinar. Sendo assim, o docente
pode e deve agir criticamente diante das lacunas presentes nos diversos materiais
educacionais, com o intuito de visibilizar as temáticas à margem, desterritoriali-
zando-as. Nas aulas de Língua Inglesa, por exemplo, esse deslocamento ocorre
quando se acolhem as múltiplas manifestações culturais e variantes do idioma
difundidas pelo mundo todo.
Ao articular esse contexto às propostas da Lei nº. 10.639/03, que preconi-
za a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
na educação básica, o objetivo desta pesquisa é aproximar os estudantes e pro-
fessores de inglês da cultura/literatura de Gana. Ancorados na sequência didáti-
ca básica para o letramento literário, desenvolvida por Cosson (2006), propomos
estratégias para o trabalho com o conto ganense Kweku Anansi and his New Wife
[Kweku Anansi e sua nova esposa], da autora Farida Salifu.

1 Doutorando, com bolsa CAPES, em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, em parceria com a University of Lagos, na Nigéria. Mestrado
em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté. Pesquisador do Programa de Es-
tudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP (PEPG-LCL). E-mail:
ewertonbatistaduarte@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6355-6493

145
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Faz-se necessário conceber a literatura como um gesto político, para que


se possa fissurar as estruturas coloniais que conservam o racismo na sociedade
contemporânea. E nós, professores de inglês da educação básica, como pode-
mos contribuir para a efetividade da Lei 10.639/03 em sala de aula? Tais ações
antirracistas nos espaços escolares são de responsabilidade apenas dos docentes
de cada área do conhecimento? Acreditamos na urgência de levar para a sala de
aula textos literários na(s) voz(es) dos(as) próprios(as) autores(as) africanos(as)
e afro-brasileiros(as), pois, além de terem sido silenciados(as) por tantos séculos,
são, igualmente, os(as) escolhidos(as) a morrer por causa da necropolítica2, fo-
mentada e intensificada durante o governo bolsonarista (2019-2022) no Brasil.
Espera-se que a proposta literária responda às perguntas levantadas ante-
riormente, contribuindo para a valorização das literaturas africanas anglófonas
na educação básica, mais especificamente neste estudo, da literatura ganense.

A LEI Nº. 10.639/03 DEVE SER ATENDIDA, EXCLUSIVAMENTE,


PELOS DOCENTES DE CADA COMPONENTE CURRICULAR?
Um dos marcos no combate ao racismo na educação básica brasileira foi
a publicação da obra Superando o racismo na escola, do antropólogo Kabengele
Munanga. Em seu livro, publicado em 2005 – dois anos após a promulgação
da Lei nº. 10.639 –, Munanga (2005) reúne vários artigos que versam sobre a
necessidade de debater as relações raciais no ambiente escolar, com o objetivo
de quebrar paradigmas e promover a inclusão. No que tange ao conhecimento e
à conscientização das questões raciais na educação, o autor enfatiza a importân-
cia da capacitação de professores, gestores escolares, como também de políticos,
profissionais ligados a instituições culturais e toda a sociedade civil.
Anos mais tarde, em 2013, o Ministério da Educação encaminhou às es-
colas públicas a obra Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula, organizada
por Renata Felinto, para expandir os saberes ancestrais daqueles que ocupam
o chão da escola. Felinto (2012) oferece subsídios teórico-metodológicos que
podem ser implementados por professores, coordenadores, diretores, ativistas e
intelectuais. Nota-se, portanto, que os esforços para a promoção da História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana devem ser colocados em prática não apenas

2 No ensaio Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte (2018), o filó-
sofo camaronês Achille Mbembe – simpatizante das ideias de Foucault, Agamben e de
outros pensadores – conceitua o termo necropolítica como as formas contemporâneas de
subjugação da vida ao poder da morte. Tais reflexões nos ajudam a compreender o po-
der político que determina quem deve viver e morrer (e como morrer). As ações nefastas
executadas contra grupos minoritários pelo governo de Jair Bolsonaro enquadram-se na
noção de necropolítica, principalmente pela instalação de grave crise sanitária decorrente
das atitudes negacionistas e criminosas do próprio presidente da República.
146
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
A������, C��������� � D�������

pelo docente em sala de aula, mas também pelos coordenadores e diretores


escolares. Por mais que os professores executem atividades específicas para se
trabalhar as temáticas exigidas pelo Decreto, cabe ao coordenador pedagógico
acompanhar e orquestrar as propostas do componente curricular específico à
integração entre as áreas do conhecimento. Dessa forma, a escola se tornará um
espaço rizomático para a concretização real – do micro ao macro – de ações
antirracistas diversas.
O motivo pelo qual tendemos a achar que o professor, no terreno educa-
cional, é o principal responsável pela cura/não cura de todas as mazelas sociais
pode ser explicado se recorrermos ao esquema abaixo:

Figura 1 - Atividade do professor em aula

Fonte: Machado (2009)

Percebe-se que o professor ocupa uma posição primária e mais visível,


tendo de interagir continuamente com os artefatos, alunos, colegas professores,
pais, direção, entre outros. O sujeito professor possui lócus privilegiado – tanto
positivo quanto negativamente – no imaginário social devido a sua grande expo-
sição na linha de frente do trabalho educacional. Para elucidar o pensamento:
Podemos observar, na figura, que o professor se encontra em constante
interação com os outros polos: objeto, artefatos e outrem. Além da rela-
ção direta estabelecida com esses actantes e artefatos, é crucial com-
preender que o docente também é influenciado e desestabilizado por
outras esferas, cujas faces mantêm-se veladas à comunidade escolar. Os
supervisores/dirigentes de ensino, secretários de Educação, governos mu-
nicipais, estaduais e federais, enfim, o sistema educacional como um todo,
compõem camadas não visíveis aos alunos e seus pais/responsáveis. Se
estão ausentes para os sujeitos que ocupam o chão da escola, essas esferas
acabam, muitas vezes, obtendo álibi no que tange às questões deficitárias
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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

na educação básica brasileira (BATISTA-DUARTE, 2022, p. 22).

Nesse sentido, é crucial salientar o papel imprescindível da equipe gestora


escolar no desenvolvimento de atividades plurais para uma educação étnico-ra-
cial, muitas vezes, infelizmente, ainda invisibilizadas. Responsáveis por direcio-
nar as ações da escola, tendo como base a formação continuada dos professores,
os coordenadores pedagógicos têm a incumbência de buscar alternativas que
contemplem as novas exigências educacionais (OLIVEIRA, 2009). Caso os do-
centes apresentem uma formação inicial deficitária para colocar em prática os
preceitos da Lei nº. 10.639/03, uma possível solução, conforme discutida por
Nóvoa (2002) em outro contexto, mas que nos parece plausível aqui, é a parceria
das escolas com instituições de ensino superior, contribuindo, assim, para uma
cultura de formação continuada.
Ademais, os professores não são os únicos que precisam estar constan-
temente em desenvolvimento profissional. Para Libâneo (2004), uma das atri-
buições do diretor escolar é buscar aprimoramento de forma contínua, a fim
de incorporar os novos conhecimentos e as novas demandas em sua prática
profissional. É coerente o pensamento de que, para supervisionar e avaliar os
projetos escolares desenvolvidos pelos docentes, faz-se necessário que o gestor
conheça os objetivos, as justificativas e desdobramentos de tal ação pedagógica,
principalmente quando se tratar de um conjunto jurídico na esfera educacional.
Além de verificar se as propostas pedagógicas de cada componente curricular
abarcam os ditames da Lei 10.639/03, os gestores precisam igualmente garantir
– conforme determina a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018) – a
superação da centralidade de cada disciplina, lançando mão de projetos inter e
transdisciplinares.

A PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA

A partir do interesse de se trabalhar com uma produção literária de Gana,


selecionamos o conto Kweku Anansi and his New Wife [Kweku Anansi e sua nova
esposa], da autora ganense Farida Salifu. Como método, a proposta literária está
embasada na sequência didática básica, conforme desenvolvida por Cosson
(2006), com o objetivo de possibilitar o trabalho com a leitura literária no campo
educacional.
A sequência de Cosson está dividida em quatro etapas: motivação, intro-
dução, leitura e interpretação. De acordo com o supracitado autor, o primei-
ro estágio (motivação) refere-se a uma atividade de preparação, na qual o alu-
no é introduzido ao universo da obra a ser lida; no segundo (introdução), são
apresentados o autor e a obra aos leitores, para que criem expectativas sobre

148
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

a história; no terceiro (leitura), os alunos entram, de fato, em contato com as


palavras do escritor, sendo acompanhados durante o processo de leitura; e, por
último, no quarto estágio (interpretação), é o momento em que os leitores es-
tabelecem diálogo entre o texto e o contexto, construindo o sentido do texto a
partir da interação com o autor, o leitor e a comunidade.
Para o desenvolvimento da proposta, o professor pode conduzi-la da for-
ma que achar mais viável, levando-se em consideração o perfil da turma, a idade
dos estudantes, os materiais e recursos disponíveis, entre outros aspectos ine-
rentes à realidade de cada instituição de ensino. Ao trabalhar com a sequência
didática em questão, o quadro a seguir auxiliará o docente na hora de elaborar
o planejamento/plano de ensino, com as possíveis habilidades a serem mobi-
lizadas, além de seus respectivos códigos pertencentes a cada ano do Ensino
Fundamental II.

Quadro 1 - Habilidades de Língua Inglesa para o Ensino Fundamental II presentes na BNCC

Código Habilidade
(EF06LI07) Formular hipóteses sobre a finalidade de um texto em língua inglesa, com
base em sua estrutura, organização textual e pistas gráficas.
(EF06LI09) Localizar informações específicas em texto.
(EF06LI12) Interessar-se pelo texto lido, compartilhando suas ideias sobre o que o
texto informa/comunica.
(EF07LI07) Identificar a(s) informação(ões)-chave de partes de um texto em língua
inglesa (parágrafos).
(EF07LI08) Relacionar as partes de um texto (parágrafos) para construir seu sentido
global.
(EF07LI09) Selecionar, em um texto, a informação desejada como objetivo de leitura.
(EF07LI10) Escolher, em ambientes virtuais, textos em língua inglesa, de fontes confi-
áveis, para estudos/pesquisas escolares.
(EF07LI11) Participar de troca de opiniões e informações sobre textos, lidos na sala de
aula ou em outros ambientes.
(EF07LI16) Reconhecer a pronúncia de verbos regulares no passado (-ed).
(EF07LI21) Analisar o alcance da língua inglesa e os seus contextos de uso no mundo
globalizado.
(EF07LI23) Reconhecer a variação linguística como manifestação de formas de pen-
sar e expressar o mundo.
(EF08LI06) Apreciar textos narrativos em língua inglesa (contos, romances, entre
outros, em versão original ou simplificada), como forma de valorizar o
patrimônio cultural produzido em língua inglesa.
(EF08LI07) Explorar ambientes virtuais e/ou aplicativos para acessar e usufruir do
patrimônio artístico literário em língua inglesa.
(EF08LI15) Utilizar, de modo inteligível, as formas comparativas e superlativas de
adjetivos para comparar qualidades e quantidades.

149
M����� A���� �� S���� J����� | T��� L��� V����� R�����
(O������������)

(EF09LI17) Debater sobre a expansão da língua inglesa pelo mundo, em função do


processo de colonização nas Américas, África, Ásia e Oceania.
(EF08LI19) Investigar de que forma expressões, gestos e comportamentos são inter-
pretados em função de aspectos culturais.
(EF09LI19) Discutir a comunicação intercultural por meio da língua inglesa como
mecanismo de valorização pessoal e de construção de identidades no
mundo globalizado.
Fonte: Elaborado pelo autor.

A Motivação constitui a primeira etapa da sequência didática de Cosson


(2006). O professor pode exibir a animação Why Anansi has thin legs [Por que
Anansi tem pernas finas], com o objetivo de inserir os estudantes no universo do
folclore ganense.

Figura 1 - Traditional story of Anansi the Spider

Fonte: British Council , [s.d.].

Após a apresentação do vídeo, os alunos podem não ter compreendido


completamente a figura da aranha na mitologia ganense. Na segunda etapa,
Introdução, os estudantes farão a leitura de um texto sobre a aranha Anansi e
sua influência na cultura ocidental. Esse movimento tem o escopo de repertoriar
os jovens para que eles se apropriem dos conhecimentos construídos em outras
partes do mundo.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

OS CONTOS DE ANANSI:
DA FÁBULA AFRICANA AO HOMEM-ARANHA

O Homem-Aranha é um dos super-heróis mais queridos da Marvel Comics.


Dos quadrinhos aos games, das figuras de ação ao cinema, ele também é, sem
dúvida, um dos mais populares. Todos conhecem a história do menino que foi
picado pela aranha radioativa, ganhou grandes poderes e, por consequência, criou
grandes responsabilidades. Hoje, quem veste o traje do herói na maioria das vezes
é Miles Morales, um rapaz afro-estadunidense. O que muitos não sabem, no en-
tanto, é que existiu outro “homem-aranha” muito antes do amigão da vizinhança.
Ele também é esperto, destemido e um pouco trapaceiro, sempre enganando seus
inimigos para vencê-los e tirar vantagem. Mas ele não vem dos quadrinhos, e sim
da mitologia africana. Vamos conhecer os contos do famoso Anansi, pois ele é…
O primeiro “homem-aranha”
As histórias de aranhas são comuns na África Ocidental, mas os contos de
Anansi vêm de uma antiga fábula de Gana. Nesses contos, que eram passados de
geração em geração, Anansi aparece como um ser humano com corpo de aranha,
ou apenas como uma aranha. Ele foi, portanto, o primeiro homem-aranha. Além
disso, por ser inteligente e muito esperto, também tinha fama de trapaceiro.

Durante o comércio de negros no Atlântico, os contos de Anansi viajaram


de Gana ao Caribe e depois às Américas. Anansi é bastante popular em todos
esses lugares. Afinal, é um personagem forte, admirado pelos escravizados por sua
habilidade de enganar os senhores a fim de se libertar.

Hoje, Anansi é um dos personagens folclóricos mais conhecidos do mundo.


Seus contos deram origem não apenas a filmes, como também a peças de teatro,
desenhos e livros. Recentemente, a lenda ganhou nova versão em: Os filhos de
Anansi (2012), do escritor Neil Gaiman. Na TV, Anansi virou um ícone da cultura
pop em American Gods (2017), adaptação de outro livro de Gaiman. O Sr. Nancy
(nome que vem de Anansi) de fato é um dos melhores personagens da série.
Fonte: Adaptado de Reis Filho (2020) pelo autor.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Ao entrar em contato com as informações presentes na atividade ante-


rior, o docente pode levar os jovens protagonistas a explorarem outras fontes de
conhecimento. É importante que os estudantes se localizem no tempo-espaço
ao percorrer todas as vivências. Por exemplo, faz-se imperioso o (re)conheci-
mento dos elementos históricos, culturais e geográficos: Continente Africano,
África Ocidental, Gana, Diáspora Africana, fábula, mitologia e grupos étnicos
e linguísticos Axante/Asante e Acãs/Akan. Esse percurso é extremamente ne-
cessário não apenas para conhecer e valorizar a história/cultura de Gana, mas
também para desfazer frequentes equívocos, como reduzir a África a um todo
homogêneo, considerando-a um país, por exemplo.
Ainda na segunda fase, os leitores têm contato inicial com o conto, a fim
de criarem expectativas, levantando hipóteses e impressões acerca do texto. Em
relação à apresentação da autora aos leitores, o professor pode instigar os alunos
a buscar a biografia de Farida Salifu em websites diversos. Nesse momento, es-
pera-se que tanto os estudantes quanto os professores percebam que a biografia
da referida escritora não consta em nenhum site. As histórias de Farida Salifu
são utilizadas e sugeridas em várias páginas on-line: blogs escolares, blogs de
leitura, na Wikipédia e no site das Nações Unidas da Namíbia.3 Apesar da popu-
laridade dos contos de Farida, intriga-nos o fato de não encontrarmos nenhuma
biografia, mesmo que simplificada, sobre a autora. Na verdade, as únicas infor-
mações disponíveis aparecem em uma rede social profissional da própria Farida.
Esse apagamento do sujeito pode e deve ser discutido com os alunos, pois há
também outros escritores africanos que se encontram invisibilizados.
A terceira etapa, Leitura, é o contato direto com a estética literária ga-
nense. O professor pode proceder de múltiplas formas: leitura realizada em voz
alta, leitura silenciosa, leitura compartilhada, leitura como tarefa de casa para
discussão posterior em sala de aula. Na aula de inglês, a leitura também pode
auxiliar o estudante com a pronúncia. A habilidade EF07LI16, por exemplo,
possibilita ao usuário da língua reconhecer a pronúncia de verbos regulares no
passado (-ed). Como sugestão para contemplar a referida habilidade, a leitura
pode ser realizada pelo professor ou por algum aluno que possua um nível de
proficiência maior; dessa forma, os outros aprenderão a reconhecer a pronúncia
dos verbos no passado.

3 Em 23 de abril de 2021, o site das Nações Unidas da Namíbia publicou o artigo “African
Sustainable Development Goals Book Club launches on World Book Day”, com o intuito de in-
centivar a leitura em vários idiomas: árabe, inglês, francês, suaíli e outras línguas africanas.
Essa iniciativa foi criada para promover alguns dos Objetivos de Desenvolvimento Sus-
tentável, conforme estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Para mais
informações sobre o projeto, veja https://namibia.un.org/en/125565-african-sustainable-
-development-goals-book-club-launches-world-book-day
152
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
A������, C��������� � D�������

Figura 2 - Capa do livro

Fonte: British Council, [s.d.].

No link a seguir, o professor pode acessar o conto completo, em inglês ou


em acã: https://worldstories.org.uk/reader/kweku-anansi-and-his-new-wife/
english/417
Na quarta e última etapa, Interpretação, todos os sujeitos leitores cons-
troem o sentido do texto, para além da interação entre autor e leitor. Esse estágio
possui grande potência, pois acolhe as subjetividades de cada indivíduo quanto
ao texto lido, permitindo, em ato coletivo e plural, a construção, desconstrução
e reconstrução dos conhecimentos fomentados. No que tange à importância de
partilhar as múltiplas possíveis leituras de um texto, Cosson comenta:
Quando interpretamos uma obra, ou seja, quando terminamos a leitura
de um livro e nos sentimos tocados pela verdade do mundo que ela nos
revela, podemos conversar sobre isso com um amigo, dizer no trabalho
como aquele livro nos afetou e até aconselhar a leitura dele a um colega ou
guardar o mundo feito palavras em nossa memória. Na escola, entretanto,
é preciso compartilhar a interpretação e ampliar os sentidos construídos
individualmente. A razão disso é que, por meio do compartilhamento de
suas interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros
de coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizon-
tes de leitura. Trata-se, pois, da construção de uma comunidade de leitores
que tem nessa última etapa seu ponto mais alto (COSSON, 2006, p. 65-66)

Após o momento de socialização das inúmeras interpretações, pode-se

153
M����� A���� �� S���� J����� | T��� L��� V����� R�����
(O������������)

pensar em uma gama de possibilidades para extrapolar os limites da aula de


inglês. O professor pode estabelecer parcerias com colegas de outras disciplinas
e coordenação pedagógica, para o desenvolvimento de projetos inter e transdis-
ciplinares. A ideia de integrar as áreas do conhecimento tem como propósito a
formação integral dos estudantes, por intermédio de um estudo mais contextua-
lizado, abrangente e significativo.

Figura 3 - Possibilidade integradora com o conto ganense

Fonte: Elaborado pelo autor.

Algumas sugestões incluem: trabalhar com o componente de Língua


Portuguesa, oportunizando a leitura de fábulas que, assim como o conto africa-
no em questão, suscitam reflexão acerca de valores sociais e morais; História,
ao explorar os vários reinos africanos que existiram antes do processo de colo-
nização; Geografia, as demarcações territoriais realizadas após a colonização,
que deslocaram o espaço geográfico de vários grupos étnicos da África; Arte, na
confecção de aranhas Anansi e dos personagens Kweku e sua esposa. Outra pos-
sibilidade seria a montagem de uma produção teatral com base na obra ganense;
Educação Física, com jogos de salto em aranhas de papel e de outros mate-
riais; Ciências, no estudo dos aracnídeos, aranhas, e sua classificação científica,
anatomia e comportamento no meio animal e humano, especialmente aquelas

154
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

encontradas no solo africano.


No componente específico de Língua Inglesa, o docente pode abordar
não apenas os aspectos culturais advindos da sociedade ganense, mas também,
conforme presentes na BNCC, os vários elementos linguísticos que se mate-
rializam no conto. É possível trabalhar com adjetivos, por exemplo: “strange”,
“outlandish”, “excited”, “greedy”, “beautiful”, “sunny”, “lucky”, “puzzled”,
entre outros. A habilidade (EF08LI15), por exemplo, quando apropriada, leva o
usuário da língua inglesa a utilizar, de modo inteligível, as formas comparativas
e superlativas de adjetivos para comparar qualidades e quantidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a apresentação da sequência didática para se trabalhar com o conto


ganense nas aulas de inglês, retomamos algumas indagações feitas no início da
pesquisa. E nós, professores de inglês da educação básica, como podemos contribuir para
a efetividade da Lei 10.639/03 em sala de aula? Há muitas formas de colaborar para
a execução da Lei nº. 10.639/03 nas aulas de LI. No caso do conto Kweku Anansi
and his New Wife, é possível contemplar a história e a cultura dos povos africanos
satisfatoriamente, desde que as atividades sejam preparadas com objetivos claros
e procedimentos exequíveis para tal finalidade.
E de que forma podemos fazê-la? Por meio da sequência didática desen-
volvida, pode-se trabalhar com inúmeros elementos históricos, culturais, linguís-
ticos, literários e geográficos constitutivos do gigantesco espaço africano, tais
como: a localização do continente e da região África Ocidental, em específico
onde se situa Gana; o (re)conhecimento dos grupos étnico-linguísticos Axantes
e Acãs; a cultura partilhada por esses povos por meio da figura mítica da aranha
anansi; e a importância da literatura oral não apenas no contexto geográfico da
África, mas sua grande influência na literatura e outras artes das Américas/do
mundo.
Tais ações antirracistas nos espaços escolares são de responsabilidade apenas dos do-
centes de cada área do conhecimento? A resposta é, absolutamente, não. Professores,
coordenadores, diretores, convidados da comunidade, todos devem “arrega-
çar as mangas” para executar as políticas de afirmação racial. Prova disso, as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, elaboradas na
alçada do Ministério da Educação (MEC), sinalizam possíveis lugares, por onde
transitam outros sujeitos além do professor, para se trabalhar com as temáticas:
“[...] em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na
utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação,
quadra de esportes e outros ambientes escolares” (BRASIL, 2004, p. 21).
155
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

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156
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
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157
DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA
AFROGÊNICA NA ELABORAÇÃO DE
ENUNCIADOS E ALTERNATIVAS DAS
PROVAS DE ESPANHOL DO ENEM 1
Gabriela Rodrigues Botelho2

INTRODUÇÃO

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é um sistema de medição


da qualidade do ensino médio e do sistema educativo. Aplicado desde 1998, foi
a partir da sua reformulação em 2009 que o componente língua estrangeira (LE),
através do espanhol e inglês, passou a fazer parte da Matriz de Referência (MR),
documento que direciona a elaboração dos seus itens. O exame também se clas-
sifica como uma política pública, pois seus resultados e o mapeamento do perfil
dos examinados permitem aprimorar ou implementar políticas educacionais.
Diante da grande adesão ao exame, os itens do caderno de perguntas têm
sido analisados por diferentes linhas teóricas. Neste trabalho, detenho-me aos
itens de espanhol que permitem o debate sobre as relações étnico-raciais no con-
texto hispano-falante, em uma análise a partir do campo teórico da Linguística
Aplicada (LA). Nesse sentido, entendo a língua e a linguagem como prática social
(MOITA LOPES, 2006) que se apresenta heterogênea e dinâmica em diversos
meios sociais. No caso de documentos oficiais, como os cadernos de perguntas do
ENEM, essa análise se faz relevante, pois permite compreender a proposta educa-
cional tanto do exame quanto do ensino médio, que está sendo avaliado.
A língua espanhola teve sua oferta obrigatória e matrícula facultativa na
educação básica através da Lei nº. 11.161/2005, vigente entre 2010 (ano de in-
corporação do idioma ao ENEM) e 2017 quando foi revogada. Com a aprova-
ção da Lei nº. 13.415/2017 que obriga o ensino apenas do inglês como LE, as
demais línguas tornaram-se opcionais no currículo escolar, incluindo o espa-
nhol. A discussão sobre obrigatoriedade de oferta e matrícula nas disciplinas de
LE na educação básica é importante, pois acaba refletindo no espaço ocupado
por essas línguas em outras ocasiões como ocorre no ENEM, por exemplo. O

1 Este capítulo foi elaborado com base em uma pesquisa de mestrado que teve apoio da
FAPITEC/SE.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Ser-
gipe (UFS). gabibottelho@hotmail.com

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

espanhol está presente no ensino fundamental, mas tem maior adesão no ensino
médio por conta da preparação para o exame, o que tem se mantido. Essa con-
textualização é importante, pois embora não seja o foco deste capítulo demons-
tra as implicações políticas envoltas ao ensino de LE e exames como o ENEM.
É possível notar uma relação estreita entre ENEM e a educação básica, da
qual o espanhol como língua opcional faz parte, e, a Educação para as Relações
Étnico-Raciais (ERER) está incluída como eixo de trabalho em todos os anos de
ensino perpassando todas as disciplinas do currículo, ainda que seja destaque nas
disciplinas de história, literatura e artes, através da Lei nº. 11.645/2008. É nesse
ponto que língua espanhola, ENEM e ERER se encontram, pois, sendo parte da
educação básica, é escopo do espanhol discutir sobre as relações étnico-raciais, e,
o ENEM, como avaliação do ensino médio, também deve cumprir este propósito.
Dessa maneira, o objetivo deste capítulo é analisar como os enunciados e
as alternativas dos itens de língua espanhola do ENEM colaboram para debater
sobre as relações étnico-raciais no contexto hispano-falante a partir de uma pers-
pectiva afrogênica (WALKER, 2018). Para tanto, nos atemos a seguinte pergun-
ta de pesquisa: Como os enunciados e as alternativas colaboram para discutir
as relações étnico-raciais no mundo hispânico? Justificamos essa pesquisa por
ser uma forma de fomentar reflexões sobre as relações étnico-raciais no contex-
to da educação linguística em espanhol no Brasil e, sobretudo, no ENEM. A
pesquisa é de natureza aplicada (GIL, 2002), abordagem qualitativa (FLICK,
2009), descritivo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994) e técnica documental
(BARDIN, 1977).
Para tanto, foram avaliadas 21 provas entre 2010 e 2019 (10 aplicações
para Pessoas Privadas de Liberdade (PPL); 10 aplicações regulares; e uma rea-
plicação) totalizando 105 itens, dos quais constatamos que 9 permitem o debate
sobre a afrodescendência no mundo hispânico, seja a partir dos textos seleciona-
dos, dos enunciados ou das alternativas elaboradas para cada item. Utilizamos
como objeto de análise os enunciados e alternativas que compõem os 9 itens que
permitem discutir as relações étnico-raciais.
Pautamos a análise nos estudos decoloniais (WALSH, 2009; LANDER,
2005; QUIJANO, 2005; MALDONADO-TORRES, 2007; VERONELLI,
2015); e nas diretrizes educacionais brasileiras (BRASIL, 2010a; BRASIL,
2013a; BRASIL,2013b).

ENEM: BREVE HISTÓRICO E ELABORAÇÃO DOS ITENS


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, orienta o sistema
educativo no Brasil, o que inclui o ENEM, a ERER e as LEs. Sua aprovação
se deu no contexto das reformas educacionais dos anos 1990 influenciada pela
159
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

política internacional de organismos como Organização das Nações Unidas


para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo das Nações Unidas
para a Infância (em inglês, UNICEF) e pela Declaração de Jomtien de 1990. Os
documentos orientativos elaborados naquele período também se fundamentam
na LDB 1996, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do ensino
fundamental e médio e PCN de Temas Transversais que inseriram no currícu-
lo reflexões sobre meio ambiente, novas tecnologias, ERER, entre outros te-
mas. Do mesmo modo, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2017
(BRASIL, 2017a), documento orientativo mais recente também está pautado na
LDB/1996.
Naquele contexto, países considerados emergentes como o Brasil se com-
prometeram em expandir o acesso à educação de qualidade no nível básico.
Essas reformas foram consideradas ambíguas, pois pretendiam favorecer a for-
mação cidadã e democratizar o do ensino, porém, instituições como UNESCO
e UNICEF, se utilizavam de relatórios de órgãos financeiros como Fundo
Monetário Internacional (FMI), para propor tais medidas. Para Mota (2018,
p. 28) “a tendência desses programas educacionais propostos pelos organismos
internacionais está atrelada à formação dos alunos no âmbito escolar para as
exigências do mercado”.
Assim, essas reformas se dividem em três eixos: a formação para as prá-
ticas sociais nas quais incluem-se os temas transversais; a formação para o tra-
balho (voltado para o contexto de globalização e avanço do neoliberalismo); e o
controle do currículo, através dos exames em larga escala. Evidencia-se, assim,
o caráter neoliberal das reformas, pois não propõem soluções educacionais, mas,
financeiras, de competição de mercado. Foi neste cenário que o ENEM foi im-
plementado em 1998, como continuação de políticas públicas brasileiras que se
alinhavam ao cenário internacional do regime político e econômico neoliberal.
Dessa maneira, o Estado passa a funcionar como um regulador das polí-
ticas públicas, direcionando a responsabilidade da qualidade do ensino aos ges-
tores da educação e consequentemente abrindo espaço para o mercado privado
da educação. Assim, exames em larga escala, como o ENEM, são usados como
forma de regulação das políticas públicas (MOTA, 2018). A formação de ran-
kings é uma das características desses exames.
Para Cortesão (2018), os exames em larga escala medem superficialmente
a qualidade da educação, escola e sistema escolar, desconsiderando as particu-
laridades locais. Dessa maneira, a tendência é que escolas precárias se enqua-
drem em posições inferiores e as escolas mais estruturadas fiquem em posições
superiores, alimentando a condição de ambas, já que os resultados do exame
não são usados necessariamente para diagnosticar os problemas e propor ações,

160
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

mas para prestar conta à sociedade sobre o estado da educação. Com isso, os
próprios pais devem optar por qual escola escolher, o que acaba sendo influen-
ciado pelas posições no ranqueamento. Embora o foco do ENEM, ao divulgar
os resultados em forma de ranking não seja estigmatizar as instituições escolares,
isso acaba acontecendo.
Os objetivos do exame se coadunam aos objetivos da LDB/1996 e conti-
nuam os mesmos desde sua implementação em 1998, que são: servir como uma
autoavaliação para os concluintes do ensino médio, para que possam direcionar
sua carreira acadêmica e profissional; ser uma forma de medir a qualidade da
educação à nível médio; e servir como seleção para o mercado de trabalho, cur-
sos técnicos e superiores (BRASIL, 1998; BRASIL, 2013a).
Após doze anos de aplicação do exame, a partir de 2010, diversas mu-
danças foram realizadas, a acessibilidade ao ENEM ganhou destaque, lactantes,
gestantes, PPL e pessoas com diferentes necessidades especiais passaram a ter
os cuidados necessários para fazerem a prova. Naquele período, foi aperfeiçoa-
do o sistema de isenção para pessoas de renda baixa, o acesso dos cotistas, e, o
exame passou a ter maior destaque como forma de ingresso ao ensino superior
(BRASIL, 2013a). Entretanto, o caráter de medição e controle do currículo foi
mantido.
As mudanças de 2010, também trouxeram alterações na MR, que orienta
a elaboração das provas, chegando ao formato que temos hoje. Para tanto, os
itens passaram a exigir a resolução de problemas com foco na compreensão e
interpretação textual, a prova passou a ser aplicada em dois dias, sendo divi-
dida em quatro áreas de conhecimento, totalizando 180 questões e a redação.
Também formam parte da MR cinco eixos cognitivos comuns às quatro áreas, e,
competências e habilidades específicas para cada área.
O estudo das LEs no ENEM prevê conteúdos como: compreensão de
textos de gêneros diversos, orais e escritos; identificação da temática, léxico,
estruturas sintático-semânticas, função e contexto comunicativo; e aplicação
do conhecimento linguístico em situações comunicativas e manifestações cul-
turais (BRASIL, 2013a). A área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e
Redação compreende Língua Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira, Artes,
Educação Física e Tecnologias da Informação e Comunicação. É composta por
nove competências de área sendo que a competência 2 (que contém quatro ha-
bilidades) é a que corresponde aos itens de LE. Vejamos as habilidades da com-
petência 2 da área de linguagens:
Competência de área 2 – Conhecer e usar língua(s) estrangeira(s) moder-
na(s) como instrumento de acesso a informações e a outras culturas e gru-
pos sociais.

161
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

H5 – Associar vocábulos e expressões de um texto em LEM ao seu tema.


H6 – Utilizar os conhecimentos da LEM e de seus mecanismos como
meio de ampliar as possibilidades de acesso a informações, tecnologias e
culturas.
H7 – Relacionar um texto em LEM, as estruturas linguísticas, sua função
e seu uso social.
H8 – Reconhecer a importância da produção cultural em LEM como re-
presentação da diversidade cultural e linguística (BRASIL, 2013a, p. 18).

Com base nas diretrizes acima, é possível traçar padrões para a composição
da prova de língua espanhola, o que auxilia os elaboradores de questões e as pes-
soas que estão se preparando para o exame. O formato da prova, sendo questões
objetivas de múltipla escolha, também ajudam a padronizar os testes, o que de
acordo com Brasil (2010a) acontece pelo ENEM ser um exame de larga escala,
isto é, aplicado a uma grande quantidade de pessoas regularmente. Assim, o for-
mato da prova facilita a logística de elaboração, aplicação e correção do exame.
Segundo Brasil (2010a), a palavra item corresponde a uma unidade bá-
sica de coleta de dados, podendo ser uma prova, um teste e no caso do ENEM
as questões do caderno de perguntas. A elaboração é feita por profissionais da
educação de cada área do conhecimento que são chamados a formular os itens
quando há demanda ou em oficinas de elaboração de itens. Os critérios para
elaboração parte de uma situação problema, segundo Brasil (2010a, p. 9): “Em
uma avaliação, um item contextualizado pretende transportar o participante do
teste para uma situação normalmente vivenciada por ele no dia a dia, e que, no
item, pode se materializar ou não em uma situação hipotética”. Essa construção
da situação problema deve contemplar uma das habilidades da MR e se estrutu-
ra a partir do texto, do enunciado e das alternativas conformando uma unidade
de proposição (BRASIL, 2010a).
Em relação à escolha do texto recomenda-se que se tenha um ou mais
textos verbais ou não verbais, podendo ser do próprio elaborador ou de fonte
fidedigna, isto é, de fácil recuperação e circulação (BRASIL, 2010a). Em re-
lação à elaboração do enunciado, o documento Brasil (2010a, p. 10) orienta
que “O enunciado se constitui de uma ou mais orações e não deve apresentar
informações adicionais ou complementares ao texto-base; ao contrário, deverá
considerar exatamente a totalidade das informações previamente oferecidas”.
Portanto, deve conter instruções objetivas, em forma de pergunta ou frase a ser
completada (BRASIL, 2010a).
As alternativas são possíveis opções de respostas, sendo o gabarito a res-
posta correta e os distratores respostas plausíveis para a questão elaborada, po-
rém incorreta frente ao problema apresentado. De acordo com Brasil (2010a, p.
11), “Isso significa que o distrator plausível deve retratar hipóteses de raciocínio

162
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

utilizadas na busca da solução da situação-problema apresentada”. Isto é, não


deve induzir o respondente ao erro.
Uma vez cumpridas as etapas de revisão e aprovação dos itens elaborados
o mesmo passa a compor o Banco Nacional de Itens (BNI) podendo ser usado
no ENEM (BRASIL, 2010a). Esse processo é longo e complexo, o que demons-
tra grande dedicação e busca de qualidade na composição dos itens, por isso,
essa pesquisa não tem condições de apontar problemas na composição, mas
sim colaborar para uma leitura atualizada a partir de uma perspectiva que pode
acrescentar na heterogeneidade do exame para futuras elaborações.
Os (as) elaboradores de itens são anônimos, portanto, não é possível saber
quem são, por segurança da prova. Entretanto, cabe pensar se o perfil desses pro-
fissionais são heterogêneos ou se seguem o padrão brasileiro de acesso a cargos de
destaque sendo homens, brancos de classe média ou alta, entre outras classifica-
ções que podem comprometer a diversidade de propostas na elaboração da prova.
As provas do ENEM, devido ao seu caráter de larga escala, são somativas,
ou seja, não apresentam uma devolutiva aos participantes para que estes possam
compreender seus erros e assim poder saná-los. Do mesmo modo, a crítica sobre
a composição dos itens é pouco praticada, por isso, vemos essa pesquisa como
uma forma de colaborar para a reflexão de professores e elaboradores de itens
proporcionando um exercício de caráter mais formativo.

PERSPECTIVA DECOLONIAL E AFROGÊNICA COMO


FUNDAMENTO DE ANÁLISE

As relações étnico-raciais no Brasil são marcadas pela violência e pela


subjugação do outro. Por isso, a importância de se pensar a educação como for-
ma de desconstruir essa visão de dominação, exclusão e exploração no contato
com as diferenças, construindo relações de interação e reconhecimento do outro
na sua diversidade como propõe a ERER (BRASIL, 2013b).
O conceito de decolonialidade se consolida no bojo das reflexões do
Programa Modernidade/Colonialidade (PM/C), que propõe estudar a América
Latina enquanto um território que foi colonizado, para entender como o processo
colonial interfere nas sociedades atuais. Com base nos estudos de latino-americanos
e latino-americanistas e principalmente na noção de sistema-mundo de Immanuel
Wallerstein, o PM/C admite a existência de um centro mundial (Europa; Estados
Unidos; países considerados desenvolvidos e, portanto, do norte global); e uma peri-
feria (países subdesenvolvidos; historicamente colonizados; do sul global).
Essa divisão implica em políticas públicas internacionais e nacionais em
variados eixos para manter tal diferenciação. Como descrito no tópico anterior
o ENEM se enquadra nesse tipo de política pública que complementa sistemas
163
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

políticos e econômicos como o neoliberal na intenção de não desestabilizar tal hie-


rarquia. Essas políticas também podem ser vistas como uma reacomodação do sis-
tema para manter os resquícios do pensamento colonial que ainda organizam as
sociedades e as relações de poder, o que Quijano (2005), chamou de colonialidade
do poder concebida pela ideia de raça, eurocentrismo e divisão mundial do trabalho.
Seguindo as articulações forjadas pela colonialidade do poder, Castro-
Gómez (2007), explica que a negação dos saberes locais nos contextos colo-
nizados e a imposição do conhecimento europeu como único válido, resultou
no apagamento das formas de vida dessas pessoas, e em uma busca constante
pelo conhecimento estrangeiro. O autor ainda ressalta, que esta forma de lidar
com os saberes continua refletindo nas instituições de ensino e seus currículos
que priorizam o conhecimento do norte global e negam os saberes locais. Essas
características descrevem a colonialidade do saber.
Conforme assegura Maldonado-Torres (2007), ao negar a capacidade cog-
nitiva das pessoas colonizadas, negava-se junto à sua humanização, legitimando
a violência imposta por sua condição colonizada e racializada. O tratamento
imposto pela colonização, com base na desumanização, hoje ganha outros for-
matos caracterizando a colonialidade do ser.
Diante da persistência da operacionalidade colonial, se faz necessário um
pensamento decolonial. Essa proposta sugere não apenas descolonizar as insti-
tuições e consequentemente os países e mentes que foram colonizadas, mas tam-
bém vislumbra um pensamento decolonial, ou seja, uma lógica de pensamento
que não seja pautado no colonialismo ou na colonialidade. Seguindo o racio-
cínio de Walsh (2009), não se trata apenas de passar de um momento colonial
para outro não colonial, pois isso não é possível, uma vez que os padrões e as es-
truturas sociais não deixam simplesmente de existir, por isso o termo se refere a
um posicionamento contínuo para identificar e desestabilizar padrões coloniais,
gerando novas formas de sociabilidade. É nesse sentido, que o PM/C fala de um
giro decolonial, termo cunhado por Maldonado-Torres, segundo Castro-Gómez
e Grosfoguel (2007), que se refere a um direcionamento rumo ao não percorrido.
O pensamento decolonial concebe as estruturas sociais imbricadas, de
modo que, a cultura, os processos econômicos e políticos, são partes de uma mes-
ma engrenagem de poder, por isso, como defende Castro-Gómez e Grosfoguel
(2007), não há como separar esses aspectos sociais considerando a economia um
fator principal e os demais como consequência. É seguindo essa linha, que diver-
sos estudos decoloniais têm se dedicado a identificar padrões de colonialidade e a
desestabilizá-los expondo formas outras de ser e existir. Dentro do PM/C Walsh
(2009), chama atenção para o conceito de colonialidade cosmogônica que vê na
relação sociedade e natureza resquícios do pensamento binário europeu, tornando

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Avanços, Conquistas e Desafios

incompatível tal relação. A autora explica, que essa forma de ver o mundo difere
dos povos afrodescendentes, dos povos originários da América Latina, e em espe-
cial dos povos andinos, pois para estes a natureza é a fonte da vida e do bem viver,
sendo inseparáveis a existência humana e a natureza.
Outra concepção importante é a colonialidade de gênero, estudada por
Lugones (2014), que vê no binarismo eurogênico a divisão entre seres humanos e
não humanos, nos quais a mulher seria um humano inferior e os povos coloniza-
dos não humanos. Para a autora, decolonizar o gênero implica romper as hierar-
quias a partir do entendimento de que na visão dos povos originários e afrodes-
cendentes, há formas de sustentar relações mais igualitárias entre seus pares. Esse
reconhecimento e possível troca de saberes pode abrir caminho para uma possível
emancipação desses povos e para uma revisão dos padrões culturais ocidentais.
Já Veronelli (2015), investiga a racialização e desumanização colonial
a partir da colonialidade da linguagem, que segundo a autora, problematiza a
relação raça e linguagem, uma vez que ambas são regidas por uma filosofia,
ideologia, política eurocentradas, negando às pessoas colonizadas a agência de
comunicação e racionalidade. Assim, essa concepção de língua relaciona gra-
mática, escrita, conhecimento, e civilização naturalizando estas características e
legitimando apenas as línguas europeias (VERONELLI, 2015).
A decolonialidade enquanto abertura de pensamento para entender as di-
ferentes formas de vida, como define Mignolo (2007) e Walsh (2009), implica
conhecer e entender outras perspectivas que fazem parte do período moderno/
colonial. Por isso, neste trabalho busco refletir sobre a contribuição das pessoas
negras na América Latina, de modo que, no ENEM essa parte da história te-
nha um espaço relevante. É nesse sentido, que utilizo o conceito de perspectiva
afrogênica, cunhado por Sheila Walker, antropóloga afro-estadunidense que ao
estudar a diáspora africana percebeu a necessidade de encontrar termos próprios
que representassem a visão de mundo das pessoas negras, é nesse contexto que:
A categoria afrogênica foi criada por Walker e se contrapõe à categoria “eu-
rogênica”, remete a aspectos de interesse e a construções teóricas e meto-
dológicas, dentre outras, elaboradas pelas (os) próprias (os) africanas (os)
e afrodescendentes em contraposição ao conhecimento tido como morto,
construído por terceiros a fim de desqualificar “as inteligências históricas
das diversas civilizações africanas sequestradas e transladadas a diferentes
lugares [das] América[s] pela via do comércio de africanos escravizados
(GARCÍA, 2012, p. 82 apud OSHAI, 2015, p. 255).

Como define Walker (2018), a perspectiva afrogênica não se trata de um


afrocentrismo em oposição ao eurocentrismo, pelo contrário, se relaciona ao es-
tudo da cultura afrodiaspórica a partir dos próprios afrodescendentes, mostran-
do o protagonismo dessas pessoas nas suas próprias vidas, exaltando suas ações,

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(Organizadores)

resistência e a importante participação nas sociedades às quais sãos pertencen-


tes. A autora descreve seu trabalho, como uma busca de conhecimento desde dentro,
ou seja, a partir da vivência e dos fatos que marcaram a experiência diaspórica
dos afrodescendentes pelo mundo.
A partir do estudo de Walker (2018), podemos conhecer a experiência dos
africanos e afrodescendentes na América Latina, como uma relação de explo-
ração, desumanização e exclusão impostos pelo colonialismo e continuado pela
tríade da colonialidade (poder, saber e ser). Podemos também, identificar pontos
de convergência entre essa realidade e a história diaspórica brasileira, pois como
parte de um contexto maior que é a América Latina, as políticas de exploração
e exclusão por parte das elites dominantes, bem como, as formas de resistência
e ações de emancipação, por parte das pessoas negras, se assemelham muito.
Tomo como referência o conceito de perspectiva afrogênica, por favore-
cer a compreensão sobre o protagonismo afrodescendente na diáspora, tanto no
Brasil quanto no mundo hispânico, o que contempla a proposta da ERER ao
defender um ensino que pense as relações étnico-raciais como reconhecimento
e convívio com o outro. Além de positivar a experiência afrodescendente na
diáspora, uma perspectiva afrogênica também desvela outras formas de ver o
mundo, para além de uma perspectiva eurogênica.
Para identificar os itens que permitem discutir a afrodescendência no con-
texto hispano-falante no âmbito das relações étnico-raciais e a partir de uma
perspectiva afrogênica, tomei como base os temas destacados em Walker (2018),
que sintetizam os aspectos mais recorrentes ao tratar-se da diáspora africana de
modo global, o que compreende o mundo hispânico e também o Brasil. Assim,
foi feita uma observação geral em cada um dos 105 itens do ENEM e classifi-
cados os que se remete a temas como: transferência da tecnologia africana para
as américas, abolição e emancipação, aspectos culturais, saberes, artes, espiri-
tualidade convivência com outros povos, organização social, e etc. Após essa
classificação foi possível identificar quais destes itens abordam os temas a partir
de uma perspectiva afrogênica e quais mantém uma abordagem estereotipada
ou mesmo de negação da afrodescendência no mundo hispânico. Na próxima
seção, apresento o detalhamento da metodologia e análise dos dados.

METODOLOGIA E ANÁLISE DOS DADOS

Esta pesquisa segue a abordagem qualitativa (FLICK, 2009), portanto,


tem como foco o detalhamento sobre a composição de nove itens do ENEM
a partir dos enunciados e alternativas. Dessa maneira, se enquadra no escopo
das pesquisas descritivo-interpretativistas (MOITA LOPES, 1994), uma vez que
visa pormenorizar a elaboração dos itens e ao mesmo tempo compreender sua
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formatação. Para tanto, utilizo a técnica documental (BARDIN, 1977), a partir


do conceito de unidade de contexto e das categorizações.
De acordo com Bardin (1977, p. 107) “a intensidade e a extensão de uma
unidade, podem surgir de forma mais ou menos acentuado, consoante as dimen-
sões da unidade de contexto escolhida”. Para a autora, ao tomar a unidade de
contexto como forma de análise compreende-se o tema, as palavras, o parágrafo,
entre outros aspectos linguísticos, textuais e contextuais como elementos que
compõem determinado texto. Devido ao fato, de que para compreender os itens
do ENEM, é preciso estar atenta aos elementos citados, considerei a unidade de
contexto como unidade de análise.
Para esta análise, seguindo Bardin (1977), apresento uma classificação de
duas categorias de pesquisa: enunciados e alternativas. Para a interpretação dos
dados considerei a adequação às diretrizes para elaboração dos itens, o quanto a
problematização proposta é relevante para pensar as relações étnico-raciais no con-
texto hispano-falante, nos itens de espanhol do ENEM, e, a fundamentação teórica
apresentada anteriormente. A partir dos enunciados e das alternativas encontramos
três padrões de itens, no quadro 01 apresento o primeiro padrão identificado.

Quadro 1: Enunciados e alternativas que evidenciam a racialização


ITEM 91/2014 – El candombe es participación
O status atual do candombe, resultante de um conjunto de mudanças
ENUNCIADOS ocorridas no país, contrasta com um passado marcado por
preconceitos. Segundo o texto esse status se deve à a) definição dada
por dicionários atuais. b) receptividade crescente pela sociedade. c)
ALTERNATIVAS crítica às festas barulhentas. d) conservação da herança africana. e)
visão da dança como obscena.
ITEM 95/2014 – No más el día de la raza
Com a expressão Día de la Raza, faz-se referência à chegada dos
ENUNCIADOS primeiros europeus em território americano e denomina-se a
comemoração desse dia. A autora do texto sugere o fim dessa
denominação no Uruguay, acreditando que
a) a nomenclatura adotada será esquecida, porque é de
conhecimento geral que não houve descoberta. b) a reivindicação
convencerá outros grupos e adeptos, porque muitos desconhecem
esse nome. c) a sociedade deve encontrar uma frase significativa
ALTERNATIVAS para a preservação da lembrança dos fatos. d) o convívio permitirá
o esquecimento dos massacres, porque não houve encontro no
passado. e) o presente e o futuro são e serão fraternais e igualitários
para o estímulo do predomínio cultural.
Fonte: adaptado de Caderno de Perguntas do ENEM (BRASIL, 2014).

No primeiro grupo de itens, as discussões presentes no enunciado refe-


rente ao texto base Candombe es participación e No más día de la raza, apresentam
uma perspectiva afrogênica ao requisitar a legitimidade de uma expressão cul-
tural afrodiaspórica e ao questionar a racialização no contexto hispano-falante,

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(Organizadores)

respectivamente. Sendo assim, os enunciados colaboram para discutir as rela-


ções étnico-raciais ao destacar o questionamento central dos textos. Já as alter-
nativas resgatam alguns conflitos entre grupos sociais/raciais presentes no texto
base deixando em destaque visões estereotipadas e que vão contra a ideia dos
textos, contrapondo com a perspectiva defendida na resposta correta.
Apesar de omitir o protagonismo afrodescendente nas duas situações re-
tratadas nos textos base, a abordagem dos enunciados e alternativas questionam
a visão de mundo eurocentrada, demonstrando que há outras formas de pensar
a sociedade e a cultura, demonstrando uma perspectiva potencialmente afrogê-
nica (WALKER, 2018) e decolonial (MIGNOLO, 2007; WALSH, 2009).

Quadro 2: Enunciados e alternativas que evitam tratar das relações étnico-raciais


ITEM 95/2013 – Duerme negrito
ENUNCIADO Duerme Negrito é uma cantiga de ninar da cultura popular hispânica,
cuja letra problematiza uma questão social, ao
a) destacar o orgulho da mulher como provedora do lar. b)
evidenciar a ausência afetiva da mãe na criação do filho. c) retratar a
ALTERNATIVAS precariedade das relações de trabalho no campo.
d) ressaltar a inserção da mulher no mercado de trabalho rural.
e) exaltar liricamente a voz materna na formação cidadã do filho.
ITEM 93/2015 – Caña
Nesse poema de Nicolás Guillén, no qual o poeta reflete sobre o
ENUNCIADO plantio da cana-de-açúcar na América Latina, as preposições junto,
sobre e bajo são usadas para indicar metaforicamente
a) desordens na organização da lavoura de cana-de-açúcar. b)
relações diplomáticas entre países produtores de cana-de-açúcar.
c) localidades da América Latina nas quais a cana-de-açúcar é
ALTERNATIVAS cultivada. d) relações sociais dos indivíduos que vivem do plantio
da cana-de-açúcar. e) funções particulares de cada profissional na
lavoura da cana-de-açúcar.
ITEM 03/2019 – Adelfos
Nessa estrofe, o poeta e dramaturgo espanhol Manuel Machado
ENUNCIADO reflete acerca
a) de sua formação identitária plural. b) da condição de nômade de
seus antepassados. c) da perda sofrida com o processo de migração.
ALTERNATIVAS d) da dívida do povo espanhol para com o povo árabe. e) de sua
identificação com os elementos da natureza.
Fonte: adaptado de Caderno de Perguntas do ENEM (BRASIL, 2013c; BRASIL, 2015;
BRASIL, 2019).

Já o segundo grupo de itens (quadro 02), apresenta uma problematização


no enunciado, porém opta por não tratar das relações étnico-raciais, direcionando
a reflexão do texto para temas secundários ao texto base. Essa abordagem é prejudi-
cial porque tende a seguir um padrão de sobrepor problemas sociais aos problemas
raciais, negando o que defende os estudos decoloniais de que a raça seria a cate-
goria fundante da ordenação social e está imbricada a todos os outros aspectos de
hierarquização (QUIJANO, 2005; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
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No caso específico deste grupo de itens as alternativas exercem um papel


importante, pois a partir das opções propostas direcionam o raciocínio do leitor para
respostas que desviam a atenção sobre as relações étnico-raciais, assim elas mantêm
o foco do item no tema problematizado ou em temas desconexos com o contexto do
texto base, de modo que também não colaboram para pensar as relações étnico-ra-
ciais no contexto hispano-falante. Além disso, atendem as diretrizes para elaboração
dos itens parcialmente, já que acabam induzindo o respondente a um raciocínio
equivocado, pois muitas das alternativas não são plausíveis ao problema proposto.
Em função do exposto, é possível afirmar que os enunciados e alternativas desse
grupo de itens perdem a oportunidade de apresentar uma perspectiva afrogênica.

Quadro 3: Enunciados e alternativas que não problematizam a racialização


ITEM 91/2010 – La cueca chilena
Todos os países têm costumes, músicas e danças típicos, que
ENUNCIADO compõem o seu folclore e diferenciam a sua cultura. Segundo o
texto, na cueca, dança típica do Chile, o comportamento e os passos
do homem e da mulher, estão associados
a) à postura defensiva da mulher. b) à origem espanhola da dança.
ALTERNATIVAS c) ao cortejo entre o galo e a galinha. d) ao entusiasmo do homem.
e) ao nacionalismo chileno.
ITEM 94/2011 – El tango
Sabendo-se que a produção cultural de um país pode influenciar,
ENUNCIADO retratar ou, inclusive, ser reflexo de acontecimentos de sua história,
o tango, dentro do contexto histórico argentino, é reconhecido por
a) manter-se inalterado ao longo da história do país. b) influenciar
os subúrbios, sem chegar a outras regiões. c) sobreviver e se difundir,
ultrapassando as fronteiras do país. d) manifestar seu valor primitivo
ALTERNATIVAS nas diferentes camadas sociais. e) ignorar a influência de países
europeus, como Inglaterra e França.
ITEM 93/2012 – El idioma español en África subshariana: aproximación y propuesta
ENUNCIADO No artigo, após um esboço sobre a presença do espanhol na África
subsariana, propõe-se
a) projetar o espanhol no território africano lusófono. b) reforçar o
ensino de espanhol na Guiné Equatorial. c) substituir o português
ALTERNATIVAS pelo espanhol em cinco Estados. d) amparar a promoção da fusão
entre línguas próximas. e) desenvolver o conhecimento sobre o
português da África.
ITEM 02/2017 – Erradicar el cólera
ENUNCIADO A partir das informações sobre as condições de saneamento básico
na República Democrática do Congo e do gênero escolhido para
veiculá-las, a função do texto é
a) divulgar dados estatísticos sobre a realidade do país. b) levar ao
conhecimento público as práticas que visam a melhoria da saúde na
região. c) alertar as pessoas interessadas em conhecer a região sobre
ALTERNATIVAS os problemas de saneamento. d) oferecer serviços de escavação de
poços e acesso à água para a população da região. e) orientar a po-
pulação do país sobre ações de saúde pública.
Fonte: adaptado de Caderno de Perguntas do ENEM (BRASIL, 2010b; BRASIL, 2011;
BRASIL, 2012; BRASIL, 2017b).

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(Organizadores)

O último grupo de itens (quadro 03), propõe enunciados com foco em


informações específicas do texto base, e não apresentam uma problematização,
atrelando a questão ao conteúdo literal do texto. Esse tipo de item não está
totalmente indevido, segundo a MR (BRASIL, 2009) e o Guia de elaboração
dos itens (BRASIL, 2010a), já que é previsto questões com menos dificuldade
em relação à medição da capacidade de compreensão e interpretação leitora.
Porém, não cumprem o requisito de apresentar uma situação problema, além de
comprometer a reflexão do participante por conta do seu conteúdo, enunciado
e alternativas que contribuem para a manutenção de ideias reducionistas, e que
naturalizam construções sociais com base nas colonialidades.
A abordagem da influência cultural afrodescendente é um exemplo do tra-
tamento dado aos itens deste primeiro grupo. O texto base com título La Cueca
Chilena apresenta o gênero musical de forma folclorizada, animalesca, sendo
aceita como música de fato, somente, após incorporar a influência da música
espanhola. Algo parecido ocorre com o texto que tem como título El Tango, pois
a influência cultural afrodescendente é encoberta por descrições que se referem
a algo remoto, primitivo, sendo o gênero musical reconhecido após seguir as
tendências europeias. Nos outros dois itens, os países africanos são apresenta-
dos como problemas a serem resolvidos por organismos internacionais ou pelos
antigos colonizadores, desconsiderando o protagonismo africano e suas próprias
soluções. Portanto, estes itens não apresentam uma perspectiva afrogênica, mas
uma perspectiva eurogênica e em muitos casos eurocentrada, não sendo favorá-
veis para pensar uma forma decolonial de abordar as relações étnico-raciais no
mundo hispânico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, busquei apresentar uma proposta de análise dos itens do


ENEM que considere mais do que o conteúdo presente no exame, sua capaci-
dade de medir a habilidade de leitura dos participantes ou sua eficácia enquanto
avaliador do sistema educativo. Demonstrei assim, que os itens do caderno de
perguntas, a partir da linguagem, refletem pensamentos e discursos sociais que
podem contribuir tanto para pensar as relações étnico-raciais com uma visão de-
colonial e considerando uma perspectiva afrogênica, quanto de forma apegada
às colonialidades que sustentam desigualdades e discriminações nas sociedades
atuais.
Com base na análise aqui realizada foi possível concluir que as catego-
rias, enunciados e as alternativas, são dependentes da categoria texto base, que
embora não tenha sido analisada neste capítulo se mostrou essencial para ela-
boração de itens. Nesse sentido, os itens que apresentaram um texto favorável a
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problematização também foram os que abordaram as relações étnico-raciais de


forma crítica. Enquanto que os demais itens, tiveram como foco a ideia global
do texto sem problematizar seu conteúdo, ou seja, os enunciados e alternativas
ficaram limitados a uma resposta pronta a ser encontrada no texto, ao invés de
indicarem um problema a ser resolvido e as soluções cabíveis.
Essas constatações evidenciam que dos nove itens analisados apenas dois
(Candombe es participación e No más día de la raza) se aproximam mais das dire-
trizes para elaboração dos itens. Enquanto que os demais, além de apresenta-
rem discrepâncias em relação às regras de elaboração, também apresentam uma
visão deturpada da afrodescendência e das relações étnico-raciais no contexto
hispano-falante. Considero por fim, que apesar da complexidade de analisar os
itens de exames como o ENEM, o que acarreta limites a pesquisa, é possível
compreender que mesmo sendo pouco o espaço destinado às LEs no caderno de
questões, é possível propor reflexões para além do controle do currículo e que
correspondam às urgências de temáticas tratadas na escola e na sociedade de
modo geral.

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174
A DECOLONIZAÇÃO NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA NO
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
Tiemi Okimura-Kerr1

INTRODUÇÃO
A Educação Física foi incluída no sistema escolar do Brasil em 1851, atra-
vés da reforma Couto Ferraz, com ideais higienistas e forte influência dos siste-
mas europeus de ginástica e calistenia. Ao longo do período da ditadura militar,
de 1964 a 1984, o esporte tornou-se o conteúdo predominante e oficial nas aulas.
Por muito tempo, a Educação Física na escola foi entendida como uma
atividade eminentemente prática, sem muita reflexão teórica. Essa concepção
foi contraposta com a promulgação da Lei de Diretrizes Bases da Educação
Nacional – LDB n°. 9394/96 (BRASIL, 1996), que no parágrafo 3o do artigo
26 afirma que “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é
componente curricular obrigatório da educação básica.”
Na mesma década, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1998) apresentam diretrizes que orientam os educadores por meio da normatiza-
ção de aspectos fundamentais referentes a cada disciplina, inclusive a Educação
Física. Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) é o
documento de caráter regulatório que define o conjunto de aprendizagens essen-
ciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas e modali-
dades da Educação Básica.
Nesse breve histórico da Educação Física Escolar no Brasil, percebe-
mos a predominância da influência europeia em seus conteúdos. Até os dias
atuais, verificamos uma prática corporal, ainda, com a hegemonia de nossos
colonizadores.
A Lei n°. 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da histó-
ria e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino
fundamental e médio, representou um importante passo nas políticas de ações
afirmativas e de reparação para a educação básica.
Segundo Oliveira e Candau (2010), nos fundamentos teóricos da legislação,

1 Mestre em Pedagogia do Movimento, licenciada em Educação Física e Pedagogia. Pro-


fessora do Centro Universitário Santanna e Serviços Técnicos Educacionais na Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo. email: tiemi.kerr@sme.prefeitura.sp.gov.br.

175
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

afirma-se que o racismo estrutural no Brasil agrava desigualdades e gera injus-


tiça. Há uma demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, va-
lorização da diversidade e afirmação de direitos que passam pela superação do
etnocentrismo, que considera a própria cultura superior, e das perspectivas euro-
cêntricas na interpretação de nossa história.
Nesse sentido, este capítulo apresentará uma pauta formativa na perspec-
tiva decolonial para professores de Educação Física oferecida pela Secretaria
Municipal de Educação do município de São Paulo.

PEDAGOGIA DECOLONIAL

Ao explicar a pedagogia decolonial, Oliveira e Candau (2010) resgatam


as experiências e histórias marcadas pela colonialidade para propor um “outro”
pensamento crítico a partir da América Latina, com outros autores na perspec-
tiva da decolonialidade, que luta contra a negação histórica da existência dos
não-europeus, como os afrodescendentes e indígenas da América Latina.
Os autores trazem a referência de Catherine Walsh, que apresenta o con-
ceito de interculturalidade e propõe um giro epistêmico que inclui os conheci-
mentos subalternizados e os ocidentais, numa relação tensa, crítica e mais igua-
litária. No campo educacional, essa perspectiva não se restringe à mera inclusão
de novos temas nos currículos ou nas metodologias pedagógicas, mas se situa
em uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva que representa
a criação e a construção de novas condições sociais, políticas, culturais e de
pensamento.
De acordo com Colares da Mota-Neto (2018), as pedagogias decoloniais
estimulam o pensar a partir de genealogias, racionalidades, conhecimentos, prá-
ticas e sistemas civilizatórios e de vida distintos. Ele analisa as contribuições de
Paulo Freire no movimento da educação popular latino-americana como refe-
rência intelectual e política quando requer professores subversivos, progressistas,
democráticos, críticos, que não reproduzam as práticas e relações sociais vigen-
tes para uma transformação na sociedade.
O autor relata a proposta de educação ligada aos interesses das camadas
populares, superando a invasão cultural, a colonialidade e o colonialismo inte-
lectual e pedagógico. Ao enfrentar essa racionalidade estreita, Paulo Freire con-
tribui para a consolidação de uma pedagogia decolonial em nosso continente,
valorizando as culturas, as memórias e os saberes das classes populares. E isso
se dá por meio da pesquisa do universo temático (tema gerador) e através do
diálogo profundo, construtivo e permanente em todos os momentos do processo
educativo.
Ele destaca a busca de Paulo Freire por outras coordenadas epistemológicas,
176
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

enfrentando binarismos clássicos do pensamento moderno, como objetividade


x subjetividade, razão x emoção, indivíduo x sociedade, cultura x economia,
psicologia x sociologia, macropolítica x micropolítica, fé x ciência, ensino x
aprendizagem, pesquisador x comunidades, liderança x povo, cultura erudita x
cultura popular, local x global. E afirma que, assim como Freire (1978) falou em
“descolonizar as mentes” e em “reafricanizar as mentalidades”, ele defende que
uma pedagogia decolonial deve “latino-americanizar as mentalidades”.
Durante mais de três séculos, cerca de 4 milhões de africanos foram es-
cravizados para trabalharem, principalmente, em atividades de cultivo e mine-
ração no Brasil. Como explica o antropólogo Kabengele Munanga, esses po-
vos contribuíram para nossa cultura através de sua língua, culinária, religião,
artes musicais e visuais. Ele destaca que “Estas contribuições culturais preci-
sam ser resgatadas positivamente, desconstruindo imagens negativas que fize-
ram delas e substituindo-as pelas novas imagens, positivamente reconstruídas”
(MUNANGA, 2012, p. 11).
As manifestações culturais apresentam muitos exemplos de práticas
corporais influenciadas pelos povos africanos que, em sua maioria, apresen-
tam os valores civilizatórios dessas sociedades: Energia Vital-Axé, Oralidade,
Circularidade, Religiosidade, Ancestralidade, Memória, Corporeidade,
Musicalidade, Ludicidade, Cooperatividade (TRINDADE, 2005).
Barros dos Santos (2017) relaciona como os saberes escolares podem
contemplar a filosofia africana ao viver a solidariedade da ancestralidade com
valores básicos de sua cultura: força, fecundidade e harmonia com a natureza,
que decorrem posturas sociais de respeito ilimitado aos mais velhos e o dever de
cuidar de todos, para que todos cuidem do indivíduo e da natureza. A ancestra-
lidade, memória e oralidade são representadas pelo símbolo africano Sankofa,
traduzido como “volte e pegue” (na língua axante san=voltar, ko=ir e fa=bus-
car). Trata-se de um adinkra, conjunto de representações que expressam provér-
bios de sabedoria do povo asante, da África Ocidental. O pássaro tem a cabeça
virada para trás e segura um ovo que simboliza o passado, ele voa para frente
sem esquecer do passado. Foi interpretado por Abdias do Nascimento como
“retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

SABERES DECOLONIAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Podemos perceber a presença de várias práticas corporais de matriz africa-


na registradas como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Tambor
de Crioula do Maranhão, Jongo no Sudeste) e da Humanidade (roda de capoei-
ra e frevo) pela UNESCO.
177
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

No estudo de Pereira e colaboradores (2019), dentre 55 professores de


educação física de escolas públicas municipais que lecionam de 6° a 9° ano do
ensino fundamental II da rede municipal de Fortaleza, a maioria dos professo-
res não sabe do que tratam as leis, mas trabalham a temática étnica na escola
e afirmam que o conteúdo faz parte da disciplina. Os autores concluem que é
preciso remodelar as práticas pedagógicas e dar uma maior atenção à formação
de professores para tal assunto, diante do desafio de construírem-se caminhos
para o ensino.
Pastoriza (2019) analisou as representações e as práticas pedagógicas dos
professores de educação física sobre a Cultura Afro-Brasileira em uma Escola
Municipal de Ensino Fundamental de Porto Alegre-RS. Os resultados investi-
gados mostraram que a grande maioria dos docentes relatou terem presenciado
a ocorrência de atos discriminatórios com seus alunos, principalmente os rela-
cionados à associação da cor da pele, aos apelidos étnico-raciais e aos atributos
físicos/fenótipos. Muitos deles relataram ter dificuldades em associar os conteú-
dos advindos das leis com seus conteúdos programáticos. Apesar disto, quase
todos os docentes manifestaram a necessidade de maiores esclarecimentos sobre
as questões étnico-raciais na escola, sugerindo reuniões e seminários específi-
cos a serem oferecidos pela mantenedora (Secretaria Municipal de Educação
– SMED).
Para a garantia da Lei n°. 10.639/03 e consequente valorização da cultura
africana, uma das pautas formativas para os professores de educação física da
rede municipal de São Paulo contemplou essa temática, como será relatado a
seguir.

FORMAÇÃO CONTINUADA NA REDE MUNICIPAL DE SÃO


PAULO

Em 2022, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo ofereceu uma


formação continuada em serviço aos professores da rede denominada Formação
da Cidade. Os professores foram organizados pelo ciclo de aprendizagem e com-
ponentes curriculares em salas de aula virtuais. A formação foi composta por 81
horas distribuídas entre os meses de março a novembro com pautas formativas
semanais, além de três encontros síncronos e três lives.
Uma das pautas do componente Educação Física enfatizou a perspec-
tiva decolonial. A pauta iniciou questionando o que os atletas LeBron James,
Muhammad Ali, Serena Williams e Formiga apresentam em comum. A res-
posta direcionava para o artigo “10 atletas negros que entraram para a histó-
ria no combate ao racismo”, do site Impulsiona, que apresenta a história des-
ses e outros atletas negros que inspiraram milhões de pessoas no combate à
178
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
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discriminação através do esporte.


O objetivo foi aprofundar os estudos sobre as intencionalidades de uma
prática pedagógica pautada nos princípios de uma Educação Antirracista. Para
tal, seguimos o documento de Orientações Pedagógicas para uma Educação
Antirracista (SÃO PAULO, 2022a) com os seguintes princípios:
- Não somos todos iguais e essa compreensão enriquece o cotidiano educacional;
- O rompimento com o padrão branco de beleza e eficiência possibilitará o aco-
lhimento de diversidades de experiências nas práticas pedagógicas das UEs;
- As narrativas a serem contadas para e com os bebês, crianças, adolescentes,
jovens e adultos, precisam relacionar-se com as potências.
- Não devemos negligenciar fatos históricos, entretanto, focar exclusivamente
em agruras contribui ainda mais para a perpetuação do racismo;
- A população negra não apenas contribuiu e, sim, participou ativamente dos
processos de construção do território brasileiro.
A seguir, propõe-se a descolonização dos olhos, ouvidos e pensamento
convidando os educadores a visualizarem uma história menos eurocêntrica, a
fim de que tenham repertório para ressignificar as nossas falas, cuidar da nossa
postura e garantir que estejamos atentos à valorização da diversidade étnico-ra-
cial nas práticas cotidianas das unidades escolares (SÃO PAULO, 2022a), como
pode ser exemplificado na Figura 1.

Figura 1: Formação da Cidade Educação Física

Fonte: SÃO PAULO, 2022b, p.7

179
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Procuramos ampliar a perspectiva eurocêntrica a partir dos Valores


Civilizatórios Afro-brasileiros (TRINDADE, 2005) apontados nas Orientações
Pedagógicas para uma Educação Antirracista (SÃO PAULO, 2022a) com as
seguintes questões:
- No caso dos esportes, a questão do estereótipo aparece: alguns são vistos como
“lugar” para atletas negros, a exemplo do futebol, basquete, corrida e boxe.
Outros, como a natação, as artes marciais e o tênis, por exemplo, são espaços,
muitas vezes, negados ao corpo negro.
- Um aspecto positivo em relação às corporeidades é o fato de que a capoeira
tem sido muito praticada nas escolas para promover o respeito ao corpo e à
cultura negra, uma vez que na roda de capoeira estão presentes todos os valores
civilizatórios africanos. Assim como as práticas de passinho de Funk e do break-
dance têm promovido o reconhecimento e a valorização da cultura negra.
Na sequência, foram resgatadas as práticas pedagógicas compartilhadas
em semanas anteriores com exemplos selecionados de atividades relacionadas
aos Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento do eixo Dança que valori-
zam a cultura africana e afro-brasileira de práticas pedagógicas dos professores
da rede (amarelinha africana, maculelê e maracatu). A partir dessas práticas pe-
dagógicas dos professores, propôs-se uma reflexão sobre a ação docente a partir
da seguinte consigna:
A prática da reflexão sobre a ação é mobilizadora para um fazer crítico,
não apenas reprodutor de um sistema. Nesse sentido, a compreensão sobre
conceitos relativos ao currículo representa o primeiro passo para a reflexão acer-
ca da implementação dos documentos que norteiam a ação docente na rede
municipal.
Refletir sobre as experiências favorece o olhar para si próprio, confron-
tando o que se quer com o que se faz. Isso faz com que se consiga entender as
contradições entre o que é desejado e o que é realizado em nosso cotidiano. O
conflito que surge provoca uma reação, estimulando a busca de meios para re-
solver as contradições e fortalece a ação para uma mudança.
Para finalizar, foram apresentadas questões instigadoras sobre a prática
pedagógica dos professores:
- Suas práticas pedagógicas favorecem a Educação Antirracista?
- Como podemos valorizar a cultura africana e afro-brasileira em nossas aulas?
- Quais as questões instigadoras sobre os preconceitos raciais podemos apresen-
tar aos nossos estudantes ao ensinar cada um dos eixos temáticos?
- Quais ações docentes privilegiam as práticas corporais europeias?
Ao final da pauta, houve um espaço para compartilhamento de inter-
venções pedagógicas, indicação de artigos sobre Educação Física Antirracista

180
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

(ANJOS, 2022; NOBREGA, 2020) e livros sobre jogos e brincadeiras de ma-


triz africana: Brincadeiras africanas para a educação cultural (CUNHA, 2016)
e Catálogo de jogos e brincadeiras africanas e afro-brasileiras (PINTO; SILVA;
NUNES, 2022).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o histórico eurocêntrico da educação brasileira e, em par-
ticular, da educação física, a presente proposta de pauta formativa pretendeu
apresentar reflexões sobre a perspectiva decolonial do currículo refletindo sobre
princípios de uma educação antirracista e resgatando manifestações de práticas
corporais de matriz africana.
Entendemos o grande desafio em superar as tradicionais práticas pe-
dagógicas pautadas em ginásticas e esportes europeus, mas apresentamos
possibilidades em se abordar a temática na educação física de forma crítica e
transformadora.
Estamos cientes de que não são apenas conteúdos a serem incluídos no
currículo, mas toda uma perspectiva decolonial com valores africanos pautados
em paradigmas que divergem do que temos como referência em nossa socieda-
de. Portanto, como destacam Oliveira e Candau (2010), não pretendemos ape-
nas incluir novos temas nos currículos ou nas metodologias pedagógicas, mas
almejamos uma práxis que construa novas condições sociais, políticas, culturais
e de pensamento.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

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183
DIRETRIZ CURRICULAR E RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS: ANÁLISE DA LEI Nº. 11.645/08 NO
CURRÍCULO PAULISTA
Anselma Garcia de Sales1
Átila Ferreira da Rocha2

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira é estruturada e organizada com base em diversas


desigualdades e preconceitos, sendo assim, para se alcançar uma sociedade mais
justa e democrática torna-se extremamente necessário o combate às estruturas
mantenedoras das iniquidades sociais, econômicas, políticas e raciais. Assim, o
cerne do problema da desigualdade ao acesso da cidadania no Brasil está ligado
às relações racistas, desenvolvidas concomitantemente com a formação social,
econômica e política brasileira. É impossível pensar a organização do Brasil sem
entender os meandros do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019).
Diversos setores sociais brasileiros, como alguns partidos progressistas,
ONGs ligadas à defesa da igualdade racial, organizações antirracistas e os diver-
sos movimentos negros, lutam para acabar com o racismo estrutural e assim,
ampliar a cidadania para que seja garantido o direito de ir e vir, a segurança, o
fim dos preconceitos e discriminações, igualdade de acesso às políticas públicas,
buscando, dessa forma, que todas as pessoas do país tenham acesso igualitário
aos direitos civis, políticos e sociais O movimento negro tem o protagonismo na
luta contra o racismo estrutural, desse modo, uma das pautas relevantes desse
movimento é relativa a uma educação antirracista que garanta o acesso e a per-
manência de estudantes negros e afrodescendentes nos bancos escolares; nesse
sentido, é possível afirmar que a luta educacional do movimento negro obteve
algumas vitórias (TRINDADE, 1994).
O Governo Lula, no ano de 2003, cedendo à pressão do movimento ne-
gro, criou a Lei n°. 10.639/03. Essa regulamentação determinou o ensino da
história e cultura da África e dos afro-brasileiros em todos os níveis educacionais
do Brasil. Em 2008, o mesmo governo aprovou a Lei n°. 11.645 estendendo a

1 Doutora em Letras pelo Programa de Estudos Árabes, da Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
2 Mestrando em História pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História,
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IF-
CH-UNICAMP).

184
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

obrigatoriedade do ensino da cultura e da história dos povos indígenas.


Em 2019, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo na admi-
nistração do Governo João Dória (2019-2022) pelo partido PSDB (Partido
da Social-Democracia Brasileira) elaborou um currículo educacional voltado
ao atendimento das normas definidas pela Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Na BNCC, os conteúdos sobre as Leis n°. 10.639/03 e n°. 11.645/08
são apresentados de maneira direta e literal na orientação a respeito de como
os currículos educacionais devem trabalhar a temática indígena, africana e
afro-brasileira:
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-
ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas
no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na for-
mação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (BRASIL,
2008).

Assim, a partir do cotejamento da Lei n°. 11.645/08 com o Currículo


Paulista dos Anos Finais do Ensino Fundamental (SÃO PAULO, 2019), este
estudo tem a intenção de analisar se o documento paulista, no âmbito das suas
competências e habilidades do componente curricular de História, atende aos
dispositivos da lei, sobretudo, em relação à contribuição socioeconômica e polí-
tica dos africanos e seus descendentes.
Entretanto, a fim de que a análise que esta pesquisa pretende desenvolver
seja exitosa, é fundamental que a seguinte questão seja discutida: as habilidades
da disciplina de história do Currículo Paulista apresentam as contribuições dos
africanos na formação econômica, social e política do Brasil prevista pela Lei
n°. 11.645 de 2008?
Em primeiro lugar, constata-se historicamente que os negros são excluídos
dos sistemas educacionais brasileiros (BONILHA, 2015). Com a Constituição
de 1988, houve um esforço de inclusão de grupos sociais alijados do direito à
educação, contudo, as escolas continuaram com a segregação, ou seja, o maior
número de evasão escolar e as maiores taxa de analfabetismo se encontram na
população negra (IBGE, 2019). Além disso, os conhecimentos africanos e afro-
-brasileiros continuaram a ser marginalizados e o pouco da história e da cul-
tura negra que apareceu nos currículos escolares após a Constituição Cidadã,
foi feito a partir de concepções eurocêntricas. Por isso, no intuito de diminuir
essa lacuna no ensino da História e promover a valorização dos povos africa-
nos e afrodescendentes, os Movimentos Negros, durante o primeiro Governo do
Fernando Henrique Cardoso (1994-1997/PSDB), obtiveram a criação de grupos
interministeriais para debater e desenvolver políticas que visassem à valorização
185
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

da cultura africana e afro-brasileira (GONÇALVES, 2011).


Deste modo, para analisar se o Currículo Paulista atende a lei n° 11.645/08
no quesito da contribuição africana e afro-brasileira na formação socioeconômi-
ca brasileiro, é preciso considerar as seguintes questões: as habilidades apresen-
tadas no documento educacional de São Paulo são afrocentradas ou apresentam
visões eurocêntricas? Mostram os negros e negras nas suas diversidades ou fo-
cam apenas nas questões econômicas da lógica escravista luso-brasileira?
Levanta-se a hipótese que o Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019) na
disciplina de História nos Anos Finais do Ensino Fundamental, trabalha obriga-
toriamente, segundo prescrição legal, algumas temáticas relacionadas aos afri-
canos e afro-brasileiros. Entretanto, é recorrente a constatação de que a maioria
das habilidades ligadas à história da África e seus descendentes estão relaciona-
das apenas ao processo de escravidão. Todavia, quando não estão relacionadas
ao sistema escravista, as habilidades adotam uma concepção eurocêntrica da
História e da cultura negra, ou ainda, trabalham as temáticas por meio de con-
ceitos genéricos.
Assim, para a análise que este trabalho pretende desenvolver, será ini-
cialmente apresentado um breve resumo da história da origem da ideologia do
racismo estrutural no Brasil. Em seguida, as habilidades do Currículo Paulista
serão comparadas com as determinações da Lei n°. 11.645/08. Neste exercí-
cio analítico serão utilizadas as contribuições dos debates de diversos autores
relacionados ao currículo, à Base Nacional Comum Curricular, ao racismo e à
filosofia de exclusão.

A HISTÓRIA DA EXCLUSÃO DO NEGRO, A LEI Nº. 11.645/08 E O


CURRÍCULO PAULISTA

Nas diversas sociedades, os grupos detentores do poder econômico desen-


volvem arranjos para a monopolização do conhecimento. Os grupos opresso-
res só conseguem a hegemonia social através da exclusão do conhecimento dos
oprimidos. Nas sociedades capitalistas ocidentais uma das configurações desse
arranjo da manutenção do poder é a concepção inequívoca do conhecimento.
Nessa concepção, os detentores dos meios de produção afirmam que sua
matemática, sua história, sua linguística, sua geografia, sua biologia, sua física
e sua sociologia, são as únicas configurações possíveis, ou as mais verdadei-
ras e cientificamente comprovadas. Com essa elaboração os grupos hegemôni-
cos conseguem politizar (às avessas), deteriorar e alienar os grupos oprimidos
(CORTELLA, 2014).
Assim, todos os seres humanos, são seres políticos. O professor ao não
proporcionar ao aluno o entendimento da produção do conhecimento, ou ao
186
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

excluir grupos sociais, está agindo de uma forma política mais incisiva, que
propicia a manutenção das estruturas sociais vigentes e suas contradições. O
docente agindo de forma intencional ou não, pode ser agente conservador das
desigualdades sociais que resistem ao tempo. Existe uma filosofia em curso de
exclusão escolar tanto física, como cultural dos grupos oprimidos. Esse modelo
de eliminação de saberes dos educandos do processo de ensino e aprendiza-
gem regular ganha um teor mais acentuado sobre a população negra brasileira
(CORTELLA, 2014).
O Brasil é um país formado pela miscigenação de diferentes grupos étni-
cos, principalmente de matrizes de origens africanas, indígenas e portuguesas.
Todavia, a formação do país é estruturada na escravidão, nas justificativas para
a obscenidade desse modelo de exploração e no eurocentrismo.
Na invasão portuguesa das terras sul-americanas e com a intenção de dar
um sentido mercantil para a colonização, os lusitanos perceberam a necessidade
de mão-de-obra influenciados pelo ideário cultural ibérico que concebia o traba-
lho braçal como inferior. Assim, desde o surgimento das Capitanias Hereditárias,
os portugueses escravizaram grupos indígenas e em seguida, diversas etnias afri-
canas. Ao contrário do que é ensinado em diversos manuais didáticos, mesmo
com o fim legal da escravidão dos povos originários, na prática muitos indígenas
continuaram sendo obrigados a passar pelos horrores de escravidão (FAUSTO;
FAUSTO, 2009, p. 95)
Desse modo, a escravidão foi desenvolvida de maneira simbiótica com a
sociedade brasileira. Por volta de 1550, os portugueses desenvolveram uma nova
modalidade de escravidão, a exploração forçada por motivos étnicos e mercantis.
A escravidão existe desde as primeiras sociedades, normalmente a lógica
para uma pessoa permanecer em uma situação de escravidão estava ligada às guer-
ras, crimes e dívidas, sendo que qualquer pessoa poderia ter o infortúnio de estar
em uma situação de aprisionamento. Entretanto, os portugueses desenvolveram
um sistema escravista na África motivado por um comércio muito lucrativo, uti-
lizando principalmente os motivos ligados ao ganho monetário como objetivo da
escravidão. Além disso, os portugueses e a Igreja Católica desenvolveram a ideia
de que apenas um grupo específico de pessoas deveria ser escravizado pelas carac-
terísticas étnicas condicionadas à cor negra da pele (BILHEIRO, 2008).
Essa escravidão mercantil e étnica foi desenvolvida encrustada na socie-
dade brasileira, ditando as relações econômicas, sociais, políticas e culturais
até o momento presente. Segundo diversos pesquisadores, não há raça entre os
humanos. Entretanto, para legitimar esse modelo específico de escravidão, os
portugueses e a Igreja Católica criaram uma série de justificativas para a escra-
vidão das pessoas negras. Conforme Bilheiro (2008, p. 102) “[...] optou-se por

187
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

denominar congruência da Igreja com o Estado na construção de uma ideologia


escravocrata no Brasil”.
Segundo os portugueses, os africanos (como se as milhares de etnias afri-
canas fossem apenas uma) eram uma sub-raça, um grupo inferior em compara-
ção com os europeus. E a Igreja Católica, enquanto beneficiária do colonialismo
português, lançou bulas com justificativas teológicas para a escravidão:
os africanos são descendentes de Cam, outro personagem bíblico cujo pai,
Noé, o amaldiçoou (e a toda sua descendência). O pai proferiu a maldi-
ção sobre o filho por ele ter feito chiste de sua nudez, em certa ocasião,
enquanto os demais filhos o auxiliaram, trazendo algo com o que se co-
brir. Essa maldição, segundo a teologia que justificava e dava manutenção
da escravidão brasileira, foi aprovada e ratificada pelo próprio Criador”
(BILHEIRO, 2008, p. 98).

Essas justificativas teceram as relações na América portuguesa, colocan-


do o negro sempre como figura inferior. Além disso, ser negro no Brasil era
indicativo de ser escravizado ou ter ligações sanguíneas com escravos, ou seja,
criou-se o estigma da pele negra.
Após a independência, o Brasil manteve a escravidão por sessenta e seis
anos e no processo de abolição da escravidão negra, diversas pessoas da elite
brasileira costuraram uma emancipação negra sem acesso à educação, trabalho
e renda, ou seja, apesar do fim da escravidão os negros continuaram marginali-
zados (PROJETO QUIRINO, 2022).
Por sua vez, as classes dominantes no Brasil, apoiadas no conceito do
darwinismo social do Conde Arthur Gobineau, afirmavam que os negros eram
uma raça inferior e profetizavam uma destruição genética para o Brasil devi-
do à miscigenação. Embora essa ideologia fosse propagada como ciência pelos
seus defensores, não havia nenhuma evidência do seu embasamento científico
(SOUSA, 2013).
Dessa forma, foi desenvolvida a política de branqueamento da sociedade
brasileira, na qual diversos europeus, principalmente os italianos foram incen-
tivados a vir para o Brasil e ocupar as funções que os negros desempenhavam,
mas, agora de forma remunerada. Criou-se o mito de que os negros e a miscige-
nação destruíam a sociedade brasileira e não estavam aptos ao trabalho remune-
rado (PEREIRA; SILVA, 2012).
Nesse contexto, foi negado aos negros e negras a oportunidade de traba-
lho, renda, educação. As atividades culturais de matrizes afro-brasileiras foram
colocadas como “erradas, feias ou práticas de pecado”. Diversas escolas não
aceitavam pessoas negras, foram criados o imaginário e o estigma do “negro
vadio” que não se adaptava ao trabalho remunerado. A cultura e a religião negra
foram proibidas e perseguidas (PROJETO QUIRINO, 2022).
188
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

Dessa maneira, a intenção da elite brasileira era exterminar o negro junto


com a abolição, levando a cabo uma política eugenista, genocida e de branquea-
mento. Ainda assim, a cultura de resistência dos negros sobreviveu a todas essas
adversidades. Enquanto as escolas eram negadas à população negra, diversos
negros criaram institutos de ensino voltados para a educação dos afrodescen-
dentes como os organizados por Manuel Quirino, Antonieta de Barros, entre ou-
tros. O trabalho negro foi precarizado e negado, entretanto, pessoas como João
Cândido e Laudelina de Campos Melo lutaram pelos direitos dos trabalhadores
e trabalhadoras. Os terreiros e as comunidades católicas negras, foram persegui-
dos, todavia as mães de santo e os dirigentes negros resistiram pelo direito de
professar a sua fé. A despeito da proibição das manifestações culturais negras,
a capoeira, o samba, o Tambor de Crioula, o jongo, entre outras manifestações
persistiram (PROJETO QUIRINO, 2022).
Assim, o racismo estrutural da sociedade brasileira tem sua origem ligada
a diversos fatores, como: a exploração do colono negro3no Brasil, as justificati-
vas teológicas e eurocêntricas para a escravidão, a abolição tardia de 1888 sem
reparação social e econômica, a ausência de políticas de inserção dos africanos e
seus descendentes na sociedade, além da tentativa permanente do genocídio dos
negros e negras no Brasil (PROJETO QUIRINO, 2022).
O racismo perpassa pela cultura e por todas as instituições da socieda-
de brasileira. Implementando uma desigualdade de acesso à educação, traba-
lho e renda entre negros e brancos. Além disso, os negros foram alvo de dife-
rentes tipos de violência no Brasil, com ênfase na violência física e simbólica
(ALMEIDA, 2019).
Os negros são acometidos por mais situações de violência do que a popu-
lação branca, segundo o estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) “Desigualdade social por cor e raça”, de 2019. As pessoas negras têm qua-
se três vezes mais chances de serem vítimas de homicídios, além disso, os negros
mais jovens (quinze a vinte e nove anos) são assassinados e passam por situações
de extrema violência com muito mais frequência. A população negra também é
vítima de violências psicológicas constantes, sofrendo ataques dos mais variados
tipos, como proibição ao acesso a determinados lugares, violências verbais e o
medo decorrente da violência física a qual estão mais sujeitos (IBGE, 2019).
Os negros no Brasil, têm a menor remuneração em comparação com a
população branca. De forma geral, os brancos chegam a ganhar 70% a mais do
que os negros. Esse índice piora, pois os cargos com maiores rendimentos são

3 Escravidão é uma situação, isso não define o ser humano. Colono negro foi a forma que
a pesquisa do Projeto Quirino definiu as pessoas que vieram da África para o Brasil for-
çadas. Pois trouxeram o seu modo de vida e a sua cultura para a sociedade da América
Portuguesa.
189
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

ocupados por quase 80% de pessoas brancas. Já o índice que representa os 10%
mais pobres da população, é composto por 75% de pessoas negras (IBGE, 2019).
As mulheres negras sofrem ainda mais com as desigualdades, pois enfren-
tam as amarras do machismo e do racismo estrutural. Os empregos com menores
remunerações do país são ocupados majoritariamente por elas. Além disso, em
diversas habitações lideradas economicamente por essas mulheres, não há máqui-
na de lavar roupa, ou seja, ganham menos e têm uma carga de trabalho doméstico
maior por não terem acesso a eletrodomésticos. Ainda segundo o instituto: “No
tocante à pobreza monetária, a proporção de pessoas pretas ou pardas com rendi-
mento inferior às linhas de pobreza, propostas pelo Banco Mundial, foi maior que
o dobro da proporção verificada entre as brancas” (IBGE, 2019).

LEIS N°. 10.693/03 E N°. 11.645/08

Na tentativa de promover a inserção de negras e negros no mercado de


trabalho, com melhor qualificação e consequentemente melhor remuneração, o
movimento negro luta, desde a década de 1970, pelo acesso das pessoas negras
aos bancos escolares. Além disso, reivindica a inclusão de conteúdos e habili-
dades ligadas aos conhecimentos, filosofias, literatura, arte e história negra nos
currículos escolares. (TRINDADE, 1994).
Em 2003, o movimento negro viabilizou a aprovação da Lei n°. 10.639,
de 2003, e alterou a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional de 1996.
Com isso, o ensino de história africana e afro-brasileira nos estabelecimentos
de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares passou a ser obrigatório.
Segundo a lei:
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá
o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil. (BRASIL, 2003).

Em 2008, tivemos um novo avanço em relação à problemática da exclu-


são dos conhecimentos dos grupos oprimidos no Brasil. Foi aprovada a Lei nº.
11.645, de 10 março de 2008, incluindo também a obrigatoriedade da história e
cultura indígena (BRASIL, 2008).
O governo Lula (2003-2007) criou a Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) na tentativa de efetivar as determina-
ções da Lei nº. 10.639/03. Contudo, como demonstra a pesquisadora Leonor
Franco Araújo (2021) nas redes de ensino brasileira, não houve uma efetiva-
ção prática das determinações propostas pela lei. Isso se deve às dificuldades de
implantar cursos de qualidade nas universidades, à estrutura racista do ensino
190
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

brasileiro e ao pouco investimento em capacitação dos professores, além da au-


sência de uma responsabilização dos Poderes Executivos (Federal, Estaduais e
Municipais) na efetivação da Lei.
No trâmite de aprovação, ocorreram dois vetos importantes em relação
à Lei n°. 10.639/03. O primeiro veto foi na obrigatoriedade de no mínimo dez
por cento dos conteúdos na disciplina de História e Educação Artística voltada
ao afro-brasileiro e africano. O segundo veto, foi em relação às faculdades das
licenciaturas em História, Educação Artística e Literatura que deveriam contar
com a participação dos movimentos negros na elaboração dos currículos. Os
vetos, principalmente o segundo, demonstraram a exclusão do conhecimento
afrocentrado. Em diversos cursos de graduação, a história africana passou a ser
trabalhada, porém com a mesma concepção eurocêntrica. Além disso, a não de-
terminação de conteúdos mínimos, faz com que os currículos trabalhem poucos
temas ligados à história africana e, em muitos casos, as habilidades se limitam ao
período de escravidão, ou seja, não são abordadas as diversas contribuições dos
africanos e dos seus descendentes no Brasil (ARAÚJO, 2021).
A despeito disso, foi criado um hábito de percepção de que as conquis-
tas sociais são sempre cumulativas. Entretanto, além de lutar pelas conquistas
sociais, é necessário defrontar as classes dominantes e as estruturas socioeco-
nômicas para manter os direitos adquiridos. Exemplo disso, foi o período que
compreendeu o segundo Governo Dilma Rousseff (2015/2016) e, em especial,
o governo de Michel Temer (2016/2018), no qual se constatou uma sujeição às
diversas pressões das classes dominantes, que trouxe como consequência para as
classes oprimidas revezes e perda de direitos.
Nesse contexto, foi aprovada em 2017, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Esse documento deveria orientar os conhecimentos mínimos que os
estudantes devem aprender:
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados
seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com
o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2017).

Segundo o site do Ministério da Educação (MEC), a responsabilidade da


BNCC abrange apenas orientar as habilidades mínimas que os estudantes bra-
sileiros devem aprender, mas tornou-se um manual definidor das habilidades e
competências dos currículos educacionais dos estados e municípios:
Conforme definido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB, Lei nº 9.394/1996), a Base deve nortear os currículos dos sistemas
e redes de ensino das Unidades Federativas, como também as propostas
191
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil,


Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil (BRASIL, 2022,
n.p).

A escola e o conhecimento não são neutros. Desse modo, ao criar um


currículo “obrigatório” para todas as redes, o governo e as instituições que a
elaboraram expressam suas aspirações de sociedade baseados em uma visão es-
pecífica de organização social.
Como decorrência, forma-se uma espécie de consenso segundo o qual
é inútil opor-se às mudanças, já que expressariam legítimas e profundas
transformações no sentimento da população, cujo senso-comum rendeu-se
finalmente a dura e incontornável Facticidade da economia. Em virtude
disso, o máximo que se poderia “realisticamente” pretender seria assimilar
tais mudanças e delas tirar partido prático (SHIROMA, 2002, p. 54).

Desse modo, o Currículo Paulista foi baseado na BNCC, refletindo o


mesmo modelo de sociedade aspirado pelo documento federal. Assim, na aná-
lise do documento estadual foi necessária a recorrência a elementos da BNCC.
O Currículo Paulista tem como objetivo garantir “educação de qualidade
a todos os estudantes” (SÃO PAULO, 2019). Entretanto, não fica claro o que
os elaboradores do Currículo Paulista entendem por qualidade. A educação de
qualidade para um neoliberal e para setores progressistas possuem concepções
diferentes. Utilizar conceitos sem definições estabelecidas pode ser uma estraté-
gia dos elaboradores do Currículo Paulista para passar a imagem de neutralidade
do documento. Apesar disso, ao analisar as Competências Gerais, fica notória
a influência dos quatro pilares da educação4 e a visão neoliberal do documento.
continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade
justa, democrática e inclusiva. (...) hipóteses, formular e resolver proble-
mas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos
das diferentes áreas. (...) expressar e partilhar informações, experiências,
ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que le-
vem ao entendimento mútuo. (...) produzir conhecimentos, resolver pro-
blemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (...) 6.
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais (...) ético em rela-
ção ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. (...) indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza. 10.Agir pessoal e coletivamente com
autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, to-
mando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários (SÃO PAULO, 2019, p. 29).

Evidenciam-se os conceitos de continuar aprendendo, saber fazer, convi-


ver e conhecer no Currículo Paulista. Essas competências travestidas de ideias

4 Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Conviver e Aprender a Ser.


192
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

atualizadas e modernizadoras, na verdade possuem a intenção de desenvolver


na sociedade, pessoas capacitadas para as adversidades sociais que a economia
de mercado está impondo, pois, a classe trabalhadora deve estar sempre apren-
dendo devido às incertezas do novo modelo de trabalho, aumento da exposição
da situação de vulnerabilidade social e econômica. Assim, encontra-se a ideia de
que esse modelo, baseado nos quatro pilares da educação, segue a mesma lógica
e intencionalidade dos organismos internacionais, tal como o Banco Mundial,
ou seja, qualidade de educação relaciona-se à formação de pessoas para o mer-
cado de trabalho (SHIROMA, 2002).
Essa perspectiva de educação é contrária a uma sociedade que respeite
e entenda a diversidade, tornando flagrante que o objetivo das diretrizes dos
documentos dos organismos internacionais e da BNCC é homogeneizar as pes-
soas. Assim, para garantir a hegemonia do neoliberalismo, a classe trabalhado-
ra precisa adquirir habilidades e competências ligadas ao modelo de sociedade
arquitetada pelo mercado, aceitar incertezas, precarização, perda dos direitos
sociotrabalhistas e mudar de área de trabalho de acordo com a necessidade do
mercado (LIMA; SENA, 2020).
Nessa perspectiva neoliberal, não há espaço para a análise das proble-
máticas sociais brasileiras, pois ao serem trabalhados os conceitos ligados à di-
versidade, tais como, relações étnico-raciais, gênero, LGBTQIA+, desigualdade
espacial, relações de classe, se torna impossível a homogeneização do pensa-
mento. Assim, a educação para a diversidade é contrária à lógica de mercado.
Como demonstrado, os currículos não são neutros; o Currículo Paulista e
a BNCC receberam forte influência de fundações, organismos internacionais e
grupos empresariais (SENA, 2019). Nesse contexto, o novo currículo do Estado
de São Paulo possui a intenção de criar uma sociedade que explore ainda mais as
classes trabalhadoras, de acordo com o que demonstram os estudos de Barbosa
e Lastória (2021):
Das nove competências específicas, seis dizem respeito às com-
petências socioemocionais. Há um grande esforço, por parte da Secretaria
Estadual de Educação, em reordenar a luta de classes sob uma perspectiva
conservadora. É uma sociedade na qual não existem contradições, não
existem lutas de classes, mas sim a coexistência de indivíduos responsi-
vos que visam o bem comum, ou seja, as relações dialéticas existentes
entre classes sociais, com o Currículo Paulista, deixam de existir. E o papel
do professor é formar indivíduos ‘cordeiros’ para uma sociedade onde a
heteronomia e o respeito às normas sociais estabelecidas sejam reinantes
(BARBOSA; LIMA, 2021, p. 184-185)

Além disso, não podemos esquecer o caráter ontológico dualista do nosso


modelo de educação. As famílias ricas continuam a proporcionar uma educação

193
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

com conhecimentos amplos para os seus filhos, enquanto o Currículo Paulista


trabalha competências que, disfarçadas por conceitos vanguardistas, visam, na
sua essência, o desmonte das leis trabalhistas, a adaptação a condições precárias
de trabalho e não fomentam aos trabalhadores e trabalhadoras o desenvolvimen-
to da consciência para analisar a sua própria realidade (SENA, 2019).

ANÁLISE DO CURRÍCULO PAULISTA E A LEI N° 11.645/08:


PERMANÊNCIAS HISTÓRICAS

Após a análise das intencionalidades dos currículos, ressalta-se a questão


central deste estudo: como o Currículo Paulista trabalha as habilidades e com-
petências nos conteúdos de História dos Anos Finais do Ensino Fundamental
e insere as contribuições socioeconômicas dos africanos e seus descendentes na
formação do Brasil? A Lei n°. 11.645/08 aborda várias questões sobre o que
deve ser trabalhado em relação aos povos indígenas, africanos e seus descenden-
tes. Desse modo, esta pesquisa objetiva analisar se as habilidades de História
do Currículo Paulista apontam para o preconizado pela referida Lei, ou seja,
resgatar “[...] as suas contribuições (dos negros) nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à história do Brasil.” (BRASIL, 2008, n.p).
Sobre a metodologia da pesquisa, foram utilizadas fontes documen-
tais primárias. As principais fontes deste trabalho são o Currículo Paulista e
a Lei n°. 11.645/08. As fontes utilizadas são documentos e leis de arquivos
públicos Federal e do Estado de São Paulo, disponíveis na Internet nos sites
governamentais.
Para a compreensão a respeito de como os dispositivos da Lei n°.
11.645/08 são atendidos no Currículo Paulista na disciplina de História, foi
criado um gráfico que define e separa as habilidades obrigatórias do componen-
te curricular de acordo com os critérios relacionados à história afro-brasileira e
ao protagonismo do negro e da negra.
Com o objetivo de analisar os dados obtidos, foram utilizadas as contri-
buições das pesquisas relacionadas a currículo educacionais, racismo e relações
étnico-raciais no ambiente escolar. Assim, foram levantados os seguintes ques-
tionamentos como critérios: a habilidade exigida pelo documento trabalha a his-
tória dos africanos e dos seus descendentes? Ao serem abordadas as habilidades
que envolvem a história e cultura Africana e Afro-brasileira, está se evidencian-
do os indivíduos apenas em situação de escravidão? As habilidades trabalhadas
são genéricas e podem ser utilizadas para trabalhar com qualquer sociedade?
As habilidades resgatam as contribuições econômicas, políticas e culturais dos
africanos, africanas e afro-brasileiros e afro-brasileiras?
O Currículo Paulista apresenta como um dos objetivos da educação “à
194
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

necessidade de respeitar a diversidade cultural, a socioeconômica, a étnico-


-racial, a de gênero e os socioculturais presentes no território estadual.” (SÃO
PAULO, 2019, p. 27). Além disso, há duas competências específicas da discipli-
na de História no Currículo Paulista que orientam sobre a importância da contri-
buição africana, afro-brasileira e da diversidade na formação do povo brasileiro.
Compreender a história e a cultura africana, afro--brasileira, imigrante e
indígena, bem como suas contribuições para o desenvolvimento social,
cultural, econômico, científico, tecnológico e político, e tratar com equi-
dade as diferentes culturas. Compreender, identificar e respeitar as diver-
sidades e os movimentos sociais, contribuindo para a formação de uma
sociedade igualitária, empática, que preze pelos valores da convivência
humana e que garanta direitos.” (SÃO PAULO, 2019).

Em relação às habilidades do Currículo Paulista, a investigação no com-


ponente de História dos Anos Finais demonstra que há 110 habilidades, entre as
quais estão divididas da seguinte forma:
a) 79 habilidades são sobre temáticas diversas, ou seja, não abordam nenhuma
discussão apontada pela Lei nº. 11.645/08;
b) 31 habilidades relacionam, direta ou indiretamente, a história, cultura e con-
tribuições sociais da África e dos Afro-Brasileiros;
c) 8 habilidades estão relacionadas aos africanos e afrodescentes em situação de
escravidão no modelo europeu da Idade Moderna;
d) 4 habilidades contemplam as contribuições dos negros e das negras na forma-
ção do Brasil.

Gráfico 1: Habilidades do componente de Histórica do Ensino Fundamental Anos Iniciais


do Currículo Paulista

Fonte: Gráfico elaborado a partir do Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2019).

195
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

De acordo com o Gráfico 1, podemos notar que há 79 habilidades que


trabalham temáticas que não têm relação com os africanos e seus descendentes.
A maioria dessas habilidades estão relacionadas com questões europeias; orga-
nização das sociedades; influências dos europeus na América; relação de poder
entre a Europa e os demais continentes. Dentre elas, existem algumas exceções
às temáticas europeias, ou seja, há 4 habilidades que trabalham as sociedades
americanas antes das invasões europeias, sociedades mesopotâmicas, formação
dos Estados Unidos e da América latina.
Referente à abordagem dos africanos e os afrodescendentes sobre um viés
ligado à escravidão na América portuguesa e no Brasil Império, existem 8 habi-
lidades, nas quais os negros e negras são considerados apenas como um instru-
mento de trabalho. Não é intenção deste estudo negar a escravidão do colono
negro, mas mesmo nessa situação, seria possível trabalhar as contribuições eco-
nômicas, culturais e políticas dos africanos e afrodescendentes. Além disso, have-
ria habilidades que abordam o período da escravidão, com concepções afrocen-
tradas (relatando hábitos, costumes e cultura dos africanos e afrodescendentes).
Desse modo, tais habilidades, apesar de estarem ligadas à questão negra,
não atendem aos dispositivos da Lei n°. 11.645/08, pois não rompem a lógica
eurocêntrica. Por exemplo, a habilidade “(EF07HI16) Analisar os mecanismos
e as dinâmicas de comércio de escravizados em suas diferentes fases, identifi-
cando os agentes responsáveis pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de pro-
cedência dos escravizados.” (SÃO PAULO, 2019 p. 475). Essa abordagem está
ligada intrinsicamente às questões comerciais e econômicas, não evidenciando
o cotidiano negro na sua dimensão humanas nem na sua atuação como agente
histórico.
Existem ainda, 19 habilidades que poderiam ser classificadas como afro-
centradas. Contudo, numa análise das mesmas, é demonstrado que apesar de es-
tarem relacionados à África e seus descendentes, podem também ser trabalhadas
com diferentes sociedades, pois são temáticas genéricas. Para exemplificar pode-
mos citar a seguinte habilidade: “(EF06HI07A) Identificar as diferentes formas
de linguagens, registros, técnicas e artes nas sociedades antigas (África, Ásia e
Américas)” (SÃO PAULO, 2019, p. 474).
Assim, apenas 4 habilidades trabalham as contribuições dos africanos e
dos seus descendentes na formação socioeconômica do Brasil, atendendo, dessa
maneira, ao que é determinado pela Lei n°. 11.645/08:
(EF07HI03) Identificar aspectos e processos específicos das sociedades
africanas e americanas antes da chegada dos europeus, com destaque para
as formas de organização social e para o desenvolvimento de saberes e
técnicas, valorizando a diversidade dos patrimônios etnoculturais e artísti-
cos dessas sociedades. (EF09HI04) Discutir a importância da participação

196
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.


(EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na so-
ciedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados. (EF09HI08)
Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da di-
versidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das
mudanças de abordagem em relação ao tema” (SÃO PAULO, 2019, p.
474, 480, 485).

Diversas habilidades da segunda e terceira barra do Gráfico 1 poderiam


trabalhar as contribuições dos negros no Brasil, ou poderiam ter o africano e
o afro-brasileiro como protagonistas. Contudo, para esse posicionamento do
Currículo Paulista, é necessária uma educação antirracista, e o documento não
segue essa orientação.
A compreensão dos dados analisados aponta que as concepções de socie-
dade presentes nos documentos orientadores da educação brasileira, BNCC e
Currículo Paulista, têm como objetivo principal o preparo das pessoas para uma
sociedade que atenda às necessidades das classes dominantes, não deixando es-
paço às demandas por uma sociedade mais justa e que respeite as diversidades.
Além de o Currículo Paulista ser voltado para os interesses do mercado
(SENA, 2019), é explícita a presença do racismo estrutural. Como demonstrado
anteriormente, o racismo perpassa a construção do Brasil:
ele (o racismo) é um elemento que integra a organização econômica e polí-
tica da sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a
manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou
que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a
lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violên-
cia que moldam a vida social contemporânea (ALMEIDA, 2019, p 20-21).

Deste modo, o racismo na sociedade brasileira não é a exceção, mas algo


comum que dita a regra das organizações e instituições nacionais. Assim, o
Currículo produzido pelo governo do Estado de São Paulo continua a repro-
duzir o racismo, mesmo existindo a Lei n°. 11.645/08, a lógica racista não foi
superada. Esse retrocesso pode ser comprovado pela forma como os africanos e
afrodescendentes são retratados no currículo, através de uma perspectiva histó-
rica que os apaga enquanto atuantes na formação do Brasil, haja vista a predo-
minância de uma visão eurocêntrica que promove a exclusão do protagonismo
desses povos.
Portanto, o Currículo de São Paulo apresenta dois problemas em relação
ao atendimento dos dispositivos da Lei n°. 11.645/08. Primeiro o fato de ter sido
baseado nos anseios da elite econômica, que não dá espaço para as diversidades
contidas na sociedade. Segundo, não conseguiu superar a ideologia racista e
eurocêntrica enquanto documento orientador da educação paulista.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei n°. 11.645/08 no quesito da contribuição socioeconômica dos ne-


gros e negras na formação do Brasil é cumprida de forma parcial no Currículo
Paulista (2019), tendo em vista que este documento possui apenas quatro habili-
dades que atendem adequadamente essa determinação da legislação.
Assim, o Currículo Paulista tem como objetivo manifestar as aspirações
das classes dominantes e ajustar a população às demandas do mercado (LIMA,
2019). Esse modelo de sociedade inscrito no documento é contrário à diver-
sidade, pois é propagador da lógica racista presente no Brasil que considera a
participação e contribuição econômica, social, política e cultural do negro sob
um viés eurocêntrico.
Portanto, a história e cultura negra é parcialmente excluída do Currículo
Paulista, ao serem constatadas 31 habilidades que trabalham de alguma forma
a temática dos africanos e seus descendentes, de um total de 110 habilidades da
disciplina de História, ou seja, 28% das habilidades. Contudo, a maioria des-
sas habilidades são predominantemente eurocêntricas; abordam a questão dos
negros de forma vaga e subjetiva e não consideram sua participação enquanto
agente histórico. Apenas 4 habilidades, isto é, um total de 3,5% das habilida-
des, trabalham o negro e a negra como elementos chaves na formação do povo
brasileiro.
O conhecimento da história negra e da África contribui para um melhor
conhecimento acerca daquilo que se denomina de brasileiro. Além disso, a in-
clusão dos conteúdos e habilidades ligadas à história africana e afro-brasileira é
a possibilidade de autoafirmação e empoderamento político da população negra
e afrodescendente. Desse modo, enfatiza-se que a história negra não se resume
a escravidão. Na África e no Brasil, negras e negros tiveram reinos, sociedades,
conhecimentos e lutas que contribuíram na formação sociocultural e econômica
do Brasil.

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198
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

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cionais: avanço ou precarização da educação pública? Porto Alegre, RS: Edito-
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200
“ENTREMUNDOS”: AS HISTÓRIAS INDÍGENAS
E A EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERSPECTIVA
DA LEI N°. 11.645/2008
Ricardo de Mattos Martins Cunha1
Kerollainy Rosa Schütz2
Adriana Aparecida Belino Padilha de Biazi3

Este texto tem o objetivo de compartilhar algumas vivências mobilizadas


pela parceria de pesquisa, trabalho e amizade de três historiadores, educado-
res e pesquisadores pós-graduandos na Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), que construiu o que hoje chamamos de coletivo “ENTREMUNDOS”.
Somos Adriana Aparecida Belino Padilha de Biazi, Kerollainy Rosa
Schütz e Ricardo de Mattos Martins Cunha. Adriana, mulher indígena do
povo Kaingang, 31 anos, moradora do município de Ipuaçu (SC), graduada em
Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (UFSC), gradua-
ção em Pedagogia e História, mestrado em Antropologia Social (UFSC) e, atual-
mente, doutoranda em História, pelo PPGH (UFSC), onde desenvolvo uma pes-
quisa sobre espiritualidade e xamanismo de um ritual de homenagem aos mortos
Kaingang da Terra Indígena Xapecó, localizada no oeste de Santa Catarina.
Kerollainy, mulher branca, 29 anos, moradora do município de Palhoça
(SC), graduada e mestra em História e, atualmente, doutoranda em História,
pelo PPGH/UFSC, onde desenvolvo uma pesquisa que investiga a produção
teórica e prática de professores de História, egressos do Mestrado Profissional
em Ensino de História (ProfHistória) a nível nacional.
Ricardo, homem branco, 48 anos, natural de Três Lagoas (MS), mora-
dor do município de Florianópolis (SC), professor de História para o Ensino
Fundamental e Médio, com experiência nas redes pública e privada, bacharel
em História, pela Universidade de São Paulo (USP) e Licenciado em História,
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestrando do Programa
de Mestrado Profissional em Ensino de História-ProfHistória (UFSC), onde

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTÓRIA)


na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professor de História na Educação
Básica. Email: ricardomattoscunha@gmail.com.
2 Doutoranda em História Global pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: hstkeroll@gmail.com.
3 Doutoranda em História Global pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: adrianakaingang@gmail.com.

201
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

desenvolve sua pesquisa na área da temática das Histórias e Culturas Indígenas,


no âmbito da formação docente na Educação Infantil, da Rede Municipal de
Ensino de Florianópolis (RMEF).
O coletivo “ENTREMUNDOS”, inserido no contexto da intensa discus-
são nacional, sobre a Lei n°. 11.645/2008, passou a olhar, com mais atenção,
para os aspectos que marcam o ensino das Histórias Indígenas nos sistemas
educacionais do território do Estado de Santa Catarina, em específico, no que
tange à Educação Infantil. É importante ressaltar que tanto no texto da Lei n°.
11.645/2008, quanto no texto das “Diretrizes Operacionais para a implemen-
tação das histórias e das culturas dos povos indígenas na Educação Básica”,
não existem disposições diretas para a implementação da temática indígena na
Educação Infantil.
Nesse sentido, cocriado a seis mãos, este coletivo já organizou algumas
atividades, a exemplo do curso “ENTREMUNDOS: as Histórias Indígenas
e a Educação Infantil na perspectiva da Lei n°. 11.645/2008”, ministrado no
âmbito das atividades de formação continuada da Educação Infantil, da Rede
Municipal de Ensino de Florianópolis (RMEF) e realizado durante o segundo
semestre do ano de 2022. Sua missão maior foi provocar possíveis diálogos entre
Saberes Indígenas, Saberes Históricos e Saberes oriundos do rico arcabouço da
Educação Infantil.
Três são os aspectos que justificam o presente relato da experiência do
coletivo e do curso: a relevância do tema abordado para a Educação Infantil;
o fato de que Adriana Aparecida Belino Padilha de Biazi (2017) é Kaingang e
a primeira indígena a ministrar um curso de formação docente na área da te-
mática indígena para a Educação Infantil da RMEF; e depois, o ineditismo do
próprio curso, como o primeiro do gênero para a Educação Infantil da RMEF.
Entendendo que todo o processo de desenvolvimento e realização do cur-
so viabilizou uma profícua e prazerosa experiência, nosso objetivo é compar-
tilhar e apresentar as etapas de sua construção, de seu planejamento e de sua
prática, compartilhando os autores e pressupostos teóricos que fundamentam
nossas ações. Dialogar com autores como Daniel Munduruku e Casé Angatu, é
um processo fundamental na construção desses saberes, mas não só. A presença
de Adriana Kaingang, uma protagonista de seu povo, estabeleceu os pilares para
um diálogo intercultural e para produções dentro do coletivo.
Portanto, em nossas reflexões e práticas, percebemos e vivenciamos a
potência pela busca de possibilidades da construção de diálogos entre distin-
tas tradições, em destaque, os campos da História, da Pedagogia, do Ensino de
História, da Educação Infantil e dos Saberes Indígenas.
Eu, Adriana, sou uma mulher indígena do povo Kaingang, sendo o

202
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

terceiro mais populoso do Brasil. Nasci no município de Faxinal dos Guedes


(SC) e cresci na Terra Indígena Xapecó, localizada na Região Oeste do estado
de Santa Catarina. Minha infância foi a partir da prática, observando os meus
avós, pais e os Kófas da comunidade, vivenciando a ancestralidade que se cruza
com o saber da educação escolar indígena e com o brincar e aprender com as de-
mais crianças das mais variadas idades, como destaca o autor Kaingang, Bruno
Ferreira (2014), sobre a infância e a maneira que a criança indígena aprende na
comunidade, a partir da educação tradicional.
Nesse contexto, minha primeira graduação foi na Licenciatura
Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (UFSC), na terminalidade de
Infância, Educação Infantil, Anos Iniciais, e Conhecimento Ambiental dos
Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Foi a primeira turma
de indígenas e do curso na UFSC. Depois vieram a graduação em Pedagogia
e História. Minha trajetória acadêmica e profissional caminha por lugares que
dialogam com a educação, área que me identifico e me encontrei enquanto pro-
fessora, mulher, indígena e pesquisadora. Sou mestre em Antropologia Social
e, atualmente, doutoranda em História pelo PPGH (UFSC). Desde 2011, sou
integrante do Laboratório de História Indígena (LABHIN), onde realizo uma
pesquisa referente ao meu povo indígena, principalmente, na área da educação
e da espiritualidade. Neste caminho dentro do laboratório, conheci vários mem-
bros e pesquisadores, dentre eles, Kerollainy e Ricardo, que me estenderam o
convite, que foi aceito para integrar o grupo “ENTREMUNDOS”.
A educação tradicional é fundamental na primeira fase da idade da crian-
ça, pois a partir deste primeiro momento, se aprende muito da tradição e cultura
indígena, reconhecendo e valorizando cada passo que ela oferece. O espaço da
escola é o segundo no caminho da criança, onde ela descobre muito dos saberes,
envolvendo a tradição, interculturalidade indígena alicerçada neste espaço, além
de contar com professores indígenas. Neste contexto dos espaços, a presença da
cultura enriquece muito o desenvolvimento intelectual, cultural e intercultural
da criança. Um exemplo, na aldeia Sede da Terra Indígena Xapecó, a arquitetu-
ra da escola Cacique Vanhkrê possui o formato dos animais que pertencem às
marcas exogâmicas Kamē e Kanhru.
No ano de 2022 teve início a construção de uma creche na aldeia Sede, a
arquitetura da escola infantil possui o desenho das marcas exogâmicas do povo,
e isso é um diferencial que complementa este sistema de educação tradicional
com a educação escolar indígena. Esta é uma conquista dos nossos antepassa-
dos por meio de movimento indígena, que impulsionou este processo a partir da
década de 1970. Assim como o direito e as políticas de acesso e de permanência
dos povos indígenas nos cursos superiores e de pós-graduação, são conquistas

203
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

a partir do esforço e da luta indígena pela educação intercultural de qualidade,


valorizando nossos saberes tradicionais e culturais, refletidos nos cursos supe-
riores de Licenciaturas Indígenas. Autor indígena como Gersem Baniwa (2012),
reflete e discute sobre a educação indígena e intercultural no Brasil e dos avanços
e desafios, a partir da luta dos povos indígenas neste processo de direito a uma
educação de qualidade, específica e diferenciada, bem como o acesso às políticas
de ingresso e permanência das universidades do país.
Já eu, Kerollainy, quando penso sobre minha relação com a temática indí-
gena e a pesquisa em História, gosto de lembrar de como foi a minha formação
como criança, adolescente e mulher. Minha trajetória no ensino fundamental foi
feita em uma instituição pública e o ensino médio em uma escola privada. Como
aluna da educação básica, meu contato com a história dos povos indígenas no
Brasil foi escasso e marcado por estereótipos. A ausência de representatividade
e dos saberes indígenas e das relações étnico-raciais, de modo geral, em minha
infância e adolescência, resulta em silenciamento. Porém, quando ingressei no
curso de História da UDESC em 2011, no segundo semestre do período notur-
no, algumas coisas começaram a mudar, reflexo das políticas públicas imple-
mentadas a nível nacional, como a própria Lei n°. 11.645/2008 e a Lei de Ações
Afirmativas. A primeira delas, bastante marcante pra mim, foi que minha turma
de graduação foi a primeira da UDESC, de um curso de História, a implemen-
tar as cotas raciais. Além disso, a presença de laboratórios como o Núcleo de
Estudos Afrobrasileiros (UDESC) na UDESC, fortaleciam a pauta antirracista
na instituição e, portanto, desde o início, minha trajetória acadêmica foi marca-
da por essa perspectiva. Imerso nesse contexto, pude ampliar meu entendimento
sobre a alteridade, o eu e o outro, e de como a raça, enquanto categoria social,
diferencia profundamente a experiência dos sujeitos no Brasil.
Foi nesta fase da minha vida que descobri a presença histórica de indí-
genas em Santa Catarina. Esse estado, marcado pela valorização das culturas
europeias, silencia as ancestralidades indígenas e africanas (o que reverberou
na minha experiência na educação básica), que são milenares neste território
tradicional, hoje conhecido como Santa Catarina. Foi dessa surpresa e da curio-
sidade que despontaram dela, que passei, desde a primeira fase, a me interessar
pela temática indígena.
Como bolsista, desenvolvi pesquisas e projetos de extensão na temática,
sempre com foco na Lei n°. 11.645/2008 e na formação de professores. Naquele
momento, tive o privilégio de participar do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros
(NEAB/UDESC). Posteriormente, na pós-graduação, tanto no mestrado, já con-
cluído, como no doutorado, em andamento, mantive o foco no ensino de histó-
ria indígena. Dentro da UFSC, também fui, por muitos anos, uma pesquisadora

204
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
A������, C��������� � D�������

associada ao Laboratório de História Indígena (LABHIN), coordenado pela


Professora Doutora Ana Lúcia Vulfe Nötzold. Foi nessa etapa da minha tra-
jetória que conheci o Ricardo, que me apresentou suas experiências prévias e
propostas futuras para o ENTREMUNDOS, de modo que me tornei parte desse
projeto. ENTREMUNDOS, então, havia se tornado uma dupla.
Eu, Ricardo, iniciei minha relação com a temática indígena no campo
da história e do ensino de história, em 2018. Naquele ano, durante o percur-
so formativo na licenciatura em História, pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), cursei a disciplina de “História Indígena”, então ministrada
pela Professora Doutora Ana Lúcia Vulfe Nötzold. No mesmo ano, passei a fre-
quentar as atividades do Laboratório de História Indígena (LABHIN). A partir
de então, surgiu o interesse em desenvolver o Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC) na área da História Indígena, sob a orientação da professora Ana Lúcia.
Desde então, passei a ser um pesquisador voluntário do referido laboratório.
Já em 2019 cursei a disciplina “Laboratório de História Indígena”, tam-
bém com a professora Ana Lúcia. Na oportunidade, como resultado final da dis-
ciplina, desenvolvi um material pedagógico específico para o Ensino de História
Indígena, que pode ser utilizado para qualquer uma das etapas da educação
básica. O material é um flanelógrafo. Muito utilizado nas catequeses, porém, foi
ressignificado esteticamente e transformado em uma plataforma que serve como
base para a atividade de contação de histórias tradicionais indígenas. No caso es-
pecífico da atividade, a história contada foi sobre a criação do ser humano para
o povo Kaingang. A história escolhida está no livro Contos Indígenas Brasileiros
(MUNDURUKU, 2005, p. 43):

FIGURA 01: Flanelógrafo feito para a disciplina de “Laboratório de História Indígena”


(Imagens 1 e 2)

Fonte: autoria própria, 2019.

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Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Como professor do ensino fundamental e médio das escolas da Rede


Pública Estadual do Estado de Santa Catarina, passei a abordar a temática
do ensino das Histórias e Culturas Indígenas, tendo como referência a Lei n°
11.645/2008, com foco nos povos indígenas em Santa Catarina, a saber, os
Kaingang, Laklãnõ-Xokleng e os Guarani. Ao longo dos anos em sala de aula,
pude desenvolver planejamentos, aulas e atividades, conectando diversos sabe-
res de diversas disciplinas: História, Paleobotânica, Arqueologia, Antropologia,
contação de histórias e os saberes e narrativas indígenas. Um dos resultados foi
a produção de vídeos elaborados em sala de aula, pelos alunos e alunas, a partir
do estudo de narrativas indígenas de criação do mundo e do ser humano como.
Já a minha relação com a Educação Infantil não se originou a partir de
um vínculo profissional ou institucional. Surgiu no âmbito das relações pessoais,
pelo amor e pela amizade. Sou casado com Marina da Silva Gomes, professo-
ra da Educação Infantil da RMEF. Três de suas grandes amigas, e posso dizer
minhas grandes amigas também, são pedagogas da Educação Infantil da mes-
ma rede. São elas Catiane Kolling Kother, Edimara Castilho Cansian e Melissa
Weber. De nossos encontros informais, a partir da confiança da amizade, fo-
ram surgindo interesses, dúvidas, questionamentos, ideias para planejamentos
e atividades, a partir de conhecimentos da História Indígena e das narrativas
indígenas.
A partir do ano de 2019, sabedoras da minha dedicação e interesse so-
bre a temática indígena, as quatro professoras passaram a conversar comigo
mais seriamente e, especificamente, sobre a relação entre os conhecimentos das
Histórias, Culturas e Narrativas Indígenas na Educação. Trocamos livros, tex-
tos, reflexões. Elas buscavam conhecimentos históricos para inserir a temática
indígena em seus planejamentos, com a intenção de que tal esforço pudesse con-
tribuir para que elas criassem atividades e ações pedagógicas para as crianças em
suas unidades educativas. Ao mesmo tempo, fui me inteirando minimamente
sobre os documentos regentes da rede. Foi uma troca.
Chegado à Pandemia de 2020, Edimara já era, àquela altura, Diretora
eleita do Núcleo de Educação Infantil Municipal (NEIM) Campeche, em
Florianópolis (SC), e Catiane, a Professora Auxiliar de Educação Infantil
na mesma unidade. Passados os primeiros e tenebrosos meses da pandemia,
Edimara me lançou um desafio em forma de convite: pensar e realizar uma for-
mação para as professoras e professores do NEIM Campeche na área da História
Indígena, tendo como base a Lei n°. 11.645/2008 e de modo online. As intensas
trocas e conversas se tornaram tão frutíferas e interessantes que acabaram por se
tornar uma espécie de gênese do que hoje é o curso “ENTREMUNDOS”, que
se destinou a ser objeto de análise no presente projeto.

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20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

Revisitando nossas trajetórias, percebemos que o LABHIN é nosso gran-


de ponto de intersecção, de confluência de nossas vidas e que nos permitiu ini-
ciar uma relação que hoje é de amizade, de confiança, de criatividade, e de traba-
lho pela educação. Somos também fruto de todos os desdobramentos ocorridos
em função das lutas indígenas no Brasil. Afinal, o percurso da Adriana, como
mulher indígena do povo Kaingang, é totalmente atravessado pelas políticas afir-
mativas, oriundas das lutas do movimento indígena e dos indígenas no Brasil,
em específico, a luta por uma Educação Escolar Indígena Intercultural, e pela
luta pelas Terras e Territórios Originários, que coadunam com a afirmação das
Educações Tradicionais Indígenas.
Ricardo e Kerollainy só acessaram conteúdos e conhecimentos acerca
dos povos indígenas em suas formações no nível da graduação, fator que denota
o grande desafio que a Lei n° 11645/2088 tem pela frente, ao passo que também
demonstra o quanto é importante para o desenvolvimento de uma educação
antirracista para as relações étnico-raciais. Assim, compreendemos que nosso
encontro, enquanto amigos e companheiros de pesquisa, só foi e é possível, a
partir das lutas históricas dos movimentos indígenas em todos os níveis sociais.
Como dito, o curso “ENTREMUNDOS” nasce das relações de amizade
e a partir de conversas informais entre quatro pedagogas docentes da Educação
Infantil da rede Municipal de Ensino de Florianópolis (RMEF) e um professor
de História. As conversas, realizadas entre os anos de 2018 e 2019, eram sobre
possibilidades de estudos e pesquisas para a ampliação do repertório cultural
docente na área das temáticas indígenas. A ideia era que elas pudessem acessar
conteúdos a partir das Histórias Indígenas, visando a elaboração de planejamen-
tos e ações pedagógicas para a Educação Infantil.
As intensas trocas e conversas se tornaram tão frutíferas e interessan-
tes que acabaram por se tornar uma espécie de gênese do que hoje é o cur-
so “ENTREMUNDOS”, que se destinou a ser objeto do presente relato. Em
2020, de forma voluntária, foram realizadas duas formações, de modo remoto,
com duração de três horas cada: a primeira foi realizada no dia 29/10/2020
e a segunda no dia 19/11/2020, e contou com a participação de 23 e 28 pro-
fessoras e professores respectivamente, ambas no Núcleo de Educação Infantil
Municipal (NEIM) Campeche. O nome da formação foi “Roda de conversa
ENTREMUNDOS: Povos Indígenas, Educação e Práticas Pedagógicas”. Após
a realização dessas duas primeiras formações no NEIM Campeche, passei a con-
versar com uma antiga parceira de LABHIN, hoje, doutoranda em História, es-
pecialista em História Indígena, Kerollainy Rosa Schütz. “ENTREMUNDOS”
havia se tornado uma dupla. Foi quando fomos convidados, no ano de 2021,
para realizarmos uma formação no Núcleo de Educação Infantil Municipal

207
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

(NEIM), Armação, também em Florianópolis. O convite foi feito por Melissa


Weber, então supervisora da unidade.
Após a experiência junto ao NEIM Armação, a dupla “ENTREMUNDOS”
foi contratada pelo Núcleo de Formação, Pesquisa e Assessoramento da
Educação Infantil (NUFPAEI) da Diretoria de Educação Infantil (DEI) de
Florianópolis, para uma atividade junto ao ciclo anual de formação continuada
de profissionais da Educação Infantil da RMEF. Foi uma formação com dura-
ção de 04 horas e de modo online.
Após as experiências de 2021, Adriana Aparecida Belino Padilha de
Biazi, passou a fazer parte do agora coletivo “ENTREMUNDOS” e, após me-
ses de trocas e de desenvolvimento de novos conteúdos para novas atividades,
fomos contratados para uma nova formação junto ao NUFPAEI. Desta vez, o
contrato foi para um curso com duração de 24 horas, no modelo híbrido, sendo
dois encontros presenciais e dois online. O curso foi realizado durante o segun-
do semestre de 2022, nas datas de 17/08, 14/09, 26/10 e 09/11. Para o curso,
foram abertas 50 vagas para inscrição, e contou com a participação de 42 pro-
fessores e professoras.
Também é importante registrar e destacar mais um ineditismo no percur-
so do “ENTREMUNDOS”. A historiadora Adriana Aparecida Belino Padilha
de Biazi é a primeira indígena a oferecer um curso de formação em Histórias
e Culturas Indígenas para a referida rede. O curso, que recebeu o nome de
“ENTREMUNDOS - as Histórias Indígenas e a Educação Infantil na perspec-
tiva da Lei 11.645/2008”, teve por objetivo “compreender o papel da Lei n°.
11.645/2008, que institui a inclusão de Histórias Indígenas nos currículos de en-
sino, bem como propor caminhos possíveis para a prática da temática indígena
na Educação Infantil”. Seu conteúdo programático abordou os seguintes temas:
- Introdução aos povos e culturas indígenas do Brasil: conceitos fundamentais;
- Lugar de fala: compreendendo nossas identidades e alteridades;
- Análise e reflexões sobre o contexto que possibilitou a implementação da Lei
n°. 11.645/2008 e suas Diretrizes Operacionais;
- Lei Municipal n°. 10.764/2021 que instituiu a inclusão de histórias africanas
e indígenas nos currículos das escolas municipais de Florianópolis e dá outras
providências;
- Desmistificando o “índio”, “o selvagem”, “o atrasado” e “o preguiçoso”;
- Povos indígenas em Santa Catarina - os Guarani, os Kaingang e os Laklãnõ/
Xokleng: história, aspectos culturais e narrativas;
- Propostas pedagógicas para serem desenvolvidas no contexto educativo das
unidades de educação infantil: o uso das histórias indígenas e sugestões de inte-
rações e brincadeiras;

208
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

- Infâncias e culturas indígenas: brincadeiras, brinquedos e alimentação.


Em nossa etapa de planejamento, a perspectiva adotada como ponto de
partida para se pensar as Histórias e Culturas Indígenas, foi aquela proposta
pelo professor e pesquisador do povo Tupinambá, Casé Angatu, que propõe dois
imprescindíveis fundamentos: o Protagonismo Indígena e a questão das terras e
Territórios Indígenas.
Quanto ao protagonismo indígena, há sempre de se considerar que os
povos indígenas são povos do presente, sujeitos de suas próprias histórias. Deve-
se sempre abordar temas e problemas, levantados a partir de questões do pre-
sente. Tanto o Ensino, quanto a História, produzida a partir das perspectivas
indígenas, devem ser elaborados também a partir das narrativas indígenas, e não
somente pelas construções acadêmicas com base nas tradições ocidentais dos
saberes científicos. O segundo ponto proposto por Angatu, é a centralidade da
questão da luta pela terra e pela manutenção do direito aos territórios indígenas:
Assim, acreditamos na necessidade do diálogo decolonial entre o ensi-
no das Histórias e Culturas Indígenas, bem como a produção dos conhe-
cimentos acadêmicos, e os saberes originários ancestrais presentes nas
linguagens indígenas atuais. Um diálogo para enfrentar o descompasso
entre as histórias escritas e lecionadas e as linguagens indígenas portado-
ras de memórias que consideramos fundamentais para aplicação da Lei
11.645/2008 (ANGATU, 2020, p. 43).

O autor localiza historicamente a criação da Lei n°. 11.645/2008 como


um desdobramento das lutas e conquistas do movimento indígena organizado
no Brasil. Critica a visão romantizada do indígena como um ser do passado,
visão esta que ainda persiste nos materiais e livros didáticos e nos imaginários
das pessoas, indicando a permanência, no processo de educação, de concepções
que negam e invisibilizam os povos originários no Brasil.
Daniel Munduruku foi outro intelectual indígena importante em nos-
so processo de construção do curso. Isso porque em sua produção teórica, o
autor apresenta uma preocupação didática para a implementação da Lei n°.
11.645/2008 a partir do uso de conceitos básicos para se estudar os povos indí-
genas no Brasil. Na verdade, mais do que aprender novos conceitos, Munduruku
propõe a desconstrução de categorias que estereotipam os povos indígenas, para
que seja possível construir aberturas para outros olhares. Um exemplo impor-
tante é a própria categoria “índio” em contraposição à “indígena”. Se o primeiro
resulta de um erro histórico, em que os portugueses acharam que haviam che-
gado às Índias, o segundo remete ao pertencimento ao território, ao que é ori-
ginário. Assim, junto com as professoras da Educação Infantil, repensamos um
conjunto de conceitos fundamentais, com base nos próprios autores indígenas,
para fundamentarmos nossa prática educativa.
209
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

A perspectiva histórica também foi fundamental. Considerando o lugar


do qual desenvolvemos nossas pesquisas, todos os três em mestrado e doutorado
em História, não poderíamos deixar de pensar este campo como fundamental na
formação de professores. Como já disse Ailton Krenak:
Por isso que os nossos velhos dizem: Você não pode se esquecer de onde
você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e
para onde você vai”. Isso não é importante só para a pessoa do indivíduo,
é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade humana
saber quem ela é, saber para onde ela está indo (KRENAK, 1999, p. 27).

Nesse sentido, compreendemos que as ações indígenas ao longo da his-


tória são agenciamentos importantes, tanto para identificarmos o protagonismo
indígena nos processos históricos, quando para compreender o nosso presente e
refletir sobre os nossos objetivos futuros ou, como pontua Krenak, saber de onde
viemos, onde estamos e para onde vamos, enquanto coletividades humana e
não-humana. Ao campo da História e aos historiadores, cabe sabermos recons-
truir e repensar, em diálogo com os saberes indígenas, a História ou, melhor, as
histórias, como ferramentas potentes de implementação da Lei n°. 11.645/2008,
no sentido de nos compreendermos como um coletivo intercultural.
No contexto em que vivemos, essa coletividade só é possível a partir do
aprendizado, do saber ouvir e sentir os ensinamentos indígenas. Esta foi, por-
tanto, uma outra camada teórico-metodológica da nossa formação, presente
principalmente a partir de Adriana Kaingang. A presença de uma professora e
formadora indígena possibilitou, em nossa experiência, a possibilidade direta da
alteridade como a partir de trocas interculturais, entre os saberes e experiências
indígenas e não-indígenas na educação infantil, nas infâncias e em nossas pró-
prias trajetórias enquanto professores e pesquisadores.
Tais concepções, como a de Angatu, Munduruku, Krenak e Adriana
Kaingang, estão alicerçadas na visão de que tanto a Constituição Federal de
1988, em seus artigos 221 e 222, quanto a Lei n°. 11.645/2088, são frutos do
processo político e das lutas históricas do movimento indígena que culminaram
com o rompimento da política indigenista integracionista, essa a política do apa-
gamento, e colocando em pauta e evidenciando o protagonismo dos povos ori-
ginários como sujeitos históricos do presente. Daí a importância de se trabalhar
o ensino das Histórias e Culturas Indígenas a partir das discussões contemporâ-
neas e também a centralidade da luta pela terra e por seus territórios originários.
O debate a partir do presente é fundamental para se desconstruir a per-
manência de visões e práticas racistas na estrutura educacional, nos materiais
didáticos, reconhecendo o ensino e a educação como vetores importantes para a
desconstrução dos preconceitos e o reconhecimento dos direitos de existências

210
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

dos povos originários, inclusive como versa os artigos 231 e 232 da Constituição
Federal de 1988.
Assim, é possível pensar a construção do coletivo ENTREMUNDOS
como o entrelaçamento de trajetórias interculturais inseridas em um contexto
brasileiro que, apesar dos muitos desafios, tem apresentado possibilidades de
pensar a prática do ensino da temática indígena como política pública, histó-
rica e epistemológica. Em nossa experiência, é possível afirmar que o diálogo
intercultural e interprofissional, pensando nas conexões entre saberes indígenas
e não indígenas e os saberes de áreas distintas, como a História e a Educação
Infantil, é fundamental. Na junção entre saberes indígenas, História e Educação
Infantil, que marcam a atual conjunção desse coletivo, sentimos que todos os sa-
beres são importantes e valiosos quando estão pautados pela interculturalidade
crítica e entendimento das trajetórias históricas dos sujeitos que estiveram aqui
neste mundo antes de nós.

REFERÊNCIAS
BANIWA, Gersem. Os desafios da Educação Indígena Intercultural no Brasil:
Avanços e limites na construção de políticas públicas. In: NÖTZOLD, Ana
Lúcia Vulfe; ROSA, Helena Alpini; BRINGMANN, Sandor Fernando (org.).
Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. Porto
Alegre: Pallotti, 2012. p.255- 277.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 231. Constituição da República
Federativa do Brasil.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Lei 11.645/2008. Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil. Brasília, 10 de março de 2008.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Lei 12.711/2012. Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil. Brasília, 29 de agosto de 2012.
BRASIL. Diretrizes Operacionais para a implementação da história e das
culturas dos povos indígenas na Educação Básica, em decorrência da Lei nº.
11.645/2008. 2016.
BIAZI, Adriana Aparecida Belino Padilha de. Espiritualidade e conhecimen-
tos da mata na formação dos especialistas de cura Kaingang da terra indíge-
na Xapecó/SC. 2017. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia Social, Florianópolis, 2017.
FERREIRA, Bruno. Educação Kaingang: processos próprios de aprendizagem
e educação escolar. 2014. Dissertação (Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2014.

211
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros. 2 ed. São Paulo: Glo-


bal, 2005.
MUNDURUKU, Daniel. Três reflexões sobre os povos indígenas e a Lei nº.
11.645/2008. Convidado Especial. Fundação Araporã. 2016.

212
POVOS INDÍGENAS:
CONHECER PARA VALORIZAR
Gerusa Citadin1
Vanessa Mariot Pedro Crozetta2
Renata Righetto Jung Crocetta3

INTRODUÇÃO

De acordo com a Lei Federal n°. 11.645/2008 que estabelece o estudo


da história e cultura afro-brasileira e indígena na formação da educação básica,
cria-se a obrigatoriedade vista aqui como uma oportunidade de mediar a relação
ensino-aprendizagem por meio do desenvolvimento de planos de aula com as
temáticas educativas no ensino fundamental e médio de todo o país. Essa lei
foi criada para garantir a memória e a história dos povos afrodescendentes e os
indígenas, pois historicamente pouco se considerou ou valorizou a importância
desses povos para a formação de nossa sociedade. A referida lei é uma conquista
dos movimentos sociais negros e indígenas onde faz-se referências a respeito da
importância do enfoque nas lutas, reivindicadas como parte de uma reparação
histórica.
O presente relato de experiência realizado com os alunos das tercei-
ras séries do Ensino Médio Inovador da Escola de Educação Básica Walter
Holthausen, de Lauro Müller, no ano de 2018, tem com o objetivo propor uma
reflexão com os acerca das diferenças existentes entre as sociedades indígenas e a
nossa sociedade com identidade nacional. Este trabalho se configura como uma
pesquisa qualitativa de cunho exploratório, explicativa e bibliográfica. O proje-
to foi muito significativo para os estudantes, pois passaram a conhecer e assim
valorizar a cultura, a crença do povo indígena e estabelecer um relacionamento.
Aprender que há outras formas de olhar o mundo, olhar a natureza e perceber
que essas diferenças são maravilhosas trocas de conhecimentos.

1 Acadêmica de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense –


UNESC, professora de português e inglês da rede estadual de Santa Catarina, gerusacita-
din@gmail.com.
2 Acadêmica de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense –
UNESC, professora de matemática da rede estadual de Santa Catarina, nessamariot2@
gmail.com.
3 Mestre, professora de educação física da rede estadual de Santa Catarina e do Centro Uni-
versitário Barriga Verde – Unibave, renatarjung@hotmail.com.

213
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

A LEI FEDERAL Nº. 11.645/2008 E SUA APLICAÇÃO NA


EDUCAÇÃO BÁSICA

A presença do ensino da cultura africana faz-se necessária para com-


preender a diversidade étnica do povo brasileiro, suas lutas, crenças, especifici-
dades e remetem-nos a observar as diversas situações que procederam a consti-
tuição desse povo, deslocados forçadamente do continente africano. Conforme
Carneiro da Cunha (2009 apud NAVANTINO, 2019), é necessário incluir co-
nhecimentos e conteúdos relacionados à diversidade sociocultural e linguística
dos povos indígenas, possibilitando, desse modo, que os professores adquiram
novas concepções filosóficas, políticas e pedagógicas, conheçam e acolham as
culturas indígenas.
Na mesma perspectiva, Bittencourt (2013, p. 132), compreendeu que a in-
clusão da temática indígena no currículo da Educação Básica suscita mudanças
epistemológicas e fortalece os debates acerca do racismo. Nesse sentido, obser-
va-se que vem sendo realizados esforços institucionais na tentativa da efetivação
da determinação legal.
Portanto, percebemos que os avanços pontuais da Lei n°. 11.645/2008
estão na intencionalidade positiva dos envolvidos com a causa indígena. Com
aqueles que lutam na busca do reconhecimento dos povos indígenas como su-
jeitos da história, por uma sociedade mais democrática e com justiça socioam-
biental e de gênero.
Se se quer ter a tolerância como objetivo a ser incorporado à mentalidade
brasileira pela via da Educação, a formação continuada de professores das redes
públicas e privadas, os cursos de licenciatura nas universidades devem acolher
sistematicamente atividades voltadas à sensibilização para a alteridade e garan-
tir o acesso dos professores e estudantes ao conhecimento acumulado sobre os
grupos étnicos específicos e os povos indígenas no país, considerando o diálogo
intercultural.
Trazer a temática indígena para os espaços de formação das universida-
des é uma forma de discutir e debater sobre os processos da História do Brasil.
Igualmente, reconhecer o indígena como um dos pilares da formação da so-
ciedade e tê-lo como protagonista da sua história no mundo contemporâneo;
imperativo necessário para entender o universo indígena.
No tocante às universidades, podemos perceber que o processo de imple-
mentação da Lei n°. 11.645/2008 ainda está em aberto, pois a temática indígena
é tratada de forma tangencial, a partir de disciplinas optativas ou por seminários
temáticos. Os impactos na formação de professores são tímidos, não se chegou
a uma decisão de quais formações inicial e continuada serão as bases que funda-
mentarão o combate ao racismo nas universidades.
214
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

De acordo com Luciano (2006),


[...] falar hoje de índios no Brasil significa falar de uma diversidade de
povos, habitantes originários das terras conhecidas na atualidade como
continente americano. São povos que já habitavam há milhares de anos
essas terras, muito antes da invasão europeia (LUCIANO, 2006, p. 27).

Desta forma, ensinar aos alunos sobre a situação política, econômica e


social do nosso país, é também fornecer-lhes informações mais corretas e menos
preconceituosas a respeito dos povos indígenas. Igualmente, trabalhar o tema
indígena com os alunos é também fazê-los conhecer melhor a realidade do país
e refletir sobre a nação que almejam para o futuro.
Neste contexto, com o objetivo de propor uma reflexão com os alunos
acerca das diferenças existentes entre as sociedades indígenas e a nossa socie-
dade com identidade nacional, pesquisamos e estudamos sobre o conceito de
diversidade cultural e concluímos a diversidade cultural como característica da
espécie humana, são os vários aspectos que representam particularmente as di-
ferentes culturas, como a linguagem, as tradições, a culinária, a religião, os cos-
tumes, o modelo de organização familiar, a política, entre outras características
próprias de um grupo de seres humanos que habitam um determinado território.
Com o intuito de tentar preservar a riqueza da diversidade cultural dos
países, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) criou a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”. A
Declaração da UNESCO sobre Diversidade Cultural reconhece as múltiplas cul-
turas como uma “herança comum da humanidade”, e é considerada o primeiro
instrumento que promove e protege a diversidade cultural e o diálogo intercul-
tural entre as nações.
A valorização das diferenças étnicas e culturais, por exemplo, não signi-
fica aderir aos valores do outro, mas respeitá-lo como expressão da diversidade
de todo ser humano, sem qualquer discriminação. A Declaração Universal so-
bre a Diversidade Cultural prevê ações de preservação das múltiplas culturas de
origem indígena e africana, como as línguas indígenas ameaçadas de extinção,
além dos rituais e festas tradicionais do povo indígena e afrodescendente.
A diversidade, entendida como enriquecimento, possibilidade, processo
de construção, é própria dos seres humanos. É o tema que se impõe para que
possamos construir uma escola pautada no direito à educação, e no direito à
diferença e na formação integral do sujeito como movimentos que impulsionam
a superação de perspectivas monoculturais, etnocêntricas e hegemônicas que
determinam os modos de fazer educação escolar.
Em conformidade com o artigo 26-A, §2º, da Lei Federal n°. 11.645/2008,
onde propõem que os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e

215
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

dos povos indígenas brasileiros sejam ministrados no âmbito de todo o currícu-


lo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras, nossa escola sentiu a necessidade de trabalhar o tema Diversidade
Cultural com as turmas do Ensino Médio Inovador no ano de 2018.

DIVERSIDADE CULTURAL

O Brasil é um país incrivelmente rico em diversidade cultural, devido a


sua extensão territorial e a pluralidade de colonizações e influências que sofreu
ao longo do processo de construção da sociedade brasileira. Partindo do in-
teresse dos alunos, a escola, EEB Walter Holthausen, em Lauro Müller (SC),
desenvolveu com os alunos do Ensino Médio Inovador, no ano de 2018 o tema
Diversidade Cultural, onde cada professor, dentro de sua área de conhecimento
elaborou atividades direcionadas ao tema.
A partir dos conceitos essenciais de cada área do conhecimento, foram
desenvolvidas atividades que primem pela equidade, respeito e valorização dos
seres humanos, envolvendo alunos e professores em discussões a respeito da
diversidade e seus dilemas (ou questões auto afirmativas), sempre em busca de
uma escola como um lugar de liberdade, respeito e boa convivência, compreen-
dendo a importância do reconhecimento e da valorização das diferenças sociais,
raciais e culturais para a constituição de uma sociedade plural, na qual as dife-
renças somadas promovem uma grande diversidade de identidades e modos de
vida, posicionando-se a favor da vida por meio do respeito às diferenças.
Uma das atividades desenvolvidas, com o objetivo de conhecimento e
socialização entre os estudantes foi um intercâmbio cultural através de car-
tas, onde os alunos da nossa escola encaminharam uma primeira mensagem
para cada aluno da EIEF Tekoa Marangatu, escola indígena Mbyá-Guarani,
do município de Imaruí (SC). Essas cartas foram confeccionadas sem que os
alunos conhecessem o colega, utilizamos o correio para que chegassem ao
destino e, a partir do primeiro contato, os alunos continuaram trocando corres-
pondências até que no final do ano letivo fomos à comunidade para que cada
um conhecesse pessoalmente o seu colega. Foi um encontro de muita riqueza,
fomos recebidos pela coordenadora pedagógica, pelo diretor da escola e o pelo
cacique (cargo ocupado por alguém que melhor possa representar o grupo
na sociedade não indígena), que fez um diálogo com nossos alunos falando
sobre a cultura, o modo de vida, as regras existentes na comunidade e com os
visitantes. Linguisticamente são classificados como Mbya e Nhandeva/Xiripa,
pertencem ao tronco linguístico Tupi e à família linguística Tupi Guarani,
segundo Rodrigues (1986), a língua Guarani é falada em todas as aldeias, sen-
do para alguns indivíduos a única língua. Já o português é a segunda língua,
216
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

usada basicamente na relação com não indígenas e com indígenas de outros


povos. Constatamos essa afirmação durante a visitação às salas de aula, onde
percebemos a presença de uma pessoa de mais idade dentro de cada sala para
que auxiliasse a professora na tradução de algumas palavras e repassar tam-
bém aos indígenas o conteúdo ministrado dentro da língua Guarani. Logo em
seguida realizamos uma trilha onde conseguimos aprender ainda mais sobre o
que plantavam, onde e como moravam, a importância dos saberes das pessoas
mais idosas da comunidade e sobre as ervas medicinais. Visitamos a cachoeira
e logo em seguida algo que despertou grande interesse de nossos alunos, a
casa de reza, chamada por eles de opy. A casa cerimonial ou casa de reza/
opy é o centro da aldeia, na qual realizam atividades cerimoniais e de cura, da
mesma forma que o rezador/Karai é o líder espiritual do grupo. A pessoa que
nos acompanhou na trilha descreveu alguns princípios seguidos nas tradições
indígenas Guarani, como manter distância da casa como forma de respeito
por parte dos visitantes e que entre os rituais, o mais significativo é o batismo/
nimongarai. O batismo está associado diretamente ao milho verdadeiro/avaxi
etei, e ocorre quase sempre na colheita desse produto, nos primeiros meses do
ano. Fomos acompanhados e sempre procuramos ficar próximos e estabele-
cendo um rico diálogo com a pessoa que nos conduziu, ao final da conversa
conhecemos o artesanato confeccionado pelos indígenas. Os Guarani são tam-
bém hábeis ceramistas, fabricam os artefatos que necessitam para preparar e
servir os alimentos (MELIÀ, 1988).
No retorno de nossa caminhada, pudemos vislumbrar um pouco mais
da rica natureza local e perceber que os Guaranis são exímios agricultores, cul-
tivam diversas variedades de milho, mandioca, amendoim, cana, feijão dentre
outros, todas consideradas tradicionais/verdadeiras. Nos repassou também
que não comercializam a produção das variedades tradicionais, a exemplo do
milho que o utilizam para o consumo próprio em forma de farinha/caguijy,
bebida fermentada, para a troca com outras comunidades e para as atividades
rituais. Ao chegarmos a escola realizamos o momento mais aguardado por
todos: conhecer o colega com quem cada aluno estava estabelecendo o diálogo
por carta. Fomos surpreendidos por uma belíssima apresentação do Coral da
escola e nossos alunos apresentaram uma dança hip hop e um ballet clássi-
co. Foi um momento muito rico, onde o aprendizado entre ambos se mos-
trou muito presente, a riqueza da cultura de cada sociedade fez-se presente.
Realizamos um lanche coletivo, onde cada colega se conheceu pessoalmente.
Por um tempo, cada um contou um pouco de sua vida, sua família, sua histó-
ria e construíram uma nova história.

217
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A grande lição desse contato com a cultura indígena foi reconhecer e valo-
rizar a importância da diversidade cultural, a importância de manter um relacio-
namento, a possibilidade de conviver com quem é diferente, com o outro, apren-
der que há outras formas de olhar o mundo, olhar a natureza, de relacionar-se
com as pessoas e perceber que essas diferentes formações ricas trocas recheadas
de significados. Nós, professores podemos levar nossos alunos a aprender a li-
dar com os demais colegas da sala que também são diversos. A escola pública
brasileira reúne na sala de aula uma enorme diversidade de crianças que vêm de
origens culturais distintas.
O professor aprende a lidar com essas diversidades ao lidar com os di-
versos que a legislação está lhe colocando como desafio. Olhar para o indígena
é resgatar o próprio eu pois a maioria dos brasileiros são misturados, há uma
mescla de índio com branco, com negro e o encontro com o outro é o que gera
riqueza, é o que vai acrescentar e fazê-lo crescer também. Reconhecer o Brasil
como um país plural, diverso, mostra aos alunos que temos muito a aprender
com os índios, com a história dos negros e esse é o sentido da renovação que se
tem feito na educação, trazer esses personagens para dentro da sala de aula com
um novo olhar. Precisamos estabelecer pontes de diálogo, de interação, para que
cada cultura possa usufruir do que a outra cultura tem de melhor.

REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Circe F. História das populações indígenas na escola: me-
mórias e esquecimentos. In: PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO, Ana
Maria (orgs.). Ensino de História e culturas afro-brasileiras e indígenas. Rio
de Janeiro: Pallas, 2013, p. 101-132.
LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: SECADI/LACED, 2006.
MELIÀ, Bartolomeu. A experiência religiosa Guarani. In: MARZAL, Manuel
M. O Rosto Índio de Deus. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 293-357.
NAVANTINO, Francisca. Os dez anos da lei nº 11.645/2008: Avanços e Desa-
fios. Cad. Cedes, Campinas, v. 39, n. 109, p. 357-378, set-dez., 2019. Disponí-
vel em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/yrXGvcNFhs5JLcjJv9Nx5bG/?lan-
g=pt#
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das
línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.

218
POSFÁCIO

A Lei n°. 10.639/2003, sancionada em 9 de janeiro de 2003, determinou


a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira nas
escolas brasileiras. Desde então, já se passaram 20 anos da sua promulgação, e é
importante refletir sobre o impacto desta lei na sociedade brasileira e avaliar seu
cumprimento nas escolas. Essa foi uma iniciativa importante para combater o
racismo estrutural e promover a igualdade racial, uma vez que o currículo esco-
lar tradicional sempre privilegiou a história dos brancos e invisibilizou a história
e a cultura dos negros.
A Lei n°. 10.639/2003 foi aprovada em um contexto de intensos debates
sobre as desigualdades raciais no Brasil. Durante décadas, os movimentos ne-
gros brasileiros vinham denunciando a exclusão e demonstrando que afetavam a
população negra do país em todas as áreas da vida social, incluindo a educação.
A ausência da história e da cultura afro-brasileira nas escolas era vista como
uma forma de perpetuar a invisibilidade e a desvalorização da cultura negra no
país. O objetivo da mesma é promover o conhecimento e o respeito pela diversi-
dade étnico-racial brasileira, valorizando as contribuições dos povos africanos e
afro-brasileiros para a cultura e a sociedade brasileira. Além disso, a lei também
busca conscientizar os estudantes sobre o racismo e a distinção racial, para que
possam atuar como agentes transformadores da realidade.
A Lei n°. 10.639/03 tem sido objeto de debates e controvérsias ao longo
desses 20 anos. Alguns setores da sociedade questionam a necessidade de uma
lei específica para tratar do tema da diversidade étnico-racial, argumentando que
a educação já deveria ser inclusiva por natureza. No entanto, essa argumentação
ignora a realidade vivida por muitos brasileiros. A distinção racial ainda é uma
realidade no Brasil. O preconceito e a exclusão social são enfrentados diaria-
mente por negros e negras em diversas esferas da sociedade, incluindo o ambien-
te escolar. A falta de representatividade nas escolas e a falta de abordagem da
história e da cultura afro-brasileira criaram a perpetuação desse quadro. Além
do mais, a história oficial do Brasil, ensinada nas escolas, sempre foi contada a
partir de uma perspectiva eurocêntrica e branca, deixando de lado a contribui-
ção das culturas africanas e indígenas na formação da sociedade brasileira, a lei
veio para corrigir essa lacuna.
Ao longo desses 20 anos, é inegável que a lei teve um impacto positivo na
educação brasileira. A partir dela, a cultura afro-brasileira e africana passou a
ser reconhecida como parte integrante da cultura nacional, deixando de ser vista

219
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

como uma cultura marginal ou exótica. Os estudantes passaram a ter acesso a


um conteúdo que antes lhes foi negado, o que contribuiu para que muitos negros
e negras se reconhecessem como sujeitos de história e cultura.
A lei também trouxe mudanças para a formação dos professores que,
agora, precisam se capacitar para abordar o tema da diversidade étnico-racial
de forma adequada e aprofundada. Isso contribuiu para que os professores se
tornassem mais conscientes das desigualdades raciais e mais preparados para
lidar com as diferenças culturais de seus alunos. Outro aspecto positivo da lei
foi a criação do Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de
novembro. Essa data é um marco na luta pela igualdade racial no Brasil, pois re-
memora a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, que
resistiu à escravidão e lutou pela liberdade e pela igualdade de direitos.
No entanto, 20 anos após sua promulgação, ainda há muito a ser feito
para que a lei seja efetivamente eficaz. Embora muitas escolas tenham incluído
a história e a cultura africana, afro-brasileira e indígena em seu currículo, ainda
há muitas que não o fazem. Muitas escolas não conseguem cumprir o que é de-
terminado pela lei, seja por falta de recursos, seja por resistência dos professores
ou da comunidade escolar. Além disso, o conteúdo, muitas vezes, é alcançado
de maneira superficial, sem a profundidade e o compromisso necessário para a
compreensão da diversidade cultural brasileira. Muitos alunos ainda enfrentam
situações de racismo e identificação nas escolas, o que mostra que a luta pela
igualdade racial ainda está longe de ser vencida.
É importante destacar que a implementação da Lei n°. 10.639/03 não
pode ser vista como um processo isolado. É necessário que haja uma articula-
ção entre as diferentes políticas públicas tratadas para a promoção da igualdade
racial, como a política de cotas nas universidades, a lei de combate ao racis-
mo, entre outras. Também é importante envolver toda a comunidade escolar
no processo, incluindo alunos, pais e funcionários, de forma a garantir um am-
biente escolar inclusivo e respeitoso. Para avançar na implementação da Lei n°.
10.639/03, é preciso investir em várias frentes, entre elas:
1. Formação de professores: É preciso investir na formação continuada
dos professores, das várias áreas do conhecimento, para que eles pos-
sam lidar com a temática de forma mais aprofundada. Isso inclui o
estudo da história e cultura afro-brasileira e africana, bem como uma
reflexão sobre as questões raciais e a construção de práticas pedagógi-
cas inclusiva;
2. Produção de materiais didáticos: É fundamental que sejam produzi-
dos materiais didáticos para todas as áreas de ensino adequados para
a implementação da lei e que contemplem a diversidade regional e a

220
20 ANOS DA LEI N° 10.639/03 E 15 ANOS DA LEI N° 11.645/08
Avanços, Conquistas e Desafios

multiplicidade de experiências e culturas que existem dentro da popu-


lação negra;
3. Fortalecimento da gestão escolar: A gestão escolar tem um papel fun-
damental na implementação da lei, pois é responsável por articular e
organizar as atividades pedagógicas relacionadas à temática da diversi-
dade étnico-racial. É importante que os gestores escolares tenham for-
mação adequada para lidar com a temática e que possam garantir que
a lei seja segurada. Além disso, é importante que as escolas recebam
apoio e recursos para implementar a lei de maneira efetiva;
4. Diálogo com as comunidades locais: As comunidades locais, em es-
pecial, as comunidades negras, devem ser convidadas a participar da
implementação da lei, trazendo suas vivências e experiências para o
ambiente escolar. É importante que sejam criados espaços de diálogo
e escuta, de forma a garantir a participação e o protagonismo dessas
comunidades;
5. Fortalecimento da parceria entre escola e família: A família é um im-
portante aliado na promoção da diversidade étnico-racial nas escolas. É
fundamental que as escolas estabeleçam uma comunicação efetiva com
as famílias, criando espaços para o diálogo e a troca de informações. As
famílias também devem ser convidadas a participar das atividades es-
colares e serem inspiradas sobre as políticas e práticas que estão sendo
desenvolvidas para promover a diversidade étnico-racial;
6. Acompanhamento e avaliação do processo de implementação: Para ga-
rantir a aprendizagem da implementação da lei, é necessário que haja
um sistema de monitoramento e avaliação, que permita avaliar a qua-
lidade e a pertinência do conteúdo e das atividades pedagógicas rela-
cionadas à temática da diversidade étnico-racial. Esse monitoramento
deve ser feito de forma sistemática, envolvendo toda a comunidade es-
colar, e deve ter como objetivo a perfeição contínua das práticas peda-
gógicas e garantir a implementação adequada da lei.
O descumprimento da lei não é apenas uma violação dos direitos huma-
nos, mas também uma questão de educação. A falta de conhecimento sobre a
história e a cultura africanas, afro-brasileiras e indígenas pode levar a estereóti-
pos e preconceitos, perpetuando a exclusão e a exclusão social.
Chegamos ao final deste livro, que teve como objetivo trazer e analisar re-
flexões sobre a Lei n°. 10.639/03 e sua implementação ao longo de seus 20 anos
de existência. Espero que, através das argumentações alcançadas pelos autores,
tenha sido possível compreender a importância dessa lei para a promoção da
igualdade racial e o enfrentamento ao racismo estrutural no país.

221
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

Ao longo do livro, os autores discutiram como a implementação da Lei


n° 10.639/03 ainda enfrenta desafios e controvérsias, como a falta de formação
adequada dos professores e a produção insuficiente de materiais didáticos para
a temática. Porém, também destacaram avanços importantes, como a inclusão
de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira em diversos currículos esco-
lares e a promoção de atividades extracurriculares para estimular o respeito pela
diversidade étnico-racial. Espero que este livro tenha contribuído para a reflexão
sobre a importância da implementação da Lei n°. 10.639/03 e da promoção da
igualdade racial em nosso país. Que possamos continuar avançando nessa luta,
para construir uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas.
Até uma próxima leitura!

Patrícia da Silva Soares


Doutoranda em História (UFG)
Mestre em Ensino na Educação Básica (UFG)

222
SOBRE OS ORGANIZADORES

Manuel Alves de Sousa Junior


Doutorando em educação na UNISC e Mestre em
Bioenergia pela UniFTC Salvador (2011), Possui
graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas
pela Universidade Católica do Salvador (2002), gra-
duação tecnológica em Segurança do Trabalho pela
UNIASSELVI (2016), Graduação em Licenciatura
em História pela UNIJORGE (2020), MBA em
História da Arte pela Estácio (2020), Especialização
em Confluências Africanas e Afro-brasileiras e as relações étnico-raciais na
educação (2022) e Especialização em Análises Clínicas pela UCSal (2004).
Atualmente é servidor público federal efetivo como professor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) campus Lauro de
Freitas/BA. Possui experiência na docência do ensino superior no IFBA, e em
diversas Instituições de Ensino Superior privadas, tendo atuado também na do-
cência em de cursos técnicos e outras modalidades, sobretudo no IFBA, além
de cursos de Formação Inicial e Continuada e cursos de extensão. No IFBA
tem plena atuação em ensino, pesquisa, extensão e gestão. Possui capítulos de
livros, artigos publicados em periódicos e também diversas publicações em even-
tos. Organizador principal dos Livros “Questões raciais: educação, perspecti-
vas, diálogos e desafios”, “Relações étnico-raciais: reflexões, temas de emergên-
cia e educação” e “Foucault, arte e educação: ensaios possíveis”. Membro do
Grupo de Pesquisa Identidade e Diferença na Educação CNPq/UNISC e do
Observatório de Educação e Biopolítica - OEBIO. Editor assistente da Revista
Ensaios ISSN 2175-0564. Membro do NEABI - IFCE campus Umirim. E-mail
- manueljunior@ifba.edu.br.

Tauã Lima Verdan Rangel


Estudos Pós-Doutorais desenvolvidos no Programa de
Pós-Graduação Strictu Sensu em Sociologia Política da
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF),
em 2019-2020 e 2020-2021. Doutor (2015-2018) e
Mestre (2013-2015) em Ciências Jurídicas e Sociais
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Especialista Lato Sensu em Direito, nas seguintes
223
Manuel Alves de Sousa Junior | Tauã Lima Verdan Rangel
(Organizadores)

áreas: Direito Constitucional (2019-2020); Direito do Consumidor (2019-2020);


Direito da Infância, da Juventude e do Idoso (2019-2020); Direito Administrativo
(2016-2018); Direito Ambiental (2016-2018); Direito de Família (2016-2018); e
Práticas Processuais, Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo
Centro (2014-2015). Especialista Lato Sensu em Docência e Gestão do Ensino a
Distância (2019-2020) e Gestão Educacional e Práticas Pedagógicas (2017-2018).
Bacharel em Direito (2007-2011). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos
Fundamentais e Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Pessoas com Deficiência
e Inclusão Social/UFF e do Grupo de Pesquisa em Política Criminal/UFF.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Faces e Interfaces do Direito: Sociedade,
Cultura e Interdisciplinaridade no Direito, vinculado à Faculdade Metropolitana
São Carlos/campus de Bom Jesus do Itabapoana-RJ. Autor dos livros: Escritos
Jurídicos em tempos de Pandemia (Editora Iole, 2022); Escritos Jurídicos so-
bre Vulnerabilidade (Editora Iole, 2022); Direito em Emergência (volume
2) (Editora Pimenta Cultural, 2021); Escritos Jurídicos sobre Sexualidade
(Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Direitos Humanos (Editora Iole,
2021); Escritos Jurídicos sobre Meio Ambiente (Editora Iole, 2021); Escritos
Jurídicos sobre Segurança Alimentar (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos
em Tempos de Covid-19 (Editora Iole, 2020); Direito em Emergência (Editora
Pimenta Cultural, 2020); Segurança Alimentar e Nutricional na Região Sudeste
(Editora Bonecker, 2019); e Fome: Segurança Alimentar e Nutricional em pau-
ta (Editora Appris, 2018). Coordenador da coleção “Novos Temas de Direitos
Humanos Fundamentais” (volumes 1, 2 e 3), lançados pela Editora Clássica
(2022). Coordenador da coleção “Direitos Humanos Fundamentais em Pauta”
(volumes 1, 2, 3, 4 e 5), lançados pela Editora Edições e Publicações (2021).
Organizador, do livro Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais (volume
03), lançado pela Editora Gramma, em 2017.

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