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Revista Eletrônica do Curso de História da Universidade Estadual do Ceará

Fortaleza, v.2, n.3 – julho-dezembro, 2013.


ISSN: 2357-8556

Universidade Estadual do Ceará – UECE


Reitor: Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio
Vice-Reitor: Prof. Ms. Hidelbrando dos Santos Soares

Centro de Humanidades – CH
Diretora: Prof.ª Dr.ª Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos
Vice-Diretor: Prof. Dr. Eduardo Jorge Oliveira Triandópilis

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Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Ceará


Coordenador: Prof. Dr. Francisco Artur Pinheiro Alves
Vice-Coordenador: Prof. Dr. Francisco Agileu De Lima Gadelha
EDITOR CHEFE
Prof. Dr. Francisco José Gomes Damasceno (UECE)

COORDENAÇÃO EDITORIAL
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Reverson Nascimento Paula (UECE)

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Bruno Rodrigues Costa (UECE)
Caio Morais Pinheiro (UECE)
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~1~
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CONTATO PRINCIPAL
Prof. Dr. Francisco José Gomes Damasceno
E-mail: revistabilros@uece.br
SUPORTE TÉCNICO
Reverson Nascimento de Paula
E-mail: reverson_nascimento@hotmail.com
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EDITORAÇÃO E CAPA
Camila Mota Farias
Reverson Nascimento Paula

~2~
Sumário
APRESENTAÇÃO............................................................................................................. 3
Reverson Nascimento Paula

ARTIGOS
ANTÔNIO CARLOS BELCHIOR E A INSERÇÃO DOS MÚSICOS
CEARENSES NA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA DA DÉCADA DE
1970...................................................................................................................................... 10
Bruno Rodrigues Costa

SERTANEJO CAIPIRA OU CAIPIRA SERTANEJO: AS DEFINIÇÕES DA


MÚSICA RURAL BRASILEIRA NA COLEÇÃO ‘NOVA HISTÓRIA DA
MÚSICA POPULAR BRASILEIRA’.............................................................................. 29
Alessandro Henrique Cavichia Dias

O GURU DE UMA GERAÇÃO: AUGUSTO PONTES, O “PESSOAL DO


CEARÁ” E AÇÃO CULTURAL (1963-1979).............................................................. 46
Marcos Leandro Carneiro Freitas

PRAZER EM CONHECER, SOMOS AS TAIS FRENÉTICAS! CULTURA E


MERCADO SOBRE O FENÔMENO DISCO MUSIC DO GRUPO FEMININO
AS FRENÉTICAS (1977-1978)......................................................................................... 58
Stênio Ronald Mattos Rodrigues

O “POLÍTICO” NOS PANFLETOS DE MILTON NA REPÚBLICA INGLESA..... 79


Fernanda Fonseca Coutinho

A CULTURA POLÍTICA DE JOÃO BRÍGIDO DOS SANTOS: POLÍTICA,


MAÇONARIA E IMPRENSA (1859 – 1919).................................................................. 101
Renato Rios

POR UMA OUTRA DIÁSPORA: FORMAÇÃO HISTÓRIA E DISPERSÃO DOS


TERREIROS DE CANDOMBLÉ NO GRANDE RIO................................................. 125
Rodrigo Pereira

O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO BRASIL: ALGUMAS REFLEXÕES........ 153


Vanessa Cristina Pacheco Silva

A “CIVILIZAÇÃO” NA FORTALEZA DO INÍCIO DO SÉCULO XX: UM


DIÁLOGO COM NORBERT ELIAS.............................................................................. 167
Maria Adaiza Lima Gomes

~3~
PERIODISMO, PROPAGANDA E LEITURA: O NASCER DAS LETRAS NO 182
RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA.............................................................................
Jaqueline Stafani Andrade

RENEGANDO O SANGUE: O INFANTICÍDIO DO JOVEM FORTALEZENSE 197


BEMVINDO LOPES DE ARAÚJO.................................................................................
Gleiciane Damasceno Nobre

ENTREVISTANDO
ENTREVISTA COM O ESTRIGAS............................................................................... 209
Danielle Almeida Lopes

ENQUANTO ISSO...OUTRAS HISTÓRIAS.

CESSAR DIONISÍACO.................................................................................................... 215


Paula Tainar de Souza

~4~
Apresentação

É com muita alegria que a “Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e


Cultura(s)” torna público o seu terceiro número, resultado do esforço coletivo dos discentes
do Curso de História e do Mestrado Acadêmico em História da Universidade Estadual do
Ceará. A Revista Bilros divulga, nessa edição, treze trabalhos que correspondem às seções:
“Artigos”, “Entrevistando” e “Enquanto isso... outras histórias”.

Mais do que debater e divulgar a produção historiográfica e de áreas afins, esta


edição pluraliza tanto em suas modalidades como nos temas contidos nos escritos. A relação
entre história, música e mercado fonográfico, cultura política, dispersão dos terreiros de
candomblé, o dia da consciência negra e poesia são alguns dos assuntos que perpassam o
corpo dessa edição. Campos da história, como a história cultural e a história social são
perpassados através de discussões sobre a civilização em Fortaleza e os infanticídios.

Trilharemos uma breve caminhada para lhes apresentar o que está sendo colocado
para deleite nessa edição...

Os quatro primeiros artigos que sucedem apresentam determinada aproximação


entre a História e a Música. Bruno Rodrigues Costa, da Universidade Estadual do Ceará,
inicia este número com o artigo “Antônio Carlos Belchior e a inserção dos músicos cearenses
na indústria fonográfica da década de 1970”, abordando através da memória e da oralidade
dos que conviveram com Belchior nesse período, o autor busca apresentar sua trajetória
musical e, ao mesmo tempo, compreender a relação dos músicos cearenses com a indústria
fonográfica do período. Nessa perspectiva, o autor faz uma reflexão acerca do cenário de
efervescência da produção cultural ocorrido nas décadas de 1960 e 1970, o qual, no cenário
local gerou oportunidades para uma série de cantores e compositores cearenses de inserção na
indústria da música.

A seguir, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Alessandro


Henrique Cavichia Dias, assina o artigo “Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As
definições da música rural brasileira na coleção ‘nova história da música popular
brasileira”, no qual é apresentado uma análise sobre a formação de dois gêneros musicais,

~5~
conhecidos como música sertaneja e música caipira. Neste trabalho, o autor encara a árdua
tarefa de analisar as tensões e as diferenças estéticas entre ambos os gêneros e, dessa forma,
problematizar tais categorias e como elas contribuem para a solidificação de uma tradição.

No terceiro artigo, Marcos Leandro Carneiro Freitas, do Instituto de


Desenvolvimento, Educação e Cultura do Ceará, nos apresenta em seu artigo intitulado “O
guru de uma geração: Augusto Pontes, o “Pessoal do Ceará” e ação cultural (1963-1979)” a
participação de Augusto Pontes nos movimentos artísticos, no processo de formação e no
cotidiano da geração de artistas cearenses denominada “Pessoal do Ceará” como poeta e,
principalmente, como agitador cultural. Através do conceito de Ação Cultural, o autor buscou
demonstrar que Augusto Pontes pode ser classificado como um “Agente Cultural” dentro da
geração “Pessoal do Ceará” tendo em vista suas práticas diárias.

No quarto e último artigo que realiza uma aproximação entre História e Música,
Stênio Ronald Mattos Rodrigues, da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA nos
apresenta seu artigo intitulado “Prazer em conhecer, somos as tais frenéticas! Cultura e
mercado sobre o fenômeno disco music do grupo feminino as Frenéticas (1977-1978).”
Nessa perspectiva, o autor se aproxima da história cultural ao problematizar o impacto
cultural vivido no Brasil com as Frenéticas, grupo musical feminino que alcançou grande
êxito no mercado de discos na segunda metade do decênio de 1970. Dessa maneira,
analisando o impacto que o grupo, por meio da popularização do gênero musical disco music
(discoteca), causou no país por meio da moda, como também sobre o mercado de discos e
outros setores industriais.

A seguir, no quinto artigo deste número, Fernanda Fonseca Coutinho, da


Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), trás em seu artigo “O “político” nos
panfletos de milton na república inglesa.” uma analise do discurso de John Milton a partir
das obras Tenência dos reis e magistrados (1649) e Defesa do povo inglês(1651). Nessa
perspectiva, a autora busca demonstrar que o pensamento do autor é uma tentativa de
responder aos problemas que o incomodavam no século XVII e que este estava inserido e foi
influenciado pelos conflitos do seu tempo, como a instabilidade política e a importância da
Bíblia.

Renato Rios, da Faculdades INTA, assina o sexto artigo intitulado “A cultura


política de João Brígido dos Santos: política, maçonaria e imprensa (1859 – 1919)”. O autor
busca analisar a construção de uma Cultura Política em João Brígido a partir de alguns locais

~6~
de pertencimento em que este intelectual se mostrava atuante, durante a segunda metade do
séc. XIX e as primeiras décadas do século XX. Através dessa abordagem e do conceito de
“Cultura Política” vislumbramos um emaranhar de possibilidades de articulação histórica,
onde nos é apresentado à maçonaria, a Igreja Católica e a imprensa como estando no centro da
discussão.

No sétimo artigo, Rodrigo Pereira, professor colaborador da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pertencente ao Museu Nacional da Quinta da Boa Vista
(UFRJ), nos apresenta seu artigo intitulado “Por uma outra diáspora: Formação histórica e
dispersão dos terreiros de candomblé no Grande Rio.” no qual busca analisar diversas as
origens que o candomblé teve na cidade do Rio de Janeiro e sua diáspora para regiões
afastadas do Centro da cidade. Desta maneira, o autor tem como principal intenção
compreender e problematizar as razões que levaram a diversos terreiros a se expandirem pelo
Grande Rio de Janeiro.

Vanessa Cristina Pacheco Silva, da Universidade Regional de Blumenau, nos


apresenta no oitavo artigo “O dia da consciência negra no Brasil: algumas reflexões” uma
análise a respeito da data 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares que
se tornou símbolo alusivo ao Dia da Consciência Negra no Brasil, em oposição ao 13 de maio,
data em que é comemorada a abolição da escravatura no calendário nacional. Neste trabalho,
a autora busca compreender os simbolismos existente nessas duas datas e a oposição entre as
mesmas, onde a data escolhida para representar o dia da consciência negra é duramente
criticada pelo Movimento Negro como sendo totalmente desprovida de representatividade
em relação aos escravos.

Maria Adaiza Lima Gomes, da Universidade Estadual do Ceará, assina o nono


artigo desta edição o qual é intitulado “A “civilização” na fortaleza do início do século xx:
um diálogo com Norbert Elias.”. Neste artigo, a autora busca realizar uma discussão em torno
da cidade de Fortaleza, entre as décadas de 1900 e 1930, no que se refere às transformações
pelas quais esta passou neste período e a uma tentativa, por parte dos setores dominantes, de
estabelecer um padrão de comportamento tido como civilizado para seus habitantes,
principalmente para as camadas populares. Através de um diálogo com o sociólogo alemão
Nobert Elias, a pesquisadora realiza um debate no que toca o que é ser civilizado na Fortaleza
daquele período, quais as motivações por trás desse desejo e como este buscou ser

~7~
implementado. Assim, se aproximando da história cultural, percebemos uma temática que
circula em torno das transformações de hábitos, costumes, padrões morais e comportamentais.

No décimo artigo, Jaqueline Stafani Andrade, da Universidade Estadual


Paulista Júlio de Mesquita Filho, nos apresenta o artigo “Periodismo, propaganda e leitura: o
nascer das letras no Rio de Janeiro oitocentista”. Neste trabalho, a autora nos apresenta um
esboço da formação das letras no Rio de Janeiro, tomando como elucidativo exemplo o
circuito de comunicação do folhetim e posterior livro A Carteira de meu tio de autoria de
Joaquim Manoel Macedo. Nesta perspectiva, a pesquisadora busca compreender a
importância dos periódicos para a História da Leitura.

No último artigo deste número, Gleiciane Damasceno Nobre, da Universidade


Estadual Vale do Acaraú – UVA, trás em seu artigo “Renegando o sangue: o infanticídio do
jovem fortalezense Bemvindo Lopes de Araújo” uma abordagem cultural a partir da análise de
processos criminais, onde muitas mulheres cometiam o crime de infanticídio para ocultar sua
desonra. Neste trabalho, a autora busca compreender como os homens se sentiam diante da
eminência de um filho inesperado e como as mulheres faziam para contornar a natureza e
evitar que ambos se tornassem motivos para exclusão e difamação perante a conservadora
sociedade fortalezense da metade do século XX.

Seguindo com os textos publicados nesse número da Revista Bilros, adentramos


na seção “Entrevistando”, onde Danielle Almeida Lopes, da Universidade Estadual Vale do
Acaraú – UVA nos trás uma entrevista esclarecedora com Nilo Brito Firmeza, o Estrigas.
Nesta breve entrevista, a pesquisadora nos apresenta um Estrigas em suas mais simples
facetas de artista plástico. Seu início como artista, suas influências, o caminho que tomou e
como decidiu segui-los, todos esses detalhes nos são apresentados em uma entrevista onde
percebemos a simplicidade e a postura inovadora do entrevistado. Este editor que vos escreve,
fala com profundo respeito e admiração deste artista que nos deixou no ano passado, mas não
sem antes ter registrado sua marca indelével no cenário dos artista plásticos cearenses.

Encerramos esse número com mais uma aquisição na Seção “Enquanto


isso...outras histórias” com o poema de autoria de Paula Tainar de Souza, da Universidade
Estadual de Londrina – UEL, intitulado CESSAR DIONISÍACO.

Os treze trabalhos brevemente apresentados constituem o terceiro número da


Revista Bilros, e, em suas multiplicidades, comungam importantes reflexões para nós!
Convidamos você, caro(a) leitor(a), para desfrutar dessas diversas possibilidades reflexivas!
~8~
Boa leitura!
Reverson Nascimento Paula
Coordenação Editorial

~9~
REVISTA DE HISTÓRIA
História(s), Sociedade(s) e Cultura(s)
Bilros
ANTÔNIO CARLOS BELCHIOR E A INSERÇÃO
DOS MÚSICOS CEARENSES NA INDÚSTRIA
FONOGRÁFICA DA DÉCADA DE 1970

Bruno Rodrigues Costa


Graduado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestrando no Mestrado
Acadêmico em História (MAHIS) da mesma universidade e membro do Laboratório de
Estudos e Pesquisas em História e Culturas (DÍCTIS).

10 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 10-28, jul.-dez. 2014.


Seção Artigos
REVISTA DE HISTÓRIA
História(s), Sociedade(s) e Cultura(s)
Bilros
ANTÔNIO CARLOS BELCHIOR E A INSERÇÃO DOS MÚSICOS
CEARENSES NA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA DA DÉCADA DE 1970

ANTÔNIO CARLOS BELCHIOR AND THE INSERTION OF CEARA’S


MUSICIANS IN THE PHONOGRAPHIC INDUSTRY OF THE 1970S

Bruno Rodrigues Costa

RESUMO ABSTRACT

O contexto político de recrudescimento da The political context of intensification of


repressão, com o advento do regime militar, e o repression, with the advent of the military regime,
cenário de efervescência da produção cultural, com and the effervescence of cultural production, with
transformações em diversas expressões artísticas, se changes in various artistic expressions, constituted
constituíram enquanto um rico mosaico para as a rich mosaic for experiences in the 1960s and
vivências nas décadas de 1960 e 1970. No Ceará, 1970s . In Ceará, as well as in the rest of Brazil, a
assim como no resto do Brasil, uma geração de generation of young people, artists, bohemians and
jovens artistas, militantes e boêmios engajaram-se activists have engaged in cultural production, with
na produção cultural, com participações nos participations in music festivals and television
festivais musicais e nos programas de televisão. O programs. The highlights in local scenery created
destaque no cenário local gerou oportunidades para opportunities for a number of Ceará’s singers and
uma série de cantores e compositores cearenses de composers for insertion in the music industry.
inserção na indústria da música. Dentre eles, Among them, Antonio Carlos Belchior excelled,
Antônio Carlos Belchior conseguiu se sobressair, signed contracts with record labels, released albums
assinou contratos com gravadoras, lançou álbuns e and became one of the leading artists of the MPB in
se tornou um dos principais artistas da MPB na the 1970s. His trajectory is a synthesis of the
década de 1970. Sua trajetória é síntese do processo process of insertion of Ceará musicians in
de inserção dos músicos cearenses no mercado phonographic market of that period, marked by
fonográfico desse período, marcado pela reconfiguration of the national scenery of MPB,
reconfiguração do cenário nacional da MPB, no where new artists and new musicality sought to
qual novos artistas e novas musicalidades buscavam build and conquer spaces. From the work with
construir e conquistar espaços. A partir do trabalho memory and orality of those who companied
com a memória e a oralidade dos que conviveram Belchior in this period, it becomes possible to
com Belchior nesse período se torna possível produce a narrative about his trajectory where the
produzir uma narrativa sobre sua trajetória onde se relationship of Ceará’s musicians with the
compreenda a relação dos músicos cearenses com a phonographic industry of the period is
indústria fonográfica do período. understandable.

PALAVRAS-CHAVE: Antônio Carlos KEYWORDS: Antônio Carlos Belchior,


Belchior, Trajetória, Memória, Indústria Trajectory, Memory, Phonographic industry.
fonográfica.

11 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 10-28, jul.-dez. 2014.


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O presente artigo tem o objetivo de produzir uma reflexão sobre o processo de
inserção dos cantores e compositores cearenses no mercado fonográfico brasileiro da década
de 1970. Para tanto, é tomada como objeto de análise a trajetória de Antônio Carlos Belchior,
músico popular nascido no interior do estado do Ceará e de grande repercussão naquele
período, nas suas relações com o cenário da produção cultural e com as experiências de uma
juventude universitária, engajada, artística e boêmia. Através de uma análise em escala
reduzida do processo de profissionalização dos artistas cearenses no meio musical, se torna
possível aprofundar uma compreensão sobre sujeitos e processos que impulsionaram
mudanças no cenário nacional da Música Popular Brasileira na transição da década de 1960
para 1970.

O interesse de pesquisa na trajetória de Antônio Carlos Belchior, tratado daqui em


diante como Belchior, se dá, para além da afinidade pessoal com a produção musical desse
artista, por se perceber em suas experiências de vida uma síntese entre a singularidade das
ações de um indivíduo e o contexto rico na pluralidade das transformações culturais no qual
este está imerso. Tal síntese se expressa nas suas relações com o grupo social de cantores e
compositores com quem conviveu na sua juventude no processo de inserção no mercado
fonográfico.
Faz-se imprescindível para a atualidade estudos mais aprofundados sobre a
dinâmica cultural do passado recente da sociedade brasileira. As transformações que se deram
na produção cultural da década de 1970, como as reconfigurações do mercado fonográfico, as
novas musicalidades que ganharam espaço e, principalmente, os novos sujeitos que passaram
a compor o cenário nacional da produção musical, têm profundas reverberações no presente.
As análises sobre os significados destas mudanças e dos processos que estas desencadearam
nos possibilitam buscar respostas sobre os sentidos que a dinâmica cultural tomou e vem
tomando hoje em dia.
A investigação histórica sobre a vida de um sujeito social dentro de um contexto
histórico tão denso de significados políticos, pelo advento do regime militar, e culturais, pelas
transformações, principalmente, no teatro, música e cinema, traz consigo ricas possibilidades
de análise sobre a relação entre indivíduo e sociedade. Por mais que tenhamos avanços nas
discussões sobre esse tema, tanto na História quanto nas outras Ciências Sociais, para Levi
(2006) ainda existem grandes preocupações quanto às ambiguidades do trabalho com essa
relação na atualidade. Geralmente, ou se aborda o indivíduo enquanto o irredutível reflexo de
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um contexto e das estruturas sociais, analisando como se reverberam as normas da sociedade
em seus comportamentos, ou é trabalhada a análise unilateral da singularidade do indivíduo a
partir da interpretação de suas escolhas na tentativa de se construir um perfil psicológico, sem
relacioná-lo com o seu meio. Entendendo esses caminhos e possibilidades, alinhamo-nos com
as práticas de narrativa da trajetória individual valorizada pela riqueza da análise do contexto.
Entendemos que a compreensão da atmosfera onde o sujeito tem suas experiências é central
para oxigenar o estudo da singularidade da trajetória.

Edward Carr (1978) nos mostra que a relação entre sociedade e indivíduo deve ser
entendida não enquanto oposição, e sim como complemento. O indivíduo por si só não
estabelece relações: ele nasce em condições específicas, é carregado por tradições e heranças
de significados que o faz ter uma língua, códigos morais, costumes, tudo o que se estabelece
enquanto cultura e forja o sentimento de comunidade. “Logo que nascemos, o mundo começa
a agir sobre nós e a transformar-nos de unidades meramente biológicas em unidades sociais”
(CARR, 1978, p. 56). Um único sujeito, descolado da coletividade, não existiria: até sua
experiência mais solitária seria balizada por elementos trazidos de suas raízes culturais.
Colocar os indivíduos e os sujeitos coletivos no mesmo patamar de relevância para a análise é
fundamental para se trabalhar com a investigação de processos históricos.

A riqueza da análise da vida de Belchior, e das suas empreitadas no âmbito da


produção artística, se torna pertinente por nos possibilitar uma compreensão sobre formas de
inserção e de constituição do cenário da MPB. O que se entende como Música Popular
Brasileira nas décadas de 1960 e 1970 é um mosaico de diversas formas de produção musical
que expressavam a disputa pelos rumos da própria música, e, de maneira mais abrangente, da
própria cultura brasileira. Este mosaico tem na sua constituição uma forte ação da juventude
que se articulava e se projetava visando conquistar a profissionalização na vida artística.

A trajetória de Belchior perpassa todo esse processo e cabe ser minuciosamente


analisada para percebemos onde a mesma expressa sua relação com esses cenários mais
abrangentes. Seu envolvimento com a música é o fio condutor de nossa compreensão, e este
se evidencia a partir do seu ingresso na universidade e do seu contato com uma coletividade
de jovens artistas, militantes e boêmios, que tiveram papel fundamental na sua vida.

Durante sua experiência universitária, Belchior teve muito contato com Jorge
Mello, estudante piauiense da faculdade de Direito que já era envolvido com o meio artístico
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desde antes de ingressar na academia. Essa amizade acabou sendo bastante frutífera para o
envolvimento de ambos com o cenário político e cultural da Universidade Federal do Ceará.
A partir da análise de seu depoimento, e do diálogo com a Memória, se torna possível
embasar uma reflexão e construir uma narrativa sobre o processo que buscamos analisar.

Quando cheguei em Fortaleza, juntamente com meu irmão Emanuel Carvalho, hoje
médico, em 1967, comecei a cantar na TV Ceará no programa Show da Juventude,
de Paulo Limaverde. Também cantava nos programas de auditório da Rádio
Assunção. Eu passei no vestibular de Direito da UFC e meu irmão em medicina. Na
turma de meu irmão no curso de Medicina estava o Belchior, e na Faculdade de
Direito eu comecei a participar dos eventos que aqueciam as passeatas estudantis
cantando pra rapaziada. O Belchior fazia o mesmo lá na Faculdade dele. Um dia o
Emanuel trouxe o Belchior na república onde eu morava para que a gente se
conhecesse. (Entrevista. Jorge Mello. 13 ago. 2013).

A vida universitária de Belchior se deu no contexto de recrudescimento da


repressão do regime militar, e, ao mesmo tempo, nas circunstâncias da resistência do
movimento estudantil, onde muitos alunos se engajaram nas ações de enfrentamento à
ditadura. Belchior e Jorge Mello vivenciaram a universidade com algum envolvimento com as
ações políticas da luta estudantil, porém, não parecem ter aprofundado isso em uma
resistência mais organizada ao regime.

No ambiente universitário fervia política em 1968, ano em que entrei na


Universidade. Os líderes dos Diretórios Acadêmicos, como o da Faculdade de
Direito, que eu frequentava, eram comprometidos com o movimento estudantil e
com a esquerda. O mesmo acontecia com a Faculdade de Medicina, onde estudava
o Belchior. [...] A gente saía nas passeatas para dar nosso grito nas ruas e nesses
eventos a gente cantava pra rapaziada nossas composições. Na Faculdade de
Medicina, o líder também fora presidente do Diretório da Medicina e também
Presidente do DCE, e lá estava o Belchior ao seu lado nos eventos mostrando sua
música como eu fazia. (Entrevista. Jorge Mello. 11 set. 2013).

O seu engajamento nas manifestações e a sua aproximação de lideranças políticas


estudantis tinham como fio condutor a música. Foram nos eventos culturais, nas palavras de
ordem entoadas nas passeatas e nas atividades lúdicas dos Diretórios Acadêmicos onde
Belchior encontrou as primeiras oportunidades para expor suas canções e ter contato com
outros jovens artistas do meio universitário. A partir dessas experiências políticas e musicais
se consolidou a forte amizade com Jorge Mello, e com outros músicos que viriam a dar

14 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 10-28, jul.-dez. 2014.


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contribuições fundamentais para a construção da sua carreira artística. Sobre isso, Castro nos
diz que:

Os estudantes, diante da ditadura, organizavam passeatas, fazendo paródias, usando


a resistência com humor [...]. Vale notar que muitas dessas paródias, versos e
canções embaladas em passeatas eram criadas por Belchior e Jorge Mello. Todavia,
não há nenhum registro dessas canções, apenas o registro de suas memórias [...]
(CASTRO, 2008, p. 141).

O envolvimento com música, por parte de Belchior, não surgiu de forma abstrata
a partir de sua inserção no meio universitário, nem pelo contato com um incipiente cenário
artístico na década de 1960. Analisando mais a fundo sua trajetória percebe-se que o seu
talento e seu gosto musical foram forjados desde sua infância em Sobral, no interior do Ceará,
marcada “pelas vivências nas praças ao som dos rádios, que embalavam as tardes com
canções de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, traziam informações sobre o país e o resto do
mundo e contribuíam para os momentos de socialização das famílias.” (COSTA, 2013, p. 20).
Entendemos que esse processo contou com o envolvimento de sua família, tendo em vista que
seu avô tocava rabeca, sua avó e sua mãe cantavam no coral da igreja, e, também, com a
influência da forte tradição musical de sua formação católica, expressa nas missas, nas
orações e nos cânticos.

A necessidade que surgiu da família de Belchior migrar à capital cearense,


naquele período, se deu a partir do interesse de seu irmão em prestar o vestibular da UFC, o
que o levou a ingressar no Liceu do Ceará na primeira metade dos anos 1960. Esta sua
vivência foi relatada ao pesquisador Pedro Rogério da seguinte maneira:

[...] quando eu entrei pro Liceu foi um choque, histórico, absurdo, porque eu estava
vindo de um colégio absolutamente disciplinar, como era um colégio de padres e o
Liceu era um ambiente extremamente juvenil, do ponto de vista das propostas
políticas e tava todo mundo fazendo greve, quebrando ônibus, incendiando ônibus e
eu não tinha muita compreensão, ainda, devido à escola de onde eu vinha [...] (2008,
p. 40).

O contato com uma juventude urbana diferente da que Belchior havia conhecido
em sua cidade no interior do Ceará acabou gerando um grande estranhamento, pelo que
analisamos de seus relatos. A efervescência e o espontaneísmo dos movimentos secundaristas
de Fortaleza parecem ter se mostrado muito radicais para o jovem garoto católico e
15 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 10-28, jul.-dez. 2014.
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interiorano. Esse choque o levou a, quando concluiu os estudos no Liceu, optar pelo ingresso
“no seminário dos frades capuchinhos, onde teve uma formação bastante erudita, estudou
filosofia e teologia, além de canto gregoriano.” (COSTA, 2013, p. 23). Pode se interpretar,
dessa sua opção, que o universo da igreja lhe parecia mais confortável naquele momento, e se
fazia necessário uma fuga para um lugar longe da dinâmica da capital e de suas mudanças.
Somente após três anos de seminário que Belchior decide abandoná-lo e prestar vestibular
para medicina.

A cidade de Fortaleza atravessava, naquele contexto, o processo histórico de


crescente urbanização que havia se iniciado a partir da transição da década de 1950 para os
anos 60, com o governo Juscelino Kubistchek. A política implementada no Brasil de então era
a da busca pela inserção na modernidade industrial que se estabelecia em âmbito internacional
no período pós-Segunda Guerra, mesmo que a custo da intensa elevação da dívida externa.
Essa modernização trouxe consigo uma maior abertura às importações de produtos
americanos, assim como elementos culturais importantes, dentre eles: a cultura televisiva. Em
contrapartida, o Brasil também passou a se estabelecer também como um exportador de bens
simbólicos, principalmente por conta do advento da Bossa Nova. Esta nova forma musical
que estourou no final da década de 1950, com protagonismo de João Gilberto, Tom Jobim e
Vinícius de Moraes, se tornou símbolo da sofisticação e da musicalidade nacional, e acabou
por conquistar a programação dos rádios país afora, também se tornando um produto
brasileiro intensamente consumido internacionalmente (NAPOLITANO, 2008).

Nas suas vivências pelos espaços da Universidade Federal do Ceará pudemos


perceber, mesmo sem tanta concretude, um envolvimento por parte de Belchior com a vida
política do Movimento Estudantil. Por mais que não possamos mensurar com exatidão as
práticas que expressavam uma militância mais orgânica, devido a lacunas documentais, temos
indícios suficientes que possibilitam a análise de sua trajetória, no início de sua vida
acadêmica, tendo como marca o engajamento político através da música, seja compondo
canções que eram entoadas nas manifestações ou se apresentando nas atividades lúdicas dos
Diretórios Acadêmicos. Mas foi, principalmente, nos bares da noite fortalezense onde
Belchior encontrou a faceta da vida universitária que mais o influenciou. As experiências da
boemia ao lado de vários jovens artistas impulsionaram as suas primeiras iniciativas formais
de engajamento na produção musical.

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As primeiras empreitadas de Belchior e Jorge Mello, assim como de muitos outros
jovens artistas desse período, no mercado da música se deram a partir das apresentações em
programas de auditório das emissoras locais de televisão, e, também, através da participação
em festivais de música. Estas plataformas, que veiculavam artistas e canções para o país em
meados da década de 1960, faziam muito sucesso entre as classes médias fortalezenses
consumidoras da MPB.

Os festivais musicais no Brasil foram importados a partir de experiências


internacionais, principalmente as da Itália, e tinham a competição como principal formato.
Segundo Mello, os primeiros festivais do país que tiveram caráter exclusivamente musical
foram produzidos pela TV Excelsior e a edição de 1965 pode ser considerada como marco de
início de uma “era dos festivais” no Brasil (MELLO, 2003). Nessas competições eram
apresentados novos artistas, novas canções e uma disputa televisionada da produção musical
brasileira entre o tradicional e o moderno.

Na segunda metade da década de 1960, houve uma mudança de conotação nos


festivais apresentados pelo país. Eles deixaram de ser uma mera amostragem de canções e se
tornaram palcos de um debate político, estético e comportamental através das músicas e dos
artistas que veiculavam. O sucesso das competições musicais tem relação direta com o
contexto de massificação da televisão e de declínio do rádio, com a popularização dos
programas musicais de auditório e das novelas (NAPOLITANO, 2008). O período que se
seguia, mesmo com o AI-5, que representou o aprofundamento da censura e o cerceamento
das liberdades políticas da população, foi, paradoxalmente, de intensificação do consumo da
Música Popular Brasileira.

Alguns festivais de música aconteciam em Fortaleza já em formato competitivo e


exclusivamente musicais desde antes do I Festival da TV Excelsior, mas, eles só ganharam
maior relevância localmente após o sucesso dessas competições musicais a nível nacional
(CASTRO, 2008). Os artistas locais encaravam as apresentações nos festivais como
oportunidades de mostrar seu trabalho para um grande público e conquistar alguma projeção
no cenário musical da cidade. Geralmente, também aproveitavam outros espaços, como os
programas de rádio, para promover suas canções. Com o advento da televisão e a sua
consequente consolidação como principal veículo de comunicação no país, os programas de

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auditório das emissoras locais se mostravam como o melhor espaço para os jovens artistas
exporem suas obras.

Rodger Rogério, um dos músicos que conviveu com Belchior durante esse
período e que conquistou a profissionalização no mercado fonográfico no período, relatou que
seu envolvimento com esse artista se iniciou por conta de um festival. A relação de ambos se
deu no meio musical, entre festivais, bares e programas de televisão.

Esse colégio Santo Inácio tava promovendo um festival de música eu fui convidado
pra participar da seleção [...]. Eu conheci o Belchior porque ele era professor lá do
Santo Inácio, ensinava biologia, era estudante de medicina e ensinava biologia lá, e
era ele que tava promovendo o festival, era ele que tava organizando com os
estudantes [...]. Na seqüência eu fui encontrar o Belchior já na TV Ceará.
(Entrevista. Rodger Rogério. 24 set. 2012).

Para além do âmbito musical, as transformações que aconteciam na produção


cultural brasileira se expressavam também no cinema e, principalmente, no teatro. As
experiências do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes, trouxeram
importantes mudanças para a dramaturgia do país, a partir de um viés de esquerda (SOUZA,
2007). No Ceará, a produção artística local estava imersa nesse contexto, mas possuindo suas
especificidades. No início da década de 1960, o CPC da UNE havia criado a UNE-Volante,
uma comissão da entidade que visitava as capitais do país para animar as relações com os
movimentos nos locais. Com a experiência da vinda dessa comissão ao estado, instalou-se em
Fortaleza o CACTUS e o GRUTA, dois grupos de teatro engajado, ligados à Universidade
Federal do Ceará, que promoviam, para além de peças com teor crítico, outras ações culturais
na capital e também no interior do estado. Parte dos jovens universitários que viriam a
conhecer Belchior e conviver com ele o processo de busca pela profissionalização no mercado
fonográfico compunham as fileiras militantes do GRUTA e do CACTUS (ROGÉRIO, 2008).

Belchior e Jorge Mello durante suas trajetórias acadêmicas também tiveram algum
envolvimento com produções de teatro universitário. Este, principalmente, havia assinado a
direção musical de uma peça adaptada da obra de João Cabral de Melo Neto. Nesta situação
convidou Belchior para compartilhar seu cargo e para compor a trilha sonora da peça, e essa
talvez tenha sido a primeira experiência de produção musical do protagonista desta pesquisa

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que teve um sucesso mais abrangente, já que a obra acabou sendo apresentada em espaços no
sudeste do país, inclusive sendo premiada.

Dirigi a parte musical de Morte e Vida Severina, no Teatro Universitário. E na turma


de minha classe da Faculdade de Direito, fiz o curso tendo como colegas Haroldo
Serra e Hiramisa Serra. Ficamos amigos. Um dia ele me convocou para tratar da
produção da montagem de O Morro do Ouro, de Eduardo Campos. Acertamos na
hora fazer as músicas e também a Direção Musical. Como eu era na época o Diretor
Musical da TV Ceará e dividia o cargo com o Belchior, propus ao Haroldo Serra
também nessa empreitada trazer o Belchior. E assim foi feito. Com o Belchior, criei
as músicas para o espetáculo, porque o objetivo era fazer a transformação do texto
de Eduardo Campos num musical [...] e valeu, porque O Morro do Ouro ganhou seis
dos oito prêmios oferecidos no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio
Preto, e foi montada no Rio de Janeiro e em São Paulo com grande sucesso.
(Entrevista. Jorge Mello. 11 set. 2013).

A trajetória de Jorge Mello de inserção no cenário musical de Fortaleza se


confunde com a de Belchior nesse período, pois ambos tiveram a vida acadêmica marcada
pelo cenário efervescente da juventude universitária, que buscava novas formas de expressão
cultural e de resistência. Sobre sua profissionalização e a construção da carreira artística ao
lado de Belchior, Jorge Mello nos contou que foi responsável pela inserção do mesmo no
meio musical, primeiro com o convite para a produção teatral e, em seguida, com a direção
musical de um programa de televisão.

Fui presença constante no Show da Tarde, de Paulo Limaverde, e em 1969 fui


convidado por Gonzaga Vasconcelos para ser o diretor musical do programa Porque
Hoje É Sábado. Nesse período já era universitário e amigo de toda a moçada que
fazia música na capital cearense, inclusive o Belchior, e também iniciei o trabalho de
fazer composições em parceria com os poetas e compositores cearenses. Junto com
o Belchior dirigimos a parte musical desse programa que abria as portas para os
musicais locais. (Entrevista. Jorge Mello. 13 set. 2013).

Em depoimento, Lília Belchior, irmã do protagonista desta pesquisa e que


acompanhou a sua trajetória durante sua formação acadêmica, nos contou que seu irmão veio
a trabalhar no programa Porque Hoje É Sábado graças ao convite do próprio apresentador
Gonzaga Vasconcelos, citado por Jorge Mello, que havia, segundo ela, gostado bastante de
uma apresentação do cantor em seu programa. (Entrevista. Lília Belchior. 22 out. 2013). Esse
confronto de informações com o que foi trazido por Jorge Mello é exemplo da dinâmica da

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História Oral e das oportunidades interpretativas que a mesma possibilita quando
problematizada.

Talvez exista algum interesse em querer mostrar-se responsável pelo pontapé na


carreira profissional de Belchior na música, por parte de Jorge Mello, já que este se coloca
como o responsável pela inclusão do mesmo na produção musical da peça que foi premiada,
além da sua inserção no meio televisivo. Ou, talvez, possa existir alguma necessidade, por
parte de Lília Belchior, de querer construir uma imagem de seu irmão enquanto artista que
conquistou seu espaço no mercado da música a partir de seu próprio esforço.
Independentemente dessas questões, o central para a elaboração histórica que buscamos
construir em relação a trajetória de Belchior é o entendimento de que as suas primeiras
experiências profissionais no ramo da produção musical se deram enquanto elementos
decisivos para a construção da sua carreira artística. Tanto que serviram de trampolim para as
conquistas que se sucederam.

Nosso trabalho de investigação e produção de narrativa histórica tem como base


os usos metodológicos da História Oral, além do diálogo historiográfico com obras que
também estudam a experiência dos artistas cearenses nesse período. A Memória enquanto
uma ferramenta teórica tem utilidade nesta pesquisa por possibilitar a compreensão dos
elementos trazidos pelas fontes orais investigadas. Tais fontes foram formuladas a partir do
trabalho técnico de transcrição de entrevistas e do trabalho teórico de problematização das
informações contidas nos depoimentos dos entrevistados. O uso da oralidade foi crucial para o
trabalho de investigação dessa trajetória individual, pois, segundo Thompson, “a evidência
oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história [...]
transformando os objetos de estudo em sujeitos” (THOMPSON, 1992, p. 137). Optamos por
este suporte teórico-metodológico por entender a riqueza que o trabalho com a subjetividade,
que é inerente às fontes orais, possui para a qualificação da investigação histórica e para o
processo de construção da narrativa.

Téti, outra artista dessa geração que foi figura importante na trajetória desses
cantores e compositores cearenses, nos contou que no Diretório Acadêmico de Arquitetura da
UFC, primeiro ponto de encontro de boa parte dos jovens artistas da época, era comum
escutar “muito Milton Nascimento, [...] muita Bossa Nova, Chico, Tom Jobim [...] se ouvia os
Beatles, na época tava numa efervescência danada [...]” (Entrevista. Téti. 14 out. 2013). Esse

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grupo de jovens composto pela mesma e Rodger Rogério, entre muitos outros, transitava entre
vários bares da cidade, aproximando cada vez mais pessoas e trabalhando as primeiras
músicas e composições.
A vivência nos bares fortalezenses foi um dos importantes componentes comuns
na trajetória dessa coletividade, e se deu como um processo que serviu para aglutinar cada vez
mais jovens artistas e propiciar uma importante troca de experiências com a música para esses
sujeitos. A geografia boêmia desse grupo perpassava os bares Barão Vermelho, localizado no
centro da cidade e próximo da república onde morava Jorge Mello; o Bar do Gerbô, situado
próximo à sede da TV Ceará e que se tornou ponto de encontro desses artistas quando se
apresentavam nos programas musicais; e, principalmente, o Bar do Anísio e o Estoril.

Na época, a beira-mar não tinha asfalto nem tinha luz. Quem descobriu o Bar do
Anísio foi o Flávio Torres, que era estudante de física, amigo da gente, o Rodger e
o Augusto Pontes [...]. Essas pessoas que tavam frequentando o Diretório da
Arquitetura depois iam pro Anísio, ou então iam pro Barão Vermelho, que era na
[Avenida] Duque de Caxias, esses bares onde todo mundo se encontrava. Então era
assim, aparecia um, aparecia outro, aí pegava o violão e tocava, a gente foi se
conhecendo assim, eu acho que ninguém aparecia e dizia ‘aqui gente, esse é o
Belchior’ não teve isso [...] era chegando e aderindo [...]. (Entrevista. Téti. 14 out.
2013).

Através dessa informalidade dos bares, Belchior, quando já estava empregado no


programa da TV Ceará, aproximou-se desse conjunto de jovens criando juntamente com eles
novas perspectivas de produção musical, principalmente na participação nos festivais. Essas
ações, estabelecidas em espaços de sociabilidade comuns, de articulação para escutar música
e tocar violão nos ambientes da universidade, compor e apresentar suas canções nos bares,
além das iniciativas voltadas aos festivais musicais, compõem um conjunto de práticas e de
relações constituídas através de signos musicais que são, em nosso entendimento, expressões
de uma cultura jovem.
No âmbito teórico, o uso da noção de culturas jovens se dá a partir do trabalho
com a categoria de juventude, entendendo que esta somente é eficaz para a análise social
quando leva em consideração tanto a heterogeneidade quanto a pluralidade dos jovens
enquanto grupo social. Os elos que definem sujeitos a partir de uma noção de juventude
existem enquanto elementos culturais, logo, isso gera a necessidade de se conceituar a
categoria a partir das culturas de juventude que ela expressa nas práticas dos grupos sociais.
(PAIS, 1990). A relação entre Belchior e o conjunto de sujeitos que mantinham com ele uma

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relação comum de ações voltadas para o mesmo sentido, dentre elas a participação em
festivais de música, as vivências nos bares para a produção musical e a busca pela projeção no
cenário artístico da cidade, configuram uma cultura jovem que serviu de alicerce para a
profissionalização desses sujeitos.

Para a investigação desse processo histórico e dessa cultura jovem, nos


apropriamos das memórias de sujeitos que conviveram com Belchior durante a transição da
década de 1960 para 1970 e, cabe ressaltar que, mesmo sem os relatos do próprio protagonista
da narrativa, esta pesquisa se tornou possível devido ao trabalho de utilização teórica do
conceito de Memória Social.
Segundo Halbwalchs, a memória individual só existe quando a recordação
compõe uma consciência coletiva, ou seja, enquanto parte das lembranças de um grupo social.
Este pode ser desde um grupo estruturado e duradouro, como uma família, uma aldeia ou um
conjunto de trabalhadores de alguma fábrica, ou então uma coletividade mais informal, como
amigos que frequentam o mesmo bar. O importante é entender que as lembranças de um
sujeito nunca estão isoladas de uma recordação construída e acordada através de diálogos
entre seus pares sobre as experiências do passado. É a partir desse elo entre a recordação dos
indivíduos que se forma uma Memória Coletiva (HALBWACHS, 1990). Porém, o uso desse
conceito coloca uma ênfase desproporcional nas análises do que é coletivo entre as
lembranças de sujeitos sociais, secundarizando as implicações das singularidades dos
indivíduos na construção da memória.

A contribuição de Fentress e Wickham para essa discussão se dá com a


apropriação das teorias de Halbwachs para uma reformulação, injetando-lhes um maior
equilíbrio entre a ação da consciência individual na lembrança do passado e articulação desta
com uma coletividade para o processo de construção da memória. Segundo estes autores, é
preciso valorizar não só as confluências dos discursos dos sujeitos na lembrança do passado
histórico para tornar possível o seu entendimento, como também se apropriar das divergências
enquanto elementos significativos do processo cognitivo de recordar. As discordâncias entre
narrativas de indivíduos pertencentes a um mesmo grupo social sobre vivências em comum
são, também, ricas oportunidades de se compreender a construção que estes fazem do
passado. A memória é o instrumento da consciência humana que dá significado às

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experiências dos sujeitos no tempo, e o contexto que é vivenciado por um grupo possui
reverberações diferentes na vida de cada indivíduo (FENTRESS; WICKHAM, 1992).

Tomando como base o depoimento de Téti, podemos perceber a construção de


uma unidade forjada entre esses sujeitos na boemia e nas iniciativas artísticas, além de refletir
sobre como isso serviu para canalizar os obstáculos trazidos pelo regime militar no sentido de
incentivar a expressividade através da produção musical.

Essa turma era uma turma muito forte, porque a gente, naquela época da repressão,
tinha muita coisa pra dizer e a gente só podia dizer essas coisas cantando, conversar
ninguém podia [...] [Nos bares] era só chegando gente, puxando violão e tinha até
briga de violão, um queria mostrar coisa pro outro, nasceram muitas parcerias
dessas com os guardanapos de mesa, era gente passando música um pro outro [...]
era uma efervescência enorme, apesar do período escuro, era muita força da
juventude, a gente gostava de cantar e tava todo mundo junto [...] era assim, era
uma coisa muito rica. (Entrevista. Téti. 14 out. 2013).

Impulsionados pelas novas musicalidades apresentadas nos festivais musicais


transmitidos nacionalmente, muitos desses sujeitos sonhavam com as possibilidades de
ganhar espaço no cenário artístico da cidade. As conversas nas mesas dos bares iam
reproduzindo as discussões estéticas e ideológicas, mesmo que inconscientemente, que eram
apresentadas pelos novos artistas nos festivais, e, assim, cada um ia formando a sua identidade
musical dentro dessa coletividade de cantores e compositores amadores. Cada apresentação de
cada amigo em algum festival, em programas de rádio ou na televisão era razão para motivar
mais ainda os outros na construção de suas respectivas oportunidades artísticas.

O trabalho de Belchior e Jorge Mello na direção musical de programas televisivos


na TV Ceará foi fundamental para esses músicos, pois, além de ter sido relevante enquanto
primeira experiência profissional formal no campo da música para os dois, serviu para
possibilitar que ambos abrissem espaço para a promoção de outros jovens artistas no cenário
musical cearense. O programa Porque Hoje É Sábado, com apresentação de Gonzaga
Vasconcelos, na TV Ceará, veiculava importantes cantores e compositores da época como
Ray Miranda, Lurdinha Vasconcelos, e muitos artistas iniciantes, como Raimundo Fagner,
Wilson Cirino, Téti e Rodger Rogério.

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Essa garimpagem de novos artistas para apresentar nos programas musicais era a
grande estratégia das redes de televisão daquele período para conseguir audiência. A música
era a protagonista e as emissoras possibilitavam que ela fosse consumida pelo grande público.
Os principais programas daquele período na televisão cearense eram o Show do Mercantil,
apresentado por Augusto Borges, Show da Juventude, de Paulo Limaverde, Porque Hoje É
Sábado e Gente Que A Gente Gosta, de Gonzaga Vasconcelos.

Ednardo, outro artista cearense de grande repercussão na década de 1970, e que


foi produtor do programa Show do Mercantil entre o final dos anos 1960 e começo dos 1970,
em depoimento ao pesquisador Wagner Castro, contou que “convidava a turma todinha, [...]
ficava botando Petrúcio Maia, Téti, Rodger [...]” (CASTRO, 2008) mostrando como a
inserção na televisão foi importante para dar oportunidade aos artistas locais, criando uma
rede de solidariedade entre esses jovens que beneficiava tanto os que buscavam projeção
quanto os que produziam os programas e precisavam de novidades para exibir. A interação
entre eles objetivando construir carreiras musicais, mesmo que individualmente, foi
fundamental para projetá-los cada vez mais no cenário local, e a televisão foi uma plataforma
importante para construir oportunidades de profissionalização no mercado da música para
cada um.

O envolvimento de Belchior com o meio televisivo nesse contexto contribuiu


bastante para a sua articulação no meio profissional do mercado da música e por ter lhe
possibilitado as primeiras experiências formais de competição em festivais, assim como para
boa parte de seus pares. O entendimento que podemos extrair da nossa análise é que as
primeiras ações no sentido da construção de uma carreira artística, por parte dessa juventude,
são fruto da articulação dos mesmos nos espaços universitários e, principalmente, na boemia.
Além disso, a vivência nesses espaços permitiu a interação, as trocas de experiências, a
formação de parcerias e o amadurecimento da produção musical a partir dos diálogos entre
essa coletividade. Estes foram os alicerces das participações nos festivais e da consequente
projeção no meio artístico de cada um.

Exemplo disso foi a vitória de Belchior no IV Festival Universitário de Música


Popular, realizado em 1971, pela TV Tupi, no Rio de Janeiro. Foi o primeiro grande sucesso
de um artista cearense dessa geração em uma competição musical a nível nacional. Com essa

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conquista, Belchior ganhou um status de promessa do meio musical e repercutiu bastante em
alguns jornais do sudeste.

Nesses festivais universitários da TV Tupi que surgiram, entre 1968 e 1972, os


compositores-intérpretes que representariam, aos olhos de uma parte da imprensa
especializada, a continuidade da chamada "linha evolutiva" da musica popular
brasileira. Os festivais da Tupi do Rio foram, em certo sentido, os herdeiros
simbólicos dos festivais da Record de São Paulo, embora nunca tenham conseguido
alcançar os mesmos índices de prestígio antes alcançados por estes últimos certames
(MORELLI, 2009, p. 74).

Em uma performance usando túnicas e sandálias, a canção Na Hora do Almoço


conquistou o júri e a platéia, ganhando o prêmio de melhor canção e dando o Bandolim de
Ouro ao artista então desconhecido do grande público. Belchior, com sua vitória, conquistou
uma projeção em rede nacional, sendo premiado em uma competição de alto nível, por onde
já havia passado nomes importantes como Elis Regina, Gonzaguinha, Ivan Lins e Ruy
Maurity. Essa sua canção ainda é, hoje, um dos grandes sucessos do artista.

No centro da sala/Diante da mesa/No fundo do prato/Comida e tristeza/A gente se


olha, se toca e se cala/E se desentende no instante em que fala/Cada um guarda mais
o seu segredo/Sua mão fechada/Sua boca aberta/Seu peito deserto/Sua mão
parada/Lacrada, selada, molhada de medo/Pai na cabeceira/É hora do almoço/Minha
mãe me chama/É hora do almoço/Minha irmã mais nova/Negra cabeleira/Minha vó
reclama/É hora do almoço/E eu inda sou bem moço/Pra tanta tristeza/Deixemos de
coisas/Cuidemos da vida/Senão chega a morte/Ou coisa parecida/E nos arrasta
moço/Sem ter visto a vida/Ou coisa parecida/Aparecida. (BELCHIOR. Na Hora do
Almoço. Mote e Glosa. São Paulo: Chantecler, 1974).

Mesmo com a música não tendo forte repercussão nas rádios naquele momento,
essa vitória foi um elemento catalisador na sua trajetória para garantir contratos com
gravadoras e a sua consolidação enquanto músico no cenário nacional do mercado
fonográfico, pois garantiu a gravação de um compacto com a música e alguma visibilidade ao
artista. O jornal O Cruzeiro, que cobriu todo o evento, fez uma matéria extensa sobre a fase
final do festival, explorando detalhes sobre os participantes, e com uma grande ênfase na
vitória de Belchior.

Antônio Carlos Belchior, o compositor vitorioso, que faz música há apenas dois
anos e já tem mais de 50 canções prontas, disse que Na hora do almoço foi uma de

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suas primeiras composições. ‘Estou desenvolvendo um trabalho semelhante ao que
Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram, mas os temas das minhas músicas estão
dentro do folclore do meu Estado.’ Belchior, que chegou ao Rio há seis meses com
o grupo cearense e está tentando sua transferência da Faculdade de Medicina e uma
bolsa de estudos, vê o sucesso chegar rapidamente e suas dificuldades financeiras
desaparecerem. ‘Estou muito contente e também assustado com a vitória. Soube
que Maria Bethânia quer gravar Na hora do almoço, e Roberto Carlos já pediu a fita
de três músicas: Paralelas, Lentes do pranto e Espacial, para ouvir e talvez gravar.
Acho que a barra agora vai ficar mais leve pra mim’. (Jornal O Cruzeiro, 18 ago.
1971).

Apesar do prêmio, foi necessário o abandono, no último ano, do curso de


medicina que Belchior fazia na Universidade Federal do Ceará para seguir o sonho da carreira
artística. Impulsionados pelo suporte de Jorge Mello, que nesse contexto era produtor musical
da própria TV Tupi e que garantia a articulação dos artistas cearenses com os nomes do meio
musical do Rio de Janeiro, Belchior e o conjunto jovens músicos que havia apostado na ida ao
sudeste no início da década de 1970 construíram as suas oportunidades de inserção no
mercado da música cada um da sua maneira, mas sempre mantendo alguma forma de
envolvimento que fomentava aquela coletividade.

A articulação entre sujeitos a partir de práticas no mesmo sentido: o uso dos


festivais musicais para projeção de suas obras, a apropriação de plataformas midiáticas como
o rádio e os programas televisivos, e, principalmente, a ida à região sudeste do país para
buscar a profissionalização no mercado fonográfico, demonstram a vivência desses sujeitos
em torno de uma cultura jovem que foi construída pelos mesmos e que forjou as trajetórias de
cada um deles dentro da dinâmica da indústria fonográfica. Agora, é preciso afinar um
entendimento de indústria fonográfica enquanto algo que está para além da produção e do
consumo de discos (MORELLI, 2009). Os festivais musicais, os programas televisivos, os
programas de rádio, todos esses espaços que eram vivenciados por esses artistas existiam em
função da lógica do mercado fonográfico, a partir da necessidade de se projetar novos artistas,
conjuntos musicais e novas musicalidades para serem consumidos por um grande público.

Com esse processo, Belchior assinou contrato e lançou seu primeiro álbum pela
Chantecler, em 1974. Raimundo Fagner, Ednardo, Téti, Rodger Rogério, Jorge Mello, entre
outros artistas que vieram do Ceará, conquistaram seus espaços no meio musical e
construíram suas carreiras consolidando a inserção dos cearenses no mercado fonográfico da
década de 1970. É importante ressaltar que estes artistas nunca se apresentaram enquanto
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parte de um conjunto musical ou enquanto um movimento musical cearense. Eram músicos
que individualmente estavam construindo suas carreiras no meio musical do país. Mesmo
assim, cabe a reflexão: a ação individual de cada um desses sujeitos no sentido da
profissionalização no mercado fonográfico se deu enquanto parte da ação de um sujeito
coletivo, formado por esse grupo de jovens artistas cearenses, alicerçada pela dinâmica de
uma cultura jovem daquele período.

Nenhum dos artistas que constituiu o cenário da MPB na década de 1970, ou de


outros períodos históricos, surgiu a partir de mero talento ou acaso. Belchior e seus pares
naquele período foram forjados através de vivências concretas, imersas na lógica da indústria
fonográfica daquele período. O diferencial reside nas particularidades da dinâmica cultural
vivenciada pelos mesmos em suas respectivas trajetórias.

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∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

28 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 10-28, jul.-dez. 2014.


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SERTANEJO CAIPIRA OU CAIPIRA
SERTANEJO:
AS DEFINIÇÕES DA MÚSICA RURAL BRASILEIRA NA COLEÇÃO
‘NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA’

Alessandro Henrique Cavichia Dias


Licenciado em História pela Fundação Educacional de Fernandópolis, Bacharel em História
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de Franca, Mestrando
em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de Franca.
Bolsista Capes. E-mail: alessandro_cavichia@hotmail.com

29 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.


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SERTANEJO CAIPIRA OU CAIPIRA SERTANEJO: AS DEFINIÇÕES
DA MÚSICA RURAL BRASILEIRA NA COLEÇÃO ‘NOVA HISTÓRIA
DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA’

COUNTRY RUSTIC OR RUSTIC COUNTRY: THE DEFINITION OF


BRAZILIAN RURAL MUSIC IN THE COLLECTION ‘NEW HISTORY
OF BRAZILIAN POPULAR MUSIC’

Alessandro Henrique Cavichia Dias

RESUMO ABSTRACT:

Este ensaio pretende apresentar a formação This essay intends to present the formation
de dois gêneros musicais, conhecidos of two musical genres, that are known as
como música sertaneja e música caipira. country music and rustic music. To do this,
Para tanto, analisa-se as tensões e, it analyzes the tensions and, mainly, the
principalmente, as diferenças estéticas differences between both genres and, thus,
entre ambos os gêneros e, dessa forma, it will render problematic these categories
visa-se problematizar tais categorias e and how they contribute to the
como elas contribuem para a solidificação solidification of a tradition. Besides, these
de uma tradição. Junto a essas analises da analyzes the divergence of these musical
cisão desses campos musicais, caberá field, this essay will also introduce the role
também ressaltar o papel da Indústria of Phonograph(ic) Industry in the
fonográfica na consolidação desses consolidation of these genres, from two
gêneros, a partir de dois discos da coleção disc of collection of the New History of
Nova Historia da Música Popular Brazilian Popular Music, entitled, in 1978,
Brasileira, intitulados Música Caipira de Rustic Music, and, in 1983 Country Music.
1978 e Música Sertaneja de 1983, sendo These are the first of the same collection
estes os primeiros a fazerem parte de uma and they labeled, distinctly, the rural music
mesma coleção e rotular, distintamente, a of the interior of Brazil. These discs have
música rural do interior do Brasil. Tais reached a high level of popularity and they
discos alcançaram um alto nível de have contributed to the formation of a
popularidade e contribuíram fortemente musical memory. Add to that, they have
para a formação de uma memória musical solidified a canon around Brazilian popular
e a solidificação de um cânone em torno da music.
música popular brasileira.

PALAVRAS CHAVE: Música Sertaneja; KEY-WORDS: Country Music; Rustic


Música Caipira; Indústria Cultural; Music; Cultural Industry; Musical
Memória Musical. Memory.

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INTRODUÇÃO

Os álbuns em analise neste trabalho fazem parte da coleção intitulada Nova


História da Música Popular Brasileira, lançada no início da década de 1970 pela editora Abril
Cultural, a partir do qual teremos como referência o disco de música caipira de 1978 e o de
música sertaneja de 1983. Nessa direção, cabe salientar tanto os papéis desenvolvidos por
esses dois discos que se referem à música rural, como também toda a coleção produzida pela
editora na formação de uma memória musical e na solidificação de um cânone, como afirma o
pesquisador Dr. Silvano Fernandes Baia (2010, p.199):
Os discos traziam gravações selecionadas de compositores considerados relevantes
para história da música popular e vinham acompanhados de textos sobre a vida e a
obra do autor retratado. Os fascículos semanais da coleção eram vendidos em bancas
de jornal a um preço acessível. Fez um grande sucesso vendendo mais de 7 milhões
de exemplares em três edições. A série contribuía fortemente, pela sua popularidade,
na construção de uma memória da música popular no Brasil. A coleção já instituía
um cânone de quais grandes compositores dignos de figurar numa História da
música popular no Brasil na própria organização da seleção.

A partir desta perspectiva podemos afirmar que a construção do gênero sertanejo


passa pelas investidas da Indústria Cultural, como será discutido adiante. No entanto, ao
diferenciar esse dois gêneros cabe ressaltar a origem e a importância do conceito criado em
torno do termo “música sertaneja”, pois como afirma KOSELLECK R. (2006, p.98): "sem
conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade
política”, ou seja, a criação de um conceito, que tenha a mesma significação dentre uma
comunidade lingüística, permite a fundação de sistemas políticos e sociais que abranja todos
os níveis da estrutura social. Algo que se torna de fundamental importância para que a
Indústria Cultural possa exercer seu leque de influência.
Sendo assim, o termo música sertaneja é diferente do termo caipira (de ‘música
caipira’), que é uma denominação tipicamente paulista, usada para denominar o caboclo (e
sua produção cultural), que não residia nos centros urbanos. "Kaai 'pira" na língua indígena
significa, o que vive afastado1. Por outro lado, o termo música sertaneja era utilizado no Rio
de Janeiro no final do século XIX até a década de 1930 como referência para todas as músicas
que não pertencesse ao ambiente cultural da capital da república, ou seja, tal termo definia
tanto as canções da região nordeste como as do centro-sul, mas com uma referência maior ao
sertanejo nordestino, que nesse momento era uma figura cativa do ambiente cultural carioca,
1
Para maiores informações acessar: <http://www.violatropeira.com.br/origem.htm>
31 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.
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gêneros esses que seduziram grandes nomes do samba carioca, como Noel Rosa que fez parte
do Grupo dos Tangarás. Outro grupo de grande sucesso que teve como seus integrantes
grandes nomes do Samba foi Grupo de Caxangá que tinha na sua composição Pixinguinha,
Donga, Raul Palmieri e João Pernambuco que futuramente iriam integrar o grupo Oito
Batutas, todos esses, grandes interpretes do samba, iniciaram sua carreira artística na música
sertaneja em especial Noel Rosa como afirma o pesquisador Allan de Oliveira (2009, p.236):
Um exemplo disto é Noel Rosa, cujas primeiras composições, feitas ainda enquanto
era membro do Bando dos Tangarás, foram uma “toada do Norte” e uma
“embolada”. O próprio repertório do Bando dos Tangarás revela esta mistura dos
diferentes gêneros nas décadas de 10 e 20, pois assim como os Oito Batutas, os
Tangarás também tocavam sambas e cateretês, maxixes e desafios, foxtrotes e
emboladas. No entanto, por volta de 1931, Noel Rosa, (...) “opta” pelo samba,
passando a compor somente canções que se adequassem a este gênero e a um outro
relacionado ao carnaval, a marchinha. (...)

Como apresentamos acima, até a década de 1930 do século XX a música sertaneja


no Rio de Janeiro se constituía basicamente dos ritmos nordestinos e de uma influência ainda
muito modesta do ritmo caipira do centro-sul do Brasil. A música caipira passa construir
espaço na capital da república a partir de 1929, com a gravação dos primeiros discos deste
gênero, todos idealizados e financiados por Cornélio Pires, pois as gravadoras do período não
acreditavam que havia mercado consumidor para tal gênero, o primeiro disco era um de 78
rotações com rótulo vermelho, que levava o selo Columbia. Nesse disco, de um lado figurava
a música, “Jorginho do Sertão” e do outro, “Moda de Pião”, ambas de autoria do próprio
Cornélio Pires. De início, o disco vendeu cinco mil cópias em menos de 20 dias, ou seja,
todas as cópias que o próprio Cornélio tinha financiado, superando tanto as suas expectativas
e as das gravadoras, que passaram a investir consideravelmente neste novo filão. Com isso, a
música sertaneja passou a ser colonizada pela estética do centro-sul do Brasil, com afirma
Oliveira (2009, p.44):
Até 1929, a “música sertaneja” era simbolizada pelos diversos gêneros nordestinos
populares no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos 10 e 20, tais como emboladas
e desafios. Com as primeiras gravações de duplas formadas por “autênticos caipiras
do interior paulista” – nos termos das próprias gravações – a música sertaneja
começou a ser “colonizada” pela estética do interior do centro-sul, a estética caipira.
E nesse processo, a dupla cantando em terças tornou-se a formação central do
gênero. Apesar de todas as mudanças sofridas pela música sertaneja nos últimos 80
anos, a dupla foi o elemento que se manteve. Se antes havia Alvarenga e Ranchinho
(anos 30), hoje há Zezé di Camargo e Luciano.

Com isso, o termo sertanejo passa a se referir a um novo conceito de estética


musical que não possui vínculo nenhum com a tradição nordestina e que, por outro lado, será

32 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.


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negado pelas duplas caipiras tradicionais. Contudo, tal conceito só se cristaliza a partir de
meados da década de 1980 em diante, com os novos interpretes da música rural do centro-sul,
que também são renegados por serem acusados, pelos músicos considerados tradicionais do
meio caipira, de estarem modernizando e corrompendo os valores morais da legítima música
caipira. Essa negação destes novos interpretes ocorre devido a influência de outros ritmos
estrangeiros em suas performances, em especial o Country Estadunidense que se torna
presença confirmada nas interpretações de Sérgio Reis, Leandro e Leonardo Chitãozinho e
Chororó, Milionário e José Rico entre outros que, dessa forma, romperam com a estética da
música caipira. Sendo assim, o conceito música sertaneja passa a representar e definir um
novo grupo social distinto do caipira e também do sertanejo, no sentido que o termo era
empregado originalmente, o que nos permite mapear as tensões e representações criadas em
torno desses dois gêneros, pois como afirma Roger Chartier (1988, p.17): “As representações
do mundo social assim constituídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico
fundado na razão, são sempre determinados pelo interesse de grupo que as forjam. Daí para
cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
utiliza”

AS PRIMEIRAS DEFINIÇÕES ACADÊMICAS DE MÚSICA CAIPIRA E MÚSICA


SERTANEJA

No que diz respeito às diferenças acadêmicas entre a música caipira e música


sertaneja, tem se como referência o artigo de José de Souza Martins (1975) intitulado “Música
Sertaneja: a dissimulação na linguagem dos humilhados”, o qual também se destaca como
uma das primeiras pesquisas voltadas para análise da história e música. No decorrer deste
artigo José de Souza Martins (1975, p.103) norteia sua pesquisa sobre a música “abrangendo a
letra que nela suporta, o universo que verbaliza cantando e o universo que se utiliza como
ponto de apoio em determinadas relações sociais”. Dessa maneira, ao longo de seu artigo ele
estabelece uma relação entre o texto literário e o texto musical e, partindo dessas reflexões,
apresenta diversos pontos em comum, assim como distinções entre a música caipira e a
música sertaneja.
Segundo o autor, a música caipira estaria sempre ligada às sociabilidades do
mundo rural, assim como aos ritos religiosos, trabalhistas e de lazer. Enquanto a música
sertaneja seria dotada de um fundamento de classe sociais, as quais podem ser observadas, ao
longo das letras, na identificação realizada pelo autor dos elementos que exemplifiquem as
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condições concretas da existência das classes subalternas, assim como nas tensões,
contradições e oposições entre elas e outras classes. Nessa direção, segundo José de Souza
Martins a toada “Chico Mineiro” da dupla Tonico e Tinoco, exemplificaria com clareza sua
hipótese, como pode-se ver abaixo:

Cada vez que me "alembro" / Do amigo Chico Mineiro,/ Das viage que nois fazia
/Era ele meu companheiro. / Sinto uma tristeza, / Uma vontade de chorar, /
Alembrando daqueles tempos / Que não hai mais de voltar. / Apesar de ser patrão, /
Eu tinha no coração / O amigo Chico Mineiro, / Caboclo bom decidido, / Na viola
era delorido e era o peão dos boiadeiro. / Hoje porém com tristeza / Recordando das
proeza / Da nossa viage motin, / Viajemo mais de dez anos, / Vendendo boiada e
comprando, / Por esse rincão sem-fim / Caboco de nada temia. / Mas porém, chegou
o dia / Que Chico apartou-se de mim. / Fizemos a última viagem / Foi lá pro sertão
de Goiás / Fui eu e o Chico Mineiro / Também foi o capataz / Viajamos muitos dias
pra chegar em Ouro Fino / Aonde passamos a noite numa festa do Divino / A festa
estava tão boa, mas antes não tivesse ido / O Chico foi baleado por um homem
desconhecido / Larguei de comprar boiada / Mataram meu companheiro / Acabou-se
o som da viola / Acabou-se o Chico Mineiro / Depois daquela tragédia / Fiquei mais
aborrecido / Não sabia da nossa amizade / Porque nos dois era unido / Quando vi seu
documento / Me cortou o coração / Vi saber que o Chico Mineiro /Era meu legítimo
irmão2
Compreendemos que com essa música José de Souza Martins elucida a luta de
classe na música sertaneja, afirmando que as relações de trabalho entre patrão e empregado
não permitia que ambos se reconhecessem como irmãos.
Seguindo a mesma linha apresentada por José de Souza Martins, Waldenyr
Caldas publica sua obra em 1979, intitulada “Acorde na aurora: musica sertaneja e indústria
cultural”, a qual tem seu trabalho caracterizado pela mesma linha marxista que domina o
trabalho de José de Souza Martins.
No entanto, Waldenyr Caldas distingue a música caipira da sertaneja da seguinte
forma, a música caipira estaria ligada ao folclore rural, ou seja, seria fruto da socialização
entre as comunidades interioranas, ocupando, desse modo, uma função social dentre desse
grupo que vai além da mera diversão. Por outro lado, a música sertaneja se enquadraria como
um produto da urbanização, deste modo, estaria totalmente desprovido de seu caráter
folclórico e não possuiria nenhuma outra função a não ser o entretenimento, contudo, ela seria
apenas mais um produto alienante da Indústria Cultural (CALDAS, 1979).
No entanto, outros pesquisadores apresentam uma ótica distinta da apresentada
por José de Souza Martins e Waldenyr Caldas, como é o caso da dissertação de mestrado de
Lucas Antônio Araújo, a qual apresenta a música rural brasileira dividida em “música

2
As barras são utilizadas para separar os versos.
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sertaneja tradicional”, que seria o gênero que sempre teve como referência as estruturas das
músicas rurais, bem como instrumentos e temáticas semelhantes, e “música sertaneja”.
Contudo, Araújo apresenta como música sertaneja as novas duplas que surgiram em meados
dos anos 1970 e, especialmente, a partir da década de 1980, tais como Leandro e Leonardo,
Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó entre outras, que tinham suas
performances apoiadas em estrondosas bandas, com guitarristas, baixistas, tecladistas e
bateristas.
É importante ressaltar os atritos gerados entre a música sertaneja tradicional e a
música sertaneja, como bem aponta Araújo (2007, p.15):
É importante frisar que a partir da desvinculação em relação à temática, estética e
forma em geral da “nova vertente” do gênero em relação à música sertaneja
tradicional, as duplas de ambos os estilos, que poderiam ser definidas já como
gêneros distintos, têm atualmente uma relação relativamente amistosa. No boom dos
anos 1980, houve tendência marcante dos jovens astros em buscar cada vez mais se
desvencilhar da “velharia” e assumir, de forma empolgada, à modernização e à
estética “jovem”. Atualmente, as restrições, quando ocorrem, vêm do outro lado, das
duplas de violeiros tradicionais, que classificam a “nova música sertaneja” de forma
pejorativa como “sertanojo” ou “música de motel” em referência à temática
praticamente única do estilo: as desventuras amorosas. Em relação aos astros desta
“nova música sertaneja” assumem postura bem diferente daquela dos anos 1980, em
que as duplas tradicionais eram encaradas pelas jovens duplas da nova música
sertaneja de modo depreciativo, representando um verdadeiro “conflito de
gerações”. Atualmente dizem respeitar muito as duplas antigas a quem se referem
como verdadeiros mestres e, vez por outra, fazem questão de inserir um “clássico
sertanejo” na gravação de seus discos, quando não gravam um inteiro composto
somente de “músicas de raiz”.
Outra obra também muito importante, que auxilia a compreender a cisão entre
esses dois campos musicais é “A moda é viola: ensaio do cantar caipira”, de Romildo
Sant’Anna (2009). Esse trabalho é de suma importância, visto que traça uma linha do tempo
ao longo de sua explanação, sendo que, posteriormente, divide o estudo em duas partes.
Primeiramente, apresenta as configurações do cantar caipira, realizando a articulação entre o
caipira e seu meio, e como esse ambiente se expressa em suas canções, além de ressaltar sua
cultura material e imaterial, assim como seu papel socializador e lúdico. Por fim, traz a
discussão para a atualidade, analisando a situação da música caipira no cenário artístico atual,
e como o sertão hoje se representa no espaço citadino por meio da música caipira/sertaneja.
Portanto, estas considerações serão imprescindíveis para a compreensão do cenário em que
atua a música sertaneja em seus desdobramentos.
Um importante aspecto da música rural brasileira que é apontado por Romildo
Sant’Anna é a construção da dicção do cantar do caipira, conforme apresenta-se: “A Moda

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Caipira é cantada no acasalamento do dueto em terça, de mi e dó, em falso bordão de dicção
anasalada. O anasalamento conserva resquícios de línguas e dialetos ameríndios; o cantar
“entoando vozes” mantém a tradição ritualística da missa, devocionada na igreja
(SANT’ANNA , 2009, p.93).”
Ao avaliar-se os discos da Coleção Nova História da Música Popular Brasileira
em relação a estes dois gêneros musicais discutidos acima. Pode-se notar que no primeiro
disco, destinado a música caipira de 1978, figura-se em suas faixas as seguintes canções do
lado A “Bonde Camarão” (Cornélio Pires) Mariano e Caçula, “Calango” (Capitão Furtado,
Alvarenga e Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, “Moda da Mula Preta” (Raul Torres) Torres
e Florêncio, “Velho Candeeiro” ( José Rico e Duduca) Milionário e José Rico. Do lado B
destaca-se “O Menino da Porteira ( Teddy Vieira e Luizinho) luisinho e Limeira, “13 de
Maio” (Teddy Vieira, Riaçhão e Riachinho) Moreno e Moreninho, “Rio de Lágrimas” (Tião
Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos) Tião Carreiro e Pardinho, e por fim “Em vez de me
Agradecer” (Capitão Furtado, J Martins e Aymoré) Tonico e Tinoco3. Conforme pode-se
notar na capa do álbum abaixo:

Coletânea Nova História da Música Popular Brasileira. Música Caipira, Abril Cultural 1978

3
Ao longo da descrição o nome da música se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,
o interprete
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No segundo disco, destinado a Música de Sertaneja de 1983, encontra-se do lado


A “Moda do Peão” (Cornélio Pires) Cornélio Pires, “Fogo no Canaviar” (Alvarenga e
Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, “Moda da Pinga” (Laureano) Inezita Barroso, “Boi
Amarelinho” (Raul Torres) Torres e Florêncio, “Sertão do Laranjinha (Tonico e Tinoco,
Capitão Furtado) Tonico e Tinoco, “O Menino da Porteira (Luizinho e Teddy Vieira) Tião
Carreiro e Pardinho. Em seguida, no lado B segue as seguintes canções: “Beijinho Doce ( Nhô
Pai) Irmãs Castro, “Magoa de Boiadeiro” ( Nhô Basílio e Índio Vago) Ouro e Pinguinha,
“Quatro Coisas” (Vieira e Vieirinha) Vieira e Vieirinha, Tristeza do Jeca ( Angelino de
Oliveira) Tonico e Tinoco, Três Nascentes (João Pacifico) João Pacifico, e como última faixa,
Jorginho do Sertão (Cornélio Pires) Itaporanga e Itararé.4 Como nota-se na capa no álbum a
seguir:

Coletânea Nova História da Música Popular Brasileira. Música Sertaneja, São Paulo Abril Cultural 1983

4
Ao longo da descrição o nome da música se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,
o interprete.
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Como pode-se observar nas temáticas das músicas supracitadas, todas possuem
como referência o cenário rural, religioso ou se fundamentam em uma crítica a modernidade
como no caso da música Bonde Camarão e Tristeza do Jeca. E, quanto aos interpretes, nota-se
que quase todos apresentam a típica indumentária característica do caipira, com um figurino
composto por camisas xadrez, chapéu, calças e botas, como aparece nas capas e contracapas
dos discos, exceto a dupla Milionário e José Rico que aparecem na capa do primeiro disco
voltado a música caipira, na qual ambos pousam de terno xadrez, gravata e óculos escuros. No
encarte deste mesmo disco, a dupla aparece em três fotos com um figurino que destoa ainda
mais dos parâmetros propostos pelo tradicionalismo da cultura caipira, sendo que na primeira
ela mantém o padrão apresentado na capa, e nas outras duas fotos Milionário e José Rico
aparecem de cabelos cumpridos, sendo que na primeira, destas duas últimas, apresentam uma
releitura da indumentária do cowboy norte-americano e na segunda pousam com um visual
moderno característico da jovem guarda.
Seguindo a analise da dupla Milionário e José Rico, cabe ressaltar suas
composições e interpretações, como na música “Velho Candeeiro” que ocupa a quarta faixa
do lado “A” do disco Música Caipira. É possível constatar, a partir de uma audição atenta da
música, que a dupla abole a viola da harmonia da canção, instrumento esse que figura como
símbolo da música caipira, sendo que nenhuma das outras duplas que compõe os dois discos
faz tal opção. Além da abolição da viola nas músicas de Milionário e José Rico, estes ainda
compõem suas Harmonias musicais com guitarras, contra baixo, baterias, teclados e backing
vocals. Com isso, a dupla rompe com as tradições instrumentais das duplas da música caipira
que seriam a viola e o violão, e seus respectivos músicos cantando em terça. Dessa forma, eles
apresentam uma modernização da música caipira que se encaixaria nos padrões da “Música
Sertaneja” como foi citado acima, pois, tal performance se cristaliza em duplas posteriores a
Milionário e José Rico, como Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Chororó, Leandro e
Leonardo e Bruno e Marroney entre outras, ambas duplas que abolem a viola de suas
performances.
Isso demonstra que a Editora Abril, na seleção das canções que iriam compor os
discos da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira”, não possuía intuito algum
em definir quem seriam os intérpretes caipiras e sertanejos, e quais representavam a
tradicional música rural. O que se tinha em vista era a popularidade alcançada por cada um,

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visto que no disco destinado à música caipira, álbum “Ilusão Perdida”, de 1975, a quarta faixa
é dedicada a uma dupla que detinha o recorde do número de vendas de um mesmo disco de
música sertaneja, com mais de 200 mil cópias vendidas. Já no segundo disco, de 1983,
intitulado “Música Sertaneja”, não há sequer um intérprete da música sertaneja, pois todas as
faixas são ocupadas por clássicos da música caipira.
Com isso, observa-se que a cisão entre música sertaneja e caipira muitas vezes
foge do julgo da Indústria Cultural, ou seja, a cisão surge a partir dos próprios intérpretes, e
do público, que passa a recepcionar negativamente um gênero ou outro. Com isso, cabe
apontar que a gravadora Abril Cultural não possuía intenção alguma em demarcar o que era
caipira e o que era sertanejo, ela apenas atualiza o termo na capa do disco, pois, entre 1978 e
1983, a música sertaneja consegue ampliar o seu público consumidor frente à música caipira.
Por conseguinte, pode-se demarcar a fronteira entre música caipira e música
sertaneja através da harmonia utilizada na construção das melodias dos dois gêneros, pois,
como é supracitado, a viola mantém a característica da música caipira em relação à música
sertaneja, diferentemente da temática apresentada por Waldenyr Caldas e José de Souza
Martins, uma vez que também se encontra na música sertaneja das duplas modernas canções
com temáticas voltadas para o religioso, ou que cantam a saudade do ambiente rural ou até
mesmo uma certa crítica a modernidade. Assim sendo, não se pode apenas utilizar tais
parâmetros para realizar a distinção entre os gêneros. Todavia, quando nos referimos ao uso
da viola na composição de suas harmonias musicais, torna-se evidente essa diferenciação,
pois na música caipira a viola figura como protagonista da canção e já na música sertaneja ela
passa ser mera coadjuvante, sendo utilizada em brevíssimos momentos, apenas para que as
duplas se justifiquem dentro de uma tradição musical (ZAN, 2004).
Junto a essas considerações elencadas acima, cabe analisar o papel da Indústria
Cultural, na segmentação desses dois gêneros, pois quando a editora Abril Cultural divulga
esse dois discos, indiretamente ela contribui para a consolidação de dois gêneros musicais
distintos, influenciando, dessa forma, na formação de um gosto musical. No entanto, isso não
significa que todos são reféns dos desejos da Indústria Cultural, e que bastaria apenas analisar
as condições de mercado para que se possa obter com clareza a fronteira entre a música
caipira e a música sertaneja, ou seja, tais analises de mercado seria insuficientes para
determinar tal problemática, por que em muitos desses casos a influência manipuladora da
Indústria Cultural não se concretiza, demonstrando, assim, que a própria Indústria fonográfica

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atua, mais como mediadora dos interesses da sociedade do que propriamente como
manipuladora, como podemos observar na citação do pesquisador Gustavo Alonso (2011):
A partir da consolidação dos gêneros “caipira” e “sertanejo” pôde se estabelecer
distinções claras, assim como tornar vendáveis estes produtos, catapultando as
vendas e a participação das gravadoras no processo. A delimitação cultural e
nomeação dos campos foi essencial para que a indústria cultural pudesse
incrementar os lucros, mas foi também um processo que se deu para além da
intervenção e dos desejos mais diretos e manipuladores desta mesma indústria.
Embora não se possa ignorar o papel da indústria cultural na construção de qualquer
gênero musical no sistema capitalista, é importante constatar que as intenções
manipuladoras dos programadores e produtores culturais não são sempre cumpridas
e que os movimentos culturais fogem a sua alçada com tanta frequência que torna
difícil compreender as variações da música sertaneja apenas pela ótica industrial.
Nesse sentido a indústria cultural parece mais efeito de uma série de batalhas
culturais anteriores a sua própria gana por lucro do que simplesmente formatadora
deste novo campo cultural.
Desse modo, observa-se que a Indústria cultural, apesar da influência que exerce
sob a sociedade, a qual nunca deve ser descartada em uma analise, ela também se torna refém
dos desejos desta mesma sociedade que ela tenta ferozmente manipular, ou seja, por mais que
ela concentre seus esforços em criar uma uniformidade musical, isso por vezes lhe foge ao
controle.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse breve ensaio não pretende-se criar uma tradição delimitando o que seria
música caipira e o que seria música sertaneja, mas sim apenas mapear os campos que se
desenvolvem essas duas expressões culturais e as tensões criadas entre ambos, principalmente
em relação à música caipira, que preocupava-se em manter o que era “genuinamente
nacional” em um momento de grandes interações e hibridismos culturais, principalmente pela
influência da música Country Estadunidense e a Rancheira mexicana, ritmos que
conquistaram a música sertaneja. No entanto, ao examinar a participação da Indústria Cultural
nos discos da Coleção Nova História da Música Popular Brasileira, nota-se sua falta de
critério ao definir tais gêneros musicais, pois no disco destinado a música caipira a quarta
faixa é dedicada a uma dupla que se reconhecem como sertaneja, alegando serem herdeiros da
tradição caipira. Apenas, no segundo disco de 1983, intitulado música sertaneja, não há um
interprete da música sertaneja, pois todas as faixas são ocupadas por clássicos da musica
caipira como se nota na descrição citada acima no texto, com isso, observa-se que a cisão
entre música sertaneja e caipira, foge do julgo da Indústria Cultural, ou seja, a cisão surge a

40 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.


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partir dos próprios interpretes que não se reconhecem e do público que passa a recepcionar
negativamente um gênero ou outro. Sendo assim, pode-se concluir que mesmo que alguns
pesquisadores descartem a importância da diferenciação desses campos musicais para a
pesquisa de Historia e Música, faz necessária tal reflexão, pois sabe-se que tanto a música
caipira como a música sertaneja não são ritmicamente idênticas e menos ainda pertencem ao
mesmo circuito e não são recepcionadas pelo mesmo público

41 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.


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∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

45 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 29-45, jul.-dez. 2014.


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O GURU DE UMA GERAÇÃO:
AUGUSTO PONTES, O “PESSOAL DO CEARÁ” E AÇÃO CULTURAL
(1963-1979)

Marcos Leandro Carneiro Freitas


Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Especializando em História do Brasil pelo Instituto de Desenvolvimento, Educação e Cultura
do Ceará (IDECC).

46 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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O GURU DE UMA GERAÇÃO: AUGUSTO PONTES, O “PESSOAL DO
CEARÁ” E AÇÃO CULTURAL (1963-1979)

THE GURU OF A GENERATION: AUGUSTO PONTES, THE


‘PESSOAL DO CEARÁ’ AND CULTURAL ACTION

Marcos Leandro Carneiro Freitas

RESUMO ABSTRACT
Este artigo busca analisar a participação do This article seeks to analyze the
poeta e agitador cultural Augusto Pontes participation of the poet and cultural
nos movimentos artísticos, no processo de mobilizer Augusto Pontes inside artistic
formação e no cotidiano da geração de movements, in the process of formation
artistas cearenses denominada “Pessoal do and in everyday life of the generation of
Ceará”. Augusto Pontes exerceu grande artists from Ceará named “Pessoal do
influência no processo de aglutinação Ceará”. Augusto Pontes exerted a great
desses jovens artistas, na cidade de influence in the agglutination process of
Fortaleza, entre 1963, a partir dos grupos these young artists, in Fortaleza city,
universitários de arte engajada, e 1979, between 1963, from university groups of
com a realização do Festival Massafeira, engaged art, and 1979, with the realization
do qual foi um dos principais idealizadores of a festival named “Festival Massafeira”
e organizadores. Tendo como principal which was one of the main idealizers and
fonte a memória e os relatos desses organizers. By using the memory and
artistas, este artigo ambiciona analisar a artist's report as main source, this article
colaboração de Augusto Pontes nesse aims to analyze the collaboration of
processo de aglutinação e na elaboração de Augusto Pontes inside this agglutination
vários movimentos artísticos de caráter process and in the elaboration of such
coletivo, mostrando em que circunstâncias artistic movements from collective
e ambientes ocorriam. Além disso, busca- purpose, showing in what circumstances
se demonstrar que Augusto Pontes pode and spaces the agglutinations occurred.
ser classificado como um “Agente Furthermore, seeks to demonstrate that
Cultural” dentro da geração “Pessoal do Augusto Pontes can be classified as a
Ceará”. Para isso, este trabalho expõe o cultural agent inside the “Pessoal do
conceito de Ação Cultural e explica como Ceará” generation. By this, this work
o conceito de Geração pode ser utilizado exposes the concept of Cultural Action and
em uma pesquisa de História. explains how the concept of generation can
be used in a History research.
PALAVRAS-CHAVE: Augusto Pontes,
Pessoal do Ceará, Geração, Ação Cultural. KEYWORDS: Augusto Pontes, Pessoal
do Ceará, Generation, Cultural Action.

A MEMÓRIA DE UMA GERAÇÃO

47 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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Augusto Pontes (1935-2009) foi filósofo, publicitário, professor universitário,
jornalista, poeta, compositor e teve uma breve e criticada atuação como secretário de Cultura
na gestão de Ciro Gomes como prefeito de Fortaleza em 1989. Tornou-se Secretário de
Cultura do Ceará entre 1991 e 1992 na gestão de Ciro Gomes como Governador. Entretanto,
foi especificamente na sua participação no que ficou conhecido como “Pessoal do Ceará” que
ele estabeleceu um papel singular e fundamental dentro da cultura cearense na segunda
metade do século XX. Para compreender melhor esta relação precisamos entender o que de
fato é “Pessoal do Ceará”.
Importantíssimas pesquisas sobre música no Ceará contribuem na busca de uma
definição. Em Terra dos Sonhos, Mary Pimentel apresenta o caráter geracional (Pimentel,
2006) e coletivo do “Pessoal do Ceará”, uma movimentação de artistas cearenses,
predominantemente do ramo musical, que se aglutinaram, inicialmente, na década de 1960 em
busca de profissionalização e projeção nacional. Entretanto, quando se menciona como
movimento supõe-se manifestação coletiva com objetivos específicos, regidos por uma causa
ou ideologia, como o tropicalismo. O “Pessoal do Ceará” não apresentava essa característica.
Bem como o seu caráter coletivo faz referência apenas ao fato de ser composto por artistas
que se conheciam, faziam parcerias em composições e se auxiliavam nas excursões rumo ao
sul do país, mas que possuíam independência artística em relação aos demais.
O pesquisador Pedro Rogério tenta, em sua pesquisa, delimitar os integrantes
pertencentes a essa geração (ROGÉRIO, 2008, p.22). A sua lista, baseada na memória de
Rodger Rogério, é extensa, mas podemos citar, além do próprio Rodger e Augusto Pontes,
nomes como Ednardo, Fausto Nilo, Belchior, Fagner, Brandão, Petrúcio Maia, Cláudio
Pereira, Teti, Ricardo Bezerra, além de outras dezenas.
Mas como devemos entender “geração” em um trabalho historiográfico? A
classificação de Augusto Pontes como ícone da cultura urbana na cidade, mais
especificamente dentro de uma geração impõe a necessidade de estabelecer o que se entende
por “geração” ou de que maneira isso pode ser operacional no campo da análise histórica.
Jean-François Sirinelli (2006) aponta os obstáculos e as vantagens de se trabalhar com essa
questionável “engrenagem do tempo”. Para fins de análise, a geração é concebida como algo
“elástico”, sem começo e fim mecanicamente estabelecidos, sendo seus membros e
delimitações definidos a partir de um acontecimento inaugurador e/ou de determinadas

48 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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perspectivas – sociais, culturais, econômicas ou políticas. Portanto, não podemos obviamente
julgá-la de modo algum como um impecável instrumento classificador de uma estrutura
cronologicamente linear e invariável, que transcende o tempo e o espaço, nem descartar como
algo inútil.
Convencionou-se que embora a expressão “Pessoal do Ceará” denomine o disco
lançado em 1973, por Ednardo, Teti e Rodger, cujo subtítulo é a frase de Augusto Pontes
“Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem”, tal expressão especifica uma
aglutinação de artistas que mantinham uma rede de relacionamento e de convivências devido
às suas ambições artísticas em comum. Mais tarde, esses artistas migrariam para regiões mais
desenvolvidas do país, tendo alguns deles alcançado grande vendagem de discos e projeção
nacional, mantendo essa posição até o fim da década de 1970. Portanto, fazemos uso do
conceito de geração como algo que se aproxima mais de um movimento grupal e coletivo que,
dentro de um específico recorte temporal e espacial, tem como fato referencial ou
acontecimento inaugurador a gravação deste álbum que representa a concretização dos
objetivos iniciais desses artistas.
Mary Pimentel (2006) e Wagner Castro (2008), embora tomem como eixo
principalmente os aspectos musicais da geração “Pessoal do Ceará”, estabelecem os limites
temporais de suas pesquisas entre o começo da década de 1960, quando se inicia o processo
de aglutinação, e o fim da década seguinte, com o Festival Massafeira, que representa o outro
extremo demarcador dos limites da geração. Pimentel analisa a produção musical dos artistas
e sua inserção no mercado fonográfico brasileiro, dialogando com os teóricos da Escola de
Frankfurt e atentando para o folclore e regionalismos na arte. Wagner Castro explica a
importância dos ambientes de socialização desses sujeitos nos bares, na universidade, no
litoral urbano, nos festivais de música popular, mostrando a efervescente produção musical
em Fortaleza, sobretudo a partir de sua divulgação nos meios de comunicação locais. Os
trabalhos de ambos afirmam a forte influência de Augusto Pontes no processo de aglutinação,
porém a ênfase de tais pesquisas é direcionada para aspectos da coletividade, o que nos leva
pensar de que forma os aspectos individuais podem ser influentes. Ele era uma “figura
catalizadora do movimento e considerado o principal animador cultural” (AIRES, 2006, p.
80).
Augusto Pontes é classificado por seus parceiros artistas, pelos membros da
geração Pessoal do Ceará e por poetas e pensadores de Fortaleza como um dos maiores

49 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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intelectuais cearenses dessa segunda metade do século XX1. Para ilustrar melhor esta imagem
criada em torno dele, podemos utilizar as reportagens que anunciavam a sua morte para
perceber que existia uma unanimidade, entre as pessoas convidadas a depor, sobre sua
inteligência e relevância para as atividades culturais. É obvio que em comentários feitos a
pessoas recém-falecidas costuma-se, geralmente, exaltar suas qualidades bem como aquilo
que há de mais notável em sua trajetória. Mas, para além da comoção coletiva, existe a
persistência, em uníssono, em adjetivá-lo com os termos “guru” e “agitador cultural”. O jornal
“Diário do Nordeste” emitiu uma nota, em 16 de maio de 2009, intitulada “Adeus ao guru”,
afirmando que ele era “capaz de costurar em torno de si artistas das personalidades mais
distintas, atraídos pela inteligência inquieta e pela sempre-ironia que fizeram o guru de
várias gerações”. O jornal “O Povo”, no dia 15 de maio de 2009 apenas informou o seu
falecimento, mas no dia seguinte publicou textos-homenagem escritos por amigos escritores,
músicos, radialistas, entre outros, mantendo sempre o mesmo discurso, essa reputação de
“mentor”, bem como sua ironia e desprezo pelas cerimônias pomposas.
Na busca de uma fundamentação para essa unanimidade, resta somente recorrer à
memória daqueles que conviveram com ele. Analisar a memória do grupo, ou a memória
coletiva como diria Halbwachs, é fundamental sobre tudo pelo fato de Augusto Pontes ter a
paradoxal característica de produzir e planejar bastante, porém sem ter escrito ou publicado
muito. Grande parte da obra de Augusto Pontes foi transmitida exclusivamente pela oralidade,
em conversas informais, tendo como suporte de preservação a memória dos seus
companheiros. Ao afirmar que “toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado
no tempo e no espaço” (HALBWACHS, 1990, p. 106), Halbwachs entende que cada grupo
adquire com o passar do tempo a “consciência de sua identidade” e sua memória coletiva se
aproxima de uma espécie de “painel de semelhanças”. Poderíamos pensar que Augusto Pontes
traz identidade ao grupo e que as semelhanças se manifestam, além de outras formas, na
unanimidade encontrada nos relatos dos membros do “Pessoal do Ceará”. Mas é preciso
entender a papel de Augusto Pontes no processo de aglutinação.

A AGLUTINAÇÃO

1
FARIAS, Airton de. História do Ceará/ Airton de Farias. – 1°reimpressão – 6° Edição revisada e ampliada.
Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012. Cap. 31, p-457.
50 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.
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Uma das fortes características dos anos de 1960 foi a efervescência cultural que se
concretizou, de modo geral, na remodelação dos ideais, dos comportamentos e dos valores da
juventude, como os movimentos de contracultura, a mundialização do Rock, o
questionamento de padrões de identidade diferenciadores de gênero, o movimento hippie, etc.
Deve-se ressaltar que essas inquietações não eram setorizadas, no sentido de que as
transformações no âmbito artístico, por exemplo, tinham um intenso contato com os debates
políticos ou eram contextualizadas com as condições econômicas do momento. Seria
limitador, portanto, criar o encerramento de pensar aquilo que é artístico partindo-se de uma
perspectiva exclusivamente artística. É desse período a concretização de um processo de
renovação cultural que era percebido em diversas áreas artísticas através do aparecimento da
Bossa-nova, da arquitetura de Oscar Niemayer, do Cinema Novo, mas, sobretudo, do
surgimento da chamada “arte-engajada” que utilizava a música, a literatura e o teatro como
suportes para a manifestação e propagação de ideologias políticas e conscientização da massa.
Foi o tempo em que o próprio Augusto Pontes, em entrevista concedida para a pesquisa de
Pedro Rogério, chamou de o “alvorecer do Brasil”, onde havia “a criatividade se exercendo,
consentida e louvada em todos os campos: música, cinema, arquitetura, política, parlamentos,
jornalismo, literatura, poesia, tudo; era um alvorecer”.
Ao se referir a essas inquietações da juventude que, entre as décadas de 1950 e
1960, fizeram forte oposição aos tradicionalismos decadentes, Eric Hobsbawm fez uma
afirmação que nos ajuda a refletir sobre Augusto Pontes e a geração “Pessoal do Ceará”:
A radicalização política dos anos 60, antecipada por contingentes menores de
dissidentes culturais marginalizados sob vários rótulos, foi dessa gente jovem, que
rejeitava o status de crianças e mesmo de adolescentes (ou seja, adultos ainda não
inteiramente amadurecidos), negando ao mesmo tempo humanidade plena a
qualquer geração acima dos 30 anos de idade, com exceção do guru ocasional.
(HOBSBAWM, 1994, p. 318)

Na medida em que Augusto Pontes contribui para promover a emancipação


artística desses jovens do grupo Pessoal do Ceará, poderíamos pensar, considerando a
diferença de idade, que Augusto Pontes se assemelharia a esse guru ocasional mencionado por
Hobsbawm. Outro fator que contribuiu para essa efervescência, no caso do Brasil, foi o
relativo clima de liberdade que havia no interior das universidades públicas, ou, ao menos, na
Universidade Federal do Ceará, que foi criada na década de 1950 e que poucos anos depois
ainda “reunia as condições necessárias para o desenvolvimento da obra desse grupo de artistas
e intelectuais” (ROGÉRIO, 2008, p. 89).

51 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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A aglutinação começou na universidade. Augusto Pontes provavelmente era o
mais velho dessa geração, sendo em média 10 anos mais velho que a maioria. Chegou a
estudar em um seminário na adolescência, fez um curso técnico de contabilidade,
posteriormente graduou-se em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará, graduou-se em
Comunicação nas opções de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, TV, Cinema e Rádio pela
UNB, onde também fez mestrado, mas não chegou a defender dissertação2. Ele foi o
responsável por facilitar a aproximação de artistas-estudantes a fim de promover parcerias e
trocar experiências3. Um exemplo disso foi à aproximação por ele realizada entre Ednardo da
engenharia química, Rodger do curso de física e Fausto Nilo da arquitetura. Estes
acrescentavam outros, fazendo o grupo crescer cada vez mais.
Esse agrupamento foi formado a partir de interesses e objetivos que seus
integrantes tinham em comum: interesses plíticos ou artísticos, afinidades estéticas ou
pessoais, ambição de profissionalização, organização de viagens para Rio de Janeiro e São
Paulo, organização de festivais, etc. O fato de pertencerem à mesma universidade ou a
determinada turma de algum curso é verdadeiramente uma casualidade. Mas participarem do
mesmo grupo de amigos, organizarem movimentos culturais politizados, intervenções ou
estabelecerem parcerias em composições classificam-se como atividades de escolha
individual. A partir da individualidade formada ou manifestada é que ocorre a agregação, ou
seja, é “não se tornar individuo mediante nossa comunidade, mas ser capaz de escolher uma
comunidade graças ao fato de já ser individuo” (Heller, 2006, p.66).
O Centro Popular de Cultura do Ceará4, o Cactus5 e o GRUTA6, são alguns dos
movimentos que nasceram, sobre tudo pelo fato de seus membros, ao menos em parte, já

2
Esses dados biográficos foram concedidos pelo próprio Augusto Pontes, em entrevista concedida à TV
UNIFOR, em março de 2009.
3
Cf. GUEDES, Jordianne. O fazer musical de Rodger Rogério: o singular e o plural do pessoal do Ceará.
Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Curso de Mestrado
Acadêmico em História, Fortaleza, 2012.
4
O Centro Popular de Cultura foi criado no início dos anos de 1960 e era ligado à União Nacional dos
Estudantes. Seus membros acreditavam que fazer uso de intervenções artísticas teatrais, musicais, literárias ou de
diversas outras naturezas seria uma estratégia eficaz para se alcançar o seu objetivo que era a conscientização
política da massa.
5
O grupo Cactus, surgido em 1965, após a extinção do CPC, apesar de ter aproximadamente menos de uma
dezena de integrantes, organizava peças teatrais nos espaços da universidade e sua estética musical era muito
influenciada pela bossa-nova. Entre os principais integrantes podemos citar Iracema Melo, Rodger e Petrúcio
Maia. Augusto Pontes foi convidado a integrar o grupo, mas não exercia nenhuma atividade de direção como fez
em outros grupos e movimentos.
6
O GRUTA, que significa Grupo Universitário de Teatro e Arte, foi planejado inicialmente por Claudio Pereira.
Teve suas atividades realizadas principalmente por volta de 1967. Esse grupo era ligado ao Diretória Central dos
Estudantes da UFC. Além de teatro, havia também o predomínio de música, artes plásticas, fotografia e poesia.
52 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.
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compartilharem os mesmos ideais, terem disposição para lutar por causas semelhantes e se
engajarem fortemente em atividades coletivas.
Nessas manifestações, Augusto Pontes era, em muitas ocasiões, aceito ou
colocado em tarefas de direção e planejamento. No documento que formaliza a criação do
CPC do Ceará, datado de 4 de outubro de 1963, há o seu nome como relator, expondo a
proposta teórica do grupo, seus objetivos e metodologia, bem como a localização da sede, na
Rua 24 de Janeiro, numero 641, bairro Jardim América, casa do irmão de Augusto Pontes. A
exposição desse endereço facilitou sua prisão pelos militares.
Após a extinção do CPC, surgiu o grupo Cactus, que organizava peças teatrais nos
espaços da universidade e apresentava uma estética muito influenciada pela bossa-nova,
contando com a participação de Augusto Pontes, Rodger Rogério, Petrúcio Maia, Iracema
Melo, entre outros. O Grupo Universitário de Teatro e Arte, o GRUTA, planejado por volta de
1967, por Claudio Pereira, era ligado ao DCE da UFC, havendo espaço também para música,
artes plásticas, fotografia e poesia. O GRUTA organizou excursões para fora do Ceará e um
festival, ocorrido no ginásio do SESC e no Teatro José de Alencar, em 1967. Nesta época,
Rodger estava estudando em São Paulo (Guedes, 2012, p. 97) e Augusto Pontes inscreveu
uma canção composta pelos dois em 1965, intitulada “Mundo Mudar” que tirou segundo lugar
na competição. Essa canção já tinha sido utilizada na peça “O Tempo em Preto e Branco”,
cuja direção teatral também coube a Augusto Pontes.
No fim dos anos de 1960, época do aumento da repressão da ditadura, esses
jovens ultrapassaram os limites da universidade e, à medida que os laços afetivos cresciam e
suas atividades artísticas passavam a ocupar um tempo significativo da sua rotina diária, eles
se tornavam assíduos frequentadores de ambientes que passariam, justamente por isso, a ser
conhecidos como locais de aglutinação da juventude boêmia artística fortalezense.
Bares como o Estoril, o Bar do Anísio, no litoral de Fortaleza, e o bar Balão
Vermelho, no centro da cidade, eram alguns dos espaços, ou lugares praticados como diria
Certeau (1994), lugares ocupados, subjetivados, potencializados pelos usuários, lugares que
também compõem elementos de memória. Para Certeau, o lugar diferencia-se do lugar
praticado assim como a palavra se diferencia da palavra enunciada. Os lugares ocupados por
esse grupo compunham um circuito urbano onde muitas canções populares foram compostas e
projetos de gravação de discos e festivais, como o Massafeira Livre, eram planejados. Nesses

53 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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espaços, Augusto Pontes colocou letra nas melodias dos amigos, como Carneiro7, música de
Ednardo, com versos que narram o interesse dos artistas de migrar para o Rio de Janeiro em
busca de profissionalização e divulgação.
Nesses espaços foram compostas canções que se tornaram muito conhecidas em
nível nacional, como Mucuripe, de Fagner e Belchior. Nesta canção, Augusto Pontes não é
creditado como autor, embora os versos “aquela estrela é dela/ vida, vento, vela, leva-me
daqui” sejam atribuídos a ele pelo grupo Pessoal do Ceará, conforme atesta a literatura
acadêmica sobre o tema. Ao se analisar o processo de composição de outra canção, Eu sou
apenas um rapaz latino-americano, certamente a de maior destaque na carreira de Belchior,
percebe-se que as frases de Augusto Pontes serviam de inspiração nas composições alheias.
Belchior disse, na pesquisa de Pedro Rogério, que em suas conversas nos bares, ouvia
frequentemente Augusto Pontes repetir: “eu sou apenas uma rapaz latino-americano sem
parentes militares”. Já o próprio Augusto Pontes disse em entrevista concedida para a TV
Unifor, que essa frase fazia parte da sua carta de apresentação para tomar posse no cargo de
professor na UNB. Esta carta foi feita com a intenção de ser aberta e enviada a muitos colegas
e amigos no Ceará. De qualquer forma, nesta canção ele também não é visto como autor.
Para o álbum Pessoal do Ceará – Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na
Viagem, Augusto fez a letra para a melodia de Rodger, intitulada A Mala, com versos
carregados de paranomásias, aliterações e assonâncias, fazendo referência à televisão, que aos
poucos se popularizava nos lares cearenses ocupando a importância que antes era do rádio.
Augusto Pontes ficou conhecido como um exímio fazedor de frases de efeito e
poemas irônicos que jamais foram publicados em livro e que temos acesso somente graças à
memória daqueles que se impressionavam com seu estilo. Muitos dos seus poemas são no
estilo Haikai, caracterizado por poucos versos e frases concisas, o que facilita a recordação e a
transmissão oral. Muitos desses poemas fazem referência ao contexto político da década de
1970 e só serão plenamente compreendidos levando-se em consideração o sotaque cearense.
Por exemplo, neste poema: Eu não tinha essas ideias, mas deram um arrocho em mim, a
riqueza deste haikai só pode ser percebida quando contextualizado com o período em que foi
feito, o anos da Guerra Fria, e atentando que, no sotaque cearense, “arrocho em mim” tem

7
Letra da canção Carneiro: Amanhã se der o carneiro/ O carneiro/Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro/
Amanhã se der o carneiro/ O carneiro/Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vem de lá/ Eu mesmo
vou buscar/ E voltar vídeo tapes e revistas super coloridas/ Pra menina meio distraída repetir a minha voz/ Que
Deus salve todos nós/ que Deus guarde todos vós.
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quase a mesma sonoridade do nome do estadista vietnamita Ho Chi Minh.
Nesses espaços, especificamente no Estoril no fim da década de 1970, houve a
idealização e planejamento do Festival Massafeira Livre, um festival de quatro dias que
contou com a participação de aproximadamente cinco ou seis centenas de artistas de várias
áreas, consagrados e iniciantes, no Teatro José de Alencar, culminado na gravação de um
algum duplo. Idealizado e coordenado por Augusto Pontes e Ednardo, o festival representava
a oportunidade para vários artistas, sem espaço ou visibilidade, mostrarem sua arte da maneira
mais livre e espontânea possível, sem o interesse de enquadrá-los em qualquer critério, de
mercado ou estético, que influenciasse sua autonomia artística. É neste aspecto que Augusto
Pontes se aproxima do que se entende como Agente Cultural.
Ação Cultural é um conceito que não pode ser entendido pela justaposição das
duas palavras (COELHO, 1988) nem confundido com Fabricação Cultural. Teixeira Coelho
aponta:
A fabricação é um processo com um início determinado, um fim previsto e
etapas estipuladas que devem levar um fim preestabelecido. A ação, de seu
lado, é um processo com início claro e armado mas sem fim especificado. (...)
um processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das
condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se
tornem assim sujeitos – sujeitos da cultura, não seus objetos. (COELHO,
1988, p.14)

Ao organizar um movimento, como Massafeira, que cria condições e os


incentivos para que os artistas se expressassem sem que houvesse uma pré-condição ou a
exigência de contrapartida da parte destes, Augusto Pontes se torna um promotor dos sujeitos
e coloca em prática os aspectos do que se entende como ação cultural. Sem dirigismo, zelando
pela autenticidade e pela abertura para as possibilidades. O agente cultural não cria fins nem
necessariamente intervém na cultura, mas nas condições que geram cultura, preparando o
terreno para os outros criarem, sendo menos autor e mais incentivador.
Alano de Freitas, artista que participou da Massafeira, fez um comentário para o
documentário Massafeira Livre Rock Doc, de 2009, que ilustra bem essa atitude
incentivadora:
...eu tava assistindo, tava encostado numa coluna lá dos bastidores, ouço uma voz
assim dizendo: “tá doido pra participar, né bicho?”. Aí eu olho, é o Augusto Pontes,
que é o idealizador junto com o Ednardo. Claro que eu tava afim de participar. Aí eu
fui andando com ele só que, quando chegou no meio do palco ele disse: “vai e toca
uma música tua”. E me empurrou.

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O depoimento de Alano de Freitas se assemelha bastante à fala das dezenas de
pessoas, artistas que integraram o grupo, reforçando a ideia de uma característica peculiar a
Augusto Pontes: o de promovedor de oportunidades. O que explica porque Pimentel, na sua
pesquisa da década de 1990 já o classificara como o mais importante agitador cultural daquele
período e daquela localidade, levando-nos inclusive a uma possível problematização, em
pesquisas posteriores, dessa espécie de “unanimidade” existente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreende-se, então, que Augusto Pontes foi fundamental para o delineamento


das atividades culturais no Ceará, especificamente em Fortaleza, desde a década de 1960,
sendo um dos principais responsáveis pela formação de um grupo de artistas que se
aproximaram e se instigaram para buscar a profissionalização por causa, dentre outros fatores,
de iniciativa sua, participando simultaneamente como promotor e como artista, apesar de não
ter seu nome tão divulgado como outros.
É nessa persistência de promover seus amigos artistas, respeitando a autonomia
estética e criativa, que se confirma a nossa hipótese de que Augusto Pontes pode ser
classificado como Agente Cultural. Isso também contribui para explicar a memória coletiva
existente a seu respeito. Percebemos que a memória e a oralidade são instrumentos que modo
algum poderiam ser negligenciados, qualquer pesquisa sobre “Pessoal do Ceará” que
desprezasse isso seria deficitária. A obra de Augusto Pontes é predominantemente intangível,
seu suporte é a memória daqueles que com ele conviveram; fazer um apanhado dessas fontes
em pesquisas futuras, além de complementar nosso questionamento e enriqueceria nossos
estudos sobre a cultura cearense na segunda metade do século XX.

56 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AIRES, Mary Pimentel. Terral dos Sonhos: O cearense na música popular brasileira.
Fortaleza: Arte Brasil, 2006.
CASTRO, Wagner. No Tom da Canção Cearense: Do Rádio e TV, dos Lares e Bares na Era
dos Festivais (1963-1979). Fortaleza: UFC, 2008.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis-RJ, 1994
COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006.
FARIAS, Airton de. História do Ceará/ Airton de Farias. – 1°reimpressão – 6° Edição
revisada e ampliada. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012.
GUEDES, Jordianne. O fazer musical de Rodger Rogério: o singular e o plural do pessoal
do Ceará. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Humanidades, Curso de Mestrado Acadêmico em História, Fortaleza, 2012.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora Revistas dos
Tribunais, 1990.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SIRINELLI, Jean-François, A geração. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína. Apresentação. In: Usos e abusos da história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
ROGÉRIO, Pedro. Pessoal do Ceará; Habitus e Campo Musical na Década de 1970.
Fortaleza: UFC, 2008.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

57 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 46-57, jul.-dez. 2014.


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PRAZER EM CONHECER, SOMOS AS TAIS


FRENÉTICAS!
CULTURA E MERCADO SOBRE O FENÔMENO DISCO
MUSIC DO GRUPO FEMININO AS FRENÉTICAS (1977-1978).

Stênio Ronald Mattos Rodrigues


Graduado em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, atualmente cursando a
pós-graduação em História do Brasil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.

58 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.


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PRAZER EM CONHECER, SOMOS AS TAIS FRENÉTICAS!
CULTURA E MERCADO SOBRE O FENÔMENO DISCO MUSIC DO
GRUPO FEMININO AS FRENÉTICAS (1977-1978).

PLACER EM CONOCERTE, SOMOS LAS TALES FRENÉTICAS!


CULTURA Y MERCADO SOBRE EL FENÓMENO DISCO MUSIC DE
LO GRUPO FEMENINO LAS FRENÉTICAS (1977-1978).

Stênio Ronald Mattos Rodrigues

RESUMO RESUMEN

Este artigo se propõe a problematizar o impacto Este artículo tiene como objetivo discutir el
cultural vivido no Brasil com as Frenéticas, grupo impacto cultural vivido en Brasil con las Frenéticas,
musical feminino composto por seis mulheres que grupo musical femenino formado por seis mujeres
alcançou grande êxito no mercado de discos na que lograron un gran éxito en el mercado de discos
segunda metade do decênio de 1970. Em en la segunda mitad de la década de 1970. En línea,
consonância, analisaremos o impacto que o grupo, vamos a analizar el impacto que el grupo, a través
por meio da popularização do gênero musical disco de la popularización del género musical de lo disco
music (também definido como discoteca ou music (también definido como discoteca o
discoteque), causou no país por meio da moda, discoteque), causó en el país a través de la moda,
como também sobre o mercado de discos e outros como también en el mercado discográfico y otras
setores industriais que foram amplamente industrias que se han beneficiado en gran medida
beneficiados após o surgimento do referido gênero después de la aparición de ese género que fue
que se popularizou por diversos meios midiáticos, popularizado por diversos de los medios de
tais como a televisão, as trilhas sonoras de comunicación, como la televisión, bandas sonoras
telenovela e assim por diante. de telenovelas y así sucesivamente.

PALAVRAS-CHAVE: As Frenéticas, disco PALABRAS-CLAVE: Las Frenéticas, disco


music, mercado fonográfico, indústrias culturais, music, mercado fonográfico, industrias culturales,
consumo. consumo.

59 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.


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INTRODUÇÃO

Prazer em conhecer/ somos as tais Frenéticas/ que um anjo doido fez/a gente se
encontrar no Dancin’ Days. Assim inicia a canção Tudo bem, tudo bom??? Ou mesmo até...
do LP As Frenéticas, (Atlantic, 1977: lado B, faixa 4) que revela, de modo sintético quem são
efetivamente Sandrita Perão, Tia Rege, Del Castro, Leiloca, Lidoka e Nega Dudu, ou melhor
dizendo, as tais Frenéticas.1 Surgido na segunda metade da década de 1970, as Frenéticas logo
emplacaram como artistas de sucesso no plano nacional, favorecido por uma série de fatores
que corroboraram para seu prestígio.
Contextualizando o momento, constatamos que a febre das discotecas havia
chegado ao país. Gênero musical dançante tão em voga nos Estados Unidos, logo foi
introduzido ao Brasil, transformando significativamente o mercado fonográfico, tornando-se
assim a tendência musical da vez, o que possibilitou um negócio rentável para diversos
setores, principalmente para a indústria fonográfica no Brasil. Aliado a isso, vemos que tal
sonoridade possibilitou a formação de um mercado de produtos e serviços diversos que
fortaleceu a onda de consumo na segunda metade da década de 1970, como veremos adiante.
No período estudado, podemos constatar que diversas discotecas foram abertas no
país, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Entre elas, podemos destacar a lendária
discoteca The Frenetic Dancin’ Days,2 uma das primeiras do país e que foi aberta e
gerenciada pelo jornalista e produtor musical Nelson Motta e que funcionou por um curto
período, o suficiente para que ela se tornasse um dos locais mais efervescentes do Rio de
Janeiro naquele momento.
Espaço de lazer e sociabilidade de parcela da juventude carioca, como também de
artistas de diversos segmentos, a discoteca tinha a seu serviço uma equipe de garçonetes
jovens e bonitas que intercalavam entre as atividades de servir drinks e o palco, fazendo
algumas performances musicais durante as noites de funcionamento. Tal atração era um
espanto para os frequentadores, pois não imaginavam que as garçonetes possuíam largo
talento para o palco. O susto, pois, se convertia em admiração e euforia com o som dançante

1
São elas: Sandra Pêra, Regina Chaves, Edir de Castro, Leila Neves, Lidia Maturscelli e Dulcilene Moraes.
2
The Frenetic Dancin’ Days foi uma discoteca carioca inaugurada em 05 de agosto de 1976 por Nelson Motta e
que, apesar do curto período de duração, tornou-se referência para o surgimento do gênero musical disco music
no Brasil. A revista superinteressante fez uma matéria sobre o fenômeno discoteca, com destaque para a referida
boate como ambiente responsável pelo surgimento das Frenéticas, que posteriormente se projetaram no plano
nacional, favorecendo, assim, a consolidação do som dançante de discoteca no país (Caia na Gandaia. In.:
Revista Superinteressante – História do Rock Brasileiro, São Paulo, 2004: p. 68-71)
60 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.
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cantado por elas. Dessa forma, o ritmo discoteca orientou as atividades artísticas das
Frenéticas (assim denominadas em referência clara e direta a discoteca) durante o tempo em
que a The Frenetic Dancin’ Days funcionou, no entanto, com o fechamento do espaço, seus
shows foram temporariamente interrompidos. Porém, não tardou muito para que as então
garçonetes fossem convidadas para a gravação de seu primeiro LP, na gravadora WEA, recém
instalada no Brasil (MORELLI, 2009).
Contextualizando o período, a segunda metade da década de 1970 constatou a
perda da hegemonia do rock como tendência musical de maior preferência pelos jovens. O
disco music invade, pois, o mercado da música que passou a direcionar sua atenção no sentido
de fundamentar grande parcela da produção sobre o novo som dançante com ênfase no ritmo e
na sensualidade do movimento corporal.
É partindo dessa lógica que nos propomos, de agora em diante, a problematizar o
referido período, analisando a expansão do ritmo disco music, amplamente incorporada nas
atuações artísticas das Frenéticas, com suas carreiras de modo mais direto, em consonância
com as outras áreas também impactadas, como o mercado fonográfico, a televisão, a moda e
comportamento e assim por diante, observando o surgimento de um mercado de consumo
orientado por esse gênero musical e seus principais signos.
Como ponto inicial de partida, este artigo insere-se na mudança de perspectiva
historiográfica, com novas abordagens, métodos e fontes após a Escola dos Annales e a Nova
História (BURKE, 1991), que segundo Pesavento vem crescendo em números de pesquisa
desde a década de 1990. “Trata-se, antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de
significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo” (PESAVENTO,
2003: 15). Nesse sentido, manifestamos predileção por trabalhar com as opções teórico-
metodológicas disponibilizadas pela História Cultural, capaz de nos oferecer elementos para a
análise e compreensão de nossa sociedade e as manifestações culturais nela inerentes
(BURKE, 2005).
Além disso, é necessária a compreensão das relações dessas artistas com os meios
de produção e difusão de suas obras, tais como jornais, revistas e a própria televisão,
elementos que promovem seus trabalhos sobre o público consumidor de discos através da
propaganda comercial de seus fonogramas, auxiliando-nos assim na compreensão da atuação
dessas artistas sobre o espaço profissionalizado da música, configurado, principalmente, no
ambiente dos estúdios de gravação sonora.

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Aliado a História Cultural e suas formas de abordagem, problematizaremos as
críticas lançadas por veículos midiáticos especializados em música para entender a recepção
do público consumidor de discos sobre os trabalhos por eles produzidos, como também o
impacto que o disco music causou sobre a sociedade, observando o seu largo poder de
fomentar o consumo. Jornais e revistas são, pois, fontes indispensáveis nesse processo.
Sobre isso, a revista Veja se dedicou, na seção “Carta ao Leitor” da edição de 15
de maio de 1996, a apresentar o jornalismo sob dois aspectos essenciais a compreensão da
nossa realidade: como veículo de noticiais voltadas para a atualidade, ligando-o assim à
História do Tempo Presente, como também entendendo-o por elemento capaz de registrar
fatos, de revelar memória de dado momento, ainda que sob o ponto de visa de seus editores.
Ao historiador cabe, portanto, a análise crítica sobre o conteúdo (CARR, 2006).
O jornalismo trabalha com o presente. Sua matéria-prima é o que acaba de
acontecer, o novo, a notícia. Mas pode haver também um jornalismo do passado.
Esse jornalismo é tão mais possível de existir quanto mais desconhecido for o
passado de um país. No Brasil, onde a curiosidade histórica, ao mesmo nos últimos
anos, foi fortemente direcionado para o século atual, o passado mais remoto é um
terreno quase incógnito. O Brasil, como já disse o jornalista Ivan Lessa, a cada dez
anos esquece o que aconteceu nos dez anos anteriores. Nesse sentido, no Brasil, há
um campo para um jornalismo de caráter histórico (Jornalismo voltado para o
passado. In: Revista Veja, São Paulo, 15/05/1996: p. 21).

Daí, a importância desses periódicos como fontes históricas, uma vez que presente
e passado – elementos encontrados nessas fontes – contribuem para a feitura da historiografia
aqui proposta, pois são esses periódicos também construtores de uma memória social que
privilegia a construção histórica, quando se analisa fatos ali registrados (RIBEIRO, 2010). E é
consciente disso que recorremos e nos apoiamos nesse tipo de documento, valendo-se também
de seu poder de revelar o ambiente social de um determinado período.
O disco, enquanto resultado final do trabalho dessas artistas, possuem signos que
apresentam aspectos essenciais das suas vivências no ambiente de discoteca, lugar comum
para todas as artistas aqui estudadas. Napolitano (2002: 7), na apresentação de seu livro
“História e Música”, nos diz que “A música, sobretudo a chamada ‘música popular’, ocupa no
Brasil um lugar privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões, encontros
de diversas etnias, classes e religiões que formam o nosso grande mosaico nacional”. A
cultura experimentada se revela, dentro dessa realidade, como um elemento indissociável do
processo de produção de suas canções, pois é dessa forma que elas se colocam no mundo e se
reconhecem no discurso estético das obras gravadas (DAMASCENO, 2008). É, pois, a

62 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.


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revelação de uma cultura partilhada por meio de suas experiências com os demais sujeitos
que partilham essas experiências através do contato com o disco music (PROST, 1998).
Portanto, elementos mais evidentes se inserem no processo produtivo das artistas,
tais como o disco music, sonoridades de origem estadunidense e que estava bastante em voga
nos meios musicais do período e até mesmo experiências vivenciadas no ambiente artístico
em consonância com a imagem construída sobre elas, enfatizada na sensualidade e na
juventude. São esses elementos que causavam impacto sobre o público que percebia e
assimilava as transformações no rumo que a Música Popular Brasileira vinha atravessando.
Como exemplo disso, podemos destacar um comentário interessante tecido por Aroldo
Pedrosa Araújo, residente em Itaituba (Pará) e leitor da revista Veja, acerca da sua percepção
sobre o trabalho das Frenéticas, como também da situação da MPB em si, sob constante
influência da cultura pop e consequente reinvenção, evidenciado quando ele se refere a uma
pureza que parcialmente já se encontra prostituída.
Sr. diretor: É merecedora de aplausos a magnífica e oportuna matéria “Muito
loucas” (VEJA nº 492), com as frenéticas. Num país essencialmente tropical, onde
(queiram ou não os patriotas e/ou etnocêntristas) coca-cola e hot-dog são mais
populares que a Arena e o MDB, é portanto inútil cultivar na música uma pureza que
parcialmente já se encontra prostituída (Cartas. In.: Revista Veja, São Paulo,
01/03/1978: p. 11).

Dentro desse caldeirão de manifestações diversas que são as Frenéticas, o


nacional, firmado nos seus figurinos tropicais e no ideal de mulher brasileira, se mescla com a
sonoridade estrangeira proporcionando a reinvenção da cultura, onde os diversos se
relacionam formando o novo num processo híbrido que evidencia o seu constante movimento
criativo.3
Buscamos, pois, um referencial teórico capaz de suprir nossas necessidades de
investigação e problematização. Através das nossas fontes, poderemos nos aplicar na
reconstrução do momento por nós analisado, enfatizando através de suas experiências
registradas nos periódicos por nós coletados a contribuição que estas tiveram, através da
publicização de suas imagens perante o público consumidor de seus trabalhos fonográficos,
para com os meios de produção e circulação de produtos diversos destinados ao consumo em
massa. Nesse aspecto, é válida a análise e compreensão de seus trabalhos enquanto
experiências musicais resultantes de suas vivências, onde a atuação no ambiente de discoteca
3
Sobre o conceito de hibridismo, Homi Bhabha expõe a problemática do hibridismo cultural como um campo
delicado no que se refere às interferências entre culturas, chegando a se manifestar de forma complexa em razão
das contradições nela presentes. (BHABHA, 1998: p. 21).
63 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.
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permeou o processo de formulação sequente de seus trabalhos e impactou significativamente
a sociedade brasileira e a sua relação com o consumo ligado ao fenômeno do disco music na
segunda metade da década de 1970.

ATÉ QUE AS COISAS E AS PESSOAS SEJAM SENSAÇÕES E EMOÇÕES


FRENÉTICAS: O DISCO MUSIC E SEUS IMPACTOS NO CENÁRIO MUSICAL DO
BRASIL.

A experiência inicial na discoteca de Nelson Motta contribuiu para a definição das


Frenéticas como expressivo grupo musical de disco music no Brasil. A febre das discotecas
popularizou consideravelmente a sonoridade oriunda dos EUA nas grandes cidades, de modo
que muitos jovens logo se renderam ao estilo dançante, como também a moda, largamente
influenciada após a exibição do filme Nos embalos de sábado a noite, protagonizado pelo ator
John Travolta (MORELLI, 2009: p. 68).
Em relação às Frenéticas, suas atividades profissionais dentro do mercado de
disco teve como marco o lançamento em 1977 do compacto simples que trazia a música A
felicidade bate à sua porta, de autoria de Gonzaguinha, seguido do lançamento do primeiro
disco. O compacto, como também o disco, atingiu grande êxito no mercado, sendo bem aceito
pelo público consumidor de discos e pela crítica especializada, como foi veiculado pela
Revista Pop na ocasião do lançamento do LP As Frenéticas:
O LP de estreia das meninas Frenéticas, um dos mais esperados do ano, foi gravado
em São Paulo durante uma semana. Regina, Leiloca, Edi, Sandra, Dulcilene e
Lidoka estavam a pleno e nem as dez horas diárias de gravação conseguiram
diminuir o pique das garotas. Agora, elas partem para shows e muito ouriço em cima
do disco que, a julgar pelo compacto A felicidade bate à sua porta, está
freneticamente bem encaminhado (Saiu o discão das Frenéticas. In.: Revista Pop,
São Paulo, 10/1977: p. 5).

O disco music se popularizou significativamente através da atuação artística das


Frenéticas. O ano de 1977 marcou o surgimento das antigas garçonetes do The Frenetic
Dancin’ Days no plano nacional, como ícones da música e da estética desse momento
histórico, uma vez que seus figurinos eram bem elaborados, inspirados nas estrelas de cabaré
e de vedetes de teatro de revista, explorando ao máximo, através de suas performances, a
sensualidade feminina incorporadas nas suas atuações (MOTTA, 2001: p. 302).
A imagem, portanto, aliada a sonoridade, construiu a identidade das Frenéticas
enquanto símbolos sexuais, revelando em suas atividades artísticas um canal positivo para a
exploração do consumo sobre o público que voltava as atenções para o sexteto feminino.
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Assim, o mercado fonográfico brasileiro percebeu de imediato o gosto popular pelo som das
discotecas, investindo de forma maciça nesse novo produto. Elas, por sua vez, foram
prestigiadas com prêmios e se tornaram ícone da música para muitos brasileiros. O jornal
Folha de São Paulo noticiou um dos prêmios recebidos pelo grupo:
As Frenéticas, Fafá de Belém e Luiz Gonzaga Jr. fazem o show desta noite na
entrega do Troféu Villa-Lobos, outorgado pela Associação Brasileira de Discos aos
artistas e técnicos que mais se destacaram nessas atividades em 77. A apresentação
começa às 22h, será no Golden Room do Copacabana Palace (Rio de Janeiro) e será
transmitida pela Rede Bandeirantes de Televisão (No musical da Bandeirantes, os
premiados de 1977. In.: Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 09/01/1978: p. 19).

Percebemos com a notícia, o incentivo oferecido pela Associação Brasileira de


Discos àqueles que se destacavam como bons vendedores de discos. Era importante incentivar
a continuação das atividades desses sujeitos para continuarem a garantir bons resultados
dentro desse mercado, em especial as Frenéticas, novidade no cenário musical nacional e que
provaram com suas atuações artísticas que o disco music é um produto com alto potencial de
rentabilidade como podemos ver a seguir.
Os números, de qualquer forma, dão uma resposta expressiva. Lançado há doze
semanas, o primeiro LP do sexteto já vendeu 138 000 discos. Surpresa total, no
chamado “mês Roberto Carlos”, de dezembro, a música “Perigosa” de Rita Lee,
Roberto de Carvalho e Nelson Motta, foi tocada 440 vezes nas emissoras de rádio
em todo o país, contra 370 execuções de “Amigo”, sucesso do rei que, assim, pela
primeira vez em quinze anos, perdia a preferência das rádios nos listões de fim de
ano (Muito loucas. In.: Revista Veja, São Paulo, 08/02/1978: p. 72).

Encaramos, pois, o disco music como produto em razão de seu poder de alcance
sobre as massas e sua rentabilidade no mercado, capaz até de superar estrelas como Roberto
Carlos, como foi comprovado pelo sucesso estrondoso das Frenéticas que alcançaram o disco
de ouro pelo expressivo número de mais de 250 mil cópias vendidas do seu primeiro LP As
Frenéticas (As divinas damas do apocalipse. In.: Revista Música, São Paulo, 08/1978: p. 22).
Assim, é possível sustentar que o mercado fonográfico passou a se reconfigurar no sentido de
focalizar suas produções dentro dos parâmetros do disco music e da música dançante de modo
geral em consonância com a exploração dos signos nele incorporado.
Dentro dessa lógica, para reafirmar o interesse do mercado fonográfico no gênero
disco music, além de diversos setores comerciais, podemos afirmar que outros tantos artistas
brasileiros, até mesmo aqueles que seguiam uma tendência diversa da sonoridade de
discoteca, aderiram às suas produções o ritmo dançante popularizado inicialmente pela
discoteca The Frenetic Dancin’ Days juntamente com as Frenéticas.

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E a disco-music brasileira? Ela se divide em duas correntes principais: uma pré-
fabricada, aproveitando a onda, com resultados variáveis (das Frenéticas a Lady Zu).
A outra corrente é a de artistas que estão assimilando elementos da discoteque-sound
em seu trabalho, assumindo claramente esta influência, e, de certa forma, aderindo,
ainda que criticamente a ela: Caetano Veloso (principalmente depois do LP Bicho, o
de “Odara”). Belchior (em seu “Todos os sentidos”). Rita Lee (Babilônia) e Ney
Matogrosso (na sua versão de “Não existe pecado ao sul do Equador”, de Chico
Buarque). (O que foi feito da rebeldia do rock? In.: Jornal Movimento. São Paulo,
04/09/1978: p. 19).

Sobre essa adesão, é relevante compreender que o disco music não foi assimilado
de forma pura por esses artistas, mas passou por um processo de hibridização por parte
daqueles que o incorporou em seus trabalhos fonográficos. Embora a matéria jornalística
considere que as Frenéticas não tenham transformado a sonoridade assim como fez os outros,
limitando-se a difundir o estilo disco music da forma que era concebido nos EUA, cremos que
o grupo fundiu elementos próprios do disco music com sonoridades e temáticas brasileiras,
tanto no aspecto musical como na imagem que o grupo feminino construiu nos primeiros anos
de carreira através de suas roupas coloridas e ousadas, assim como na postura sensual da
mulher brasileira, tão apregoada por determinados veículos midiáticos.4
Quanto a difusão do gênero disco music no Brasil, devemos, pois, entender que a
gravadora, enquanto espaço de produção inicial de discos, segue a lógica de qualquer sistema
industrial voltado para a produção de bens de consumo e que, por isso, possui suas
orientações funcionais que visam o máximo estimulo do consumo pela população (MORIN,
1997). Nesse sentido, a aliança entre indústria, mídia, imagem e discurso ideológico
legitimador do consumo corroboram para a expansão da cultura de massa e os seus elementos
configurados em produtos dentro da dinâmica da sociedade e da vida cotidiana, convertida em
lugar do consumo (BAUDRILLARD, 1995: 25).
A isso nos referimos à questão da moda e do comportamento construído dentro do
espaço das discotecas, uma vez que o espaço, enquanto lugar praticado (CERTEAU, 1998),
envolvia os frequentadores e o ambiente de sentidos estéticos que davam significado ao
gênero musical em si e estimulava o consumo de seus elementos incorporados em produtos.
Isso, certamente, fornece elementos a esses sujeitos para que venham a perceber o mundo no

4 Sobre as particularidades estéticas e sonoras das Frenéticas, vale a pena conferir o que Nelson Motta
fala obre elas: A disco music brasileira tinha muita coisa que era cópia da música norte-americana, mas
não era o caso das Frenéticas. Elas tinham cara própria, eram muito ligadas aos caras que fizeram os
Dzi Croquettes. Era teatro de revista, um pouco de escola de samba também, um pouco de cinema, de
chanchada...Uma coisa muito brasileira. Elas gravaram músicas do Gonzaguinha, do Chico Buarque...
(Caia na Gandaia. In.: Revista Superinteressante – História do Rock Brasileiro, São Paulo, 2004: p.70)

66 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.


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qual eles se encontram e atuam, podendo destacar, dessa maneira, a ideia de experiências
musicais que norteia as práticas humanas ligadas ao fazer musical, como também as que se
relacionam com a apreciação desta e os elementos sensitivos que ela desperta
(DAMASCENO, 2008).
Nesse sentido, nos enveredamos na compreensão do conceito de indústrias
culturais que segundo Canclini (2000, p. xxxi) busca nas manifestações culturais meios para
se extrair elementos para serem, logo em seguida, convertidos em produtos para serem postos
em circulação no meio social e alcançar o interesse das massas. As indústrias culturais
enquanto sistema, portanto, rege os meios atuais de técnica fomentados pelo impulso
econômico, onde os produtos nela gerados são adaptados ao consumo das massas e oferecidos
por meio dos canais midiáticos atuantes nas sociedades. De forma mais direta, as indústrias
culturais buscam sondar as diversas fatias de público e delas retirar tudo aquilo que gera
interesse e que pode ser transfigurado em produto para o consumo (SCOVILLE, 2008).
Nisso se baseia a lógica dos ciclos mercadológicos, amplamente em movimento
dentro do mercado fonográfico brasileiro durante toda a década de 1970. Faz parte da empresa
setorial de música a sondagem e a consequente aplicação das tendências musicais em voga do
momento, de modo que, com o contagio do disco music principalmente no Rio de Janeiro,
tido como polo difusor da cultura no plano nacional naquele momento, o estilo foi logo
incorporado no mercado, a começar, como vimos, pelo sucesso estrondoso das Frenéticas.

A GRANDE VITRINA: A RELAÇÃO ENTRE O DISCO MUSIC E A TELEVISÃO


NA PROMOÇÃO DE PRODUTOS PARA O MERCADO DE CONSUMO.

Aliado ao sucesso do ritmo popularizado pelas Frenéticas, como também do


surgimento de outras discotecas pelo Brasil nesse meio período, vai ao ar, pela TV Globo em
1978, a telenovela Dancin’ Days5 que vai contribuir para a lógica de consumo promovida
pelas indústrias culturais, como revela uma reportagem publicada na revista Veja acerca do
mercado impulsionado pela telenovela (A grande vitrina. In. Revista Veja, São Paulo,
13/12/1978: p. 121-126).

5
Dancin’ Days é uma telenovela brasileira escrita por Gilberto Braga e exibida pela TV Globo entre 1978 e
1979. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/dancin-days/ficha-
tecnica.htm. Acesso em: 19/08/2014.
67 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.
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Tendo como protagonista a ex-presidiária Julia Matos, interpretada pela atriz
Sônia Braga, a novela construiu a imagem da personagem em consonância com o ambiente da
discoteca Dancin’ Days, fazendo do espaço de lazer um espaço também de significações,
onde a moda e o espírito jovem possibilitou o surgimento de um verdadeiro campo de
sondagem para as indústrias culturais, através da popularização, por exemplo, das famosas
meias coloridas de lurex e das sandálias de salto fino, amplamente consumidas na época pelo
público feminino que acompanhava a telenovela. (MOTTA, 2001).
Tudo inspirava consumo no ambiente da discoteca; a sonoridade disco music, em
consonância com o ambiente e sua carga de imagens e símbolos, sintetiza a afirmação das
discotecas como templo de consumo, como podemos conferir a seguir em citação retirada da
revista Veja:
Mas há ainda muitos outros interesses embaralhados na luz estroboscópica e na
cacofonia de milhares de watts das discôs, como são chamadas pelos técnicos no
assunto. A decoração do Papagaio (discoteca) de São Paulo e do Rio, por exemplo, é
toda feita a base de anúncios em neon de produtos, como bebidas, cigarros,
refrigerantes, equipamentos de som, roupas jovens. Na Banana Power, a concorrente
da Papagaio em São Paulo, além dos anúncios em neon, dança-se ao som de um
jingle de Bom Brill, gravado em ritmo de discoteca ao mesmo tempo que um
comercial é projetado na parede (A travoltecamania. In.: Revista Veja, São Paulo,
30/08/1978: p. 52).

A moda, juntamente com o que foi anteriormente citado, é um elemento de


extrema relevância dentro do universo das discotecas. Como campo de consumo, revela a
busca de associações entre o espaço dançante e as roupas que investem de significados
aqueles que as ostentam em consonância com o ambiente. Existe uma ligação tão forte entre a
moda, as experiências no campo das discotecas, como também com tantos outros elementos
que lhe investem significações que o jornal Folha de São Paulo se dedicou, por algumas
vezes, a veicular textos que abordavam esses campos: da música à moda e destas, nas suas
entrelinhas, ao consumo de massa.
Uma roupa “disco” deve ser de preferência de cor espalhafatosa, pois a dançarina,
nesses enormes e pouco iluminados “galpões”, onde os raios laser e as bolas
espelhadas rotativas provocam tiras de luz em meio a obscuridade – quer ser vista e
suscitar o espanto, principalmente nos passos que ela executa sozinha. [...] A roupa
tem que ser confortável, para não se rasgar com as contorções daquela que a usa. E
não deve ser muito cara, pois uma lavagem, a molhado ou a seco, é geralmente
necessária, após cada noite de dança. Uma roupa “disco” sobrevive dificilmente a
dez utilizações (A febre das discotecas e seus sintomas. In.: Jornal Folha de São
Paulo, São Paulo, 05/11/1978. p. 57).

Destacamos, pois, nesse trecho da matéria publicada o seu objetivo sintético de


apontar os principais elementos dos figurinos usados nesses espaços, porém ela, de modo
68 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.
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geral, vai mais além ao analisar o sentido dado por determinada calça, sandália, camisa, assim
como outros tantos adereços. Tratando, no sentido figurado, a discoteca como algum tipo de
doença viral e que apresenta diversos sintomas, todos eles compartilhados entre os
frequentadores, tais como as formas de dançar e as combinações estéticas geradas por suas
roupas, a matéria busca construir a imagem do público de discoteca onde tudo aquilo que
estiver por fora representa a cafonice e a “caretice”.
Num aspecto mais direto, chega a sugerir que a roupa disco não pode ser uma
roupa cara, em razão do ambiente agitado em que elas são usadas, correndo sérios riscos de
serem danificadas ou, na escala de consequências naturais, tornar-se logo velha pelas
excessivas lavagens. Assim desaconselha-se a adquirir roupas caras (desaconselha, porém não
reprova), mas inculca na mente do público consumidor a necessidade de estabelecer um ritmo
contínuo de aquisição desses produtos, pois essa tendência ao desgaste favorece o intenso
fluxo de circulação financeira no setor de vestuário, e isso, aliado a variedade de peças de
roupas e adereços ostentados nas grandes discotecas, direciona seus frequentadores ao
consumo desses produtos, visando um lugar dentro do espaço caracterizado das discotecas.
Os fenômenos de consumo de produtos, tais como de vestuário, musical, além de
outros promovidos indiretamente, como o entretenimento, o consumo de bebidas alcoólicas e
drogas ditas recreativas, tais como o cigarro, está, certamente, ligado aos meios de abordagem
das indústrias culturais e suas formas de funcionamento, de maneira que a associação do
mercado fonográfico aos meios de mídia, como a televisão, os periódicos responsáveis pela
divulgação massiva de noticias e novidades sobre as temáticas do fenômeno disco music em
si, contribuíam para atrair e estimular o consumo dos objetos e serviços referentes a essa
tendência sonora. Sobre isso, podemos ver a seguir que com a eclosão do disco music no
Brasil surgiu uma grande demanda de serviços voltados para essa temática, tais como escolas
de danças especializada em ritmo disco music, escolas voltadas para a formação de disc
jockeys (dj’s), além de cursos para preparar pessoas dentro do âmbito comercial do universo
discoteca (administração de discotecas, de lojas de discos, de gravadoras e rádios e assim por
diante).
Um dado é fundamental: a onda discoteca atingiu a novela das oito na rede Globo
(Dancin’ Days), o que a transforma e a confirma automaticamente como um
fenômeno nacional. [...] Onde há condições sociais, econômicas e culturais de
consumo capitalista há a penetração da moda discoteca. E boa parte do Brasil está
nessa: escola para se dançar, escolas para disc-jockey, cursos para executivos. (O
que foi feito da rebeldia do rock? In.: Jornal Movimento. São Paulo, 04/09/1978: p.
19).
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Desse modo, buscando uma maior aproximação com o que foi até aqui colocado,
vemos que o expressivo sucesso do LP As Frenéticas em 1977 transformou
significativamente o cenário musical brasileiro, assim como o social, ao abrir novas
possibilidades de produtos e serviços ligados principalmente ao lazer e, de forma mais direta,
ao disco music e sua carga de significações. Também rendeu amplo sucesso ao sexteto
feminino, como também a experiência de nova gravação e lançamento do segundo LP Caia
na gandaia, de 1978 com o seu grande hit Dancin’ Days. Sobre esse momento, a frenética
Sandra Pêra nos diz em seu livro de memórias sobre o grupo que:
Tivemos que parar com o LP (Caia na gandaia) e partimos para a gravação da
música da novela. Tudo a mil por hora e muita gente envolvida. Era um tal de grava
com os melhores músicos, leva para os Estados Unidos para mixar, põe isso e põe
aquilo. Enfim, a novela estreou e a música explodiu como um barril de pólvora. O
disco da novela começou a vender absurdamente, e o nosso LP, ainda não estava
pronto. [...] Mas, o que vendia era a música Dancin’ Days e foi ela quem fez o disco
da novela arrebentar nas vendas. (grifo nosso). (PÊRA, 2008: p. 103).

Percebe-se que o hit Dancin’ Days, interpretado pelas Frenéticas e associado a


telenovela homônima, teve ampla recepção pelo público consumidor de discos,
especificamente de trilha sonora de novela, modalidade de produto quase que exclusivo da
Som Livre, gravadora pertencente a tv Globo.6 Assim, o sucesso estrondoso das Frenéticas
aliado à ampla difusão da telenovela veiculada em horário nobre favoreceram
expressivamente os resultados comerciais da referida música. Nelson Motta complementa a
força da música Dancin’ Days, assim como do disco music de modo geral no Brasil ao dizer
que:
Com a novela, a febre mundial da discoteca se espalhou por todo o Brasil, o segundo
Lp das Frenéticas, puxado por “Dancing Days”, estourou nas paradas de sucesso,
grandes artistas como Tim Maia e Ney Matogrosso gravaram disco-music, todo
mundo começou a gravar. Tudo virou discoteca, havia uma discoteca em cada
esquina, a moda discoteca, as meias arrastão, os sapatos de plataforma, os ternos
brancos, as roupas de lurex, os produtos licenciados pela TV Globo. O disco com a
trilha internacional da novela vendeu quase um milhão de cópias. (grifo nosso).
(MOTTA, 2001: p. 309).

6
Scoville (2008) aponta que, nos primeiros anos de existência da Som Livre, as trilhas sonoras de novelas eram
produzidas exclusivamente por artistas contratados da gravadora, assim como por sua orquestra, no entanto, na
segunda metade da década de 1970, a Som Livre muda de estratégia e passa a produzir suas trilhas sonoras no
molde de coletânea, onde os fonogramas não eram mais produzidos somente em seu estúdio, mas também
requisitadas, por meio de contrato, de outras gravadoras em razão do seu reduzido elenco de artistas e da
predominância de artistas populares em outras gravadoras (principalmente a Phonogram). Foi dentro dessa
lógica que a Som Livre adquiriu os direitos de execução da música Dancin’ Days, lançada também no LP das
Frenéticas (Caia na gandaia, de 1978) pela gravadora WEA, então recém instalada no Brasil.
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A música Dancin’ Days foi utilizada como trilha sonora de abertura da já referida
telenovela, trama que tinha como um dos ambientes centrais a discoteca homônima. Sobre a
referida música, vemos o trato especial dado pela tv Globo no processo de gravação,
objetivando criar, por meio de encomenda especial para a trama televisiva, um excelente
produto musical para difusão e consumo sobre o público que acompanhava a telenovela.
Assim, a telenovela, seguindo as noções mais elementares da lógica do
consumo, se utiliza também da participação das Frenéticas em um de seus capítulos,
explorando a imagem da badalação da discoteca aliada a performance alegre do sexteto em
apresentação artística para o público presente na discoteca fictícia, como também para o
público telespectador.7 A telenovela, portanto, incorpora a imagem e a sonoridade do
ambiente de discoteca, fazendo ampla divulgação dos elementos que compõem esse universo
de entretenimento. Para além dessa tática, a TV Globo lança, como recurso expressivo de
difusão sonora do disco music, o LP que registra a trilha sonora da telenovela Dancin’ Days
(Som Livre, 1978), somando nesse bojo mais um elemento para o consumo por parte do seu
público telespectador.
Scoville (2008) desenvolveu um trabalho expressivo acerca da relação da TV
Globo com a MPB no decênio de 1970, focando, entre outros pontos de destaque, a promoção
e difusão de diversos artistas brasileiros atuantes na música por meio das trilhas sonoras por
ela compiladas e comercializadas através do selo discográfico Som Livre, criado para essa
finalidade. Sobre isso, ele nos fala que:
[...] as trilhas de telenovelas representam a integração entre trama, imagem e som,
mas de forma cotidianizada, não somente no horário de exibição da trama, mas
também pelas das estações de rádio. A vinculação da música com a trama suscita
uma reinterpretação, por parte do público telespectador e consumidor, da obra
musical, que acaba por invocar uma associação direta entre ela e o personagem
(SCOVILLE, op. cit: p. 132).

Entendemos, dessa forma, que as trilhas sonoras obedecem a ordem de


funcionamento das indústrias culturais, onde o consumo é encorajado pelas diversas
significações que o produto apresenta dentro de sua composição e sua relação com o cotidiano
social. A telenovela, pelo seu largo alcance sobre a população brasileira, possibilitou, no caso
das Frenéticas, uma ampla projeção e difusão de seus trabalhos fonográficos e artísticos, de
modo que a tela da televisão que projeta a trama incorpora a significação e importância de

7
Cf. Dancin’ Days – Edição especial da novela original adaptada para o formato DVD. Rio de Janeiro: Globo
Marcas/Som Livre, 2011: DVD nº 6.
71 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 58-78, jul.-dez. 2014.
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vitrine, capaz de expor ao público consumidor produtos diversos que corroboram para a
consolidação das indústrias culturais.
Apontamos, nesse sentido, para a relação comercial vantajosa existente entre o
mercado fonográfico e a televisão (em especial a TV Globo) na difusão dos trabalhos
artísticos na área da música e na consequente promoção e venda do produto por meio dos
discos de trilha sonora de telenovelas. A trilha sonora é um produto que incorpora em si não
apenas a música propriamente dita, mas também a sua representação frente ao contexto de
apresentação na trama televisiva, sempre relacionando a música à determinada personagem
atuante na novela, o que gera e atrai interesse sobre o público consumidor de telenovela, de
maneira que podemos avaliar que a trilha sonora, largamente comercializada pela TV Globo,
podia ser utilizada como instrumento eficaz de promoção dos artistas lá incluídos.
Dentro desse contexto de relação e importância da trilha sonora, devemos
entender a especial atenção que a TV Globo direcionava para com as músicas que eram eleitas
para a abertura de suas telenovelas. Como já foi dito, esse foi o caso das Frenéticas, ao ter a
música Dancin’ Days incluída na trilha sonora de abertura da novela homônima. Scoville
(2008: p. 162) nos esclarece sobre a importância da trilha sonora que tematiza a telenovela no
seu aspecto geral dizendo que a música de abertura recebia especial atenção por parte da
produção das telenovelas da TV Globo porque ela deveria buscar uma identificação
instantânea com o público telespectador, cativando-o, assim, desde o inicio de cada capítulo.
Para tanto, esse trabalho de sondagem e escolha do tema era bastante minucioso e devia estar
de acordo com a sinopse da novela.
A busca pela cativação do público é um reflexo direto dos esquemas funcionais
das indústrias culturais. Era preciso, portanto, que esse mesmo público fosse conquistado pela
trilha sonora, pelo enredo da história, com seus dramas e suas situações cotidianas capazes de
despertar nele uma aproximação com a sua realidade. Isso, certamente, favorecia a formação
de um elo entre o público e o enredo a ser sondado e convertido, logo em seguida, em
produto, como também todas as mensagens que ele incorpora, seja elas musicais ou mesmo, a
título de ilustração, gírias e bordões oriundos dos personagens que são facilmente
popularizados nas sociedades em situações semelhantes. Sobre essa questão, a atriz Glória
Pires, intérprete da personagem Marisa Matos em Dancin’ Days, fala sobre a influência das
telenovelas sobre o telespectador: “A gente corta o cabelo, eles (os telespectadores) vão lá e

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cortam do mesmo jeito; a gente fala de uma maneira, eles começam a falar também.” (As
revelações de Glória Pires. In.: Jornal Luta Democrática, Rio de Janeiro, 29/04/1980: p. 4).
A telenovela Dancin’ Days se converteu, dentro do entendimento do mercado,
num ótimo espaço para o anúncio de produtos e serviços através dos signos nela expressa. A
ordem de consumo, nesse sentido, se ampara na identificação do telespectador com o universo
das personagens retratadas na trama televisiva. A música, nesse sentido, se destacou pelo
apelo que o próprio enredo recorria, já que muitas cenas se passavam no ambiente da
discoteca.
No entanto, para ilustrar o que queremos dizer, é preciso esclarecer que essa
lógica de mercado não se restringia ao disco music ou aos produtos e símbolos que ele possui
na sua essência, de modo que até o público infantil era sondado e atraído para o consumo.
Sobre isso, a revista Veja veiculou uma matéria em que aborda justamente a telenovela
Dancin’ Days a partir do seu potencial de promover determinados produtos, como foi o caso
da boneca Pepa, companheira inseparável da personagem Carminha, interpretada pela atriz
Pepita Rodrigues, nos seus solitários monólogos sobre a vida e o amor. Os dramas de
Carminha e a presença da boneca Pepa, signo de companhia e de conforto na trama,
corroboraram para a atração do público infantil para o produto lançado pela telenovela (A
grande vitrina. In. Revista Veja, São Paulo, 13/12/1978: p. 121).
Dancin’ Days foi um importante espaço de promoção mercadológica de produtos
e tendências de moda e comportamento. O poder da telenovela sobre o público televisivo
assim se justifica pelo seu poder de convencer e incentivar partindo das experiências
retratadas no decorrer de seus acontecimentos. A construção da imagem dos ídolos fictícios
(sejam eles heróis ou vilões) é pensada a partir da recepção do público e a forma como ele vai
absorver os caráteres psicológicos destes, o que representa o passo inicial para a conquista e
consequente sondagem de seus telespectadores. Sobre o caráter geral da telenovela Dancin’
Days e sua natureza fomentadora do mercado, Paulo Moreira Leite, repórter da revista Veja,
nos diz que:
Servindo de passarela a personagens que lembram modelos de publicidade, o
cenário de “Dancin’ Days” acabaria se transformando, ele também, numa espécie de
vitrina – onde se reserva espaço para os luminosos de jeans e vodca durante os
travolteios numa discoteca, que mostra os últimos modelos de mesas de som.
Misturando ficção e publicidade, emoções e comércio, talvez seja esta a mensagem
quase subliminar que “Dancin’ Days” deixa para o público: nem uma história de
amor, nem uma lição existencial, mas a presença de um ambiente tão pragmático
que é capaz de vender a si mesmo (Idem: p. 121).

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Percebemos assim o caráter comercial da trama televisiva. Por mais que o enredo
justifique as relações entre os frequentadores da Dancin’ Days, apresentando seus dramas e
suas vivências entre os demais sujeitos, o ambiente da discoteca é revertido de significações
que rompem o limite da narrativa romanceada, indo de encontro com a linguagem do mercado
onde produtos diversos são dispostos para apreciação e convite ao consumo. Produtos esses
que estão para além do material ao alcance das mãos, já que a novela em si, juntamente com
as suas propriedades, tais como a linguagem e sua sonoridade se convertem também em
elementos para o consumo das massas.
O disco music favoreceu, em linhas gerais, uma nova forma de abordagem
comercial por parte do mercado. Produtos passaram a ser lançados em escala industrial e
comercializados amparados pela associação destes com a alegria contagiante do som de
discoteca. O ambiente de discoteca, por sua vez, se converteu em feira surtida de elementos
para a apropriação mediante pagamento, já que o som era, por assim dizer, o convite ao
consumo, sempre seguido das mensagens propagandísticas existentes nesse ambiente, onde
marcas famosas, desde a bebida até a marca de produtos para o lar, conseguiam tirar nesses
espaços sua parcela de consumo.

CONCLUSÃO

Os anos de 1977 e 1978 marcaram profundamente grande parcela da juventude


brasileira com a eclosão do disco music e suas propriedades, com destaque para a sua
sonoridade dançante e os elementos estéticos identificadores do gênero em questão. Os
ambientes das discotecas, o público frequentador, a estruturação do espaço, juntamente com a
sua lógica comercial e mercadológica que dispõe na paisagem da danceteria o anúncio de
produtos diversos caracterizaram os anos em questão.
Se em 1977 as Frenéticas se projetam primeiramente no espaço da famosa The
Frenetic Dancin’ Days, seguindo para outros campos, como o do mercado fonográfico – onde
obteve expressivo êxito - e os palcos de outras casas de shows do país, evidenciando assim o
aumento da força do disco music enquanto gênero musical, 1978 vai marcar a expressão
máxima do disco music no Brasil, não mais apenas como gênero musical dançante, mas sim
como elemento capaz de aglutinar formas diversas de promoção ao consumo de massa, de

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modo que junto com a tendência sonora das discotecas eclodida pelas Frenéticas vinha uma
carga expressiva de produtos que se anunciavam nesses espaços, fazendo surgir no seio do
lazer o convite ao consumo.
Com o lançamento comercial da música Dancin’ Days, contida no segundo LP
das Frenéticas (Caia na gandaia), juntamente com a telenovela e a consequente popularização
das discotecas no país, surge um mercado que não nos era por total desconhecido, mas que se
articulou de forma inovadora dentro do campo dessa novidade musical. Não estamos, pois,
falando de um fenômeno mercadológico novo, mas sim de um fenômeno que se reorganizou e
que aglutinou todas as suas potências comerciais sob a expressão disco music.
Assim, as Frenéticas, a telenovela Dancin’ Days, juntamente com sua trilha
sonora, foram elementos fundamentais para a difusão do universo disco music que se
instalava no Brasil. Jovens frequentavam discotecas, usavam meias de lurex combinando com
a sandália de salto fino, os rapazes, da mesma forma, seguiam as tendências tão em voga nas
discotecas, incorporando no visual a estética travoltiana, amplamente exposta no filme Nos
embalos de sábado à noite. Moda, lazer e comportamento estavam indissociavelmente
atrelados ao consumo e a lógica mercadológica de produtos diversos nesse momento
específico.
A experiência do disco music no Brasil foi diversa, de modo que podemos apontar
inúmeras direções de análise a partir do que foi visto até aqui. No entanto, tendo como ponto
de partida a consolidação artística das Frenéticas e a popularização das famosas discotecas no
país, podemos identificar e problematizar acerca da corrida mercadológica que se deu no país
com o advento da experiência do disco music e suas propriedades.
O som de discoteca foi, nesse aspecto, o produto de maior destaque que favoreceu
a circulação de tantos outros. O mercado fonográfico, por exemplo, em muito se beneficiou
com o surgimento das Frenéticas e sua alta vendagem de discos. Basta tomar como medida o
êxito comercial por elas alcançado que resultou até em disco de ouro, desbancando Roberto
Carlos da liderança musical por ele ocupada durante quinze anos.
As Frenéticas, grupo musical coeso durante os anos de 1977 e 1978, foi referência
da geração brasileira que frequentou discotecas, que dançou nos embalos do disco music e que
acompanharam o drama e ascensão da ex-presidiária Julia Matos, protagonista da telenovela
Dancin’ Days. Tal referência, no entanto, se expande para cada produto consumido por
intermédio da promoção dos veículos de comunicação. As indústrias culturais, enquanto

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sistema formado quase sem lacunas são regidas por campos diversos que sondam o gosto
popular e, como resultado de sua pesquisa, faz surgir os produtos no mercado e as práticas
que geram sensações.
Concluímos que a indústria cultural, portanto, opera de acordo com as
propriedades da cultura de massa e se constitui num sistema complexo amparado e legitimado
pelos meios atuais de técnicas, como também pela concentração econômica e administrativa.
Porém, embora tenhamos mostrado apenas o lado do mercado, temos que ter em mente que o
consumidor não está posicionado apenas na condição de objeto, a consumir o que é imposto
pela dita indústria enquanto vive a ilusão de ser ele o detentor da real escolha, mas atua –
dentro do próprio consumo – de forma ativa ao fazer novos usos do que assiste e ouve, como
sugeriu Certeau (1998) acerca da televisão. Tendo em vista que, como pudemos constatar, o
lugar do consumo é a vida cotidiana, onde todos os meios de propagação e veiculação de
produtos e ideias neles contidos concorrem para alcançar o gosto do consumidor moderno que
busca o coração do acontecimento, sejam eles retratados no ideal apresentado pelas ficções
televisivas ou pelas formas de expressão possibilitadas pelas músicas e sonoridades
dançantes.

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%20def.%20para%20ufpr.pdf;jsessionid=B76DCA870CDFDF8CAE3392BB35A1B223?sequ
ence=1

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

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O “POLÍTICO” NOS PANFLETOS DE MILTON
NA REPÚBLICA INGLESA.

Fernanda Fonseca Coutinho


Graduanda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), integrante do projeto de
pesquisa do professor Carlos Mauro de Oliveira Júnior intitulado, Ideias de liberdade,
natureza e República da Inglaterra dos séculos XVI e XVII.

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O “POLÍTICO” NOS PANFLETOS DE MILTON NA REPÚBLICA
INGLESA.

THE “POLITIQUE” IN JOHN IN MILTON FLYER IN THE REPUBLIC


ENGLISH.

Fernanda Fonseca Coutinho

RESUMO ABSTRACT

Este artigo tem como intuito analisar o discurso de This paper analyzes the speech of John Milton from
John Milton a partir das obras Tenência dos reis e the works The Tenure of Kings and Magistrates
magistrados (1649) e Defesa do povo inglês(1651). (1649) and Pro populo anglicano defensio (1651).
Para isto, nos basearemos na perspectiva do This paper is based on Pierre Rosanvallon’s
conceito do “político” de Pierre Rosanvallon, para concept of the “political” to demonstrate that the
demonstrar que o pensamento do autor é uma author’s thought is an attempt to answer the issues
tentativa de responder aos problemas que o that troubles him in the XVII century, and that it is
incomodavam no século XVII, e como este está inserted and influenced by the conflicts present in
inserido e influenciado pelos conflitos presentes this period. The problems and conflicts were related
neste período. Os problemas e conflitos estavam to both the loss of prestige and power of Charles I
relacionados tanto a perda de prestígio e poder de as dissatisfaction of English society of the
Carlos I como a insatisfação da sociedade inglesa seventeenth century with respect to the King
do século XVII com relação ao governo do Rei. government. Thus, the hypothesis is that John
Desta forma, a hipótese é que o argumento de John Milton’s argument was created from the context,
Milton foi criado a partir do contexto, marcado pela marked by the political instability and the
instabilidade política e a importância da Bíblia, significance of the Bible, understood by the society
entendida pela sociedade da época como a fonte de of the time as the source of all truth.
toda verdade.
KEYWORDS: John Milton; English
PALAVRAS CHAVES: Jonh Milton; Revolution; political.
Revolução Inglesa; político.

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar o pensamento de John Milton expresso nas


obras Tenência dos reis e magistrados (1649) e Defesa do povo inglês (1651), a partir da
perspectiva do conceito do "político" de Pierre Rosanvallon. Assim, o enfoque não estará na
ação governamental propriamente, como era para os historiadores da política tradicional, mas
sim, a que situação Milton reagiu? Como esperava intervir nela?

Contudo, antes de tal análise é importante explicitar o conceito do “político”


presente na História filosófica do político de Rosanvallon. De acordo com seu artigo sobre
essa História, o autor afirma que a mesma emerge na década de 1980, marcado pelo desprezo
das ciências políticas e a ascensão da filosofia como uma ciência capaz de melhor oferecer um
estudo para entender e formular os problemas sociais. (ROSANVALLON, 2010, p.40)

Segundo Carlos Mauro de Oliveira Júnior, no artigo História política e história


dos conceitos: um estudo sobre o “político” em Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet, a
metodologia de Rosanvallon se aproxima da renovação francesa da história política,
preocupada e atenta aos autores e seus discursos, e se apropria da noção de cultura política
dos Annales adaptando-a à ideia do “político” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2012, p.168).

Esta ideia está presente no trabalho de Claude Lefort e refere-se à sociologia


compreensiva de Max Weber, a alguns trabalhos de Norbet Elias e aos estudos das práticas e
representações de Michel de Certeau e Roger Chartier (Idem). Esta visa à substituição de uma
visão determinista por uma que considera vários fatores, segundo Oliveira Junior isto
significa uma história conceitual que não prioriza o econômico como a instância mais
importante capaz de explicar os aspectos políticos, mas se volta para uma abordagem que se
preocupa com as estratégias, práticas dos atores de um determinado contexto.

Pierre Rosanvallon argumenta que essa história filosófica se diferencia da ciência


política na definição sobre o domínio do político. Para a última, “a política constitui uma
subárea do sistema social como um todo” (ROSANVALLON, 2010, p.40). Já para a primeira
não é possível separar o político e o social, e como afirma Oliveira Junior, cabe a nós estudar
a rede de interdependências presentes em determinada sociedade, assim, a definição do
domínio político se referia à noção “de um princípio ou um conjunto de princípios
engendrando as relações que as pessoas mantêm entre elas e com o mundo” (Ibidem, p.41).

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Segundo Oliveira Júnior, o interessante para a análise do “político”, não são as
ações governamentais, mas sim a sociabilidade, definido como um lugar de poder da
sociedade que se relaciona com o Estado. Desta forma, o “político” é diferente da política.
Como argumenta Rosanvallon:

“referir-se ao político e não a política, é falar do poder da lei, do estado e da nação,


da igualdade e da justiça, da cidadania e da civilidade, em suma, de tudo aquilo que
constitui a polis para além do campo imediato da competição partidária pelo
exercício do poder, da ação governamental cotidiana e da vida ordinária das
instituições.” ( Ibidem, p.73).

De acordo com este autor, o objetivo da História do “político” é entender os


sistemas representativos que são gerados num processo social de inspeção constante com a
consciência de atores-autores que tentam responder aquilo que eles percebem como problema.
Nas palavras de Rosanvallon, “no sentido proposto por Max Weber, a compreensão do campo
da história implica reconstruir o modo pelo qual os atores entendem sua própria situação,
redescobrindo as afinidades e as oposições a partir das quais eles projetam suas ações. ”
(Ibidem, p.48).

Para Oliveira Júnior, refletir sobre a política a partir desta perspectiva, nos torna
mais sensíveis ao processo de práticas políticas e de estratégias dos atores sociais. O
“político” possibilita ampliar a noção de história política e utilizar a história dos conceitos que
objetiva pesquisar os usos de um determinado conceito ao longo do tempo, além de considerar
como os atores-autores os modificaram ao enfrentar problemas sociais de seu contexto.
(OLIVEIRA JÚNIOR, 2012, p.171).

Baseando-nos nesta perspectiva, pautaremos nossa análise em duas das questões


do “político” do século XVII que se refletem no discurso de Milton e que são as hipóteses
deste artigo. A primeira se refere à instabilidade política, com vestígios desde o reinado de
Elisabeth I alcançando o auge no governo de Charles I, que proporcionou uma crise na
confiança ao poder do rei e consequentemente a ideia do pacto social do ator- autor Milton. Já
a segunda hipótese, se reporta à importância da Bíblia como fonte da verdade, usada para
criticar a política num contexto marcado pela divulgação das Escrituras e a possibilidade das
pessoas interpretarem à sua maneira. (STONE, 2000; HILL, 2003)

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A INGLATERRA DAS REVOLUÇÕES DO SÉCULO XVII


Milton em Tenência dos Reis e Magistrados, publicada em 1649, duas semanas depois
da execução de Charles I, e a Defesa do povo inglês em 1651, apresenta um discurso que para
ser compreendido é necessário ter em mente a Revolução Inglesa como parte de um processo
histórico, por isso é importante retomarmos o contexto do século XVI e XVII. Para esta
finalidade, utilizaremos a análise de Lawrence Stone presente no livro Causas da Revolução
Inglesa (2000), no qual ele apresenta os fatores que levaram a este processo.

Stone argumenta que a instabilidade política que proporcionou a eclosão da


Revolução Inglesa, tem início no apogeu da dinastia Tudor, no reinado de Elisabeth em 1529.
Neste período, já haviam questões as quais a rainha não se preocupou em solucionar e
mudanças na sociedade que não foram acompanhadas pelo Estado. Segundo o autor, os
elementos mais importantes que ocorreram ao longo dos séculos e que caminharam para uma
grande insatisfação social foram: o fracasso da Coroa em deter o poder, pois não possuía um
exército forte e uma burocracia assalariada e confiável; declínio da aristocracia e ascensão da
gentry1; difusão do puritanismo; e a desconfiança na integridade moral dos detentores do
poder administrativo. (STONE, 2000)

O absolutismo inglês tropeçou na sobrevivência de poderosas instituições e


tradições políticas, principalmente o Parlamento que no reinado de Elisabeth foi constituído
pela gentry, isto porque o governo com o intuito de custear gastos de guerra, vendeu as terras
confiscadas para os leigos, e desta forma, a classe fundiária e os profissionais liberais se
tornaram mais ricos e muitos constituíram a Câmara dos Comuns. (ANDERSON, 1984, p.
141-142).

Estes, como uma força política consciente, começaram a reagir querendo algumas
mudanças, e o que no reinado de Elisabeth eram sérios problemas, tornaram-se ameaças ao
governo de Charles I. Os componentes da gentry, cada vez mais seguros, queriam expressar

1
Gentry – grupo social cuja conceituação é fruto de grande polêmica entre historiadores ingleses. Resumindo,
trata-se de uma espécie de baixa nobreza de origem plebeia, mas que teve acesso a terras no reinado de Henry
VIII Tudor, após os “Atos de Supremacia”, em que se confiscou os bens da Igreja Católica. A compra das
terras em leilões reais e a possibilidade de entrar na Câmara dos Comuns, fez com que este grupo ascendesse
politicamente. Todavia, a sua origem e “mentalidade econômica" mercantil – presentes no Parlamento –
ajudaram a mudar os rumos da economia inglesa. A dificuldade é o fato de ela manter uma fusão de visões de
mundo: senhorial e burguesa; fato este que parece ter tido importância nas elites britânicas desde o XVII. Ver
de Edward Thompson: As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas, Unicamp, 2001.
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suas opiniões e serem atendidos. A instabilidade financeira, a política militar inútil, corrupção
e privilégios foram o combustível para esses agirem e tomarem decisões, especialmente no
governo dos Stuarts que não tinham e não se importavam em ter o carisma da rainha. Stone
inclusive ressalta que esta característica, a qual Elisabeth fazia questão de usar, prejudicou
mais ainda a transição do poder para James e Charles I, pois através da propaganda ela
intensificou a sua identificação como a rainha da nação.

A instabilidade política foi acompanhada da perda do prestígio e credibilidade. A


Igreja neste momento já havia perdido o respeito, o clero tinha o poder apenas nominalmente,
com a reforma protestante surge a Igreja Anglicana que não satisfez as expectativas dos
leigos, levando-os a uma busca religiosa mais convincente e assim, surgiram na Inglaterra os
grupos de minoria católica e os puritanos. A rainha não se comprometeu com os últimos, o
que, segundo Stone, foi um grande erro, pois era um grupo reformista com ideias novas sendo
muito importantes nas universidades e na disseminação da educação popular, que também
teve sua relevância para aumentar o desequilíbrio do governo, como veremos adiante.

Com uma análise diferente sobre as universidades, Hill argumenta que os


puritanos se aproximaram das classes sem privilégios da cidade e do campo, e as
universidades do período ainda estavam voltadas para educação de pastores e interessadas em
se tornar em escolas de aperfeiçoamento da pequena nobreza (HILL, 1992, p.18). Assim, para
o autor, as novas ideias não vieram desta instituição, elas vieram, principalmente, dos leigos.

Juntamente com a crise na aceitação da Igreja Anglicana, fazia-se presente o


declínio da aristocracia, a ascensão da gentry e política de favores à mercê de poucos
favoritos, além da ostentação do dinheiro público com festas na Corte. O último fator foi de
insatisfação dos nobres, cortesãos e da gentry que utilizou estas questões para recusar
concessões fiscais em nome do Parlamento. Tal fato por sua vez, fez com que os poderes de
regulamentação econômica, nomeação de cargos e de criação de títulos honrosos, fossem
colocados em leilão pelo rei, o que agravou ainda mais as tensões políticas.

Segundo Stone (2000), no reinado de Charles I a confiança na burocracia e na


corte haviam diminuído ainda mais, e isso se devia principalmente à corrupção e a tentativa
do Estado regular a economia. Neste último temos uma tensão, pois as transformações
econômicas resultaram em novas classes, como a dos empreendedores e dos pobres sem
emprego, para lidar com essas novas questões, os humanistas atribuíram uma nova função ao
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Estado, a regulamentação da economia, contudo, os ingleses queriam impor este novo cargo à
Coroa, mas sem dar-lhe condições administrativas, faltava uma burocracia estatal eficiente.
Além disso, o autor também afirma que

“A erosão na confiança e no respeito por tantos elementos da autoridade estatal e


eclesiástica foi grandemente ajudada pela distribuição semanal de mexericos
interessantes, detalhados e maliciosos, por todo o país, graças a um punhado de
“informantes”, os primeiros jornalistas profissionais. Temperadas com estórias
escabrosas e escândalos sexuais na Corte, e de escândalos financeiros na
administração, estas cartas enviadas de Londres com regularidade, juntamente com
os libelos e as poesias obscenas que também circulavam amplamente em forma
manuscrita, exerceram uma poderosa influência no enfraquecimento da confiança
pública no governo.” (STONE, 2000, p. 166)
Milton apresenta uma crítica à autoridade real relacionada às questões levantadas
acima, ele afirma que:

“pela grandeza de seu poder, vastidão e exorbitância de sua vontade, cuja a


satisfação vem muitas vezes acompanhada de inumeráveis males e opressões ao
povo, massacres assassinos, estupros, adultérios, desolação e subversão de cidades e
províncias inteiras, vemos o grande bem e felicidade que é o rei justo e o grande
ultraje que é o tirano: aquele é o pai público de seu país, este, seu inimigo comum.”
(MILTON, 2005, p. 24)
Ao analisarmos este trecho, baseando-nos na afirmação de Stone, inicialmente
podemos notar o que já argumentamos na introdução e também o que lançamos como
hipótese, isto é, que as criticas do autor eram influenciadas, além de outras coisas, pela
insatisfação da população com o governo de Carlos I, assunto que veremos no próximo
tópico.

Percebemos também que John Milton, puritano inglês do XVII, viveu um


contexto de grande agitação política. E neste, parece ter havido uma mistura do vocabulário
das repúblicas da Antiguidade e de sua releitura na Renascença com os ideais de pureza
religiosa exigidos por comunidades religiosas protestantes em um momento de crise de
confiança na autoridade religiosa e política representada pela Igreja romana e seus reis
simpatizantes.

Mudanças estavam acontecendo, novas forças sociais, relações políticas, novas


ideias, a Igreja e o Estado sem aptidão para lidar com as novas transformações. De acordo
com Stone, por volta de 1620 a Inglaterra estava indo em direção à desarmonia política. A
hesitação ou intransigência da política régia com relação às novas questões, principalmente
depois de 1629, levou vários setores para o lado da oposição.

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Charles I ao assumir o poder, com a intenção de governar sem o parlamento, o
dissolveu. Com o desejo de reforçar a sua autoridade e estabilizar a sociedade, aumentou a
tributação, no entanto, este aumento foi realizado de forma arbitrária e inconstitucional para
ser, na maioria das vezes, utilizado para fins desnecessários, como por exemplo, arcar com os
luxos da corte, o que gerou cada vez mais intolerância. Esta tributação em muitos momentos
também foi cobrada para quitar empréstimos com juros altíssimos feitos aos coletores
alfandegários, e além disso, eles não eram suficientes para fortalecer o poder régio e expandir
a força militar.

É interessante destacar que Thomas Hobbes argumenta de forma diferente sobre


esse processo. Em Behemoth ou o Longo Parlamento, o autor argumenta que o motivo de ter
poucos soldados recrutados estava na falta de recursos do Estado, enquanto seus opositores
que pretendiam diminuir os tributos dos ingleses comandavam as bolsas da City de Londres,
de várias cidades, municípios autônomos e de muitos particulares (HOBBES, 2001, p.32).

O rei também tentou reforçar o prestígio dos nobres e rebaixar a gentry, mas a última,
que por quase um século havia conseguido um crescimento na influência política, não estava
disposta a voltar à posição inferior. Juntamente com ela, os puritanos também tinham
alcançado um posicionamento considerável no reinado de Elisabeth e continuaram
influenciando no governo de James. Mas em 1630, Charles I privou ambos os poderes, que a
gentry e os puritanos já consideravam como seus direitos. (STONE, 2000, p.219)

O rei também aboliu as práticas de venda de títulos, expulsou a gentry e a


aristocracia de Londres (Idem), o que gerou mais oposição. E em cada aspecto econômico
interferiu por meio da burocracia com um único objetivo, impor regulamentos de duvidosa
legalidade para retirar dinheiro dos comerciantes. A oligarquia mercantil, que a Coroa tinha
interesse no seu apoio, também começou a se incomodar e deixar de ajudar a mesma.

Desta forma, segundo Stone, a tentativa de reforçar o absolutismo hierárquico,


estável e paternalista, cuja base era a união da Igreja e Estado, gerou a divisão das elites
governamentais, infidelidade dos grupos de apoio da Coroa e aumento das forças de oposição
nacional, chegando ao extremo em 1640 devido à guerra contra os escoceses que aumentou o
colapso financeiro.

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Em 1640, Charles I estava sem apoio, com uma grande oposição para enfrentar e
precisando da ajuda do Parlamento que estava há 11 anos sem ser convocado. Próximo à
eclosão da revolução, o rei estava sem força para reagir à Câmara dos Comuns que impôs uma
série de medidas a ele. A situação agravou quando Charles I não abriu mão de ser comandante
do chefe do Exército, e os Comuns, com medo desta força ser utilizado contra o Parlamento,
redigiram um violento protesto que gerou a tentativa do rei de prender os líderes deste, sem
sucesso, pois estes fugiram para Londres e convocaram as milícias urbanas. Sem apoio
parlamentar, e frustrado em sua tentativa, o rei transferiu a corte para Oxford.

Meses depois, de um lado tinham os nobres anglicanos e católicos, os quais


recriminavam a atitude de levantar armas contra o soberano, e do outro, os aristocratas
presbiterianos, puritanos e radicais de diversas seitas, se apoiavam “nas teorias de resistência
desenvolvidas no século XVI, para defender seu direito de lutar contra um rei que havia se
tornado tirano.” (BARROS, 2013, p. 132).

Resultado de toda essa instabilidade e tentativa de alcançar, por Charles I, um


poder absoluto, foi a venda do rei pelos inimigos escoceses e a execução do mesmo pelo
Parlamento. A Escócia e a Irlanda, aproveitando as disputas internas inglesas, iniciaram
conflitos com o intuito de melhorar a sua situação. Essas almejavam eliminar a imposição que
o rei os colocou acerca da religião anglicana. Tais tentativas tiveram resultados distintos. O
caso escocês teve importante participação na derrota do rei e na ascensão do exército e
parlamento ingleses. A revolta irlandesa foi derrotada pelo exército parlamentar. Em ambos
os casos, a ação do exército e seus generais, como Oliver Cromwell, foi importante (Hobbes,
2001).

Diante de todo este contexto, podemos supor que a estratégia do autor de


aproximar a Bíblia e a política estava focada no desejo de convencer a maioria do Parlamento
de que o tiranicídio foi uma atitude correta. Milton faz isso apresentando outra ideia de pacto
social entre os homens, diferente das ideias monarquistas tradicionais, remetendo à tradição
respublicana antiga e florentina ao mesmo tempo em que faz uma releitura da Bíblia, que em
sua época tinha um papel central em todos os aspectos da cultura inglesa. E é esta ideia e este
importante papel das Sagradas Escrituras que veremos nos dois tópicos a seguir.

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O PACTO SOCIAL DE MILTON.

A teoria do Direito Divino, basicamente, definida pela ideia de que todo o governo era
escolhido por Deus e por isso era submisso somente a ele, de acordo com Janine Ribeiro e
Ernst Kantorowicz, foi combatida na Inglaterra através da defesa de que as leis se
hierarquizavam, assim, as que tinham sido promulgadas pelo “corpo do Rei no Parlamento”
eram valorizadas e as que emanavam somente do rei eram menosprezadas pelo Parlamento e
outros setores sociais. Resumindo, a mitologia política da origem divina era combatida por
aquela que defendia a existência de “dois corpos do Rei”. No período das dinastias Tudor e
Stuart, estas ideologias disputavam espaço, até que depois de 1688 o Parlamento tornou-se
vitorioso. (JANINE RIBEIRO, 2001: KANTOROWICZ, 1998).

A teoria do Direito Divino obteve um espaço maior nos governos de Henrique


VIII e Elisabeth I. A rainha inclusive baseou suas propagandas na teoria para assegurar a
estabilidade do governo. Entretanto, em torno de 1640, esta teoria estava em declínio, Skinner
no livro Liberdade antes do Liberalismo (1999), afirma que os ingleses estavam divididos
entre a concepção da soberania do Rei ou do Parlamento. Assim, muitos parlamentares ao
lerem os textos dos juristas que tentavam elaborar uma jurisprudência favorável à tese do
Parlamento, colocando em papel o Direito Consuetudinário, concluíam o que queriam.

Milton criticava a propaganda da teoria do Direito Divino afirmando que considerar os


reis responsáveis somente diante de Deus é alterar toda a lei e todo o governo. Nas palavras
dele: “Caso possam se recusar a prestar conta de seus atos, serão vãos todos os pactos
celebrados com eles durante a coroação, todos os juramentos não passarão de mofa, e feitas
sem nenhum propósito todas as leis que juram observar.” (MILTON, 2005, p. 17).

A crítica do autor é o reflexo do que diz Stone, “bem pouca coisa restava “da
divindade que guarnece o rei”, e os que acreditavam no mito ainda popular dos ingleses como
povo eleito de Deus o estavam usando como uma arma contra o rei Carlos I.” (STONE, 2000,
p. 165). Ou seja, a partir da insatisfação e desconfiança do poder régio, da leitura consciente
da “constituição” ligada ao declínio da Teoria do Direito Divino, novas teorias foram criadas.

Entre essas tem-se o pensamento de Hobbes, que influenciado pelas ideias


romanas, defendia que a soberania está no rei, mas poderia estar no Parlamento se assim
estivesse no contrato, desta forma, para este os reis não são divinos, porém são os que

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garantem a segurança, onde a liberdade se encontra na ação de obedecer à lei. Esta era uma
concepção que, apesar de expor um discurso novo, defendia os monarquistas. Opostamente,
os que apoiavam e representavam o Parlamento, apresentaram um argumento pautado na
teoria neo-romana, a teoria do Estado livre.

Segundo Skinner “a teoria dos Estados livres continuou a ser um espinho para as
teorias de governos contratualistas, bem como patriarcas do século XVII.” (SKINNER, 1999,
p. 23). Esta foi usada e reavivada para afrontar os Stuarts. Entre os autores que discordavam
do discurso de Hobbes e basearam-se na liberdade da teoria clássica, destacava-se Milton,
como afirma Skinner, nos panfletos que ele publicava em defesa da comunidade livre entre
1649 e 1651, estava presente o conceito de liberdade neo-romana.

Mas o que significa liberdade para os clássicos? E como autores, especialmente


Milton, a utilizaram na teoria do Estado ou Comunidade livre? Skinner argumenta que este
conceito referia-se apenas ao aspecto político, os neo-romanos se preocupavam com a relação
da liberdade dos súditos e os poderes do Estado, assim, ser livre significava desfrutar dos
ganhos e benefícios de um governo em ordem.

Diferente desta ideia, os autores ingleses argumentam que ser verdadeiramente


livre é estar na condição natural do indivíduo. Milton deixa isto explícito ao afirmar que
“todos os homens nasceram livres, feitos à imagem e semelhança de Deus.” (MILTON, 2005,
p. 12), logo todos devem governar. Ser virtuoso é participar da respublica. Aqui é possível
observarmos que o destaque da importância na participação política parece ter se confundido
com um ideal de bom cristão expresso por Deus na ideia “criado à imagem de”.

No panfleto, Em defesa do povo inglês(1651), Milton argumenta que a autoridade


do rei começa do povo,

“Por isso lemos que no passado a majestade fora atribuída mais frequentemente ao
povo romano do que aos reis. Do mesmo modo Marco Túlio em Pro Plancio: “é
condição de um povo livre, e especialmente deste povo, que é líder e senhor de todas
as nações, ser capaz, pelo voto, de dar a alguém ou tirar de alguém o que quiser.
Nossa tarefa é suportar calmamente a vontade do povo: se não queremos altas
honras, não precisamos servir ao povo; mas se de fato as buscamos não devemos nos
cansar de suplicar”(ibidem, p. 159).
Milton nos apresenta uma afirmação vinda do senado romano que se considera
escravo do povo, pois estes votam e escolhem seu representante que tem o dever de honrá-los.
Neste trecho, percebemos nitidamente que o autor se baseia no ideal de respública dos

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clássicos, ou seja, ele admira e considera em seus ideais o exemplo dos clássicos no qual leis e
magistrados existem para o bem do povo.

“pai e rei são coisas muito diferentes. O pai nos gerou; mas o rei não nos criou, nós é
que criamos o rei. A natureza deu um pai ao povo, mas o próprio povo se deu um
rei; assim, o povo não existe por causa do rei, mas o rei existe por causa do
povo.”(Ibidem, p. 93)

Vemos que para o autor é o povo que tem o poder, quando criados, foram
presenteados com a liberdade natural e decidiram fazer uma aliança com um representante
para o bem de todos.

E essa liberdade natural deve ser protegida e preservada pelos governantes. De


acordo com Skinner, quando os autores consideram tal obrigação, eles sustentam duas
posições sobre a ideia de liberdade civil. Primeiro, enfocam na liberdade comum e não do
indivíduo, ou seja, na comunidade livre as leis devem ser decretadas com o consentimento de
todos os cidadãos e assim, a vontade do povo é a da maioria. E o segundo, é referente à
possibilidade de cada indivíduo participar igualmente da elaboração das leis, e é isto que
assegura o reflexo nos atos de legislação consentido por todos os membros. Contudo, há uma
dificuldade para reunir o corpo inteiro de cidadãos e por isso, foi criada uma assembleia
nacional, constituída pelos escolhidos pelo povo para representá-los, e esta é agora o poder
soberano da nação.

De acordo com Skinner, Milton proclama em 1660 que o corpo ideal para a
representação é Câmara dos Comuns (SKINNER, op. cit, p. 38). Contudo, nos panfletos que
aqui estamos abordando, parece que Milton não deixa nítido este ideal, o que percebemos é
que seu objetivo maior era convencer ao parlamento da sua missão de manter a república.

Poderíamos até perceber uma referência neste ideal quando o puritano diz:

“Foram indicados pelo rei, eram seus camaradas, servidores e, por assim dizer, sua
sombra (...) Ora, a Câmara dos Comuns, como já te disse acima, não apenas
constituía a parte mais importante do Parlamento, mesmo sob os reis, mas por si só
formava um Parlamento sob todos os aspectos, absoluto e legítimo, ainda que sem
os lordes e muito menos o clero.” (Ibidem, p. 301)
No entanto, percebermos que ele estava preocupado em convencer os membros do
Parlamento, sejam lordes ou comuns, que o tiranicídio foi uma atitude correta e também
lembramos que os presbiterianos eram o segundo maior grupo. O maior era de “indecisos”,
digamos assim. Milton, talvez, não conseguisse convencer o Parlamento a aceitar ideias de

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autogoverno, com certos desdobramentos democratizantes, pois relativizavam a hierarquia.
Neste sentido, aceita o modelo de representação como o melhor possível no momento.

Dito isto, podemos voltar à discussão sobre a liberdade civil. Em Tenência dos
Reis e Magistrados, está clara a teoria do Estado Livre e o enfoque, apresentado por Skinner,
sobre o assunto. De acordo com Milton, o homem é livre naturalmente, ele nasceu para
“mandar e não obedecer” (Ibidem, p. 12), contudo, devido à maldade e violência dos homens
foi preciso realizar uma aliança entre o povo e rei ou magistrados, todavia, os chamaram desta
forma, não para serem seus mestres e senhores, mas sim, para serem representantes e
delegados.

No inicio, essa autoridade estava governando como o povo almejava, mas por
caminharem para o poder absoluto, eles se perverteram e passaram a ser injustos e parciais
com seus súditos. Ao descobrir tal perigo, os homens elaboraram as leis para limitar o poder
real, “de modo que sobre eles pudesse exercer o mando não mais do homem de cujo fracasso
eles haviam tido provas, mas a lei e a razão abstraídas, tanto quanto possível, dos erros e das
fraquezas pessoais” (MILTON, 2005, p. 14). Desta forma, as leis estavam acima da
autoridade, mas mesmo assim, os problemas continuavam, pois estes não as executavam, e
com isso, o povo decidiu realizar um pacto, no qual o rei tinha que obedecê-las para
receberem o seu respeito. As leis e o parlamento foram criados para assegurar o correto
exercício do poder.

Para Milton, o rei governa para o bem comum e não para si. Os títulos de
soberano e senhor natural são soberba (Ibidem, p. 15). Exaltá-los desta forma, é colocar o
súdito como um escravo do rei, e segundo Skinner, para os neo-romanos perecer em tal
condição é viver num governo tirano, e ser escravo ou servo significa ser dependente deste
Estado.

Charles I ao dissolver o parlamento tinha a intenção de sobrepor os seus desejos


sobre a vontade dos cidadãos, e desta forma, violou a liberdade dos Comuns, pois retirou a
independência do parlamento e o fez dependente dos almejos do rei. Concordamos com a
leitura de Skinner, referente à crença de Milton sobre a necessidade de uma autoridade estar
submissa às leis criadas e decretadas pelos cidadãos para a monarquia não se tornar
escravizadora.

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Assim, para Milton o Estado Livre se resume na autoridade do rei ou magistrado
que:

“provém originalmente e por natureza do povo- em primeiro lugar para o bem do


povo, e não para seu próprio bem-, então o povo poderá, tantas vezes quantas julgar
melhor, elegê-lo ou rejeitá-lo, mantê-lo ou depor mesmo sem ser tirano, unicamente
pela liberdade e pelo direito que homens nascidos livres têm de se governar como
melhor entenderem. Isso, que somente pode concordar com a manifesta razão,
também as Escrituras corroboram. Dt 17:14 Quando entrares na terra que o Senhor
teu deus te dá, e disseres: Porei sobre mim um rei, como todas as nações que me
cercam.”(Ibidem, p. 19)

Diante disto, Stone argumenta algo relevante para este trabalho “o resultado
lógico deste novo movimento dado ao velho mito chauvinista não foi a simples destruição da
pervertida Igreja anglicana, mas também a execução do rei como símbolo da atividade de
ímpia- e portanto, anti-inglesa” (STONE, 2000, p. 166)

Assim, podemos concluir que o pacto social apresentado por Milton, é um pacto
no qual, as leis, criadas pelo povo, estão acima do poder real. Sendo assim, a autoridade que
desobedecê-las, não é digno do poder e por isso pode até mesmo ser executado, como foi
Charles I. Desta forma, notamos que Milton apresenta um novo argumento possibilitado pelo
seu contexto, um período de insatisfação e desconfiança do poder real, principalmente, por
parte daqueles que Charles I limitou o poder, como a gentry e o Parlamento e os que já
estavam sendo reprimidos desde o reinado de Elisabeth I, os puritanos.

A BÍBLIA: FUNDAMENTAÇÂO DO PENSAMENTO DE MILTON.

“Todo rapaz ou rapariga, capaz de ler o inglês, convenceram-se que falavam com
Deus onipotente e que entendiam o que ele dizia.” (Stone, 2000, p.182).
Segundo Barros, os escritos de John Milton são muito mais uma linguagem a uma
doutrina (BARROS, 2013, p.128). Podemos acrescentar que é uma linguagem das práticas,
estratégias e conflitos do século XVII. As duas primeiras, nos remetem ao texto de Michel de
Certeau, que analisa as práticas associadas à teoria a fim de as articular para se aproximar das
formas de agir das classes populares. Skinner apresenta uma visão parecida, mas
diferentemente, tem acesso a textos escritos.

Desta forma esses conceitos são importantes para nossa análise, pois Milton escreveu
dois panfletos com o intuito de participar dos debates políticos existentes durante a Guerra
Civil e defender o direito político do povo de resistir e até mesmo destituir o governante que

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não cumpre com seu ofício, argumentando que os verdadeiros detentores do poder não são os
reis e magistrados, mas sim, o povo. Ele defende a partir das diversas passagens da Bíblia, a
detentora da verdade.

Milton, em Defesa do povo inglês, defende a execução de Charles I diante das


acusações de Salamásio2. E entre elas, temos um exemplo de argumentação baseada na Bíblia.

“(...) um rei, penso eu, que livremente possui o tipo de direito dos reis de que estás
falando é odioso tanto a si como a Deus: Sl 94, “pode acaso associar-se contigo o
trono de opressão, que forja o mal tendo por pretexto uma lei? Não faças portanto
Deus praticar esse medonho mal, afirmando ter Ele ensinado que a iniquidade e as
más ações dos reis são direitos do rei, pois Ele ensina que precisamente por essa
razão deve-se abominar a associação com reis iníquos, acostumados que estão a criar
todos os aborrecimentos e perturbações sob o pretexto do direito dos reis.(Hill, op.
cit, p. 117)
Milton baseia-se na Bíblia para argumentar que os direitos de Deus são os direitos
do povo. O autor cita a história de vários reis da Bíblia para mostrar que os tiranos não são
aprovados por Deus. Assim, almejando criticar os reis tiranos e defender a punição desses, ele
a elabora com uma fundamentação, e esta segundo o autor é feita por

“intermédio de autoridades e raciocínios, não apreendidos nos cantos entre cismas e


heresias, como nossos dúplices teólogos estão prontos a caluniar, mas extraído
dentre os mais seletos e mais autênticos letrados, autores não proibidos, não em sua
maioria os pagãos, mas os mosaicos, cristãos, ortodoxos, e que necessariamente são
mais convincentes a nossos adversários, os presbiteriais.” (MILTON, 1649, p.12)
A Bíblia como fonte da veracidade é uma das características no século XVII.
Entretanto, como afirma Hill na obra Bíblia Inglesa e as Revoluções do século XVII, devido a
tal característica, este período não pode ser considerado mais religioso do que o nosso (HILL,
2003, p.28). Não podemos esquecer que não existia a divisão entre política e religião, assim, a
“Sagrada Escritura” não era apenas um livro religioso, mas era o sustentáculo de todas as
esferas da cultura inglesa.

Resumindo, “A Bíblia foi fundamental para toda vida intelectual e moral dos
séculos XVI e XVII.” (HILL, 2003, p.41). No século XVII, não era apenas um livro para ser
lido ou ouvido, porém ele se fazia presente na vida dos atores deste contexto. Para Milton, na
Bíblia se encontrava toda a verdade. Diante de tamanha importância dada a este livro, Hill
afirma que para entender o contexto em que Milton viveu, é preciso recorrer às Sagradas
Escrituras. Num período de insatisfação e conflitos, esta, com sua centralidade, teve seus

2
Salmásio (1588-1653), classicista francês. Estudou filosofia em Paris (1604) e direito em Heidelberg (1606).
Este foi o autor da obra Defensio regia refutada por Milton a partir da Defesa do povo inglês.
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efeitos sobre a literatura, teoria política, nas relações sociais, entre outras áreas (HILL, 2003,
p.24).

“No turbilhão do século XVII, a Bíblia tornou-se uma espada que servia para
dividir, ou um arsenal do qual todos os partidos retiravam armas para satisfazer as suas
necessidades” (HILL, 2003, p.26). Hill afirma que a Bíblia foi usada tanto para medir como
para criticar as ações e instituições do período e se não fosse encontrada nada no livro sagrado
sobre essas, elas eram consideradas suspeitas. (Ibidem, p.62)

Concordamos com Hill, pois ao nos aprofundarmos neste contexto histórico,


notamos que a Bíblia era primordial em todos os aspectos da vida e também nas categorias
sociais. Todos recorriam a Bíblia como um manual para todas as esferas. Com a possibilidade
de interpretá-la individualmente, foi lida e usada para defender ou criticar de acordo com os
interesses de quem estava lendo. Exemplo disto é o próprio Milton, que a utilizou para
defender a atitude do povo inglês contra o rei.

Milton publicando Tenência dos reis e magistrados, expõe o seu ataque aos
presbiterianos que ajudaram a derrubar e executar Charles I e que depois, negaram a
participação e tentaram negociar a restauração da monarquia. Ao lermos toda a obra,
acreditamos que este autor tinha na consciência que executar o rei era uma atitude aprovada
por Deus, até porque o tiranicídio estava presente na tradição pagã clássica e no Antigo
Testamento.

“Portanto, no capítulo de São Paulo nos diz que os magistrados aos quais se refere,
que são um terror para o mau, não para os bons, são os que não empunham a espada
em vão; ao contrário, punem os ofensores e estimulam os bons. Se unicamente estes
são mencionados aqui como os poderes a obedecer, e apenas a eles foi exigida nossa
submissão, certamente então os poderes que fazem o oposto não são os poderes
ordenados de Deus e por consequência não nos foi imposta nenhuma obrigação de
obedecer e não lhe resistir.” (MILTON, 2005, p. 22)
Ou seja, assim como Hill afirma, ele como outros intelectuais da época não usava
a Bíblia como um disfarce para esconder os verdadeiros motivos, mas que a interpretação
dela, para essa ação, foi usada como ponto de referência e sendo assim, estava “comprovado”
que o rei tirano era um poder vindo do diabo e não de Deus.

Podemos notar que Milton apresenta essa “comprovação” a partir da Bíblia, o


manual para a vida, e a aproxima ao vocabulário civil, para então, mostrar que o verdadeiro
cristão concilia a virtude de Jesus com os ideais humanistas. Desta forma, sabendo-se que

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lemos apenas dois panfletos de Milton e um pequeno conjunto de comentadores, refletimos e
apresentamos a hipótese de que o autor expõe uma ideia que funde o vocabulário religioso e
civil para defender a república implantada com a execução de Charles I.

Observamos isso, em Tenência dos reis e magistrados, quando o autor argumenta


que o povo é livre e por isso tem o direito de estabelecer a forma de governo que considera
mais adequada,

“Dt 17:14. Quando entrares na terra que o Senhor teu Deus te dá, e disseres: Porei
sobre mim um rei, como todas as outras nações que me cercam. Essas palavras
confirmam-nos que o direito de escolher, sim, de mudar o governo, reside por
concessão do próprio Deus no povo” (Ibidem, p.21)
Além disso, em Defesa do povo inglês, Milton afirma:

“Assim, levando em conta a condição humana, Deus decidiu que a forma da


república é mais perfeita que a da monarquia e mais benéfica para seu próprio povo,
pois ele mesmo instituiu essa forma de governo. Apenas mais tarde Ele aceitou a
monarquia, atendendo a pedido e não espontaneamente. ”(Ibidem, p.108).
Ambos os trechos nos mostram que Milton estava interessado em defender o novo
regime fundamentando-o na Bíblia, considerada a fonte da verdade no século XVII. Uma
nova forma de governo que, segundo o autor, respeita a liberdade política do povo garantida
pelas leis elaboradas pelos mesmos.

No contexto de insatisfação com o rei e o importante papel da Bíblia, a Revolução


Inglesa, foi defendida em termos religiosos, contudo, como diz Hill, não foi um ato religioso,
esta aconteceu num mundo onde religião e política não se separavam e a Bíblia era central
para todos os aspectos da vida. “Naquela época era a fonte de quase todas as ideias; ela
fornecia o idioma nos quais homens e mulheres conduziam todas as discussões.” (HILL, op.
cit., p.55).

Mas o que possibilitou aos homens que não faziam parte da instituição Igreja, no
século XVII, utilizar o livro sagrado para criticar o poder do rei? A Reforma Protestante
iniciada no século XVI. Por meio de Lutero e Calvino, foram apresentadas novas ideias,
especialmente com relação ao governo. O primeiro, de acordo com Barros (2013), argumenta
que o cristão deve rejeitar o governo de um tirano, contudo, esta resistência tem que ser
passiva. O segundo, também apresenta a mesma ideia de Lutero e diz que, se toda a
autoridade vem de Deus, as suas ações devem estar de acordo com a vontade divina. Milton é

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influenciado por ambos, no entanto, a sua teoria modifica-se no aspecto da resistência, pois
para ele se for preciso, é correto até mesmo executar.

Podemos ver essa influência nos dois panfletos que estamos analisando, entre os
trechos, destacamos:

“(...) no capítulo supracitado São Paulo nos diz que os magistrados aos quais se
refere, que são um terror para os maus, não para os bons, são os que não empunham
a espada em vão; ao contrário, punem os ofensores e estimulam os bons. Se
unicamente estes são mencionados aqui como os poderes a obedecer, e apenas a eles
for exigida nossa submissão, certamente então os poderosos que fazem o oposto não
são os poderes ordenados de Deus e por conseguinte não nos foi imposta nenhuma
obrigação de obedecer e não de lhes resistir.” (MILTON, op.cit, p.22)

“Embora Cristo negasse que fosse direito dos reis impor tributos excessivamente
onerosos sobre os homens livres, sem dúvida ele negava muito mais claramente que
fosse direito dos reis praticar pilhagens, destruição, assassinatos e tortura de seus
próprios cidadãos. Como ele parece ter discutido o direito do rei noutro lugar
também dessa maneira, certas pessoas começaram a suspeitar que ele não teria
considerado a licença dos tiranos como direito dos reis. ” (Ibidem, p. 144)
A Reforma também possibilitou, como afirma Hill, uma revolução cultural. Se
para os católicos a imagem era suficiente para os iletrados, para os protestantes a leitura era
muito importante, o que gerou interesse pela educação popular, Hill até nos apresenta uma
interessante fala de Joseph Hall, que define esta revolução, “naquela época podiam apenas
rastejar (antes da Reforma) agora podem voar” (HILL, 2003, p.35). Todavia, não podemos
deixar de destacar que esta importância dada à leitura e ao ensino foram herdadas do
Humanismo do século XV. Setores médios e baixos estavam sendo alfabetizados,
principalmente por meio da Bíblia traduzida para a língua inglesa. Como afirmam Stone e
Hill, o acesso direto e oportunidade de interpretar este livro aumentou e até mesmo deu a
sensação de confiança que lhes faltavam para reivindicar uma participação mais ativa na
sociedade. O último autor, no texto Origens Intelectuais da Revolução Inglesa (HILL,1992),
acrescenta que a partir da alfabetização as pessoas começaram a contestar ideias tradicionais,
assim, tudo sendo posto em dúvida e, desta forma, vemos o cenário pré-revolucionário e um
momento próprio para novas ideias e tendências do pensamento protestante e científico.

Novas ideias que podemos ver os reflexos na obra de Milton. O governo, que até
o século XVII estava apoiado na teoria divina, não tinha sido criticado com tanta força ao
ponto de alcançar uma revolução. Contudo, a centralidade da Bíblia conciliada à possibilidade
de interpretá-la individualmente e a instabilidade política, trouxe uma explosão educacional

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que para Stone, “assume sempre a condição de causa necessária- ainda que não, como é
óbvio, suficiente- do curso peculiar, e por fim, radical, que a revolução tomou” (STONE,
2000, p. 176).

Assim, Stone considera que a Bíblia revolucionou a Inglaterra. Pautando-nos na


perspectiva de Rosanvallon (2010), expressa na introdução deste artigo e que se aproxima das
análises de Hill (1992, 2003) e Skinner (1999), aqui utilizadas, acreditamos que essa ênfase,
dada apenas ao livro Sagrado, deixa de lado, a interdependência deste com outros aspectos
que também foram importantes para despontar a Revolução. Desta forma, é importante
ressaltar, que estamos analisando a questão da Bíblia, considerando-a como um dos fatores
para este processo histórico.

O controle sobre as interpretações não foi possível numa sociedade instável. A


impressa publicou entre a Reforma e 1640 mais de um milhão de exemplares (HILL, 2003,
p.39). E estas eram especialmente as Bíblias de Genebra que foram impressas em edições
mais baratas, tornando-se a Bíblia do povo.

Segundo Hill (2003), ao mesmo tempo em que a impressa tornou possível a


expansão da educação, ofereceu novas oportunidades de manipulação, controle de opinião
pública e circulação de diferentes interpretações. Diante desta educação impressa, não
podemos deixar de destacar que o aprendizado falado ainda era muito importante e também
utilizado pelos puritanos para difundir novas ideias.

Stone (2000) argumenta que a alfabetização e o puritanismo andavam de mãos


dadas. O último, para o autor nada mais é do que a consciência da necessidade de
independência de cada um baseado numa leitura sábia da Bíblia. Ele também argumenta que o
livro sagrado e os sermões foram importantes para expor as ideias, além disso, o ensino nas
universidades teve o seu papel fundamental.

Para o autor, os puritanos forneceram à Revolução um elemento importante que é


a sensação de que a oposição ao rei era justa diante de Deus. Além da ideia de que era correto
desafiar “o rei da Inglaterra quando se estava obedecendo ao Rei dos Reis” (HILL, op. cit, p.
13). Os puritanos tentavam responder a perguntas como: “O que acontece se os eleitos de
Deus não se identificam com os líderes políticos? Existem limites para a obediência que a
pessoa devota a um magistrado pecador?” (STONE, 2000, p 181).

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Podemos ver no aspecto apresentado acima, uma influência puritana nos escritos
de Milton. O autor na obra analisada, responde essas questões por meio das Sagradas
Escrituras, tentando mostrar aos presbiterianos que a atitude contra o rei é correta diante da
vontade divina.

A Bíblia de Genebra, como afirma Hill, foi praticamente um manual


revolucionário. (HILL,1992, p. 8). Os ingleses a utilizaram buscando orientação para solução
dos conflitos. Neste período de revoluções políticas temos o que Hill denomina de
“Revolução bíblica”, enfatizando que a linguagem bíblica foi usada para expor uma oposição
política e a revolução política marcou a aceitação deste livro como a fonte da verdade (HILL,
op. cit, p. 60).

Sobre a linguagem bíblica que foi utilizada para se opor ao governo e foi
transmitida até aos mais pobres e trouxe perigo ao poder do rei, Milton afirma que
“Certamente não é sem razão que os tiranos, por uma espécie de instinto natural, a um só
tempo odeiam e temem apenas a verdadeira Igreja, e os Santos de Deus, que são os mais
perigosos inimigos e subversivos da monarquia, embora de fato da tirania.” (MILTON, 2005,
p. 29).

O que entendemos por “verdadeira igreja” é a calvinista que possibilitou a educação


popular e pregou a interpretação individual da Bíblia, além disso, “os santos de Deus”, são os
opositores e leitores do livro que contém a verdade.

Vemos assim, que Milton publicando Tenência dos reis e magistrados duas
semanas após a execução de Charles I, expõe uma concepção arraigada nos anos da
Revolução Inglesa, ou seja, no tempo em que ele viveu. Um tempo no qual, a leitura da Bíblia
era possível e tinha a resposta para todos os problemas.

CONCLUSÃO

O artigo de Christian Lynch (LYNCH apud ROSANVALLON, 2010), A


democracia como problema, afirma que a história política do século XIX focava apenas na
cronologia e se limitava a uma narrativa que se preocupava somente com os humores dos
dirigentes políticos, contudo, a partir do século XX esta foi resgatada com uma perspectiva
renovada, na qual o conceito do “político” faz parte.

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A nossa análise se alicerçou nesta visão. Por isso, é relevante destacar que os
autores que utilizamos para redigirmos as nossas hipóteses, não se basearam no conceito do
“político”, mas foram importantes para alcançarmos o objetivo desejado. Stone apresenta um
conjunto excessivo de causas políticas e culturais, na qual valoriza consideravelmente o papel
da Bíblia e menospreza outros aspectos. Distintamente, Skinner e Hill, levam em questão
muitos fatores e minimizam a ideia de determinação de uma instância sobre a outra. E neste
sentido, ambos se aproximam da perspectiva de Rosanvallon.

Desta forma, baseando-nos na perspectiva de Rosanvallon (2010), objetivamos


apresentar o contexto em que Milton viveu sendo ator e autor. E diante disto, percebemos o
quanto as ideias precisam do contexto e das circunstâncias para serem criadas e concretizas. O
pensamento de Milton reflete a instabilidade política, o lugar central que a Bíblia tinha como
fonte da verdade no século XVII, e entre outros aspectos que não abrangemos neste trabalho.
Diante dos problemas, Milton respondeu fundamentado nas Escrituras, argumentando que no
contrato entre o povo e a autoridade real, o poder soberano está nas mãos do povo,
representado pelos Comuns. E por isso, o rei que desobedecer às leis e limitar ou extinguir os
representantes do povo, este é um rei tirano, sendo legítimo executá-lo.

A partir da análise deste discurso, novas questões foram surgindo, entre elas: Seria
possível restaurar o Paraíso, responsabilizando o Homem pela sociedade através da
participação política? O quanto ler a Bíblia permite questionar se um comportamento real é ou
não condizente com o divino? Assim, este trabalho não cessa por aqui, pois temos muito mais
a estudar sobre o tema.

99 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 79-100, jul.-dez. 2014.


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1529-1642. São Paulo: EDUSC, 2000. (Coleção História). p.99-274.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

100 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 79-100, jul.-dez. 2014.


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A CULTURA POLÍTICA DE JOÃO BRÍGIDO


DOS SANTOS:
POLÍTICA, MAÇONARIA E IMPRENSA (1859 – 1919)

Renato Rios
Mestre em História e Culturas pelo Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em
História e Culturas (MAHIS/UECE), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) e orientado pela Profª Drª Lucili Grangeiro Cortez.
Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em História e Culturas (DÍCTIS/UECE).
Professor Efetivo dos Cursos de História, Pedagogia e Serviço Social das Faculdades INTA,
Sobral – CE.

101 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 101-124, jul.-dez. 2014.


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A CULTURA POLÍTICA DE JOÃO BRÍGIDO DOS SANTOS:
POLÍTICA, MAÇONARIA E IMPRENSA (1859 – 1919)

THE POLITICAL CULTURE OF JOÃO BRÍGIDO DOS SANTOS:


POLICY, FREEMASONRY AND PRESS (1859 – 1919)

Renato Rios

RESUMO ABSTRACT

Nesse trabalho, buscamos analisar a construção de In this paper we analyze the construction of a
uma Cultura Política em João Brígido a partir de Political Culture in João Brígido starting from some
alguns locais de pertencimento em que este belonging places where this intellectual was active
intelectual se mostrava atuante, durante a segunda during the second half of the 19th and the early
metade do séc. XIX e as primeiras décadas do 20th century. For this, we point three quick
século XX. Para tanto, pontuamos rapidamente três appropriate moments of João Brígido acting: the
momentos oportunos de atuação de João Brígido: o political environment and the broader perspective
meio político e o caráter mais amplo que esse that this concept may raise; Freemasonry as a space
conceito pode suscitar; a maçonaria, como espaço for discussion of knowledge production and fight
de discussão da produção de conhecimento e de luta against the enemies of this intellectual, mainly
contra os inimigos deste intelectual, principalmente, linked to the Catholic Church; and the press, the
ligados à Igreja Católica; e a imprensa, principal main performance space and articulation of
espaço de atuação e articulação de Brígido. Brígido.

PALAVRAS-CHAVE: João Brígido; Cultura KEYWORDS: João Brígido; Politcal Culture;


Política; Imprensa. Press

INTRODUÇÃO

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“Os textos [...] quando são interrogados [...],
transmitem uma informação sobre seu modo de
usar”.
Pierre Bourdieu

Chamamos atenção inicialmente ao ano de 1887, quando uma salva de palmas


repleta de furor ecoava após a conclusão do discurso proferido pelo Comendador Joaquim
Norberto de Souza Silva, perante membros da intelectualidade brasileira, no Paço Imperial na
cidade do Rio de Janeiro. O então presidente declarava abertas as comemorações dos
cinquenta anos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB. Dentre vários eventos,
uma dessas reuniões comemorativas, ocorrera em dezembro do mesmo ano, tendo como
orador Affonso d’Escragnolle Taunay, conhecido como Visconde de Taunay, que discursou
inclusive perante o Imperador, em sessão magna. (Revista do IHGB, 1887).
Entre textos publicados nas comemorações dessa Instituição, um deles refere-se à
Província do Ceará e foi escrito por João Brígido dos Santos. Esse texto faz um ligeiro
apanhado do que seria a geografia da região, passando por alguns aspectos de seu
povoamento, tendo a seca como uma das personagens, e abarcando, além de guerras civis
entre as famílias que se formavam, do início do povoamento da região no século XVII pelos
portugueses até o alistamento para compor o contingente que partiu para lutar na Guerra do
Paraguai, já na segunda metade do século XIX (Suplemento em homenagem ao
quinquagenário do IHGB, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, TOMO LI,
1888, p. 65-71). Publicado como “Povoamento do Ceará”, esse texto marca um dos principais
momentos de Brígido dentro do IHGB e é a partir da percepção desse produtor de textos sobre
o passado, desse narrador transitório entre duas perspectivas (a cientificidade da escrita e a
construção de uma memória) que parecem ter fronteiras tênues em sua produção desenvolvida
no decorrer da segunda metade do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX que
nos debruçamos, tentando entender os entremeios dessa narrativa e suas relações com a vida
pessoal e política desse autor.
Nossa análise perpassa momentos de tensão e marcos na produção desse
intelectual, justificada por dois motivos que se mostraram interessantes: primeiramente, o
século XIX é marcado pela efervescência de um aparato teórico-metodológico, amplamente
utilizado por diversas disciplinas para definirem seus limites e áreas de atuação enquanto

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ciência. Essa discussão amplamente desenvolvida por uma historiografia das ciências1
também tem a História como um exemplo, e se no Brasil temos como marco a criação do
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro em 1838, durante a segunda metade do século XIX
houve um alargamento dessas perspectivas historiográficas, inclusive com o contato com
outras disciplinas que vinham ganhando força, como a Sociologia. Mesmo que as discussões
sobre os modos de se escrever a História do Brasil (e com isso, as das províncias) estivessem
muitas vezes relacionadas a como não escrever essa história dentro dos espaços de discussão
(CÉZAR, 2004), o século XIX – mais precisamente, a sua segunda metade – mostra-se um
campo fecundo para a discussão aqui proposta, principalmente após a década de 1870, quando
acontece a valorização da história local como elemento compositor da nacional. Contudo,
entendemos que pensar o passado é também formar um campo histórico entre esses
intelectuais, por mais que muitas vezes esse “projeto” tenha sido muito mais marcante e
verossímil dentro do campo literário.
Ainda assim, intelectuais responsáveis por narrativas históricas formulavam as
primeiras representações sobre o passado do Ceará na segunda metade do século XIX e João
Brígido se inseria nessa perspectiva, mesmo que com uma postura por vezes diferente da de
seus pares. Postura essa que aponta como o segundo motivo da escolha desse recorte. A
respeito das duas primeiras décadas do século XX, utilizá-las-emos por nos parecer um
momento de maturidade de João Brígido, nas suas posições políticas e escolhas editoriais,
mas sem se desatrelar de seu estilo combativo. Afinal, João Brígido é um sujeito do século
XIX. A partir desses dois momentos, utilizamos marcos de escrita de João Brígido para situá-
lo dentre seus pares, observando a trajetória de suas narrativas históricas, nosso principal
objeto de análise, pois o período que abarca a segunda metade dos oitocentos e o início dos
novecentos é marcado pela ascensão de campos de disputa e discussão dos intelectuais nos
principais centros econômicos do Brasil.
Tendo em vista a vasta produção desse autor e na busca de delimitar os recortes
cronológicos, espaciais e temáticos de nossa pesquisa, passamos a fazer um diálogo com a

1
Historiadores vêm discutindo de maneira aprofundada os avanços e impactos sociais das descobertas científicas
e desenvolvimentos de suas técnicas desde a Idade Média, principalmente passando pela Renascença e chegando
à contemporaneidade. O século XIX é considerado por muitos como o “século das ciências”, não só pela
possibilidade de avanços do período, mas também pela aura otimista que se perpetuava na Europa no período,
mesmo com algumas guerras localizadas. É no século XX, com a eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914,
que esse ar otimista vai sendo substituído por uma perspectiva mais intimista e individual, principalmente porque
pela primeira vez, as ciências estavam sendo utilizadas como meios de destruição, perdendo parte de uma
essência progressista.
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produção historiográfica que trata do ofício do historiador, na construção de seus textos e da
escrita dessa história.
Alguns textos foram surgindo na tentativa de se definir esses recortes, mas
pensados menos como modelos fechados em sua acepção do que como ponto de partida para
um diálogo que perpassa a crítica a uma produção historiográfica de João Brígido. Eles nos
apontavam para um horizonte de discussão que ajudou a pensar o que era e por quais
caminhos se produzia narrativas históricas no século XIX, em meio a uma série de elementos
que já fazem parte dessa sociedade letrada que se dedicava a chegar a uma escrita que
trouxesse uma verossimilhança da realidade para as linhas no papel.
Percebendo que o contexto no qual foi desenvolvida essa escrita entra na
perspectiva de notar como se formata essa produção em si, dentro das escolhas do autor de
como fazer esses textos chegarem aos seus leitores e os formatos dos textos e dos livros,
iniciamos aqui esse diálogo trabalhando a questão do intelectual escritor no século XIX
trazida por Stephen Bann em seu As invenções da História. Logo na introdução, o autor
chama atenção para as conexões históricas entre a disciplina História, que havia se
desassociado da filosofia, o museu histórico, as pinturas e o romance. Chamo atenção para
este último: o romance (a ficção) acabou sendo algo discutido em paralelo com essa escrita da
história, por andarem de mãos dadas. Para rapidamente trazer Peter gay e seu O Estilo na
História ao diálogo, lembramos que esse estilo, não é um mero ornamento ou uma roupagem
do pensamento, como já trabalhavam os românticos, mas sim parte da sua essência do objeto.
O historiador é um escritor, um narrador. Ele pode até se posicionar diferentemente de um
autor de ficção perante aos “fatos” e aos documentos, mas ao escrever, o historiador revela
como vê o seu mundo histórico, já que “toda percepção é uma interpretação; a mais simples
observação (como disse Goethe há muito tempo atrás) já é uma teoria. Os fatos nunca são neutros;
vêm impregnados por juízos de valor” (GAY, 1990, p. 176).
Atentando para a relação entre percepção-interpretação, retomemos Bann, em seu
artigo Analisando o Discurso da História, presente no livro já citado, no qual o autor trabalha
com interpretações da história, relacionando-as diretamente ao formato da escrita da história
no final do século XVIII e no século XIX. Enquanto a História, como disciplina estava ligada
a Filosofia, a sua escrita estava fincada na Retórica. No mesmo momento que a história
adotava seu paradigma “científico”, segundo Bann, ela “aparelhou-se com novas ferramentas de

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analise: no próprio estágio que a retórica deixou de ter um domínio soberano sobre os vários
modos de composição literária” (BANN, 1994, p. 55).
Assim, utilizando-se de um processo desenvolvido por Lionel Gossman,
acadêmico e crítico literário, para trabalhar esse momento, Bann analisou e caracterizou a
produção da História quando ainda dominada pela retórica, posteriormente, os momentos que
se seguiram em busca da “história-verdade” e, finalmente, a ressignificação de valores em
momentos posteriores.
Dialogando com Gossman, Stephen Bann articulou em seu texto os três estágios
propostos pelo crítico literário, juntamente com o posicionamento de alguns historiadores em
se tratando de suas respectivas escritas. De modo sucinto, o que se desenvolve é que até do
final do século XVIII, a construção de textos utilizando-se da retórica dominava toda
produção literária, e nela se inclui a escrita da história. Assim essa produção girava em torno
da argumentação e de um estilo que cativasse o leitor, envolvendo-o nas tramas que se
desenrolavam no decorrer dos enredos e discursos. Bann demonstra que, quando algum texto
aparecia fora desse formato proposto e trazia em sua estrutura notas de referências, seus
autores eram criticados, sob a acusação2 de não serem competentes o bastante para inserir em
seu corpo de texto, e com isso em seu enredo, as informações trazidas em anexo.
Em oposição a isso, na década de 20 do século XIX, Leopold von Ranke e
Augustin Thierry trabalhariam sob um novo auspício: a história como disciplina, no qual a
questão da verdade veio à tona e foi justificada pela presença de documentos que
corroboravam com as posições levantadas pelo seu autor. A perspectiva de se exaurir as
fontes, retirando delas todas as informações da verdade buscada, juntamente com a
possibilidade da recriação da realidade de acordo com a descrição no papel, mostrando a
verdade dos fatos e a categorização dessa produção ligada a documentos “inéditos” que
confrontam posições anteriormente levantadas iria caracterizar o surgimento dos estudos
históricos como perspectiva de trabalho da então nova disciplina acadêmica. A escrita nesse
ponto tornou-se um indício e também uma prova da realidade, no qual a narrativa assume uma
acepção do real. Assim ter-se-ia início o segundo estágio de Gossman, desenvolvido pro
Bann, em seu estudo.

2
Aqui entra uma referência a outro artigo de Bann, presente no livro trabalhado, chamado A história e suas
irmãs: direito, medicina e teologia, no qual o autor vai discutir a relação entre essas quatro disciplinas e como há
um relevante contato entre elas e a história, gerando desse diálogo a formatação da história como disciplina
acadêmica e a apropriação de elementos da história por estas disciplinas.
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Posteriormente, após meados do século XX, o que se tem é uma retomada da
retórica, trazendo-a de novo para dentro da história e ressignificando sua função dentro da
disciplina, na qual para se compreender a historiografia, utilizou-se daquela sob uma nova
perspectiva, a partir do diálogo entre a linguística e a semiologia, na compreensão de um
sentido ou de um estilo, assim como trabalhou Hayden White (WHITE, 1992).
O que é relevante para nossa pesquisa, em se tratando de um diálogo com Stephen
Bann e alguns de seus artigos em As invenções da história, foi perceber como se posicionou a
produção historiográfica de João Brígido dentro de sua relação com a disciplina histórica e em
que momento dessa passagem entre a retórica dominante e a ausência dela configura-se essa
produção, pois há alguns elementos dentro dessa construção do discurso das primeiras linhas
sobre a história do Ceará que apontariam para a formatação da retórica como mediadora dessa
produção. Não é a toa que alguns intelectuais apontam para a produção de João Brígido
alegando ser ele um cronista e não um historiador, como comentamos. O debate inicia-se
aqui, com essa discussão com Bann e as relações entre a retórica, a história-ciência e o
posicionamento de João Brígido em seus textos historiográficos.
Essa perspectiva do modo como se caracterizaria essa produção, parte da leitura
da obra de Peter Gay, O estilo na história. Na definição do que seria esse estilo, é encontrada
logo na introdução: “O estilo é um centauro, reunindo o que a natureza como que decretou
que se mantivesse apartado. É a forma e é o conteúdo, entrelaçados para formar a tessitura de
toda arte e todo ofício – e também a história” (GAY, 1990, p. 4).
Muito do que será discutido por Peter Gay servirá para adensar mais ainda o
debate entre o posicionamento da história entre a arte e a ciência, entre o estilista e o cientista.
Já que o autor coloca o estilista/historiador numa posição de escritor profissional e de leitor
profissional, a postura deste produtor de textos entra na discussão acima citada, mas como
leitor, ele deve prezar por uma qualidade quase que literária em sua interpretação perante os
fatos e assim o estilo, segundo Gay, podendo-se assim “constituir um objeto de satisfação, um
veículo de conhecimento ou um instrumento de diagnóstico” (1990, p, 17-18).
O que se torna necessário de enfatizar é que o estilo fornece informações não só
sobre o estilista, mas sobre a sua cultura e o seu campo histórico (como Hayden White
desenvolveu). Chegamos assim ao mundo do oficio do historiador, no caso, o de João
Brígido, através do estudo do que seria o estilo dele, partindo dessa relação na qual o
historiador ao observar e refletir, ao mesmo tempo, age, numa tentativa de ressignificação do

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mundo ao redor e dentro de si, influindo nesse mundo. Ao se perceber, por exemplo, os
recortes cronológicos e espaciais que João Brígido fez em suas pesquisas, eles têm que ser
compreendidos muito além de uma construção. É quase uma descoberta, pois a ordem e o
período estão fincados e mortos no passado e parte da compreensão dos caminhos de uma
pesquisa tendo a historiografia como objeto, se dá no momento que o historiador em questão
encontrou seus objetos e seus recortes.
A partir do diálogo com Hayden White, os caminhos que decidimos seguir foram
na perspectiva de compreensão de como se procede a escrita da história de João Brígido e
tentar entender também seu posicionamento quanto à escrita, já que além de vê-lo como
cronista ou historiador, é importante também perceber que essas duas posições não são
antagônicas. Na verdade, existe uma sincronia entre as duas perspectivas, porque a escrita da
história no Brasil e no Ceará, quando ainda estavam em formação, buscavam modelos ideias
de como se deveria ser escritas. Dentre os modos de escrever, a crônica é uma das formas de
se escrever história mais utilizadas por João Brígido. Isso o posicionaria entre um literato e
um historiador, já que aqueles momentos colocados por Bann, a respeito da mudança do
modo de escrever história não são tão apartadas: a retórica passeia com a história documental.
Critica-se a ausência de fontes, mas mesmo assim a produção tem seu respeito e seu lugar
entre os pares.
Essa falta de coesão talvez se torne mais clara, se observarmos a escrita de João
Brígido, pelo fato de que os textos que se encontram na obra Ceará – Homens e Fatos, por
exemplo, serem de datações diferentes, quando se consegue distinguir a sua origem, por
tratarem de temas diferentes e formatos diferentes dentro da mesma obra.
Este contato mais denso com as perspectivas levantadas que embasasse de forma
mais enfática a questão da escrita do que seria a “obra histórica”, ajudam a perceber certos
posicionamentos nessa escrita – como a escolha por um determinado formato para escrever
certos textos – em função da posição partilhada por João Brígido como participante de um
universo de discurso característico dentro do qual eram possíveis diferentes formas de se
produzir uma reflexão histórica (WHITE, 1992, p.20).
Assim, foi na procura pelos indícios e pelas evidências empíricas desse sujeito,
registradas na construção de suas experiências que chegaram a nós, fragmentadas, que
analisamos como se deu esse processo de concepção de uma escrita da história do Ceará.
Entre esses indícios, o primeiro texto de caráter historiográfico publicado por João Brígido, no

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Jornal O Araripe, em fevereiro de 1859 e o último livro publicado por ele em vida, em 1919,
fizeram-nos compreender o período pelo qual essa produção se desenvolve. Esse mesmo texto
publicado em 1859, chamado de Apontamentos para a História do Cariri, perpassou vários
momentos de sua produção, chegando ao livro de 1919, Ceará – Homens e Fatos, e se tornou
fundamental de um modo geral, por mostrar um caminho, um sentido que a produção de
Brígido seguiu, mas outras temáticas também mereceram atenção como as questões
etimológicas, etnográficas, geográficas (estruturais e espaciais) e cronológicas, que
compuseram a estruturação desse projeto historiográfico.
Contudo, observemos antes o sujeito...

JOÃO BRÍGIDO E SEU TEMPO

A discussão aqui desenvolvida parte do conceito de “Cultura Política”,


desenvolvido por Serge Berstein, presente no livro de Jean-François Sirinelli e Jean-Pierre
Rioux, no qual é entendida como “uma espécie de código e conjunto de referentes,
formalizados no seio de um partido ou, mais largamente, difundidos no seio de uma família
ou de uma tradição políticas” (BERSTEIN in RIOUX; SIRINELLI, 1998, p. 350).
Este conceito surgiu de uma releitura das Ciências Políticas e do diálogo entre
antropólogos e historiadores da década de 1990, quando se estabeleceu uma ramificação no
campo histórico denominado de História Cultural da Política. A partir dos diálogos desse
período, estabeleceu-se que a análise da “Cultura Política” de um determinado período e lugar
estaria relacionada a compreensão de um domínio de códigos culturais e o uso e apropriação
que determinados grupos fazem deles, fazendo-os circular. Esse conceito pode, ainda, ser
analisado como a expressão do sistema político de uma determinada sociedade nas
percepções, sentimentos e avaliações da sua população. (BERSTEIN in RIOUX; SIRINELLI,
1998)
Um dos principais desafios de nosso trabalho foi adentrar as discussões,
construções de discursos e interações entre vários intelectuais cearenses durante o século XIX
e de, alguma forma, tentar evidenciar como esses sujeitos viam, sentiam e viviam o mundo
em que estavam inseridos, como se dava assim a “cultura política” destes. No decorrer deste
percurso, saltou-nos aos olhos um sujeito que nos parecia exemplificar as práticas e o
pensamento destes intelectuais do século XIX, porém, João Brígido tinha uma trajetória

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relativamente diferenciada de seus pares que nos motivou a esmiuçar sua longínqua obra, para
que chegássemos ao sentido que era dado ao mundo por parte desses intelectuais.
Para tanto, buscamos compreender como se dava o universo de discussão dentre
esses intelectuais das letras e das escritas da História, já que uma vez que nos ficasse claro o
sentido que era dado ao mundo por parte desses sujeitos, os modos como se relacionavam
entre si viriam à tona. Assim, elogio, homenagem, crítica, ofensa se entrelaçaram nessa
representação do real que tentamos construir para evidenciar afinal, quem era esse sujeito,
igual e diferenciado, que perpassava espaços de produção e que publicou textos de meados
dos oitocentos até a segunda década do século ulterior. Buscamos entender o sentido que esse
sujeito dava ao mundo, o que ele entendia como mundo, mas para isso, precisamos deixar
claro o que João Brígido pensava de si mesmo, como se via dentre seus pares e como
construiu sua própria representação.
Sandra Pesavento entende representações como construções sociais da realidade
realizada através de um mundo paralelo de sinais, como apontaram Marcel Mauss e Émile
Durkheim no começo do século XX. A partir de imagens, discursos e práticas que, de algum
modo, servem-nos como elementos, se não definidores, qualificadores do mundo, essas
representações orientam nossa percepção sobre a realidade (a nossa própria ou a pretérita), daí
as discutirmos também como uma presentificação daquilo que não mais faz parte, do que se
tornou ausente (PESAVENTO, 2008). A partir dessa discussão, analisamos aqui parte do
cotidiano em que João Brígido estava inserido, como também, preocupamo-nos em
compreender as representações desenvolvidas por ele em seus textos sobre o passado nas
narrativas históricas e em outras, principalmente nas autobiográficas.
Nesses escritos sobre o passado, constituidores de representações como discursos,
João Brígido construiu um imaginário sobre o período monárquico brasileiro na então
Província do Ceará3. Esse sistema de ideias sobre o passado, assim como as representações
dele, alicerçaram-se na contemporaneidade, para que pudessem ganhar forma através de um
texto escrito quando o “velho Brígido” completava 70 anos em dezembro de 1899, publicado
inicialmente no periódico A República, mas inserido às pressas no livro Ceará – Lado Cômico

3
Tratamos como “província”, pois apesar terem sido publicados no fim da primeira década do regime
republicano, estes textos autobiográficos tratam de quaisquer momentos pós transição de regimes e tem como os
marcos iniciais o nascimento de João Brígido, em 1829, englobando boa parte do período Imperial brasileiro.
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no mesmo ano. No ano seguinte foi publicado um segundo texto autobiográfico no mesmo
periódico e serão esses dois textos dos quais partiremos com nossa análise.
Se nós devemos apresentar o sujeito que produziu textos que nos servem de fonte
para nossa pesquisa, mais prudente seria dar voz a ele e deixá-lo apresentar-se:
Hoje, completo 70 annos, e antes que alguém fale disto, falo eu que tenho mais
direito. Se é feio ter 70 annos, mais feio será negá-lo.
Nasci na Vila de S. João da Barra, a 3 de dezembro de 1829, dia de S. Francisco
Xavier, disse minha santa mãe, e notei no meu primeiro aidememoire, quando fazia
as primeiras letras. Nasci, portanto, capixaba. Logo após uma lei desanexou aquela
vila, reunindo-a à Província do Rio de Janeiro. Não protestei, porque mamava.
(BRÍGIDO, 1899, p. V)

Permeado pelo tom pilhérico, esse texto autobiográfico (juntamente com outro,
publicado um ano depois), aponta para alguns elementos que se mostram essenciais para a
compreensão do imaginário construído por João Brígido sobre os sertões do Ceará como
espaço habitado por ele desde os dois anos de idade, evidenciando o sentido que dava ao
mundo onde cresceu. Esses textos serão importantes nesse sentido já que recuperam imagens
do vivido, evocando uma memória que ele restaura em detrimento a outras para compor sua
autobiografia. O jogo de lembrar e esquecer perpassou seus sentidos e encontrou, no centro da
construção social que eram suas representações, as sensibilidades que o ajudaram a selecionar
e construir suas memórias.
Entendemos aqui sensibilidades como
[...] uma forma de apreensão e de conhecimento do mundo para além do
conhecimento científico, que não brota do racional ou das construções mentais mais
elaboradas. [...]
Mas, ao mesmo tempo, as sensibilidades correspondem também às manifestações do
pensamento ou do espírito, pela qual aquela relação originária é organizada
interpretada e traduzida em termos estáveis e contínuos. Esta seria a faceta mediante
a qual as sensações se transformam em sentimentos, afetos, estados da alma.
(PESAVENTO in PESAVENTO; LANGUE, 2007, p. 10)

A dor figura assim como elemento conector que perpassa toda sua autobiografia,
ainda que sempre tratada com pilhéria e ironia. Aos 70 anos, com uma postura política
definida4, o autor faz um levantamento dos pontos considerados por ele importantes de sua
trajetória de vida e é a partir dessas escolhas, que uma estrutura de sentimentos e
sensibilidades começa a tomar forma. Ao racionalizar e por no papel suas experiências
escolhidas, João Brígido manifesta também seus sentimentos, descortinando o conhecimento

4
Ainda ligado à oligarquia liderada por Nogueira Aciolly, inclusive trabalhando como seu advogado.
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sobre o mundo em que estava inserido, juntamente com as construções mentais fundamentais
para o desenvolvimento desse texto.
Para além da discussão, situemos melhor esse sujeito.
João Brígido dos Santos nasceu em 03 de dezembro de 1829, na vila de São João
da Barra, uma localidade capixaba que posteriormente foi anexada à província do Rio de
Janeiro. Veio a falecer em Fortaleza com quase 92 anos, em 14 de outubro de 1921.
Seu avô paterno foi Manoel Brígido, que ocupou funções no governo durante o
período regencial, este residia no Icó, região do cariri no interior cearense e alguns anos após
o nascimento de João Brígido, em 1831, seu pai, Ignácio Brígido, decide regressar ao Ceará,
sua terra de origem com sua mulher e filhos, estabelecendo-se em Icó, mas com uma banca de
advogado itinerante, o que possibilitou a ele exercer a função em diversas comarcas.
Por influência paterna, João Brígido teve uma educação inicialmente caseira e,
posteriormente, em instituições de ensino locais até sua adolescência. Seu avô, Manoel
Brígido, defendia que seus filhos e netos deveriam ter uma formação intelectual e na vila do
Icó, já vinha florescendo algumas instituições ainda no período em que Ignácio desenvolvia
sua formação. O responsável por essa educação caseira de João Brígido, inicialmente, foi o
próprio pai, uma herança de seu avô.
Quando na adolescência, João Brígido fixa-se definitivamente em Fortaleza com
toda sua família: Seu pai Ignácio Brígido, sua mãe Vicência Maria de Jesus e seus sete
irmãos. O ano era 1846 e este também marca o início das atividades jornalísticas de João
Brígido escrevendo no “Zéfiro”, periódico organizado e produzido juntamente com outros
estudantes do Liceu.
Aos 21, casa-se com Maria Joana e, além da jornalística que já vinha se
desenvolvendo, inicia sua carreira como advogado de rábula, passando a exercer a função
pelos sertões do sul do Ceará, onde havia passado parte de sua infância e também por parte
dos sertões da Paraíba, Pernambuco e Bahia. Alguns anos mais tarde, em 1854, fixou
residência com sua mulher e lá nasce sua primogênita. Um ano depois, torna-se redator e
colaborador d’O Araripe, periódico local.
No fim da década de 1850, publica fascicularmente seu primeiro grande estudo a
respeito das origens do Ceará. Denominado Apontamentos para a História do Cariri, esse
texto desponta em fevereiro de 1859 nas páginas d’O Araripe e anos mais tarde são editados e
publicados pelo Diário de Pernambuco, um dos maiores periódicos no norte do império no

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período. Essa publicação lhe rende o convite para ingressar como membro no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1962. Na época, ele já exercia a função de professor da
cadeira de Língua Nacional, após ter sido aprovado em concurso público no ano anterior.
Anos depois, participa como redator e colaborador, juntamente com Thomas
Pompeu Filho, do periódico O Cearense. Nesse período, inicio da década de 1870, ele fazia-se
presente na câmara municipal como vereador, chegando a ser deputado provincial e deputado
geral. Seus cargos políticos não o impediam de continuar sua carreira jornalística, já que além
de escritos políticos (em sua maioria), produziu também escritos que tratassem da origem do
Ceará – histórica e geograficamente. A produção desses textos torna clara sua ideia de
intelectual e da função deste para a sociedade: o esclarecimento, a superação da força pela
razão, a vitória sobre as armas e a firmação do pensador – o homem de Estado.

IDEAIS MAÇÔNICOS NA FORMAÇÃO DE JOÃO BRÍGIDO ENQUANTO


INTELECTUAL

A Maçonaria, enquanto instituição, construiu no Brasil uma verdadeira relação de


amor e ódio entre seus membros e os poderes oficiais do estado. É bem verdade que em
alguns momentos esses dois grupos se entremeavam, ocasionando de até o símbolo máximo
do estado imperial, o Imperador D. Pedro II, ter feito parte da instituição.
Contudo, durante o século XIX, principalmente após a independência, essas casas
maçônicas se espalharam pelo país, e em Fortaleza, isso não foi diferente. Vários eram os
intelectuais que buscavam no abrigo de suas “lojas” a divulgação de concepções de suas
visões burguesas e laicas de sociedade. Os membros pertencentes a essa instituição tentavam
disseminar seus ideais de uma revolução intelectualizada, carregando o estandarte de uma
modernidade ascendente de ideais iluministas pós-revolução francesa. Muitas dessas ideias se
chocavam com a estrutura político-administrativa do Império, bem como com os ideais de
sociedade constituídos a partir da mais forte instituição estabelecida no Brasil: a Igreja
Católica. Em defesa de uma sociedade laica, esses intelectuais que adentravam, cada vez em
maior número, nessas lojas maçônicas, passaram a formatar seu pensamento a partir dessa
perspectiva filosófica de ascensão da razão em detrimento do dogmatismo e conservadorismo
católico, que estava presente na vida de seus seguidores não somente ao frequentarem os seus
templos, mas também através da imprensa e da educação.

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Deve-se salientar que a maçonaria no Brasil teve além desses intelectuais laicos,
membros do próprio clero, mas de orientação liberal, mais uma vez denotando essa relação
intrínseca de disputa entre a instituição maçônica e o estado. Ao lutar contra esse
conservadorismo do poder estabelecido pela Igreja Católica, ainda oriundo de uma estrutura
que se desenvolveu no período medieval, esses “pedreiros livres” deixavam claras as suas
perspectivas de liberdade, igualdade e fraternidade, sob o auspício de ideais liberais
burgueses, em oposição à vinculação existente entre o poder imperial e a essa instituição
religiosa, que segundo estes intelectuais liberais, pautavam a vida cotidiana a partir de uma
tradição estabelecida e de uma doutrina amplamente difundida. Esse cotidiano adequado à
doutrina católica ia de encontro à racionalidade tão defendida pelos “pedreiros livres” desde a
fundação da instituição. Em Fortaleza essa disputa no campo das ideias só tornar-se-ia mais
evidente e acessível ao grande público, a partir do final da década de 1860. Até então, as
concepções de mundo partilhadas pelos membros dessa instituição filosófica5 se difundiam
pelo mundo como um ponto de referência àqueles que defendiam um rompimento entre as
limitações infligidas pelos poderes absolutistas monárquicos e da Igreja e o fato desta ser uma
instituição que funcionava (e ainda funciona) sob um caráter secreto fazia com que
confabulações a respeito de emancipações políticas ou de qualquer outro aspecto que
pudessem ser malvistas pelo poder oficial, pudessem crescer e se difundir por entre as “lojas”
maçônicas e com isso, ter um maior alcance entre esses intelectuais liberais.

Ação dos maçons em Fortaleza a partir de 1860.

O que se viu em Fortaleza, a partir do final da década de sessenta foi uma busca
pela loja maçônica tendo em vista a possibilidade de discussão de ideais burgueses, racionais
e cientificistas, dentre seus membros letrados, o que até suprimia o caráter secreto que a
instituição possuía, principalmente após a fundação do periódico maçônico Fraternidade.
Como já foi colocado anteriormente, um dos campos de grande difusão do dogmatismo
católico foi a imprensa, e o crescimento de uma imprensa maçônica em Fortaleza fez com que
o embate entre maçons e católicos conservadores se tornasse mais presente e conhecido do
grande público. Para Berenice Neves,

5
O termo “instituição filosófica” torna-se passível de uso tendo em vista que a partir do aumento do número de
intelectuais que passam a compor a instituição, a maçonaria torna-se um dos centros de discussão e difusão de
idéias cientificistas, superando mas não abandonando o caráter inicial operativo dessa confraria.
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Dentre os vários indivíduos pertencentes às elites cearenses que se filiaram às lojas
maçônicas no período do Império, vale destacar o papel desempenhado por segmentos
intelectuais, que tiveram na imprensa maçônica um importante espaço de divulgação de
suas ideias. No caso do jornal maçom Fraternidade, estamos falando do experiente e
polêmico jornalista João Brígido e dos então jovens Thomas Pompeu de Sousa Brasil, filho
do senador de mesmo nome, Tristão de Alencar de Araripe Júnior, membro da tradicional
família Alencar, do Cariri cearense, e Xilderico Farias. (NEVES in SOUSA; NEVES, 2002,
p. 99).

Esse embate vai ter principalmente como objetos de vinculação de ideias o já


citado Fraternidade e o jornal Tribuna Católica, baluarte de conservadorismo da instituição
católica na cidade de Fortaleza.
Esse embate no campo da imprensa deixou claras as intenções e posições de
ambas as partes a respeito da outra. Por um lado, os textos atribuídos aos maçons, defendiam
um progresso desenvolvido a partir da laicização da vida e com isso da educação e imprensa,
além da liberdade de culto e a derrubada dos defensores dos dogmas católicos que difundiam,
segundo esses liberais, o misticismo, o fanatismo e com isso a ignorância dentre o povo da
capital e do sertão.
Já no texto dos conservadores católicos o que se via era a tentativa de desacreditar
a população perante os textos e ideias dos maçons, sempre chamando atenção para o fato de
ser uma sociedade secreta, guardadora de segredos, o que favorecia a ideia de conspiradores
de revoluções contra a coroa e a igreja. Como conservadores, esses membros católicos faziam
questão de salientar a presença da instituição maçônica em vários momentos de revoluções e,
atribuindo um sentido negativo à perspectiva de mudança, tentava assim invalidar suas ideias
e posições.
Outro ponto fortemente criticado pelos defensores da situação era o fato dos
membros da ordem terem sido excomungados pelo Papa. Assim, em vários momentos da vida
social na provinciana Fortaleza, esses maçons eram impedidos de se fazerem presentes ou
pelo menos, de ocuparem algum papel de destaque, como em casamentos e batizados.
Inclusive, um dos argumentos usados por esses causídicos do iluminismo na defesa da
laicização dos sacramentos, ou pelo menos do casamento, era justamente o fato de impedir
que homens livres deixassem de fazer parte dos momentos ativos da vida social.
Apesar do jornal Fraternidade ter sido fundado em 1873, as críticas aos maçons já
aconteciam anteriormente, sendo João Brígido um dos principais alvos desse segmento
católico da imprensa local. Ele, juntamente com o jovem Pompeu já haviam divulgado muitos

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dessas ideias maçônicas, anos antes em um outro periódico, Cearense, e com a fundação em
1873, esse novo meio de exposição de perspectivas da instituição, mais uma vez João Brígido
se fez presente, utilizando-se de sua influência e prestígio dentro da produção de periódicos na
cidade de Fortaleza e acabou sendo uma das referências na luta por esses ideais. Muitas vezes,
os próprios membros conservadores atuantes na imprensa local viam em Brígido um
manipulador de jovens, juntamente com os mais velhos que também frequentavam a loja
Fraternidade Cearense, na qual João Brígido também foi orador durante algum tempo. Uma
das passagens que chama atenção para tal fato pode ser encontrada em um dos artigos do
Tribuna Católica, em 1874:

[...] Não se pode negar a identidade de idéias, porque o Sr. Dr. Pompeu diz que Deus
é um vocativo sublime, e não admite religião; o Sr. Brígido, seu mentor [grifo
nosso], propala de público por onde anda que o homem é um macaco transformado;
e por isto está visto que não admite Deus, nem Christo, nem religião alguma [...].
(Tribuna Católica, 09/08/1874)

João Brígido não era apenas citado, mas evidenciado como defensor de ideias
modernas e como “mentor” dos mais jovens que participavam também dessa imprensa
maçônica. Importante também salientar nesta citação a presença do repúdio a teoria da
evolução de Darwin dentre outros autores, por parte dos conservadores católicos. Autores
como Darwin, Spencer e Comte foram lidos por esses intelectuais e seus textos serão
discutidos em aulas populares que ministravam, já que a preocupação com a laicização da
educação, aqui já citada, seria outro ponto debatido e defendido pelos “Batalhadores das
Ideias” (Tribuna Católica, 10/02/1874).

A defesa de uma educação laica e liberal.

O debate a respeito da questão de laicização do ensino, assim como dos livros


utilizados e da imprensa em geral não tem sua origem com o periódico Fraternidade, apesar
do grande alcance que esse veiculo de comunicação teve na divulgação da posição partilhada
por esses maçons.
Dois anos antes, já se achavam mais uma vez João Brígido e Pompeu Filho a
levantarem essa bandeira liberal para a discussão geral. Porém, é com a chegada do periódico
maçônico que a defesa da liberalização da educação ganha força, dando origem
posteriormente a escolas mantidas pela maçonaria.
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Defendendo a ciência como conteúdo de instrução, seja pelos escritos de Julio
Verne (Fraternidade, 18/08/1874 e 03/11/1874), seja na perspectiva de crença na ideia de
repetição de fenômenos para se ter um modelo reduzido da análise de uma sociedade, ou
mesmo, na concepção do estudo do “momento histórico” no qual o meio social, atrelado à
raça e inserido em uma moralidade iria produzir uma estética: a ideia de “progresso” e
“civilização” (GARDINER, 1969), os ideais positivos e liberais para a sociedade a partir de
uma valorização da produção cientifica tornava-se a grande bandeira desses maçons ao
instruir seus alunos.
Durante o período em que esteve em funcionamento (1874-1875), a Escola
Popular, criada com a intenção de provir instrução aos proletários e outros membros das
camadas menos abastadas de Fortaleza, foi um reduto de divulgação de noções cientificas e
pensamento laico através de aulas de língua nacional, Frances, aritmética, geografia e história.
Balizados em defesa de que a educação por excelência é formadora do homem
moderno e que o livraria da cegueira dogmática das crenças católicas, é possível se notar uma
vinculação entre os maçons da loja Fraternidade (e com isso, ao jornal Fraternidade) e até
mesmo da Academia Francesa, grupo fundado em 1871, que intencionava ler e debater textos
da filosofia positiva, principalmente de Auguste Comte. Esse grupo, formado por Capistrano
de Abreu, Rocha Lima, Thomas Pompeu Filho, Tristão de Alencar e Xilderico de Farias, entre
outros, chegou a organizar algumas conferências na Escola Popular, mostrando o quão
intrínseca era a relação entre a loja maçônica (e o seu periódico), a Academia Francesa e a
Escola Popular, já que alguns desses intelectuais era conhecidos maçons e transitavam, de
alguma forma, pelos todos estes âmbitos, como é o caso de Xilderico de Farias, Thomas
Pompeu Filho, Tristão de Alencar e o próprio João Brígido.

O pensamento liberal e parte da produção de João Brígido.

João Brígido já havia lecionado aulas de várias disciplinas desde muito tempo,
sendo inclusive aprovado em concurso publico para assumir a cadeira de Língua Nacional, no
Liceu do Ceará em 1861. Como desde o final da década de 1850, ele já vinha coletando
documentos e fontes orais a respeito do passado da região do Cariri, interior sul do Ceará, e de
demais regiões, em uma tentativa de abarcar toda a história da província, compendiar e
publicá-la em seus livros, não é de se espantar que em 1885, João Brígido tenha organizado

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algumas questões sobre o passado do Ceará e publicado o livro Resumo de História do Ceará
para uso das escolas primárias.
Disposto a suprir o que julgava ser falta de material didático para alunos das
primeiras series letivas, essa obra é na verdade um apanhado de lições por ele formuladas a
respeito de eventos políticos, administrativos e militares que compuseram em sua opinião a
formação da então província do Ceará e que até então não havia sido ainda bem
desenvolvidas, ou pelo menos esquematizadas.
Esta obra traz em sua introdução um texto que contem algumas questões que
podem ser levantadas a partir dos primeiros que se dispuseram a escrever as linhas iniciais a
respeito do passado da então província do Ceará. Esse texto de 1885, dois anos antes da
fundação do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, cita quatro grandes
nomes das letras locais, em uma tentativa de legitimá-los enquanto pensadores iniciais do
Ceará, produtores de texto a esse respeito, além do texto servir também como registro aos
intelectuais que estivessem por vir. Pedro Theberge, Thomaz Pompeu, Tristão de Alencar
aparecem nessa introdução como os pioneiros na busca por fontes que os ajudassem a
confeccionar uma história para o Ceará. João Brígido cita inclusive Alencar como o
responsável pelas primeiras indagações a respeito desta busca pela origem de uma história
para o Ceará e se põe como um dos primeiros a divulgar textos sobre esse aspecto, já que ele é
o quarto elemento desses pioneiros da escrita de uma história que superava seus anteriores.
Quanto a esses anteriores, ele não negava a existência de escritos sobre o passado
do Ceará, mas era enfático sobre como se havia produzido até então: “O Ceará não tem ainda
uma história propriamente dita. Quanto se tem escripto consta de memórias, noticias de
jornaes, chronicas, etc,., tudo disperso, sem methodo nem systema.” (BRÍGIDO, 1885, p. 6).
Essas lições componentes da obra deflagram em suas entrelinhas parte do que era
o pensamento liberal maçônico de Brígido no período, além da própria concepção deste
objeto enquanto elemento de formação intelectual laico de seus leitores. Ao difundir uma
história política de formação da província, João Brígido também não enfatiza a participação
da Igreja católica nessa formação, relegando a ela praticamente, apenas o seu papel na
catequese dos indígenas.
Talvez o momento que a sua postura enquanto um intelectual liberal mais apareça
seja nas lições que tem como principal assunto a Confederação do Equador. Analisando as
ações dos que fizeram parte desse movimento pelo interior do Ceará, no período entre 1817 e

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1821, e posteriormente até 1830, João Brígido assume uma postura ao produzir esses textos
que deixa de lado a imparcialidade (tão cara aos historiadores dos novecentos) ao analisar a
posição do Padre Gonçalo Ignácio de Loyola Albuquerque, posteriormente, Padre Mororó,
um dos líderes do levante na região de Quixeramobim que tinha essa posição liberal. O olhar
de Brígido para esse sujeito é de admiração pela postura adotada enquanto líder e outro
aspecto importante é que anos depois, 1889, ao ser publicada a coletânea Miscellanea
Histórica, João Brígido dedica um longo texto biográfico sobre Mororó6, no qual analisa o
contato deste clérigo com a instituição que o formou como uma relação necessária para a
formação de um sujeito que não se calaria perante as angustias da condição humana ou a
opressão dos homens.
Outro momento a ser salientado na coletânea de lições publicadas em 1885 é o
que diz respeito à proclamação da República no Brasil. Considerando o evento como um
motim militar, João Brígido viu que além da organização por parte do exército, o que levou o
Imperador a perder sua coroa, além da abolição dos cativos que o fizera perder a estima da
nobreza do país mantenedora de latifúndios em várias províncias, foi também uma dissensão
entre a Igreja Católica e o Estado. Esse aspecto foi necessário para que se pudessem
desenvolver os ideais republicanos para então se chegar nessa nova forma de estado laico.

JOÃO BRÍGIDO E SUA PARTICIPAÇÃO NO MEIO POLÍTICO E JORNALÍSTICO


CEARENSE

A política é, no Brasil, o grande inconveniente de se


aprender a ler. Por todo caminho que a gente escolha
vai dar com as ventas na política. (João Brígido em
Ceará – Lado Cômico, 1890)

A atuação de João Brígido na imprensa do Ceará durante a segunda metade do


século XIX e as décadas iniciais do século XX é realmente relevante. Vários foram os
periódicos que trouxeram textos desse jornalista. Ele mesmo elenca na segunda parte de sua
autobiografia, publicada no livro Ceará – Lado cômico, alguns dos quais ele se fez presente
na perspectiva de versar sobre o cotidiano a partir de seu ponto de vista.

6
Além de Mororó, algumas outras biografias são encontradas nesse livro como a de Pessoa Anta, Carapinima,
entre outros. Ao que nos parece, os sujeitos escolhidos para tem suas vidas esmiuçadas passaram por uma
seleção de João Brígido, na qual praticamente apenas aqueles que tivessem ligações com a Confederação do
Equador, far-se-iam presentes.
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D’O Zéfiro na segunda metade da década de 1840, quando ainda era estudante do
Liceu em Fortaleza, até a fundação d’O Unitário em 1903, do qual foi redator-chefe e
principal organizador, João Brígido tentou se fazer presente de uma forma tão intensa através
dos periódicos, que logo recebeu a alcunha de polemista nato e jornalista combativo. Sua
principal característica com relação a esse seu local de atuação foi, na medida do possível,
manter ataques constantes àqueles que lhes eram contrários. Não por acaso, Raimundo Girão
assim definiu O Unitário, derradeiro periódico fundado por Brígido, assim como seu
idealizador “foi seu principal fundador e diretor João Brígido dos Santos. Irrequieto,
combativo, destemeroso e culto, foi Brígido a mais forte e, diga-se, a mais violenta expressão
do jornalismo no Ceará, tendo fundado diversas folhas na sua longa existência de 90 anos.”
(GIRÃO, 1985, p. 396)

Como conhecedor e crítico dos escritos de João Brígido (não só enquanto


jornalista, mas de modo mais geral), Jader de Carvalho tenta definir esse intelectual a partir de
sua escrita:

[...] A um só tempo, contraditoriamente explosivo, ferino e frio, quer no estudo do


passado, quer no trato do presente, agia sempre de acordo com os seus sentimentos,
os seus pontos de vista, as suas inclinações filosóficas, políticas e pessoais. Nas
chocantes facetas do seu espírito é que reside, sem dúvida alguma, a complexidade
de sua obra – vasta, viva, com intervalos de paz e guerra. (CARVALHO, 1969,
p. 15-16).

Essa relação entre seus escritos jornalísticos e seu engajamento político é tão
intrínseca que este seu último e mais incisivo instrumento a destilar injurias contra seus
adversários políticos, recebia como que sub-titulado a epígrafe “jornal político”. Anos depois,
entre 1910 e 1911, O Unitário passou a ostentar a inscrição “Órgão do Partido Republicano
Liberal”. Não por acaso, dez anos antes, quando ainda participava do periódico A República,
ele escreveu:
Devo prevenir ao público que sempre fui liberal. Assim como conservador vem a ser
todo o bicho humano, que subscreve os caprichos do seu tempo, liberal é todo
aquele que não se conforma com eles e dá-lhes um pontapé, reclamando sempre
coisa melhor, à sua imagem ou fantasia.
Sempre estive em revolta com as situações que atravessei, me parecendo, ainda hoje,
que este mundo não presta, e que o outro dos poetas e dos padres não há de ser lá o
que eles dizem. (A República, 03/12/1900)

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Quanto ao posicionamento político de Brígido, vale salientar que até o fim do
estado imperial brasileiro, ele era um monarquista assumido, carregado de respeito à figura de
D. Pedro II. Com a instauração de um sistema republicano no Brasil, Brígido assumiu uma
postura a favor do novo sistema, mas ao mesmo tempo evidenciou as diferenças existentes
dentre desse conceito de “republicanos”. Vale considerar, pelo menos, a oposição entre
deodororistas e florianistas nos primeiros anos do novo sistema, que já mostravam como esse
ainda era instável e João Brígido faz parte dos apoiadores do Marechal Floriano Peixoto em
detrimento aos que seguiam as indicações do Marechal Deodoro da Fonseca.
João Brígido deixa clara sua admiração ao segundo presidente da república a
assumir, em cartas trocadas com membros da conhecida família Boris – comerciantes
franceses que residiam no Ceará e dos quais, João Brígido era advogado. O que se nota em
meio a ideais e posições políticas adotadas por aqueles que tentavam se adaptar ao novo
regime é muito mais uma flexibilidade – para não utilizar até o termo oportunismo – destes
que em sua maioria tentavam se inserir em um contexto econômico que tem traços do antigo
sistema, mas que no período, ganha contornos burocráticos mais enfáticos e, entremeando-se
com uma perspectiva que tinha os cargos públicos como alvo, passam a formatar um
amálgama que tanto reflete a estrutura político-administrativa do país, até os dias atuais.
A maioria dos que partem para as coligações políticas estava muito mais
interessado em tirar vantagens lucrativas de questões que envolvem obras públicas ou acordos
comerciais. Além das questões políticas envolvidas, João Brígido também aparece, como foi
comentado, tendo os irmãos Boris como clientes, e obviamente, defendendo os interesses
destes e os seus próprios, como a relação com posição favorável à candidatura de José Freire
Bizerril à presidência do estado, assim como seus deputados, questões envolvendo o porto de
Fortaleza ou os embates indiretos entre o próprio Brígido e Ibiapaba, referente à mina de
cobre descoberta em viçosa, no período.
Antes da fundação d’O Unitário em 1903, João Brígido mantinha relações
intensas com Nogueira Acioli, político influente que chegou a ser presidente da província, e
seus correligionários. Essa relação foi rompida por Brígido, segundo ele mesmo, quando em
03 de janeiro de 1904, aconteceu a greve dos catraieiros, devido a imposição de uma lei do
então presidente do Ceará, Pedro Borges, um dos correligionários de Acioli, para o
alistamento dos trabalhadores do mar - pescadores e catraieiros – na Armada da Marinha.

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Esse levante de trabalhadores foi fortemente revidado pelas forças oficiais que foram enviadas
ao porto para, utilizando-se da força, repreender os representantes de modo exemplar.
Apesar da já existência do periódico de Brígido – e principalmente, de muitos de
seus textos cáusticos – foi a partir do levante desses trabalhadores que ele rompe em
definitivo com Acioli e passa a ser um de seus mais ferrenhos opositores. É a partir de então
que o experiente jornalista iria definitivamente se estabelecer como, além do mais voraz
crítico dos posicionamentos adotados por Acioli, um dos mais celebres jornalistas do Ceará.

Relação entre carreira política, jornalística e intelectual de João Brígido.

Pelos seus próprios escritos e pelo que os outros publicaram ao seu respeito, João
Brígido parecia não se preocupar em ter inimigos, sejam eles políticos ou pessoais. De fato,
parecia-lhe prudente ter opositores, chegando inclusive a escrever, a respeito do período em
que foi advogado pelos sertões, que:

[...] Foi ocasião de fazer mais inimigos; e isto me serviu muito, para andar direito. É
bom ter-se sempre uma meia dúzia, pelo menos; servem de embono, para a canoa
não virar.
Diz a regra: - Quem tem inimigos não dorme. (BRÍGIDO, 1900, p. 75)

Nesse mesmo texto, ele comenta sua participação, quando escreveu ainda no
Crato, nos periódicos O Araripe e O Cratense, alegando que seus jornais seriam contra “o
bacamarte reinante” e funcionaram “ensinando os matutos a se defrontarem com
correspondência ao bacamarte”.
Obviamente esse seu texto autobiográfico, escrito quando ele passa dos setenta
anos, trouxe elementos por ele escolhidos para compor o papel que ele acreditava exercer na
sociedade. É um texto de escolhas entre o que vai fazer parte e ficar para a posteridade e o que
não deve fazer parte das memórias que poderiam os seus sucessores virem a ter a seu respeito.
Contudo, essa sua postura opositora a determinados grupos políticos o levou a entrar na
política em 1868 e depois em 1879, como deputado estadual, chegando a ser eleito Senador
estadual em 1892. Desde então sua carreira política, intercalada pelas suas participações
panfletarias e causticantes em vários periódicos, fez-lhe desembocar, aos 74 anos, na criação
d’O Unitário.

122 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 101-124, jul.-dez. 2014.


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Afirmando-se como um jornal político, esse periódico era composto de quatro
paginas, sendo as duas primeiras dedicadas aos textos de Brígido e de seus colaboradores e as
duas finais aos anúncios publicitários. Saindo as terças, quintas e sábados, esse periódico,
como já foi citado, foi o instrumento último usado por João Brígido para levantar acusações a
respeito de seus opositores e ao mesmo tempo revidar as que lhe eram direcionadas.
Nota-se o quanto esse periódico tem uma função importante para se compreender
o que foi essa ligação entre suas posturas políticas, relações com os seus opositores, além de
sua própria análise da sociedade, através de seus textos. João Brígido participou de mais de
meio século no circuito de publicações periódicas, além de vários momentos de participação
em cargos políticos. A escolha por trabalhar o fim do período imperial e as primeiras décadas
da república é pela forma como a principal referência feita a João Brígido se formou – o
jornalista panfletário e combativo.
Sua presença em alguns cargos políticos, sua função enquanto advogado de
grandes comerciantes e empresários, seus interesses em casos específicos que lhes traria
algum retorno financeiro e, principalmente, o fim da relação amistosa entre ele e Acioli
(juntamente com seus correligionários) são facetas que compuseram um quadro, por mais que
superficial, de como se formou a imagem mais citada desse polêmico jornalista.
João Brígido faleceu com quase 93 anos, no dia 14 de outubro de 1921. Passou
seus últimos anos cego, acometido pela catarata, mas que com a ajuda de sua neta Minerva
Brígido Sobrinho, não deixou de publicar seus textos sempre de uma intensa acidez contra
seus opositores. No ano seguinte a sua morte, a Academia Cearense de Letras o nomeou
patrono de uma das cadeiras, posteriormente ocupada por Jader de Carvalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso intuito foi trazer alguns elementos que pudessem traduzir esse sujeito
temporalmente distante de nós, a partir de uma aproximação do mundo intelectual na qual nos
inserimos, mesmo que as dimensões, qualidades e ações sejam diferentes, buscando assim
também observar a sua Cultura Política. Afinal, defendemos que, mesmo em meio a essa
contraditória relação entre escritas e tempos distintos, seja possível decifrar o outro e assim,
entender o mundo no qual estava inserido esse sujeito.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______________. Resumo da História do Ceará por J. Brígido para uso das escolas
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WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. José Lourênio
de Melo. São Paulo: Edusp, 1992.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

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POR UMA OUTRA DIÁSPORA:
FORMAÇÃO HISTÓRICA E DISPERSÃO DOS TERREIROS
DE CANDOMBLÉ NO GRANDE RIO

Rodrigo Pereira
Professor Colaborador na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tendo vínculo,
ainda, com o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ) e atua como Arqueólogo na
empresa Archeo Consultoria e Planejamento LTDA. É Mestre em Ciências Sociais
(Antropologia) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em
Arqueologia (Museu Nacional/UFRJ). Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisador de elementos das religiões afro-
brasileiras. Em antropologia atua na análise do candomblé debatendo micro-política em
terreiros, eventos de sucessão e temas relacionados à liminaridade, sob a perspectiva de Victor
Turner. Quanto a arqueologia, atua na pesquisa de cultura material e espaços edificados,
rituais e profanos em casas de candomblé.

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POR UMA OUTRA DIÁSPORA: FORMAÇÃO HISTÓRICA E
DISPERSÃO DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ NO
GRANDE RIO

BY ANOTHER DIASPORA: HISTORICAL FORMATION AND


DISPERSAL OF CANDOMBLÉ IN GRANDE RIO

Rodrigo Pereira

RESUMO ABSTRACT:
O artigo versa sobre as diversas origens The paper discusses the various sources
que o candomblé tem na cidade do Rio de that Candomblé is in the city of Rio de
Janeiro e sua diáspora para regiões Janeiro and its diaspora to remote areas of
afastadas do Centro da cidade. Por origem the city center, by origin means both the
entende-se tanto o local de origem do/da place of origin / the leader, as its
dirigente, como sua ligação com as connection with the various "nations" of
diversas "nações" do candomblé. O artigo Candomblé. The paper aims not only to
visa não apenas identificar essas origens, identify these sources, but especially to
mas, sobretudo elucidar, mesmo que de elucidate, even if the initial form, the
forma inicial, os processos que levaram os processes that led to the yards by
terreiros a se expandirem pelo Grande Rio expanding Grande Rio de Janeiro.
de Janeiro.
KEYWORDS: Candomblé. Rio de
PALAVRAS-CHAVES: Candomblé. Rio Janeiro.; Diaspora.
de Janeiro. Diáspora.

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INTRODUÇÃO, CONCEITOS E TIPOS IDEAIS NO CANDOMBLÉ

De forma geral, tanto o Candomblé, como a Umbanda, a Macumba, o Batuque, o


Xangô, o Tambor de Mina, o Omolocô e outras religiões denominadas afro-brasileiras podem
ser entendidas como cultos aos ancestrais e às energias que fundaram a Terra, seus elementos,
os seres vivos e o mundo não material e espiritual (BENISTE, 1997). Tais entidades podem
ser de duas ordens, ou de duas origens1: a primeira, mais "africanizada", relaciona tais
espíritos a ancestres divinais africanos que fundaram o plano material e viveram como
homens (VERGER, 1981 e 1988), se divinizaram e tendem a se incorporar em seus adeptos
para atualizarem ou reviverem seus feitos (BASTIDE, 2001).
Em outra leitura, mais "abrasileirada", tais entidades podem ser compreendidas
como seres que viveram no Brasil como: preto velho e escravo, a índia, o marinheiro, o
boiadeiro e os ciganos. Eles voltam à terra em busca de elementos materiais que os satisfaçam
e em troca prestam favores para seus adeptos (CARNEIRO, 1991). Em ambos os casos, as
matrizes africanas, ameríndias e europeias – católica e kardecista – se fundiram dando origem
a estes cultos se não “nacionais”, com uma marcante identidade negra que é perpassada pela
indígena e pela branca, gerando os cultos afro-brasileiros em suas várias expressões regionais.
Pode-se entender os cultos afro-brasileiros como religiões ligadas à natureza e que
retiram dela a energia necessária para a manutenção da vida, da saúde e a sua continuidade,
como num fluxo de dádiva e contra-dádiva proposto por Mauss (2002), para que esta energia,
denominada de axé, se mantenha circulando entre os homens e entre os homens e as
entidades. Nestes cultos se tem a presença de entidades ligadas a elementos (água, ar, terra e
fogo) e seus derivados (lama, árvores e animais) e a necessidade constante de retribuir a eles a
energia dada para a manutenção da saúde e da vida (o axé) e que se denominam orixás, guias
ou entidades. Assim, rituais de sacrifício de animais, oferecimento de alimentos preparados,
frutas, velas, danças, músicas e cantos marcam não apenas a retribuição, troca e repasse de
energias entre as entidades e os homens, mas a ligação entre elas e o mundo físico (ver a
Figura 1, onde se apresenta esse ciclo de axé em um terreiro de candomblé).

1
Para esta pesquisa adota-se a perspectiva de Wagner (1981) e a de Hobsbawm & Ranger (1997) quanto à
dinâmica da construção constante da cultura e da tradição pelos grupos, entendendo assim que as entidades dos
cultos afro-brasileiros e suas origens se ligam mais a processos de elaboração constante da tradição do que de
uma origem stricto sensu quanto ao local geográfico mítico de construção.
127 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.
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Figura 1. Circulação do axé em um terreiro de candomblé.


Fonte: Adaptado de Pereira (2013a).

A realização de giras ou das festas com muitas bebidas, cigarros, charutos,


cachimbos, carne e músicas caracterizam a forma de adoração de entidades nacionais
denominadas de caboclas (LANDES 2002, CARNEIRO, 1991). Estas entidades ainda ligadas
ao plano material, pois ainda são espíritos sem tempo de experiência como tais, aceitariam
essas oferendas em trocas de favores que prestam a seus adoradores. Tais giras apresentam
como entidades, além dos orixás (em especial Ogum, Xangô, Iemanjá, Oxalá, Oyá e Oxossi),
os Pretos Velhos ou Pretas Velhas, (que são espíritos de ex-escravos), como, de Ciganos ou
Ciganas, Marinheiros, Boiadeiros e de duas qualidades de Exus: os femininos, como a Maria
Padilha, Sete Saias entre outras, e os masculinos como Exu Tiriri, Bará, Exu Caveira, Zé
Pelintra, Tranca Ruas, e uma miríade de outras entidades do mesmo tipo. Todos estes
promovem atendimentos públicos a seus adeptos e, realizam serviços ou trabalhos, se
contentando com bebidas, cigarros e músicas.
Conforme Caciatore (1988), o termo candomblé significa: 1. Da língua kibundo -
"ka" ou "kia" - costume ou uso, e "ndombe" - "preto", ou seja, um costume dos pretos; 2.

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Dança com atabaques ou 3. Dança profana de negros. De qualquer forma, pode-se entender o
candomblé como uma manifestação religiosa negra ligada ao culto dos ancestrais que se
tornaram divinizados ao longo dos séculos da história mítica da África.
Lopes (2003) indica que o termo designa: 1. tradição religiosa de culto aos orixás
Jeje-Nagôs; 2. celebração, festas dessa tradição, xirê e 3. comunidade-terreiro onde se
realizam essas festas, localizando o termo originariamente banto e com raízes linguísticas
num proto-banto. A posição de Lopes (2003) é, portanto, a mesma quanto a uma identidade
proto-banto, categoria desenvolvida por Slenes (1995) em suas pesquisas, ao se referir à
construção de uma identidade banto no Brasil, no contexto da diáspora africana e aplicada
apenas a este contexto.
Esse conjunto de crenças, que vão além dos orixás ou das entidades, adentrando
aspectos da vida, do destino e da própria pessoa (aspectos subjetivos), tendem a ser
conceituados por Lopes (2011) como um conceito maior que estaria presente em várias
regiões da África, seja ela Subsaariana ou mesmo a Equatorial, podendo ser expresso em um
tipo ideal denominado "religião tradicional negro-africana" (LOPES, 2011). Na caracterização
realizada por Lopes (2011), é possível perceber que existiria uma força suprema criadora do
mundo e, sob ela, a presença de várias entidades que, sendo tanto antepassados como forças
da natureza, devem ser cultuadas.
Neste contexto é importante destacar a presença de uma força vital, o axé, e como
esse deve transitar entre os dois mundos existentes: o físico, dos homens, e o espiritual, das
entidades, reestabelecendo, de forma contínua, a troca de energias entre os planos. Também
de forma geral, ou como uma tipologia ideal, esses dois mundos são permeados por um
mensageiro, ou um "agente dinâmico" (LOPES, 2011), que entre os nagôs recebeu o nome de
Exu. Ele tem por função fazer a ligação e a intermediação entre os planos, distribuindo essas
energias entre os homens e as entidades.
Para este amplo sistema de crenças negras, o destino é decidido pelo homem,
antes de sua reencarnação na Terra, junto ao deus supremo, sendo que nesse momento o ser
pode escolher por quais provações, deseja passar em vida. Não se trata de uma predestinação,
mas de uma escolha deliberada dos sofrimentos pelos quais se deverá passar ainda antes de
viver (LOPES, 2011).
Assim, sob esta tipologia ideal é que o candomblé, mais especificamente o "Rito
Nagô" (BASTIDE, 2001), se configura no Brasil como um modelo predominante (BASTIDE,

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2001). Contudo, não se descarta que ele mesmo seja fruto de outras movimentações culturais.
Sobre essas circulações se destacam as pesquisas de Parés (2007), na defesa de que o
candomblé baiano deve muito mais ao grupo étnico Jêje do que aos Nagôs, pois localiza no
século XVIII e no recôncavo da Bahia a formação dos primeiros terreiros deste tipo de culto.
Para esse autor, o terreiro, com valor de moradia e de sociabilidade, precede as casas de
candomblé, com o valor de local de culto, sendo um espaço de vivência de um parentesco de
"nação" e que permitiu aos africanos e seus descendentes a criação de um espaço de culto e
sociabilidade. A experiência comunitária da religião é que dará, nessa leitura, os contornos de
um terreiro de candomblé que congrega tanto um espaço de culto como um local de residência
e vivência.
Parés (2007) indica, no caso da formação do Jêje na Bahia, que o termo "nação"
deve ser visto sob uma ótica das relações étnicas e interétnicas de Barth (2000) e como essa
construção funciona como uma fronteira onde internamente são criados elementos de
autoimagem e de concepção de mundo. Esta identidade foi construída no contexto da diáspora
negra para o Brasil, e reflete uma ação intencional dos africanos na elaboração de uma
identificação entre os escravos de diversas regiões da África, às vezes com troncos
linguísticos semelhantes, e que se aglutinaram no Brasil em torno deste "conceito-identidade"
(PARÉS, 2007) aproximado de procedência. Esta perspectiva assemelha-se à adotada por
Slenes (1995), para explicar a formação deste núcleo de pessoas, e que se adota aqui como
significado para o termo "nação" ou "proto-nação" (SLENE, 1995), sendo um ponto central
para a compreensão da identidade e da religiosidade do africano no Brasil.

A DIÁSPORA NEGRA NA FORMAÇÃO DO CANDOMBLÉ DO BRASIL

O que se conhece como candomblé no Brasil é, sem dúvida, resultado do processo


da diáspora africana para as Américas, em especial para o Rio de Janeiro e Salvador, grandes
portos de entrada de mão de obra negra no país. Heywood (2009) destaca como o comércio
atlântico de escravos teve influência direta na formação desta cultura e religião no Brasil,
afirmando uma proeminência no envio de africanos ocidentais, em especial da Costa do Ouro
ou da Mina, de Angola e do Reino do Congo, todas as áreas controladas direta ou
indiretamente pelo comércio colonial português e europeu e, posteriormente, pelo próprio
Brasil. Conforme Florentino (1997), apesar de ocorrer, o comércio de escravos com a costa
oriental africana não teve grande destaque, se comparado ao ocidental, devido aos altos custos

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da navegação e do tempo de travessia. O mapa 1 apresenta essas principais áreas da África
Central e, a partir delas, a entrada nos portos brasileiros.

Mapa 1. Áreas da diáspora negra da África Central e seus locais de entrada no Brasil e Caribe.
Fonte: Miller, 2009.

O temo diáspora pode ser definido como “a dispersão mundial dos povos
africanos e de seus descendentes como consequência da escravidão e outros processos de
imigração” (SINGLETON & SOUZA, 2009: 449), entendendo o termo diáspora como algo
mais do que êxodo ou deslocamento, especialmente no contexto africano, assumindo, ao
contrário, a importância do aspecto transnacional, uma vez que, sem o trânsito entre nações e
a consequente adaptação dos indivíduos "viajados", o conceito em questão certamente não
estaria merecendo tanta atenção por parte dos acadêmicos, como Gilroy (2001), por exemplo.
O fato de confrontar duas (ou mais) sociedades traz ao indivíduo em diáspora desconforto,
especialmente se este encontro se dá com base em diferenças de poder e subjugação. A

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diáspora africana para o Novo Mundo, impulsionada e propagada pelos países europeus que
viam nela grande fonte de lucro e que foi uma das maiores empreitadas comerciais dos idos
coloniais, é atualmente estudada em toda a sua extensão geográfica, antropológica,
sociológica, arqueológica e literária e em todas as outras maneiras através das quais o contato
entre seres humanos pode gerar expressões.
A diáspora pode ser entendida, então, como a ausência de um lar em um primeiro
momento e, em seguida, a reconstrução do ambiente acompanhada do frequente desejo de
retorno ao que foi perdido. A partir deste pressuposto é que se pode entender a formação do
candomblé no Brasil: uma forma de reconstruir a África onde se estivesse. Bastide (2001)
entende o candomblé como uma reconstrução temporal de um microcosmo africano dentro do
terreiro, tornando presente o passado e reatualizando-o para o cotidiano.
Esse processo fortemente ligado ao desembarque destes negros-mercadorias
permitiu, em áreas urbanas e rurais de diversas regiões do Brasil, o substrato para a
construção de novas identidades que, por sua vez, podem ser vistas "em trânsito" (GILROY,
2001), ou seja, na perspectiva da adaptação e da manutenção das manifestações culturais
desses homens e mulheres nas novas terras. Para Hall (2003), o conceito de diáspora “está
fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um
'outro' e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora” (HALL, 2003:32), ou seja, é o
confronto entre o eu e o desconhecido que causa a indisposição presente entre os indivíduos
da diáspora. Nesse sentido, os portos de embarque e desembarque de negros podem ser vistos
como locais destes confrontos e como marcadores temporais e geográficos deste processo
sócio-histórico (sobre estes portos e zonas de desembarque observar o Mapa 02).
A partir desta constatação é possível entender o candomblé como um dos frutos
da diáspora negra, não apenas como uma religião ou um conjunto de postulados sobre a vida,
mas também a permanência e ressignificação de um conjunto de saberes-fazeres que se
perpetuara ao longo dos séculos e ainda hoje reverberam ou ressoam na construção das
identidades negras (PEREIRA, et ali, 2012). O mapa 2 apresenta as principais áreas de
desembarque de negros em diáspora no Brasil, e nele se pode perceber a preponderância de
Salvador, Recife e do Rio de Janeiro neste processo.

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Mapa 2. Principais portos e rotas da Diáspora Africana no Brasil.


Fonte: Miller, 2009.

Heywood (2009) e Miller (2009) afirmam que, durante a diáspora, os portos de


embarque de negros na África - Cabinda, Luanda, Benguela, Ajudá e São Jorge da Mina - se
tornaram formas identitárias ou nominativas e genéricas para designar a procedência dos
negros. Desta forma, o tráfico luso-brasileiro acabou fixando grandes “nações”, ou na verdade
portos de embarque: Kêtu/Nagô, Angola, Congo, Haussá/Malês, Minas, Jêjes, entre outras.
Tais “nações” já eram identificadas pelos estudiosos africanistas no final do século XIX e
início do XX (RODRIGUES, 1939 e 1977), ao descreverem a procedência dos negros da
Bahia e Brasil, mas ainda muito ligados a paradigmas de pureza étnica ou de sobrevivências
culturais (RAMOS, 1946). Lopes (2011) afirma que se tornou costumeiro associar dois nomes
para a designação do negro, sendo o primeiro do porto de embarque e o segundo da possível
etnia ou localidade que o negro advinha. Assim, nascem as variações Mina-jêje ou Mina-
nagô, por exemplo.
Ainda conforme Lopes (2011), tal forma de designação é incerta, e, devido à
precariedade das informações, ela nem sempre pode ser considerada fidedigna. De qualquer
forma, a intelectualidade do século XIX, ou mesmo o sistema escravista, fundou-se no que se
pode considerar como um mito de origem abrangente para os negros ao trabalhar com uma
quantidade mínima de “nações” para a identificação das populações escravas. Foi delas que
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adveio, devido a esta diáspora, a formação de “nações” no candomblé, que, em última
instância e sobre forte conotação de fronteiras interétnicas (BARTH, 2000), criaram as
clivagens identitárias entre os terreiros. Se pode, então, pensar o candomblé como uma
instituição onde existem formas de interação social regular e com caráter normativo, e que, no
contexto da diáspora, permitiram aos negros criar comportamentos agenciais de inovação e
continuidade, além da já citada interação social, para se oporem, de forma ativa ou disfarçada,
à dominação branca (PRICE, 2003).
Ter um sentido de pertencimento a uma "nação" e a uma determinada casa, neste
contexto de reformulação do mundo em trânsito (GILROY, 2001), torna o indivíduo ligado a
um determinado grupo, a um determinado passado e a uma determinada quantidade de capital
simbólico a ser instrumentalizado (BOURDIEU, 1997). É indubitável que as variações
existiram, permanecem e devem ser revistas, atrelando os estudos historiográficos a estudos
antropológicos com a finalidade de determinar com maior precisão a origem étnica destes
negros na diáspora, processo este, que ainda precisa ser aprimorado pelos estudos
historiográficos, antropológicos e arqueológicos.

A FORMAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DO CANDOMBLÉ BRASILEIRO

Os primeiros estudos sobre o caráter africano no Brasil e a sua relação com o


candomblé na sociedade nacional datam do século XIX com Rodrigues (1977). O enfoque das
suas pesquisas era entender este grupo, recentemente liberto da escravidão e deslocado na
sociedade brasileira da época, no conjunto das teorias do evolucionismo social e do
determinismo biológico. Os estudos privilegiaram as informações disponíveis na época,
enfatizando a origem étnica via a análise das áreas de embarque destes escravos na África e os
nascentes terreiros de candomblé em Salvador (Bahia).
Para Rodrigues (1977) haveria duas principais proveniências para os escravos: o
tronco banto (costa ocidental africana localizada mais ao sul entre o Congo e Angola) e o
tronco sudanês (costa ocidental do Golfo da Guiné, ou Costa da Mina) como as principais
ascendências raciais trazidas para o Brasil com a escravidão, dando aos sudaneses uma
superioridade, senão numérica, mas intelectual e social sobre os demais grupos. Rodrigues
(1977) afirma ser a Bahia a área de maior manutenção da permanência da cultura negra no
Brasil. Este conceito de permanência ou de “pureza” negra, vista como uma inferioridade

134 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.


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racial é defendido por Rodrigues (1977) como forma de explicar a manutenção e
sobrevivência das crenças ou do sincretismo negro junto ao catolicismo brasileiro:
Antes de demonstrar a persistência do estado mental dos selvagens nas concepções
fundamentais das mitologias negras, ensaiaremos o seu estudo, como simples
sobrevivência, nos usos e costumes africanos introduzidos pelos escravos pretos.
(RODRIGUES, 1977, p. 173)

Um aspecto relevante analisado por Rodrigues (1977) foi a presença do


totemismo entre os negros da Bahia. O totemismo entendido como a ligação parental entre os
membros do grupo, filiação a um determinado animal e a observância de determinadas regras
e coerções, é a expressão da mitologia negra, ou seja, de suas festas e folclore transpostos para
o Brasil. Sendo então, o totemismo uma condição permanentemente latente nos escravos, pois
“[...] os negros importados no Brasil eram todos povos totêmicos”. (RODRIGUES,
1977:174). Pela visão da época, a do evolucionismo social, Rodrigues (1977) vê nessa
manifestação um “atraso” ou a prova da inferioridade racial negra no Brasil, o que explica o
candomblé não só como relativa resistência, mas manutenção de um atraso mental:

“Como se vê, são eloquentes vestígios de uma religião atrasada e africana que,
transportada para o Brasil, aqui se misturou com as cerimônias populares da nossa
religião e outras associações e seitas existentes, resultando de tudo isso uma
perigosa amálgama, que só serve para ofender a Deus e perverter a alma”.
(RODRIGUES, 1977, p.260).

Para além da constatação de que o candomblé seria uma religião totêmica e


animista, o trabalho realizado por Rodrigues (1977) se destaca por ser um dos primeiros
estudos que visa dar conta não só da procedência e tipos raciais negros, mas também analisar
este elemento na sociedade brasileira. Rodrigues (1977) sobressai não apenas os principais
troncos negros, mas salienta ainda grupos menores, tais como os maometanos ou malês: “[...]
em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos que
assemelham-se ao árabe, usado entre os ussás, que figuram ter hoje combinado com os nagôs
[...]”. (RODRIGUES, 1977, p.41).
A maioria das revoltas negras ocorridas na Bahia, segundo Rodrigues (1977)
foram articuladas por este grupo sendo de sua natureza cultural e étnica fruto dos anos, ainda
na África, do processo de islamização2. O autor conclui ainda que estas revoltas seriam

2
Conforme Marzano (2011), a islamização da África Ocidental não se deu a partir de conquistas territoriais. O
fator principal da expansão muçulmana nesta região foi o comércio transaariano, que envolvia a África Ocidental
e o norte do continente. O processo ocorreu após a consolidação da conquista árabe ao norte, se iniciando a partir
do século IX. Esse comércio envolvia a captura de escravos que eram levados ao norte do continente. Esse
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acarretadas por “germes de rebelião plantados pelo islamismo” (RODRIGUES, 1977). Lopes
(2011) também tem a mesma opinião, pensando inclusive em uma quase jihad ou uma
intencionalidade em converter os negros da Bahia ao islamismo.
Entretanto, a maior contribuição de Rodrigues (1977) para a presente análise é
uma listagem de “[...] raças e povos africanos de cuja introdução no Brasil há provas certas e
indiscutíveis” (RODRIGUES, 1977, p.261) sendo utilizadas poucas fontes aduaneiras
brasileiras e de relatos de visitantes estrangeiros ao Brasil. Assim, Rodrigues (1977) descreve
a procedência dos negros brasileiros:

1)Camitas africanos: fulas (berberes (?) tuaregs (?)).


Mestiços camitas: filanins, pretos-fulos.
Mestiços camitas e semitas: bantos orientais.
2)Negros bantus:
a.Ocidentais: eazimbas, schéschés, xexys, auzazes, pximbas, tembos, congos
(Martius e Spix), cameruns.
b.Orientais: macuas, anjicos (Martius e Spix)
3)Negros Sudaneses:
a.mandes: mandingas, malinkas, sussus, solimas.
b.Negros da Senegâmbia: yalofs, falupios, sêrêrês, kruscacheu.
c.Negros da Costa do Ouro e dos Escravos: gás e tshis: achantis, minas e fantis (?)
jejes ou ewes, nagôs, beins.
d.Sudaneses centrais: nupês, haussás, adamauás, bornus, guruncis, mossis (?).
4)Negros Insulani: bassós, Bissau, bizagós. (RODRIGUES, 1977, p.261)

Mesmo desenvolvendo uma lista tão detalhada, Rodrigues (1977) destaca que:

Será escusado dizer que a esta enumeração bem podem e devem ter escapado muitos
povos negros que, principalmente no curso dos três primeiros séculos do tráfico, não
deixaram de sua passagem vestígios e documentos. Seguramente, africanos de
muitas outras nacionalidades haviam de ter entrado no Brasil. [...] apenas nos
preocupam aqui aqueles povos negros que, pelo número de colonos introduzidos
pela duração da sua imigração, ou pela capacidade e inteligência reveladas, puderam
exercer uma influencia apreciável na constituição do povo brasileiro.
(RODRIGUES, 1977:261-262).

Tal listagem pode ser lida não apenas como uma classificação de procedência
étnica dos negros, mas também como uma lista da formação do candomblé, dando maior
ênfase, como já colocado, ao elemento Nagô. Tal fato não é passado de forma despercebida
por autores subsequentes a Rodrigues (1977): Landes (2002) também afirma a "primazia
nagô" no candomblé baiano, seguida por Bastide (2001) e, de forma geral, por Verger (1981,
1995, 1998 e 2009).

tráfico teve inicio com as guerras santas, incluídas no processo de expansão do islamismo para o norte da África
e para a Europa mediterrânica.
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Ramos (1946), assim como Rodrigues (1977), encontra dificuldades para
delimitar a procedência étnica do negro trazido para o Brasil (Nagô, Mina, Angola ou
Moçambique), tendo em vista que, no período escravista, o que era levado em conta era a
saúde e força do negro, não sua procedência. Ramos (1946) segue as conclusões de Rodrigues
(1977) quanto à primazia dos sudaneses na Bahia, destacando, porém, a presença dos bantos e
uma possível polarização entre estas duas etnias. Desta forma, divide a raça negra em três
grandes troncos:

1)Culturas sudanesas – Yorubas (Nigéria) : Nagô, Ijêchá, Eubá ou Egbá, Ketu, Yebu
ou Ijebu e grupos menores: Daomeianos (Gegê, Ewe, Fon); Fanti-Ashanti da Costa
do Ouro (grupo Mina: Fanti e Ashanti) e grupos da Gâmbia, Serra Leoa, Libéria,
Costa da Malagueta e Costa do Mafin (Agni, Zema e Timiní);
2)Culturas Guineano-sudanêsas islamizadas: Peuhl (Fulah, Fula); Mandinga
(Solinke, Bambara); Haussa do norte da Nigéria e grupos menores – Bornús e
Gurunsi;
3)Culturas Bantus: Inúmeras tribos do grupo Angola-Congolês e do grupo da Contra
Costa (RAMOS, 1946, p. 280 e ss)

Tentando não se fechar em um possível erro descritivo dos negros que vieram
para o Brasil, Ramos (1946) conclui:

[...] É preciso assinalar que essas sobrevivências culturais não existem em estado
puro, nem são facilmente identificáveis [...] É possível que futuras pesquisas
identifiquem novos padrões culturais; serão elementos que, parece, irão congregar
em torno dos padrões principais referidos. (RAMOS, 1946, p.280).

A tentativa de Ramos é a de justificar um “Paradigma da Pureza Negra”


(RAMOS, 1946) no Brasil, valorizando as raças negras mais puras e menos miscigenadas e
detentoras, em sua análise, de uma cultura e religião “mais autêntica” e mais africanizada. Por
outro lado, ao observar os negros que se miscigenavam étnica e culturalmente ao elemento
brasileiro, Ramos (1946) percebia uma cultura vista como inferior devido à mistura. Se
Rodrigues (1977) deu primazia aos sudaneses, Ramos (1946) a concedeu aos bantos.
Entre as culturas negras no Brasil este autor destaca quatro de maior influência:
Iorubá/Nagô (onde ressalta a primazia da língua iorubá sobre as demais), as culturas
Daomeianas e Fanti-ashanti, as Negro-maometanas e a Banto. Sobre esta última afirma: “[...]
O exclusivismo de Nina não deve ser substituído por outro exclusivismo [...]”. (RAMOS,
1946, p.330).
Neste contexto histórico de percepção do negro pela sua "nação" de origem, que
não denotava sua origem geográfica, é que as casas ou terreiros de candomblé se formaram

137 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.


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em Salvador/BA, tendo as grandes nações ou grandes aparatos étnicos e culturais como
guarda-chuvas para sua existência. Landes (2002), pesquisando na década de 1930 a
proeminência feminina na direção dos terreiros de candomblé, destaca como as casas de
origem nagô seriam as maiores, as mais prósperas e as que mais teriam guardado o capital
cultural da religiosidade africana. Pierre Verger (1981, 1995, 1998 e 2009) e Roger Bastide
(2001) não são diferentes, todos unânimes em destacar a primazia nagô no candomblé.
Anos subsequentes, analisando o xangô do Recife (PE) e questionando um
suposto “Mito de Pureza Nagô”, Dantas (1988) produz uma obra onde se questiona se essa
“pureza” do culto é acionada intencionalmente, na finalidade de obtenção de status ou
proteção contra perseguições ou mesmo se ela existe ou existiu de fato. Dantas (1988) permite
então pensar criticamente sobre a formação do candomblé e como esta formação foi mais
ativa e intencional por parte dos terreiros e menos passiva e linear como afirmava Rodrigues
(1977) e Ramos (1946), elegendo traços identitários e ideacionais que permitiam a certas
casas se destacarem de outras, devido a uma determinada identidade mais nagolizada, vista
como mais pura e como sobrevivência cultural pelo raciocínio de Rodrigues (1977) e Ramos
(1946), em detrimento de casas mais plurais ou com menor bagagem nagô em sua formação.
Ramos (1946) complementa Rodrigues (1977), ao descrever os povos/etnias
provenientes de Angola ou Ambundas, Congo ou Cabinda, Benguela e Moçambique.
Percebendo as inúmeras regiões e denominações étnicas que estes grupos bantos sofreram.
Ramos (1946) destaca as duas principais sob a sua visão: Angola (elemento marcante na
Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco) e Cabindas, que “[...] são os mesmos Congos, que
vieram para o Brasil intimamente ligados aos Angolas, tendo o perfil antro-psicológico quase
idêntico e cultura equivalente aos destes”. (RAMOS, 1946, p.334).
Assim, a partir de uma identidade baseada em “nações”, em que há a fixação de
traços identitários intencionais para a demarcação de fronteiras (Barth, 2000 e Dantas, 1988),
os terreiros de candomblé de Salvador (BA) se formaram em meados do século XVIII
(PARÉS, 2007) e do XIX (BASTIDE, 2001), sendo possível esquematizar cronologicamente
esse surgimento, como se vê na tabela 1:

138 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.


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Terreiro "Nação" Data de fundação
Ilê Axé Iyá Nassô Oká / Terreiro Kêtu 1735
da Casa Branca/ Casa Branca do
Engenho Velho/ Sociedade São
Jorge do Engenho Velho ou Ilê
Axé Iyá Nassô Oká
Sociedade São Jorge do Gantois/ Kêtu 1849
Terreiro do Gantois ou Axé
Yamassê
Ilê Axé Opô Afonjá Kêtu 1910
Terreiro do Bogum ou Tumba Angola 1919
Jussara
Terreiro do Alaketu Kêtu 1836 (?) ou 1867

Ilê Axé Oxumarê Kêtu 1836

Sociedade Cultural e Religiosa Culto aos Eguns, mas com raízes 1980
Ilê Axipá em Kêtu

Ilê Babá Agboulá Culto aos Éguns, mas com raízes Primeiro quarto do século XX
em Kêtu (sem data precisa)
Tabela 1. Principais terreiros de candomblé, ou os mais tradicionais de Salvador/BA, e suas datas de fundação.
Fonte: Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador, 2007.

De casas iniciais, atualmente cerca de 1.500 outros terreiros são filhos ou saíram
ou se desmembraram destas casas e se constituíram como terreiros autônomos
(MAPEAMENTO DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DE SALVADOR, 2007). O
candomblé, seja por fatores étnicos ou pela necessidade religiosa, se formou em Salvador
tendo o elemento negro como seu aglutinador e motor de existência (VERGER, 1981;
BASTIDE, 2001).
Por fim, a conclusão de Ramos (1946) é de suma importância para a compreensão
da formação do candomblé, ou melhor, frisando, dos cultos afro-brasileiros, na cidade do Rio
de Janeiro:

Pela primeira vez, no ‘O Negro Brasileiro’ identifiquei a procedência angolana-


congolêsa para a maior parte das macumbas do Rio de Janeiro e algumas da Bahia.
Os nossos estudiosos apenas haviam acentuado a contribuição linguística de origem
bantu, não realizando nenhuma pesquisa sistematizada com relação às outras formas
de cultura”. [...] Esta identificação foi realizada num sentido amplo, nas minhas
pesquisas na macumba do Rio (1934) e hoje os estudiosos da etnografia negra já
falam comumente em religiões e cultos de ‘procedência bantu’, em macumbas de
‘origem ‘angola-congolese’, em sincretismos ‘gegê-nagô-bantu’, etc. [...] (RAMOS,
1946, p.335-336)

Assim, apesar de uma forte formação angola-congolesa e mina nos grupos negros
no Rio de Janeiro e, consequentemente, na formação das matrizes religiosas afro-brasileiras,

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Rocha (2000) percebe a proeminência de um Modelo Nagô ou Kêtu nos candomblés
formados na cidade. O principal motivo, sem dúvidas, foi uma segunda diáspora de negros da
Bahia para o Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e meados do século XX, sendo a
escravidão, a busca por empregos e melhores condições de vida os principais motivos deste
segundo deslocamento (SOARES, 1988)3.
Ao analisar a formação histórica do candomblé no Rio de Janeiro, se pode pensar,
com certeza, em uma segunda diáspora negra ou uma diáspora de candomblé ocorrida. A
chegada de migrantes baianos praticantes, aí incluídos muitas ialorixás e babalorixás4, no fim
do século XIX e início do XX, pode ser entendida como uma remodelação ou adaptação da
religião ao Rio de Janeiro.
Sobre esta leva de dirigentes vindos da Bahia, a ialorixá Maria de Xangô, em
entrevista, descreve a chegada de seu avô, Cristóvão dos Anjos, fundador do Ilê Ogun Anaeji
Igbele Ni Oman:
Eu vim com meu avô com oito meses, aqui ele veio e fundou... comprou este
terreno. Primeiro ele morou no Gramacho, que ele veio junto de Salvador. Na época
é que veio quase todos os pais de santo antigo né? Pra cá, e aí né [veio] o finado
Joãozinho da Gomeia, finado Bobó, finado Seu Álvaro Pé Grande, finada
Senhorazinha. [Meu avô] veio nessa leva com eles todos para cá. Cada um se
localizaram num lugar e meu avô pegou e comprou isso aqui, esse imóvel aqui na
Rua Eça de Queiroz 17, Pantanal, quadra 69, e aqui ele fundou o axé, mas ele
continuava dando assistência na casa da Bahia, o axé da Bahia [é] que foi [fundado]
pelos africanos. (PEREIRA, et alii, 2012)

Com essa nova migração, que pode ser considerada como uma nova diáspora
negra, a formação dos terreiros de candomblé ou das comunidades de terreiro (CONDURU,
2010) no Rio de Janeiro e em sua Região Metropolitana deve ser entendida como um processo
que se instala em um novo contexto: a urbanização.
Analisando a formação destas comunidades de terreiro, Conduru (2010) indica
uma movimentação histórica do centro da cidade para as periferias, com a transferência ou
mesmo o fechamento das casas que funcionavam em regiões eminentemente negras, como a
Pequena África, e arredores. Para Corrêa (2009), frente aos processos de modernização e
adaptação da cidade, os locais de culto, passam por uma perseguição, fechamento e

3
Entende-se que a primeira diáspora de negros da Bahia para o Rio de Janeiro tenha ocorrido após a Revolta dos
Malês, em 1835.
4
Babalorixá: do ioruba "Babá" (pai) + [dos] orixás. Dirigente masculino de um terreiro de candomblé. Recebe
esta título após cumprir todos os ritos iniciáticos e que, por ter o direito de utilizar o ifá/jogo de búzios e
construir seu terreiro e filhos, é designado como o pai dos orixás daquela casa. Feminino: ialorixá: "Ia" (mãe) +
[dos] orixás. Dirigente feminina de um terreiro de candomblé. Como o babalorixá, assume o cargo após ter suas
obrigações religiosas cumpridas.
140 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.
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recolhimento de objetos de culto pela polícia, o que os leva a se transferirem do Centro do Rio
de Janeiro para os bairros periféricos mesmo no século XIX antes do fim da escravidão e no
início do XX com Pereira Passos e suas reformas.
Sobre estes locais é interessante observar os apontamentos de Soares (1988) sobre
os zungús ou as casas de angu, locais não apenas de venda de alimento, repouso ou meio de
fuga da escravidão no século XIX, mas como também possíveis locais de cultos afro-
brasileiros. Tais locais estivessem eles no Centro ou em bairros mais afastados da vida
econômica e comercial, também eram, conforme os relatos policiais de batidas, "casas ligadas
às práticas religiosas" (SOARES, 1988, p.58).
É possível lançar uma hipótese de que tais locais poderiam ter contribuído para a
formação das comunidades de terreiro (Conduru, 2010)5, como ainda locais de sociabilidade
negra, de compra e venda de produtos e de extrema desconfiança para a polícia do século XIX
(SOARES, 1988). Assim, apesar das primeiras casas de candomblé serem datadas do final do
século XIX (CONDURU, 2010), os "zungús" poderiam expressar o início dessa formação de
locais de culto e iniciação de neófitos anteriores aos registros dos terreiros.
Sobre estes zungús interessa a esta pesquisa a descrição, mesmo que superficial,
dos espaços edificados e da cultura material ligada aos cultos afro-brasileiros encontrada nas
batidas policiais. Através da descrição é possível, por comparação com bibliografia
disponível, perceber uma similaridade enorme de elementos que constituem, na atualidade,
tais cultos. Quanto aos espaços erigidos, Soares (1988) descreve, a partir de tais relatos
policiais que

Nos fundos do prédio, cujo o interior se achava em "'grande imundice" o delegado


encontrou um quintal, com uma pequena casinhola de tábuas e telhas vãs.
Arrombada a porta, ele e seus asseciais depararam com uma cena imprevisível:
cinco jovens mulheres negras, completamente nuas, com as cabeças raspadas,
conservadas em total escuridão e reclusão. As jovens, como se comprovou depois
nas investigações, ficaram vários dias fechadas no pequeno compartimento, a fim de
se purificarem as neófitas que deveriam habilitar-se para serem admitidas e receber a
fortuna. Quando a escuridão se dissipou, o delegado e sua equipe ficaram ainda mais
espantados com a cena seguinte: diversas vasilhas de barro se dispunham no chão de
terra da casinhola, algumas com azeite de coco, outras com sangue, ervas, cabeças
decepadas de cabritos, búzios, que cercavam o exíguo espaço onde as "neófitas"
estavam sentadas (SOARES, 1988, p.65).

5
Por "Comunidade de Terreiro", Conduru (2010) indica serem locais em que eram implantados os "axés" ou
terreiros e onde pessoas passaram a fixar sua residência, construindo moradias no entorno dos espaços rituais dos
terreiros. Assim, poder-se-ia não apenas ter uma vida ligada ao terreiro e ao culto, mas também usufruir de uma
rede de mútua ajuda entre os diversos membros ali residentes quanto a dinheiro, saúde e alimentação, por
exemplo.
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Se a descrição for observada comparativamente aos relatos etnográficos e
historiográficos atuais referentes a uma "feitura de cabeça", ou seja, à iniciação nos cultos
afro-brasileiros (BENISTE, 1997 e VOGEL, 1993) é possível concluir que se tratava mesmo
de uma iniciação de iaô (nome que recebem os neófitos em muitos cultos afro brasileiros).
Em outro caso policial, Soares (1988), ao descrever a visão de um jornalista que
noticiava o fato, utiliza o relato para compor uma descrição da cultura material relacionada
aos cultos afro-brasileiros, podendo, da mesma forma que o espaço construído, ser comparado
às descrições atuais da cultura material correlatas às religiões afro-brasileiras e, em especial,
ao candomblé:
[...] 4 jabutis, um cesto com crânios humanos, cabeças de cabritos, 7 peles de
cabritos, argolas de diversos tamanhos, uma frigideira com vários bustos, colados
com uma substância que parecia uma argamassa e tinha o formato de bolo,
chocalhos de diversos tipos e tamanhos, e búzios em grande quantidade. Além disso
a polícia apreendeu tambores "africanos", colares e um baú velho com roupas que
provavelmente tinham uso ritual, pois o jornalista que cobriu a diligência disse
serem "fantasias". Muitos outros objetos escaparam do olhar minucioso do repórter
(SOARES, 1988, p.66-67)

Em outra incursão policial batida contra essas casas de "dar fortuna" (SOARES,
1988) é possível ainda perceber mais da cultura material destes locais e como eles eram
procurados para males relacionados à alma e também para "males físicos":

[...] Na casa, localizada no antigo Pendura Saia, o subdelegado encontrou diversos


vasilhames de barro com raízes, pós e águas, onde havia grandes favas. Uma grande
variedade de búzios ervas e caramujos também foram encontradas. Em um dos
quartos as autoridades depararam com numerosa quantidade de imagens de santos,
desde santos católicos até indecifráveis totens "africanos". (SOARES, 1988, p.82-
83)

Sobre tal relato se poderia dizer que, por semelhança com a cultura material
utilizada nos cultos afro-brasileiros atualmente (BENISTE, 1997 e VOGEL, 1993), as favas
poderiam ser o obi (Cola acuminata), uma noz africana utilizada em ritos de candomblé e
umbanda, os caramujos poderiam ser os bois de Oxalá ou Igbin (Achatina fulica), animal
utilizado em sacrifícios e para a iniciação de neófitos, e as numerosas imagens poderiam se
configurar como um "proto-congá", ou mesmo um congá, altar utilizado na umbanda que
contém as imagens de santos católicos, orixás e entidades caboclas (Maria Molambo e suas
variantes, Exus, Ciganos/Ciganas, Boiadeiros, Caboclos e Índios).
Ainda no texto de Soares (1988) se pode notar a presença de negros forros, livres,
escravos e os contatos destes entre si e com africanos vindos de outras regiões do Brasil após
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o fim do tráfico atlântico. Tal situação colocaria tais pessoas em relação, o que poderia
ocasionar trocas religiosas ou absorções de elementos religiosos externos aos indivíduos.
Além deste contato pessoal é possível pensar em interseções entre regiões, como Bahia e Rio
de Janeiro, em sistemas de fluxo e contrafluxo de culturas, o que, em ambas as situações,
poderia ser lido como uma cultura em diáspora.
Conduru (2010), ao analisar a formação dos terreiros, afirma que "se delineia um
panorama extenso de comunidades de candomblé no Rio de Janeiro vinculadas a
comunidades baianas de várias nações, em paralelo à continuidade das comunidades
anteriormente constituídas na cidade e na região" (CONDURU, 2010, p.14). É na interação,
na troca de experiências e mesmo na necessidade da perpetuação da crença que tais
comunidades religiosas se desenvolveriam.
A formação dos terreiros de candomblé no Rio de Janeiro no início do século XX
pode ser dividida em três interpretações quanto à origem dos membros desta religião. Tais
leituras, de certa forma opostas, afirmam a maior ou menor presença de baianos na formação
do candomblé carioca, a sua ausência ou ainda a presença de pessoas de outros estados da
federação.
A primeira interpretação, mais ligada ao elemento negro presente no Rio de
Janeiro pode ser vista na obra de João do Rio (2006, p.54), em sua célebre descrição sobre a
religiosidade carioca, na qual afirma que “[...] as casas dos minas conservam a sua aparência
de outrora, mas estão cheias de negros baianos e de mulatos”. Também Caldas (2008) destaca
a presença de uma religiosidade africana, visível inclusive em "médicos" ou curandeiros
negros, de origem angolana, na Corte Imperial, para os quais membros da elite carioca
buscavam as curas de seus males.
As pesquisas de Lima (2012) indicam, pelo viés da arqueologia, a presença de
uma religiosidade africana no Cais do Valongo. Uma prova de que as concepções de magia,
de proteção do corpo e do culto à ancestralidade estavam presentes entre os negros já desde o
início do século XIX.
Netto (2010) consegue indicar a existência de axés que não possuem ligação
alguma com Salvador, mas sim com a África. O que liga alguns terreiros cariocas não à
tradição baiana, mas sim a uma migração direta de africanos para o Rio de Janeiro:

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Guaiaku Rosena, africana, natural de Allada – Benim, que veio para o Brasil em
1864 (...) para o Rio de Janeiro, fundou um terreiro no bairro da Saúde, com o Asé
Podabá-Jeje”. O que é confirmado por Mejitó Helena de Dan, bisneta de santo de
Guaiaku Rosena, em seu depoimento contido nesse mapeamento: O nosso (asé)
aqui do Rio, especialmente o da minha casa, é o Jeje original, oriundo da África,
mas não tem descendência da Bahia. É Jeje do Rio de Janeiro mesmo. (NETTO,
2010, s/p.).

Gomes (2003) defende, para a procedência não “baiana” pura, de “que os baianos,
por mais importantes que possam ter sido na constituição de uma cultura popular urbana na
cidade do Rio de Janeiro, necessariamente dialogaram com tradições já existentes e com
outros grupos recém-chegados" (GOMES, 2003, p. 179). Assim, deste mesmo autor temos a
constatação de que:

Deve-se sempre ter em mente, enfim, que a experiência afro-brasileira na Corte,


depois Capital Federal, é necessariamente multifacetada e não pode, de forma
alguma, se restringir à trajetória de alguns indivíduos destacados em uma
comunidade da região portuária da cidade (GOMES, 2003, p. 198).

Já Moura (1995) oferece outra perspectiva na qual os baianos teriam uma maior
proeminência na fundação de tais casas:

Os baianos se impõem no mundo carioca em torno de seus líderes vindos dos postos
do candomblé e dos grupos festeiros, se constituindo num dos únicos grupos
populares no Rio de Janeiro, naquele momento, com tradições comuns, coesão, e um
sentido familístico que, vindo do religioso, expande o sentimento e o sentido da
relação consanguínea, uma diáspora baiana cuja influência se estenderia por toda a
comunidade heterogênea que se forma nos bairros em torno do cais do porto e
depois na Cidade Nova, povoados pela gente pequena tocada para fora do Centro
pelas reformas urbanas (MOURA, 1995, p. 43).

Rocha (2000), se alinhando à proeminência baiana no candomblé e


consequentemente na formação social carioca, pode ser citado como defensor dessa presença
baiana marcante nos candomblés do Rio de Janeiro, pois afirma que:

Ao longo da segunda metade do século XIX concentraram-se na cidade do Rio de


Janeiro, em número significativo, negros baianos que constituíam um grupo à parte
na massa de ex-escravos e seus descendentes, que, na virada do século, estavam
dispersos pela cidade, com ocupações variadas (ROCHA, 2000, p. 21).

Em entrevista ao Inventário Nacional de Registro Cultural do Candomblé no


Estado do Rio de Janeiro (2012), Ivanir dos Santos babalaô6 de grande destaque no Rio de

6
Sacerdote do culto ao Ifá, assemelha-se ao babalorixá/ialorixá, mas não incorpora seu orixá guia. O culto ao
Ifá é considerado mais um dos cultos afro-brasileiros (CACCIATORI, 1988). O Ifá pode ser compreendido
como um orixá ligado à adivinhação do futuro e do destino, tendo o babalaô como seu sacerdote e dirigente de
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Janeiro) fala sobre a preponderância da Bahia na formação do candomblé e da ligação entre as
cidades de Salvador e do Rio de Janeiro neste contexto. Ele destaca ainda a importância desta
ligação na tradicional raiz do Bamboxê, originado na Bahia, e com representação na capital
fluminense.
É...o velho Bamboxê, tem algumas coisas [que] ainda se fala sobre ele, mas ainda
não deu a ele a grandiosidade que foi o seu papel na organização do Candomblé na
Bahia, primeiro, né nos primeiros Candomblés. Também como sacerdote que
orientou e fez também algumas sacerdotisas importantes naquele período, né, tanto
que dizem e eu já ouvi da família dos mais velhos, que ele quando veio para o Brasil
veio pra primeiro dar autorização para raspar primeiro Oxum, aqui, e disseminar o
[incompreensível], o popular jogo de búzios, que vai ser mais disseminado ainda por
Benzinho seu neto, né depois. Pra você ter ideia que eles tem um papel importante
não só na organização do candomblé mesmo, né, conta umas histórias que o
candomblé nasce como roda nessa forma que a gente conhece hoje em parte, né,
essa forma... , é... quando ele é preso, né, na Bahia, quando ele é solto é feita uma
recepção pra comemorar a saída dele, e fazem uma roda, né , então dizem isso, eu já
ouvi falar sobre isso. Agora o que todo mundo sabe é que a roda de Xangô foi um
ritual criado por ele, criado de Xangô. Então, todas as casas tradicionais, como a
casa Branca, o Axé Opô Afonjá, o Gantois tem essa roda, pode variar um cântico ou
outro, uma forma de fazer, mas todos têm essas casas, isso é uma herança direta
dele, né da prática religiosa, né de organização deles, dos Obá de Xangô, nasceu o
Opô Afonjá, todo mundo sabe, né que [incompreensível] foi inspirado, né por ele.
É... ele teve uma importância, não só como sacerdote mas como babalaô na Nigéria,
ele é o líder espiritual e político de seu povo, ele é o guardião do seu povo, né [sic],
e ele cumpriu bem esse papel. E depois também o seu neto, Benzinho, de qual a
família hoje que existe basicamente aqui, é. na Bahia e aqui, é justamente a de
Benzinho, seu neto, né, que é a mãe Regina de Bamboxê, a Tia Irene, é, Mãe
Caetana, [incompreensível] que hoje tá no Pilão de Prata, né, essas famílias vem de
Benzinho, que era neto de Bamboxê e que continua perpetuando todo o trabalho.
Então costumo dizer que o candomblé brasileiro, ele deve a essa família muita coisa,
né... a essa família muita coisa (PEREIRA, et alii, , 2012, s/p).

Quanto à presença de indivíduos de outros estados da federação na formação


do candomblé carioca, o próprio Rocha (2000) informa que, na formação do Axé de
Mesquita, fundado após 1926, por Dona Pequena e por seu marido, João Bankolê, “[...]
juntou-se tia Bibiana (Oxalá) que veio de Recife" (ROCHA, 2000, p.26-27).

seu culto. Este oráculo pode ser composto de sementes de dendê (Elaeis guineensis Jacq. var. idolatrica) ou por
búzios (Monetaria moneta) sendo utilizados 16 ou 32 sementes/búzios na sua composição (BENISTE, 1999).
Conforme Cacciatore (1988, p. 142), ele "[...] é a palavra de Orumilá (um dos títulos do Deus Supremo, como
conhecedor do futuro) e assim faz parte da Divindade, da qual é mensageiro da luz [...]". O babalaô se utiliza do
Opelé Ifá ou Rosário de Ifá para o manuseio do jogo, sendo tal objeto constituído de: "[...] oito meias nozes de
dendê (ou búzios com fundo cortado) ligadas por elos de metal ou trança de palha da Costa, deixando no centro
um espaço maior. Uma das postas, masculina, é terminada por um nó, a outra, feminina, por 4 ou 5 fios de palha
da Costa ou linha [...]. Só o Babalaô verdadeiro, sacerdote de Ifá, tem direito a servir-se do opelé. Jogado dentro
de um círculo de colares sagrados (colar de Ifá) ou esteira ou peneira de palha, com colares e búzios ao redor, o
opelé deve cair em forma de U, com o lado aberto voltado para o Babalaô [...]" (CACCIATORE, 1988, p. 194-
195).
145 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.
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A partir destas três formas de interpretar a formação do candomblé do Rio de
Janeiro se tem a clara percepção de que houve a somatória de cultos aos ancestrais. Estes
cultos já existiam devido aos negros de diversas origens desembarcados majoritariamente no
Cais do Valongo. Ao mesmo tempo dirigentes baianos, e de outros estados brasileiros
migrados, se somaram na composição de uma religião que, claramente, tem origens diversas.
Apesar das formas específicas de adoração, a cultura negra em diáspora na capital federal, pôs
tais pessoas em contato, resultando assim num amálgama religioso que pode ser considerado
genericamente como a gênese dos terreiros de candomblé carioca.
A partir dos estudos de Conduru (2010) se pode historicizar a formação de tais
terreiros na seguinte ordem cronológica dos acontecimentos, conforme a tabela 2 abaixo. A
historicização somada a uma visão geográfica da diáspora das casas na formação do
candomblé interessa ao presente artigo, pois situa a formação das casas aqui analisadas ou das
casas mães7.
O Mapa 3, a seguir, apresenta esse movimentação e atenta para seu fluxo
concêntrico a partir da região portuária ou central do Rio de Janeiro para as periferias da
cidade, para a Baixada Fluminense e Região de Niterói e São Gonçalo, impulsionada,
sobretudo, pela pressão urbana contra tais cultos e pela necessidade de espaço para as casas se
expandirem com novos membros (Rocha, 2000).

Período Movimentação geográfica Principais Comunidades ou Casas de Candomblé e


ou diaspórica suas características
Da Segunda metade Instalação das primeiras Destaque para líderes como Rodolfo Bamboxê, João
do século XIX até a casas conhecidas nos bairros Alabá, Cipriano Abedé e Mãe Aninha ("nação" "Kêtu");
década de 1930 centrais da cidade do Rio de de Rozena Besseim, Domotinha de Oiá e Natalina de
Janeiro Oxum ("nação" "Jêje") e Joãozinho da Gomeia, João
Lessenge e João Gambá ("nação" "Angola").
Após a morte de muitos dirigentes algumas casas
fecham ou se dispersam em novas casas com seus
antigos membros. O período se caracteriza por certas
descontinuidades quanto aos locais de instalação, do
culto e permanência dos dirigentes no Rio de Janeiro.
Há uma forte migração de baianos para o Rio de Janeiro
no período.
Anos de 1940 Transferência das Caracteriza-se pelo duplo movimento de fechamento de
comunidades para o algumas casas e abertura de outras pelos ex- membros
subúrbio da cidade do Rio das casas encerradas. Ao mesmo tempo, outras casas se
de Janeiro ou para a Baixada consolidam no cenário do candomblé carioca. Podem
Fluminense ser descritas como casas fundadas a partir deste

7
O Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador (2007) indica que as "casas mães" são aquelas que,
obedecendo ao funcionamento do candomblé, permitiriam a determinados membros, após sua formação
concluída nesse culto, saírem de suas casas e fundarem novas. Isso torna o terreiro nascente "filho" ou "da
descendência" da "casa mãe".
146 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.
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período: Opô Afonjá, as comunidades de Meninazinha
d'Óxum, Regina do Bamboxê, Casa de Pai Ninô, Casa
de Mãe Dila, Casa de Cristóvão de Efon (inaugurando a
"nação" "Efon" no estado), Terreiro de Valdomiro de
Xangô e o Tumba Jussara de Manoel Ciriaco de Jesus.
Anos de 1950 e 1960 Fixação das casas nos Manutenção da migração de baianos para o Rio de
subúrbios do Rio de Janeiro, Janeiro. Fundação do Terreiro de Tata Fomotinho, de
Baixada Fluminense e Zezito de Oxum ("nação" "Ijexá); Zezinho da Boa
Região de Niterói e São Viagem"Angola"); Mãe Beata de Iemanjá. Delinha
Gonçalo. d'Ogum e Janete d'Oxum (tradição "Alaketu"); Nitinha
d'Oxum, Tetê de Oiá e Elza de Iemanjá (tradição da
Casa Branca do Engenho Velho); Marina de Ossain,
Letícia d'Omolu, Almerinda d'Oxossi, Edelzuita
d'Oguiã, Lindinha d'Oxum, Margarida d'Oxum, Marta
d'Oxum e Simone d'Oxossi (tradição do Gantois) e, por
fim, Álvaro Pé-grande, Benta de Ogum, Teodora
d'Iemanjá e Tomazinha d'Oxum (tradição do Engenho
Velho de Cima).
No mesmo período chegam ao Rio de Janeiro as
primeiras casas ligadas ao culto de Babá-Eguns:
Laércio e Braga, Ojé Josiel.
Consta ainda a entrada da tradição do Bogum de
Salvador (BA) neste período com Margarida d'Iemanjá
e Wildirzinho de Oxumarê
Anos de 1970 aos Manutenção das casas de Proliferação de casas de todas as nações, mas com
dias atuais candomblé nas periferias do especial destaque para as de origem "ketu".
Rio de Janeiro (incluindo a
Zona Oeste) e na Região
Metropolitana do Rio de
Janeiro.
Tabela 2. Historicização e expansão geográfica dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro entre os séculos
XIX e XX. Fonte: Adaptado de Conduru (2010).

Mapa 3. Diáspora das comunidades de Candomblé do Rio de Janeiro – Do século XIX até a atualidade:

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1 - Da segunda metade do século XIX até a década de 1930. 2 - Anos 1940. 3 - Anos 1950 aos dias atuais.
Fonte: Adaptado de Conduru (2010).

A partir da Tabela 2 e dos dados de Conduru (2010) podemos perceber um


movimento que, surgindo no Centro do Rio de Janeiro, se transfere primeiro para bairros mais
afastados da região central e portuária ocupando áreas distantes do centro administrativo e
econômico da cidade. Isto lhes deixa longe das perseguições policiais Corrêa (2009).
Inicialmente era composto por migrantes de diversas áreas do Brasil e baseado numa
religiosidade fundamentada na ancestralidade.
Após essa primeira diáspora, o movimento se dirige para as periferias da capital
em busca de locais em que estivessem distantes da perseguição policial e que, concomitante a
isso, permitissem a formação de terreiros maiores e mais adaptados às necessidades de uma
crescente clientela e de neófitos iniciados Corrêa (2009).
Após a década de 1950, há uma considerável expansão dos terreiros, determinada
pelo seu crescimento e pelo desmembramento em novas casas sob a direção de iniciados que,
completados em suas obrigações, tinham autorização para fundar suas próprias roças, o que
confere à Baixada Fluminense e Zona Oeste do Rio de Janeiro grande número de terreiros,
que se formaram nessa fase.
Tendo em vista o conjunto de casas visíveis na cidade (mesmo sem um inventário
total das mesmas), perceber essa movimentação do Centro para as periferias, ou mesmo para
fora da cidade do Rio de Janeiro, é de extrema importância, pois ilustra não apenas essa
“diáspora” de casas, mas a movimentação dos próprios dirigentes no intuito de se
estabelecerem em locais adequados e assim formar seus filhos, clientela de jogo e
prosseguirem com o atendimento aos orixás8.
A partir dessa amostra, podemos perceber que marcos físicos denotaram e ainda
denotam sua presença nestas paisagem, sendo traços não apenas da presença das casas nas
periferias do Rio de Janeiro, mas também marcos desta “diáspora” ocorrida e, que sob outro
aspecto - o da continuidade do movimento -, ainda ocorre:

Os templos, embora inseridos no cenário arquitetônico urbano-periférico, podiam


ser distinguidos – e ainda o são – através da presença de sinais diacríticos, como a

8
Rocha (2000) indica, por exemplo, que teria sido o próprio Xangô, patrono do Terreiro, o responsável pela
transferência do Opô Afonjá do bairro de São Cristóvão para o atual bairro de Coelho da Rocha (São João de
Meriti), pois este orixá desejava um espaço maior onde pudesse se manifestar mais livremente, longe de vizinhos
que se incomodassem com as festas.
148 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.
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bandeira de tempo (mastro fincado no solo, na entrada do terreno, onde tremula uma
bandeira branca) e as quartinhas (potes de barro), colocadas sobre os muros e
telhados. (BARROS, 2000, p. 31).

Desta maneira, elementos utilizados intencionalmente se tornaram marcos destes


terreiros e continuam sendo subsídios para a identificação, descrição e análise destes locais de
culto, bem como de seus membros e de sua religiosidade. Tais elementos podem ser
utilizados, como defendeu Pereira (2013b) como marcos paisagísticos para a percepção das
formas de implantação e mesmo funcionamento destes locais religiosos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, podemos perceber como a formação dos terreiros de


candomblé e mesmo dos/das dirigentes que estavam em seu comando possuem procedências
diversas e, ao mesmo tempo, apresentam vertentes geográficas distintas para o culto no Rio de
Janeiro. Também é possível perceber como houve um movimento concêntrico - do Centro
para o Grande Rio - na diáspora das casas e suas consequentes expansões, o que nos permite
pensar neste desenvolvimento como uma nova diáspora da cultura afro-brasileira.
A diversidade de procedências e de seus/suas dirigentes nos informa sobre um
quadro diversificado de ramos do candomblé, o que, por essa leitura, seria opositor à primazia
nagô defendida por Bastide (2001) ou Landes (2002), que defendem uma primazia baiana
sobre os candomblés. De forma semelhante, reforçam os dados tão criticados de Nina
Rodrigues e Arthur Ramos quanto à procedência e influência banto e sudanesa no Brasil (o
que não permite, contudo, validar as primazias étnicas dos autores).
Sobretudo, o artigo apresenta uma sistematização inicial sobre a formação dos
candomblés cariocas e como ele não está ligado apenas à escravidão ou à migração baiana
para o Rio de Janeiro, mas sim a diversas origens e, por conseguinte, diversas "nações" e
tradições de culto à ancestralidade afro-brasileira.

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∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

152 Bilros, Fortaleza, v. 2, n.3, p. 125-152, jul.-dez. 2014.


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O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO BRASIL:
ALGUMAS REFLEXÕES

Vanessa Cristina Pacheco Silva


Licenciada e Bacharela em História pela FURB - Universidade Regional de Blumenau. E-
mail: panambi_ness@yahoo.com.br.

153 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 153-166, jul.-dez. 2014.


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O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO BRASIL: ALGUMAS
REFLEXÕES

DÍA DE LA CONCIENCIA NEGRO EN BRASIL: ALGUNAS


REFLEXIONES

Vanessa Cristina Pacheco Silva

RESUMO RESUMEN
O trabalho visa estudar a data 20 de novembro, El trabajo tiene como objetivo estudiar el día
aniversário da morte de Zumbi dos Palmares 20 de noviembre, aniversario de la muerte de
que se tornou símbolo alusivo ao Dia da Zumbi, que se convirtió en un símbolo que
Consciência Negra no Brasil, em oposição ao conmemora el Día de la Conciencia Negro en
13 de maio, data em que é comemorada a Brasil, en contraposición al 13 de mayo,
abolição da escravatura no calendário nacional, cuando se celebra la abolición de la esclavitud
porém, amplamente criticada pelo Movimento en el calendario nacional, Sin embargo, muy
Negro como uma data totalmente desprovida criticada por el Movimiento Negro como una
de representatividade em relação aos escravos. fecha enteramente desprovista de
Como fio condutor, toma-se o estudo representatividad en relación con esclavos.
bibliográfico sobre quilombo, – em especial o Como conductor, se convierte en el estudio
símbolo mais emblemático que é o Quilombo bibliográfico de Quilombo, sobre todo en el
dos Palmares – pós-escravidão, nascimento do símbolo más emblemático es el Quilombo dos
Movimento Negro e a criação do Dia da Palmares, post-esclavitud, el nacimiento del
Consciência Negra. Tal data foi pensada pelo Movimiento Negro y la creación del Día de la
Grupo Palmares, grupo encabeçado por Conciencia Negro. Ta l Fecha de pe se pensó
Oliveira da Silveira, que se dedicou a Palmares Group, grupo encabezado por
necessidade de criar um dia que representasse Oliveira da Silveira, que se dedicó a la
a conscientização do negro em ralação as suas necesidad de crear un día que representa la
características estéticas e culturais. Sua ideia conciencia de rejilla negro en sus
foi incorporada pelo Movimento Negro que, ao características estéticas y culturales. Su idea
entender o quilombo como símbolo que fue incorporada por el Movimiento Negro que
representa a luta contra o sistema escravista, entendiendo el Quilombo como un símbolo
torna a história do Quilombo dos Palmares e a que representa la lucha contra el sistema
morte do líder Zumbi um símbolo de liberdade, esclavista, hace que la historia de la muerte
democracia e conscientização e o Dia da Quilombo dos Palmares y de Zumbi lleva un
Consciência Negra numa bandeira, não símbolo de la libertad, la democracia y la
somente do Grupo Palmares, mas de todos os conciencia y Día de la Conciencia una bandera
Movimentos Negros brasileiros. negro, no sólo el Grupo Palmares, pero todos
los movimientos negros en Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Consciência Negra,
Quilombo, Grupo Palmares. PALABRAS CLAVES: Conciencia Negro,
Quilombo de Palmares Group.

154 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 153-166, jul.-dez. 2014.


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A história do Brasil foi construída sobre os alicerces de uma sociedade
escravocrata agrícola, período que desencadeou na cultura brasileira a superioridade a partir
da raça e, com isso, mazelas sociais que nem mesmo mais de um século da abolição da
escravatura conseguiu superar.
Diante da importância de pensar a questão racial no Brasil o texto foi construído
com a intenção de problematizar a data 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos
Palmares e símbolo alusivo ao Dia da Consciência Negra no Brasil, criada com a intenção de
contrapor ao 13 de maio, data em que é comemorada a abolição da escravatura no calendário
nacional, porém, amplamente criticada pelo Movimento Negro como uma data totalmente
desprovida de representatividade em relação aos escravos.
O estudo em torno do tema se fez possível através de pesquisa em bibliografias
que debatem as mazelas sociais tatuadas pelo período escravocrata, inclinando maior
dedicação ao estudo sobre quilombos como uma reação de resistência escrava; nesse caso
sublinha-se o fato de que o quilombo ocupa lugar de destaque na historiografia transformado
em símbolo de movimentação contra a política de dominação em prol da liberdade, um lugar
onde o negro podia viver de acordo com sua cultura. Ainda em minha pesquisa bibliográfica,
procurei também os temas: pós-abolição, nascimento do Movimento Negro Brasileiro e a
criação do Dia da Consciência Negra, data pensada por Oliveira da Silveira juntamente com o
Grupo Palmares.
O trabalho destaca o fato de que todo o período escravocrata esteve relacionado à
luta dos negros perante o sistema escravista, a final, “Onde houve escravidão houve
resistência” (REIS, 1996, p.09) ocorrida de formas variadas que compreendem desde a quebra
de ferramentas até os atos mais extremos como a ação de assassinar seus senhores. Reis
continua explicando que uma das ações mais comuns de resistência era a fuga e a “formação
de grupos de escravos fugidos” (1996, p.09) que para viver o sonho de liberdade se
arriscavam fugindo em busca de um lugar seguro para se refugiar. Nesses lugares,
constituíam-se formas organizadas de sociedade por meio de um relacionamento com a terra e
movidos pelo desejo de liberdade para viver sua cultura afro-brasileira. Estes lugares foram
denominados quilombos.
Os quilombos são locais de destaque na temática da escravidão e a historiografia
brasileira se desdobra em pesquisas para entender a complexidade que envolve a definição de
quilombo. Para alguns, essa dinâmica caracteriza “um espaço cultural que ao agregar homens,

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mulheres e crianças, com diferentes origens étnicas e crenças, foram sendo construídas
verdadeiras muralhas humanas” (NUNES, 2009, p.198), todos prontos à ação belicosa para
defender seu espaço de cultura.
Assim, mais que um espaço de aglomeração recorrido por pessoas que se sentiam
escravizadas pela política social, o espaço quilombola é entendido como “um espaço
pedagógico para o aprendizado do convívio com a diferença; os escravizados da cor, do corpo
e dos ideais onde negros, índios e brancos estabeleciam redes de solidariedade, internas e
externas se constituindo [...] numa legião de homens e mulheres” (NUNES, 2007. p.08). Um
lugar onde os negros trabalhavam para seu sustento e viviam suas crenças e tradições
culturais.
Uma das primeiras tentativa de conceituar quilombo veio do rei de Portugal que,
“em resposta a consulta do Conselho Ultramarino, definiu quilombo como uma “habitação de
negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1993, p.11), em suma, qualquer lugar
abandonado que se encontrasse ajuntamento de negro. No entanto, a “palavra originária da
África - kilombo - refere-se a uma associação de homens aberta” (MUNANGA e GOMES, 2004
Apud NUNES, 2007, p.8), um lugar no qual os negros podem casar, trabalhar na terra, viver em
comunidade seguindo sua tradições.
Tais ações resultaram em quilombos espalhados por todo o Brasil e dentre todas
as histórias de quilombos e quilombolas conhecidas no país, o símbolo mais emblemático
deste processo foram os Quilombos de Palmares e seu líder Zumbi que, conforme Nunes, “em
terra brasilis, fizeram da liberdade um rastro a ser mantido através de suas reminiscências”
(2009, p. 197). O Quilombo dos Palmares tornou-se um representante central dos quilombos
existentes no Brasil e sua história exaltada pela comunidade negra, o transformou em
referência para as lutas de liberdade dos negros.
Em meio a tantas citações sobre o quilombo de Palmares, faz-se interessante uma
explicação, ao menos resumida sobre ele. O quilombo se localizava em Pernambuco, na atual
região de Alagoas e a maioria de seus integrantes haviam sido trazidos para o Brasil dos
países africanos Angola e Zaire, continentes que entendem o conceito de “Kilombo [como
representação de] uma sociedade guerreira [...] com uma disciplina militar estrita” (REIS,
1996, p.29, grifo meu). Palmares tem em sua história quase um século de resistência e seu
crescimento chegou a alcançar uma “população de cerca de 50 mil pessoas” (TIÇÃO, 1978.

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p.20). Essa soma elevada de integrantes se deve a, além de escravos fugidos e dos
nascimentos acontecidos dentro do quilombo, “o ingresso [...] de índios salteadores, fugitivos
da Justiça de modo geral e elementos de todas as demais etnias” (MOURA, 1993, p. 42).
Palmares era formado por vários outros quilombos que tinham Zumbi como líder do grupo. A
capacidade de organização e resistência desses quilombolas ameaçava o governo escravocrata
que, na tentativa de conter seus avanços, organizava expedições para tentar matar os
revoltosos. Diante de traições e violentas investidas, esse símbolo de resistência começou a
enfraquecer a tal ponto que durante um confronto ocasionado por uma traição ao líder, Zumbi
foi assassinado e teve sua cabeça exposta em praça pública. Essa exaltação da vida de Zumbi,
sua luta contra a escravidão e seu assassinato ocasionado por uma traição desencadeia numa
admiração que proporcionou a transformação do Zumbi dos Palmares em herói nacional.
Hoje, em vários estados brasileiros, remanescentes quilombolas que ainda vivem
em regiões de antigos quilombos, defendem seu direito a terra como um espaço “fruto da
memória e da experiência pessoal e compartilhada. [...] mais que extensão territorial, trata-se
de porção do espaço geográfico onde ocorre tanto a produção material, quanto a produção dos
significados simbólicos e culturais da comunidade” (MALCHER, 2010, p. 03). Esses
herdeiros da terra se tornaram, de algum modo, conectados a essa história da escravidão e este
processo inspirou o movimento negro a criar uma militância contra o preconceito racial,
baseado no histórico de luta inerente aos quilombos.
A memória acerca das lutas relacionadas aos quilombos no Brasil escravocrata
torna-se um elemento que encabeça movimentos de reação contra o racismo presente na
atualidade e é inspirado na bravura do negro escravo do passado que o movimento negro
brasileiro toma como foco a realização de ações no presente, engajado na “luta por melhores
condições de vida para pretos e pardos no país” (ALBERTI, 2007, p. 639), com especial
interesse na conscientização racial e na importância do respeito à diversidade.
Tal luta da população negra se estende até a contemporaneidade amargando os
resultados negativos da pós-abolição, cujos dados históricos deixam explícitos que o fim da
escravidão ocorreu eminentemente por motivos políticos, em busca de produção cada vez
maior. De acordo com Trevisan, “o Parlamento Inglês aboliu totalmente o tráfico de escravo
para as suas próprias colônias. E começou a pressionar os países [...] acabaram com o tráfico
de escravos para depois atingirem a abolição” (1988, p.27). Neste movimento todo, o Brasil

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foi protelando a decisão em meio a acordos diplomáticos e conseguiu ser um dos últimos
países a abolir a escravidão.
A liberdade real não se deu como esperada, nem como passada nos filmes ou nos
livros didáticos no qual aprendemos uma história romanceada, trata-se de um processo social
delicado, onde se teve uma libertação arraigada no preconceito, negros subjugados e
desempregados, o que leva a crítica feita pelo Movimento Negro de que a abolição não
proporcionou a “absorção dos africanos e brasileiros negros ao mercado de trabalho
capitalista que sucedeu o regime escravocrata. A República nascente decidiu pelo
embranquecimento da população brasileira, substituindo os escravos pelos colonos europeus”
(2009, p.46). Em outros termos, a política de imigração proporcionou mão de obra imigrante e
de baixo custo em abundância, e deixou as de ex-escravos para reserva.
Se por um lado a preferência dos senhores empregadores não era pelos ex-
escravos, por outro lado muitos dos ex-cativos se recusavam ao papel de trabalhadores dos
brancos e acabavam ocupando terras abandonadas iniciavam “o cultivo de mandioca e a
criação de animais. Isso mostra que os ex-escravos percebiam que a condição de liberdade só
seria possível se pudessem garantir a própria subsistência e definir quando, como e onde
deveriam trabalhar” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p.198). Como libertos, entendiam a
liberdade como uma abertura para o acesso a terra, a dignidade, a educação, assim como os
brancos.
Os motivos e as consequências da abolição, ocorrida em 13 de maio de 1888,
sobre ex-escravos não curou as mazelas causadas o período escravocrata e a falta de políticas
para incluir o negro na sociedade como cidadão livre representou um abandono político e
social. Discutindo as dinâmicas desse processo, French sugere que “a Lei Áurea não teria
representado um impacto ruptural com o passado de escravidão, haja vista a continuidade de
aspectos estruturantes da sociedade escravista” (FRENCH, John apud ARAIZA, 2012, p. 28)
e, uma vez que a sociedade não estava preparada para tal mudança não via o homem negro
fora da condição de escravo. Como não existiam mecanismos para que os negros
estruturassem sua vida, entende-se que a população negra foi entregue “à própria sorte,
colocada fora do mercado de trabalho, completamente excluída do acesso à terra, à renda, à
instrução, a qualquer instrumento que lhe desse condições de competir por uma ocupação
formalmente remunerada” (PALMARES, 2009, p.46.). Com a abolição, o Brasil entra em

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crise política, situação que agrava a crise social, pois a liberdade almejada pelos negros ainda
era uma espécie de sonho não concretizado.
Vendo a abolição sob esse prisma, o Movimento Negro demonstra sua
insatisfação com o projeto da Abolição no qual, em “nome da justiça e da humanidade
burguesas, os abolicionistas erigiam-se em procuradores dos oprimidos, excluindo-os da luta
pela liberdade e da própria história” (LARA, 2012, p.28). A crítica se refere à história que
apresenta os burgueses vestidos de boa vontade onde, com a imposição da lei Áurea tentam
convencer o país do fim da escravidão, quando na verdade, a luta pela liberdade sempre foi
encabeçada pelo negro escravo e só começou a ter apoio dos burgueses quando suas teorias se
viram ligadas ao fato da oposição entre escravidão e capitalismo, onde o escravo perdia a
senzala, que era um teto fornecido pelo seu Senhor e ganhava a liberdade das ruas e, com ela,
a marginalização e a discriminação racial.
Perante essa ausência de políticas em prol dos ex-cativos, os próprios se
movimentaram em busca de uma real liberdade que só seria possível por meio do
reconhecimento social. Um exemplo de iniciativa, a ação providenciada no estado do Rio de
Janeiro quando, “após o dia 13 de maio, um grupo de libertos da região de Vassouras, [...]
endereçou uma carta a Rui Barbosa, então figura importante da política nacional. Na carta,
eles reivindicavam que os filhos dos libertos tivessem acesso à educação”
(ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p.198.). Ou seja, como homem livre almeja uma posição
social, os “ex-escravos, agora tinham planos de ascensão social para seus filhos. E, ao
contrário do que proclamavam alguns abolicionistas, aqueles libertos tinham, sim, uma
interpretação própria do que seria cidadania” (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p.198.) e
mais, mesmo muitos desejando voltar para a África, movidos por uma memória ancestral, eles
sabiam que também faziam parte dessa terra.
Anos de lutas travadas em prol de uma política que visa qualidade de vida para os
negros resultaram em conquistas consideráveis, a exemplo dos debates plantados pelo partido
político Frente Negra Brasileira (FNB) que em 1931, lutava “pela inserção do negro no
mercado de trabalho [...] Sua luta [...] deu resultados. Com o início da industrialização do
país, os negros começaram a ser contratados pelas fábricas, ainda que em postos de pouca
qualificação” (PALMARES, 2009, p. 48-49). A FNB agia como se fosse um sindicato que
intervinha perante os empregadores para introduzir o negro no mercado de trabalho.

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Em defesa da população negra, a FNB foi encabeçada pelos Movimentos Negros
que insistiam em um, como descrito por Alberti, “processo interno de reconhecimento da
negritude” (2007, p.240), que implica na aceitação do negro em relação a sua cor de pele, ao
seu cabelo crespo, a suas crenças e a cultura africana. Essa renovada organização do povo
negro “pode ser compreendido como um novo sujeito coletivo e político que, juntamente com
os outros movimentos sociais, emergiu na década de 70 no cenário brasileiro” (GOMES,
2011, p.135), período delicado no qual a sociedade brasileira se encontrava inflamada pelo
governo militar.
Mesmo uma realidade de repressão não desencorajou por completo os militantes
que se opunham ao preconceito e, em 1978, revoltados, “militantes de várias entidades
promovem, em plena ditadura, um grande ato público denunciando o racismo no Brasil.
Nasce ali o Movimento Negro Unificado, que em novembro daquele mesmo ano declara o 20
de novembro como o Dia da Consciência Negra” (PALMARES, 2009, p.49).
Essa grande manifestação derivou da indignação dos militantes com o racismo da
sociedade que estava causando a morte e o impedimento de negros de frequentar os mesmos
ambientes que as pessoas de outra raça. Uma semana depois, o movimento negro passa a se
chamar Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR).
Importante fixar que, quando o MNUCDR foi criado, em 1978, muitos dos grupos
militantes que se fizeram presentes na manifestação e contribuíram para a conquista de sua
formação já estavam formados desde o início da década de 70. Entre eles, destaca-se o Grupo
Palmares, formado em 1971 no Rio Grande do Sul, grupo responsável pela ideia incorporada
pelo MNUCDR de “deslocamento das comemorações do treze de maio para o vinte de
novembro” (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 31).
O Grupo Palmares era formado por homens e mulheres, todos negros,
encabeçados pelo professor e poeta gaúcho Oliveira da Silveira e convictos de que a data
comemorada pelo aniversário da Abolição da escravatura, treze de maio, não representava a
liberdade da raça negra; por esse motivo passaram a se reunir para debater as reais
significâncias da data. Em entrevista ao Portal Afro, Oliveira da Silveira explica que o grupo
se reunia para falar sobre a não representatividade do 13 de maio para a comunidade,
referindo-se ao fato de a decisão da libertação dos escravos ter sido tomada pela burguesia por
motivos capitalistas e ao abandono do governo que não se preocupou em criar política de
inclusão do ex-cativo.

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O marco do início das atividades, a data vinte de julho de 1971, foi adotada pelo
Grupo Palmares como a data dos primeiros encontros que começaram acontecendo em alguns
finais de tarde no centro da cidade de Porto Alegre, em vários pontos já que não tinha uma
sede específica. A articulação das reuniões era um tanto quanto complexa, pois o caráter
voluntarioso de seus participantes, em sua maioria trabalhadores e pais de família, nem
sempre permitia uma constância nas reuniões, fator que gerou várias desistências e
modificações entre os membros do grupo quando ainda em processo de adaptação.
Durante os encontros, várias questões sobre as condições do negro na sociedade
eram levantadas, dentre elas a “tendência à unanimidade. O treze não satisfazia, não havia por
que comemorá-lo. A abolição só havia abolido no papel; a lei não determinara medidas
concretas, práticas, palpáveis em favor do negro”. (SILVEIRA,2003. p.24). Por meio da fala
do próprio Oliveira da Silveira, explica-se o porquê do grupo começar abolindo o treze, e com
isso, incumbindo-se da tarefa de encontrar outra data, uma data em que os negros se
identificassem e reconhecessem como digna de comemoração. Mais que isso, procuravam
uma data que remetesse ao debate sobre a raça negra outrora tão estigmatizada pela
escravidão.
Dedicados em um movimento de negação da “história oficial e de contribuir para
a construção de uma nova interpretação da trajetória dos negros no Brasil, aspectos que
distinguem o movimento negro dos demais movimentos sociais e populares da década de 70"
(GOMES, 2011, p.136), os integrantes começaram estudando a História e a escravidão do
Brasil a contra pelo. A partir disso, nota-se o Grupo Palmares totalmente inserido no ritmo
dos movimentos sociais que estavam acontecendo ao mesmo tempo, histórico que se encontra
marcado pela agitação política no Brasil do período ditatorial.
Dentre os conteúdos estudados, o Quilombo de Palmares cada vez mais se
destacava como marcante na trajetória do negro no Brasil. Sob essa perspectiva, entre os
textos estudados para pensar a história de Palmares estão: “o fascículo Zumbi, o n° 6 na série
Grandes Personagens da Nossa História, da Abril Cultural [...] E lá estava o dia 20 de
novembro de 1695, data da morte heroica de Zumbi, último rei e líder dos Palmares”
(SILVEIRA,2003. p.25). Essa revista a qual Oliveira da Silveira se refere foi publicada em
1969, a qual, em meio aos artigos sobre personagens influentes, trouxe a história de Zumbi e
o Quilombo de Palmares. Pode-se ainda destacar outras fontes relevantes como: “O quilombo
dos Palmares, livro de Édison Carneiro publicado em 1947 [...] Confirmava o 20 de

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novembro como data da morte de Zumbi, o que foi corroborado mais adiante pela obra As
guerras nos Palmares, do português Ernesto Ennes, editado em 1938” (SILVEIRA,2003,
p.25). Segundo o próprio Oliveira da Silveira foram essas bibliografias que influenciaram o
entendimento do grupo de que a data da morte de Zumbi deveria ser exaltada como um
símbolo que representa a resistência, a luta contra a escravidão em prol da liberdade.
Perante a conclusão da não representatividade do 13 de maio, em meio a tais
fontes de pesquisa, Oliveira da Silveira, juntamente com o Grupo Palmares, vê projetado na
história do Quilombo de Palmares que se estende com a vida e morte de Zumbi, um século de
luta do povo negro contra a escravidão. Assim, como o grupo não encontrou dados referente a
data em que iniciou o quilombo, tão pouco sobre o nascimento de Zumbi, adota-se a data de
sua morte como um símbolo de resistência negra. A partir disso, os militantes passaram a se
dedicar à disseminação da ideia.
Toda uma mobilização foi adotada para a divulgação da data e a comemoração do
primeiro 20 de novembro acabou acontecendo em Porto Alegre, cidade sede do Grupo
Palmares, no ano de “1971, um sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, sociedade
negra [...] Público reduzido, conforme o esperado, mas considerado satisfatório” (SILVEIRA,
2003, p.35). Dá-se o início de um novo e árduo trabalho, divulgar a historia do quilombo de
Zumbi como uma inspiração para a luta contra o preconceito e a valorização da cultura negra.
Após a primeira homenagem, todos os anos passaram a ter comemorações como passeatas ou
outras formas de manifestação por todo o Rio Grande do Sul.
Em 1978, como citado anteriormente, o Grupo Palmares, ramificado em
Movimento Vinte de Novembro, teve suas ideias incorporadas pelo MNUCDR. Após sua
adesão, o Movimento Negro batizou a data de O Dia Nacional da Consciência Negra, nome
sugerido pelo próprio Oliveira da Silveira. Gonzalez complementa: “Graças ao empenho do
MNU, ampliando e aprofundando a proposta do Grupo Palmares, o 20 de novembro
transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro” (GONZALEZ;
HASENBALG, 1982. p. 57). Valorizada pelo MNUCDR, a importância atribuída a data da
morte de Zumbi passou a ser divulgada por todo o Brasil através do seguinte discurso: “É
preciso que o movimento [...] se torne forte, ativo e combatente; mas para isso é necessária a
participação de todos, afirmando o 20 de novembro como o dia nacional da consciência
negra” (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 57). Esse discurso era repetido como se fosse
um grito de guerra que unia a comunidade negra através de um objetivo em comum: “pelo dia

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nacional da consciência negra, pela ampliação do MNUCDR, por uma verdadeira democracia
racial, pela libertação do povo negro” (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 57).
O Grupo Palmares teve uma atuação importante dentro do movimento negro e
para a sociedade como um todo. Em suma, sua história pode ser apresentada em três fases:
Grupo Palmares, Grupo Tição e momento em que passam a fazer parte do MNUCDR.
Sua primeira etapa como grupo de trabalho Palmares findou em 1978 após ter
realizado publicações em jornais discutindo questões raciais, promovendo a história dos
quilombos de Palmares e divulgando manifestações culturais. O grupo promoveu exposições
de artes feitas por artistas plásticos negros, palestras, promoção de eventos como mini-
biblioteca com palestrantes, encontro de música e dança afro, entre outras ações.
A segunda fase se deu com a criação da revista Tição que intencionava divulgar suas
discussões em torno das questões raciais. Criada em plena ditadura militar, a revista foi
classificada como Imprensa Alternativa, porem não tinha como intenção fazer uma afronta
direta aos discursos do governo repressivo. Ela se dedicou a trabalhar, por meio de artigos e
fotografias ilustrativas, a conscientização racial através da negritude, oposição ao treze de
maio o colocando como uma data sem qualquer representatividade de liberdade para a
comunidade negra e divulgava a ideia do vinte de novembro, baseada na concepção do que
representa o quilombo e a tradição quilombola trazendo como representante o Quilombo dos
Palmares e, vendo na data da morte do líder Zumbi, uma representação de consciência negra.
A revista Tição trabalhava seus temas dialogando com outros jornais que também
compunham a imprensa alternativa negra da época. Esse trabalho foi um importante elemento
que contribuiu com a veiculação da ideia de oposição ao 13 de maio e marca a fase na qual o
grupo se ramificou como Grupo Tição (1977 – 1980).
A terceira e última fase, se deu entre 1988 e 1989, época em que parte dos
integrantes do grupo passou a fazer parte do Movimento Negro Unificado, dispersando-se em
várias ramificações militantes, outra parte continuaram “no mercado de trabalho tradicional
como naquela época. Outros, envergaram o compromisso com a comunidade negra,
trabalhando em Organizações Não–governamentais (ONGS)” (MORAES, 2008. p.59). Como
uma de suas maiores conquistas do Grupo Palmares ficou a ideia do vinte de novembro, dia
da morte de Zumbi, como dia da Consciência negra, “criação inequivocamente negra,
emergindo da própria comunidade negra e seguindo caminhos próprios” (SILVEIRA, 2003,
p.35). Uma ideia que partiu de negros, já que o grupo primava em ser formado

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exclusivamente por integrantes negros e, após ser resignificado pelo MNUCDR tornou-se
uma bandeira, não somente do Oliveira da Silveira e do Grupo Palmares, mas do Movimento
Negro como um todo que desconsidera as comemorações do treze de maio, data da abolição
da escravatura, por ser uma data que não representa a luta dos escravos pela liberdade
alegando os reais motivos da abolição.
Depois de acirradas lutas travadas pelo Movimento Negro contra o preconceito
racial e cultural, a data 20 de novembro, que vem sendo evocada há 42 anos e há 35 anos é
chamada Dia da Consciência Negra, conquistou reconhecimento nacional. Sancionada no dia
nove de janeiro de 2003, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a lei 10.639, além incluir a
data comemorativa ao Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, colocou
como obrigatório no currículo escolar o ensino da História e cultura Afro-Brasileira. Essa foi
uma vitória do movimento negro, pois veio de um projeto antigo apresentado anteriormente
sem êxito por parlamentares como Abdias do Nascimento e Benedita da Silva. No entanto,
uma nova retomada do projeto que, reavaliado sob uma nova óptica e, beneficiada por vários
fatores culminaram na sua aprovação, entre eles o fato de que “um pais com quase metade de
sua população composta de pretos e pardos, [segundo o IBGE), deveria conhecer a historia do
continente africano, de onde veio um enorme contingente populacional que deu origem a
grande parte dos brasileiros” (ALBERTI, 2007, p.25-26).
Em 2011,o Congresso Nacional decreta e a presidente Dilma Roussef sanciona a
lei 12.519/2011, lei que não coloca como feriado mas institui o dia 20 de novembro como o
Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, reconhecendo o valor simbólico da data.
Hoje, O Dia da Consciência Negra no Brasi, além de ser uma bandeira do
Movimento Negro, é um feriado em mais de 800 cidades brasileiras. O MNUCDR existe até
hoje como designação genérica para diversas entidades e ações que se referem, entre outras, a
discussões presentes sobre a demarcação de terras remanescentes quilombolas e os
movimentos das mulheres negras que trazem uma abordagem de gênero, sexualidade e “hoje
faz parte de uma articulação latino americana e internacional” (GOMES, 2011, p.141). Gomes
continua sua explanação expondo que o Movimento Internacional das Mulheres Negras surgiu
após a reprodução da desigualdade de gênero dentro do próprio MNU, por esse motivo “as
mulheres negras se organizam e fundam nos anos 80, o Movimento das Mulheres Negras”
(2011, p.141) que hoje, atua com militância políticas em comunidades negras, ONG’s e em
projetos educacionais.

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Bilros
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o movimento negro no Brasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 39, p. 25-56, 2007.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos
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TREVISAN, Leonardo. Abolição: um suave jogo político?. São Paulo : Moderna, 1988. 55p.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

166 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 153-166, jul.-dez. 2014.


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A “CIVILIZAÇÃO” NA FORTALEZA DO INÍCIO
DO SÉCULO XX:
UM DIÁLOGO COM NORBERT ELIAS

Maria Adaiza Lima Gomes


Graduada em História pela Universidade Estadual do Ceará (2012). Atualmente é discente do
Mestrado Acadêmico em História e Culturas da mesma universidade, onde atua com pesquisa
no campo dos hábitos e costumes, analisando a atuação do jornal fortalezense O Nordeste; na
tentativa de estabelecer um padrão comportamental para a população de Fortaleza no início do
século XX. E-mail: adaizagomes@hotmail.com

167 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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A “CIVILIZAÇÃO” NA FORTALEZA DO INÍCIO DO SÉCULO XX:
UM DIÁLOGO COM NORBERT ELIAS

LA “CIVILATION” DANS LA FORTALEZA DE DÉBUT DU XX


SIÈCLE: UN DIALOGUE AVEC NORBET ELIAS: UN DIALOGUE
AVEC NORBERT ELIAS

Maria Adaiza Lima Gomes

RESUMO RÉSUMÉ
O trabalho aqui apresentado discute a cidade de Le travailprésentéici discute la ville de Fortaleza,
Fortaleza, entre as décadas de 1900 e 1930, no que entre les décennies de 1900 et 1930 en ce
se refere às transformações pelas quais esta passou quiconcerne les
neste período e a uma tentativa, por parte dos transformationsqu'elletraversaitaucours de
setores dominantes, de estabelecer um padrão de cettepériode et a une tentative,
comportamento tido como civilizado para seus dessecteursdominants, à établir un modèle de
habitantes, principalmente para as camadas comportementconsidérécommecivilisépourseshabit
populares. A cidade, nesse período, passava por ants, en particulierpour les classesinférieures. La
uma série de mudanças que iriam influenciar as ville en cettepériode, a passé par une série de
preocupações com sua organização, higienização e changementsquipourraientinfluencerpréoccupations
seu “progresso”, principalmente por parte das elites avecvotreorganisation, l'hygiène et son “progrès”,
e dos poderes públicos locais. Deste modo, os en particulier par les élites et les
comportamentos tidos por estes grupos como gouvernementslocaux. Ainsi, le comportement de
transgressores passaram a ser combatidos com uma cesgroupespriscommedisjoncteursmaintenantêtretra
maior intensidade. Com isso, dialogando, itée avec plus d'intensité.Avecce dialogue,
principalmente, com Norbert Elias, buscamos notammentavec Norbert Elias, nouscherchons à
perceber de que modo buscou-se inserir um réaliser à quel point nousavonstenté d'insérerun
“processo civilizador” na cidade de Fortaleza no «processus de civilisation» danslaville de Fortaleza
período estudado. danslapériodeétudiée.
PALAVRAS-CHAVE: Civilização, Cidade,
Comportamento. MOTSCLÉS: Civilisation, Ville, Comportement.

168 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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INTRODUÇÃO

Imaginar Fortaleza no início do século XX, quase sempre é pensar nas


transformações pelas quais ela passou naquele momento. Esse foi um período em que a cidade
já havia experimentado um considerável crescimento econômico. Com ele também vieram as
remodelações urbanas. Assim, novos grupos foram surgindo ou se consolidando na sociedade,
como os comerciantes, por exemplo, e com eles, novas relações sociais e regras de
comportamento. Nesse contexto, se intensificaram as discussões a respeito da civilidade e do
comportamento dos fortalezenses. Visto que as elites desejavam não só uma “modernização”
dos espaços, mas também uma civilização das condutas. Pensando nisso, nosso objetivo
central é trazer uma discussão sobre Fortaleza, entre as décadas de 1900 e 1930, no que se
refere ao seu estudo a partir da concepção da ideia de civilização, bastante presente nos
discursos nela propagados naquele período.

Segundo Jean Starobinski (2001, p. 14), o termo “civilização” foi constituído


lentamente, ao longo do tempo, dando origem ao seu uso atual. Deste modo,

A palavra civilização pôde ser adotada tanto mais rapidamente quanto constituía um
vocábulo sintético para um conceito preexistente, formulado anteriormente de
maneira múltipla e variada: abrandamento dos costumes, educação dos espíritos,
desenvolvimento da polidez, cultura das artes e da ciência, crescimento do comércio
e da Indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo.

Podemos perceber, assim, que o significado desta palavra foi formulado a partir
de vários outros, que sugerem polidez dos costumes, educação e progresso. De acordo com
Starobinski (Ibidem, p. 15), “civilização e progresso são termos destinados a manter as mais
estreitas relações”. Acreditamos que em Fortaleza, no período aqui estudado, o termo foi
utilizado maneira parecida, ou seja, quase sempre relacionado com o progresso que as elites
locais desejavam. Porém, para entendermos a ideia de civilização presente na cidade nesse
período é necessário conhecer o contexto de mudanças pelo qual passava o espaço urbano e a
população fortalezense naquele momento.

A FORTALEZA DO INICIO DO SÉCULO XX

Conforme Ponte (2001), no período estudado as cidades brasileiras passaram por


muitas transformações, com a proclamação da República, a abolição da escravidão e a
169 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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implantação do trabalho livre e assalariado. Elas trariam mudanças na infraestrutura urbana, e
também na política, na sociedade e na economia.
Nos principais centros, segundo o autor, começava uma busca em se alinhar com
a modernidade, em que eles deveriam ser, na perspectiva das elites e dos poderes públicos,
remodelados aos moldes europeus. Um processo de disciplinarização da população, tentando
um reajustamento social e comportamental, aconteceu em cidades como Rio de Janeiro e São
Paulo, e em Fortaleza com menor intensidade. No século XX, com a chegada do regime
republicano, esse investimento na remodelação teria se intensificado na Primeira República. O
novo regime significaria, para os setores citados, o progresso desejado para o país (Ibidem).
Ponte (Ibidem) nos diz que, guardadas as particularidades de cada local, ocorreu
mais ou menos o mesmo processo nas mais importantes cidades brasileiras, entre o final do
século XIX e a década de 1930. Ao mesmo tempo em que se procurava remodelar
estruturalmente o espaço público, tinha-se também a intenção de adequar o comportamento da
população a ele. Buscou-se inserir novos hábitos, cuidados higiênicos, e produtividade e
interesse para o trabalho. A partir de então, as condutas que não estivessem nesses moldes,
passaram a ser consideradas obstáculos para a inserção do progresso. Em Fortaleza, a partir da
segunda metade do século XIX e com maior intensidade na Primeira República, ocorreram
tentativas parecidas de modernização e civilização. Os principais grupos interessados por essa
remodelação foram, segundo o autor, o dos comerciantes, enriquecidos com as importações e
exportações e o dos profissionais liberais, entre estes uma elite de intelectuais.

Assim, o desenvolvimento provocado pela exportação do algodão cearense para a


Europa, criando-se condições para que Fortaleza se tornasse o principal núcleo urbano tanto
econômico como político e, por consequência, social do Ceará, e possibilitando um maior
intercâmbio com outras cidades do Brasil e do exterior, impulsionaria essa pretensão
remodeladora (PONTE In: SOUSA, 2007, p. 163; BARBOSA, F., 1997, p. 51).

Ante a essa inédita expansão econômica e urbana de Fortaleza, convinha aos poderes
públicos, elites enriquecidas, e setores intelectuais procederem um significativo
conjunto de reformas urbanas, capaz de alinhar a cidade aos códigos de civilização,
tendo como referência os padrões materiais e estéticos dos grandes centros urbanos
europeus (PONTE In: SOUSA, op. cit.,p. 163).

De acordo com Ponte, ainda na década de 1860, tais anseios começaram a se


materializar. Nessa década foram criados o Lazareto da Lagoa Funda e a Santa Casa de

170 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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Misericórdia. Na década de 1870, a remodelação avança com a construção do Cemitério São
João Batista (1872) a criação da Academia Francesa (1872), a instalação da Estrada de Ferro
de Baturité (1873), a iluminação a gás carbônico e por fim, a elaboração da “Planta
Tipográfica de Fortaleza e Subúrbios” pelo engenheiro e arquiteto pernambucano Adolfo
Herbster (1875), inspirado nas reformas de Paris feitas pelo Barão de Haussmann, atualizando
o traçado urbano em forma de xadrez elaborado pelo português Silva Paulet em 1818,
facilitando assim o fluxo de pedestres veículos e mercadorias e também a vigília dos poderes
públicos sobre os cidadãos. Já aí se percebe a preocupação com a ordem. Cresce também o
número de empresas estrangeiras na cidade. A partir daí, são construídos grandes prédios
públicos e calçamento nas principais vias (Ibidem).

Na década seguinte, são inaugurados no mesmo ano (1880) os bondes à tração


animal e o Passeio Público. Ainda nessa década são inaugurados cafés (Java, Elegante,
Iracema e do Comércio) nos quatro cantos da Praça do Ferreira, seguindo o exemplo dos cafés
parisienses, onde se reuniam políticos, intelectuais e boêmios. (PONTE In: SOUSA, 2007).

Para Francisco Carlos Jacinto Barbosa (1997, p. 53):

Os investimentos civilizadores postos em prática em Fortaleza resultaram na


problematização das condições de vida em seus aspectos natural e social. Neste
sentido, os conhecimentos e práticas da chamada medicina social urbana tiveram
papel fundamental à época, na medida em que, ao mesmo tempo, agiam no sentido
de possibilitar o aumento das condições de salubridade e reeducar a população -
sobretudo a parcela mais pobre, visando a sua adaptação ao “novo” modelo de vida
na cidade.

A partir das problematizações sobre as condições de vida e da preocupação com a


salubridade é que, segundo Ponte, o saber médico concorreu para o surgimento da Santa Casa
de Misericórdia (1861); do Lazareto da Lagoa Funda, para tratar as epidemias; e para a
criação do Asilo de Alienados e do Asilo de Mendicidade, em 1886, com o intuito de afastar
do perímetro urbano os loucos e mendigos, considerados improdutivos e incompatíveis com a
civilização que se pretendia inserir (PONTE, 2001).

Essas modificações não se deram apenas na estrutura física da cidade, mas


também no meio social:

Na esteira daquele contexto de crescimento econômico-urbano, a estrutura social da


cidade também sofreu importantes modificações com a emergência de novos grupos
dominantes, a constituição de camadas médias afluentes compostas em razão da
proliferação de profissionais liberais, além de um contingente de trabalhadores
171 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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pobres [...] (Ibidem, p. 24).

Nesse contexto, tinha-se também o interesse pelo seu embelezamento. Assim,


foram aformoseadas as principais praças (1902 – 3), que, além da beleza, ditavam novas
regras de convívio social e uso do espaço público (PONTE, 2001, p. 35 – 36); e foi construído
o Teatro José de Alencar (1910) (Ibidem).

De acordo com o autor, o crescimento da população no período deve-se aos


seguintes fatores: o crescimento comercial, novos serviços urbanos, a industrialização, a
abolição do trabalho escravo e as secas periódicas. Devido ao aumento populacional,
aumentaram os problemas sociais, pois se dificultou o controle dos seus habitantes. Daí a
necessidade que as elites tinham de disciplinar os corpos e os hábitos do restante da
população. Os Códigos de Postura foram instrumentos bastante utilizados na tentativa de
intervir em tudo que era considerado desordenado e insalubre, ameaçando a ordem urbana e a
saúde pública, ditando regras de como os cidadãos deveriam se portar nesse ambiente.

Para esse autor, as elites acreditavam que, naquele momento, para que o processo
de modernização de Fortaleza se concretizasse, era preciso também que ela acontecesse
concomitante a uma disciplinarização social. As mudanças deveriam se estender ao
comportamento de seus habitantes. Através da leitura de obras como a de Ponte e também das
fontes, podemos perceber a presença de discursos em torno das ideias de progresso, de
civilização e de ordem, assim como intervenções remodeladoras do espaço e das condutas,
que para as elites, poderiam significar a modernidade se aproximando cada vez mais.

Tudo o que foi aqui colocado, faz-nos perceber que em Fortaleza, no período
estudado, ocorreu uma onda civilizadora que tentava se fixar. O período é caracterizado por
uma série de transformações que imporiam uma redefinição do certo e do errado e de como se
deveria comportar frente a essas mudanças, exigindo-se uma nova organização social e um
novo modo de se portar no espaço urbano. Essas normas, então interferem na vida cotidiana,
tentando remodelar os hábitos.

NORBERT ELIAS E SEU “PROCESSO CIVILIZADOR”

172 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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Partindo da reflexão acima, consideramos oportuno pensar em civilização a partir
da perspectiva de Norbert Elias (1993), ou seja, que ela se dá a partir de um processo. Elias
traz discussões sobre o “processo civilizador” nas sociedades ocidentais. Sabemos que seus
pensamentos se referem ao contexto europeu. Portanto, ao trazê-las à tona, não se pretende
aplicá-las à realidade estudada,tal qual como o autor pensou. Apenas se pretende tornar a
ideia de civilização mais compreensível e entender de que modo buscou-se difundi-la em
Fortaleza.

Segundo Norbert Elias (Ibidem), aconteceu, nas civilizações ocidentais modernas,


um processo que resultou na transformação das condutas e dos sentimentos humanos, em que
estes foram modelados. A esta o autor denominou “processo civilizador”. Ela haveria
ocorrido como consequência de três fatores em conjunto: a organização da sociedade em
forma de “Estados”; a centralização dos impostos e a monopolização da força física.

Porém não teria sido resultado de um planejamento das pessoas no passado, ou


seja, não existiu um planejamento calculado em longo prazo com a finalidade de se chegar à
civilização. Aconteceu através de um processo onde os planos e as ações dos indivíduos
isolados no passado se entrelaçaram e resultaram em mudanças que nenhuma deles
isoladamente planejou. Por esse motivo, o processo não haveria ocorrido de maneira racional,
mesmo assim, teria ocorrido de maneira organizada, tendo, como consequência, uma
dinâmica social onde as atitudes humanas mais irracionais se converteram em sentimentos de
vergonha. Dessa pressão externa, surge, então, uma interna – o autocontrole – onde o
indivíduo busca conter seus impulsos e suas emoções. Daí a civilização pode ser percebida
como um longo processo onde ocorre a moldagem dos comportamentos humanos:

Mostramos como o controle efetuado através de terceiras pessoas é convertido, de


vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais animalescas são
progressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas de sentimentos de
vergonha que a regulação de toda a vida instintiva e afetiva por um firme
autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalizada. Isso tudo
certamente não resulta de uma ideia central concebidas a séculos por pessoas
isoladas , e depois implantadas em sucessivas gerações como a finalidade da ação e
do estado desejados, até se concretizar por inteiro nos “séculos do progresso”. Ainda
assim, embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui
uma mera sequência de mudanças caóticas e não-estruturadas (ELIAS, 1993, p.
193).

Para o autor, nas sociedades modernas, onde houve uma reorganização dos
relacionamentos humanos, com uma cada vez maior diferenciação das funções sociais, em
173 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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que passou a existir uma interdependência entre as pessoas, houve, consequentemente
mudanças nas estruturas da personalidade do homem, gerando uma forma de conduta e de
sentimentos “civilizados”. Quanto mais diferenciadas as funções se tornavam, aumentava seu
número, fazendo com que um indivíduo passasse a depender cada vez mais de uma maior
quantidade de pessoas em suas ações, das mais simples às mais complexas. Ao passo que
aumentava essa interdependência, as ações teriam de ser cada vez mais regulamentadas,
fazendo com que cada ação individual desempenhasse uma função social. Por isso, cada
indivíduo deveria controlar suas ações de maneira cada vez mais eficiente. A partir daí, as
condutas tidas como “civilizadas” passaram a ser induzidas nas pessoas, desde crianças, pela
sociedade, fazendo com que estas as incorporassem, tornando-as automatizadas. Elas
passaram a praticá-las sem planejá-las e, às vazes, mesmo sem desejá-las (Ibidem).

Mas fosse consciente ou inconscientemente, a direção dessa transformação da


conduta, sob a forma de uma regulação crescentemente diferenciada de impulsos era
determinada pela direção do processo de diferenciação social, pela progressiva
divisão de funções e pelo crescimento de cadeias de interdependência nas quais,
direta ou indiretamente, cada impulso, cada ação do indivíduo tornavam-se
integrados (Ibidem, p. 198).

Assim, para Elias (1993), quanto mais complexa a sociedade, mais complexo e
estável será o autocontrole, pois ele está ligado à diferenciação e à estabilização de suas
funções. Por isso, quanto maior a variedade de atividades que se têm de sincronizar, mais
diferenciado será o autocontrole.

Pensando na ideia de civilização no caso de Fortaleza no início do século XX,


podemos perceber que, com o desenvolvimento da cidade, e a criação de novos locais de
sociabilidade (como o Teatro José de Alencar, o Passeio Público e os cinemas), novos meios
de trabalho e, consequentemente, uma divisão mais complexa de funções dentro daquela
sociedade1, houve tentativas de modelação dos comportamentos dos indivíduos. A estes é
imposta uma conduta adequada à civilização que se pretende inserir na cidade. Com a
instalação dos bondes, por exemplo, estes passaram a significar um novo local de
sociabilidade. Ao fortalezense, então, é exigido que se vista de forma diferenciada, pois para
frequentá-lo, deve-se vestir adequadamente, aos moldes europeus. Segundo Ponte (2001, p.

1
Ponte (2001. p. 24) assinala que com o crescimento urbano de Fortaleza, houve a emergência de grupos sociais
dominantes, que eram os comerciantes enriquecidos com as importações e exportações; a formação de uma
classe média composta por profissionais liberais, além de trabalhadores pobres.
174 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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29): “exigia-se que os passageiros estivessem vestidos com decência: paletó, colarinho e
sapatos”. Para Francisco Carlos Barbosa (1997, p. 62), “a maneira de portar-se nas vias
públicas, nos cafés, nas praças aformoseadas, nos “clubs”, nos cinemas, no teatro e até mesmo
no “bond”, fundava-se em exigências sociais responsáveis pelo tom de civilidade a que se
pretendia enquadrar Fortaleza”.

Outro exemplo que podemos analisar é a noção de higiene que se procura difundir
com maior intensidade nesse período. O indivíduo acostumado a hábitos não higiênicos, como
jogar o lixo nas ruas, é induzido cada vez mais a não praticar esse hábito, pois Fortaleza
deveria ser uma cidade higiênica. É o podemos perceber neste trecho do jornal “Gazeta de
Notícias” de 19 de julho de 1927:

Um dos hábitos mais afeiantes dos nossos usos domiciliares é, sem duvida, o
costume que se observa communmente em Fortaleza de ser despejado á rua o
produto dos varrimentos feitos no interior das casas, maximé das salas de visitas.
Isto se nota com uma frequência de causar pasmo em qualquer trecho de Fortaleza,
em casa cujos proprietários são, muitas vezes, pessoas de maior destaque em nossas
rodas sociaes.
Não há nada que justifique semelhante pratica, integralmente [ilegível] de nossos
foros de povo civilizado.
[...] No nosso posto cuja missão é justamente corrigir os abusos, não tememos
contemporizações: fatos dessa natureza receberão sempre a nossa formal
condenação!2

De acordo com o trecho do jornal, jogar o lixo nas ruas era um costume bastante
comum em Fortaleza. Era tão comum que em qualquer local da cidade poderia ser visto,
inclusive nas residências de famílias abastadas. Porém, esta era uma atitude vista, pelo autor
do texto, como não civilizada, que por isso deveria ser evitada. Era um costume, que deveria
ser corrigido. Por esse motivo, o autor demonstra sua reprovação à prática e diz que a missão
do jornal é corrigir tais condutas, que sempre receberiam sua condenação. Assim como esse
hábito, de acordo com nossas fontes, outros eram condenados, pois também eram vistos como
não civilizados e como contrários à ordem na cidade, tais como a vadiagem, onde se incluem
a prostituição, os jogos de azar e o consumo de bebidas alcoólicas.

Os periódicos do período tiveram um papel muito importante na disseminação


destes discursos a respeito da higiene, da disciplina e da civilização. Através de notícias,
queixas, denúncias, etc., publicadas cotidianamente, tanto redatores como leitores de alguns
jornais da cidade buscavam ajustar a conduta da população a uma moral civilizadora,
2
FORTALEZA AS CLARAS – CISCO PARA A RUA. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 4. 19 jul. 1927.
175 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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criticando os comportamentos indesejáveis e ditando a maneira como se deveria agir no
espaço urbano remodelado e aformoseado. As queixas nos jornais, então, demonstravam a
preocupação que se tinha com alguns hábitos da população, que eram vistos como opostos à
ordem.

Segundo Elias (1993), esse controle exercido sobre o individuo pela sociedade, o
qual exemplificamos acima, acaba sendo incorporado por ele. A agência controladora que se
estabelece na sociedade corresponde à agência controladora que se estabelece no individuo,
onde este passa a regular seus impulsos emocionais: “as pressões que atuam sobre o indivíduo
tendem a produzir uma transformação de toda a economia das paixões e afetos como uma
regulação mais contínua, estável e uniforme dos mesmos, em todas as áreas de conduta, em
todos os setores de sua vida” (Ibidem, p. 202).

Assim, quanto mais racional for o indivíduo, quanto maior controle tiver das suas
emoções espontâneas e dos seus impulsos, maior será sua vantagem social. A monopolização
da força física e o aumento da interdependência social geraram uma transformação das
condutas humanas em que resultou a moderação das emoções espontâneas e o controle das
atividades, no presente, levando em conta o passado e o futuro e o hábito de ligar os fatos à
suas causas e efeitos. Assim, as emoções individuais vão sendo controladas aos poucos
(Ibidem).

Desse modo, o indivíduo controla seus impulsos momentâneos tendo em vista


seus efeitos em longo prazo, passando este a agir de acordo com as normas sociais. Essas
normas sociais são aprendidas desde a infância, quando os adultos induzem as crianças
modelos de comportamentos vistos como adequados (ELIAS, 1993, p. 202). Os que não agem
de acordo com essas normas são tidos “como anormais”. Por isso, do mesmo molde social
surgem tanto os “bem ajustados” quanto os “desajustados” (Ibidem, p. 204).

Mas os impulsos, os sentimentos apaixonados que não podem mais manifestar-se


diretamente nas relações entre pessoas freqüentemente lutam, não menos
violentamente dentro delas contra a parte supervisora de si mesma. Essa luta semi-
automática da pessoa consigo mesma nem sempre tem uma solução feliz, nem
sempre a autotransformação requerida pela vida em sociedade leva a um novo
equilíbrio entre satisfação e controle das emoções (Ibidem, p. 203).

No dia 07 de julho de 1922, o jornal “O Nordeste” noticia o fechamento de casas


de jogos pela polícia, e faz o seguinte comentário:
176 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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Fortaleza, cidade das maiores do Norte, com foros de civilizada, não podia,
absolutamente, continuar á mercê de tão triste e deplorável estado que lhe vinha
emprestando a jogatina.
Além de casas estabelecidas publicamente, funcionando dia e noite, os passeios dos
edifícios, o Mercado público e os pontos menos visitados da Capital eram theatro
diário de perdição e miséria3.

De acordo com o texto, Fortaleza era tida como uma cidade com foros de
civilizada. Porém algumas práticas, como a do jogo de azar, praticado publicamente, não
condiziam com essa civilização, por isso elas tinham que ser evitadas.

Se comportar de maneira civilizada significa controlar os impulsos e agir de


maneira moderada. Do mesmo modo que ceder às emoções e agir de maneira espontânea são
atitudes que devem ser evitadas e não toleradas. O jogo, então, sendo uma atividade em que
não se há um planejamento para o futuro, não se exige um raciocínio para que se perca ou se
ganhe, não existem técnicas melhores nem piores na sua execução, se depende apenas do
acaso, da sorte, não está dentro dos padrões do que seria considerado como prática civilizada.

A partir da observação dos trechos dos jornais acima citados, consideramos


oportuno observar que no contexto estudado a civilização era buscada também, por parte da
imprensa e dos poderes públicos, através da moralização da população. Deste modo,
concordamos com Jean Starobinski, (2001, p. 12) quando este nos diz que “(...) civilizar a
sociedade é corrigir seus costumes e seus usos produzindo na sociedade civil uma moralidade
[...]”.

De acordo com Marta Emísia Barbosa (1996, p. 9), no período aqui discutido
“parecia haver certa euforia em torno dos acontecimentos banais, em Fortaleza; muito embora
fossem tratados com um tom alarmante e incisivo. O que parecia ser tolice para o fluxo diário
dos indivíduos na cidade, tornava-se objeto de preocupação: o comportamento dos homens”.

Para a historiadora, a desordem, o crime e a delinquência passaram a ser


discutidos com frequência na cidade. Porém todos apareciam como itens de um tema maior,
que era a moral. Partindo desse discurso listava-se uma série de comportamentos que não
deveriam ser praticados, pois representavam atentados contra a moral e a civilidade, tais como
a vadiagem, incluindo aí a prostituição e vícios como a embriaguez. Comportamentos que,
segundo a autora, representavam a desordem “invadindo” a cidade (Ibidem).

3
A perseguição ao jogo – A acção da policia. O Nordeste, Fortaleza, p. 1, 07 jul. 1922.
177 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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O seguinte trecho do jornal “Gazeta de Notícias” de 13 de julho de 1927 nos traz
um exemplo de desordem ocorrida na cidade:

[...] Ouvimos assobios e gritos. Vimos então uma pobre velha, que insultada por
meninos vadios e mal educados, proferia as palavras mais immoraes que imaginar se
possa.
Notamos também o desandar da scena em um meio tão habitado por familias de
distinção que continuaram a supportar tamanha falta de moralidade, em suas
proprias calçadas.
A velha offensora da moralidade publica é uma de nome ‘Siri’, muito conhecida
pela obscenidade de suas palavras.
No agrupamento havia desde o estudante ao operário, mas não vimos um só
mantedor da ordem4.

Notamos neste pequeno trecho do periódico a presença de palavras como


“imorais”, “ordem” e “moralidade”, esta última aparece duas vezes. Percebemos então o uso
de um discurso que utilizava as palavras ordem e moralidade, tentando passar a ideia de que
tal atitude seria uma desordem e uma imoralidade, devendo ser evitada. Por traz dos
comentários sobre a população estava escondida a intenção de modificar os seus hábitos.
Podemos perceber ainda que quem provocava a desordem era uma “pobre velha” e “meninos
vadios e mal educados”. Ou seja, os comportamentos que incomodavam eram realizados por
indivíduos pobres. O incômodo, como podemos observar, era causado porque essas pessoas
estavam em “um meio tão habitado por famílias de distinção”. Entre os presentes no local, são
citados estudantes e operários, mas nenhum membro das citadas famílias residentes no local.
Isso leva-nos a pensar que os populares não seriam, de acordo com o texto, mantedores da
ordem, mas os membros destas famílias sim. Portanto o comportamento das camadas
populares incomodavam por serem realizados nos espaços frequentados pelas camadas
abastadas da sociedade naquele período, que desejavam uma cidade ordenada.

CONCLUSÃO

Pelo que podemos perceber, mesmo com a tentativa de remodelação da cidade e


todos os discursos a respeito da higiene, da ordem, da disciplina, do trabalho, do progresso, da
civilização, etc., persistiam, porém, hábitos considerados não civilizados, não higiênicos e
imorais, como jogar lixo nas ruas, falar palavrões, ingerir bebidas alcoólicas, jogar jogos de
azar, prostituir-se, entre outros. A presença destas condutas transgressoras seria, na visão de
4
VELHA INCORRIGIVEL. Gazeta de Notícias, Fortaleza, p. 8, 13 Jul. 1927.
178 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.
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Francisco Carlos Jacinto Barbosa (1997), a força do hábito, já arraigado na população, que
insistia em praticá-lo, visto que as reformas e o ordenamento e a civilização eram imposições.
Concordando com essa visão, Marta Emísia Barbosa (1996, p. 179), aponta para a existência
do binômio ordem – moral em Fortaleza, fazendo aparecer, assim, outro: desordem – imoral.

Ambos os autores compartilham a ideia de que as regras impostas aos indivíduos


que compunham a cidade demonstravam que, na realidade o que acontecia, na maioria das
vezes, era o oposto do que se idealizava. Isso porque mesmo com todos os aparatos de
disciplinarização, a população, principalmente os mais pobres, encontrava, de forma
astuciosa, maneiras de fugir dela e continuar vivendo seu cotidiano como o de costume, de
modo contrário do que pretendiam as elites, ficando muitas vezes indiferentes ás normas tidas
como civilizadas por estas. (BARBOSA, F., 1997, p. 56; BARBOSA, M., 1996, p. 64).

Sendo assim, se havia essa necessidade de civilizar, ordenar, controlar,


disciplinar, a população estava evidente que existiam, na cidade, sujeitos a serem civilizados,
ordenados, controlados, e disciplinados. Ao mesmo tempo em que existia um desejo pelo
progresso, existia também sua negação, de diversas maneiras, praticada pela população que,
com suas astúcias, encontrava maneiras de continuar exercendo seus hábitos tidos como não
civilizados. Do mesmo modo que existiam as normas de conduta, existiam também os
transgressores.

Acreditamos que, mesmo com esta tentativa de controle dos hábitos, havia a
resistência por parte da população, que procuravam maneiras de continuar vivendo como o de
costume. Percebemos que a “proibição” das práticas citadas era uma imposição por parte dos
setores dominantes da sociedade da época. Sendo assim, as ideias de civilização, de higiene e
de disciplina não haviam sido incorporadas pela maioria da população, então ela preferia
continuar com seus hábitos não civilizados.

Percebemos que o período aqui tratado não foi vivenciado por toda a população
fortalezense de maneira igual. Pelo contrário, percebemos que para as elites o momento
vivenciado era de mudanças que levariam a cidade ao progresso, onde se deveria buscar ao
máximo práticas higiênicas e civilizadas. Já para os populares, o momento vivenciado era o
da presença de discursos disciplinadores, que procuravam corrigir suas condutas, mas que, na
maioria das vezes, eram apenas discursos, pois nos parece que na prática o que acontecia era o

179 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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habitual, ou seja, os populares procuravam continuar vivendo o seu cotidiano, com seus
costumes, sem se preocupar tanto com o progresso e com a civilização.

180 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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remodelada (1900 – 1930). Dissertação (Mestrado em Sociologia) UFC. Fortaleza, 1997.

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PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Èpoque – reformas urbanas e controle social
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RIBEIRO JUNIOR, Florisvaldo Paulo. Tríade do Mal: civilização dos fracos no mundo do
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STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das


Letras, 2001.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

181 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 167-181, jul.-dez. 2014.


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PERIODISMO, PROPAGANDA E LEITURA:
O NASCER DAS LETRAS NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA

Jaqueline Stafani Andrade

Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2010 - 2013), instituição na qual atuou como bolsista do Programa de Educação Tutorial em
História nas áreas de ensino, pesquisa e extensão. Ademais, participou como colaboradora
(2010 - 2013) do Centro de Documentação e apoio à Pesquisa Histórica da UNESP Franca na
catalogação, digitalização, organização e tombamento de acervos documentais diversos.

183 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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PERIODISMO, PROPAGANDA E LEITURA: O NASCER DAS LETRAS
NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA

PERIODISM, ADVERTISING AND READING: THE RISE OF


LETTERS IN RIO NINETEENTH

Jaqueline Stafani Andrade

RESUMO ABSTRACT

Os impressos periódicos são de capital The periodic print is of paramount


importância para a compreensão da importance to understandings Reading's
História da Leitura, em especial, tratando- History, especially if talking about Rio de
se do Rio de Janeiro Oitocentista, são Janeiro in eighteenth century; it's a relevant
relevantes fontes de análise. É por meio sources to analyze this. Through this
deste veículo que a presente pesquisa se communication vehicle this research it's
insere; partindo, portanto, dos anúncios do inserted; beginning to advertising of Jornal
Jornal do Commercio do ano de 1855, este do Commercio in 1855 year, this
artigo tem por objetivo demonstrar um monographic work has the objective to
pequeno esboço da formação das letras no demonstrate an outline about letters in Rio
Rio de Janeiro, tomando como elucidativo de Janeiro, taking as elucidative example
exemplo o circuito de comunicação do the communication circuit of feuilleton and
folhetim e posterior livro A Carteira de later book: A Carteira de meu tio by
meu tio de autoria de Joaquim Manoel Joaquim Manoel Macedo – both of this
Macedo - ambos os suportes editados na medias edited in Paula Brito’s typography.
tipografia de Paula Brito.
KEYWORDS: History of read, Rio de
PALAVRAS-CHAVE: História da Janeiro, Jornal do Commercio,
Leitura, Rio de Janeiro, Jornal do Communication circuit, A Carteira de meu
Commercio, Circuito de comunicação, A tio.
Carteira de meu tio.

184 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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Do periódico ao livro, da propaganda à leitura, o caminho percorrido pelo leitor
oitocentista para chegar às letras tipografadas, tanto de um folhetim quanto de um livro,
desenvolveu-se na capital do Império, a partir do paulatino surgimento de um ambiente
letrado, que passou a comportar tanto instituições quanto outras possibilidades de letramento.
O esboço deste ambiente, por sua vez, pode receber, hoje, contornos precisos, traçados por
meio de circuitos comunicacionais. Esses circuitos possibilitam mapear desde a oferta e
procura de um periódico até as propagandas de outros suportes inseridas nele, e, inclusive,
indagar sobre o que se lia e quem eram os leitores cariocas que gradativamente adquiriam
hábitos de leitura.
Todavia, a incorporação de tais hábitos, assim como o desenvolvimento das
instituições, deu-se de forma lenta. A irregularidade do comércio livreiro, por exemplo,
afetava o consumo dos livros: era preciso trazê-los de fora. Mais adiante, em 1879, a Revista
Brasileira criticaria:

O povo brasileiro – não é sem mágoa que dizemos – posto que dava desempenhar
em período, talvez não muito remoto, papel importante no teatro do mundo, não está
ainda preparado para consumir o livro, substancial alimento das organizações viris e
fortemente caracterizadas. Faltam-lhes as condições de gosto, instrução, meios,
saudável direção de espírito, sem as quais não se pode cumprir a livre obrigação que
equipara o artesão ao capitalista, o operário ao literato, o pobre ao milionário – a de
comprar, ler e entender verdades ou ideias coligidas em um volume, cuja leitura
demanda largo fôlego e cujo estudo requer tempo de que o povo em geral não dispõe
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1998).

Há de se advertir que, embora um documento, a Revista Brasileira de 1879


expressa de forma parcial e lacunar uma dada opinião. Deve-se, portanto, criticá-la, tanto
interna quanto externamente, para que, com a contribuição de outros documentos do mesmo
período, seja possível uma leitura entrelinhada.
Quanto ao seu conteúdo, os editores da Revista não se referiam estritamente à
inexistência de leitores ou hábitos de leitura na capital do Império, mas sim a toda uma
estrutura que impossibilitava uma ampla difusão das letras. Neste ponto, cabe demonstrar de
que forma se desenvolveram, no criticado microcosmo letrado do Brasil de 1879, os esparsos
leitores da Revista Brasileira e de outros impressos de circulação na época.
Durante o Segundo Império, período de circulação da Revista, o Rio de Janeiro já
era relativamente dotado de instituições e veículos de informação inexistentes antes da
chegada Corte em 1808. Dessa forma, mesmo que vistos de forma crítica pela Revista, os

185 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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leitores de 1879 contavam com uma imprensa em certa medida liberal, pela qual, em 1855,
serão impressos anúncios de folhetins e de livros no Jornal do Commercio, analisados mais
adiante (FRANÇA, 1999).
Seguindo esta cronologia, podemos destacar um ponto marcante na construção
deste ambiente letrado: a chegada da Corte portuguesa em 1808, que foi, sem sombra de
dúvidas, um ponto de inflexão na história das letras e da leitura. Para abrigar suas instituições,
o monarca teve de empreender reformas de curto e longo prazo na nova sede da Coroa.
Instalando-se no Rio de Janeiro em 8 de março de 1808, Dom João VI iniciou as medidas
essenciais à sua permanência em terras brasílicas, como a abertura dos portos às nações
amigas e a nomeação do conselheiro Paulo Fernandes Viana à Intendência-Geral, criada para
implantar hábitos mais civilizados e urbanos.
Além das medidas citadas, o posterior incentivo à vinda de missões estrangeiras
impõe ao longo do período joanino significativas mudanças, principalmente, no tange o
modus vivendi colonial que recebe uma crescente europeização dos hábitos e costumes num
sentido diferente do ibérico (FRANÇA, 1999).
Outra medida que contribuiu imensamente para construção desse ambiente letrado
no Brasil foi a criação da Impressão Régia. Introduzida pela necessidade de impressão das
notícias pertinentes à administração real, a imprensa contava, neste período, com a censura
régia, exercida por José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu (LUSTOSA, 2004).
O primeiro periódico brasileiro, segundo Isabel Lustosa em O nascimento da
Imprensa no Brasil (LUSTOSA, 2004), foi editado em Londres pelo jornalista Hipólito da
Costa (que, por motivos de envolvimento com a maçonaria, teve de se exilar na Inglaterra).
Chamado de Correio Brasiliense, o jornal circulava de maneira clandestina no Brasil em
1808, dadas as críticas que fazia à administração real.
Já a Gazeta do Rio de Janeiro, lançada, por sua vez, em 10 de setembro de 1808,
foi o primeiro periódico impresso a circular no Brasil dentro das normas régias. Com
inspiração na Gazeta de Lisboa, publicava decretos oficiais e informava as notícias
internacionais, extirpando de seu conteúdo tudo o que pudesse ser considerado liberal ou
revolucionário.
Além dos escassos e clandestinos jornais e folhetos circulantes no período
joanino, os leitores mais abastados e, portanto, em sua maioria, vinculados a cargos na Corte,
podiam contar com um principiante comércio livreiro. Novamente, segundo França:

186 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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Até então, além da procura desse artigo ser extremamente limitada, sua entrada no
país só podia fazer-se clandestinamente. Após 1808, a situação começa a melhorar.
Embora, segundo conta o Padre Perereca, ainda fosse difícil encontrar bons livros e
seu preço alcançasse valores exorbitantes, a cidade já contava com alguns poucos
livreiros. Lucckock, em 1813, falava na existência de três. Em 1814, nas edições da
Gazeta do Rio de Janeiro, os únicos anunciantes do produto são P. Martins filho
(proprietário de uma casa comercial situada na Rua da Quitanda) e a própria Gazeta,
que mantinha uma loja do gênero anexa à sua sede. Havia também alguns anúncios
de estabelecimentos que, em meio a produtos diversos, comercializavam livros. Um
exemplo desse tipo é uma loja situada na Rua do Ouvidor n.º 10, onde se vendiam
objetos de vidro e outras variedades, em meio às quais as Fábulas Escolhidas de La
Fontaine, os Princípios da língua Francesa, os Efeitos da Má Educação e outras
obras a preço de 2$000. (FRANÇA, 1999, p. 65)

Voltando aos jornais, seu desvencilhamento da Coroa viria somente em 1821,


com os desdobramentos da Revolução do Porto (1820) e das Cortes Constituintes:
“beneficiando-se já das bases da Constituição portuguesa que asseguravam a liberdade do
prelo” (LUSTOSA, 2004, p.21). A partir de então, pululam pasquins e periódicos dirigindo
críticas à Coroa e relatando os acontecimentos das constituintes, assumindo, então, acentuada
importância na politização das elites e no processo de independência de Portugal.
No Primeiro Reinado (1822 – 1831), os progressos civilizacionais só
aumentariam, principalmente no tocante às atividades comerciais, que se diversificavam cada
vez mais após a abertura dos portos. Com a efervescência da recém-proclamada
independência, dão-se os necessários passos para a construção de um Império estruturado,
iniciando os projetos de formulação de uma Constituição já em 1823.
Quanto à normatização do ensino público nas províncias, a Assembleia
Constituinte, dissolvida em novembro de 1823, nada pode fazer mesmo com os apelos do
jovem monarca Pedro I. Nem a posterior Constituição, outorgada em março de 1824, e suas
poucas citações no que diz respeito ao ensino, regulamentou eficazmente a educação. Já no
ensino privado, capitaneado por uma elite local, o mesmo não pode ser dito. Dentre as
iniciativas privadas, destacam-se diversas sociedades, tais como a Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina e
Hospício Pedro II, dentre outras.
Somente com o Ato Adicional de 12 de Agosto de 1834, que colocava a instrução
pública sob a responsabilidade das províncias, é que a relação entre a administração Real e
ensino começam a se descentralizar, beneficiando, contudo, apenas o Rio de Janeiro, sede da
Coroa.

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Além dos avanços elencados no ensino privado, um importante marco foi a
fundação, em 1837, do Imperial Colégio Pedro II, escola que abrigou boa parte da elite
intelectual carioca e nacional em formação. Servindo como espelho para implantação no resto
do Brasil, tal instituição modelar não resolveu os problemas educacionais. A situação na
instrução pública só iria “sofrer substantiva alteração em 1854, com a reforma Couto Ferraz”
(FRANÇA, 1999, p.89).
É também durante o Primeiro Reinado que desponta um importante ambiente para
o meio letrado e para o comércio urbano: a Rua do Ouvidor.

Se o passante não queria somente satisfazer os desejos do estômago, as ruas da


Corte não o frustravam. Ele podia comprar requintadas luvas inglesas na
Wallerstein, artigos de perfumaria no Desmarais, sofisticadas roupas no Dagnan e na
loja Mme, Besse, modernos instrumentos ópticos nas oficinas do Rei, ou podia
simplesmente deleitar-se em ver as coloridas vitrinas da Galeria Geolas. (...)
Essa passagem de perfil parisiense tornou-se logo um ponto de encontro habitual do
círculo de flâneurs cariocas que, após uma tarde no Passeio público ou no Jockey
Club, se aglutinavam nesse espaço para colocarem-se a par das últimas novidades da
sociedade local. (FRANÇA, 1999, p. 48.)

Ainda neste período, floresce a compreensão de uma nova esfera pública, em que
os modos isolacionistas, fechados nos casarões patriarcais, passam a ser mais urbanos e
civilizados. Diante deste novo ambiente, em 1826, assina-se, com a França, um importante
tratado que permitiu a implantação de jornais e o comércio de livros:

Tal tratado criou grandes facilidades para a importação de impressos, introduzindo


na cidade não só um significativo número de obras daquele país como também um
amplo leque de jornais europeus. Na mesma época, desembarcaram na Corte alguns
impressores estrangeiros: o primeiro deles foi Emílio Seignot Plancher Pierre
(fundador do Jornal do Commercio), que abriu uma casa de livros na Rua do
Ouvidor onde passou a desenvolver, ao lado das actividades de livreiro, um intenso
trabalho de editoração. Mais tarde, vieram A. Mougenot, J. Vulenueve, J.J.
Dodsworth, Douville e outros. Esses indivíduos deram um grande impulso à venda
de livros, multiplicando a oferta de títulos oferecidos na cidade. (FRANÇA, 1999. p.
81).

Este é, portanto, outro ponto de mudança na história das letras e da leitura no


Brasil, tanto pelo boom em que a imprensa se verá inserida, quanto pelas transferências
culturais que aí se iniciam, especialmente após a introdução de um regular comércio livreiro,
difundido também pelo já citado Jornal do Commercio, fundado em 1827.
O Jornal do Commercio, importante periódico carioca, bem como a editoração de
diversos livros, tiveram seus endereços fixados na Rua do Ouvidor. Emílio Seignot Plancher

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Pierre, seu fundador, possuía contato direto com folhetins e livros impressos na França, com
isso, propagandeava as vendas diretamente em seu periódico.
Além da tipografia de impressão do jornal, a editoração, localizada no nº69 e mais
tarde nº65, prestou relevantes serviços às letras no Brasil. A editoração da Garnier Frères,
fundada pelo mais novo dos irmãos Garnier, Baptiste Louis em 1844, foi responsável por
diversos livros nacionais e franceses, também anunciados no jornal de Plancher.
Durante o Período Regencial (1831 – 1840), as casas livreiras e as tipografias
cresciam vertiginosamente, destacando-se, nestes locais, novos e ativos atores sociais, os
chamados homens de letras. Empregados nas tipografias como escritores de romances, alguns
possuíam formação superior em direito ou medicina, enquanto outros apenas buscavam, por
meio do trabalho tipográfico e editorial, melhores condições sociais. Entre esses últimos,
encontra-se o tipógrafo, e posteriormente editor, Paula Brito.
Francisco de Paula Brito (1809 – 1861), carioca de origem humilde, fora
alfabetizado apenas por incentivo de sua irmã mais velha. Para se filiar ao rol dos homens de
letra, além de outras atividades, atuou na Tipografia Nacional e no citado Jornal do
Commercio. Já em 1831, Brito adquiriu um estabelecimento na Praça da Constituição nº. 51 e
fez de lá sua casa de impressão. Com o crescimento do empreendimento abriu outras
tipografias na mesma rua.
Das atividades às quais se dedicou, até mesmo as mais engajadas, como ativista
contra o preconceito racial e editor de obras de escritores nacionais e poemas autorais (com
sua participação no movimento romântico de 1840 – 1860), destacamos, a fim de adentrar nos
meandros da história da leitura do ano de 1855, a editoração na revista A Marmota, fixada na
Praça da Constituição nº. 51.
Na seção de anúncios do Jornal do Commercio de 1855, presente no AEL
(Arquivo Edgard Leurenroth - UNICAMP), constam vinte e nove anúncios de folhetins,
propagandas do periódico A Marmota, listas de livros disponíveis nos estabelecimentos de
Paula Brito, na Garnier e em outros dois estabelecimentos de menor porte.
Destes anúncios, dezenove são relativos A Marmota de Paula Brito, o que nos
leva à hipótese de que o periódico possuía grande recepção, principalmente por sua
longevidade nos circuitos comunicacionais da época. Sua presença é apontada direta ou
indiretamente por ser impresso no mesmo estabelecimento em que Paula Brito editorava e
vendia livros: Rua da Constituição nº. 64. Doze das dezenove citações, entre 21 de janeiro e

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13 de março, referem-se aos folhetins de Joaquim Manoel Macedo, com destaque para A
Carteira de Meu Tio, cujos anúncios, juntamente com brochuras da história de Macedo,
iniciam-se de 09 de abril a 08 de novembro.
Outros romances de Macedo também podem ser encontrados nos anúncios do
Jornal do Commercio, como, por exemplo, O Forasteiro, que, entre folhetins de A Marmota e
brochuras, aparece treze vezes no período 08 de janeiro e 08 de novembro. Nas propagandas
do romance, era recomendado às moças “ler com attenção pela sua belieza, graça,
naturalidade e fina moral, romance dos nossos usos e costumes, passado em Itaborahy” 1.
Além deste, também outros romances e novelas estiveram presentes: O nome
Pedro, anunciado em 13 de fevereiro e 13 de março; Hypocrita, em 13 de fevereiro; o poema
Uruguay de Basílio da Gama, em 13 março; Vicentina, em 29 de setembro; volumes editados,
incluindo uma tradução, de Norma, em 29 de setembro: “reimpressa da melhor tradução que
se diz ser do Sr. Dr. Pinheiro Guimarães”2
Para elucidar como eram os meandros da leitura em 1855, seguiremos o modelo
do circuito da comunicação de Robert Darnton, estabelecendo, todavia, um circuito próprio
para cada obra ou folhetim escolhido para análise, intentando, dessa forma, empreender o
seguinte caminho indicado pelo autor:

[...] de modo geral, os livros e impressos passam aproximadamente pelo mesmo


ciclo de vida. Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do
autor ao editor (se não é o livreiro que assume o papel), ao impressor, ao
distribuidor, ao vendedor, e chega ao leitor. O leitor encerra o circuito porque ele
influencia o autor tanto antes quanto depois do ato de composição. Os próprios
autores são leitores. Lendo e se associando a outros leitores e escritores, eles
formam noções de gênero e estilo, além de uma idéia geral do empreendimento
literário, que afetam seus textos, quer estejam escrevendo sonetos shakspearianos ou
instruções para montar um kit de rádio. (DARNTON, 2010, p. 125).

Buscando, portanto, uma visão do amplo sistema esmiuçado por Darnton,


tentaremos estabelecer um circuito que parte do leitor e volta a ele, contendo as possíveis
nuances da propaganda, oferta e procura, e os atores que entremeavam determinada obra.
Sendo o objeto recortado a partir de fonte específica – os anúncios do Jornal do Commercio -,
algumas etapas estão obscurecidas, formando um ciclo que não contêm todas as peças para
um completo circuito da comunicação. Os pequenos pontos de intersecção, porém, formam

1
Jornal do Commercio, 08 de novembro de 1855.
2
Jornal do Commercio, 29 de novembro de 1855.
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um importante esboço de um circuito maior, lançando pequenos feixes de luz à História da
leitura no Rio de Janeiro do Oitocentos.
No circuito específico, aqui traçado a partir dos anúncios, acrescentamos ao
modelo de Darnton um mediador que propagandeava as obras, o Jornal do Commercio. Dos
supracitados romances anunciados neste veículo, escolhemos, para análise pormenorizada, o
circuito percorrido pela obra A Carteira de meu tio de Joaquim Manoel Macedo.
Tal escolha se deu primeiramente porque esta é a obra que possui maior volume
de anúncios em 1855 - mesmo sendo estreia naquele ano - (QUEIROZ, 2010) e, além disso,
possuiu um circuito peculiar que leva à hipótese de que a obra teve grande procura pela
recepção, fazendo com que passasse do formato de folhetim, impresso na revista A Marmota,
para ser, posterior e concomitantemente, impressa em volumes de brochura.

Imagem 1: Circuito de Comunicação - A Carteira de meu tio

Tendo seu primeiro anúncio em 21 de janeiro de 1855, o folhetim A Carteira


de Meu Tio, impresso em A Marmota, inicia o circuito, passando do primeiro componente, o
autor Joaquim Manoel Macedo, para o segundo, o editor Paula Brito. Envolvidos na tipografia

191 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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de Brito, encontram-se diversos atores anônimos que trabalham em seu prelo na impressão de
A Marmota.
Neste âmbito, incluem-se os fornecedores de papel e tinta, que podem,
hipoteticamente, ser brasileiros, visto que, na mesma época, o papel e a impressão da Garneir
eram considerados superiores por serem importados da França. Dando seguimento ao circuito
do folhetim, o quarto componente é o Jornal do Commercio, veículo que anuncia o folhetim e
possibilita a venda de A Carteira de Meu Tio ao público leitor do jornal. O quinto
componente, o vendedor, era o estabelecimento de Paula Brito na Rua da Constituição nº 64.
O último componente, fechando o circuito, é o leitor, aquele que consome o Jornal do
Commercio e visita A Marmota, e, uma vez consumindo o folhetim de Macedo, reinicia o
ciclo. Aqui, faz-se necessária uma pausa para que verifiquemos os possíveis leitores.
Selecionando alguns anúncios de 1855, encontramos dois de singular importância
para a análise do possível leitor. Em 10 de fevereiro, o anunciante redige o seguinte versinho
chamado ‘verdades puras’:

Quem a MARMOTA assignar


Não se há de arrepender;
Na CARTEIRA DE MEU TIO
Achará muito o que ver! ...

Se for senhora há de dar


Por bem gasto o seu dinheiro,
Achando cousinhas bellas
No romance o – FORASTEIRO

De não gostar da MARMOTA


O leitor não tenha medo,
Nelia escrevem bellas pennas,
E escreve o – Dr. Macedo!

Assignatura por seis mezes 5£; avulsos gratis.

Podemos depreender deste singular anúncio que, diferentemente de O Forasteiro,


A Carteira de meu tio não possui destinatário fixo, ou seja, não é somente destinada às
senhoras ou às moças, como no anúncio anteriormente citado. Sua história narra as aventuras
de um sobrinho que, voltando de Paris - diga-se de passagem, sem os devidos estudos para o
qual fora enviado -, vê-se metido no problema de decidir sua carreira perante seu tio; nesse
entremeio, decide-se por ser político. Seu tio, assim, dá-lhe uma carteira (um caderninho de
anotações) e a Constituição que então vigorava, para que seu desmiolado sobrinho percorresse

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o Brasil e tomasse nota daquilo que considerava não condizente com a Constituição, sendo,
portanto, um importante aprendizado para sua futura carreira política.
Se utilizarmos as análises de Zilberman e Lajolo, poderemos identificar, mesmo
que hipoteticamente, um leitor. A história de A Carteira, em seu anúncio no Jornal do
Commercio, não identifica, como feito em O Forasteiro, um público alvo. Por se tratar de um
gênero em que o personagem vive diversas experiências, não é possível inferir um
destinatário específico, podendo ser lido, portanto, por homens e mulheres letrados que
adquiriam o folhetim A Marmota.
Já em 23 de fevereiro, lê-se no anúncio: “Tem se estado riquíssima A Marmota
Fluminense. – Assignatura 5£ por seis mezes. Na carteira há de tudo, e tudo muito bom; a
carteira faz rir as pedras!”. A partir disso, podemos inferir o alvo como um leitor que, além de
familiarizado com o folhetim, visto que este é o segundo mês de publicação, é também
simpatizante do gênero cômico. Ainda falta evidência, contudo, para definir se o leitor é
homem ou mulher.
Elucidado o ciclo do folhetim e seus possíveis leitores, iniciaremos o ciclo interno
do Circuito de Comunicação, que na figura acima chamamos de Novo Ciclo: Livro. Neste
ciclo, podemos inferir que A Carteira de Meu Tio pode ter passado pelo mesmo processo das
obras de Dumas, que foram impressas em folhetim e reimpressas em volume de brochura
devido ao amplo sucesso, o que é evidenciado pela maciça presença de anúncios,
maximizando a possibilidade de suas vendas àqueles que, sendo somente leitores dos
anúncios do Jornal do Commercio, não estariam a par do folhetim de A Marmota.
Iniciando novamente o ciclo pela demanda de volumes em brochura, o novo
suporte passa a ter também como destinatários os leitores que se interessaram pelo amplo
sucesso de Macedo, mas que não necessariamente liam A Marmota.
O livro, agora reeditado por Paula Brito, recebe mais atores no terceiro estágio do
ciclo, que, contando com demandas tipográficas diferentes das do folhetim, vai além do papel
e tinta, necessitando também da encadernação. Já no quarto estágio, a obra é anunciada no
Jornal do Commercio e, posteriormente, vendida no estabelecimento de Paula Brito,
reiniciando o ciclo a partir da compra feita pelo leitor.
Dessa forma, podemos depreender, a partir do esmiuçar de um circuito
comunicacional, como as letras se estruturaram no oitocentos carioca e, aos poucos,
contribuíram para a formação de um ambiente letrado.

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De folhetim a livro, a obra de Macedo contou com diversos atores envolvidos
nesse ambiente, incluindo os leitores incipientes que buscavam participação intelectual. Em
vista das considerações apresentadas, podemos perceber que tal leitor aprendiz, inicialmente
apresentado pela Revista Brasileira, desenvolveu-se custosa e paulatinamente ao longo dos
oitocentos. Mas que, a despeito disso, já dava passos firmes, demandando até mesmo trocas
de suporte, digamos “mais sofisticados”, à moda europeia em suas leituras.
Os leitores em formação, ou efetivamente formados em instituições regulares, e
tantos outros homens de letras, como Paula Brito, elucidam, no bojo dos oitocentos, um
amplo florescimento das letras, regado pela atuação da imprensa periódica e, sem dúvida, pelo
trânsito comercial e livreiro da Rua do Ouvidor e da Praça da Constituição nº. 64, que, mesmo
pouco difundido, fazia-se presente e atuante.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Novais. 2 vol: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:


Companhia das Letras, 2010.

ESPAGNE, Michel. Transferências culturais e história do livro. In: Revista Livro, n. 02,
agosto/2012.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista.


Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 2ª Edição. São


Paulo: Ática, 1998.

LUSTOSA, Isabel. O nascimento da Imprensa no Brasil. 2ª Edição Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2004.

MEYER, Marlyse. Folhetim uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro: 1808 – 1821. 2ª
Edição – São Paulo, Editora Nacional, 1978.

Teses e dissertações

SIMONATO, Juliana Siani.A Marmota e seu Perfil Editorial:Contribuição para Edição e


Estudo dos TextosMachadianos Publicados Nesse Periódico (1855-1861). Dissertação
apresentada ao Programa de Pós graduação em Ciências da Comunicação, Área de
Concentração Teoria e Pesquisa em Comunicação Universidade de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Ivan Prado Teixeira. São Paulo, 2009.

Artigos acadêmicos

CALDEIRA, Claudia A. A. Fragmentos e apontamentos sobre Francisco de Paula Brito.


XII Encontro de História Anpuh Rio Identidades. Disponível em:
<http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215644227_ARQUIVO_Fragmen
toseapontamentossobreFranciscodePaulaBrito.pdf>. Acesso em: 12 de janeiro de 2014.

PINHEIRO, Alexandra Santos. Baptiste Louis Garnier: O homem e o Empresário. I


Seminário Brasileiro sobre o livro e a História Editorial. Realização: FVRB – UFF/PPGCOM
– UFF/LIHED. Disponível
em:<http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/homem.pdf> Acesso em
12 de janeiro de 2014.

195 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 182-196, jul.-dez. 2014.


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QUEIROZ, Juliana Maia de Queiroz. A carteira de meu tio: ficcção em Joaquim Manoel
Macedo.In: Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Volume 2 - Número 3 -
Julho de 2010 www.rbhcs.com ISSN: 2175-3423.

SALES, Germana Maria Araújo. Circulação de romances no século XIX.


Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem17/COLE_1360.pdf>. Acesso em: 12 de
janeiro de 2014.

FONTES

Anúncios do Jornal do Commercio catalogados por Juliana Gaiola Sagradim, sob a orientação
de Márcia Azevedo Abreu presentes no Arquivo Edgard Leurenroth localizado no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH):

21 de janeiro de 1855 A
21 de janeiro de 1855 B
24 de janeiro de 1855
26 de janeiro de 1855
30 de janeiro de 1855
08 de fevereiro de1855
10 de fevereiro de 1855
11 de fevereiro de 1855
13 de fevereiro de 1855
15 de fevereiro de 1855
23 de fevereiro de 1855
06 de março de 1855
13 de março de 1855
09 e 10 de Abril de 1855
13 de Abril de 1855
08 de junho de1855
17 de julho de 1855
19 de julho de 1855
09 de agosto de 1855
26 e 29 de agosto de 1855
30 de agosto de 1855
22 e 24 de setembro de 1855
29 de setembro de 1855
19 de outubro de 1855
08 de novembro de 1855
17 de novembro de 1855
24 de novembro de 1855

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

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RENEGANDO O SANGUE:
O INFANTICÍDIO DO JOVEM FORTALEZENSE BEMVINDO LOPES
DE ARAÚJO

Gleiciane Damasceno Nobre


Graduada em História pela Universidade Estadual do Ceará - UECE; Estudante do curso de
Pós-Graduação em História do Brasil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA,
Pesquisadora no Projeto: Capitalismo e Civilização nas Cidades do Estado do Ceará (1860-
1930) na Linha de Pesquisa em Práticas Urbanas do Mestrado Acadêmico de História -
MAHIS.
E-mail: gleicianenobre@yahoo.com.br.

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RENEGANDO O SANGUE: O INFANTICÍDIO DO JOVEM
FORTALEZENSE BEMVINDO LOPES DE ARAÚJO

EN RENIANT LE SANG: L’INFANTICIDE DU JEUNE DE


FORTALEZA BEMVINDO LOPES DE ARAÚJO

Gleiciane Damasceno Nobre

RESUMO RÉSUMÉ
Aos dezessete dias do mês de novembro de 1919, Dans le jour dix-sept de Novembre 1919, pendant
enquanto andava pelo quintal de sua residência, a que marchait dans la cour arrière de sa résidence,
esposa do senhor Júlio Rodrigues da Silva l'épouse de Sir Júlio Rodrigues da Silva, a trouvé
encontrou uma caixa contendo restos de materiais une boîte contenant les restes de matériaux jetés
expelidos durante um parto. No início seu esposo lors un accouchement. Au début, son mari a cru
acreditou se tratar de "tripas de galinha", porém, um qu'il s’agitait de "tripas de galinha", un moment
tempo depois, percebeu a real origem do achado après, il a aperçu la véritable origine de la
levando a referida senhora a desconfiar de sua découverte, il a fait que cette dame soupçonnée de
prima Francisca Pereira da Silva. Ao ser inquirida, sa cousine Francisca Pereira da Silva. Lorsque cela
esta admitiu ter dado à luz a uma criança e tê-la a été interrogé, a admis avoir donné naissance à un
dado a Bemvindo Lopes de Araújo seu namorado e enfant et lui donné à Bemvindo Lopes de Araújo,
amante que, com medo de ter seu "erro" revelado, son petit ami et amant, qui, pour peur de voir leur
pegou a criança, amarrou-lhe um arame entre o «erreur» révélé, a pris l'enfant, l'ont attaché un fil
pescoço e a cintura e colocou-a em uma sentina entre l' cou et la taille et l'a placé dans une cale, de
deixando-a lá até que fosse encontrada sem vida, l'y laisser jusqu'à ce qu'il a été retrouvé mort,
sendo, em seguida reportada a denúncia à polícia. ensuite signalant la plainte à la police. Dans la
Na primeira metade do século XX constatamos, a première moitié du XXe siècle, on trouvé, à partir
partir da análise de processos criminais, que muitas de l'analyse des causes criminelles, que nombreuses
mulheres cometiam o crime de infanticídio para femmes commettaient le crime d'infanticide pour
ocultar sua desonra, mas neste caso percebemos cacher sa honte, mais, dans ce cas, nous avons
uma peculiaridade: o crime fora cometido por um remarqué une particularité, le crime a été commis
homem o que nos leva a refletir até que ponto o par un homme, le quoi nous amène à réfléchir
infanticídio se trata do "pecado" de uma mulher. jusqu’a quel point l’infanticide s’agit du «péché»
Por um longo tempo, aqueles que não estiveram d'une femme. Pendant longtemps, ceux qui n'étaient
entre os grandes nomes ficaram perdidos entre as pas parmi les grands noms ont été perdus entre les
páginas dos processos criminais. A partir da análise pages de causes criminelles. À partir de l'analyse de
desse documento pretendemos compreender como ce document, nous voulons comprendre comment
os homens se sentiam diante da eminência de um les hommes se sentaient sur le point d'un enfant
filho inesperado e como as mulheres faziam para imprévu et comment les femmes étaient à
contornar a natureza e evitar que ambos se contourner la nature et de prévenir les deux deviens
tornassem motivos para exclusão e difamação des motifs d'exclusion et de diffamation devant la
perante a conservadora sociedade fortalezense da conservatrice société fortalezense de l'époque.
época.
MOTS-CLÉS: Infanticide, Fortaleza, Crime.
PALAVRAS-CHAVE:Infanticídio, Fortaleza,
Crime.

198 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.


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A partir da informação de que entre os séculos XIX e XX Fortaleza estava


passando por transformações no que tange aos ideais urbanísticos, políticos, econômicos e
sociais, graças às características trazidas e traduzidas a partir da chegada do capitalismo e do
consequente processo civilizador, percebemos trocas culturais com os estrangeiros,
especialmente os europeus que aqui chegavam, isso acarretou a necessidade de existirem
indivíduos revestidos de novos valores e comportamentos. Esperava-se, cada vez mais, a
presença de mentes sãs em corpos sãos gerando no indivíduo uma sensação de mal-estar na
civilização quando não conseguisse acompanhar tais avanços.

Diante disso, faz-se necessária uma compreensão acerca das relações existentes
(FREUD, 2011, p. 9-11) entre o Eu e o mundo externo. Para Freud (2011, p. 9-11) um Eu
adulto não se conforma sozinho, ele passa por todo um processo de aprendizado, desde a
infância até o momento em que alcança a fase adulta. Além disso, ao longo desse percurso, o
indivíduo, percebido aqui como Eu, não consegue renunciar a determinados tipos de prazer e
acaba assumindo, diante do espaço externo, as procedências inseparáveis do Eu interno. Ou
seja, mesmo quando o indivíduo consegue distinguir o que é interno do que é externo, pode se
posicionar de maneira a confundir-se e sentir-se, de certa forma, perdido. Diante das
sensações de desprazer é travado um conflito entre tais posturas, podendo desembocar em
uma série de distúrbios patológicos.

O fato de o indivíduo estar diante de mudanças modernizadoras que tornavam a


cidade desenvolvida e a sua população civilizada, fazia-o, consequentemente, desejar alcançar
e se adequar a esse progresso, mas isso não era algo simples de acontecer já que o indivíduo
possui uma carga comportamental e emocional proporcionada por anos de influências, sejam
elas do meio social, no qual estavam inseridos, ou da presença e comportamento da família,
ou quem sabe ainda pela ausência desta como pode ser percebido, a partir da análise dos
processos-crime, na vivência da maioria dos populares e da qual fazem parte os réus
retratados neste artigo1. Podemos perceber, portanto, que a formação da personalidade, do
caráter e, consequentemente, das ações de um indivíduo no mundo são reflexos de um

1
Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC – Fundo Tribunal de Justiça, Série Ações criminais, Sub-série
Homicídios, Caixa 05, Processo Nº 1922/02.
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processo que envolve tanto mudanças quanto permanências resultantes do meio social e das
influencias culturais nos quais está inserido. Referimos-nos às mudanças, no sentido das
sensações e dos comportamentos diante do novo e as permanências, a partir da adequação
desse novo a valores pré-existentes.

O caso de que trata o processo de Bemvindo Lopes de Araújo e Francisca Pereira


da Silva traz à tona a história de um casal que resolveu viver intensamente e desfrutar dos
prazeres que emanavam de seus desejos e, quando se viram diante da consumação e prova de
seus prazeres, decidiram remediar a situação com o que tinham à sua disposição. Estamos nos
referindo a pessoas que cederam aos desejos em busca de um prazer que representa, segundo
Freud (2011, p. 12), a felicidade que seria a finalidade e intenção da vida dos indivíduos. Tal
felicidade poderia acontecer de duas formas, uma positiva e outra negativa, onde a primeira
seria representada pela ausência da dor e do sofrimento e a segunda pela busca e vivência de
fortes prazeres. Esta última muitas vezes culminava em ações impulsivas que geravam nos
indivíduos a necessidade de tomar decisões que remediassem suas ações. Isso fica claro
quando, no caso estudado, o casal decide, em comum acordo, enterrar a criança, prova de seu
“erro”, nascendo ela viva ou morta.

O prazer costumava ser tratado como algo que levaria o homem à ruína e quando
pensamos numa relação entre populares, vemos essa situação ser intensificada. Mesmo que
sobre eles recaíssem os olhares vigilantes, não só dos dispositivos de controle social, mas
também dos próprios populares que os rodeavam (NOBRE, 2013, p. 7), o casal conseguiu
encontrar espaço para estabelecer suas relações tidas como “ilícitas” e se entregarem aos
prazeres.

Francisca Pereira da Silva era uma moça, segundo seu namorado, “edosa”, por
possuir 25 anos de idade, era comum o casamento acontecer a partir dos primeiros anos da
puberdade, portanto, quanto mais idade a mulher possuísse mais velha e menos interessante
aos olhos dos rapazes ela seria considerada. A jovem trabalhava com serviços domésticos, não
sabia ler nem escrever e vivia de favor na casa de uma prima e do esposo dela.

Francisca relatou, em seu depoimento, que conhecia Bemvindo há mais de dois


anos e que chegaram a ficarem noivos, o que o rapaz sequer menciona nas folhas que

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compõem seu depoimento. A moça diz que há, aproximadamente, um ano o acusado havia lhe
deflorado e a consumação deste ato fez com que os dois travassem uma constância em suas
relações sexuais. O defloramento, embora fosse considerado crime, só poderia se tornar
processo a partir da aplicação de uma denúncia e, posteriormente, a comprovação da
existência do crime juntamente com a abertura do inquérito policial.

A partir da fala de Francisca percebemos, por exemplo, que muitas moças que
cediam aos encantos e às promessas de casamento dos rapazes acabavam sendo defloradas,
denunciavam seus ofensores e alegavam a restauração de sua honra através do casamento.
Entretanto, segundo o depoimento de ambos os acusados, o casal já obtinham relações sexuais
há algum tempo e, se houvesse tido alguma intenção de denunciar seu amante o teria feito da
primeira vez. Isso nos remete a uma decisão por parte de Francisca de manter a prática das
relações sexuais com Bemvindo, de maneira, extraconjugal.

Os Códigos Penal e Civil, vigentes à época, trazem definições que se


complementam e que compõem um aparato para essas mulheres recorrerem em defesa de suas
honras perdidas. O Código Penal dos Estados Unidos do Brazil de 1890 diz em seu artigo 267
que “Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude” ocasionaria
uma “Pena - de prisão cellular por um a quatro annos.”. O Código Civil de 1916 em seu artigo
1.548 diz que “A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não
puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à sua própria
condição e estado”. O defloramento não consiste em um crime violento, no sentido físico, mas
que se baseia na arte da sedução e do engano aplicada pelos rapazes para conseguirem obter o
prazer desejado. Diante disso, faziam promessas de casamento e, muitas vezes, de amor
eterno. Sendo assim, percebemos que as moças, principalmente as que, como Francisca
decidiam não denunciar seus “ofensores”, faziam uso do silêncio para continuarem a obter
prazer e/ou a manutenção de seus laços com o amante.

Bemvindo Lopes de Araújo, um jovem rapaz com 22 anos de idade, solteiro,


jornaleiro, que não sabia ler nem escrever vivia de favor na residência de sua prima Petronília
Francisca Damasceno e seu esposo o senhor Francisco José Damasceno. Esse rapaz nos
remete a uma contradição presente na sociedade do período onde o progresso estava perto e
ao mesmo tempo longe dos populares. Enquanto carregava consigo e distribuía as notícias do
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progresso e do avanço daquela sociedade, Bemvindo não conseguia ser impactado por ela, a
não ser que o jornal dispusesse da utilização de imagens, pois não sabia ler nem escrever.

O jornaleiro, em seu depoimento, afirmou ter relações sexuais com Francisca por
cerca de dois anos e que a moça lhe contara, em um dado momento, que havia sentido algo
“bolir” dentro dela. No dia do referido crime, a acusada o havia chamado. Ele, todavia, alega
ter chegado após o parto o que se torna uma das variadas peculiaridades presentes neste caso
já que a maioria dos crimes de infanticídio acontecia enquanto a parturiente está sozinha com
medo de ser descoberta e afetada por grande dor. Todas essas características vêm a compor o
que os dispositivos jurídicos chamavam de estado puerperal e que Atayde (2007, p. 47-48)
retrata muito bem ao falar que se trata de uma perturbação psíquica, física e emocional que a
mulher passa durante e logo após o parto quando se encontra nas condições acima descritas.
Tal distúrbio se encaixa no que compreendemos como as patologias geradas pelo conflito
existente no ser humano, quando o seu Eu tem seu interno entrando em choque com os fatores
externos e quando, motivados pelos desejos de alcançar o prazer almejado por todos da
espécie humana, acabam agindo impulsivamente sem considerar as consequências de seus
atos.

O acusado narra, em seu depoimento, que Francisca lhe entregara a criança para
ser enterrada e que ele não havia reparado se a mesma estava viva ou morta. Mesmo assim,
acabou confessando que pegou a criança e amarrou dois pedaços de ferro entre seu pescoço e
cintura, em seguida, lançou-a em uma sentina2. Alegou, ainda, não ter ouvido a criança chorar
e para evitar que as pessoas com quem morava descobrissem que havia tido um filho, se
livrou da prova de seu “erro”.

Nos autos do processo, entre as folhas 9 e 11, os legistas descrevem no auto de


exame e autopsia efetuado no cadáver do recém-nascido que as marcas da ação de Bemvindo
no corpo do infante foram causadoras de lesões no pescoço. Os legistas perceberam que “o
pescoço apresentava uma orla violacea3 ulcerada em algumas partes, indicando perfectamente
que a creança foi laçada e em seguida asphixiada.”(Fl. 10). Percebemos, na atitude de
Bemvindo, o receio de ser descoberto ao se munir de ferramentas que o auxiliassem a

2
Espécie de latrina destinada a acumular os dejetos.
3
Sinônimo de arroxeada; quer dizer que a região do pescoço do infante estava com um hematoma.
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desaparecer com o corpo do infante definitivamente. Não podemos deixar de pensar que se os
materiais expelidos por Francisca não tivessem sido encontrados, o jornaleiro teria,
possivelmente, sido bem sucedido em seu plano levando-nos a reflexão sobre a quantidade de
casos semelhantes ao do casal que podem ter passado despercebidos pelos olhos dos
populares e, consequentemente, pelos da Justiça.

Diante do temor de que seus parentes descobrissem a gravidez de sua amante e o


julgasse que havia sido impulsivo e inconsequente, o rapaz decide “renegar seu próprio
sangue” e evitar as responsabilidades que um filho poderia lhe trazer naquele momento como
a sua formação e a consequente manutenção de uma família.

O crime de infanticídio acabou por se tornar um delito social privilegiado em que


os advogados designados para os casos, enquanto conhecedores das leis, poderiam
simplesmente instruir as mulheres a alegarem a defesa da honra e acabarem obtendo sucesso
ao vê-las recebendo uma pena bem menor do que a prevista para tal crime. O infanticídio era
descrito no artigo 298 do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil da seguinte maneira:
“matar recemnascido, isto é, infante nos sete primeiros dias de seu nascimento, quer
empregando meios directos e activos, quer recusando a victima os cuidados necessarios á
manutenção e a impedir sua morte.” A pena para tal crime era de seis a vinte e quatro anos,
entretanto, em parágrafo único, dizia que “si o crime for perpetrado pela mãe para occultar a
deshonra propria: pena de prisão cellular por três a nove annos”.

O caso abordado é particularmente especial, pois o crime é cometido pelo pai que
não poderia se encaixar em tal parágrafo, no entanto se pensarmos na definição de honra
masculina como algo que não dizia respeito à integridade sexual, mas sim ao comportamento
em outros níveis sociais compreendendo que, ao homem, competia atribuições como ser
trabalhador, pagador de suas dívidas, respeitador, ter palavra e não ser dado à mentira. Se
olharmos ainda para a maneira como essa honra costuma ser restaurada, isto é, com
derramamento de sangue, podemos perceber um sentido para a ação de Bemvindo (BURITI,
2012, p. 148). Além disso, não podemos desconsiderar a hipótese de que o jovem não
estivesse disposto a assumir a paternidade e o sustento daquela criança e da mãe e quem sabe,
nem mesmo contrair matrimônio, o que possivelmente seria, se não imposto, cobrado pelos
familiares e vizinhos quando tomassem conhecimento de suas relações com Francisca.
203 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.
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Entendendo os papeis que ambos teriam que assumir enquanto marido e mulher,
ditados pelo Código Civil de 1916, onde diz, em seu artigo nº 240, que “A mulher, com o
casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos
encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta.” acrescentando
em seu parágrafo único que essa “mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do marido.” E
que diz, em seu artigo 233 que

O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da


mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251).
Compete-lhe:
I - a representação legal da família;
II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido
incumbir administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto
antenupcial (arts. 178, § 9°, I, c, 274, 289, I e 311);
III - o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a possibilidade de recorrer a
mulher ao juiz, no caso de deliberação que a prejudique;
IV - prover a manutenção da família, guardada as disposições dos arts. 275 e 277.
(Código Civil – 1916).

Não podemos desconsiderar o medo, por parte do jovem, de assumir as


responsabilidades acima transcritas, mas também devemos levar em consideração a hipótese
de que o casal possuía certa liberdade para praticar sua sexualidade enquanto os olhares
atentos e vigilantes dos vizinhos não os observavam ou por não poderem provar suas práticas
consideradas chocantes para a sociedade; sendo assim poderiam criar situações por meio das
quais continuariam estabelecendo meios de saciar seus desejos e alcançar os prazeres aos
quais já estavam habituados.

Quando falamos em honra, para as mulheres, pensamos no que Esteves (1989, p.


40) traz como sendo o abordado pelos dispositivos jurídicos, que julgavam tal quesito não
somente pela comprovação da virgindade, mas também pelos comportamentos e condutas das
mulheres. Ao trabalhar as mulheres defloradas na cidade do Rio de Janeiro, durante a
passagem do século XIX para o século XX, a autora apresenta condições de análise pelas
quais essas mulheres tinham que ser submetidas para comprovar, primeiramente, a existência
de sua honra a partir dos depoimentos das testemunhas acerca de seus comportamento e
posturas e, caso fossem julgadas inadequadas para moças honestas, não teriam se quer o
direito de seguir com o processo para alegar a restauração de sua honra.

204 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.


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No caso de Francisca, percebemos nos depoimentos, contradições nos discursos:
enquanto alguns a julgavam desonesta, outros, como o Sr. José Francisco Damasceno, com
quem Bemvindo residia, dissera “que tinha a indiciada em conta de moça honesta e ella como
tal passava perante os seus vizinhos” (Fl. 29). Com o intuito de permanecer, aos olhos de seus
vizinhos, como moça honrada, Francisca decide seguir com a gestação até o final e, em
comum acordo com seu amante, decide enterrar a criança logo após o nascimento. Tomando
como referência que, segundo Corrêa (Apud ROHDEN, 2003, p. 10), somente a partir do
derramamento do sangue a honra poderia ser restaurada, percebemos que o infanticídio se
qualifica, até mesmo pela abordagem com a qual o código penal o trata, em um crime de
honra.

Nos processos de infanticídio, e neste caso em especial, percebemos um foco


constante na questão da honoris causa, o que acaba deixando adormecidos outros fatores que
poderiam culminar na execução do crime como os fatores econômicos incluindo o medo de
perder o trabalho e até mesmo o teto sob o qual viviam.

Nos séculos XIX e XX a honra era algo que deveria ser preservado e, segundo
Rohden (2006, p. 106), o dano que é causado à reputação está diretamente ligado ao alcance
da opinião pública. Então, quando pensamos na questão da honra para os homens, devemos
entender que todo homem é responsável pela sua e somente em último caso ele deve recorrer
a outros meios ou terceiros para auxiliá-lo em sua defesa como fica claro na citação:

Quanto à guarda da honra, todo homem é responsável e árbitro das situações.


Apenas os considerados incapazes (mulheres, doentes, idosos, padres) têm direito a
defensores. Aos outros, recusar-se a enfrentar pessoalmente uma ofensa pode
também produzir desonra (ROHDEN, 2006, p. 106).

Rohden (2006, p. 106) diz ainda que a violência é o recurso característico e, no


caso, recorrer à justiça oficial ou ao Estado era demonstrar sua fraqueza e incompetência. O
que percebemos no caso estudado, é que, a partir de suas ações, Bemvindo assumiu a postura
de defensor e árbitro da sua honra.

É interessante salientar que ao buscar a felicidade a partir da procura incansável pelo


prazer, o homem acaba se perdendo dos propósitos firmados pelos ideais civilizados
entendidos aqui pelo que Silva (2009, p. 59) acredita serem sinônimos de algo que é educado,

205 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.


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bom, culto e incapaz de se envolver com qualquer tipo de violência. Movido pelo desejo
irresistível de satisfazer seus instintos e impulsos, o homem acaba se perdendo do objeto de
tal busca que é a satisfação, pois a partir do momento em que é obrigado a pagar o preço de
seus atos, através da separação de seu Eu do mundo externo (aqui entendido como o convívio
social), ele acaba se distanciando de seu objetivo.

Diante do exposto, faz-se necessária, segundo as ideias de Dos Santos (2010, p. 35), a
compreensão da necessidade não só de domesticar os corpos, mas também o de alcançar e
domesticar as consciências das pessoas e isso se torna viável pela utilização da ferramenta da
disciplina. A partir das punições aplicadas para os indivíduos que cometiam tais crimes e da
veiculação das mesmas pela imprensa, os demais membros da sociedade tomariam
conhecimento que os mecanismos de vigilância e os órgãos de punição estavam ali para
garantir a ordem.

No ano de 1920, o casal é julgado e condenado em grau máximo. O rapaz a cumprir


22 anos e 9 meses de prisão e a moça, por ter alegado a honoris causa, a 8 anos e 9 meses. O
advogado de defesa de Bemvindo não se conforma com o resultado e faz uma apelação. Um
novo julgamento é marcado e neste, as testemunhas alegam que Francisca era moça de bom
comportamento e, somado a isso, o júri considerou a ideia de fragilidade por parte da ré e
acabou concedendo-lhe a absolvição. O réu foi novamente condenado, tendo a sua pena
aumentada para 28 anos e 9 meses de prisão. O promotor de Justiça insatisfeito com a
liberação de Francisca, acabou executando uma nova apelação sem êxito pois, em 1921, a
moça é novamente inocentada. Objetivando mostrar para a sociedade e, principalmente para
os populares que as punições para os excessos de fato aconteciam, o Promotor de Justiça, no
ano de 1922, faz uma nova apelação e consegue que Franscisca seja condenada no grau
mínimo, isto é a 3 anos e 6 meses de prisão.

Entre idas e vindas, este é um dos poucos processos encontrados no Arquivo


Público do Estado do Ceará que estão bem conservados, por nos apresentar o desfecho da
história de Bemvindo a partir da apresentação do pedido de condicional do mesmo. Diante da
análise do trecho que corresponde a tal pedido, percebemos que o réu passou 18 anos, 8 meses
e 14 dias detido na Cadeia Pública da Cidade vindo a sair, sob condicional, somente no ano de
1938. Após tantos anos, o processo o traz como um infeliz que agira de maneira impensada
206 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.
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para ocultar a desonra de sua companheira. De certa forma, percebemos que o rapaz recebera
dos dispositivos jurídicos o perdão para o pecado de mulher que havia cometido.

Através dos processos criminais temos acesso às práticas de homens e mulheres nas
suas relações cotidianas estabelecidas fora dos lugares convencionais, e por isso podemos
resgatar não só seus valores individuais, mas também suas formas de conduta e suas maneiras
de ser e estar dentro de uma sociedade tida como civilizada. Por meio de tais fontes, os
processos-crime, nos deparamos com o momento em que os conceitos de certo e errado, para
uma dada sociedade, entram em conflito, mas também do momento em que o próprio
indivíduo carregado de dúvidas, desejos e anseios entra em conflito consigo mesmo para
alcançar a felicidade e ao desconsiderar as consequências, age instintivamente em busca da
satisfação do prazer findando por se distanciar cada vez mais de seu objetivo já que se
encontra imbuído de uma sensação de mal-estar dentro da civilização.

207 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATAYDE, M. A. “Mulheres Infanticidas”: o crime de infanticídio na cidade de Fortaleza na


primeira metade do século XX. Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade
Federal de Fortaleza. Fortaleza, 2007. (Dissertação de Mestrado).
CORRÊA, M. Apud ROHDEN, F. A arte de enganar a natureza: Contracepção, aborto e
infanticídio no início do século XX. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
BURITI, I. Corpo feminino em detalhes: honra e modernidade no Brasil dos anos 20
(Século XX). Saeculum - revista de história [27], João Pessoa, jul./dez. 2012. P. 143-151.
DOS SANTOS, R. E. Genealogia da Governamentalidade em Michel Foucault.
Dissertação de Mestrado em Filossofia Social e Política, UFMG. Belo Horizonte, 2010.
ESTEVES, M. A. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro
da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução: Paulo Cesar de Souza. – 1ª ed. - São
Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2011.
NOBRE, G. D. Na mira dos populares, na mira da justiça: o crime: e o cotidiano nos
processos de infanticídio (1917-1922). In. XXVII Simpósio Nacional de História. Natal:
ANPUH, 2013.
ROHDEN, F. Para que serve o conceito de Honra, ainda hoje? Campos 7(2): 101-120,
2006.
SILVA, K. V. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Editora contexto, 2009.

∗∗∗

Artigo recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

208 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 197-208, jul.-dez. 2014.


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ENTREVISTA COM O ESTRIGAS

Nilo Brito Firmeza (Estrigas)


Fonte: Acervo pessoal da entrevistadora

Danielle Almeida Lopes


Graduada pela Universidade Estadual do Ceará em Licenciatura em História, atualmente é
bolsista PROVIC/UECE atuando na seguinte linha de pesquisa: "CAPITALISMO E
CIVILIZAÇÃO NAS CIDADES DO ESTADO DO CEARÁ (1860 - 1930)" - Práticas
letradas e urbanidade vinculado ao Mestrado Acadêmico em História da Universidade
Estadual do Ceará (MAHIS\ UECE).

209 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 209-214, jul.-dez. 2014.


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ENTREVISTA COM O ESTRIGAS

Entrevistadora: Danielle de Almeida Lopes

Na tarde chuvosa do dia 17 de Março de 2014, o artista plástico Nilo Brito


Firmeza, mais conhecido pelo apelido Estrigas, nome que carrega consigo desde moço;
recebeu-me1 em seu Sítio Firmeza (uma ilha de calmaria localizada no bairro Mondubim em
Fortaleza –Ceará), para uma conversa sobre arte, modernismo e outros tópicos importantes
relacionados à pintura, tais quais: nomes da arte local e impressões sobre a arte cearense
contemporânea.
Filho de Hermenegildo Brito Firmeza e de Bárbara Brito Firmeza, Estrigas nasceu
no dia 19 de setembro, na Rua Barão do Rio Branco, no Centro da capital cearense. Formado
em odontologia, passa a frequentar a Sociedade Cearense de Artes Plásticas - SCAP, em
1950, onde realiza seus primeiros cursos de pintura e desenho, e torna-semembro da diretoria
desta, em 1953. Exerce a profissão de odontólogo em paralelo com a pintura, atuando como
colaborador de revistas especializadas e jornais de grande circulação da cidade de Fortaleza,
publicando textos sobre artes plásticas.
Nilo Firmeza possui muitos livros publicados, entre eles “Arte – aspectos pré-
históricos no Ceará”, “Artes Plásticas no Ceará” e “Salão de Abril – história e personagens”.
Fez ilustrações para obras literárias. Fundou em 1969 o Minimuseu Firmeza, localizado em
seu sítio, este contou por anos com os cuidados de Nice Firmeza, também artista e esposa de
Estrigase que tinha uma atenção especial não só com o Minimuseu, mas também com o fazer
da arte local.
Optei neste trabalho por fazer uma análise oral na modalidade temática,
explorando pontos da trajetória do sujeito deste trabalho e direcionando as perguntas para que
a entrevista não ficasse cansativa para o entrevistado. Sabemos que história oral trabalha
essencialmente com a memória e a questão da memória toca na imagem que construímos
sobre nós e apresentamos aos outros com um sentimento de continuidade do que produzimos

1
A entrevista foi concedida a Graduanda Danielle Almeida Lopes. Danielle cursa o 8º semestre de História da
Universidade estadual do Ceará, é bolsista CNPq, membro do Grupo de Pesquisa Praticas Urbanas em seu eixo
Praticas Letradas e tem pesquisa voltada para as seguintes área de concentração: História da Arte, História e
Imagens, História e Cidades e História e Urbanização.
210 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 209-214, jul.-dez. 2014.
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em vida, por essa questão, este tipo de fonte deve ser problematizada e questionada para que,
por meio dos filtros certos, possa contribuir para uma pesquisa histórica.
Iremos nos deparar com arte, emoções, lembranças, vivências e sensibilidadesnas
próximas linhas que tem como objetivo principal aprofundar um pouco mais acerca da vida e
produção de Estrigas, além detentar contribuir para o estudo da História da Arte local.

***

Danielle Almeida Lopes - Estrigas, existem livros falando do senhor,


construindo uma história sobre a sua vida, acho que seria interessante começar esta
entrevista sabendo um pouco mais da sua trajetória, mas agora contata pelo senhor mesmo.
Quem é o Estrigas, por que decidiu pintar?
Nilo Brito Firmeza - Assim, eu acho que o Estrigas é um prolongamento do Nilo,
e o Nilo? Quem é o Nilo? O Nilo é um cidadão que nasceu num ano de seca, eu acho que por
isso que ele é pequenininho, franzino, é por que nasceu num ano de seca e dentro do seu
ambiente ele encontrou uma facilidade ou uma tendência para que ele viesse a ter um
conhecimento sobre arte, sobre literatura, sobre história.Por quê? Por que eu tinha uma
biblioteca muito boa em casa. Meu pai era professor de História, de História da Civilização e
eu bebi muito na fonte da biblioteca dele. Foi essa biblioteca que me deu condição de ser o
que eu fui posteriormente, então, o Estrigas nasceu partindo daí. Um irmão que tinha sido
aluno da escola de Belas Artes, e um dia, eu me lembro bem, ele pegou a minha mão e
desenhou um perfil de pessoa. Esse pontofoi a partida, mas não teve prosseguimento na
época. Naturalmente ficou na minha formação e quando houve possibilidade da antiga
vontade de arte se manifestar, ela se manifestou.
D.A.L. - A partir dessa vontade de manifestação de seu talento, quais caminhos
foram traçados, quem te influenciou?
N.B.F. - Quando eu comecei a ver trabalho de arte em revista ou livro, eu
comecei a copiar o que eu via e isso foi se desenvolvendo, a minha pratica de fazer, comecei
fazendo arte de reprodução. Nessa época não tinha educação artística, tínhamos desenho
geométrico mais pra um desenvolvimento da questão espacial, isso é diferente de ensino de

211 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 209-214, jul.-dez. 2014.


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arte. Ninguém me orientou, então eu me desenvolvi a custa de ver exposições, de buscar
conhecerehouve um dia, uma época em que eu fui convidado a conhecer a SCAP, lugar que
eu desconhecia embora já conhecendo alguns artistas da época, mas ninguém me falava de
uma Sociedade Cearense das Artes Plásticas. Tive um convite e eu fui. Lá,eu passei a tomar
conhecimento da técnica do trabalho. Eu não tinha conhecimento técnico. Que material é
esse? Como é que a gente usa isso daqui? Foi aí que eu aprendia usar a teoria e prática. Pra
auxiliar no ensino, a gente ia pintar em campo, ir ver de perto o que eu pintava. A gente ia
para o campo, levando o material e orientado pelos pintores da SCAP. Foi esse o começo,
posteriormente,a gente vai se libertado dos orientadores e caminhando sozinho. E aí eu
continuei, e é assim até hoje.
D.A.L. - O senhor pintava em campo, ia pintar in loco, costumava desbravar a
cidade com outros pintores, mas que cidade era essa? Como Fortaleza era quando vocês a
desbravavam pra pintar?
N.B.F. - Ah, eu posso dizer que era uma moça. Fortaleza era uma moça jovem.
Seus limites eram próximos, posso dizer. A Igreja dos Remédios no Benfica de um lado, de
outro o Passeio Público. Se você fosse lá pra onde hoje é a Bezerra de Menezes, lá era o
Alagadiço, o outro limite era o Estoril, por fim o bairro José Bonifácio e aí acabou. A gente
conhecia e andava Fortaleza toda com folga, andávamos a pé. Fortaleza era uma garota, e a
gente vivia namorando essa garota (risos). O movimento de arte anterior, o liderado pelo
Mário Baratta2 dizia que sua época foi um tempo de descoberta. Dizia ele: “Descobrimos o
riacho do Jacarecanga”, “Nós descobrimos o Poço da Draga, onde deságua do Rio Pajeú”,
“Nós descobrimos o Morro do Moinho”. E ele dizia, esses locais fazem parte da História de
Fortaleza, a gente transformou eles em lugares importantes para a História da Arte de
Fortaleza.
D.A.L. - E por que esses locais foram tão importantes para vocês, artistas, ao
ponto de colocá-los nas páginas da História da Arte no Ceará?
N.B.F. - Olha, porque um exemplo é o Rio Pajeú. Esse Rio serviu para a entrada
dos colonizadores portugueses e holandeses aqui no Ceará. Está na história, a gente vai
colocar na História da Arte, vai ser nosso ateliê e o nosso objeto de pintura. Era como ele

2
O carioca Mário Baratta era pintor e viera a Fortaleza por meio de uma transferência promovida por seu
trabalho no IBGE. Baratta trouxe do Rio de Janeiro o jeito carioca de fazer arte e sua experiência contribuiu para
a modificação na forma de se fazer arte no Ceará.
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chamava, a época das grandes descobertas, (re)descobriríamos a História do Ceará com
nossas pinturas.
D.A.L. - É interessante o senhor falar em pintar in loco, sair do ateliê e
transformar o campo em local de pintura por que antes, no começo do século, os artistas de
grande renome como o Raimundo Cela tinham uma prática de pintar em locais fechados,
tinham seus ateliês em suas casas. Então, pintar em campo significaria dizer que era uma
inovação, ou melhor, uma renovação na pintura local. A quem se devia essa renovação, essa
nova forma de se fazer arte?
N.B.F. - Olha, quando chegou notícia da existência de uma arte moderna aqui, foi
com o impressionismo. E o impressionismo o que é? Qual é o ponto fundamental no
impressionismo? É pintar o que vê, o que a luz der vazão para que você crie, o que a luz
permite que você pinte e isso só é possível em um ambiente livre. Em um ambiente aberto e o
modernismo, com seu aprendizado, levou o pessoal a essa questão do “ir ao campo”. E isso
aconteceu dessa forma, o impressionismo chamou o pessoal para o campo, com sua luz, pintar
o que viu. Agora, eu acho que esse “ismo” nas terminologias é que gera um problema.
D.A.L. - E que tipo de problema os “ismos” geram?
N.B.F. - O problema em torno dessas palavras, desses conceitos sobre os
“ismos”, “modernismo”, “impressionismo”, “abstracionismo” é que o tempo em que ele
acontece na História não é o mesmo da História da Arte. Tem historiador da arte que informa
que o modernismo começou com o impressionismo, outros que começou com o cubismo e
tudo que viria depois não seria modernismo e sim contemporâneo, então, assim a definição do
modernismo fica meio complicada.Um exemplo dessa variação de tempo do desenvolvimento
do modernismo aqui no Ceará pode ser identificado no que se refere a poesia e a arte. Na
poesia, o modernismo começa por aqui no ano de 1927 com a Maracajá, Cipó de fogo. E na
arte? Não tínhamos um desenvolvimento muito expressivo sobre ele, mas no fim da década de
1930, o Barrica e o Tx3 pintavam com todas as características do modernismo em cor, textura,
forma, gestos mesmo não se declarando como tal. Eles seguiam a linha modernista, mas não
tinham a auto-afirmação quanto modernismo.
Quando foi na década de 1940, com a renovação proporcionada pelo Mário
Baratta por aqui é que ele afirmava junto com a SCAP: “Somos modernistas”, “Nós fazemos

3
Barrica e Tx eram pintores cearenses que no final da década de 1940 pintavam sob a influência impressionista
no Ceará, sendo considerados assim por Estrigas como precursores do Modernismo no Ceará.
213 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 209-214, jul.-dez. 2014.
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arte moderna”. No Salão de Abril do ano de 1953 a gente já nota nos catálogos e premiações
duas divisões: uma divisão geral que já existia e uma nova, a divisão moderna, quer dizer, o
Salão de Abril oficializa e reconhece o modernismo, tanto é que divide seu quarto em geral e
moderno. Isso foi bom por que quando as obras modernistas entravam na visão geral, eram
obras gerais, mas agora não, eram obras modernistas.
D.A.L. - Muito bem, em relação a essa questão do modernismo aqui no Ceará, é
comum sempre vermos em destaque a figura de Antônio Bandeira. Onde ele se encaixa neste
processo?
N.B.F. - Ele começou cedo com a professora Mundica. Ela tinha um processo de
escola convencional, de reprodução simples. Pro Bandeira foi bom esse processo por que ele
teve suas primeiras lições. Quando já na década de 1940, ele passou a ter algum conhecimento
de arte, conheceu o trabalho do Van Gogh e o desenvolvimento foi sendo cada vez maior.
Teve a questão de pintar em campo, da paisagem natural, surgiu o convite para participar da
SCAP e com o talento e sensibilidade que ele tinha, tudo isso foi extravasado em seus
trabalhos, tomando moldes abstracionistas na sua forma de pintar. Pintou diferente, passou
pelo estilo impressionista, abstrato, pintava sobre os aspectos modernistas.Então, Bandeira
não foi só importante para a arte local como a nível mundial.
D.A.L. - E na sua opinião, mesmo com essa importância mundial, qual foi a
principal contribuição de Bandeira para a arte cearense?
N.B.F. - Então, com toda a sensibilidade que ele tinha, ele impressionava. Ele
tinha tanta força artística que renovou o espírito dos colegas, estimulou o trabalho dos críticos
com sua poesia e seu destaque. Por isso, por essa nova forma de fazer arte ele foi
merecidamente levado a um meio maior, levou o trabalho e o nome do Ceará para o mundo é
isso que eu tenho a falar.
D.A.L. - Muito bem, agradeço imensamente pelo espaço para esta entrevista, por
sua fala e pela simpatia na recepção, Estrigas.
N.B.F. - Agradeço pelo espaço, pela visita, pela simpatia, companhia. Por me
ouvir.
∗∗∗

Entrevista recebida em maio de 2014. Aprovada em setembro de 2014.

214 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 209-214, jul.-dez. 2014.


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CESSAR DIONISÍACO

No dia de meu falecimento


Todas as impressões
Experiências e sensações
Irão de esvair lentamente

O que existe dentro do corpo meu


Não pode ser mais compartilhado
O possível é apenas ser narrado
E assim será apagado, doce como mel

No dia de meu falecimento


Compreenderei coisas inimagináveis
Serei feliz em meu acalento

E como um grande gozo


De plenitude em dois extremos
Não sou mais vida, só corpo.

Paula Tainar de Souza*

∗∗∗

Poema recebido em maio de 2014. Aprovado em setembro de 2014.

*
Mestranda em História Social – PPGHS pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
E-mail: paula.tainar90610@gmail.com.
215 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 215-215, jul.-dez. 2014.
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